não vive também atrás do "furo" de investigação que lhe ga-
Precisamos retomar às origens simples
rantirá prêmios, novas verbas e tranquilidade para trabalhar?
Pesquisar é cobrir radicalmente o aparente. A essência
da técnica é um imaginário. A essência da técnica jornalística
ameaça a cobertura como descobrimento, limitando-se à reve-
lação do evidente. O perigo, como mostrava Heidegger, não
vem das máquinas, mas da essência da técnica, o que pode
impedir o retomo ao engajamento inicial: cobrir para desco-
brir. O correto sufoca a verdade. A regra (técnica) impede a
novidade narrativa. Da mesma forma, a couraça metodoló-
gica pode gerar tranquilidade e conformismo, impedindo a
novidade teórica e a troca das lentes. Se o perigo no jornalismo
já não vem tanto da manipulação, mas do privilégio à correção
em lugar da verdade (aquilo que se esconde sob o exato), o
perigo na pesquisa não vem tanto dos riscos da aventura, mas
do excesso de garantias metodológicas. Se a produção da
técnica moderna funciona como "pro-vocação", a técnica jor-
nalística pós-industrial (fase do virtual) funciona como espeta-
cularização, e a metodologia na pesquisa pode funcionar como
garantia de se chegar sempre às mesmas conclusões. Nos dois
casos, os campos recobertos são alterados, interpelados, sub-
metidos à forte pressão e obrigados a liberar energias (naturais,
I
sociais, culturais, políticas, econômicas) capazes de sufocá-
los. O pesquisador, ao contrário do jornalista, tem por obrigação
repensar a cada dia o seu fazer.
Pesquisador ejornalista fazem o mesmo trabalho? Obvia-
mente que não. O pesquisador deve levar às últimas consequên-
cias uma operação' de compreensão/explicação.
4 O ESQUEMA 3-4-5-6
Uma metodologia complicada, excessivamente construí-
da, artificial, faz o objeto da}'respostas complicadas e artificiais.
28
É ~m processo de tortura.
e retomar a ciência, para usar expressões heideggerianas, como:
- modo de desvendamento
- modo de desvelamento
Um processo de descobrimento pela observação siste-
mática. Desvendar significa tirar a venda dos olhos do obser-
vador. Desvelar significa tirar o véu que encobre o objeto.
Pesquisar significa trazer à razão. Ao final de irn trabalho de
pesquisa, de uma monografia, de uma dissertação ou de uma
tese, o pesquisador deve ser capaz de responder a algumas
questões muito simples e claras:
- O que foi desvendado?
- O que foi desvelado?
- O que passou de encoberto a descoberto?
- O que emergiu?
- O que veio à tona?
Pesquisar é "fazer-vir", passar do encoberto ao desco-
berto, fazer o objeto dizer "o que ele é". Metodologias artificiais
levam o objeto a dizer o que ele não é, mas que se toma por
conformação metodológica. O pesquisador, ao final do seu
percurso, deve poder responder a mais uma pergunta objetiva e
"pro- vocati va":
- Como "fez vir"?
Em outras palavras:
- Como descobriu o que estava encoberto?
- Como fez emergir o encoberto?
- Como fez o objeto falar?
- Como fez para passar do "correto" (exato) ao verdadeiro?
A boa metodologia é só isso. Como fazer passar do
encoberto ao descoberto. As narrativas do vivido e do imaginário
pretendem fazer falar o que há de real no imaginário e o que há
de imaginário no real (vivido). Pressuposto: todo imaginário é
real, todo real é imaginário. Nessa formulação há algo encoberto:
não é obviamente que o real inteiro seja imaginário (operação
29
de superfaturamento simbólico), mas o imaginário inteiro é real.
Existe na sua dimensão. Passar do encoberto ao descoberto, no
caso, significa identificar as camadas de imaginário no real (no
vivido ou plasmado numa obra simbólica) e as camadas de real
num imaginário (as marcas do concreto no redimensionado
simbolicamente) .
O ideal numa pesquisa é quando há simultaneamente
desvéndamento e desvelamento. Às vezes, porém, isso não
ocorre e mesmo assim o resultado é positivo. Num trabalho de
iniciação científica, por exemplo, pode haver mais desven-
damento do que desvelamento. Ou seja, o processo de obser-
vação sistemática e de análise faz cair a venda dos olhos do
jovem pesquisador embora não necessariamente revele uma
novidade ou faça uma descoberta. A ciência deve ajudar a
mudar as lentes - categorias de percepção - das pessoas quando
essas lentes, por força do senso comum, encobrem mais do que
descobrem. O primeiro, no entanto, a ter de mudar de lentes
deve ser o pesquisador. Existem duas mudanças de lente: uma
como procedimento (estranhamento), outra como resultado, ou
seja, consequência do "fazer-vir", desse desvendamento.
4.1 Problemas e hipóteses
As melhores pesquisas quase sempre são aquelas que
partem de um bom problema. Um bom problema é aquele que
pode ser formulado numa pergunta rápida. Uma pergunta rápida
é aquela que depois de uma breve premissa ou não e de umas
duas linhas termina num ponto de interrogação. Aposto que
ninguém tinha pensado nisso. Quem estiver em dúvida sobre a
clareza do seu problema, aplique o teste da mesa de bar. É ba-
tata (ou batatinha). Se, numa mesa de bar, alguém perguntar
qual ~ o seu problema de pesquisa (isso acontece cada vez mais
em bares fashion e provoca paixões espetaculares) e a resposta
tiver mais de duas frases ou mais de dez minutos, acredite: há
algo muito errado. Mais do que isso: há um problema. Quer
30
dizer, o problema é que não há um problema (de pesquisa). Em
comunicação, um bom problema pode ser formulado assim:
- Por que as pessoas veem o Big Brother?
Ou:
- Por que só o Brasil teve direito a 12 edições do Big
Brother?
As possíveis respostas são as hipóteses. Elas podem ser
altamente "sofisticadas" e "originais":
- Porque as pessoas são idiotas.
- Porque nada têm para fazer na vida.
Ou afetadamente psicologizantes:
- Porque são "voyeurs" (adoram espiar pelo buraco da
fechadura).
Ou, enfim, a hipótese de Jean Baudrillard (Revista
Famecos, n° 17, 2000):
- A democracia radical (programas como o Big Brother
permitiriam a qualquer um ser famoso sem precisar pagar o
preço da fama, a realização, própria dos sistemas elitistas, de
algo extraordinário, o que geraria alta identificação dos teles-
pectadores).
No "Big Brother Brasil" o ganhador não chega à vitória
por se "fingir de morto", mas por ser "morto". É radicalmente
democrático. A fama ao alcance de todos.
As respostas podem ser ou não pertinentes. Devem ir
do mais simples ao mais complexo, do mais convencional ao
mais discrepante, do óbvio ao prospectivo. Perguntas velhas
podem gerar respostas velhas ou novas. Respostas velhas difi-
cilmente produzem perguntas novas. As hipóteses exigem tra-
balho de investigação. Confirmá-las ou refutá-Ias é o trabalho
do pesquisador.
Como?
Eis a questão da metodologia.
Podem existir muitos tipos de hipóteses. Pode ser útil
dar nome àquelas que parecem as mais frequentes:
31
 - Hipóteses de confirmação: parecem ser as mais comuns.
Parte-se. do senso comum ou de uma "intuição" forte e faz-se
um acompanhamento, uma observação sistemática para tentar
comprovar aquilo que se apresenta previamente como verda-
deiro. Tem a vantagem de emanar de uma convicção ou de uma
"pré-evidência" e a desvantagem de já existir como um núcleo
forte. É preciso lembrar balzaquianamente que nem tudo o que
é verossímil é verdadeiro. Ou heideggerianamente que o correto
nem sempre é verdade profunda. Não é preciso acreditar em
essência das coisas para adotar esse procedimento. Basta pen-
sar que os fenômenos têm várias camadas de "verdade". O
verossímil é uma delas. O correto (exato) é outra. O pesquisador
deve fazer emergir a camada mais profunda possível de uma
verdade complexa.
- Hipóteses de exploração: nem sempre é possível ter a
convicção de que se chegou à camada mais profunda de verdade
sobre um fenômeno. Muitas hipóteses são sabidamente explo-
ratórias. Indicam caminhos, "pro-vocam" o objeto, testam sua
resistência, ajudam a invalidar pretensas verdades. Mesmo
inconclusivas, são muito úteis. '
- Hipóteses de especulação: dominam os ensaios. Têm
grande valia para trabalhos de argumentação. São úteis em
operações abstratas baseadas na lógica.
- Hipóteses de refutação: a exemplo das hipóteses de
confirmação, partem de um a priori forte, de uma convicção
poderosa ou de uma "intuição" robusta para tentar derrubar o .
senso comum.
- Hipóteses de inversão: são, em geral, as mais polêmi-
cas, desconcertantes e prospectivas. Investem menos contra o
senso comum e mais contra dogmas, mitos, certezas e "verdades"
cient~ficas e/ou históricas consagradas e protegidas. Estão na
base das operações de "desconstrução".
As hipóteses escolhidas costumam descobrir um enco-
berto inicial: a personalidade do pesquisador. Em certo sentido,
32
em primeiro lugar, elas são um modo de desvelamento de quem
as formuloul Há os que desejam confirmar tudo e não supor- I
tam refutações. Há os que gostam de especulações, mas odeiam
sujar as mãos nos campos de pesquisa em busca de confirma-
ções ou de refutações empíricas. Há os que adoram formular
hipóteses exploratórias originais, mas detestam passar da ficção
ao científico, temendo passar do criativo ao banal. Há, por fim,
os que só pensam em tudo desmontar. Se há verdade, elas são
contra. Ou seja, estão sempre prontos para formular uma hipó-
tese de inversão e para sair em busca dados que a confirmem.
