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LE GOFF, Jacques; TRUONG, Nicolas. Uma História do Corpo na Idade Média.Trad.:


Marcos Flamínio Peres, 2ª ed., Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2010, 208 p.

Prefácio: As aventuras do corpo (p. 9-14)

“Por que o corpo na Idade Média? Porque ele constitui uma das grandes lacunas da história,
um grande esquecimento do historiador. A história tradicional era, de fato, desencarnada.
Interessava-se pelos homens, e secundariamente, pelas mulheres. Mas quase sempre sem
corpo. Como se a vida dos homens se situasse fora do tempo e do espaço, reclusa na
imobilidade presumida da espécie. (...) Seus corpos não passavam de símbolos,
representações e figuras; seus atos, apenas sucessões, sacramentos, batalhas, acontecimentos.
Enumerados, escritos e inscritos, como em tantos marcos que pretendem pontuar a história
universal.” P. 9-10

“Dando espaço à „longa duração‟ e à sensibilidade, à vida material e espiritual, o movimento


da história chamado de „Annales‟ quis promover uma história dos homens, uma história total,
uma história global. Pois, se a história foi frequentemente escrita do ponto de vista dos
vencedores, como dizia Walter Benjamin, também – denunciava Marc Bloch – foi por muito
tempo despojada de seu corpo, de sua carne, de suas vísceras, de suas alegrias e desgraças.
Seria preciso, portanto, dar corpo à história. E dar uma história ao corpo.” P. 10

“Pois o corpo tem uma história. A concepção do corpo, seu lugar na sociedade, sua presença
no imaginário e na realidade, na vida cotidiana e nos momentos excepcionais sofreram
modificações em todas as sociedades históricas. (...) Ora, onde há mudança no tempo, há
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história. A história do corpo na Idade Média é, assim, uma parte essencial de sua história
global.” P. 10- 11

“A dinâmica da sociedade e da civilização medievais resulta de tensões: entre Deus e o


homem, entre o homem e a mulher, entre a cidade e o campo, entre o alto e o baixo, entre a
riqueza e a pobreza, entre a razão e a fé, entre a violência e a paz. Mas uma das principais
tensões é aquela entre o corpo e a alma. E, ainda mais, as tensões no interior do próprio corpo.
De um lado, o corpo é desprezado, condenado, humilhado. A salvação, na cristandade, passa
por uma penitência corporal. (...) O modelo humano da sociedade da alta Idade Média, o
monge, mortifica seu corpo. O uso do cilício sobre a carne é o sinal de uma piedade superior.
Abstinência e continência estão entre as virtudes mais fortes. A gula e a luxuria são os
maiores pecados capitais. O pecado original, fonte da desgraça humana, que figura no Gênesis
como m pecado de orgulho e um desafio do homem lançado contra Deus, torna-se na Idade
Média um pecado sexual. O corpo é o grande perdedor do pecado de Adão e Eva assim
revisitado.” P. 11

“Por outro lado, o corpo é glorificado no cristianismo medieval. O acontecimento capital da


história – a encarnação de Jesus – foi o resgate da humanidade pelo gesto salvador de Deus,
do filho de Deus, tomando um corpo de homem. E Jesus, Deus encarnado, venceu a morte: a
ressureição de Cristo funda o dogma cristão da ressureição dos corpos, crença desconhecida
no mundo das religiões.” P. 12

“O corpo cristão medieval é de parte a parte atravessado por essa tensão, esse vaivém, essa
oscilação entre repressão e a exaltação, a humilhação e a veneração. O cadáver, por exemplo,
é ao mesmo tempo matéria pútrida repugnante, imagem da morte produzida pelo pecado
original e a matéria a venerar (...). A eucaristia, centro do culto cristão, é o corpo e o sangue
de Cristo. A comunhão é uma refeição. No Paraíso, uma tensão, uma questão, anima os
teólogos medievais, cujas respostas e opiniões divergem. Os corpos dos eleitos reencontrarão
a nudez da inocência primitiva ou manterão, da passagem pela história, o pudor que irá cobri-
los com uma veste, certamente branca, mas dissimuladora de um resquício de vergonha?” P.
13

