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EDITORES / EDITORS /
Fernando de Castro Fontainha / IESP-UERJ
José Roberto Franco Xavier / UFRJ
Paulo Eduardo Alves da Silva / USP
Keywords: Abstract:
socio-legal studies / sociology / empirical research / This article is about the field of socio-legal studies
Brazil and the sociology of the field. This division enables
working with two dimensions of the author’s socio-
legal scholarly personality, especially as it relates to
Brazil. It is going to try to describe, not prescribe, and
the description is very preliminary. It is in part meant
Summary:
to provoke responses and criticisms that will make
1 Introduction
the description better. Part one examines the rise and
2 Part One. A Summary History of Socio-
to some extent fall of the field of socio-legal studies
Legal Studies in the United States
in the United States. Part two will examine and make
3 Part Two. Brazil
a preliminary contrast to a kind of parallel and con-
4 Part Three. Back to the U.S. and the Role
trasting story in Brazil. Part three moves to a differ-
of Hegemonic Power
ent approach, a more sociological approach, focusing
5 Part Four. Is there a Brazilian parallel to
on lawyers as a point of entry into issues of law and
the story of the reproduction of the US
state. Part four is the most tentative part of this talk
legal elite in relation to a shift in power?
as it a very preliminary contrast of the U.S. story with
How does it relate to empirical research
what I know preliminarily about Brazil in relation to
and law and society?
the same issues of the place of law, elite production,
6 Epilogue
hegemony, and globalization. Finally, it raises a cou-
7 References
ple of research projects and questions raised by this
sociological examination.
In sum, there is definitely something going on in Bra- This elite law in the United States relates to interna-
zil in the rise of empirical research about law, and law tional strategies and foreign policy as well (Dezalay
itself appears to be more on the progressive side than & Garth, 2010). When the United States governed the
in the United States -- although there is certainly a Philippines, for example, U.S. colonial administrators
progressive side alive in the U.S. with the Law and So- sought to promote lawyer statespersons and corpo-
ciety Association. But there is a questioning of whe- rate lawyers to govern within what was to be a mode-
ther the purely empirical side is really legitimated in rate democracy open to free trade and investment.
Brazil in the way as it is in the United States. This approach became the model for U.S. foreign aid
and influence abroad more generally, especially af-
One question is why what appears to be the mainstre- ter the Cold War (when there was no longer a threat
am in Brazil is both less empirical and more progres- of communism that could be used as an excuse not
sive than in the United States and at the same time to support democracy and a strong role for law and
The leaders of the Brazilian arbitration organization Fourth, the Brazilian Empirical Legal Studies Asso-
(CBAR) seem also to fit a potential profile of adapting ciation (or Network) is a complex mix of challenge
to shifts in the economy and state. One scholar in Bra- to Brazilian tradition, international import, a res-
zil said that arbitration with notable jurists serving as ponse to the rise of economists, a desire for inter-
arbitrators may provide “a substitute for opinions” national credibility, and perhaps also a retooling of
that have long been key parts of the jurist profile and legal elites. Not much more can be said at this point
link to business. The classic kind of opinions repor- except that the group’s existence, composition, and
tedly have less value in an internationalized market status remain part of what needs to be explained. I
with sophisticated corporate firms. But serving as an hope that my preliminary framing of the context in
8 http://whoswholegal.com/profiles/44476/0/olavo%20baptista/ 9 http://whoswholegal.com/profiles/44476/0/olavo%20baptista/
luiz-olavo-baptista/ luiz-olavo-baptista/c
6 Epilogue
I could not resist closing with a few suggested ave-
nues for Brazilian empirical research in addition to
the ones implicit in my own tentative efforts. They
reflect my own interests but I mention them for what
they are worth.
Palavras-chave: Resumo
pesquisa / empiria / direito / sociedade / epistemologia Estimulante, inspirador, alentador. Assim pode ser
visto o horizonte da pesquisa empírica em direito no
Brasil atual. Mas eventual interesse em celebrar ou
promover essa condição não deve ocultar os obstá-
Sumário culos históricos e estruturais contra os quais ela foi
1 Introdução erigida, tampouco arrefecer o exercício da nossa
2 A emergência da PED: vetores consciência crítica sobre os desafios com os quais a
2.1 A exaustão do positivismo jurídico PED se defronta para se afirmar no tempo e no es-
2.2 A reforma do ensino jurídico paço – muitos dos quais, aliás, derivam exatamente
2.3 A consolidação de uma ordem jurídico- das novas circunstâncias e, por isso mesmo, apenas
política democrática e a apropriação do muito lentamente se fazem enxergar. Este artigo bus-
direito por outros atores acadêmicos e ca contribuir com essa reflexão. Para tanto, baseado
sociais em revisão de literatura, coleta de dados primários, e
2.4 O chamado das políticas públicas em aspectos da experiência pessoal do autor, o texto
2.5 A globalização examina o que chama de vetores, desafios e apostas
3 Desafios atuais da PED possíveis na PED no país.
3.1 Desafios epistemológicos
3.2 Desafios procedimentais (métodos e
ética)
4 Uma aposta em PED: a construção social
da legalidade na administração pública
5 Considerações finais
6 Referências
Keywords: Abstract
research / empiricism / law / society / epistemology In Brazil, socio-legal (empirical legal) research (SL/
ELR) has become an exhilarating, inspiring, and en-
couraging scholarly terrain. Yet, the chance to cele-
brate this condition shall not blind us to the historical
and structural obstacles against which it was erected,
nor shall it prevent us from critically assessing the
challenges SL/ELR still faces ahead in order to get
established – many of which, in fact, stem from new
circumstances and, therefore, are not yet completely
understood. This article seeks to contribute to such
discussion. Through a review of the literature, pri-
mary data collection, and aspects of the author’s own
experience, it examines what it calls driving forces,
challenges, and possible ventures in socio-legal (em-
pirical legal) research.
2 A referência é a coletivos como a Rede de Estudos Empíricos em A seção 3 destaca questões problemáticas que a
Direito (REED) ou a Associação Brasileira de Pesquisadores em So- PED, no entanto, sempre teve de confrontar. Se no
ciologia do Direito (AbraSD). A REED mantém esta Revista, atual- momento atual a emergência de uma comunidade
mente no terceiro volume, e seu IV Encontro, realizado em Brasília,
em 2014, teve 80 trabalhos recebidos e 40 aprovados. Além disso, a
mais organizada e profissionalizada em torno da PED
REED tem realizado seminários e cursos regionais. A AbraSD possui permite que ela se apresente com mais força frente
267 associados e mantém um periódico, a Revista Brasileira de So- às resistências “externas”, nem por isso é possível
ciologia do Direito, cujo volume inaugural foi publicado em 2014.
esperar que, sozinha, ela dê conta de questões que,
O V Congresso da AbraSD, em 2014, teve 197 trabalhos aprovados.
Ambos os coletivos realizaram encontros em 2015, sendo que o VI em outras ocasiões, tenderam a dividir esse mesmo
Congresso da AbraSD também foi integrado ao Congresso do Rese- bloco “internamente”.
arch Committee on Sociology of Law da International Sociological
Association (ISA/RCSL), mas ao tempo da finalização deste artigo
A seção 4 compartilha com os leitores estratégia de
os dados sobre participantes e submissões para estes eventos ain-
da não estavam consolidados (Fontes: <http://reedpesquisa.org/> organização de PED que tenho buscado utilizar em
e <http://www.abrasd.com.br/>. Elaboração do autor). um dos meus mais recentes projetos, no qual, ainda
Além disso, a reforma introduziu flexibilização e/ou Nesta plasticidade, (...) a Portaria n. 1.886/94 se-
esgarçamento dos limites disciplinares no conheci- quer faz referência a currículo mínimo, senão a
mento e no ensino do direito. O objetivo era comba- diretrizes curriculares que não se confundem com
ter uma herança de encapsulamento arraigada não aquele, conteúdos mínimos, compreendendo ma-
só na relação entre disciplinas dogmáticas e não- térias, que podem estar contidas em disciplinas
-dogmáticas,9 mas entre as próprias disciplinas dog- mas que com elas também não se confundem
máticas (por exemplo, entre direito substantivo e pro- (INEP/MEC, 1998).11
cessual). Esta inovação se deu pela recusa de fixação
de um currículo mínimo, como em 1972, em favor, ao Além disso, há que se registrar, a partir da Portaria
invés disto, de uma lista de conteúdos obrigatórios ori- MEC 1.886/94, o advento pioneiro de um eixo de
ginalmente elencados em forma de matérias.10 formação fundamental para o jurista, integrado por
matérias até então marginalizadas no cotidiano das
A relevante distinção entre matérias e disciplinas Escolas de Direito. Economia, Sociologia, Filosofia e
deixava claro que as instituições teriam liberdade Ciência Política apareceram em pé de igualdade com
de compor a grade curricular da maneira que enten- temas da dogmática e mais tarde foram ampliados
dessem mais conveniente para que os conteúdos das pela Resolução CNE/CES n. 09 para contemplar His-
primeiras pudessem ser trabalhados. Não por outro tória, Psicologia e Antropologia.
motivo, as concepções adotadas pela Comissão de
Direito do antigo Exame Nacional de Cursos para Novos instrumentos de ensino/aprendizagem
avaliar as instituições à época de vigência da Portaria
MEC n. 1.886/1994 considerava esta normativa como: Além de introduzir novos princípios e exigências peda-
gógicas, a reforma ofereceu às instituições e aos sujei-
Estruturada na sua linguagem e nos seus conceitos tos atuantes no ensino do Direito algumas indicações
em conformidade com as demandas correntes do instrumentais para a realização de seus propósitos.
ensino jurídico do Brasil, e suficientemente plástica
para admitir a criatividade e singularidade de pro- Isto ocorreu no que aparece como o terceiro aspecto
jetos pedagógicos aptos a traduzir os novos para- principal das diretrizes destacado na presente análi-
digmas de formação jurídica em nosso país. se: a criação de novos espaços (loci) para o desenvol-
vimento das relações de ensino-aprendizagem. São
eles: os Núcleos de Prática Jurídica (NPJs), as Ativida-
des Complementares (ACs) e os Trabalhos de Curso
9 A expressão dogmática, neste texto, se refere à forma de conhe- (TCs), todos os quais representam meios hábeis para
cimento jurídico correspondente ao positivismo, cujo objetivo,
experimentos didático-pedagógicos favoráveis à
portanto, é o da determinação da vigência e do alcance de normas
a partir de textos e outras fontes autorizadas pelo próprio ordena- PED. NPJs e ACs permitem maior contato de estudan-
mento. Trata-se de tomar o direito posto como ponto de partida tes e professores com a realidade social e jurídica.
inquestionável (dogma), sendo certo, porém, que “o jurista, ao se O eixo de formação fundamental e a perspectiva de
obrigar aos dogmas, parte deles, mas dando-lhes um sentido, o que
lhe permite certa manipulação. Ou seja, a dogmática jurídica não
interdisciplinaridade viabilizam discussões teóricas e
se exaure na afirmação do dogma estabelecido, mas interpreta sua metodológicas consentâneas com a coleta e a análise
própria vinculação, ao mostrar que o vinculante sempre exige inter-
pretação, o que é função da dogmática” (Ferraz Jr., 2003, p. 49).
