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ANAIS DO

VII Seminário TRT/UFPE &


II Caravana ANPUH/PE
História, Trabalho e Direitos
Universidade Federal de Pernambuco
21, 22 e 23 de novembro de 2017
Anais do VII Seminário TRT/UFPE e II Caravana ANPUH/PE: História, Direitos e Trabalho.
ISBN: 978-85-415-0980-0

ANAIS DO
VII Seminário TRT/UFPE &
II Caravana ANPUH/PE
História, Trabalho e Direitos

Anais do VII Seminário TRT/UFPE e II Caravana


ANPUH/PE: História, Direitos e Trabalho realizado
entre os dias 21 e 23 de novembro de 2017 na
Universidade Federal de Pernambuco (UFPE), Recife.

Recife
2018

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Anais do VII Seminário TRT/UFPE e II Caravana ANPUH/PE: História, Direitos e Trabalho.
ISBN: 978-85-415-0980-0

Ficha catalográfica:

Seminário TRT/UFPE (7: 2017: Recife, PE)


Anais do VII Seminário TRT/UFPE [e] II Caravana
ANPUH/PE: história, direitos e trabalho / organização Márcio
Vilela, Pablo Porfírio, Arthur do Nascimento. – Recife: Ed.
UFPE, 2018.

867 p.; il.


Vários autores

Inclui bibliografia
ISBN: 978-85-415-0980-0

1. História – Encontros. 2. ANPUH - Pernambuco -


Encontros. I. Vilela, Márcio. II. Porfírio, Pablo. III. Nascimento,
Arthur Gustavo Lira do. IV. Caravana ANPUH/PE. V. Título.

906 CDD (23.ed.)

Comissão Organizadora dos Anais

Márcio Ananias Ferreira Vilela


Pablo Francisco de Andrade Porfírio
Arthur Gustavo Lira do Nascimento

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ISBN: 978-85-415-0980-0

Comissão Organizadora do evento:


Arthur Gustavo Lira do Nascimento (UFPE)
Alcileide Cabral (UFRPE)
Antonio Torres Montenegro (UFPE)
Carolina Cahú (APEJE)
Hélder Remígio (UNICAP / UPE)
Humberto Miranda (UFRPE)
Joana Maria Lucena de Araújo (UFPE)
Juliana Andrade (UFRPE)
Karlene Sayanne Ferreira Araújo (UFPE)
Márcio Ananias Ferreira Vilela (CAp-UFPE)
Mário Ribeiro (UPE)
Pablo Porfirio (CAp-UFPE)
Regina Beatriz Guimarães Neto (UFPE)
Rosely Tavares (SEDUC/PE)
Silvia Couceiro (FUNDAJ)
Thâmara Brenda Lopes de Souza (UFPE)
Vera Braga (SEDUC)
Wagner Geminiano (FAMASUL)

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Apresentação

A II Caravana ANPUH Presente 2017 foi realizada entre os dias 21 e 23 de


novembro na UFPE. A atividade encerrou um ciclo de eventos ocorridos em Belo
Jardim, Arcoverde, Garanhuns e Caruaru. Neste ano, a Caravana em Recife foi
produzida em parceria com o VII Simpósio do Arquivo do TRT/UFPE. Os dois eventos
se unirem em torno da temática “História, Trabalho e Direitos”. A ANPUH-PE juntou
forças com o Projeto História e Memória, o qual desde 2008 promove a gestão
documental de milhares de processos produzidos pela Justiça do Trabalho em
Pernambuco. E nos unimos em torno da reflexão histórica sobre o Trabalho e os
Direitos sociais, temática que atinge a vida de diversos indivíduos em distintas
temporalidades.

No decorrer da atividade foram realizadas de três mesas redondas, três


conferências, quatro oficinas e dez simpósio temáticos. Para os ST´s, desde a primeira
edição da Caravana em 2015, convidamos os coordenadores dos Grupos temáticos
oficiais da ANPUH a propor um simpósio que reunisse os integrantes dos GT´s e
demais interessados na temática do Grupo – estudantes e professores. A ideia foi criar
um espaço para que os projetos de pesquisa e seus resultados parciais e finais fossem
apresentados e debatidos.

Os anais da II Caravana ANPUH Presente em Recife e do VII Simpósio do


Arquivo do TRT/UFPE apresentam os resultados desse debate. Ao ter acesso aos
artigos, o leitor encontrará um painel atual sobre a pesquisa histórica produzidas por
estudantes de graduação e pós-graduação e professores e nos estudos sobre a relação
entre História, Trabalho e Memória.

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Programação
21/11 (Terça-Feira) 22/11 (Quarta-Feira) 23/11 (Quinta-Feira)

09:00-12:00 08:00-10:00 08:00-10:00


Credenciamento Oficinas Oficinas
Local: Sala do TRT/UFPE
- 4º andar (CFCH) 10:00-11:30 10:00-11:30
Lançamento de livros Assembleia ANPUH-PE
Local: Auditório do 3º Local: Auditório do 3º
andar (CFCH) andar (CFCH)
14:30-16:30
Mesa 1
História e Educação 13:30-15:30 13:30-15:30
Profª. Drª. Juliana Simpósios Temáticos Simpósios Temáticos
Andrade
(UFRPE), Prof. 15:40-18:00 15:40-18:00
Dr. Márcio Ananias Mesa 02 Mesa 03
(CAp-UFPE) e Profª. História e Direitos História e Política
Drª. Isabel Guillen Profª. Drª Regina Beatriz, Prof. Dr. Túlio Velho,
(UFPE) Desembargadora Drª Prof. Dr. Antonio
Local: Auditório do 3º Eneida Melo e Procuradora Torres Montenegro e
andar (CFCH) Drª Débora Tito
Prof. Dr. Pablo Porfirio
Local: Auditório do 3º
Local: Auditório do 3º
andar (CFCH)
18:30 andar (CFCH)
Abertura oficial
19:15
Conferência 19:15
Conferência
"Conflitos no Campo; Conferência
"Considerações sobre
Continuidades e 'Direitos' na Memória
de encerramento
Descontinuidades" Operaria e na Memória "Relações de gênero,
Prof. Dr. Moacir Camponesa" Direitos e Democracia"
Palmeira Prof. Dr. José Sérgio Leite Profª. Drª. Joana Maria
(UFRJ/Museu Lopes (UFRJ/Museu Pedro (UFSC) 6
Nacional) Local: Auditório do 3º
Nacional)
Local: Auditório do 3º andar (CFCH)
Local: Auditório do 3º
andar (CFCH)
andar (CFCH)
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SIMPÓSIO TEMÁTICO 01
HISTÓRIA DA ÁSIA

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"LA TRATA AMARILLA" EN EL PERU:


SÍNTESE DAS EXPERIÊNCIAS DE INSERÇÃO DE TRABALHADORES CHINESES
NOS SETORES PRODUTIVOS PERUANOS EM MEADOS DO SÉCULO XIX

Victor Hugo Luna Peres1


Mestre em História (UFPE)
E-mail: victorhperes@hotmail.com

"La trata amarilla" foi uma das facetas mais polêmicas e controversas das
migrações internacionais para o trabalho ao longo do século XIX. Importante fenômeno
da "Era do Capital", como descrito por Eric Hobsbawm, elas deslocaram mais de 100
milhões de pessoas em diferentes fluxos migratórios e alteraram sobremaneira as
paisagens etnográficas ao redor do globo. Desses movimentos transoceânicos, as assim
chamadas "ondas orientais" que ondulavam “das terras de Ind e Cathay” e banhavam as
costas do continente americano – insuflando as fileiras dos mercados de trabalho –
estavam longe de ser um fenômeno natural, fruto da livre iniciativa destes povos, como
a metáfora utilizada pelo New York Times em 1852 pode deixar transparecer.2
Produto das complexas configurações política e econômica da era do capital, o
tráfico de trabalhadores chineses para regiões de produção agroindustriais –
particularmente, as tropicais e subtropicais, como indicou Sidney W. Mintz3 – mundo
afora, respondia aos interesses bastante específicos de outra sorte de indivíduos. Como
expôs Arnold Meagher em seu The Coolie Trade: the traffic in chinese laborers to Latin
America, 1847-1874, o tráfico de chineses “foi iniciado e sustentado, não pela ação
espontânea de agentes livres, mas sim pela persuasão, fraude e coerção de agentes e
recrutadores de emigração a serviço de empresários ocidentais e do capital ocidental.”
(2008, p. 295) Para estes trabalhadores, como posto por Hobsbawm, esse movimento
significou um drama, o “drama do progresso”: “transportados para um novo mundo
frequentemente transpondo fronteiras e oceanos, ele significou uma mudança de vida

1
O presente artigo é uma versão ampliada e revista de parte da dissertação de mestrado: Os “chins” nas
sociedades tropicais de plantação: estudo das propostas de importação de trabalhadores chineses sob
contrato e suas experiências de trabalho e vida no Brasil, 1814-1878. (2013).
2
Ver mais em: “Os migrantes chineses do açúcar: da produção em regime de economia familiar à
plantation caribenha” (PERES, 2009).
3
Como Mintz já chegou a sugerir há uma intima ligação (sociologia, histórica e talvez ainda outras) entre
os fluxos migratórios de indivíduos não-brancos, durante o século XIX, com os destinos (colônias ou
países, os atualmente chamados dependentes) tropicais e subtropicais em que desembarcaram a maioria
deles. (MINTZ, 1987, p.48)

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cataclísmica”. (2007, p.23)


Dentre as muitas partes do globo abastecidas pela mão de obra chinesa neste
período – a saber, “Ilhas Sandwich, a Califórnia, Cuba e outras ilhas das Índias
Ocidentais –, estava também o Peru, uma das novas repúblicas latino-americanas que
havia passado de colônia espanhola a Estado independente no primeiro quartel do
século XIX
Em fins dos anos de 1840, o Peru consolidava-se político-administrativamente e
sua economia recebia impulsos do capital estrangeiro, particularmente britânico e norte-
americano. Com uma economia ainda predominantemente agroexportadora e calcada
sobremaneira na mão de obra de africanos e afrodescendentes escravizados, já em
flagrante processo de redução dos quadros, sofria as pressões e efeitos políticos,
econômicos e sociais da “nova era”. A seu modo, ele procurava resolver o problema
crescente da escassez de mão de obra nos setores produtivos e continuidade da própria
instituição da escravidão, sem, contudo, perder de vista as experiências de outras
regiões onde forças comuns atuavam e processos semelhantes ocorriam.
Em novembro de 1849, o Peru dava início ao seu programa de importação de
trabalhadores asiáticos, particularmente chineses, como solução “transitória” ao
problema de abastecimento da força de trabalho. Tal experiência surgia de maneira
concomitante às primeiras experiências cubanas de utilização desta opção de mão de
obra e em moldes bastante similares. A cargo de Domingo Elías Cabajo, um importante
plantador, político e empresário peruano, e de seu sócio Juan Rodríguez, o programa foi
logo posto em prática. Neste sentido, bastaria indicar que o primeiro navio (Frederick
Wilhem – de bandeira dinamarquesa) trazendo 75 trabalhadores chineses sob regime de
contrato (com obrigações de 8 anos de prestação de serviço), a mando destes homens,
aportou em Callao um mês antes da oficialização da assim chamada 'Ley China'. Essa
lhes concedia o direito exclusivo de importação de 'colonos'4 chineses durante quatro
anos. (MEAGHER, 2008, pp. 223, 46)
A necessidade de mão de obra se fazia sentir tanto nos crescentes setores de
produção agrícola das regiões costeiras do Peru, sacaricultor e algodoeiro, como na

4
Segundo Ricardo la Torre Silva, o termo “colono” foi aplicado como parte de uma ficção jurídica, no
sentido de adequar-se ao Código Civil e a Constituição que não mais reconheciam a existência da
condição escrava em solo nacional. No entanto, como aponta o autor, as leis aplicadas aos estrangeiros,
particularmente o art.33 do Código Civil que garantia os direitos individuais, a segurança da pessoa e de
seus bens, e a livre administração dos mesmos, não foram aplicadas aos chineses. Para estes, empregou-se
o art.37 do mesmo código que os colocava na obrigação do cumprimento estrito das obrigações
contratuais estabelecidas com peruanos, contraídos em solo nacional ou no estrangeiro. (SILVA, 1992)

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extração do então precioso 'guano' (STEWART, 1951, pp. 3-4).5 Nesses dois
empreendimentos Domingo Elías tinha particular interesse, não só porque era um dos
maiores proprietários de terras do país, com possessões distribuídas ao longo de várias
províncias – principalmente em Ica –, mas porque um mês depois de conseguir do
governo o seu exclusivo termo de provisão de imigração chinesa para os departamentos
de Lima e de 'La Libertad', ele também obteve um termo de seis anos de exclusividade
na extração do guano das ilhas Chinchas6.
Com a crescente pressão para a emancipação definitiva dos escravos, conseguida
em 1854/5, tais empreendimentos que até então repousavam principalmente sobre a
força de trabalho escrava, não encontravam outra saída que não a promoção de correntes
de imigração. Debates e projetos nesse sentido se impuseram desde meados da década
de 1830 nos círculos governamentais e empresariais, bem como em âmbito público,
sem, contudo, resolver-se de forma efetiva o problema da escassez de mão de obra.
Michael J. Gonzales, em seu “Chinese Plantation Workers and Social Conflict in Peru
in the Late Nineteenth Century” (1989, p.390), resume estas provisões:
“Em 1839 o Congresso [peruano] abordou o problema da escassez de
trabalho, passando uma lei de imigração subsidiando a importação de
trabalhadores contratados. A legislação autorizou o pagamento de 30 pesos
por imigrante para quem importasse pelo menos cinquenta trabalhadores
entre 10 e 40 anos de idade. Entre 1839 e 1851 cerca de 450.000 pesos foram
pagos no âmbito deste programa.”

5
Como resume Stewart: “A necessidade peruana de trabalhadores cresceu por um complexo de motivos.
Depois da Guerra pela independência terminada com sucesso em 1825, o progresso econômico era
interrompido frequentemente por guerras internas e externas até meados dos anos 1840, quando se tornou
estável. Os numerosos valeis de rios férteis ao longo da faixa costeira foram ocupados por plantações de
conchonilha, açúcar e algodão, a demanda por produtos como estes cresceu com o passar do tempo. Por
volta de 1840, a grande quantidade de guano (excremento de pássaros) assentado nos promontórios e
ilhas costeiras foram sendo trabalhadas de maneira lucrativa, o mercado externo cresceu de forma
constante e o valor do fertilizante para a nação aumentou evidentemente. Através dos 300 anos do período
colonial, a mineração foi importante, e a atividade mineradora foi continua e crescente. Por volta de 1850
economistas e capitalistas peruanos começaram a agitações por melhoramentos internos – canais de
irrigação, telégrafos, portos e, especialmente, linhas férreas. Todas essas atividades demandavam trabalho
e mais trabalho. Eventualmente tornou-se evidente que a população do país, nas condições existentes, não
conseguiria ela mesma suprir a necessidade. ” (STEWART, 1951, pp. 3-4).
6
“As Chinchas são três pequenas ilhas, nenhuma delas com mais de uma milha, e praticamente com a
mesma distância entre elas, dispondo-se como uma linha norte e sul, 14 milhas do continente, e por volta
de 90 milhas , seguindo Sul Sudeste de Callao. Elas consistem de rochas porfiriticas e vulcânica, acima
do mar, e com exceção de algumas praias estreitas, seus lados são precipícios nus, irregulares e recuados
com cavernas, e cercado aqui e ali por massas de rocha. Todas elas estão cobertas com nada mais que
guano, qual se assenta sobre as rochas como se tivesse sido peneirado sobre elas e tivesse formado colinas
arredondas. As rochas são de 50 até 200 ou 300 pés de altura nas margens, e o guano está acumulado
sobre eles mais alto no meio, onde pode ter 200 pés. Ele só foi escavado das ilhas do norte e do meio;
onde foi escavado e parece visto dos navios com colinas aluviais ocres. (…) A ilha do sul é uma colina
intocada de guano, marcada por esqueletos de leões marinhos e geralmente coberta por pássaros. ” -
“Letter from the Chincha Islands”. New York Daily Times, 07/01/1854.

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A primeira opção que encetaram foi a imigração de colonos europeus. No


entanto, tal opção não surtira os efeitos práticos esperados. 7 De um lado, o mau
resultado deveu-se ao número bastante reduzido de europeus que se dispunham a
emigrar para um país tropical e escravista, como o Peru, onde as condições que os
aguardavam, segundo o que se sabia à época na Europa, não eram em nada favoráveis
ao pleno desenvolvimento de suas capacidades industriais e pessoais. De outro, porque,
da parte dos plantadores, o interesse estava em obter “mãos e não colonos” como aponta
Arnold J. Meagher. (2008, p.46)
8
A opção de utilização da mão de obra indígena interna, outra solução
vislumbrada, comenta Watt Stewart em “Chinese Bondage in Peru” (1951, p.5), tinha
pouca ou nenhuma adesão por parte da classe de plantadores e empresários – mesmo
que sazonalmente os empregassem em seus empreendimentos9. Estes reputavam aos
indígenas a falta das capacidades industriais e a inadaptabilidade tanto ao ambiente de
tais empreendimentos, como às formas de trabalho lá estabelecidas. A respeito disto
continua Stewart: “A grande maioria dos índios vivia nas serras, onde o indivíduo
cultivava sua fazenda, às vezes comunitária, e cuidava de seus animais. O habitante da
serra, o serrano, não gostava de trabalhar nas minas ou na costa. Ele [o trabalho] muitas
vezes significava a separação de sua família, e o clima úmido, frequentemente quente
do litoral, não era do seu agrado” (Ibidem). Ainda no mesmo sentido, Meagher lembra,
utilizando as palavras de Brian Fawcett, que: “Era crença geral que os índios, sendo
usados em altitudes entre dez mil e dezessete mil pés, eram incapazes de trabalhar por
longos períodos em baixas altitudes. Nos Altos Andes, seus pulmões e coração
desenvolviam-se em tamanhos anormais, o que os tornava propensos a tuberculose e as
doenças cardíacas quando eles desciam para o litoral.” (2008, p.44) Por essas razões,

7
“Apesar dos esforços do estado (diferentes leis, ditadas em 1835, 1849, 1873 e 1893, e projetos tiveram
o fim de apoiar a chegada de brancos), o Peru recebeu um número insignificante de imigrantes europeus,
sobretudo irlandeses, alemães, franceses, italianos e vascos [...]. Segundo os dados do censo de 1876, dos
4% de população estrangeira no país: 47% eram asiáticos e 23% europeus (Contreras - Cueto 138-140;
Contreras 13-17, Derpich Gallo 77-78), proporção que não mudou durante as décadas posteriores.”
(JANCSÓ, 2015, p.4)
8
“(…), provavelmente 70 % do povo peruano era indígena, de sangue puro ou mestiço, de maneira
predominante (...)” (STEWART, 1951, p. 5)
9
Stewart comenta que: “Um escritor peruano declarou, ''o serrano faz uma visita apressada nas terras
baixas no tempo de inverno, retornando para sua habitação nas montanhas tão logo quanto ele obtinha 10
ou 20 dólares.” No período colonial os indígenas foram muito usados nas minas, assim como nas
plantações. Depois da independência os brancos dominantes continuaram a explorá-los; vivendo em
condições pobres e baixo ganho. Se vinha a ser fazendeiro por arrendamento os temos dos contratos eram
fortemente favoráveis aos proprietários. ” (RIO, 1929, p. 38 ).

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como ainda afirma o autor, “Ninguém parecia considerar a possibilidade de atrair o


índio para descer das montanhas” (Idem, p. 46)
A utilização de mão de obra asiática – importada da China, principalmente das
províncias costeiras do Sul –, era então divulgada, principalmente por produtores,
missionários e intelectuais das colônias britânicas e francesas e, inclusive
empreendedores americanos, como sendo talvez a melhor opção para o trabalho nas
plantações tropicais e em outras tantas atividades que exigiam trabalho duro. Um bom
exemplo, encontra-se na matéria antes mencionada, de 4 de abril de 1852 do NYT, na
qual assim se sintetizava as qualidades destes trabalhadores:
“Seus méritos como estáveis, trabalhadores sóbrios, completamente
acostumados à labuta e às desvantagens de um clima tropical, o que os coloca
em comparação extremamente favorável com seus antecessores negros.
Realizam uma quantidade mais fiável e constante de trabalho. Eles estão
sujeitos a um número menor de males, especialmente a maladie de langeuer,
que deduz grande parte do tempo e acrescenta muito ao custo do negro.”

De maneira ainda mais precisa e detalhista, como menciona Stewart, à época


havia um certo Dr. Williams que assim comentava os atributos dos trabalhadores
chineses do Sul em comparação com os do Norte: “Os homens desta região são menores
e mais morenos, têm mais empreendimento comercial, são melhor educados, e
apresentam maior habilidade mecânica” (STEWART, 1951, p.16). E não foi outra a
solução 'última' a ser posta efetivamente em prática, a partir de fins da década de 1840.
Cada vez mais próxima, a emancipação da força de trabalho escrava teve um
importante papel no desenvolvimento deste projeto de importação de trabalhadores do
sul da China e inclusive no protagonismo inicial de Domingo Elias (um dos grandes
proprietários de escravos do período). Michel Gonzales bem sintetiza esse processo:
“Plantadores também se beneficiaram financeiramente com a abolição da
escravatura em 1854, uma vez que receberam 300 pesos para cada escravo ou
liberto libertado. Esse montante, que ultrapassou o valor de mercado da
maioria dos escravos, gerou entre 7.000.000 e 7.650.000 pesos em débito
adicional, permitindo aos plantadores estabelecerem contatos com os
comerciantes da colônia portuguesa de Macau e promoverem a importação
sistemática de servos chineses.” (1989, p.390)

O sucesso do empreendimento, do ponto de vista de plantadores e empresários,


pode ser dimensionado pelo fato que, de 1849 até 1854, mais de 5000 trabalhadores
foram introduzidos nos setores produtivos peruanos, o que refletiu sobremaneira nos
resultados da produção, com significativos incrementos. Domingo Elias, por exemplo,
em apenas um de seus empreendimentos contava com 850 trabalhadores, dos quais 600

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eram chineses. (JANCSÓ, 2015, p.4). Logo após, com o fim do termo de exclusividade,
mais de 98 empresários ligaram-se ao negócio do tráfico. (SILVA, 2005)
Ao fim do século, esta corrente migratória seria reconhecida por pensadores
peruanos, a exemplo de Paz Soldán, como “a única imigração real para o Peru”
(ARONA, 1891, p.39) e que já o havia levado a escrever que “Não há onde não haja
chinês, Desde o ensaque do guano, Até o cultivo nos vales, Desde o serviço de mão, Ao
varre das ruas.” 10 (Idem, p.39) Os números deste verdadeiro comércio/tráfico de mão de
obra chinesa, “La trata amarilla”, deixam entrever a importância destes trabalhadores
no desenvolvimento e na manutenção das produções economicamente significantes do
Peru. Ao todo, aproximadamente 110.000 chineses (majoritariamente homens) foram
desembarcados nas costas peruanas durante as duas distintas fases deste tráfico. Arnold
J. Meagher assim as distingue: “A história da sua introdução no Peru deu-se em dois
períodos distintos: 1849-1856, ano em que o governo peruano interveio para parar com
o comércio, e a partir de 1861, quando a proibição foi levantada, até 1874.” Ainda
segundo ele, “Deste número, vários milhares [de trabalhadores chineses] foram
empregados nas ilhas de guano ao largo da costa, entre 5 e 10 mil, ajudaram a construir
ferrovias na Cordilheira dos Andes, mas perto de 80.000, ou entre 70 e 75 %, foram
alocados nas plantações de açúcar e de algodão ao longo da costa. ” (MEAGHER, 2008,
p.222)
Contudo, como demonstra Michael Gonzales, a história dos trabalhadores
chineses nos setores produtivos peruanos, e particularmente nas plantações, ultrapassa
em muito o fim da “trata amarilla” em 1874, devido aos acordos celebrados entre o
Peru e a China no Tratado de Tientsin.11 De maneira contrária à narrativa de transição,
sob a qual haviam sido propostos e trazidos enquanto solução temporária ao fim da
escravidão, e para o desenvolvimento de um mercado de trabalho livre, um expressivo
número destes trabalhadores permaneceu à mercê de seus empregadores, mesmo em
casos onde não mais se encontravam sob a vigência de seus antigos contratos, através
dos quais haviam sido engajados nesses empreendimentos. Os dados, neste sentido, são
significativos como demonstram os números abaixo:
Tabela II
Distribuição da População Chinesa na Região Costeira do Peru, 187612
________________________________________________________________________________

10
Nessa última atividade, os chineses chegaram a ocupar 90% dos postos de trabalho, como foi o caso da
municipalidade de Lima. (JANCSÓ, 2015, p. 8)
11
Tratado de Amizade, Comércio e Navegação, com arranjos especiais sobre emigração.
12
Fonte: Perú, Dirección de Estatística, Censo General 1876, VII, Apendix. (GONZALES, 1989, p. 394)

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Região Província Nº de Chineses Total de População % Porcentagem


________________________________________________________________________________
Extremo Norte Piura 74 135,615 0.001
Lambayeque 4,087 86,738 4.7
Centro Norte Libertad 8,816 147,336 6.0
Ancash 13,975 284,830 1.4
Lima 24,290 225,800 10.8
Centro Sul Ica 5,022 60,255 8.3

Total estimado de População


nas regiões costeiras do Peru 46,264 940,574 4.9
Total estimado de População
do Peru 51,186 2,699.106 1.9
________________________________________________________________________________

Tabela III
Censo Parcial de Trabalhadores Chineses nas Plantações das Prov.s Costeiras,188713
_____________________________________________________________________________________
___
Província Trabalhadores sob Contrato Parceria Assalariado (Jornaleiro)ª
Total
_____________________________________________________________________________________
___
Chancay 25 470 1,917
2,412
Santa 15 255 864
1,134
Chiclayo 133 0 1,23 5
1,368
Pacasmayo 82 0 66 3
745
Trujillo 252 0 748
1,000ᵇ
Cañete 0 0 500
500 ͨ
Ica 15 ͩ 0 1,206 ͩ
1,221
Total 522 725 7, 133
8,380

ᵃ The Chinese Commission did not generally differentiate between wage labourers provided by Chinese
contractors and wage laboures hired by the estates.
ᵇ This figure grossly underestimates the number of Chinese workers in Trujillo province, because the
Commision did not visit several large estates, including Casa Grande, Cartavio, and Roma.
ͨ This figure only includes Chinese on the plantations Santa Barbara, La Huaca, and La Quebrada.
ͩ Contracted workers are under-enumerated and wage laboures are over-enumerated because 400 wage
and contracted workers were grouped together by Comminnion and are represented here as wage
labourers. The vast majority of these 400 workers, based on data from Commission report and plantation
records, were in all probability wage labourers.

Tabela IV
Plantações com o Maior Número de Trabalhadores Chineses, 188714

13
Chinese Commission Report, 1887, B.N. (Ibidem)

14
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ISBN: 978-85-415-0980-0

_____________________________________________________________________________________
_
Província Estado Proprietário Cultura Trabalhadores sob Contrato Assalariado
Total
_____________________________________________________________________________________
_
Trujillo Tulape Larco Hnos. Açúcar - -
700*
Chiclayo Pátapo José Ramos Açúcar 78 522 600
Pacamayo Lurifico Luisa G. Açúcar 82 418 500
Vda.de Dreyfus
Cañete Santa Barbara, Swayne Açúcar - 500
500
La Huaca,
La Quebrada
Chancay San Nicolás Testamentaria Açúcar - 500
500
de D. Laos
Chancay Huayto Canevaro &Cia.Açúcar 25 275
300
Santa San Jacinto Swayne Açúcar - 300
300
Santa La Puente T. Derteano Açúcar 15 285
300
Ica Caucato __ Açúcar - 300
300
Chiclayo Cayaltí Aspíllaga Açúcar - 300
300
_____________________________________________________________________________________
___
* Para a plantação de Tulape, os Comissários agruparam trabalhadores contratados e assalariados.

Como revelam os dados, mesmo após 1874 ainda era significativa a presença de
trabalhadores chineses nas principais propriedades sacaricultoras e em algumas das
cidades mais importantes da zona costeira do Peru. Lima, por exemplo, tinha em 1876
aproximadamente 10% de sua população composta por indivíduos de origem chinesa.
Entre as muitas estratégias engendradas pela classe dos plantadores, no intuito
de assegurar a essa força de trabalho, estavam a cobrança do débito contraído durante o
tempo de contrato nos barracões da propriedade (com a compra de gêneros alimentícios,
roupas e medicamentos, mas também de ópio15) e da yapa (o pagamento da soma dos
dias não trabalhados ao longo do contrato). Havia também a possibilidade do enganche
ou recontrato, esse feito sobre as mesmas bases do primeiro contrato, mas sem
intermediário ou contratantes e com o pagamento dos valores ao próprio trabalhador da
oitava parte dos valores pagos no primeiro contrato (SILVA, 1992).

14
Chinese Commission Report, 1887, B.N. (Idem, p. 395)
15
Como aponta Katalin Jancsó, o ópio era “muitas vezes o único apoio para suportar as condições
inumanas, cujo consumo era permitido pelos plantadores, sendo importado e distribuído por eles aos
trabalhadores chineses. O ópio converteu-se num recurso de castigo e recompensa.” (2015, p.05)

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Doravante, muitos destes trabalhadores foram levados a organizar-se sob novos


arranjos de contratação, passando a serem chamados de “chinos libres” (GONZALES,
1989, p.387). Apesar dessas formas terem produzido algumas melhoras nas condições
de vida e trabalho dos chineses, permitindo-lhes poucos benefícios e/ou o acúmulo de
algum capital, a exploração da força de trabalho dos mesmos continuou de maneira
quase que ininterrupta até a forte crise dos sistemas produtivos peruanos, arruinados em
consequência da Guerra do Pacífico (1879-1883).
Ademais dessas relativas melhoras, as difíceis condições de vida e trabalho
desses indivíduos inseridos na produção agroexportadora durante o quarto de século
aqui retrato (1849-1874) e mesmo depois – fossem trabalhadores sob contrato ou não
mais – já foram longamente descritas e debatidas tanto por contemporâneos como por
pesquisadores. Entre as queixa mais recorrentes estavam: as exaustivas jornadas de
trabalho (muitas vezes em ambientes reconhecidamente insalubres); as condições
precárias de moradia e alimentação; o endividamento compulsório; as restrições de
mobilidade; a repressão violenta por parte dos contratantes (e mesmo de instâncias
governamentais); as restrições ao acesso de direitos civis e até formas de coerção física.
Essas adversidades aqui elencadas, no entanto, são apenas algumas das muitas mais que
os trabalhadores chineses tiveram de enfrentar em seus novos – e, em muitos casos,
permanentes – locais de trabalho, vida e morte.
Neste ponto, algumas descrições merecem ser aqui reproduzidas e analisadas, no
sentido de expor as muitas arbitrariedades cometidas contra essa população através do
sistema de contrato. Haja vista o pouco interesse da imprensa peruana à época na
divulgação dessas questões – comprometida que estava com os interesses das elites
locais – e mesmo dos jornais internacionais, exceção feita aos casos mais chocantes.
(MINTZ, 1987, p.47; JANCSÓ, 2015) Uma das mais famosas descrições sobre a difícil
vida destes trabalhadores na extração de guano das ilhas Chinchas foi redigida em carta
por um correspondente especial do NYT – identificado apenas como G. W. P. – em 10
de novembro de 1853, mas só publicada na edição matinal de 7 de janeiro de 1854:

“A verdade é que os pobres chineses são vendidos em absoluta escravidão –


vendidos por ingleses para a escravidão – talvez a pior e a mais cruel no
mundo. Aqui estão cerca de oitocentas destas desafortunadas criaturas em
trabalho nestas ilhas no momento; tão rápido quanto a morte os reduz em
número o mesmo é elevado por novas importações. O trabalho é severo –
muito mais do que aquele dos negros nas plantações do Sul. Eles são
mantidos em trabalho pesado no sol quente durante o dia. Na ilha do meio
são comnpelidos cada um, fortes e fracos da mesma forma, para cavar do
morro e rolar para os mangueras cinco toneladas de guano cada por dia. O

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guano é compacto, algo duro, argiloso como o barro, e semelhante a poeira,


quando escavado, como cinzas. Na ilha do Norte, ele tem que ser levado de
uns cem metros à um quarto de milha – a natureza do trabalho pode ser
concebida. Os chineses trabalham quase nus, sob um sol tropical onde nunca
chove. São figuras esguias, e não parecem fortes. Os capatazes negros – os
mais feios que eu já vi – estão estacionados entre eles, com pesadas correias,
as quais eu os tenho visto utilizar. Os pobres coolies não têm esperança de
recompensa – sem dias de descanso, a fumaça do seu tormento continua aos
domingos, bem como nos dias de semana. Ela sopra para longe em uma
nuvem amarela, milhas à sotavento, e eu nunca a vejo sem pensar que inferno
na terra essas ilhas devem ser. Que eu não exagero neste relato, qualquer um
que tenha estado lá prontamente ouvirá testemunhos. O fato de que muitos
dos chineses quase todas as semanas cometem suicídio para escapar de seu
destino, mostra o verdadeiro estado de seu caso. KOSSUTH me disse que
mais de sessenta tinham se matado durante o ano, desde que ele foi alocado
aqui, principalmente, jogando-se das falésias. Eles são enterrados, como eles
vivem, semelhante aos cães. Eu vi um que se tinha afogado – não se sabe se
acidentalmente ou não – deitado no guano, quando fui pela primeira vez a
terra. Durante toda a manhã, o seu cadáver ficou exposto ao sol; à tarde eles o
cobriram alguns centímetros, e lá se encontra, junto com muitos montes
semelhantes, a poucos metros de onde eles estão cavando. Na ilha do Norte
os chineses carregam pesados baldes de água, pendurados em uma vara, até a
colina íngreme; eles podem, desta forma, tão bem quanto em carrinhos de
mão, carregar pesos completamente desproporcionais às suas formas esguias.
Eles parecem infelizes, tão bem quanto podem. Nós sabemos que os chineses
são fortemente ligados à sua terra natal. Miseráveis e meio-bárbaros tanto
quanto podem ser, escuros assim como podem ser suas almas, eles ainda têm
sentimentos humanos, e eu não estou de tal modo convencido que eu possa
testemunhar a injustiça de seu tratamento e seu sofrimento, sem compaixão –
sem indignação. Deve ser conhecido em qualquer lugar ( ... )” (NYT, 1854)

Ilustração I
Trabalhadores Chineses Escavando Guano na Ilha Chincha do Meio 16

16
Fotografia por Capitão Spence Merriman Murphy, “As ilhas peruanas de guano setenta anos atrás”.

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Nessa descrição, dois trechos merecem particular atenção. Posto que neles
encontramos ecos de duas concepções a respeito dos chineses, então comumente
difundidas, quais sejam: i. a resistência ao clima e ao trabalho duro e ii. seu estatuto de
inferioridade cultural (mas bem que poder-se-ia aqui também dizer, natural – repare a
associação com os cachorros). Vejamos como aparece a primeira dessas concepções.
Na descrição, “o sol tropical” é então evocado como um elemento
constantemente presente. Apesar de dificultar a existência na região – assim como, a
quase completa, ausência de chuvas –, aos chineses aparentemente parece não afetar,
visto que estes continuam a desempenhar seu penoso trabalho, seminus. Obviamente,
como bem demonstra o correspondente, tal continuidade era mantida à custa das
contínuas práticas de coerção para eles providenciadas. Por exemplo, menciona o
correspondente: “os capatazes negros [que estavam sempre ali] estacionados entre eles
com correntes pesadas”, os quais não se furtavam em utilizá-los sempre que lhes
conviesse.
A segunda concepção emerge com a aplicação do estatuto de “semibárbaros” a
estes trabalhadores. Tal definição claramente delineava uma profunda distinção cultural,
bem como natural, entre ele, o correspondente, provavelmente “homem branco
civilizado”, e os trabalhadores chineses. Contudo, como reconhece o autor – do alto de
sua distinta posição – nos chineses ainda podia-se perceber a presença de “sentimentos
humanos”, com os quais ele, o correspondente, não podia deixar de se “compadecer –
sem indignação. ”
As condições de vida destes trabalhadores, apresentadas com tanta veemência
pelo jornalista de tendência abolicionista, podem ser ainda melhor vislumbradas e
compreendidas levando em conta o ambiente à sua volta, no qual se desenvolviam suas
atividades de trabalho e vida. Meagher assim o descreve, a partir de inúmeros outros
relatos:
“De acordo com relatos de testemunhas oculáres, a vida do trabalhador
chinês nas ilhas de guano foi um dos tipos mais abjetos de escravidão, pelo
menos durante os anos de 1850 e 1860. As condições climáticas das ilhas
somente fez da habitação humana e do trabalho uma dificuldade real. Um sol
tropical bate nelas praticamente todo o ano. A umidade é alta, e não há água
fresca, além da completa falta de chuva. Assim, não há vegetação de
qualquer tipo. Além de aves e leões marinhos, os únicos outros seres vivos
são insetos parasitas e seus inimigos naturais - aranhas, escorpiões, lagartos e
morcegos. Toda a comida e água potável eram trazidas do continente. Os
chineses, no entanto, complementam seus recursos alimentares, matando
alguns dos pássaros e conservação a carne secando-a no sol.” (COKER,
1920, pp. 537, 559-560)

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Ilustração II
As Ilhas Chinchas, vistas da Ilha Norte17

Quão desesperador não devia ser o cotidiano destes trabalhadores sob o pesado
sistema de exploração em meio a um ambiente tão inóspito e insalubre. O quantitativo
de mortes por completa exaustão, doenças – sendo as mais comuns: diarreia, bronquites
e reumatismos (SILVA, 1992) – e mesmo por suicídio, talvez respondam a esta questão.
Como aponta o jornalista G. W. P., mais de 60 por ano tiravam suas vidas.
Além das ilhas Chinchas, os trabalhadores nos setores de produção agrários da
zona costeira do Peru também foram evocados em outra descrição. Esta fornece um
retrato das condições de vida e de trabalho cotidianas destes homens, bem como a
importância e longevidade da atuação destes trabalhadores nas plantações peruanas,
mesmo após o fim da “Trata Amarilla”. Em carta endereçada ao editor do NYT e
publicada em 16 de setembro de 1878, Henry S. Wetmore apresentou a tradução de um
artigo publicado no Correio Del Peru, em 13 de agosto do mesmo ano:

“O espírito da especulação ao qual o mundo deve tão grande progresso tem,


entre nós, duas manchas indeléveis, a saber, o tratamento dos negros na
época colonial e o tratamento dos chineses, ainda mais infame, durante os
últimos 30 anos. Os negros e os chineses sustentaram os interesses agrícolas
ao longo das nossas costas por aproximadamente 200 anos, dos quais 150
anos foram de escravidão, enquanto que o restante tem sido e é ainda pior do
que aquela.
Geralmente, o negro, quando arrancado de sua casa, trocou um tipo de
escravidão por outra e deixou atrás de si sua vida selvagem na África por um
estado de semi-civilização nas colônias. Seu mestre, seja espanhol ou crioulo,
era como um senhor feudal, que considerava o escravo como uma espécie de
servo, pertencente a ele e seus herdeiros, e, consequentemente, deu a proteção
ao negro e o queria como sua propriedade e família; ele o alimentou bem,
converteu-o ao cristianismo, e tinha interesse na multiplicação de sua espécie.
Os descendentes destes escravos cresceram com os filhos dos seus mestres,
tendo os seus nomes, e embora eles usassem o emblema de servidão
involuntária, eles nunca estavam abandonados sem alguém cuidar deles e
protegê-los. Naqueles tempos, este tipo do mestre não era raro, qual era o do
Conde de Vistaflorida, proprietário da La Hucca, que disse uma vez ao seu
feitor: "O dia em que a minha plantação produzir mais de US $ 6.000 por
ano, eu dispensarei você. Eu sei o que o trabalho dos meus negros deveria me

17
“Vista das Ilhas Chinchas” por Manuel González Olaechea y Franco. 21 de fevereiro de 1863

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trazer. O chinês, ao embarcar a bordo de um dos navios amaldiçoados que o


traz para o Peru, perde a liberdade, a pátria, a família; a possibilidade de ser
um homem, de ter afeto humano; ele deixa de viver e, desde então, só sofre,
vegetando em nossas fazendas, mais degradado do que o negro, porque ele é
mais capaz de sofrer; mais escravo do que fôra o negro, porque ele não cai
nas mãos de um mestre feudal, mas nas garras de um senhorio avarento, o
qual sabe que em virtude dos contratos dos coolies ele pode estar livre no
prazo de oito anos: e nós fazemos [impossível] essa possibilidade de se
libertar, pois há lugares onde os chineses têm sido empregados dos quais
nunca regressaram. Faz quase 30 anos – 1846-1874 – que a China tem
fornecido os nossos campos com trabalho, e faz 30 anos que esses campos
têm sido diariamente encharcados no sangue desses infelizes, que, com fome,
seminus, marcados pelo chicote, ulcerados em suas próprias almas, têm razão
para perguntar se existe um Deus; e faz 30 anos que suas queixas não têm
sido ouvidas, exceto pelo ex-presidente Pardo, que, se não me engano,
nomeou uma comissão em 1874 para verificar se as supostas crueldades
monstruosas praticadas por certos fazendeiros eram verdadeiras. Esta
comissão realizou pouco e relatou menos ainda. Com exceção dessa tentativa
humana, o chinês até agora não teve o mínimo de proteção. A única ação na
forma de protesto que qualquer um desses pobres infelizes teve foram dois ou
três motins, que tornaram amarga sua condição, ao passo que eles deveriam
se rebelar em massa. Não há exagero no que escrevo. Cada acusação, e
cobrança, apesar de obscuras e proibidas não seriam suficientes para
descrever em sua verdadeira cor a condição dos chineses no Peru, e com
exceção daqueles na plantação de Puente, aqueles em propriedades do Señor
Unanuó, e dois ou três outros, pode-se dizer que o resto está sujeitos a um
destino ao qual aquele da galera dos escravos é um paraíso. O chinês é
colocado para trabalhar a partir das 4:00 da manhã até às 6 da noite, (as duas
horas permitidas a eles, entre as 11:00 a.m. às 13:00 p.m., para preparar sua
comida, sob o sol escaldante da nossa costa, não pode ser considerado um
descanso) a ele é permitida uma ração de arroz, a qual é insuficiente para
restaurar a sua força; a ele é pago um solário de papel por semana pelo seu
trabalho, quando a ele é pago tudo; o tempo perdido em caso de doença é
descontado de seu salário, à taxa de um real por dia; ele é chicoteado, se ele
não cumprir a sua tarefa; ele é preso, se ele busca a sua liberdade; eles o
matam, eles o queimam vivo ou morto. São exageros? Não. A bordo do navio
que os trazem para o Peru o comprador de chineses tem marcado seu gado
com cáustico para distingui-los de outros lotes. E apenas os cadáveres de
chineses que foram queimados? Pergunte aos moradores de San Pedro para
responder a pergunta. ” (NYT, 1878)

Como esclarece o articulista, as condições humanas de existência eram-lhes, no


mais das vezes, negadas. Mesmos os atos de resistência – como motins, fugas e mesmo
o suicídio – ao que tudo indica tinham pouco efeito prático no sentido de amenizar-lhes
as dores. No mais das vezes, esses atos as intensificavam devido à repressão sistemática
promovida pelas forças patronais (em muitos casos, juntamente com o aparelho
repressivo do Estado, posto a seu serviço).
Nesse sentido, as pontuais intervenções externas por parte do governo chinês, a
partir de 1874, tiveram pouco efeito transformador na vida dos trabalhadores chineses
em solo peruano. O que viria a ser comprovado mais de uma década depois. Em 1887, o
governo chinês impelido por uma nova onda de crítica e pelas novas circunstâncias de
sua política interna e externa, organizou uma comissão de verificação da condição de

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vida de seus cidadãos em terras peruanas, como previsto no Tratado de Tientsin. Esta
comissão produziu um material inflamável para os debates internacionais que
confirmavam não só a permanência destes trabalhadores no país, como a continuidade
das irregularidades e atrocidades cometidas.
A partir da segunda metade dos anos 1880, a crise deflagrada pela Guerra do
Pacífico representou, não só para os setores produtivos, como nos âmbitos políticos e
sociais, uma nova etapa de inserção e acomodação para os chineses em meio à
sociedade peruana. Com a desarticulação das atividades produtivas do campo e a
confluência de trabalhadores das zonas serranas para a costa (efeito do conflito, antes
mencionado) ocorreu um deslocamento campo-cidade dos trabalhadores chineses.
Nas cidades, a busca por novas formas de inserção social e produtiva, como
demonstra Katalin Jancsó, juntamente com o desembarque de novas levas de imigrantes
chineses (estes em nova condição institucional no início do século XX), permitiu aos
antigos trabalhadores sobreviventes constituírem e consolidarem novos grupos de
sociabilidade e a ampliarem seu campo de participação social, econômica e política em
meio à sociedade peruana. Como ela bem sintetiza:

“O aparecimento dos chineses nas cidades abriu uma nova página na história
da colônia. Seu anterior caráter rural desapareceu, os ex-culis se dispersaram
nas cidades e em outras zonas da costa. Iniciaram novas atividades no
comércio e na prestação de serviço para satisfazer as necessidades da
sociedade peruana em um período de modernização. Ademais de administrar
fumadores de ópio, casas de jogo e dirigir grandes casas comerciais e teatros,
os membros da colônia trabalhavam como comerciantes, açougueiros,
sapateiros, padeiros, cozinheiros, serventes domésticos, varredores,
vendedores de ervas, abriram pequenos negócios, como entalhadores
artesanais, tiendas, pequenos restaurantes, etc. (Corilla Melchor, 185). Nos
primeiros anos do século XX, até 1909, experimentou-se uma nova onda de
imigração esta vez de caráter livre. Os imigrantes se concentraram no
Departamento de Lima, onde nesses anos surgiu e se enriqueceu a elite
chinesa. Nasceu o bairro chinês na zona do Mercado Central (7% da
população deste distrito era da raça amarela em 1908) [...]. Em 1886,
fundaram sua primeira organização a Sociedade de Beneficência Chinesa.
Desde esses tempos em diante, a colônia tratou de alcançar uma
consolidação, e não só criaram redes de comércio, assim como também
centros sociais em várias zonas do país até alcançar certa presença inclusive
na política. Um exemplo sobressalente foi no Departamento de La Libertad,
onde criaram templos religiosos, partidos políticos, Cruz Vermelha Chinesa e
um colégio para sino-peruanos (Morimoto 119-124). Nos primeiros anos do
século XX, os sino-peruanos fundaram dois periódicos, La voz de la colonia
y Man Shing Po, criaram seu próprio clube de ténis e, para 1920, já existiam
cerca de trinta associações políticas e irmandades. ” (2015, p.6 )

Ao longo do século XX, a colônia chinesa do Peru ainda teria que superar
muitos outros episódios deste drama de amargas experiências e de perdas

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(des)humanas. Um crescente sentimento anti-chinês e o surgimento de movimentos


sociais organizados contra a sua presença em solo nacional – distribuídos em várias
camadas da população – levou os chineses a articulações e a negociações complexas em
meio àquela sociedade. Uma continua luta pela abertura de novos espaços de inserção e
de atuação, bem como de restruturação de seus novos projetos de vida.

REFERÊNCIA BIBLIOGRÁFICA
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COKER, Robert. “Peru's Wealth-Producing Birds”, 537, 559-560. Et. “Habits and Economic
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New York Times. “Letter from the Chincha Islands”, 07.01.1854.
New York Times. “Coolie Labor in Peru”, 16.09.1878.

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SIMPÓSIO TEMÁTICO 02
PROTAGONISMOS INDÍGENAS NA
HISTÓRIA E ENSINO DA TEMÁTICA
INDÍGENA

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DA INVISIBILIDADE AO RESSURGIMENTO: O PROTAGONISMO DOS


ÍNDIOS XUKURU-KARIRI EM PALMEIRA DOS ÍNDIOS/AL

Mary Hellen Lima das Neves


Mestranda em História
Universidade Federal de Alagoas – UFAL
e-mail: maryhellenlima@hotmail.com

Resumo: Os séculos XX e XXI tornaram-se marcos para os povos indígenas, pois


possibilitaram sua visibilidade e consequentemente mobilizações em todo o Brasil. O
texto apresentado tem como breve finalidade evidenciar os indígenas Xukuru-Kariri que
habitam o município de Palmeira dos Índios/AL e suas estratégias de resistência em
frente às inúmeras tentativas dos posseiros em marginalizar e desconsiderar os
protagonismos dos citados indígenas. Como suporte teórico utilizaremos alguns
referenciais específicos sobre o povo Xukuru-Kariri, como é o caso de Adelson Lopes e
Aldemir Barros que abordaram aspectos socioculturais do cotidiano e os processos de
territorialização vivenciados pelos Xukuru-Kariri, além de outros autores que discutiram
sobre os povos indígenas no Nordeste e no Brasil, como Edson Silva, João Pacheco,
Maria Regina Celestino, entre outros. Onde por meio de novas perspectivas de análises,
evidenciaram os povos indígenas como agentes históricos que se mobilizam para
conquistarem e afirmarem direitos sociopolíticos.

Palavras-Chave: Estratégias. Indígenas. Mobilizações.

Silenciamento e invisibilidade: imposição e estratégia


Os indígenas Xukuru-Kariri tem como trajetória um processo histórico intenso,
de um lado a negação da sociedade circunvizinha e conflitos territoriais, de outro lado a
constante mobilização por parte do próprio povo indígena por afirmação étnica e pela
retomada de seus territórios. Meados do século XX é registrado por memorialistas
locais como um marco histórico para os Xukuru-Kariri, pois é o período que conseguem
alcançar resultados positivos em meio a anos de mobilização por seus direitos
sociopolíticos.
Neste texto especificamente dividiremos este processo histórico em três
momentos, o primeiro tratará sobre a invisibilidade imposta aos indígenas e seu silêncio
como estratégia de resistência; o segundo tratará da emergência étnica, também
estudado como ressurgimento dos indígenas, por meio dos órgãos oficiais brasileiros,
nesse caso o Serviço de Proteção ao Índio; o terceiro engloba um momento mais
recente, evidenciado aqui como protagonismo dos indígenas Xukuru-Kariri que vivem
no município de Palmeira dos Índios/AL, mais especificamente os que habitam a Aldeia
Indígena Mata da Cafurna.

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No município existem 08 aldeias reconhecidas pela FUNAI, que são a Fazenda


Canto, Mata da Cafurna, Boqueirão, Cafurna de Baixo, Serra do Capela, Serra do
Amaro Coité e Riacho Fundo e 02 em processo de reconhecimento, tanto oficial, quanto
pelos próprios indígenas, que são a Fazenda Jarra e Fazenda Vista Alegre, esta última
não se identifica como Xukuru-Kariri, e sim como Xukuru-Palmeira1.
Através do contato entre dois povos, os Xukuru e os kariri, os primeiros vindos
de Pesqueira-Pernambuco e os segundos de Porto Real do Colégio-Alagoas, ambos
fugindo dos conquistadores evadiram-se das costas litorâneas e adentraram cada vez
mais os sertões2, possibilitando em meados do século XVIII o encontro e posterior
junção destes povos, tornando-se a partir de então os Xukuru-Kariri.
Na historiografia os Xukuru-Kariri são citados em diversos momentos, em
documentos da Província de Alagoas, em relatórios intitulados “Aldeamentos
Indígenas: Usurpação terras dos índios” ou Indígenas: Preconceito e Antipatia” ambos
datados em fins do século XVIII e em estudos como é o caso de Carlos Estevão, além
do apoio do religioso Padre Alfredo Dâmaso.
Nestes relatórios Palmeira dos Índios se incluía como município que tinham
como parte de sua população indígenas que viviam em seus respectivos aldeamentos,
como demonstra a tabela,

(I.H.G.A.Arquivo de Documentos.Cx.08.Pac.03.Doc.30.1853)

1
A Aldeia Xucuru Palmeira não é reconhecida pelos indígenas, pois seus habitantes não são considerados
índios Xukuru-Kariri. Também por naquele local habitar indivíduos que tiveram conflitos internos com os
indígenas nas aldeias reconhecidas.
2
Denominação dos colonizadores as regiões ainda não desbravadas, consideradas incivilizadas, opostas
ao litoral.

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O século XIX se deu para os índios que habitavam Palmeira dos Índios, como
contexto de conflitos territoriais, perseguições e muita violência; mulheres indígenas
foram estupradas, os homens foram viciados com cachaça, todas estas ações com o
interesse de invisibilizar, inferiorizar o índio e consequentemente negar sua existência,
dados como este acima, retratam um período muito tenso, ainda anterior ao processo de
extinção dos aldeamentos, determinado pela lei de terras em 1850, que só passou a
vigorar em Alagoas a partir de 1872,
A partir daí os Xucurus e kariris começaram a sentir o peso das convenções
dos brancos e a respeitar as leis emanadas, caso não quisessem sofrer castigos
severos. Se oferecessem resistência seriam dizimados completamente, se
concordassem, desapareceriam lentamente por assimilação prejudicial à raça,
cruel dilema. (TORRES, 1984: p 30)

Ainda neste processo de imposição e posterior invisibilidade, nacionalmente o


SPITLN3 que anos depois tornou-se apenas SPI, órgão oficial que tinha como principal
objetivo transformar o índio em pequeno produtor rural, capaz de sustentar e integrar o
mercado nacional de mão de obra. Nesse sentido, a ação e estratégia do órgão estava
marcada por uma visão do índio na ideia de transitoriedade, segundo o qual o índio era
um estado que precisava ser superado (ARRUTI, 1995, p. 05).
Neste mesmo contexto de imposição e invisibilidade, os indígenas Xukuru-
Kariri conseguiram criar estratégias que possibilitasse, mesmo que temporariamente,
sua sobrevivência em Palmeira dos Índios/AL. Os mesmos se camuflaram na sociedade
local, tornaram-se trabalhadores em diversos setores e passaram a se fixar nas partes
altas da cidade. Também assumiram uma nova identidade, a de caboclos e assim
viveram por anos, até encontrarem situações oportunas para ressurgirem e poderem a
partir de então expressar sua cultura e sua identidade étnica.
O ressurgimento dos Xukuru-Kariri em Palmeira dos Índios/AL
Segundo documentos oficiais em meados do século XX, por volta de 1940, os
indígenas recebem o SPI, este órgão não chega aqui ocasionalmente, mas sim porque
mesmo na invisibilidade os índios se articulavam reivindicando seus territórios e seu
reconhecimento oficial. A instalação de um Posto Indígena (PI) por este órgão consistiu
em uma nova forma organizacional em que várias famílias indígenas, provenientes de

3
Órgão indigenista oficial criado em 1910 no Brasil para ações de assistência aos índios no país, por meio
da instalação de postos indígenas. Em Palmeira dos Índios atuou na compra das terras destinadas a Aldeia
Fazenda Canto entre 1950 e 1953. (BARROS, 2013)

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diferentes localidades, foram reassentadas nessa área (MARTINS apud OLIVEIRA,


1999, p.200).
Em 1952 conseguem o território e também seu reconhecimento oficial perante o
Estado brasileiro, também possibilitou o direito de voltar a viver juntos, realizar rituais
sagrados, manipular ervas para curas de doenças na aldeia, entre outros aspectos.
A Aldeia Fazenda Canto tornou-se o lugar possível, possibilitou uma nova forma
de se organizar, mas sobretudo, significou um marco para os Xukuru-Kariri que
esperavam um momento oportuno para se auto afirmarem como povo indígena.
A limitada extensão territorial de 276 ha, o crescimento populacional e o
surgimento de conflitos internos fizeram com que se solidificasse a urgência em
conseguir mais terras. Dessa forma, os Xukuru-Kariri se mobilizaram para retomar e
reivindicar a demarcação de áreas na região, como informa os documentos da Funai.4
Em 1979 tornou-se público a notícia de negociações para implantação de uma
Universidade Japonesa na área onde atualmente é a Terra Indígena Mata da Cafurna. A
notícia preocupou os índios que solicitaram da Prefeitura a doação do território, com a
alegação de que necessitavam das terras para viverem com mais autonomia,
assegurando sua subsistência; o pedido ainda ganhou reforço na justificativa da
importância ritualística, uma vez que a mata existente no local configura -se como local
para a prática religiosa do Ouricuri, momento sagrado dos indígenas com suas
divindades (PEIXOTO, 2013, p 54).
Assim, um grupo de Xukuru-Kariri estabeleceu-se na Mata da Cafurna
enquanto aguardava o desenrolar das negociações com a Prefeitura. Esta primeira
retomada foi pacífica, a Prefeitura Municipal de Palmeira dos Índios “doou” as terras
para os índios numa quantidade inicial de 117,6 ha e recebeu em troca Cr$ 3.000,000,00
(três mil cruzeiros) da FUNAI, para depois ressarcir aos índios com atendimentos
médicos, o que não ocorreu até a atualidade.
Além do desconforto, conviveram com o medo de não ver o dia seguinte, uma
vez que essas retomadas foram em sua maioria contrárias às vontades de seus posseiros,
o que gerou uma situação tensa e ameaçadora para os indígenas, esse período da
formação da aldeia é uma memória viva nas lembranças e nos relatos daqueles que
viveram esse momento histórico, como fica claro no relato do indígena:

4
Documentos disponíveis no acervo de Luís B. Torres, memorialista palmeirense, pesquisador sobre os
indígenas, que depois de falecido teve seus escritos doados pela família ao Núcleo de Estudos Políticos,
Estratégicos e Filosóficos/NEPEF, Universidade Estadual de Alagoas/UNEAL, Campus III/Palmeira dos
índios.

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[...] eu lembro como se fosse um sonho, lembro que eles se reuniam como a
gente se reúne hoje e decidiram vamos retomar aquela mata, eu sei e lembro
que a minha mãe, meu pai, a mãe dela vinha, meus avós e a gente também
vinha, mas eles tinham aquele cuidado com a gente, e a gente ficava, eles
faziam assim tipo umas ocas, uma baixada, tipo umas mangueiras e eles
ficavam de vigias, eu sei que foi um grande processo, mas eu não posso
contar com muitos detalhes, quem pode contar é os meus mais velhos, mais
eu lembro que foi muita luta, mas graças a Deus nós conseguimos. (Indígena
01)

Relatos como esse nos permite imaginar o quanto foi desafiador para o povo
Xukuru-Kariri retomar um território que tradicionalmente lhes pertencia, mas que foi
esbulhado, obrigando-os com isso a viver na invisibilidade social e silenciamento
discursivo até se considerarem fortalecidos o suficiente para iniciarem a viagem de
volta, em busca da afirmação étnica e da retomada territorial (OLIVEIRA, 2004, p. 92).
Os primeiros habitantes da nova aldeia, a Mata da Cafurna em 1979, foram às
famílias Gomes que tinham migrado das proximidades onde atualmente localiza-se o
Cristo do Goiti, os Santana e também os Celestino vindos da Fazenda Canto. A nova
localidade quando retomada, não possuía estrutura residencial, nem energia elétrica.
Mesmo sem o mínimo de estrutura, os indígenas persistiram, tendo como abrigo
algumas barracas de lona e a sombra de uma jaqueira, árvore até hoje preservada no
pátio da escola na aldeia como símbolo da resistência. Além do desconforto,
conviveram com o medo de não ver o dia seguinte, uma vez que a retomada provocou
intensos conflitos com os posseiros, gerando uma situação bastante tensa.
O território dessa Aldeia era um conjunto de terras em mãos de três posseiros,
Leopoldo Torres, Everaldo Garrote e Pedro Benoni dificultando a retomada daquele
lugar até que veio a público a notícia de negociações para implantação de uma
universidade japonesa naquela área. A notícia preocupou os índios que solicitaram da
Prefeitura Municipal de Palmeira a doação das citadas terras (PEIXOTO, 2013, p. 53).
Os indígenas e suas relações socioambientais
A Terra Indígena Mata da Cafurna é um espaço de Mata Atlântica com 275,6 ha
no interior do estado de Alagoas na região do Semiárido. Com muitas nascentes que
abastecem à bacia hidrográfica local, possui uma fauna e flora considerável, sendo o
local onde os Xukuru-Kariri praticam seus rituais religiosos, aspecto central de sua
afirmação sociocultural. A Mata da Cafurna requer cuidados e a implantação de
políticas públicas que assegurem a continuidade de seus habitantes indígenas com suas
práticas socioambientais.

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Enquanto importância territorial, a Aldeia Mata da Cafurna representa um


lugar que tem significado particular para o povo Xukuru-Kariri, que compreende o lugar
como um espaço onde o cotidiano propicia uma afinidade com a Natureza, uma vez que
as relações socioambientais, para os indígenas, vão além do sentido de posse da terra, da
exploração e da produção agrícola, pois a terra faz parte de seu estado de ser e estar.
Para observar e analisar as relações dos Xukuru-Kariri com a Mata da Cafurna
entrevistamos indígenas que por meio de suas narrativas expressaram aspectos
socioambientais no território onde habitam, em uma perspectiva da história regional. Os
sentidos de Natureza levam em consideração o tempo e o espaço e seus processos
históricos, a partir de interações com a fauna e a flora conectados ao universo simbólico.
A aldeia se constitui de uma área privilegiada cercada de verde presente em toda sua
extensão territorial, sendo atualmente o único espaço de mata atlântica preservado no
município.

Fonte: Neves (2014)

Por conta da localização da aldeia em região serrana, seu clima varia entre
aspectos de Caatinga a Mata Atlântica inseridos em um brejo de altitude no Semiárido
alagoano, pois possui um clima tropical semiárido e mesmo subtropical. “Devido à
elevada altitude cria condições necessárias para uma flora que reúne tanto
características da Mata Atlântica, quanto da Caatinga, contrastando com as áreas

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circundantes que possuem condições climáticas mais secas e estações do ano não muito
bem definidas”. (PORTO; CABRAL; TABARELLI, 2004, p. 16)
A produção agrícola se diferencia em relação ao que tradicionalmente é
cultivado no município. Milho e feijão, por exemplo, não são cultivados porque não
resistem ao frio das cercanias da mata, em contrapartida há uma produção de bananas
em larga escala para o consumo interno e para o abastecimento do comércio local, o que
também acontece com a produção de legumes, verduras, batata doce e mandioca. Há
também o artesanato que é confeccionado pelos indígenas a partir da matéria prima
fornecida pela mata. Além das terras férteis, a água cristalina e o clima serrano fazem
com que a vida na aldeia seja uma atividade pacata e saudável, bem distante do que se
observa nas cidades.
Para os habitantes na Mata da Cafurna, retomar a terra indígena foi importante
em vários sentidos, primeiro por que se mobilizaram, resistiram e conseguiram; segundo
porque foi possível cuidar do Ambiente, “segurar o que tinha” desde animais como
paca, veado, serpentes, aves, como pensar em reflorestamento ou pelo menos ações que
minimizassem os danos ao Ambiente, desde então a ações do IBAMA que soltam
animais recuperados para que possam se reintegrar ao seu meio natural, além de
fiscalizações contra a caça e o desmatamento.
Segundo o indígena Xukuru-Kariri Lenoir Tibiriçá5:
Quando nós chegamos na terra, a terra só tinha mata, muita jaqueira, tinha
café, tinha banana, e ainda hoje ela é uma área com muita água, hoje a gente
não planta mais banana, naquela época de 79 até 90 a banana, a macaxeira
era muito presente, hoje pessoas que produziam negócio de um caminhão,
hoje não tá produzindo mais nada. A Mata da Cafurna foi uma questão de ser
preservada como mata, a nossa cultura, nossos animais e até mesmo as
plantas medicinais, plantas que hoje não existem mais e plantas nativas que
ainda existem né? Por que muitos já se foram que nem o juazeiro, a braúna, e
a quixabeira, todos desapareceram, essas madeira a aroeira, tudo madeira de
serventia de fazer casa e também ter o próprio remédio de inflamação e
muitas outras coisa.
O entrevistado narrou como foi retomar a Mata da Cafurna descrevendo as
relações dos indígenas com o Ambiente e como acontecem atualmente. Segundo ainda o
entrevistado, as produções agrícolas que não existem mais, foi porque os antigos
posseiros não produziam alimentos, criavam gado e depois da retomada também não

5
Liderança da Aldeia Mata da Cafurna. Entrevista realizada em Palmeira dos Índios/AL em 27/05/2017.

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havia um consenso dos indígenas quanto ao tratamento com a Natureza. Situação que
segundo o entrevistado melhorou bastante, principalmente em referência ao
desmatamento e a caça, atualmente proibidos e combatidos com veemência no território
indígena.

Posto de Saúde
A farmácia existente na aldeia faz parte de um Posto de Saúde da Família-PSF,
gerenciado pelo município, com recursos federais do Ministério da Saúde, mas não há
uma regularidade no atendimento. O posto fica fechado a maior parte do tempo.
Um elemento de suma importância na aldeia é a prática fitoterápica que é
passada de geração em geração. Essa sabedoria tradicional, liderada pelo pajé e pelas
benzedeiras tem sido sustentáculo da Cultura indígena que consegue curar várias
doenças que acometem cotidianamente aquela comunidade. Essa sabedoria é
responsável pelo elo muito forte entre os indígenas, Natureza e seus recursos naturais,
de modo que plantas são cultivadas na mata e nos jardins das casas na aldeia.
Outro aspecto a ser considerado é que com a prática fitoterápica, o consumo de
medicamentos industrializados não é tão alto, de modo que a falta de medicamentos no
posto, não chega a afligir os habitantes, com exceção dos remédios para tratamento de
doenças crônicas.
A Escola
A Escola Estadual Indígena Mata da Cafurna funciona nos horários matutino e
vespertino, atendendo a alunos do 1º ao 5º ano do ensino fundamental, os professores
são indígenas contratados pelo estado. Em sua matriz curricular, além das disciplinas
obrigatórias é acrescentada a educação escolar indígena, onde professores e anciãos
relatam histórias de lutas e desenvolvem oficinas que preparam as crianças a crescerem
conhecendo, admirando e principalmente vivenciando sua cultura. A escola atende uma
média de 136 alunos e conta com quadro de 06 professores, 04 funcionários, além de
atender as comunidades circunvizinhas. A estrutura da escola é boa, possui 02 salas de
aula, 03 banheiros, 01 sala de informática, 01 diretoria, 01 cozinha, 01 almoxarifado, 01
biblioteca e 01 pátio espaçoso, tem atualmente como diretora a Professora Tânia
Santana e uma coordenadora pedagógica. No turno noturno acontecem às atividades do
programa Mais Educação, de iniciativa do governo federal, e a Educação de Jovens e
Adultos, EJA, em seu primeiro módulo.
Lagoa dos Pagãos e Barragem

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A lagoa dos pagãos é um dos espaços sagrados, localizada na entrada da aldeia,


foi um dos últimos espaços a serem retomados para a formação que hoje compõe a Mata
da Cafurna. Atualmente encontra-se desativada, pois seu paredão rompeu-se há alguns
anos e não foi feita a reparação necessária devido ao alto custo da obra.
A aldeia também conta com uma barragem que nos anos de 1940 abastecia a
cidade de Palmeira dos Índios até o final dos anos de 1960 quando essa função foi
substituída pela Companhia Alagoana de Saneamento e Abastecimento – CASAL, a
barragem possui 1000 metros de comprimento e 50 metros de largura, e possui 13
metros em seu ponto de maior profundidade, ao seu redor a presença de árvores
contribui para deixar o espaço ainda mais bonito e ecologicamente sustentável.
Apesar do grande volume de água, esta barragem não gera renda aos indígenas,
houve a tentativa de criar peixes, mas segundo os índios, “a água recebe pouca luz, é
muito escura e os peixes não crescem, adoecem e morrem”. Mas, em seu entorno cresce
uma vegetação de junco que é usado para produção artesanal de cestos e esteiras, além
de irrigar as plantações ao redor. Como ressalta o pesquisador, a presença da barragem é
dadivosa para a aldeia e por algum tempo ameaçadora para a cidade que se localiza a
poucos quilômetros, e que se houver rompimento do paredão, poderia ter parte de suas
casas destruídas (PEIXOTO, 2013, p.55)
A imagem a seguir traduz um pouco da beleza da barragem situada no coração
da Mata da Cafurna.

Fonte: Neves (2014)

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A barragem que é tão importante para a aldeia apresenta as marcas de mais de


50 anos sem manutenção ou reparos, há uma ameaça de rompimento a cada inverno. Em
2009 foi o último ano que a barragem foi esvaziada, numa ação conjunta da Prefeitura e
Defesa Civil, mas não foram feitos os reparos necessários e prometidos.
Terreiro do Ouricuri
Desde a chegada dos europeus e, mais tarde com a chegada dos Jesuítas,
desprezou-se a cultura indígena. Foram desrespeitados, depois perseguidos, sendo
banido qualquer tipo de crença que partisse deles. Com o passar do tempo os Jesuítas
notaram que os nativos conservavam seus valores e tinham sua própria fé, no entanto
disseram que era uma crença muito confusa e cheia de erros, por isso a intenção de
catequizá-los, sendo que a intenção era torna-los cidadão súditos da Coroa.
Junto com a catequização veio à proibição da língua por eles falada, somente
sendo permitida a língua dos homens brancos, também a proibição da prática dos
rituais; só houve tolerância para a ingestão de ervas e para os torés, que muitas vezes
eram executados durante as missas. Por parte dos índios em alguns casos como
estratégia de resistência, em outros como assimilação, houve o culto aos santos em
especial a Virgem Maria, algumas comunidades se envolveram fortemente e
converteram-se a fé católica, porém alguns índios jamais se converteram totalmente, uns
até simularam aderir ao Cristianismo e permaneceram praticando seus ritos religiosos e
cultuando suas divindades sigilosamente.
Com os Xukuru-Kariri a situação não foi diferente mesmo na invisibilidade
social, com muitos índios vivendo nos subúrbios da cidade, mesmo assim continuavam
realizando seus rituais, em alguns momentos usaram caixas de fósforo para substituir o
maracá e evitar que o seu som atraísse o opressor (BARROS, 2013, p). Fizeram tudo o
que foi possível para não se distanciarem bruscamente de sua cultura e sua
religiosidade, mas alguns elementos, como o linguístico, não puderam continuar sendo
expressados.
Os eventos do ritual denominado de Ouricuri são privados e restritos aos
Xukuru-Kariri, nele os participantes buscam fortalecimento e iluminação para as ações e
decisões da vida cotidiana. É um momento de contato com as suas divindades
encantadas que lhes possibilitam cura, purificação física e espiritual.
O espaço onde é o terreiro do Ouricuri, ritual mais importante para os povos
indígenas, localiza-se estrategicamente na mata existente na aldeia, local restrito,

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liberado apenas para os índios que seguem a risca os critérios por eles mesmos
definidos, sendo proibido inclusive para os não índios, mesmo que sejam casados com
indígenas.
A Mata da Cafurna é importante para todas as famílias que lá vivem, marcada
como aspecto identitário, por se tratar de um espaço em contato com a natureza. Além
de ser um ambiente que possibilita aos indígenas afirmarem-se enquanto agentes
políticos com direitos às diferenças socioculturais (SILVA, 2012, p.218). Quem vive na
aldeia diz não existir lugar melhor e mais agradável para viver, como afirma um
habitante da aldeia:
[...] A mata é o pulmão de Palmeira dos Índios, foi um lugar que nos permitiu
conservar nossa cultura, nossa religião, por que pra nós é vivo ainda,
entendeu? Por que tem assim a forma da gente, a forma que a gente não pode
dizer que pra nós é considerado vivo, que tá presente no meio da gente, de
nós indígenas, que se não fosse a aldeia a gente não podia fazer, viver só com
a presença de nós índio. (Indígena 02)

Todos estes espaços apresentados unem estruturas física e simbólica presentes


no território Xukuru-Kariri e culminam com o uso deste Ambiente e de seus recursos
naturais, tendo como componente primordial o território em si, consequentemente a
preservação da mata e seu uso consciente fazem parte dos saberes e fazeres de seus
habitantes, sendo consenso entre eles o uso sustentável. Ao longo da História, as
relações dos seres humanos com a Natureza foram marcadas pela elaboração de técnicas
utilizadas para a sobrevivência, modificando o Ambiente, interferindo também na
própria forma da existência humana (DUARTE, 2005 apud OLIVEIRA, SILVA, 2015).

É nesse sentido que a Aldeia Mata da Cafurna deve ser considerada, a partir de
suas experiências históricas, por meio das vivências cotidianas de seus habitantes para
construírem sua própria história, através de aspectos socioculturais e ambientais
evidenciando a identidade indígena no espaço natural, tendo o Ambiente enquanto lugar
simbólico e de reafirmação sociocultural, ou seja, expressando as relações
socioambientais tornando visível a importância deste território para os indígenas e para
o município como um todo.
São estas práticas que fazem da Aldeia Indígena Mata da Cafurna o lugar
almejado e retomado por seus habitantes, pois inseridos neste território os indígenas
continuam desenvolvendo práticas cotidianas a princípio sem nenhuma importância
maior, no entanto permanecem dinamizando e tornando ainda mais admirável esta
relação do índio ao Ambiente e o uso dos recursos naturais ofertados por este ambiente.

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Sendo este território, condição primordial para a continuidade desta cultura plural e tão
cara a todo o município, mesmo que assim não percebam.
O uso das plantas pelos indígenas ocorre até os dias atuais, mesmo com as
mudanças climáticas, assumindo uma importância tanto ritualística, quanto terapêutica,
evidenciando cada vez mais a identidade dos povos indígenas. Além desta relação
mística dos indígenas com a Natureza e com o território onde vivem, existem as
expressões socioreligiosas característica primordial entrecruzada nas relações com o
Ambiente.
Dentre todos os espaços apresentados aqui, um deles prevalece, uma vez que se
ele não existisse as demais práticas não poderiam existir, o território, sem o acesso as
terras tradicionalmente habitadas pelos indígenas a sociodiversidade seria impossível de
concretizar-se, pois a terra é a condição para estas expressões socioculturais tomarem
forma. Mesmo diante de todas as dificuldades ainda enfrentadas pelos habitantes da
Mata da Cafurna, é extremamente importante resistir nesta terra, expressando sua
diversidade cultural, estabelecendo um elo muito forte com o Ambiente, não no sentido
capitalista, mas no sentido de ser e pertencer.
História e Antropologia: interdisciplinaridade e protagonismo
Após constituir-se como disciplina a Antropologia demonstrou interesse
científico em estudar a origem das sociedades, paralelo a este interesse a História
também quis contribuir e ser parte deste avanço científico. A Antropologia desenvolveu
a etnografia6 e a etnologia7 e estudava temas relacionados ao cotidiano de grupos
sociais. Enquanto que os historiadores mesmo sem a intenção reforçavam o discurso
assimilacionista e quando direcionavam os índios a um tempo histórico, este tempo era
sempre o passado. Estes estudos caminhavam por perspectivas de que tais sociedades
tinham culturas fixas e estavam em processo de extinção étnica, desconsiderando seus
processos históricos e fortalecendo assim o discurso do colonizador.
Em fins do século XX, tanto antropólogos, quanto historiadores sentiram a
necessidade de revisionar as produções historiográficas existentes, pois ao invés de
terem se extinguido, aqueles povos indígenas haviam se multiplicado, desmontando
todo um discurso intencional, era o momento de repensar conceitos e estruturas de
análises dando aos indígenas um lugar na história do Brasil. Mundialmente a ideia de

6
Os passos iniciais para desenvolver a pesquisa de estudos sobre os grupos sociais.
7
Um ramo da Antropologia com um nível de mais profundidade e considerações mais fundamentadas no
que se referissem a estas relações socioculturais.

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interdisciplinaridade vinha se tornando mais possível, o que certamente contribuiu para


aproximação entre História e Antropologia.
Estes estudos contribuíram para os indígenas, pois evidenciaram as
transformações históricas, de invisibilizados a agentes históricos, de grupos exóticos
tratados com indiferença e preconceito, a grupos reconhecidos enquanto possuidores de
direitos (ALMEIDA, 2010, p. 21).
À medida que o índio foi se tornando objeto de pesquisa, ampliou-se o campo de
estudos e a ideia de história local e memória. No Nordeste, o pesquisador (ANTUNES,
1973) que se tornou referência na pesquisa sobre povos indígenas, especificamente os
Xukuru-Kariri, em 1965, quando realizou pesquisa de campo em terras indígenas com o
fim de compreender e descrever seus modos de vida e seus direitos às terras
tradicionais, ampliou o foco para as questões comportamentais, sociais, políticas,
econômicas e religiosas dos indígenas, possibilitando que outras pessoas, em épocas
posteriores viessem a ampliar a discussão e a contribuição literária pela temática.
Muitos de nós fomos ensinados a pensar o índio como um ser primitivo, com
os corpos nus, adornados com penas, sementes ou simplesmente pintados, sendo
diariamente estimulados por uma produção cultural e literária. Certamente muitos deles
podem ter vivido assim, no entanto sua cultura, que é dinâmica, passou por
transformações que em nada alterou sua identidade étnica.
A partir do reconhecimento constitucional aos indígenas, o processo de
emergência étnica tornou-se possível, o que justifica as mobilizações na busca pelo
direito ao tratamento diferenciado, o direito de se expressar socioculturalmente, além do
direito as terras, assim como os demais grupos sociais, como cita o indígena8:
[...] o preconceito não vem de agora, ele é passado de geração em geração. O
não índio, ele vê o índio como um ser inútil, que é inútil, que não tem que
“evoluir” pra canto nenhum, ele tem que ser aquele mesmo índio de muitos
tempos atrás, ele não pode “preservar” mais a sua cultura e ao mesmo tempo
querer conviver com as tecnologias, por exemplo. (Indígena 03)

Durante as idas a aldeia é comum entre os Xukuru-Kariri relatos semelhantes a


este, uma vez que parte da sociedade palmeirense, não economiza em falas agressivas e
atos preconceituosos contra os indígenas.
Considerações finais

8
Os indígenas entrevistados solicitaram que não tivessem seus nomes revelados, pois os mesmos têm
medo de represálias, respeitando suas vontades os enumerei de 1 a 3 e citando-os nesta mesma ordem no
decorrer do texto.

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Como vimos, o ato de mobilizar-se sempre foi uma constante para os povos
indígenas no Brasil, Nordeste, Alagoas e neste caso específico em Palmeira dos Índios,
buscar direitos, ter visibilidade só foi possível a partir desta ação permanente que
tempos depois tem evidenciado os Xukuru-Kariri como protagonistas de sua própria
história.
Os séculos anteriores, embora tenham sido claramente mais difíceis, foram
imprescindíveis para que fosse possível alcançar este protagonismo na atualidade.

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Flamarion; VAINFAS, Ronaldo. Novos domínios da História. Rio de Janeiro,
Campus, 2011, p. 151-168.
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territoriais Pankararu. Rio de Janeiro, UFRJ/Museu Nacional, 1996 (Dissertação
Mestrado em Antropologia).
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EMERGÊNCIA ÉTNICA E REORGANIZAÇÃO SOCIAL DO POVO XUKURU-


KARIRI EM PALMEIRA DOS ÍNDIOS/AL

Brunemberg da Silva Soares


Mestrando em História
Universidade Federal de Campina Grande/UFCG
brunemberg@hotmail.com

Prof. Dr. Edson Hely Silva (orientador)


edson.edsilva@hotmail.com

RESUMO: Este texto tem como objetivo discutir o processo de emergência étnica do
povo indígena Xukuru-Kariri, habitante no município de Palmeira dos Índios/AL,
considerando suas resistências diante das perseguições e espoliações territoriais que lhes
foram impostas a partir da chegada de colonos ao “Aldeamento da Palmeira” no final do
século XVIII, que resultou na extinção do aldeamento e no silenciamento desse povo.
Nossas reflexões baseiam-se em análise documental, a exemplo da petição de terras
feita pelos Xukuru-Kariri, no ano de 1822 e os desdobramentos desse requerimento,
documentos e escritos sobre a fundação da Fazenda Canto, primeiro aldeamento que
marcou historicamente a reorganização do povo esbulhado de suas terras nos séculos
XVIII e XIX, além de pesquisadores que se dedicam especificamente ao estudo do povo
Xukuru-Kariri e outros autores vinculados a história dos índios no Nordeste.

Palavras-Chave: Emergência Étnica. Fazenda Canto. Movimentos Indígenas.

Considerações Iniciais

A história do povo indígena Xukuru-Kariri, habitante no atual município de


Palmeira dos Índios, é uma história de luta e resistência diante de conflitos territoriais
que duram mais de 200 anos. Não se sabe o ano exato da fixação dos povos Xucuru e
Kariri nas terras que vieram a compor o referido município, embora a documentação
consultada durante a pesquisa sugira que a migração desses dois povos para essa
localidade tenha ocorrido na década de 1740.

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Segundo o documento intitulado História da Palmeira1, escrito pelo Vigário de


Maia Mello, pároco de Palmeira de Índios entre 1847 e 1899, também sócio
correspondente do Instituto Histórico e Geográfico de Alagoas, no ano de 1740, índios
do povo Xucuru, vindos da Aldeia de Cimbres do alto Sertão de Pernambuco, e índios
do povo Kariri, vindos da Aldeia do Colégio do Rio São Francisco, se estabeleceram
nas terras que atualmente fazem parte do referido município.
De acordo com a traição dos Xukuru-Kariri2, os dois povos se fixaram nessa
localidade, tendo os Kariri se estabelecido nas serras ao norte do vale que atualmente
abriga a cidade de Palmeira e os Xucuru na entrada da Serra da Cafurna, deste modo,
quando os Kariri desciam das serras, principalmente da Serra da Cafurna, em direção à
povoação que se formava com a chegada de colonos, visitavam os índios Cariri e muitas
vezes dormiam em suas casas. Os dois povos foram se aproximando a partir de
casamentos entre membros e com o tempo todos os índios locais passaram a ser
reconhecidos pela população não indígena como Xukuru-Kariri.
Nascida de um aldeamento indígena, a cidade de Palmeira dos Índios se
construiu em terras disputadas, sendo sua história influenciada por esses conflitos.
Pesquisar sobre a história dos Xukuru-Kariri em Palmeira dos Índios significa analisar
uma trajetória marcada por conflitos territoriais que também permeiam a formação e
desenvolvimento da cidade, estando assim ligada a questões culturais, sociais e
econômicas. Nesse sentido, este estudo se propõe a analisar as estratégias e formas de
resistência adotadas por esse povo diante de duas situações distintas e distantes
temporalmente, porém que fazem parte do mesmo processo de luta por território e pela
afirmação étnica desse povo indígena.