“Enfim, durante a cristandade medieval, o corpo sobre a terra foi uma grande metáfora que
descrevia a sociedade e as instituições, símbolo de coesão ou de conflito, de ordem ou de
desordem, mas sobretudo de vida orgânica e de harmonia.” P. 13
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Introdução: Uma história do esquecimento (p. 15-32)

“O corpo foi esquecido pela história e pelos historiadores. Ora, ele foi e continua a ser o ator
de um drama. Abrupta, a fórmula ignora as diversidades dos discursos e dos percursos, a
pluralidade das pesquisas históricas. O enunciado da regra despreza a exceção, pois novas
abordagens delinearam-se, desde os trabalhos de Norbert Elias sobre as civilizações dos
costumes, as pesquisas de Marc Bloch e de Lucien Febvre sobre as mentalidades medievais
ou as de Michel Foucault sobre a loucura na era clássica, o nascimento da prisão e da clínica,
assim como suas últimas reflexões sobre o antigo „cuidado de si‟.” P. 15

“Foi só a partir do mergulho nas ciências sociais, contudo, que a história cedeu espaço às
„aventuras do corpo‟ nas quais Marc Bloch recomendava envolver-se. Na confluência da
sociologia e da antropologia, Marcel Mauss (1872-1950) foi o primeiro a se interessar pelas
„técnicas do corpo‟. (...) Partindo de considerações científicas assim como de observações
empíricas e pessoais – o modo de nadar, de correr ou de cavar a terra -, Marcel Mauss faz das
„técnicas do corpo‟ a entrada ideal para a análise do „homem total‟ através da história e do
estudo das sociedades.” P. 17-18

“[...] alguns anos depois das observações fundamentais de Marcel Mauss, se difundia uma das
maiores contribuições à história do corpo, com a Civilização dos Costumes e A Dinâmica do
Ocidente, de Norbert Elias (1897-1990), duas partes de uma mesma obra consagrada ao
estudo do „processo civilizador‟. (...) Nessa empreitada de sociologia histórica, Norbert Elias
busca compreender o „processo civilizador‟ – que repousa, simplificando, no autocontrole da
violência e na interiorização das emoções – por meio do estudo dos costumes e das „técnicas
do corpo‟, sobretudo na Idade Média e no Renascimento.” P. 20

“[...] A Civilização dos Costumes leva a sério o que a inúmeros pesquisadores parecia fútil: os
modos à mesa, as maneiras, autorizações ou proibições de assoar o nariz, de escarrar, de
vomitar, de defecar, de urinar, de copular ou lavar-se. Por meio de manuais de civilidade,
Elias mostra, por sua vez, (...) que essas funções corporais ditas naturais são culturais, isto é,
históricas e sociais. [...] além da redução tradicional do corpo à natureza, a resistência ou a
repugnância em estudar tais fenômenos, julgados indignos ou ignóbeis no seio de uma dada
cultura, talvez seja uma das razões por que a história do corpo levou tanto tempo para se
realizar.” P. 21
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“Mas será preciso aguardar Lucien Febvre (1878-1956) e, sobretudo, Marc Bloch (1886-
19440, isto é, os trabalhos da „escola dos Annales‟, para que a intuição histórica se beneficie
de uma verdadeira atenção e se transforme realmente em um programa de pesquisa. Em sua
Apologia da História, (...) Marc Bloch não deseja separar o homem de suas vísceras. (...).
Uma constante atravessa toda sua obra: Marc Bloch se recusa a mutilar o homem de sua
sensibilidade e de seu corpo.” P. 22-23

“Muitas de nossas mentalidades e de muito de nossos comportamentos foram concebidos na