As hipóteses de confirmação, em geral, partem dos fatos, do
"real", do concreto, do vivido. As hipóteses de inversão quase
sempre surgem da reflexão ou do diálogo com outras hipóteses!
O confirmador teme as aventuras radicais. Gosta de verdades
caseiras. O inversor é um antidogmático obstinado que pode
correr o risco de ver dogmas em tudo., É sempre interessante
que um ponha as lentes do outro para dar uma olhada no mundo,
esse vasto parque de observação.
Poderia ser divertido inventar um teste de personalidade
para pesquisadores com base numa tipologia de hipóteses for-
muladas. Algo assim: responda às perguntas abaixo e descubra
que tipo de pessoa você é.
1 - Sempre que se depara com um novo objeto de estudo
você formula hipóteses que tendem a:
a) Confirmar o senso comum.
b) Confirmar o conhecimento científico preexistente.
c) Refutar o senso comum.
d) Refutar o conhecimento científico preexistente.
e) Inverter tudo o que se dizia e pensava até ali.
Resultado: se respondeu "a" ou "b" em oito de dez ques-
tões é muito provável que você seja um conservador. Ou, outra
hipótese, um homem muito cauteloso. Se respondeu "e" em
todas as questões, atenção: você pode ser classificado como um
perigoso caçador de mitos.
 4.2 Referencial teórico e metodologia
Aviso importante: sempre que um candidato amestrado
ou doutorado entra na sua sala e diz com os olhos brilhando que
deseja fazer uma pesquisa para aplicar o autor "X" ou "Y", faça
uma das cinco coisas seguintes:
1) Enxote-o sem dó nem piedade (mesmo que ele queira
trabalhar com o seu autor predileto).
2) Mande-o ler 50 autores que pensem o oposto.
3) Convença-o a investir no mercado imobiliário.
4) Permaneça em silêncio até que ele desista.
<i» Explique-lhe que o referencial teórico deve ser conse-
quência do objeto a ser estudado.
O pesquisador deve ter, antes de tudo, um objeto bem
definido a estudar, não um autor a aplicar.
Parece que no Rio de Janeiro todos querem aplicar Deleuze
a alguma coisa. Em São Paulo, houve uma onda de Bourdieu e
Foucault para tudo. Em Porto Alegre, certamente com alguma
modesta influência minha, aconteceu uma febre Morin-
Baudrillard - Maffesoli. O referencial teórico é uma lente. Se o
pesquisador já a usa desde antes de olhar o objeto e a considera
perfeita, a sua tendência será enxergar tudo do mesmo m090 ou
com o mesmo grau de miopia. O referencial teórico é um olhar
tomado de empréstimo. Ajuda a ver o fenômeno estudado. Amplia
o campo de observação. Não é uma visão de mundo completa
nem substitui o olhar do pesquisador sobre o seu objeto.
A paixão obsessiva .por um referencial teórico cega:
encobre a lente. O paradoxo do referencial teórico consiste em
saber que é indispensável (faz parte das regras do jogo aca-
dêmico, embora alguns o considerem vulgarmente uma maneira
de "encher linguiça", o que se chama mais elegantemente em
francês de remplissage), mas que, como um óculos em certos
tipos de deficiência visual, deve ser tirado do rosto para que se
enxergue melhor. Ou seja, para que se veja com outros olhos.
34
Um trabalho acadêmico é um gênero narrativo que obedece a
determinadas regras de exposição e construção do cenário.
Há cada vez mais um interessante desencontro entre
metodologia e referencial teórico. Ou uma duplicação. Um
estudante pode fazer uma dissertação tendo como referencial
teórico o newsmaking e como metodologia a análise de dis-
cursc.Xiutro pode usar a teoria de complexidade de Edgar
Morin como referencial teórico e a análise de conteúdo como
metodologia. A pesquisa de campo, que costuma menosprezar
os ensaios, usa frequentemente trabalhos de ensaístas como
referencial teórico. Alguns entendem que o referencial teórico
fornece conceitos para fazer falar o objeto. Nesse caso, os
conceitos ajudam descobrir o que estava encoberto. Não seria
isso uma metodologia? Não seria isso o "como"? O "como" fez
para o encoberto tornar-se descoberto.
Há algo encoberto aí. Uma metodologia é uma ferra-
menta (uma técnica), mas não é neutra, logo implica uma visão
de mundo. Um referencial teórico é uma visão de mundo. O
ideal é fazer derivar a metodologia do referencial teórico. É o
que se pode ,e deve fazer com Edgar Morin. Na maior parte das
vezes, porém, isso não ocorre. Para que serve então o referencial
teórico num trabalho acadêmico com vistas a título? Para que o
autor demonstre erudição. Faz parte da regra implícita do jogo.
Para que o autor mostre que sabe o que já foi dito antes sobre
ou em torno do seu campo de, interesse.' Para que o autor não
pense estar inventando a roda em casos de mera repetição de
argumentos ou de pontos de vista. Ou, quando se trata da
genealogia de um conceito, para indicar a evolução do termo e
suas possibilidades futuras.
Na prática, referencial teórico e metodologia, às vezes,
contradizem-se ou nem se cumprimentam. Terminado o refe-
rencial teórico, o autor do trabalho escolhe uma metodologia
para analisar seus dados e esquece seu pano de fundo, seu olhar
emprestado, sua colagem de autores. Há quem prefira, para evitar
35
contradições flagrantes e manter a unidade, que seja escolhido
um autor-base e excluídos todos os que se oponham a ele. Outro
encoberto se descobre aí: o caráter parcial e aleatório do referen-
cial teórico. Num caso desses, basta trocar a lente (o referen ial
teórico) para que o resultado se revele totalmente diferent O entra no mato sem um plano e algumas ferramentas) e
olhar conforma o objeto.
Num trabalho exaustivo, rigoroso, o autor deve confrontar
os diferentes olhares e ser capaz de:
a) Fazer a mediação entre eles.
b) Superá-los.
c) Gerar uma síntese.
d) Mostrar se eles podem ser dialogicamente antagônicos e
complementares.
e) Apontar pontos fortes e fracos em cada um deles.
Um referencial teórico que não é posto a dialogar com
seus oponentes facilita a execução de um trabalho acadêmico,
mas não passa de um monólogo bem cômodo.
Os processos industriais de produção de trabalhos aca-
dêmicos tendem a impedir, mesmo em nível de doutorado, a
realização total desses diálogos. Disso resultam aplicações de
lentes fixas a objetos imobilizados. "A questão da técnica" (in:
Heidegger, 2002) é um texto que pode servir de referencial
teórico a diversos tipos de trabalho acadêmicos em vários cam-
pos. É um texto seminal. Fornece conceitos, visões de mundo,'
pistas de leitura dos fenômenos e ferramentas de interpretação.
Além disso, há nele uma metodologia implícita. O estudante às
voltas com seu trabalho acadêmico busca um caminho a seguir:
Ia) Em primeiro lugar, procure uma metodologia que deri-
ve do referencial teórico (não queira tudo pronto).
b) Se não encontrar ou não tiver mais tempo, procure uma
• metodologia e um referencial teórico que sejam comple-
mentares e já tenham sido aplicados juntos.
c) Se tiver tempo, habilidade, liberdade e talento, crie sua
metodologia. Lembre-se de que, morinianamente falando,
36
o método não é o caminho, mas a caminhada, ou seja, a
narrativa do "como", a descrição do que foi feito para
tornar descoberto o encoberto. Nesse sentido, há quase
sempre uma metodologia inicialmente prevista (não se
uma metodologia finalmente aplicada (oriunda dos
imprevistos e descobertas). Só existe navegação quando
há possibilidade de naufrágio. O resto é cabotagem.
d) Se tiver de recorrer a um referencial teórico e a uma
metodologia que não sejam decorrentes um do outro,
justifique minuciosamente a escolha e indique a inter-
secção prevista e construída para eles.
Se quiser ver o mundo em perspectiva, não faça sempre
o mesmo caminho nem use sempre as mesmas lentes.
4.3 Três procedimentos de atuação
Tom Wolfe satirizou a arte contemporânea, em A Pala-
vra pintada, publicado originalmente em 1975, por ter colo-
cado a teoria na frente da prática, o conceito antes da obra e da
realização. As pinturas teriam virado ilustrações de textos. A
lente, predefinida, definia o objeto a ser pintado e visto: "Em '
suma a nova ordem do mundo da arte era: primeiro você encon-
tra a Palavra, depois você vê" (2009, p. 68-69). Nas ciências
humanas, a ordem é: primeiro você encontra a Teoria, depois
você vê. É um processo certeiro: sempre se vê o que se queria
ver. Ou seja, aquilo que a lente (teoria) diz para ver.
O trabalho de um pesquisador, assim como o de um '
verdadeiro repórter, é o de tentar ver aquilo que ainda não foi
visto nem pré-visto, aquilo que foi, no máximo, antevisto. O
essencial mesmo é surpreender-se com o novo. Wolfe leva às
últimas consequências O seu deboche. Segundo ele, Jackson
Pollock, transformado em ícone do expressionismo abstrato,
começou a ver o que os criadores do seu mito disseram que ele
37
 via ou que se via na sua obra. Tomou-se refém da sua len~
Pollock, no entender de Wolfe, foi uma construção. Peggy
Guggenheim, milionária fazedora de mitos, deu-lhe uma pen-
são mensal, um método, uma orientação, um horizonte a ser
alcançado e um quadro conceitual. Pollock pariu a obra, "A
loba", que foi devidamente trabalhada pelo "marketing" estilo
Peggy: Barr a incorporou ao acerto do MoMa, Motherwell
"escreveu uma crítica delirante para a Partisan Review - e
Greenberg escreveu uma crítica superdelirante para The
Nation ..." (Wolfe, 2009, p. 60-61). Não se faz um mito a partir
do nada. Pollock fez a sua parte. E o resto?