10 A Resolução CNE/CES n. 09/2004 vai além e, enunciando balizas 11 A distinção entre matérias e disciplinas foi abolida na Reso-
para a elaboração dos projetos institucionais de oferta do curso, lução CNE/CES n. 09, mas a atuação do Conselho na elaboração
incorpora às diretrizes seções prescritivas sobre o “perfil do gra- deste documento teve como um de seus principais fundamentos
duando”, “habilidades e competências”. Isto abre possibilidades a ideia de flexibilidade curricular. A interdisciplinaridade, por sua
para uma abordagem educacional completamente nova, em que vez, foi incorporada como um dos elementos estruturais do pro-
o conteúdo (matérias) deve ser pensado em conjunção com as jeto pedagógico dos cursos. Por isto, não é despropositado traçar
“habilidades e competências”, ou seja, com problemas concretos uma linha de continuidade entre os dois documentos em relação
relacionados à função social do profissional do direito. a estes temas.
Trabalhos Média de
Ano Evento Item da Programação Coordenação
aceitos público
3° Encontro da
Área Temática: Polí-
Associação Latino- Andrei Koerner
2006 tica, Direito e Judi-
-Americana de Ciência (UNICAMP)
ciário
Política (ALACIP)
6º Encontro da As-
Criação da Área
sociação Brasileira Andrei Koerner
2009 Temática: Política
de Ciência Política (UNICAMP)
Direito e Judiciário
(ABCP)
NSNR
7º Encontro da As- Primeira edição
sociação Brasileira da Área Temática: Fabiano Engel-
2010
de Ciência Política Política, Direito e mann (UFRGS)
(ABCP) Judiciário
riáveis como: organização, funcionamento e gestão sendo que o último contou com 48 apresentações, sele-
de Tribunais; comportamento de juízes; relação en- cionadas de um total de 80 submissões (Quadro 2).
tre juízes e democracia, entre outros. Estudo de Ko-
erner et al, por exemplo, suplementado com a coleta A apropriação do direito por outras disciplinas não
de dados adicionais, permite visualizar o histórico e se esgota, evidentemente, no estudo dos Tribunais
a expressão destes trabalhos nos principais encon- e nas abordagens da ciência política, havendo con-
tros de ciências sociais e ciência política dos últimos tribuições permanentes e relevantes da sociologia e
anos. No caso das ciências sociais, verifica-se que, da antropologia. Tais contribuições permitiriam es-
desde 2010, todos os encontros anuais da Associa- garçar ainda mais os limites teóricos e metodológicos
ção Nacional de Pós-Graduação em Ciências Sociais pelos quais o direito pode ser apreendido, ao passo
(ANPOCS) contemplaram sessões temáticas e grupos em que conduziriam a dúvidas e questionamentos,
de trabalho na área, todos eles com bons números de tais como sobre os limites entre descrição, crítica e
submissões (estimativa de oitenta, média de 13 acei- prescrição. A esta altura, entretanto, tais questiona-
tos) e público (média de 20 por sessão), consideradas mentos já estariam pautados pelo que abaixo deno-
as características do evento (Quadro 1). mino como o chamado das políticas públicas.
Situação igualmente estimulante se verifica no domínio 2.4 O chamado das políticas públicas
mais específico da ciência política. Em 2006, o III Encon- A consolidação da democracia e a melhoria das con-
tro da Associação Latino Americana de Ciência Política dições teóricas e práticas para que o conhecimento
(ALACIP), realizado em Campinas (SP), apresentou área do direito desenvolvesse uma dimensão empírica já
temática dedicada a estudos de “Política, Direito e Ju- tenderiam a gerar algum impacto no engajamento e
diciário”. A partir de 2009, a Associação Brasileira de Ci- na produção técnico-científica da área, aproximan-
ência Política (ABCP) seguiu contemplando essa área do-a de elementos concretos da realidade.
temática em seus três encontros bianuais subsequentes,
Financiamento de pesquisas
Conselho Nacional de CNJ acadêmico (parceria com a
Justiça/ Departamento de R$ 17 mi- CAPES);
2010–2014 50 estudos financiados (1)
Pesquisa Judiciária (CNJ/ lhões Editais;
DPJ) Parceria direta com universidades
ou centros de pesquisa
Esta condição, por sua vez, seria impulsionada de recursos disponibilizado nos últimos anos para o fi-
maneira ao mesmo tempo inesperada e vigorosa pela nanciamento de PEDs por parte de órgãos públicos
emergência de outro conjunto de atores: gestores como MJ, CNJ e Ipea.16 Os dados assim coletados são
públicos vinculados ao Executivo e/ou ao Judiciário duplamente surpreendentes. De um lado, porque en-
envolvidos com o planejamento e a execução de po- volvem recursos que se somam às oportunidades do
líticas públicas, os quais, por diferentes razões, pas- sistema de ciência e tecnologia em ao menos dois ní-
saram a demandar análises não sobre o law in books, veis federativos, ou seja, CAPES e CNPq, no âmbito da
mas sim sobre o law in action.15 Em alguns casos, tais União, e Fundações de Amparo à Pesquisa, no âmbito
gestores tinham em vista alternativas de política pú- dos Estados. De outro lado, porque se referem a recur-
blica, cujos impactos, todavia, não sabiam estimar sos destinados quase que exclusivamente a pesquisas
com precisão. Em outros, ainda não tinham em vista empíricas, ao contrário do que pode ocorrer nos finan-
estas alternativas; esperavam que o conhecimento ciamentos concedidos no âmbito do sistema de ciên-
da realidade social e jurídica pudesse oferecê-las. cia e tecnologia, os quais permitem o financiamento
de pesquisas “puras”, em áreas como teoria e filosofia
O quadro acima ajuda a dimensionar a significância
deste novo vetor, ao consolidar parte do volume de
16 O MJ ainda dispõe de outras fontes, como Pensando a Seguran-
ça Pública, Pensando a Justiça e parcerias com organismos inter-
nacionais, como PNUD, OEI e UNODC. O projeto Pensando o Direi-
15 A esta altura, como decorrência da aprovação da EC n. 45, o to, da Secretaria de Assuntos Legislativos, foi incluído neste texto
Judiciário passava a contar com o Conselho Nacional de Justiça, por ser o mais conhecido entre essas fontes, eis que foi o primeiro
órgão encarregado de realizar o planejamento estratégico deste estabelecido, em 2007. A ideia original deste texto era reconstituir
poder, o qual foi dotado de um Departamento de Pesquisa Judici- todos esses investimentos e sua série histórica, mas esse intento
ária (Lei nº 11.364, de 26 de outubro de 2006). A gestão judiciária, esbarrou na dificuldade de obter dados precisos nos órgãos. Deci-
assim, ao menos no âmbito da cúpula, iniciaria um processo longo diu-se, então, trazer os dados disponíveis e confiáveis, de maneira
e ainda inacabado de profissionalização e sofisticação. agregada, apenas para fins de ilustração do argumento.
4 Uma aposta em PED: a construção social Ao longo da pesquisa, os métodos foram ampliados
da legalidade na administração pública para incluir análises de documentos, dados e até a ela-
Como, então, é possível aproveitar as oportunidades boração de survey – por ora apenas uma possibilidade
e navegar entre os constrangimentos hoje colocados –, a qual visaria, depois, permitir a realização de aná-
para a PED? lises estatísticas, que incorporem preocupações com
representatividade e a busca de fatores explicativos.
Nesta seção, relato brevemente projeto de pesquisa
atual, no qual me vi em condições de empreender Em se tratando de pesquisa aplicada e produzida no
tais reflexões. âmbito de agência governamental, todo esse esfor-
ço se canaliza inicialmente para responder questões
O projeto, desenvolvido no âmbito de instituição de práticas como as seguintes:
governamental pesquisa, tem como título “a constru-
ção social da legalidade na administração pública”. 1. De que forma se dá a aplicação do direito positivo
Seu objetivo é entender de que forma o sentido do estatal no cotidiano da gestão pública?
que é legal (ou seja, “lícito”) é definido no cotidiano 2. Como os atores envolvidos, especialmente ges-
de gestores e nas relações que estes estabelecem tores e advogados, conflitam ou cooperam nesse
com outros agentes públicos e privados, como advo- processo?
gados públicos, empresas, etc. O método inicial era 3. Quais são os potenciais gargalos aí existentes?
baseado em entrevistas e a equipe tinha composição 4. Por que é tão difundido o discurso de que o direi-
multidisciplinar, com formações em direito, socio- to (as regras, a excessiva “burocracia”) atrapalha
logia, ciência política e administração pública. No a gestão?
período de dois anos, mais de 70 entrevistas foram 5. É possível fazer algo para melhorar o aparato es-
realizadas, todas com duração entre 1h-1h30min, tatal nesse aspecto? Se sim, o que?
com gestores de médio e alto escalão e advogados
públicos. O protocolo das entrevistas envolvia ques- Por outro lado, é evidente que uma pesquisa como
tões sobre atribuições, desafios cotidianos, estraté- essa produz material apropriável para diversos fins.
gias para lidar com tais desafios e, finalmente, sobre
os problemas jurídicos que brotavam das respostas Para a dogmática, por exemplo, uma análise sistemá-
às demais perguntas, ou eram inseridos por meio de tica da prática do direito administrativo (law in action)
probes diante de temas como contratos, licitações, pode ensejar novas formulações em conceitos como
convênios, formulação de normas infralegais, discus- a discricionariedade, que, em nossas observações,
são de alterações legislativas, etc. hoje não ajuda a iluminar processos de tomada de
decisão em um ambiente institucional cada vez mais
Tratava-se, com isto, de situar socialmente o proces- marcado por controles. Para a teoria social, a pesqui-
so de atribuição de sentido para normas abstratas, sa tem potencial para diálogo fecundo com vertentes
tais como os princípios da administração pública e abordagens teóricas variadas em direito, profissões
contidos no art. 37 da CF.33 A premissa teórica, assim, jurídicas, sociologia das organizações e políticas pú-
blicas. Nos próximos anos, os pesquisadores envol-
vidos esperam retornar a essas comunidades epistê-
33 “A administração pública direta e indireta de qualquer dos Po-
deres da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios
obedecerá aos princípios de legalidade, impessoalidade, morali- dade, publicidade e eficiência e, também, ao seguinte...”.
Palavras-chave: Resumo
racismo/ justiça/ acesso à justiça/ pesquisa empírica Neste trabalho, apresentaremos uma análise dos
em decisões judiciais/ sociologia das relações raciais acórdãos do Tribunal de Justiça de Minas Gerais so-
bre os processos que tenham, como ponto central,
práticas identificadas como racismo, discriminação
ou preconceito de raça ou de cor. Com isso, busca-
Sumário mos responder às seguintes questões: que tipos de
1 Introdução conflitos envolvendo raça ou cor são julgados, em se-
2 Democracia ou desigualdade: um gunda instância, pelo Tribunal; que atos, palavras e
balanço da sociologia das relações expressões estão presentes nesses casos; e quais são
raciais os argumentos utilizados e as estratégias discursivas
3 As lentes da Justiça: a (re)construção da empregadas pelos réus, pelos autores e pelos juízes
realidade social a partir dos documentos na administração do conflito. Nossos resultados in-
judiciais dicam que o sistema jurídico mineiro tende a des-
4 Os resultados da análise quantitativa: contextualizar expressões historicamente racistas,
atores, ações e descrições do conflito negando que a origem do conflito seja o preconceito
racial na Justiça mineira racial, o que mantém a desigualdade característica
5 A voz do Estado: o racismo e a injúria de nossa sociedade.
racial a partir de decisões judiciais
6 Considerações Finais
7 Referências
Keywords: Abstract
racism/ justice/ access to justice/ empirical research In this paper we present an analysis of the judgments
with judicial decisions/ sociology of race relations released by the Court of Appeal of the state of Minas
Gerais, regarding claims that have as their central
point practices identified as racism, discrimination or
prejudice on the basis of race or skin color. By doing
so, we aim to answer the following questions: which
type of conflict related to race or skin color is judged,
and in the second instance, with regards to the Court
of Appeal; which acts, words or expressions are pres-
ent in these cases; which type of arguments are used
and which discursive strategies are applied by defen-
dants, victims and judges to manage the conflict. Our
results indicate that the legal system tends to decon-
textualize expressions historically considered as rac-
ist, denying that the root of the observed conflicts is
racial prejudice.
