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construções e desconstruções
Resumo
O que é ser negro? Como se construíram os marcadores que indicam um pertencimento étnico-racial na
sociedade brasileira? Tais questões sinalizam o debate que será apresentado neste trabalho, a construção
social da identidade étnico-racial. Estas referem-se às identidades processadas na dinâmica histórica,
tensa e conflituosa que estruturou as relações raciais na sociedade brasileira. Desse modo, destaco as
ideologias que reservaram um “lugar” determinado para indivíduos negros(as): o racismo científico de
finais do século XIX, o ideal do branqueamento e a ideia de democracia racial. A noção de lugar é uma
referência às representações e imagens simbólicas, fornecidas pelas ideologias, que atingem os sujeitos
quanto à definição de si mesmos, bem como, suas experiências e sentimentos de pertença e autoestima.
As ideologias influenciaram práticas de racismo, mas também estimularam/am práticas de resistências,
referentes às desconstruções de imagens e estigmas e ao reconhecimento de uma identidade étnico-racial
positivada. Assim como consideração final, a discussão contribui com o entendimento ser negro não é
uma construção inata, mas diz respeito a um lugar social e simbólico, a um modo de ser/estar na
sociedade e de se relacionar com outros membros. Este artigo é parte integrante de um trabalho de tese
que, de modo geral, visa analisar os discursos e experiências relacionados ao pertencimento étnico-racial
de sujeitos inseridos em grupos do movimento negro em São Luís/Maranhão.
1 Introdução
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Doutoranda em Ciências Sociais no programa de Pós-Graduação em Ciências Sociais, da Universidade
Federal do Maranhão (UFMA).
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FANON, Frantz, 2008.
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exemplo que localizava o indivíduo fruto de uma classe social) para uma concepção mais
relacional.
Em uma concepção relacional e moderna, o indivíduo é construído nas interações
sociais, espaços de socialização, que influenciam formas de agir, ser, viver e pensar o
mundo, construir, produzir símbolos, lutar, resistir. O indivíduo é um sujeito histórico.
Na relação indivíduo-sociedade, os sistemas culturais e suas representações
servem de referência estrutural ao fornecer “lugares” sociais para que cada indivíduo
possa alinhar e projetar seus sentimentos subjetivos. De acordo com HALL (2006, p. 12),
“as identidades que compunham a paisagem social “lá fora” e que asseguravam nossa
conformidade subjetiva com as “necessidades” objetivas da cultura, estão entrando em
colapso”, o qual pode ser entendido como uma perspectiva de descentramento do
indivíduo tanto do seu lugar social e cultural, quanto de si mesmo.
O colapso que influencia um novo sentido à construção das identidades é
corolário de mudanças estruturais que marcam o contexto contemporâneo, denominado
por muitos autores como modernidade tardia, modernidade líquida, pós-modernidade,
dentre outros termos, e caracterizado por: a) um momento de fragmentação de valores e
dispersão de referenciais da vida cotidiana (LE BRETON, 2004); b) a nova paisagem
política advinda do surgimento dos novos movimentos sociais que trazem à cena
questionamentos e outras dimensões (simbólicas e identitárias) de representação do
indivíduo e da vida social: o feminismo, o movimento negro, movimentos de libertação
nacional, etc.
Desse modo, o indivíduo não é visto como único, estático ou imutável. À medida
que os sistemas de significação e representação cultural se multiplicam a partir de novas
dimensões, ele passa a ser confrontado por uma multiplicidade de identidades possíveis,
com cada uma das quais pode se identificar, ao menos temporariamente (HALL, 2006).
Observemos também outro aspecto ligado ao conceito de identidade: a relação
“nós” e “outros”, isto é, identidade e diferença. Ambas as dimensões são comumente
entendidas como formas distintas, mas há uma estreita dependência entre elas. Afirmar o
que se é, envolve a não afirmação de outras identidades, e isto pode ocorrer a partir da
seleção de distintos critérios e traços atribuídos que servem de marcas distintivas entre os
grupos. Há “uma cadeia, em geral oculta, de declarações negativas ou positivas sobre
(outras) identidades” (SILVA, 2000, p.75).