Breve histórico e cronologia de Palmeira dos Índios

As terras que atualmente formam o município de Palmeira dos Índios faziam


parte da Sesmaria de Burgos, com limite de 30 léguas, concedida pelo Governador

1
Documento denominado “História da Palmeira”, escrito pelo Vigário José de Maia Mello – Pároco de
Palmeira dos Índios de 1847 a 1899. IN: ANTUNES, Clovis. Wakonã-Karri-Xukuru: aspectos sócio-
antropológicos dos remanescentes indígenas de Alagoas. Maceió, EDUFAL, 1973.
2
Informações coletadas em entrevistas realizadas com índios Xukuru-Kariri pelo antropólogo José
Adelson Lopes Peixoto. IN: PEIXOTO, José Adelson Lopes. Memórias e imagens em confronto: os
Xucuru-Kariri nos acervos de Luiz Torres e Lenoir Tibiriçá. Dissertação (Mestrado em Antropologia)
Universidade Estadual da Paraíba. João Pessoa, 2013.

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Geral do Brasil ao Desembargador Cristóvão de Burgos, no ano de 1661 (ANTUNES,


1973). Em 1712, o Coronel Manoel da Cruz Vilela adquiriu do Capitão Jerônimo de
Burgos, sobrinho do falecido Cristóvão de Burgos, parte das terras da referida
sesmaria3.
No ano de 1773, Dona Maria Pereira Gonçalves (viúva do Coronel Manoel da
Cruz Vilela) e seus herdeiros fizeram uma doação de meia légua de terras, antes
inseridas na sesmaria de Burgos, ao religioso Frei Domingos de São José4 para que
fosse edificada uma capela em homenagem ao Senhor Bom Jesus da Boa Morte e se
erigisse um aldeamento para a catequização dos índios que residiam nas terras dessa
sesmaria5.
Segundo Ivan Barros (1969), o religioso havia feito contato no ano de 1770
com os índios que habitavam a localidade, assim, a partir da citada doação de terras
iniciou o trabalho de catequese. Segundo o documento História da Palmeira6, pouco
tempo depois de Frei Domingos fundar o aldeamento, estava construída a Capela do
Senhor Bom Jesus da Boa Morte e o religioso nomeou Palmeira dos Índios ao
aldeamento, em razão de existirem muitas palmeiras na localidade.
Aos poucos, famílias não indígenas foram habitando nas proximidades do
aldeamento, segundo Luiz Barros Torres (1973), percebendo esse povoamento, o Frei
Domingos resolveu mudar o lugar da igreja, o local escolhido foi o sopé da serra, onde
hoje se ergue a catedral. De acordo com Thomaz do Bom Fim Espíndola, “entre 1778 e
1780 foi construído por aquele frei, um templo na aldeia dos índios e que em 1798 deu-
se a criação da paróquia sendo erecto em matriz nesse mesmo ano o mencionado templo
sob a invocação de N. S. do Amparo” (ESPÍDOLA apud MARTINS, 1994, p. 22).
Assim, foi escolhido um local mais baixo para a edificação da Igreja Matriz, e
Nossa Senhora do Amparo foi selecionada como padroeira da povoação. A planície na

3
Escritura de venda das terras da sesmaria, datada de 1712, transcrita por Luiz Barros Torres. IN:
TORRES, Luiz B. A terra de Tilixi e Txiliá: Palmeira dos índios séculos XVIII e XIX. Maceió: IGASA,
1973.
4
Não foram encontrados documentos que trouxessem informações detalhadas sobre a origem desse
religioso. Contudo, pesquisas recentes, fundamentadas em novas fontes, apontam para a possibilidade de
Frei Domingos de São José ter pertencido à Ordem dos Capuchinhos. FERREIRA, Cosme Rogério.
Palmeira dos Índios: origem e identidade indígena. In: Douglas Apratto (org). Alagoas: a herança
indígena. Arapiraca, EDUNEAL, 2015.
5
Cópia da escritura de doação de terras a Frei Domingos de São José realizada em 27 de julho de 1773.
Fonte: Acervo pessoal de Luiz B. Torres, Núcleo de Estudos Políticos, Estratégicos e Filosóficos/NEPEF,
Universidade Estadual de Alagoas, Campus III, Palmeira dos Índios/AL.
6
Documento denominado “História da Palmeira”, escrito pelo Vigário José de Maia Mello – Pároco de
Palmeira dos Índios de 1847 a 1899. IN: ANTUNES, Clovis. Wakonã-Karri-Xukuru: aspectos sócio-
antropológicos dos remanescentes indígenas de Alagoas. Maceió, EDUFAL, 1973.

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qual foi construída a igreja aos poucos foi povoada por colonos portugueses que foram
delimitando posses e apropriando-se das melhores parcelas do território (PEIXOTO,
2013). Com o passar do tempo, os invasores se apossaram e cercaram todas as terras da
localidade, exceto a meia légua de terras pertencentes, por escritura, a Frei Domingos de
São José.
O número de colonos aumentava e o arraial crescia, “em torno da igreja matriz,
estavam edificados (sic) cerca de oitenta casas e um sobrado, todos de taipa; mas que
diante das palhoças dos índios pareciam soberbas residências” (TORRES, 1973, p. 170).
Em 1829 palmeira foi elevada à categoria de distrito e foi eleito o primeiro juiz de paz
da localidade, a partir dessa elevação, os representantes locais procuraram tornar o
distrito uma vila. Em 1835 essa categoria foi alcançada, criou-se a “Vila Nova de
Palmeira dos Índios”, porém essa posição foi perdida oito anos depois, devido à
episódios violentos entre famílias locais7.
Finalmente, no ano de 1853, Palmeira recuperou a independência, voltando a
ser uma vila e a possuir uma câmara de vereadores8. Após a pacificação entre as
famílias que estavam em sangrenta luta, a vila voltou a prosperar. Em 1872 o Presidente
da Província das Alagoas criou a Comarca de Palmeira dos Índios e em 20 de agosto de
1889 é assinada a lei nº 1.113 que eleva a vila à categoria de Cidade.
A cidade se desenvolveu e os Xukuru-Kariri, primeiros habitantes dessa região,
tiveram suas terras usurpadas e foram obrigados a viver em meio à sociedade não
indígena, silenciando sua cultura, ou a fugir (PEIXOTO, 2013). A história do município
se desenvolveu sem a participação ativa dos índios, que depois da extinção de seu
aldeamento (1872) foram considerados misturados e, portanto, integrados à
“civilização”. Interessados em se apossarem das terras indígenas os “Presidentes de
Província de Alagoas [...] vão se posicionar pela negação da existência de índios
aldeados em suas províncias e para isso, vão se valer de critérios raciais” (SILVA, 2004,
p. 67).

7
Conforme Ivan Barros, conflitos locais culminaram com o assassinato do Padre José Caetano de Moraes
e do Tenente Tavares Bastos, resultando na mudança de inúmeras famílias de grande poder econômico e
político que fugiram da violência instalada na vila. BARROS, Ivan. Palmeira dos Índios: terra e gente.
Maceió: Academia Maceioense de Letras, 1969.
8
Fotocópia do ato de instalação da vila de Palmeira dos Índios, aprovada em 23 de junho de 1853 e
oficializada em 5 de fevereiro de 1854. Fonte: Acervo pessoal de Luiz B. Torres, Núcleo de Estudos
Políticos, Estratégicos e Filosóficos/NEPEF, Universidade Estadual de Alagoas, Campus III, Palmeira
dos Índios/AL.

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Em documento9 datado de 1870, o Sr. Diogo Velho Cavalcanti de Albuquerque


relata: “Conquanto esta Província conte oito aldeias de índios, em nenhuma se encontra
atualmente indivíduos de raças primitivas, mas apenas descendentes seus a que se
agregaram indivíduos de diferentes procedências” (ANTUNES, 1983, p. 69). A
descaracterização dos índios foi utilizada como estratégia para legitimar a expropriação
territorial, negava-se a existência de indígenas nas áreas de disputas fundiárias e assim
fundamentava-se juridicamente a posse.

Os Xukuru-Kariri reivindicam suas terras

Como dito anteriormente, as terras do Xukuru-Kariri foram apropriadas pelos


colonos que migraram para as áreas próximas à igreja matriz do “Arraial da Palmeira”,
só lhes deixando a meia légua de terra que estavam registradas em cartórios – no nome
de Frei Domingos. Além de ter suas terras usurpadas, o índio foi perseguido e alguns
foram mortos, os colonos “julgavam-se no direito de usar da terra e dispor dela como
conquistadores. [...] por três vezes os brancos incendiaram as matas da Palmeira para
desalojá-lo” (TORRES, 1973, p. 67).
Em vista das perseguições, que aumentavam à medida que a povoação se
expandia, a partir de 1821 os índios se organizaram para conseguir terras nas quais
pudessem morar e trabalhar. Utilizando-se de um mecanismo dos brancos (petição), os
Xukuru-Kariri iniciam a luta pela demarcação de terras que lhes pertenciam por direito
secular. Com o apoio dos inspetores de Palmeira, enviaram à Junta Governativa da
Província das Alagoas uma petição requerendo a demarcação de terras nas quais
pudessem “morar” e “trabalhar”10. Segue um trecho do documento:

Dizem os capitães Joaquim José Fernandes alferes José Caetano Moreira,


[...], estes por si e seos subordinados Indios da Aldêa da Palmeira, que
vivendo eles e seos antepassados aldeados naquella Aldêa entre terras da
Matriz e Olhos d'Ágôa á mais de 80 anos, mansa e pacificamente e tendo
feito dita Matriz, cujo Orago há nossa Senhora do Amparo, acontece
presentemente verem-se espoliados em todas as terras por possuidores, talvez
com títulos fictos e sem equivalência à sua possessão e reduzidos ao fim de

9
Relatório sobre a situação dos aldeamentos em Alagoas apresentado à assembleia Geral Legislativa pelo
Ministro e Secretário de estado dos negócios da Agricultura, Comércio e Obras Públicas Diogo Velho
Cavalcanti de Albuquerque, ano de 1870. IN: ANTUNES, Clóvis. Índios de Alagoas: documentário.
Maceió: Imprensa Universitária, 1984.
10
Cópia da Petição feitas pelos índios de Palmeira e seus inspetores no ano de 1822. Fonte: Acervo
pessoal de Luiz B. Torres. Núcleo de Estudos Políticos, Estratégicos e Filosóficos/NEPEF/Universidade
Estadual de Alagoas, Campus III, Palmeira dos Índios/AL.

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não poderem rossar, nem plantarem para sua sustentação, e de seos filhos,
que elles todos vivem do trabalho pela necessidade de sua indigencia, propria
de sua Nassão: Os suplicantes tão bem são Cidadãos e subditos de S.
Majestade e protigidos pela Nasção, e não devem ser espoliados daquela
gleba que escolherão para se aldêarem, como declara Lei de 1° de Abril de
1680, [...].

No requerimento, os índios descrevem, por meio da escrita de seus diretores,


um pouco da sua história na localidade, sua forma de vida e as dificuldades enfrentadas.
Se apresentam como primeiros habitantes da localidade e a sua presença secular e
pacífica é utilizada como fator de fortalecimento da possibilidade de aceitação do
pedido; em contrastes aos “mais de 80 anos” que os índios viveram mansamente
naquelas terras é descrita a espoliação que os homens brancos lhes impõem, se
apossando de suas terras com documentos falsos e nãos correspondentes ao total de
terras por eles ocupadas. Ainda, o pedido é fortalecido com o argumento de que os
índios são também cidadãos e súditos de S. Majestade, tendo, portanto, garantia de
permanecerem aldeados, conforme previa o Alvará de 1º de abril de 1680, que
“confirmado pela Lei de 6 de junho de 1755, firmara o princípio de que, nas terras
outorgadas a particulares, seria sempre reservado o direito dos índios, primários e
naturais senhores delas."11
Assim, em virtude das violentas disputas territoriais que assolavam a região,
“para cessar de uma vez por todas os contínuos ataques e viverem em paz, os
suplicantes e demais índios requerem [...] que lhes dêem (sic) 2.400 braças em
quadra”12. O pedido esclarece que nas 2.400 braças solicitadas serão incorporadas as
1.200 braças pertencentes ao patrimônio da Igreja Matriz. Em 22 de maio de 1822 o
governo da província enviou um ofício13 ao diretor dos índios de palmeira, Diogo José
Pinto Cabral, no qual relatava o interesse em resolver a questão territorial naquela
localidade e pedia para o diretor “constar aos ditos índios que este negócio se acha
presentemente em movimentos”.

11
Ação civil pública do Ministério Público Federal visando a condenação dos demandados à obrigação de
fazer a demarcação física da Terra Indígena Xucuru Kariri. Arapiraca/AL, 16 de outubro de 2013.
Relator: Antônio José de Carvalho Araújo - Juiz Federal. PROCESSO N° 0000475-13.2012.4.05.8001.
Disponível em:
<https://documentacao.socioambiental.org/noticias/anexo_noticia//30271_20150313_145936.pdf >.
Acesso em: 27/06/2017.
12
Cópia da Petição feitas pelos índios de Palmeira e seus inspetores no ano de 1822. Fonte: Acervo
pessoal de Luiz B. Torres. Núcleo de Estudos Políticos, Estratégicos e Filosóficos/NEPEF/Universidade
Estadual de Alagoas, Campus III, Palmeira dos Índios/AL.
13
Ofício remetido ao diretor dos índios de Palmeira, 22 de maio de 1822. IN: ANTUNES, Clóvis. Índios
de Alagoas: documentário. Maceió: Imprensa Universitária, 1984.

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Ainda no mesmo ano realizou-se o trabalho de aferição para a demarcação das


terras, medidas a partir da Igreja Matriz. Porém, o despacho final não foi efetivado com
a mesma competência e diante da lentidão do trâmite do processo e com as dificuldades
para retirar os posseiros das terras indígenas os autos da demarcação só foram
sentenciados em 1861. Depois de 39 anos de trâmite o processo terminou, com vitória
para os índios, finalmente os posseiros foram intimados a saírem das terras indígenas,
mas, “ficou por isso mesmo. Os índios continuaram a ser caçados e mortos” (TORRES,
1973, p.100). Embora o Juiz da Comarca tenha declarado os índios como vitoriosos
nessa questão, ainda em 1822, nenhuma autoridade preocupou-se com a efetivação da
ordem judicial e a sentença não foi cumprida.
O contexto político do arraial e da província não eram favoráveis aos índios, o
apoio ou a oposição à causa indígena variava segundo os interesses daqueles que
ocupavam os cargos de poder. Em 1826, o novo diretor dos índios de Palmeira,
Alexandre Gomes de Oliveira, escreveu ao Governo provincial relatando que esses
índios eram naturalmente preguiçosos e vadios, que viviam unicamente da caça e do
roubo, sendo raros os que plantavam algo e muitos os que se embriagavam
constantemente14. O posicionamento adotado nesse relatório, escrito apenas 4 anos
depois da petição dos índios, exemplifica a existência de opiniões diversas sobre a
questão indígena nesse período. Contudo, nos relatórios posteriores, a posição
predominante entre os diretores foi a de relatar as dificuldades vividas pelos índios, que
plantavam nas poucas terras que possuíam.
Em fala15 dirigida à Assembleia Legislativa de Alagoas, em 13 de julho de
1862, o Presidente da Província das Alagoas, Antônio Alves de Souza Carvalho,
afirmou que a aldeia da Vila de Palmeira dos Índios possuía aproximadamente 120 anos
de existência, sendo o território dos ditos índios “usurpado por intrusos” que se
aproveitam da “condição de mais fracos” na qual aqueles “tem se achado”. Assim,
descreve-os como sendo “dóceis, essencialmente obedientes aos seus superiores
religiosos, e na maior parte, joviais e dados às bebidas alcoólicas”.

14
Relatório do diretor do Aldeamento da Palmeira, Alexandre Gomes de Oliveira, sobre a índole,
costumes e inclinações dos índios dessa localidade, enviado em 26 de novembro de 1826. IN:
ANTUNES, Clóvis. Índios de Alagoas: documentário. Maceió: Imprensa Universitária, 1984.
15
Documento etnológico sobre os índios da província, enviado pelo Bacharel Manoel Lourenço da
Silveira ao Presidente da Província em 1862, citado na Fala dirigida à Assembleia Legislativa das
Alagoas, pelo Presidente da Província Antônio Alves de Souza Carvalho, na abertura da 1ª sessão
ordinária da 14ª legislatura, a 13 de junho de 1862. IN: ANTUNES, Índios de Alagoas: documentário.
Maceió: Imprensa Universitária, 1984.

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Diante dessas constatações, afirma que não lhe parece “prudente” que a tutela
exercida sobre eles seja dispensada, pois esses índios compreendiam “ainda mal seus
verdadeiros interesses” e, portanto, podiam ser facilmente inclinados “para a carreira
dos crimes”. No entanto, diante do cenário de disputas, acirradas com a Lei de Terras de
1850, o discurso que se tornou predominante foi o de que não mais existiam índios na
região. Nas palavras16 de José Bento da Cunha Figueiredo Júnior, Presidente da
Assembleia Legislativa da Província das Alagoas, proferidas em 16 de março de 1870:

Susceptíveis de cultura moral, intelectual e artística, dóceis, pacíficos,


obedientes, aptos para o serviço da guerra, sadios, de boa compleição, os
índios se mostram entretanto, mui propensos à ociosidade e ao uso das
bebidas alcoólicas. Vivendo êles em boas relações com os povoados
circunvizinhos, só há que notar algumas desavenças provenientes de
usurpações ou invasões. [...]. Os que abandonam as aldeias confundem-se na
massa geral da população, e será bem raro encontrar algum que conserve o
tipo primitivo. Parece que já se podiam dispensar os directores, distribuindo-
se aos indios lotes de terras, e vendendo-se os restantes.

Em seu discurso, o presidente descreve os índios como trabalhadores obediente


e sadios que estavam sendo desperdiçados em pequenos aldeamentos, onde se
entregavam à ociosidade e à bebedeira. Recomenda que esses povos não sejam mais
considerados como índios, pois não diferem fisicamente dos não indígenas, mas que se
tornem trabalhadores. Em 1872 foi oficialmente decretada a extinção dos aldeamentos
da Província das Alagoas, suas terras não foram divididas entre os índios, como
recomendava o presidente da assembleia. Segue um trecho do decreto17:

O Presidente da Província autorizado pelo aviso do Ministério dos Negócios


da Agricultura, Comércio e Obras Públicas datado de 17 de junho último, sob
o nº3, declara extintos todos os aldeamentos de índios existentes nesta mesma
Província, ficando incorporadas às terras de domínio público as sesmarias
pertencentes aos referidos aldeamentos, na conformidade do aviso citado, e
determina que neste sentido se espessam as necessárias comunicações às
autoridades competentes, a fim de se tornar efetiva semelhante providencia.
(SILVA, 2004, p. 72)

Como previa o decreto, as propriedades foram consideradas devolutas, os


índios foram expulsos de seus aldeamentos e o processo de demarcação do território dos

16
Documento transcrito por Clóvis Antunes. ANTUNES, Clóvis. Índios de Alagoas: documentário.
Maceió: Imprensa Universitária, 1984.
17
Decreto provincial e imperial do Palácio do Governo das Alagoas, Maceió, 03 de julho de 1872.
Transcrito por Maria Ester Ferreira. IN: SILVA, Maria Ester Ferreira da. A (des)territorialização do
povo Xukuru-Kariri e o processo de demarcação das terras indígenas no município de Palmeira dos
Índios – Alagoas. Aracaju: UFS, 2004. Dissertação (mestrado em geografia) – Núcleo de pós-graduação
em geografia, Universidade Federal de Sergipe, Aracaju, 2004. p. 72

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Xukuru-Kariri foi efetivamente arquivado. Como analisou Torres (1973), as atas da


Câmara de Vereadores de Palmeira dos Índios, do ano de 1874, fazem referência a
disputas pelas terras do extinto aldeamento, pois estas não foram incorporadas ao
município, como previa a Lei de Terras de 1850. No ano de 1890 essa questão ainda não
havia sido resolvida e nesse mesmo ano a Câmara solicitou18 ao Governador que essa
incorporação fosse efetivada.

Aldeando-se na Fazenda Canto: a emergência ética dos Xukuru-Kariri

Com a extinção dos aldeamentos e a ramificação e expansão dos posseiros, os


índios passaram a viver entre os não indígenas, num ambiente em que eram obrigados a
negar sua identidade e a silenciar suas práticas socioculturais. Não mais são citados nos
documentos oficiais como índios, mas como remanescentes ou caboclos; uma espécie
de indivíduo transitório entre o índio e o branco (civilizado), não sendo nem um nem
outro, mas um ser que de forma rápida e inevitável iria ser incorporado à sociedade e
desaparecer. Dessa forma, “a essas populações foram dedicados estudos sobre seus
hábitos e costumes, considerados exóticos, suas danças e manifestações folclóricas,
consideradas em vias de extinção [...]” (SILVA, 2010, p. 65)
Um relato importante sobre os Xukuru-Kariri nesse período posterior à
extinção de seu aldeamento foi escrito pelo Etnólogo Carlos Estevão de Oliveira que
visitou palmeira dos índios no ano de 1937. Durante sua pesquisa, Oliveira encontrou
“remanescente indígenas” espalhados pela periferia da cidade, vivendo em situação
“precaríssima” e em disputas com os não-índios que haviam lhes tirado até “as fontes
que abasteciam d’água”. Destaca que os poucos “caboclos” que possuíam algum pedaço
de terra praticavam a agricultura de subsistência e cultivavam plantas medicinais.
O Etnólogo descreve os Xukuru-Kariri como caboclos inteligentes,
trabalhadores e “de todos os remanescentes indígenas que tenho visitado no Nordeste,
são aqueles caboclos os que se apresentam em melhor estado de pureza física”
(OLIVEIRA, 1938, p. 174). A pesquisa de Carlos Estevão, embora se trate de um
trabalho alicerçado numa “etnologia das perdas”19, foi de grande importância para o

18
Anexo do Ofício Sobre o Aforamento das Terras dos Índios, 1890. In: TORRES, Luiz B. A terra de
Tilixi e Txiliá: Palmeira dos Índios dos séculos XVIII e XIX. Maceió, SERGASA, 1973.
19
Para João Pacheco de Oliveira Filho esses tais estudos estavam focados principalmente em análises que
priorizavam descrever ou interpretar as perdas culturais desses caboclos que pouco a pouco afastavam-se
da “condição” de índio, análise que não foge do dualismo entre índios puros e índios misturados. IN:

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processo de “emergência étnica” (ARRUTI, 1995) dos povos indígenas no Nordeste20.


Ainda em se tratando de Palmeira dos Índios, o etnólogo realizou escavações21 na serra
do Goiti, encontrando antigos cemitérios indígenas e urnas funerárias (igaçabas)
contendo ossuários; achados importantes que comprovam a presença imemorial dos
índios na região.
Nesse período, os Xukuru-Kariri viviam em uma situação de dispersão e de
silenciamento cultural que lhes era imposto pela sociedade que os envolvia. Nas
circunstâncias nas quais se encontravam não era possível exteriorizar as suas crenças,
estavam espalhados e vivendo em diversas condições; “alguns índios permaneceram no
espaço do antigo aldeamento, outros moravam na periferia da cidade ou em fazendas e
uma minoria mantinha a posse e/ou propriedade de algum pedaço de terra nas serras”
(SILVA JÚNIOR, 2013, p. 61).
Entretanto, mesmo diante dessa situação de silenciamento, muitas vezes
adotado pelos índios no Nordeste “para esconder a identidade indígena diante das
inúmeras perseguições” (SILVA, 2010, p. 65), os Xukuru-Kariri resistiram às tentativas
de assimilação, procurando adaptar-se às novas situações, reelaborando costumes,
silenciando práticas e socializando memórias e experiências que viriam a ser afirmadas
no futuro.
Tomando conhecimento da existência de um órgão oficial de assistência aos
índios22, Alfredo Celestino da Silva23, no ano de 1951, consegue o apoio do Monsenhor
Alfredo Pinto Dâmaso, pároco do município de Bom Conselho – PE, para reivindicar ao
Serviço de Proteção ao Índios (SPI) a instalação de um Posto indígena em Palmeira.

OLIVEIRA FILHO, João Pacheco de. Uma etnologia dos "índios misturados"? Situação colonial,
territorialização e fluxos culturais. IN: Mana, vol.4, n°.1, p.47-77, Abr. 1998.
20
Segundo José Maurício Arruti, a pesquisa pioneira de Carlos Estevão sobre os “remanescentes”
indígenas no Nordeste representou “um momento de inflexão na história indígena no Nordeste, que dá
início a um rápido e tumultuoso processo de revitalização de tradições e invenção cultural e que faz do
Nordeste, hoje, uma importante região se tratando da presença indígena. ARRUTI, José Maurício Paiva
Andion. Morte e vida no Nordeste indígena: a emergência étnica como fenómeno histórico regional. In:
Estudos Históricos, Rio de Janeiro, 1995, vol. 8, nº 15: 57-94. p. 59
21
Segundo o relatório do etnólogo, o “caboclo” José Francelino de Melo lhe informou que “antigamente
‘quando os chucurus eram bravios e moravam no mato’, botavam os seus mortos dentro de grandes potes
e enterravam estes nas grutas das serras” e que esta afirmação o motivou a realizar escavações na gruta da
Serra do Goiti. OLIVEIRA, Carlos Estevão de. O Ossuário da "Gruta-do-Padre", em Itaparica, e algumas
Notícias sobre Remanescentes Indígenas do Nordeste. In: Boletim do Museu Nacional. Rio de Janeiro.
1941- Vol. XVII p.184. p. 175.
22
Criando no ano de 1910, o Serviço de Proteção aos Índios tinha o objetivo de facilitar o
desenvolvimento econômico nas frentes de expansão nacional, garantindo a integridade dos povos
indígenas, que se encontravam em uma suposta etapa de transição para pequenos agricultores; assistindo-
os através da demarcação de pequenos territórios, que sediavam um Posto Indígena.
23
Índio Xukuru-Kariri de Palmeira dos Índios, filho de José Francelino, “caboclo” entrevistado pelo
Etnólogo Carlos Estevão de Oliveira em sua visita a Palmeira, na década de 1930.

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Além do apoio da Igreja Católica, representada na figura do Monsenhor Alfredo


Dâmaso, os indígenas de palmeira, liderado por Alfredo Celestino, conseguiram
representação política, na pessoa do Deputado Federal Medeiros Neto, e estabeleceram
alianças com povos indígenas que já haviam sido assistidos pelo SPI, como os Fulni-ô
(Águas Belas - PE) e os Pankararu (Brejo dos Padres - PE).
Nesse contexto, Celestino enviou uma carta24 ao inspetor geral do SPI na qual
se declarava cacique da “tribo Xukuru-Kariri”, composta por 400 índios que estavam
“espalhados” em Palmeira e “que andam bolando de rio abaixo que só pedra de
enxurrada”. O pedido foi aceito e um mês depois o SPI enviou à Palmeira dos Índios o
Inspetor Iridiano Amarinho, que, instruiu o cacique a continuar a realização do trabalho
de levantamento da quantidade e localização de indígenas no município (ANTUNES,
1973).
Ainda nesse mesmo ano, o Inspetor do SPI, Diocleciano de Souza Nenê,
realizou um censo, no qual apontou a existência de 45 famílias indígenas na região, num
total de 246 pessoas. Essa identificação das famílias Xukuru-Kariri foi de grande
relevância para a articulação política do grupo, que até então estava fragilizado pela
dispersão e silêncio sobre sua identidade. Em maio de 1952 o SPI adquiriu a Fazenda
Canto, propriedade com extensão de 372 hectares, distante 6 km da cidade, e nela
instalou o Posto Indígena de Palmeira dos Índios, que recebeu o nome do Inspetor do
SPI Irineu dos Santos.
A despeito das questões políticas25 que permearam a aquisição dessa
propriedade, como o considerável lucro que o então prefeito de Palmeira, Manoel
Sampaio Luz, obteve ao vender a Fazenda Canto a um preço acima do valor de
mercado, e os interesses particulares do Deputado Medeiros Neto e da Igreja Católica, a
criação da Aldeia Fazenda Canto, como ficou conhecida, deve ser pensada acima de
tudo “como ponto de partida para a consolidação final de um movimento de reconquista

24
Depoimento dado por Alfredo Celestino ao etnólogo Clovis Antunes sobre o conteúdo da carta que
enviou ao SPI. IN: ANTUNES, Clóvis. Wakona - Kariri - Xukuru: aspectos sócio-antropológicos dos
remanescentes indígenas de Alagoas. Maceió: Facepe UFAL, Imprensa Universitária, 1973
25
Segundo análise feita por Aldemir Silva Júnior, existiu um jogo de interesses envolvendo políticos
locais na questão da aquisição das terras da Fazenda Canto, desde a escolha do local onde se instalaria o
posto até a escolha de seus futuros funcionários. O poder local procurou tirar vantagens da situação, os
índios não foram consultados sobre o local que seria comprado, e todos os cargos do posto e da escola
indígena foram ocupados por não índios, exceto o de aprendiz, que foi ocupado pelo Cacique Alfredo
Celestino, seu trabalho era fazer a limpeza da escola. SILVA JÚNIOR, Aldemir Barros da. Aldeando
sentidos: Os Xucuru-Kariri e o Serviço de Proteção aos Índios no Agreste alagoano. Maceió: Edufal,
2013.

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não somente de um território que consideram de posse imemorial, mas também de sua
afirmação enquanto ser. Este direito adviria de sua condição de ser índio” (SILVA,
2004, p. 57).
A aquisição da Fazenda Canto foi sem dúvidas uma importante conquista para
os Xukuru-Kariri, embora não representasse nem de longe as terras que deveriam lhes
pertencer por direito, a demarcação dessa propriedade foi decisiva e possibilitou a
afirmação étnica e a reorganização política desse povo. Todavia, com o passar do
tempo, as famílias que haviam se estabelecido na Fazenda Canto foram crescendo e
consequentemente o espaço foi ficando pouco, as terras eram insuficientes para o
sustento de todos e de baixa produtividade, além de dispor de pouca água (PEIXOTO,
2013).
Diante dessa situação, os Xukuru-Kariri se organizaram em retomadas
territoriais nos locais que antes lhes pertenceram, numa batalha pela recuperação do
território que faz parte de sua história. Aconteceram cinco retomadas territoriais, sendo
a última no ano de 2008, esse processo tem contribuído para o acirramento do conflito
territorial entre posseiros e índios que é evidente no município de Palmeira dos Índios e
ao mesmo tempo representam a luta do povo Xukuru-Kariri pela recuperação de sua
territorialidade (OLIVEIRA, 1998).

Considerações finais

A iniciativa dos índios em reivindicar a demarcação de suas terras, a partir da


petição de 1822, configura-se num importante ato de resistência e de protagonismo do
povo Xukuru-Kariri. Embora a fonte não indique como foi o processo de escrita da
petição, é evidente que a iniciativa para a abertura do processo partiu dos indígenas, fato
perceptível principalmente diante do discurso de negação e descaracterização dos
indígenas (descritos como preguiçosos, bêbados e ladrões) que os diretores da aldeia de
Palmeira dos Índios proferiam em seus relatórios.
O povo Xukuru-Kariri se utilizou de estratégias específicas em diferentes
momentos. Como é perceptível na petição de 1822, eles se descrevem como pacíficos,
obedientes aos diretores e súditos do Rei, isto é, exatamente da forma como os brancos
esperavam que eles fossem. De tal modo, os índios afirmaram sua primazia na
localidade, descreveram as injustiças que suportavam e se colocaram na posição

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cidadãos da Jovem Província das Alagoas e súditos do imperador, e assim exigiram seus
diretos como tais; pedindo terras onde pudessem viver em paz e trabalhar.
Do mesmo modo, no início da segunda metade do século XX, quando os índios
estavam desaldeados a mais de 80 anos, vivendo em meio à sociedade palmeirense, que
não os considerava índios, os Xukuru-Kariri se organizaram para emergir etnicamente,
contrariando as ideias assimilacionistas da época. Assim, reelaboraram sua cultura,
apropriando-se do que lhes era útil e resinificaram seus costumes. Permaneceram num
estado de silenciamento de suas práticas culturais e religiosas que os diferenciavam dos
não índios, pois aguardavam o momento certo para emergir etnicamente, reafirmar sua
identidade e exigir a posse de suas terras tradicionais e o reconhecimento do caráter
singular de sua cultura.
A aquisição da Fazenda Canto e a instalação de um posto indígena em
Palmeira dos Índios, depois de tantos anos de silenciamento, foi uma importante vitória
para o povo Xukuru-Kariri. Embora a assistência do SPI significasse oficialmente que
esses índios estavam agora tutelados pelo estado e que deviam residir e trabalhar nas
terras demarcadas e assim realizar pacificamente sua transição para a condição de
trabalhador rural, para o índio, o significado dessa situação era diferente.
O aldeamento não representou apenas a garantia da sobrevivência física dos
índios, que agora dispunham de alguma terra para cultivar, mas principalmente o
reconhecimento oficial desse povo e a criação de condições para o seu fortalecimento
étnico. A luta pela demarcação das terras dos Xukuru-Kariri representa um elemento
fundamental para a construção da identidade desse povo, a posse de um território
demarcado, a Fazenda Canto, foi fundamental para que os índios pudessem se organizar
politicamente e articular seus movimentos reivindicatórios.

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emergência étnica como fenómeno histórico regional. In: Estudos Históricos, Rio de
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Revisada. Palmeira dos Índios: Ed. do autor, 1974.

DA INVISIBILIDADE ÀS MOBILIZAÇÕES SOCIOPOLÍTICAS: OS XUKURU-


KARIRI EM PALMEIRA DOS ÍNDIOS/AL

Amanda Maria Antero da Silva


Mestranda em História
Universidade Federal de Campina Grande – UFCG
E-mail: amandaantero16@gmail.com
Prof. Dr. Edson Silva
Orientador
Universidade Federal de Campina Grande – UFCG
E-mail: edson.edsilva@hotmail.com

Resumo: Os movimentos indígenas conquistaram maior visibilidade a partir do século


XX com o processo de emergência e de reafirmação étnica e vem contribuindo, apesar
das muitas dificuldades, na efetivação de alguns direitos e exposição de suas
reivindicações, confirmando a autonomia dos povos indígenas. O objetivo desse texto é
realizar uma discussão sobre as mobilizações organizadas pelo povo Xukuru-Kariri no
Município de Palmeira dos Índios em Alagoas expondo a atuação sociopolítica dos
indígenas frente aos discursos estereotipados que se construíram na localidade e que são
refletidos no ensino. Nossas reflexões estão baseadas em pesquisadores indígenas e não
indígenas vinculados à chamada “nova história indígena” que tem evidenciado o
protagonismo indígena na História.

Palavras-chave: Movimentos Indígenas. Protagonismo. Resistência.

Introdução

Índio, termo empregado pelos colonizadores europeus para denominar os


habitantes do território brasileiro e que aglomerou todos os povos indígenas em
unidade, nesse contato criaram estereótipos carregados de preconceitos e julgamentos.
A imagem do ser índio foi construída a partir de rotulações que oscilavam entre hostis e

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mansos. Na narrativa literária os indígenas eram romantizados e tornados heróis. Essas


características se solidificaram e continuaram sendo reproduzidas e ressaltadas no
ambiente escolar.
Os indígenas também foram representados como passivos e incapazes de
pensar e decidir sobre sua vida, consistindo em seres infantilizados e necessitados de
um órgão tutor. Mediante essas visões, o Estado recusou a posição autônoma e tornou
os indígenas dependentes de instituições que nem sempre desempenhavam ações
positivas.
Nessa conjuntura, esse texto visa argumentar sobre as mobilizações dos
indígenas Xukuru-Kariri no município de Palmeira dos Índios, procurando entender
suas articulações frente ao avanço de políticas elitista que buscavam o retrocesso dos
direitos indígenas. De tal modo, pretende-se contribuir na construção de uma História
em que o indígena seja apresentado como protagonista de sua história, sujeito cultural,
social e político.

De tutelados a sujeitos autônomos, políticos e resistentes

A história dos povos indígenas no início do século XX esteve marcada pela


atuação de instituições tutelares como o Serviço de Proteção ao Índio – SPI criado em
19101, após sua reformulação tornou-se a Fundação Nacional do Índio – FUNAI
instituída em 1967, prevalecendo até a atualidade. Essas instituições não significavam a
proteção e assistência aos indígenas como apresentavam em seus discursos, mas uma
forma de caracterizá-los como incapazes intelectualmente, necessitados de um órgão
que discorresse por eles e buscavam “transformar o índio em pequeno produtor rural
capaz de se sustentar e integrar ao mercado nacional de mão- de-obra”. (ARRUTI,
1995, p. 60).
Tornaram-se uma figura de controle e de representatividade, servindo de
porta-vozes para as reivindicações e assim inibiam as articulações e autonomias
indígenas. No entanto, os próprios índios procuravam2, tanto independentes quanto por
meio de mediadores, a assistência e a atuação do SPI.

1
O SPI inicialmente foi criado com a denominação Serviço de Proteção ao Índio e Localização de
Trabalhadores Nacionais (SPILTN), em 1918 seu nome foi reformulado para Serviço de Proteção ao
Índio, no entanto não perdendo suas intenções em controlar e administrar as populações indígenas.
2
Alguns povos no Nordeste buscaram assistência ao SPI a fim do seu reconhecimento étnico, pois,
inicialmente, a sua atuação se restringia apenas aos estados do Norte, Centro-Oeste, Sul e Sudeste.

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Nas tradições orais e em registros documentais sobre esses povos,


encontramos relatos de viagens ao Rio de Janeiro, onde estava a sede do SPÍ
(Serviço de Proteção ao Índio), de idas a sede da Funai em Brasília/DF, para
solicitarem o direito à instalação de um Posto do órgão indigenista em suas
áreas indígenas, o que significava o fortalecimento das mobilizações pelo
reconhecimento estatal e a reconquista de suas terras tradicionais.(SILVA,
2003, p. 43)

Nesse contexto percebe-se a atuação dos próprios indígenas em reivindicar


junto ao SPI ações para o reconhecimento de seu povo e a busca dos seus direitos por
vezes negados pela falta de características físicas e culturais que os definissem como
indígenas, uma vez que o contato tornou necessário a reelaboração, ressignificação e a
adaptação na nova realidade que se fazia presente.
Embora o Estado, atualmente, continue exercendo o papel de responsável pelos
indígenas por meio FUNAI, essa intervenção se limitou, pois os índios assumiram os
vários espaços sociais. Com base em suas organizações garantiram a sua participação
ativa nas decisões referentes às necessidades de seu povo, anulando o monopólio da
ação tutelar do Estado, pois é “a organização dos povos indígenas, o principal motor das
transformações que vêm efetivamente ganhando solidez e esperança de mudanças
substanciais”. (LIMA, 2015, p.103).
A partir da segunda metade do século XX, os indígenas intensificaram as suas
mobilizações e assim conquistaram maior visibilidade no contexto nacional. Essas
reivindicações são reações às inúmeras violências que foram submetidos,
principalmente em relação às espoliações territoriais e às negações dos órgãos públicos
em garantir seus direitos.
As mobilizações foram elaboradas em contextos e interesses locais, regionais e
nacionais e se fortaleceram com o diálogo entre os povos indígenas e não indígenas que
compartilhavam das mesmas ideias. Essas articulações não se restringiam apenas a esse
período, pois desde a colonização os indígenas vêm resistindo por meio de práticas
cotidianas de reelaborações e adaptações às imposições as quais foram sujeitados.
Partindo dessas mobilizações, surgiu na década de 1970 o Movimento Indígena
definido como “o conjunto de estratégias e ações que as comunidades e as organizações
indígenas desenvolvem em defesa de seus direitos e interesses coletivos”. (LUCIANO
BANIWA, 2006, p.58). Ele se solidificou juntamente com outros movimentos sociais e
contou com a atuação de diversos povos indígenas que mesmo possuindo suas
especificidades se uniram nacionalmente em prol de interesses comuns e fundamentais

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como a demarcação de suas terras, uma educação e saúde de qualidade e diferenciada e


ao direito a diversidade cultural.
A atuação dos indígenas em suas múltiplas originalidades foi crucial para a
conquista dos direitos descritos no artigo 2313 e 2324 da Constituição Federal de 1988, a
uma educação diferenciada e específica gestada pelos próprios indígenas. A
implantação da lei 11.645/2008 que tornou obrigatório o ensino da temática afro-
brasileira e indígena nas instituições escolares públicas e privadas também representou
um avanço nas suas reivindicações.

O Movimento Indígena foi o principal elemento para as conquistas presentes


na Constituição de 1988 e para outras vitórias, como as alterações na forma
de realizar o censo feito pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística
(IBGE), a Lei 11.645/2008 e, na análise de John Monteiro, parte da revisão
historiográfica sobre as Histórias dos Povos Indígenas. (SANTOS, 2015,
p.188).

Mesmo conquistando direitos vinculados à educação e a saúde, a demarcação


das terras tradicionais é a maior reivindicação dos povos indígenas, que continuam
sendo alvos de políticas de retrocesso e estagnação. A Proposta de Emenda
Constitucional – PEC 215/2000 apresentava uma retificação nos artigos 49 e 231 da
Constituição Federal de 1988 e transferia do poder executivo para o legislativo a palavra
final sobre a demarcação do território indígena e buscava estabelecer o “marco
temporal”, ou seja, as populações indígenas somente teriam direitos aos territórios se
comprovassem a posse na data da promulgação da Constituição em 1988, não levando
em consideração as várias desapropriações e violências; é um retrocesso que privilegia
os grandes latifundiários representados pela bancada ruralista no Congresso Nacional.
Essas propostas de emendas constitucionais contribuíram para a ampliação e o
acirramento das mobilizações indígenas tanto em espaços locais quanto nacionais,
promoveram fechamento de rodovias, passeatas e enfrentamentos:

A crença fundamental é de que, ao invés de aguardarem ou solicitarem a


intervenção protetora de um ―patrono para terem seus direitos reconhecidos
pelo Estado, os índios precisam realizar uma mobilização política própria –
construindo mecanismos de representação, estabelecendo alianças e levando

3
Artigo 231 da Constituição Federal de 1988 afirma que devem ser “reconhecidos aos índios sua
organização social, costumes, línguas, crenças e tradições, e os direitos originários sobre as terras que
tradicionalmente ocupam, competindo à União demarcá-las, proteger e fazer respeitar todos os seus
bens”.
4
Artigo 232 “Os índios, suas comunidades e organizações são partes legítimas para ingressar em juízo em
defesa de seus direitos e interesses, intervindo o Ministério Público em todos os atos do processo”.

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seus pleitos à opinião pública. Somente a partir da constituição de um sistema


de reivindicações e de pressões é que o Estado viria a agir, procedendo então
à identificação e à demarcação das terras indígenas, melhorando os serviços
de assistência (de saúde e educação) ou resolvendo problemas
administrativos diversos deixados no limbo por muitos anos. (OLIVEIRA,
FREIRE, 2006, p. 187).

Seguindo essa lógica, os indígenas estão a cada dia mais organizados e


conhecedores de seus direitos, desconstruindo a imagem de tutelados e passando a
serem vistos como agentes de sua História, por meio da pressão e da autogestão dos
movimentos limitaram a interferência estatal e religiosa, possibilitando uma própria
interpretação de mundo.

Historicizando a atuação sociopolítica do povo Xukuru-Kariri

As mobilizações dos indígenas Xukuru-Kariri no município de Palmeira dos


Índios em Alagoas resultam do amplo processo de desterritorialização ao qual foram
submetidos por volta do século XVIII, com a chegada de Frei Domingues de São José
para a catequização dos indígenas ali residentes. Com o estabelecimento do Frei e a
construção da Capela, comerciantes e viajantes vindos de regiões vizinhas se apossaram
das terras, esbulhando os indígenas que ficaram marginalizados na sociedade
palmeirense.
Nesse processo de espoliação territorial os Xukuru-Kariri passaram a migrar
para as cidades e tornaram-se invisíveis, negando sua identidade étnica e ocultando-a,
possibilitando a movimentação no lugar sem serem percebidos pela população que
afirmava a inexistência de indígenas no município.
A invisibilidade foi uma forma de resistência empregada pela população
indígena a fim de driblar a sociedade envolvente e evitar a supressão de suas práticas
culturais, garantindo a sua reelaboração e ressignificação para na posterioridade
reafirmá-las e obter direitos. Entretanto, essa invisibilidade também pode ser entendida
como uma imposição denominada de “invisibilidade social” e “marginalização
historiográfica”. A primeira é definida como a negação da presença indígena pelo fato
de não apresentarem os mesmos estereótipos (andar nu, viver na mata, morar em ocas) e
a segunda se refere à exclusão do indígena na história. (PORTELA, 2009).

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Em meio às negações e silenciamento, os Xukuru-Kariri utilizaram táticas5 de


adaptação, reelaboração e ressignificação para garantir o fortalecimento de sua cultura e
sua possível reafirmação junto aos órgãos governamentais para o reconhecimento étnico
e de direitos. Posterior ao período de invisibilidade, os Xukuru-Kariri partem para ações
concretas e diretas, tornam-se visíveis e reivindicam seu lugar na sociedade como
cidadãos de direitos, “lutar por direito e tratamento diferenciado tem ocupado a pauta
dos movimentos indígenas e indigenistas nos últimos anos como fator indispensável
para assegurar o ressurgimento de uns grupos e a sobrevivência de outros”. (PEIXOTO,
2013, p.22).
A reivindicação dos indígenas em relação à reapropriação do território
histórico aumentou os conflitos no município, principalmente com as retomadas
territoriais, “processos de recuperação, pelos indígenas, de áreas por eles
tradicionalmente ocupadas e que se encontravam em posse de não-índios”.
(ALARCON, 2013, p. 100).
Os processos de retomadas eram movidos por articulações próprias e as ações
possibilitaram um aumento das áreas de vivência dos Xukuru-Kariri, no entanto, de
maneira limitada, instigando a realização de movimentos pela demarcação de suas
terras. Em contraposição a essas reivindicações, a elite local também realizou
movimentos a fim de convencer a população de que a demarcação colocava em risco o
desenvolvimento do município. Segundo a versão de um político da região em
entrevista a uma rádio local sobre a demarcação:

A demarcação foi realizada sem nenhum critério técnico, ao bel prazer da


FUNAI, e o Município tem muitas razões para estar tranqüilo, até porque o
STF há pouco publicou novas regras, que não se pode demarcar terras como
terras indígenas, aquelas que não estão sendo ocupadas por indígenas até a
promulgação da Constituição de 1988 e, em Palmeira dos Índios, de toda essa
demarcação que foi feita, não existe uma propriedade sequer invadida por
indígena antes 1988, ou seja, aquelas que foram invadidas após 1988 ela não
pode ser demarcada como terra indígena, então já é lei, já é regra, e essa
decisão do juiz que eu não sei qual é, não se sustenta e o Município vai a luta.
(MINUTO PALMEIRA, 2015).

5
Michel de Certeau afirma que “a tática depende do tempo, vigiando para “captar no vôo” possibilidades
de ganho. O que ela ganha, não o guarda. Tem constantemente que jogar com os acontecimentos para os
transformar em “ocasiões”. Sem cessar, o fraco deve tirar partido de forças que lhes são estranha. Ele o
consegue em momentos oportunos onde combina elementos heterogêneos (...) mas a sua síntese
intelectual tem por forma não um discurso, mas a própria decisão, ato e maneira de aproveitar a ocasião.”
(CERTEAU, 1998, p. 47).

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O movimento organizado pelos latifundiários e políticos da região foi


denominado de “Palmeira de Todos”, realizado em Palmeira dos Índios no dia 20 de
agosto de 2013, dia comemorativo da emancipação política do município. Esse
movimento foi caracterizado pela ausência de ideologias políticas e partidárias, contudo,
existe uma contradição, pois contou com a participação da elite política e da população
de classe média alta detentora de grandes propriedades de terras.
Eles objetivavam impedir o processo de demarcação e convencer a população,
ressaltando aos pequenos proprietários de terras a sua desapropriação e a desvantagem
das indenizações pagas, a fim de convencê-los a apoiá-los nas investidas de paralisar
tanto o processo de homologação do território como as atuações indígenas. A
justificativa era de que a economia local ficaria estagnada, contrariando o fato de o
comércio apresentar produtos oriundos das aldeias.
O Antropólogo Ivan Farias, em reunião na Assembleia Legislativa, ampliando
a discussão sobre o processo demarcatório ressaltou que “essa é uma questão
ultrapassada. Em Alagoas, os índios Tingui-Botó do município de Feira Grande são os
maiores produtores de batata doce do Estado. Na cidade de Joaquim Gomes, a produção
de mel pelos Wassu Cocal é reconhecida nacionalmente”, do mesmo modo a
participação indígena na economia em Palmeira dos Índios e no Estado de Alagoas é
bastante significativa.
Um fator preponderante é que os alimentos originários das aldeias são
agroecológicos não prejudiciais à saúde e o excedente é vendido na feira, no entanto
quando percebem que são produções indígenas muitos se negam a efetuar a compra em
decorrência da visão estereotipada que prevalece no município.
Outro discurso que permeia a cidade é que os índios querem muita terra e caso
haja a demarcação como solicitada, os índios irão tomar todo o espaço em que é
realizado o comércio, contudo, os próprios índios da aldeia Mata da Cafurna abrem mão
desse espaço para não comprometer o desenvolvimento da cidade.

Os lideres da Mata da Cafurna sugerem que a cidade de palmeira dos Índios


ficaria ―intocável podendo se expandir‖, e todos os imóveis que se limitam
com a Mata da Cafurna e a Fazenda Canto seriam desapropriados. Parte dos
lotes urbanos pagariam imposto territorial aos índios e aqueles inferiores a
dez tarefas ficariam isentos. A arrecadação dessa cobrança de imposto
―seria entregue ao órgão tutor para que este, administrasse os bens da
comunidade de maneira controlada assistindo totalmente o índio‖. (PETI,
1993, p.68.)

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Mesmo tendo essa visão de excluir a cidade do processo demarcatório, o


município apresenta um grande conflito fundiário possuindo como principais agentes os
índios e os grandes proprietários de terras que também são, na sua maioria, líderes
políticos da região. Em meio a tantos projetos que visam a anulação dos indígenas na
região, estes se mostram resistentes e atuantes, elaborando movimentos, organizações
que os qualificam não apenas como vítimas, mas como sujeitos ativos na construção de
sua História.
No mesmo período, em outubro de 2013, os Xukuru-Kariri organizaram uma
campanha de regularização do território indígena denominada de “Xukuru-Kariri: vida,
luta e resistência de um povo”, que pretendia conscientizar a sociedade palmeirense e
pressionar tanto as autoridades locais quanto nacionais sobre a necessidade da
demarcação de sua terras. A campanha foi lançada oficialmente na V Assembleia6
Xukuru-Kariri com o tema central “Terra é Mãe, Fonte de Vida e do Bem Viver”
realizada nos dias 09, 10 e 11 de outubro na retomada da Fazenda Salgada pelos
indígenas residentes na aldeia Fazenda Canto e celebrou o 6° ano de lembrança da
guerreira Maninha Xukuru-Kariri7.
Esse evento, depois de várias reuniões de articulação e definição de papeis,
culminou com a elaboração de panfletos e cartazes que foram distribuídos em
instituições educacionais e entre a população local. Juntamente com os panfletos houve
a confecção e comercialização de camisetas e livros para com esses recursos adquirirem
fundos para o custeio dos processos jurídicos em andamento.
Imagem I: frente do panfleto

6
A partir de 2010, os indígenas se reúnem em assembleias para discutir projetos e reivindicações,
fortalecer as ações, assegurar o direito a posse da terra e denunciar o abandono do poder público em
relação à educação e à saúde. Em cada final de assembleia há a elaboração de uma carta que se torna
pública informando as discussões, perspectivas e desafios a serem enfrentados.
7
Etelvina Santana da Silva, Maninha Xukuru-Kariri, nasceu em 1966 na aldeia Xukuru-Kariri, em
Palmeira dos Índios/AL. Reconhecida liderança indígena no Nordeste pela sua atuação política junto aos
indígenas em favor da demarcação de suas terras e da liberdade do povo Xukuru-Kariri. Faleceu em 2006
após um infarto, seus parentes denunciaram a omissão de socorro médico por suspeitas de represálias à
intensa atuação política de Maninha em favor da demarcação das terras e direitos do seu povo..

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Fonte: http://campanhaxukuru-kariri.blogspot.com.br/

Imagem II: verso do panfleto

Fonte: http://campanhaxukuru-kariri.blogspot.com.br/

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O panfleto trazia duas imagens demonstrando as plantações de mandioca e o


cultivo de hortaliças objetivando desconstruir a ótica sobre os indígenas como
preguiçosos e apresentar o aspecto da preservação da natureza que por não desmatarem,
o espaço de construção das casas torna-se limitado necessitando da demarcação de suas
terras.
Uma frase precisa ser enaltecida, a que está estampada logo abaixo da imagem
de Maninha é: “Hoje sabemos o lugar que queremos ocupar na História do país”. Na
atualidade, os Xukuru-Kariri passam a ter orgulho de serem índios e a pertencerem a
uma aldeia; eles acreditam que seu papel é construir uma sociedade que aceite as
diferenças e diversidades com justiça social para todos. O objetivo do citado movimento
foi alcançar um público maior e que tivessem uma mentalidade mais centrada em ver o
índio não como um aproveitador; por esse motivo a divulgação se efetivou mais
claramente nas universidades, pois são nesses espaços que os discursos trilham novos
caminhos.
E como a internet tem sido um espaço de sociabilidade, capaz de atingir
inúmeras pessoas em uma escala de tempo menor, onde “os níveis de acesso e o uso das
tecnologias de informação são um belo termômetro do grau de autonomia que um
indivíduo ou um coletivo possui para obter informações, disseminar conteúdos, cumprir
deveres e fazer valer seus direitos.” (OLIVEIRA, 2015, p.15), os indígenas criaram um
blog denominado de “Campanha Xukuru-Kariri”, nele consta o histórico de ocupação
territorial e uma petição on-line com o objetivo de receber apoio de todas as partes do
mundo:

Nos últimos anos, diversos movimentos sociais quebraram a barreira da


invisibilidade utilizando blogs e redes sociais. Um exemplo mais atual, no
nível internacional, é a chamada “Primavera Árabe”, onde manifestações
populares contra governos autoritários, organizadas pela internet, derrubaram
governos em diversos países do chamado mundo árabe. No Brasil,
campanhas contra a Hidrelétrica de Belo Monte (PA), contra a demolição do
antigo Museu do Índio (RJ), ou em apoio ao povo indígena Guarani Kaiowá
(MS) também mobilizaram milhões de internautas e tiveram grande
repercussão. (OLIVEIRA, 2015, p. 15).

Assim, os índios passaram a se apropriar das novas tecnologias para fazer


frente aos movimentos contrários às suas reinvindicações, considerando que mesmo se
apropriando de elementos culturais externos, não provocam a perda da sua identidade. A
utilização da internet pelos indígenas favorece a descaracterização do índio como
indivíduo que vive no isolamento e em constante contato com a natureza,

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impossibilitado de estabelecer contato com as novas redes de telecomunicação,


incapazes da utilização de celulares, TVs e internet. O citado blog possui um tom de
denúncia expresso na carta pública, o que mostra o protagonismo dos Xukuru-Kariri na
condução das suas vidas.

Nós da Etnia Xukuru Kariri viemos tornar público o desrespeito que vem
acontecendo com o nosso Povo, uma vez que políticos, fazendo uso abusivo
da política, latifundiários e empresários têm usado os meios de comunicação
para invisibilizar nossa luta, incitando à violência na sociedade contra a
demarcação de nosso território tradicional. Os mesmos têm ocultado e
distorcido a verdade. (CAMPANHA XUKURU-KARIRI, 2013).

Nessa afirmativa, os Xukuru-Kariri se veem diante de uma perspectiva que os


coloca como invisíveis, principalmente através dos meios de comunicação, nesse caso,
existem no Município de Palmeira dos Índios três emissoras de rádio que são
propriedades dos políticos, detentores de parte das terras a serem demarcadas. Tais
veículos de comunicação vêm sendo usados para disseminar uma ideia da demarcação
como um atraso para o município, bem como uma teoria do índio como sem direito.
O protagonismo e a atuação dos Xukuru-Kariri se apresentam quando suas
produções agrícolas são vendidas nas feiras da cidade, quebrando com o pressuposto de
índio como preguiçoso e ao mesmo tempo questionando as produções e conservações
dos fazendeiros. Segundo eles,

Somos acusados de atrasar o progresso do município. Como? Pois,


preservamos 200 hectares de mata atlântica e 300 hectares de caatinga, Rios e
nascentes dentro de nossas aldeias. Produzimos mais de 70% da banana que é
vendida na feira livre de Palmeira dos Índios, macaxeira, batata, frutas,
hortaliças, além da produção e conservação das sementes crioulas. Criamos
pequenos animais, como aves, cabras e suínos. Fornecemos alimentos
agroecológicos para o programa do governo federal PAA - Programa de
Aquisição de Alimentos, com Doação Simultânea, além do PNAE –
Programa Nacional de Alimentação Escolar, ampliando assim o
abastecimento de uma alimentação saudável a população do município de
Palmeira dos Índios. E os fazendeiros produzem e conservam o quê?
(CAMPANHA XUKURU-KARIRI, 2013).

Existe na cidade um comércio do excedente cultivado nas aldeias, no entanto


algumas pessoas quando descobrem que são produções de indígenas preferem não
efetuar a compra exprimindo dessa maneira o preconceito latente na região. Todavia,
essa atividade demonstra a importância do trabalho indígena, principalmente por
oferecer alimentos saudáveis para as escolas através do PNAE – Programa Nacional de

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Alimentação Escolar. Sobre o processo de demarcação a carta publicada no já citado


blog traz a seguinte afirmação,

O processo de demarcação vem atender a um direito originário dos Povos


Indígenas, que lhes é garantido na constituição federal de 1988 e assegurado
pela convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho - OIT
assinado pelo estado Brasileiro em 2004. Com isso, a Portaria declaratória nº
4.033 de 14 de dezembro de 2010 garante e reconhece a tradicionalidade de
uma área 7.033 ha. Neste contexto a FUNAI órgão do Governo Federal
atendendo uma demanda histórica de nosso Povo, deu inicio ao processo de
regularização fundiária Xukuru Kariri, no entanto devido ao clima de terror e
ameaças instaurado pelos políticos locais, a FUNAI atendendo aos conchavos
políticos partidários, suspendeu as atividades, retirando o grupo técnico,
responsável pelo levantamento fundiário, o que paralisou os trabalhos de
levantamento de vistoria e avaliação de benfeitorias construídas por
ocupantes não índios na terra indígena, através do simples memorando de
nº876/DPT/2013 do diretor de proteção territorial - substituto. (CAMPANHA
XUKURU-KARIRI, 2013).

Nesse sentido, a postura da FUNAI tem atendido aos interesses políticos


principalmente por está intimamente ligada ao Estado, descaracterizando sua função de
dar um suporte aos Xukuru-Kariri que permaneceram à margem da sociedade, com seus
direitos paralisados e negados, instigando novas mobilizações e enfrentamentos no
município.
Uma das formas visíveis da atuação indígena foi à capacidade de percepção
sobre os seus direitos; um dos motivos das mobilizações indígenas conquistarem maior
visibilidade se verifica como esses povos compreendem, de acordo com a Constituição
Federal de 1988, os seus direitos e, por meio desse entendimento, reivindicam
assistência médica, social e educacional.

Notas conclusivas: possibilidades e desafios

As mobilizações indígenas contribuíram para uma maior participação no


cenário sociopolítico questionando as visões sobre a extinção e o desaparecimento
gradual dos povos indígenas. Os Xukuru-Kariri mesmo desempenhando uma intensa
mobilização e atuação ativa no município não foram suficientes para modificar em sua
totalidade as imagens estereotipadas construídas localmente, o preconceito e a
discriminação ainda fazem parte do cotidiano indígena.
O maior desafio, enfrentado, é garantir que os direitos conquistados
permaneçam intactos, pois as leis instituídas não foram suficientes para lhes assegurar

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como previsto na lei, o direito a terra, a diversidade étnica e cultural. Em relação ao


ensino de História Indígena há muito a ser feito, porque mesmo com a lei 11.645/2008
as escolas possuem dificuldades em debater a temática, pois alguns professores acabam
reproduzindo os estereótipos.
O movimento estudado como tantas outras mobilizações não só em Palmeira
dos Índios, mas em várias partes do Estado, notadamente nos municípios que possuem
terras tradicionalmente indígenas, tendem a dar uma maior visibilidade aos povos
indígenas favorecendo o reconhecimento étnico e cultural. As contribuições das
pesquisas acadêmicas têm proporcionado, também, uma abordagem mais ampla e
coerente sobre a História dos índios do Nordeste e de Alagoas, o que possibilita um
novo debate acerca das definições com relação aos indígenas, principalmente pelas
produções acadêmicas desenvolvidas por eles.

Referências

ALARCON, Daniela Fernandes. A Forma Retomada: contribuições para o estudo das


retomadas de terras, a partir do caso tupinambá da Serra do Padeiro. RURIS. Campinas:
Centro Interno de Estudos Rurais da UNICAMP, v. 7, n.° 1, p. 99-126, mar. 2013.

ARRUTI, José Maurício Paiva Andion, “Morte e vida no nordeste indígena: a


emergência étnica como fenómeno histórico regional”, Estudos Históricos, Rio de
Janeiro, v. 8, n.º 15, p. 57-94. 1995.

BANIWA, Gersem dos Santos Luciano. O índio brasileiro: o que você precisa saber
sobre os povos indígenas no Brasil de hoje. Brasília: Ministério da Educação, Secretaria
de Educação Continuada, Alfabetização e Diversidade; LACED/Museu Nacional, 2006.

CERTEAU, Michel de. A invenção do Cotidiano: artes de fazer. 3ed. Petrópolis, Rio
de Janeiro: Editora Vozes, 1998.

LIMA, Antônio Carlos de Souza. Estado e Povos Indígenas no Brasil Contemporâneo:


da tutela à ação do movimento indígena. In Guilherme do Valle (org.). Etnicidade e
Mediação. São Paulo: Annablume editora, 2015. Cap.: 2, p. 87-115.

OLIVEIRA, Bruno Pacheco de. Quebra a cabaça e espalha a semente: desafios para
um protagonismo indígena. Rio de Janeiro: E-Papers, 2015.

OLIVEIRA, João Pacheco de. FREIRE, Carlos Augusto da Rocha. A Presença


Indígena na Formação do Brasil. Brasília: Ministério da Educação, Secretaria de
Educação Continuada, Alfabetização e Diversidade; LACED/Museu Nacional, 2006.

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ISBN: 978-85-415-0980-0

PEIXOTO, José Adelson Lopes. Memórias e Imagens em Confronto: Os Xucuru-


Kariri nos acervos de Luiz Torres e Lenoir Tibiriçá. 2013. 140f. Dissertação –
Universidade Federal de Paraíba, João Pessoa.

PETI. Atlas das terras indígenas do nordeste. Museu Nacional, 1993.

PORTELA, Cristiane de Assis. Por uma história mais antropológica: indígenas na


contemporaneidade. Sociedade e Cultura, Goiânia, v. 12, n.º 1, p. 151-160, jan./jun.
2009.

SANTOS, Carlos José Ferreira dos. “Histórias e Culturas Indígenas”- alguns desafios
no ensino e na aplicação da lei 11.645/2008: de qual história e cultura indígena estamos
mesmo falando? História e Perspectivas. Uberlândia, p. 179-209, jan./jun. 2015.

SILVA, Edson Hely. Povos Indígenas no Nordeste: Contribuição a Reflexão Histórica


sobre o Processo de Emergência Étnica. Revista de Humanidades. Rio Grande do
Norte: Centro de Ensino Superior do Seridó, v.4, n.º 7 – p. 39-46, fev./mar. 2003.

Terras indígenas: E agora palmeira? 2015. Disponível em:


http://minutopalmeiradosindios.com.br/noticia/3330/2015/03/14/terras-indgenas-e-
agora- palmeira. Acesso em: 01 dez. 2016.
Xukuru-Kariri. Carta do Povo Xukuru-Kariri. Disponível em http://campanhaxukuru-
kariri.blogspot.com.br/p/carta-do-povo-xukuru-kariri_6536.html. 2013. Acesso em: 30
nov. 2016.

A LEI DE Nº 11.645/2008 E A FORMAÇÃO DE PROFESSORES NO AGRESTE


DE PERNAMBUCO
Maria José Barboza
Mestre em História – UFPE
e-mail: mariajose.barboza@yahoo.com.br

1 - Legislação 11.645/2008: mobilizações indígenas

O século XIX por meio da fala oficial promoveu o discurso acerca do


desaparecimento dos índios, quando os presidentes de província, entre outros,
afirmavam em seus relatórios que não existia mais índios, pois estes estavam
“misturados ou confundidos na massa da população”. Assim, criaram o que chamamos
de “homogeneização caboclizadora”, negando a identidade indígena na sociedade
brasileira, especialmente, em Pernambuco.

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Os índios silenciados pelo discurso oficial continuaram suas lutas por meio de
mobilizações e reivindicações que questionam explicações históricas como a tese do
desaparecimento e o extermínio nos primeiros anos de colonização. Além disso, buscam
suas origens nos aldeamentos extintos no século XIX, assumem suas identidades e
buscam direitos garantidos pela Constituição de 1988.
As mobilizações indígenas no Nordeste promove a superação da visão que
considera os índios vítimas da colonização e afirmam seus lugares como agentes
históricos que (re) escrevem a história da região e do Brasil. Somadas as mobilizações,
estudos recentes sobre os índios no Nordeste, por meio de abordagens e diálogos
interdisciplinares também questionam o suposto desaparecimento dos índios e
explicações simplistas acerca da mestiçagem, contribuindo para um maior
conhecimento das relações coloniais entre índios e não índios, bem como para a
compreensão dos processos históricos de afirmações étnicas na região aonde os povos
indígenas continuadamente vem sendo atores/sujeitos. (SILVA, 2017, p.15)
O resultado das mobilizações é, entre outros, uma sociedade que se repensa e se
descobre plural. Pluralidade expressa também pelos povos indígenas em diferentes
contextos sociohistóricos. Contexto que exige medidas governamentais para atender
diferentes sujeitos e políticas públicas que reconheçam, respeite e garanta as
diversidades sócias:
Um exemplo disso é, na educação, a formulação de políticas educacionais
inclusivas das histórias e expressões culturais no currículo escolar, nas
práticas pedagógicas. Essa exigência deve ser atendida com a contribuição de
especialistas, a participação e envolvimento plenos dos próprios sujeitos
sociais na formação de futuros /as docentes, na formação continuada
daqueles/as que atuam e fundamentalmente na produção de subsídios
didáticos, sejam nas universidades, nas secretarias estaduais e municipais,
para o ensino em todos os níveis escolares. Só a partir disso é que deixaremos
de tratar as diferenças socioculturais como estranhas, exóticas e folclóricas,
de modo a (re)conhecer em definitivo “os índios” como povos indígenas, em
seus direitos de expressões próprias que podem contribuir decisivamente para
a nossa sociedade, para todos nós. (SILVA, 2013, p. 39 - 40)

Nesse sentido a promulgação da Lei 11.645/2008 que determina a


obrigatoriedade do ensino de História e Cultura Afro Brasileira e Indígena na educação
básica, especialmente, nas disciplinas de História, Literatura e Artes, representa um
avanço no processo de reconhecimento da contribuição de negros e índios para a
construção da sociedade brasileira, simultaneamente, se tornou um meio de combate ao
racismo e à discriminação nas escolas brasileiras. ( FONTENELE, 2016, p.15 )

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A legislação suscitou discussões relativas ao ensino da temática e conhecimento


sobre as culturas indígenas no Brasil, repercutindo diretamente nas práticas docentes,
uma vez que muitas leis são impostas, sem que haja uma preparação adequada dos
mesmos para os objetivos buscados através da legislação. (Idem) Todavia, é importante
ressaltar que muitos professores que atuam hoje nas escolas não tiveram uma formação
em que os povos indígenas estivessem presentes. São muitas as gerações de docentes,
sobretudo, de história que foram formados a partir de um “conhecimento fundamentado
nos pressupostos disseminados nos séculos XIX e boa parte do XX”, que faz referência
aos indígenas apenas no processo de conquista, esquecendo-se dos demais contextos”.
(SILVA, 2013, p.75)
A Lei 11.645/2008 representa um avanço, é fruto de lutas, conquistas. Mas não é
garantia de que resolveremos as questões que dificultam o ensino da História Indígena.
Sua existência não implica na exclusão das lacunas ou dos equívocos cometidos em
relação à história desses povos no Brasil. Para que possamos vencer as lacunas, romper
com tantos estereótipos e equívocos em relação a tais povos, se faz necessário
juntamente com a lei à preparação de professores para lidarem com a questão em sala de
aula. (SILVA, 2013, p.56)
É preciso uma reconstrução das concepções docentes, ou seja, uma releitura da
história para os que tiveram pouco ou nenhum acesso à temática indígena no processo
de formação acadêmica ou em formação continuada. As releituras devem estar
associadas ao desenvolvimento das pesquisas na elaboração de materiais didáticos
adequados. Do contrário, todo o esforço será negativo resultando no fortalecimento de
estereótipos, “práticas discriminatórias e preconceituosas utilizadas no tratamento para
com os indígenas, estejam eles no passado ou convivendo conosco em nosso dia a dia”.
(Idem, p. 56-57)
No Brasil existem atualmente 305 povos indígenas, que formam uma população
com aproximadamente 900 mil pessoas, falantes mais de 274 línguas e dialetos. Os
dados são de um levantamento feito pelo IBGE por ocasião do “Dia do Índio” em abril
de 2013 tendo por base o Censo 2010. Segundo o documento, feito em parceria com a
Funai, 63, 8% viviam em áreas rurais e 36.2%, nas cidades. Dos que habitavam em área
rural, 517 mil estavam em terras oficialmente conhecidas como indígenas. Esses dados
mostra-nos que se trata de uma grande diversidade, que não é apenas cultural ou
linguística, mas também de experiências históricas.

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Quando os europeus chegaram ao território que viria a se tornar o Brasil,


entraram em contato primeiramente com os povos Tupi do litoral, que por
essa razão são representados em textos e imagens desde o século XVI. Por
outro lado, muitos povos vivenciaram o contato com os nãos indígenas
apenas no século XX. E existem, ainda hoje, grupos que por opção, não
entraram em contato com a sociedade envolvente. (NOBRE, 2017, p.11)
.
Podemos observar que a diversidade cultural, presente ao longo da história
nacional é imensa. Todavia, predomina no Brasil um desconhecimento, uma
desconsideração dos povos indígenas. No geral, sua existência é reconhecida e admitida
na Amazônia ou no Xingu. Diante disso, a promulgação da Lei 11.645/2008 constituiu
um caminho de (re)conhecimento e valorização das sociodiversidades no Brasil.
Simultaneamente, impulsiona as discussões acerca da temática indígena na sala de aula,
que é um tema de grande pertinência na contemporaneidade. (NOBRE, 2017, p. 12)
A Lei de nº 11.645/2008, sancionada em 10 de março de 2008, alterou a
legislação de nº 9.394 de 20 de dezembro de 1996, modificada pela Lei nº 10.639, de 9
de janeiro de 2003, que estabelece as diretrizes e bases da educação nacional, para
incluir no currículo oficial da rede de ensino a obrigatoriedade da temática “História e
Cultura Afro-Brasileira e Indígena” em todas as escolas brasileiras, de ensino
fundamental e médio, públicas e privadas. Mas para que Lei se efetive, são necessárias
reflexões críticas sobre a forma como a temática tem sido abordada, além de
capacitação de professores e professoras, os que estão atuando e os que estão em
formação, para que esse tema seja abordado satisfatoriamente, além da adequação e
produção de materiais didáticos, conforme mencionado por Silva (2013) e Nunes
(2017).

2 – Formação de professor e a temática indígena no Agreste de Pernambuco

Considerado tais aspectos o objetivo desse trabalho é investigar o ensino de


temáticas de História e Cultura Afro Brasileira e Indígena na formação de professores
em faculdades do Agreste de Pernambuco, como desdobramentos das determinações
contidas na legislação 11. 645/2008. Todavia, esclareço que meu foco nesse trabalho é
pensar, especialmente, como a temática indígena vem sendo contemplada nas
Instituições de Ensino Superior. Segundo o Parecer (CEB-CNE 14.2015) as Instituições
de Educação Superior tem demonstrado preocupação quanto à implementação da
legislação em questão, desenvolvendo ações importantes no campo de pesquisa,

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elaboração de material didático e formação de professores, através de seus diferentes


núcleos.
Visando atender as demandas apresentadas pela legislação, algumas instituições
de Educação Superior, inclusive, criaram em seus programas disciplinas obrigatórias e
optativas, além de projetos multidisciplinares em seus diferentes núcleos para
contemplar a temática. Ações imprescindíveis para a inserção de conhecimentos,
valores e práticas relativas á temática:
Convergentes com as Diretrizes Nacionais definidas para a Educação em
Direitos Humanos e Educação para as relações Etnico-Raciais, tanto nos
currículos de cada etapa e modalidade da Educação Básica, bem como, nos
cursos de graduação e pós-graduação, por meio de Projetos Políticos
Pedagógicos (PPP), Planos de Desenvolvimento Institucionais (PDI) e
Projetos Pedagógicos de Cursos (PDC). (Parecer, CEB-CNE 14.2015, p. 6)

Todavia, cabe ressaltar que existem muitas incompreensões acerca do que


determina a legislação 11.645/2008 referente à história e cultura dos povos indígenas,
quando, por exemplo, são desenvolvidas ações voltadas para a criação e manutenção de
escolas indígenas e a formação de professores para atuarem nesses estabelecimentos
educacionais. Muitas vezes baseados na ideia geral de diversidade e de respeito à
mesma, mas sem ação específica para tratar o tema nas escolas. E, em alguns casos as
ações são realizadas sem orientação histórica, linguística e antropológicas, contribuindo
com a reprodução de equívocos, estereótipos, preconceitos, tradicionalmente utilizados
contra os povos indígenas e tão presente no imaginário brasileiro.
Para superar problemas como a reprodução de estereótipos, generalizações dos
traços culturais de um povo para todos os povos indígenas, a imagem do indígena como
um ser do passado em função do colonizador, preconceitos vários, é necessário que os
sistemas educacionais, particularmente, professores responsáveis pela elaboração e
distribuição de material didático e pedagógico conheçam a temática, estejam atentos à
maneira como o tema vem sendo desenvolvido nas IES. Embora haja instituições de
ensino que desenvolvem importantes ações no campo da pesquisa e do ensino relativos
à temática, existem muitas lacunas e um longo caminho a percorrer, visto que a criação
de disciplinas de relações étnico-raciais na formação de professores é um norte, mas
pode não ser suficiente, considerando, o modo como os povos indígenas são abordados
em tais disciplinas. A existência das mesmas não é garantia de que o tema seja abordado
satisfatoriamente, como pude notar ao realizar algumas entrevistas.

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Para a realização desse empreendimento observei a grade curricular de duas


instituições de ensino da rede privada do Agreste de Pernambuco – as quais serão
chamadas de Faculdade Paranambuco1 e Faculdade do Ipanema2 - , além da realização
de entrevistas formais e informais com professores recém-formados e em fase de
conclusão dos Cursos de Pedagogia e História das respectivas Instituições de Ensino
Superior. No que concerne às grades curriculares, existem cadeiras que tratam sobre
relações étnico-raciais nas duas instituições. Na primeira se trata da disciplina
“Diversidade, gênero e Relações Étnico-Raciais”, que é ministrada no curso se
Pedagogia, História e Letras. Para a segunda, apenas na graduação em Pedagogia existe
uma disciplina intitulada “Educação das Relações Étnicos-Raciais” que é o único curso
de formação de professor oferecido por essa instituição.
O título das disciplinas mencionadas possibilita ver que a temática indígena está
ou pode está inserida na formação de professores dessas instituições. Mas não oferece
detalhes sobre o modo como a tema é abordado. O que suscitou perguntas cujas
respostas foram obtidas através das entrevistas. As perguntas elaboradas foram as
seguintes:

• Como você (senhor/senhora) ver a História dos Índios Brasileiros?


• Ao longo de sua formação acadêmica a História e Cultura Indígena vem
sendo contemplada? Se sim, de que forma?
• Você (senhor/senhora) conhece a Legislação que determinou a
obrigatoriedade do Ensino de História e Cultura Afro-Brasileira e
Indígena?
• De que maneira o curso: Diversidade, Gênero e Relações Étnico-Raciais,
aborda a temática indígena?
• De que maneira o curso “Educação das Relações Étnico-Raciais”
trabalha com a temática indígena?

As entrevistas com os graduandos/as não foram muitas, mas possibilitou uma


maior compreensão de como a temática é abordada nos espaços analisados. As respostas

1
Paranambuco, temo da língua Tupi, ou, como escreveu Gabriel Soares de Sousa no século XVI: “um
porto que se diz Pernambuco, por uma pedra que junto dele está furada no mar, que quer dizer pela língua
do gentio, mar furado”, expressão usada para explicar uma série de fatores naturais que incluía a erosão
causada pela águas salgadas e as doces em partes dos arrecifes.(BARTIRA, 2007, p. 60)
2
Ipanema, termo da língua Tupi. Nome dado ao aldeamento do Ipanema em Águas Belas, extinto na
segunda metade do século XIX.

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serão apresentadas de acordo com a sequência das perguntas e a ordem de apresentação


das instituições de ensino ao longo do texto, ou seja, primeira Faculdade Paranambuco
para a qual usarei a sigla (FP), segunda Faculdade do Ipanema – FB.
Em relação à entrevista com uma estudante da FP, que atua como professora de
História na rede municipal de ensino e está concluindo sua graduação em História, as
respostas foram seguras, conscientes da lacuna ou lacunas em relação ao ensino da
temática indígena no processo de formação. Quando perguntada sobre a forma de ver os
povos indígenas, afirmou que os mesmos fazem parte de um grupo silenciado ao longo
da História do Brasil, mas que há muito vem reivindicando seu espaço em nossa
sociedade – segundo a mesma “preconceituosa e elitista”.
Ao falar sobre o tema em sua formação, alegou que o mesmo foi enfatizado na
disciplina Prática de Ensino, na qual a cultura indígena é discutida em um contexto mais
amplo, como suas lutas sociais, os preconceitos que grupos indígenas sofrem em
sociedade, suas resistências e políticas de afirmações. Demonstrou saber da legislação
que regulamenta a obrigatoriedade do Ensino da História e Cultura Afro-Brasileira e
Indígena em todos os níveis do ensino, mas afirmou que as políticas educacionais
voltadas para o ensino da temática são vistas no espaço escolar como conteúdo
secundário, uma vez que o ensino de Português e Matemática são tidos como
prioridades:

Como sabemos toda escola é permeada por uma autonomia própria, e nem
sempre essa lei é vista como o devido valor, ou seja, as políticas educacionais
veem o ensino da cultura afro-brasileira e indígena como conteúdos
secundários, enfatizando disciplinas como Português e Matemática como
prioritários. (TAMAIN, entrevista concedida novembro de 2017)

Quanto à disciplina ministrada nos cursos de Pedagogia, História e Letras


“Diversidade, Gênero e Relações Étnico-Raciais”, voltou a afirmar que a única
disciplina estudada que reflete sobre os índios brasileiros é Prática de Ensino. Concluiu
dizendo que “o professor/a não adquire ao longo de sua formação ferramentas
suficientes para lidar com os diversos cenários que encontraremos no espaço escolar”.
A graduanda do 6º período do curso de Pedagogia da FI, afirmou que os índios
são nossos principais antepassados porque quando os portugueses chegaram aqui, eles
estavam. Nas palavras da mesma “não foi uma descoberta, mas uma invasão. Os
portugueses invadiram as terras que já tinham dono e passaram a explorar”. Para a

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mesma muitas comunidades indígenas não existem mais, algumas línguas estão se
perdendo e que a cultura indígena não está sendo preservada.
Quanto à temática indígena em sua formação, relatou que no quarto período teve
uma cadeira denominada “Educação e Relações Étnico-Raciais” que tratou de vários
aspectos relativos ao tema e não apenas os índios. Segundo Iara: “eles foram abordados
e não foi ressaltado. Estás entendendo? A gente só teve essa discussão nessa cadeira,
eles não foram ressaltados porque fomos mais para as religiões afro-brasileiras”. Quanto
à legislação 11.645/2008 demonstrou não ter nenhum conhecimento ou não lembra se a
mesma foi citada em alguma situação ao longo do curso mencionado acima.
Para além das falas das graduandas das Faculdades Paranambuco e Ipanema,
foram entrevistadas pedagogas recém-formadas, de uma faculdade da capital do estado
que atua por meio de polos em cidades do Agreste de Pernambuco, inclusive, em áreas
com presença indígena. As mesmas afirmaram desconhecer a legislação 11.645/2008 e
que ao longo da graduação não tiveram nenhum disciplina ou módulo, no qual a
temática indígena tenha sido contemplada. O que mostra que apesar de implementada, a
legislação não está consolidada.
Sua consolidação depende de vários fatores políticos e sociais como:

Mobilizações de setores da sociedade preocupados em garantir a democracia


no Brasil, sejam progressistas, legalistas, intelectuais, associações de classes
e, especialmente, os diversos grupos ligados aos meios acadêmicos, com o
intuito de pressionar vereadores, deputados e senadores no sentido de evitar o
avanço de projetos que tramitam nas esferas legislativas, municipais,
estaduais, federal, que colocam em risco diversas conquistas democráticas e
um dos pilares da educação no século XXI: o aprender e o conviver.(
FONTONELE, 2017, p 147)

Para Fontonele (2017, p. 147) o Brasil precisa continuar a se afastar de um


modelo educacional autoritário e racista que ao longo da história trouxe marcas
negativas. Para isso é preciso que a sociedade civil e os diversos setores que lutam por
uma educação de qualidade se unam e se mobilizem para se opor a qualquer projeto de
lei que esteja contrário a construção de uma sociedade e escolas plurais, democráticas,
conhecedora e respeitadora de suas sociodiversidades. Por isso, a inclusão da temática
indígena tem valor fundamental porque almeja promover a formação de cidadãos ativos,
conscientes do caráter plural da sociedade brasileira. O que contribui positivamente para
o fortalecimento das relações entre os diversos grupos e a convivência democrática,
marcada pelo respeito, aceitação mútua e diálogos entre culturas.