Idade Média. Isto é valido também para as atitudes em relação ao corpo, ainda que as duas
reviravoltas principais tenham ocorrido no século XIX (com o ressurgimento do esporte) e no
século XX (no domínio da sexualidade). É de fato na Idade Média que se instala esse
elemento fundamental de nossa identidade coletiva que é o cristianismo, atormentado pela
questão do corpo, ao mesmo tempo glorificado e reprimido, exaltado e rechaçado.” P. 29

“No plano cultural, é na Idade Média que se estabelecem o desenvolvimento urbano e as


novas estruturas da cidade, centro de produção (e não somente de consumo), centro de
diferenciação social (o corpo do burguês não é o corpo do artesão ou do operário), centro
político (os cidadãos formam um corpo), centro cultural em que o corpo não ocupa o mesmo
lugar fundamental que ocupa no campo (...).” P. 30

“[...] o corpo é hoje a sede das metamorfoses dos novos tempos. Da demiurgia genética às
armas bacteriológicas, do tratamento e da abordagem das epidemias modernas às novas
formas de dominação no trabalho, do sistema da moda aos novos modos de nutrição, da
glorificação dos cânones corporais às bombas humanas, da liberação sexual às novas
alienações, o desvio pela história do corpo na Idade Média pode permitir compreender um
pouco melhor nosso tempo, tanto por suas convergências surpreendentes como por suas
irredutíveis divergências.” P. 32

Parte I – Quaresma e Carnaval: Uma dinâmica no Ocidente (p. 33-88)

“[...] Mulher diabolizada; sexualidade comtrolada; trabalho manual depreciado;


homossexualidade no princípio condenada, depois tolerada e enfim banida; riso e gesticulação
reprovados; máscaras, maquiagem e travestimentos condenados; luxúria e gula associados...
O corpo é a prisão e o veneno da alma. À primeira vista, portanto, o culto do corpo da
Antiguidade cede lugar, na Idade Média, a uma derrocada do corpo na vida social.” P. 37
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“É no alvorecer de um tempo que se instala, no Ocidente pelo menos, uma religião oficial e
uma nova ordem – o cristianismo – que se materializa a repugnância em relação aos fluidos
corporais: o esperma e o sangue. Esse „mundo de guerreiros‟ reprova, com efeito, o sangue. A
sociedade medieval é, desse ponto de vista, um mundo de paradoxos. [...] Na Idade Média, o
sangue é a pedra-de-toque das relações entre as duas ordens superiores da sociedade: oratores
e bellatores. A característica da última categoria, a dos guerreiros, que concorre e se encontra
em conflito permanente com a primeira, a dos clérigos, é de derramar sangue. Ainda que a
proibição nem sempre seja respeitada, os monges, guardiães do dogma, não devem lutar. A
distinção social entre os oratores e os bellatores se dá, portanto, em torno desse tabu. Razão
social, estratégica e política, mas também teológica, já que o Cristo do Novo Testamento diz
que não é preciso derramar sangue.” P. 39

“[...] Uma das várias razões da situação de relativa inferioridade da mulher na Idade Média é
imputada as suas menstruações (...). A transgressão da proibição eclesiástica feita aos esposos
de copular durante o período da menstruação teria por consequência o nascimento de crianças
com lepra, „ a doença do século‟, dir-se-ia hoje, que encontra aqui sua explicação mais
corrente. O esperma também é nódoa. A sexualidade, associada a partir do século XII ao tabu
do sangue, é assim o ápice da depreciação corporal.” P. 40

“A transformação do pecado original em pecado sexual é tornada possível por meio de um


sistema medieval dominado pelo pensamento simbólico. Os textos da Bíblia, ricos e
polivalentes, se prestam de bom grado a interpretações e deformações de todos os gêneros. A
interpretação tradicional afirma que Adão e Eva quiseram encontrar na maçã a substância que
lhes permitiria adquirir uma parte do saber divino. Já que era mais fácil convencer o bom
povo de que a ingestão da maça decorria da copulação mais que do conhecimento, a oscilação
ideológica e interpretativa instalou-se sem grandes dificuldades.” P. 51