SILVA (2000) e HALL (2006) destacam que além de se constituírem de forma
dependente, identidade e diferença são criações linguísticas que se manifestam no senso
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muitas vezes ao indivíduo negro um afastamento de si, ou como nas palavras de Fanon já
citadas aqui, “um desejo de ser branco”.
Neuza Santos Souza (1983) destaca também a interiorização de estigmas e
sentimentos de vergonha, humilhação, sensação de inferioridade de seus valores e
crenças e dificuldade na aceitação das diferenças e da identidade racial, como
consequências decorrentes de uma história marcada pela negação.
Hoje, vemos diversos casos que irrompem nas mídias que mostram claramente a
existência de um preconceito racial que independe da classe social: notícias com
jogadores negros de futebol, atores negros, profissionais liberais negros, situações de
vunerabilidade de negros frente aos aparelhos de monopólio da violência física do
Estado, etc. São exemplos que provam a existência de um “lugar” simbólico a estes
indivíduos e também como a imagem do grupo na sociedade engendra complexos de
inferioridade e negação da diferença.
Cabe aquilo que Melucci (2004) afirma sobre a formação da identidade como
dependente do retorno de informações vindas dos outros. Os estigmas, as situações
críticas, os exemplos de racismo e discriminação que ocorrem à luz do cotidiano são por
excelência momentos em que o indivíduo é submetido às expectativas e definições
contraditórias, que podem comprometer a produção e reconhecimento do próprio eu.
Chegamos então às seguintes considerações sobre as identidades étnico-raciais:
comportam narrativas da diferença, mas sem marcar uma polarização estanque entre o eu
e o outro ou a visão de uma subjetividade em essência; estão para além do individual,
como realidades construídas mediante o contexto social, os processos de socialização,
influenciados por um sistema de referência cultural e histórico que relegou subalternidade
e exclusão simbólica e material.
Além destas dimensões, o tema da identidade étnico-racial tem sido expressão
enfática dos movimentos negros contemporâneos, pois a sua construção é também uma
tomada de consciência política, ou seja, uma reação aos lugares de subalternidade.
Autores como Castell (1999) e Ferreira (2000) trazem momentos de constituição deste
processo de conscientização política, que podem ser entendidos como modelos, tipos-
ideais. Em resumo há um sentido de autoria que perpassa primeiramente pela submissão e
aceitação de valores que esvaziam a auto identificação racial. Em seguida, pelo “acordar”
do indivíduo frente à situações que desestabilizam e revelam uma condição de
desvalorização do mesmo. E, em terceiro, o projeto, a militância, onde há a busca de
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Negritude é entendida como afirmação do negro pela valorização de sua cultura, dotada de uma
variedade étnica e racial dos diferentes estoques africanos, o que implicaria uma variedade de
manifestações (MUNANGA, 1986).
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concebida como um corpo doente, sob o qual médicos, juristas e teóricos teriam a
missão de dar diretrizes para levá-lo à sanidade.
Portanto, a mestiçagem foi um aspecto que levantou indagações à intelligentsia e
aos anseios das elites do período, após a abolição da escravatura (1888). Como pensar o
ex-escravo não mais como instrumento de trabalho, mas como componente da
nacionalidade brasileira? Ou como inserir os negros e os mestiços no discurso da Nação
moderna? Contra os prognósticos negativos à nação brasileira, teses, estudos e
pesquisas surgirão como uma possibilidade de “solucionar” o então problema.
A resposta advém de fora. As teorias racistas europeias forneceriam as bases
para a construção de um discurso nacional em fins do século XIX. E estas, por sua vez,
refletirão o próprio estado da ciência da época. Era o momento da busca da
consolidação das ciências humanas e sociais como um campo de saber científico. A
antropologia, por exemplo, nasce influenciada pelos modelos de explicação das ciências
exatas e naturais, fazendo uso de termos tais como “leis”, “organismo”, “função”,
“seleção”, “raça”, etc. para entender a origem da diversidade cultural do mundo e,
ainda, as justificativas para os fenômenos que inauguram a modernidade (colonialismo,
capitalismo, revoluções etc.)4.
SKIDMORE (2012) resume as teorias racistas a partir da sistematização em três
escolas: a primeira etnológico-biológica, onde predominavam as medições fisiológicas
e craniológicas e classificações taxonômicas, que resultaram em um gabinete de
curiosidades e coleções. Era o momento científico de fundação de uma Antropologia
profissional.