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Trata-se de produzir um novo olhar acerca da pluralidade de experiências


socioculturais presentes no Brasil;

o que exige, em termos de metodologia de ensino, que essa temática seja


trabalhada durante todo o período de formação do estudante, em diferentes
disciplinas e com diferentes abordagens, sempre atualizadas e plurais,
evitando que o tema fique restrito a datas comemorativas. (Parecer, CEB-
CNE 14.2015, p. 8)

O que nos remete a importância da inserção da temática indígena no ensino


superior, especialmente, nas licenciaturas. Simultaneamente, podemos ver que apesar de
algumas instituições de Educação Superior, terem criado em seus programas disciplinas
obrigatórias e optativas, essas ações ainda não são suficientes para preencher as lacunas
que existem no processo de formação de professores. Pois as falas das graduandas
entrevistadas evidenciam lacunas, estereótipos, bem como, os avanços acerca da
compreensão da temática indígena.
Suas falas apontam para a importância e a necessidade da formação continuada,
tanto para professores que atuam nas escolas há muitos anos, que concluíram sua
graduação antes de 2008, e, portanto não foram laureados com uma formação
acadêmica para o ensino de História e Cultura Afro Brasileira e Indígena. Para os que se
graduaram recentemente e não foram receberam formação relativa ao tema. Uma vez
que os encontros de formação continuada são importantes para o aprofundamento
dessas e outras questões por professores em geral, considerando que o processo de
formação humana é permanente, as transformações vão acontecendo aos poucos, entre
afinações e desafinações.

DOCUMENTOS
Relatório: Parecer CEB – CNE 14. 2015
Entrevistas

REFERÊNCIAS
ALMEIDA, Regina Celestino de. A atuação dos indígenas na História do Brasil:
revisões historiográficas. Revista Brasileira de História, São Paulo, 2017.
BARBOZA, Maria José. “Civilização” e “Moralização de Índios na Província de
Pernambuco entre 1850-1889: mão de obra indígena. Dissertação de Mestrado –
PPGH-UFPE, Recife, 2015.

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BARBOSA, Bartira Ferraz. Paranambuco: poder e herança indígena. Recife: Ed.


Universitária da UFPE, 2007.
FONTENELE, Zelfran Varela. O Ensino de temas de História e Culturas Afro
Brasileiras e Indígena em Escolas Públicas de Ensino Médio. Dissertação de
Mestrado em Ensino, PPGE-UERN, Pau de Ferros – RN, 2016
NOBRE, Felipe Nunes. Nos meandros do (re)conhecimento: a temática indígena em
livros didáticos de história no contexto de implementação da lei 11.645/2008 (2008-
1014). Dissertação de Mestrado – PPGH-UFP, Pelotas, 2017
SILVA, Edson Hely. Índios no Nordeste: por uma História Socioambiental
Regional. Disponível em: www: cadernosdoceas.ucsal.br, 2017.
_________, SILVA, Maria da Penha.(orgs.) A Temática Indígena na Sala de Aula:
reflexões para o ensino a partir da Lei 11.654/2008. Ed. Universitária da UFPE,
Recife, 2013.

A METODOLOGIA KELLYANA APLICADA À TEMÁTICA INDÍGENA

Rosemary Pinheiro Da Paz


Mestranda em Ciências da Religião - PPGCR/UNICAP. Graduada em Licenciatura em
História – UFRPE
SEDUC-PE
rosemarypaz@yahoo.com.br

Drance Elias da Silva


Pós-doutorado pela Escola Superior de Teologia - RS (Faculdades EST). Líder do
Grupo de Pesquisa (CNPq) Religiões, Identidades e Diálogos. Editor da Revista
Teologia e Ciências da Religião da UNICAP.
dranceelias1991@gmail.com

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A cultura não é apenas o conjunto das manifestações artísticas e materiais. É


também constituída pelas formas de organização do trabalho, da casa, da família, do
cotidiano das pessoas, dos ritos, das religiões, das festas. As diversidades étnicas,
sexuais, religiosas, de gerações e de classes constroem representações que constituem as
culturas e que se expressam em conflitos de interpretações e de posicionamentos na
disputa por seu lugar no imaginário social das sociedades, dos grupos sociais e de
povos. (BRASIL, 2006).
Nos dias atuais os povos indígenas estão em evidência, principalmente em
termos culturais e históricos. Esse protagonismo indígena é causado pela lei 11.645 de
10 de março de 2008, com esta lei a disciplina de História do Brasil passa a ter a
obrigatoriedade do ensino de história e cultura indígena nas nossas instituições de
ensino.
No entanto é sabido que no âmbito escolar atual há uma veiculação da imagem
do índio ao mesmo índio do século XVI, nus, com pinturas corporais, moradores das
florestas, vivendo em “tribos”. Ainda perdura uma visão etnocêntrica e evolucionista de
raças em que o índio é colocado como um selvagem. Assim como, a religião desses
povos é demonizada e os rituais são atrelados às práticas de feitiçaria.
Verificamos as limitações na prática docente no que se refere ao cuidado com os
conteúdos curriculares sobre a temática indígena assim como as dos estudantes quanto
ao entendimento da cultura indígena. Portanto, Consideramos pertinente uma pesquisa
com a utilização de uma seqüencia didático, o Ciclo da Experiência de George Kelly,
como um mediador pedagógico que pode contribuir de forma significativa para superar
alguns obstáculos no processo de ensino-aprendizagem sobre a temática indígena.
Foi escolhido o Povo Fulni-ô1 do Estado de Pernambuco para também
desmitificar a idéia de que só existem índios na Amazônia. Com a utilização da
metodologia do Ciclo da Experiência este trabalho tem o propósito de analisar a
mudança de concepção alcançada ou não pelos estudantes do 3º Ano do Ensino Médio
de uma escola pública não-indígena localizada numa região urbana.

1
Os Fulni-ô vivem no município de Águas Belas que fica numa distância de 310 Km da cidade do Recife,
do estado de Pernambuco. A reserva indígena está dividida em três núcleos: a Aldeia Sede que é onde
eles vivem também é chamada de Aldeia Grande, a Aldeia do Ouricuri onde se reúnem para um retiro
espiritual anualmente e a Aldeia de Xixiakhlá, que significa muitas catingueiras em Yathê. O município
está localizado no polígono das secas.

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Ao estudarmos a cultura indígena também estaremos estudando a relação do


índio com a terra, com a natureza, e com o sagrado. Neste sentido, a Ciências da
Religião contribui para o ensino de História por trazer uma compreensão renovada do
fenômeno religioso, enraizada na própria vida humana, não é somente por via teórica e
acadêmica, mas também a partir de uma nova perspectiva sobre a imagem do homem e
do mundo - social, cultural, econômica, política etc. trata-se de observar a significação
histórica e não simplesmente de dar uma significação histórica, segundo Passos (2013,
p.635).
São elementos da cultura do povo Fulni-ô e que ao mesmo tempo se traduz
como resistência identitária: a língua, o Yatê, as danças Cafurna, o Toré e o Samba de
Coco Fulni-ô, e o ritual Sagrado do Ouricuri. Todos são expressões culturais e religiosas
realizadas na língua nativa. As representações e os símbolos culturais desse povo são
traços diacríticos que também vem atender as demandas políticas de reconhecimento
como povo indígena. É o que Grünewald (2005) vai chamar de um regime de índio2
quando se promove e se consolida essas características de identificação e manutenção
da etnicidade indígena.
É o único povo indígena do nordeste que ainda mantém a língua nativa Yatê, que
significa “nossa fala”, “nossa língua” e que é ensinada oralmente dentro do seio
familiar. O Yatê tem uma importância cultural e simbólica além de ser um elemento
fundamental de identificação indígena para os Fulni-ô, pois o fato de se ter e de se
manter uma língua própria é o diferencial perante a população civilizada com as quais
eles têm convivência. Apesar de nem todos os Fulni-ô dominarem a língua nativa ainda
assim é uma distinção étnica em relação aos não-índios de Águas Belas. Assim relata
Quirino (2006, p. 96):

Para todos os efeitos, as representações, as idéias, toda manifestação


simbólica presente na sociedade, incluindo as formas de pensamento e as
normas do Estado, a respeito de grupos étnicos estão assentadas no fato de
que para os membros de um grupo serem considerados índios precisam falar
um língua específica, apresentar rituais próprios, seguir uma forma de
religião distinta.

Reesink (2000, p. 366) vai afirmar que os Fulni-ô se escudam no ritual e na sua
língua para se auto-afirmar como o bastião de resistência indígena do Nordeste e se

2
Consideram-se índios aqueles que participam da tradição do toré, sendo, preferencialmente "regimados"
na mesma, detendo a "ciência do índio", aqui entendida como um corpo de saberes dinâmicos sobre o
qual se fundamenta o "segredo da tribo".

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consideram, em função disso, algo superior aos outros povos da região. E assim o
Yaathê é utilizado como um instrumento no discurso político da etnicidade do povo
Fulni-ô, pois sem a manutenção da língua e da religião a condição étnica do grupo está
ameaçada. Outra importância que a língua tem é de proteger os segredos religiosos e
decisões do grupo que os não-índios não podem conhecer. Quirino (2006, p.103) relata
a relação existente entre a língua e a religião Fulni-ô, pois os saberes, os valores, a visão
de mundo, as crenças e rituais inscritos no universo sagrado são compartilhados e
difundidos apenas entre ele, e, sobretudo, através da língua.
A religião Fulni-ô também resistiu às imposições da Igreja Católica que tentou
modificar os valores espirituais dos indígenas. Entretanto, de fato, sua influência não
passou despercebida, visto que os Fulni-ô também se julgam católicos, pois cultuam a
Nossa Senhora da Conceição, considerada a sua padroeira e possuem uma capela na
aldeia. No mês de fevereiro realizam uma grande festa para homenagear a Nossa
Senhora da Conceição, realizar casamentos e batizados. Mas não costumam ir à missa
na cidade e nem também, de realizar missa na capela. Como já mencionado antes, os
Fulni-ô mantiveram a sua essência religiosa
Quanto ao Ouricuri é um espaço sagrado onde é realizado um retiro espiritual
no período de setembro a novembro, todos os anos. A terra não é apenas o meio de
sobrevivência e fonte de alimentos para os fulni-ô, ela representa o espaço em que eles
podem reconhecer, repassar e produzir conhecimentos e crenças. Apenas participam
desse ritual os fulni-ô, os brancos3 só entram no espaço sagrado com a permissão do
Cacique. O que acontece durante o Ouricuri é mantido em segredo, apenas uma parte é
de domínio público. Percebemos assim o quanto a religião assume um papel
fundamental para os Fulni-ô por estar em continua afirmação identitaria para o grupo
como também para os não-índios, portanto, sendo um instrumento de afirmação étnica
em defesa dos direitos dos índios.
O ambiente escolar se constitui por uma diversidade de indivíduos que são
parte de grupos sociais com diferentes concepções políticas, cultural e religiosa, que
representam uma real amostra da formação histórica cultural do nosso povo brasileiro.
Portanto, o reconhecimento da diversidade na educação se faz necessária e por isso vem
sendo um tema bastante recorrente nas discussões a cerca do currículo, das práticas

3
Utilização da palavra “branco” em referência aos não-índios por eles, os fulni-ô, assim preferirem
chamar.

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pedagógicas, dos valores culturais e da formação dos estudantes do ensino médio do


Brasil.
Em respeito às sociodiversidades no Brasil a Lei 11.645/2008 determina que
todas as escolas, públicas e privadas, devem ensinar a História e culturas afro-brasileiras
e dos povos indígenas no Brasil. Esta lei surge como resultado de lutas de movimentos
negros e indígenas por reconhecimento de suas etnias, de sua cultura, de suas religiões.
Entretanto ainda não foi possível acabar com os preconceitos raciais e com a
discriminação étnica, como também, de promover uma igualdade social.
No Brasil existem hoje 305 etnias indígenas, distribuídas pelo território
brasileiro, refletindo claramente o movimento de expansão populacional, cada uma com
sua língua, costumes, tradições, cosmovisão e formas próprias de organização social,
política e econômica, que compõem uma realidade multissocietária e pluricultural. No
entanto a temática indígena, nos dias atuais, ainda é pouco contemplada no cotidiano
escolar.
Na prática pedagogia das escolas de Ensino Básico o que se tem observado em
sua maioria, é uma reprodução da visão etnocêntrica fruto da formação dos professores
seja estes de pedagogia ou das licenciaturas. No universo escolar é possível perceber o
quanto a temática indígena se apresenta de forma preconceituosa, discriminatória e
estereotipada. Ainda é ensinado como um índio genérico, sem a pluralidade da
identidade étnica existente entre os diversos povos indígenas no Brasil. O índio é
estudado folcloricamente, na literatura é apresentado como o “bom selvagem”, um
personagem heróico e no máximo é estudado como parte da história do Brasil. Souza
Lima (apud COLLET, 2014, p.6) afirma que atualmente, existem duas formas de pensar
o ‘índio’, ora como o bom selvagem, ingênuo, protetor da natureza, ora como pessoa
desordeira, preguiçosa, que reclama terras demais, constituindo-se um empecilho para o
desenvolvimento do país. Para Funari (2014, p.115):

Mesmo limitada, a escola foi importante, tornando historicamente


significativo o fato de ter, por muito tempo, excluído a figura do índio da
representação do país, da sua língua, história e ambiente, quando não o
apresentou, de forma oblíqua, como atraso bárbaro a ser superado. Quando,
finalmente, a figura do índio foi incorporada, manteve em grande parte o
caráter exótico e externo à sociedade brasileira, tomada por uma unidade
relativamente homogênea

Então, a visão estereotipada e equivocadas construídas ao longo dos anos sobre


o índio na sociedade brasileira devem ser desconstruídas. E o ambiente escolar deve ser

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um ponto de partida nesse processo de superar essas concepções a respeito dos povos
indígenas, e assim promover uma transformação cidadã. Ao estudar e valorizar o
conhecimento sobre a história, a cultura e a religião do povo Fulni-ô também estaremos
nos aproximando dos seus costumes, da forma como se relacionam com a natureza, de
sua tradição, de seu modo ver o mundo. Ao estudarmos o universo religioso dos Fulni-ô
se faz necessário a compreensão de que eles vivem espiritualidades e teologias próprias,
relacionando-se com o sagrado de maneira singular. Sobre isso Brighenti (2010 apud
OLIVEIRA al DARELLA, 2013, p.89) afirma:
[...] tudo “tem alma” (são animistas), sejam humanos, animais ou plantas, por
esse motivo os indígenas mantêm uma relação de profundo respeito pela
natureza – a natureza é a morada dos espíritos. Respeitá-la é condição
indispensável à continuidade da espécie humana. O xamanismo é o elemento
central dessas religiões. Em cada povo, o xamã recebe um nome específico.
Os não-indígenas, costumeiramente, nominam a todos de pajé, mas esse
termo é específico para certa função e em determinados povos. As funções do
xamã podem ser de curador, sacerdote e conselheiro .

A relação do povo indígena com a natureza se dá a partir dos conhecimentos


construídos e transmitidos na relação entre as pessoas e o sobrenatural. Os cuidados
com a terra (plantio, colheita), as normas de convivência são ensinados oralmente, o
aprendizado ocorre à medida que se vai observando, conferindo e perguntando. Nas
palavras da Altmann (2009, p. 4) as religiões indígenas estão intimamente relacionadas
com a terra e com suas reais condições de sobrevivência física e cultural. O respeito à
sua religião passa pelo compromisso com suas lutas bem concretas e por sua busca por
qualidade de vida. Os povos indígenas não precisam de misericórdia, mas de justiça.
Um dos caminhos apontados seria o da educação intercultural em que as minorias, por
meio do domínio tanto dos seus códigos específicos quanto dos códigos “ocidentais”,
poderiam pleitear seu espaço na sociedade e na economia mundiais, PALADINO (2012,
p.14).
Para Silva (2016, p.59), a interculturalidade como ferramenta pedagógica tem
sido uma bandeira que os povos indígenas e quilombolas se apropriaram para o uso no
campo educacional, reivindicando uma educação específica e diferenciada, que respeite
a integridade das suas diferentes identidades, crenças, valores e tradições. A luta pelo
reconhecimento da sociedade indígena aparece na convenção 169/1989 4, Convocada em

4
O governo brasileiro com o Decreto nº 5.051, de 19 de abril de 2004 promulga a Convenção nº 169 da
Organização Internacional do Trabalho – OIT sobre Povos Indígenas e Tribais.

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Genebra pelo Conselho de Administração da Organização Internacional do Trabalho


(OIT) e reunida na mesma cidade em 7 de junho de 1989 em sua Septuagésima Sexta
Reunião, no artigo 31, que diz:

Medidas de caráter educativo deverão ser adotadas em todos os segmentos da


comunidade nacional, especialmente naqueles que estiverem em contato mais
direto com esses povos indígenas ou tribais, com o objetivo de eliminar
preconceitos que possam ter com relação a eles. Para esse fim, esforços
deverão ser enviados para assegurar que livros de história e demais materiais
didáticos ofereçam descrição correta, exata e instrutiva das sociedades e
culturas dos povos indígenas e tribais.

A incorporação da educação intercultural deverá ser introduzida nas escolas de


áreas urbanas, nas escolas não indígenas para que os estudantes não indígenas tenham
acesso à temática indígena. É importante perceber que a escola enquanto local de
desenvolvimento do processo ensino-aprendizagem e de diálogo entre saberes distintos,
socialmente construídos, permite a compreensão de si e do outro. Fornet-Betancourt
(2007) defende que a proposta de uma educação intercultural não é um modismo, mas
uma demanda histórica por justiça cultural, principalmente daqueles grupos que foram
marginalizados, reduzidos, silenciados e invisibilizados no decorrer dos tempos, dentro
e fora dos espaços escolares. Candau (2008, p. 23) vai defender o que mais tarde vai se
chamar de interculturalidade crítica

A perspectiva intercultural que defendo quer promover uma educação para o


reconhecimento do “outro”, para o diálogo entre diferentes grupos sociais e
culturais. Uma educação para a negociação cultural, que enfrenta os conflitos
provocados pela assimetria de poder entre os diferentes grupos socioculturais
nas nossas sociedades e é capaz de favorecer a construção de um projeto
comum, pelo qual as diferenças sejam dialeticamente incluídas.

É importante ressaltar que os elementos culturais dos Fulni-ô, a tradição


indígena (o Yaathê, Ouricuri e Toré) foram essenciais para o reconhecimento oficial do
grupo enquanto povo indígena pelo governo e os próprios Fulni-ô usam desses
elementos para afirmarem a sua indianidade. A experiência do sagrado indígena é
bastante complexa, se faz presente em toda a sua existência enquanto SER. Para
Junqueira (2009, p.451)

Para entender o complexo conjunto de concepções que as envolve, é preciso


seguir até o universo imaginário que lhes dá fundamento, em que são muitos
os fenômenos que se cruzam, sendo difícil estabelecer domínios separados,
limites claramente demarcados para manifestações da prática social, de
conhecimentos técnicos, de saberes espirituais e de procedimentos mágicos.

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De um modo ou de outro, todos concorrem para explicar, justificar ou


legitimar regras do convívio social, desempenhos rituais e intervenções
práticas.

Os Fulni-ô apresentam uma diferenciação étnica, cultural e religiosa por


acreditarem que ao manter em segredo, sua prática ritual o Ouricuri, estarão protegendo
a existência do povo Fulni-ô. Para Dantas (2007, p.151)

É o segredo que migra personificado no dia-a-dia Fulni-ô através do não-dito:


o silêncio, o tom enigmático do discurso, ações segredadas, etc. Ou seja, há
um segredo cultural que se expande em sentido de troca intersubjetiva em
vários níveis: no intercâmbio entre crença ancestral e simbologias religiosas
outras que perfazem a totalidade da experiência do sagrado Fulni-ô, entre seu
mundo social e o envolvente, na atuação política, enfim, quando o segredo da
crença torna sua cultura fonte inesgotável de atenção e atração.

Na visão de Oliveira (1999) os Fulni-ô apresentam uma indianidade mítico-


religiosa no Nordeste, onde o sentimento étnico elaborado simbolicamente, numa
indianidade/identidade re-construída a partir do sobrenatural (via ritual do Toré, Praiá,
Ouricurí, etc). Dessa forma a religião é um caminho a ser seguido para uma reflexão
crítica sobre o processo de vivência e de percepção espiritual numa aldeia indígena.
Portanto, ao promover um diálogo entre o saber etnohistórico e o saber religioso
estaremos contribuindo na construção do conhecimento sobre a temática indígena nas
escolas urbanas da sociedade não-indígena.
A pesquisa vai se estruturar em torno de uma intervenção didática que utilizará
o Ciclo da Experiência de George Kelly. Segundo Kelly (1963), os seres humanos
constroem sua realidade na qual respondem, e sua resposta está direcionada pelas suas
experiências, utilizando conceitos prévios similares para antecipar as conseqüências do
comportamento. As pessoas chegam a aprendizagem após várias tentativas de lidar com
o evento, ela muda sua estrutura cognitiva para compreender melhor suas experiências,
semelhante ao cientista que utiliza o método todo experimental para ajustar suas teorias.
Desta forma, a teoria proposta por Kelly é fundamentada em um postulado “Os
processos de uma pessoa são psicologicamente canalizados pelas formas com que ela
antecipa eventos“ (Kelly, 1963, p. 47). Nesta pesquisa o aspecto enfocado será: o Ciclo
da Experiência.
Esta teoria representa um conjunto de teorias psicológicas, associadas às
teorias ativas do conhecimento, considerando que as pessoas aprendem, ou constroem

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conhecimentos a partir de interações com representações da realidade (BASTOS, 1998).


A opção por esta metodologia foi feita tendo em vista o seu caráter interativo e
dinâmico, que possibilita uma maior aproximação entre o pesquisador e os alunos,
permitindo, ainda, uma multiplicidade de interpretações. É importante ressaltar que essa
pesquisa foi orientada para entender como os estudantes pensam e a partir de uma
intervenção didática pedagógica, se ele desenvolveu o seu processo cognitivo de
aprendizagem.
Para fazer parte do processo de investigação e análise da pesquisa foram
escolhidos os estudantes de uma turma do 3º ano do Ensino Médio da Escola Estadual
Zequinha Barreto, localizada no município de Jaboatão dos Guararapes. A turma era
composta por 36 alunos, mas apenas 10 alunos participaram das cinco etapas do Ciclo
da Experiência.
A seguir apresentam-se sucintamente cada uma das cinco etapas que compõem o
Ciclo da Experiência de Kelly: antecipação, investimento, encontro, validação e revisão
construtiva.
A intervenção foi realizada em 6 (seis) aulas, onde cada aula teve duração de
aproximadamente 90 minutos. As etapas 1 (Antecipação), 2 (Investimento), 4
(Confirmação) e 5 (Revisão Construtiva) foram realizadas em uma única aula cada,
com intervalo de 7 dias entre cada aula, ou seja, entre cada etapa. A etapa 3 (Encontro)
se desenvolveu em 2(duas) aulas com intervalo de 15 dias entre cada aula.
Antecipação: Nessa fase o estudante recebe o convite para participar de um
determinado evento. Os alunos procuram lembrar, de forma espontânea, mesmo que não
se expressem verbalmente, de tudo que já aprenderam, sistematicamente ou não, a
respeito daquele tema. Cabe ao professor registrar as hipóteses iniciais dos alunos para
que possa definir qual a melhor estratégia a ser seguida na etapa do encontro. A
motivação para realizar a antecipação é natural, ou seja, qualquer pessoa que ouça falar
de qualquer tema, objeto ou pessoa realiza essa etapa do ciclo, naturalmente.
(FERREIRA, 2005, p.44).
Nessa primeira etapa do Ciclo da Experiência foi dividida em dois momentos.
No primeiro foi apresentado o tema da pesquisa, onde foi explicada a relevância de se
estudar sobre a temática indígena com a inserção do Ciclo da Experiência, e também
como seria a estruturação dos encontros e a sua duração. No segundo momento teve
como objetivo identificar os conceitos, as concepções que os estudantes tinham sobre
Povos Indígenas, sua cultura e religião. Inicia-se a discussão, o choque das

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representações obriga cada um dos estudantes a precisar seu pensamento e a levar em


conta o dos outros.
Momento em que os estudantes foram convidados para participarem da
pesquisa, onde primeiro as turmas foram divididas em grupos e foi proposto que
retratassem a imagem do índio em cartolinas a fim de ilustrarem qual a imagem do índio
que permeia em suas mentes. Depois responderam ao questionário - Pré-teste - para
captar o que de conhecimento sobre povo, cultura e religiosidade indígena eles tinham.
O questionário foi composto por (7) sete questões básicas sendo duas (2) de caráter
pessoal e cinco (5) sobre a temática indígena.
Investimento: Na segunda etapa a pessoa se prepara para participar ativamente
do evento. As respostas ao questionário serão analisadas pelo pesquisador e a partir
delas vai se propor alguma ação( investimento) que estimule o encontro(próxima etapa).
Os estudantes foram convidados a participar de uma aula expositiva e da leitura
de textos:
1ª Texto: Esclarecendo alguns conceitos importantes5
2º Texto: Os índios falam tupi guarani, vivem em ocas e cultuam Tupâ?6

Encontro: É o momento em que o professor explica o assunto, através de aula


expositiva ou de experiências ou de qualquer outra forma. O professor aplica a
estratégia que achar mais conveniente para o seu público, levando em consideração as
hipóteses iniciais que os alunos apresentaram na etapa da antecipação (FERREIRA,
2005, p.45). Momento onde o sujeito entra em contato profundo com o objeto de
conhecimento. Esta etapa é dividida em dois momentos. No primeiro, foram convidados
assistir dois documentários sobre o povo Fulni-ô.
1º documentário: Conheça a cultura do povo Fulni-ô7
2º documentário: Índios Fulni-ô8

Após a conclusão dos vídeos foi realizado um debate. Então, percebendo


a curiosidade e através do pré-teste, o fato de a maioria dos estudantes nunca terem visto

5
Texto retirado do livro Quebrando Preconceitos, subsídios para o ensino das culturas e histórias dos
povos indígenas (Célia Collet, Mariana Paladino e Kelly Russo, p. 11-15).
6
Idem, p.43-45.
7
Documentário exibido no programa Expedições da TV BRASIL, disponível em
http://tvbrasil.ebc.com.br/expedicoes/conteudo/conheca-a-cultura-do-povo-fulni-o e acessado em:
11/07/2016.
8
Documentário exibido no programa Retratos da Terra da TV Pernambuco, disponível em <
https://www.youtube.com/watch?v=QtsP3mBJGHE> e acessado em: 11/07/2016.

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um indígena, foi pensada a necessidade de proporcionar esse encontro, esse contato com
o indígena. Mas devido à distância da localização do povo Fulni-ô em relação aos
estudantes da escola Zequinha Barreto, localizada na cidade de Jaboatão dos
Guararapes, a visita in loco não foi possível. No entanto, foi possível trazer um pequeno
grupo de quatro índios dos Fulni-ô representando seu povo para uma visita a escola.
Visando um momento de troca e de exercício da solidariedade pelos estudantes em
relação ao grupo que veio nos visitar foi solicitado aos estudantes da Escola a
contribuição de 1kg de alimento não perecível.
Não podemos deixar de registrar que foi um momento que alcançou a todos os
estudantes da referida escola no turno da manhã, pois a campanha de arrecadação de
alimentos foi ampliada para todos que quisessem colaborar, assim como a palestra
também foi proporcionada a todos do turno da manhã.
O grupo dos Fulni-ô pôde explicitar sobre a identidade indígena brasileira
fazendo a diferenciação como expressaram sua cultura através das danças, carfuna, o
toré e o samba de coco que é dançado pisado com o pé, ressaltaram que são todas
dançadas e cantadas na língua deles, o iate, o que os diferenciam dos outros povos.
Cada uma dessas danças tem significados relacionados à natureza, aos animais e aos
seus ancestrais. Citaram as diversas etnias indígenas existentes no Brasil e
especificamente, 16 em Pernambuco. Da importância de serem reconhecidos e
identificados pelo nome de seu povo de origem, fulni-ô e não por “índio” denominação
européia. Desmitificaram o imaginário dos estudantes quanto as suas vestimentas e
atividades econômicas, da necessidade de se inserirem nesse mundo globalizado,
chamaram a atenção para sua formação, que são professores formados e que, com
avanços tecnológicos, da necessidade de evoluírem, mas que ao mesmo tempo, não
deixam de cultivar as suas tradições culturais e religiosas.
Falaram sobre a sua relação com o sagrado, do retiro espiritual que fazem pelo
período três meses todo ano, o Ouricuri, momento dedicado a reviver a forma de vida de
seus antepassados, momento importante do ritual é a eleição de suas autoridades, do
Pajé, do Cacique e a Liderança. Momento em que um estudante perguntou: qual o
propósito desse confinamento? E prontamente o fulni-ô professor Macairi respondeu:

É agente viver como os nossos ancestrais viviam, é agente viver somente


falando o nosso idioma, é agente viver, vamos dizer: o católico e o
evangélico, ele vai para a igreja fazer o quê? Rezar, orar né. Da mesma forma
é agente, entra pra dentro da mata, e vai rezar, e vai orar, vai cantar né, vai
caçar, vai pesca, vai viver como os nossos ancestrais viviam.

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Em outro momento da palestra outro estudante perguntou sobre Tupã e o fulni-


ô responde o seguinte:

Como eu disse no início, a nossa tribo falo o iate e ele perguntou sobre Tupã
e Tupã é na linguagem tupi guarani e a nossa tribo não fala tupi guarani, o
tronco lingüístico da nossa tribo é do Macro jê, que hoje é conhecido como jê
né. E a nossa tribo não fala tupi guarani, fala outro idioma. E Tupâ na
linguagem Tupi guarani é Deus.

Em seguida perguntou-se sobre a moradia, se ainda moravam em oca e assim


foi respondido:

Há 50 anos atrás agente ainda morava em oca, mas como os fazendeiros lá de


boa viagem da cidade que gosta de invadir as nossas terras, então lá no
Ouricuri hoje a casa é de tijolo e alvenaria. Porquê? Por que agente planta
milho, batata e deixava la na casa de palha o homem branco vinha e
saqueava, e quando agente voltava do Ouricuri não tinha mais nada. Então
agente se sentiu na obrigação de fazer casa de cimento pra ser mais seguro
pra nós.

Só podem participar do retiro quem é fulni-ô. E que durante o retiro não podem
ter relações sexuais, existe até uma linha imaginária que separa as mulheres dos
homens, não podem consumir bebidas alcoólicas e nem ouvir músicas. Houve perguntas
sob a terra e para os fulni-ô a terra representa o suporte da vida social e está ligada às
suas crenças e ao reconhecimento do seu povo. Pois, é o lugar onde eles reconhecem,
repassam e produzem conhecimentos e crenças. É importante ressaltar que o grupo fez
questão de se apresentar aos estudantes com suas pinturas no corpo com desenhos para
poder explicar que cada pintura ou acessório por eles usado traz significados. No caso
das pinturas representam os animais da mata, como por exemplo, o gato do mato, mais
conhecido pelos não índios de onça.
Confirmação ou Desconfirmação (validação): a checagem dessas teorias
conduz à confirmação ou desconfirmação das mesmas; ocorre quando os alunos, diante
do encontro, puderam confrontar suas concepções com o novo conhecimento, com as
novas descobertas que fizeram confirmado-as ou não. Percebe-se, portanto, que à
medida que o aluno vai interagindo com o assunto, no momento do encontro, dá-se
também a sua validação, ou seja, ele é levado a rever ou não idéias anteriores, sempre
através de comparação com as informações adquiridas antes e durante os encontros.

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Nesse momento os estudantes foram convidados a responder um pós-teste, foi


aplicado o mesmo questionário, com as 7 perguntas do pré-teste, feitas pela
pesquisadora sobre a cultura indígena e a religiosidade Fulni-ô, as manifestações
religiosa indígena Fulni-ô e sobre a contribuição de participar do Ciclo da experiência
sobre a temática indígena.
Revisão construtiva: Última etapa do ciclo, a revisão construtiva, ocorre após
a confirmação ou desconfirmação da teoria, surge uma revisão dos pontos que geraram
problemas. O estudante se coloca a repensar toda a situação vivenciada, é importante
que o estudante perceba a mudança, caso contrário, não terá ocorrido à experiência.
Essa revisão poderá levar a formação de novas construções dessa relação.
Nesse momento foi pedido aos estudantes que fizessem um texto dissertativo,
onde pudessem colocar tudo o que foi aprendido sobre a cultura e religiosidade indígena
Fulni-ô. Desta forma, busca-se analisar se houve ou não um avanço nas concepções
acerca da religião indígena dos Fulni-ô a religiosidade durante o processo de ensino-
aprendizagem, baseado no Ciclo da experiência, por parte dos estudantes participantes
deste projeto.
Inicialmente, este trabalho teve como objetivo específico averiguar e comparar
se os alunos do 3º ano do Ensino Médio possuíam os mesmos tipos de concepções
eurocêntrica, genérica sobre o povo indígena, pois de acordo com a literatura isto já era
esperado. O que constatamos, a partir da análise do pré-teste na fase da antecipação,
momento em que eles desenharam a imagem do índio da forma que permeia em suas
mentes e de responder ao questionário sobre a temática indígena, foi: para eles todos
faziam parte de um mesmo povo Tupi Guarani e eles apresentavam as mesmas
dificuldades, tinham em mente uma idéia estereotipada sobre a forma de se vestir e
viver dos indígenas.
Com relação ao Ciclo da Experiência de Kelly, verificamos que a fase do
investimento provocou pequenas mudanças nas concepções dos alunos, ele
demonstraram mais aceitáveis a temática indígena. Com a leitura dos textos foi possível
introduzi-los no pluralismo dos povos indígena e quebrar alguns pré-conceitos
amplamente usados pelos estudantes. Na terceira fase do Ciclo, na qual se dá o encontro
com o evento, concluímos que a utilização de experimentos áudio-visual e o contato
com o povo fulni-ô possibilitou uma real mudança das concepções dos alunos.
Nosso objetivo, neste trabalho, foi colocar a necessidade de se debater sobre a
temática indígena na escola e propor uma intervenção didática-pedagógica que venha

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contribuir para o reconhecimento e valorização dos povos indígenas como previsto na


Constituição Federal de 1988 e na Lei 11.645/2008. Tal situação é especialmente
relevante para o ensino básico, que precisam de abordagens didáticas envolvendo essa
pluralidade de interpretações.
Esperamos contribuir para reduzir o desconhecimento e o preconceito sobre a
temática indígena, a cultura e religiosidade indígena, através do uso das cinco etapas do
Ciclo da Experiência como uma ferramenta teórico-metodológica para uma renovação
no ensino. Buscamos identificar os obstáculos apresentados pelos estudantes para ajudá-
los a superar. Partindo de níveis de conhecimento que os estudantes já dominam para
chegar aos níveis que eles precisam dominar.

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ANÁLISE E PERCEPÇÕES SOBRE A APLICABILIDADE DA LEI 11.645 EM


ESCOLAS DA REDE PÚBLICA E PRIVADA

Deisiane da Silva Bezerra


Mestranda em História pelo PPGH UFCG1
E-mail: deisybezerra@hotmail.com

Resumo: A obrigatoriedade da inclusão do ensino de história e cultura indígena em


escolas públicas e particulares, de acordo com a lei 11.645/08, contribui com a
disseminação da história e cultura indígena, incidindo sobre a percepção de mundo e
valores dos educandos. O trabalho do professor, concerne não apenas em introduzir
estes conteúdos às disciplinas, mas trabalhá-los numa perspectiva ampla, fazendo uma
análise reflexiva sobre o lugar do índio no passado, presente e futuro. Deste modo,
interessa-nos analisar as práticas de ensino e a receptividade do educando no estudo
dessas sociedades, considerando as expressões, religiosidades, cultura e organização
social diferenciada indígena. Para possibilitar essa discussão, nos fundamentaremos em
autores como: Edson Silva, Maria da Penha Silva, Circe Bittencourt, Leandro Karnal e
Jaime Pinsky. Utilizaremos pesquisa bibliográfica e análise qualitativa da relação
ensino/aprendizagem em escola, de nível básico, da rede pública e privada, situadas nos
municípios de Igaci/AL e Palmeira dos Índios/ AL.

Palavras-chave: Ensino. História indígena. Currículos.

Introdução

Considerando que os currículos trabalhados nas Escolas Indígenas seguem os


moldes traçados pelo Ministério da Educação – MEC, de acordo com a Lei 9.394 de
1996. A obrigatoriedade da inclusão da história e cultura indígena em escolas públicas e
particulares pela lei 11.645/08 propõe uma desconstrução de estereótipos arraigados no
imaginário da sociedade não-índia. Nesse sentido, os debates devem ser norteados na
perspectiva da interculturalidade crítica, refletindo a respeito das relações étnico-raciais
e reconhecendo as sóciodiversidades existentes no Brasil (SILVA, 2010).

1
Este trabalho é resultado de uma pesquisa de mestrado orientada pelo professor Dr. Edson Silva
UFPE/UFCG.

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Nessa perspectiva, discutir a temática indígena no Brasil significa lidar com


conceitos pejorativos, principalmente quando se trata de povos indígenas mais atingidos
pela colonização portuguesa. Pois as memórias do senso comum estão impregnadas de
informações incompletas e/ou deturpadas acerca dos índios no Brasil. Como imagens
cristalizadas e generalizantes das culturas indígenas vinculadas a um passado distante,
mais especificamente o momento inicial da colonização portuguesa no Brasil,
desconsiderando assim, o longo período de contato e processos de trocas culturais,
violentos ou espontâneos entre índios e não índios.

Discutindo Conceitos

Preservar, tem se limitado a guardar modelos engessados e simbólicos de


representação. Um interesse muito comum na sociedade contemporânea em manter
“vivos” e “intocáveis” símbolos que façam referência ao que reconhecem enquanto
identidade nacional. Assim, em fins do século XIX, quando nascia a nação brasileira, a
busca pela afirmação da identidade nacional carecia da representatividade simbólica
expressada nas raças que a constituíram (SILVA, 2016). Buscando na rememoração e
ritualização desses símbolos tradicionais, base para sua reconciliação com o passado,
firmando esses símbolos na categoria de patrimônio (BENJAMIN, 1987).

Construía-se no país uma nova paisagem sociocultural e política intensificada no


início do século XX. O que se tornou mais evidente a partir de 1922, quando ocorreu a
Semana da Arte Moderna em São Paulo, provocando mudanças na estética da Literatura
e das Artes no país. Os intelectuais anunciavam o início de uma perspectiva valorizando
aspectos como a liberdade de expressão e autonomia, no contexto de uma sociedade
conservadora, enquanto outros tinham posturas mais sóbrias e nacionalistas. Portanto,
existiam posições antagônicas em torno da chamada identidade brasileira, também
expressa na figura do índio, do negro e do mulato. Enquanto isso, na ótica dos
intelectuais do período, a exemplo de NINA RODRIGUES (1935) e ROMERO (1977),
a permanência dos costumes ligados as origens diversas da sociedade brasileira,
representava um atraso para a formação de uma identidade nacional para o povo
brasileiro.
Pesquisar as operações de ritualização cultural, contribui para compreensão das
relações da modernidade com o tradicional, bem como, a maneira que legitimam quem
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construiu ou se apropriou delas. O patrimônio é apropriado enquanto força política


quando é teatralizado, quando isto acontece em comemorações, monumentos e museus,
tornando-se um objeto identitário construído a fim de representar a essência nacional, e
também é evidenciado através das comemorações em massa. E, a escola, neste contexto,
serve a essa teatralização, necessária para fazer do patrimônio um símbolo de identidade
nacional. Porém, a ritualização em demasia, condiciona elementos aceitos como
constitutivos dessa identidade no Brasil, como os povos indígenas, às rotulações
(CANCLINI, 2013).

A excessiva ritualização – com um único paradigma, usado


dogmamente – condiciona seus praticantes para que se comportem de
maneira uniforme em contextos idênticos e incapacita para agir
quando as perguntas são diferentes e os elementos da ação estão
articulados de outra maneira. (CANCLINI, 2013, p.166).

Portanto, as aprendizagens formais e informais sobre as situações mutáveis têm


seu desempenho dificultado, quando deixam de ter espaço no mundo contemporâneo
em detrimento de imagens estáticas. O tradicionalismo, torna-se um recurso para
suportar essas “desordens sociais”, a exemplo dos resultados das experiências de
misturas, através dos contatos interétnicos, que não se encaixam aos modelos
cristalizados e pré-concebidos. Pois para se voltar ao passado, eles desconsideram
produtos culturais do presente (CANCLINI, 2013; OLIVEIRA, 1998).

A comemoração do passado “legítimo” daquele que corresponde à


“essência nacional”, à moral, à religião e a família passa a ser a
atividade cultural preponderante. Participar da vida social é agir de
acordo com um sistema de práticas ritualizadas que deixam de fora o
“estrangeiro”. (Idem, p.167).

O patrimônio se torna um depósito de tradições contidas em objetos. As visitas


aos museus, que deveriam ser importantes ferramentas a somar na aprendizagem
escolar, muitas vezes, se tornam palco, responsável por conter e proteger grupos
hegemônicos em um sistema ritualizado de ação social. Onde se pode encontrar
anacronismos e objetos organizados de modo a se desvincular do sentido social em que
são produzidos. Porém, contribuem também para a industrialização e democratização da
cultura. Ao considerar a retratação das culturas indígenas pelos museus, percebe-se que
em geral não há um cuidado em separar objetos de acordo com a etnia de que derivam.
Ao tempo, que desconsideram seus processos históricos (CANCLINI, 2013).

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As culturas étnicas são exibidas com a função de demonstrar que são parte de um
projeto de nação. No entanto, a população acaba por desconhecer aspectos de suas
novas condições de vida: situações de contato entre índios e não-índios, disputas
territoriais, posicionamentos e ações políticas, adaptação do seu artesanato a lógica dos
mercados e aos processos históricos dizimadores (OLIVEIRA, 1998). Há uma
preferência por mostrar em livros didáticos, paradidáticos e também em museus, um
patrimônio cultural “puro” ao invés de problematizar essas situações.

Para um estudo aprofundado sobre a Cultura de um povo (neste caso os povos


indígenas), enquanto rede multifacetada de significados é necessário isolar seus
aspectos, especificando suas relações internas, para então caracterizar o sistema de
forma geral, considerando seus símbolos básicos de organização. Os estudos
etnográficos contribuem nesse sentido, por consistirem em uma descrição densa das
situações, combinada com sua interpretação dos símbolos; interligando análise de dados
e significação do discurso social. Deste modo, reduzir a identidade indígena às
características físicas e culturais existentes apenas em índios que não foram expostos ao
contato cultural, é uma análise que não atende a todos os povos indígenas (GEERTZ,
2015).
De acordo com Geertz (2013, p.22), “O estudo interpretativo da cultura,
representa um esforço para aceitar a diversidade entre várias maneiras que seres
humanos têm de construir suas vidas no processo de vivê-los”. Porém, as percepções
sobre os povos indígenas são construídas pelas impressões limitadas que se tem deles.
Para pensar as experiências diferenciadas dos indígenas, é necessário lançar mão de
uma análise sensível para perceber na “normalidade” características excepcionais.
Assim, os vários aspectos de relacionamento com a realidade, ou seja, o que se deixa
perceber, não é desprendido do real, mas trata-se de uma representação, não
necessariamente percebida de imediato dele. Deste modo, manter a sensibilidade na
análise das emoções presentes em cada evento, pode captar a representação das
experiências, pois essas emoções são subordinadas a estes eventos, e vice-versa,
portanto cada uma dessas experiências torna-se única. Para Geertz, (2013, 123), “As
ideias são visíveis, audíveis e […] tactíveis, que podem ser contidas em formas que
permitam aos sentidos, e através destes, às emoções, comunicar-se com elas de uma
maneira reflexiva. ”.

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Nesse contexto, percebe-se que a preocupação do professor de história não deve


se limitar ao aprendizado de seus alunos em sala de aula, mas com o que o envolve
socialmente, incluindo problemáticas tão presentes como a referente as generalizações,
enganos históricos e visão pejorativa dos índios pela sociedade e sobre o papel que este
exerce na atualidade (BITTENCOURT, 2004).

Aplicabilidade e Desafios

O professor de história, ao provocar no aluno a busca pelo conhecimento,


aliando o saber, o analisar e o criticar, torna-se responsável, no ato do aprendizado, pelo
que o aluno capta. Nesse sentido, entender e valorizar a diversidade, faz o aluno
levantar problemas no sentido e buscar transformar realidades antes apenas impostas
como saberes absolutos.

Nesse sentido, o saber histórico deve estimular mudanças, trocando


conhecimentos pré-concebidos e alheios a análises mais aprofundadas, por saberes
significativos imbuídos de criticidade, dando este direcionamento para apreensão do
conhecimento por ele proposto. Provocando assim, a inserção de novas ideias e
caminhos. Extrapolando a ideia de uma sala de aula onde apenas se transmite
informações, mas onde é construída uma relação onde professor e aluno são agentes
ativos no processo de aprendizagem (BITTENCOURT, 2004).

Através dessa prática, o ensino de história poderá possibilitar a apreensão de


conceitos que possibilitem aos estudantes o conhecimento dos processos históricos e
sociais presentes nas experiências dos povos indígenas, e não só referente ao período
colonial, como ainda acontece constantemente, mas, adequando os seus olhares às
exigências das situações reais (PINSK; PINSK, 2010). E desta forma, passar a produzir
uma compreensão crítica, garantindo o sentido formador das aulas.

O processo ensino/aprendizagem não acontece apenas nos limites da sala de aula. É


necessário entender que outros fatores podem vir a contribuir ou não com ele. Nestes
termos, inserção da história e cultura indígena em escolas da rede pública e privada
encontra mais barreiras do que pontes.

Nessa abordagem, à experiência em duas escolas, uma da rede pública e a outra,


privada, cujos nomes foram preservados (por se tratar de uma problemática ainda

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vigente e vivenciada) divergem. Na primeira percebeu-se a ausência de projetos e ações


pedagógicas que promovessem a efetivação da inserção destes conteúdos em sala de
aula. Na segunda, destoando de outras escolas particulares, houve uma preocupação no
sentido de criar um espaço de discursões em sala de aula, pensado por coordenação e
professores, para trabalhar essas temáticas, não só em datas comemorativas, mas em
discussões diárias que perpassam por diferentes disciplinas.

Porém, um problema comum é o difícil acesso a um material didático e paradidático


que comportem a dimensão da necessidade específica da série em que se trabalha.
Mesmo que estes possam ser buscados em outros espaços, a exemplo da internet, muitas
vezes, há uma dificuldade em adequá-los aos currículos e também a realidade dos
alunos, por professores de outras áreas, que não história, às vezes por falta de
informação, outras de interesse.

Assim, a proposta da inserção desses conteúdos, encontra obstáculos ainda maiores,


em se tratando da receptividade e empatia de professores, a apreensão para posterior
transmissão desses conhecimentos, que deveriam ser trabalhados numa abordagem
interdisciplinar. Essa resistência a aplicação se dá também devido a falta de
investimento em formações nessa área específica, o que limita a possibilidade de os
profissionais atenderem as necessidades do educando, no sentido de transmitir
informações e provocar a ativação de um pensamento crítico. Sugerindo discursões mais
aprofundadas que as pontuais existentes sobre os indígenas, forjadas em imagens
estereotipadas e simplistas. Deste modo, o professor deve estar, na medida do possível,
atento às novas leituras e concepções históricas, em meio as constantes limitações,
geralmente ligadas a tempo ou dinheiro, pois quando para de ler e buscar novos
conhecimentos, morre profissionalmente (KARNAL, 2010).

Proporcionar formação específica a estes profissionais, possibilita o alargamento


das possibilidades de compreensão das diferenças, abordando as especificidades e
estimulando a aceitação dos resultados das trocas culturais provocadas pelos contatos
entre etnias. E desse modo, seguir outra linha que não o da história de dominação
ideológica e cultural que a historiografia oficial faz referência, rompendo paradigmas e
fugindo do reducionismo identificado nos livros didáticos, corrigindo assim os
problemas curriculares.

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Dentro desse contexto, se faz necessário estabelecer alguns questionamentos como:


Quais os conteúdos abordados em sala de aulas? Como eles são abordados? E, quais são
as prioridades no currículo escolar? Que podem nortear essa discussão.

Processos Históricos Vivenciados pelos Índios no Nordeste

Para fundamentar essa discussão, considerando a localização das escolas sobre


as quais nos debruçamos, é necessário lançar o olhar para o caso específico dos
indígenas habitantes no Nordeste, destacando os processos históricos vivenciados por
eles. Visto que, mesmo em se tratando de índios muitas vezes presentes no cotidiano
dos educandos, aqueles são constantemente comparados depreciativamente com índios
de outras regiões, ou mesmo, com os “índios do passado”.
Os povos indígenas no Nordeste, afirmaram identidades étnicas reestruturando-
se socioculturalmente, como protagonistas em contextos históricos permeados por
processos de territorialização. O primeiro ocorreu entre o século XVII e XIX através das
missões religiosas, com a expansão territorial e financeira da Coroa portuguesa; de
incentivo aos casamentos entre indígenas e colonos brancos nos antigos aldeamentos e
por meio da Lei de Terras de 1850, que propiciou a regularização das propriedades
rurais, provocando uma expansão das vilas e famílias de colonos portugueses que se
instalaram em terras de antigos aldeamentos para se dedicarem as atividades agrícolas.
E o segundo, no início do Século XX com a criação de um órgão indigenista oficial, o
Serviço de Proteção aos Índios/SPI, que atuou para a assimilação dos índios, ainda que
garantisse o reconhecimento da condição diferenciada de grupos indígenas diante da
sociedade nacional, possibilitando a assistência por meio da construção dos Postos
Indígenas (OLIVEIRA, 1998; SILVA, 2008).
Nas primeiras décadas do século XX, os povos indígenas no Nordeste,
estimulados por condições sociopolíticas favoráveis, após um longo período de
silenciamento oficial com a extinção dos aldeamentos em fins do Século XIX, agiram
de maneira estratégica naquele momento histórico, buscando apoio em alianças com
não-índios para instalação de Postos Indígenas (PI), considerando que a afirmação
étnica estava vinculada com a possibilidade de lhes conferir sobrevivência física e
étnica.

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Neste contexto, pensamos os povos indígenas, não como imutáveis, como


expressões socioculturais cristalizadas e imunes às mudanças ocorridas nos níveis
políticos, sociais, culturais e econômicos, mas como participantes nesses processos.
Silenciando quando necessário e organizando estratégias de sobrevivência física e
étnica, quando favorecidos por estes contextos. Contrariando assim, estudos firmados na
ideia de desaparecimento étnico (SOUZA LIMA, 1995).
Teremos por base os processos de reorganização política, econômica e cultural,
transcorridos no Brasil, pensados para provocar a integração dos índios à chamada
sociedade nacional e as formas utilizadas para tentar apagar as diferenças culturais
contrastivas por meio da submissão a sistemas de dominação tais quais, instituições
criadas pelo Estado nacional, pela Igreja Católica Romana, entre outras (SOUZA
LIMA, 1995). Além, das estratégias do governo para gerir territórios através do poder
tutelar sobre os indígenas; em contrapartida, as estratégias indígenas para emergir
etnicamente e conquistar direitos políticos (OLIVEIRA, 1988).
O discurso da “aculturação”, apesar de ultrapassado pelos novos estudos
antropológicos e históricos, ainda é predominante, provavelmente por servir bem ao
propósito de justificar as invasões das terras indígenas, como também, para o Estado se
livrar da “despesa” com a assistência aos indígenas. Um índio que, de acordo com esse
discurso, teria se transformado num tímido esboço do que foi um dia. Pesa também o
fato destas populações em várias regiões do país, terem vivenciando um longo período
de contato, e por isso, deixaram de falar suas línguas nativas. Por essas razões, os que
enfatizam tal discurso, desclassificam os indígenas, denominando essas populações
apenas de “remanescentes” de indígenas (OLIVEIRA, 1998).
Porém, surgiram novas abordagens acerca do território e identidade étnica
indígena, confirmando que as mobilizações pelo reconhecimento étnico indígena
perpassam indissociavelmente pela conquista da demarcação territorial. Expressando
assim, os significados da terra para as mobilizações pelo direito à posse da mesma e sua
reafirmação étnica. Esse índio deixa a posição de coadjuvante e passa a ser protagonista
de sua própria história, e a terra passa a ser um espaço, não só de sobrevivência, mas
também, de resistência (OLIVEIRA, 1998).
Nessa perspectiva, compreendemos os povos indígenas no Nordeste como
resultado não apenas do extenso contato com o colonizador, mas de um histórico de
mobilizações e resistência, inclusive no aspecto cultural. Deste modo, precisaram
esconder suas expressões socioculturais, quando isso foi necessário à sua sobrevivência,

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resgatando-a nesses mesmos termos, quando precisaram afirmar-se enquanto índios,


diante dos órgãos oficiais. Considerando fundamentais as manifestações dos indígenas
que se utilizaram, e ainda se utilizam, de aspectos culturais como instrumentos para
mobilizações nas reivindicações por seus direitos.

Conclusão

Torna-se evidente a necessidade de fazer com que os debates em relação a


temática indígena na sala de aula permaneçam e conquistem cada vez mais espaço,
promovendo assim o reconhecimento e respeito as sociodiversidades no Brasil. Não
limitando as discussões ao conhecimento superficial. Mas, promovendo o estreitamento
das relações e diálogos interculturais, estabelecendo ideais como respeito, ampliação e
democratização dos saberes (SILVA, 2016).

Deste modo, os currículos da educação básica, devem considerar esse processo


de resistências, trocas e também escolhas, vivenciado pelos povos indígenas.
Provocando assim, mudanças efetivas na percepção dos educandos em relação a essa
temática. E a escola nesse contexto, pode contribuir para o rompimento desses
paradigmas, desconstruindo ideias cristalizadas, rompendo preconceitos e ampliando a
possibilidade de amortizar as dívidas com as histórias não contadas.

Referências
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da Cultura. Obras Escolhias. v. 1, 3ª ed. São Paulo, Brasiliense, 1987.
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PINSK, Jaime; PINSK, Carla Bassanezi. O que e como ensinar: Por uma história
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PANKAIWKA - OS ÍNDIOS DA VOLTA DO MOXOTÓ (JATOBÁ/PE) -


IDENTIDADE ÉTNICA, MEMÓRIA E TERRITORIALIZAÇÃO

Wellcherline Miranda Lima


Universidade Católica de Pernambuco
wellcherline@yahoo.com.br

O texto apresenta os registros das visitas realizadas no povo indígena Pankaiwka


sob a cultura e expressão religiosa no contexto da identidade, memória e territorialidade
qual inserimos como aporte os elementos a Teoria da Análise Crítica do Discurso.
A finalidade de apreender os significados e como os sujeitos se identificam
como povo tradicional, bem como as suas práticas sociais e culturais, e apresentar o
cenário religioso e a elaboração da sua religiosidade, através do discurso, buscando
entender à dinâmica social e religiosa de uma sociedade tradicional distinta das outras
de cunho tradicional.
A proposta de estudo foi o povo indígena Pankaiwka, município de Jatobá/PE,
que apresentará nos seguimentos elementos operante da: identidade e religião, no qual
está vinculada a tradição e religiosidade dos Pankaiwka considerado como marco
construção da história Pankaiwka traçando no contexto das suas raízes, a formação do
grupo social.
Para o momento, inserimos nas expressões das tradições cultural-religiosas que
emergem da consciência da memória viva e coletiva dos índios da Volta do Moxotó, no
município de Jatobá/PE, e a manutenção identitária dessa etnia através dos seus ritos e
crenças.
O caminho sobre o tema proposto estende-se através da história oral com os
protagonistas da presente etnia e apresentando-os e compreendendo a etnogênese desta

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etnia dando visibilidade dessa “crença de comunhão étnica” do será apresentada a


entrevista do ancião sr. Damião Manoel da Silva Souza1, conhecido como Pajé Setenta2,
do povo indígena Pankaiwka no qual este encontra-se na região do semiárido do Estado
de Pernambuco, no município de Jatobá/PE.
A escolha do Pajé Setenta era para nos conceder as informações necessárias que
foram primordiais para o entendimento da construção de um novo espaço social através
das relações de poder que são constituídas no meio social.

Pankaiwka: a ressignificação identitário étnico

A palavra Pankaiwka, conforme a memória coletiva deste povo indígena


significa “filho de Pankararu”; essa etnia emergente habita parte da margem do rio
Moxotó, na antiga Fazenda Cristo Rei, localizado no Distrito da Volta do Moxotó, no
município de Jatobá (PE).
O acesso à localização da Terra Indígena Pankaiwka ocorre por uma estrada de
barro, que sai da BR 110 na altura da ponte sobre o Rio Moxotó, entre os estados de
Pernambuco e Alagoas, a Aldeia Pankaiwka existe desde 1999, está situada na antiga
Fazenda Cristo Rei, atualmente, contabilizada em uma população de 250 pessoas3. Os
indígenas habitam uma faixa de terra de 365.7167 hectares e vivem da economia de
subsistência, baseada no plantio do feijão, milho, mandioca e frutas como: manga, caju,
limão e laranja (BRASIL, 2008).
A formação deste povo é oriunda das viagens de fuga dos Pankararu do Brejo
dos Padres, no município de Tacaratu (PE), sendo que no final dos anos 1990 os índios
fizeram o levantamento de aldeia, sendo hoje denominados de Pankaiwka que são
descendentes, ou como eles chamam “parentes”, de Pankararu.
O povo Pankaiwka, é indígena da Região Nordeste, como também, é oriundo
desse cenário da emergência étnica devido à construção da Usina Hidrelétrica de

1
Falecido no mês de outubro de 2016.
2
A entrevista ocorreu no Poró, local onde tem os pertences religiosos dos Pankaiwka, no dia 08 de julho
de 2015, às 11h. O Pajé Setenta estava acompanhado com dois indígenas adolescentes, identificado pelos
primeiros nomes de João e José que estão participando do ritual de passagem da tradição Pankaiwka.
3
Conforme o Censo 2010, divulgado pelo IBGE - Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística e
publicado em 29 de junho de 2012.

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Itaparica4, na bacia do Rio São Francisco, nos meados dos anos de 1980, no qual houve
o rearranjo dos latifúndios e das terras indígenas, longe da passividade entre eles.
(ARRUTI, 1995; 1996)
Os Pankaiwka5 são descendentes da família étnica Pankararu6 e resultado das
“viagens de fuga” (ARRUTI, 1995; 1996) de Pankararu, ou seja, trata-se das migrações
de famílias indígenas em função das perseguições dos latifundiários, das estiagens ou da
escassez de terras de trabalho.
A localização e delimitação da Terra Indígena Pankaiwka se dá o acesso por
uma estrada de barro, que sai da BR 110 na altura da ponte sobre o Rio Moxotó, divisa
entre os Estados de Pernambuco e Alagoas.
A antiga Fazenda Cristo Rei, onde atualmente se localiza a aldeia Pankaiwka,
reconhecida pela FUNAI (Fundação Nacional do Índio) desde 1999, fica no interior
semiárido do Estado de Pernambuco, município de Jatobá, numa região denominada
Vale do São Francisco.
Segundo Arruti (1996), os Pankararu difundiram, ao longo de sua existência, a
dinâmica sociocultural para o aparecimento de outros povos indígenas; permanecendo
nesses a herança religiosa e sociocultural do povo de origem.
A “árvore Pankararu” sendo uma figura de linguagem elaborada por Arruti
apresenta o estilo de simbologia para ilustrar o fenômeno de surgimento para novas
etnias e entender as novas unidades através da descrição na trajetória e na dinâmica das
emergências. (Idem)
A metáfora em questão é encontrada no discurso dos indígenas descentes dos
Pankararu e com a afirmação da etnia origem que a dinâmica convalida a teia de
significados que narra às dispersões, concentrações e estagnação do grupo étnico que
Arruti configurou como “tronco velho e pontas-de-rama” (ARRUTI, 1995, p.77).
Os Pankararu são o “tronco velho” dotado de vários elementos culturais
significativos e com a própria cosmologia que dependendo do movimento para a

4
A Usina está localizada entre os Estados da Bahia e Pernambuco; pertence à Eletrobras Chesf e que
atualmente foi renomeada Usina Hidrelétrica Luiz Gonzaga. A construção da Usina promoveu a
inundação áreas dos dois Estados e a formação do lago represado.
5
Conforme a memória coletiva deste povo indígena a palavra Pankaiwka significa “filho de Pankararu”.
6
O povo Pankararu está localizado nos municípios de Jatobá, Petrolândia e Tacaratu (Pernambuco).
Segundo Arruti (1995; 1999) diz que os Pankararu disseminaram, ao longo de sua existência, a dinâmica
sociocultural para o surgimento de outros grupos indígenas; e contendo nesses o legado religioso e
cultural do povo origem.

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constituição das novas etnias chamado de “enxame” 7 ou “levantamento de aldeia” no


qual o resultado será considerada uma “ponta-de-rama”. Arruti define a atividade do
tronco velho:
Os troncos velhos servem como reserva de memória, de cultura e de
religiosidade - trazendo em si um passado real ou imaginado, que passa a
fazer parte do presente, o informa, o justifica e o organiza-se, e não apenas
como lembrança ou resgate. Essa relação é traduzida pela rnetáfora vegetal
que fala do progressivo e ramificado crescimento de um mesmo ser, que se
amplia e nesta ampliação vai dando origem a novas partes de si, natural e
inevitavelmente mais distantes e mais frágeis com relação às heranças dos
antepassados, mas ainda fazendo parle de uma mesma realidade (ARRUTI,
1995, p. 77).

Os Pankaiwka são uma “ponta-de-rama” do tronco velho que é o resultado da


ação contemporânea realizada por meio do “levantamento de aldeia” que obtiveram
apoio dos Pankararu para o reconhecimento desse grupo étnico, consolidação territorial
e nos ensinamentos da “ciência do Toré” como dizem os Pankararu.
O processo de territorialização dos Pankaiwka, conforme a memória dessa etnia,
ocorre na década 1990, após os resquícios da construção da Usina Hidroelétrica de Luiz
Gonzaga, que a região do Moxotó atraiu pessoas e famílias para residir e trabalhar nas
fazendas com agricultura com a produção de frutas e serviços locais proporcionados
pelas prefeituras.
Entre os Pankaiwka esse processo de territorialização ocorreu quando o povo
teve condições de alcançar sua independência de assumir suas próprias ações e
mobilizações enquanto povo com etnônimo próprio. Ressaltamos que essa atitude não
impediu em “quebrar” o grau de parentesco com os Pankararu, pelo contrário, sua a
autonomia foi alcançada à medida que esses vínculos se estreitaram, havendo uma
reciprocidade se solidarizando entre eles.
A identidade étnica é de ordem “imperativa” (Idem) sob o regime normativo de
caráter consuetudinário como ocorreu na organização social dos Pankaiwka ou como
poderá existir ao logo da sua existência a influência da personalidade social ou
carismática que definirá novos perfis dentro do grupo étnico que veremos essas
particularidades mais adiante.
A Fazenda Cristo Rei foi “levantada” pelos os índios, na década de 1970, sendo
que esses na condição de trabalhador. A atividade inicial foi remover a caatinga

7
Segundo Arruti, o “enxame” é um movimento compulsório resultado de um processo histórico ou
mítico, por exemplo, o surgimento da etnia Jeripancó (Pariconha/AL) considerado como resultado dessa
ação. Pois, conforme a memória Pankararu o movimento enxame ocorreu devido etnônimo Pankararu:
Pancarú-Geritacó-Calancó-Umã-Canabrava-Tatuxi de Fulô que saiu do tronco-velho e o exame se
concentrou outro lugar que constituiu o povo Jeripancó (ARRUTI, 1999, p. 265).

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transformar o terreno num espaço produtivo para a agricultura, principalmente a


produção de uva devido à fazenda está nas margens do rio Moxotó, e pecuária na
produção leiteira.
A partir dos estudos sobre o tema e dos dados coletados durante as visitas de
monitoramento entre os anos de 2013 a 2015, é possível afirmar que Pankaiwka vivem
nas margens do rio Moxotó da bacia do rio São Francisco mantêm “relações
comunitárias étnicas” (WEBER, 2000, p. 269), constituindo uma unidade social que se
distribuem no território da antiga Fazenda Cristo Rei.
Diante disso, tornou-se a necessidade de melhores esclarecimentos sobre as
semelhanças e diferenças entre os povos, bem como, a afirmação da cultura e a
expressão religiosa Pankaiwka.
O discurso apresenta a configuração social que é significativa promovendo
significados das palavras e das práticas que dependem do espaço para a articulação das
práticas. Com isso, conforme a teoria de análise do discurso segue com uma proposta
crítica e que busca problematizar as formas de reflexão estabelecidas (FAIRCLOUGH,
2001, p.90).

Pankaiwka: revelações estratégicas da sua dinâmica social e cosmológica

O aporte teórico vinculado principalmente aos autores Gramsci, Laclau e Mouffe


e Thompson serão os mediadores na análise crítica do discurso através da entrevista
com o sujeito que representa o povo e a manutenção da cultural.
Neste momento, selecionamos algumas perguntas que atendem aos eixos de
identidade e religião dos Pankaiwka.

Entrevista – Como começou Pankaiwka?


Sr. Damião – Antigamente aqui era uma fazenda. E hoje, não é mais fazenda. É
Pankaiwka – Cristo Rei. Aí vem a pergunta a dizer. Como foi que gerou
Pankaiwka, não é isso?! Como foi que gerou...
O Pankaiwka... Ele foi gerado junto com a liderança... A liderança... E
invocou o pajé. O pajé que tinha a noção de mudar Pankaiwka da fazenda Cristo Rei.
A fazenda, não é isso?! E então, o pajé invocou os encantados e os encantados
deixou Pankaiwka e assim foi instalado. E a fazenda saiu do lugar e ficou Pankaiwka
– Cristo Rei.
Mas a (fazenda) Cristo Rei não saiu, não saiu... Porque ela (a palavra Cristo
Rei) é símbolo... É o símbolo... Não pode mudar. Mas a fazenda pode.
Então que como pode mudar a forma é Pankaiwka. A forma da fazenda é
Pankaiwka. E aí, o pessoal se costumou. E assim ficou a história.

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A pergunta nos remete o olhar dos Pankaiwka sobre a formação do povo e na


construção da sua identidade através do processo histórico de como ocasionou a ação e
a sua afirmação. Pois, segundo Thompson diz que:

[...] formas simbólicas transmitidas pelo passado são constituídas dos


costumes, das práticas e das crenças cotidianas; elas não podem ser deixadas
de lado como muitos cadáveres inertes, uma vez que elas desempenham um
papel ativo e fundamental nas vidas do povo (THOMPSON, 2011, p. 61).

O local, ou seja, o território Pankaiwka antes do reconhecimento da FUNAI era


uma Fazenda chamada Cristo Rei que tinha como fonte econômica a agricultura
frutífera.
A chegada dos indígenas, oriundo do povo Pankararu8, para retomar as suas
terras descaracterizam a organização econômica da fazenda, entretanto deixa a
expressão “Cristo Rei” como símbolo sagrado, de caráter imutável, e interligado a
memória do retorno dos indígenas naquelas terras.
Outro destaque é a presença do pajé no momento da fundação do povo
Pankaiwka e a sua intervenção na ação coletiva do povo para a fixação nas terras. Os
encantados são os elementos sobrenaturais presentes na crença religiosa dos Pankaiwka.
Para a formação da “emergência étnica” (ARRUTI, 1995; 1996) se faz
necessário a inserção da ideologia como instrumento de manutenção da estrutura social
e cosmológica do povo.
Consideramos que o discurso retorna as ondas de propagação sobre a
manutenção da ideológica dentro de grupo ,segundo Thompson, se refere à
sistematização “do pensamento e ideias que são situados particularmente e
coletivamente partilhados” (THOMPSON, 2011, p.69)
A dinâmica social inseridas nos povos indígenas tem elementos em comuns
sobre o arcabouço religioso e os seus representantes denominados de Pajé. No entanto,
a fim de conhecermos a gramática Pankaiwka, tornou-se necessário compreender a
participação do pajé na estrutura social religiosa dos Pankaiwka, o Pajé Setenta depõem
sobre a sua função dentro do povo.

Entrevista – E o pajé dentro da estrutura. O que o senhor vê a sua função


dentro do povo?

8
Pankararu estão localizados nos municípios de Jatobá, Petrolândia e Tacaratu, na região do semiárido do
Estado de Pernambuco.

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Sr. Damião – Muito bem. Então esta foi à pergunta. Que perguntaram de
Pajé... Como é a estrutura dentro do povo... Dessa fonte... O ponto é isso... É
ficar na obrigação. A obrigação é chegar até o índio. Se pagar para vê...
Paga o outro lado... Chegando lá... Eu estou aqui. Então o índio diz:
- Pajé, bem que o senhor falou.
Só não foi tarde porque você foi lá e eu avisei para não ir.
Então foi... Foi verdade. Se tivesse ouvido para pegar o peixe na
vara havia perdido. Esse não foi obediente. E a partir da aqui vai ficar
obediente. Correto?!

A função do Pajé dentro da estrutura Pankaiwka mostra, além de ser religiosa e a


prática da cura, como também, traduz a sua participação como conselheiro do povo que
adverte sobre os perigosos, orienta sobre as incertezas.
Outra preocupação que povos tradicionais têm é a garantia de manutenção
cultural do seu povo e na crença religiosa que nos remete a identidade9. Conforme
Thompson (2011, p.62) “examinar as maneiras como as relações sociais são criadas e
sustentadas, aprisionando as pessoas e orientando-as para certas direções”.
Além disso, a ideologia proporciona revelar as maneiras das relações da
dominação e subordinação de classe e qual o papel do sujeito ou do grupo relevante.
No mesmo raciocínio, há outro destaque no que se refere aos procedimentos do Pajé que
são remetidos ao pensamento de Gramsci através da obra “Os intelectuais e a
organização da cultura” (GRAMSCI, 1978 p. 03-05).
Para Gramsci, o Pajé está inserido no contexto do grupo intelectual do povo
Pankaiwka no qual o sujeito foi “nascendo no terreno original de uma função essencial
[...] cria para si, ao mesmo tempo, de modo orgânico [...] de consciência própria da sua
função” (Idem, p. 03).
Nessa perspectiva, levantamos a pergunta para compreender a dinâmica de
manutenção do sagrado dos Pankaiwka.

Entrevista – Há alguma mudança, hoje, que o senhor vê de como os mais


jovens vê o sagrado e da ciência de índio? Há diferença hoje?
Sr. Damião - Hoje, eu vejo muita diferença no lugar sagrado e nas fontes...
Nas fontes... O território sagrado que é esses Panaiás ocupam no terreiro,
no lugar sagrado, onde se... A pessoa... Recebe tudo.
E então é onde precisa dos índios... Os índios... Devem continuar
funcionando. Senão vira baderna. E quando chamar algo negativo. Vira
baderna. Quando não considerar sagrado. Mas, até agora – Graças a Deus
– isso não aconteceu e nem vai acontecer. Porque Deus não quer. Não é
isso?! E nem os nossos Panaiás, não aceita. Agora está correto. Está
correto?!

9
Lançamos o olhar sobre a identidade como “fenômeno sociocultural” no qual podemos conceituar como
um conjunto vivo de relações sociais e patrimônios significativos elaborados ao longo do processo
histórico pessoal ou grupal (CARDOSO DE OLIVEIRA, 2000).

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Notamos a preocupação do Pajé Setenta de cuidar do sagrado, no caso o


depoente citou os Panaiás que são os encantados, ou melhor, seres sobrenaturais
presente na religião Pankaiwka, e de garantir a transmissão para os jovens.
Para Thompson (Idem) essas maneiras de como a tradição serve para manter o
conjunto de relações sociais que estão estabelecidas antes e independente da
mobilização do sentido em formas simbólicas.
Assim como já informamos que no início da entrevista havia dois adolescentes
indígenas próximos do Poró 10. O Pajé Setenta chamou os adolescentes para o interior
da casa e pediu para que eles identificassem os “panaiás”, são as indumentárias
religiosas.
Diante disso, consideramos a pretensão do Pajé sobre os jovens Pankaiwka se dá
inserido na formação do discurso como o resultado contingente de uma série de
articulações. Para Laclau e Mouffe a articulação é a “prática que estabelece relações
entre elementos de maneira que suas identidades sejam modificadas como resultado da
prática articulatória” (LACLAU; MOUFFE, 2012, p. 105).
E mais, a partir das práticas articulatórias serão promovidas diferentes versões
criando-se o mito como discurso estrutural dominante e alternativo de construção da
imagem sendo cosmológico, como também, na formação de lideres na aldeia, entre eles:
o Pajé.
Para Laclau, o mito é uma “imagem” com alteração da sua conformação e que “
a eficácia do mito é essencialmente hegemônica: consiste em constituir uma nova
objetividade através da rearticulação de elementos” (LACLAU, 2011, p.77).
A religião de Pankaiwka estabelece uma relação contingente entre o elemento
particular e a universalidade. Ou seja, trata-se da síntese de elementos culturais
(conhecimento, valores, hábitos, crenças, e outros) que sustenta a estrutura social e
religiosa sendo articulada no grupo como resultado hegemônico.

Considerações Finais

Consideramos que a entrevista nos condicionou há uma parcela no universo


particular Pankaiwka e de conhecer através dos relatos como os sujeitos desenvolvem
ações para a manutenção da cultura e do sagrado.
10
Casa onde guarda as indumentárias chamadas “praias” de cunho religioso Pankaiwka.

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Os relatos nos promoveram novos dados e o universo do cotidiano e vida


privada Pankaiwka. A história local é também enraizada na memória do povo, além de
possuir elementos que priorizam as diferentes maneiras de ver e sentir, ou melhor, o
desejo do depoente.
Os elementos da cultura e da religião do tronco Pankararu ou árvore Pankararu
(depende dos indígenas da etnia ponta-de-rama) encontra-se presente na dinâmica
cultural e do calendário socioreligioso da ponta-de-rama - os Pankaiwka – como os
rituais do Flechamento do Umbu, Corridas do Umbu, Queima do Cansanção, Menino
do Rancho, entre outros, que existe um vínculo histórico entre eles.
Contudo, existem particularidades que promovem a emancipação entre os
grupos étnicos que se destaca a diferença entre os Pankararu e os Pankaiwka. As
diferenças são evidenciadas diante da afirmação dos Pankaiwka ao não pertencimento
da territorialização do tronco velho, e sim que essa nova ponta-de-rama teve a sua
própria construção da territorialidade que se firmou a identidade Pankaiwka.
A Análise Crítica do Discurso (ACD) foi o instrumento teórico-metodológico
que buscou compreender a posição dos indivíduos na busca da identidade com os
objetos coletivos da cultura Pankaiwka e que os sujeitos considerados “intelectuais
orgânicos”, no caso o Pajé, possui relações diferenciais.
A intenção do artigo foi mostrar através da entrevista o discurso articulador
dentro da perspectiva teórica da ACD que apresentou posições essencialista na
gramática Pankaiwka.

Referenciais

ARRUTI, José Maurício Paiva Andion. Morte e vida no Nordeste indígena: a


emergência étnica como fenômeno histórico regional. In: ____. Estudos Históricos,
vol. 8, n.º. 15, Rio de Janeiro, FGU, 1995; p. 57-94.

______. O Reencantamento do Mundo: trama histórica e Arranjos Territoriais


Pankararu. Dissertação de Mestrado. Programa de Pós-Graduação em Antropologia
Social. Museu Nacional. Universidade Federal do Rio de Janeiro, 1996.

CARDOSO DE OLIVEIRA, Roberto. Os (des)caminhos da identidade. RBC Vol. 15,


nº42, fevereiro, 2000.

FAIRCLOUGH, Norman. Discurso e mudança social. Brasília: UNB, 2001.

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GRAMSCI, Antonio. Os intelectuais e a organização da cultura. Rio de Janeiro:


Civilização Brasileira. 1978.

LACLAU, Ernesto. Emancipação e diferença. Rio de Janeiro. Eduerj, 2011.

_____; MOUFFE, Chantal. Hegemonia e estratégia socialista. São Paulo.


Contrassenso: CNPQ, 2012.

THOMPSON, John B. Conceito de Ideologia. In: ___. Ideologia e Cultura Moderna:


Teoria social crítica na era dos meios de comunicação de massa. Petrópolis, RJ: Vozes,
2011; p. 43-97.

WEBER, Max. Economia e Sociedade: fundamentos da sociologia


compreensiva. 4ª ed. Vol. 01: Brasília: Unb, 2000.

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SIMPÓSIO TEMÁTICO 03
ESCRAVIDÃO E PÓS-ABOLIÇÃO

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A FORJA DA HARMONIA: A IMPRENSA PERNAMBUCANA E A LEI DO


VENTRE LIVRE Livre (1871-1874)

Gabriel Navarro de Barros


Doutorando (Universidade Federal de Pernambuco); b_navarro_2@hotmail.com

“Uma reforma social profunda que em outro paiz custaria rios de sangue, e
que, realizada de um só golpe, transtornou a situação economica de Estados,
e violentou as relações sociaes, reduzindo opulentos á pobreza e ricos á
miséria, é inaugurada no Brazil por meio de uma providencia essencial para
se pôr termo á escravidão com evidentes designios de moderação, de passos
morosos e graduaes, que hão e devem guardar a propriedade particular a
coberto de violencias e de soluções precipitadas ou subitas que poriam em
desconcerto e ruina toda a riqueza do paiz; e isso se effectuou e se conseguio
sem pertubação da tranquilidade publica, sem transtornos da ordem (...)” 1

Publicou o Jornal do Recife, em 26 de janeiro de 1872, um elogio à Lei Rio


Branco, em que manifestava a sutileza da reforma social que ocorria no império
brasileiro. Inversamente ao que se dera em outras nações que decidiram abolir a
escravatura, o Brasil teria seguido um caminho mais sábio. Moderado e gradual,
respeitaria a propriedade particular das violências e soluções precipitadas, capazes de
transtornar a ordem e perturbar a tranquilidade pública.
O relatório que o então presidente da província de Pernambuco, João José de
Oliveira Junqueira, assinou em 27 de outubro de 18712, apontava os direcionamentos
administrativos de divulgação da Lei. A notícia deveria ser publicada nas praças da
província e remetida às câmaras municipais. Ainda, que todos os vigários fizessem
leitura pública das disposições nela encontradas, por um espaço de trinta dias nas missas
paroquiais. O que mais nos interessa no documento, todavia, é a maneira como o
conselheiro João José Junqueira encara a recepção da lei nas terras pernambucanas:

Foi a citada lei recebida em applauso pela população da provincia. E nem era
de esperar o contrário desde que foi esta provincia umas das primeiras a
manifestar por acto legislativo, pela linguagem da imprensa, pelo esforço de
diversas associações e por sucessivos factos individuaes, o seu pensamento e
efficaz concurso para a extinção gradual do elemento servil. Quando a
proposta do governo convertida na citada lei era debatida no parlamento, a
provincia soube conservar a confiança que depositava na sabedoria dos
poderes do estado, aguardando sem pertubação a final decisão dessa magna
questão, que tanto interessava a humanidade e a civilização. A imprensa
manteve-se sempre favorável a idéa apoiando-a e defendendo-a, e a classe
dos agricultores não menos interessada mostrou-se em que fosse ela
adoptada. Das communicações que em resposta tenho recebido de alguns
vigarios, consta que a população do interior mostra-se satisfeita com as

1
Jornal do Recife, 26 de Janeiro de 1872, p.2, Transcripção: Brazil (Jornal do Commercio).
2
O relatório foi escrito pelo Ex. Sr. Dr. Manoel do Nascimento Portella. Disponível em:
http://brazil.crl.edu/bsd/bsd/u646/000002.html. Acesso em: outubro de 2017.