“Ao fim de uma longa caminhada, ao preço de ásperas lutas ideológicas e de


condicionamentos práticos, o sistema de controle corporal e sexual instala-se, portanto, a
partir do século XII. Uma prática minoritária estende-se à maioria dos homens e mulheres dos
homens e das mulheres urbanos da Idade Média. E é a mulher que irá pagar o tributo mais
pesado por isso. Por muitos e muitos anos. [...] Segunda e secundária, a mulher não é nem o
equilíbrio nem a completude do homem. Em um mundo de ordem e de homens
necessariamente hierarquizado, „o homem está em cima, a mulher embaixo.” P.52
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“A mulher irá pagar em sua carne o passe de mágica dos teólogos, que transformaram o
pecado original em pecado sexual. Pálido reflexo dos homens, a ponto de Tomás de Aquino,
que às vezes segue o pensamento comum, dizer que „a imagem de Deus se verifica no homem
de uma maneira que não se verifica na mulher‟, ela é subtraída até mesmo em sua natureza
biológica, já que a incultura científica da época ignora a existência da ovulação, atribuindo a
fecundação apenas ao sexo masculino. „Essa Idade Média é masculina, decididamente‟,
escreve Georges Duby. „Pois todos os discursos que chegam até mim e sobre os quais me
informo são feitos por homens, convencidos da superioridade de seu sexo. No entanto, eu os
escuto falando antes de tudo de seu desejo e, por consequência, das mulheres. Eles têm medo
delas e, para se afirmarem, desprezam-nas.‟” P. 54-55

“Boa esposa e boa mãe, as homenagens que o homem rende à mulher assemelham-se, por
vezes, a desgraças, se levarmos em conta o vocabulário corrente entre os operários e os
artesãos do século XV, que falam de „cavalgar‟, „justar‟, „lavrar‟ ou „roussier’ (bater e
espancar) as mulheres. „O homem se dirige à mulher como se dirige à latrina: para satisfazer
uma necessidade (...)‟”. P. 55

Parte II – Viver e Morrer na Idade Média (p. 91-130)

“[...] as relações entre o corpo e o amor não caminhavam juntos na Idade Média. De um lado,
os romances corteses exaltam o amor, de outro a Igreja o parte ao meio ou o limita ao quadro
estrito do casamento que se regulariza a partir do século XI. Mas a literatura provavelmente
embeleza a realidade. O amor cavalheiresco ou „cortês‟ era talvez uma maneira de aliviar as
carências sexuais e passionais de um tempo pouco propício às folias do corpo e aos arroubos
do coração tal qual os pintavam os romances ou as canções. As guerras e as Cruzadas deixam
pouco espaço ao romance, ainda que vários dos cruzados partissem em direção à Jerusalém
com a finalidade de arranjar esposa (...).” P. 96

“Nessas narrativas, após a troca de olhares – que mostra mais uma vez até que ponto a visão é
um sentido primordial na Idade Média – e passada a paixão fulminante, o apaixonado se
mostrava ora enamorado, ora suplicante, amante coroado por um beijo, depois, enfim, amante
carnal. O Roman de la Rose dá lições sutis e excelentes de prazer sexual: „E quando eles
passam à prática, que cada um faça sua tarefa tão habilmente e com uma precisão tal que o
prazer venha no mesmo momento tanto para um quanto para outro... Não é necessário que um
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deixe o outro para trás: eles não devem deixar de navegar até que ambos cheguem juntos ao
porto; é então que eles conhecem o prazer completo.‟” P. 96-97

“Volúpia e licenciosidade, erotismo e carícias, as histórias corteses são, com frequência,


histórias de adultérios, como para Tristão e Isolda ou Ginevra [Guinevere] e Lancelote. [...] A
fórmula é um pouco abrupta e peremptória, mas a Idade Média sem dúvida ignorou aquilo
que chamamos de amor. A palavra chega a ser pejorativa. Amor significa a paixão devoradora
e selvagem. O termo caritasterá preferência, porque nasceu nas cortes feudais da Provença.
Mas a depreciação do amor em relação ao caritas não se modificará. O que não quer dizer
que os homens e mulheres da Idade Média não conheçam os arroubos do coração ou as folias
do corpo, que ignorem o prazer carnal e afeição pelo ser amado, mas o amor, sentimento
moderno, não era um fundamento da sociedade medieval.” P. 97