O resto é a camada imaginária que o pesquisador deve
levantar, raspando a pátina, para chegar ao começo de tudo. No
caso, a questão seria: como se construiu o mito Pollock? O
imaginário é uma série de camadas simbólicas que recobrem
um ponto de partida, uma aura que se superpõe por camadas
sucessivas ao objetivo original. O pesquisador do imaginário é
um arqueólogo que faz a estratigrafia de um tempo, identifican-
do as etapas sucessivas de produção desse superfaturamento
simbólico. Picasso, antes de ser "Picasso", ironiza Wolfe, era
apenas Picasso. Depois se tomou o "pintor do século XX". Esse
rótulo não é, obviamente, objetivo, mas, como todo imaginário
consumado, tomou-se incontestável, naturalizado. O imaginário
é positividade puro.
Querem um exemplo mais atual: Pelé. A definição do
brasileiro como maior jogador de todos os tempos não é nem
pode ser objetiva. Mas já se naturalizou. Virou uma positividade
incontestável. Uma boa hipótese de provocação (ou de inversão)
é: Maradona foi melhor.
Refutação a essa hipótese:
- Só um argentino seria capaz de pensar isso.
Contra-argumento:
- E se esse argumento sobre os argentinos fosse uma
típica patriotada brasileira?
38
Na linguagem popular, a ideia de que Pelé foi o maior
jogador de todos os tempos é uma ideia que "colou". Não
existem parâmetros seguros para uma definição "científica"
dessa qualidade de "maior de todos os tempos". O retrato de
um momento universalizou-se. Consumado o imaginário, des-
montá-lo toma-se quase impossível por muitas razões práticas
e dogmáticas:
a) U~)maginário é uma positividade (rejeita toda e qual-
quer crítica como negatividade indébita).
b) Um imaginário é um quase "dogma",
c) Investir contra um imaginário, contra um "dogma", é uma
"heresia" .
d) Um imaginário consumado é sustentado pela emoção.
e) Desconstruir um imaginário é uma operação da razão.
f) O imaginário cria laço social (tem uma utilidade).
g) Para que serviria desmontar um imaginário?
A resposta do pesquisador é uma só: para chegar à ver-
dade. Nos últimos tempos, a ideia de "verdade" está em baixa.
As ciências humanas produziriam versões. A exemplo dos
pintores satirizados por Wolfe, que não queriam mais criar a
ilusão de que o quadro é uma janela aberta para o mundo,
devendo respeitar a superfície plana da tela, as ciências huma-
nas não falariam mais do "real", transformado numa categoria
grosseira típica dos primitivos do "realismo social", mas de
versões (borgianas?) da realidade. Uma boa sugestão para o
pesquisador interessado em ver o mundo é:
- Faça de conta que o real existe.
E vá em frente.
Estranhe-se, entranhe-se e desentranhe-se.
a) Estranhamento: para ver o que ainda não foi visto é
preciso tirar a lente. Esta é uma operação antropológica "obje-
tiva". O sujeito deve sair de si mesmo para tentar ver com as
lentes dos outros. Definido o seu objeto, pode fazer muitas
perguntas para alcançar essa liberação:
39
 - Por que eu acho que Pelé é o maior jogador de todos
os tempos?
- Quais são os elementos disponíveis para sustentar essa
definição?
- Por que não seria Maradona?
- Na rejeição à postulação de Maradona como "maior
jogador de todos os tempos" não há embutida uma rejeição à
Argentina como nossa rival permanente?
- Os dados objetivos (número de gols) são suficientes
para definir a questão?
- Garrincha não teria sido melhor do que Pelé?
- Pelé teria sido mais completo do que Garrincha (chutava
bem, cabeceava, driblava)?
- Essa condição de Pelé não seria o resultado da posição
em que atuava, mais centralizado?
- A resistência ao questionamento pelos brasileiros da
condição de Pelé como "maior jogador de todos os tempos"
não esbarraria num "efeito de classicização"? (um clássico
parece eterno e incontestável). Temos direito de não gostar de
Mozart ou isso é semPre ignorância?
- Garrincha não teria sido vítima da sua boemia (assim
como certos pintores que nunca aceitaram bem o sucesso ligado
ao ingresso no mundo burguês)?
- Pelé não teria sido, como um Pollock, o homem que,
tendo muitas qualidades, soube jogar o jogo?
Só o indivíduo ingênuo acredita na objetividade desse
tipo de formulação e toma o cultural por natural. Só os espíritos
conspirativos acham que há sempre manipulação nessas opera-
ções. O estranhamento é possível. Exige honestidade intelectual.
Já que estamos nos exemplos futebolísticos, um bom teste é o
seguinte: final de campeonato, últimos minutos da partida, o
jogador do nosso rival invade a nossa área e é derrubado:
'a) Somos capazes de admitir que houve pênalti?
b) Achamos que foi um lance duvidoso?
c) Negamos categoricamente o pênalti?
40
Um comentarista esportivo passa todo tempo por esse
dilema. A maioria esconde seu clube. Nada o impede de pôr de
lado os seus sentimentos e dizer o que viu. Ou a lente da paixão
,J é tão deformadora que ele sempre vê outra coisa? Vemos o que
os outros veem? O paradoxo do olhar é este: sempre vemos
subjetivamente, mas, ao mesmo tempo, vemos o que os outros
veem e somos capazes de provar isso. Vemos diferente vendo
igual. Temos um campo comum da percepção. Vez ou outra,
claro, vemos um unicórnio onde só há uma mesa. Isso, porém,
não ocorre todo dia nem com todo mundo. Uma anedota diz
que Jacques Derrida e Karl-Otto Apel tiveram uma discussão
candente a respeito dos paradoxos da comunicação. Se há sem-
pre um desvio da mensagem entre o emissor e o receptor, cada
um entrando com sua experiência e seu patrimônio cultural no
jogo das interações, como se comunicar? Como estabelecer a
intersecção entre os interlocutores? Derrida teria dito:
- A comunicação é impossível.
Apel teria respondido:
- Concordo.
O pesquisador é aquele que tira a lente para olhar, por
um momento, com os olhos dos outros e que faz perguntas incô-
modas a si mesmo e aos outros.
Ele vê primeiro. Depois, encontra a Palavra.
Ou, no caso do estranhamento, "desvê" um pouco para
ver melhor mais adiante. Ou seja, para ver depois sem as
impurezas acumuladas pelo olhar familiarizado.
)
,
b) Entranhamento: não basta sair de si mesmo. É pre-
ciso entrar no outro. Esqueçamos o duplo sentido dessa frase.
Não façamos como um velho professor de antropologia que
impedia as meninas da turma de estudarem a prostituição por
acreditar profundamente na obrigatoriedade da observação-
participante. O processo de entranhamento é um mergulho no
desconhecido. Implica, muitas vezes, adotar procedimentos
imprevistos. Paul Feyerabend provoca: "A ideia de que a ciência
41
pode e deve ser elaborada com obediência a regras fixas e
universais é, a um tempo, quimérica e perniciosa" (1977, p.
449). Hora do risco.
Entrar no objeto significa fazer perguntas:
- Por que ele vê o que eu não vejo?
- Por que ele tem a convicção que eu não tenho?
- Quais são os fundamentos da sua "verdade"?
Essa operação pode ser feita num trabalho etnográfico
ou numa leitura de texto. Está baseada numa ideia simples e
normalmente eficaz no cotidiano:
- Quais são as razões do outro?
- Há fundamento (racionalidade) no discurso desse outro
que se apresenta como diferença absoluta?
--' Cada forma narrativa se apresenta como a melhor.
Feyerabend lembra que a própria ciência não escapa desse
narcisismo: "Dessa forma, a ciência aproxima-se do mito, muito
mais do que uma filosofia científica se inclinaria a admitir. A
ciência é uma das mu~tas formas de pensamento desenvolvidas
pelo homem e não necessariamente a melhor (1977, p. 447).
Jean-François Lyotard ecoou Paul Feyerabend: "O saber em geral
não se reduz à ciência, nem mesmo ao conhecimento" (1986, p.
35). Como assim?
O que é o conhecimento? "O conjunto dos enunciados
que denotam ou descrevem objetos" (Lyotard, 1986, P: 35).
E a ciência, segundo Lyotard, o pós-moderno? "Um
subconjunto do conhecimento" (1986, p. 35).
O que é preciso para haver ciência? O acesso recursivo
aos objetos descritos denotativamente. Ou seja, poder retomar
às "condições de observação explícitas" (Lyotard, 1985, p. 35).
Sendo rigorosamente assim, as ciências humanas não são
ciências? Talvez sejam narrativas.
Quem decide o que é científico? Os "experts" (os pares).
Como? Conforme critérios preestabelecidos.
Conhecer (cientificamente) exige estranhamento.
42
O entranhamento pressupõe:
" - Colocar-se no lugar do outro
l-Tentar ver com os olhos do outro
("- Tentar compreender os sentimentos do outro
_ v- Explicar as razões do outro.
Mesmo que o outro seja um assassino ou um serial-
killer? Foi o que fizeram, respectivamente, Truman Capote, em
A Sangue frio (2008), publicado em 1966, e Maurice Dantec, em
Raizes do mal (2009), lançado em 1994. Capote fez um romance
de não ficção. Dantec, uma ficção científica policial baseada nas
ciências cognitivas. A literatura pode ser tão ou mais eficaz do
que a ciência para descobrir o que estava encoberto.
O entranhamento, numa obra, busca descobrir:
- O subentendido
~ - Os nexos não explicitados
- As operações narrativas
- Os fundamentos da construção narrativa
- Os mecanismos formais
- As ênfases de conteúdo
- As figuras de linguagem
- Os procedimentos argumentativos (predomínio da ra-
zão, da sedução, da emoção, da retórica ou imagem).
O entranhamento é uma atitude provisória que deve ser
praticada como se fosse definitiva. A sua eficácia depende da sin-
ceridade. É preciso que, ao [mal do processo, o pesquisador possa
fazer um balanço e responder às seguintes e inquietantes perguntas:
- O que se "descobriu" durante o processo?