Apesar das diversas pesquisas sobre a influência da No qual pese a relevância desses três estudos sobre o
raça, especialmente mensuradas por seus fatores tratamento judicial aos conflitos raciais, entendemos
externos, na inserção do indivíduo na sociedade, são que há muito a se conhecer acerca do combate ao
poucos os estudos que exploram a Justiça brasileira racismo. Especialmente no sentido de compreender
como campo que legitima ou desconstrói práticas qual conceito a Justiça (re)constrói sobre o tema, e,
essencialmente racistas. Desses, alguns são estudos quais práticas (re)produzem a partir de seus discur-
sociológicos e surgiram especialmente a partir da dé- sos, inserindo ainda nesse tema, a problemática en-
cada de 1990, logo após a promulgação da Constitui- tre desigualdade e acesso a direitos, bem como a via
ção de 1988, que conferiu ao Judiciário maior poder penal como solução viável a demandas antirracismo.
institucional e papel político relevante. Tais análises O presente trabalho pretende contribuir com algu-
concentram-se basicamente em duas áreas: a do mas reflexões neste sentido.
acesso a direitos e a da prestação de serviços por
parte das instituições do sistema de justiça (Sadek,
2002). Três estudos, vistos a seguir, são exemplares
neste sentido.
Uma forma de compreender esse processo é mobili- Concentrar o olhar na Justiça, ou em um dos mo-
zando a descrição que Geertz (1975, p. 259) faz sobre mentos de fazer justiça, “o ato de decidir destinos, é
as atividades de Justiça. Na perspectiva do autor, os olhar para uma prática de poder de uma instituição
Nos documentos judiciais, alguns argumentos ou fa- Os Tribunais de Justiça, através dos acórdãos, pro-
las, testemunhos, destacam-se mais que outros. Tra- duzem jurisprudência que orienta a aplicação da lei
balhamos com fragmentos, “pedaços que interessam dentro do estado, consolidando paradigmas jurídi-
a uma narrativa” (Vianna, 2014, p. 47), narrativa essa cos. Isso significa dizer que, nos documentos estu-
que constrói um processo que culminará em uma de- dados, temos acesso tanto a discursos por parte dos
cisão. Há, contudo, lógica, sentido e coerência que juízes sobre o que seria racismo e suas manifestações
devem ser buscados na leitura desses fragmentos. (ao discorrer sobre o fato denunciado), como temos
No processo, falas são construídas em contextos es- aqueles que se abstêm de tratar a questão, embora
pecíficos (dentro de instituições, em meio a especia- tenham em mãos uma causa desencadeada por um
listas e ditas autoridades) e em um tempo específico conflito racial.
(os momentos pré-estabelecidos pelos prazos pro-
cessuais no curso do processo). No entanto, nos acórdãos pesquisados também co-
nhecemos pouco o perfil das partes envolvidas no
É relativamente longo o caminho a ser percorrido até conflito. Há pouca ou nenhuma descrição das condi-
termos uma decisão em nível de 2ª instância (acór- ções socioeconômicas das partes (idade, profissão,
dão). É necessário que se estabeleça um conflito ou escolaridade) e as informações descritivas que encon-
uma demanda judicial que será encaminhada à Jus- tramos sobre acusado e vítima estão normalmente
tiça (por uma das partes ou pelo Ministério Público). no relato do fato. Então, por que estudar as decisões?
A composição desse conflito ou demanda se dará,
inicialmente, por um juiz de 1ª instância, em uma Porque é ali, principalmente na decisão onde se
determinada comarca (menor unidade territorial ju- encontra a voz do julgador, da Justiça, mais clara e
diciária, podendo conter um ou mais municípios e abundantemente do que em qualquer outra fase do
distritos, circunscrita a um estado da federação, no
caso da Justiça comum), ou seção judiciária (no caso 12 Ou em julgamento de ações ou questões que lhes é de compe-
da Justiça Federal). A primeira decisão judicial sobre tência originária.
Gráfico 1 – Distribuição dos acórdãos pesquisados, de acordo com a palavra chave e ano de publicação
Na maioria das situações, o segundo grau de jurisdição cas menções à Lei Caó foram encontradas nos casos em
foi acionado por quem era acusado de praticar o ato. Em que a vítima pedira um reexame da decisão de primeira
apenas três casos tanto vítima como acusado se senti- instância, nos quais pode-se indicar uma tentativa de se
ram prejudicados pela decisão de primeira instância e valer do marcador legal para acionar, juridicamente, o
questionaram a sua adequação. Notam-se que as pou- qualificativo de uma dada ação social (Gráfico 3).
Gráfico 3 - Distribuição dos acórdãos pesquisados, de acordo com a palavra chave e quem acionou a segunda
instância
A grande maioria dos acórdãos apresenta apenas vítima e, em sete casos, o inverso. Em um acórdão
uma vítima e/ou um autor (40 casos). Em oito situa- não foi possível precisar quem era o acusado – se um
ções havia mais de um acusado em desfavor de uma indivíduo ou um coletivo.
Gráfico 4 – Distribuição de acusados e vítimas identificados nos acórdãos analisados, segundo o perfil
Conforme destacado anteriormente, nem sempre o em razão do exercício de suas funções17, a opção des-
acórdão apresenta informações que permitam a qua- ses profissionais em denunciar a injúria racial pode
lificação dos envolvidos. Uma das poucas dimensões ser decorrente da percepção segundo a qual essa in-
que puderam serem identificadas e catalogadas fo- fração tem maior probabilidade de lograr a condena-
ram as ocupações. Nesses itens, chamam a atenção ção do ofensor do que outros delitos.
o quantitativo de prestadores de serviço que se en-
contravam na posição de agressores. Na outra ponta
(vítima), há um número substantivo de policiais (civis
ou militares) e servidores públicos (Tabela 1). Talvez,
uma explicação para esse fenômeno seja a ativida-
de direta com o público, o que torna tais profissio-
nais mais susceptíveis a insultos morais que, muitas
vezes, tomam a cor da pele como ponto de partida.
Como o próprio Código Penal estabelece que a pena
17 Art. 141 - As penas cominadas neste Capítulo aumentam-se de
pelo crime de injúria racial é elevada em um terço se um terço, se qualquer dos crimes é cometido: II - contra funcioná-
o delito for cometido contra o funcionário público, rio público, em razão de suas funções.
Essa interpretação torna-se mais plausível quando relação a outro (Gráfico 5). Contudo, o demandante
constatamos que amplo número de ofensas ocorreu nesses casos, aquele que se sentiu vítima de uma prá-
em contextos de relação de poder, nos quais um in- tica racista, em sua maioria, é policial civil ou militar
divíduo detinha autoridade ou discricionariedade em e/ou segurança particular.
Gráfico 5 - Distribuição dos acórdãos pesquisados, de acordo com a palavra chave e contexto em que ocorreu a
agressão
Uma hipótese a ser investigada em outras pesquisas ciais (civis ou militares) estão em concurso com outros
é se essas acusações de injúria racial contra os poli- crimes, o que torna descomplicado o acesso à justiça
Gráfico 6 - Distribuição dos acórdãos pesquisados, de acordo com a palavra chave e lugar da agressão
Na tentativa de compreender a dinâmica dos casos tantemente perseguida pelos DENUNCIADOS, seja
analisados, os acórdãos foram classificados quan- através de tratamento mais rígido, seja através
to aos atos ou práticas que as vítimas identificaram de humilhações perpetradas por meio de piadas
como discriminações que tinham como base a cor e aforismos jocosos e preconceituosos, tais como:
da sua pele. Em regra, a ofensa se dá a partir das “preto que nasceu bom, nasceu morto”, “Deus criou
agressões verbais que remetem à origem da vítima, o branco e o diabo criou o negro”, “vamos limpar o
estimada a partir de suas características exteriores Brasil...mate um negro por dia”. (Tribunal de Justi-
(como cor da pele) com o objetivo de ofender, humi- ça do Estado de Minas Gerais. Apelação Criminal n.
lhar ou intimidar o indivíduo. Dois trechos extraídos 1.0000.00.152296-0/000, julgada em 30/11/1999 e
dos acórdãos pesquisados ajudam a vislumbrar essa publicada no DOJ em 03/02/2000)
dimensão.
Segundo a denúncia o acusado injuriou o ofendido
Durante o seu período laborativo, a vítima era cons- o chamando de “macaco, nego desgraçado e filho
Tabela 2 - Distribuição dos acórdãos analisados, segundo as justificativas de vítimas e acusados para a existên-
cia do processo civil ou criminal
Agressão verbal 10 3 13 13 5 1 6 2 43
Agressão verbal e Agressão 0 0 0 2 0 0 0 1 3
física
Agressão verbal, impedi- 0 0 0 1 0 0 0 0 1
mento para frequentar
locais privados de frequen-
tação pública
Impedimento para adquirir 0 0 0 2 0 0 0 0 2
bens ou serviços
Impedimento para adquirir 0 0 0 1 0 0 0 0 1
bens ou serviços, Impe-
dimento para frequentar
locais privados de frequen-
tação pública
Impedimento para contratar 0 0 0 1 0 0 0 0 1
funcionário em razão da
raça/cor
Impedimento para frequen- 0 0 0 2 0 0 0 0 2
tar locais privados de fre-
quentação pública
Piadas/ Chacota (envolven- 0 0 0 0 0 0 0 0 1
do referências à raça/cor ou
origem)
A discussão sobre a presença (ou a ausência) da dis- existência de uma prova que não seja tão-somente o
criminação fundada na cor em âmbito judicial parece depoimento de quem viu (ou diz ter visto) a injusta
ser estruturada a partir das narrativas que procuram agressão, o que explica a presença dos depoimen-
qualificar atos e palavras como um crime de injúria tos (isoladamente) em 42 dos 57 casos como o único
racial, uma situação de desigualdade que tem como meio de prova (Gráfico 7). Apenas em casos de injúria
base o racismo; ou, ainda, uma ação descrita na Lei racial esse tipo de prova é comprovado por documen-
Caó. Em um cenário como esse, é difícil constatar a tos, que reforçam as narrativas contadas em juízo.