“Chegou-se até ver no amor cortês a imagem de uma homossexualidade recalcada. Esta,
tolerada entre os gregos e os romanos, foi vigorosamente condenada pelo cristianismo. Mas,
em particular no século XII, a homossexualidade parece ter sido tolerada, a ponto de fazer
daquele século o século de Ganimedes. Depois, a partir do século XIII, a homossexualidade
foi definitiva e rigorosamente condenada, mesmo que, no século XV, tenha sido largamente
praticada em uma cidade como Florença.” P. 98

“Os homens e as mulheres da Idade Média conheciam o erotismo, apesar do anacronismo do


termo, pois a palavra – originária do nome da divindade grega do amor e do desejo, Eros – só
irá adquirir seu sentido contemporâneo no século XVIII? É difícil duvidar disso, de tal forma
as canções e os fabliaux, as esculturas e as miniaturas transbordam de figuras obscenas, de
posições perturbadoras, de corpos a corpos desenfreados.” P. 98

Parte III – Civilizar o Corpo (p. 133-172)

“Na impossibilidade de controla-lo completamente, a Igreja irá dedicar-se a codificar,


regulamentar, arregimentar o corpo. (...) Arte, culinária, beleza, gestos, amor, nudez... todos
os domínios da vida social e privada que colocam em jogo o corpo vão ser inseridos nessa
nova ideologia que triunfa na Europa. (...) O cristianismo instituído e a sociedade de corte
nascente vão „civilizar o corpo‟ através da instituição das boas maneiras. Entretanto, o corpo
resiste. No universo das margens e das narrativas literárias em que o erotismo e a nudez, por
exemplo se fazem ver.” P. 133
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“A civilização dos costumes na Idade Média é uma civilização dos gestos. Nesse mundo
idealmente voltado para a espiritualidade, a renúncia à carne e os templos de pedra, o gestual
não tem nada de natural. Nessa sociedade fortemente ritualizada, os gestos – as mãos juntas
da prece, o beijo de homenagem vassala, promessas e contratos orais – os movimentos e as
atitudes do corpo estão no centro da vida social. As representações e os hábitos também.” P.
139

“[...] a nudez irá oscilar entre o apelo inocência de antes do pecado original, a beleza dada por
Deus aos homens e às mulheres e a luxúria. Assim, a beleza feminina oscilará entre Eva, a
tentadora, e Maria, a redentora. [...] Contrariamente à ideia consagrada, os homens da Idade
Média não odiavam a nudez. É verdade que a Igreja a condenou. Mas o corpo nu permanece
no centro de uma desvalorização e de uma promoção. (...) Mas, a partir do momento em que o
casamento se institui no horizonte da procriação, os casais são autorizados a dormirem nus,
como atestam várias representações. Apesar disso, mesmo no estágio do casamento, o nu
permanece uma situação perigosa. E a representação de cônjuges nus em um leito pode ser
percebida como um sinal de luxúria. (...) Assim decaída, a nudez oscila entre a beleza e o
pecado, a inocência e a malignidade.” P. 140

