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Parece-me que a virtude é coisa diferente e mais nobre do que as inclinações para a
bondade que nascem em nós. As almas bem ajustadas por si mesmas e “bem nascidas” seguem
o mesmo andamento e apresentam nas suas ações a mesma aparência que as virtuosas. Porém
a virtude significa não sei quê de maior e mais ativo do que, por uma índole favorecida, deixar-
se conduzir docemente e tranquilamente na esteira da razão. Aquele que com uma doçura e
complacência naturais menosprezasse as ofensas recebidas faria coisa mui bela e digna de
louvor; mas aquele que, espicaçado e ultrajado até o âmago por uma ofensa, se armasse com
as armas da razão contra o furioso apetite de vingança e após um grande conflito finalmente o
dominasse, sem a menor dúvida seria muito mais. Aquele agiria bem, e este virtuosamente: uma
ação poder-se-ia dizer bondade; a outra, virtude, pois parece que o nome de virtude pressupõe
dificuldade e oposição, e que ela não pode se exercer sem combate.
Talvez seja por isso que chamamos Deus de bom, forte e liberal, e justo; mas não O
chamamos de virtuoso: Os Seus atos são todos naturais e sem esforço.
Metelo, o único de todos os senadores romanos a se ter proposto, pela força da sua
virtude, a resistir à violência de Saturnino, tribuno do povo em Roma, que queria à viva força
fazer passar uma lei injusta em favor da plebe, e tendo assim incorrido nas penas capitais que
Saturnino estabelecera contra os que a rejeitassem, mantinha com os que naquela situação
extrema o conduziam à praça uma conversa assim: que agir mal era coisa fácil demais e muito
covarde, e agir bem quando não houvesse risco era coisa vulgar; mas agir bem quando houvesse
risco era o próprio ofício de um homem de virtude.
Essas palavras de Metelo representam-nos muito claramente o que eu queria provar: que
a virtude rejeita a comodidade como companhia; e que esse caminho fácil, ameno e em suave
declive, por onde se conduzem os passos bem ajustados de uma boa inclinação natural, não é
o da verdadeira virtude. Ela pede um caminho áspero e espinhoso; quer ter ou dificuldades
externas para combater, como a de Metelo, por meio das quais o destino se compraz em
interromper o vigor da sua marcha, ou dificuldades internas que lhe são provocadas pelos
apetites desordenados e pelas imperfeições de nossa condição.
Montaigne, in 'Ensaios'.
(Michel Eyquem de Montaigne, Ensaísta/Escritor, França 28 Fev 1533 // 13 Set 1592).
Felicidade e Virtude
Como, ao que parece, há muitos fins e podemos buscar alguns em vista de outros: por
exemplo, a riqueza, a música, a arte e, em geral, todos aqueles fins que podem denominar-se
instrumentos, é evidente que nenhum desses fins é perfeito e definitivo por si mesmo. Mas o
sumo bem deve ser coisa perfeita e definitiva. Por conseguinte, se existe uma só e única coisa
que seja definitiva e perfeita, ela é precisamente o bem que procuramos; e se há muitas coisas
deste género, a mais definitiva entre elas será o bem. Mas, em nosso entender, o bem que
apenas deve buscar-se por si mesmo é mais definitivo que aquele que se procura em vista de
outro bem; e o bem que não deve buscar-se nunca com vista noutro bem é mais definitivo que
os bens que se buscam ao mesmo tempo por si mesmos e por causa desse bem superior;
numa palavra, o perfeito, o definitivo, o completo, é o que é eternamente apetecível em si, e
que nunca o é em vista de um objeto distinto dele.
Eis aí precisamente o carácter que parece ter a felicidade; buscamo-la por ela e só por
ela, e nunca com mira em outra coisa. Pelo contrário, quando buscamos as honras, o prazer, a
ciência, a virtude, sob qualquer forma que seja, desejamos, indubitavelmente, todas essas
vantagens por si mesmas; pois que, independentemente de toda outra consequência,
desejaríamos cada uma delas; todavia, desejamo-las também com mira na felicidade, porque
cremos que todas essas diversas vantagens no-la podem assegurar; enquanto ninguém pode
desejar a felicidade, nem com mira nestas vantagens, nem, de maneira geral, com vista em
algo, seja o que for, distinto da felicidade mesma.
(...) Todavia, ainda convindo conosco em que a felicidade é, sem contradita, o maior dos
bens, o bem supremo, talvez haja quem deseje conhecer melhor a sua natureza. (...) Mas o
bem, a perfeição para cada coisa, varia segundo a virtude especial dessa coisa. Por
conseguinte, o bem próprio do homem é a atividade da alma dirigida pela virtude; e, como há
muitas virtudes, será a atividade dirigida pela mais alta e a mais perfeita de todas. Acrescente-
se também que estas condições devem ser realizadas durante uma vida inteira e completa,
porque uma só andorinha não faz a Primavera, nem um só dia formoso; e não pode tampouco
dizer-se que um só dia de felicidade, nem mesmo uma temporada, bastam para fazer um
homem ditoso e afortunado.