Gráfico 7 - Distribuição dos acórdãos pesquisados, de acordo com o meio de prova presente
É importante lembrar que, em segundo grau, geral- independentemente do tipo de termo que levou da
mente, não existe coleta de novas provas, mas um identificação ao procedimento e, por conseguinte, à
reexame daquelas que foram reunidas ainda no pro- decisão – se racismo, injúria ou Lei Caó (Gráfico 8).
cesso de primeira instância. Talvez isso ajude a com-
preender por que a tendência do desfecho de segun-
do grau é manter a sentença de primeira instância,
Quando a sentença não é reformada em favor da víti- nada.” “É nega safada sim.” “Sai pra lá sua preta, do ca-
ma, o argumento mais mobilizado é a falta de provas, belo ruim, enrolado”, apresenta-se uma reflexão acer-
o que impede uma decisão distinta daquela proferi- ca do dano sofrido pelo indivíduo, circunscrevendo-se
da em primeira instância. Por outro lado, quando a a dimensão racial da relação que ensejou o ajuizamen-
decisão mantida favorece a vítima, há um reconheci- to da ação à transcrição dos depoimentos da vítima e
mento da ocorrência do fato. Contudo, o relator não testemunhas. Nas palavras dos juízes, a questão racial
se posiciona diretamente em relação ao caso, ou não é trazida para os limites da ofensa individual.
dá relevância aos elementos referentes à raça/cor ou
origem, ou, ainda, não interpreta a agressão como ra- Cabem muitas situações possíveis na reforma (par-
cismo (no sentido de causar dano ou ofensa a uma cial ou total) de uma sentença. Nas revisões parciais
coletividade em razão da raça/cor ou origem): podemos perceber casos de majoração ou diminuição
da pena, alteração do valor de uma indenização, ques-
Honra, moral, auto-estima, cidadania, apreço, tões processuais equivocadas que passaram desperce-
fama, dor são atributos pessoais de cada cidadão, bidas ao juiz de primeiro grau, as quais são corrigidas
que, absolutamente não têm preço. É fato que o pelo Tribunal (em favor do acusado ou da vítima, mas
sentido legal e específico de reparação do dano sem que resulte em reforma do que foi decidido no 1º
moral, tem como caractere, em sentido propedêu- grau em relação à condenação ou à absolvição do acu-
tico, a restauração da auto-estima do ofendido, sado). Assim, devemos olhar com certa cautela o que
diante de si mesmo a um primeiro instante e poste- significa revisar decisões em favor de uma das partes.
riormente em um segundo momento, aos olhos da
sociedade (Tribunal de Justiça do Estado de Minas Contrastando a natureza do desfecho final com o
Gerais. Apelação Cível n. 1.0390.06.014598-9/001, termo que indexou a busca pelo acórdão inserido no
julgada em 23/09/2008 e publicada no DOJ em banco de dados, constata-se que os casos envolven-
03/10/2008) do injúrias raciais são mais suscetíveis à manutenção
da decisão em benefício da vítima. Embora o racismo
Logo assim emuma ação cível na qual a vítima pleitea- não apresente um padrão claro, possui um quantita-
va uma indenização por ter sido agredida verbalmen- tivo de casos bastante semelhante, em todos os tipos
te com ofensas do tipo: “Você é negra e não pode ter de pronunciamento judicial (Gráfico 9).
No caso da reforma total da sentença, temos três como opiniões ou expressões negativas sobre um
casos nos quais o acusado, absolvido no 1º grau foi grupo em razão da raça/cor/origem, é bastante pre-
condenado pelo Tribunal, três casos em que o conde- sente e latente nas relações raciais. Como destaca
nado em 1º grau foi absolvido pelo tribunal, duas de- Guimarães (2000), o insulto racial institucionaliza um
cisões sobre questões processuais que acabaram por “inferior racial”, uma vez que demarca historicamen-
gerar a absolvição do acusado e uma decisão sobre te um lugar social de inferioridade, e reforça continu-
questões processuais que foram favoráveis ao pleito amente a existência desse lugar. Para o autor, esse
da vítima. pode ser o gatilho de um conflito, ou pode emergir
durante um conflito, como um trunfo a ser sacado.
Do ponto de vista da discussão substantiva sobre o
que é racismo ou injúria racial, constatamos que, em O entendimento que Guimarães (2000) tem dos insul-
18 dos 57 acórdãos, a questão racial não é aventada tos raciais encontra ressonância nos acórdãos judiciais
pelos juízes, a não ser pela menção ou citação da le- pesquisados. Dos tipos de práticas ou atos que são re-
gislação. Em 17 acórdãos, o tema é tratado tangen- conhecidos como racismo, pelo menos por uma das
cialmente, visto como um desvio de conduta entre partes do conflito (a qual acionou a Justiça), 42 são
indivíduos que não abala a harmonia social. Apa- agressões verbais. Pelos dados apresentados, pode-
rentemente, há uma tendência a considerar-se as mos inferir a hipótese de que, ao longo de pouco mais
ofensas ao indivíduo, ainda que com nuances raciais, de uma década, e 25 anos depois do surgimento da Lei
como algo que faz parte da vida na sociedade brasi- Caó, a Justiça vem se tornando um campo legítimo
leira e, por isso, passível de ser sofrido por qualquer para a administração dos conflitos raciais, ainda que
indivíduo que possua os fenótipos de um mestiço ou de uma maneira muito tímida. Porém, existe certa di-
de um negro. ficuldade de reconhecimento das práticas racistas tais
quais descritas pelo art. 20 da Lei nº 7.716/89. Isso vem
sendo suplantado pela alteração do Código Penal, no
5 A voz do Estado: o racismo e a injúria qual se introduziu a figura da “injúria racial”, um tipo
racial a partir de decisões judiciais penal considerado “mais brando” em seu significado,
No Brasil, a questão do insulto racial, considerada do que o crime de racismo propriamente dito.
Nota-se ainda que a justiça penal não é a única esfera Ao negar a força e o potencial de criação e manuten-
de administração procurada pelos envolvidos em um ção de mecanismos excludentes do insulto moral
conflito racial. O interessante é que a partir da crimi- (nesse caso, do insulto racial), podemos supor que
nalização da injuria racial, a justiça cível passou a ser ainda há na Justiça a percepção de que a sociedade
um campo potencial para a resolução do conflito, ou é harmônica e que presencia pontualmente conflitos
melhor, para a reparação monetária da ofensa racial, raciais, os quais dizem mais sobre a psique e as rela-
além da esfera penal. Esse fato também deve-se à en- ções pessoais dos sujeitos, do que sobre a estrutura
trada do Ministério Público como parte denunciante da sociedade como um todo. Não nos parecem exage-
legítima desse crime, o que não ocorria quando a ro dizer que o mito fundador das três raças e o da de-
única conduta criminalizada era o racismo. mocracia racial não estão distantes dos fundamentos
das decisões do Tribunal de Justiça mineiro. Essas são
Outra constatação que merece destaque é o fato de hipótese merecedoras de atenção e que, em tempo
que, na esfera penal, onde a frequência do confli- oportuno, serão avaliadas em um trabalho posterior,
to racial ainda é mais premente, a ofensa é tratada onde os discursos e narrativas presentes nos acór-
como um ataque à moral individual e não coletiva dãos serão tratados por uma abordagem qualitativa.
e, por isso, a ação social é interpretada como injúria
racial e não racismo. Esta informação deve ser subli-
nhada porque o tipo penal de injúria racial é mais
suscetível a arquivamentos sem punições severas,
tendo em vista que encontramos mais condenações
nos casos do crime de racismo previsto pela Lei Caó.
Palavras-chave: Resumo
tortura / jurisprudência / Lei nº 9.455/97 / justiça cri- O presente artigo apresenta o resultado da pesquisa:
minal / Tribunal de Justiça Julgando a tortura: Análise de Jurisprudência nos Tri-
bunais de Justiça do Brasil (2005-2010),6 que buscou
colher dados dos acórdãos proferidos pelos Tribunais
de Justiça de todos os Estados do Brasil em processos
Sumário: judiciais relativos ao crime de tortura. A partir desse
1 Universo da pesquisa: recorte e material empírico, foi possível obter informações pre-
justificação sentes nos acórdãos, tais como: o perfil do acusado
1.1 Caminhos e desafios da pesquisa e da vítima, local da tortura, propósito da tortura,
2 Filtros no sistema de justiça argumentos das decisões e relação entre a decisão
3 Retratos dos casos de tortura que de primeiro e segundo graus. Conhecer os casos que
chegam aos Tribunais chegam aos Tribunais de Justiça e analisar como eles
3.1 As vítimas são julgados foram uns dos principais objetivos desse
3.2 Os acusados levantamento. Cabe destacar que, diante da notória
4 Perfil do crime de tortura deficiência e ausência de dados sobre tortura no Bra-
4.1 Propósito da tortura sil, essa pesquisa se torna ainda mais relevante.
5 Perfil dos processos
5.1 Perfil do recorrente e Pedido feito na
ação
5.2 Decisões de 1ª Instância 1 Doutoranda e Mestra em sociologia pela Universidade de São
5.3 Decisões de 2ª Instância Paulo. Pesquisadora do Núcleo de Estudos da Violência da USP.
Membro do Comitê Nacional de Prevenção e Combate à tortura.
5.4 Conversão das decisões (1º e 2º grau)
Email: goretim@usp.br
5.5 Fundamentação das decisões de 2ª 2 Mestranda em Ciências Humanas e Sociais pela Universidade
Instância Federal do ABC. Bacharela em direito pela Faculdade de Direito
6 Considerações finais de São Bernardo do Campo. Advogada. Email: mayara.dsgomes@
gmail.com
7 Referências
3 Mestra em Direito Constitucional pela Pontifícia Universidade
Católica de São Paulo. Bacharela em direito pela Universidade Es-
tadual de Londrina. Advogada. Email: nacrimagnani@gmail.com
4 Mestra em Direito Penal pela Faculdade de Direito da Universi-
dade de Coimbra. Bacharela em direito pela Pontifícia Católica de
São Paulo. Advogada. Email: paula.rodrigues.ramos@gmail.com.
5 Mestra em Direito Penal e Criminologia pela Universidade de São
Paulo. Bacharela em direito pela USP. Advogada do Programa de
Justiça da Conectas Direitos Humanos. Email: vivian.calderoni@
conectas.org. @VivianCalderoni
6 A pesquisa foi iniciada em maio de 2011, encerrou-se em janeiro
de 2015 e teve como objetivos: construir um banco de dados de
jurisprudência de tortura a partir de acórdãos coletados nos Tribu-
nais de Justiça (TJs) dos estados brasileiros, analisar as decisões
e compará-las. O relatório completo foi publicado em janeiro de
2015 e encontra-se disponível em: https://issuu.com/julgandoator-
tura
Keywords: Abstract
torture / case law / Law 9.455/97 / Criminal Justice / This paper presents the results from the research en-
Courts of Appeal titled Case law on the Crime of Torture from Courts of
Appeal in Brazil (2005-2010), which collected data on
the judgments of Brazilian appellate courts regarding
lawsuits on the crime of torture. From this empirical
material, it was possible to obtain information such
as: the profile of the accused and the victim, the place
of the torture, the purpose of the torture, the argu-
ments that lead to the decision and the relationship
between the decision from the first and second ins-
tances. One of the main goals of this study was to un-
derstand that the cases that reach the higher courts
and how they are judged. It is worth noting that, given
the serious deficiencies and lack of data on torture in
Brazil, this research becomes even more relevant.
As decisões do Poder Judiciário, nas quais se incluem 9 Isso porque jurisprudência é o conjunto de decisões de um Tri-
os acórdãos, são registros oficiais, legais e públicos, bunal – seja do Tribunal de Justiça, seja do Superior Tribunal de
qualidades que lhes conferem especificidade e que Justiça, seja do Supremo Tribunal Federal – que, reiteradas sobre
determinado assunto, servem de subsídio para a definição de de-
os tornam referenciais de pesquisa interessantes
mandas similares. Em outras palavras, essa uniformização passa
para análise. Primeiramente, porque esses docu- a exercer impacto como argumento de motivação decisória no
mentos contêm aquilo que os julgadores decidiram futuro enfrentamento de conflitos por parte do Poder Judiciário.
O acesso aos acórdãos foi realizado através dos sites Uma das constatações durante a leitura das deci-
dos Tribunais de Justiça dos Estados. A equipe de sões foi o excesso de lacunas e pouco detalhamento
pesquisadores acessou os bancos de dados de juris- . Diante desse panorama, em muitas ocasiões foi di-
prudência disponibilizados pelos próprios Tribunais fícil inferir o contexto fático da tortura (perfis da víti-
de Justiça e selecionou acórdãos referentes ao crime ma, local e data, dentre outros), bem como conhecer
de tortura que tivessem sido assinados dentro do os antecedentes processuais do caso (informações
período estabelecido. No que tange aos bancos de como a data do oferecimento da denúncia e o resul-
dados, os pesquisadores encontraram dificuldades, tado do julgamento em primeira instância, etc.). A
pois não existe uma padronização/uniformização deficiente redação dos acórdãos explica o elevado
quanto ao armazenamento de informações, além da número de respostas não encontradas, registradas
falta de informações sobre os critérios de armazena- como “não consta”.
mento e disponibilização dos acórdãos.