“Entretanto, o nu está em geral do lado do perigo, se não do mal. Ele está do lado da
selvageria e da loucura. (...) O nu é também uma das principais manifestações de risco moral
que são a falta de adorno, mas também proteção e armadura. [...] A literatura mostra bem
como o ideal da cortesia se exprime muito especialmente através do jogo entre a nudez e a
vestimenta. Os heróis cortes, homens e mulheres, são belos. Na mulher, a beleza dos cabelos,
valorizada por suas tranças, realça a beleza do corpo nu, enquanto o corpo do homem cortês
se oferece especialmente à admiração e ao desejo de sua dama e das outras mulheres que
podem vê-lo. (...) Mas heróis e heroínas corteses impõem-se também pela beleza de suas
roupas, favorecendo, assim, o desenvolvimento da moda. A nudez cortês é ambígua. Ela pode
ser um hino à beleza física, mas também um aguilhão da sexualidade e da luxúria. É entre a
beleza do corpo nu e a beleza da roupa, entre a inocência e o pecado, que o homem e a mulher
na Idade Média se servem de adornos ou do despojamento de seus corpos.” P. 141-142

“Eva e Maria constituem os dois polos da beleza feminina na Idade Média. A oposição
exprime a tensão que existe no próprio coração da imagem da mulher. De um lado, existe
Eva, a tentadora, e mais particularmente, a pecadora, que provém de uma leitura sexuada do
pecado original. Mas, ao mesmo tempo, a Idade Média não esqueceu que o Deus do Gênesis
criou a mulher para que ela fosse a companheira do homem, a fim de não deixá-lo só. Eva
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representa, assim, essa auxiliar do homem que lhe é necessária. [...] Eva é uma das
encarnações da beleza que leva a Idade Média à descoberta do corpo e sobretudo do rosto
feminino, em numerosos retratos. Diante de Eva, Maria aparece como uma redentora. É a
beleza sagrada diante da beleza profana. E a beleza feminina é feita do encontro entre essas
duas belezas. Mas, se o corpo de Maria não é um objeto de admiração, seu rosto sim.” P. 142-
143

Parte IV - O Corpo como Metáfora (p. 155-172)

“Estado, cidade, Igreja, universidade, humanidade... O corpo torna-se, na Idade Média, uma
metáfora. [...] A igreja, como comunidade de fiéis, é vista como um corpo do qual Cristo é a
cabeça. As cidades, sobretudo através do impulso das conjurações e das comunidades
urbanas, tendem a formar igualmente um „corpo místico‟. As universidades funcionam como
verdadeiros „corpos de prestígio‟. Mas talvez seja em torno da questão política que se ligue e
se jogue a sorte da metáfora corporal na Idade Média, enquanto se desenvolve a analogia
entre o mundo e o homem.” P. 155

“O coração é definido por Aristóteles como a origem da sensação, e o aristotelismo medieval


retoma o tema. Santo Agostinho faz do coração a sede do „homem interior. No século XII,
século da proclamação do amor, afirmam-se paralelamente o amor sagrado, exaltado
sobretudo em numerosos comentários ao Cântico dos Cânticos, e o amor profano, que toma
as formas do amor cortês.” P. 159

“O sistema cristão de metáforas corporais repousa sobretudo no binômio cabeça/coração. O


que dá toda força a essas metáforas nesse sistema é o fato de que a Igreja, sendo comunidade
de fiéis, é considerada um corpo do qual Cristo é a cabeça. (...) Paulo faz até um paralelo entre
a dominação do homem sobre a mulher e a de Cristo sobre a Igreja: „O marido é o chefe
(cabeça) da mulher, assim como Cristo é o chefe da Igreja e é o salvado de seu corpo, mas,
assim como a Igreja é submetida a Cristo, da mesma forma as mulheres são submetidas a seus
maridos em todas as coisas‟ [Epístola aos Romanos, 5-23]. Trata-se aqui de dominação e de
sujeição. Estamos no campo do poder, ainda que se trate somente do poder marital.” P. 162-
163

Conclusão: Uma história lenta (p. 173-177)


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“A história do corpo oferece ao historiador e ao interessado em história uma vantagem, um


interesse suplementar. O corpo ilustra e alimenta uma história lenta. A essa história lenta, que
é, em profundidade, a das ideias, das mentalidades, das instituições e mesmo a das técnicas e
das economias, esse interesse dá um corpo, o corpo.” P. 173