- O que se modificou na visão do pesquisador em relação
ao objeto ou universo pesquisado?
- O que veio à tona?
- O que se pode dizer sobre o objeto que não era possível
dizer antes do mergulho questionador?
- Quais os seus mecanismos internos?
Primeiro se vê. Depois, encontra-se a palavra.
43
 c) Desentranhamento: o pesquisador não é porta-vo~
de si mesmo nem desse outro que vai descobrir. Depois de sair
do seu universo, de tirar as suas lentes, de experimentar as lentes
do outro, de mergulhar na alteridade pelo entranhamento, deve
voltar ao seu lugar para redigir o seu relatório, escrever a sua
monografia, dissertação ou tese. Para escrever uma tese, embora
sejam muitos os caminhos, é quase sempre muito importante ter:
- Uma tese (a defender). Michel Houellebecq, em Ex-
tensão do domínio da luta (2002), tinha uma tese bastante
provocativa e clara: o sexo é um sistema de hierarquia social.
Houellebecq fez um romance. Muitos o criticam por ter coloca-
do muita sociologia no livro. É graças a isso que o seu romance
é alta literatura. Uma tese: a falta de sociologia, de filosofia, de
pensamento, de ideias, enfim, na nova literatura brasileira.
- Algo a dizer (para fazer o objeto falar é importante ter
algo a dizer sobre ele).
- Ter ideias (especialmente na hora da análise).
Ao voltar do entranhamento, o pesquisador deve ser outro.
Não, não é p'reciso uma transfiguração radical, uma mutação
metafísica, uma mudança de sexo ou de clube de futebol. Nada
de essencial assim. Mas é importante que ~lgo em relação ao
objeto, ao menos, tenha mudado no seu olhar. Ele deve saber e
poder explicitar essa mudança. O rigor da pesquisa consiste em
explicitar as condições de formulação das hipóteses, de levanta-
mento de dados e de elaboração das análises e das conclusões.
Tudo deve ser dito. Por exemplo, um brasileiro disposto a de-
monstrar que Pelé foi de fato o maior jogador de todos os tempos,
numa comparação com Maradona, deve ser capaz de explicitar a
sua condição de brasileiro e demonstrar que o seu trabalho não
será afetado pela sua nacionalidade. Haverá sempre, nesse caso,
uma suspeita. Talvez seja mais legítimo para um brasileiro tentar
provar que Maradona foi melhor do que Pelé. Ainda assim haveria
uma suspeita: não seria uma provocação ao pai, um gesto de
ressentimento contra a pátria, uma atitude de rebeldia?
44
O pesquisador não é um cérebro destituído de corpo
(o contrário é mais comum). O seu imaginário (que é sempre
afetivo) precisa ser desmobilizado ou desligado em algum
momento. Impossível? Não. É uma questão de treinamento e
de disposição intelectual. Foi ou não foi pênalti? Achamos
Maradona menos bom do que Pelé por acreditarmos mais nas
qualidades de Pelé ou por Pelé ser brasileiro e Maradona, além
do mais, argentino?
Pesquisar pode ser muito simples (quando não se quer
complicar por afetação ou distinção acadêmica). Ao voltar do
entranhamento, o pesquisador deve perguntar-se:
- O que eu sei agora que não sabia antes?
- O que mudou em mim em relação ao objeto?
E se a resposta for um maiúsculo NADA?
Comece de novo. O trabalho falhou.
É o que mais acontece. Na maior parte das vezes, porém,
os trabalhos seguem em frente por falta de tempo para reco-
meçar, de disposição, de humildade ou por não se considerar
mais a pesquisa como um descobrimento.
Meu desafeto Luis Fernando Verissimo (explicitação das
condições de enunciação), no melhor momento da sua carreira
(ironia ou ressentimento?) deu um bom exemplo dessa passagem
do encoberto ao descoberto pelo humor:
"- Um biquíni novo?
- É, pai.
- Você comprou um ano 'passado!
- Não serve mais pai. Eu cresci.
- Como não serve mais? No ano passado você tinha 14
,
anos, esse ano você tem 15. Não cresceu tanto assim.
- Não serve, pai.
- Está bem, está bem. Toma o dinheiro, compra um
biquíni maior.
- Maior não, pai. Menor."
45
 A ABNT que me perdoe (ou puna). Peguei na intemet e
me basta. O trabalho do pesquisador também é de fazer passar,
por força de dados, de argumentos e da linguagem, um enco-
berto à condição de descoberto. Algo que estava aí, bem à frente
de todos, revela-se de um golpe. É tudo. Claro que o pesqui-
sador precisa ir muito além. O seu papel é perguntar sempre:
por quê? O humor revela. O pesquisador deve explicar. Não
pode se contentar com o espetáculo. Nem fazer como um
baiano socrático que, na Sorbonne, cada vez que alguém citava
Platão, respondia garbosamente com Caetano Veloso e fechava
com "Axé".
4.4 Quatro dispositivos de explicitação
a) Mostrar/demonstrar: mostrar é um empreendi-
mento antropológico, descritivo, etnográfico e profundamente
narrativo. Quer dar a ver, revelar, fazer-vir, dar à luz, fazer
emzrgir. Não pretende julgar. Limita-se a contar. Mostrar é da
ordem da quase compreensão. Demonstrar é um trabalho
argumentativo, lógico, que se pretende probante e explicativo.
Quando se mostra bem, dá-se aoportunidade a outros de pro-
por novas demonstrações. Um trabalho bem articulado mostra
para demonstrar. Primeiro, mostra. Depois, demonstra. Em
certas situações, mostrar é suficiente e revelador. Diz mais do
que tudo. Quando a demonstração é demasiado ideológica (como
justificação que distorce o mostrado ou racionalização), só o
mostrado pode salvar a pesquisa e proporcionar novos olhares
e interpretações. O pesquisador precisa dialogar com o seu
objeto, f~zê-Io falar. Para isso, precisa falar com ele.
b) C;;;obrir/descobrir: mostrar remete ao cobrir. Cobrir
é recobrir: cercar o objeto para descobri-Ia. A cobertura pode
ser de imersão presencial (participar na vida de uma comuni-
dade, acompanhar uma atividade, participar de uma expedição)
46
ou de mergulho interpretativo (entrar num texto, num filme,
num bem simbólico). Quanto mais se cobre, recobrir..d teórica
e metodologicamente o objeto, mais se tende a descobrir. Há
um texto ~e Jorge Luis Borges, citado por Michel Foucault e
pela torcida do Flamengo, que classifica os animais em: "a)
pertencentes ao imperador; b) embalsamados; c) amestrados;
d) leitões; e) sereias; f) fabulosos; g) cachorros soltos; h)
incluídos nesta classificação; i) que se agitam como loucos; j)
inumeráveis; k) desenhados com pincel finíssimo de pelo de
camelo; 1) etcetera; m) que acabam de quebrar o jarro; n) que
de longe parecem moscas" (Borges, 1974, p. 708, tradução
livre). O que faz rir aí?
A cobertura do texto leva a descobrir facilmente que o
riso é provocado pelas enumerações incongruentes. Pode-se
estabelecer um princípio: enumerações incongruentes fazem
rir. Ém ciências, estabelecer princípios e inventar conceitos
podem render muito no mercado dos bens simbólicos acadê-
micos. Se der, crie categorias, produza conceitos e fabrique
princípios. A época das leis passou. Agora é o tempo das pro-
babilidades e tendências. A magia das palavras que iluminam as
coisas continua. Existem grandes especialistas nisso, verdadeiras
máquinas de inventar palavrinhas. Gilles Deleuze e Jacques
Derrida foram mestres nisso. Derrida faturou alto ao criar a
diferença abissal entre "différence" e "différance".
O malabarista Derrida (1991) tratou de dizer que "diffé-
rance" não era um conceito nem uma palavra, mas uma
"marca muda". Afinal, o "a" de "différance", em lugar do "e"
de "différence", em francês, é pronunciado da mesma forma.
,
Não contarei o final. Cada um que resolva sozinho esse enigma
fabuloso. Jacques Derrida tinha razão num ponto: um texto é
uma sucessão de camadas de significados encobertos. Um
pesquisador pode descobrir o funcionamento do humor ou da,
ironia de alguém, de um cronista, identificando os mecanismos
47
que acionam o riso, o "ponto de virada" que gera o inusitado e
um "efeito". Um texto é um "efeito de embalagem" assim como "COMPREENSÃO EXPLICAÇÃO
uma mágica produz um efeito a partir de uma série de "truques". concreto abstrato
O pesquisador do imaginário levanta os muitos véus que analógico lógico
recobrem o corpo do objeto para revelar seus efeitos. apropriações globais apropriações analíticas
predominância da conjunção predominância da disjunção
c) Compreender/explicar: a ciência tem hipervalori- projeções/identificações demonstrações
zado a explicação. Precisa recuperar o espaço da compreensão.
implicação do sujeito objetividade
Edgar Morin, pensador da complexidade, define a explicação
pleno emprego da subjetividade dessubjetivação"
como "um processo abstrato de demonstrações logicamente
(Morin, 1999, p. 165).
realizadas, a partir de dados objetivos, em virtude de necessi-
dades causais materiais ou formais e/ou em virtude de uma
adequação a estruturas ou modelos" (1999, p. 164). Nada mais É nessa relação complexa, nessa "dialógica", para usar
compreensivo do que querer explicar o mundo. Um processo uma expressão conhecida de Edgar Morin, que se articula o
de desmitificação (desconstrução) é sempre uma operação de processo compreensivo-explicativo.
explicação (racionalidade a partir de dados objetivos) lançada
contra as camadas imaginárias (emocionais, afetivas e sim- d) Composição: melhor seria dizer como Martin Hei-
bólicas) de um fenômeno. degger "com-posição" para marcar derridianamente um efeito.