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disposições consagradas na lei. Desta capital, d’onde partira uma


manifestação popular em apoio a proposta do governo, quando ainda em
discussão, foram dirigidas ao governo imperial duas felicitações pela
promulgação da lei, uma pela camara municipal e outra por crescido numero
de cidadãos. Nada ha a receiar pela execução da lei nesta provincia, e tudo
induz a crer que será ella fielmente respeitada e cumprida. 3

Ora, tanto o texto do Jornal do Recife quanto o relatório da presidência da


Província buscavam anular as tensões que enredaram a promulgação da Lei. Ambos
procuraram inibir as contradições que levaram a esse evento histórico, tentando produzir
narrativas amistosas e de concordância geral acerca do processo que fez emergir a
reforma social. O primeiro, recordemos, induz o pensamento que a transformação do
direito à escravidão ocorrera “sem pertubação da tranquilidade pública”4; o segundo vai
além: a imprensa, a população, o parlamento e mesmo a classe senhorial estariam em
acordo comum à restruturação das normas que regiam a escravidão5.
Não haveria dissonância alguma em torno desta questão, era ela fruto da
humanidade e civilização que enfim inspirava os comportamentos dos habitantes de
Pernambuco. Mais ainda, contava com o apoio dos habitantes do interior da província e
da capital, em que salvas e vivas foram feitas para comemoração de sua promulgação.
Não deveria existir receio, tudo dava a crer que seria fielmente cumprida e respeitada.
Positividade demasiada ressoa dos dois textos, de fato. É de nosso conhecimento
que o processo de proclamação de Lei de 1871 acompanhou grande tensão no
parlamento, na imprensa e forte rejeição pelos proprietários de seres humanos. Seria
espinhoso crer nas pretensões amistosas acenadas nas palavras dos redatores,
principalmente quando falamos de dois sujeitos letrados, que muito provavelmente
acompanharam a ansiedade relacionada à Lei Rio Branco. Um, o presidente de uma
província que historicamente estava imersa na escravidão, que por mais que dependesse
menos da mão de obra compulsória na década de 1870, ainda contava com grande
contigente de escravizados; o outro, a fonte não nos permite identificar, contudo, era um
indivíduo culto, escrevia em linguagem que poucos daquele tempo conseguiriam. Sua
redação iniciava na primeira página do jornal e seguia até a terceira coluna da segunda,
ocupando bastante espaço do editorial.
Por que a tentativa de silenciar as contradições que eclodiram na Ventre Livre
senão - ao contrário do que disse o presidente da província – justamente por receio dos

3
Disponível em: http://brazil.crl.edu/bsd/bsd/u646/000002.html. Acesso em: outubro de 2017.
4
Jornal do Recife, 26 de Janeiro de 1872, p.2, Transcripção: Brazil (Jornal do Commercio).
5
Disponível em: http://brazil.crl.edu/bsd/bsd/u646/000002.html. Acesso em: outubro de 2017.

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efeitos que a lei poderia provocar? Ora, um ano antes, em 20 de julho de 1871, quase
dois meses antes da promulgação da lei, o mesmo periódico havia publicado em sua
capa uma contudente crítica do Barão de Prados, escrita em Barbacena no dia 24 de
maio do mesmo ano6. A inquietude do barão incidia em pontos fundamentais que
acompanhariam os críticos da Ventre Livre até à abolição da escravidão: a ineficiência
do Estado em educar os ingênuos e privá-los do abandono; a preocupação com as
finanças do país; e, por fim, a ausência de um prazo para o fim do cativeiro. O primeiro
item incidia na incapacidade do império brasileiro em gerir a sua população. Existia um
elevado debate sobre a educação de crianças pobres e o abandono infantil na época, algo
que debateremos melhor no próximo capítulo. O segundo representa um pensamento
bastante difundido na época: que a Lei poderia desmantelar as finanças do estado, uma
vez que teria que arcar com as indenizações aos senhores, alguma assistência aos
libertos e ainda modificar o direito à propriedade. O último, que não existiria prazo para
a extinção do sistema escravista.
Havia, no entanto, um ponto que o barão julgava ser o cerne da questão sobre o
projeto da liberdade do ventre:

O seu primeiro e mais grave defeito é a inderteminação de todas as condições


que o constituem. Tomemos por exemplo a liberdade do ventre. Liberdade do
ventre com 13 annos de serviço forçado? Onde estão as garantias praticas
para a educação moral e religiosa desses futuros cidadãos brazileiros?

Ora, a inderteminação das disposições apresentadas na Lei, a ausência de um texto


que deixasse mais evidente os seus ditames e a óbvia falta de garantias que resultava
disto foram temas debatidos na época. Mais uma vez: dificilmente os dois redatores
anteriormente mencionados esqueceriam das críticas ao projeto do ventre livre.
Os questionamentos do barão adquirem maior sentido, no entanto, quando
cruzamos as suas palavras com o relatório do presidente da província. Segundo este
último, José Junqueira havia nomeado uma comissão cujo fito era a libertação de
crianças do sexo feminino. Mediante a quantia de 10 contos de réis (consignada pela lei
do orçamento provincial então vigente) e mais quatrocentos mil réis (ofertadas ao grupo
por um anônimo), realizou 37 alforrias no dia 31 de setembro de 1871, tendo sidas as
cartas de liberdade entregues ao juiz de órfãos da capital7.

6
Jornal do Recife, 20 de julho de 1871, Transcripção: elemento servil (reforma).
7
Disponível em: http://brazil.crl.edu/bsd/bsd/u646/000002.html. Acesso em: outubro de 2017.

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Acontece, no entanto (e é aqui que necessitamos de maior atenção), que o


relatório afirmava que os libertantes ou tutores das meninas é que seriam responsáveis
pela educação e criação das mesmas, por não haver ainda principiado a criação de
institutos destinados aos infantes libertos. Mais adiante, exprimia que se os agricultores
tivessem a precisão de não entregar os filhos de suas escravizadas ao governo e lhes
promovessem educação conveniente e amor ao trabalho, a transição da mão de obra
compulsória para a livre ocorreria sem perturbação. Ora, aqui reside o questionamento
óbvio do Barão de Prados: que garantias existiriam para a educação e criação dessas
crianças? Como acreditar na efetividade do dispositivo, quando no corpo da lei não
havia expressão acerca dos direcionamentos aos cuidados dos ingênuos? O relatório
elaborado na gestão de José Junqueira parecia, portanto, simular um ambiente social
amistoso frente ao eviente receio da incapacidade de aplicação da Lei. Ele elogiava a
Ventre Livre justamente em um ponto de fundamental crítica e desconfiança. Tentava
forjar sentidos brandos em um clima de grande tensão.
A advertência do Barão de Prados parece ter sido evitada novamente pelo
presidente da província alguns meses depois, no relatório assinado no dia primeiro de
março de 18728. A reforma, de acordo com o presidente, acontecia sem nenhum
tropeço. A extinção gradual do cativeiro era questão de tempo e não haveria razão para
se inquietar sobre os possíveis abalos causados pela lei. Dizia ele que a nação deveria
felicitar-se por não terem acontecidos lutas em torno da questão, uma vez que em outros
países a contradição dos interesses relacionados à extinção da escravidão fundamentou
conflitos. Era a divina providência agindo, de acordo com o político.
Endossava as suas informações citando as doações de cartas de liberdades a
escravizados e a criação de associações filantrópicas para atender os mesmos, tendo
sido destacada a Sociedade Emancipadora, que já havia conferido liberdade a dezenas
de seres humanos, segundo o presidente.
De fato, podemos observar na imprensa (especificamente no Jornal do Recife, no
Diário de Pernambuco e no A Província) frequentes notícias de libertações de seres
humanos (adultos ou crianças) em um período demarcado pela promulgação da lei até o
ano de 1875. São variadas informações, desde a manumissão de uma ou duas crianças
até de grupos de escravizados. Em 9 e 22 de novembro de 1871, 14 dezembro de 1871,
31 de julho de 1872, 2 de janeiro de 1874 e 30 de agosto de 1875, o Jornal do Recife

8
Disponível em: http://brazil.crl.edu/bsd/bsd/u646/000002.html. Acesso em: outubro de 2017.

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divulgou a concessão de cartas de alforrias a escravizados em todo o território imperial.


No Diário de Pernambuco, encontramos publicações de 22 de novembro de 1871, 14 de
dezembro de 1871, 02 de janeiro de 1872, 23 e 31 de março de 1872 e 28 de junho de
1872. No A Província, apenas em 21 de março de 1873 e 1 de julho de 1873.
O que nos interessa, efetivamente, não é a mera indicação desses dados, mas o
que eles podem representar no cenário social e cultural estudado. Seria desonesto
afirmar que os textos publicados quase sempre relacionavam as libertações à Lei do
Ventre Livre. Em grande parte não existia quaisquer associações desta alçada. Por qual
motivo, então, apresentamos a preocupação de situar as datas de publicação dessas
notícias? Porque é a partir de 1875 que percebemos uma transformação no teor daquilo
que vinha ocupando espaço nos setores da imprensa analisados. A positividade da Lei
Rio Branco e as frequentes concessões cedem espaço às variadas críticas à
operacionalização do dispositivo legal. Há uma nítida inversão de posição: das benesses
da Ventre Livre e do pretenso clima de libertações gerais, se assume um tom crítico à
lei, aos cuidados dos ingênuos e o questionamento acerca de quando ocorreria a
extinção do cativeiro.
O relatório do presidente da província, portanto, se sustentava de alguma forma
em um certo clima de positividade endossado pelos jornais entre o início da vingência
da lei e 1875 - ano em que as tensões se tornarem nítidas em importantes setores da
imprensa pernambucana. O texto elaborado pela presidência se fundamentava em um
lógica interessada em estabelecer uma vontade de verdade: a pretensa harmonização
social da Ventre Livre.
Não havia, portanto, credulidade nas palavras assignadas no relatório. Não é
demasiado afirmar a gravidade e a perversidade que as compunham, a disposição em
legitimar um suposto cenário harmônico frente a evidentes violências e contrastes
sociais. A lógica que basilava a “conciliação” da Lei do Ventre Livre seria a ausência de
conflitos que guardassem proximidade aos embates ocorridos em outras nações, no que
tange, evidentemente, a abolição da escravidão. Os EUA apareciam como um exemplo
a ser temido, evitado a todo custo. Acontece, no entanto, que este pensamento reforçava
os vínculos escravocratas nas relações de trabalho. Aparecia como uma benesse à
sociedade, símbolo de fraternidade e amor, a manuntenção dos ventres livres nos
círculos de convivência com os senhores de suas mães! O presidente deixa evidente que
essa continuidade era bem quista para evitar desordens na sociedade. Eximia assim a

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responsabilidade do Estado no amparo aos filhos e filhas de escravizadas, relegando


este dever aos proprietários de seres humanos.
A lógica enunciada pelo presidente da província pernambucana não deve ser
compreendida apressadamente. O discurso de pacificação e harmozinação social
apresentado por João José de Oliveira incidia justamente no receio que os críticos ao
projeto da lei advertiam: a incapacidade do Estado em promover assistência às garotas e
garotos negros nascidos após 28 de setembro de 1871. Mais ainda, a transferência de tal
responsabilidade às mãos dos senhores de escravizados, sob cínicos e perversos
argumentos, como se estes indivíduos estivessem aptos ou sequer interessados em
promover os cuidados previstos na lei.
Não estamos afirmando com isso, todavia, que existisse uma aliança indelével
entre o Estado e os proprietários de seres humanos, como se pudesse existir uma
estratégia que fundamentava a manuntenção do poder senhorial devido à incapacidade
estatal. Esse movimento não ocorre com uma intencionalidade de pacificação entre
esses dois setores da sociedade. Pensar por esta lógica seria reduzir uma complexa
tensão social a uma estratégia simplista e ainda anular os frequentes conflitos que se
deram entre essas duas partes. Mais ainda, seria negligenciar as ferramentas teóricas e
metodológicas que envolvem as noções de micro-poder e a própria complexidade da
micro-história. Discordamos, portanto, desse modelo analítico. O que nos interessa aqui
é compreender que em Pernambuco, a recepção inicial da Lei Rio Branco foi forjada
sob lemas de patriotismo, harmonia social, ausência de guerras e conflitos, amor (sim,
amor!) entre senhores de escravizadas e os rebentos dessas últimas e da inevitável
proximidade da extinção da instituição da escravidão. Essa vontade de verdade buscava
incutir nos habitantes da província o sentimento de segurança e tranquilidade, bem
como a capacidade do Estado em gerir a transformação que ocorria.
É de elevada importância pontuar que o elogio à criação dos ingênuos pelos
proprietários não significou, necessariamente, a suspensão da concepção da necessidade
de instaçação de estabelecimentos dedicados à assistência da população egressa do
cativeiro. Encontramos uma publicação no exemplar do Jornal do Recife de 16 de
dezembro de 1871 (de um texto escrito para o Diário de Alagoas) que nos ajuda a
compreender isto. Ela indicava a necessidade de se estabelecerem associações de
emancipação e asilos para a educação elementar e profissional dos libertos. Em uma
reunião no salão do palacete da assembléia provincial, ocorreu uma reunião com o

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presidente da província de Alagoas, em que temas políticos foram debatidos. O primeiro


(e único que nos interessa) a ser mencionado foi a questão do trabalho servil:

Tratou S. Exc. em primeiro lugar da reforma do elemento servil, expondo a


necessidade de se estabelecerem associações de emancipação em cada uma
das comarcas da província, as quaes se encarreguem da fundação de asylos
para educação elementar e professional dos libertos de ambos os sexos, em
virtude da lei n. 2:040 de 28 de setembro deste anno. 9

É fundamental, contudo, compreender que mesmo a demanda por instituições


dedicadas aos ex-escravizados não aparece como crítica. O tom da publicação é de
cumprimento da lei. A garantia de superação dessa carência deveria ocorrer em virtude
da disposição legal, como é nítido no texto. Mais uma vez, recordamos a distinção entre
os primeiros anos de vigência da Ventre Livre e os anos que seguiram 1875. Não há na
publicação um tom de crítica, de cobrança, de desconfiança da operacionalização da Rio
Branco. Pelo contrário, ela deveria legitimar práticas futuras de assistência. Ela era a
“garantia” de uma nova disposição social, se situava em uma posição posição muito
próxima da apresentada pelo presidente da província de Pernambuco, se centrarmos o
argumento na positividade da Lei 2040 de 28 de setembro de 1871.
O Diário de Pernambuco também foi um importante periódico que fez circular a
“boa nova” da Lei do Ventre Livre. Em 07 de junho de 1872, anunciava uma solenidade
do Instituto Arqueológico e Geográfico (realizada no dia anterior), em que foi feita a
entrega da pena que a Princesa Isabel assinou a Lei Rio Branco. O discurso, proferido
pelo coronel Barros Falcão, presente na comemoração, apontava:

Exm. Sr. Presidente e mais membros do instituto. – Comissionado pelo Exm.


Sr. conselheiro Theodoro Machado Freire Pereira da Silva, ex-ministro da
agricultura, para offertar a este instituto a penna com a qual a princeza
imperial ex-regente assignou a lei de 28 de setembro de 1871; venho cumprir
desse dever cheio das mais gratas emoções. Esta lei, senhores, que melhor se
achava nos corações de todos os brasileiros que não descuram do futuro da
patria, fazendo ardentes votos pelo seu progresso real, recorda uma data
memorável da historia, um facto eminentemente christão e humano, que
elevando-a ao nível da civilisação do seculo, em que vivemos, dá ao mesmo
tempo testemunho inequivoco do patriotismo do governo que promulgou essa
lei, rendendo dest’arte justa homenagem a grande e legitima aspiração
nacional para os captivos. Certo, senhores, a obra não está completa: o
monstro da escravidão estende ainda as malhas de sua rede sobre o território
da pátria; mas a lei de 28 de setembro é já um obstáculo invencível a seu
desenvolvimento; é o princípio da luz do sol da justiça, que desponta em
nossos horizontes; e aos raios deste sol, emblema purissimo da Divindade,
nao ha trevas impenetraveis (...) 10

9
Jornal do Recife, 16 de dezembro de 1871, capa.
10
Diário de Pernambuco. 07/06/1872, p.2. Pernambuco: Revista Diária.

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ISBN: 978-85-415-0980-0

Mais uma vez a lei é posta ao lado dos mais sublimes e harmoniosos sentimentos.
Sua fundação teria sido repleta de “gratas emoções”, fruto dos corações de todos os
brasileiros atenciosos ao futuro da pátria. Cristã e humana, testemunho da civilização do
século e a luz milagrosa que anunciava a derrocada breve da escravidão.
A aproximação do ideal religioso para legitimar estratégias políticas não é uma
particularidade deste cenário. Sabe-se que em diversos momentos históricos complexas
e diversas articulações intelectuais foram operacionalizadas neste sentido. Foucault nos
ensina como os deslocamentos discursivos podem ser utilizados para legitimar
determinadas práticas, isto é, como um discurso que fundamenta novos atos retoma e se
apropria de elementos discursivos outros que vão além de sua própria formulação11.
Bem, os relatórios da presidência da província, o Jornal do Recife e o Diário de
Pernambuco buscaram enfaticamente e insistentemente associar a Lei do Ventre Livre a
noções cristãs de harmonia, humanidade, amor, fraternidade e justiça. A religiosidade,
neste sentido, é utilizada para emprestar forças a uma vontade de verdade cujo
argumento se quer legitimar. A tranquilidade e a segurança social são insistentemente
citadas na tentativa de anular os conflitos que envolveram a promulgação da lei. É uma
tentativa de sacralizar a lei, de buscar na ordem sobrenatural amparo para associar o
Ventre Livre à hamornia da sociedade.
Percebemos isso com maior evidência no discurso do carioca Salles Torres
Homem, na Assembléia Geral Legislativa, em 5 de setembro de 1871 e publicada no
Jornal do Recife em 7 de outubro do mesmo ano. Sobre a Lei 2040, disse:

Mas, se ella tem por fim impedir a reincidencia em um dos maiores


attentados que mancham a especia humana; se tem por fim restaurar a lei de
Deus e da natureza no meio da nossa civilização e destruir pela raiz o mal,
que tolhe as condições do seu desenvolvimento; neste caso, longe dos
defeitos da precendente suposição ella poderia talvez ser erguida de timida e
incompleta, de transigir com os interesses mal entendidos em preterição das
exigencias da justiça e dos direitos da humanidade. Dependendo, pois o
exame da lei do de seus motivos qual é esse mal, a que ella procura dar
remedio? Não devo, nem quero, senhores, descrever nesta tribuna a serie de
transformações porque passa o escravo, que há de vir, até ser reduzido á
machina. E’ um triste quadro, que todos conhecem, e eu deixo aos escriptos
dos philantropos o dizerem o como no interesse da segurança do proprietario
obliterava-se systematicamente nelle a intelligencia, a imagem de Deus no
homem; como suprime-se-lhe o livre arbitrio e embota-se-lhe a consciencia,
que lhe revelaria seus titulos, seus direitos e deveres; o como depois de se lhe
arrancar a propriedade do proprio corpo, das forças vivas que o movem, e por
consequencia a dos fructos de seu trabalho, ferem-se em seu coração as
affecções mais caras, nega-se a familia sempre dispersa ao sopro de todos os
ventos, rompem-se os laços que a formam, a autoridade e o amor paternal, a

11
FOUCAULT, Michel. A ordem do discurso. 14ª ed. São Paulo: Edições Loyola, 1996.

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dependencia e piedade filial, a castidade e a ternura da mulher. Sentimentos


moraes, nobres instinctos de felicidade, esperanças e consolações no meio
das tormentas da vida, tudo desapparece nesse homem, posto fóra da lei da
humanidade e rebaixado á condição de bruto! 12

O início do recorte já esclarece o tom religioso sobre o qual estamos refletindo. A


Lei do Ventre Livre, segundo Torres Homem, buscaria não somente erradicar o sistema
escravista do território brasileiro, mas restaurar a ordenação natural e divina no seio da
civilização. O afastamento dos seres humanos diante de Deus representava um dos
maiores atentados da história, uma mancha na espécie humana: a escravidão. A
aproximação com sagrado destruiria esta mácula, recomporia a dignidade dos homens e
mulheres e proporcionaria as condições para o desenvolvimento de uma sociedade
civilizada.
Mesmo que a lei pudesse ser chamada de tímida e incompleta, que transigisse com
os interesses dos mal entendidos, isto é, os proprietários de seres humanos escravizados,
o parlamentar afirmava que as suas exigências reclamavam por justiça e por direitos da
humanidade. Ela atuaria para pôr fim a horrenda transformação de homens e mulheres
em meras máquinas de mão de obra.
O modo como Torres Homem elabora seu discurso é que nos reclama prudência.
A maquinização dos escravizados não era somente um afastamento brutal das noções
modernas de civilidade, mas, antes de tudo, uma ruptura com a vida humana naquilo
que a transformava em mais sagrado: a imagem de Deus nos homens. Ora, diferente do
discurso religioso de outros tempos, que fundamentou a constituição de diversos
sistemas escravistas no globo terrestre, o anunciado não apontava os indivíduos de tez
negra como portadores da mácula de Cam. Inversamente, seriam também esses sujeitos
concebidos à imagem e semelhança do Criador. Sendo assim, o cativeiro se punha
contra o sagrado por tolher o livre arbítrio, a inteligência e a consciência de homens e
mulheres, não os permitindo títulos, direitos e deveres. Mais ainda, lhes arrancaria os
próprios corpos e coibiria os frutos do trabalho, as afeições, os laços familiares, o amor
paternal, a piedade filial, a castidade e a ternura da mulher.
Não é árduo compreender como a interdição ao que fora citado é operacionalizada
na fala que foi ecoada na Assembléia Legislativa. Família, amor paternal, castidade e
ternura feminina são elementos basilares da concepção cristã e da formação católica do
século XIX. A figura de Deus como pai de todos os seres humanos e o culto à virgem
Maria endossavam a defesa da instituição familiar e as concepção de “pureza” e
12
Jornal do Recife, 07 de outubro de 1871, capa.

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sexualidade femininas. A escravidão, portanto, aparece no discurso como responsável


em cisar as possibilidades de uma existência cristã plena. Ao negar o direito às relações
familiares e propiciar um ambiente de lassidão às mulheres escravizadas, operaria por
afastar essas pessoas de condições capazes de manifestarem suas vidas naquilo que
haveria de sagrado.
Salles Torres Homem ainda atacava as contestações dos proprietários de seres
humanos contra a Lei do Ventre Livre. Criticando a idenização que o dispositivo legal
permitia aos senhores, não deixava de admitir a sua fundamental importância social,
advertindo que as reclamações senhoriais seriam absurdas, execráveis e contrárias ao
domínio de Deus:

Proclamando a liberdade dos nascituros, a proposta os deixa entregues até a


idade de 21 annos ás mãos dos antigos proprietários, que gozaram delles
gratuitamente, como dos outros escravos, expostos ao mesmo regimen, á
mesma miseria da condição servil, durante todo este longo período de
primavera da vida. Prometteu-lhes, além disto, o pagamento, como
indemnisação, das despesas da criação, caso elles o prefiram ao usfructo dos
21 annos. Entretanto, os proprietários atacam á liberdade dos nascituros em
nome do direito da propriedade violada; reluctam contra a indemnisação
como insuficiente, inefficaz para o efeito (...). Ora, Sr. Presidente, não é no
meio desta augusta assembléia , onde a par de tantas luzes e experiencia
dominam os sentimentos mais elevados, que eu irei demonstrar que creaturas
inteligentes dotadas como nós de nobres attributos e dos mesmos destinos,
não podem ser equiparadas no ponto de vista da propriedade ao protro e ao
novilho, ao fructo das arvores e aos objectos animados da natureza,
submettidos á dominação do homem. Doutrina absurda e execrável! Os seres
de que se trata não existem ainda; a poeira de que seus corpos serão
organisados, ainda fluctua dispersa sobre a terra a alma immortal, que os tem
de animar, ainda repousa no seio do poder creador serena e livre, e já o impio
escravagista os reclama como sua propriedade , já os reivindica do domínio
de Deus para a infame da escravidão!13

De chofre, observamos no texto uma nítida crítica à utilização da palavra


liberdade no que se refere ao cotidiano dos menores de 21 anos que estivessem sob o
julgo da lei. Como pensar sob esses termos em um contexto em que as crianças e jovens
de “ventre livre” deveriam continuar sob os domínios dos seus antigos proprietários?
Como justificar as manumissões desses meninos e dessas meninas em um cenário
jurídico e social que os impelia a manter relações cotidianas com um passado repleto de
violência e domínio senhorial, a um presente de condição servil? A crítica de Torres
Homem, todavia, não se encerra aí. Inversamente, avança com profundidade sob um
ataque moral aos comportamentos dos proprietários de seres humanos. Incide sobre a

13
Idem

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manifestação desses últimos quando alegam o direito à propriedade e protestam sobre o


“baixo” valor das idenizações destinadas a eles.
O raciocínio do parlamentar se fundamenta em um princípio cósmico e cristão.
Absurdo e execrável seria a “doutrina” escravista. Os propriétários estavam a antecipar
valores indenizatórios daquilo que ainda seria poeira a se organizar sob a forma de
corpos; almas imortais não animadas e que repousavam serenas e livres no seio das
mãos do criador. Reclamar o direito de posse de futuros seres humanos, quando os
mesmos ainda estavam sob os domínios de Deus, era uma afronta ímpia e infame
sustentada pelo sistema escravista. Uma ofensa direta aos domínios do sagrado.
Não é demasiado afirmar que o julgamento de Torres Homem incide mais sobre
as reclamações dos proprietários em relação à Lei Rio Branco e menos acerca da
promulgação desta última. Por mais que se posicionasse contra a convivência dos
“ventre livres” com os senhores de escravizados, é notório que os seus argumentos se
posicionam em relação à ambição e à falta de espírito moral e cristão desses últimos em
aceitar os novos ditames legais. A Lei do Ventre Livre, mesmo que levemente criticada
em sua fala, operaria para estreitar o distanciamente entre o ímpio mundo humano com
o sagrado. Se assim não fosse, não seria lícita a lógica que o mesmo fundamentava ao
criticar os setores senhorias. O novo dispositivo jurídico incomodava justamente por
tentar reduzir (mesmo que de modo frágil) a dominação violenta, bárbara e anti-cristã
do cativeiro. Seu núcleo, portanto, estava associado a uma perspectiva religiosa, na
percepção do parlamentar.
Se pareceram insuficientes os nossos argumentos sobre a censura de Torres
Homem atingir mais a recusa dos proprietários de seres humanos diante dos ditames da
Lei 2040 de 21 de setembro de 1871 do que, efetivamente, uma crítica elaborada ao
próprio dispositivo jurídico, endossamos nossa análise com as palavras do próprio
político:

E quando assim foram calcadas as leis humanas de envolta com a lei divina,
como se ousa invocal-as para ecadear no futuro os filhos ou netos das
conquistas desse commercio abominavel? Os peticionarios tambem reluctam
á indemnisação, que desejariam que subisse ao equivalente, ou ainda superior
ao da cria, a que nenhuma especie de direito tem. Qual o motivo da
indemnisação? As despesas da criação, diz-se. Mas esses infelizes são
amamentados por suas mães, nutridos com as migalhas dos alimentos
grosseiros que elas contribuem a plantar e colher: o leite do seio materno
dado ao filho, o suor da mãe para os fazer viver e cobrir-lhes a nudez, eis o
que os senhores terão de vender ao thesouro! Sr. Presidente, lastimo que esta
disposição faça parte da proposta; ella a deslustra, assim como avilta o
proprietario, porque parece uma precaução contra sua barbaridade; receia-se

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que elle abandone as crias á miseria e á morte, se sua deshumanidade não for
corrigida, e contida pela sua avareza. Mas, mesmo neste caso, não seria ouro
que conviria enviar a esses homens; seria o Evangelho, para que elles ahi
aprendessem a cumprir os deveres sagrados da caridade para os filhos
daquelles que trabalham gratuita e incensantemente, que trabalham até a
morte para crear a prosperidade dos senhores e seus descendentes. 14

Pode-se dizer, em uma análise muito apressada, que o discurso aponta para a
lástima do orador acerca da disposição de pagamento de indenizações aos proprietários
de seres humanos, evidenciada na Lei Rio Branco. Pensar assim, todavia, é imegir em
uma linha de pensamento binária e rasa. A análise do parlamentar diante das
reivindicações dos proprietários de escravizados não isenta o mesmo de tecer
argumentos de insatisfação sobre a reforma dos direitos escravistas. Nem de longe faz
dele um grande crítico à Lei do Ventre Livre. Recordemos que no íncio de seu discurso,
como pontuamos mais acima, apontava que o aparato legal atuava para impedir a
reincidência de um dos maiores atentados da espécie humana.
O que efetivamente nos interessa é a disposição do parlamentar em apontar, a
todo instante, o comportamento dos proprietários em relação ao cumprimento da Lei
2.040 como bárbaros, ímpios e anti-cristãos. É verdade que Torres Homem não
concordava que o cotidiano dos “ventre livres” fosse constituído em um ambiente
imerso em concepções e ações que a todo instante retomassem o cativeiro, tampouco
que assistisse passivamente o pagamento de indenizações aos senhores. Não, ele não
apoiava esses pontos da lei. Porém, era atuação dos senhores que servia de núcleo para
o seu embate. Como poderiam esses sujeitos afirmar que o embolso de uma pretensa
reparação era ínfimo, quando o cenário em que as crianças atingidas pela lei revelavam
miséria e pobreza? Amamentadas pelos seios das mães escravizadas, nutridas pelas
migalhas de alimentos grosseiros que as mesmas contribuíram no plantio e na colheita.
Foi o suor materno que as amparou e criou, não o dos proprietários. Exigir uma
indenização era sinônimo de perversidade. Reclamar do valor de uma reparação que já
se colocava como injusta, era, então, mais ímpio ainda. Deveriam esses homens serem
pagos não com ouro, mas com o Evangelho.
Torres Homem, de tal maneira, acusava o sacrilégio dos senhores de indivíduos
escravizados. Ir contra a reforma da Lei do Ventre Livre era uma heresia sem tamanho.
Ela, apesar de proporcionar certas insatisfações, operava para reduzir o abismo de
injustiça que afastava a sociedade da prática cristã. Estava amparada, portanto, não

14
Idem.

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apenas nos ideais de civilidade, mas por um âmbito sagrado de obediência às leis
divinas.
Era preciso, contudo, apontar não apenas os nobres sentimentos de civilidade da
nação ou o teor cristão da emancipação. Anunciações genéricas sobre a boa nova do
Ventre Livre não deveriam dar conta de uma vontade de verdade que se buscava
estabelecer. Percebe-se tanto no Jornal do Recife, quanto no Diário de Pernambuco o
anúncio frequente das novas medidas ocasionadas por conta da Lei Rio Branco.
Notícias que visavam veicular a sua “boa recepção” não apenas na província de
Pernambuco, mas em toda a nação, como a seguinte:

Da cidade do Tieté escreveram ao Correio Paulistano em data de 12 do


passado: Manoel Alves de Almeida Lima, tendo de mandar baptisar crianças
captivas, nascidas a 15 de agosto, a 6 e 7 de setembro do corrente ano, foi a
casa do vigario respectivo e declarou-lhe que os recebesse e baptizasse como
livres, para que também gozassem do privilégio da lei da emancipação do
ventre livre. Factos desta ordem só honram aquelles que os praticam; e
revelam ainda que a lei aqui foi tão bem recebida, que ainda mesmo aquelles
que nasceram antes de sua promulgação vão gosar de seu privilegio. 15

Um texto curto e revelador. Há dois aspectos nucleares contidos nele: o


alargamento das fronteiras acerca da boa aceitação da lei, isto é, da esfera provincial
para a nacional; e o deslocamento temporal que ela fora capaz de exercer sobre o
sistema escravista, possibilitando práticas “retroativas” de libertação de crianças.
Observemos outra notícia, do mesmo jornal, publicada no dia 02 de janeiro de
1872 sobre o Rio de Janeiro:

Da freguezia de S.José do Rio Preto, communicam-nos o seguinte: O alferes


Guilherme Augusto de Araujo Franco, fazendeiro importante d’esta
freguezia, tendo de mandar baptisar duas inocentes crioulinhas, filhas
legitimas de seus escravos, nascidas depois da lei n.2040 de 28 de setembro
de 1871, e tres innocentes nascidos antes d’essa lei, e também filhos
legitimos de seus escravos, igualou a condição de todos, ordenando que os
ultimos fossem baptisados tambem como se nascerem de ventre livre. O
mesmo senhor já havia libertado na pia baptismal a innocente Helena, filha
legitima de seus escravos Arsenio e Anna, nascida antes da lei16.

Na mesma página e coluna do texto acima, se lê: “A Sra. D. Maria de Souza deu
liberdade a uma cria sua de côr parda, nascida oito dias antes da lei da reforma do
elemento servil”17. Não é de se estranhar que o Diário de Pernambuco, que saudou a
chegada da lei como símbolo dos sentimentos cristãos e de civilidade, anunciasse

15
Diário de Pernambuco, 14 de dezembro de 1871, p. 2.
16
Diário de Pernambuco, 02 de janeiro de 1872.
17
Idem.

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práticas que corroborassem com o discurso que enfatizava harmonia social no que toca
a questão da emancipação.
Os textos do Diário de Pernambuco fornecem argumentos para se pensar que a
Lei do Ventre Livre estaria harmonizando a violência entre senhores e escravizados. A
reforma legal ia de vento em polpa! Sua boa aceitação não limitava-se apenas à esfera
provincial, mas a toda à nação. As notícias do Sul circulavam em Pernambuco como
luzes de civilidade. Eram exemplos a ser seguidos. Crianças estavam sendo libertadas.
O seu efeito teria sido tamanho que extrapolara até o tempo em que fora promulgada:
infantes nascidos antes de sua vigência estavam recebendo cartas de liberdade! E não
apenas os que tinham nascidos dias ou meses antes de 28 de setembro de 1871. O Sr.
Conselheiro Jeronymo José Teixeira Júnior, presidente da câmara municipal do Rio de
Janeiro, em ato solene em comemoração à lei do ventre livre, discursou:

“ (...) desejando prestar uma solemne homenagem ao sublime pensamento


que exprime a lei de 28 de setembro de 1871, causa unica da insolita
hospitalidade que tenho soffrido, resolvi conceder plena liberdade aos meus
escravos menores Eduardo e Frederico, ambos crioulos, o primeiro nascido a
2 de junho de 1866, e o segundo a 15 de junho de 1870, e de facto por esta
lh’a concedo, para que della usem como se fossem nascidos de ventre livre;
obrigando-me, porém, a educa-los durante a sua menoridade. E para prova
authentica desta minha vontade e do direito que desde hoje
incondicionalmente confiro aos ditos menores, passei a presente, que assigno
com as testemunhas abaixo inscriptas, todas ellas pertencentes ao digno
eleitorado da côrte (...)”.18

Podemos observar que as palavras do presidente da câmara, postas no Diário de


Pernambuco, lançavam uma perspectiva positiva sobre as transformações da Lei Rio
Branco. Uma criança nascida em 1866 poderia ter até sete anos de idade em 1872.
Ainda assim, a ela fora concedida “liberdade plena”, graças a reforma legal de
setembro de 1871. O “espírito do Ventre Livre” seria capaz de lançar cartas de
liberdades a meninos e meninas que haviam nascidos sob a condição de escravizados
mesmo muito antes da lei. Isto sob a obrigação, evidentemente, de cuidados e educação
dos ex-senhores às crianças. O conselheiro Teixeira Júnior não vacilava em assumir tal
dever diante de testemunhas parlamentares.
Cabe recordar, mais uma vez e enfadonhamente, a crítica do Barão de Prados
sobre a operacionalização dos ditames da lei no que toca o amparo aos ventre livres.
Não é difícil perceber o quão genérica é a afirmação do presidente da câmara diante dos
cuidados que iria fornecer aos meninos libertos. A promessa de educação e criação

18
Diário de Pernambuco, 29 de março de 1872, capa.

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aparecem vagas, sem nenhuma base sólida, ausente da exposição de quaisquer


procedimentos. Iriam ter acesso às primeiras letras? Ao ensino profissionalizante?
Seriam cuidadas como? Sob as ordens de qual dispositivo jurídico? Deveriam os
garotos ser igualados aos órfãos?
A Lei do Ventre Livre é inócua em expor como deverim ser criados e educados os
infantes cuja liberdade fora proporcionada por ela. Deveriam, contudo, os ingênuos,
serem sorvidos por ele? Respostas que a reforma legal de 1871 não responde, mas que
serão discutidas ao longa desta tese.
O que queremos aqui, é insistir que os primeiros anos de vigência da Lei do
Ventre Livre foi acompanhada pela emergência discursiva de setores da imprensa e da
própria presidência da província de Pernambuco em procurar legitimar uma vontade de
verdade que apontava para uma pretensa harmonia social diante da promulgação da lei.
Importantes jornais, como o Diário de Pernambuco e o Jornal do Recife fizeram
circular, até 1874, textos que representavam a reforma legal sob um aspecto de calmaria
e harmonia social.

Referências
• CHALHOUB, Sindey. Visões da liberdade: uma história das últimas décadas da
escravidão na corte. São Paulo: Companhia das Letras, 2011.

• FOUCAULT, Michel. A governamentalidade. In: FOUCALT, Michel. Microfísica


do poder. 26. ed. Rio de Janeiro: Graal, 2008.

• _____. A ordem do discurso. 14ª ed. São Paulo: Edições Loyola, 1996.

• _____. História da sexualidade I: a vontade de saber. 17. ed. Rio de Janeiro:


Graal, 2006.

• MARCÍLIO, Maria Luíza. História social da criança abandonada. São Paulo:


Hucitec, 1998.

• PAPALI, Maria Aparecida Chaves Ribeiro. Escravos, libertos e órfãos: a


construção da liberdade em Taubaté (1871-1895). São Paulo: Annablume: Fapesp,
2003.

• SLENES, Robert W. Na senzala, uma flor: esperanças e recordações na formação


da família escrava: Brasil, sudeste, século XIX. Editora da UNICAMP, Campinas,
2011.

• TEIXEIRA, Heloísa Maria. A criança no processo de transição do sistema de


trabalho – Brasil, segunda metade do século XIX. Disponível em:

125
Anais do VII Seminário TRT/UFPE e II Caravana ANPUH/PE: História, Direitos e Trabalho.
ISBN: 978-85-415-0980-0

http://www.abep.nepo.unicamp.br/encontro2006/docspdf/ABEP2006_347.pdf.
Acesso em: setembro de 2011.

CULTURA ASSOCIATIVA NO RECIFE DO PÓS-ABOLIÇÃO: OS


FRESSUREIROS DE PERNAMBUCO (1903-1916)

Karla Hegeane Vieira de Lima


Mestranda do Programa de Pós-graduação em História
Universidade Federal de Pernambuco
karli_lima@hotmail.com

A forma como os trabalhadores se organizaram para enfrentar as adversidades


do mundo do trabalho no início da República ainda é uma problemática a ser explorada.
Em nosso caso, intentamos contribuir para a temática com o estudo de um grupo de
trabalhadores que se organizou em torno de uma associação mutualista. Esses homens
aparecem na imprensa local em diversos papéis sociais, muitas vezes fazendo parte dos
estereótipos criados em torno dos homens negros, vagabundos e perigosos, mas também
como realizadores de greves em confronto direto com seus opostos. Acreditamos ser
essa categoria de trabalho bastante representativa do modo como os trabalhadores se
organizaram no período.

Nossa história toma lugar no triângulo formado por Afogados, Cabanga e São
José no mapa do Recife. Fressureiro era o nome pelo qual era conhecido o vendedor de
fressuras, vísceras do boi, miúdos- estômago, língua, coração - as partes menos nobres1.
Segundo o Jornal Pequeno, a venda desses miúdos era imprescindível para as famílias
menos abastadas da cidade2. Havia vários vendedores de fressuras espalhados pelo
Recife, mas o grupo em questão estava concentrado nos bairros mencionados. Eles
compravam as fressuras no Matadouro do Cabanga, vendiam-nas no Mercado de São

1
Também eram conhecidos como fateiros ou miudeiros. Categoria de trabalho distinta dos talhadores
(estes vendiam carnes verdes).
2
JORNAL PEQUENO. 28 de agosto de 1903. Página 3. Na impossibilidade de adquirir carnes verdes, as
“famílias em apuros” econômicos recorreriam aos miúdos, partes menos nobres do boi. O serviço por eles
afetava dois setores, os matadouros que acabavam ficando com a mercadoria parada quando aconteciam
greves e a parcela pobre da população que se alimentava de fressuras.

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José e suas imediações e em sua maioria morava em Afogados, bairro conhecido na


época por abrigar uma grande parcela pobre da população3.

Em março de 1903 foi criada a Sociedade Beneficente dos Fressureiros de


Pernambuco, sociedade esta que tinha sede no número 216 H da rua Imperial e São José
como santo padroeiro, realizando as missas da associação na Matriz do bairro
homônimo. Em 1914 já não mais existe a associação, mas sabemos da existência de
outro agrupamento institucional desse grupo de trabalho: a União Monte-pio dos
fressureiros do Recife; existindo inclusive alguns homens que fizeram parte das duas
experiências4. Nossa intenção é usar esse grupo para pensar sobre os modos como as
pessoas vivenciaram experiências associativas e como essas experiências dizem sobre a
organização dos trabalhadores no início da República que coincide em nossa
perspectiva com o pós-abolição5 na medida em que desejamos entender esses sujeitos
em várias dimensões, sendo a cor da pele e os modos como as marcas da escravidão
foram interpretadas no mundo do trabalho uma dessas perspectivas.

Pensar o trabalho no pós-abolição é bastante oportuno, já que existe dentro da


historiografia uma espécie de branqueamento do universo do trabalho depois de 1888.
Sabemos que este não é o caso de Pernambuco, não tivemos uma imigração europeia
forte como nos estados do Sudeste e assim o mundo do trabalho no estado foi espaço de
homens e mulheres negras. Como Robert Levine nos diz, “Os escravos alforriados não
deixaram a zona [da mata] em massa como se temera, embora muitos efetivamente
migrassem das plantações do litoral para o Agreste... Os antigos escravos apenas
engrossaram as fileiras dos trabalhadores livres” (LEVINE, 1980, p.41).

Pudemos observar queixas nos jornais que dizem da necessidade de


normatização do trabalho e comportamento dos fressureiros. Como em 1900 n’ A
Provincia, onde pede-se atitudes do fiscal de freguesia responsável pelo Pátio do

3
Vários dos documentos aqui citados fazem referência ao bairro de Afogados como cenário de brigas,
lazer e lutas dos fressureiros. Como por exemplo na notícia sobre a criação do clube carnavalesco
Amantes da Lua de Afogados –JORNAL DO RECIFE. Novo Club 11 de março de 1902. Página 2.
4
A PROVINCIA. 18 de setembro de 1914. Página 4.
5
Entendemos que muitos dos processos ocorridos no eixo Rio-São Paulo não podem ser expandidos para
o resto do país, muito menos as interpretações que postularam a total substituição do trabalho escravo
pelo trabalho dos imigrantes europeus. “Durante muito tempo se considerou sem relevância o estudo da
classe operária na Primeira República” (BATALHA, 2010), e quando a historiografia se voltou para esse
momento foi no sentido de estudar as tendências anarquistas e anarco-sindicalistas, mais uma vez a mão
de obra nacional era esquecida do processo. As formas de organização trabalhista empregadas que fugiam
ao modelo citado passaram muito tempo sem interessar a história social brasileira e estudar os
fressureiros, suas greves e sua mutualista é justamente transpor essa tendência.

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Paraíso para coibir o ajuntamento incômodo dos fressureiros6. Ou em 1902 quando o


jornal ressalta a “algazarra” promovida por esses trabalhadores no Largo da Estação
Central próximo à Casa de Detenção7. Em Trabalho, Lar e Botequim, Sidney Chalhoub
(1986) atenta para a necessidade de ajuste do universo mental das classes dominantes a
(À) nova configuração do mundo trabalho. Enquanto a presença do escravo era
dominante, o trabalho estava circunscrito na ordem, na propriedade, não se
configurando como um problema em si mesmo. No mundo capitalista, o trabalhador é
dono de sua força de trabalho, é daí que surgem as medidas repressivas que obrigam
todos ao trabalho. A vadiagem passa a ser vista como um problema social a ser
extirpado, o trabalho agora não só produz bens e serviços, mas passa a ser encarado
como um fator de dignificação, a moral do indivíduo se eleva através dele.

À parte do trabalho de Marcelo Mac Cord (2010), as mutualistas em Recife vêm


sendo quase que ignoradas como parte integrante da história dos trabalhadores.
Possivelmente por conta da continuidade da perspectiva que tratava com menos
seriedade as organizações de trabalhadores criadas por nacionais, já que só os
imigrantes europeus recém-chegados teriam de fato sabido como se organizar em prol
de lutas trabalhistas (CHALHOUB e SILVA, 2009). Ainda se faz necessário estudar
como as mudanças na ideologia do trabalho afetaram esses sujeitos abalados tão
profundamente pela escravidão, mas agora para pensá-los enquanto agentes de suas
próprias histórias e lutas, vislumbrando suas greves e outros modos de organização
como uma busca por cidadania, pensando suas atuações como agentes políticos.

O trabalho aqui apresentado ainda está em sua fase inicial e por esse motivo a
dimensão parece ficar escamoteada, uma vez que a documentação aqui analisada não
nos ajuda muito na identificação da cor desses sujeitos. Entretanto, alguns indícios nos
levam a pensar de forma contundente nessa hipótese como, por exemplo, os seus locais
de moradia e o ofício que desempenham. Mas para além disso, quando a cor da pele era
mencionada nos jornais de forma mais evidente, o que não acontece no período
compreendido pela pesquisa, os fressureiros eram homens pretos e pardos8.Sendo assim,
o que apresentamos por hora é um pequeno esboço do universo de trabalho desses

6
A PROVINCIA. 28 de dezembro de 1900. Página 1.
7
A PROVINCIA. 31 de março de 1902. Página 2.
8
Como exemplo cito o crioulo Juvêncio que aparece em notícia do Jornal Pequeno de 23 de setembro de
1882 sendo preso (p.1). Ou mesmo o pardo José Francisco Pinheiro que em 16 de março de 1927 foi
atropelado na rua Imperial junto com seu tabuleiro de fressuras. JORNAL PEQUENO. Encontro
Desagradável. Página 2.

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homens e um pouco do modo como metodologicamente estamos enfrentando o desafio


de unir uma institucionalização do grupo de trabalho às vivências desses sujeitos.

Greves e Associação mutualista

O Jornal Pequeno noticiou uma greve dessa categoria de trabalhadores 9 em 28


de agosto de 1903. O tom do material é bastante elucidativo para entendermos em que
termos se davam as paralisações de trabalho desse grupo, já que essa é só a primeira a
qual tivemos acesso, mas ainda outras existiram. Basicamente os conflitos se davam
sobre o preço das vísceras. Os fressureiros julgavam que o preço estipulado pelos
marchantes, aqueles que por contrato com a municipalidade tinham o direito de cortar
gado, era alto demais. No caso da greve de 1903, a disputa sobre o preço durou cerca de
três dias, mas parece ter sido resolvida entre marchantes e fateiros sem a necessidade de
interferência de outras instâncias.

Mais três greves ainda fazem parte do universo de análise aqui proposto: em
outubro de 1905, em maio de 1906 e em janeiro de 191610. A Sociedade Beneficente
acima mencionada só existiu até 191011 e sabemos da existência do monte-pio da
mesma categoria de trabalhadores em 191412.

No dia 17 de outubro de 1905 o Jornal Pequeno publicou uma nota informando


que no Matadouro do Cabanga havia ameaça de gado contaminado por cão hidrofóbico
ter sido cortado para comercialização.13 No dia seguinte um dos marchantes do referido
matadouro assinou uma nota n’A Provincia negando o fato e informando que na
verdade teria acontecido uma greve de fressureiros, por isso a paralisação do trabalho no
matadouro e o boato gerado de contaminação.14 Nos dias seguintes uma verdadeira
batalha semântica foi travada nos jornais tentando qualificar o mesmo fato, a
paralisação do trabalho no matadouro, a não venda dos fatos. Para uns uma greve de

9
JORNAL PEQUENO. AS FRESSURAS. 28 de agosto de 1903. Página 1
10
A PROVINCIA. Publicações Solicitadas. Ao Público. 19 de outubro de 1905. Página 6; A Província.
Declarações. Sociedade Beneficente dos Fressureiros de Pernambuco. 13 de novembro de 1906, p. 4; e A
província. A greve dos Fressureiros. 19 de janeiro de 1916. Página 1.
11
A PROVINCIA. Declaração. 6 de junho de 1910, p. 2.
12
A PROVINCIA. 18 de setembro de 1914. página 4.
13
JORNAL PEQUENO. 17 de outubro de 1905. ACAUTELEM-SE OS INCAUTOS. Página 3.
14
A PROVINCIA. 18 de outubro de 1905. Página 2.

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fressureiros, para outros a contaminação da carne e a atitude responsável de não colocar


a população em risco.

Três grupos podem ser distinguidos nas páginas dos jornais que trataram do
tema: os fressureiros que pertenciam ou eram ligados de alguma forma à Sociedade
Beneficente dos Fressureiros de Pernambuco; os fressureiros que não eram ligados à
mutualista e continuaram a vender a carne; e os marchantes que alegavam estar diante
de uma calúnia com a nota que inaugura a querela nos jornais. É possível a distinção
entre os dois grupos de fressureiros numa publicação assinada por 15 miudeiros do dia
20 de outubro do referido ano15. Lá eles protestavam contra a notícia veiculada pelo
Correio do Recife16 de que teriam feito greve. Segundo o grupo, eles só teriam se
recusado a tirar a carne do matadouro por saberem que a população se negava a
consumir o produto em virtude do boato que circulava na cidade, tampouco estavam
pedindo um abatimento do preço das fressuras. No entanto, nessa mesma publicação,
eles mencionam que outros trabalham para a desgraça alheia, esses outros seriam os
fressureiros que continuaram a vender os fatos pela cidade. Desses primeiros
trabalhadores ligados à Sociedade Beneficente, nove deles fariam parte da mesa diretora
da mutualista no ano seguinte17. E essa distinção entre o parar ou não parar o trabalho
reverberou nas relações travadas por esses homens nas ruas da cidade. 18

Uma dimensão passa despercebida ao lermos apenas A Provincia, mas está bem
presente no Jornal Pequeno: a inspeção do gado e da carne já cortada naqueles dias no
Matadouro do Cabanga por inspetores de higiene. Segundo este último, muita carne
“boiou” naqueles dias ou foi atirada ao mar por ordem de um comissário da higiene. Ou,
pelo menos, foi essa informAção que teria chegado até a redação do órgão.19 Por outro
lado, Liberato de Souza, marchante, nos diz por intermédio d’A Provincia que o boato

15
A PROVINCIA. 20 de outubro de 1905. Página 2.
16
Infelizmente ainda não tivemos acesso a esse órgão de imprensa, o que impossibilita a identificação da
referência aludida pelos fressureiros.
17
JORNAL PEQUENO. 20 de outubro de 1905. Página 2. Os que assinaram a publicação foram João
Lopes Ribeiro, Luiz Ferreira da Silva, Ignacio de Oliveira Lima, Lourenço José de Sant’Anna, Thomaz de
Aquino Ferreira, Antonio Ferreira da Silva, Manoel Simões da Silva, Constatino B dos Santos, Manoel
Antonio Ferreira, Manoel Macena da Luz, João Baptista da Silva, João José de Poniano, José Marcelino
das Chagas, José Francisco do Nascimento e Cosme Rodrigues de Souza.
18
Durante esses dias de paralisação do trabalho os fressureiros Pedro Avelino de Souza e Manoel Candido
de Albuquerque brigaram na Estrada dos Remédios, tendo este último saído ferido por faca. Segundo os
jornais, o desentendimento se deu em virtude da greve em curso. A PROVINCIA. 20 de outubro de 1905.
Página 2. JORNAL PEQUENO. 19 de outubro de 1905. FACADA. Página 3. e Jornal do Recife. 20 de
outubro de 1905. LUTA. Página 1.
19
JORNAL PEQUENO. 18 de outubro de 1905. Página 2.

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do gado contaminado foi disseminado pelos fressureiros e não havia nem sombra de
problemas de higiene com seus animais. Segundo ele, os fateiros fizeram uma greve
desejando a diminuição do preço das fressuras e quando não tiveram o pedido atendido
fizeram circular o boato da carne contaminada.

Por que um grupo de fressureiros parou os trabalhos e outro não? A existência


da Sociedade Beneficente talvez seja fundamental para que comecemos a entender
como se constituíam esses grupos de trabalhadores. O debate sobre o mutualismo no
Brasil envolve basicamente duas vertentes de interpretação. Uma que observa as
mutualistas como uma forma particular de organização dos trabalhadores e outra que as
vê como uma forma de seguro na adversidade e faz uma crítica a primeira vertente
(BATALHA,2010). No início do século XX não há uma rigidez nos elementos
constitutivos das mutualistas e é possível observar muitas que apresentam
características de sindicatos. Segundo Cláudio Batalha, “as sociedades mutualistas, em
geral, ajudaram os trabalhadores a adquirir a capacidade de organização, ‘civilizando a
classe operária’” (BATALHA, 2010, p.21). A aglutinação desses homens a partir da
beneficente talvez tenha sido fundamental para o forjamento de laços solidários que
foram além da ajuda mútua, laços que os ajudaram a demandar melhores condições para
execução de suas funções, que lhes proporcionaram melhores condições de existência.

Em uma declaração de 1906, a Sociedade dos Fressureiros veio a público dizer


que não fez greve, mas sim deixou de trabalhar por estar unida com a União dos
Talhadores e outras sociedades.20 O que diferencia essa paralisação do trabalho de uma
greve dos moldes tradicionais? Já não era óbvio que uma associação mutualista não
promovia greves? E assim sendo qual a necessidade de tal declaração? A ligação com os
talhadores não deve ser mera coincidência já que as duas classes estavam no mercado
das carnes, se diferenciando pelo tipo de corte que vendiam e pelo local onde estavam.
Para o século XIX, quando ainda existia escravidão, Felipe Azevedo e Souza escreveu
sobre a politização dos talhos do mercado e o modo como eles eram vistos, um local da
mais completa indecência (SOUZA, 2015). Em que medida isso também se aplica aos
fressureiros? É possível fazer alguma ligação entre essas duas categorias de
trabalhadores tão próximas quanto ao ofício?

20
A PROVINCIA. Declarações. Sociedade Beneficente dos Fressureiros de Pernambuco. 13 de
novembro de 1906, p. 4.

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Em 1916, quando não mais existia a referida sociedade beneficente, uma greve
de fressureiros tomou as páginas d’A Provincia por alguns dias de janeiro 21. Dessa vez,
como das outras, o problema era novamente o preço cobrado pelos marchantes pelas
vísceras do boi, a recusa dos fateiros em pagar um preço que eles julgavam abusivo e a
interferência do poder público municipal na resolução da greve. O Dr. Lupercio de
Souza, administrador do matadouro do Cabanga, logo convocou a presença do prefeito
do Recife na época e o delegado do distrito, Moraes Rego e Epiphanio de Oliveira,
respectivamente.

A Provincia, nas matérias publicadas naqueles dias, fez questão de salientar o


caráter pacífico da greve, mas também não deixou de fora a informação que além dos já
mencionados representantes do poder público municipal, também foram destacados para
o matadouro em ocasião da greve o chefe de polícia, alguns alferes e uma força de 22
praças de polícia. Qual a necessidade de tal contingente policial para uma paralisação
pacífica? Richard Graham, em Alimentar a Cidade (2013), trata de um grupo de
trabalhadoras similar aos fressureiros em questão. Eram as fateiras, mulheres que mais
ou menos na década de 1850 no Recôncavo baiano vendiam as vísceras do boi e eram
consideradas um grupo perigoso por andarem sempre “armadas” de seus materiais de
trabalho, facas e peixeiras. Será que tal qual essas mulheres os fressureiros do Recife no
início do século XX também eram vistos dessa forma?

Seguindo um Personagem: Pedro Fateiro

A Provincia, O Jornal Pequeno e o Jornal do Recife publicaram sobre uma luta


entre fressureiros naqueles dias de outubro de 190522. Pedro Avelino de Souza,
conhecido como Pedro Fateiro, e Manoel Amaro Cavalcanti, Manoel Bruto, brigaram
na Estrada dos Remédios. Segundo os jornais, o primeiro feriu o segundo com golpes de
faca e fugiu do local. Um dia depois do acontecido, Pedro Fateiro foi recolhido à
Detenção para averiguação, não sendo esta sua primeira entrada na Casa de Detenção do

21
A PROVINCIA. A greve dos Fressureiros. 19 de janeiro de 1916. Página 1. A PROVINCIA. Nova
Greve de Fressureiros. 21 de janeiro de 1916. Página 1. A PROVINCIA. Nova Greve dos Fressureiros. 22
de janeiro de 1916. Página 2. A PROVINCIA. Greve de Fressureiros. 23 de janeiro de 1916.
22
A PROVINCIA. 20 DE outubro DE 1905. Página 1. JORNAL PEQUENO. Facada. 19 de outubro de
1905. Página 1.

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Recife. Além desses dois indivíduos, o cunhado de Pedro Avelino, Joaquim Avelino,
que também era fressureiro tomou parte na querela.

Vamos aqui tentar seguir alguns dos rastros deixados por Pedro Fateiro nos
jornais da cidade e nas páginas dos livros da Secretaria de Segurança Pública. Talvez
entendendo um pouco das vivências desse homem consigamos vislumbrar o universo
dos fressureiros naquele início do século XX. Seguir um personagem como Pedro
Avelino tem para nós duas funções: a primeira é de conseguir penetrar no universo dos
fressureiros para além do trabalho; entendendo suas relações, interações, inimizades,
lutas por sobrevivência. Num segundo plano se presta à função de nos ajudar a
desbravar o problema das fontes, já que além dos jornais, pouco pudemos encontrar
sobre as instituições estudadas.

Como mencionado, não era a primeira vez que Pedro Avelino passara pela
Detenção. Em 1903 ele foi recolhido no Segundo Distrito de São José por crime de
defloramento23. Cabe destacar que alguns dias depois dessa prisão, Pedro Avelino
aparece novamente nas páginas dos jornais, só que dessa vez casando com dona Alice
Rogeria do Espírito Santo24. Os dois residiam em Afogados. Impossível ter certeza, mas
parece que estamos diante de um caso entre a prisão e o casamento, onde a escolha feita
foi o casamento. Além de morar em Afogados e ser casado com d. Alice, Pedro Avelino
de Souza era um dos integrantes da Sociedade Beneficente dos Fressureiros de
Pernambuco, também tendo sido parte da União Monte-Pio dos Fressureiros de Recife.

Esse personagem terminou seus dias de vida em 1918 enquanto trabalhava no


Matadouro do Cabanga. Um mal súbito foi a causa de sua morte de acordo com o Jornal
Pequeno25. Nessa ocasião ele já não trabalhava como fressureiro, era campineiro.
Entretanto naquele outubro de 1905 ele era o miudeiro que estava brigando nas ruas de
Afogados com outro fressureiro em função da paralisação do trabalho em curso.
Segundo o que foi noticiado n’A Provincia, os dois fressureiros discutiram sobre a
greve e Manoel Bruto recebeu um golpe de faca no braço esquerdo. Já o Jornal do
Recife disse que não houve troca de palavras entre os homens e que o desentendimento
foi um acerto de contas, onde Pedro Avelino se aproveitou da situação para jogar o
tabuleiro de fressuras de Manoel Bruto ao chão. Esta informação é significante pois nos

23
DIARIO DE PERNAMBUCO. Repartição Central de Polícia. 6 de maio de 1903. Página 2.
24
DIARIO DE PERNAMBUCO. Registro Civil. 13 de maio de 1903. Página 2.
25
JORNAL PEQUENO. Morte Súbita no Matadouro da Cabanga. 18 de outubro de 1918. Página 3.

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dá conta de que aqueles dois fressureiros estavam em grupos distintos durante a


paralisação. Manoel Bruto continuava a vender suas fressuras, enquanto Pedro Fateiro
pertencia ao grupo que decidiu parar as atividades.

Em que medida pertencer a Sociedade foi determinante na decisão de Pedro


Avelino de parar suas atividades? Teria a mutualista funções de luta também? O que
distinguia as decisões daqueles dois homens? Uma de nossas intenções com essa
pesquisa é entender o universo do mundo do trabalho naquele início do século XX,
pensar a atuação trabalhista que acontecia fora das linhas dos sindicatos tradicionais,
pontuar que associações de auxílio mútuo não pertenceram a uma “pré-história” do
movimento trabalhista. Obviamente não estamos propondo que a existência da
Sociedade Beneficente foi condição necessária para a realização das greves, mas que de
alguma forma a aglutinação daqueles homens em torno da beneficente possibilitou
trocas e interações que talvez tenham sido fundamentais para sua organização grevista
contra os preços impostos pelos marchantes.

O mesmo Pedro Avelino de Souza ainda pode ser encontrado nas páginas
policiais em 1910 como testemunha do assassinato de Antônio Miguel por Luiz Pé de
Revólver próximo a quitanda de Luiz José de Sant’Anna em Afogados.26 Seria Pedro
Avelino tido como um sujeito pertencente a classe perigosa do Recife? Ele teve algumas
passagens pela polícia, vivia num bairro conhecido por abrigar pessoas pobres e portava
facas em função de sua atividade profissional.

Não sabemos quanto tempo ele passou na Detenção por ocasião daquela facada
no braço de Manoel Bruto. Contudo, parece não ter sido muito tempo, já que em
dezembro daquele ano ele foi eleito para mesa diretora da Associação Beneficente,
como parte da comissão de sindicância.27 Precisamos investigar melhor o caso, mas o
modo como Pedro Avelino se livrou “facilmente” da prisão nas duas ocasiões citadas
nos instiga a curiosidade.

Pedro Avelino de Souza e outros fressureiros como ele são uma chave de
entrada para o universo do trabalho no período. Lidamos aqui com pessoas que estavam
longe do universo das fábricas, que não tinham um patrão direto, mas que nem por isso

26
APEJE. SSP 447. Delegacia do Primeiro Distrito da Capital. Sobre o assassinato de Antonio Rodrigues
por Luiz de tal (Luiz pede Revolver). 25 de outubro de 1910. E DIARIO DE PERNAMBUCO. 28 de
outubro de 1910. Página2.
27
A PROVINCIA. 30 de dezembro de 1905. SOCIEDADE BENEFICENTE DOS FRESSUREIROS.
PÁGINA 3.

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deixaram de demandar melhores condições para seus serviços e utilizaram diversas


estratégias para obtenção disso. Eles certamente entendiam a importância da venda dos
miúdos para a população mais pobre do Recife, como também entendiam que podiam
usar essa importância para pressionar seus opostos.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

BATALHA, Claudio H. M. Sociedades de trabalhadores no Rio de Janeiro do século


XIX: algumas reflexões em torno da formação da classe operária. Cadernos Arquivo
Edgard Leuenroth (UNICAMP), Campinas, v. 6, n.10-11, p. 41-68, 1999.
BATALHA, Claudio H. M.. Relançando o debate sobre o mutualismo no Brasil: as
relações entre corporações, irmandades, sociedades mutualistas de trabalhadores e
sindicatos à luz da produção recente. Revista Mundos do Trabalho, v. 2, p. 12-22,
2010.
CHALHOUB, Sidney. Trabalho, Lar e Botequim: o cotidiano dos trabalhadores no Rio
de Janeiro da Belle Époque. São Paulo: Brasiliense,1986.
CHALHOUB, S.; SILVA, F. T. . Sujeitos no imaginário acadêmico: escravos e
trabalhadores na historiografia brasileira desde os anos 1980. Cadernos Arquivo Edgard
Leuenroth (UNICAMP), v. 14, p. 11-50, 2009.
COSTA, Valéria Gomes. Trajetórias negras: os libertos da Costa d'África no Recife
(1846-1890). Tese (doutorado em história- Universidade Federal da Bahia. 2013.
COUCEIRO, Sylvia Costa. Artes de Viver a Cidade: Conflitos e Convivências nos
Espaços de Diversão e Lazer no Recife dos Anos 20. Recife: dissertação (mestrado em
História). UFPE, 2003.
GRAHAM, Richard. Alimentar a cidade: Das vendedoras de rua à reforma liberal
(Salvador, 1780-1860). Rio de Janeiro: Companhia das Letras, 2013.
LARA, S. H.. Escravidão, Cidadania e História do Trabalho No Brasil. Projeto
História, Sao Paulo, v. 16, p. 25-38, 1998.
LEVINE, Robert. A velha usina: Pernambuco na federação brasileira. 1889-1937. Rio
de Janeiro: Paz e Terra, 1980.

SOUZA, F.A.. 'Negro não pode ser conservador': a política nos talhos do mercado
público do Recife nas décadas finais da escravidão. Revista do Arquivo Geral da
Cidade do Rio de Janeiro, v. 9, p. 159-174, 2015.

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SIMPÓSIO TEMÁTICO 04
ENSINO DE HISTÓRIA: CURRÍCULO,
MATERIAIS DIDÁTICOS E A
HISTORIOGRAFIA ESCOLAR

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AS RELAÇÕES ENTRE AS DIRETRIZES OPERACIONAIS PARA A


EDUCAÇÃO BÁSICA NAS ESCOLAS DO CAMPO E O ENSINO DE
HISTÓRIA EM PITIMBU/PB: UM ESTUDO DE CASO.

Eduardo da Silva Vicente Junior


Mestrando em Educação pela Universid del Salvador –USAL,
eduardjunio@yahoo.com.br

Este trabalho tem como objetivo analisar as relações entre a Resolução CNE/CEB nº1,
de 3 de abril de 2002, conhecida como Diretrizes Operacionais para a Educação Básica
nas Escolas do Campo e o Ensino de História em Pitimbu/PB, tendo como fio condutor
da investigação, um estudo de caso na escola RCS (sigla utilizada para preservar a
identificação da instituição). Ou seja, investigamos se/como as diretrizes desse
importante documento, são implementadas nessa escola. Diante disso, verificamos que
o Ensino de História foi relevante para a construção da identidade escolar como um todo
(docentes, alunos, funcionários e comunidade), contempla a diversidade do campo em
os seus aspectos: culturais, sociais, econômicos, políticos, de gênero e etnia.
Palavras-chave: Educação do Campo, Ensino de História, Pitimbu/PB.

A educação do campo passou por um longo processo, para se afirmar como um


modelo de lutar e de conquistas, para compreender melhor é preciso tentar definir esse
conceito “educação do campo”, no sentido mais simplório prefiro dividir o termo em
duas partes como “Educação” a maneira de levar o conhecimento ou ensina e “do
campo” de que não é da cidade, passando a assumir uma maneira autônoma e
independente. Chama-se educação do campo o ensino das pessoas que vive e moram na
zona rural.
Esse modelo de educação passou por um processo lendo para sua afirmação,
pois surgiu de um forma que oferecer o direito a educação a todos, como proposta de
socializar o ensino no Brasil, por isso podemos observar que a educação nas áreas rurais
era representada como uma obrigação social.
Nesse contexto podemos observar que o modelo de educação utilizada para o
ensino das pessoas que moravam nas áreas rurais, eram cada vez mais distante de sua
realidade, mobilizando assim um pensamento critico as condições da existência popular.
.

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.... diferenças de orientação entre a “cartilha” do MCP e o método de Paulo


Freire, ambos procuravam conduzir o educando à analise critica das condições
da existência popular, à percepção da necessidade da união do povo em
cooperativas, sindicatos e outras associações, à compreensão da necessidade de
participação popular na vida politica, ao desenvolvimento de critérios para a
identificação e a escolha dos políticos que mereciam o voto do povo.(
BEISIEGEL ,2008 p.247).

Essa participação na vida politica e o envolvimento nas questões sócias fundamentaram


o processo de luta pelos direitos as pessoas do campo. Podemos destacar que a
“educação rural”1 passa a ser um marco para a atenção ao campo. Segundo Barreiro:

a Campanha Nacional de Educação Rural foi criada em 9 de maio de 1952,


durante o segundo período do governo de Getulio Vargas, para todo o território
nacional, estruturada por meio de Missões Rurais, Centros Regionais de
Treinamento de Educação de Base, Centros de Treinamento de Professores e
de Auxiliares Rurais, Centros Sociais de Comunidade, Orientação de Líderes
Locais e Centros de Treinamento de Cooperativismo .Ainda em 1952, foi
realizado o 2o Seminário de Educação Rural, no período de 13 a 20 de
novembro, em Belo Horizonte (MG), que serviu para definir diretrizes do
trabalho da CNER, com apresentação e discussão de dados, realização de
plenárias, proposição de ações e aprovação de moções.(BARREIRO,2010 p
35).

Com a criação do CNER é possível identificar a formação de um conceito de


educação no Brasil para as populações das áreas rurais. Sendo apoiado por uma revista
especifica a revista da campanha nacional de educação rural RCNER, que valorizava a
cultura por meio da historias da educação no meio rural e no pensamento de propostas
de politicas publicas direcionada a educação.
Essas publicações fortaleceram as discursões a respeito da educação rural e suas
perspectivas mais não durou muito tempo segundo Barreiro.

Publicadas pelo Ministério da Educação e Cultura e organizadas pelo


Setor de Divulgação da CNER, as Revistas da Campanha Nacional de
Educação Rural tiveram seu primeiro exemplar publicado em julho de
1954 e o último em 1962 (um ano antes da extinção da CNER),
totalizando dez volumes, com número de páginas variando entre 200 e
317. A periodicidade era irregular, alternando entre semestral, anual e
bianual. .(BARREIRO,2010 p 40).

1
É interessante atentar para as explicações acerca da denominação “educação rural” e não “educação de
base”, para compor o nome do programa da Campanha Nacional de Educação Rural. Os serviços da
CNER destinam-se às zonas rurais e a expressão “educação rural” é mais compreensível ao homem do
campo do que “educação de base”.

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É importante lembrar que essa atenção a educação rural, perdeu força por parte
dos governantes, pois não oferecia as condições necessária para sua propagação,
dificultava o seu desenvolvimento e freava politicas para o seu progresso. Podemos
observar também que do pondo de vista politico, foi o período da ditadura militar que a
educação rural passou por uma grande repressão de seus direitos. Como é apresentado
no é apresentado no caderno Educação do campo: diferença mudando paradigmas da
Secretaria de Educação continuada SECAD:

Em 1964, com a instauração do governo militar, as organizações voltadas para


a mobilização política da sociedade civil – entre elas o Centro Popular de
Cultura (CPC), criado no ano de 1960 em Recife-PE; os Centros de Cultura
Popular (CCP), criados pela União Nacional dos estudantes em 1961 e o
Movimento Eclesial de Base (MEB), órgão da Confederação Geral dos Bispos
do Brasil – sofreram um pesado processo de repressão política e policial. Essa
repressão resultou na desarticulação e na suspensão de muitas dessas
iniciativas. (MEC. SECAD,2007 P.11).

Nesse sentido podemos pensar como um retardo social, e o enfraquecimento da


educação rural e de politicas publicas, com a desarticulação de grupos ligados a
movimentos sociais, causou uma reação excludente que por sua vez lutavam por uma
atenção as classe minoritária da sociedade entre elas a de trabalhadores rurais.
Só na década de 80 que foi possível uma apertura para se repensar na proposta de
educação para as pessoas do campo. Ainda no SECAD podemos destacar essa
abordagem.

No processo de resistência à ditadura militar, e mais efetivamente a partir de


meados da década de 1980, as organizações da sociedade civil, especialmente
as ligadas à educação popular, incluíram a educação do campo na pauta dos
temas estratégicos para a redemocratização do país. A idéia era reivindicar e
simultaneamente construir um modelo de educação sintonizado com as
particularidades culturais, os direitos sociais e as necessidades próprias à vida
dos camponeses. (MEC. SECAD,2007 P.11).

Entre as conquistas a mais significativa como a luta pelas causas do rural, as


politicas publicas direcionada ao campo, com uma educação de qualidade fizeram com
que construísse para a formação de uma identidade. E importante destacar que o essa
identidade vai ser fortalecer com a I Conferência Nacional de Educação do Campo.

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I Conferência Nacional Por Uma Educação do Campo, no ano de 1998, sob a


iniciativa de diversos segmentos sociais, a expressão campo passa a substituir o
termo rural. Entende-se que, em tempos de modernização, com esta expressão
“campo”, há uma abrangência maior de sociedades diversas que habitam as
regiões do país que não se dizem urbanas. (I CNEC, 2004).

Ao pensar na educação do campo, como uma maneira transformadora pois, a


partir de conferencia que tinha como objetivos entre outro mostrar que o campo é um
local de progresso e com politicas publicas eficiente é possível ter uma outra visão.
Através da II Conferencia Nacional por uma Educação do campo, apresenta um
resgate participativo de suas origens primeiro por ter mais de 1.100 participantes que
reforça a participação do povo do campo no desejo de mudança e em segundo lugar
podemos destacar a participação de vários grupos de movimentos sócia.

Movimentos Sociais, Movimento Sindical e Organizações Sociais de


Trabalhadores e Trabalhadoras do Campo e da Educação; Universidades,
ONGs e Centros Familiares de Formação por Alternância; secretarias estaduais
e municipais de educação e outros órgãos de gestão pública com atuação
vinculada à educação e ao campo; trabalhadores e trabalhadoras do campo,
educadoras e educadores, educandas e educandos de comunidades camponesas,
ribeirinhas, pesqueiras e extrativistas, de assalariados, quilombolas e povos
indígenas. (Documento Final da II Conferência).

É importante destacar que esses movimentos foram importantes para a educação


rural como também para a novo estrutura de educação do campo, pois a educação do
campo é outras marcas a podemos destacar como principal a mudança para as pessoas
do campo de um modo geral. Observando que o “campo” é bem maior e que muitos
grupos sociais se sentem parte dele.
Dentro de um ponto de vista no que se refere a luta das pessoas do campo por sua
oportunidade de direito, podemos perceber que “ser do campo” conseguiu resgatar uma
identidade e através do processo historiográfico fortalecer sua cultura. Segundo Roseli
Caldart:

A cultura também forma o ser humano e dá as referências para o modo


de educá-lo; são os processos culturais que ao mesmo tempo
expressam e garantem a própria ação educativa do trabalho, das
relações sociais, das lutas sociais: a Educação do Campo precisa
recuperar a tradição pedagógica que nos ajuda a pensar a cultura como
matriz formadora, e que nos ensina que a educação é uma dimensão da
cultura, que a cultura é
uma dimensão do processo histórico, e que processos pedagógicos são
constituídos desde uma cultura e participam de sua reprodução e
transformação simultaneamente (CALDART.2004a, p. 7/8).

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Diante esse processo que levou vários grupos sociais, a se manter resistente para
afirmar “o campo” como um lugar vivo, de cultura e de transformações no meio da
sociedade. A educação brasileira apresenta varias legislações que apoia o principio da
universalidade educacional, para isso algumas politicas públicas com diferenciação do
atendimento escolar entre o de trabalhadores do campo e das pessoas que vive nos centros
urbano.

A educação do campo tem sido historicamente marginalizada na


construção de políticas públicas, sendo inúmeras vezes tratada como
política compensatória. Suas demandas e especificidades raramente
têm sido objeto de pesquisa no espaço acadêmico ou na formulação de
currículos em diferentes níveis e modalidades de ensino. Neste cenário
de exclusão, a educação para os povos do campo vem sendo
trabalhada a partir de discursos, identidades, perfis e currículos
essencialmente marcados por conotações urbanas e, geralmente,
deslocado das necessidades da realidade local e regional (SOUZA &
REIS, 2009).

A educação do campo nos mostra que suas conquistas estão relacionada a


participação de grupos ou movimentos sociais ligado diretamente ao povo o qual lutava por
uma garantia social que aproximasse o direito da educação do campo com a ótica do direito.
Diante dessa realidade foi criada As Diretrizes Operacionais para a Educação Básica nas
Escolas do Campo foram Instituídas pela Resolução CNE/CEB nº. 1, de 3 de abril de 2002 (BRASIL,
2002). Embora seja para algum motivo de criticas, essas diretrizes apresenta um avanço
significativo no que diz respeito a importância da escola do campo e o respeitos a diferença
nos seus diversos aspectos: culturais, sociais, econômicos, políticos, de gênero e etnia.
É importante lembra que essas diretrizes foram fruto de uma luta histórica, pois
tinha como reivindicação a responsabilidade do sistema nacional de educação no
atendimento escolar com base no seu amparo legal, uma vez já instituído.
No art. 5 das diretrizes operacionais para educação básica para o campo, trata um
ponto de grande relevância “comtemplarão a diversidade do campo em todos os seus
aspectos: sociais, culturais, políticos, econômicos, de gênero, geração e etnia” compreender
os aspectos sociais do individuo, possibilita um alinhamento com a conduta moral.
De acordo com o artigo 2 é das diretrizes operacionais é necessário “adequar o
projeto institucional das escolas do campo as Diretrizes Curriculares Nacional” um projeto
politico pedagógico que possa formar a identidade da escola como é apresentado no seu
paragrafo único ainda do artigo 2:

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A identidade da escola do campo é definida pela sua vinculação às


questões inerentes à sua realidade, ancorando-se na temporalidade e
saberes próprios dos estudantes, na memória coletiva que sinaliza
futuros, na rede de ciência e tecnologia disponível na sociedade e nos
movimentos sociais em defesa de projetos que associem as soluções
exigidas por essas questões à qualidade social da vida coletiva no país.
(BRASIL, 2002).

Entre outros aspectos relevantes as diretrizes educacionais para o campo,


podemos compreendê-lo como um amparo que visa respeitar as diferenças, busca uma
atenção a qualidade de educação para as pessoas que vivem distante dos centros urbano
como os pequenos agricultores, os grupos de trabalhadores sem-terra, povos da floreta,
pescadores, quilombolas, extrativistas, ribeirinhos e os assalariados rurais.
As diretrizes busca uma inclusão em todos os níveis educacionais, e através dele
proporcionar uma educação de faça parte não só do âmbito escola como também do seu
cotidiano, possibilitando um aprendizado mais significativo com a sua comunidade.
Diante desse contexto, podemos destacar que a uma necessidade de um modelo
educacional que aproxime a escola do campo, com o local a que pertence. A inda nas
diretrizes no art. 7:

É de responsabilidade dos respectivos sistemas de ensino, através de


seus órgãos normativos, regulamentar as estratégias específicas de
atendimento escolar do campo e a flexibilização da organização do
calendário escolar, salvaguardando, nos diversos espaços pedagógicos
e tempos de aprendizagem, os princípios da política de igualdade.
(BRASIL,2002).

Conforme é expresso nas diretrizes, o atendimento educacional ao aluno deve


respeitar vários aspectos, para um melhor aprendizado e enquanto o sistema de ensino
compreender o aluno como um todo, sendo assim um facilitador para o conhecimento.
Podemos desta a importância do ensino de História na formação do
conhecimento e na formação da identidade, do individuo, uma vez que, a educação do
campo historicamente passou por um grande período de repressão, e de politicas
compensatória. E que segundo Arroyo:

Parece-me que é urgente pesquisar as desigualdades históricas sofridas


pelos povos do campo. Desigualdades econômicas, sociais e para nós
desigualdades educativas, escolares. Sabemos como o pertencimento
social, indígena, racial, do campo é decisivo nessas históricas

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desigualdades. Há uma dívida histórica, mas há também uma dívida de


conhecimento dessa dívida histórica. E esse parece que seria um dos
pontos que demanda pesquisas. Pesquisar essa dívida histórica
(ARROYO; 2006, p.104).

Ao analisar o comentário critico e reflexivo de Arroyo, com relação o descaso ao


povo do campo, ao longo da história ele afirma “uma dívida de conhecimento dessa
divida histórica” sendo assim, o conhecimento do ensino de História se faz importante
para o resgate social e moral para o povo do campo. É importante o destacar os
conteúdos que aproxime o aluno de sua realidade para Bittencourt:

"A seleção dos conteúdos escolares, por conseguinte, depende


essencialmente de finalidades específicas e assim não decorre
apenas dos objetivos das ciências de referência, mas de um
complexo sistema de valores e de interesses próprios da escola e do
papel por ela desempenhado na sociedade letrada e
moderna” (BITTENCOURT, 2004, p. 39).

Nesse artigo, utilizaremos uma pesquisa bibliográfica e documental que busque


compreender e ampliar um debate acerca da “educação do campo na ótica da lei ” tendo
em vista uma contextualização histórica da educação do campo e seus paradigmas no
tempo de sua origem. Segundo Minayo (2000) a pesquisa é um caminho sistemático que
busca indagar e entender a realidade, desvendando os problemas da vida cotidiana
através da relação da teoria com a prática.
Para Oliveira (2007) a uma diferença entre pesquisa bibliográfica e pesquisa
documental. Ela acredita que a pesquisa bibliográfica é uma forma ou maneira de
estudo e análise de documentos é necessário um domínio científico, pois na analise a
maneira de observação é outra. E nessa pesquisa tem como objetivo fazer uma
abordagem reflexiva sobre a educação do campo e que possa ser de domínio científico.
Para que será possível sua consulta e também de fio condutor para novas
pesquisas. Na minha analise utilizamos a escola RCS que tem uma proposta pedagógica
utilizada atualmente, mas gostaria de trazer essa temática nesse artigo com o objetivo
contribuir para uma reflexo e discussão a respeito do tema: “educação do campo” e
através dessa abordagem, pensar em propostas que possa reafirma essa modalidade
educacional.
A escola em questão, está localizada no município de Pitimbu, litoral sul da
Paraíba;criada a partir de um assentamento de trabalhadores rurais, a mesma oferta o

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Ensino Fundamental –séries iniciais, Ensino Fundamental-séries finais e Educação


infantil – Pré-escola. Possui 5 salas de aulas, 23 funcionários, sala direção, sala de
professores, laboratório de informática, cozinha, banheiro com chuveiro dentro do
prédio, despensa, almoxarifado e pátio coberto.
Mesmo diante das dificuldades de transporte a escolas atende os próximo da
localidade, e oferece ônibus para os alunos que moram distante da escola.
Para melhor analisar seu processo educacional é necessário conhecer a estrutura
do currículo escolar, conteúdos trabalhados nas disciplinas e a formação docentes. O
currículo oscila com o perfil de escola do campo.
Segundo Arroyo (2006) um projeto de educação do campo tem que incluir uma
visão mais rica do conhecimento e da cultura, e essa base inerente a educação, os
conteúdos apresentam poucos assuntos relacionado ao campo e os professores buscam
maneiras de aproximar suas praticas. A presente escola tem uma condição estrutural
regular e por sua vez, apresenta as condições para implantação de um currículo que
possa atender a escola no seu sentido geral, pois como já foi mencionada no Art.2 das
diretrizes “a identidade da escola do campo é definida pela vinculação das questões
inerente `sua realidade” sendo assim, necessário que os saberes do campo faça parte da
escola e que a escola faça parte dos saberes do campo.
Este artigo está em fase e elaboração e pesquisa, pois o mesmo faz parte da
dissertação de mestrado, onde busco fazer um dialogo com os princípios legais e
constitucionais a respeito das politicas publicas para a educação do campo, que
historicamente tem perdido seus direitos já conquistado por falta de informação.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICA

ARROYO, G. Miguel. A escola do campo e a pesquisa do campo: metas. In: MOLINA,


Mônica Castangna. Educação do campo e pesquisas questões para reflexão. Brasília:
Ministério do Desenvolvimento Agrário, 2006.