“Vê-se desenvolver na Idade Média um fenômeno que introduz mais rapidez em seus efeitos
sobre o corpo: a moda. Se dispusermos de uma boa documentação, em particular
iconográfica, e de obras pioneiras sobre a Idade Média, fenômenos sociais e culturais mais
intimamente ligados ao corpo são ainda um terreno em estado bruto para a pesquisa
histórica.” P.174

“[...] Máscaras, jogos verbais e lexicais, fronteiras permeáveis entre o homem e o animal,
prostitutas, macacos, gesticulações, contorções, metamorfoses, risos, choros, ironias e troços.
É o respeito ao coração, mas também a vingança do corpo (...). Medo, obsessão, sedução da
morte e exaltação da beleza física: a tensão corporal torna-se existencial. O corpo tem
portanto, uma história. O corpo é a nossa história.” P. 177

Comentário geral

Segundo o falecido medievalista francês Jacques Le Goff, este ensaio foi concebido
inicialmente como uma forma de preencher uma lacuna historiográfica no que diz respeito aos
estudos sobre o corpo. Incialmente, a justificativa – mais do que plausível, como veremos
adiante – seria somente essa. Entretanto Le Goff também visualizou o desenvolvimento desse
estudo como uma forma de prestar tributo ao seu grande idealizador, seu mestre e fonte de
inspiração, segundo o mesmo: Marc Bloch, um dos fundadores do movimento que
transformaria os rumos da pesquisa histórica, os Annales; juntamente com Lucien Fevbre, e
por sua vez também, um conceituado e respeito historiador ligado à medievalidade. Le Goff
defende que Bloch inúmeras vezes pontuou em seus escritos a importância de não separar o
homem de seu estrato primordial: o corpo e suas sensibilidades. Tendo em vista essa
perspectiva, Jacques Le Goff, herdeiro de Marc Bloch nos estudos medievais e também na
historiografia francesa ligada ao movimento dos Annales, embarca juntamente com Nicolas
Truong, jornalista do periódico francês Le Monde de l’Éducation, nos estudos sobre o corpo
medieval e suas particularidades.
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A escolha dessa obra é oportuna. Não somente pelo período estudado, mas sobretudo
porque a mesma percorre de maneira acertada, bem trabalhada e desenvolvida os inúmeros
impasses que o corpo sofre no decorrer de toda a Idade Média. Repressão x exaltação; culto x
repulsa; masculino x feminino; beleza estética x ideal espiritual; são algumas das perspectivas
aqui estudadas por Le Goff e Truong, de maneira a fornecer uma maior variedade e
ancoramento teórico e metodológico àqueles que desejam pesquisar e estudar sobre as
relações culturais e de gênero na Idade Média. Não faz muito tempo que os estudos históricos
se abriram para um conjunto de temas e objetos mais amplo, o que, mesmo assim, não quer
dizer que todos os temas, fontes e objetos já foram pesquisados pelo historiador. Quanto
maior é o número de abordagens possíveis de serem utilizadas na pesquisa histórica, mais
nítida se torna a constatação de que as “grandes” mudanças teóricas e metodológicas da
históriasão provenientes da renovação e da ampliação dos temas investigados. Tal é a
justificativa para se empreender um estudo mais profundo acerca do corpo e seu valor como
objeto histórico passível de análise, não mais separando o mesmo do homem, não mais
tirando o espaço devido e destinado a ele na história das relações humanas e no seu processo
de amadurecimento.