Compreender, no entanto, é o grande desafio atual. Um efeito de posição. Pesquisar é narrar. Tomar posição. Mas
Segundo Morin, a "compreensão move-se principalmente nas não uma posição no princípio. Uma posição "de" princípio:
esferas do concreto, do analógico, da intuição global, do sub- buscar a verdade, tirar as camadas que encobrem o objeto,
jetivo" (1999, p. 164). Mais: "A explicação move-se princi- recobrem sua origem e produzem o efeito que o caracteriza.,
palmente nas esferas do abstrato, do lógico, do analítico, do Essas camadas, essa "aura", esse superfaturamento simbólico,
objetivo. A compreensão compreende em função de trans- esse real mais real do que o real, esse hiper-real, é o imaginário.
ferências projetivas/identificatórias, A explicação explica em O real é o replay do gol, esse feito de realidade mais real do que
razão da pertinência lógico-empírica de suas demonstrações" real, pela repetição, por força da prótese tecnológica, que faz a
(Morin, 1999, p. 164). realidade, o gol visto num estádio a olho nu, parecer deficiente, "
Aos jornalistas e aos pesquisadores, ao contrário do que como se faltasse alguma coisa nela.
diz o senso comum militante, têm faltado subjetividade, não A composição é a utilização de todos os passos anterio-
objetividade. Se é preciso compreender a explicação, também é res simultaneamente: mostrar/demonstrar, cobrir/descobrir e
importante explicar a compreensão. Nada como um bom quadro compreender/explicar. É o processo de passagem do hiper-real
(Jean Baudrillard, que, pelo jeito, podia perder o amigo, mas ao real como um processo de des( en)cobrimento. Fazer ver o
não a piada, ironizava carinhosamente a paixão de Edgar Morin, gol sem o replay.
teórico da complexidade, pelos quadrinhos explicativos):

48 49
 4.5 Cinco modalidades de des( en)cobrimento
Derrida falava baixo e via longe. Certas letras mudas, ou
quase, dizem muito talvez por redundância. Descobrir e desen-
cobrir em português significam o mesmo: retirar a cobertura.
Des(en)cobrir, no entanto, parece expressar mais claramente a
passagem do coberto ao descoberto. A ciência sempre esteve
mais ligada à ideia de descobrimento como ato de achar algu-
ma coisa. O Brasil foi descoberto ou desencoberto? Estas nar-
rativas do vivido e do imaginário menos acham (descobrem) do
que desencobrem (tiram a cobertura). O imaginário é uma
cobertura. Um véu que recobre o fato transformando-o
acontecimento, dando-lhe espessura simbólica.
A explicação e a demonstração, muitas vezes, descobrem
algo, mas não desencobrem o imaginário.
Derrida, pensando Heidegger, perguntou: "Que chama-
mos de mundo? Que é o mundo se ele se obscurece assim?"
(1990, p. 59). Resposta heideggeriana: é espírito. Não, eu me
atrevo a corrigir Heidegger e Derrida: o mundo é imaginário.
Derrida lembrou três teses de Heidegger: a pedra é sem mundo,
o animal é pobre de mundo, o homem é formador de mundo
(1990, p. 60).
Direi apenas isto: o animal não tem imaginário.
Nem a pedra.
Se bem que certos homens parecem ter menos ainda.
Só há encobrimento e des( en)cobrimento quando existe
imaginário. Só existe imaginário onde há palavra.
O animal é transparente.
Não há o que desencobrir no animal.
Pode-se apenas descobrir coisas sobre os animais.
As ciências humanas não são ciências do descobrimento,
mas Ciências do des( en)encobrimento.
Todo imaginário é real (é mundo).
Todo real é imaginário.
50
Como des(en)brir o imaginário do mundo?
As cinco modalidades de des(en)cobrimento que seguem
podem ajudar. Vale lembrar que na ciência também há lugar
para a criatividade, a inventividade e a imaginação.
a) Diferença na repetição e repetição na diferença
Ao defender a cobertura científica como descobrimento
e as ciências humanas como des( en)cobrimento, fazendo falar
o implícito ou escondido sob as aparências do vivido ou de um
texto (obra); este manual de antimetodologia não tem a menor
intenção de reinventar a semiótica sem o s~u charme, a sua
em terminologia esotérica e os seus imensos conhecimentos inter-
disciplinares. Tampouco se trata de reconstruir a desconstrução
de Jacques Derrida com termos compreensíveis aos mortais,
embora não seja absurdo rotular ironicamente esta proposta
de "des~onstrução quase tropical" (feita em Porto Alegre). O
objetivo está aquém e além dos formalismos consagrados ou
não. É só uma volta ao princípio da ciência como passagem
do encoberto ao descoberto por meio de uma sujeição à razão
que observa, descreve, mostra, interpreta, compreende, demons-
tra e explica. O pesquisador desejoso de descobertas precisa,
ao mesmo tempo, de muito mais liberdade metodológica,
atrevendo-se a correr mais riscos, e de algumas ferramentas
versáteis e simples.
Se criticar significa pôr em crise, abalar certezas do senso
comum, analisar é um procedimento de decupagem, um recorte
(cortar de novo e fazer em pedaços). É possível imaginar meto-
dologicamente essa operação em dois eixos: encontrar diferença
na repetição e repetição na diferença. Tomemos os célebres
versos de Fernando Pessoa (sem entrar na polêmica erudita
sobre a origem deles) "navegar é preciso/viver não é preciso". É
correto substituir preciso por necessário: navegar é necessário/
viver não é necessário. Essa substituição, contudo, cobre, mas
não des( en)cobre, não faz vir, não revela, não desvela, não traz
51
 à luz o sentido encoberto, ou seja, não se traduz em pro-vocação. Quem ganha o jogo?
Não traz a verdade profunda da margem ao centro. Limita-se Quem apresentar provas daquilo que sustenta.
ao familiar. Reconhece um sentido sem produzir um choque na Loytard, o provocador, dá um lance: "O que eu digo é
percepção. É uma das diferenças possíveis, por exemplo, entre verdadeiro porque o provo; mas o que prova que a minha prova
arte e indústria cultural. A arte produz diferença. A indústria é verdadeira?" (1986, p. 45).
cultural fabrica repetição. Na arte, há des(en)cobrimento e O que prova que a minha prova é uma boa prova?
"provocação". O fundo vem à tona. Na indústria cultural, há Ou, como Agripa, o cético, temos de exigir de cada prova
reconhecimento e identificação do mesmo uma prova anterior? Assim, provar seria impossível.
Nos versos de Fernando Pessoa há repetição e diferença: Paradoxo no desvelamento: teria Agripa provado a
navegar é preciso/viver não é preciso. A repetição óbvia é esse impossibilidade da prova?
"preciso". A diferença visível está em navegar/viver. Tem-se Com que prova?
um eixo duplicado em navegar/viver e preciso/preciso. Há Desvendamento no paradoxo:
repetição na diferença: navegar é usado como metáfora de viver. justamente com a falta de prova.
Há diferença na repetição: navegar é preciso (exato) / viver não Nada mais lógico.
é preciso (inexato). Há coincidência na diferença: navegar é A falta de prova como prova da impossibilidade da prova.
viver. Há oposição na diferença: navegar é preciso/viver é Cai a venda. Agripa sofisma. Mas algo fica.
impreciso. Analisar implica, portanto, encontrar a diferença na Como algo fica também da leitura do célebre silogismo
repetição e a repetição na diferença. Em outros termos, analisar dilemático, tão apreciado pelo enigmático Borges: "Demócrito
é fazer emergir a contradição, o paradoxo, a diferença, a repeti- jura que os abderitanos são mentirosos. Mas Demócrito é
ção, o encoberto, o recoberto, o descoberto sob o familiar. Cobrir abderitano. Logo Demócrito mente. Logo não é verdade que os
(como jornalista ou pesquisador) é fazer exprimir-se o cotidiano abderitanos sejam mentirosos. Logo Demócrito não mente. Logo
para des(en)cobrir as repetições nas suas diferenças e as dife- é verdade que os abdeteritanos são mentirosos. Logo Demócrito
renças nas suas repetições. Essa operação discursiva funciona mente. Logo ..." (Borges, 1974, p. 276-277, tradução livre).
como narrativa (des)legitimadora, revelando as mitologias de O que fica dessa leitura?
cada época, lugar ou cultura e assinalando os rastros do diálogo - Que um silogismo é uma catedral hiperlógica.
permanente entre (in)exatidão e (in)verdade. Logo:
Enfim, apenas um exemplo de "re-corte" (o corte que - Não precisa ser resolvido.
abre, reabre, faz emergir o segredo do familiar).
) b) Paradoxo no desvelamento e desvendamento no
Em frente.
Um pesquisador deve perguntar-se em algum momento:
- O que prova que essa prova é uma boa prova?
para~oxo: a produção do conhecimento (inclusive o conheci-
mento científico), como sustentou Jean-François Lyotard, é um - O que vale a minha prova?
jogo (argumentativo). - O que posso dizer em favor da minha prova?
Cada pesquisador dá lances. - Como posso provar que essa é uma boa prova?

52 53
 Lyotard responde com duas regras: "A primeira é dialé-
tica ou mesmo retórica do tipo judiciário: é referente o que pode
fornecer matéria comprobatória no debate. Não é isso: posso
provar porque a realidade é como eu a digo; mas, quando posso
provar, é permitido pensar que a realidade é como eu digo. A
segunda é metafísica: o mesmo referente não pode fornecer uma
pluralidade de provas contraditórias ou inconsistentes" (1986,
p. 45). Raciocínio circular? Tautologia?
O real não é um espelho apto a refletir a verdade das
hipóteses ou teorias. Nem um parâmetro neutro contra o qual
medir a consistência das ideias. Quando, no entanto, diz-se algo
do real, seja qual for esse real, é preciso que haja coincidência
entre o dito e o real.