BARREIRO, Iraíde Marques de Freitas.Política de Educação no Campo: para além da


alfabetização (1952-1963) / Iraíde Marques de Freitas Barreiro. – São Paulo : Cultura
Acadêmica, 2010.
BEISIEGEL, Celso de Rui. Politica e Educação Popular: A teoria e a prática de Paulo
Freire no Brasil/ Celso de Rui Beisiegel- Brasília: líber livro, 2008.

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BITENCOURT, Circe Maria F. Ensino de História e fundamentos e métodos, 2004.P.39

BRASIL. Educação do Campo: Diferenças mudando Paradigmas. Brasília,


MEC/SECAD, 2007.

_______/MEC. Resolução CNE/CEB nº 1, de 3 de abril de 2002; e Parecer nº: 36/2001.


Diretrizes Operacionais para a Educação Básica nas escolas do campo: I Conferência
Por Uma Educação Básica do Campo. Texto-Base. Brasília, 1998. Documento Final da
II Conferência Nacional de Educação do Campo. Luziânia, 2004.

CALDART, Roseli Salete. Elementos para Construção do Projeto Político e Pedagógico


da Educação do Campo: março de 2004a, mime o.

MINAYO, Maria Cecília de S. (Org). Pesquisa Social: Teoria, método e criatividade.


16ª Edição, Petrópolis, RJ, Vozes, 2000.

SOUZA, N. P. & REIS, R. M. Educação do Campo e Pratica Pedagógica. Faculdades


Integradas do Vale do Ivaí – Univale Esap. Monografia de curso de pós-graduação Lato
Sensu em Ensino de Geografia e História. Umuarama - PR. 2009/ Instituto de Estudos
Avançadas e Pós-Graduação.

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ENSINO DE HISTÓRIA E DIREITOS HUMANOS: CONSTRUINDO UMA


PERSPECTIVA CIDADÃO

Emanuel Bernardo Tenório Cavalcante


Mestrando em Ensino de História UFPE
bernardotenorio17@hotmail.com

Introdução:
Refletir sobre as possibilidades de diálogo entre o campo do Ensino de História e
a formação das crianças e adolescentes em Direitos humanos, é o objetivo principal
desseartigo. Para alcançar tal intento, nos propomos a seguir um movimento lógico, que
vai do acompanhamento do processo histórico da constituição da história enquanto
disciplina escolar até a consolidação da mesma através dos documentos orientadores das
posturas educacionais.
Ao traçarmos esse perfil histórico, o objetivo é expor as contradições e as
rupturas relacionadas com a prática dos professores de história ao passar do tempo,
demostrar como os movimentos que culminaram em consolidação de algumas posturas
e rompimento de outras, estão diretamente relacionados com disputas de ordem cultural
e política. A ideia é expor essas brechas para possibilitar uma análise que caminhe no
sentido de habilitar os professores e pesquisadores do campo do Ensino de História a
situar melhor suas reflexões e ações na atualidade em que exercem seu ofício e sua
militância.
Além de evidenciar essa postura perspectivista, a intenção do artigo é
possibilitar uma discussão teórica, acerca de alguns conceitos construídos por teóricos e
pesquisadores do campo do Ensino de história e que consideramos fundamentais pra
melhor intensificar a aprendizagem de conteúdos históricos.
Ao mesmo tempo procuraremos expor nesse trabalho o nosso ponto de vista com
relação ao modo de encarar os direitos humanos fundamentais. Evidenciaremos o que
entendemos ser contradições claras entre a proposição multicultural,e contra
hegemônica dos direitos humanos a qual assumimos como perspectiva mais coerente e
fértil para promover o diálogo e o respeito à diferença, e a visão liberal, ocidental e

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capitalista que assume os direitos humanos apenas como direitos civis, desconsiderando
qualquer impacto social, econômico ou identitário.

Metodologia:
A proposta assumida por esse artigo será desenvolvida através do exame da
literatura especializada na área. Refletindo, a partir de um ponto de vista essencialmente
bibliográfico.
Consolidando essa pretensão, trabalharemos a partir das pesquisas desenvolvidas
por importantes intelectuais brasileiros da área que se envolveram inicialmente com a
ideia de construir uma história do Ensino de História, para isso nos apoiaremos nos
trabalhos de Maria Auxiliadora Schmidt, e Elza Nadai. Com relação as reflexões que
envolvem os conceitos e categorias da educação histórica, caminharemos
principalmente estabelecendo um diálogo entre as contribuições de Jorn Rusen, Isabel
Barca, Margarida Dias, e Itamar Freitas.
Com relação à visão de Direitos Humanos, incluindo aí as relações desses com o
Ensino de História trabalharemos a partir das reflexões desenvolvidas por Cinthia
Moreira Araújo e pelo sociólogo Português Boaventura de Souza Santos.

1- O Ensino de História no Brasil: A construção de um campo de tensões e


diálogos.

Pensar acerca do ensino de história e de como ele dialoga com uma perspectiva de
Direitos humanos contra hegemônica (SANTOS, 2003), se constitui no objetivo
principal desse nosso trabalho.
Buscar dimensionar as categorias conceituais que são capazes de acompanhar o
processo de estabelecimento e desenvolvimento da história enquanto disciplina escolar
em nosso país, dispor essas categorias, de modo a dialogar com a visão de ensino de
história que almejamos potencializar o poder explicativo desses conceitos de forma que
eles possam apontar para uma aprendizagem que habilite as crianças e os adolescentes a
orientar-se através do tempo, fazendo uso de um repertório de significados que remetam
ao passado e dialogue com expectativas de vida passíveis de serem incorporadas a uma
narrativa de mundo muito mais ampla e reca de vivências significativas.
Sabendo que, enquanto artefato cultural, é possível situar a história escolar como
um conjunto de elementos agrupados em torno de ideias e anseios que foram se

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formando historicamente. Passamos nesse artigo a empreender a constituição de uma


história da história enquanto disciplina escolar.
No sentido de realizar tal movimento perspectivista é preciso inicialmente
definir quais categorias serão utilizadas para tentar captar os movimentos de ruptura e
de continuidades na construção da disciplina História escolar. Desde já afirmamos que
comungamos do ponto de vista do teórico francês André Chervel de que as disciplinas
escolares desenvolvem e se consolidam em meio a uma imbrincada teia de relações com
o meio social e o conhecimento produzido socialmente, mas que apesar disso os fatores
primordiais para a configuração das disciplinas escolares é o contexto da própria cultura
escolar. Portanto, se quisermos de alguma forma empreender um acompanhamento
sobre como se constituía história enquanto disciplina escolar no Brasil, devemos buscar
no em torno das produções escolares os fatores determinantes para essa constituição.
Numa outra perspectiva percebemos que a história ensinada sofre
transformações na medida em que outras esferas da vida social se alteram, uma
disciplina se reconfigura quando as demandas da sociedade sofrem mutações. As
relações pautadas por interações dinâmicas entre sociedade e escola estão bastante
claras para qualquer um que pretenda acompanhar sua historicidade.

Entendendo que não é possível pensar sobre o Ensino de história independente


da disciplina escolar história, e considerando que para melhor dimensionar a
importância desses elementos torna-se indispensável acompanhar a constituição do
código disciplinar da História no Brasil, passamos resumidamente a apontar os
principais períodos nos quais esse processo se deu.

O marco inicial que a maioria dos pesquisadores define para o estabelecimento


da história enquanto disciplina escolar no Brasil, foi o estabelecimento da mesma no rol
de disciplinas do colégio Pedro II com base na pesquisa de Elza Nadai, existe nesse
período específico o predomínio de uma história positivista e orientada pelo
eurocentrismo que tornava os fatos ocorridos no continente Europeu o foco gerador de
toda história mundial. Ainda formava o quadro da época, a percepção da marginalidade
da história do Brasil, sempre entendida num papel secundário, funcionando como um
apêndice da História Geral.

Como se percebe esse movimento inicial do ensino de história no Brasil não


pode ser separado do contexto no qual estava inserido o ensino de história no século

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XIX. Caracterizado pela forte ligação com a formação da identidade nacional. Nessa
medida, a história era vista como uma potencial formadora da identidade nacional e de
valores cívicos.

Com respeito à metodologia entendia-se que o objetivo do ensino de história era


ensinar os fatos verdadeiros como eles realmente aconteceram. A ideia era que tal
compreensão que isso para formar nos jovens um caráter moral e civicamente adequado
às pretensões do Brasil.

Um momento posterior pode ser identificado como o da consolidação do código


disciplinar da história no Brasil. Segundo a periodização proposta por (SCHMITD,
2011) esse momento pode ser localizado entre (1931-1971). Período que perpassa por
dois momentos extremamente autoritários da organização política do Brasil. Nesse meio
tempo ao sistema de ensino passou por duas reformas bastante significativas, a
Francisco Campos e Capanema.

Num primeiro momento as novidades trazidas pela Reforma Francisco Campos,


representaram uma consolidação da ideia da história como disciplina obrigatória e que
passava por um processo de renovação nas suas metodologias, apontando para um
ensino mais crítico e contextualizado com a sociedade na qual se inseria. É impossível
não ver nessas mudanças a influência da renovação maior pela qual passava o sistema
de ensino brasileiro e que se caracterizava pela influência das ideias da Escola Nova tal
como era entendido naquela época.

Passando para um período mais recente da história do ensino de história,


encontramos o que podemos chamar como momento de crise dessa disciplina no
contexto da cultura escolar brasileira e que se caracterizou durante a vigência da
ditadura civil-militar que assolou o Brasil de 1964-1985.

Nesse período, ocorreu o esvaziamento da disciplina história, tendo sido


substituída no antigo primeiro grau, que corresponde atualmente a ensino fundamental
em seus dois ciclos pela disciplina de Estudos Sociais, amplamente inspirada no modelo
Norte americano do “Social Studies”.

Essa perspectiva esvazia a disciplina de suas potencialidades críticas e


reflexivas, inclusive acerca do modo como se dava a própria produção do conhecimento
histórico. Nesse ponto de vista pretendia-se reforçar noções como pátria, nação,

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igualdade, valorizava-se os heróis da nação, o que acabava por oferecer uma justificação
histórica para o contexto de controle da classe dominante, contribuindo para o
desestímulo ou até mesmo para sérias limitações à capacidade crítica dos estudantes.

No momento em que se processava a redemocratização do país, ocorria também


um intenso processo de debate para a reconstrução da história enquanto disciplina
escolar após tantos anos de submissão a uma proposta desestruturadora. Esse
movimento contou com a participação de vários professores e intelectuais que se
articularam especialmente através da ANPUH, associação dos professores universitários
de história, que desempenhou um papel fundamental na organização da luta pelo
estabelecimento de um campo específico e legítimo para o Ensino de história.

Analisando o modo como se entendia o Ensino de história no Brasil nesse


período de renascimento, mais especificamente no que diz respeito às bases teóricas que
deveriam ser tomadas como referencial para sustentar o processo de aprendizagem,
observa-se que durante um bom tempo acreditou-se que era possível construir tais
referências a partir de teorias originárias da psicologia e da pedagogia, especialmente a
construtivista tal como era compreendida por leitores de Piaget e do sócio
construtivismo que tinha seus fundamentos do trabalho do soviético Lev Vygotsky.

Percebemos isso mais de perto, quando observamos a construção teórica que se


deu na elaboração dos Parâmetros curriculares Nacionais (BRASIL, 1998), que trazem
em seu bojo várias indicações sobre os novos padrões explicativos da aprendizagem
dentro de uma perspectiva construtivista e com enfoques claramente cognitivos.
(SCHMIDT, 2009).

Esses enfoques incluem a concepção dos processos de mudança, as concepções


clássicas da teoria genética de Jean Piaget e alusões a Vygotsky, quando se refere ao
modo de compreender o desenvolvimento e a aprendizagem. Marcado pela perseguição
ao desenvolvimento de habilidades e competências, não necessariamente ligadas ao
processo cognitivo da História, o modo como se entendia o Ensino de História, no
momento da elaboração dos PCNs era declaradamente pautado por referenciais da
psicologia construtivista, o que viria a influenciar a própria concepção de aprendizagem
histórica desenvolvida no Brasil, até então.

2-Conceitos fundamentais acerca do Ensino de História.

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Concebemos o Ensino de História como o esforço para atingir a


aprendizagem histórica, que significa aprender a mobilizar processos de
pensamentos estruturados da consciência histórica (RUSEN, 2011). Seguindo
nessa perspectiva analítica, não se concebe que o aprendizado histórico possa
ocorrer independente das reflexões sobre a “consciência histórica”, já que.

“concepções teóricas de aprendizado podem ser fecundamente


aplicadas à especificidade do histórico, quando isso ocorre no
curso de uma didática da história que tenha a consciência
histórica como seu objeto mais importante.” (MARTINS,2011,
pág. 42).
Portanto, antes de avançar no movimento de propor estratégias capazes de
dinamizar o aprendizado histórico, é fundamental demarcar um conceito significativo de
consciência histórica com base nas ponderações empreendidas pelos pesquisadores do
campo da educação histórica, mais especificamente aqueles ligados ao trabalho de Jorn
Rusen e ao mesmo tempo cotejar tais perspectivas com as contribuições de outros
teóricos que também aceitaram os problemas do ensino de história como referencial.
Nesse sentido, dialogar com Isabel Barca a partir da tensão que ela estabelece entre as
pesquisas de Rusen e Peter Lee, ou ainda ouvir as reflexões de Ana Maria Monteiro,
Itamar Freitas e Margarida Dias será de muito proveito para o nosso intento que é
constituir um referencial teórico que seja capaz de permitir uma percepção mais
intensificada do modo como se dá a aprendizagem dos conteúdos históricos.

Partindo das ideias propostas por Rusen, entendemos que a consciência histórica
é uma estrutura cognitiva inerente ao ser humano e não se limita a meramente acumular
conhecimento sobre o passado. Ao contrário, ela exerce uma função estruturante do
pensamento histórico, tornando possível relacionar as várias dimensões da
temporalidade.

Devemos, portanto, evitar entender o termo como uma espécie de categoria


distintiva e classificatória, que normalmente expressa uma tendência eurocêntrica, já
que costuma atribuir a condição de conscientes historicamente apenas a civilizações que
atingiram um determinado grau de evolução científica e filosófica, ou que apresente
indicadores de desenvolvimento significativos em critérios previamente estabelecidos
em comparação aos países mais desenvolvidos do mundo ocidental e capitalista.

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Destacar o aspecto organizador da consciência histórica enquanto conjunto de


operações mentais que mobilizamos para interpretar nossas experiências no tempo, não
deve de modo algum conduzir à percepção de que esse repertório de procedimentos
cognitivos possa de alguma forma ser privilégio de um grupo ou de um determinado
contexto civilizatório. Neste ponto convém, portanto refletir sobre o posicionamento do
teórico da história Jorn Rusen, para quem a base da consciência histórica antes de ser
cultural, (ele não nega, portanto a dimensão cultural da consciência histórica), é natural.
Sendo comuns a todos os seres humanos, marcado suas experiências de vida porquanto
todos mobilizam processos de pensamento para orientar suas ações. Tal perspectiva vai
contra a ideia que se estabeleceu por várias décadas de que o elemento consciência
implicava numa relação direta com o nível de racionalidade técnica que determinado
povo apresentava, para contextualizar ainda mais a força desse argumento, ouçamos o
próprio Rusen:

“A consciência histórica não é algo que os homens podem ter ou


não ela é algo universalmente humano, dada necessariamente
com a intencionalidade da vida prática dos homens. A
consciência histórica enraíza-se, pois, na historicidade intrínseca
à própria vida humana prática.” (Rusen, 2001, p78).
Diante dessas afirmações torna-se necessário ampliar nossas reflexões acerca da
consciência histórica, especialmente se pretendemos toma-la como importante
ferramenta teórica no processo de elaboração de nossa proposta de intervenção didática,
que toma para si a tarefa de discutir entre outras questões a que envolve o conceito de
identidade. Assim, é interessante perceber que a consciência histórica presume o
indivíduo a partir de outros indivíduos. A forma como tomamos consciência de nossas
semelhanças coletivas ou como nos atribuímos semelhanças, é basicamente feita a partir
das memórias construída na temporalidade na qual a cultura humana se encontra
inevitavelmente inserida.

Por isso dizemos que não se pode falar em atribuição de significados ao passado,
sem refletir seriamente sobre o modo como a consciência histórica deve ser
compreendida, pra funcionar como ferramenta conceitual adequada para a lida com a
discussão histórica. A percepção de como essa lida se dá é ampliada quando passamos a
utilizar a ideia de cultura histórica, todo o esforço humano de se relacionar com
temporalidade quando tomados em perspectivas específicas a um determinado grupo,
pode ser pensado como “cultura histórica”, termo que podemos usar para definir de

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modo bem generalizante o conjunto de fenômenos histórico-culturais representativos da


forma como uma determinada sociedade cuida do tempo. (CERRI, 2013)

3-Direitos Humanos numa perspectiva contra hegemônica.

2-As tensões contemporâneas dos direitos humanos

Chegamos agora ao momento em que nos dispomos a refletir sobre qual a noção
de direitos humanos pretendemos tomar como referencial para orientar a perspectiva de
uma luta contra hegemônica em nível cosmopolita em meio às tensões da
contemporaneidade.
Os direitos humanos aos quais aspiramos não são os direitos humanos tal como
são compreendidos pela perspectiva ocidental/liberal, que se tornou hegemônica no
contexto da atual dinâmica globalizante, na qual o mundo se encontra. Apesar de o
discurso dos direitos humanos ocidentais, liberais, ter se tornado uma unanimidade do
ponto de vista global, é interessante problematizar tal situação, indagando se tal
unanimidade não foi atingida justamente pelo fato de ser um discurso que não incomoda
o status quo dominante, em que medida a aceitação desse discurso não foi precedida por
um processo de tornar os direitos humanos inócuos do ponto de vista transformador e
contestador das injustiças gestadas pelo capitalismo? Talvez essa retórica tenha sido
absorvida pelo capital hegemônico e em certa medida esteja funcionando como
amenizador de tensões ao invés de instigador de crítica e elemento capaz de expor
contradições problemáticas. Ancoramo-nos nas palavras de Boaventura no intuito de
compreenderesse processo de usurpação do potencial contestador das reivindicações
feitas pelos direitos humanos:
A busca de uma concepção contra-hegemônica dos direitos humanos
deve começar por uma hermenêutica de suspeita em relação aos
direitos humanos tal como são convencionalmente entendidos e
defendidos, isto é, em relação às concepções dos direitos humanos
mais diretamente vinculadas a sua matriz liberal e ocidental
(SANTOS, 2013, p. 43).

Assim, apenas se operarmos uma suspeição ante o conceito estabelecido pela


mídia e pelo discurso oficial acerca dos direitos humanos, é que abriremos novas
perspectivas de organizar reflexões alternativas à ordem hegemônica. Entretanto
gostaria de introduzir um questionamento que vai ao sentido de procurar a própria

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relação da concepção ocidental dos direitos humanos com o nosso passado colonial,
pois não podemos esquecer que esse discurso foi produzido na Europa e que funciona
de acordo com a dinâmica capitalista ocidental e que o processo de constituição da
identidade americana em nenhum momento considerou os contextos e as
especificidades do que Boaventura chama de “sul epistemológico” para a confecção de
tais ideais. Assim, se pretendemos relacionar uma educação libertadora com a formação
em direitos humanos que fujam do modo convencional de compreensão, não podemos
abrir mão de pensar tal tarefa a partir de um ponto de vista decolonial e que dialogue
com o multiculturalismo (Candau, 2008). Uma vez que é indiscutível a relevância do
processo de colonização, iniciado no século XVI, para a formação social e cultural dos
países latino-americanos, trata-se de identificar em que níveis essa dominação
influenciou o modo de ser latino-americano. Numa perspectiva semelhante, não se pode
ignorar o impacto do neocolonialismo do século XIX, que deixou marcas profundas no
modo de ser africano.
Outro aspecto dos direitos humanos que almejamos é o de que devemos entendê-
los no âmbito da formação de sujeitos de direitos, numa oposição à noção difundida de
formação para a cidadania. Assim dentro da perspectiva pretendida por esse artigo,
devemos problematizar de forma específica o significado e o uso que atribuímos a
termos como cidadão em confronto com a denominação sujeito de direitos. No
contexto das democracias liberais emersas no capitalismo globalizante, ser cidadão é
uma aspiração que não ofende as estruturas que fomentam a desigualdade e a injustiça
social, pois “cidadão” é um termo que remete apenas à pratica dos direitos civis e
políticos, tidos como direitos de primeira geração, que apesar de no contexto específico
do século XVIII terem representado uma transformação das estruturas de formatação
social e de governo, uma vez que se opunham ao absolutismo e aos privilégios de
nascimento, hoje tornaram-se meramente formais, inseridos que estão num contexto
mais intenso de limitação da participação popular.
Cidadania é uma palavra que pode ecoar de várias formas: no século XIX, como
a pessoa que sabia servir a sua pátria (obviamente sem questionar a quem essa pátria
servia); na época da formação dos estados nacionais, ser cidadão era ter plena
consciência de sua identidade como membro de uma nação; na globalização neoliberal
da atualidade, ser cidadão, talvez, seja especialmente ter acesso ao mercado de
consumo, ser proprietário de bens e ativamente participante da roda viva de comprar e

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vender. Mas, considero ser nossa tarefa, questionarmos: será esse tipo de sujeito que
queremos formar?
Em outro sentido, quando mergulhamos na produção acadêmica acerca dos
direitos humanos, percebemos que a hipervalorização dos direitos civis e políticos
eclipsa os direitos tidos como de segunda geração, que vêm a ser os direitos econômicos
e sociais, deixando, portanto, intacta a estrutura que dá preferência ao acúmulo de renda
e a má distribuição das riquezas. Convenhamos que lutar pela garantia do direito de
voto é inócuo se o processo eleitoral se mantém controlado pelo poder do capital, e que,
em certo sentido, se bater pelo direito de propriedade inquestionável e ilimitado, é
muitas vezes condescender com a desigualdade de potencial destrutivo.
Sendo assim, é fundamental confrontar a ideia de que se pode falar em respeito
pleno aos seres humanos sem questionar o sistema que se encarrega de produzir e
distribuir as riquezas. Falar em direitos sociais é falar em trabalho e em segurança.
Entretanto, como pensar sobre esses aspectos, se prevalece, na sociedade brasileira,
desrespeitos às legislações trabalhistas, que são tidas como constituidoras de mínimas
proteção para as classes populares? Como afirmar que alguém é plenamente cidadão
porque tem o direito de escolher um representante político, se lhe são negadas condições
mínimas de trabalho, se lhe impossibilita uma formação mais ampla que atinge o
próprio direito a educação de qualidade?
Os direitos humanos que defendemos são basicamente direitos marcados pela
laicidade, uma vez que parte significativa dos discursos religiosos contemporâneos são
marcadamente conservadores e associados à práticas que consideramos como
fortalecedoras da hegemonia liberal e ocidentalizante.
Nesse contexto, observamos que algumas gramáticas de valores produzidas por
certos discursos religiosos se empenham, inclusive, na luta contra direitos de alguns
grupos minoritários, os quais consideram como antinaturais imorais ou perigosos para a
conformação social que acreditam corresponder aos seus ideais políticos.
Nesse sentido, observamos que, se queremos propor uma educação em direitos
humanos que dialogue com conteúdos disciplinares de história, temos que vislumbrar
um conceito de direitos humanos que possa ser amplamente compreendido pelas várias
formas de perceber e vivenciar a experiência religiosa, inclusive incorporando a
ausência de crença em aspectos sobrenaturais.
Assim, toda a concepção entorno de direitos precisa ser embasada na própria
dignidade que emana do ser humano, entendida como elemento agregador a qualquer

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tipo de cultura ou grupo social, embora compreendamos a importância que tem a


herança cultural religiosa para a formação da identidade, diante das reflexões atuais
acerca do conceito de direitos humanos. Não achamos ser possível tomar esses
referenciais (religiosos) como fundamento que justifique a dignidade humana pela
própria natureza idiossincrática que eles apresentam. A despeito de entender que alguns
discursos e práticas religiosas possam ser concebidas como progressistas, inclusivas e
contra-hegemônicas (Santos, 2014), não se pode estabelecer critérios para a confecção
do conceito de “direitos humanos”, embasados em livros sagrados e que, portanto,
dependam do assentimento de fé como esteio e fundamento que justifique uma adesão
global aos direitos humanos.
Por fim, porém não menos importante, está a compreensão de que os direitos
humanos, tal como os percebemos através da produção acadêmica contemporânea sobre
o tema, devem incluir no seu espectro de significado a tensão entre diferenças e
desigualdade. Se, inicialmente, a luta dos movimentos revolucionários do século XVIII
era por igualdade, num confronto contra os privilégios da nobreza e do clero,
atualmente, com o status de igualdade jurídica, ao menos, teoricamente, garantida nos
discursos dos documentos oficiais, tornam-se especialmente significativas as tensões
que surgem dos conflitos marcados pelo desejo hegemônico de padronização, que
muitas vezes levam ao esquecimento de identidades e memórias consideradas marginais
e à luta dos povos e coletividades pela afirmação de suas identidades, que passa
necessariamente pelo direito a ser diferente. Mas, não causaria a união dessas duas
demandas um ponto de vista paradoxal? A luta é para sermos iguais ou para sermos
diferentes? Por isso entendemos ser essencial encontrar categorias formais que nos
ajude a dialogar com essa aparente dicotomia.
Ao nosso socorro vem a ideia de um pensamento capaz de conversar de um lado
com a exigência de igualdade, e de outro com a esperança de permanecer integrado na
sua própria diferença cultural: seguindo as reflexões feitas por Candau (2008),
enxergamos o “Multiculturalismo”, entendido de forma a expressar a interculturalidade
como um viés propício a ser empregado como elemento constitutivo da prática e de uma
militância que se pretende libertadora e transformadora.
Ao mesmo tempo em que se torna capaz de funcionar como elo entre a prática
do Ensino de História, e a luta pela constituição de uma perspectiva contra hegemônica
dos Direitos Humanos.

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THOMPSOM, E. A formação da classe operária inglesa: a árvore da liberdade. Rio de
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O QUE SE ENSINA SOBRE A HISTÓRIA DE PERNAMBUCO NOS LIVROS


DIDÁTICOS DE HISTÓRIA DO ENSINO MÉDIO

Mayara Ferreira Barros


Estudante de Graduação
Universidade Federal de Pernambuco
may.ferreira.2@hotmail.com

RESUMO: Este trabalho analisa como a História de Pernambuco é ensinada através de


livros didáticos de História do Ensino Médio. A disciplina de História, segundo os
Parâmetros Curriculares Nacionais para o Ensino Médio, atua na consolidação da
cidadania, pressupondo que esta foi formada em boa parte durante o Ensino
Fundamental. Contudo, com a atuação do livro como principal material didático e,
muitas vezes, como um determinante curricular, é importante entendermos como a
História de Pernambuco está sendo abordada para discentes pernambucanos da
Educação Básica mediante a livros, aprovados pelo PNLD 2018, que são de editoras do
Sudeste do Brasil. Para tal análise, foram escolhidas duas coleção de manuais didáticos:
Conexões com a História, dos autores Alexandre Alves e Letícia Fagundes, 2ª edição da
Editora Moderna; e História: Sociedade & Cidadania, de Alfredo Boulos Júnior, 2ª
edição da FTD. Assim, através de uma análise comparativa, apreenderemos como
Pernambuco é ensinado através do livro didático, explorando diversos recursos como,
por exemplo, os textuais, iconográficos, atividades, etc.
Palavras-chaves: Ensino de História; História de Pernambuco; Livros didáticos;

RESUMEN: Este trabajo analiza cómo la Historia de Pernambuco es enseñada a través


de libros didácticos de Historia de la Enseñanza Media. La disciplina de Historia, según
los Parámetros Curriculares Nacionales para la Enseñanza Media, actúa en la
consolidación de la ciudadanía, presuponiendo que ésta fue formada en buena parte
durante la Enseñanza Fundamental. Sin embargo, con la actuación del libro como
principal material didáctico y, muchas veces, como un determinante curricular, es
importante entender cómo la Historia de Pernambuco está siendo abordada para
discentes pernambucanos de la Educación Básica mediante libros, aprobados por el
PNLD 2018, que son de: de las editoriales del Sudeste de Brasil. Para tal análisis,
fueron escogidas dos colecciones de manuales didácticos: Conexiones con la Historia,

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de los autores Alexandre Alves y Leticia Fagundes, 2ª edición de la Editora Moderna; e


Historia: Sociedad y Ciudadanía, de Alfredo Boulos Júnior, 2ª edición de la FTD. Así, a
través de un análisis comparativo, aprehenderemos cómo Pernambuco es enseñado a
través del libro didáctico, explorando diversos recursos como, por ejemplo, los textos,
iconográficos, actividades, etc.
Palabras claves: Enseñanza de Historia; Historia de Pernambuco; Libros didácticos;

INTRODUÇÃO:

Principal fonte de apoio de trabalho dos professores, o livro didático se apresenta


como principal material didático utilizado em sala de aula, e muitas vezes é dele que se
extrai, por exemplo, o planejamento para a aula, a avaliação e as atividades (COSTA,
1997, p. 57). Ora, o manual didático possui múltiplas facetas (BITTENCOURT, 1993,
p. 3), e seus vários aspectos vem sendo problematizados, especialmente após a tese de
Circe Bittencourt, em 1993, que teria impulsionado pesquisas acerca deste importante
material de apoio escolar (MUNAKATA, 2012, p. 183).
Em meio a tantas pesquisas, destacam-se debates acerca do princípio ideológico
dos livros didáticos, e também de específicas conteúdos presentes em tais materiais. E
com o crescimento dessas análises, na década de 1990, apreende-se uma amplitude de
trabalhos sobre o livro didático e com discussões diversas, que problematizam, por
exemplo, o conteúdo histórico e pedagógico, assim como seu uso em sala de aula.
Dentre tantos discussões acerca do livro didático, percebe-se que Pernambuco é
uma temática que ainda não é especificamente questionada no livro didático de História,
apesar de existirem tantos “silêncios” em tais manuais acerca da história desse estado,
abordada, muitas vezes, apenas em períodos particulares, e sem uma problematização,
de fato, da História pernambucana. Através da análise de livros do Ensino Médio,
percebe-se que Pernambuco não está presente, ou aparece muito pouco, em manuais do
volume I, equivalentes ao 1º ano do Ensino Médio; enquanto no volume II, Pernambuco
é largamente abordado, mas nem sempre problematizado e em muitos casos silenciado
em outros recursos didáticos dos presentes nos livros como, por exemplo, as atividades
propostas. No manual do 3º ano, por sua vez, Pernambuco é raramente abordado, ou
apenas citado em alguns momentos históricos, sem existir uma contextualização,
apresentando-se, muitas vezes, de forma que não é tão produtivo para o discente.
A História republicana de Pernambuco, sendo o período histórico brasileiro mais
próximo do presente dos discentes, a sua falta de abordagem e/ou problematização

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podem, por sua vez, possibiliar que os discentes enxerguem a história pernambucana de
forma engessada, e apenas apresentada num contexto colonial e imperial, ou seja,
Pernambuco como valorizado e pertintene de ser estudado apenas em períodos
longíquos, pode-se dizer.
Conforme os Parâmetros Curriculares Nacionais (1996, p. 26), “[...] um
compromisso social da História encontra-se na sua relação com a memória, livrando as
novas gerações da ‘amnésia social’ que compromete a constiuição de suas identidades
individuais e coletivas”. Por sua vez, os Parâmetros para a Educação Básica de
Pernambuco (2013, p. 24), Ensino Fundamental e Médio, afirmam que a História tem
como papel contribuir para a formação da consciência histórica dos homens, e
possibilitar a construção de identidades, além de uma análise e crítica da realidade. Ou
seja, estudar História também envolve a formação de identidade e cidadania.
Porém, ao utilizar o livro didático como determinante curricular, e única fonte de
apoio, os professores podem não abordar uma História que esteja, por exemplo, em
consonância com os currículos oficiais, nacionais e estaduais. É importante destacar,
contudo, que está sendo produzido um novo currículo para o Ensino Médio no Brasil,,
chamado Base Nacional Comum Curricular (BNCC), quando, até então, ainda não
disponível. Então, deve-ser estar ciente que, por mais importância que tenha o livro
didático no dia a dia dos professores, é um material de apoio, e não deve determinar no
que se ensina sobre História.
É de suma importância o estudo da História local. E, sabendo da atuação do livro
didático na sala de aula, e trazendo para o contexto das escolas públicas pernambucanas,
é pertinente entendermos como Pernambuco é ensinado pelos livros didáticos que serão
utilizados em tais escolas, e como isso pode refletir na sua percepção como sujeito
histórico, além de entenderem com mais clareza a importância de se estudar História, já
que se enxergam como parte desta.
Assim, foi realizada uma análise comparativa entre duas das mais vendidas
coleções de livros didáticos de História do Ensino Médio, onde Pernambuco será
explorado através de diversos conteúdos, assim como iconografias, atividades e
sugestões de recursos audiovisuais. Essa pesquisa em curso visa, portanto, entender
como e quando Pernambuco é abordado através de livros didáticos de História.

1. O Plano Nacional do Livro Didático - 2018.

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Criado em 1985, o Plano Nacional do Livro Didático, o PNLD, apresenta-se como


um programa nacional que visa a avaliação dos livros didáticos, que podem ser
aprovados e utilizados em todo o país. Essa forma de avaliação, segundo SAMPAIO e
CARVALHO (2010, p. 49), possibilita que os livros didáticos sejam direcionados aos
avaliadores, que muitas vezes não têm prática em sala de aula; ao invés de serem
direcionados aos professores e alunos, que lidarão com o material diariamente.
Está entre os critérios específicos do PNLD (2018, p. 74) para a disciplina de
História a contribuição para o desenvolvimento crítico, o estímulo a diferença, e
também a percepção da historicidade das experiências sociais, o que estimula, por sua
vez, a cidadania. Mas como estimular o desenvolvimento crítico, por exemplo, quando
os discentes não se enxergam como sujeitos históricos? É um processo muito mais
complexo, pode-se dizer, para concretizar-se. O estímulo a diferença também perpassa
pela presença, por exemplo, da história de várias regiões brasileiras, assim como de
estados, no livro didático, e não uma preponderante presença do Sul e, principalmente,
do Sudeste do país.
Analisando a composição dos profissionais participantes do PNLD 2018, percebe-se
a presença de especialistas do livro didático e das licenciaturas diversas. Contudo, há
uma supremacia de profissionais com vínculo profissional a universidades do Sul e
Sudeste do país, como podemos observar na tabela abaixo.

PNLD 2018 – VÍNCULO PROFISSIONAL

REGIÕES COMISSÃO EQUIPE DE EQUIPE DE


BRASILEIRAS TÉCNICA AVALIAÇÃO DE AVALIADORES
RECURSOS
Centro-Oeste 1** 4 (IFG, UnB, SEEOF, 1 (UFMT)
IFGOIANO)
Nordeste 0 4 (UFRN, UNEB, UFBA, 13 (UFRN*, IFRN, UFS*,
UESB) URCA-CE e UFRPE*)
Norte 0 1 (UFPA) 1 (UFPA)
Sudeste 8 (UFU-MG, UFRJ*, 12 (UNESP, UNICAMP, 10 (UFU-MG, UFMG,
UNESP, UFF, UERJ, USP, UERJ, UFES, UFF*, UFES, UERJ*,
UNICAMP) ENSEG-SP, UFRJ, UNIRIO, UEMG, UFSC.)
UFRRJ, EMIA-SP,
UNIFESP)
Sul 4 (UFPR, UFSM, UPF, 8 (UFRGS, UFPR, 13 (UFRGS, UEL-PR*,
UCS) FEEVALE, UNIPAMPA, UDESC-SC*, IFPR, UCS-
UEPG, UFSM) RS, UENP-RS)
TOTAL 12 29 38
*Essas universidades tiveram mais de um profissional participando do PNLD 2018.
**João Bosco Pitombeira Fernandes, Doutor em matemática, é apresentado com vínculo com duas
universidades, a UFRJ e a UFMT.

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Através de tais dados, percebe-se uma presença marcante de profissionais


vinculados a universidades do Sul e principalmente do Sudeste. Provavelmente, tais
pesquisadores também tiveram a sua formação acadêmica em universidades do eixo
Sul-Sudeste do Brasil, assim como uma formação na Educação Básica, apesar de não
podermos afirmar com certeza. É ciente que tais profissionais prezam por uma
pluralidade no livro didático, contudo percebe-se que muitas vezes não existe uma
sensibilidade acerca de alguns temáticas que poderiam ser abordadas no livro didático,
como, por exemplo, a História de Pernambuco no período republicano. A supremacia de
profissionais do Sul e Sudeste do país podem ocasionar que alguns “silêncios” ocorram
no livro didático de História e, assim, alguns sujeitos e momentos históricos não sejam
contemplados.
Essa supremacia também é perceptível na formação acadêmica dos autores das
trezes coleções de livros didáticos de História aprovados pelo PNLD 2018, como
podemos observar na tabela abaixo:
NOME DA EDIÇÃO E EDITORA AUTOR FORMAÇÃO DO
COLEÇÃO ANO (A)(ES) AUTOR(A)(ES)
História – 1ª Ed. - 2016 Ática Gislane Azevedo: Mestre em História
Passado e Azevedo & Social pela Universidade de São
Reinaldo Paulo (USP).
Presente Seriacopi Seriacopi: Bacharel em
português pela USP e jornalista
pelo Instituto Metodista de
Ensino Superior, e editor
especializado na área de História.
Por dentro 4ª Ed. - 2016 Escala Célia Cerqueira: Bibliotecária com
da História Educacional Cerqueira, formação pela Universidade de
Pedro Brasília (UnB).
Santiago & Santiago: Graduado pela USP,
Maria Mestre em História Social do
Aparecida Trabalho pela Universidade
Pontes Estadual de Campinas
(UNICAMP)
Pontes: Pedagoga pela
Faculdades Metropolitanas
Unidas (FMU).

Cenas da 1ª Ed. - 2016 Escala Cândido Bacharel em História pela USP e


História Educacional Grangeira Mestre em História Social do
Trabalho pela UNICAMP.
Conexões 3ª Ed. – 2016. Moderna Alexandre Alves: Mestre e Doutor em
com a Alves & Ciências, na área de História
Letícia Econômica, pela USP.
História Fagundes Oliveira: Mestre em História
de Oliveira Social pela USP.
História em 4ª Ed. - 2016 Editora do Renato Mocellin: Graduado em Direito e

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Debate Brasil Mocellin Estudos Sociais pela


& Rosiane Universidade Federal do Paraná
de (UFPR), pós-graduado em
Camargo História da Arte pela PUC-PR,
Mestre em Educação pela UFPR.
Camargo: Licenciada em
História pela UFPR e pós-
graduada pela Faculdade Padre
João Bagozzi (PR).

Oficina de 2ª Ed. - 2016 Editora Leya Flávio de Campos: Formado em História


História Campos, pela Pontifícia Universidade
Regina Católica de São Paulo (PUC-SP),
Claro & Mestre e Doutor em História
Júlio Social pela USP.
Pimentel Claro: Mestre em História Social
Pinto pela USP.
Pinto: Mestre e Doutor em
História Social pela USP.
Olhares da 1ª Ed. - 2006 Editora Bruno Bruno Vicentino: Bacharel e
História Scipione Vicentino licenciado em História pela PUC-
& Cláudio SP.
Vicentino Cláudio Vicentino: Bacharel e
licenciado em Ciências Sociais
pela USP.
História: 2ª Ed. - 2015 FTD Alfredo Mestre em História Social pela
Sociedade & Boulos USP, Doutor em Educação pela
Júnior PUC-SP.
Cidadania
História 3ª Ed. - 2016 Saraiva Georgina Santos: Doutora em História pela
dos Santos, USP.
Jorge Ferreira: Doutor em História
Ferreira, Social pela USP.
Ronaldo Vainfas: Doutor em História
Vainfas & Social pela USP.
Sheila de Farias: Doutora pela
Castro Universidade Federal Fluminense
Farias (UFF).
Histórias – 4ª Ed. - 2016 Moderna Myriam Mota: Mestre em Relações
Das Becho Internacionais pela Ohio
Mota & University e Doutora em História
cavernas ao Patrícia pela UFMG.
terceiro Ramos Braick: Mestre em História pela
milênio Braick Pontifícia Universidade Católica
do Rio Grande do Sul (UFRS).
História 3ª Ed. - 2016 Saraiva Gilberto Bacharel e licenciado pela USP;
global Cotrim Mestre em Educação e História da
Cultura pela Mackenzie; filósofo
pela PUC-SP.
Caminhos 3ª Ed. - 2016 Base Editorial Adhemar Marques: Bacharel e licenciado
do homem Marques & em História; especialista em
Flávio História Moderna e
Berutti Contemporânea pela Pontíficia
Universidade Católica de Minas
Gerais (PUC-MG).
Berutti: Licenciado em História
pela Universidade Federal de
Minas Gerais (UFMG); pós-
graduado em Metodologia da
História pela PUC-MG; Mestre

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em História pela PUC-RS;


#ContatoHis 1ª Ed. - 2016 Quinteto Adriana Dias: Graduada em História e
tória Machado especialista em História Social
Dias, Keila e Ensino de História pela
Grinberg e Universidade Estadual de
Marco
Londrina.
Pellegrini
Grinberg: Doutora em
História pela UFF.
Pellegrini: Graduado em
História pela Universidade
Estadual de Londrina.
Ou seja, percebe-se a supremacia de autores com formação em universidades das
regiões Sul e, principalmente, Sudeste. Existe uma predominância também acerca das
matrizes das editoras com livros aprovados pelo PNLD 2018, pois todas as suas centrais
estão localizadas no estado de São Paulo. Segundo CAINELLI (2012, p. 166), a
definição de quais conteúdos de História devem ser ensinados nas escolas foi realizada
no século XIX, por membros do Instituto Histórico Geográfico Brasileiro (IHGB) e por
professores do Colégio Dom Pedro II. Ambas instituições localizavam-se no que
chamamos hoje de região Sudeste.
Percebe-se que o lugar de produção, ou seja o lugar das editoras; o lugar dos
autores, que lá tiveram sua formação acadêmica; e o lugar dos avaliadores, vinculados
muitas vezes a instituições do Sul e Sudeste do Brasil; têm influenciado bastante no que
se ensina de História através dos livros didáticos. Para entendermos de fato isso,
apreendamos a análise das coleções a seguir.

2. O que trazem os livros didáticos sobre Pernambuco?

É fato que a História faz parte do nosso cotidiano. Contudo, para que o discente
perceba tal relação da História com o cotidiano, é significativo também que se ensine a
História dessa maneira. O livro didático, por sua vez, atuando muitas vezes como
determinante curricular, deve ser pensado como um documento histórico que necessita
ser analisado e problematizado, em diversas esferas.
Assim, serão analisadas as seguintes coleções de Ensino Médio aprovadas pelo
PNLD 2018: Conexões com a História, de Alexandre Alves1 e Letícia Fagundes de
Oliveira2; e Sociedade & Cidadania, de Alfredo Boulos Júnior3. A primeira coleção é
da Editora Moderna, e está na 2ª edição de 2015, São Paulo. A segunda, por sua vez,

1
Mestre e Doutor em Ciências, na área de História Econômica, pela USP.
2
Mestre em História Social pela USP.
3
Mestre em História Social pela USP, Doutor em Educação pela PUC-SP.

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está na terceira edição, de 2016, São Paulo, e foi publicada pela Editora FTD. É
importante destacar que os três volumes serão analisados nesse trabalho. Como a
História do Brasil comumente é dividida de forma tripartite linear, assim também
Pernambuco será retratado neste artigo, disposto em momentos da História da Colônia,
do Império e da República, com uma investigação do conteúdo histórico e pedagógico.
No volume I das coleções, utilizados no 1º ano do Ensino Médio, percebe-se que
não é comum retratar Pernambuco, assim como muitas vezes não se apresenta, ou foca,
a História do Brasil. Nesse sentido, quando Alexandre Alves e Letícia Fagundes trazem
Pernambuco apenas mencionando-o que há achados arqueológicos nesse estado, sem
trazer uma contextualização, pode não causar um estranhamento ao discente e ao
professor. Contudo, quando Alfredo Boulos Júnior apresenta a História dos hebreus,
realiza uma importante conexão com a História de Pernambuco, e dos judeus no Brasil,
ao trazer duas fotografias (BOULOS, 2016, p. 87), vista interna e externa, da Sinagoga
Kahal Zur Israel, localizada em Recife, e a primeira sinagoga das Américas.
Ao tratar do conceito de patrimônio cultural e da política de preservação, Boulos
também aborda retrata museus brasileiros, citando em seu texto o Museu Paulista,
localizado em São Paulo, o Museu da República, no Rio de Janeiro, e o Museu do
Estado de Pernambuco, em Recife (BOULOS, 2016, p. 16). E, como é característico da
coleção de Boulos Júnior apresentar um grande número de imagens, utiliza para ilustrar
tal tema uma fotografia do Museu do Estado de Pernambuco, apontando-o como um
lugar de memória. Essa presença pernambucana, especialmente num livro de 1º ano de
Ensino Médio, onde Pernambuco não costuma ser abordado, é importante para que o
discente, especialmente pernambucano, enxergue a História do seu estado no livro
didático.
Assim, na coleção de Alexandre Alves e Letícia Fagundes não percebe-se a
presença pernambucana através de iconografias, assim como praticamente é silenciado
nos textos historiográficos. E, nas atividades propostas, Pernambuco também não é
apresentado. Na coleção de Alfredo Boulos Júnior, por outro lado, existem três
iconografias que apresentam Pernambuco (BOULOS, 2016, p. 16, p.87). Se comparado
ao número aproximado de 361 iconografias presentes ao longo do volume, é um número
pequeno. Mas percebe-se que existiu uma preocupação, pode-se dizer, acerca de
Pernambuco no livro didático do 1º ano do Ensino Médio.
Por outro lado, nos livros de 2º ano do Ensino Médio, equivalentes ao volume II,
Pernambuco é largamente abordado, através de conteúdos como, por exemplo, as

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Capitanias Hereditárias, a Economia Canavieira, As Invasões Holandesas, a Guerra dos


Mascates, a Revolução Pernambucana de 1817, a Confederação do Equador e a Revolta
Praieira. Ou seja, são apresentados conteúdos do período Colonial e Imperial da
História brasileira. E, para compreender melhor a presença pernambucana no volume II
das coleções, alguns conteúdos foram escolhidos para serem analisados aqui.
É fato que boa parte dos discentes, ao serem indagados sobre as capitanias
hereditárias que prosperaram no Brasil, responderão que foram Pernambuco e São
Vicente. Contudo, esse sucesso de tais capitanias nem sempre é problematizado e,
assim, os discentes não compreendem em verdade o porque de tal êxito. Na coleção de
Alexandre Alves e Letícias Fagundes, ao apresentar esse conteúdo explica que essa “foi
a saída encontrada pelo rei português para manter o controle do território” (ALVES e
FAGUNDES, 2015, p. 265). Apresentando um mapa das capitanias hereditárias,
percebe-se Pernambuco e São Vicente destacado, com um cor diferente, mas nada se
explica acerca do assunto. Apenas quando tratar da criação do Governo-geral, páginas a
seguir, que vai apontar claramente quais capitanias prosperaram, e justificando a falta de
êxito das outras pelo fato de seus capitães donatários terem permanecido em Portugal.
Ou seja, negligencia o fato de que as capitanias hereditárias necessitavam de
investimento interno, e por isso a importância da vinda de seus donatários para a
colônia.
Boulos, por sua vez, traz um número maior de informações acerca desse
conteúdo, e justifica o fracasso das outras capitanias. Apesar de contextualizar a falta de
sucesso de algumas capitanias (BOULOS, 2016, p. 55), ao invés do êxito de outras,
entende-se como uma problematização do conteúdo e, indiretamente, os discentes
entendem parte da razão do sucesso de Pernambuco, por exemplo. Ambos autores não
mencionam o primeiro capitão donatário de Pernambuco, Duarte Coelho, e que possui
ligação direta com o êxito da capitania de Pernambuco.
É importante apreendermos também a presença feminina pernambucana no livro
didático. E, uma vez que tratávamos de figura de Duarte Coelho, é pertinente apreender
também se há a presença de Dona Brites de Albuquerque, sua esposa. Em resumo, com
a morte do seu marido, em 1554, e seus filhos ausentes, Dona Brites assumiu, mais de
uma vez, a capitania de Pernambuco, sendo tratada pelos colonos de “capitoa”, já que
era uma situação incomum.

“Somente com a Escola de Annales, mais propriamente com a


perspectiva conhecida como Nova História é que se tem a

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possibilidade de trazer para a historiografia os aspectos do cotidiano,


das pessoas “comuns” (e não apenas dos “heróis”), e, com isso, abre-
se espaço para a história das mulheres. (RAMBALDI, 2017, p. 126)

Percebe-se esse espaço para a História das mulheres também nos livros
didáticos, tratando-as também como sujeitos históricos, que devem ser estudados em
diversos acontecimentos históricos. É inegável nas duas coleções existe a presença
feminina, porém de formas diferentes. No Conexões com a História a mulher é retratada
muitas vezes através das iconografias, enquanto no Sociedade & Cidadania, Boulos
Júnior abre mais espaço para trazer a presença feminina em conteúdos como, por
exemplo, a Confederação do Equador. Porém, na Colônia, a mulher não é retratada.
Apesar deste trabalho não discutir especificamente gênero, é importante analisarmos
também a presença feminina e como isso pode refletir que as alunas, pernambucanas,
não se vejam representadas no livro didático. Assim, por mais que os autores tragam,
em geral, a mulher na História, Pernambuco na maior parte é retratado mediante a atores
históricos masculinos.
A Invasões Holandesa a Pernambuco também é um conteúdo presente em
qualquer livro didático de Ensino Médio aprovado pelo PNLD, por ser um
acontecimento marcante da História em que Portugal perdeu sua autonomia em relação
ao chamamos, hoje, de Nordeste. No Conexões com a História, ao abordar tal assunto,
aponta-se que Pernambuco foi maior região produtora de acúcar em seu tempo, e por
isso a segunda invasão holandesa foi a tal capitania, porém não cita detalhes da
ocupação. Ao tratar do governo de Maurício de Nassau, em Recife, na chamada Cidade
Maurícia, menciona sua reurbanização, mas não especifica.
Boulos, por outro lado, contextualiza muito mais as Invasões Holandesas, o que
possibilita um conhecimento mais sistematizado sobre o tema. Quanto a isso, podemos
citar, por exemplo, a resistência a invasão de Pernambuco que, enquanto Alves e
Fagundes apenas apontam que existiu uma resistência luso-brasileira, Boulos Júnior
aponta como aconteceu a resistência, trazendo também o Arraial do Bom Jesus para as
suas considerações, abordando sua função e suas táticas. É pertinente mencionar,
também, que Boulos, ao tratar do governo nassoviano em Pernambuco, aponta quais
mudanças ocorreram na Cidade Maurícia. Contudo, chama atenção que esse historiador
traz uma fotografia da vista aérea da cidade do Recife, onde pode-se observar o Bairro

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de Santo Antônio, onde ocorreu o conjunto de obras realizadas por Nassau (BOULOS,
2016, p. 69).
É importante destacar, também, a Insurreição Pernambucana, quando Boulos
Júnior especifica as vitórias lusos-brasileiras através da Primeira e Segunda Batalha dos
Guararapes. Para exemplificá-las, traz a pintura A Batalha dos Guararapes, de Vitor
Meireles (1832-1903). Mas o pertinente é que a pintura é explicada, na legenda, como
uma contestação a união das três raças, uma concepção popularmente disseminada,
apontando também quem representaria, na imagem, Henrique Dias, Felipe Camarão e
André Vidal de Negreiros (BOULOS, 2016, p. 70). Por outro lado, no Conexões com a
História, tratando acerca do assunto específico, traz duas iconografias (ALVES e
FAGUNDES, 2015, p. 276): o “Retrato de Antônio Felipe Camarão”, de Ostevaldo
Galdino da Silva; e a “Batalha dos Guararapes”, 1960-1961, detalhe do painel de
Francisco Brennand, exposto no centro de Recife. É importante que ocorra uma relação
das imagens com outras fontes, especialmente com o texto escrito (BITTENCOURT,
2005, p. 364). E ao apresentar as iconografias apenas ilustrando, Alves e Fagundes
perdem a oportunidade, pode-se dizer, de desconstruí-las, problematizá-las e utilizá-las
como um recurso didático.
Já apreendemos que, nem sempre as iconografias que retratam Pernambuco, são
apresentadas como um recurso didático. Mas é pertinente entendermos também a
relação das iconografias que retratam Pernambuco, claramente, ou atores históricos
pernambucanos. Assim, observemos a gráfico abaixo:

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Para esse gráfico, não utilizamos as iconografias referentes a Europa, por


exemplo, e a História de outros países americanos que não sejam o Brasil. Ademais,
apenas foram utilizadas iconografias que representam, claramente, conteúdos referentes
a histórias dessas regiões, para relacionar com Pernambuco. É importante destacar que
muitas das iconografias são de um período em que essa divisão do território brasileiro
ainda não existia, mas, para ocorrer um apreensão com mais clareza, foi esquematizado
dessa forma.
Percebe-se que Boulos Júnior retrata muito mais o “Nordeste”, e também
Pernambuco, que é o que aqui estudamos, enquanto tais representações são menores na
obra de Alexandre Alves e Letícia Fagundes. Estes autores, por sua vez, várias vezes
contemplam o Sudeste, mediante as iconografias, e de forma mais representada que o
livro de Boulos Júnior. Pernambuco, por sua vez, apesar de ser retratado através de
diversos assuntos, não possui tantas iconagrafias o abordando. Contudo é importante
destacar que Boulos Júnior preza muito mais por trazer iconografias de representem a
história de outras regiões e estados do que Alves e Fagundes.
Analisando também as atividades sugeridas pelos livros didáticos, percebe-se
que Pernambuco, no volume II das coleções, apesar de abordado com certa frequência,
em alguns casos é silenciado no momento dos exercícios, tão importantes para a
consolidação dos conhecimentos.

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No capítulo, por exemplo, em que aborda-se a Revolução Pernambucana de


1817, movimento separatista republicano que quebrou, momentaneamente, com a
unidade dos domínios portugueses na América; trata-se também da Inconfidência
Mineira, que se enquadra como uma tentativa de revolta, mas que foi abordada pelo
governo imperial. Porém, no momento das atividades, nas duas coleções analisadas, a
Revolução de 1817 não é contemplada. No livro de Alfredo Boulos Júnior, apresentam-
se quatro questões de pré-vestibulares e duas questões “abertas”, onde é necessário uma
maior problematização, ou seja, são seis questões. Destas, duas questões, sendo uma
aberta, refere-se a Inconfidência Mineira. Contudo nenhuma apresenta a Revolução
Pernambucana de 1817.
Na coleção de Alves e Fagundes, por outro lado, além dos assuntos referidos,
apresenta também no capítulo a Confederação do Equador que, dentre outros motivos,
contestava a Constituição outorgada de 1824. Ao final do capítulo, apresenta oito
questões, quando duas retratam a Inconfidência Mineira, porém nenhuma contempla a
Revolução Pernambucana de 1817 e a Confederação do Equador.
Costuma-se apresentar especificamente Pernambuco até 1848, quando ocorreu a
Revolta Praieira. Assim, percebe-se que Pernambuco, a partir da segunda metade do
século XIX, é praticamente silenciado no livro didático, quando é mais raramente
abordado através de iconografias e atividades sugeridas, além de pouco mencionado
e/ou problematizado, especialmente nos livros de volume III, equivalentes ao 3º ano do
Ensino Médio. E, dessa forma, a História de Pernambuco ensinada pelo livro didático
pode apresentar-se apenas na Colônia e no Império.
No livro Conexões com a História, por exemplo, Pernambuco é abordado ao
tratar da contextualização do Golpe de 64, quando os autores citam que as Ligas
Camponesas, em Pernambuco, reivindicavam uma Reforma Agrária (ALVES e
FAGUNDES, 2015, p. 647), sem contudo problematizar tal presença. Apesar de terem
ocorrido movimentos contestatórios antes do Golpe de 1964, é fato que as duas coleções
abordam a Ditadura Civil-Militar de uma perspectiva do eixo Sul-Sudeste,
negligenciando, portanto, resistências e repercussões em outras regiões e estados como,
por exemplo, Pernambuco. Neste livro, Pernambuco também não é abordado mediante a
atividades propostas e as iconografias, ainda que existam 265 na parte III da coleção.
Já Alfredo Boulos Júnior traz Pernambuco, no volume III, através de uma
imagem, em que retrata o movimento das Diretas Já em Pernambuco. Apesar da
ausência do estado neste livro do 3º ano do Ensino Médio, percebe-se que a situação, na

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outra coleção, ainda é um pouco mais lamentável. Pernambuco não é retratado em


tantos momentos históricos que priorizam o Sul e o Sudeste do país. E, assim,
especialmente a História ensinada nos livros do 3º ano do Ensino Médio, podem
apresentar-se como distantes dos alunos, como se a História importante, e digna de
ensinada, no fim da Educação Básica, na maior parte, seja a do eixo Sul-Sudeste.
Assim, percebe-se Pernambuco é citado em alguns momentos nas duas coleções,
além do que se espera. Porém existe uma diferença da forma de abordagem, claro, dos
autores. É fato que Alfredo Boulos Júnior não cita tanto Pernambuco, mas, no momento
em que o faz, em geral, prefere problematizar. Enquanto Alexandre Alves e Letícia
Fagundes apresentam Pernambuco mais vezes, mas nem sempre problematizando, mas
com uma preseça pernambucana pontual e objetiva.
Portanto, percebe-se que Alves e Fagundes deixam muito mais lacunas em
relação a Pernambuco, em diversos aspectos, apesar de mencionar Perambuco mais
vezes. Enquanto Boulos, através dos principais assuntos que fazem referência a
Pernambuco, traz muito mais informações, pertinentes, e tenta perceptivelmente
preencher o máximo de lacunas, em relação aos mais diversas temas.

CONSIDERAÇÕES FINAIS:

Através desta análise, ainda em curso, percebe-se que Pernambuco poderia ser
muito mais problematizado e contextualizado, além de apresentado em iconografias e
exercícios, o que nem sempre ocorre da melhor maneira. É importante destacar que não
defende-se a super valorização da história de um estado em detrimento da história de
sete estados que compõe duas regiões, o Sul e o Sudeste do Brasil. Contudo, preocupa-
se que alunos pernambucanos estudem a história do seu estado basicamente na Colônia
e no Império, como se Pernambuco tivesse, praticamente, desaparecido na República,
uma vez que pouquíssimas vezes, e nem sempre contextualizada, o retrata.
Sabe-se que o livro didático possui um limite de páginas, de orçamento e de
iconografias, por exemplo, e, por isso, não defende-se a existência de um livro ideal, e
muito menos negar a importância do livro didático em sala de aula. Mas fica claro que,
através da análise das duas coleções escolhidas, que Pernambuco é, muito vezes,
retratado em conteúdos pontuais. Assim, o objetivo deste artigo é sensibilizar
professores para que, ao utilizarem o livro didático, não se apoiem demasiadamente
neste material, mas que tenham em mente que trata-se de um material de apoio, e que é

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necessário, especialmente ao ensinar Pernambuco, que outros materiais e recursos


didáticos sejam utilizados.

REFERÊNCIAS:

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Médio. 2.ed. São Paulo: Moderna, 2015.

BITTENCOURT, Circe Maria F. Livro Didático e Conhecimento Histórico: uma história do


saber escolar. 1993. 369 f. Tese (Doutorado em História Social) – Faculdade de Filosofia,
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BOULOS JÚNIOR, Alfredo. História: Sociedade & Cidadania. Ensino Médio. 2.ed. São
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CAINELLI, Marlene. A escrita da História e os conteúdos ensinados na disciplina de


História no Ensino Fundamental. Educação e Fisolosofa Uberlândia, v. 26, n.51, p. 174,
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no ensino de História. 1997. 125 f. Dissertação (Mestrado em Educação) – Faculdade de
Educação, Pontífica Universidade Católica de São Paulo, São Paulo.

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Matha Abreu e Rachel Soihet. Ensino de História: conceitos, temáticas e metodologias. 2ª ed.
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MUNAKATA, Kazumi. O Livro Didático como mercadoria. Pro-Posições, v. 23, n. 3 (69),


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RAMBALDI, Amanda Kelly; PROBST, Melissa. As mulheres representadas nos livros


didáticos: História do Brasil. Interfaces Científicas – Educação. v. 5. n. 3. Jun 2017.

SAMPAIO, F. A. A.; CARVALHO, A. F. Com a palavra, o autor: Em nossa defesa: um


elogio à importância e uma crítica às limitações do Programa Nacional do Livro Didático. São
Paulo: Sarandi, 2010.

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ENSINO DE HISTÓRIA NA DÉCADA DE 1980 E 1990: DAS MUDANÇAS


SÓCIO-POLÍTICAS À HISTÓRIA CULTURAL

Luiz Adriano Lucena Aragão


Humberto Rafael de Andrade Silva
Pós-Graduação em História - UFRPE
humbertorafael5329@gmail.com
adriano_lucena@hotmail.com

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RESUMO

A partir da década de 1980, as mudanças na historiografia acadêmica como a


emergência dos Annales e a crise dos paradigmas repercutiram na historiografia escolar
e consequentemente foram passadas mais tarde para os Livros Didáticos. O objetivo
deste artigo é contextualizar, por um lado, as perspectivas sócio-políticas que
possibilitaram tais transformações; e por outro, como a história cultural se insere neste
contexto. Em meio ao regime militar brasileiro, intensos debates, lutas políticas e
teóricas em prol do ensino de história foram travadas. Essas lutas foram intensificadas
nas últimas décadas do século passado. E dessa movimentação, de repensar os rumos do
ensino da história, novas linguagens, novas abordagens, novas temáticas foram
discutidas. Tudo isso fruto de transformações histográficas que serão debatidas neste
trabalho.

Palavras-chave: Ensino de História, Historiografia, História Cultural.

1. INTRODUÇÃO

O artigo aborda as questões da historiografia que influenciam as tendências


escolares, isto é, aquelas cujos paradigmas historiográficos refletem diretamente na
cultura escolar. Serão mostradas algumas perspectivas e problemáticas que envolvem o
ensino de história e suas correlações com tais tendências, mormente a história cultural.
O recorte temporal estabelecido neste estudo compreende as décadas de 1980 e
1990 por dois motivos: o primeiro, alude à reformulação do pensamento historiográfico
brasileiro, que procurou repensar a história de forma mais crítica: “a política
educacional, os currículos, a gestão, a escola, o ensino e a aprendizagem, os professores,
os alunos, os pressupostos, os métodos, as fontes e os temas” (FONSECA, 2012, p. 33).
O segundo, corresponde ao eco que essas transições paradigmáticas provocam na
produção didática e escolar, Caimi (1999).
Para melhor delinear as afirmações iniciais, o texto seguirá o seguinte percurso:
a contextualização da década de 1980 e 1990 com as transformações historiográficas
ocorridas e suas implicações na história escolar. Em seguida, focaremos na história
cultural explorando os diversos aspectos dessa tendência historiográfica. Por último,
teceremos considerações acerca das ideias debatidas neste estudo.

2. TRANSFORMAÇÕES NO ENSINO DE HISTÓRIA NAS ÚLTIMAS


DÉCADAS DO SÉCULO XX.

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Para os historiadores do ensino de história, Bittencourt (2011), Munakata (2012),


Caimi (2008, 2014, 2015), Helenice Rocha (2014), Fonseca (2012), que estudam o
processo de escolarização da disciplina desde as primeiras décadas do século XIX, as
duas últimas décadas do século passado são sinalizadas por transformações
significativas no ensino de história. Essas mudanças são atribuídas à superação da
condição secundária imposta pela ditadura civil-militar brasileira (1964-1984) à
disciplina história. Tal cenário vai ser gradativamente alterado para um estágio de maior
protagonização. Porém, essa inversão de papel se desenvolve em um contexto de muitos
embates nas esferas econômicas, políticas e educacionais.
A disposição secundária da história, ainda a pouco mencionada, se refere a um
conjunto de situações, no período civil-militar, que a desvalorizou: parco financiamento
da educação no nível básico e superior, currículos fragmentados, licenciaturas de curta
duração e esvaziamento político-pedagógico da disciplina. Para cada situação apontada
haverá, a partir da década de 1980, um desdobramento que segundo Silva e Fonseca
(2010) foi fruto de lutas e resistências dos profissionais de educação e entre eles, os de
história.
Assim, no âmbito econômico a constituição de 1967 não obrigou o Estado, tal
qual é hoje, a ter um percentual mínimo a ser investido em Educação. Entre os anos de
1969 a 1971 a média de despesa do Poder Executivo com Educação e Cultura foi 5,7%,
e nos anos de 1980 a 1982 foi 7,5%, do Orçamento Geral da União 1. Essa variação de
investimento contribuiu por mais de uma década para a precarização do ensino. Porém,
os movimentos organizados dos trabalhadores de educação, que já vinham
reivindicando um maior percentual de investimento por parte da União e dos Estados,
passaram a pressionar ainda mais.
E a partir de 1983, o processo de lutas por direitos sociais e políticos ganha
força, por exemplo, aprovou-se no Congresso Nacional a emenda constitucional
proposta pelo senador João Calmon que obrigou a União aplicar o mínimo de 12% de
sua receita em educação. Na Constituição Federal aprovada em 1988, novamente, foi

1
Anuário Estatístico do Brasil – 1972. IBGE. Rio de Janeiro. Volume 33. P. 887 e 1983, Volume 44. P.
813. Despesa realizada pela União, segundo os órgãos da Administração. Fonte: Secretaria de
Planejamento da Presidência da República. Secretaria Central de Controle Interno.

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redefinido o percentual de investimento em Educação: para os Estados, 25% e para a


União 18% de suas respectivas arrecadações.
Na perspectiva político-educacional, em 11 de agosto de 1971, o governo
sancionou a lei 5692, o objetivo dessa lei foi a reforma do 1º e 2º graus, hoje Ensino
Básico, pautada na profissionalização do ensino. A consequência direta para o ensino de
história foi, praticamente, a supressão no currículo dos conteúdos históricos. A grosso
modo, a fase que se viveu, posterior a implantação da reforma de 1971, limitou o ensino
ao seu caráter técnico.
Para Bittencourt (2011), a lei 5692 transformou o antigo secundário –
equivalente ao ensino médio de hoje – o ginasial passou a ser o ensino de 1º grau com 8
anos; já o colegial passou ser o 2º grau profissionalizante. Isso, atrelado ao modelo
tecnicista implantado, irá afetar de maneira indelével a qualidade da escola pública
brasileira. São mudanças substantivas nos processos educacionais que culminaram com
a junção das disciplinas História e Geografia, resultando em uma disciplina chamada de
Estudos Sociais, que trouxe em sua essência a depuração dos conteúdos históricos.
Além disso, houve diminuição do número de docentes nas escolas, diminuição
da carga horária das disciplinas de formação geral, entre elas a história, e gradativa
precarização do ensino.
No projeto de reforma educacional do governo civil-militar havia ideia premente
de controlar as opiniões e os pensamentos dos cidadãos. Com a supressão de grande
parte da formação geral e a destruição das humanidades no currículo, sob a pretensão de
combater toda e qualquer possibilidade de crítica ao regime autoritário. Implantou-se
uma lógica de racionalização capitalista com forte controle técnico e burocrático no
interior das escolas. Os professores ficaram “nas mãos” dos supervisores e orientadores
pedagógicos, sujeitos aos materiais didáticos impostos, sem direito a escolha, diferente
do que se faz hoje com o livro didático no programa nacional de livro didático - PNLD.
Após postulações e disputas em torno da renovação na educação brasileira, foi
promulgada, ainda no governo do presidente Itamar Franco, a Nova Lei de Diretrizes e
Bases da Educação Nacional (LDB) – lei nº 9.394/96 que, em meio a críticas em relação
ao seu conteúdo e à sua forma, tornou possível a execução de novas políticas públicas
educacionais.
Coadunando com a mudança em curso, houve a elaboração e a implantação dos
Parâmetros Curriculares Nacional (BRASIL, 1998, p. 29) que reformulou o conteúdo
escolar ensinado no ensino fundamental e, posteriormente, médio do país. Em relação

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aos livros didáticos, foi reformulado o Programa Nacional do Livro Didático (PNLD) e,
com um tempo depois, foi implantado o Programa Nacional do Livro Didático para
Ensino Médio (PNLEM).
As temáticas passaram a trazer inovação do currículo sob a perspectiva da
cidadania, das políticas públicas, da formação dos professores e o cotidiano em sala de
aula. Nesse contexto foi de grande relevância aproximar a produção historiográfica da
escola.
Os temas mais relevantes perpassam pela ótica de manter e valorizar a disciplina
de história no currículo escolar, trazendo a matéria para centro das discussões políticas e
culturais. Isso demonstra um novo processo de produção histórica que também se volta
para a sala de aula e suas ferramentas didáticas. A partir dessa movimentação, já
contextualizada, vão surgir novas linguagens com novas formas de escritas transmitidas
em diferentes canais como periódicos, jornais, sites e no que tange à escola, o livro
didático.

3.HISTÓRIA CULTURAL: NOVAS ABORDAGENS MAIS


CONTEXTUALIZADAS.
A história cultural representa um novo olhar para as estratégias do fazer história,
com novos campos temáticos e novas fontes. A partir da década de 1980 vai se perceber
melhor a influência dessa corrente tanto historiografia internacional, quanto na nacional.
Essa renovação será sentida no ensino de história e na historiografia escolar através de
seus métodos, perspectivas de abordagens e as relações estabelecidas com as fontes, na
pluralidade e multiplicidade dos temas abordados.
Para Pesavento (2008) e também Burke (2005) a história cultural veio responder,
ou melhor, ampliar a possibilidade de resposta às posições interpretativas da história
propostas pelo Marxismo e pelas Escola dos Annales. Os historiadores nos remetem à
crise dos paradigmas históricos para explicar como a história cultural se tornou um dos
modelos mais atuais para explicação histórica.
Criticava-se o materialismo histórico pelos seus pressupostos baseados em um
reducionismo econômico, pela sua forma mecânica e etapista de explicação da
realidade. A sua interpretação classista também foi alvo de crítica, muitas vezes,
sobretudo, por levar em consideração apenas a luta de classes e a dialética entre
dominantes e dominados, aqueles que são donos do meios de produção e os que não
são. Para os críticos, o materialismo histórico constitui-se um modelo mecânico.

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Em relação à historiografia dos Annales questionava-se a perspectiva


globalizante de explicação da história na qual se narrava mais do se explicava. Essa
crítica se direcionava mais a perspectiva do historiador Fernand Braudel com sua ideia
de história total que pouco explicava os fenômenos sociais. Não é o caso de dizer que
esses modelos não servem ou não serviram para a explicação realidade. Para Pesavento:
A dinâmica social se tornava mais complexa com a entrada em cena
de novos grupos, portadores de novas questões e interesses. Os
modelos correntes da análise não davam mais conta, diante da
diversidade social, das novas modalidades de fazer política, das
renovadas surpresas e estratégias da economia mundial e, sobretudo,
da aparentemente escapada de determinadas instâncias da realidade –
como a cultura, ou os meios de comunicação de massa – aos marcos
racionais e de logicidade. (PESAVENTO, 2008, p. 09).
A realidade tornou-se mais complexa para ser explicada. A crise dos paradigmas
abriu o caminho para um novo olhar. Segundo Burke (2005, pág. 07), o historiador
cultural lança seu olhar sobre o passado para alcançar algo que outros historiadores não
conseguiram. A ascensão da história cultural está vinculada a virada cultural e também
aos estudos culturais realizados por Stuart Hall.
Para Hunt (1992) a história cultural deixa de pensar a história de acordo com os
velhos moldes, considerados os modelos ideias para explicação histórica, para pensar
com a cultura em sua ideia de conjunto de significados partilhados e construídos pelos
homens para explicar o mundo. A cultura traduz a realidade de forma simbólica. Os
símbolos conferem sentidos às palavras, às ações, à realidade social. Contudo, esses
sentidos se apresentam cifrados, portando valores explícitos ou implícitos. É na
decifração cultural que os historiadores culturais irão se debruçar para interpretar o
passado.
Nessa nova perspectiva dos estudos históricos deram importantes contribuições
sobre a representação e a importância da cultura popular Michel de Certeau, Stuart Hall,
Jaques Revel, Carlo Guinzburg e Roger Chartier. Este último desenvolveu seus estudos
com a temática sobre a história do livro, sobre o texto e a leitura. Trouxe importante
contribuição para o desenvolvimento de conceitos como práticas e representações
culturais. Em sua obra A história cultural: entre práticas e representações, nos
apresenta um olhar didático sobre as primícias da história enquanto prática cultural.
Chartier desenvolve três conceitos principais que são utilizados pela história
cultural: representação, prática e apropriação. A apropriação corresponde aos usos que
se faz de determinada prática cultural por diferentes grupos sociais, dando-lhes arranjos

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distintos da prática de origem. Chartier exemplifica o que seria uma apropriação da


leitura ao explicar que um livro poder ser lido em uma época de forma individualizada
terá um determinado sentido, talvez esse mesmo livro lido coletivamente ou em outra
época apresentará sentidos diferentes.
A ideia de representação trazida por Chartier constitui uma categoria central para
história cultural. A representação é a forma como os indivíduos se percebem e dão
sentido ao mundo. As práticas e a apropriações elas são representações da realidade. A
força da representação se dá pela capacidade de mobilizar pessoas, produzir
conhecimento e legitimidade. Trabalha no campo da verossimilhança. Para Bourdieu a
representação tem um valor simbólico de dizer e fazer crer sobre o mundo.
A proposta da história cultural foi interpretar o passado através de suas
representações, tentando chegar às suas formas discursivas e imagéticas, pelas quais os
homens se expressam a si próprios e o mundo. E o grande desafio para o historiador é
fazer a leitura dos códigos e das representações de diferentes épocas, fazer os devidos
filtros de um tempo não-visto e não-vivido. Pois, as representações do passado se
constroem como fontes através do olhar do historiador.

4. UM NOVO OLHAR SOBRE AS FONTES HISTÓRICAS E O ENSINO DE


HISTÓRIA

O que dá mais visibilidade a história cultural, certamente, é o seu campo de


pesquisa. O que existe é uma multiplicação do universo temático e dos objetos. Figura-
se novos recortes, produzidos por questões renovadoras. A reconstrução do passado
como objeto de pesquisa nos remete à percepção dos indivíduos, às ambições, aos
valores, aos temores. Permite pensar a descontinuidade da história, põe o historiador em
condição de alteridade diante do tema. A compreensão da história passa ser construída
através da representação do passado.
Para Guinzburg, historiador movido pela atitude dedutiva e pela suspeita, o
pesquisador que faz uso da história cultural vai em busca dos vestígios, trabalha no
campo das evidências. Percebe além do que é mostrado. Lança seu olhar arguto e
perspicaz. Percebe os sentidos. Analisa a parte em relação ao conjunto. O trabalho com
as fontes para o historiador cultural passa por diversos métodos.
A História enquanto disciplina a ser ensinada tem que ser revista a partir de
novos estudos historiográficos introduzindo novos personagens, criando uma

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consciência cidadã nos alunos, reconhecendo que o discurso ideológico moralizante que
foi ensinado nos livros didáticos no país, em outros tempos, não reflete a essência do
conhecimento histórico hoje. O desprezo que houve pelo passado recente de nossa
história está relacionado ao período de Ditadura Militar vivido pelo nosso país que
relegou os conteúdos históricos para um segundo plano, anulando todo o seu potencial
crítico.
A compreensão de que os alunos, através da prática cotidiana da escola, tecem
redes de conhecimentos e recriam as maneiras de fazer e reorganizar a produção sócio-
cultural (CERTEAU, 1994 p. 142), gerando uma multiplicidade de detalhes renovam o
saber vivenciado na sala de aula.

5. CONSIDERAÇÕES FINAIS

No discorrer deste artigo abordou-se de forma sucinta como a década de 1980


foi vista pelos historiadores do ensino de história. Verificou-se um período de ampla
discussão para traçar os rumos da disciplina história. As discussões perpassaram as
universidades e foram sentidas, de maneira intensa, no ensino básico. Na academia via-
se a crise dos paradigmas históricos e como consequência o surgimento de novo
pensamento para o fazer história: a história cultural.
O mais importante é a noção de resistência dos professores, educadores e dos
profissionais de educação. Em cada discussão e proposta curricular houve uma tentativa
de valorizar a história sob o prisma da cidadania e dos conteúdos que despertassem a
visão crítica dos alunos. A criticidade esteve atrelada à visão de uma sociedade mais
justa, diferente do modelo civil-militar acrítico e segregador.
Neste contexto, a proposta de ruptura com as verdades absolutas e com modelos
de viés apenas econômicos ou totalizantes ganhou importância, pois a história cultural e
os novos estudos históricos ampliaram a capacidade de interpretar o passado. E na
perspectiva de sala de aula possibilitou ao professor trabalhar diversos modelos
epistemológicos para “tecer” a história, a partir de diferentes paradigmas explicativos.
Ao colocar a cultura como conjunto de significados partilhados pelos homens
abriu-se o leque de estudos para diversas dimensões materiais e simbólicas da produção
humana. A história cultural através de seus métodos, perspectivas de abordagens e as relações
estabelecidas com as fontes históricas, relações estas que se misturam à produção escolar, seja

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no livro didático, seja nos debates em sala de aula ou nas pesquisas da disciplina história,
e redefiniram o processo de escolarização.
E sobre objetos da pesquisa histórica, ensino de história e historiografia
acadêmica, finalizo com as ideias das professoras Bittencourt (2011, p. 501) e
Pesavento. A primeira, chama atenção para os novos objetos de estudos como
literaturas, cinema, televisão, jornais, depoimentos, artefatos, tudo isso deve ser
observado na perspectiva do fazer história hoje. Perspectiva esta que foi revista e
ampliada pela história cultural. E a segunda, aponta para uma visão de maior integração
acadêmica com o ensino básico, Pesavento nos leva a refletir sobre: “Se hoje a História
é mais solta, mais leve, mais prazerosa, mais crítica e indagadora, por que não socializar
para a escola o que os professores discutem nas universidades?” (PESAVENTO, 1994,
p. 166).

6. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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CAMINHOS PERCORRIDOS PARA ESCOLHA E UTILIZAÇÃO DOS LIVROS


DIDÁTICOS DE HISTÓRIA NO MUNICÍPIO DE PITIMBU/PB

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Luciane de Paiva Correia.

Mestranda em Educação pela Universidad Del Salvador (USAL), professora Rede


Municipal de Pitimbu /PB, lucianedepaiva@gmail.com

Este artigo tem o objetivo de analisar o processo de apreciação e escolha dos livros
didáticos de História do triênio 2017–2018-2019, em Pitimbu/PB, buscando investigar
se/como as exigências legais do Programa Nacional do Livro Didático (PNDL) são
implementadas na consolidação deste processo. Esse cenário é complexo, envolvendo
aspectos, como: a Regulamentação da seleção, da compra e da distribuição desses
livros. Nesse sentido, o trabalho é baseado em um estudo de caso realizado por meio de
uma pesquisa de campo. A partir dela foram coletados dados na Secretaria de Educação
e em todas as Escolas do Ensino Fundamental - Série- Finais do município supracitado.
Dessa forma, verificou-se que o livro didático de História é uma importante ferramenta
para o ensino-aprendizagem. Ademais, o seu processo de escolha é complexo e
permeado por aspectos pedagógicos, ideológicos e mercadológicos.

Palavras-chave: Ensino de História, Livros Didáticos, Pitimbu/PB.

A aprovação do Programa Nacional do Livro Didático (PNDL), através do


Decreto nº 91542, de 19/08/1985, suscitando uma visão positiva na estruturação da
elaboração do currículo escolar e na escolha dos livros. Desde então, esse processo de
seleção conta com a participação dos professores, que também podem ser produtores de
materiais didáticos, o que contribui para obtenção e construção do conhecimento em
diversos campos do saber, como é o caso da História. Inicia-se uma nova era na política
educacional e contribuição de recursos.

A nova legislação procura corrigir algumas das anomalias apontadas e busca a


descentralização administrativa do Programa Nacional do Livro Didático,
sugerido que a escolha do livro seja feita pelo professor que o utiliza em sala
de aula. (FREITAG, 1993:17-18).