Os BDs subsidiaram duas análises. A primeira, a par- Assim, sabe-se que muitos casos de tortura conti-
tir dos acórdãos, contribuiu para uma análise sobre nuam ocorrendo em unidades prisionais e durante
o contexto da tortura. Já a outra análise elaborada abordagens policiais. Organizações nacionais e in-
3.2 Os acusados
Gráfico 04. Perfil dos acusados/agentes públicos %.
Fonte: Tribunais de Justiça do Brasil (2005-2010). Total de acórdãos válidos: 455. Total de réus 752.
Esses dados acompanham o que a literatura sobre o de ruas, avenidas, praças e demais locais públicos,
tema já havia identificado: que os agentes públicos, de trânsito livre para todos os cidadãos; (iv) outros:
na maioria das vezes em que são acusados de práti- categoria que inclui os demais locais, a exemplo de
ca de tortura, teriam a intenção de obter a confissão supermercados, lixões, matagais, etc. .
ou algum tipo de informação da vítima (Maia, 2006).
A tortura tem sido descrita por alguns estudos como Gráfico 6. Local de ocorrência %.
método de investigação policial que, apesar de ilegal,
encontra-se incorporado à cultura dessa corporação.
A violência policial é descrita como estrutural, princi-
palmente porque a organização policial admite certas
atitudes ilegais, como a extração de confissões me-
diante ameaça e tortura (Izumino et al, 2001, p. 140).
As categorias criadas foram: (i) o réu; (ii) o Ministério Fonte: Tribunais de Justiça do Brasil (2005-2010). Total
Público; (iii) ambos. Posteriormente, essas informa- de acórdãos válidos: 455.
ções foram cruzadas com outros dados produzidos
pela pesquisa para que se alcançasse o seguinte re- No que diz respeito aos pedidos feitos por meio dos
finamento: quem foi o responsável pelo recurso nos recursos, na maioria dos casos os pedidos foram de
casos em que a sentença do juiz monocrático envol- absolvição (32,5%) e absolvição cumulada com ou-
veu agentes públicos ou agentes privados? tros pedidos (32,5%). O pedido de condenação cor-
respondeu a 14,3% dos casos, seguido pelos pedidos
Os dados nacionais mostram o seguinte panorama: de desclassificação (7,6%), alteração na dosagem
os réus foram os maiores recorrentes, já que dos 455 da pena (7,4%) e pedido de anulação da sentença
acórdãos, 327 foram de iniciativa dos acusados. (2,2%). O restante se refere aos casos em que houve
Fonte: Tribunais de Justiça do Brasil (2005-2010). Total de acórdãos válidos: 455. Total de réus 752.
Os dados apontam para uma tendência em se conde- agentes públicos como autores do crime do que nos
nar mais agentes privados do que agentes públicos, casos de agentes privados.
a partir do argumento de que estariam presentes no
processo as provas de materialidade e autoria. Qual será a razão de tal diferença? A relação de sub-
missão da vítima perante um agente público dificul-
Isso pode revelar que as deficiências com relação à tar a obtenção de prova? A invisibilidade da violência
produção de provas e reconhecimento da autoria pa- praticada por agentes públicos e a falta de testemu-
recem ser mais frequentes nos casos envolvendo os nhas? Haveria certa relativização dos crimes de tor-
Palavras-chave: Resumo
tortura / punição / direitos humanos / racionalidade Este artigo trata da construção e utilização da distin-
penal moderna ção entre crimes contra a humanidade e crimes ordi-
nários para fazer referência a duas “categorias” ou
“tipos” de crimes, segundo os entrevistados da pes-
quisa: os crimes contra a humanidade seriam aque-
Sumário: les que violam diretamente ou de uma maneira espe-
1 Introdução cialmente agressiva os direitos humanos e os crimes
2 A criação da lei contra a tortura no ordinários ou comuns seriam todos os que não agri-
Brasil e a racionalidade penal moderna dem diretamente os direitos humanos. O conteúdo
3 Os direitos humanos e o direito criminal do texto foi extraído de tese de doutorado, realizada
4 A construção da categoria “crimes de no Canadá, na Universidade de Ottawa, cujo tema de
lesa-humanidade” pesquisa é a criação legislativa em matéria criminal,
4.1 A Carta do Tribunal Militar de especificamente a criação da lei contra a tortura no
Nuremberg Brasil (Lei nº 9.455/97). Do ponto de vista empírico, o
4.2 O Estatuto de Roma da Corte Penal artigo se concentra na análise das entrevistas reali-
Internacional zadas com políticos e militantes de direitos humanos
4.3 A lei contra a tortura no Brasil (Lei nº que participaram direta ou indiretamente da produ-
9.455/97) ção da lei.
5 O crime de tortura e a atribuição de
sanções
6 Conclusão
7 Referências
Keywords: Abstract
torture / punishment / human rights / modern penal This article aims at exploring the construction and the
rationality use of the distinction crimes against humanity / ordi-
nary crimes to refer to two “categories” or “types” of
crimes, according to the research interviewees: crimes
against humanity would be those that violate directly
or in an especially aggressive way the human rights
and the ordinary or common crimes would be all that
do not directly harm human rights. The content of the
text is taken from my doctoral thesis, completed at the
University of Ottawa in Canada, and the research topic
was the legislative creation process in criminal mat-
ters, more specifically the creation of the law against
torture in Brazil (Law number 9455/97). From an em-
pirical point of view, the article focuses on the analysis
on the interviews performed with politicians and hu-
man rights activists who participated directly or indi-
rectly in the production of this specific statute.
1. Para os efeitos do presente Estatuto, entende-se Observamos nos dois documentos internacionais
por “crime contra a humanidade”, qualquer um dos mencionados que o conceito de crime contra a huma-
atos seguintes, quando cometido no quadro de um nidade está relacionado a uma situação específica
ataque, generalizado ou sistemático, contra qual- de agressão contra um povo ou uma comunidade.
quer população civil, havendo conhecimento desse No caso da carta do Tribunal de Nuremberg, soma-
ataque: -se ainda a exigência de que os atos sejam praticados
em período de guerra. O aspecto comum das duas
a) Homicídio; categorias é fato de que elas são relativas às viola-
ções contra uma coletividade, seja ela civil, religiosa,
b) Extermínio; racial, etc. Essas violações podem ser homicídios,
redução à condição análoga à escravidão, extermí-
c) Escravidão; nio, etc. Somente no artigo do Estatuto de Roma le-
mos uma referência à tortura, aqui considerada um
d) Deportação ou transferência forçada de uma po- crime contra a humanidade, quando praticada em
pulação; uma situação na qual haja a intenção de agredir uma
coletividade. Na carta do Tribunal de Nuremberg, a
e) Prisão ou outra forma de privação da liberdade coletividade de que falamos faz referência direta aos
física grave, em violação das normas fundamen- judeus e a todas as populações que sofreram com o
tais de direito internacional; regime nazista. No caso do Estatuto de Roma, não
temos um grupo ou população específico como re-
f) Tortura; ferência primária à noção de “população civil”. No
entanto, sabemos que o objetivo desse documento
g) Agressão sexual, escravatura sexual, prostitui- internacional era o de facilitar - aumentando a eficá-
ção forçada, gravidez forçada, esterilização força- cia – o julgamento dos responsáveis por crimes como
da ou qualquer outra forma de violência no campo o genocídio ou outros da mesma gravidade3. O julga-
sexual de gravidade comparável; mento desses tipos de crimes exige, no entanto, uma
cooperação internacional que compreende, entre
h) Perseguição de um grupo ou coletividade que outros fatores, a criação de uma corte internacional.
possa ser identificado, por motivos políticos, ra-
ciais, nacionais, étnicos, culturais, religiosos ou de 3 Sobre esse assunto, ver a página oficial do Estatuto de Roma :
gênero, tal como definido no parágrafo 3o, ou em http://untreaty.un.org/cod/icc/index.html.
Palavras-chave: Resumo
tortura / seletividade / Lei de Tortura/ direito penal / O presente artigo versa sobre os olhares do Poder
sistema penal Judiciário em relação à prática do crime de tortura,
por agentes públicos e privados, de acordo com jul-
gamentos do Tribunal de Justiça do Rio Grande do
Sul. O estudo acontece por meio da análise de 92
Sumário: decisões tomadas pelo Tribunal nos anos de 2009
1 Introdução até 2013. Buscamos observar os fundamentos (jurí-
2 História e legislação dicos) das decisões de recursos de apelação criminal,
3 Percepções sobre as decisões em que se discute o mérito do crime de tortura, para
4 Conclusão verificar se existe diferença na aplicação da Lei de
5 Referências Tortura em razão de o agente denunciado ser públi-
co ou privado, e quais fatores influenciam para essa
aplicação diferenciada da lei. Apresentamos a trans-
formação e o conceito do crime de tortura, tanto no
Direito internacional, quanto na legislação brasileira
e, após, os julgados, mais relevantes, são descritos e
analisados. Assim, percebemos que existe diferença
na aplicação da lei pelo Poder Judiciário, com maior
punição para os agentes privados do que para os pú-
blicos, bem como que essa diferença acontece em
razão da ampliação do conceito de tortura realizado
pelo legislador brasileiro, que vulgarizou o termo e
tipificou a conduta como crime comum. Para com-
preensão total do fenômeno, devemos considerar
ainda as características do sistema penal brasileiro,
que é estamental e seletivo. Assim perpetuando um
modelo penal clássico, permite que agentes públicos
cometam ilegalidades.
Keywords: Abstract
torture / selectivity / Torture Act / Criminal Law / Cri- This article deals with the views of the Judiciary in
minal Justice System relation to the practice of the crime of torture by pub-
lic and private actors, in accordance with judgments
of the Court of Appeal from the state of Rio Grande
do Sul. The study through an analysis of 92 decisions
from the court, from 2009 until 2013. We seek to ob-
serve the legal reasoning from these criminal appeals
that discuss the merits of the crime of torture, in or-
der to check for differences in the application of Tor-
ture Act depending on the agent denounced being a
public or private actor and which are the factors that
could influence this different application of the law.
We present the transformation and the concept of the
crime of torture, in the international and in the Brazil-
ian law, and after that the most relevant judgments
are described and analyzed. Thus, we conclude that
there is a difference in the application of the law by
the Judiciary, with greater punishment for private
agents than for public ones, and that this difference
occurs due to the expansion of the concept of torture
carried out by the Brazilian legislator, who popular-
ized the term and the conduct typified as a common
crime. For full understanding of the phenomenon, we
must also consider the characteristics of the Brazilian
penal system, which is selective. Thus through the
perpetuation of a classic criminal model, it allows for
public officials to commit illegalities.