Estamos vivendo o aquecimento global?
Ou (hipótese de inversão) uma nova era de resfriamento
global?
Em caso de existência do aquecimento global, o homem
tem papel ativo nesse processo?
Façam suas apostas. Deem os seus lances.
A sociologia da ciência precisa entrar em campo.
A quem pode interessar que o homem não tenha qual-
quer papel no aquecimento global (se ele existe)?
Essa questão traz implícita uma suspeita: hipótese pros-
pectiva ou paranoia? Teoria ou conspiração?
O professor Luiz Carlos Molion, da Universidade Fe-
deral de Alagoas, tem feito o que Feyerabend esperava dos
cientistas: submeter à dura prova a teoria dominante, no caso a
do aquecimento global. Com uma hipótese de inversão, a do
resfriamento global, Molion tornou-se celebridade. Além dos
argumentos técnicos, recorre também aos procedimentos comuns
de autolegitimação e de deslegitimação dos concorrentes. Em
entrevista publicada pelo site Vermelho (www.vermelho.org.br).
recorreu a este lance: "De todas as pessoas que estão aqui no
Brasil, talvez eu seja o climatologista mais sênior".
54
É o chamado argumento de autoridade.
Molion pode estar certo. Ele acusa seus oponentes de
estarem a serviço de causas políticas ou de interesses pessoais:
acesso fácil a verbas de pesquisa.
Muita gente tem interesse em que Molion esteja certo.
Por exemplo, todos aqueles que desejam poluir em paz e que se
sentiam travados pelos ambientalistas.
Os pares decidirão.
Já que se trata de jogo, botemos a bola no chão. Uma
prova é uma boa prova quando passa neste teste:
- Não há disponível outra melhor do que ela.
- Não há contradição interna nos seus argumentos.
- Não se baseia em dados falsificados.
- Apresenta evidências.
Oh, Deus! O que são evidências? Se digo que a tempe-
ratura está aumentando, é de bom-tom que ela esteja subindo
também nos termômetros (sem dados turbinados).
Uma coisa parece certa: não pode existir aquecimento e
resfriamento global ao mesmo tempo, num mesmo lugar.
Este é o cotidiano das ciências: teoria contra teoria, argu-
mento contra argumento, dado contra dado.
Lance contra lance.
Até aí, tudo bem O que fazer, porém, quando aquele
e ,
aluno que não sabia (e ainda não sabe) a diferença entre "apud"
e "in" volta e pergunta à queima-roupa:
- Quem está certo: Baudrillard ou Bourdieu?
Adote alguma destas estratégias:
- Saia à francesa (ou, segundo os franceses, à inglesa).
- Diga que a cota de perguntas do aluno acabou.
- Aja como Jack, o estripador: vá por partes.
- Só responda depois que ele aprender a diferença entre
"apud" e "in".
- Responda morinianamente: teorias não aspiram à
certeza integral (isso é próprio das doutrinas).
55
 - Responda com Lyotard: " ...Todo novo enunciado, se
for contraditório em relação a um enunciado anteriormente
admitido que verse sobre o mesmo referente, não poderá ser
aceito como válido a não ser que refute o enunciado precedente
como argumentos e provas" (1986, p. 48).
As provas de uns, obviamente, podem não ser reco-
nhecidas por outros. E tudo recomeça. O tribunal está sempre
aberto. Não há limites para os recursos. A razão tem sentimentos
que o cérebro costuma desconhecer. Muitas vezes, a adesão a
uma teoria se dá por algum elemento que só o coração reconhece
(trajetória de vida, relação, imaginário). Ou se aceita o todo
graças a uma parte. Volta e meia, racionalistas pretensamente
rigorosos e frios destroem seus oponentes, acusados de irracio-
nalismo, a golpes de adjetivos ou superlativos, de ironias ou de
risinhos altivos. Muitos cientistas chamam de razão aquilo que
o leigo ignorante chama de paixão. Voltamos a Marcel Proust:
que critério adotar para julgar os homens? Resposta categórica:
os critérios dos homens.
c) Releitura: novos dados para velhas interpretações,
velhos dados para novas interpretações e novos dados para
novas interpretações: nada mais importante, em certos mo-
mentos, do que dar nome aos bois. Quer dizer, chamar de bois
os bois. Eles nunca se ofendem. É uma lógica bestial. Irretocável.
Muitas pesquisas são releituras honestas que oferecem novas
interpretações para velhos dados. Outras, são releituras comple-
mentares e confirmatórias: novos dados para velhas interpre-
tações vacilantes. Quando se trabalha com novos dados e novas
interpretações já se está possivelmente noutro horizonte, numa
hipótese de inversão. Não 'há mal algum em fazer releituras. O
bem é maior ainda quando não se tenta recobrir a estratégia
com um rótulo metodológico pomposo.
Sociólogos vivem em busca de novas interpretações.
Historiadores vivem atrás de novos dados. A revolução francesa
56
de 1789 tem uma revisão a cada dez ou vinte anos. Houve o
tempo em que a leitura de Albert Mathiez era canônica. Até ser
superada pela releitura magnífica de Albert Soboul, que não
resistiu à reinterpretação estupenda de François Furet. O presen-
te não se cansa de recontar, redescobrir e reinventar o passado.
Encontrar dados novos pode ser como ganhar na mega-sena.
. Formular novas interpretações convincentes pode ser o equiva-
lente de seduzir Gisele Bündchen. As releituras são nobres.
d) Contradição discurso - prática e superfaturamento
imaginal: em comunicação, para não ficar invadindo ou ocu-
pando campos alheios, parte considerável da pesquisa poderia
dedicar-se a mapear os desencontros entre discursos e práticas,
entre dito e feito, dito e desdito, dito e não dito. No fundo, este
parece. ser o objeto natural da comunicação política. Em alguns
casos, esse descolamento é produto da velha e pura mentira.
Em outros, sempre mais interessantes, resulta de um imaginário,
que é, como se viu, uma cobertura simbólica, uma espécie de
superfaturamento (honesto) imaginal.
Mais um exemplo futebolístico e gaúcho (de onde fala
este autor). Em 26 de novembro de 2005, tentando voltar à
primeira divisão do campeonato brasileiro, o Grêmio enfrentou
o Náutico, nos Estádio dos Aflitos, em Recife. Uma vitória dos
pernambucanos manteria os gaúchos na segunda divisão. O
Náutico perdeu dois pênaltis. O segundo, ao final do jogo, que
estava empatado, provocou um tumulto. Os jogadores gremis-
tas não se conformaram com a marcação do árbitro e armaram
uma extraordinária confusão. O juiz foi agredido. O Grêmio
acabou com sete jogadores em campo. O goleiro gremista pegou
o pênalti. Na sequência, com quatro jogadores a menos e o
adversário aturdido, o Grêmio marcou um gol, ganhou um jogo
que parecia perdido e voltou à primeira divisão. A partida foi
batizada de "A batalha dos Aflitos". Virou filme.
57
 O acaso, o tumulto e as circunstâncias do ato foram
apagados por esse título, "A batalha dos Aflitos", que transfor-
mou o fato, em si mesmo extraordinário, em acontecimento
fantástico, consumando um superfaturamento imaginal, uma
cobertura gloriosa para um caso controvertido. Eu, como colo-
rado (explicitação do ponto de vista), tendo a pensar que se
tratou de um "Barraco dos Aflitos". Brincadeiras à parte, é o
exemplo perfeito e terreno de como se constroem os mitos:
um real que se torna hiper-real, mais real do que um real, feito
de uma verdade redimensionada pelo imaginário sem neces-
sidade de mentira. Na internet, obviamente, há relatos incríveis
sobre o jogo. A cobertura imaginária não para de crescer. O
tempo que faltava para o final do confronto no momento do
segundo pênalti aumenta de relato para relato. Em alguns deles,
o Grêmio já estava com apenas sete jogadores em campo antes
do episódio da segunda penalidade. O imaginário como mito
é coletivo e surreal.
Que racionalidade poderia des(en)cobrir um imaginário
como esse, feito de pura paixão? O trabalho do pesquisador
(melhor que não seja colorado nem gremista) é levantar o véu,
voltar à origem, fazer emergir o contexto original. Há quem
considere impossível esse retorno à origem. A verdade, sabemos,
parece o horizonte: quando nos aproximamos, ele se afasta.
Não é só uma ilusão? Um imaginário é, em princípio, uma
operação simbólica "espontânea", que não pode ser planejada.
Deve-se, na melhor das hipóteses, não deixar o trem passar. Ou
já é possível, através do marketing, formatar os imaginários?
A publicidade não seria a mais poderosa tecnologia do imagi-
nário? A onda dos vampiros, que tomou conta do imaginário
juvenil, não é justamente o produto de uma tecnologia do ima-
ginári~? Seja como for, o trabalho do pesquisador, do caçador
de transfigurações simbólicas, é o mesmo: retirar as camadas
de imaginário que encobrem o objeto buscando alcançar o seu
estado original?
58
- Batalha dos Aflitos: superfaturamento imaginal.
- Barraco dos Aflitos: operação reativa de deslegitimação.
Conclusão:
- Há sempre um ponto de vista.
- A vista é sempre de um ponto.
O pesquisador vasculha o território e faz o mapa.
As pessoas usam ou não esses mapas.
Há quem prefira se perder no mundo.
e) Desconstrução: sem recorrer a Jacques Derrida,
tomando-se o termo de modo livre, a desconstrução é uma mo-
dalidade radical de hipótese de inversão. Tomemos um exemplo
simplesmente pela envergadura da reviravolta proposta. O
historiador israelense (ponto de vista de dentro) Shlomo Sand,
da Universidade de Tel-Aviv, que viveu até os dois anos de idade
num campo de concentração e foi soldado na guerra dos seis
dias, surpreendeu a comunidade judaica mundial com um livro
intitulado Como foi inventado o povo judeu (2008) - publicado
primeiramente em Israel e em seguida na França.