O PNDL está voltado para a promoção da gratuidade dos livros didáticos aos
alunos de escolas públicas do Ensino Fundamental, tornando-se uma excelente
oportunidade de professores e secretários avaliarem e selecionarem os títulos, para o
governo adquiri-los e as editoras os distribuírem em todo o Brasil. Nesse sentido,
destacamos que “o livro didático é uma das fontes de conhecimento histórico e, como

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toda e qualquer fonte, possui uma historicidade e chama a si inúmeros


questionamentos” (FONSECA, 2003:56). Neste momento oportuno a participação dos
professores é de suma importância para esta nova fase de problematização do Ensino de
História.

É necessário que a equipe pedagógica e os professores analisarem as resenhas,


que já foram aprovadas na avaliação pedagógica, contidas no Guia do Programa
Nacional do Livro Didático (PNLD); para serem utilizadas no triênio. A seleção deve
ser feita pela internet, no portal do Fundo Nacional de Desenvolvimento da Educação
(FNDE).

No próprio site do Ministério da Educação (MEC), detalha a regulamentação da escolha


e seleção do Livro pela equipe escolar:

A escola deve apresentar duas opções na escolha das obras para cada ano e
disciplina. Caso não seja possível a compra da primeira opção, o FNDE envia à
escola a segunda coleção escolhida. Portanto, a escolha da segunda opção deve
ser tão criteriosa quanto a primeira. No volume “Apresentação do Guia”,
encontram-se as orientações detalhadas referente à escolha das coleções.
(Portal do MEC – Escolha dos Livros Didáticos).

A escolha do livro didático, através do Guia do livro Didático de História


perpassa um longo caminho até a sua produção. Diante disso, o Ministério da Educação
em consonância aos especialistas das áreas de conhecimento, completam uma comissão
técnica do PNLD, juntamente com outras equipes que buscam rever experiências
anteriores, para melhorar os critérios elegíveis para o avanço desejável para um ensino
de qualidade.

Seguindo a orientação do Guia do Livro Didático de História, “Este Programa


tem objetivado o diálogo com o professor e medidas permanentes de formação para os
docentes e técnicos das Secretarias Estaduais e Municipais, responsáveis pela política
dos livros didáticos”. (Guia do Livro didático de História, 2011, pg.11). A seguir alguns
tópicos dos princípios e critérios gerais, do PNLD 2011 a serem acolhidos de maneira
universal a formação cidadã.

A condição de o livro didático auxiliar a formação de cidadãos conscientes;


respeito à legislação que rege o Ensino público nacional; A qualidade
pedagógica e didática das coleções; A qualidade do Manual do Professor (MP);
A correção das informações apresentadas aos estudantes; A qualidade e

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adequação do projeto gráfico e estrutura editorial da coleção. (Guia do Livro


Didático de História, 2011, pg. 10-11).

Seguindo os modelos e requisitos de avaliações dos livros didáticos de história,


no PNDL 2011(series finais), o qual servi de referência para esta pesquisa; chegaram
para a avaliação pedagógica 25 livros, foram selecionados 16 livros dos quais 09 foram
reprovados.

São produzidas resenhas, em sua maioria das vezes, elaboradas por diversos
profissionais e têm por objetivo auxiliar o professor na escolha do livro didático e, para
tanto cada resenha foi elaborada de modo a propiciar ao professor verificar nas resenhas
uma visão geral, a organização das coleções, analise das coleções e utilização em sala
de aula. Detalhando uma a uma as obra com suas potencialidades e limites; organização
dos livros, série a série; um detalhamento dos conteúdos, uma análise das coleções em
relação aos quesitos centrais de avaliação; uma descrição de como as temáticas africana
e indígena são contempladas ao longo da coleção.

Tendo em vista para a contemplação de ensino e aprendizagem de História,


segundo a Lei nº 9394/1996, a LDB, que em seu Artº 1, ressalta a abrangência do
processo educativo e a aspectos marcantes e fundamentais para se refletir acerca do
papel do Ensino de História para a formação da sociedade.

A educação abrange os processos formativos que se desenvolvem na vida


familiar, na convivência humana, no trabalho, nas instituições de ensino e
pesquisa, nos movimentos sociais e organizações da sociedade civil e nas
manifestações culturais. (LDB/1996).

Além disso, nos Parâmetros Curriculares Nacionais constam o currículo escolar,


os objetivos do ensino para todas as disciplinas, inclusive parte diversificada,
distribuição proporcional de recursos públicos. No PCN de História, explica com
detalhes seus objetivos gerais para o Ensino Fundamental, na medida em que “espera-se
que ao longo do ensino fundamental, os alunos gradativamente possam ler e
compreender sua realidade posicionar-se, fazer escolhas e agir criteriosamente”. (PCN,
1997, p.33).

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Nesse sentido, para uma maior compreensão desse cenário, é relevante


historicizar esse contexto. Com a aprovação da Constituição Federal de 1988 vai ocorrer
uma nova fase na educação brasileira, como fica bem explicito no Artº 205 CF/1988.

A educação, direito de todos e dever do Estado e da família, será promovida e


incentivada com a colaboração da sociedade, visando ao pleno
desenvolvimento da pessoa, seu preparo para o exercício da cidadania e sua
qualificação para o trabalho. (BRASIL, 1988).

Analisamos a atuação dos professores de História desse município de Pitimbu-


PB na apreciação e escolha dos livros didáticos de História do Ensino Fundamental–
Séries Finais que serão utilizados no triênio (2017/2018/2019), bem como a
problematização que ocorreu nesse processo.

Desenvolvemos uma pesquisa de campo, ao coletarmos dados sobre a temática


investigada na Secretaria de Educação de Pitimbu. Ademais, também foi de suma
relevância uma pesquisa bibliográfica, com um propósito de realizar um breve
levantamento do Ensino de História, a partir do PNDL, Lei de Diretrizes e Bases da
Educação Nacional (1996), Constituição Federal de 1988 e dos Parâmetros Curriculares
de História (PCNs).

Constatamos que entre os 08 professores regentes da disciplina de História,


todos estiveram presentes no encontro de apreciação e escolha do livro didático. Essa
atividade foi realizada no dia 18 de setembro de 2016, no Polo de Apoio Presencial da
Universidade Aberta do Brasil (UAB), no Centro de Pitimbu. Diante das dificuldades
existentes para reunir todos os professores das disciplinas do Ensino Fundamental –
Séries Iniciais e Finais da rede municipal de educação, foi providenciado o transporte
para todos, trazendo esses profissionais da zonas rurais e de assentamento para a área
urbana, onde ocorreu o local da reunião. O objetivo era contemplar as diretrizes do
PNLD, para que o processo de apreciação e escolha dos livros didáticos seja
democrático e que busque atender a participação de todos os docentes.

No caso do Ensino de História, foram disponibilizadas e apresentadas 04


coleções, (sabido que tem disponível 16 coleções e no caso, foram disponibilizadas
apenas 04 coleções) à equipe pedagógica e aos professores, que apreciaram e
escolheram, a partir de multíplices análises e argumentos, uma coleção para contemplar

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todo o município; não havendo uma unanimidade na decisão neste resultado, conforme
expressa o gráfico a seguir.

Gráfico 1 – Participação dos professores de História de Pitimbu/PB na apreciação e


escolha do livro didático para o triênio 2017/2019. Elaborado pela autora.

Ademais, verificamos a participação de 100% dos docentes de História na


escolha dos livros didáticos de História em Pitimbu, em que 75% deles optaram pela
obra Projeto Araribá História, Editora: Maria Raquel Apolinário, editora Moderna.
Diante disso, constatamos que o livro didático de História é um relevante instrumento
para o ensino-aprendizagem, sendo o seu processo de escolha é complexo e permeado
por questões mercadológicas, ideologias e concepções pedagógicas múltiplas.

Diante deste fato, fomos em campo e através de entrevistas podemos constatar


algumas peculiaridades, já que este Município citado, é localizado no litoral Sul da
Paraíba, divisa com Pernambuco; donde estão instaladas 04 escolas fundamental séries-

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finais. Uma escola urbana, outra na área de praia e as outras 02 localizada na área rural,
sendo que uma dessas últimas de assentamento de movimento sem-terra.

Essas diversidade de público nas escolas, são enfrentadas diariamente, porém no


que se diz respeito a escolha de um recurso didático, “Livros Didáticos” o popular e
muitas vezes o único, é de suma importância que caracterize, pelo menos um pouco com
a regionalização dos discentes.

Sendo este outro ponto problemático, utilizamos a metodologia da entrevista em


análise geral e qualitativa, os professores entrevistados no grupo de conversa e
verificamos algumas respostas.

As questões foram realizadas primeiro com os professores, que os livros de sua


escolha foram contemplados, listada algumas afirmações, relacionadas ao motivos que
fizeram tal escolha.

*Os livros foram escolhidos, porque já conheciam o autor e acreditam ser o melhor; mas
verifica que o nível é muito alto para os alunos;

*Buscam trabalhar bastante leitura, pois relataram que, uma grande maioria não tem
condições cognitivas para acompanhar a aprendizagem;

*Criticam os livros no geral pelos conteúdos de difícil entendimento, para a idade nos 6º
anos;

*Acreditam que o livro ajuda na dinâmica das aulas, pesquisa, leituras e exercícios;

*Utilizam outros recursos didáticos: Documentos, revistas, documentários, vídeos,


entrevistas, contos e aulas externas (quando possível).

As questões foram realizadas no segundo momento com os professores, professores que


não obtiveram comtemplados suas indicações, na escolha do livro.

*Os livros que optaram, mas não foi escolhido, era diferente do trênio anterior e trazia
mais textos e menos figuras que não corresponde sua identidade;

*A necessidade de mudança, mas sem muitos detalhes argumentativo.

*Adaptação aos texto que acreditam ser irrelevantes aos alunos.

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Neste momento com os dois grupos anteriores, para conversar sobre outra
questão relevante, que foi citada na reunião, o fato de só poder escolher um único livro
para contemplar todo o munícipio, de onde existe tanta diversidade e que já estão sendo
disponibilizado, livros didáticos e paradidáticos que contemplem as distintas diferenças.

Em reunião com os discente, verifiquei a necessidade de um currículo de


História, já que o município, não o possui e compromete, os objetivos do ensino e
aprendizagem de História. Também não obtém projeto específico da cidade direcionado
a história da cidade e ou história local.

Esse contexto é bastante pertinente, quando envolve na discussão; qual o


conteúdo deve ser aplicado, ou qual a metodologia, ainda em cheque se os livros estão
de acordo com o conteúdo propostos, bem como produção de materiais didáticos e
programas com conteúdo escolares.

Diante de tantas prerrogativas identifica a grande preocupação dos docentes a


elaboração do currículo escolar de História e as possibilidades de utilização dos livros
didáticos deste triênio. Como Fonseca, chama a atenção para os livros e currículos de
História, ser composto de elementos complementares para a construção do saber
histórico.

Os trabalhos sobre os currículos e sobre os livros didáticos, geralmente


analisados em seus aspectos intrínsecos ou como produtos das elaborações
políticas e ideológicas. Mais recentemente têm surgindo analises interessadas
na vinculação entre o ensino de História e a produção historiográfica e o
estudos que procuram utilizar, além da análise textual, a leitura iconográfica
como elemento fundante da construção do saber histórico escolar. (FONSECA,
2011, p.27).

Contudo, os docentes, regentes de História do Município de Pitimbu, conjuga desta


preocupação, posicionar-se em questões metodológica e didática, para o
desenvolvimento do ensino e aprendizagem de História do Ensino Fundamental séries-

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finais, corroborando para um currículo dinâmico, geral e local, para promover o


desenvolvimento de Memória e História Cultural.

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ISBN: 978-85-415-0980-0

O CINEMA COMO FERRAMENTA POSSÍVEL DE IMPLEMENTAÇÃO DA


LEI 10.639/03 NA SALA DE AULA

Antônio Barros de Aguiar


Mestrando em História Social da Cultura Regional pela UFRPE.
E-mail: barrosaguiar.ab25@hotmail.com

Resumo

A proposta deste texto é apresentar as possibilidades metodológicas e as limitações do


trabalho com filmes no ensino de História e Cultura afro-brasileira. Tem-se por objetivo
abordar algumas das principais contribuições teóricas de Robert Stam (2008), João
Carlos Rodrigues (2001), Noel dos Santos Carvalho (2008; 2011) e Francisco das
Chagas Fernandes Santiago Júnior (2013) para analisar as representações de pessoas
negras na primeira fase do Cinema Novo (da produção dos primeiros filmes deste
movimento cinematográfico até 1964). Sendo assim, os filmes são fontes históricas que
podem se tornar em um valioso material didático para efetivar a Lei 10.639/03 na sala
de aula, pois tal lei busca combater os estereótipos vividos pela população negra ao
longo da história brasileira.

Palavras-chaves: Lei 10.639/03. Cinema. Ensino de História.

Introdução

A aprovação da Lei 10.639/03 ainda tem gerado dúvidas e inquietações nos


espaços escolares e acadêmicos. Diante disso, coloca-se a seguinte questão central:
Quais métodos e materiais didáticos são mais apropriados para ensinar história da
África e cultura afro-brasileira? Assim, pensamos ser o cinema uma ferramenta possível
de implementação da Lei em questão na sala de aula, já que é um recurso bastante
utilizado no ensino de História nos dias atuais.
O cinema é um poderoso meio de representação que acaba colaborando para
desenvolver o imaginário popular sobre os negros brasileiros. O cinema construiu
imagens sobre a população negra por meio de formas discursivas e imagéticas. Assim,
conferiu significações negativas aos personagens negros. Nesse sentido, as imagens dos
negros no cinema brasileiro são vistas de forma pejorativa. Saber interpretá-las tornou-
se mais que necessário na sala de aula.

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A proposta deste texto é apresentar as possibilidades metodológicas e as


limitações do trabalho com filmes no ensino de História e Cultura afro-brasileira. Ou
seja, tem-se por objetivo propor metodologias para analisar os filmes produzidos na
primeira fase do Cinema Novo (da produção dos primeiros filmes deste movimento
cinematográfico até 1964). Para tanto, apoiamo-nos nas ideias de Robert Stam (2008),
João Carlos Rodrigues (2001), Noel dos Santos Carvalho (2008; 2011) e Francisco das
Chagas Fernandes Santiago Júnior (2013) sobre as representações dos negros no cinema
brasileiro.

Os negros na perspectiva do cinema brasileiro: a questão do Cinema Novo

Os negros ocuparam um espaço menor na história do cinema brasileiro desde o


período silencioso, com omissões e preconceitos, passou pelo paternalismo dos anos
1930 e 1940, pelas caricaturas raciais das chanchadas dos anos 1950, pelo sentido
político e social do Cinema Novo nos anos 1960 até chegar à estética do cinema atual.
Assim, os negros encenaram papeis de menor prestígio na maioria das produções
cinematográficas. Esta situação mudou a partir do momento em que eles passaram da
frente para detrás das câmeras, produzindo seus próprios filmes.
Nesse sentido, falar dos negros em nosso cinema, é falar de uma história de
exclusão que perdura até hoje, uma vez que os filmes, em sua maioria, foram escritos,
produzidos e dirigidos por cineastas brancos, em diversas épocas. Isso se torna
desvantajoso para a população negra, pois estes cineastas construíram representações
dos negros de acordo com os seus próprios interesses. Para Robert Stam,

os negros também têm sido usados como atalhos alegóricos para os


‘pobres’ ou os ‘oprimidos’, uma combinação que imita o discurso da
questão da classe acima da questão da raça, típico de certa sociedade
clássica brasileira. (STAM, 2012, p. 457).

Segundo Francisco Santiago Júnior (2013), a questão das imagens dos negros
em nosso cinema começou a ser ensaiada na passagem dos anos 1950 para os anos
1960. As análises das referidas imagens foram aprofundadas nos anos seguintes quando
críticos do cinema, ativistas do movimento negro, sociólogos, antropólogos e alguns
cineastas realizaram questionamentos sobre o modo como os negros foram
representados nos filmes brasileiros. Dessa forma, quando os negros passaram a ser o

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foco de disputas diversas, sobretudo políticas, estéticas ou ideológicas, suas


representações emergiram como problema no campo cinematográfico. (SANTIAGO
JÚNIOR, 2013).
Nos anos 1930, os negros foram, aos poucos, ocupando um espaço maior de
encenação no cinema brasileiro no momento em que o nacionalismo se fez presente na
vida política e ideológica do Brasil. Segundo Noel dos Santos Carvalho (2011), nos
anos 1940 e 1950, eles foram colocados a serviço de muitas causas e ideologias,
tornando-se expressão do povo brasileiro. Suas representações no cinema também
foram usadas para difundir discursos do movimento negro.
A discussão sobre a questão da representação racial no cinema ganhou força a
partir dos anos 1950. No final deste mesmo ano, os cineastas identificados com o
nacionalismo de esquerda produziram filmes que enfocaram ainda mais os negros como
representação legítima do popular e do nacional (CARVALHO, 2008). É somente a
partir do Cinema Novo, na década de 1960, que temos a idealização dos negros, a
iniciação de muitos atores negros e atrizes negras e a produção de filmes por diretores
negros. Assim, os negros passaram a ter suas representações mentais e visuais
produzidas pelos próprios negros, a partir de escolhas, de seleção, de recortes e
perspectivas diversas.
O Cinema Novo renovou a estética do cinema brasileiro, representando os
negros como seres politizados, como símbolo de brasilidade e de resistência. Durante os
anos 1970 e 1980, continuaram dominante na maioria dos filmes brasileiros. A partir
dos anos 1990, os cineastas negros vêm se posicionando de forma significativa no
campo cinematográfico através dos seus filmes e propondo novas questões para debater
a representação e o papel social dos negros não só no audiovisual, mas também nas
mídias como um todo.
O Cinema Novo procurou representar um Brasil esquecido, colocando o povo
brasileiro como personagem central em seu difícil cotidiano pautado no trabalho e nas
mazelas sociais. Na verdade, tornou possível a construção da simbolização de pessoas
comuns esquecidas por um Brasil moderno preocupado com o progresso. O negro, nos
anos 1950, foi usado como metáfora do povo. Assim, o Cinema Novo foi um
movimento cinematográfico mais reflexivo, menos direcionado ao entretenimento, com
o intuito de representar e propagar um ideal político. Alguns personagens negros
enceram papeis de cunho político e social.

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Além disso, o Cinema Novo projetou os negros em sua tela de forma idealizada,
evitando o exotismo e a indiferença. Contudo, João Carlos Rodrigues (2001), pioneiro
nos estudos dos negros no cinema brasileiro, ressalta que a masculinidade e a
branquitude foram dominantes no Cinema Novo. Para Stam (2012), há uma carência de
papeis políticos e sociais para as mulheres negras. Rodrigues (2001) enumera 12
estereótipos sobre os negros no cinema no seu livro “O negro brasileiro e o cinema”,
cuja primeira edição é de 1988. Os mais representados nos filmes são: “o preto velho”,
que transmite a tradição ancestral africana; “o negro revoltado”, “o negro de alma
branca”, o “crioulo doido”, “o negão” e “a mulata sedutora”. Estes últimos possuem
uma conotação sexual exacerbada. Para Stam, essa “tipologia” proposta por Rodrigues é
informativa, útil e sugestiva, pois ele

traça a origem dos estereótipos em seus antecedentes literários e, de


maneira imaginativa, faz a ligação entre as diversas figuras e atributos
dos vários orixás na religião afro-brasileira. Algumas de suas
categorias, como crioulo doido, não haviam sido notadas
anteriormente. Contudo, a tipologia às vezes sofre de pouca definição
e de redundância. Na prática, é frequentemente difícil distinguir o
‘bom selvagem’ do ‘negro de alma branca’, enquanto o malandro, o
favelado e o crioulo doido muitas vezes se fundem. (STAM, 2012, p.
464).

Embora preso a estereótipos, o Cinema Novo representou elementos da cultura,


da história, dos valores e dos problemas da população negra na primeira fase deste
movimento artístico-cultural, como é o caso de “Aruanda” (Linduarte Noronha, 1950-
1960); “Barravento” (Glauber Rocha, 1961); “Cinco vezes favela” (Carlos Diegues,
Leon Hirszman, Marcos Farias, Miguel Borges e Joaquim Pedro de Andrade, 1962;
“Bahia de todos os Santos” (Trigueirinho Neto, 1961); “A grande feira” (Roberto Pires,
1961) e “Ganga Zumba” (Carlos Diegues, 1963).

Os filmes sobre os negros brasileiros na sala de aula: Como usá-los? Com que
metodologias?

Segundo Elias Thomé Saliba (2001), vivemos num mundo onde cada vez mais
buscamos substituir nossas experiências reais pelas representações imagéticas desta
experiência. Somos afetados diariamente pelas imagens, sejam estas estáticas ou em
movimento. Assim, nossas experiências e práticas sociais se alteraram drasticamente

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quando passamos a conviver com as imagens, sobretudo as audiovisuais. Desde então,


houve uma mudança no modo de olhar o mundo antes e depois do nascimento da
linguagem audiovisual.
O cinema tem o poder de condensar imagens de indivíduos, de grupos sociais, da
sociedade e do passado. Estudá-lo é ter acesso a um universo mental cotidianamente
recriado. Lidar com o cinema é um desafio para os historiadores e professores, pois
devemos saber indagá-lo, contextualizá-lo, explorá-lo e usá-lo metodologicamente.
Nesse sentido, o cinema altera o real através de uma linguagem técnica que
articula a imagem, a palavra, o som e o movimento. É produto cultural, uma produção
imaginativa que necessita ser pensada, decodificada e trabalhada incessantemente na
sala de aula. Cabe-nos sempre pensar o cinema como resultado de seleção, de escolhas,
de recortes, de práticas sociais, políticas e culturais construídas a partir do envolvimento
de profissionais do campo cinematográfico com interesses comerciais, ideológicos e
estéticos.
Posta estas considerações iniciais, apresentamos algumas sugestões de
metodologias favoráveis à incorporação do cinema como recurso didático no ensino de
História e Cultura afro-brasileira. A proposta é usar essas metodologias para analisar os
filmes produzidos na primeira fase do Cinema Novo, uma vez que nesse período
cultura, negro e povo receberam sentidos quase similares. A escolha dessa fase justifica-
se por ser o Cinema Novo um movimento que representou os aspectos, a história, os
valores e a cultura de homens negros e mulheres negras. É importante o uso de
metodologias adequadas para a análise de filmes que representam os negros brasileiros,
uma vez que estes filmes estão eivados de estereótipos.
Começamos a analisar os filmes em questão a partir das perguntas propostas por
Stam:
Quantos espaços os diversos personagens ocupam na tomada? Quais
personagens são ativos e dinâmicos, e quais personagens não passam
de apoios decorativos? A linha de visão faz com que nos
identifiquemos com um olhar, ao invés de outro? Os olhares de quem
são respondidos? Quais são ignorados? Como a linguagem corporal, a
postura e a expressão facial comunicam atitudes arraigadas em
hierarquias sociais, atitudes de arrogância, servilismo, ressentimento,
orgulho? A música de quem dita a resposta emocional? Quais
homologias dão forma à representação artística e étnico-política?
(STAM, 2012, p. 474).

Já Carvalho (2011, p. 29) aponta duas questões fundamentais para entendermos


os negros no cinema brasileiro: “Quantas representações do negro são encenadas nestes

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filmes?; e Qual concepção do negro se enuncia através dos textos que analisam os
filmes?”. Stam (2012) alerta-nos que muitos filmes brasileiros apresentam aspectos
ambíguos de democracia racial, sobretudo no período das Chanchadas, com os
personagens Oscarito e Grande Otelo, na qual o primeiro ocupa o primeiro plano da
cena e o segundo a posição subalterna.
Com efeito, devemos analisar os filmes indo além do que o diretor quis dizer,
percebendo todas as suas narrativas e suas contradições. Lembrando que filmes
extremamente fantasiosos transmitem ideologias e não estão desligados da realidade
social. Assim, a liberdade de criação de um filme não implica necessariamente uma
ausência de elos com o social.
É preciso ir além do puro entretenimento dos filmes e perceber que por trás deles
há sempre um diretor e um roteirista, que podem usar de sua imaginação criativa para
representar indivíduos ou grupos sociais que não necessariamente estão articulados com
o real. Dessa forma, as críticas sobre o seu uso no ensino de história voltam-se para seu
uso como ilustração ou entretenimento. Selva Guimaraes Fonseca (2009) alerta-nos que
é preciso, antes de tudo, um aprofundamento de nossos conhecimentos acerca da
constituição da linguagem cinematográfica, de suas dimensões estéticas, sociais,
culturais, de seus limites e possibilidades.
Para Vitória Azevedo Fonseca (2017), a linguagem audiovisual é perfeita para o
ensino de História, pois tem o poder de despertar os nossos sentidos para que não se
perca a compreensão do passado representado. É uma linguagem que continua sendo
consumida largamente pelas pessoas, mas sem o devido tratamento pedagógico.
Fonseca ressalta que:
as facilidades tecnológicas e, principalmente, as iniciativas dos
professores, geradas pelo fascínio do cinema, fazem com que a
exibição de filmes na sala de aula, e nas aulas de história, seja algo
crescente. Usar filmes na escola e, especificamente, nas aulas de
história, além de uma prática comum disseminada, também vem sendo
defendido por educadores e pesquisadores como meios de dinamizar a
sala de aula para além de um formato tradicional. (FONSECA, 2017,
p. 171).

Maytê Vieira (2015), questiona como pode ser possível sair do lugar comum e
usar os filmes para apontar o que não corresponde aos eventos históricos e como os
filmes podem ser usados pelo ensino de História de forma significativa, com
metodologias adequadas. Uma das possibilidades de analisar os filmes é buscar
“entender o porquê das adaptações, omissões, falsificações que são apresentadas [...]”.

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(NAPOLITANO, 2005, p. 237). Além disso, é necessário entender a sociedade que


produz o filme e a sociedade que o recebe, uma vez que o público espectador é sempre
levado em consideração no momento em que o filme está sendo produzido. Um filme
pode ser apropriado e entendido de formas diferentes em cada época e lugar social.
Com base nessas ideias, para analisar os filmes da primeira fase do Cinema
Novo, o primeiro passo é lê-los inicialmente como grandes feitos da imaginação criativa
ou interpretativa, associando-os à arte, à música, ao teatro e, sobretudo, à literatura, já
que muitos deles são adaptações literárias. O segundo passo é fazer a correspondência
entre o contexto histórico no qual esses filmes foram produzidos e os tipos de
representações dos negros encenadas neles. Um filme sempre fala direta ou
indiretamente da sociedade que o produziu: representa fatos e pessoas, mas sempre é
impregnado pelo seu presente. Lembrando ainda que o uso do cinema nas aulas de
história é uma experiência temporal (FONSECA, 2017).
Alexandre Busko Valim apresenta as principais etapas de análise de um filme:

1) O conteúdo aparente ou a imagem da realidade: é a forma


como o filme é apreendido, como é visto em um primeiro
momento; 2) Com a análise das imagens a partir de um
determinado contexto histórico; 3) Em decorrência do
segundo ponto, pode-se chegar a uma zona de conteúdo
latente, algo que escapa à primeira vista, mas que ainda pode
ser compreendido se dissociado do contexto histórico; 4) Por
meio dessa prerrogativa metodológica pode-se então adentrar
na zona da realidade não-visível, mesmo que ela não possa ser
reconstituída da maneira tal como se deu (fato histórico), ipso
facto, somente se poderá chegar próximo de tal realidade,
respeitadas as devidas conexões com o contexto em que o
filme foi produzido – acrescentamos que tal prerrogativa
também vale para a recepção do filme. (VALIM, 2005, p. 20).

Diante disso, propomos outras formas do uso dos filmes em questão na sala de
aula, como: a) planejamento prévio do filme relacionado à temática de estudo; b)
analisar os elementos narrativos do filme; c) discutir o processo de construção do filme;
d) analisar o filme com outras fontes; e) analisar as imagens fílmicas como tais e o
contexto histórico e social no qual elas foram produzidas; f) fazer a comparação entre
filmes; g) assistir sistemática e repetidamente aos filmes para realizar uma leitura
crítica; h) ver o filme como parte de uma experiência cultural; i) tratar o filme como
fonte histórica.

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Assim, sem o devido estudo da linguagem audiovisual e da história dos negros


no Brasil, corremos o risco de usar os filmes apenas como ilustração ou como forma de
ocupar o tempo dos alunos. Ao relacionarmos o cinema com o ensino de História e
cultura afro-brasileira, estamos estabelecendo formas de compreender o papel dos
negros na história do cinema brasileiro e as especificidades do cinema.

Considerações finais

Quando estamos diante da tela do cinema, fugimos, em um curto tempo, do


mundo real e inserimo-nos no mundo ilusório. Assim, um universo de imagens se abre
diante de nossos olhos. O cinema rompe as fronteiras que separa o real e a imaginação.
Usar o cinema nas aulas de história é uma forma de criar estratégias de diálogos
e conhecimentos, uma vez que ele se constitui de várias linguagens. Assistir e analisar
filmes implica perceber os sentidos que eles produzem no contexto social do qual
participam. O cinema pode perder credibilidade diante de outros recursos didáticos ao
ser utilizado apenas para o lazer.
É preciso valorizar as particularidades do audiovisual e explorar seu potencial
pedagógico no ensino de História. O que deixa, muitas vezes, a experiência do uso dos
filmes na sala de aula é o fato de que poucos professores têm o conhecimento profundo
sobre o cinema. O cinema é uma linguagem importante para o ensino, pois serve como
uma das formas de interpretação da realidade, do passado e das pessoas. Através dele, é
possível trabalhar elementos que vão além de questões conceituais e atingem a vivência
em sociedade.
Com relação ao cinema sobre os negros brasileiros, usá-lo nas aulas de história é
uma forma de trabalhar as Diretrizes Curriculares para a Educação das Relações Étnico-
raciais e para o ensino de História e Cultura afro-brasileira. Mas não devemos usar os
filmes de forma descuidada, uma vez que os negros continuam sendo alvos de
representações estereotipadas, de preconceitos e de injustiças. É preciso ter em mente
questões como “porquê” e “para quê” devemos utilizar determinado filme na sala de
aula. Devemos exibi-lo integralmente ou cenas recortadas? Quais limites e
possibilidades dos filmes para os alunos? Tudo depende do que o professor pretende
trabalhar com os alunos.

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Os filmes que representam os negros brasileiros merecem uma atenção especial,


pois os mais fantasiosos filmes sobre os negros podem trazer por trás de si ideologias.
Por isso, é necessário o uso de metodologias adequadas para analisá-los.

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O CINEMA NO CURRÍCULO E NO ENSINO DE HISTÓRIA

João Vitor Caldas de Souza


(Graduando - Universidade Federal de Pernambuco)
joaovitorcaldasouza@gmail.com

Resumo

Este artigo tem como objetivo debater a utilização do Cinema na vivência dos
professores no Brasil. Os filmes utilizados foram “Tempos Modernos” (1936), “As
Sufragistas” (2015), “A Classe Operária vai ao Paraíso” (1971) e ”Oliver Twist” (2005).
A sequência didática analisada tem por tema: A Revolução Industrial pelos olhos do
Cinema, executadas pelos bolsistas do PIBID/ História da UFPE, atuantes na Escola de
Referência em Ensino Médio de Paulista, localizado no município de Paulista, em
Pernambuco, durante o segundo bimestre letivo de 2017. A discussão enfocará a prática
docente, a problematização dos conceitos que circulam à temática e a inserção do estudo
da Sétima Arte na Base Nacional Comum Curricular (BNCC) de História.

Palavras-chaves: História, Cinema, Currículo.

Introdução e Referencial teórico

Inicialmente, cabe destacar que o trabalho, agora apresentado, foi fruto de uma
sequência didática, realizada na Escola de Referência em Ensino Médio de Paulista,

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situada no município de Paulista, Estado de Pernambuco. A experiência foi realizada


através do Programa Institucional de Bolsas de Iniciação à Docência – PIBID de
História, da Universidade Federal de Pernambuco – UFPE.

Sendo assim, pretendemos discutir nesse artigo a utilização do Cinema como


ferramenta didática no cotidiano dos docentes brasileiros, contudo, ao realizarmos a
pesquisa bibliográfica desse trabalho, percebemos a necessidade da construção do
debate que permeia a sétima arte como ferramenta didática ser realizado junto ao
currículo. Consequentemente, em determinado momento no texto, não vamos somente
explanar as teorias utilizadas em nossa experiência no PIBID, mas iremos também,
dialogar com a Base Nacional Comum Curricular (BNCC), com intuito de demonstrar
onde a arte fílmica se faz presente no documento e como devemos utilizá-lo.

A proposta de trabalhar com o cinema surgiu da necessidade de se problematizar,


dentro da sala de aula, os temas propostos pelo livro didático ou do conhecimento
histórico através de outra perspectiva historiográfica. Utilizando de uma das novas
metodologias contidas no cotidiano dos profissionais de educação, visando o melhor e
mais completo ensino e estímulo a curiosidade do aluno, que vivencia junto aos seus
docentes essa experiência de aprendizado.

O tema que propusemos na sequência didática foi “A Revolução Industrial pelos


olhos do Cinema” pensado e posto em prática nas turmas do Segundo Ano do Ensino
Médio, já que a “Revolução Industrial” é colocada no livro didático para estudantes
entre 14 até 17 anos. Vale salientar que a experiência foi vivenciada com um numeroso
alunado dentro de sala de aula (aproximadamente entre 40 a 50 estudantes).

Tivemos como objetivo discutir e relacionar a produção cinematográfica com as


consequências socioeconômicas da Revolução Industrial iniciada no século XVIII.
Problematizando as diversas circunstâncias que acabaram por se desenrolar na vida dos
trabalhadores, junto à experiência pessoal dos estudantes e seus testemunhos familiares.
Utilizamos cinco aulas ao total, todas de 50 minutos, construindo o debate e a
apresentação de filmes dentro de sala.

Para alcançar nossos objetivos, ao planejarmos a sequência didática, percebemos


que precisávamos observar uma série de probabilidades que a arte cinematográfica nos
possibilita utilizar dentro de sala de aula. Pois, “o uso de um filme em uma pesquisa na
área de História é, portanto, compatível com a noção mais ampliada de documento, com

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a qual trabalharmos hoje”1. Desde o surgimento da Escola dos Annales, houve uma
corrente de influências na Historiografia brasileira que acabou por desembocar em uma
problematização na utilização de fontes na construção histórica e, por consequência, na
vida docente.

Sendo assim, foi necessário que percebêssemos há existência de uma gama


extensa de linguagens que podem ser problematizadas em nosso cotidiano docente.
Pensando nisso, desejávamos tratar com os alunos a arte cinematográfica como uma
linguagem histórica a ser interpretada, um conhecimento que podemos estudá-lo de duas
maneiras igualmente interessante na escola.

Primeiro, foi necessário compreendermos o filme como uma representação não


somente do passado, mas também do presente - muitas vezes retratando mais o presente
do que o passado -. Sendo assim,

“Em um grande número de casos, a alegoria transforma-se na linguagem


clássica do cinema, com o realizador utilizando-se de épocas históricas
passadas para analisar um presente bastante vívido, transcendendo o espaço da
retórica. É neste sentido que todo o cinema é cinema contemporâneo, é cinema
do tempo presente.” (TEIXEIRA DA SILVA, 2004, p.94).

A produtora, os editores, os diretores do filme e principalmente aquele que está


patrocinando-o, seja ele um empresário ou um Estado têm influência direta na obra. Por
isso, é importante o professor estar atento para junto aos seus alunos tentar compreender
o contexto histórico que o documento fílmico lhe apresenta. Discutindo-o e apresentado
para seu alunado como conhecimento fulcral para o conteúdo que será trabalhado e para
o entendimento do filme como todo.

Ainda ao discutir como deveríamos encarar a realização das aulas com a


utilização dos filmes, tivemos que ter em mente que as obras cinematográficas muitas
vezes não estão somente relacionadas com o contexto que a produz, mas é designado
para uma determinada tarefa junto a uma parcela específica da sociedade. Pois,

“Diga-se de passagem, que, em fins do século XIX, quando essas formas de


entretenimento surgiram, eram destinadas especificamente às classes
trabalhadoras; as pessoas mais abastadas as consideravam formas grosseiras,
vulgares, coletivas e estúpidas de diversão, apropriadas apenas para crianças
sem acesso à educação e para criaturas ignorantes em geral, sem condições de
usufruir das belas-artes”. (SEVCENKO, 2001, p. 70).

Como nos mostra Sevcenko, o cinema no final do século XIX tinha uma função
social já determinada. Contudo, vamos observar ao longo do tempo uma mudança

1
DIAS, 2009. p. 01.

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constante nas funções que caberão as obras cinematográficas e nos grupos que se
deleitaram da experiência de ir ao cinema ou de simplesmente assistir um filme. Pois, a
tecnologia que vai se inserir nesse meio, os investimentos milionários, e a filosofia que
vão estar contidos em muitas narrativas cinematográficas irão expandir o espaço dentro
das sociedades mundo a fora.

Entretanto, havia outra possibilidade existente que podíamos focar ou tratar


junto ao contexto da produção fílmica: o estudo histórico da própria sétima arte, o
estudo do filme como uma obra cultural e artística. Pois, cada filme apresentado e cada
obra cinematográfica que vamos discutir nesse texto, tem uma série de fatores
influenciadores em sua produção. Como por exemplo, a escola cinematográfica
pertencente dos responsáveis pela direção de todo o enredo. Que irá conduzir toda sua
problemática e visão artística dos artistas que estão por trás dessa obra.

Além do que, “o filme não é um texto, mas a junção de vários textos


simultâneos”2 que compõe toda a obra. Problematizando toda essa experiência,
percebemos que teríamos que trabalhar junto ao alunado, um conjunto de elementos
compositores de todo o enredo. Cada fala, figurino, ambientação, cenário, abstração ou
até a própria condução da obra em cronologia ou dinamização deveria ser observada e
problematizada como sua ciência ou arte específica. Para que assim, não cometêssemos
o erro de relativizar ou ser superficial ao observar cada especificidade artística do filme
tratado.

Fazendo com que, optemos por contextualizar o corpo discente da escola que
trabalhou conosco nessa empreitada somente com o momento artístico que cada filme
está inserido em sua época. Ajudando-os aos estudantes a interpretar cada obra
cinematográfica como uma das falas que se apresentam ao tema. Pois, “(...) nenhuma
delas traz a verdade sobre determinado acontecimento, mas apenas um ponto de vista,
uma versão sobre algum fato histórico"3

Ainda assim, percebemos a obra fílmica como um “elemento motivador”4 aos


estudantes na hora que a aula é apresentada. Já que, em toda sequência didática, se faz
necessário aos alunos um conteúdo afetivo, ou seja, é preciso que ele se interesse e se

2
TEIXEIRA DA SILVA, 2004, p. 94.
3
DIAS, 2009, p. 02.
4
TEIXEIRA DA SILVA, 2004, p. 93.

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reconheça naquilo que lhe está sendo apresentado. Pois, em qualquer aula que venha ser
lecionada, deve estar inserido

“(...) numa metodologia que não pode contradizer a dialogicidade da educação


libertadora. Daí que seja igualmente dialógica. Daí que, conscientizadora
também, proporcione ao mesmo tempo, a apreensão dos temas geradores e a
tomada de consciência dos indivíduos em torno dos mesmos”. (FREIRE, 1987,
p. 50).

Sendo assim, o discente que ali está presente precisa se reconhecer e se sentir incluso
naquele assunto. Ele não pode ser um mero expectador de todas as aulas elaboradas,
esse tema tem que ser gerador, tem que produzir nesse estudante um sentimento para se
internalizar como conteúdo.

Além disso, era de nosso conhecimento que a sequência didática deve conter um
elemento surpresa e ao mesmo tempo motivador para os alunos. Pois, ao entrar na sala
de aula, o alunado apresenta-se a uma nova situação, um filme, em outro ambiente5, ou
seja, uma quebra em sua rotina escolar, incitando a curiosidade. Com certeza, somente
isso não irá fazer com que a aula atinja a todos os objetivos propostos.

Contudo, é uma estratégia realizada nas sequências didática no mundo escolar


que nos dá a oportunidade de prender um pouco da atenção dos nossos estudantes por
um momento específico e atentá-los, fazendo com que, naqueles primeiros minutos, o
saber seja desejado ou despertado. Pois,

“O exercício da curiosidade convoca a imaginação, a intuição, as emoções, a


capacidade de conjecturar, de comparar, nas buscada perfilização do objeto ou
do achado de sua razão de ser. (...) Admito hipóteses vários em torno da
possível origem do ruído. Elimino algumas até que chego a sua explicação.”
(FREIRE, 1996, p. 53).

Interessante percebemos que apesar dessa estratégia geralmente funcionar e ter


funcionado com nossos alunos, não é de forma alguma um método novo. Tendo em
vista que, “(...) as possibilidades didáticas de um filme já eram debatidas por
intelectuais brasileiros ainda nos anos 1930.”6 Sem contar que, muito provavelmente,
todos os estudantes ali presentes já haviam presenciados e/ou participados de uma aula
que continham filmes em sua composição.

É nesse momento que o trabalho didático deve ser destacado, pois ao debatermos
sobre como podemos utilizar essa obra, observamos a gama de possibilidades

5
Nós produzimos as aulas junto aos alunos no auditório da escola, não nas salas de aula que eles sempre
presenciavam seu cotidiano escolar.
6
DIAS, 2009, p. 04.

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historiográficas que se podem trabalhar nos filmes, junto a preocupação de como levá-lo
até a sala de aula. Sempre levando em conta que esse texto fílmico não pode ser
somente um instrumento ilustrativo, pois na extrema maioria das vezes em que
presenciamos ou lemos um relato sobre aulas nas escolas brasileiras que contenham
filme, a obra serve exclusivamente para exemplificar o momento histórico estudado
naquela determinada aula abordada.

Sempre precisamos ter em mente que “(...) o conhecimento não é algo dado pela
imagem; é construído a partir das problematizações”7. Sendo assim, o conhecimento
não é simplesmente reprodutivo, tudo que é lançado dentro da sala de aula deve ser
interpretado, como também devemos encarar o livro didático, “(...) o instrumento mais
utilizado por professores e alunos no ensino de História”8, pois é a partir de todo esses
materiais que o docente vai conseguir despertar o interesse nos alunos e com eles nós
iremos construir um aprendizado crítico.

Os Filmes

Nas primeiras reuniões, nós questionamos sobre a vivência dos alunos com
filmes e com o próprio cinema. E pelas conversas e convívio que tivemos em nossa
presença quase que diária na instituição, podemos enxergar que o alunado tem pouco
contato com o texto fílmico. Ainda assim, os poucos estudantes que costumam assistir
diversas obras, concentram sua experiência nas produções mais populares (filmes de
ação, super-heróis, etc). Pensando nisso, como foi com Vesentini,

“Nas experiências aqui comentadas a fita não foi vista como pura ilustração,
nem como obra que já mostra um conteúdo (evitando-se análise ou discussão).
Ela é parte da temática e merece tanta consideração quanto qualquer texto. (...)
Nesse sentido a primeira seleção bibliográfica liga-se ao tema, podendo
ocorrer uma outra seleção, organicamente relacionada a aspectos da fita a
serem enfatizados” (VESENTINI, 1997, p. 194)

Dessa forma, chegamos ao consenso que o ideal seria trazer filmes que
problematizam o tema que era proposto pelo professor titular da disciplina. Sem
esquecer de observar a classificação indicativa dos filmes para a idade do alunado.
Sendo assim, como o tema central da aula era A Revolução Industrial, pensamos em
obras que estivessem presentes em contextos diferentes, não só que retratassem épocas
diferentes, mas que fossem produzidas em momentos distintos. Pois, assim poderíamos

7
DIAS, 2009, p. 06.
8
DIAS, 2009, p. 04.

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observar diversos debates sobre diferentes filmes, diminuindo a chance de repetir os


temas discutidos nas apresentações.

Escolhemos começar a sequência didática com Tempos Modernos (1936) de


Charles Chaplin, pois é um filme americano que retrata com muito humor e criticidade,
as piores mazelas do mundo industrializado e capitalista. Carlito, personagem
interpretador pelo diretor e ator Charles Chaplin, entra em colapso depois de vivenciar
péssimas condições de trabalho e repetir sua função (apertar parafusos) cotidianamente.
A obra também demonstra temáticas do trabalho infantil e conta com a presença da
repressão estatal para com as greves de trabalhadores e manutenção dos impérios
industriais.

Posteriormente, escolhemos quatro outras obras para que os alunos


trabalhassem, como vamos detalhar logo adiante. Um dos filmes escolhidos foi: A
Classe Operária Vai ao Paraíso (1971), um filme italiano de Elio Petri. Problematizando
um trabalhador “perfeito”, pois Lulu (personagem principal da obra) tenta ser um
funcionário exemplar para conseguir aumentar sua renda, contudo, ele acaba se
chocando com os trabalhadores sindicais, com sua companheira e consigo mesmo; entra
em conflito por perceber que a luta trabalhista era a única opção para sua fuga daquele
sistema, pois aquela realidade lhe mutilava de diversas formas, desde um dedo perdido
em meio ao trabalho, até o seu apetite sexual e social que era cessada pelo cansaço.

Ao mesmo tempo que escolhemos um filme da década de 1970, selecionamos


uma obra contemporânea: As Sufragistas (2015) de Sarah Gavron, uma obra inglesa que
retrata a luta pelo sufrágio universal feminino na Inglaterra em meio a Revolução
Industrial. Destacando a problemática encontrada por essas mulheres em sua luta com o
preconceito que presenciam em seu trabalho, na sociedade e em suas casas.
Demostrando as péssimas condições de trabalho nas indústrias no início do século XX.

Por fim, trabalhamos com a obra da Disney: Oliver Twist (2005) de Roman
Polanski, que foca em um menino que encara a realidade das ruas em meio ao mundo
industrializado. Demonstrando ao longo do filme, a problemática do trabalho infantil, a
falta de infraestrutura familiar, educacional e social das crianças. Fazendo com que,
quem assisti o filme, sofra com a situação deplorável da juventude que convive com a
realidade de pobreza cotidiana.

As Aulas e a avaliação
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A sequência didática foi construída em conjunto por todos os PIBIDianos. Após


nossa escolha de filmes, começamos a planejar quais as estratégias deveriam ser
utilizadas na reprodução das obras. Baseando-se nas referências já discutidas acima e na
concepção de planejamento de Santana:

a) Planejamento: momento de seleção prévia do filme relacionado ao tema


em estudo, momento de assistir ao filme, de organizar o roteiro e o espaço e
preparar os equipamentos; b) Roteiro: enumerar questões relativas à produção
(quem o fez, direção, roteiro, quando, onde, gênero, técnicas, financiamento,
se é ou não baseado em alguma obra, etc) e explorar as características e a
historicidade do filme (os personagens, o cenário, o ambiente, a época
retratada, a história, as percepções, as leituras dos alunos, o roteiro, o
desfecho, os limites e as possibilidades); c) Projetar e assistir ao filme; d)
Discussão: estabelecer relações entre as leituras, interpretações, percepções
dos alunos sobre o filme e os temas estudados em sala de aula (é o momento
de confronto, desconstrução, ressignificação, análise e síntese); e)
Sistematização e registro. (SANTANA, p. 140)

dividimos nossas aulas em dois momentos, propiciando oportunidades para os


estudantes protagonizaram a apresentação da própria aula, demonstrando a
problematização pessoal de cada aluno.

Na primeira aula, nós PIBIDianos apresentamos o filme Tempos Modernos


(1936), apresentando trechos da obra. Dialogando com as temáticas que circundam
partes específicas do tema, como por exemplo: direitos trabalhistas, força sindical,
superespecialização na produção, etc. Contudo, sem perder o humor, pois como
pudemos perceber, os alunos não mediram suas risadas a cada cena genial de Chaplin.

Por fim, orientamos aos alunos fazerem a mesma coisa que nós realizamos na
primeira aula. Escolher um dos filmes já separados, determinar as cenas específicas e
problematiza-las, chamando atenção aos pontos que estão inseridos no contexto da
Revolução Industrial; além de “linkar” os temas, sempre que possível, com as condições
contemporâneas dos trabalhadores e a produção industrial; tudo isso depois de dividir a
turma em quatro grupos e separar cada grupo com um dos filmes que já explanamos
acima.

Diante disso, foi possível enxergar no EREM de Paulista a presença do contexto


industrial na vida de cada estudante, pois a cidade de Paulista surgiu a partir das suas
fábricas, que já não existem mais. Mas, mesmo assim, durantes a sequência didática,
podemos presenciar diversas falas dos alunos tratando sobre as experiências de seus pais
e avós no trabalho fabril, conseguindo fazer os tão preciosos “links” com a situação dos
trabalhadores relatados nos filmes.

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Durante a exibição dos filmes pelos alunos, podemos perceber que cada grupo
específico tocou em temas diferentes. O grupo que tratou de explanar sobre As
Sufragistas (2015), deixaram um pouco de lado a luta pelo sufrágio e o cotidiano de
trabalho do proletariado que são destrinchados durante o filme. Focaram suas falas
sobre a luta do movimento feminista. O que foi deveras positivo, pois se pararmos para
refletir, isso era totalmente esperado, já que atualmente a luta pelos direitos femininos
estão em ascensão e ganhando cada vez mais destaque na sociedade, desencadeando um
significado muito profundo para as alunas envolvidas na apresentação do filme.

Posteriormente, podemos perceber que os alunos que trataram do filme A Classe


Operária vai ao Paraíso (1971) debateram e focaram na luta sindical. Desatualizados
sobre o debate da participação dos sindicatos na política e na luta pelos direitos dos
trabalhadores, os discentes começaram a enxergar de outra forma os trabalhadores
sindicalizados. Deixando a todos muitos felizes, pois foi de consenso dos PIBIDianos
que a obra é bastante complexa, sendo o filme mais difícil de ser trabalhado pelo
alunado, contudo, a aula foi um sucesso e gerou uma ótima discussão sobre o tema em
sala.

Por fim, o grupo que apresentou a obra Oliver Twist (2005) sensibilizou-se com
as condições de trabalho dos operários, especialmente em relação as crianças. Sempre
destacando as injustiças e questionando os PIBIDianos como os jovens poderiam
crescer, estudar, desenvolver-se em meio aquele ambiente muitas vezes insalubre; além
de comparar a situação de Oliver e seus amigos com as nossas crianças de ruas.

Após tantas apresentações e debates ricos em problematizações políticas e


sociais, fica difícil conseguir compilar uma avaliação que consiga atingir todos os
objetivos da sequência didática. Entretanto, além da própria apresentação dos alunos, a
participação nos debates e a coerência nos cortes de cada filme, a equipe de PIBIDianos
resolver realizar uma ficha para cada filme que foi apresentado 9, resumindo os
principais conceitos de cada obra. Dividindo metade da nota com as apresentações e a
outra metade com a soma de todas as realizações das fichas.

Cinema e Currículo

9
Uma das fichas está em anexo.

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Para a discussão desse tópico, foi necessário a pesquisa e a leitura da Base


Nacional Curricular Comum (BNCC), tendo em vista a observação do Cinema como
componente do Currículo de História no Brasil. Contudo, com o objetivo de realizar
uma análise mais crítica e atual da temática em questão, o documento selecionado foi o
Projeto Preliminar, elaborado em 2016 pelo Ministério da Educação do Brasil10.

Estando contido no Projeto, o seguinte parágrafo:

“Para se pensar o ensino de História, é fundamental considerar a utilização de


diferentes fontes e tipos de documento (escritos, iconográficos, materiais,
imateriais) capazes de facilitar a compreensão da relação tempo e espaço e das
relações sociais que os geraram. Os registros e vestígios das mais diversas
naturezas (mobiliário, instrumentos de trabalho, música etc.)” (BNCC, 2016,
p. 348).

Apesar de não estar inserido o Cinema de forma explícita, podemos inferir que
dentre os diferentes tipos de documento, a Sétima Arte é um importante produto social a
ser trabalhado dentro da sala de aula. Como já foi explanado anteriormente, a obra
cinematográfica é História do Tempo Presente e ainda, consegue problematizar diversas
questões, a imaginação imagética e subjetiva dos estudantes.

Contudo, na leitura do Documento em questão, possibilita-nos dizer que não há


uma grande subjetivação da linguagem fílmica ou de qualquer outra. Todas as
ferramentas e narrativas possíveis são tratadas de forma superficiais e resumitivas,
demonstrando o caráter imediatista da Proposta Preliminar. O que é uma lástima, pois a
oportunidade de trabalhar com o Filme em sala de aula pode proporcionar ao aluno, não
somente uma educação significativa e diferenciada, mas pode despertar o interesse pelo
mundo cinematográfico, como também pode fazê-lo enxergar a educação de uma outra
forma. Já que,

"No geral, ao utilizar filmes, músicas, peças de teatro ou obras de arte como
pinturas e esculturas para tematizar, sensibilizar, argumentar ou discutir
questões previstas nos currículos, o que se pretende é ampliar o raio de visão
dos educandos e colocá-los em sintonia com outras linguagens." (MACHADO,
p. 03).

Ao presenciarmos a Sequência Didática, a utilização do Filme em sala de aula se


mostrou uma ferramenta poderosa que pode proporcionar uma forma de ensino
problematizadora, acendendo uma centelha de conhecimento e curiosidade nos
estudantes, se bem planejada, a ferramenta pode ser uma grande aliada para os

10
O projeto faz parte de um conjunto de mudanças que ocorrem no Sistema de Educação brasileiro, com
o intuito imediatista de dar uma resposta positiva a população de forma geral, após o doloroso processo
de impeachment no Brasil.

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professores de História no combate a normalidade do desinteresse dentro da vivência


escolar.

Mesmo assim, "Não há a pretensão ou a intenção de que a escola seja capaz de


apropriar-se desses conhecimentos e mobilizar-se em função do surgimento de
expoentes da música, do cinema, do teatro, da pintura, da dança"11. Pois, a escola não é
um ambiente profissionalizante, como muitos querem que seja, mas é um ambiente
libertador, detentor de um dos objetos mais difíceis da Educação: criar cidadãos críticos
e subversivos no campo do conhecimento e da vida.

Considerações Finais

Com a experiência vivida na Sequência Didática realizada dentro do ambiente


PIBIDiano, presenciamos uma série de pequenos acontecimentos que moldam a visão
de qualquer professor de História em formação sobre a Educação nas Escolas públicas
do Brasil. Ficando clara a necessidade do estudo e pesquisa dos Métodos e Técnicas de
Ensino para a melhor problematização dos professores ao trabalharem qualquer
conteúdo junto a outra linguagem específica.

Além disso, poderíamos explanar sobre os problemas estruturais da escola, não


sendo abordados no artigo, pois o tema central do texto é a discussão bibliográfica junto
ao relato de experiência. Contudo, ao executarmos nosso planejamento, conseguimos
enxergar uma série de elementos positivos em relação a utilização do Cinema nos
momentos de Ensino formais na Escola.

Já que, como já descrevemos, proporcionou debates enriquecedores tanto para os


alunos, como para os PIBIDianos, fazendo com que, possibilitasse o estudo da
Revolução Industrial a partir de uma outra ótica. Foi claro o interesse dos estudantes por
aquele tipo de aula, ficou evidente a carência de preparo nos planejamentos das aulas
dos professores, que sem tempo e atolados de aulas, acabam por reproduzir o
conhecimento presente no livro12.

Observando as fichas e os debates realizados em sala, saímos daquela


experiência muito felizes, porque apesar de não esgotarmos o conteúdo (o que não era a

11
Machado, p. 02.
12
Uma problemática vivenciada cotidianamente pelos profissionais da área de Ciências Humanas, pois
com poucas aulas por turma, é necessário o acúmulo de várias turmas para conseguir cumprir a carga
horária dentro da escola.

211
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pretensão), conseguimos presenciar um Ensino significativo. Perpassando a História


Local dos estudantes, a temática proposta e os conceitos que circundam a temática.

Referências:

DIAS, Rodrigo Francisco. Cinema e Ensino de História: Possibilidades e Limites.


Uberlândia: EDUFU - Editora da Universidade Federal de Uberlândia, 2009.

FREIRE, Paulo. Pedagogia da Autonomia: saberes necessários à prática educativa/


Paulo Freire. – São Paulo: Paz e Terra, 1996. (Coleção Leitura).

FREIRE, Paulo. Pedagogia do Oprimido, 17°. Ed. Rio de Janeiro. Paz e Terra. 1987.

LIBÂNEO, José C.. Psicologia Educacional - uma avaliação crítica. In: Silvia T. M.
Lane; Wanderley Codo. (Org.). Psicologia Social: O Homem em Movimento. São
Paulo: Brasiliense, 1984, v. , p. -.

LIBÂNEO, José Carlos. Educação escolar: políticas, estrutura e organização / José


Carlos Libâneo, João Ferreira de Oliveira, Mirza Seabra Toschi – 10. Ed. ver. E ampl. –
São Paulo: Cortez, 2012. – (Coleção docência em formação: saberes pedagógicos /
coordenação Selma Garrido Pimenta).

MACHADO, João Luís de Almeida. Cinema e Currículo: Caminhos e


Possibilidades. (http://www.planetaeducacao.com.br/portal/gepi/cinemaecurriculo.pdf)

SANTANA, Sayonara Rodrigues do Nascimento. O uso de fontes Históricas como


Recursos para o Ensino de História. Disponível em:
http://www.cesadufs.com.br/ORBI/public/uploadCatalago/11500822042015Fundament
os_de_Estagio_Supervisionado_II_Aula_8.pdf. Acessado em: 18 de maio de 2017

SEVCENKO, Nicolau. A corrida para o século XXI: no loop da montanha-russa./


Nicolau Sevcenko: coordenação Laura de Melo e Souza, Lilia Moritz Schwarcz. – São
Paulo: Companhia das Letras, 2001. – (Virando séculos; 7)

TEIXEIRA DA SILVA, F.C. Guerras e Cinema: um encontro no tempo presente.


Tempo, Rio de Janeiro, 2004. N°16, pp. 93-114.

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TOURINHO, M. A. C.; VIEIRA, Rosane. História e cinema na escola. Rumores (USP),


v. 10, p. 2, 2011.

VESENTINI, Carlos. “História e ensino: o tema do sistema de fábrica visto através


de filmes”. In: Circe Bittencourt (org.). O saber histórico na sala de aula. Coleção
Repensando o ensino. São Paulo: Editora Contexto, 1997.

OUTRAS REFERÊNCIAS:

https://www.portaleducacao.com.br/conteudo/artigos/educacao/analise-critica-do-filme-
/55215

http://espacosocialista.org/portal/2008/12/a-classe-operaria-vai-ao-paraiso/

https://omelete.uol.com.br/filmes/criticas/oliver-twist/?key=23951

BRASIL. Ministério da Educação. Base Nacional Comum Curricular. Proposta


preliminar. Segunda versão revista. Brasília: MEC, 2016. Disponível em:
<http://basenacionalcomum.mec. gov.br/documentos/bncc-2versao.revista.pdf>. Acesso
em: 23 mar. 2017.

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OS PROFESSORES DO ENSINO BÁSICO E O USO DE MEMES NAS AULAS


DE HISTÓRIA: UMA PESQUISA

Sílvio Ricardo Gouveia Cadena


Mestrando do PPGH-UFRPE
cadenaufrpe@gmail.com

Resumo
Diante profusão de saberes e o “descentramento” dos conhecimentos acadêmicos e
escolares diante de uma sociedade conectada, e levando-se em consideração a
compreensão dos memes como representações de uma memória ligada a história, com
os quais os alunos têm amplo acesso, o presente trabalho buscou averiguar junto aos
docentes do ensino básico a utilização ou não deste recurso em suas aulas de História.
Bem como as razões que os levaram a optar ou não por tais peças midiáticas. Assim,
nos valemos de um formulário digital com questões que nos auxiliassem compreender o
local de fala destes professores, como em que tipo de rede e nível de ensino atuam,
tempo de docência, idade, formação e gênero. Além disto, por meio de questão objetiva,
perguntamos se faziam uso dos memes, se gostariam de utilizá-los e se não utilizavam.
Por último lançamos uma questão dissertativa onde os docentes poderiam elencar as
razões ou não para a utilização dos memes. Como retorno, tivemos a participação de 69
professores de várias partes do país. Por meio das respostas obtidas, pudemos inferir
uma boa recepção dos docentes em relação o uso dos memes em suas aulas, sendo
significativo que 42% afirmaram utilizar e 23,2% disseram que gostariam de utilizá-los.

Palavras-chaves: Ensino de História; Memes; Materiais didáticos;

Introdução

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Para Martin-Barbero, estaríamos vivendo em um ecossistema informativo que se


caracteriza por uma descentralização dos saberes. Onde a escola, e de forma geral os
sistemas de educação formal, têm perdido o monopólio na produção de saberes. O que
acaba por pôr em cheque a velha hierarquia professor x aluno, bem como o saber
escolar e aquele experimentado fora dela.

“A escola deixou de ser o único lugar de legitimação do saber, pois existe


uma multiplicidade de saberes que circulam por outros canais, difusos e
descentralizados. Essa diversificação e difusão do saber, fora da escola, é um
dos desafios mais fortes que o mundo da comunicação apresenta ao sistema
educacional.” (MARTIN-BARBERO, 2000, p.55)

Paulo Freire (2003, p.85), apontava a necessidade de uma educação que levasse
em conta o conhecimento prévio dos discentes. Em seu olhar, a relação professor aluno
não poderia ser entendida como a doação daqueles que detém o saber, para aqueles que
nada sabem. O autor considera desta forma que os alunos são sujeitos ativos no
processo de aprendizagem e carregam consigo uma identidade, experiência de vida e
saberes que os fazem ler sua a realidade.

Partindo-se da perspectiva de Freire e levando-se em consideração que o


ciberespaço é um local de consumo e criação de saberes, é de nosso entendimento que
os professores conheçam este e local afim de verificarem que tipo de conteúdos
circulam neste espaço e de que forma contribuem para a construção de consciência
histórica de seus alunos. Sobretudo, os memes que mobilizam nosso passado trazendo
questões que podem ser debatidas em sala de aula. Não sendo casos isolados memes que
referenciam o período da ditadura militar iniciada em 1964 como algo positivo e que
poderiam “resolver” os nossos problemas contemporâneos. Um regime autoritário que
derramou sangue de vários opositores não pode ser naturalizado e visto como algo
desejável para o bem comum.

Figura 01: Meme Exaltação a Ditadura Militar de 1964

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Página do Facebook Eu era Direita e não sabia, 31 de março de 2017.

Além de memes de exaltação ao período militar, também é possível encontrar


memes com teor histórico que se utilizam do passado de maneira agressiva, se
“utilizando de humor” e metáforas, para depreciarem pessoas homoafetivas e novas
constituições familiares.

Figura 02: Meme Homofóbico

Página do Facebook Eu era Direita e não sabia, 10 jan 2017.

Segundo Bergman (1989/1990, p.36), pesquisador da Didática da História,


caberia a História, enquanto ciência, possibilitar o entendimento de situações mal
compreendidas do passado, a partir do momento em que revela o caráter antiquado de
determinadas condições de vida e apresenta por meio da razoabilidade e objetividade
outras condições sociais. Além disto, cabe ao historiador/professor estar presente no
debate acerca das discussões públicas sobre a História.

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Desta maneira, compreendemos que os memes que fazem referência a História


sejam tratados como fontes nas aulas e que por meio deles os docentes trabalhem de
forma a problematizá-los.

Os professores e os memes nas aulas de História

A fim de verificar se os memes são utilizados por docentes nas aulas de História
da Educação Básica, em específico as do Ensino Fundamental e Médio, realizamos um
formulário1 digital na plataforma Google Drive. Seu link foi compartilhado em grupos
de professores de História e de cursos superiores de diversas universidades no
Facebook. Além disto, divulgamos o link do formulário WhatsApp pessoais e em
grupos de interesse.

A primeira parte do formulário tinha como função identificar o docente2 e seu


local de fala a partir do preenchimento de campos como: nome, gênero, e-mail, cidade,
Tempo de atuação na docência, Rede de ensino (privada, pública, ambas), Nível da
Educação básica em que atua e Área de formação. Já a segunda, perguntava sobre
como costumam usar memes nas aulas de história e por qual razão o fazem ou não,
sendo a última do tipo de resposta dissertativa.

Vale ressaltar que os resultados obtidos a partir desta pesquisa possuem valor
qualitativo e indicativo, não possuindo significância estatística, haja vista que o número
de entrevistados nos impossibilitaria possuir a representatividade numérica dos
professores de História em todo país. Mas, de qualquer modo, este levantamento nos
auxilia empiricamente em nossas análises e reflexões.

O formulário recebeu respostas a partir de 28 de junho de 2017 a 14 de julho do


mesmo ano, obtendo um total de 69 retornos de docentes de 10 estados mais um do
Distrito Federal e participação de 28 municípios. Como podemos verificar no quadro a
seguir:

Quadro 01 – Dos professores participantes em relação ao Estado e Município em porcentagem

1
O formulário com suas respostas podem ser acessados em:
https://drive.google.com/drive/folders/0B7MdIUOUoKicSFJKX0ZhNlA0a1U?usp=sharing
2
Ressaltamos que por garantir o anonimato aos pesquisados no ato de preenchimento do questionário,
omitiremos nomes e e-mails nas respostas encontradas.

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Estado Número de Porcentagem total


Municípios
respostas por Estados
Recife 43,5%
Olinda 10,1%
Paulista 2,8%
Jaboatão 1,4%
Camaragibe 1,4%
Pernambuco 1,4% 66,2%
Moreno
Bom Jardim 1,4%
Cabo de Santo 1,4%
Agostinho
Caruaru 1,4%
Petrolina 1,4%
Rio de Janeiro 4,3%
Maricá 1,4%

Rio de Janeiro Itaboraí 2,8% 11,3%


Duque de Caxias 1,4%
Petrópolis 1,4%
Salvador 1,4%
Euclides da Cunha 1,4% 4,2%
Bahia
Vitória da 1,4%
Conquista
São Paulo São Paulo 4,3% 4,3%
Paraná Curitiba 1,4% 1,4%
Rio Grande do Sul Erechim 1,4% 1,4%
Santa Catarina Massaranduba 1,4%
2,8%
Imbituba 1,4%
Maranhão São Luís 1,4% 1,4%
Serra 1,4%
Espírito Santo 2,8%
Cariacica 1,4%
Sergipe Aracaju 1,4% 1,4%
Distrito Federal Brasília 1,4% 1,4%
Total de
Município: 28

Como é possível aferir, a maior parte das respostas vieram do estado de


Pernambuco, local de onde partiu a pesquisa. Mas conseguiu atingir docentes de
variados e Estados e Municípios, inclusive alguns fora das regiões metropolitanas, como
Euclídes da Cunha e Vitória da Conquista, na Bahia, por exemplo. Quanto a relação

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local e utilização dos memes nas aulas, não foi possível estabelecer qualquer análise,
pois em alguns Estados tivemos apenas um respondente.

A partir da questão objetiva, “Você usou ou costuma usar memes em suas


aulas?”, formulamos três respostas possíveis; “sim”, “não” e “Gostaria de utilizar, mas
não disponho de materiais para reproduzi-los”. A última fora criada levando-se em
consideração que alguns docentes poderiam não ter acesso a equipamentos onde os
memes pudessem ser apresentados. Nesta questão só era possível marcar uma única
alternativa.

Figura 03: Resultado geral sobre o uso de memes nas aulas

Disponível em:
<https://drive.google.com/drive/folders/0B7MdIUOUoKicSFJKX0ZhNlA0a1U?usp=sharing> Acessado
em: 05 out 2017

Pela imagem apresentada é possível verificar que a maior parte dos que
responderam nosso formulário utiliza os memes em suas aulas de História. E caso
somemos ao percentual daqueles que gostariam de utilizar, podemos inferir a boa
receptividade que tais peças possuem por parte dos docentes. Todavia, vale lembrar que
a pesquisa fora realizada em espaço digital, o que de alguma forma pode beneficiar a
positiva visão a respeito dos memes. Por outro lado, pouco mais de um terço dos
professores afirmaram não utilizá-los. Acreditamos que mais a frente quando trataremos
das respostas dissertativas acerca das razões do uso ou não dos memes nas aulas de
história, poderão evidenciar-se qualitativamente as motivações dos docentes.
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Com a intenção de verificar se usos dos memes nas aulas de História poderiam
estar relacionados a algumas variantes, achamos pertinente estabelecer recortes em
nossa amostragem. Desta maneira levamos em consideração as seguintes variantes:
gênero, área de formação, nível de Educação básica de ensino (Fundamental e Médio)
em que atua, Rede particular ou privada, faixa etária do participante e tempo de atuação
como professor.

Seria o gênero capaz de ser um fator de interferência no uso dos memes nas
aulas de História? Neste sentido, optamos por verificar os números a partir deste
recorte.

Quadro 02 – Relação entre gênero e o uso de memes nas aulas de História em porcentagem

Gênero Porcentagem Porcentagem Porcentagem Porcentagem


dos daqueles que daqueles que daqueles que
participantes não costumam Gostariam de utilizam
em relação ao utilizar memes utilizar memes memes
Gênero em relação ao em relação ao em relação ao
gênero gênero gênero
Agênero 1,4% 100% - -
Feminino 36,2% 32% 24% 44%

Masculino 60,9% 33,33% 23,82% 42,85%

Pangênero 1,4% 100% - -

Bigênero

Os números apresentados no quadro 02 demonstram haver um grande equilíbrio


no uso ou não dos memes. Sendo numericamente muito próximo o percentual em para
cada uma das alternativas apresentadas. Entretanto, é verificável uma ligeira tendência
do gênero feminino em utilizar os memes, como também na alternativa que “gostariam
de utilizar”.

É de conhecimento comum que muitos docentes são levados a darem aulas em


matérias distintas daquelas ao qual foram formados, o que infelizmente acaba por
acarretar alguns problemas. Um deles estaria na falta de conhecimento das
especificidades que cada área do conhecimento carrega consigo e sua relação com a
ciência de origem. Salientamos que ao expor tal problemática, não é nossa intenção
afirmar que tais profissionais seriam de qualidade duvidosa, pois assim agiríamos de
forma generalizante e nivelaríamos por baixo a capacidade de aprendizado por meio da
experiência. Entretanto, a partir desta realidade experimentada pelas escolas brasileiras,
achamos pertinente que nesta pesquisa professores de formações distintas da de História
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respondessem ao formulário, haja vista atuarem profissionalmente como professores da


matéria. Desta maneira, buscamos verificar a área de formação dos professores.

Quadro 03 – Relação entre área de formação e o uso de memes nas aulas de História em porcentagem

Área de Porcentagem Porcentagem Porcentagem Porcentagem


formação dos daqueles que daqueles que daqueles que
participantes não costumam Gostariam de utilizam
em relação a utilizar memes utilizar memes memes
área de em relação a em relação a em relação a
formação área de área de área de
formação formação formação
Licenciatura 94,2% 32,3% 24,62% 43,08%
em História
Licenciatura 1,4% - - 100%
em Filosofia
Licenciatura 2,8% 100% - -
em Geografia
Mestrado em 1,4% 100% - -
História

Como podemos verificar, a maior parte dos professores participantes tem sua
formação em História, a outra área de formação que aparece em seguida, mesmo que em
número bem inferior, está a Geografia. Apesar do pouco número alcançado em relação
ao universo dos professores que dão aulas de História na educação básica, a relação
entre as disciplinas, além de sua proximidade no campo das ciências humanas, apontam
também para uma permanência histórica. Durante o período militar foram criados
cursos de curta duração em que habilitavam docentes ao exercício destas duas
disciplinas, como aponta Melo et al:

Paralelamente à reforma na Escola, a reforma educacional atingiu também


formação de professores. Isso ampliou a ofertas de cursos de Licenciatura
Curta: de dois anos de faculdade, período noturno. Desta forma foi
possível formar um professor bi-disciplinar de Geografia e História em
menos de 24 meses. Até hoje se vive resquícios desta época. Professores com
dificuldades de identificar a diferença entre as duas ciências. Muitos deles
nem acreditam que elas sejam diferentes.(MELO, VLACH, SAMPAIO,
2006, p. 2688)

É possível inferir que os números apontados neste quadro, sobretudo aos


professores com formação em História, não se distinguem daqueles apresentados como
resultado geral. Mas, vale sublinhar que os números apontam, mesmo que levemente,
pra uma aceitação dos memes nas aulas de História por aqueles com esta formação em
comparação com as respostas gerais.

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A partir da questão acerca do nível da educação básica no qual o docente atua,


temos a pretensão de verificar se a utilização do meme ocorre em maior número em um
determinado nível da Educação Básica.

Quadro 04 – Relação Nível de Educação básica de ensino e o uso de memes nas aulas de História em
porcentagem

Tipo de Nível de Porcentagem Porcentagem Porcentagem Porcentagem


ensino dos daqueles que daqueles que daqueles que
participantes não costumam Gostariam de utilizam memes
em relação ao utilizar memes utilizar memes por nível de
nível de ensino por nível de por nível de ensino da
da Educação ensino da ensino da Educação Básica
Básica Educação Educação
Básica Básica
Ensino
Fundamental 34,78% 41,65% 20,85% 37,50%
(do 6º ao 9º ano)
Ensino Médio
(1º ao 3º ano) 23,19% 25% 31,28% 43,72%

Ambas os
níveis 42,03% 34,48% 20,7% 44,82%

Por meio dos números registrados, confirmamos nossa suspeita de que o uso do
meme se daria, em maior parte no Ensino Médio. Pois se considerando a faixa-etária
dos discentes, estes possuiriam maior familiaridade com as redes sociais e, desta forma,
com os memes. Tal fato pode ser evidenciado por uma das respostas a pergunta por qual
razão usam ou não os memes: “Não uso porque não acho apropriado para o ensino
fundamental, talvez no ensino médio funcione”3.

Os professores que dão aulas apenas no ensino fundamental são os que menos se
utilizam dos memes, segundo nossos dados. Sobre as respostas dos docentes que atuam
em ambos os níveis, maior parte dos respondentes, com 42,03%, também é possível a
receptividade para com tais peças midiáticas. Onde 44,82% afirmam fazer uso.

A foco central em procurar saber em que tipo de rede atua o professor partiu de
algumas questões. A primeira delas em relação a possibilidade de que as escolas da rede
privada, que apesar de contar com maior infraestrutura, poderiam vetar a utilização dos
memes em sala de aula, por acharem inadequados. A segunda está na possível falta de

3
Tal afirmação se encontra disponível em:
<https://drive.google.com/drive/folders/0B7MdIUOUoKicSFJKX0ZhNlA0a1U?usp=sharing>. Acesso
em 05 out 2017. p.08

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recursos para que os memes possam ser expostos nas escolas da rede pública, como
aponta algumas das respostas sobre por quais razões utilizam ou não os memes em suas
aulas: “A escola não disponibiliza recursos Para isso”, “Não utilizo, pois a escola é
repleta de problemas estruturais. Não temos materiais com acesso fácil e a
reprodução/exibição ou problematização a partir de um meme faria eu perder muito
tempo”, ou ainda, “Os equipamentos multimídia e data show da unidade de ensino que
não foram furtados encontram-se quebrados”.

Quadro 05 – Relação tipo de rede de ensino e o uso de memes nas aulas de História em porcentagem

Tipo de rede de Porcentagem Porcentagem Porcentagem Porcentagem


ensino dos daqueles que daqueles que daqueles que
participantes não costumam Gostariam de utilizam
em relação ao utilizar memes utilizar memes memes
tipo de rede de por rede de por rede de por rede de
ensino ensino ensino ensino
Rede Pública 47,8% 30,3% 27,28% 42,41%
Rede Privada 40,6% 35,70% 21,42% 42,85%
Ambas as
redes 11,6% 50% 12,5 37,5%

A maior parte dos que responderam o formulário digital atuam na rede pública
de ensino e, apesar dos problemas de ordem estrutural que esperávamos contar, tais
respondentes, em sua maioria, sinalizaram utilizar estas peças digitais e em uma
margem muito próxima daqueles que trabalham na rede privada.

Todavia, o que nos chama atenção nos números, está no fato dos profissionais
que atuam em ambas as redes serem os que menos utilizam os memes. Talvez possamos
inferir que por trabalharem em mais de um local, reste menos tempo para a coleta de
memes e preparar suas aulas a partir deles.

O ponto que nos levou a questionar a faixa etária ao qual o professor pertencia
foi buscar verificar se existiria alguma relação entre a idade do professor e o uso dos
memes. A idade afetaria a receptividade deles frente a este produto digital?

Quadro 06 – Relação faixa etária e o uso de memes nas aulas de História em porcentagem

Faixa etária dos Porcentagem Porcentagem Porcentagem Porcentagem


participantes dos daqueles que daqueles que daqueles que
participantes não costumam Gostariam de utilizam
em relação a utilizar memes utilizar memes memes
faixa etária por faixa por faixa por faixa
etária etária etária

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18-21 7,2% - - 100%

22 -25 18,8% 38,5% 15,37% 46,13%

26-29 17,4% 33,31% 25% 41,69%

30-33 20,3% 28,55% 14,32% 57,17%

34-37 17,4% 33.31% 41,69% 25%

38-41 4,3% 66,5% 33,5% -

42-45 10,1% 42,9% 28,5% 28,5%

46-49 1,4% 100% - -


50-53 1,4% 100% - -

54-57 - - - -

58-61 1,4% - 100% -

62-65 - - - -

66 ou mais - - -

Apesar de uma grande difusão de números, podemos verificar que o fator idade
interfere na opção do docente por utilizar ou não o meme. Por meio do quadro podemos
concluir que quanto mais jovem o docente, maior a possibilidade de utilização. Mas
também vale atentar que uma significativa parte dos professores que responderam ao
nosso formulário on-line, são em maior parte, aqueles de menor faixa etária.
Acreditamos que um dos motivos que possam explicar esta situação reside no fato de
que a baixa idade propicia uma facilidade maior com artefatos tecnológicos, pois seriam
contemporâneos aos seus surgimentos e desenvolvimentos. Além disto também
explicaria o fato de significativa parcela dos respondentes serem mais novos, sendo este
público grande frequentador das redes sociais como o Facebook. Assim, podemos dizer
que a familiaridade com a tecnologia seria um agente facilitador para que o meme
viesse a ser visto como um instrumento didático para as aulas de história.

Consideramos importante submeter os números obtidos a um recorte que levasse


em consideração o tempo de atuação do docente. A ideia consiste em averiguar se este
tempo dando aulas poderia afetar de alguma maneira na opção ou não do meme nas
aulas de História.

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Quadro 07 – Relação tempo de atuação na docência e o uso de memes nas aulas de História em
porcentagem

Tempo de Porcentagem Porcentagem Porcentagem Porcentagem


atuação na dos daqueles que daqueles que daqueles que
docência participantes não costumam Gostariam de utilizam
Em relação ao utilizar memes utilizar memes memes
tempo de por tempo de por tempo de por tempo de
docência docência docência docência
1 a 2 anos 26,1% 27,8% 22,2% 50%

3 a 4 anos 11,6% 25,05% 0% 74,95%

5 a 6 anos 10,1% 57,2% 28,6% 14,2%

7 a 8 anos 13% 33,29% 11,21% 55,5%

9 a 10 anos 10,1% 57,2% 28,6% 14,2%


11 a 12 anos 7,2% 0% 60% 40%
13 a 14 anos 5,8% 50% 0% 50%
15 a 16 anos 4,3% 33,5 0% 66,5%
17 a 18 anos 1,4% 100% 0% 0%
19 a 20 anos 4,3% 0% 100% 0%
Mais de 21 5,8% 50% 25% 25%
anos

Algo que merece ser destacado ao ver o quadro é que a maior parte daqueles que
participaram da pesquisa atuam na docência de 1 a 12 anos. Outro ponto de relevo
consiste numa quebra de estigma em ralação que quanto mais tempo se é professor,
menos estaria aberto a “novidades”. Como exemplo podemos citar aqueles com 5 a 6
anos de experiência. Este grupo, assim como os de 10 a 9 anos, foram os que mais
afirmaram não utilizar os memes. Já o grupo que afirma mais utilizá-los possuem de 3 a
4 anos de experiência. Diante do exposto, podemos afirmar que existe apenas uma
tendência entre os com menos tempo de atuação a adotarem os memes.

Conclusão

Ao buscarmos verificar as motivações que possibilitariam o uso ou não destas


peças digitais, deixamos um campo em aberto para que os professores pudessem
preencher. As respostas não apresentam apenas motivações, em alguns casos também é
possível verificar a forma como o usam e bem como os percebem.

Diante de 69 respostas e de forma a melhor sistematizá-las e sintetizá-las,


partiremos de dois pressupostos, a partir justamente das alternativas contidas na

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pergunta objetiva. A saber, os motivos pelo qual não usam e as razões que o fariam a vir
a utilizá-los.

O meme, por ser uma produção midiática em grande abundância e por parecer
algo trivial e efêmero, pode ter contribuído para respostas de docentes que afirmaram
nunca terem pensado tais peças como ferramentas didáticas para suas aulas. Isto pode
ser verificado em afirmativas como “nunca pensei nisso” ou, “Não tenho hábito de
assistir memes por isso que não tinha pensado na sua possível utilização como recurso
didático” e “Ainda não tinha identificado o potencial que uso de memes pode trazer na
prática da docência”. Outro fator “impeditivo” para alguns, estaria no fato de já se
utilizarem de outros recursos didáticos, não havendo necessidade de se utilizarem do
meme. Todavia, compreendemos que o meme, apesar de objeto deste trabalho, não pode
ser compreendido como a exclusiva forma de tratar dos assuntos ligados aos conteúdos
da matéria escolar.