O caminho correto para estudar um tema até então pouco apresentado se dará
incialmente de modo que os autores esboçarão um pequeno histórico dos estudos anteriores
sobre o corpo e suas variedades. Das estruturais mentais e sociais descritas por Marc Bloch
em sua Sociedade Feudal, passando pelos estudos literários e representativos de Michelet e
Bakhtin, chegando à antropologia de Marcel Mauss e suas “técnicas corporais”, perpassando
ainda pela sociologia de Elias e seu “processo civilizador” e por fim analisando as
microestruturas de Foucault e sua análise sobre as tensões corporais (sexualidade emergente,
loucura, cuidado de si), os autores deixam de início seus agradecimentos aos que contribuíram
para que o corpo não fosse esquecido de vez pela história. Portanto, ainda que poucos tenham
empreendido por este caminho, as lacunas não estavam todas cobertas e por isso estudar o
corpo medieval tornou-se mais um desafio oportuno, sobretudo porque vários dos
comportamentos observados atualmente são oriundos da Idade Média. Le Goff afirma que
com o advento do cristianismo houve uma reestruturação nos conceitos e nas práticas
corporais e comportamentais da sociedade medieval, de modo que as tensões que marcam o
período serão uma constante no texto aqui trabalhado.

A tensão entre um corpo feminino “demonizado” e um corpo masculino “glorificado”


ficaria latente no período, porque de início o corpo na Idade Média foi renunciado. Controlar
12

a sexualidade feminina, seus gestos, suas práticas, sua conduta na sociedade passaria a ser
uma questão mediada pela Igreja e aceita pela sociedade. Mesmo assim, o próprio corpo
feminino não deixou de também ter disputas entre o bem (a procriação, a virgindade de Maria
e elevação do culto mariano, a castidade e o cuidado com a família) e o mal (a sexualidade, a
prostituição, a luxúria e a perversão da alma), o que denota uma imagem ainda carregada de
preconceito e desconhecimento quanto ao gênero feminino por parte dos medievais. O pecado
original, transformado na Idade Média em pecado sexual, daria o tom ao tratamento
dispensado às mulheres pela sociedade medieval quase como um todo, principalmente de
clérigos, teólogos, escritores e “intelectuais”. Os tabus relacionados aos fluidos humanos
também são abordados aqui de forma a elucidarem melhor a preocupação da Igreja com a
pureza dos corpos, principalmente o feminino. Sangue e esperma são condenados e
terminantemente proibidos de serem “derramados”. Por isso a repulsa aos fluidos femininos,
principalmente o sangue do parto e da menstruação, que só demonstra a submissão espiritual e
agora corporal da mulher perante ao homem. A tensão entre corpo e alma, como descrita no
prefácio da obra será talvez a que mais marcará as relações entre os indivíduos e seus corpos.
Tidas como questões espirituais, as dietas alimentares, o respeito às regras, ocultivo do
espírito e a submissão à Igreja marcavam, assim, as expectativas dos homens e das mulheres.
Desse modo, o cuidado com o nu, com os excessos de alimentos, a „gula‟, com as práticas
corporais (o sexo, em particular) e esportivas (a mostra do corpo em público), igualmente,
marcavam o tipo de conduta a ser respeitada. Durante a Idade Média, as normas quanto às
condutas corporais não se limitavam apenas aos membros da sociedade, como ainda faziam
parte da própria organização das metáforas usadas para definir o espaço de convivência
social.

Os comportamentos femininos e masculinos, amplamente discutidos no decorrer da


obra nos fornecem ainda mais a noção de uma sociedade profundamente marcada por suas
contradições e particularidades inerentes. De fato, homens e mulheres lidavam com seus
corpos de maneira totalmente distinta, ainda que ambos os corpos, feminino e masculino,
fossem descritos pela literatura cortês medieval, como unidos num só quando entregues aos
desatinos do amor. Entretanto, convém ressaltar que tal perspectiva só será comumente mais
verificada nos romances corteses que obedecem rigorosamente todas as regras impostas pelo
ideal nobre, cristão e cortês que era próprio de tais narrativas. Os autores finalizam o ensaio
afirmando que os estudos sobre o corpo fornecem uma vantagem ao historiador pelo fato de
mostrarem um processo lento de afirmação do corpo no curso histórico. Decerto, quando
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estudado e analisado de modo que sua compreensão sirva para uma melhor compreensão dos
papéis sociais do homem e da mulher medievais, o corpo fornece súbita e importante
contribuição acerca do estreitamento oportuno das relações morais e culturais entre os
gêneros.

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