Segundo ele, a ideia de que os judeus são um povo, uma
etnia ou que descendem de Moisés, Davi e Salomão é apenas
uma fábula religiosa recuperada no século XIX e oficializada a
partir de 1960. Num artigo para o jornal Le Monde Diploma-
tique (http://diplo.uol.com.br/2008-09,a2608), Sand situou o
mito na sua forma tradicional: "Qualquer israelense sabe que o
povo judeu existe desde a entrega da Torá no monte Sinai e se
considera seu descendente direto e exclusivo. Todos estão
convencidos de que os judeus saíram do Egito e fixaram-se na
Terra Prometida, onde edificaram o glorioso reino de Davi e
Salomão, posteriormente dividido entre Judéia e Israel. E
ninguém ignora o fato de que esse povo conheceu o exílio em
duas ocasiões: depois da destruição do Primeiro Templo, no
século 6 a.c., e após o fim do Segundo Templo, em 70 d.C.".
Um mito bem estruturado. Uma catedral.
59
 Sand a desmontou: "De onde vem essa interpretação da
história judaica, amplamente difundida e resumida acima? Trata-
se de uma obra do século 19, feita por talentos os reconstrutores
do passado, cuja imaginação fértil inventou, sobre a base de
pedaços da memória religiosa judaico-cristã, um encadeamento
genealógico contínuo para o povo judeu. Claro, a abundante
historiografia do judaísmo comporta abordagens plurais, mas
as concepções essenciais elaboradas nesse período nunca foram
questionadas". Nunca tinham sido questionadas. Ele tratou de
fazer isso: "Mas eis que, ao longo dos anos 1980, a terra treme,
abalando os mitos fundadores. Novas descobertas arqueológi-
cas contradizem a possibilidade de um grande êxodo no século
13 antes da nossa era. Da mesma forma, Moisés não poderia ter
feito os hebreus saírem do Egito, nem tê-los conduzido à 'terra
prometida' - pelo simples fato de que, naquela época, a região
estava nas mãos dos próprios egípcios! (...) Tampouco há sinal
ou lembrança do suntuoso reinado de Davi e Salomão. As desco-
bertas da década passada mostram a existência de dois pequenos
reinos: Israel, o mais potente; e a Judéia, cujos habitantes não
sofreram exílio no século 6 a.C. Apenas as elites políticas e inte-
lectuais tiveram de se instalar na Babilônia, e foi desse encontro
decisivo com os cultos persas que nasceu o monoteísmo judaico".
Sobra pouco do mito: "E o exílio do ano 70 d.e. teria
efetivamente acontecido? (...) os romanos nunca exilaram povo
nenhum em toda a porção oriental do Mediterrâneo. Com
exceção dos prisioneiros reduzidos à escravidão, os habitantes
da Judéia continuaram a viver em suas terras mesmo após a
destruição do Segundo Templo". Isso não deslegitima Israel nem
autoriza pretensões racistas. Prova que a história é construção:
"Esses relatos (...) figuraram na historiografia sionista até o
início dos anos 1960". Para o judeu iconoc1asta Shlomo Sand
os judeus são os membros da religião ou da cultura judaica
formada principalmente por conversão na África do Norte, no
sul da Europa e no Iêmen.
60
As principais hipóteses de Shlomo Sand são:
- Não houve êxodos nem exílios.
- Os judeus espalhados pelo mundo não descendem, na
maioria esmagadora, de pessoas que um dia tenham vivido na
Palestina, mas de um povo de origem turca, os cazares, conver-
tido ao judaísmo no século 8 da nossa era.
- Entre os descendentes dos judeus de dois mil atrás
estariam palestinos da Cisjordânia de hoje, convertidos ao isla-
mismo durante a ocupação muçulmana.
Quem está certo? Isso não interessa aqui.
Quais são as bases de Sand?
- 15 anos de pesquisa.
- Novos dados arqueológicos.
- Velhas fontes históricas.
- O Talmude.
- Historiadores árabes.
- Documentos raros.
- Livros latinos.
A controvérsia foi lançada.
Houve alguma reação e muito silêncio.
Hipóteses:
- Se Sand não fosse judeu, sua história correria o risco
de ser rotulada de antissemita.
- A hipótese acima, meramente especulativa, poderá ser
acusada de antissemita.
O que pretendeu Shlomo Sand?
Realizar um vasto processo de:
- Descobrimento (obter dados e fatos novos)
- Des(en)cobrimento (tirar o véu de um mito)
- Desvendamento (tirar a venda dos olhos israelenses e
do mundo inteiro a respeito da história judaica)
- Desvelamento (fazer vir à tona outro saber)
, É um caso de escola de desconstrução como processo de
des(encobrimento). Nem todo pesquisador, mesmo que seja um
61
historiador combativo, precisa implodir a história do seu país
ou da sua cultura para fazer uma boa tese, mas não deixa de ser
um desafio interessante. Mãos à obra.
4.6 Seis operações de desvendamento/
desvelamento
Para desvendar é preciso correr o risco do conflito. Para
desvelar é necessário gritar como o mágico: "Eu vi, eu vi, é
truque". O primeiro passo do desvendamento é o autodesven-
damento. Uma pesquisa é sempre terapêutica.
a) Cobertura - recobrimento - des(en)cobrimento:
cobertura é uma operação. Exige uma logística:
- O que se quer cobrir?
- Por que se quer cobrir?
- Por quanto tempo se quer cobrir?
- Quem vai cobrir? Um pesquisador? Uma equipe?
O recobrimento é uma metodologia de imersão (so-
ciologia compreensiva, formismo, observação-participante,
pesquisação). A sua pergunta é:
- Como se recobrir (cercar) o objeto?
O des(en)cobrimento é uma consequência, um resultado,
um produto. Mais uma vez, deve dar respostas às questões mais
antigas postas por quem procura:
- O que se des(en)cobriu?
- Houve descobrimento ou desencobrimento?
- Quais as consequências do resultado obtido?
b) A legitimação/deslegitimação pelo dado: o essencial
numa pesquisa em ciências humanas está em dar resposta a uma
pergunta que jamais se cala: por quê? Em certas situações,
porém, um dado pode ser tão eficaz a ponto de deixar essa
pergunta em suspenso por algum tempo. O estudante Wagner
62
Machado da Silva fez, sob minha orientação, uma monografia
de conclusão do curso de Jornalismo da PUCRS sobre o negro
na televisão: Uma Análise sobre a (in)visibilidade do negro no
telejornalismo do Rio Grande do Sul (2009). É uma dessas
pesquisas ancoradas numa hipótese de confirmação em que os
dados coletados falam muito alto, transformando o intuído,
-escamoteado ou negado em evidência demonstrada.
Wagner mostrou que nas sete principais emissoras de
televisão do Rio Grande do Sul atuam 421 jornalistas com
titulação acadêmica. Apenas três deles são negros. Ou seja,
0,71 %. É um dado acachapante que des(en)cobre um mundo
a aparentemente visível. Ele revela a persistência da exclusão do
negro. O estudante levantou dados sobre as faculdades: 1400
alunos entram por ano em 26 cursos de jornalismo gaúchos.
Somente 26 negros (1,85%). A maioria das instituições forneceu
os números. É possível que, englobando os dados inacessíveis,
chegue-se a 2 ou 2,5% de negros nas escolas de jornalismo do
Rio Grande do Sul.
O círculo vicioso aparece cristalinamente: as televisões
alegam que não contratam mais negros por falta de maior oferta.
As faculdades não recebem mais negros visto que eles nem
chegam em grande número ao vestibular. Assim vai. Não seria
uma questão de racismo. Seria apenas um efeito inercial do
passado. Só que esse efeito inercial reproduz a exclusão e
realimenta o preconceito. Até quando? Por quê? A pesquisa de
Wagner Machado da Silva poderia ou deveria ter dado resposta
à segunda pergunta? Talvez. Em certo sentido, tentou. Nenhu-
ma explicação poderia falar mais forte do que esse dado: três
negros em 421. Em alguns casos, os dados legitimam, desvelam
e desvendam mais do que as autoridades, as citações e talvez
até mais do que os argumentos e contra-argumentos. Falam por
si. Impõem um novo olhar.
Wagner Machado da Silva é negro.
63
 (
c) A legitimação/deslegitimação pela autoridade: a
citação: para que servem as citações e a revisão bibliográfica
num trabalho acadêmico ou científico? Elas servem, entre
outras coisas, para:
- Mostrar erudição (uma monografia, uma dissertação
ou uma tese exigem uma dimensão de novidade e outra de
repetição, pois são, ao mesmo tempo, pesquisa e prova).
- Inventariar o que já foi dito sobre o assunto e dar ao
autor citado a possibilidade de falar por si.
- Refutar aquilo que foi dito.
- Legitimar-se com o discurso do outro.
- Desvendar o olhar do pesquisador e do leitor.
- Desvelar algum sentido encoberto.
- Alcançar o número de páginas exigido.
Uma citação é feita para ser comentada. A legitimação
pela citação é uma legitimação pela autoridade dos autores. O
enunciado assume a forma de: "É assim porque Platão o disse".
O professor Molion, como vimos, buscou autolegitimar-se pela
experiência na polêmica sobre aquecimento/resfriamento global:
"De todas as pessoas que estão aqui no Brasil, talvez eu seja o
climatologista mais sênior". Faz sentido. Até que ponto?
Não pode um jovem saber mais do que um sênior? Não
pode um novo ter uma ideia mais relevante? É claro que sim. O
argumento de Molion tinha, obviamente, algo de retórico.
Rigorosamente falando, no entanto, não tem valor. Numa mesa
de discussão, só uma regra pode valer para decidir o jogo: a do
melhor argumento. Nada mais é defensável.
Resta um detalhe que sempre complica um pouco a vida:
como saber qual é o melhor argumento?