Também, no formulário on-line, foi comum verificarmos declarações que


mostram total desinteresse em levá-los para as salas de aula; “Acho desnecessário”,
“Não vejo necessidade”. Além disto, como já falamos antes, por ser algo corriqueiro e
muitas vezes dotados de tom jocoso, produzidos por um saber não acadêmico, acabam
por serem percebidos com certa desconfiança. Alguns professores consultados
declararam que tais peças poderiam desestabilizar o comportamento da turma, haja vista
o humor que podem possuir. Evidentes nas seguintes falas: “Não utilizo por medo de
não saber usar e acabar perdendo o controle da sala por brincadeiras dxs alunxs vindo
dos memes”, “Não veio relevância como recurso didático” ou ainda, “Não vejo uma
forma útil de apresentar o conteúdo dessa maneira, devemos separar brincadeira de
coisa seria, ainda mais em se tratando de crianças e adolescentes”. Ademais, também
sublinharam a falta de estudos a respeito da aplicabilidade do meme em sala de aula.
““É um assunto complexo.. que precisa de mais estudos como este pra fazer diferença
positiva na sala de aula”. “ainda é um recurso que precisa ser melhor explorado, a
leitura dessas produções atuais em redes sociais requerem do professor aprofundamento
temático”. Estas razões alegadas, de certa forma encontram respaldo na ausência de
produções acadêmicas que relacionem História a práticas pedagógicas. Assim, de certa
maneira, este trabalho carrega a possibilidade de evidenciar o meme como ferramenta
para o ensino de História, principalmente, a partir do momento que os concebe como
fontes.

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Como esperávamos, os memes por necessitarem de questões estruturais para sua


reprodução em sala de aula foi apontado por alguns docentes do ensino básico. A “falta
de material” ou “Falta de recurso” foram expressos. Tendo em vista que a jornada
experimentada por muitos professores do país exigem demandas que vão além do “dar
aula”, a questão do tempo se mostrou como razão para a não utilização em alguns casos,
como podemos observar nas seguintes afirmativas: “Apesar do livro didático ser
transversal, o pouco tempo que tenho para dar as aulas faz com que eu precise correr
contra o tempo. O uso de datashow requer a montagem do equipamento que ocupa
tempo” e em “Tempo corrido com muitos afazeres, fica um pouco complicado em
disponibilizar tempo procurando os memes, mas adoraria utilizar.”

Embora fatores como tempo e falta de estrutura da escola apareçam como


motivos para não utilização, um dos respondentes chegou a afirmar que, “Quando faço
uso de memes tenho que tirar cópias, pois as escolas só disponibilizam cópias para
avaliações”. A busca por levar os memes para as aulas, mesmo que os deslocando do
espaço digital e colocando-os no papel, demonstra que de alguma maneira os memes
podem ser ferramentas importantes para as aulas. A receptividade dos docentes em
relação ao uso de tais peças já fora apontada anteriormente quando apresentamos a
figura 06, com o gráfico. Mas, neste momento, pretendemos elencar algumas respostas
que nos possibilite verificar além das motivações, as formas como eles possam ser
trabalhados em ambiente escolar.

A questão da linguagem e a familiaridade com a qual os estudantes recebem ao


memes nas aulas de história foram indicadas varias vezes pelos professores. Como
exemplos temos as seguintes afirmações: “Eu uso memes em sala de aula para facilitar
explicações sobre determinados assuntos e para deixar atividades e provas menos
‘frias’”, “Pela facilidade de compreensão dessa linguagem pelos estudantes, pela
proximidade com a vida dos alunos e pela relação que existe entre os memes e a cultura
digital” e “É uma linguagem a que os alunos já estão acostumados, e conseguem assim
melhores relações dos conteúdos de história com imagens/frases que visualizam
diariamente, facilitando assim o aprendizado.”

Certamente que o fator linguagem dos memes e sua familiaridade carregam uma
inegável atratividade. Mas, em nosso entendimento, a proposição de utilização está além
da atração, algo que parece ser compartilhado por alguns professores quando
observamos suas respostas. “A utilização de memes nas salas de aula ajudam os alunos
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a compreenderem os temas estudados de forma descontraída e efetiva, ligando o


conhecimento histórico ao casual dos alunos”, “Uso memes porque é uma linguagem
atual e faz a aula ficar mais interessante. São questões do tempo presente com uma
pegada de tempos passados” e ainda, “É uma forma de integrar mais o aluno nas aulas,
trazer os assuntos pros dias atuais e para a realidade deles ajuda muito”.

Pelo que podemos ver nas falas acima referenciadas, tais docentes não negam a
atratividade dos memes enquanto linguagem contemporânea. Mas acabam por mostrar
que é possível estabelecer relações entre tais peças, mesmo que possam falar do
passado, com as vivência dos alunos. Este “linkar” temporalidades distintas e, muitas
vezes “distantes” temporalmente, com a vida prática enriquecem as aulas de história e
tornam o conhecimento histórico pertinente. Leva-se em consideração também que a
forma pelo qual o tempo é atribuído, como se constitui a consciência histórica,
considerando-se outros espaços do saber e os colocando como fonte de estudo para a
construção do conhecimento escolar.

Referências

BERGMAN, Klaus. História na Reflexão Didática. In Revista Brasileira de História.


São Paulo, num 19, vol 09, set.1989/fev. 1990.

EU ERA DIREITA E NÃO SABIA. Meme Exaltação a Ditadura Militar de 1964. 31


mar 2017. Disponível em:
<https://www.facebook.com/eueradireitaenaosabia/photos/a.446387198893634.107374
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__________. Meme Homofóbico. 10 jan 2017. Disponível em:


<https://www.facebook.com/eueradireitaenaosabia/photos/a.446387198893634.107374
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2017

FREIRE, Paulo. Educação e atualidade brasileira. 3. ed. São Paulo: Cortez. 2003

MARTIN-BARBERO, J. Desafios culturais da comunicação à educação. In: A


Comunicação & Educação. São Paulo, 18, 51 a 6 1, maio/ago. 2000.

MELLO, Adriany de Ávila, VLACH, Vânia Rúbia Farias, SAMPAIO, Antônio Carlos
Freire. História da Geografia Escolar Brasileira: continuando a discussão, In:
Congresso Luso-Brasileiro da História da Educação, IV, 2006 Uberlândia, Anais,
abr. 2006. p.2683- 2694.

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ISBN: 978-85-415-0980-0

SIMPÓSIO TEMÁTICO 05
HISTÓRIA CULTURAL: UM DIÁLOGO
ENTRE CAMPOS

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HISTÓRIA E IMPRENSA: UM DIÁLOGO COM O IMPRESSO


JORNALÍSTICO NA CONSTRUÇÃO DO CONHECIMENTO HISTÓRICO
Simone Bezerril Guedes Cardozo
Doutoranda – UFPE
E-mail: simone.bezerrill@gmail.com

As diversas pesquisas historiográficas que têm privilegiado os jornais como principais


fontes ou objetos de investigação demonstram a relevância desse tipo de documento
para a análise de um conjunto de problemáticas de cunho sociocultural e político,
inclusive para o alargamento do universo das temáticas. Trata-se de um campo que
muito tem a contribuir com os estudos históricos, pois a imprensa, tomada em seu
conjunto, não apenas registra os acontecimentos ocorridos numa dada sociedade, vai
além, interage ativamente no processo de configuração sociopolítico. Entretanto, antes
de privilegiar um jornal como objeto de estudo, é preciso saber analisá-lo, ou seja, é
essencial ao pesquisador saber ler este tipo de documento. A historiadora Tania Regina
de Luca (2005) já alertava para a importância de se estar atento aos aspectos que
norteiam a materialidade dos impressos, o tipo do suporte, a estruturação e
hierarquização das matérias, bem como a seleção dos temas e a construção dos
enunciados, que nada têm de natural. Desse modo, este artigo apresenta algumas
reflexões consideradas fundamentais ao se trabalhar com impressos jornalísticos, tendo
como objeto de análise o jornal católico A Imprensa, fundado em 1987, na Paraíba.

Palavras-chave: História – Imprensa - Metodologia

Há mais de duzentos anos, quando a família real portuguesa atravessou o


Atlântico em direção ao Novo Mundo e trouxe consigo um aparato tecnológico de
impressão1, deram-se os primeiros passos que, sem dúvida, mudariam a história da
imprensa em terras lusitanas nas Américas. Tal fato culminou na instalação, em 1808,
de uma casa de impressão, a Tipografia Régia, que, por sua vez, criou condições
técnicas para o surgimento do primeiro jornal impresso em solo brasileiro, o Gazeta do
Rio de Janeiro2.

1
O pesquisador Matias Molina assim descreve o equipamento trazido para o Brasil: “A imprensa
brasileira começou bem equipada. A frota que trouxe o príncipe regente d. João e a Corte portuguesa ao
Rio de Janeiro transportou também várias caixas de tipos e dois prelos Sthanhope” (MOLINA, 2015, p.
432). O autor ressalta que se tratava de prelos comprados em Londres, desenvolvidos em 1800 e
considerados os mais modernos da época. Ver: MOLINA, M. Matías. História dos jornais no Brasil: Da
era colonial à regência (1500-1840). Vol. 1. São Paulo: Companhia das Letras, 2015.
2
Fundado em 10 de setembro de 1808, Gazeta do Rio de Janeiro não é considerado o primeiro jornal
brasileiro. Tal título caberia ao jornal fundado três meses antes por Hipólito da Costa, o Correio
Brasiliense, e impresso em Londres. Entretanto, como ressaltam Marco Morel e Mariana Monteiro de
Barros, o Correio Brasiliense não foi o primeiro jornal brasileiro impresso na Europa a ser lido
regularmente no Brasil. Destacam que havia jornais desse tipo, produzidos fora do território brasileiro e

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Mais do que a produção de um periódico, a tipografia oficial, implantada por


decreto, contribuiu para o alargamento da circulação dos impressos por aqui, embora
sua criação não significasse que as atividades de impressão no Brasil estivessem
permitidas,3 pois, como aponta Márcia Abreu (2010), caberia à referida casa impressora
a exclusividade para a publicação de documentos, papéis e livros.4
Diante desse cenário, dá-se início à configuração de uma imprensa que desde os
primórdios está intrinsecamente relacionada à história do Brasil, evidência esta
sublinhada pelos pesquisadores Marco Morel e Mariana Monteiro de Barros ao
afirmarem que “o surgimento da imprensa no Brasil acompanha e vincula-se a
transformações nos espaços públicos, à modernização política e cultural de instituições,
ao processo de independência e de construção do Estado nacional” (MOREL;
BARROS, 2003, p. 7).
A hipótese de que a nação brasileira nasce e cresce com a imprensa, que uma
explica a outra e que ambas amadurecem juntas ao longo do tempo também foi
defendida pelas historiadoras Ana Luiza Martins e Tania Regina de Luca, no livro
História da imprensa no Brasil, publicado em 2008, ano de comemoração pelo
bicentenário da chegada de Dom João e sua Corte e da implantação da imprensa no Rio
de Janeiro. Nesta direção, as autoras consideram que “a imprensa é, ao mesmo tempo,
objeto e sujeito da história brasileira, [...] um veículo para a reconstrução do passado”
(MARTINS, LUCA, 2008, p. 8).
Sim, o periódico jornalístico se constitui não apenas em uma importante fonte de
pesquisa para o historiador, por retratar o meio sociocultural e político no qual está
inserido, mas como um relevante objeto de estudo para o campo da historiografia, pois
sua inserção na sociedade não se dá só pela representação dos acontecimentos que nela
se verificam, mas, principalmente, pela dinâmica que imprime na configuração desses

lidos por aqui, desde o século XVIII. Entretanto, reconhece que o periódico de Hipólito da Costa teria
inaugurado a prática do debate e da divergência política no contexto do Absolutismo, criando um espaço
público de crítica. Ver: MOREL, Marco; BARROS, Mariana Monteiro. Palavra, imagem e poder: o
surgimento da imprensa no Brasil do século XIX. Rio de Janeiro: DP&A, 2003.
3
De acordo com os apontamentos de Matías Molina (2015), o desenvolvimento tardio da imprensa no
Brasil se deu mais em virtude de condicionantes internos, como alta taxa de analfabetismo e grande
extensão territorial sem ligação, por exemplo, pois, segundo ele, não havia uma lei interna que proibisse
expressamente a publicação de periódicos. Ver: MOLINA, M. Matías. História dos jornais no Brasil: Da
era colonial à regência (1500-1840). Vol. 1. São Paulo: Companhia das Letras, 2015.
4
De acordo com Márcia Abreu, no Rio de Janeiro, a impressão Régia permaneceu como sendo a única
tipografia com autorização para funcionar. Entretanto, ainda segundo a autora, em 1811, foi autorizada a
Manuel Antônio da Silva Serva a instalação de uma tipografia em Salvador. Ver: ABREU, Márcia.
Duzentos anos: os primeiros livros brasileiros. In: BRAGANÇA, Aníbal; ABREU, Márcia (orgs.).
Impresso no Brasil: dois séculos de livros brasileiros. São Paulo: Unesp, 2010.

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próprios fatos. Esse entendimento, que considera os jornais como fontes e objetos
potenciais e imprescindíveis para o estudo de diversas temáticas, só começaria a vigorar
a partir da década de 1970, como assevera Tania Regina de Luca (2005), e dependeu
das transformações do conhecimento histórico, de sua aproximação com outras áreas, e
das mudanças ocorridas no universo social.5
Nesta direção, muitos trabalhos importantes já foram realizados no Brasil a
partir do mergulho de historiadores no universo impresso das notícias, em diferentes
épocas e lugares.6 Contudo, ainda há muito para ser feito para alocar a imprensa para o
lugar de destaque que ela tem na história política nacional. Desse modo, este artigo tem
como objetivo examinar um dos impressos jornalísticos selecionados para pesquisa de
doutorado7 que desenvolvo acerca da recepção do regime republicano nas páginas dos
jornais paraibanos nas duas primeiras décadas da República no Brasil (1889-1910).
Nessa dinâmica, percebe-se aquilo que Pierre Nora (1995) já havia evidenciado
na década de 1970: que a existência do acontecimento está diretamente ligada aos meios
de comunicação. Diante desta afirmativa, é preciso não esquecer, porém, o que alertou o
historiador François Dosse, ao referir que o acontecimento é uma construção midiática e
“depende da hierarquização de importância que decidirá levá-lo ou não à praça pública”
(DOSSE, 2013, p. 337). Desse modo, tem-se um estudo que compreende os jornais
como objetos e fontes primordiais para a pesquisa histórica. Ou melhor, trata-se de um
objeto que se apresenta como um produtor de significado, que detém um poder
simbólico pelo fato de ser capaz tanto de agendar temas que se inserem no debate social
como de construir representações da e para a própria sociedade.
Como se trata da abordagem de uma problemática ainda em processo de
construção, voltada para uma tese de doutorado em andamento, como já mencionado,
serão analisados, neste artigo, apenas aspectos de um dos jornais selecionados para a
pesquisa, o periódico religioso A Imprensa, um dos mais longevos que circulou na
Paraíba.
Dessa maneira, antes de privilegiar um jornal como objeto de estudo, é preciso
buscar aprender como se deve analisá-lo, ou seja, é essencial ao pesquisador saber ler
5
Os jornais eram considerados fontes duvidosas, concepção herdada da corrente historiográfica
positivista, ou metódica, que atribuía aos jornais um caráter subjetivo e parcial. Defendia a objetividade
do conhecimento histórico, e por tal razão dava primazia aos documentos oficiais.
6
A historiadora Isabel Lustosa, por exemplo, desenvolveu um relevante trabalho sobre a militância
jornalística que se deu às vésperas da Independência do Brasil, no livro Insultos Impressos: a guerra dos
jornalistas na Independência (1821-1823), publicado no ano 2000 pela Companhia das Letras.
7
Pesquisa vinculada ao Programa de Pós-Graduação em História da Universidade Federal de
Pernambuco, sob a orientação do professor doutor Flávio Weinstein Teixeira.

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este tipo de documento. De Luca (2005) já alertava para a importância de se estar


atento aos aspectos que norteiam a materialidade dos impressos, o tipo do suporte, a
estruturação e hierarquização das matérias, bem como a seleção dos temas e a
construção dos enunciados, que nada têm de natural. Sem dúvidas, do nível de atenção
conferido ao que é produzido por e num determinado periódico, e ao que está em volta
dele, irá depender o êxito da narrativa histórica que se pretende elaborar.
Partindo de tal entendimento, tem-se aqui um jornal, produzido pela Igreja
Católica, denominado A imprensa, que se definia em seu subtítulo “Orgam
Hebdomadário, noticioso e religioso”, cujo acervo está localizado no Arquivo da Cúria8,
que fica no Mosteiro de São Francisco, em João Pessoa. Os exemplares referentes à fase
inicial não estão disponíveis ao público devido ao péssimo estado de conservação no
qual se encontram, contudo é possível ter acesso a alguns deles em formato digital por
meio do projeto “Jornais e Folhetins Literários da Paraíba no século 19”9.
Fundado em 1897, pelo então arcebispo da Paraíba, Dom Adaucto Aurélio de
Miranda Henriques, A Imprensa é compreendido como um impresso que, segundo os
apontamentos de Fátima de Araújo (1986), gozou de prestígio perante a opinião pública.
Por outro lado, teve suas atividades interrompidas diversas vezes, talvez por razões
financeiras, problemática que atingia a maioria dos periódicos do século XIX, ou, como
aponta a mesma pesquisadora, pelas pressões políticas que sofria.
Assim, A imprensa circulou de 1897 a 1968, com interrupções mais acentuadas
em alguns momentos, culminando na concentração de suas atividades em três fases:
1897-1903; 1912-1943; 1946-1968. Para o presente artigo, será levada em consideração
a primeira fase de circulação do referido jornal, periodicidade que se encaixa na
delimitação temporal estabelecida para a pesquisa da tese já mencionada. Dessa
maneira, serão elencadas algumas características gerais desse periódico naquele
momento, visando compreender como estava estruturado e organizado.
Com formato 47 x 33 (largura x altura), A Imprensa circulava semanalmente
pelo estado, sempre aos domingos, e se apresentava aos seus leitores por meio de quatro
folhas escritas, sendo cada uma delas dividida em cinco colunas, sem presença de
ilustrações.

8
Toda a coleção compreende 5.815 exemplares, encadernados em 88 volumes.
9
O site “Jornais e folhetins literários da Paraíba no século XIX” abriga, desde 2007, projetos de
pesquisa financiados pelo CNPq que, tomando como corpus os jornais paraibanos, tenta reconstituir, as
categorias históricas das práticas leitura e de escrita do século XIX, na Paraíba. Disponível em:
http://www.cchla.ufpb.br/jornaisefolhetins/ Acesso em: 11/06/2017.

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Dando prosseguimento à análise da estruturação do jornal em foco, observa-se


que dispunha de algumas sessões, embora não fossem veiculadas de forma sistemática,
ou seja, respeitando uma organização fixa de distribuição do material produzido, uma
vez que uma das principais características dos impressos jornalísticos do XIX era a
ausência de disciplina quanto à fixação de colunas e apresentação de seus conteúdos.
Entretanto, sempre no rodapé, havia em A imprensa um espaço destinado à publicação
de folhetins, um tipo de gênero, que vinha sem assinatura do autor ou com
pseudônimos,10 bastante comum no século XIX. Outras duas sessões que compunham a
diagramação do referido jornal eram a Tabela de Preços, onde se verificava o valor dos
alimentos mais consumidos na época, e os Anúncios, propagando produtos diversos
disponíveis no mercado.
O jornal A Imprensa possuía sua própria oficina, que se constituía também em
uma tipografia com a mesma denominação, onde além de se imprimir o citado periódico
religioso, prestavam-se vários serviços de impressão para a sociedade. As atividades
comerciais da gráfica eram divulgadas na sessão de anúncios do jornal oficial da Igreja
Católica, como pode ser observado em uma edição de janeiro de 1902: Avisa-se que
nesta typographia preparam-se cartões de visita, annuncios, cartas de qualquer,
recibos, e todos trabalhos concernentes à arte typographica. Garante-se perfeição em
material e nitidez desde que recebemos novos e precioso sortimento – Modalidade em
preços (A Imprensa, 12 de janeiro de 1902).
Como consta nas edições do próprio jornal, a instalação de sua redação e oficina
estava localizada no prédio 131, situado à Rua Direita, atual Duques de Caxias, onde
permaneceu até 18 de agosto de 1901. A partir de então, segundo pesquisa realizada por
Ricardo Grisi Velôso (2003), notário do Arquivo Eclesiástico da Paraíba, a oficina
gráfica foi transferida para o Monteiro de São Bento, que ficava situado na Rua Nova,
hoje General Osório, tendo aí funcionado até novembro de 1903, quando as atividades
de A Imprensa foram encerradas por suposta falta de verbas. Entretanto, durante esse
período de fechamento, por volta de 1906, Dom Adauto Aurélio de Miranda Henriques

10
No livro Jornal e literatura: a imprensa brasileira no século XIX, publicado em 2007 pela editora
Nova Prova, a pesquisadora Socorro de Fátima Pacífico Barbosa aborda o motivo pelo qual os escritores
da época não assinavam os trabalhos que publicavam nos periódicos, além de elaborar a tese que
compreende a imprensa como parte da Literatura brasileira, sendo responsável pela criação de alguns
gêneros literários, como a crônica e o conto, e pelo desenvolvimento de outros, como o romance, a partir
dos folhetins. Ver: BARBOSA, Socorro de Fátima Pacífico. Jornal e literatura: a imprensa brasileira no
século XIX. Porto Alegre: Nova Prova, 2007.

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publicou o Boletim Eclesiástico da Diocese, voltado para a divulgação dos atos


diocesanos, de circulação mensal.11
Por sua dimensão material, já é possível perceber que se tratava de um periódico
que mantinha uma relação estreita com a sociedade. A produção dos conteúdos que
eram veiculados em suas páginas se pautava por uma necessidade econômica, por meio
da sessão de anúncios, e, talvez, pela preocupação em ampliar o público leitor ao trazer,
em suas páginas, tópicos que interessariam a um grande número de pessoas
independentemente se fossem ou não católicos, como tabelas de preço de alimentos e
tiras de folhetim – certamente agradava a muita gente acompanhar o desenrolar de
romances. Por outro lado, ter uma gráfica própria, que prestava serviços
extrainstitucionais, com a confecção de cartões de visita, por exemplo, além de ter
impresso até mesmo um periódico não religioso (O Combate, em 1902), demonstra
como A imprensa era um jornal bastante estruturado e dinâmico.
Ao longo dos anos e das diferentes fases, o periódico religioso foi modificando a
aparência de sua marca, sintetizando o cabeçalho de apresentação e alterando suas
dimensões, embora com diferenças mínimas. Também, por um tempo, teria deixado de
ser semanalmente publicado e passado a ser diário, tendo ainda uma fase bimestral.12
Na primeira fase de duração do jornal católico, havia a possibilidade de
assinaturas semestrais e anuais. Como pode ser vislumbrado na parte superior da
primeira página de cada edição, cobrava-se 12 mil reis a quem desejasse fazer assinatura
do jornal por período de um ano, sendo a metade do valor para assinaturas por semestre.
Ainda havia a possibilidade de assinatura para quem residisse fora da Capital (com
acréscimo de dois mil reis para a primeira categoria e de mil reis para a segunda), o que
comprova a circulação de A Imprensa pelo estado. Entretanto, percebe-se que a
publicação da diferença de valores para assinantes tanto da Capital 13 quanto de outras
localidades não é mais veiculada a partir de edições de 1902.

11
A partir de 1912, quando A Imprensa volta a circular, a direção e a oficina do jornal religioso
funcionavam no Palácio do Carmo. Depois foram transferidas para uma sede própria, na antiga sede da
confederação católica, que à época estava situada na Praça do Carmo, atual Praça Dom Adauto.
Novamente fechado em 1942, o referido jornal e sua oficina só voltariam a funcionar em 1946,
encerrando definitivamente suas atividades na década de 1960. VELÔSO, Ricardo Grisi. Jornal A
Imprensa. In: Informativo da Arquidiocese da Paraíba. Ano VIII, abril de 2003.
12
Durante todo o tempo que circulou, em diferentes fases, o tamanho do jornal sofreu uma variação cuja
média ficou entre 52 x 37. Foram verificadas, no acervo, edições bimestrais a partir de exemplar de 1921.
13
Na época, a Capital da Parahyba tinha o mesmo nome da província. Atualmente, denomina-se João
Pessoa.

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Quanto aos colaboradores, de acordo com informações citadas na tese de


doutorado de Lúcia de Fátima Guerra Ferreira (1994), se constituíam de padres,
médicos e homens letrados da sociedade paraibana.14 Infelizmente, não foi possível
saber a tiragem dos exemplares nessa primeira fase, condição que contribuiria para se
ter uma melhor noção sobre a dimensão do público atingido pela A Imprensa. Vale
destacar, ainda, que da inauguração até 1903, a direção do jornal ficou a cargo dos
padres José Tomás Gomes da Silva e Manuel Antônio de Paiva.
Seguindo os apontamentos da referida autora, os vigários também contavam com
espaço para a divulgação de seus trabalhos paroquiais nas folhas de A Imprensa, mas,
em contrapartida, eram obrigados a assinar o periódico e promover sua divulgação nas
paróquias que estavam sob suas reponsabilidades. A historiadora ainda ressalta a
existência de uma estratégia de vendas. Segundo ela, “os agentes encarregados de
vender” os exemplares poderia ser o vigário ou alguém designado por ele. “Esse
esquema deu certo, levando até ao aumento das tiragens, mas, em seguida, as
assinaturas foram deixando de ser renovadas, inviabilizando a manutenção do jornal”
(FERREIRA, 1994, p. 166).
Embora corresponda a um jornal religioso, A Imprensa não se restringia a
abordar temáticas religiosas ou de ordem eclesiástica, mas uma série de questões, como,
por exemplo, o próprio papel da imprensa. Trata-se de um jornal aberto às demandas do
seu tempo, em constante diálogo com o meio social no qual se encontrava inserido, se
autoafirmando, inclusive, em diversos escritos publicados, como um periódico a serviço
da sociedade.
Neste estudo sobre história política15, sigo a trilha de Pierre Rosavallon (2010),
que compreende o político como um campo ampliado da política, ou seja, que não fica
aquém das questões partidárias ou exclusivamente na esfera do poder dominante, mas

14
De acordo com Lúcia de Fátima Guerra Ferreira (1994), alguns dos nomes que figuravam como
colaboradores de A Imprensa eram, dentre outros: Dr. Antônio Alfredo da Gama e Melo, Dr. Gonçalo de
Aguiar Boto de Meneses, Dr. Cícero Moura e Dr. Isidro Gomes. Ver: FERREIRA, Lúcia de Fátima
Guerra. Igreja e romanização: ampliação da Diocese da Paraíba – 1894/1890. 1994. Trabalho de
conclusão de curso (tese) – Curso de História, Universidade de São Paulo – USP, São Paulo, 1994.
15
Na defesa da Nova História Política, destaca-se o historiador René Rémond, responsável pela
organização da Coletânea Por uma história política, publicada na década de 1980. A obra reúne artigos
de diversos autores que ao proporem a análise de diferentes objetos de estudo argumentaram em direção
aos enfoques, ao corpus documental e às renovações metodológicas que condicionaram o surgimento de
uma história política diferenciada daquela que vigorava de prestígio desde o século XIX e que fora tão
rejeitada, a partir da década de 1930, pela crítica dos Annales, que a caracterizou como superficial, elitista
e individual. Entretanto, como argumenta René Rémond (2003), o contato com diversas ciências sociais
culminou na eclosão de um novo pensamento político revestido pela interdisciplinaridade. Ver:
REMOND, René. Uma história presente. In: REMOND, René (Org.). Por uma história política. 2 ed. Rio
de Janeiro: FGV, 2003, p. 13-36.

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implica em um modo de também perceber o universo sociocultural, pois, segundo o


autor, o político é “operado pela mobilização dos mecanismos simbólicos de
representação” (ROSANVALLON, 2010, p. 30), e por que não dizer de intermediação,
como a atuação da imprensa na sociedade, por exemplo.
Outra das características principais dos periódicos do século XIX, além da
efemeridade, era o seu caráter doutrinário e opinativo, constituindo-se, assim, em
espaços de formação da opinião pública. Tais requisitos atravessaram todo o século
XIX, persistindo até as décadas iniciais do século XX. De acordo com Ferreira (1944),
“o pessimismo da Igreja diante do futuro do Brasil republicano laicizado era patente em
diversos pronunciamentos da hierarquia, que eram sistematicamente divulgados pela
imprensa católica” (FERREIRA, 1994, p. 47).
É preciso destacar que o jornal A Imprensa está envolto de mudanças
significativas da história nacional. A Igreja Católica estava perdendo terreno na esfera
do poder: não era mais a religião oficial do Estado, perdia espaço na vida política e
ainda enfrentava uma vertente anticlerical do liberalismo. Não é de se espantar que sua
posição fosse combativa em relação ao republicanismo. Assim, como argumenta
Ferreira (1994), a “República sem Deus constituiu-se um dos temas mais discutidos no
periodismo católico” (FERREIRA, 1994, p. 51). Era constantemente reiterado o
discurso da “necessidade de cristianizar a República”.
Críticas à gestão governamental vigente, em nível federal, eram comuns nas
páginas de A Imprensa. Em editorial do dia 21 de novembro de 1987, por exemplo, é
veiculada uma crítica aos poderes constituídos pelo fato do país ainda comportar um
grande número de analfabetos, com enfoque para o desprezo por parte das autoridades:
O povo chora e geme sob penúria e misérias [...] Quem se daria ao trabalho de
enumerar os males tantos que está sujeito o pobre povo? [...] Se olha para o corpo, é
uma miséria. Se olha para o espirito, é um horror. Quanto ao corpo, está sob as vistas
das maiores míopes. Quanto ao espirito, basta de dizer, que talvez mais de duas terças
partes de nossa população não sabe assinar o nome (A Imprensa, 21 de novembro de
1897).
Em dia 28 de novembro 1987, outro edital traz em destaque a retomada da
problemática do analfabetismo e de sua implicação no mundo político: O analfabeto é o
infeliz que sofre todas as privações sociais [...] Quem não sabe nem ler nem escrever
não tem a capacidade precisa de intervir com o seu voto na direção dos negócios
públicos (A Imprensa, 28 de novembro de 1897).

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Pelo recorte transcrito, e pelo teor de todo o editorial, é perceptível como a


noção de cidadania para o referido impresso perpassa os direitos políticos, mas também
o entendimento de uma política pública de educação, ao defender a instrução obrigatória
como requisito básico do cidadão, como revela este outro trecho do citado editorial: Em
ultima analyse, derrama-se a instrução sobre a cabeça do povo, como diz
Chateubriand, de-se esse baptismo (A Imprensa, 28 de novembro de 1897).
Como se trata de uma pesquisa em fase inicial, a preocupação está centrada,
neste momento, apenas em aprender a melhor analisar um documento impresso de
natureza jornalística, ou seja, entender as relações sociais estabelecidas pelo jornal
enquanto suporte. Por tal razão, e seguindo os apontamentos de diversos pesquisadores
que desenvolvem abordagens históricas tendo como base documental os jornais,
conferiu-se, nesta fase, sobretudo, um espaço especial para à materialidade do impresso
em questão, para melhor compreendê-lo, como um todo, com o intuito de fugir das
armadilhas do recorte de textos ou de enunciados direcionados previamente por um
objetivo apontado pela pesquisa.
Como diria a historiadora Arlete Farge, no livro Lugares para a história (2011),
é preciso deixar o documento falar e, para isso, é imprescindível saber ouvi-lo. Nesta
direção, e na trilha já apontada por Tânia Regina de Luca (2005), acredito que o
primeiro passo é este: conhecer a história do jornal em foco, entender como se dava o
processo de produção e apresentação de seu material jornalístico, as funções
autoatribuídas e sua constante articulação com o meio social no qual estava inserido.
Portanto, sabe-se que para se produzir uma “boa história” é fundamental que a
narrativa se mostre muito bem entrelaçada, sendo capaz de comprovar por meio da
própria “performance da linguagem” os fatos que está narrando. Entretanto, uma
narrativa promissora, no sentido de ser muito bem contada, depende, primordialmente,
da capacidade da leitura dos documentos selecionados. Assim, conclui-se que é uma
condição sine qua non à práxis do historiador saber investigar adequadamente os
documentos que seleciona para a trama histórica que pretende contar.

REFERÊNCIAS
ABREU, Márcia. Duzentos anos: os primeiros livros brasileiros. In: BRAGANÇA,
Aníbal; ABREU, Márcia (orgs.). Impresso no Brasil: dois séculos de livros brasileiros.
São Paulo: Unesp, 2010.

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ARAÚJO, Fátima. Paraíba, imprensa e vida. 2 ed. João Pessoa: Grafset, 1986.

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Carla (Org.). Fontes históricas. São Paulo: Contexto, 2005.

DOSSE, François. Renascimento do acontecimento. São Paulo: Unesp, 2013.

FERREIRA, Lúcia de Fátima Guerra. Igreja e romanização: ampliação da Diocese da


Paraíba – 1894/1890. 1994. Trabalho de conclusão de curso (tese) – Curso de História,
Universidade de São Paulo – USP, São Paulo, 1994.

FARGE, Arllete. Lugares para a história. Belo Horizonte: Autêntica, 2011.

MARTINS, Ana Luiza; LUCA, Tania Regina. História da imprensa no Brasil. São
Paulo: Contexto, 2008, 149-175.

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da imprensa no Brasil do século XIX. Rio de Janeiro: DP&A, 2003.

NORA, Pierre. O retorno do fato. In. LE GOFF, Jacques. História: novos problemas.
Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1995, p. 179-193.

VELÔSO, Ricardo Grisi. Jornal A Imprensa. In: Informativo da Arquidiocese da


Paraíba. Ano VIII, abril de 2003.

ROSANVALLON. Pierre. Por uma história do político. São Paulo: Alameda Casa
Editorial, 2010.

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A MÚSICA COMO MILITÂNCIA NO MNU-PE – ENTRE TROCAS


CULTURAIS NA DIÁSPORA NEGRA (1970-2000)

Isabella Puente de Andrade,


Mestranda em História pela UFPE.
bella_puente@hotmail.com

RESUMO: O resultado da diáspora negra, ocasionada no processo violento da


escravidão dos povos de África, é aqui analisado enquanto forma de intercambiar
experiências de segregação racial entre os povos não-brancos. Os movimentos negros ao
redor do mundo, como o da África do Sul e dos Estados Unidos, foram de influência
inequívoca aos movimentos afro-brasileiros, sendo destacada a importância da
expressão artística para a luta antirracista no Brasil. Esse trabalho analisa esses
intercâmbios culturais através de jornais e revistas, enfocando a música como estratégia
encontrada para conscientizar a população afro-brasileira, pelo próprio Movimento
Negro Unificado em suas diversas seções, notadamente o MNU-PE.
Palavras-chave: Movimento negro; diáspora; música; Pernambuco

INTRODUÇÃO
A diáspora gerada no violento processo de escravidão na era Moderna deixou
marcas indeléveis nos povos negros das várias partes do globo. Descendentes de África
espalhados pelo mundo, entre africanos, afro-caribenhos, afro-americanos, afro-
brasileiros, viveram experiências semelhantes marcadas pela segregação dos não-
brancos em suas respectivas nações. Ao tomar consciência dessa vivência partilhada
pela cor, é possível entender o passado, a memória, o inconsciente através de seus
efeitos.
O que Paul Gilroy (2001, p.18) chama de “Atlântico Negro” seria o conjunto
cultural e político transnacional de elementos e ações produzidos pela diáspora negra
desde o século XV, em que as experiências vividas e trocadas pelas populações que
compõe a diáspora negra puderam, no Brasil, ter grande vigor principalmente na
segunda metade do século XX. O movimento negro brasileiro recebeu, interpretou e
utilizou informações, ideias e referenciais produzidos na diáspora negra de uma maneira

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geral, especialmente na luta pelos direitos civis nos Estados Unidos e nas lutas por
libertação nos países africanos, sobretudo nos países então colonizados por Portugal.1
Como afirma Stuart Hall, “não podemos jamais ir para casa, voltar à cena primária
enquanto momento esquecido de nossos começos e ‘autenticidade’, pois há sempre algo
no meio” (HALL, 2033, p.40), sendo esse “algo” as particularidades de cada
experiência na diáspora.
Enquanto os africanos da África do Sul viveram o apartheid, os afro-americanos
viveram o Jim Crow, os afro-brasileiros construíram sua luta e identidade a partir da
vivência do famigerado mito da democracia racial. Os movimentos negros que surgiram
na América e em África carregam consigo a dinâmica das relações raciais estabelecidas
nos respectivos países afetados pela diáspora negra, sendo o movimento negro brasileiro
resultado das formas veladas de racismo que se fortaleceram ao longo do século XX e
perduram até hoje.
A historiografia dos movimentos negros no Brasil, sejam eles organizados em
torno de um programa e estatuto ou não, está intimamente relacionada à dinâmica das
relações raciais no país. O entendimento do mito da democracia racial e do ideal de
branqueamento são cruciais na desenvoltura das reivindicações dos movimentos negros
brasileiros. Discutir as relações raciais e a posição do negro na sociedade é, de acordo
com o antropólogo Kabengele Munanga (2008, p.9), uma responsabilidade social que
contribui para a autoconscientização e consequente autovalorização do negro.2 A
invisibilidade que o Movimento Negro Unificado (MNU) e a vigorosa militância de
homens e mulheres negras enfrentaram na história “oficial” vem por meio de recentes
estudos acadêmicos, valorizar um movimento social tão prejudicado pela força das
ideologias e tradições.
Apesar de ainda tímidos, os estudos sobre o MNU no Rio de Janeiro e São Paulo
ainda encontram uma vasta literatura, quando comparadas às pesquisas acerca do MNU-
PE. Estudiosos como Petrônio Domingues, George Andrews e Michael Hanchard
desenvolveram relevantes pesquisas tendo em foco o Movimento Negro Unificado na
região sudeste, já nas décadas de 1980 e 1990. Em contrapartida, o ativismo da seção

1
Os países africanos que ficaram independentes da colonização portuguesa, na década de 1970, foram
Guiné-Bissau, Angola, Moçambique, Cabo Verde e São Tomé e Príncipe. PEREIRA, Amilcar Araújo. “O
Mundo Negro”: A constituição do movimento negro contemporâneo no Brasil (1970-1995). Tese de
Doutorado em História da Universidade Federal Fluminense, Rio de Janeiro. p.107.

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Pernambuco encontra-se mais do que tímido, quase silencioso, se não fosse pelos
trabalhos que tomam corpo apenas na segunda década desse século.
Diferentemente dos estudos que colocaram os movimentos negros em foco, as
pesquisas sobre as relações raciais no Brasil encontram forte atividade desde a abolição
da escravatura. A trajetória da elite “pensante” brasileira desde a década de 1890 foi de
inferiorizar, diminuir o negro, negando a necessidade de uma resposta contra a
segregação racial.3 A contenção da luta dos afro-brasileiros foi agravada pela crença de
que o colonialismo ibérico abrandou a aspereza das relações entre senhor e escravo,
configurado na “excepcionalidade racial” brasileira (HANCHARD, 2001, p.63-65).
Contudo, a referida força ideológica que tanto embargou o ativismo dos movimentos
negros, na tentativa de deslegitimar sua luta, encontra grande pujança no mito da
democracia racial. Desde a equivocada concepção da raça negra como inferior entre os
“intelectuais” brasileiros do século XIX, é com o sociólogo Gilberto Freyre, em inícios
do século XX, que

o mito da democracia racial, baseado na dupla mestiçagem


biológica e cultural entre as três raças originárias, tem uma
penetração muito profunda na sociedade brasileira: exalta a
ideia de convivência harmoniosa entre os indivíduos de todas as
camadas sociais e grupos étnicos, permitindo às elites
dominantes dissimular as desigualdades e impedindo os
membros das comunidades não-brancas de terem consciência
dos sutis mecanismos de exclusão da qual são vítimas na
sociedade.4

A importância da desmistificação desse mito para que os movimentos negros


ganhassem força encontrou apoio no sociólogo Florestan Fernandes. Segundo Michael
Hanchard, apesar de atentar para a desigualdade racial latente na sociedade brasileira,
descrendo no mito da democracia racial, acabou desprezando o papel do Estado no
ajuste das relações raciais. Para Fernandes, os afro-brasileiros estavam despreparados
para o mercado de trabalho insurgente, sendo o sistema capitalista o grande inimigo da
ascensão do negro (HANCHARD, 2001, p.49). Ao demonstrar o intervencionismo
estatal na exclusão dos negros do mercado de trabalho, as relações raciais no Brasil
encontram grande avanço no estudo de George Andrews e, ademais, com o sociólogo
Carlos Hasenbalg.

3
Ibid. p.48
4
MUNANGA, Kabengele. Rediscutindo a mestiçagem. Op. Cit. p. 77

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Deixando de lado a interpretação racial baseada na classe, Hasenbalg


problematiza a análise marxista de Fernandes, colocando a desigualdade racial no cerne
das relações econômicas no Brasil. A concentração de negros e mulatos no inferior da
hierarquia nacional é tratada por esse sociólogo, em sua obra Discriminação e
Desigualdades Raciais no Brasil, como resultado de elementos que evoluíram e
estabilizaram-se durante a escravidão (HASENBALG, 2005, p.235). O que chamou de
“aquiescência dos racialmente subordinados”, interrompida pelos movimentos negros, o
sociólogo justifica através de mecanismos desmobilizadores maquinados pela elite
brasileira branca, os quais operam

dentro de um sistema político relativamente rígido, sendo uma


de suas características mais persistentes o compromisso e o
padrão de resolução dos conflitos entre as elites dominantes,
tendendo a suprimir a organização autônoma dos grupos
subordinados.5

O ideal de branqueamento, incentivador nato da cultura racista, é identificado


por Hasenbalg como um estímulo à exibição narcisista de brancura, condenando o
segmento mais escuro da população ao desaparecimento gradual.6 Essa perspectiva
infertiliza o terreno da construção da negritude, ferindo o orgulho racial entre os não-
brancos. A construção de uma identidade que privilegiasse os elementos culturais
negros tornou-se cada vez mais difícil, com a inferiorização dos atributos negroides e
constante enaltecimento dos caracteres tipicamente brancos.

MOVIMENTAÇÕES NEGRAS NO BRASIL: ENTRE A DIÁSPORA E A


VALORIZAÇÃO DA ANCESTRALIDADE AFRICANA
Os movimentos negros contemporâneos, ao defenderem a construção de uma
sociedade plural, biológica e culturalmente, e não meramente sincrética vão de encontro
ao mito da democracia racial, em função de uma cultura política de democracia
representativa aos povos subordinados – uma democracia verdadeiramente plurirracial.
A assimilação cultural da brancura, consumada no processo de embranquecimento do
negro, é negada pela ideologia desses movimentos, visando uma afirmação da negritude
cultural, moral, física e psiquicamente.

5
Ibid. p.235
6
Ibid. p.250

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É dessa forma que desde a organização de clubes, irmandades religiosas,


associações recreativas no início do século XX, aos gritos contra a discriminação e
segregação racial na voz da Frente Negra Brasileira (FNB), em 1931, do Teatro
Experimental do Negro (TEN), em 1944 (NASCIMENTO, A. do & NASCIMENTO, E.
L., 2000, p.203), os afro-brasileiros movimentam-se contra a segregação racial.
Finalmente em 1978, o movimento negro organiza-se em torno de um programa de ação
e estatuto, tendo início o Movimento Negro Unificado (MNU). Com surgimento em
meio a redemocratização e abertura política, o MNU constitui o auge da consciência
política afro-brasileira atual.
A luta antirracista em comum aos povos da diáspora negra recebeu, no MNU,
influências inequívocas do combate à segregação racial vivido em África. Um exemplo
disso é o intercâmbio ocorrido na imprensa negra brasileira nos anos 1970, a qual
buscava e transmitia informações e referenciais para construções identitárias entre os
militantes negros e a população mais ampla. Os conhecimentos e notícias trocadas
através de informes podem ser encontrados no jornal Sinba, publicado entre julho de
1977 e dezembro de 1980 pela Sociedade de Intercâmbio Brasil-África (Sinba)7, uma
das primeiras entidades do movimento negro contemporâneo, surgida no Rio de Janeiro,
ainda em 1974.
A memória que se buscava construir em relação à África, como importante
elemento para a construção de identidades negras positivas, deveria se basear nas lutas
protagonizadas por negros africanos. Essa construção não se baseava só num passado
longínquo, mas principalmente naquele momento histórico de descolonização, de luta
por liberdade e pela conquista de melhores condições de vida. O jornal O Clarim
d’Alvorada, publicado de 1924 a 1932 em São Paulo, abrigava uma seção intitulada “O
mundo negro”, na qual eram publicadas traduções de artigos do jamaicano Marcus
Garvey (1887-1940), defensor do pan-africanismo. O jornal Quilombo, fundado por
Abdias do Nascimento em 1948, reproduzia com frequência artigos da revista Présence

7
O jornal Sinba, que circulava em São Paulo, ainda em seu primeiro número, apresentou sete matérias
tratando sobre as lutas contemporâneas em diferentes países africanos; desde a matéria de capa, intitulada
“Depoimento de um líder estudantil de Soweto”, denunciando os horrores do regime do apartheid na
África do Sul, até matérias sobre as lutas na Namíbia e na Rodésia, e também sobre Moçambique e
Nigéria, ressaltando o valor das lutas e as conquistas alcançadas. PEREIRA, Amilcar Araújo. “O Mundo
Negro”: a constituição do movimento negro contemporâneo no Brasil (1970-1995). Tese do
Departamento de História da UFF, 2010. p.142-143.

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Africaine, publicada em Paris e Dacar a partir de 1947, sob a direção do senegalês


Alioune Diop.8
As organizações culturais em conjunto com a conjuntura política de
rearticulação dos movimentos sociais, que acabaram por dar origem ao MNU
(QUEIROZ, 2010. p.98), fizeram com que essa entidade aliasse a necessidade de
mudança na estrutura política brasileira com a luta contra o racismo. Enquanto isso, em
Pernambuco, divididos entre os fundadores do Movimento Negro do Recife (MNR) e os
consumadores do Centro de Cultura e Emancipação da Raça Negra (CECERNE), os
militantes negros do estado encontravam-se em propostas cindidas para o futuro do
movimento negro. Com apenas dois anos de atuação, o MNR, ao sentir a necessidade de
uma prática social e política aprofundada (SILVA, 1994, p.60), logo aderiu à proposta
programática do MNU, tornando-se uma de suas células: o MNU-PE.
A recusa do 13 de maio como dia do negro e exaltação do 20 de novembro,
marcou em muito essa nova etapa da movimentação política dos afro-brasileiros, os
quais decidiram por enaltecer e comemorar a efeméride da morte de Zumbi dos
Palmares, em detrimento do dia da abolição da escravatura. A reverberação desse
evento anual deu-se, em Pernambuco, com a “Noite do Cafuné” na Semana da
Consciência Negra, durante toda a década de 1980.
A valorização do negro na história para uma efetiva formação educacional foi
outra das etapas mais importantes para a solidez das reivindicações do Movimento
Negro insurgente. Era exigida uma mudança completa na educação escolar, de modo a
extirpar dos livros didáticos, dos currículos e das práticas de ensino os estereótipos e os
preconceitos contra os negros. Reivindicavam a incitação da autoestima e do orgulho
negros através do ensino (GUIMARÃES, 2001, p.135). A necessidade da inclusão de
uma grade curricular que tivesse como apanágio os valores culturais e vivências da
negritude foi apenas atendida com a promulgação da Lei 10.639/03, no ano de 2003.
Também a estética negra nos cabelos afro, nas indumentárias assumiram a nova
perspectiva de construção da identidade negra no Brasil com a afirmação do Movimento
Negro Unificado, primando por assumir uma orgulhosa negritude pelos não-brancos.

A MÚSICA COMO MILITÂNCIA POLÍTICA NO MNU-PE

8
É recorrente, entre os militantes do MNU dos anos 1980, a menção aos Poemas de Angola, de
Agostinho Neto, fundador do Movimento Popular de Libertação de Angola e primeiro presidente do país,
em 1975. PEREIRA, Amilcar Araújo; ALBERTI, Verena. Orgulho da cor. Em
http://www.revistadehistoria.com.br/secao/artigos/orgulho-da-cor. Último acesso: 29/01/2017.

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Os processos históricos, em outros momentos, tiveram sempre a economia, a


política ou a sociologia para explicá-los. Contudo, a cultura, nos últimos anos, tem
assumido esse papel na historiografia (MOTTA, 2009, p.16). O conceito de cultura,
reduzido e escolhido em seu âmbito micro, deve ter determinado a sua importância para
o possível desenvolvimento de uma pesquisa, a indagação de como tais ações ou
comportamentos manifestam uma realidade através de sua representação (GEERTZ,
1989, p.20). As ações comportamentais do ser humano são visualizadas num âmbito
amplamente simbólico. Assim, o campo cultural da historiografia passa a entender as
percepções do social não como discursos neutros, mas sim imbuídos de um sistema de
significados (CHARTIER, 1988, p.18).
Afastada dos estudos acadêmicos, a cultura negra foi por grande parte da história
do Brasil relegada ao lugar do folclore (LIMA, 2009, p.1). O MNU apresenta suas bases
na militância cultural, tanto em contexto nacional como no devido escopo, no estado de
Pernambuco. Inspirada na Frente Negra Brasileira (FNB), a Frente Negra
Pernambucana foi criada no ano de 1937, porém com vida curta e prontamente
substituída, durante o Estado Novo, pelo Centro de Cultura Afro-Brasileira (CCAB).
A forte repressão do regime militar varguista apenas ratificou a militância negra
no cenário cultural. Com um histórico de luta político-cultural efervescente, um dos
principais militantes pernambucanos, Solano Trindade, chegou a contribuir para a
criação de um dos maiores feitos do movimento negro da época: o Teatro Experimental
do Negro. Também o militante Paulo Viana “via na cultura um importante campo de
batalha”, segundo Ivaldo Lima, sendo aquele o articulador da Noite dos Tambores
Silenciosos em Pernambuco, reafirmando a negritude presente nos maracatus-nação.
Era importante desmistificar os preconceitos ao redor das religiões de orixás, tal qual
fez o militante Edvaldo Ramos, assim como adentrar em terreno pernambucano um
movimento cultural que colocasse o negro em evidência.
Para concretizar o desejo dos militantes pernambucanos em eximir a
folclorização da cultura negra, numa construção incessante pela identidade dos não-
brancos através das manifestações culturais, é fundado o CECERNE, nos fins da década
de 1970. Rearticulado por essa entidade, o movimento negro em Pernambuco acabou
vivendo dificuldades entre seus militantes devido às discordâncias ideológicas.9 Foi
nesse momento que uma significativa parte de seus militantes optou pela criação de uma

9
Sylvio Ferreira, ex-militante negro, em “A questão racial negra em Recife” trata em detalhes as razões
as quais divergia de outros militantes, principalmente do radicalismo de Abdias do Nascimento.

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nova entidade, o Movimento Negro do Recife (MNR), futuramente anexado ao MNU.


Ao percorrer essa trajetória, resta afirmar como o movimentar do negro através da
cultura firmou as bases do movimento político surgido em 1978, que “teve como ponto
de partida claro as organizações culturais”, segundo George Andrews (1998, p.302).
Já na Carta de Princípios do MNU, a cultura surge como uma das maiores
preocupações da instituição (QUEIROZ, 2010, p.105), assim como o Estatuto aprovado
em 1978, o qual reconhece as entidades culturais como formas políticas de resistência
negra, devendo os militantes trabalhar em conjunto com esses outros movimentos, tal
como consta nos “Deveres dos militantes”. Outra prioridade é a denúncia da
descaracterização e comercialização da cultura e religiosidade negra, também presente
nesse Estatuto, o que torna os militantes ativistas culturais autônomos de sua identidade
e busca pela negritude pela via cultural. O Programa de Ação da instituição, como seus
outros documentos principais, também traz a necessidade de findar a manipulação
política da cultura negra, numa acepção cultural que relaciona esse fator social às
relações de poder. Segundo o Programa, a cultura expressa-se
através da produção geral da vida, incluindo as relações de
poder, os códigos morais, sociais, religiosos e estéticos. Cada
cultura tem sua própria linha de desenvolvimento, seu próprio
sistema de referência, calçados na história do povo que a
produz. A cultura, em última instância, revela a visão de mundo
que implica na valorização de certas práticas e na
desvalorização e abandono de outras.10
As pesquisas e revisão historiográfica recentes registram as práticas populares e
negras enquanto ações de resistência aos mecanismos de opressão, portanto expressões
de lutas políticas (QUEIROZ, 2010, p.68-69). No MNU-PE, a esfera cultural é o
caminho que essa organização percorre firmemente desde a sua formação até o cenário
atual, como ficou claro através do levantamento documental de seu acervo. O jornal
Negritude, compondo um dos importantes elementos da imprensa negra do MNU-PE,
constantemente abordou a temática das atividades culturais pernambucanas na base de
uma formação política. Com participação na Noite do Cafuné, na Noite dos Tambores
Silenciosos e na Quinta Negra - de vida curta, ocorrida por dois anos na cidade de
Olinda – é com a Terça Negra11, nos maracatus-nação, no ritmo de ijexá dos afoxés, que
o MNU-PE encontra grande ativismo político-cultural durante todo o ano.

10
Programa de Ação do MNU.
11
Evento que mobiliza semanalmente cerca de mil e quinhentas pessoas, entre grupos de samba, reggae,
maracatus, afoxés, grupos de capoeira, coco de roda, blues, raps, danças de estética afro, a Terça Negra é
um dos maiores eventos político-culturais promovidos pela iniciativa do MNU-PE. Inspirada na Terça da

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A utilização da música de raiz africana como forma de protesto, capaz de


conscientizar a população de forma mais sutil, carrega também uma afronta à visão
depreciativa que a música africana teve ao longo dos séculos. Sempre tendo recebido o
predicado de “exótica” (PINTO, 2008, p.100), a música afro teve de conviver com os
estigmas imputados pela civilização Ocidental, segundo Tiago Pinto:
Antes de serem avaliadas com seriedade, as musicalidades
tropicais não passavam de ruídos, que incomodavam quem a
eles estava exposto (...) O século XIX ainda não entende as
sonoridades ‘ex-acústicas’ (exóticas) e não as reconhece como
expressão cultural de peso. Nessa altura o som dos trópicos
nada mais é do que barulho desagradável causado por homens
primitivos ou por uma natureza exuberante, mas ruidosa.12

Não apenas o ritmo outrora considerado como ruído, mas também as letras de
sambas, afoxés, hip hops galgaram uma saída de resistência para a população afro-
brasileira, no conturbado século XX. Amilcar Pereira aborda como as influências
externas foram importantes para que esse movimentar dos negros no Brasil, através da
música, fosse cada vez mais incisivo. O “movimento Soul”, que trazia em seu cerne
afirmações como “black is beautiful” e “black power”13, na década de 1970 teve um
impacto grande para a população negra que vivia na periferia de algumas capitais
brasileiras. Joel Rufino dos Santos afirma que “esta influência se deu menos por
intermédio da mensagem política que pelo convite a uma ‘atitude negra’, que trazia, por
sua vez, embutida as questões de identidade”.14 Mais uma vez, evocando a importância
das experiências semelhantes que vivem os povos da diáspora negra, entre a militância
afro tornava-se lugar-comum enaltecer a ancestralidade africana por meio da
musicalidade.

Benção, na Bahia a Terça Negra enfrentou dificuldades no acesso a verbas públicas, porém desde o
começo tendo apoio inconteste dos afoxés Ilê de Egba, Oxum Pandá e Ara Odé, bem como de blocos afro
como Raízes dos Quilombos e Obá Nijé. QUEIROZ, Martha. Para além do Carnaval: O Movimento
Negro na cena cultural da cidade do Recife. Anais do XXVI Simpósio Nacional de História – ANPUH.
São Paulo. Julho, 2001. p.6
12
Ibid. p.101.
13
Projeto político de setores da comunidade negra norte-americana, que estavam em busca de acesso às
instâncias de poder numa sociedade racialmente segregada; no Brasil, dizia respeito a um tipo específico
de corte de cabelo.
14
A música Olhos coloridos, lançada pela cantora Sandra de Sá com grande sucesso em 1982, foi
composta por Macau, jovem artista negro bastante influenciado pela música negra norte-americana e
adepto do movimento Black Rio; esse, buscava inspiração no movimento “black power”/”black is
beautiful”. SANTOS, Joel Rufino dos. “O Movimento Negro e a crise brasileira”. In: Política e
Administração, vol. 2 Julhop, 1985. p.289.Apud. PEREIRA, Amilcar Araújo. “O Mundo Negro”: a
constituição do movimento negro contemporâneo no Brasil (1970-1995). Op. Cit. p.128.

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O sambista Jorge Aragão, na música intitulada Identidade15, já estava bastante


informado pelos discursos formulados pelo movimento negro brasileiro. O artista
discute alguns temas importantes para sua compreensão das relações raciais na
sociedade brasileira, articulando a denúncia de um verdadeiro símbolo das relações
sociais no Brasil, o elevador de serviço16, com a história e a memória da escravidão e
com uma espécie de “chamado” a um resgate para a construção de uma identidade negra
positivada. A música da primeira apresentação do bloco afro Ilê Aiyê no carnaval de
Salvador, em 1975, trazia as expressões “mundo negro” e “black power”. Expressões
que demonstram certa influência do movimento soul. O bloco afro Ilê Aiyê articulava
influências africanas e norte-americanas, sempre com um forte caráter político de
enfrentamento e afirmação da identidade negra. O Ilê tornou-se importante referência
para diversos outros blocos que foram criados posteriormente por todo o Brasil.17
Muitas lideranças do movimento negro participavam diretamente dos bailes soul e dos
blocos afro, enfatizando, nessas manifestações, um discurso político de valorização da
identidade negra, como no exemplo do Clube Renascença, no Rio de Janeiro.
O uso de signos estéticos e culturais africanos e afro-brasileiros são marcas
identitárias para a conscientização da negritude. A ancestralidade da experiência
palmarina tomou grande foco nas manifestações culturais dos negros após a afirmação
do 20 de Novembro. Características incorporadas fortemente, em Pernambuco, nos
afoxés, esses se tornaram uma poderosa prática discursiva do movimento negro,
convidando outras manifestações a enegrecer a cidade, a exemplo do samba-reggae e o
reggae jamaicano. Portadores de sentidos e ordenadores de práticas, segundo Martha
Queiroz, os afoxés Ilê de África, Axé Nagô, Ara Odé e Oxum Pandá, pioneiros entre os
afoxés pernambucanos, tiveram grande envolvimento do MNU-PE, assim como o mais
famoso, Alafin Oyó. O Alafin é o afoxé com mais posturas políticas do estado de
Pernambuco, em que, além de compor sua diretoria, muitos militantes do MNU-PE são
seus sócios fundadores (QUEIROZ, 2010, p.190). O primeiro a ser fundado

15
De acordo com Amilcar, é um samba interessante, que em sua versão original começa com uma
cadência rítimica diferenciada, juntando o batuque do samba ao som do berimbau numa “levada” bastante
próxima às músicas tocadas durante rituais do candomblé, evidenciando intencionalmente, portanto, a
valorização das diferentes “heranças” culturais de origem africana e afro-brasileiras; música dos trópicos.
Ibid. p.69.
16
Um trecho da música diz: Elevador é quase um templo/Exemplo pra minar teu sono/Sai desse
compromisso/Não vai no de serviço/Se o social tem dono, não vai.../Quem cede a vez não quer
vitória/Somos herança da memória/Temos a cor da noite/Filhos de todo açoite/Fato real de nossa
história/Se o preto de alma branca pra você/É o exemplo da dignidade/Não nos ajuda, só nos faz
sofrer/Nem resgata nossa identidade (...)
17
Ibid. p.129.

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propriamente no município do Recife, o Ilê de Egbá, denuncia o mito do 13 de maio em


suas canções, buscando afirmar o orgulho racial dos negros.
As letras das canções desses afoxés, que revelam a consonância do resgate
histórico da resistência negra com o uso de palavras de língua africana, juntamente à
busca por um panorama que, psiquicamente, empodere o negro constitui, para
Munanga, os três componentes da identidade cultural perfeita: fator histórico, fator
linguístico e o fator psicológico (MUNANGA, 2009, p.12).
No caderno de canções do afoxé Ilê de Egbá, presente no acervo do MNU-PE, a
canção Filhos da terra, com música composta por Dito D’Oxossi, traz um pouco desse
cunho contestador presente nos afoxés: “Quem somos nós/negros/filhos da terra, gente
África/grita África/canta África/Ketú, Gege, Angola e Nagô/ liberdade se toma/não se
recebe/a polícia tem negado/nossas estórias”. Na entrevista feita com Rosilene
Rodrigues dos Santos pela Professora Isabel Guillen, não é à toa que Rosilene constrói
sua identidade negra participando do ijexá dos afoxés, segundo ela “depois que eu
comecei a participar dos ensaios do Alafin, de fazer uma conversa com minhas amigas,
aí sim a gente começou a ler, a escrever, a se perceber”.18
De acordo com Stuart Hall, a cultura não é apenas uma viagem de redescoberta,
uma viagem de retorno. A cultura é uma produção, tendo sua matéria-prima, seus
recursos, seu “trabalho produtivo”, dependendo
de um conhecimento da tradição enquanto “o mesmo em
mutação” e de um conjunto efetivo de genealogias. Mas o que
esse “desvio através de seus passados” faz é nos capacitar,
através da cultura, a nos produzir a nós mesmos de novo, como
novos tipos de sujeitos. Portanto, não é uma questão do que as
tradições fazem de nós, mas daquilo que nós fazemos das
nossas tradições.19

A representação em símbolos, signos estéticos culturais africanos pode estruturar


uma identidade social, com viés político na luta anti-racista. A saída culturalista dos
afro-brasileiros está intrinsecamente relacionada às particularidades de como as relações
raciais ocorrem no Brasil. Essa peculiaridade se dá através de uma linguagem que
reconheça a coerência própria de uma cultura popular, de como ela se preserva dentro
de um mecanismo de dominação e imposição do ideal de brancura.

18
Entrevista com Rosilene Rodrigues dos Santos, realizada em 19/04/2009, em sua residência, Recife. In.
GUILLEN, I. C. M. & LIMA, I. M. de F. História e memória da negritude pernambucana em ritmos,
cores e gestos: 1970-1990. Revista Territórios & Fronteiras vol 5 n 2, 2012. p.272
19
HALL, Stuart. Op. Cit. p.49.

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A recusa dos dominados aos princípios de dominação se faz, no movimento


negro nacional, assumindo e valorizando a negritude presente nas representações
culturais que, antes do enfrentamento cruamente político, lutam pela derrota de uma
violência simbólica. Entrar em contato com a música de matriz africana é também
evocar a ancestralidade, reconhecer uma identidade que valorize a cultura negra Como
afirmou a militante Rosilene, a música que carrega cunho político é capaz de fazer com
que os negros se percebam, ou, segundo Amilcar Araújo, que despertem a consciência
racial.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
ANDREWS, George Reid. Negros e Brancos em São Paulo (1888-1988). Bauru-SP:
EDUSC. 1998.
CHARTIER, Roger. A história cultural entre práticas e representações. Trad. de Maria
Manuela Galhardo. Lisboa: Difusão Editora, 1988.

GEERTZ, Clifford. A Interpretação das Culturas. Rio de Janeiro: LTC, 1989.

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CRIATIVIDADE E INVENTIVIDADE MUSICAL NO RECIFE NA DÉCADA


DE 1980

Walter Ferreira de França Filho1


UFPE
prof.walterfranca@gmail.com

Resumo: Este texto proporciona notas para um debate acerca das práticas musicais no
Recife entre o final da década de 1980 e os anos 1990. Nas mentes e discursos de muitas
pessoas, no Recife e em outras localidades, a afirmação de que o aparecimento do
movimento Manguebeat nos anos 1990 interrompeu com o marasmo que a cidade
passava. Com isso desconsiderando a atuação de diversos artistas que, obviamente,
contribuiram para que a cena da década de 1990 configurasse como uma das mais
férteis da música nacional. O texto pretende apontar contribuições e criatividade de
outros artistas, sobretudo no âmbito afro musical recifense da década de 1980.
Palavras chave: Música negra. Globalização. Cultura pernambucana.

Movimentação e criatividade antes do Manguebeat: o campo afro musical


recifense.

As misturas, fusões entre o dito “local” e o “universal”, dentre outros elementos,


se encontravam presentes nos movimentos que antecederam o Manguebeat, seja nas
performances do cantor Ívano, 2 Valdir Afonjá, 3 dentre outros artistas durante a década

1
Mestre em História pela Universidade Federal de Pernambuco. Possui Graduação e especialização em
História pela Universidade Católica de Pernambuco.
2
Nascido em 11/07/1963, em Recife, é cantor, compositor e ator. Sua carreira inicia durante a segunda
metade dos anos 1970. Sua principal influência era a música negra, notadamente o reggae. Antes em sua

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de 1980 com o apoio do Movimento Negro Unificado - MNU. Entidades Negras de


Pernambuco, por exemplo, promovem intervenções em diversos grupos culturais locais
como afoxés e maracatus, maneira encontrada para fortalecer a cultura e a valorização
do negro. Como nos descreve Ivaldo Lima (2010, p. 312)

Ao longo dos anos 1980 e 1990, as organizações e grupos políticos do


movimento negro pernambucano estabeleceram estratégias de atuação
nas entidades culturais, incentivando a criação de alguns e apoiando
diretamente outros, participando inclusive de suas direções. Os casos
mais emblemáticos são o do Maracatu Nação Leão Coroado (que teve
a intervenção do Movimento Negro Unificado entre os anos de 1986 e
1987, e do CENPE - Coletivo de Entidades Negras de Pernambuco,
entre os anos de 1987 a 1989), e do Afoxé Alafin Oyó, que foi
dirigido por alguns anos por Martha Rosa, militante do MNU.

Percebe-se que a década de 1980 vivenciou um movimento de valorização da


cultura negra e popular, principalmente tomando a dianteira com artistas negros e
entidades organizadas, reivindicando principalmente a igualdade racial e valorização da
negritude, como o MNU e CENPE. As atuações de cantores como Ívano, Valdir Afonjá,
Marcelo Santana, Brasáfrica, Favela Reggae, foram importantes para a valorização da
imagem e da cultura negra representada por sua musicalidade em Pernambuco. 4

Diversos artistas, que em minha opinião, ajudaram a irrigar a semente da valorização


das ‘coisas da terra’ com a música mundial. Da mesma maneira fizeram os envolvidos
no movimento artístico denominado Manguebeat na década de 1990.
Durante a década de 1980, tentativas de “salvar” o popular e o tradicional já se
encontravam presentes em intervenções de grupos como o Balé Popular do Recife, 5

Movimento Armorial,6 Maracatu Nação Pernambuco, 7 Movimento Negro Unificado,

carreira solo iniciada em 1984 acompanhado da banda Rebeldia, integrava a banda Flor da Terra, banda
na qual teria iniciado seus experimentos e fusões de ritmos locais.
3
Valdir Afonjá é musico nascido no Recife em 20/08/1964, participou de diversos eventos durante a
década de 1980, inclusive propondo a mistura de elementos musicais.
4
Podemos constatar a atuação de diversos artista propondo mesclas com estilos musicais diversos.
Matérias de jornais podem nos mostrar a atuação de diversos desses artistas como em: Ívano faz show na
Casa da Cultura. Jornal do Commercio, 01/02/1987, Caderno C, p. 07; Noite Afro-Olindense e Opção de
amanhã no Centro de Arte. Jornal do Commercio. 07/02/1987, Caderno C. p. 06; Valdir Afonjá mostra
em disco Negra Magia. Jornal do Commercio, 16/08/1988, Caderno C. Roteiro, p, 05; Valdir Afonjá faz
novo show. Jornal do Commercio 14/01/1989 Caderno C, p. 06.
5
O balé popular do Recife foi fundado em 1977. Grupo teatral que junta encenação e dança
representando em inúmeros palcos as manifestações da cultura existente no nordeste brasileiro.
Divulgando a cultura nordestina no Brasil e no Mundo.
6
O Movimento Armorial surge nos anos 1970 no departamento de extensão cultural da UFPE com
Ariano Suassuna e colaboradores. Com inspiração nas questões abordadas do cenário popular do
Nordeste brasileiro, cria uma arte erudita partindo das raízes populares relacionando com outras áreas. A
literatura (cordel), espetáculos teatrais (Mamulengos: bonecos movimentados por paus e cordas, Cavalo-

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entre outros. Cada um, ao seu modo, tentou promover um composto de “resgate” e
recriação das manifestações ditas tradicionais. Não nos esqueçamos de que Chico
Science já perambulava pelas ruas de Peixinhos, quando visitava os ensaios da banda
Lamento Negro, que nos anos 1980 tocava samba reggae ao estilo cover das bandas
baianas Muzenza e Olodum. Uma das grandes figuras do movimento manguebeat,
Renato L, recorda um dos momentos em que ele e amigos presenciaram as palavras de
Chico Science ao regressar do ensaio da banda Lamento Negro:

Na mesa acho que bebiam Mabuse, Fred, Vinícius Enter e outros. De


repente, Chico apareceu e sem nem sentar foi anunciando “olha, fiz
uma jam session com o pessoal do Lamento Negro e mesclei uma
batida disso com uma batida daquilo e um baixo assim...Vou chamar
esse groove de Mangue! (L. Renato, 2015)

Entre tomar cervejas e escutar discos nas casas dos amigos, se encontravam para
ouvir músicas de artistas como James Brown, Jorge Bem, Afrika Bambaataa, entre
outras personalidade da música estadunidense. Suas experiências com aquelas batidas,
aliadas as suas vivências no rock, rap e soul, lhe permitiram pensar na criação de um
ritmo formado a partir do encontro destas sonoridades. Para o jornalista José Teles
(2013; 2012), o Movimento Manguebeat, na década de 1990, irrompe com radicalidade
inovadora o marasmo da década anterior. Teles apresenta de modo recorrente, o
discurso que chamarei aqui de ‘hiato cultural’, referindo-se a década de 1980. Teles é
entusiasta do rock, e esse pop/rock aliado aos elementos da globalização estourou na
década de 1990 com o movimento Mangue, que encantando mentes e corações de
jovens de sua época ultrapassou as fronteiras do estado de Pernambuco. Aprendemos
com a história, sobretudo com a nova história, a desconfiar de determinados fatos que
são dados como absoluta verdade, e este discurso se tornou público, e quase não passam

marinho, Bumba meu Boi), pinturas (xilogravura), cinema, música (violão, rabeca, tambores), são alguns
dos vários interesses do movimento com a arte. Surgido em âmbito universitário, teve apoio de órgão da
administração pública como a Prefeitura do Recife e de outros artistas como Francisco Brennand e
Raimundo Carrero. Também podemos citar como ressonâncias dele o Balé Armorial, Orquestra Armorial,
Orquestra Romançal e Quinteto Armorial.
7
O grupo percussivo Nação Pernambuco é um grupo fundado em 1989 pelo bailarino Bernardino José e
jovens de classe média envolvidos com dança, teatro e música. Este grupo percussivo de maracatu foi
muito importante na movimentação cultural dos anos 1990. Ajudou a divulgar as batidas dos maracatus
para a classe média do grande Recife participando em diversos palcos de festivais em Pernambuco, Brasil
e Mundo. Realizando além das apresentações nos palcos realizam desfiles nas ladeiras de Olinda e Recife
Antigo.

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por análises. Me incomodei e ‘aquela pulga atrás da orelha’ não me deixou continuar até
que voltei os olhos para os mesmos periódicos e tentei observar o que se passava
durante a década anterior, 1980, nas linhas de tais jornais. E não foi surpresa encontrar
diversos eventos ocorrendo na Manguetown, antes mesmo dos mangueboys.
Mediante analises dos jornais pernambucanos dos anos 1980, notadamente
Diário de Pernambuco e Jornal do Commercio, encontramos diversas notícias sobre as
atuações de artistas articulando e experimentando outros estilos musicais com as ditas
‘coisas da terra’, ou seja, ritmos da cultura popular local. Percebe-se, por exemplo, que
já existiam algumas propostas de combinações de ritmos em curso, propondo a fusão do
afoxé com o maracatu, e destes com o reggae. 8 Durante a década de 1990 com os
mangueboys, o rock and roll vai ser o som do momento, e objeto de combinação para as
fusões com estes ritmos locais, e não mais será o reggae. Valdir Afonjá, em 1988,
ressalta as características da música que sua banda apresentará em um dos shows do
novo disco chamado Negra Magia:

Vai ser uma noite em que o som forte da mãe África será estrela
principal. Não a música pseudo-afro ‘from’ Bahia (...) mas sim, o som
marginal de Valdir Afonjá e que ele fez questão de realçar nesse seu
primeiro disco ‘Negra Magia’ (...) Uma das principais responsáveis
pela qualidade do som desse disco é a banda que toca com Valdir.
Formado por músicos experientes e muito conhecidos no cenário
musical local, o grupo dá mais elasticidade ao som produzido e
executa com competência todas as Salsas, os reggaes, os sambas e os
funks existentes ao longo de todas as faixas do ‘negra magia’. ‘Iereci’
é um exemplo dessa fusão de ritmos onde do Aponijé (ritmo do
candomblé) a Rebento passa para o calipso sem se perder ou fazer
‘salada’. Em ‘Black Soul’ o reggae se funde com o funk, criando um
ritmo totalmente negro [...] (Jornal do Commercio, 16/08/1988,
Caderno C, p. 05)

Estamos apresentando informações nas quais fusões não foram algo tão inovador
na ideia dos mangueboys, quanto se fez pensar, mas faziam parte de experimentações e
ideias que acompanhavam artistas durante a década de 1980. Em outra matéria, desta
vez no Diário de Pernambuco, o cantor Ívano diz:

(...) Sinto-me fiel por minha música retratar o Recife e, também, a


época em que vivo. Testemunha minha perseverança em ficar

8
Valdir Afonjá mostra em disco Negra Magia. Jornal do Commercio, 16/08/1988, Caderno C. Roteiro, p,
05; Valdir Afonjá faz novo show. Jornal do Commercio 14/01/1989 Caderno C, p. 06, nesta matéria
Valdir Afonjá fala sobre a proposta de Misturar os elementos da música em apresentação na cidade de
Ipojuca, no espaço Estrela do Mar.

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desenvolvendo um trabalho altamente baseado nos ritmos do Nordeste


como a ciranda e o maracatu, sem fugir da minha profunda dedicação
e identificação para com o ‘reggae’. Por minha audácia, meu swuing
(sic), meu ritmo e minha coragem de falar, sinto-me um guerrilheiro
musical, daí o título deste show, diz Ívano. (Diário de Pernambuco,
03/11/1985. p. b8)

Outras matérias poderiam ser aqui reproduzidas, entabulando discursos de


misturas, fusões, ritmos e resgates. Provavelmente, partes destas matérias foram lidas e
alguns desses momentos partilhados por Chico Science, Fred Zero Quatro e Renato L.
Viviam em uma cidade permeada por tais discursos. Mas, se tudo é resultado de
misturas, o que constituía o Movimento Manguebeat? Além da combinação de ritmos,
permeados por letras alusivas à politização e formulações de estudiosos de um passado
recente, a exemplo de Josué de Castro. Os mangueboys também se apresentavam
profundamente concatenados com os elementos da world music. As “tradições
populares” foram empregadas como matéria prima em boa parte das performances dos
artistas pernambucanos, e não foi diferente com o Movimento Manguebeat.
Segundo Yudice (2013, p. 28), “A globalização pluralizou os contatos entre os
diversos povos e facilitou as migrações, problematizando assim o uso da cultura como
um expediente nacional”. Percebe-se que os fluxos culturais deslocando-se pelo mundo
são dotados de grande intensidade, forçando, em certa medida, o diálogo intercultural,
gerando inevitavelmente composições entre as várias manifestações culturais locais e
aquelas praticadas em outras localidades. De acordo com Alan Merrian citado por
Kazadi Wa Mukuna (2008, p. 14) define a música como “um produto do
comportamento humano e possui estrutura, mas sua estrutura não pode ter existência
própria se divorciada do comportamento que a produz.” As relações entre música,
movimentos culturais estão em diálogo permanente, portanto, ocorrem em praticamente
todos os espaços onde estão presentes seres humanos.
Que fique claro, não serem estas linhas uma tentativa de negar a originalidade do
Movimento Manguebeat. Muito pelo contrário! O que este historiador intenta é
exatamente mostrar que o Manguebeat não surgiu com um estalar de dedos, ou
puramente da ação, apenas, de Chico ou Fred 04, as atividades de artistas podem ser
pensadas como parte, ou seja, com contribuições de outros tempos. As sementes do
Manguebeat estão presentes nas experimentações de diversos estilos musicais realizados
anteriormente. Os mangueboys certamente escutaram as músicas de Ívano, Valdir
Afonjah, Alceu Valença, Ave Sangria, Nação Pernambuco, dentre outros, para formar

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aquela musicalidade chamada manguebeat. Assim como presenciaram discursos de que


esta ou aquela tradição estava morrendo. Ao que me parece, não penso sozinho, posto
que Ivaldo Lima (2010, p. 375), ao se referir ao Manguebeat, já declarava que:

(...) deve-se pensar que este nada mais é do que uma continuidade de
movimentos anteriores que lhe proporcionaram um contexto
diferenciado, privilegiando músicas baseadas em misturas e fusões.
Chico Science por mais iluminado e inteligente que tenha sido,
seguramente necessitou ouvir as batidas das afayas do maracatu para
perceber a possibilidade de encaixá-las ao som das guitarras
distorcidas do rock. Possivelmente leu as matérias de jornal do final
dos anos 1980 em que artistas negros, a exemplo de Ívano, propunham
a fusão do maracatu com o afoxé e o reggae.

A proposta é deslocar os olhos para outras possíveis contribuições. Ívano em


entrevista a Agenda Cultural do Recife em 2009 (MENDES, 2009, p 25-29),
comentando sobre o Manguebeat, afirma que este movimento obteve uma receptividade
que beirou a exaltação. Pode-se intuir também, que estes movimentos anteriores,
notadamente aqueles em que estavam presentes Ívano e Valdir Afonjá, não possuíam
alianças privilegiadas. Se o grupo dos mangueboys atingia a classe média, podemos
afirmar que Ívano, Valdir Afonjá, entre outros, tocava para a ‘negrada’. Mais uma vez
me apoio em Ivaldo Lima (2010, p. 375), para afirmar que:

O rock se encontrava a toda prova na capital pernambucana, a partir


dos espaços alternativos, festivais de escola e bandas que surgiam com
propostas diversas, povoando os corações e mentes daqueles
interessados e daquelas interessadas em agir, experimentar e criar
novos ritmos, sons e movimentos. Tanto Chico Science, como os
intelectuais do movimento mangue, foram contemplados com os
grupos de rock que lhes antecederam nos anos 1970 e 1980, ao mesmo
tempo em que receberam as dádivas dos grupos populares (maracatus
nação, maracatus de orquestra, caboclinhos, ursos, bois, troças e
clubes de frevo) que lutavam por espaços para existirem e sonharem
com dias melhores. Mas nem por isso se pode deixar de lado outros
fatores já citados nestas linhas, a exemplo do crescimento de consumo
de músicas “exóticas”, ou mesmo da abertura de mercado
proporcionada pelo crescimento da indústria do turismo local.

Os espaços e contribuições aos quais se refere o historiador acima são os


movimentos Udigrudi dos anos 1970, e a cena local do Recife na década de 1980. Estes
eventos anteriores devem ser pontuados como contribuintes para este movimento? Não
como mera continuação ou reprodução, mas como parte de um contexto em que foram

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sendo gestados. Ou seja, o novo não é assim tão novo, ou, parafraseando o velho
guerreiro (Chacrinha), nada se inventa, tudo se copia e se recria!

O caldeirão do Rock pernambucano mexe com a cidade.

Diversos jovens que estiveram envolvidos com Movimento Manguebeat


estavam envolvidos em festivais proporcionando movimentação na cidade do Recife
nos anos 1980. Percebemos que o rock produzido nos anos 1980 pode ser pensado como
subsídio significativo aos jovens caranguejos. Um espaço congregava nos finais de
semana as bandas que recentemente tinham sido formadas e as que já possuíam alguma
estrada. Este espaço ficava situado na Avenida Conselheiro Aguiar, bairro de Boa
Viagem (zona sul da cidade), e se chamava espaço Arte Viva que teve importância
significativa para o movimento das bandas de rock dos anos 1980. Bandas como
N.D.R., Persona, Orion, Câmbio Negro H. C., Realidade Encoberta, The Ax, dentre
outras, apresentavam-se no palco deste cenário alternativo. Fundado em 1985. O espaço
pertencia a Lurdes Rossiter conhecida pelo pseudônimo ‘A bruxa do Rock’, e este era o
cenário em que as bandas de rock se apresentavam (TELES, 2010, p. 225-261).
Pode-se afirmar que por seus palcos passaram nomes que mais tarde iriam
compor bandas do Movimento Manguebeat, a exemplo de Eder o Rocha (a época
pertencia à banda Arame Farpado, e posteriormente integrou o Mestre Ambrósio),
Niltinho (Alma em Água e Chão e Chinelo), Zero Quatro (Mundo Livre S/A), Chico
Science, Lúcio Maia e Dengue (Orla Orbe e Lamento Negro). A banda Devotos (na
época acrescida “do Ódio”), também realizou shows neste espaço alternativo do rock
recifense. Este foi o primeiro espaço para muitas bandas da região metropolitana do
Recife tocar, e ali tiveram oportunidade de se apresentarem pela primeira vez. Outros
espaços eram frequentados e movimentados no cenário do rock pop na cidade. Como
exemplo o Festival Mauritztadt no Sítio da Trindade, localizado na Estada do Arraial, nº
3259, em Casa Amarela, zona norte do Recife. 9
As relações com o Punk Rock inglês da década de 1980 estavam presentes na
estética do Movimento dos anos 90, notadamente em termos de atitude, contestação e
estética. A banda Mundo Livre S/A, possui esta característica bastante próxima com o
punk, Chico Science & Nação Zumbi estabelecem também as filiações do punk rock

9
Para adquirir mais informações sobre este festival ver: Folha de Pernambuco, 08/12/ 1989, p. 11; Folha
de Pernambuco, 09/12/ 1989 p. 10-11.

