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"Nordestino não sabe votar". "Pobres merecem o que têm". "Abaixo o Bolsa
Esmola". "Vão pra Cuba". "Muda para Miami". "Os empregados deveriam ser
proibidos de participar". "Paulista é uma raça egoísta". "Deveríamos nos separar
do resto do país". Não, não é por acaso que as manifestações de ojeriza à política,
ao contraditório e ao voto das populações mais pobres tenham se intensificado ao
longo desta eleição, a sétima desde a reabertura democrática. A democracia
brasileira é jovem, mas não é uma criança. Parte do ódio que ela provoca é antes o
resultado de sua maturidade do que de seu ineditismo: quem vocifera não são os
que desconhecem seu funcionamento, mas os que o conhecem muito bem – a
ponto de, em pleno 2014, falarem em golpe, impeachment ou cegueira coletiva para
deslegitimar um resultado adverso. (E olha no que deu: escalada de ódio e
perseguição, onde o pobre (Lula) vai pra cadeia e os ricos (Aécio, bancada da
bala e assemelhados) ficam livres e se reelegem.)
Em coro com Rancière, Janine Ribeiro lembra que a democracia não é um Estado
acabado nem um estado acabado das coisas; ela vive constante e conflitiva
expansão. “Porque a ideia de separação social continua presente e forte”.
Ao menos nas últimas semanas, esta ideia parece ter tomado proporções graves
nas manifestações de ódio pelas ruas e redes sociais. Como se o mesmo país fosse
pequeno demais para dois (para não dizer muitos) tipos de eleitores: um deve ser
enviado a Cuba, o outro, a Miami; um deve ter o direito de voto cassado, o outro tem
o direito apenas de calar. O não-diálogo é escancarado, sobretudo por quem
costumava observar o espaço público como sua propriedade e hoje se rebela contra
o "Estado protetor" e o voto "mesquinho" dos indivíduos. Mas a democracia,
prossegue Rancière, longe de ser a forma de vida dos indivíduos empenhados em
sua felicidade privada, é o processo de luta contra essa privatização, o processo de
ampliação dessa esfera. "Ampliar a esfera pública não significa, como afirma o
chamado discurso liberal, exigir a intervenção crescente do Estado na sociedade.
Significa lutar contra a divisão do público e do privado que garante a dupla
dominação da oligarquia no Estado e na sociedade”.