- É aquele que convence.
• - Aquele que os interlocutores aceitam.
- Aquele que, sendo possível, tem sua contraprova
empírica. Nas chamadas "ciências duras" é a norma.
- Aquele que os especialistas (os pares) validam.
64
- Aquele que se sustenta até ser invalidado por outro
melhor ainda e aceito pelos que validam argumentos.
Paradoxo: o melhor argumento, contra qualquer legiti-
mação pela autoridade, é validado por autoridades?
A ciência adora enigmas.
d) A legitimação/deslegitimação pelo argumento: é
claro que nem sempre os dados falam tão alto ou por si. E
quase sempre o discurso de autoridade esconde uma deficiência
argumentati va. Quando alguém diz que só especialistas devem
falar de um assunto de interesse geral, há fortes chances que
esteja tentando cercear a expressão alheia.
Estudantes costumam perguntar: "Pode-se opinar num
trabalho acadêmico?". Em geral, acreditam que não. A res-
posta, no entanto, é outra: sim. Todo trabalho acadêmico em
ciências humanas é uma opinião. E o que ele deve ser? Uma
opinião argumentada. Se alguém começa uma tese dizendo
que Shake~peare é o maior escritor de todos os tempos, está
emitindo opinião. Se for capaz de apresentar argumentos para
sustentar sua tese, terá cumprido sua missão. Outros, eviden-
temente, poderão encontrar argumentos para sustentar que o
maior escritor de todos os tempos foi, por exemplo, Cervantes.
É possível alcançar graus elevados de argumentação em favor
de um e de outro. É possível provar qual foi o melhor? Não.
Não há prova sem argumentação. Mas nem toda argu-
mentação gera provas irrefutáveis. Um trabalho pode ser sufi-
ciente se tiver densidade argumentativa mesmo que, pela
natureza do problema, não produza uma prova definitiva. De
resto, em ciência não existem provas definitivas. Tudo aquilo
que é não passível hipoteticamente de refutação está fora do
campo científico. É o caso da fé. Karl Popper fez disso seu
princípio de cientificidade. A certeza é anticientífica.
O melhor argumento não respeita qualquer tipo de
autoridade. Não tem idade, anterioridade, posição na carreira,
65
titulação ou cargo que possa se sobrepor à lógica argumenta-
tiva. Muitas vezes, no entanto, o melhor argumento pode estar
encoberto por uma deficiência expositiva, pela timidez do expo-
sitor ou pela relação hierárquica existente entre os interlo-
cutores. É preciso fazer o encoberto tornar-se descoberto. Um
argumento pode vencer os seus concorrentes graças a estratégias
de natureza retórica, dramática, de sedução ou de poder.
Não basta ter o melhor argumento. É preciso saber
apresentá-Io. A ciência, porém, é um jogo coletivo de lances
feitos separadamente. Em outras palavras, o melhor argumento
acaba por aparecer e impor-se. Nem sempre quem leva a fama
é quem chegou primeiro ao melhor argumento. Com frequência
leva os louros aquele que consegue pegar uma boa ideia,
construída e redimensionada ao longo do tempo, e dar-lhe a
forma adequada para que seja aceita ou percebida de acordo
com a sua real importância.
A ciência é um campo de cooperação e de competição.
A mitologia científica fala em homens dedicados unicamente à
busca da verdade. Sabe-se, no entanto, que se busca também
prestígio, sucesso, dinheiro e poder. Um bom argumento pode
desalojar muita gente. A verdade pode ser muito incômoda. Um
argumento poderoso pode exigir que se tenha bons aliados para
fazê-lo passar. De qualquer maneira, um grande argumento é a
melhor carta na manga de um pesquisador. Cedo ou tarde, ele
vencerá seus obstáculos. Mais um paradoxo: para superar
convicções é necessário ter algumas convicções capazes de
suportar ondas pequenas, médias ou grandes de descrédito.
O melhor argumento é aquele que, descobrindo o que
estava encoberto, solapa um imaginário e faz emergir uma
nova visão sobre um objeto ou fenômeno. O melhor argumento,
depois de gritar "eu vi, é truque", tira a aura da mágica, revela
os seus mecanismos internos e, em alguns casos, tira o emprego
do mágico. É verdade que muitos preferem não saber. E outros
66
podem lembrar que o próprio da mágica é produzir truques e
ilusões. O pesquisador desvenda os truques sociais. É um chato.
e) A relação imaginário e real (todo imaginário é real;
todo real é imaginário): vivemos no imaginário e de imagi-
nário. O físico Paul Feyerabend também compreendeu isso:
"Necessitamos de um mundo imaginário para descobrir os
traços do mundo real que supomos habitar e que, talvez,
em realidade não passe de outro mundo imaginário" (1977, p.
42-43). As narrativas do vivido e do imaginário investigam as
estratégias de comunicação que recobrem o vivido com uma ou
mais camadas de imaginário.
O imaginário é uma máquina que "turbina" o real tor-
nando-o fantástico e mais desejável ou temível. Essas opera-
ções podem acontecer "espontaneamente" a partir de pedaços
de informação ou de estimulantes culturais (a pessoa imagina
que Paris é sempre uma festa ou que Nova York nunca dorme)
ou por indução publicitária (denominar "passaporte" o ingresso
para um evento, chamar negócio de "business", rebatizar se-
mana de moda como "fashion week", rotular terminais de
baldeação de passageiros de portais). O mundo simbólico está
cada vez mais exposto às tecnologias do imaginário: publicida-
de, cinema, televisão, literatura. De toda maneira, o imaginário
é um reservatório afetivo de imagens, de onde cada um retira o
combustível para as suas motivações, e um motor.
O imaginário é paradoxal: líquido, sempre pode fluir.
Atinge, no entanto, altos graus de cristalização. Água congelada.
As camadas de gelo encobrem realidades anteriores à fixação
do imaginário. A passagem do coberto ao descoberto busca
mostrar o processo de construção de um dado imaginário. Faz
a narrativa de uma fabulação social. Às vezes, basta uma simples
operação de rastreamento. Marcel Proust imortalizou a expres-
são "faire cattleya" como "fazer amor". Como ele chegou a
essa fórmula? De onde ela veio? Para onde ela foi? Outras vezes,
67
o processo tem duas mãos: quem influencia quem? A tatuagem
da menina foi copiada da novela no afã de estar na moda, ou a
novela copiou a tatuagem da menina para se identificar com a
linguagem da "galera", ou seja, para corresponder a um deter-
minado imaginário juvenil?
As teorias da comunicação, centradas na ideia de mani-
pulação (emissor forte/receptor fraco), perguntavam:
- O que a mídia faz com as pessoas?
As teorias da recepção, centradas nas experiências de
vida (emissor fraco/receptor forte), perguntam:
- O que fazemos com a mídia?
As teorias complexas, centradas na conjunção de expe-
riências de vida, das tentativas de manipulação ou de influência
e na interação entre os diversos elementos da cadeia comunica-
cional, esboçam outra pergunta:
- O que fazemos com o que a mídia faz da gente?
Como se formam os imaginários? Guy Debord, na sua
famosa tese 4, realizou uma síntese extraordinária: "O espetá-
culo não é um conjunto de imagens, mas uma relação social
entre pessoas mediada por imagens" (1997, p. 14).
Obedeçamos a Debord: corrijamos Debord. Troquemos
uma palavra: o imaginário não é um conjunto de imagens, mas
uma relação social entre pessoas mediada por imagens.
As narrativas do imaginário e do vivido devem estudar
essa "relação". Fazer passar de encoberto a descoberto essa zona
existencial de intersecção.
f) A diferença entre correto (exato) e verdadeiro: o
grande risco da pesquisa é que o pesquisador aceite o correto
como verdadeiro. Heidegger dizia: "O correto constata sempre
algo exato e acertado naquilo que se dá e está em frente (dele).
Para ser correta, a constatação do certo e exato não precisa
descobrir a essência do que se dá e apresenta" (2002, p. 12-13).
Ao pesquisador, porém, interessa a verdade profunda.
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Guy Debord, no seu delírio maravilhoso, não hesitava
diante de coisa alguma na busca do des(en)cobrimento: "As
ideias melhoram. O sentido das palavras entra emjogo. O plágio
é necessário. O progresso supõe o plágio. Ele se achega à frase
de um autor, serve de suas experiências, apaga uma ideia errô-
nea, a substitui pela ideia nova" (1997, p. 134). Vamos apagar
uma ideia errônea de Debord. Vamos substituí-Ia por outra ideia:
não é de plágio que se trata, mas de diálogo, de intertextualida-
de, de intervenção. As ciências são uma interminável conversa.
A verdade é uma informação. Debord cercava as sutilezas
da não mentira: "Ao contrário da pura mentira, a desinformação
- e é nisto que o conceito é interessante para os defensores da
sociedade dominante - deve fatalmente conter uma parte de
verdade, mas deliberadamente manipulada por um hábil ini-
migo" (1997, p. 202). A desinformação seria, nas palavras do
teórico da sociedade do espetáculo, "o mau uso da verdade".
Hipóteses:
- E se não houvesse mau uso da verdade?
- E se a verdade pudesse ser um mau uso?
5 DEU NO JORNAL: CORRETO,
VERDADEIRO OU DESINFORMAÇÃO?
Vimos que o jornalismo vê o mundo com as lentes da
sua cultura e da sua mitologia profissional. Não há profissão
que não conte para si mesma uma história que lhe dê sentido e
exemplaridade. Um caso pode mostrar concretamente essa
relação entre exatidão/verdade/desinformação, repetição/dife-
rença e cobrir/descobrir esboçada antes. Mais uma vez, é so-
mente um exemplo para facilitar o entendimento de quem está
começando na profissão de pesquisador ou de quem, escolado,
está querendo ver mais longe. Afinal, este é também um livro
de autoajuda acadêmica muito nobre.
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