Qualquer ato pelo qual dores ou sofrimentos agudos, Mas apenas em abril de 1997, a tortura recebe tipifica-
físicos ou mentais, são infligidos intencionalmente a ção no ordenamento jurídico brasileiro (Lei nº 9.455),
uma pessoa a fim de obter, dela ou de uma terceira e a lei pátria não a trata como crime praticado apenas
pessoa, informações ou confissões; de castigá-la por por agentes do Estado; ela amplia o conceito, não exi-
ato que ela ou uma terceira pessoa tenha cometido ge a figura do funcionário público como sujeito ativo.
ou seja suspeita de ter cometido; de intimidar ou co- Essa abrangência da definição de tortura gera polê-
agir esta pessoa ou outras pessoas; ou por qualquer mica, pois para alguns (Shecaira, 1997, p. 2; Franco,
motivo baseado em discriminação de qualquer na- 2007, pp. 118-119; Monteiro, 2008, p. 91) ela deveria
tureza; quando tais dores ou sofrimentos são infligi- seguir o preceito internacional, para outros não (Pio-
dos por um funcionário público ou outra pessoa no vesan, 2008, pp. 203-204; Comparato, 2010, p. 82).
exercício de funções públicas, ou por sua instigação,
ou com o seu consentimento ou aquiescência. Mais grave do que a discussão serão, como se verifica
na sequência, os efeitos não esperados desta decisão,
Três elementos fundamentais envolvem a definição ou seja, o favorecimento para os agentes públicos em
de tortura da Convenção: 1) a inflição deliberada de detrimento dos particulares nas decisões dos tribunais.
dor ou sofrimentos físicos e mentais, 2) a finalidade
do ato e 3) a vinculação do agente ou responsável
com o Estado, direta ou indiretamente. Sendo assim, 3 Percepções sobre as decisões
o sujeito ativo é sempre um funcionário público, ou Para nós, neste artigo, a grande discussão refere-se
alguém por ele instigado ou sob suas ordens. à existência, ou não, de diferença, no julgamento en-
tre os casos de crimes de tortura envolvendo agentes
Segundo Peters (1985, p. 11), a tortura teve como públicos e privados. Para tanto, apresentamos tabe-
começo uma prática jurídica e nunca perdeu da sua la que mostra as decisões tomadas pelo Tribunal de
essência o caráter público, seja como um incidente Justiça do Estado do Rio Grande do Sul, entre os anos
no procedimento judicial, seja como uma prática de de 2009 e 2013. São julgados que servem para indicar
funcionários do Estado, à margem de lei. a tendência das decisões nas duas situações.
Ocorre, no entanto, que o agente público havia sido Portanto, a sentença foi reformada e os agentes pú-
denunciado como incurso nas sanções do artigo pri- blicos absolvidos por atipicidade da conduta, apesar
meiro, inciso I, alínea “a”, e parágrafo quarto, da Lei de a figura típica em questão não exigir que o sofri-
nº 9.455 de 1997, cumulado com o artigo 71 do Códi- mento físico ou mental da vítima seja intenso para a
go Penal, pela prática de tortura-prova, que não exige configuração do crime de tortura.
sofrimento, mas sim a finalidade específica de obter
confissão ou declaração a respeito de crime. A seletividade penal, por sua vez, opera tanto em
relação aos agentes do delito, quanto em relação às
E, no julgamento da segunda, essa questão se verifica vítimas. Zaffaroni, Batista, Alagia e Slokar (2013, p.
de novo. O caso envolve agentes públicos, dois poli- 46) ensinam que a seletividade concreta é realizada
ciais militares, acusados de praticar crime de tortura- pelas agências secundárias de criminalização (Poder
-prova. Em primeiro grau de jurisdição houve conde- Judiciário, Ministério Público e Administração Pri-
nação nas sanções do artigo primeiro, inciso I, alínea sional), especialmente as polícias, as quais exercem
“a”, cumulado com o parágrafo quarto, inciso I, da Lei um forte controle sobre as pessoas mais vulneráveis.
nº 9.455, na forma do artigo 29, caput, do Código Pe- Essas, normalmente oriundas das classes sociais bai-
nal, mas, em segundo grau de jurisdição, a sentença xas, que se enquadram no estereótipo criado para o
foi reformada, pois, de acordo com o entendimento criminoso e estão mais sujeitas a serem identificadas
dos desembargadores, não é qualquer ameaça ou so- como propriedade ou lixo da polícia (Reiner, 2004, p.
frimento físico ou mental capaz de configurar o delito 142). Maia (2006) afirma que a seletividade sempre
de tortura, somente o intenso: foi característica da tortura:
Apesar de que o tipo penal em tela não mencio- É igualmente relevante concluir-se que houve so-
na expressamente, para que se reconheça o cri- cial e politicamente a construção da assim chama-
me de tortura, inclusive na primeira modalidade da “classe dos torturáveis”. A tortura revelou-se ser
típica, não basta qualquer tipo de violência ou seletiva. Sempre pareceu saber escolher suas víti-
grave ameaça com resultado de sofrimento físico mas. Nem todos podiam ser torturados. Em Roma,
ou mental, mas é necessário uma determinada in- inicialmente, só escravos poderiam ser submetidos
tensidade de sofrimento, no caso, mental, pois se- à tortura, ou por suspeita de práticas de delitos,
não não haveria distinção sistemática com outras ou por suspeita de serem testemunhas de delitos.
figuras típicas que também protegem a pessoa e a A expansão desse restrito rol só atingiu homens li-
integridade física ou corporal. (Apelação Criminal vres, quando acusados de traição. (p. 96).
nº 70033730508).
Oliveira (1994, pp. 11-12) observa quem são as víti-
De acordo com o julgamento, “Seria inconcebível mas preferenciais das polícias: o pequeno marginal
uma definição redutora por parte do legislador que das favelas e periferias, pobres, trabalhadores des-
ignorasse essa definição plasmada em Convenções qualificados, de preferência pretos e pardos, os quais
Internacionais”. formam a classe dos torturáveis. Assim, presos e
A crítica dos fundamentos jurídicos das decisões mos- Observamos, em relação aos crimes praticados por
tra que nos julgamentos de casos envolvendo agen- agentes privados, perspectiva diversa daquela refe-
tes públicos, o número de condenações é menor, pois rente aos agentes públicos (nesse caso, a vítima da
exigem-se provas robustas para a punição. Nos julga- tortura é protegida pelo sistema). Os torturados por
dos em que houve condenação de agentes públicos, a agentes públicos não são bem vistos, nem pela socie-
prova era evidente e jamais se considerou somente a dade, nem pelo sistema, e poucas pessoas se impor-
palavra da vítima para condenar, apesar da compre- tam com seus direitos. A tortura contra eles é conside-
ensão de que a tortura é crime sem testemunhas. rada algo aceitável; com os “inocentes”, os torturados
por agentes privados, acontece o contrário.
Em contrapartida, nos julgamentos em que houve
absolvição dos agentes públicos (repetimos), o fun- Mas a pesquisa mostra mais do que isso. A vulgari-
damento jurídico preponderante foi o de insuficiên- zação do termo tortura, que deixa de possuir um
cia de provas para a condenação. Observamos, ain- sentido jurídico e passa a carregar um sentido mo-
da, a especial relevância oferecida para a palavra dos ral, pautado no senso comum, contribui para o seu
agentes públicos, cujas versões são recebidas com próprio esvaziamento. Assim, ela, violência praticada
grande credibilidade; para a das vítimas, no entanto, pelo Estado contra o indivíduo, termina por ser des-
se atribui pouca ou nenhuma credibilidade, sendo caracterizada, significando todo ato ou circunstancia
desmerecida, o que chegou a constar, expressamen- cruel, mesmo que praticada entre particulares.
Palavras-chave: Resumo
teorias da pena / justiça restaurativa / racionalidade O objetivo deste artigo é discutir a justiça restaura-
penal moderna tiva, considerada uma forma alternativa de admi-
nistração de conflitos, a partir de um quadro teórico
das teorias da pena baseado na concepção de Álvaro
Pires. Procura-se demonstrar como a justiça restau-
Sumário rativa escapa à racionalidade penal moderna, apre-
1 Introdução sentando-se como uma alternativa ao sistema de
2 Discussão conceitual: justiça ideias que embasa o nosso atual sistema de justiça
restaurativa e a racionalidade penal penal. O método de pesquisa utilizado é qualitativo e
moderna a pesquisa partiu do estudo de caso de programas de
3 O que os dados da pesquisa realizada justiça restaurativa que funcionam no estado de São
mostram Paulo, além de entrevistas com profissionais e ob-
4 Considerações finais servação participante de círculos restaurativos que
5 Referências aconteceram em uma escola na cidade de São Cae-
tano do Sul (SP). Os resultados da pesquisa demons-
tram que a justiça restaurativa, a despeito de seu
potencial transformador, ainda tem se defrontado
com dificuldades para ser efetivamente implantada.
As resistências com as quais tem que lidar reportam-
-se desde aos operadores do direito até a população
que é atendida pelos programas, que não entendem
o modelo enquanto expertise (caso dos profissionais
do Direito), ou como um benefício para os envolvidos
(caso dos adolescentes e familiares participantes),
ainda inscritos dentro um marco punitivo em relação
à gestão de conflitos. As conclusões da pesquisa mos-
tram que a justiça restaurativa se apresenta como
inovação, tensionando o sistema de justiça penal ao
propor uma nova forma de gestão dos conflitos que
desvia o foco da punição para a restauração das rela-
ções afetadas pelo ocorrido, embora ainda tenha um
longo caminho a percorrer para que sua expertise seja
traduzida em práticas transformadoras.
Keywords: Abstract:
theories of punishment / restorative justice / modern This article aims to discuss restorative justice, an
penal rationality alternative form of conflict management, through a
theoretical framework of the theories of punishment,
or more specifically, the modern penal rationality,
as coined by Pires (2013). The idea is to demonstrate
how restorative justice escapes modern penal ratio-
nality, presenting itself as an alternative to the sys-
tem of ideas that underlies our current criminal jus-
tice system. The methodology is qualitative and the
research came from a case study of restorative justice
programs in the state of São Paulo, as well as inter-
views with professionals and participant observation
of restorative circles that happened at a school in the
city of São Caetano do Sul (SP). The results demon-
strate that restorative justice, despite its transforma-
tive potential, still has been facing difficulties to be
implemented. The resistances are related to legal
professionals and the population that is served by
these programs that do not understand the model as
expertise (case of legal professionals), or as a benefit
for those involved (case of adolescents and their fam-
ilies), as both groups still perceive conflict manage-
ment in punitive terms. The research findings show
us that restorative justice can be considered as an
innovation, because it pressures the criminal justice
system by proposing a new form of conflict manage-
ment that shifts the focus from punishment to the
restoration of the relationships affected by the con-
flict. Despite its advantages, it still has a long way to
go until this expertise could be translated into trans-
formative practices.
Dessa forma, a recorrência enunciativa da ideia da Para compreendermos o caso é preciso antes atentar
obrigação de punir forma a identidade penal do siste- para o fato de que assim como acontece com a Nova
ma de direito criminal moderno. Suas teorias susten- Zelândia, o desenvolvimento da justiça restaurativa
tam que a pena deve ser aflitiva para ser uma verda- no Canadá traz em si tanto a tentativa de recupera-
deira pena e que a sanção por reparação concernente ção de uma série de elementos dos meios pelos quais
à vítima não é uma pena (ou se porta mal como pena, populações autóctones administravam seus confli-
com algumas exceções referentes aos conflitos consi- tos, quanto também é pensada como uma forma de
derados de baixo potencial ofensivo). Assim, dentro tentar reverter a situação desfavorável em que muitos
das representações predominantes no campo jurídi- destes autóctones se encontram hoje: em ambos os
co, aquilo que chamamos de punição deve sempre países os grupos autóctones estão sobre-representa-
procurar diretamente e intencionalmente a aplicação dos nos números relativos à população encarcerada7.
de um sofrimento ao ofensor (PIRES, 2013).