A segunda é a Histórica, representando Gobineau, onde se utilizavam evidências
históricas para mostrar que a raça branca tinha alcançado um grau de civilização e
superioridade. O culto do arianismo também é característico desta perspectiva. “A
definição do termo ariano sempre foi fugidio. Se começou indicando uma categoria
linguística, logo passou a ser entendido como branco nativo do norte da Europa. O
termo era também facilmente traduzido como „nórdico‟, o que muitos preferiam”
(SKIDMORE, 2012, p. 95).
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Momento inicial da constituição do campo de conhecimento antropológico, a Antropologia física tinha
como preocupações a análise da forma e mensuração dos crânios, a pigmentação da pele, dentre outros
aspectos que associavam particularidades morfológicas e fisiológicas, na comparação evolutiva entre as
raças. O darwinismo e o evolucionismo, paradigmas biológicos, influenciaram o período. No início do
século XX, no entanto, Franz Boas nos EUA promove uma virada antropológica ao criticar os
determinismos biológicos e evolucionistas. Segundo Boas o foco da análise deveria ser as instituições, os
comportamentos e as práticas culturais dos homens, inaugura assim a Antropologia Cultural.
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“Congresso Universal das Raças”, em 1911. Neste evento, Lacerda frisou que o Brasil
passava por um processo de embranquecimento e a extinção da raça negra seria uma
questão de tempo.
O branqueamento parecia ser uma espécie de esperança nacional no momento de
incerteza causado pela abolição do Brasil. O termo foi, assim, citado por nomes como
Euclides da Cunha, Sílvio Romero, Paulo Prado, Oliveira Viana, Gilberto Freyre, Nina
Rodrigues entre outros. E segundo Munanga (2008), todos estes autores estavam
interessados na formulação de uma teoria do “tipo étnico brasileiro”, isto é, na questão
da definição do brasileiro enquanto povo e do Brasil como nação. Suas teses em alguns
pontos se mostravam semelhantes, em outros discordavam, mas todos eram
coincidentes no lugar de estigmatização do negro.
Nas primeiras décadas do século XX, o processo de urbanização e
industrialização trazem mudanças ao contexto brasileiro. Gilberto Freyre surge no
período na alcunha de contribuir com o discurso da nação: trouxe a visão nova e
positiva que a miscigenação era positiva em si mesma e não apenas no fato de que
levaria ao branqueamento da população. Seu livro Casa Grande & Senzala, de 1936,
trazia como argumento que a miscigenação era fruto de três matrizes fundadoras, índio,
negro e o branco. Como consequência, teríamos um sincretismo, onde cada uma destas
três teria uma contribuição específica para a formação social.
De acordo com SCHWARCZ (2010), o livro oferecia um novo modelo para a
sociedade multirracial brasileira, invertendo o antigo pessimismo e introduzindo os
estudos culturalistas como modelo de análise.
Neste momento observa-se que o lugar do negro é relativizado, embora
permaneça na subalternidade, enquanto era diluído na ideia de um Brasil singularizado
em uma convivência cultural e na superação de conflitos e divisões raciais.
A fim de entender esse processo de “harmonização”, a UNESCO em 1950
encomendou uma pesquisa para investigar os fatores favoráveis e desfavoráveis às
relações raciais no Brasil, frente a este processo. Como resultado, observou-se a
existência de profundas desigualdades entre brancos, negros e indígenas no país.
Somente neste ano, pesquisas e estudos demostraram então a contradição entre um
discurso e a realidade expressa nas práticas cotidianas. O mito de que vivemos
racialmente de forma democrática, desencadeado pela obra de Gilberto Freyre e
ganhado forma posteriormente, foi trazido à tona como dissimulador do racismo.
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As comunidades negras hoje reconhecidas como remanescentes de quilombos têm como motor de luta o
direito de posse das terras por elas ocupadas. Mas classifica-se como movimento de cunho identitário
uma vez que a luta se trava também pelo reconhecimento de suas particularidades e diferenças étnico-
raciais.
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5 Considerações Finais
REFERÊNCIAS
DEUS, Zélia Amador de. A Questão Racial no Brasil. [S. l.: s. n.]. 2000.
MUNANGA, Kabengele. Negritude: usos e sentidos. São Paulo: Editora Ática, 1988.