Tendo em vista esse contexto, a seção 718.2 do Códi-
A teoria da racionalidade penal moderna põe, por- go Criminal exige que o tribunal, ao impor uma sen-
tanto, em evidência os obstáculos ligados a uma tença, considere os seguintes princípios:
6 De acordo com Pires (2013) podemos dizer que estamos em pre- 3. a obrigação, antes de considerar a privação de li-
sença de um obstáculo epistemológico (ou cognitivo) quando os
hábitos profissionais ou as ideias que um sistema social julgados 7 Sobre isso consultar: MCINTOSH, T. (2012) Maori Socio-
(ainda) apropriados, bons ou interessantes, impedem a adoção, a logy in New Zealand In: Global Dialogue Volume 2 Issue 3; além dos
generalização e o estabelecimento à longo termo de novos hábi- dados disponíveis no website do Serviço Correcional do Canadá:
tos ou ideias melhores, estruturas e práticas dentro do sistema ele http://www.csc-scc.gc.ca/index-eng.shtml (acessado em 16-12-
mesmo. 2015).
Após este evento, o tribunal de justiça da Colúmbia Profissionais do direito ouvidos pela pesquisa rela-
Britânica (1997), concluiu unanimemente que o ma- taram que vivenciam conflitos cotidianos em rela-
gistrado do processo cometeu um erro ao concluir ção aos seus pares de profissão pelo fato de terem
que o art. 718.2 não se aplicava pelo fato de a apelan- se envolvido com a pauta da justiça restaurativa.
Sobressaem-se nesse contexto, especificamente, as
8 Tradução livre da autora, no original: “d) l’obligation, avant divergências entre os juízes, já que foram eles que li-
d’envisager la privation de liberté, d’examiner la possibilité de sanc-
tions moins contraignantes lorsque les circonstances le justifient”. 10 O círculo restaurativo constitui-se no procedimento mais co-
9 Tradução livre da autora, no original: “e) l’examen de toutes mum de justiça restaurativa aplicado no Brasil. Como o título su-
les sanctions substitutives applicables qui sont justifiées dans les gere, os participantes ficam alocados em forma de círculo; ali, to-
circonstances, plus particulièrement en ce qui concerne les délin- dos os presentes tem oportunidades iguais de fala, para que juntos
quants autochtones”. possam chegar a soluções consensuais para o problema.
Ao contrário de outras iniciativas, em que a popu- O mesmo acontece com as práticas que acabam por
lação procura de forma voluntária ter acesso aos reforçar a centralidade do Judiciário, minimizando
canais extraoficiais de justiça para resolver seus ainda mais o modelo alternativo frente à população
conflitos (como acontece no CIC, por exemplo, con- que é atendida pelos programas. O caso se agrava se
forme demonstrado por Sinhoretto, 2011), no pro- nos lembrarmos de que estas iniciativas em si já apre-
grama de justiça restaurativa em São Caetano do sentam muitos pontos vulneráveis: programas a cus-
Sul os envolvidos são intimados a participar. Todo to zero, baseados no voluntarismo dos mediadores,
Palavras-chave: Resumo
ação civil pública / dano ambiental / crimes contra o O trabalho realiza estudo sobre danos ambientais e
ordenamento urbano / patrimônio histórico e cultural crimes contra o ordenamento urbano e o patrimônio
histórico cultural na cidade de Belém do Pará. A aná-
lise se dá a partir do estudo de caso de uma Ação Civil
Pública em relação à edificação histórica e comercial
Sumário: conhecida como “O Portuga”, que foi alvo de danos
1 À guisa de introdução ocasionados ao meio ambiente urbano referente ao
2 Contextualização temática: Ação Civil patrimônio histórico e cultural no bairro Batista Cam-
Pública e Ministério Público Federal pos, que abriga conjunto de edificações remanescen-
3 Meio ambiente e patrimônio histórico e tes, cujas características arquitetônicas, artísticas e
cultural: conceitos e significados decorativas denunciam a memória de um período de
4 Crimes contra o ordenamento urbano: efervescência cultural da cidade. Focalizam-se os efe-
interfaces temáticas dos tipos penais e tivos e possíveis prejuízos causados no referido pré-
análises jurisprudenciais dio tombado, assim como a reparação civil dos danos
5 (In)conclusivas considerações ambientais, como dano jurídico coletivo onde existe
6 Referências dever moral coletivo indenizatório. Analisa-se, de for-
ma pontual, a atuação do Parquet como legitimado a
propor a Ação Civil Pública vislumbrando a salvaguar-
da dos direitos difusos atinentes ao meio ambiente
cultural. Têm-se como referência central alguns ins-
trumentos normativos de tutela ambiental e demais
legislações (Constitucional, Civil, Ambiental, Penal),
todas legitimadas em tutelar os direitos transindividu-
ais e interesses difusos, coletivos e homogêneos, em
que está inserido o meio ambiente histórico e cultural.
Keywords: Abstract
class action (ação civil pública) / environmental da- This paper is a study on the environmental damage
mage / crimes against urban planning / historical and and the crimes against the urban heritage and cul-
cultural heritage tural history in the city of Belém. This is a case study
about a Class Action (Ação Civil Pública) concerning
the historic and commercial building known as “O
Portuga”, which has been the target of damages to
the urban environment in the historical and cultural
heritage district of Batista Campos. This district hous-
es a set of enduring historical buildings, whose archi-
tectural, artistic and decorative characteristics reveal
the memory from a period of prominent historical
importance of this city. The study focuses on the ef-
fective and possible damages to this historical land-
mark building, as well as the need to provide remedy
for the environmental damage, as well as the duty to
provide reparation for the collective damages. It also
presents a prompt analysis of the Parquet’s role as
the legitimate party to propose this Class Action in
order to safeguard the collective right to the cultural
environment. The main benchmark used here are
environmental protection statutes and other legisla-
tions (Constitutional, Civil, Environmental, Criminal)
that aim to safeguard the transindividual, collective
and homogeneous interests, in which the historic and
cultural environment is embedded in.
3 Cf. <www.prpa.mpf.mp.br>.
4 Cf. <www.diarioonline.com.br>.
O prédio, que não é tombado como patrimônio cul- Em 24 de janeiro de 2001, a Secretaria de Cultura
tural, mas é classificado como bem de interesse à do Estado do Pará (SECULT) oficiou ao Ministério
preservação por ser um imóvel representativo, está Público Estadual, informando resumidamente, o
sob proteção estadual pela lei do patrimônio, já seguinte:
que o casarão fica próximo a dois imóveis que já
são tombados: o Parque da Residência e o Palacete Que o imóvel situado na Rua dos Mundurucus, n.
Passarinho, que fica ao lado do parque. 1490, é tombado pelo Departamento de Patrimô-
nio Histórico, Artístico e Cultural – DPHAC, conforme
Segundo a presidente da Associação de Amigos do publicado no Diário Oficial do Estado de 21/01/98.
Patrimônio de Belém, Nádia Eliane Cortez Brasil,
o prédio está abandonado há bastante tempo. E, Que o referido imóvel tem proteção especial, nos
por ser de responsabilidade da Secretaria de Cul- termos da Lei Estadual n. 5.629/90;
tura do Estado do Pará (SECULT), o imóvel só pode
ser modificado ou demolido com a autorização da Que o imóvel vinha sofrendo seguidas interven-
secretaria, que de acordo com Nádia, ainda não se ções, sem prévia autorização daquele DPHAC, soli-
manifestou sobre o assunto. citando que fossem tomadas as providências cabí-
veis que o caso requer. (ACP, 2012).
As portas e o telhado do casarão já fora retirados.
A ida ao MPE para acionar a SECULT ainda pode re- Conforme os fatos elencados acima, a 2ª Promotoria
sultar em ação contra o proprietário, caso ele não do Meio Ambiente e Patrimônio Cultural de Belém
tenha autorização para derrubar o imóvel. instaurou o Procedimento Administrativo Preparató-
rio de nº 038/2001, que acompanhou a petição, com o
“O MPE vai responsabilizar alguém. Ouvi dizer que escopo de apurar a responsabilidade civil do proprie-
querem derrubar para fazer um estacionamento. tário do bem, com a finalidade de aplicar a Lei Federal
Estamos perdendo todo o nosso patrimônio”, la- 7.347/85 pelo eventual dano ao patrimônio cultural.
mentou Nádia.
A Ação Civil Pública informou que o Departamento de
Em relação aos danos ambientais vivenciados nas Patrimônio Histórico, Artístico e Cultural (DPHAC) é o
edificações de caráter cultural da cidade de Belém, órgão competente, no âmbito do Estado do Pará, para
desde a década de 80 e 90, a imprensa regional di- a preservação e proteção do patrimônio histórico, ar-
vulga, cotidianamente, matérias comentando crimes tístico, natural e cultural, conforme a Legislação Esta-
contra o ordenamento urbano e patrimônio cultural, dual 5.629/90. Da mesma forma, a Ação Civil Pública
comprovando a inadvertência, o desprezo e os danos informou que o DPAHC, em nível estadual, possui o
contra o patrimônio histórico e cultural, tombado ou registro de tombamento relativo aos bens imóveis de
não, em vários bairros da cidade. valor artístico, arquitetônico, urbanístico e paisagís-
tico, sendo responsável pela preservação, proteção,
Entre os inúmeros institutos normativos do Direito, tombamento e fiscalização ou execução de obras e
existentes no Ministério Público Estadual do Pará, serviços relativos aos bens registrados nos tombos.
destaca-se que no dia 25 de setembro 2012 foi pro-
posta uma Ação Civil Pública de rito ordinário e com Destaca-se que o artigo 20 da Lei 5.629/90 dispõe que
O documento informa que na data de 21 de janeiro Diante do fato de o proprietário intervir na estrutura
de 1998, através de regular Processo Administrativo, arquitetônica do prédio promovendo significativas
o DPHAC procedeu ao tombamento do imóvel. O imó- alterações, o DPHAC emitiu Notificação de Fiscaliza-
vel tombado em questão é concernente à história e ção, em 05 de junho de 1998, ao proprietário do mes-
memória do Estado do Pará e do Município de Belém, mo, para comparecimento àquele órgão, no prazo de
pois é parte integrante de um conjunto de edifica- 72 horas, a fim de receber orientação e tomar provi-
ções remanescentes, cujas características arquitetô- dências relativas às obrigações legais decorrentes da
nicas, artísticas e decorativas denunciam a memória situação jurídica do bem. No que se refere à recusa
de um período de proeminente importância histórica do proprietário do imóvel em questão em submeter-
e cultural da cidade. Segundo informações, discorri- -se às obrigações supracitadas, o DPHAC tomou uma
das na Ação Civil Pública, identificam-se no prédio as série de medidas administrativas, objetivando o seu
seguintes características arquitetônicas: cumprimento, culminando em Embargo Extrajudicial
da obra pelo Órgão Estadual.
Trata-se de um prédio originalmente residencial,
provavelmente datado do primeiro quarto deste Em 21 de novembro de 2011, com o objetivo de dar
século, de linhas ecléticas e com certa influência do andamento ao procedimento, o proprietário do imó-
“artnoveau” em sua concepção decorativa. vel foi notificado a prestar declarações na Promoto-
ria de Meio Ambiente e Patrimônio, onde compare-
Implantado no alinhamento do lote, tanto pela Rua ceu e declarou o seguinte:
dos Mundurucus, quanto pela Trav. Apinagés, fa-
zendo um chanfro no cruzamento de ambas as vias. Que é proprietário do Imóvel desde o ano de 1991,
o adquirindo mediante compra; Que o imóvel cor-
O imóvel possui uma edificação de interesse à pre- ria risco de desabamento; Que o referido imóvel
servação, face às suas características arquitetôni- ainda não era bem tombado, e pelo fato de serem
cas, típicas de Ecletismo, que predominaram nos necessárias reformas para preservação do bem, o
prédios residenciais e públicos, em Belém e outras proprietário solicitou à Prefeitura de Belém a au-
capitais brasileiras, no final do século XIX e início do torização para que realizasse as referidas obras no
século XX. Estas características evidenciam-se, no imóvel e que, só neste momento, com interesse de
caso do imóvel em questão, pela tipologia constru- inviabilizar as obras e impedir que ali fossem rea-
tiva (casa de porão alto), alinhamento (ocupação lizadas atividades comerciais, o DPHAC resolveu
de toda a área do terreno, remanescente do perío- tombar o bem. (ACP, 2012).
do colonial), a platibanda guarnecida por cornijas
ao longo de toda a linha de cobertura, e ornada Neste sentido, a Ação Civil Pública indica que o
com pinhas e frontão, a modinatura das janelas e a DPHAC, em contraditório, informou na data de 09 de
Neste sentido, é relevante ressaltar que o imóvel em O Dec. Lei Federal n. 25, de 30/11/37, em seu artigo
destaque na Ação Civil Pública foi tombado no final 5º, permite alargar a conceituação acima expendi-
da década de 90 através de regular processo admi- da, abrangendo os bens pertencentes à União, os
nistrativo. O DPHAC procedeu ao tombamento do Estados e aos Municípios.
imóvel, conforme publicado no Diário Oficial, inscre-
vendo-o no livro de tombo de n.º 3, em área tombada A proteção do patrimônio cultural inclui a vizinhan-
situada no bairro de Batista Campos com uma consi- ça da coisa tombada. Procurou-se disciplinar, tam-
deração valorosa do ponto de vista estético, históri- bém, as áreas de entorno relativas às coisas tomba-
co e cultural; ou seja, com um sentido interpretativo das, como é o caso dos autos, no seu início, uma vez
para as gerações passadas, presentes e futuras, con- que, posteriormente, o próprio bem foi tombado.
soante expressa respectivamente os art. 5º e 6º da
Carta de Veneza: Denominando como “área de entorno” e, tendo em
vista o decidido pelo DPHAC, ficou explícita a área
Art. 5º- A conservação dos monumentos é sempre fa- de proteção do bem tombado. Quando um imóvel
vorecida por sua destinação a uma função útil à socie- é tombado não se pode fazer nenhuma construção
dade; tal destinação é, portanto, desejável, mas não nova em suas imediações, nenhuma demolição, ne-
pode nem deve ser alterada a disposição ou decora- nhuma transformação ou modificação de natureza
ção dos edifícios. É somente dentro destes limites que a afetar o seu aspecto, sem autorização prévia.
se deve conceber e se pode autorizar as modificações
exigidas pela evolução dos usos e costumes. Em torno dos monumentos históricos, pode ser es-
tabelecida uma zona de proteção, constituindo-se
Art. 6º- A conservação de um monumento implica a zona a proteger, com a indicação das prescrições
Art. 18. Sem prévia autorização do Serviço do Patri- Diante disso, em relação à prova inequívoca do dano
mônio Histórico e Artístico Nacional, não se poderá, cultural e à verossimilhança da alegação, a funda-
na vizinhança da coisa tombada, fazer construção mentação jurídica utilizada foi o art. 273 do Código
que lhe impeça ou reduza a visibilidade, nem nela de Processo Civil (CPC), requisito legalmente exigido
colocar anúncios ou cartazes sob pena de ser man- para a tutela antecipada, constatando que indubi-
dada destruir a obra ou retirar objeto impondo-se tavelmente o réu, com indícios de autoria, praticou
neste caso multa de cinquenta por cento do valor violação contra o patrimônio histórico e cultural tom-
do mesmo objeto. (Brasil, 1937). bado, sem aprovação das autoridades responsáveis
pela preservação do mesmo. Considerou-se tam-
Neste sentido, o 2º Promotor de Justiça de Meio Am- bém, o perigo de potencial dano irreversível pespe-
biente, Patrimônio Cultural, Habitação e Urbanismo gado ao entorno do bem tombado e à coletividade
de Belém, Nilton Gurjão das Chagas, além de avaliar paraense, em vista de sua importância à identidade
as normas constitucionais sobre a tutela do meio am- cultural da região, fundamentando a necessidade de
biente cultural, para melhor salvaguarda do mesmo, tutela antecipada, nos termos do art. 273, inciso I, do
também fundamenta a referida Ação Civil Pública no CPC. Desta maneira, a Ação Civil Pública solicitou:
art. 225, § 3º, da Constituição Federal (CF/88), combi-
nado com o art. 14, § 1º, da Lei Federal 6.938/81 (Polí- A necessidade de concessão de tutela antecipada,
Crime ambiental. Artigo 62, inciso I, da Lei nº Pena- reclusão de um a três anos, e multa. (Brasil,
9.605/98. Destruição do imóvel especialmente pro- 1998).
tegido por decisão judicial. Acusada que, após re-
ceber ordem judicial – expedida nos autos da ação Desta forma, o mencionado artigo revogou tacita-
civil pública movida pelo Ministério Público com mente o art. 166 do Código Penal, abrangendo de
vistas a preservar imóvel de interesse histórico e forma mais completa a sua redação, incluindo além
arquitetônico, de sua propriedade – impedindo a da tutela por lei aquelas provenientes de ato admi-
alteração de características do imóvel, cuida de nistrativo ou decisão judicial – neste caso o crime é
providenciar imediatamente a demolição do pré- de alterar o aspecto ou estrutura de edificação ou lo-
dio, durante o feriado de Natal, sob o argumento cal especialmente protegido.
Palavras-chave: Resumo
procurador-geral da república / ações diretas de in- O Procurador-Geral da República, como uma breve
constitucionalidade / supremo tribunal federal / mi- análise histórica do cargo demonstra, exerce função
nistério público / pesquisa empírica no direito essencial no controle de constitucionalidade brasi-
leiro. Entretanto, estudos empíricos sobre sua atua-
ção permanecem escassos. Nosso objetivo é testar a
performance do PGR nas Ações Diretas de Inconstitu-
Sumário: cionalidade a partir de uma perspectiva quantitativa.
1 Introdução Utilizamos um data set de julgamentos obtido a par-
2 Justificativa tir da base de dados do projeto Supremo em Números
3 Metodologia para análises estatísticas, incluindo diferentes mode-
4 Resultados los de regressão. A hipótese testada é de que não há
5 Regressão Logística relação estatisticamente relevante entre a atuação
6 Conclusão do PGR como parte ativa no controle concentrado de
7 Referências constitucionalidade e o sucesso das Ações Diretas de
Inconstitucionalidade. A hipótese restou desprovada:
as ADIs propostas pelo PGR, assim como também as
propostas por chefes do Executivo têm estatistica-
mente maior probabilidade de sucesso.
Keywords: Abstract
brazilian attorney general’s office / concentrated The Brazilian equivalent of the Attorney General, as a
constitutional review / brazilian supreme court / em- brief historical analysis shows, plays an essential role
pirical legal research in concentrated constitutional review. However, em-
pirical studies of its performance remain scarce. Our
goal is to test the AGs track record in Direct Actions
of Unconstitutionality (ADIs) at the Brazilian Supreme
Court. We use a data set obtained from the Supreme
Court in Numbers project’s database in order to run
regressions with different models. The hypothesis we
tested is that there is no statistically significant rela-
tionship between the performance of the AG as plain-
tiff in concentrated constitutional review and the out-
come of the cases. This hypothesis was found to be
disproved: ADIs started by the AG, as well as those
proposed by representatives of the Executive branch,
have, in fact, greater statistical probability of success.
Como se pode observar, o primeiro mapa de análise nhecimento’, nos julgamentos das ADIs no Supremo.
de correspondência demonstrou fortes associações
entre o proponente ‘PGR’ e o resultado ‘procedente’. Testamos então a inclusão de uma terceira variável
Bem como associações entre ‘Chefe do Executivo’ e categórica – Assunto do processo.
‘procedente’ e entre ‘Entidades de Classe’ e ‘não co-
5 Regressão Logística
O modelo de regressão logística apresentado aqui
segue a seguinte fórmula:
Nagelkerke R2 = .431
Chefes do Entidades de
Parte ativa PGR
Executivo
OAB Partidos Legislativo
classe B
Chefes do
Entidades de
0.000 0.000 0.000 0.353 0.741
classe
A-B
A Valores p
Como é possível ver, a PGR tem taxa de sucesso maior especialmente no que tange ao controle concentrado
que qualquer outro litigante, sendo a diferença com de constitucionalidade. Ainda, os resultados pode-
os Chefes de Executivo a menor encontrada. riam estar relacionados com as motivações do PGR
ao propor as ADIs, seja por uma avaliação mais téc-
Com base nos resultados observados dos mapas de nica das questões propostas, seja pela proposição
análise de correspondência e da regressão logística, das ações apenas quando possui convicção de um
pode-se constatar que fatores extrínsecos à matéria resultado favorável, o que diferiria de outros atores
constitucional em comento e aos fatores institucio- que proporiam as ações ainda que com poucas chan-
nais afetam decisões em sede de ADIs no STF. As aná- ces de sucesso, sendo a proposição da ADI um meio
lises realizadas indicam a maior probabilidade de o de reafirmar uma agenda política e tendo a decisão
PGR ter sucesso nos resultados de ADIs no STF. como resultado secundário.
Keywords: Abstract
theory / sociology of law / philosophy of law / empi- While legal researchers’ skepticism about much of
rical research what is on offer under the name of theory is well
grounded, there are nevertheless theoretical resourc-
es that can very much benefit empirical researchers.
Neither legal philosophy nor grand European soci-
Summary ology of law are particularly helpful, and in many
1 Introduction respects these traditions constitute obstacles to
2 From literary chronotopes to legal concrete analyses of legal processes. But fortunate-
chronotopes ly, today, there are other sources of theoretical and
3 The game of jurisdiction methodological inspiration. Here I present a small
4 Conclusion part of my own recent contribution to the project of
5 References revising ‘theory’ in a way that is more helpful to legal
and empirical researchers than traditional philoso-
phy and sociology.
Writing against legal philosophy, Santos pointed out Of course, a single person is free to buy and inhabit
that there is no such thing as law in general; national a single-family home -- the link between ‘married
legal systems always coexist with global law and with with children’ and the particular space that is the
local law, and non-national legal rules follow logics detached home with a yard is not absolutely com-
that are quite different from those of the nation-state pulsory, and could not be, in a liberal legal system.
– so that the differences between different scales of But there is a very definite association, a close link,
law are not merely quantitative. This insight (closely between the temporality of ‘married with children’
related to the ‘legal pluralist’ project promoted by an- and the space that is the single family home. Before
thropologists studying how customary and/or indig- one is married and has children one is supposed
enous law coexisted with colonial Western law) was to inhabit a different space: the rented apartment.
extremely influential. However, it was limited in that Scholars, especially in the US, have written a great
it only considered law’s spatial or geographic scales. deal about how the spatial arrangement of urban life,
Reading Bakhtin and being inspired by his work especially through zoning, brings about or reinforces
made me see that law doesn’t just have different spa- class and race power. That is certainly true: race and
tial scales (global, national, local, terrestrial, mari- class power do work through space. But legal schol-
time, and so on). What I (and many others) call legal ars of race and urban life have totally neglected the
assemblages --a term chosen because it emphasizes temporality of different categories of urban space.
contingency and ad hoc decision-making, in contrast The single-family detached category, regarded as a
to the top-down planning presupposed by terms chronotope, draws attention to life-course temporal-
such as ‘legal systems’ (Li, 2007) – are simultane- ities in particular --but there are other types of tem-
ously spatialized and temporalized in distinct ways. poral classifications of space that have rarely if ever
For example, let us take a common legal object: the been explored. For example, there are beaches that
licenced bar or pub. This is a particular space charac- are meant for the weekend and/or the holiday, and
4 Conclusion
To sum up, then. My attempt to develop theoretical