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com o Movimento Manguebeat, conectando ‘toda uma produção musical baseada na


união de atitude, performance, pop e moda’ (LEÃO, 2002, p. 15). Pensemos juntos
agora: esta década é muito importante, uma vez que nela estão bandas que mais tarde
integrar-se-ão ao cenário do Movimento Manguebeat.
O Movimento Manguebeat fez sucesso, e estes movimentos anteriores não
tiveram tanta repercussão, por quê? Os mangueboys possuíam estreitos laços com
pessoas nas mídias locais. 10 Não parti do pressuposto que, apenas isso foi responsável
pelo sucesso das bandas, mas que tal relação, penso, contribuiu sobremaneira para sua
difusão. No caso, o Sistema Jornal do Commercio de Comunicação é praticamente o
definidor destas relações de amizade entre os jornalistas envolvidos com o movimento,
e isso ajuda a entender a mídia expressiva que tinham. Certamente isto contribuiu e
muito para a visibilidade inicial do movimento que, provavelmente, ajudou a dar um
salto de visibilidade ao que se fazia naquela época.
O sucesso do Manguebeat não deve ser visto como resultado destas relações
apenas, especialmente pelo fato de que os músicos desta cena serem dotados de eximias
qualidades e ideias magistrais, mas, podemos pensar que o capital simbólico destas
amizades auxiliara, e muito, na badalação do movimento, o que aparentemente não
ocorre com outros jovens artistas na década de 1980. Parcela desse sucesso,
seguramente, pode ser depositada na conta da mídia recifense. Com isso, podemos
entender que os jornais criaram sentidos (e fatos!) O objeto do jornalista é o tempo
presente, imediato e fugaz, e nele deixa suas impressões. Não há total imparcialidade na
relação entre jornalista, matéria e objeto, assim como não há em nada daquilo que sofre
a ação humana.
Em diferentes matérias jornalísticas dos primeiros anos da década de 1990, os
mangueboys são alçados ao lugar de “salvadores da cultura pernambucana”, ou, aqueles
que iriam dar as condições para que os pernambucanos fizessem frente às ‘invasões’ da
música baiana que dominava as rádios e os carnavais do período. Não determinam, mas
contribuem para moldar práticas e costumes, dando a estas visibilidades e atribuindo
valores, além de propiciar espaços de atuação. Os mangueboys ganham espaços em
programas de televisão, documentários e vídeos clipes bem antes de seu primeiro Cd,
Da Lama ao Caos. Coincidência? Trama orquestrada para uma conspiração? Nada
disso. O que há é o engendramento e a materialização de relações entre músicos,

10
Podemos ainda perceber que o ciclo de amizades entre os jornalistas Fred Montenegro (Zero Quatro),
Renato L e Xico Sá, criam consequentemente a propagação da ideia na mídia.

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homens do palco, e jornalistas, homens das mídias. Esta associação propiciou que
interessantes ideias e formulações ganhassem espaço. Não foi por que Chico Science
ganhou mídia que ele se tornou genial, mas, por ser versátil e fantástico que teve seus
caminhos facilitados. Claro que muitos homens e mulheres virtuoses não tiveram o
mesmo destino, mas estou aqui ressaltando que os mangueboys, para além de suas
habilidades, possuíam relações que outros movimentos não dispuseram.

CONSIDERAÇÕES

Como pensar as relações em diversos meios de comunicação, a exemplo da


internet, TV e o cinema, sem estabelecer as escolhas e as produções? As músicas de
Chico Science, Ívano e Valdir Afonjá eram boas, mas, como explicar o sucesso de uns e
a invisibilidade de outros? O que a imprensa viu em Chico Science que não viram em
Ívano, Valdir Afonjá, dentre outros? Estamos diante de “um sucesso”, fruto da natureza,
ou, em outras palavras, o bom, simplesmente por que é bom? Ou é possível dar início a
questões a partir da combinação entre gostos, escolhas e construção? Estes meios de
comunicação moldam os gostos e a percepção do indivíduo na sociedade. Talvez não
intencionais, mas por pura afinidade, mesmo assim inserem e fixam no espectador uma
ideia, imagem ou discurso, confirmando o poder da informação. Por meio desta
propagação de ideias, estereótipos, clichês e gostos é que se apresenta sob formas
“naturalizadas”, uma estética e determinados padrões que condicionam o que deve ou
não ser consumido (YUDICE, 2010).
O problema consiste em determinar o que “é” ou “não é”, colocando reputação
em ser de determinada maneira ou, em caso negativo, se adequar a ela. Modelando a
percepção de realidade de uma significativa parcela do tecido social. Os que detêm
maior poder simbólico podem construir representações frente a quem não detém tanto
capital simbólico, sobretudo na mídia contemporânea (BORDIEU, 1989). Mesmo
assim, diversos segmentos se inserem nestes meios tentando quebrar esta massificação e
reverter uma lógica imposta principalmente para as massas, empregando táticas para
burlar esta dominação. O campo de produção cultural na cidade do Recife nos anos
1990 é parte de uma construção, por meio de discursos da imprensa enaltecendo as
realizações dos mangueboys.
Este imaginário se constituiu por meio da composição em redes, que ligavam os
mangueboys a tudo o que estava sendo realizado, dissociando-os de um passado recente,

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destituindo-os de suas conexões com as contribuições e ideias propostas ao longo dos


anos 1980 por outros artistas. Estas composições, bem como suas alianças, circulavam
informações, e assim criou esta definição que acompanha o discurso de quem fala sobre
a cultura pernambucana na atualidade. Neste ínterim o benefício da dúvida ficou
deveras prejudicado. Visto que “os campos de produção cultural propõem, a quem nele
está envolvido, um espaço de possíveis”, quais sejam as possibilidades que resultam da
construção definida, que ganha status de verdade, mas que nada mais é do que
representação de uma dita realidade (BORDIEU, 2011, p. 53-73).

REFERÊNCIAS

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VALDIR Afonjá faz novo show. Jornal do Commercio 14/01/1989 Caderno C, p. 06.

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ISBN: 978-85-415-0980-0

DA POESIA ÀS ARMAS: O LUGAR DA LITERATURA AFRICANA DE


EXPRESSÃO PORTUGUESA NOS MOVIMENTOS DE LIBERTAÇÃO EM
ANGOLA, MOÇAMBIQUE E CABO VERDE
Matheus Henrique da Silva Lima (Graduando, UFRPE,
matheushenrique.historia@gmail.com)

Tomando como base a importância fundamental que as fontes literárias possuem no


processo de construção de um conhecimento histórico acerca dos processos de
libertação do domínio português, em África, o presente trabalho tem como problemática
central conhecer e analisar as produções literárias, especialmente as oriundas da Casa
dos Estudantes do Império (1944 -1965), ensejadas por intelectuais das colônias
portuguesas africanas (Moçambique, Angola e Cabo Verde) que se tornaram líderes, em
seus lugares de origem, dos movimentos de resistência. Neste sentindo, compreender
como a literatura e os diálogos oficias deixam de figurar enquanto ação primeira de luta
e acabam substituídos pela luta armada, adotada em virtude do anseio por uma
aceleração do processo de libertação quanto em função do enrijecimento da violência
colonial, coaduna grande parte dos esforços desta proposta. Desse modo, os acervos
digitais da Fundação Mário Soares (FMS) e da UCCLA (União das cidades capitais de
língua portuguesa) bem como a leitura de artigos, dissertações e teses ligadas ao tema
compõem nosso lugar de análise. Portanto, visando elencar o enorme mosaico de ações
frente ao colonialismo português, a poesia e as armas aparecem enquanto mecanismos
preponderantes para a afirmação da luta anticolonial.

Palavras-chaves: Literatura. História da África. Resistência.

INTRODUÇÃO

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Tomando como base o importante diálogo entre a História e a Literatura, as


produções literárias, nas colônias africanas até então sob o domínio do império
português, especialmente durante a segunda metade do século XX têm na poesia um
espaço de resistência, e de formação de uma consciência e sentimentos anticolonialistas.
A Casa dos Estudantes do Império (CEI), principal espaço desta produção, congregou
um número relativo de estudantes e escritores africanos provenientes das colônias
portuguesas, que assumem uma postura de enfrentamento contra “(...) o colonialismo
[que] deixava uma sucessão de lacunas na história dessas terras e muitos escritores,
falando de diferentes lugares e sob diferentes perspectivas, parecem assumir o papel de
preencher com o seu saber esse vazio (...)” (CHAVES, 2004, p. 147). Nossa pesquisa
tem tido, então, como meta conhecer a Casa dos Estudantes do Império (CEI), ler e
analisar as produções literárias daqueles que, mesmo instalados no território do
colonizador, continuaram a luta contra a dominação colonial, em defesa das tradições e
dos valores de sua sociedade, através da poesia e outros gêneros literários que tinham
como eixo central, o tema da resistência e da valorização da cultura negro africana
marginalizada pelo colonizador.

Na segunda metade do século XX e com a “crise dos paradigmas da História”, a


literatura se consolidou como fontes histórica (CHARTIER, 2015, p. 09 -15), abrindo
novas possibilidades metodológicas, que passaram a ser utilizadas pelos historiadores.
De acordo com Chartier, “a literatura se apodera não do passado, mas também dos
documentos e das técnicas encarregados de manifestar a condição de conhecimento da
disciplina história” (CHARTIER, 2015, p. 27). O uso da literatura como fonte histórica
pressupõe aproximações metodológicas que concebem a escrita da história como “um
poema, um quadro, um drama: documentos para nós, testemunhos de uma história viva
e humana, saturados de pensamento e de ação em potência” (FERREIRA, 2013, p. 64).

Neste caso, a proposta deste trabalho toma como base de discussão as relações
que perpassam as “formas de explicar o presente, inventar o passado, imaginar o futuro”
utilizadas por ambas formas de produção, uma vez que “valem-se de estratégias
retóricas, estetizando em narrativa os fatos do quais se propõem falar” (PESAVENTO,
2005, p. 81). Partindo dessa perspectiva, a CEI (Casa dos Estudantes do Império),
especificamente pela representação das obras condensadas na coleção “Autores

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Ultramarinos”1, foi considerada como um espaço político associado a um fenômeno


histórico e cultural, em decorrência dos seus objetivos políticos estabelecidos pelo
regime e aquilo que se tornou seu cotidiano de luta e representações de resistência,
fomentadores de uma produção significativa dos estudantes do império.
Em outras palavras, o CEI se tornou muito mais uma expressão que manifesta
visões de mundo de indivíduos e grupos, neste mesmo sentido, expressando emoções e
incorporando difusamente o conhecimento que traz consigo, do que uma residência
estudantil do império (FERREIRA, 2013, p. 67). No entanto, a omissão da
historiografia ‘profissional’ portuguesa negou à CEI (CASTELO, 2011, p. 02), a
proposta de ser analisada como uma associação, como um espaço de memória2 e de
consciencialização política (MATA, 2015, pp. 09 -15). A CEI é uma instituição política
do regime, mas também um arquivo vivo e de fôlego, muito importante para
compreendermos o cenário vivenciado pelas ex-colônias lusófonas, durante o ferrenho
processo de emancipação das colônias do domínio português. Do CEI se tem
apontamentos da conjuntura do processo de descolonização, fundamentais para os
estudos do fim do império português em África.
Por esse ângulo, a palavra precisa ser pensada a partir de suas várias nuances,
como propõe Alfredo Bosi (2003). É o caso da poesia, que na sua função de ação e
contradição3 se pode perceber as justificações e racionalização do poder por parte das
ideologias dominantes, muitas vezes representada na poesia que se torna objeto da
historiografia sobre as guerras de independência em Moçambique, Angola e Cabo-
Verde. De qualquer modo, segundo Bosi (2003), a concepção de poesia pode ser
entendida como uma espécie de fio condutor na tentativa de expressar as experiências
mais íntimas e significativas do ser humano (p. 84). O que nos leva a pensar a poesia da
CEI como representação do espaço de vivências e experiências nas colônias e na
metrópole.

1
Coleção integral de 22 volumes que os até então jovens associados à Casa do Estudante do Império
publicaram através dos editoriais da CEI. Em 2015, a UCCLA (União das Cidades Capitais de Língua
Portuguesa) e a ACEI (Associação da Casa dos Estudantes do Império) coadunaram, reeditaram e
publicaram a coleção. Disponível em: http://www.uccla.pt/noticias/edicoes-da-casa-dos-estudantes-do-
imperio//. Acesso em: 10/12/2016.
2
NORA, Pierre. Entre memória e história: a problemática dos lugares. In: Projeto História. São Paulo,
nº 10, p. 7-28, dez. 1993;
3
Ao assumir um caráter eloquente, político e ao expressar os sentimentos mais profundos do homem
(BOSI, 2003, 83 -87).

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No entanto, a CEI não é só o espaço literário que esboçou inúmeras formas de


combate ao colonialismo, na viragem da década de 1950 e 1960, se torna também lugar
marcado por uma consciencialização política que se estende ao campo das
formalizações, neste caso, das organizações políticas que se digladiavam na luta de
libertação (VILLEN, 2013, pp. 32 -40), uns defensores e outros contra.
Vale salientar então que, além da poesia, a resistência e a luta pela descolonização
também se dá através de organizações, partidos políticos e a adoção da luta armada,
enquanto instrumento de resposta à violência da colonização. Mais do que isso, as lutas
pela emancipação ganham corpo também a partir de várias ações, entre elas, a
promoção de conferências (1958, Conferência dos Estados independentes Africanos) e
encontros entre líderes dos movimentos através da OUA (Organização da Unidade
Africana) e CONCP (Conferência das Organizações Nacionalistas das Colônias
Portuguesas), que contribuíam para o intercâmbio de formas de resistência e
enfrentamento às forças coloniais:

Todavia, além da luta armada contra o exército colonial português, esses


movimentos tiveram mérito de abrir ao mundo suas campanhas de crítica ao
sistema de exploração sistemática e racista do regime colonial português
(VILLEN, 2013, p. 43).

E é neste âmbito da produção literária e pela ação de movimentos e organizações


que se mescla o anseio de que haja o “reconhecimento internacional no âmbito jurídico
da legitimidade da luta armada e, por consequência, a criminalização do colonialismo”
(VILLEN, 2013, p. 43), que põe em questão o colonialismo nas décadas de 1950-70.

PERFIL DOS ESTUDANTES QUE LOGRAVAM À METRÓPOLE E O LUGAR


DA LITERATURA NO PROCESSO DE CONSCIENCIALIZAÇÃO

Identificar o perfil dos estudantes que se direcionavam à metrópole


(especialmente para cursarem o ensino superior) se torna importante tendo em vista que
grande parte desse alunato irá compor os quadros das várias seções da CEI, bem como
darão origem às elites políticas coloniais que fizeram parte dos movimentos de
libertação interna. Nessa perspectiva, de acordo com Venâncio (1992), acerca do ensino
formal destinado aos colonizados, o modelo implantado nas colônias designava, para os
estratos superiores, uma pretensa cópia do modelo metropolitano, todavia, dois grandes

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problemas de qualidade faziam parte do cenário educacional das possessões: a falta de


professores e a urgência que as autoridades coloniais possuíam em tornar o ensino algo
quase que exclusivamente profissionalizante. De acordo com Venâncio (1992), “alguns,
muito poucos, dos absolventes do grau secundário lograram deslocar-se à metrópole e
frequentar um curso universitário em circunstâncias iguais às dos seus colegas
europeus” (p. 06). Esse grupo, segundo o autor, passa por dois momentos fundamentais
para a construção de um panorama literário de uma literatura africana de língua
portuguesa. O primeiro diz respeito a um processo de tentativa de identificação com o
colonialista; o segundo seria o de reconhecimento de uma inautenticidade cultural e
humana – que tinham caído – após a consolidação da primeira fase. Concernente ao
segundo momento,

Esta descoberta é o início de um processo de consciencialização que passa


pela reivindicação da autenticidade cultural do seu status com os meios de
expressão que o colonizador lhes legara: o idioma e a faculdade de se
expressarem literariamente nele (VENÂNCIO, 1992, p. 07).

Desse modo, a inautenticidade expressada através do idioma do colonizador


desvelava, por parte dos estudantes africanos alocados na metrópole, um duplo olhar de
desconfiança uma vez que eram “(...) olhados com desconfiança pelos africanos das
sociedades tradicionais e sem serem aceitos na sua plenitude de homens livres e
pensantes pelas sociedades colonial e metropolitana (...)” (p. 07). O olhar do
colonizador, marcado por inúmeros estereótipos, aparecia como entrave na legitimidade
dessa classe intelectual, como resposta a toda essa descrença

(...) eles não só dão mostras de que intelectualmente eram capazes de


orientar o seu próprio destino, o que até aí havia sido posto em dúvida, como
também poderiam porventura com a sua retórica sensibilizar franjas
intelectuais da metrópole para a sua causa (VENÂNCIO, 1992, p. 07).

E é aproveitando o ensejo desse processo de reconhecer as incredulidades por


parte dos colonos que movimentos estético-literários como a negritude e o pan-
africanismo acabaram sendo utilizados enquanto base teórica para muitos desses
intelectuais. No entanto, é preciso levar em consideração que apenas nas décadas de 40
e 50, do século XX, é que as elites lusófonas passaram a assumir uma postura que
dialogava com uma consciencialização enquanto grupo social. De acordo com Venâncio

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(1992), isto faz parte de um longo processo histórico que acaba tornando-as particular
(p. 12).

É nesta correnteza, com a efervescência do que Venâncio (1992) chamara de


viragem literária4 entre as décadas de 1950 e 1960, com a reinvindicação política agora
em primeiro plano, que os associados da CEI iniciariam suas intervenções políticas e
culturais durante as suas produções (Agostinho Neto, por exemplo, que na década de
1950 intensificou sua participação em atividades políticas nas quais tinham como cerne
de discussão os processos de libertação dos países africanos, especialmente do julgo
português)5. Ao contrário do que se pode cogitar – de que grande parte dos associados à
CEI, principalmente os responsáveis pelas obras agrupadas na Coleção Autores
Ultramarinos – os estudantes não estavam diretamente ligados aos cursos na área das
humanidades, o intercâmbio dos ideais políticos, culturais, estéticos e literários se
estendiam até indivíduos que faziam parte academicamente de várias áreas de
conhecimento. Outro ponto interessante, e neste caso dialogando com a documentação
consultada na FMS (Fundação Mário Soares)6, é o tocante relacionado aos recursos
financeiros necessários para prosseguir a jornada e estadia na metrópole. Diante disso, a
concessão de bolsas também era instrumento utilizada pelo regime (dentro da
plataforma da FMS, há documento que diz respeito a um anúncio de uma bolsa de
estudos a ser concedida na metrópole pela CEI a Amílcar Lopes Cabral, o documento
fora publicado pelo Boletim Oficial de Cabo Verde, n° 38, 19457).

De antemão, e como já mencionado anteriormente, é preciso levarmos em


consideração que a formação inicial bem como acadêmica, dos estudantes africanos,
trazem consigo a ideia de que “o elemento europeu ainda desempenha um papel de

4
Aparentemente já esboçada e nutrida pela criação de organizações (Liga Africana, 1920), a realização de
eventos (os congressos Pan-afrinacistas), publicações de livros (Ilha de Nome Santo, de Francisco Jose
Tenreiro, 1942) e junção de intelectuais que figurariam pelos espaços da CEI (Francisco J. Tenreiro e
Mario Pinto de Andrade, em 1963, publicaram juntos o Caderno de Poesia Negra de Expressão
Portuguesa) (VENÂNCIO, 1992, pp. 18 -20).
5
Disponível em: http://www.lusofoniapoetica.com/artigos/angola/agostinho-neto/biografia-agostinho-
neto.html// Acessado em: 19/01/2017.
6
Disponível em: http://casacomum.org/cc// Acessado em 20/01/2017.
7
(1945), "Anúncio de uma bolsa de estudos a conceder na metrópole pela Casa dos Estudantes do
Império a Amílcar Lopes Cabral", CasaComum.org, Disponível HTTP:
http://hdl.handle.net/11002/fms_dc_42999//. Acessado em: 20/01/2017.

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relevo na composição somática dessa elite” (VENÂNCIO, 1992, p. 10). E é por essa
perspectiva que as elites letradas lusófonas fazem parte de um longo historial que as
torna particular – especialmente por remontarem produções desde o século XVII.

Incialmente, em diálogo com o lugar da literatura, o processo de


consciencialização teve seus primeiros passos sedimentados por um caráter cultural, em
outras palavras, as décadas de 1930 e 1940 arregimentaram produções que tinham como
intencionalidade textual primeira a reivindicação cultural. Apenas em fins da década de
1940 e no início de 1950, de acordo com Venâncio (1992), fora que as elites lusófonas
passaram a assumir uma consciencialização enquanto grupo social (pp. 12 -13). Cabe
destacar, desse modo, a presença de um influente número de cabo-verdianos e do
movimento da Claridade (mesmo tendo muitas aproximações com os universos estéticos
e culturais que predominavam na metrópole) (p. 15). Nessa perspectiva, outros grupos
de literatos foram ampliando seu campo de publicação, como no caso da emergência do
grupo Certeza (1944). Ainda de acordo com o autor, os anos que sucedem a criação do
grupo também revela um certo marasmo nas publicações, que por sua vez fora
concomitante a manifestação de estudantes em outros dois pontos do Império: Luanda e
Lisboa. Enquanto em Luanda se destacavam, inicialmente, os intelectuais de cor, em
Lisboa os estudantes africanos darão “ (...) início ao seu processo de consciencialização
e simultaneamente de libertação pelo reconhecimento da incapacidade de sobrevivência
somática numa sociedade de brancos (...)” (VENÂNCIO, 1992, p.17).
Enquanto o grupo de Lisboa, formado por intelectuais oriundos doutras
colónias, para além de Angola (exceptuando Cabo Verde), se sentirá bastante
ligado ao pan-africanismo, por um lado, e ao movimento Negritude, com
sede em Paris, pelo outro, o grupo de Luanda, de motivações políticas mais
concretas, circunscrito ao espaço político de Angola, sentir-se-á mais ligado
ao modernismo brasileiro e porventura [via Castro Soromenho?)] ao neo-
realismo português. (VENÂNCIO, 1992, p.19)

A mescla de sensações que envolvia o estranhamento a uma sociedade somática e


majoritariamente formada por brancos fomentou, paulatinamente, a necessidade dos
estudantes, advindos das colônias, em repensarem as ações coloniais e suas implicações
nas sociedades de onde eram oriundos – assim com o lugar que ocupavam dentro da
conformação metropolitana.
A escrita literária expressava a tensão existente entre esses dois mundos e
revelava que o escritor, porque iria sempre utilizar uma língua europeia, era
um “homem-de-dois-mundos”, e a sua escrita, de forma mais intensa ou não,
registrava a tensão nascida da utilização da língua portuguesa em realidades
bastante complexas. Ao produzir literatura, os escritores forçosamente
transitavam pelos dois espaços, pois assumiam as heranças oriundas de

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movimentos e correntes literárias da Europa e das Américas e as


manifestações advindas do contato com as línguas locais. Esse embate que se
realizou no campo da linguagem literária foi o impulso gerador de projetos
literários característicos dos cinco países africanos que assumiram o
português como língua oficial. (FONSECA e MOREIRA, 2007, p. 13)

Dessa forma, várias produções foram divulgadas no intuito de dar ainda mais
consistência às indagações feitas por esses intelectuais, especialmente/inicialmente os
angolanos. Esse pioneirismo vindo de Angola, segundo Venâncio (1992), traz consigo
duas explicações: “a agudização da repressão colonial e a necessidade de se lançar à luta
armada” (p. 24). Este último ponto, a despeito da luta armada, teoricamente pressupõe a
ideia de que haja uma compreensão e interação com o público leitor, no sentido de
contemplar possíveis guerrilheiros. Tal escrita tinha como característica um certo tom
messiânico e contava com meios de divulgações específicos, os boletins. Desses
podemos destacar Mensagem e Cultura II, que lançaram a esses autores constantes
oportunidades de publicação, mais do que isso, a retomada do boletim da CEI (após o
fim da primeira comissão administrativa, 1952 -1957) também colaborou para a
produção e difusão dos textos.
E é deste ínterim que surge o que Venâncio (1992) denomina de “a geração de
50”8 (alguns nomes podem ser mencionados pelo destaque em suas obras, Antonio
Jacinto, Tomás Jorge, Domingos Xavier, Luandino Vieira, Agostinho Neto, Viriato da
Cruz, Carlos Pestana (Pepetela)). Em linhas gerais, o caráter de uma reivindicação
política como prioridade subjaz, segundo Venâncio (1992), em detrimento da “defesa de
uma utopia por parte do topo desta sociedade crioula (...)” que acabara resultando “ (...)
como solução para eliminar as contradições internas à própria sociedade e as
contradições que a opõem ao todo do espaço geopolítico (...)” (p. 29).
De todo modo, a intencionalidade política nas obras vai sendo maturada e
ganhando formas expressivas uma vez que partiam “do princípio de que uma mensagem
literária é tanto mais eficaz quanto mais difícil é separá-la dos elementos formais que a
viabilizam” (VENÂNCIO, 1992, p. 31). Dessa maneira, a consciencialização política
passou a identificar as incapacidades do indivíduo negro de transcender o
enquadramento orgânico que estava vivendo, além do mais, ofertou a possibilidade de

8
Que por sua vez receberam grande destaque pela evidência, em suas produções, com caráter político e
combativo ao regime; por adotarem formas de narrarem as literaturas orais tradicionais para superar as
barreiras urbanas e de alfabetização e utilizarem da infância como um ponto de culminância de seus
sentimentos anti-situacionistas. VENÂNCIO, José Carlos. Literatura e poder na África Lusófona –
Lisboa: Ministério da Educação. Instituto de Cultura e Língua Portuguesa, 1992. pp. 25 -27

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refutar a integração e o seu lugar “feito força de trabalho” (p. 35) diante do sistema
colonial. Em linhas gerais, o combate ao sistema de exploração, a denúncia às
violências, a reivindicação de um estatuto original e o anseio pela emancipação política
dos domínios metropolitanos foram alguns pontos que consubstanciaram a faceta
combativa dessas escritas.

O LUGAR DA CASA DOS ESTUDANTES DO IMPÉRIO

Para entender o lugar social de produção de algumas das literaturas de resistência,


assim como a CEI se tornou um espaço de combate aos discursos do colonizador e de
disseminação de sentimentos anticoloniais e antisalazaristas é preciso que
compreendamos as tensões que atravessaram o período de existência da instituição.
Desse modo, inúmeros acontecimentos (inclusive o papel que a literatura assume na
viragem da década de 1960) acabam por corroborar no entendimento de como a CEI
passou de “filha da Mocidade portuguesa” para um espaço de subversão dos ideais do
regime e “de encontro, troca de ideias, de liberdade e de sonho” (CASTELO, 2011, p.
17). Sendo assim, um importante adendo à sua trajetória é que a Casa dos Estudantes do
Império (e suas delegações no Porto e em Coimbra) traz com consigo inúmeras
ambiguidades ideológicas. Isso porque, a heterogeneidade em relação às ações coloniais
é um elemento presente nos quadros da associação. Segundo Inocência Mata (2015), a
CEI fora palco não só de resistência aos desmandos coloniais, mas também de
reconstrução e manutenção de muitos ideais do colonizador (p. 08 -10).

A Casa do Estudante do Império foi criada em 1944 por um projeto gestado pelo
Ministério do Ultramar (nesse momento tendo como ministro Vieira Machado) e a
Mocidade Portuguesa (tendo como comissário nacional a figura de Marcelo Caetano).
Esse patrimônio formando na década de 1940 reunia a conjunção de estudantes vindos
de várias partes do Ultramar (Angola, Moçambique, Cabo Verde, Macau, Timor, etc),
assim como, em seu início, teve a presença de muitos filhos de funcionários coloniais –
que, neste caso, eram antigos associados de outras casas de estudantes 9. De acordo com
Castelo (2011), os antigos formatos de composição das associações não agradavam o

9
CASTELO, Cláudia. A Casa dos Estudantes do Império: lugar de memória anticolonial. In 7º
Congresso Ibérico de Estudos Africanos, 9, Lisboa, 2010 - 50 anos das independências africanas: desafios
para a modernidade : actas [Em linha]. Lisboa: CEA, 2010. [Consult. ....]. Disponível em:
http://hdl.handle.net/10071/2244. p. 06

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regime, uma vez que reuniam os estudantes em espaços separados (em função da sua
colônia de origem), já que

Por um lado, porque esse facto contraria a ideia de unidade do império


colonial português, propagandeada pelo discurso oficial; por outro, porque
dificulta o controlo das actividades dos sócios. Interessa-lhe, antes, que as
várias associações se fundam numa só, capaz de congregar todos os
estudantes ultramarinos sob a mesma mística imperial (CASTELO, 2011, p.
06).

Nesse sentido, a visita do Ministro Vieira Machado, em 03 de julho de 1944,


oficializa a proposta de união de todas as associações. Diante deste cenário, a literatura
surge como uma espécie de instrumento de manifestação de ideais que contrapunham o
regime e “se prestava mais a estratégias de mensagens codificadas” (MATA, 2015, p.
19). É certo que (...) na falta de documentos políticos, inexistentes ou raros, os africanos
podiam encontrar os elementos essenciais da sua consciência nacional na criação
literária (MARGARIDO, 2014 Apud MATA, 2015, p. 11). De acordo com Inocência
Mata (2015), a década de 1950 (da geração de Amílcar Cabral), preenchida por outras
figuras e com novas propostas para os editoriais, começa a agregar grande importância
na luta contra um opressor comum. E é nessa perspectiva e em consonância a toda essa
consubstanciação dos ideais de liberdade tanto quanto de resistência, o processo de
formalização de organizações políticas – internas, como a FRELIMO, o MPLA, o
PAICG e mais abrangentes, como o MAC e a CONCP – que tinham no seio de suas
fundamentações indivíduos oriundos dos quadros da CEI propiciaram um maior
enrijecimento nas lutas de libertação (MATA, 2015, pp. 11 -13).

A ADOÇÃO DA LUTA ARMADA ENQUANTO INSTRUMENTO DE


COMBATE

As razões da radicalização das frentes de libertação das ex-colônias portuguesas


em África contornam caminhos internos e externos particulares de seus países (Angola,
Moçambique, Guiné-Bissau e Cabo Verde). É perceptível, em linhas gerais, que as
razões externas ganham evidências mais óbvias, isso porque, segundo Cahen (2005),
elas dependem, em primeira instância, mais da natureza política do regime
metropolitano (especialmente entre 1926 -1933 e até 1974), do que da natureza da
colonização portuguesa, uma vez que, suas características continham em si fatores

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bastante favoráveis ao arrefecimento do processo de descolonização (p.46). Sendo


assim, ficara explicito que

O Estado Novo impôs a necessidade de lutas armadas, recusando qualquer


evolução, mesmo depois dos avisos que foram a revolta da Baixa de Cassanje
(Angola, inícios de 1960), o motim de Mueda em Moçambique (16 de Junho
de 1960), o ataque às prisões de Luanda (Angola) por militantes africanos no
dia 4 de Fevereiro de 1961, a grande revolta do norte de Angola na Primavera
de 1961, a perda de São João de Ajuda aquando da independência do Benim
e , por fim, na Índia, a perda de Goa, Damão e Diu, em Dezembro de 1961.
Desde 1961 em Angola, 1963 na Guiné e 1964 em Moçambique, que
Portugal se confrontou com lutas armadas que duraram entre dez a treze anos.
Ora a duração de um processo de luta armada provoca evidentemente
fenómenos de radicalização. (CAHEN, 2005, p. 47)

Todavia, não necessariamente seria viável deduzir um certo teor de parentesco


entre, por exemplo, a FRELIMO, o MPLA e o PAIGC com os partidos comunistas e
soviéticos, tampouco uma ruptura com a ideia portuguesa de nação que havia sido
incrustada profundamente nos meios dos assimilados e crioulos que formavam o núcleo
das organizações. E é por este enveredamento que, segundo Villen (2013), as tentativas
de diálogo com o Estado Novo português cada vez mais se mostravam ineficazes – já
que as dificuldades sociais não eram sanadas (Pp. 34 -40). Deste modo, a adoção das
lutas armadas passou a ser percebida (em diálogo com esse cenário internacional, mas
não necessariamente a sua reprodução) enquanto instrumento historicamente justos para
atingir os objetivos e demarcar quem eram os inimigos10.

As prisões aos intelectuais que, através do campo literário esboçavam reações e


reivindicações frente ao cenário da atuação colonial portuguesa, foram vistos enquanto
ameaças à segurança do Estado e, em grande parte das situações, foram aprisionados em
nome do Regime. No caso de Angola, por exemplo, segundo John Bella (2014),

Tais situações foram criando um espírito de revolta nos angolanos que


procuravam vias, para se acabar com o sistema opressor que se vivia. Os
intelectuais continuavam a criar obras que ressaltavam esta necessidade,
ainda que se encontrassem na prisão. Escritores como Luandino Vieira,
António Jacinto, Jofre Rocha, Manuel Pedro Pacavira, António Cardoso e
outros, nos calabouços não deixavam de escrever. Desta feita, Agostinho
Neto, preso na Cadeia de Aljube, em Lisboa escreve os poemas intitulados
“Depressa” e “Luta”, datados entre Agosto e Setembro de 1960,
respectivamente. Ambas criações vão coincidir com o que vai acontecer na
madrugada do dia 4 de Fevereiro de 1961 (...)Ora, no intuito de libertar os
compatriotas injustamente encarcerados, um grupo de nacionalistas munidos

10
Samora Machel - História da FRELIMO. Disponível em:
http://casacomum.org/cc/visualizador?pasta=04331.006.015// Pg 12. Acesso em: 27/11/2017

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de catanas e poucas armas de fogo atacou as principais cadeias, em Luanda


dando início a Luta Armada de Libertação Nacional11.

E após o reconhecimento oficial do MPA, como movimento de liberação, países


como Argélia e Marrocos se debruçaram em mover ações que pudessem auxiliar os
angolanos, neste caso, toneladas de munições e armamentos, sem os quais não se fazia
guerrilha, bem como treinamento dos guerrilheiros em solo compuseram as ações por
parte desses países. A consequência dessa afirmativa prática fora que, após 3 anos da
adoção da luta armada, o MPLA já ocupava uma “zona libertada” com uma dimensão
duas vezes maior do que Portugal12.

No caso de Moçambique, a FRELIMO coordenou grande parte das ações. O


discurso de Samora Machel, durante o 3º Congresso da FRELIMO, em Maputo, 1977,
ao comentar sobre a adoção da luta armada e suas respectivas consequências, afirmara
que a luta armada era o caminho correto em busca de vitórias maiores e, neste sentido,
entender as contradições dessa atitude também era fundamental para orientar as ações
no seio da organização e buscar arregimentações mais consistentes para a concretização
de seus objetivos. Além do mais, o descrédito concedido, no discurso deste líder, em
relação às tentativas pacíficas de estabelecimento de alguns acordos moveu a
organização a acreditar não só na luta armada em si, mas não extensão dela para todo o
território moçambicano e, por conseguinte, nos países que digladiavam contra o regime
colonial13.
Pois bem, alguns pressupostos amarravam a definição de sair do campo
diplomático para uma atuação mais ferrenha, nesse caso, desde o processo de
consciencialização política (com forte contributo literário, mas que não necessariamente
contemplava grande parte da população e sim muito mais os militantes, já que o recurso
de ler e interpretar o português ainda era um desafio) até a adoção da luta armada. Seja a
inconformidade em relação aos desmandos e violência do colonizador, a pobreza e
miséria que arrodeava a população ou o anseio pela libertação, a mobilização dos
quadros em formatos que se demonstrassem maior eficácia frente ao regime colonial

11
Disponível em: http://www.agostinhoneto.org/index.php?option=com_content&id=1110%3Ao-4-de-
fevereiro-e-o-inicio-da-luta-armada-em-angola&showall=1// Acesso em: 27/10/2017
12
Disponível em: http://www.agostinhoneto.org/index.php?option=com_content&id=1110%3Ao-4-de-
fevereiro-e-o-inicio-da-luta-armada-em-angola&showall=1// Acesso em: 28/10/2017
13
Disponível em: (s.d.), "Samora Machel - História da FRELIMO", CasaComum.org, Disponível HTTP:
http://hdl.handle.net/11002/fms_dc_84887// Acesso em: 30/11/2017

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eram ponto de convergência aos movimentos. No caso da Guiné e de Cabo Verde, a


figura de Amílcar Cabral aparece de forma bastante evidente, seja na construção do
PAIGC ou dos moldes de luta.
Segundo as palavras de Amílcar Cabral, a reunião de 19 de Setembro de 1959
foi a mais decisiva da história do Partido, porque foi nesta reunião que foi
preparada a passagem da agitação nacionalista para a estratégia de luta de
libertação nacional, e onde foram adotada três importantes decisões: o Partido
deslocaria as ações para o campo (zona rural), mobilizando os camponeses,
preparar-se para a luta armada, e transferir parte da direção para o exterior
(DUARTE SILVA, 1997, p.43).

Nessa perspectiva, a não aceitação, por parte do governo colonial, em relação a


abertura de negociações com o PAIGC, fizera com que o partido iniciasse
imediatamente a conformação da luta armada.
O PAIGC começa a preparar a luta armada logo depois da já citada reunião
em Dakar, desenvolvendo assim intensas atividades com o objetivo de formar
militantes, implantar limítrofes na Guiné-Bissau, e procurar apoios
internacionais, especialmente nos países socialistas e na ONU. (...) A
experiência das guerras populares na China e Vietnam, e das guerras de
guerrilha em Cuba e na Argélia, levaram os militantes do PAIGC, a
concluírem que a luta armada era o único caminho que podia levar a
independência da Guiné-Bissau e Cabo Verde. (CASSAMA, 2014, p. 70)

Desta maneira, os dirigentes do Partido continuavam por buscar militantes tanto


para o campo da política, assim como para o campo militar, uma vez que, o empenho
para efetivar a lutar armada e fazê-la de mecanismo para todo o território nacional é
princípio fundante nos quadros da organização.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Levando em consideração o contributo da produção literária no processo de


colonização, assim como a atuação dos intelectuais frente às violências coloniais e aos
ideias de libertação que pulularam nessa viragem política (e literária) durante as décadas
de 1950 e 1960, compreender o processo de adoção da luta armada enquanto
instrumento historicamente viável e preenchido, segundo as afirmações das
organizações, de eficácia é fundamental para externar questões peculiares acerca dos
movimentos de libertação dos respectivos países. E é neste ínterim que, desde o uso da
palavra (da poesia) até o uso de armas que, aspectos cruciais são elaborados para a
culminância da libertação desses países frente ao domínio do regime colonial português.

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Tendo em vista também a forte e eminente produção acerca desse recorte


temporal, fruto também do desenvolvimento de pesquisas no programa de iniciação
científica (PIBIC/UFRPE), o presente trabalho buscou condensar a importância da
palavra e das armas na constituição não só de lutas e resistência, mas, também, de certo
modo, na identidade e numa percepção de nação nos territórios supracitados.
Desde a formação educacional dos intelectuais que vão a metrópole e formam os
quadros dessas organizações, o lugar de instituições como a CEI e importância na
legitimidade das organizações políticas (FRELIMO, FNLA, MPLA e PAIGC), a
inautenticidade de aspectos políticos, econômicos, culturais e sociais – advindos das
relações metropolitanas – atravessam a atuação destas figuras e suas compreensões de
mundo. Assim sendo, recorrer às armas (enxergando também as problemáticas e
afirmativas do contexto internacional), alimentando os discursos poéticos, no entanto,
concedendo mais força ao campo militar, escanteando assim “diplomacia” com o Estado
Novo português.
Em linhas gerais, o presente trabalho busca contribuir para o somatório de
conhecimentos acerca da história da África colonial, sob domínio do império português,
visando sua utilização, quiçá, na formação de futuros professores de História acerca do
debate. Deste modo, visando particularmente trazer o olhar e as ações por parte dos
colonizados sobre as imposições do colonizador, através da sua literatura e da luta
armada. E, desta forma, contribuir de algum modo para extirpar os olhares generalistas e
caminhos que afirmem uma história única – e exclusivamente contada pela literatura
colonial – a despeito dos movimentos de libertação em Moçambique, Angola e Cabo
Verde.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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CASTELO, Cláudia. A Casa dos Estudantes do Império: lugar de memória anticolonial,


7.º Congresso Ibérico de Estudos Africanos, In: 50 anos das independências
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CASSAMA, Daniel Júlio Lopes Soares. Amílcar Cabral e a independência da Guiné-


Bissau e Cabo verde. Programa de Pós-graduação em Ciências Sociais da Faculdade de

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CHARTIER, Roger. A História ou a leitura do Tempo. Belo Horizonte: Autêntica


Editora, 2015.

DUARTE SILVA, Antonio E. Amílcar Cabral: Documentário (textos políticos e


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Andrade. Disponível em: http://www.fmsoares.pt// e
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SIMPÓSIO TEMÁTICO 06
GÊNERO, MEMÓRIAS E IDENTIDADES:
HISTÓRIAS DE LUTAS

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MULHER EM FOCO:
O “NÃO-PROGRESSO” DO NORDESTE NO CINEMA BRASILEIRO

Andreza Lima
Graduanda, Universidade de Pernambuco,
olive.dreza@gmail.com

Luiza Costa
Graduanda, Universidade de Pernambuco,
luizaemanuelagcosta@yahoo.com.br

Resumo:
Buscamos com este artigo construir uma crítica à noção de “não-progresso” nas
narrativas histórico-sociológicas sobre o Nordeste, demonstradas nos filmes brasileiros
que retratam a região, bem como seus tipos humanos, mais especificamente as
mulheres, o que tem gerado um modo nacional de identificar o Nordeste, sua cultura e o
seu povo. Esta crítica se fundamenta em autores, tais como Durval M. de Albuquerque
Jr (2001) e Andréa Bandeira (2010). Nos utilizaremos da comparação entre quatro
filmes que usam a região como cenário, em contextos diversos, de cineastas com ampla
repercussão no Brasil e que, mesmo tendo nordestinos em suas produções, naturalizam
expressões e conceitos sobre “ser nordestino” que merecem análise da visão construída
de modo geral e, detidamente, das relações, “função-papel”, da feminina, a partir das
suas personagens. Busca-se, sobretudo, argumentar sobre a discussão da historicidade
nordestina, permeada pelo estigma da “estaticidade” temporal e do “não-progresso”
histórico, além das questões específicas, relativas às mulheres nordestinas: diferenciadas
das mulheres nacionais por serem naturalmente submissas e fortes, assemelhadas ao
“cabra-macho”, capazes de sobreviver às intempéries da região nordestina.
Contraditoriamente, sua força/submissão deve servir de apoio ao homem a quem deve
servir e sustentar em tempos de crise.

Palavras-chave: Gênero; Cinema; Nordeste.

Introdução

A percepção histórica social esteve, e talvez ainda esteja, atrelada a ideia de


progresso, ver o tempo passar e entender o desenvolvimento histórico como algo
presente na vida social por vezes está amplamente arraigado na perspectiva comteana de
que o progresso é a maneira com a qual é possível enxergar o movimento da história,
que seria sob essa ótica sempre ascendente, buscando um desenvolvimento completo,
não apenas tecnológico, mas também científico e social (BOURDÉ; MARTIN, 1983),

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seja sob a visão tecnológica e científica com a qual se iniciou a ideia do progresso no
começo do século XVIII ou principalmente sobre a contaminação de tal ideia nos
campos da história (LE GOFF, 1990). É de grande importância para o nosso trabalho
que deixemos claro não estarmos falando apenas sobre as pesquisas históricas relativas
a região do Nordeste Brasileiro, mas também da percepção histórica do povo brasileiro
como um todo, especialmente do povo nordestino sobre si mesmo, é na história da
memória coletiva, que costuma ser inevitavelmente anacrónica e, por vezes mítica, (LE
GOFF, 1990) que centramos parte de nossa crítica.

Arte como perspectiva histórica

Ao escolhermos produções artísticas como exemplificadores da ideia de “não-


progresso” histórico que permeia o Nordeste, partimos do pressuposto que não é
possível se produzir arte sem que em algum nível ela seja um reflexo do pensamento
social (HAUSER, 1982), de forma que “os nordestes” representados nos quatro filmes
escolhidos são de toda sorte variados em alguns aspectos, mas extremamente
semelhantes, embora historicamente afastados uns dos outros. E ao escolher as figuras
femininas como principais objetos de comparação e análise é também uma maneira de
construir questionamentos a essas imagens, ao estereótipo e ao estigma carregado pelas
mulheres nordestinas.

Os filmes foram escolhidos por representarem não apenas regiões diferentes do


Nordeste - a Zona da Mata, a Região Metropolitana do Recife, o interior da Paraíba -,
por retratarem períodos históricos diferente, mas também por terem sido produzidos por
Nordestinos e por um não nordestino nos oferecendo assim não apenas a visão intra-
nordestina sobre a cultura e a historicidade local, mas também um olhar externo
carregado com especificidades e construções de caráter indireto que são importantes
para o entendimento da questão.

Com o filme A Filha do Advogado (1926), dirigido pelo Jota Borges buscamos
observar a cidade do Recife, e a mulher nordestina urbana, a escolha de Lisbela e o
Prisioneiro (2003), filme de Guel Arraes, para representar a Zona da Mata se deve a
variedade de inferências que podem ser feitas pelas mulheres representadas no filme e
pelos contrapontos constantes entre o progresso brasileiro e o nordeste retrógrado e
historicamente atrasado. Ao escolhermos o Auto da Compadecida (2000), também de

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Guel Arraes, buscamos não apenas as figuras opostas femininas, mas também uma visão
nordestina relativa ao seu próprio sertão, que tem como seu contraponto a escolha do
filme O Lamparina (1964), de direção do Glaucio Laurelli, para observarmos melhor a
visão brasileira não nordestina sobre a região.

Uma das primeiras observações feitas é que é muito difícil identificar o período
histórico de cada filme, com exceção do A filha do Advogado que se mostra um filme
contemporâneo a sua produção, ou seja tanto foi produzido quanto retrata a cidade do
Recife nos fins da década de 1920, nos outros é possível apenas inferir as décadas
aproximadas, e ainda assim com cautela pois não há a certeza de que os indicadores
históricos utilizados para isso não estejam contaminados por anacronismo ou mesmo
preconceitos. Por exemplo ao tentarmos utilizar a moeda corrente para identificar o
período histórico em que se passa O Auto da Compadecida esbarramos no
questionamento de se a nomenclatura “tostão” é utilizada de forma correta, o que
limitaria o período até 1942, ou se é fruto de um erro histórico ou mesmo de um
preconceito sobre a economia nordestina. O sertão retratado em O Lamparina está
localizado em um local a-histórico, é difícil definir qualquer tipo de indicação de
períodos históricos bem como de qualquer localização geográfica delimitada, como se
fosse uma realidade descolada do resto do Brasil, indefinida em características
históricas e culturais. Por último lidemos com Lisbela e o Prisioneiro, são diversos os
elementos que poderiam ser usados para tentarmos identificar o período histórico em
que a narrativa se passa, as referências a cantores como Roberto Carlos e Elza Soares
nos delimitam a provavelmente aos anos 1960-1970, é importante destacarmos que a
peça na qual o filme é baseado data de 1964, não é difícil de inferir que a probabilidade
da narrativa ser construída nesse período também.

É interessante colocarmos sobre perspectiva a ideia de estereotipização, da


estabilidade acrítica da história nordestina (JÚNIOR, 2001), ao analisarmos esses
estereótipos imagéticos representados nos filmes é possível enxergar a ideia de “não
progresso histórico” atribuído ao nordeste brasileiro, pois a visão homogeneizante
atribuída a cultura da região não permite identificar no nordeste um passar do tempo,
como se uma “ciência do homem no tempo”(BLOCH, 2001) não estivesse presente no
nordeste brasileiro. Também é importante destacarmos que essa noção vai além do
campo historiográfico, alcança o campo cultural nacional, ou talvez seja o contrário, a
história também é sentida no campo da memória (LE GOFF, 1990) e por tanto

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percebida socialmente de uma forma comumente anacrónico, mas no caso do nordeste


brasileiro há também preconceito atribuído ao povo nordestino. Falemos agora sobre
algumas características desse nordeste cinematográfico.

Em A Filha do Advogado é possível enxergarmos a busca nordestina pela


libertação do seu estigma de subdesenvolvido, uma lembrança de que o nordestino é
agente de sua própria discriminação (JUNIOR, 2001), já que as reformas urbanas
exaltadas pelas filmagens e as roupas e caracterização dos personagens estão em uma
tentativa constante de alcançar uma europa que se mostra mais moderna, mais avançada
ou seja, alcançar um progresso tecnológico que posso mostrar que a história está
acontecendo na cidade do Recife.

Já com Lisbela e o Prisioneiro é possível observar o contraponto do personagem


Douglas, que ao entrar em contato com a cultura do Rio de Janeiro, volta para Vitória de
Santo Antão, Zona da Mata pernambucana, com um desdém pela cultura e costumes
locais, os vendo como inferiores e historicamente atrasados, utilizando de vários
elementos, culturais para repetidamente destacar sua opinião relativa inferioridade e
atrasos da população, é através desse personagem, do qual escutamos frases como “para
essa Paraíba virar macaco falta pouco” ou “mas como aqui é o Nordeste eu vou ter que
dar uma de cabra macho” (Lisbela e o Prisioneiro) onde é possível enxergar uma ideia
de história coletiva que não apenas posiciona o nordeste como inferior, mas também o
coloca em uma posição completamente a-histórica, onde seria possível retroceder
evolutivamente, deixar totalmente de ser o nordestino um ser humano e por tanto não
poderia ser considerado um objeto de estudo da história. A conexão história-progresso é
tão forte que para demonstrar o atraso da região é usada a lógica ideia de que o mesmo
filme poderia ter sido passado colorido no Rio de Janeiro, mas em preto e branco nos
cinemas de Vitória de Santo Antão, uma cidade onde as horas ainda são contadas com o
toque da corneta do militar. É também em Lisbela que encontramos o sotaque
nordestino mais artificial de nossa lista, embora se utilize também de algumas
expressões populares para caracterizar o nordestino, parece ser no sotaque que a
identidade foi depositada, de todos os filmes aqui apresentados é aquele que pode ser
considerado o que causa mais desconforto a um pernambucano que o escuta.

Passemos agora para os dois restantes filmes de nossa lista, O Lamparina e O


Auto da Compadecida, os dois retratam o sertão nordestino, mas apenas o segundo se
preocupou com atribuir uma localização a esse sertão, por escolha do autor da peça em
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que o filme é baseado, Ariano Suassuna, a história se passa em Taperoá, uma cidade do
interior da Paraíba, enquanto, como já mencionado, o sertão de O Lamparina não está
localizado geograficamente em local nenhum, não existe essa preocupação. É válido
lembrar que esse é o único filme de nossa lista que não foi produzido ou dirigido por
nordestinos, é uma produção paulista desde seu diretor até seu protagonista, é também o
filme onde o cangaço é mostrado com sua pior faceta, a cruel, onde o cangaceiro
necessariamente precisa ser desumano e “cabra macho” e faz seus roubos e ilegalidades
por prazer ou por preguiça, contrário ao cangaceiro de O Lamparina, estão os
apresentados pelo Auto da Compadecida, a figura de Severino, o cangaceiro líder do
bando, é apresentada como multifacetada, indo além da crueldade esperada dele.

O nordestino de O Lamparina ainda tem um diferencial: é preguiçoso, como é


possível observar na cena inicial do filme, onde toda a família prolonga seu sono até
depois do nascer do sol, quando claramente era esperado que levantem cedo para
procurar serviço; é enganador e facilmente enganado. Embora as duas últimas
características estejam presentes também em personagens dos filmes O Auto da
Compadecida e Lisbela e o Prisioneiro, em O Lamparina essas características são
exacerbadas por um personagem que apresenta uma visão externa, o português, dono do
armazém, constantemente repete suas opiniões a respeito da inferioridade tanto
intelectual, quanto cultural de seus fregueses.

Cabe ainda a observação relativa a religiosidade vista como retrocesso, é quase


cômica a relação dos personagens do pcom a religião, e o modo como é retratada tal
relação, que quase sempre leva os personagens a problemas, é também mais uma forma
de tratar o tempo como congelado nessas representações nordestinas, pois dentro
perspectiva de que história e progresso andam juntas está também a ideia de que o
progresso não se trata apenas de tecnologia, mas também de ideologias e formas de
pensar (LE GOFF, 1990) e a religião dentro desse contexto, é vista como um passo
anterior na linha do progresso histórico, por vezes sendo ela a responsável pelo atraso
no desenvolvimento como um todo. (BOURDÉ; MARTIN, 1983).

Mulher em foco

Usar da figura feminina nos filmes em questão para entender melhor essa
representação do nordestino é enveredar por dois caminhos: o do questionamento da

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visão sobre o nordeste e como ele é representado e o do questionamento sobre a mulher


nordestina, é de fato apenas um recorte nos filmes escolhidos, que não pode ser
responsável por definir toda a sorte de características a serem abordadas a cerca desse
“ser nordestino”, mas é um recorte que merece seu destaque pela importância que
precisa ser discutido, não é apenas a mulher nordestina, embora ela carregue suas
particularidades que nos permitem usá-la como recorte para construir nossa discussão,
mas também da mulher como um todo.

O filme A Filha do Advogado apresenta a história de Heloisa Corrêia, filha


ilegítima de um advogado renomado na cidade do Recife, que mantém Heloisa e a mãe
dela, que costumava ser sua amante em seus tempos de juventude, em uma cidade de
interior provavelmente zona da mata, afastada completamente do seu círculo social,
havendo apenas visitas esporádicas. Ambas ficam mantidas e restritas ao âmbito do
privado, enquanto os personagens masculinos da trama normalmente são vistos fora
desse contexto geralmente na rua ou em festas. Fica então evidente que neste contexto o
local da mulher é a casa ocupando-se dos afazeres domésticos, na trama essa ligação ao
mundo doméstico acaba secundarizando a personagem que é a principal da história que
está sendo contada, “essa invisibilidade, produzida a partir de múltiplos discursos que
caracterizam a esfera do privado, o mundo doméstico, como o “verdadeiro” universo da
mulher” (LOURO, 2003, p. 17). Durante o filme sempre é frisado que Heloisa deve
sempre preservar a sua honra e manter o bom nome do pai, ou seja, ela deve atentar-se
para preservar a sua virgindade e manter-se sempre bela, recatada e do lar. Para que ela
defenda sua honra seu pai em sua última visita antes de partir rumo a Europa dá a ela
uma arma para que ela possa se defender no caso de algum dia alguém atentar contra a
sua honra.

Em contrapartida o seu irmão, Helvecio, filho legítimo do advogado é mantido


na cidade do Recife próximo ao convívio social de seu pai e de seu ambiente de
trabalho, com uma boa condição financeira, vivendo uma vida que no filme é citada
como “Uma vida de extravagâncias” regada de festas, bebidas, libertinagem.

A noiva de Helvecio é vista unicamente como um objeto de troca, uma forma de


sua família barganhar uma posição social, além dele ser um bom acordo financeiro para
a família da noiva. “O casal Bergamini e sua filha nao ligam as extravagâncias do
Helvecio, pois veem nelle um optimo partido monetário” (A filha do advogado).

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A construção dos dois personagens é totalmente distinta, havendo uma clara


dicotomia entre as duas expressões de gênero. Guacira Lopes, em seu livro Gênero
sexualidade e educação, traz a ideia de que a dicotomia dentro das classificações de
gênero denota a superioridade do masculino ante o feminino. (LOURO, 2003).

Heloisa e sua mãe são sempre mantidas sob a tutela de um homem. Até mesmo
quando em casa, elas têm um caseiro que fica responsável por elas; o advogado entrega
a tutela de sua filha a seu amigo, que deve cuidar do bem-estar e da mudança dessas
mulheres para a cidade do Recife, esses são alguns dos exemplos de figuras masculinas
que elas estão diretamente subordinadas

no processo de afirmação da feminina, da inferioridade e consequente


subordinação social da mulher em relação ao homem. Essa imagem
subsumida, comum no ideal coletivo, apesar de não prevalecer no cotidiano, é
recorrente no discurso fundante da estrutura social” (BANDEIRA, Andréa.
2003, p. 2)

Heloisa, durante a narrativa, é vítima de uma violência sexual, ocasionando um


assassinato. A defesa dela é o ponto auge do drama, o suspense em saber se a
personagem será presa ou qual será seu desfecho? Heloisa não é presa e seu final feliz é
casar-se e procriar.

No filme Lisbela e o Prisioneiro, 2003, Lisbela é a personagem cujo a


construção do filme mostra seu único objetivo como casar-se. De início, ela iria se casar
com Douglas, que possuía uma boa condição socioeconômica e era do agrado de seu
pai. Em seguida, ela vai contra esse casamento tendo um romance, também aprovado
por seu pai, com Leleu da Silva, um namorador, mulherengo, que vive de cidade em
cidade, enquanto a Lisbela se preocupa em preservar a virgindade, mantida dentro de
casa, saindo ocasionalmente e, sempre, acompanhada de um homem. “A ideia ainda
presente em nossa sociedade, associando a vida social masculina à política, ao trabalho,
aos espaços públicos, em contraposição à vida das mulheres, restrita ao interior do lar”
(CAVALEIRO, 2009, p. 29).

Quando o pai decide conversar com ela sobre a noite de núpcias de um casal, e
ela questiona se ele está falando sobre sexo, ela é censurada pelo pai. Na mesma cena
Lisbela pergunta a ele se afinal ela deve ou não obedecer seu marido e o pai responde
que sim, demonstrando a visão de submissão da mulher na sociedade. A imagem de
Lisbela em comparação a outras mulheres da trama é mais infantilizada e romântica, o

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pai refere-se a ela constantemente como “minha criança”, sempre adornada de flores e
tons pastéis.

Num passado não muito longínquo, as mulheres eram representadas como


menores de idade por toda sua vida e a frase tantas vezes repetida: “Os
adultos, as mulheres e as crianças” exprime uma realidade construída, mas
instituída e instituidora de práticas sociais que resultam na interiorização das
mulheres na sociedade. Nesta asserção, o homem é o adulto; a criança do
sexo masculino, o adulto em germinação. A mulher e as meninas ocupam um
lugar indefinido entre o adulto e a criança, espaço de ambiguidade (SWAIN,
2009, p. 24).

Fazendo um paralelo neste filme, as mulheres apresentam mais independência e


protagonismo do que em A filha do advogado, com personagens que largam o
doméstico, saem de casa, e ocupam o público, como por exemplo quando Inaura deixa
sua casa e vai atrás de Leléu, partindo em viagem atrás dele. Há também uma maior
liberdade sexual, apesar de não se estender até a personagem principal. No final do
filme, Inaura mata Frederico Evandro, personagem que representa o estereótipo de
“cabra macho”, um assassino de aluguel e seu marido. Ao assumir o lugar dele, de
matador, ela assume o seu lugar social de “mulher macho”, uma identidade
historicamente construída e mantida:

Pensar o homem nordestino é pensar o homem sertanejo, numa família


sertaneja, em que todos que integram a “casa” são feitos desta mesma “fibra”
forte e macia, inclusive as mulheres. Elas são as “cabras machos”, são
aquelas acostumadas às lidas, aos fardos, à violência nordestina de lutar
cotidianamente pela liberdade, desbravadoras, guerreiras e devotas, quando
não santas e piedosas. Essas mulheres são homens nas ausências dos homens
da casa grande. E elas não podem ser outra coisa ou não gerariam outros
homens cabras machos (BANDEIRA, 2003, p. 6).

No filme O Auto da Compadecida, de 2000, as mulheres são representadas em


um contexto diferente dos outros dois filmes supracitados. As principais representações
femininas são Dorinha e Nossa senhora. Dorinha é retratada em todo o filme como uma
mulher sensual, possuidora de uma grande liberdade sexual e um domínio sobre o seu
marido, o que não ocorre nos outros filmes. A sensualidade e a sexualidade da
personagem são exploradas em muitas passagens do roteiro. Como exemplo, sua
tentativa de seduzir o cangaceiro para se livrar da morte. Em contrapartida, Nossa
Senhora é representada como uma mulher calma, suave e benevolente, surgindo em um

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momento de desespero e necessidade para aconselhar seu filho, Jesus. Dona de um tom
de voz suave, enquanto Dorinha se expressa com voz estridente e gestos mais
exagerados, a santa encarna o modelo de mulher perfeita e desejada socialmente. A
contraposição das duas personagens demonstra a representação caricata da mulher
pecadora e da santificada. Mesmo o enredo girar em torno da figura feminina, é um
filme que apresenta, predominantemente, personagens masculinos. Durante o
julgamento, Nossa senhora simboliza o poder da mulher quando em defesa de “seus
filhos”: em uma defesa figurativa da prole, a Compadecida abre o seu manto azul para
acolher os pecadores, personagens de João Grilo e Chicó, assustados, afastando o
Diabo, a representação do mal.

Em O Lamparina, o filho deste passa a maior parte do filme interessada em “um


homem bom” que dentro daquele contexto seria não ter as características necessárias
para ser um bom cangaceiro, em contrapartida ela necessita ao mesmo tempo de um
homem que a sustente, que supra suas necessidades economicamente, esse “homem
bom” não teria condições de manter essa mulher.

Uma vez que tais relações entre os sexos envolve a distribuição de bens, de
direitos e deveres bem como o acesso às posições de mando e obediência as
imagens e significados associados a homens e mulheres refletem nas
masculinidades e nas feminilidades e realizam na prática - concretamente na
sua vida social- os mecanismos de poder vigentes numa dada sociedade.
Podendo-se assim, compreender que as construções culturais que definem
parâmetros para os homens, influem sobre o comportamento e as identidades
das mulheres e vice-versa. Nestas construções estão configuradas as
masculinidades e as feminilidades que abrangem todas e cada uma das
esferas da vida do ser humano (CAVALEIRO, 2009, p. 32).

Conclusão

Muito além do “quadro de horrores da seca”, enxerga-se o Nordeste com uma


historicidade estática ou até mesmo retroativa, em que qualquer fator próprio da cultura
é utilizado como argumento para a confirmação desse atraso, é a religiosidade atribuída
ao nordestino, a preguiça, o discurso do vitimismo criado pela seca “crônica”, enfim, os
mais variados fatores podem ser vistos como armas para “atacar” o Nordeste. É uma
questão que vai muito além do simples regionalismo, ela transpassa o modo como se é
visto o Nordeste, não apenas pelo nordestino, mas pelo Brasil, até na ideia de que
quando olhamos para a região usamos “olhos europeus”, buscamos referências de futuro

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e progresso que inevitavelmente acabam por incutir um sentimento subalterno a toda a


cultura e história nordestina (CANDIDO, 1985).

A ideia de que não é possível produzir história do e no Nordeste sem que ela seja
chamada de história regional, como se não fizesse parte de uma conjuntura nacional,
como se os acontecimentos nordestinos não tivessem poder de influenciar a esfera
nacional é não apenas ignorar acontecimentos históricos próprios e em interação com a
região, é ignorar o potencial político e econômico da região e negar a existência de um
caráter nacional ao Nordeste.

A representação artística do Nordeste no cinema não pode ser concebida fora


dessa esfera contextual, ela é fruto da naturalização de estereótipos estáticos,
homogêneos e a-históricos relativos à região.

REFERÊNCIAS

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2000, 104 min.

ARRAES, Guel. Lisbela e o Prisioneiro. Brasil: Estúdio Mega/Globo Filmes/Natasha


Filmes, 2003, 106 min.

BANDEIRA, Andréa. Sob o “clic” do passado: construção da imagem e fotografia


feminina para a história. Revista Fênix de Histórias e Estudos Culturais, Vol. 10, Ano
10, n. 2, 2003.

BLOCH, Marc. Apologia da história ou O ofício do historiador. Rio de Janeiro: Jorge


Zahar, 2001

BOURDÉ, Guy; MARTIN, Hervé. As Escolas Históricas. Portugal: Publicações


Europa-América, 1983.

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CAVALEIRO, Maria Cristina. Feminilidades homossexuais no ambiente escolar:


ocultamentos e discriminações vividas por garotas. 2009. Tese em Educação. Faculdade
de Educação, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2009.

LE GOFF, Jacques. História e Memória. São Paulo: Unicamp. 1990

HAUSER, Arnold. História social da literatura e da arte. São Paulo: Mestre Jou, 1982.

JÚNIOR, Durval Muniz de Albuquerque. A Invenção do Nordeste e Outras Artes.


Recife: Massangana/São Paulo: Cortez, 2001.

LOURO, Guacira Lopes. Gênero, sexualidade e educação: uma perspectiva pós-


estruturalista. Petrópolis: Vozes: Rio de Janeiro, 2003

LAURELLI, Glaucio Mirko. O Lamparina. Brasil: PAM Filmes, 1964, 104 min.

SALIH, Sara. Judith Butler e a teoria Queer. Belo Horizonte: Autêntica, 2017.

SCOTT, Joan. “Gênero: Uma Categoria Útil para Análise Histórica”. Recife: SOS
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SOARES, Jota. A filha do advogado. Brasil: Aurora Filmes, 1926, 92 min.

SWAIN, Tânia Navarro. Heterogênero: uma categoria útil de análise. Revista Educar,
Curitiba, n. 35, p. 23-36, 2009.

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REVISTAS FEMININAS: UMA REPRESENTAÇÃO DA SOCIEDADE?

Gisele Morais1
Graduanda de Licenciatura em Ciências Sociais, Universidade de Pernambuco,
giselemorais0@gmail.com

Este artigo pretende apresentar uma pesquisa sobre a representação das mulheres
nas revistas femininas brasileiras no período pós Segunda Guerra Mundial. Utilizando
de uma análise bibliográfica de publicações entre 1950 e 1960, pretende-se entender
como as mudanças ocorridas durante todo o período de construção sociocultural do país
construiu uma imagem da mulher brasileira vestida, socialmente higienizada, batizada e
assexuada, restringindo à vida privada, direcionada aos afazeres do lar, aos trabalhos
domésticos, a fé católica e a reprodução, sendo o casamento o ápice de sua participação
social. O sufrágio feminino mudou a participação política das mulheres, devido a
obrigatoriedade da alfabetização para o voto, existe uma escolarização feminina em
massa e sua inserção em cursos profissionalizantes e trabalhos formais. Esta
escolaridade massiva fez com que as mulheres, até as mais abastadas, adquirissem uma
nova habilidade de conhecimento em assuntos gerais. A partir deste período, a mulher
necessitava conhecer assuntos para diálogos, e as revistas traziam conteúdos com
discursos daquilo almejavam que a mulher precisasse conhecer.

Palavras Chaves: Revistas Femininas, Representações, Mídia.

MUDANÇAS E NOVAS PESPECTIVAS

A política sobre a mulher do período colonial até o inicio do século XX não tinha
perspectivas a integração da mulher, as escolas se concentravam homens brancos da
elite, as excluindo e direcionando-as aos afazeres do lar, trabalhos domésticos, vida
privada e dedicada a fé controle dos pais e em seguida do marido após encontrar um
bom dote e um pretendente que fosse nivelado a suas habilidades consideradas virtuosas

1
Sob orientação da Prof.ª Doutora Andrea Bandeira, do Grupo de Estudos Gênero e Sala de Aula.

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a uma mulher que desejasse prestígio. Então via uma mulher que deveria dedicar seu
tempo e energia para cuidar do esposo, das crianças e do lar, e estando ela nas classes
mais baixas, envolvida com a agricultura de subsistência, algum ofício como costura,
cozinha ou cuidar de crianças para um sustento a mais.

A abordagem sobre o Sufrágio feminino teve seu impacto além de eleitoral, a


participação política econômica se inicia com a conquista do voto da mulher, o Sufrágio
feminino que acarretou na escolarização massiva das meninas, para Alves (2003) apud
Beltrão e Alves (2009)2 no Brasil existiu essa correlação entre voto feminino e a
elevação de matriculas escolar, e assim consequentemente ingresso a ofícios, a profissão
de professora ganhava corpo e a expansão de escolas também, segundo Stamatto (2002)
“O aumento gradual dos efetivos femininos na rede escolar pública ocorreu durante o
século XIX, quando estatisticamente havia uma menina para cada três alunos nas
escolas públicas ao final do referido século.” Sendo assim, interessava esta parcela
crescente de eleitores aos partidos políticos, pois somente as alfabetizadas poderiam
votar e neste quadro as mulheres entraram massivamente nas escolas e com a
consolidação da industrialização nos anos de 1960, sua participação econômica

Tabela 1- Taxa de participação população economicamente ativa, Brasil (1950-


2010)

Fonte: IBGE, 2010- PNAD, IBGE. Apud PINHEIRO3 (2012)


. Para as moças de menor poder aquisitivo a alfabetização, apontava como possibilidade
de profissionalização: o crescimento das Escolas Normais no Brasil, em meados do

2
BELTRÃO, Kaizô Iwakami; ALVES, José Eustáquio Diniz. A reversão do hiato de gênero na educação
brasileirano século XX. Anais, p. 1-24, 2016.
3
PINHEIRO, Joel Carrion. “Trabalho feminino no Brasil: análise da evolução da participação da mulher
no mercado de trabalho (1950-2010)”. 2012. Disponível em:
<http://www.lume.ufrgs.br/handle/10183/69992>. Acesso em 15/05/2017.

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século XIX, a exemplo do magistério onde maior parte das matriculas eram de
mulheres, atividade socialmente aceita por não brigar com a “natureza feminina”, já que
possuía características que eram entendidas como uma “extensão da maternidade”;
assim como ser mãe, ser professora exigia devoção e sacrifício em regras a ser atenditas
para uma boa imagem profissional que regulava sua vida pessoal. Ao mesmo tempo
com a industrialização e tempos bélicos como a II guerra a mulher ocupou diversos
espaços, mas em locais chaves aonde a pespectiva de cuidados e dedicação as
encaminhou em atividades específicas.

REVISTAS, UMA CONSELHEIRO DE MÃO.

No Brasil já existiam revistas femininas onde abordavam sobre o lugar que designavam
a mulher, ocupações, estilo de vida, vestimenta e comportamento, para Pinsky (2014),
essa foi a era das “Mulheres dos Anos Dourados”, seu livro aponta para o conteúdo
destas publicações e como a revista conversa com as leitoras tanto no momento da
leitura de seus artigos como a parte dedicada as revistas em cartas das leitoras e
respondidas pelas conselheiras com dicas se problemas do seu cotidiano, até mesmo
dependendo da revista, problemas íntimos de si e seus filhos como os enfrentamentos
das filhas adolescentes que não ansiavam seguir os passos de sua mãe.

No contexto internacional a volta dos homens da guerra para as cidades gerou num
impasse, cargos que eles ocupavam agora havia mulheres, em todos os setores, unida
aos críticos que achavam que as mulheres estavam perdendo a feminilidade ao
trabalhar, campanhas foram feitas para que elas largassem seus empregos e voltassem
ao lar e que “tudo voltasse a ser o que era antes” tinham apoio da igreja, mulheres
casadas voltaram deixando seus maridos no posto, porém um bom número de mulheres
solteiras seguia em seus ofícios, para o conceito da época começou a ser tolerado desde
que abandonasse ao casar, principalmente nas camadas mais baixas, afinal seria ajuda
para conseguir o dote. Mas esta independência tinha data para acabar segundo
publicações e novelas, em torno dos 25 anos caso não tivesse um pretendente estaria
como estorvo ao lar, e as que não anseiam um casamento são apontadas como
destruidoras de lares nas quais esposas deveriam ficar de olho, ou mulheres que não
tinham prestigio e já foram defloradas.

Essa explosão das mulheres no contexto de pós 2º Guerra e a industrialização em que


mulheres já trabalhavam, mas agora em números que eram contados, sua participação

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em cursos profissionalizantes que se espalharam pelo país até em formações voltadas a


atividades domésticas, ao mesmo tempo que a abertura para importações e expansão
crescente da rádio e imprensa a mulher estava agora diretamente ligada com a
informação.

Os anos pós-guerra foram muito significativos para mulheres, agora a classe média
ocupava o meio urbano, a distância de contato entre mulheres solteiras e homens
diminuiu e os cortejos para chegar numa donzela foram modificados, agora a moça
tinha a liberdade de conhecer seu pretendente sozinha. Donas de casa tinham um arsenal
para seu dia a dia como liquidificador, fogão, televisão, rádio, batedeira, ferro de passar,
enceradeira, além de alimentos já pré-prontos, tecnologia militar para conservar
alimentos e condimentar chegou às casas e usado nas refeições e “modernidade do lar”.
E esta escolaridade massiva fez com que as mulheres, principalmente as mais
abastardas, ganhassem uma nova exigência: conhecimentos em assuntos gerais, agora a
mulher necessitava possuir assuntos para diálogos, e o Anuário das Senhoras trazia ente
conteúdo, principalmente assuntos que circulavam, em Hollywood.

Para este texto o material utilizado para análise serão as edições do Anuário das
Senhoras da década de 1950, uma revista que representa um período chave para a
mulher brasileira.

O Anuário das Senhoras atravessa o período da guerra e continua nos “anos


dourados” da década de 1950, período em que o Brasil vivenciou uma
política industrializante e de internacionalização da economia. Em função das
novas prioridades de desenvolvimento, o país ingressava na era da cultura
industrial de massa. Assim, as mensagens vindas do exterior entravam no
Brasil através do rádio, cinema e televisão. Tais mensagens eram difundidas
de forma imediata e acrítica, sofrendo pouca oposição dos grupos
culturalmente mais informados... Em 1940, o Anuário das Senhoras seria
propriedade da Sociedade Anônima “O Malho” e editado no Rio de Janeiro,
obtendo, no entanto, veiculação nacional. Essa realidade persistiria durante
toda a década de 1940 e 1950. GARCIA (2004)4.

Com poucas variações no material comercializado durante os anos de publicação do


Anuário a que se tem acesso, as edições veiculadas pela sociedade “O Malho”
contemplam desde a entrada para a vida conjugal - com os títulos Álbum para Noivas
e Guia das Noivas - até a decoração da casa e educação dos filhos, dirigindo-se
essencialmente às mulheres. O Anuário das Senhoras traz um pouco de todas essas
publicações, mas não se limita a elas. Um exemplar, o do ano de 1953, de número XX,

4
GARCIA, Janaina A.B. Mulheres Exemplares: Vidas contadas no Anuário das Senhoras em 1953.
REVISTA HISTÓRIA HOJE. SÃO PAULO, Nº 5, 2004.

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pode resumir o conjunto dessa publicação. Seu conteúdo inclui temas veiculados em
textos, imagens e publicidade, que foram dispostos de forma a contemplar vários
assuntos de interesse feminino: beleza, saúde, etiqueta e comportamento, moda,
decoração, alimentação, vida doméstica (lar, família, filhos), relacionamentos entre
mulheres e homens, biografias e literatura (contos, poesias, outros).

E para Garcia (2004) a forma construída dos textos trazem consigo sempre um papel
de protagonistas no meio privado, contudo no público elas eram destinadas a
coadjuvantes ou complemento a figura masculina da história. Sua estrutura com
bastante conteúdo de estimulação visual embora para a autora de forma compactada

Estes textos deixam claro que existe a intenção, nessa revista para mulheres,
de transmitir uma mensagem de valorização da figura feminina contemplando
sua autonomia e suas aptidões intelectuais. Tal abordagem contempla as
relações de gênero tendendo a diminuir ou mesmo abolir as diferenças entre
os sexos. Nesse sentido, é interessante que há na revista, na folha anterior às
biografias em questão, um artigo intitulado O homem e a mulher, que discute
exatamente as distinções entre um e outro, e conclui defendendo (...) a tese de
igualdade entre os dois sexos. (GARCIA, 2004)5

As páginas das revistas que tratavam de “assuntos femininos” mostravam a ideia de


como os papéis de gênero eram construídos, material analisado entre Jornal das Moças,
Querida, Cláudia, matérias retiradas de o Cruzeiro, O tico e Almanaque das Mulheres
nas edições na década de 50 traz como a vida de uma mulher era construída para o lar,
como tratavam desvios comportamentais e refletiam os anseios que ocorriam entre as
quatro paredes do lar. Consumidoras caracterizadas pela classe média, embora as
revistas não façam distinção de classe, mas nas propagandas vemos refletido o público
atingido e como era direcionado, e sua leitura não se privava a donas de casa, crianças e
homens também liam, tanto revistas quando as partes destinadas a elas em outras
revistas. E o crescimento da cultura estadunidense deixava claro nas páginas como a
modernidade e o vínculo com a imprensa brasileira que estava em ascensão com o
financiamento privado e a indústria de bens associada com o American way of life
estava entrando nas casas brasileiras e suas matérias que inicialmente eram traduções de
matérias americanas e depois iniciou com edições escritas nacionalmente, contudo a
maioria não era assinada.

O foco desta mídia era auxiliar a mulher ser a esposa, mãe, noiva, namorada
perfeita, o casamento é tido como um patamar que necessita de uma dedicação para que
5
GARCIA, Janaina A.B. Mulheres Exemplares: Vidas contadas no Anuário das Senhoras em 1953.
REVISTA HISTÓRIA HOJE. SÃO PAULO, Nº 5, 2004.

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nada interrompa a união com até estudos sobre o que ocasiona as infelicidades, como
esta reportagem do Anuario das Senhoras de 1954:

A falta de matérias sobre política ou economia, por exemplo, nos deixa a plena
certeza, e em revistas como O Cruzeiro as matérias “para elas” ficavam no início longe
de matérias de economia que ficavam localizadas no meio da revista. Artistas apareciam
com frequências nas edições e recheavam as páginas com fotos, embora que o assunto
nos textos fosse o vestuário, cabelo, maquiagem, não tinha uma abordagem sobre a vida
profissional, por outro lado dava enfoque a conquistas e anseios pessoais. Mas
duramente criticada pelo estilo de vida e seus divórcios (que no Brasil ainda não existia)
sua vida considerada boêmia e suas polêmicas, além de a categoria artista não era vista
socialmente como profissão.

Ao ler todas estas publicações fica o questionamento sobre finalidade deste


material de diversas dicas de como ser uma esposa perfeita ou usar seu tempo para
chegar neste patamar. O discurso que não as direcionava diretamente aos espaços
privados, mas louvava que se dedicava a esta vida doméstica reflete na ideologia
presente na época que repercute até os dias atuais, mesmo com a entrava de uma nova
era social e tecnológica os usos e conhecimentos apresentados para as mulheres giram
em torno da beleza e cuidados.

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Como a ilustração a seguir, a valorização do papel de mãe está num discurso


acompanhado de uma imagem remetente a sacra, a Glória da maternidade que logo
afirma ser como citado “supremo anseio” de toda mulher casada. Uma ligação e uso de
ferramentas para louvar o ato materno como um pilar a vida de todas as mulheres, com
conselhos de como agir

Embora numa fase em que parte do país estava em industrialização pesada, não
aparecem representações de mulheres em postos se serviços, exceto a imagem da
mulher negra, que surge em caricaturas remetentes a empregadas e ligadas a
propagandas de itens de cozinha.

Dados dos Censos Demográficos do IBGE apontam que, em 1950, apenas


13,6% das mulheres eram economicamente ativas. A partir de então, a
participação das mulheres na População Economicamente Ativa (PEA) vem
crescendo significativamente e de forma constante. Os dados censitários
demonstram a evolução da participação feminina no mercado de trabalho e a
redução contínua da diferença entre homens e mulheres na PEA, no período
entre 1950 e 2010. A participação masculina na PEA passou de 80,8% para

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67,1%, ao passo que a participação feminina mais que triplicou, saltando de


13,6% para 49,9%. (BRASIL, 2016)6

Imagens retiradas do Anuário das Senhoras entre os anos de 1951-1954.

E perceptível esta valorização a atividade doméstica como o local social da


mulher, a intensão deste texto está longe de desqualificar as que optam a esta vida,
porém a invisibilidade de assuntos públicos mostra uma limitação de conhecimentos
direcionados a elas, e ainda unidos pelos patrocinadores das revistas que numa maioria
são de empresas com produtos voltados para o lar. Esta feminilidade com os papéis da
mulher se encontra desde modelos a figuras femininas em caricaturas, ou seja, a ideia de
feminilidade que foi gerada ficou sendo difundida em anúncios de diversos produtos e
sua repetição foi sendo incorporada pela sociedade brasileira. Um modelo para
impulsionar o consumismo das mulheres e homens, mas acabou repassando valores e
preconceitos existentes na época, em larga escala ideias estereotipadas seguiram no
imaginário popular, como o machismo no discurso sobre objetivos da vida das
mulheres, padrões de beleza, e racismo na inexistência das mulheres negras em outros
papéis além do de subserviente.

Semelhante a Spivak (2010) quando questiona sobre a condição do subalterno e


do sujeito, neste trabalho encaminha a reflexão se este produto direcionado a mulheres
de fato era produzido de acordo com o contexto vivido. Os objetivos tão destacados
pelos artigos, beleza, casamento, filhos e bem-estar combinados com propagandas de
produtos que auxiliam a chegar nas motivações que a própria revista anunciava ser a
rotina destas leitoras se encaixava com a realidade da época. Debord (1991) deixa outro

6
BRASIL. Câmera dos Deputados. Mulheres no mercado de trabalho: onde nasce a desigualdade? Estudo
Técnico, 2016.

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questionamento sobre o espetáculo, se este momento de representação da realidade, nos


representa ou mostra o que desejamos que representasse.

Assim vemos que mesmo tendo um publico direcionado que estava em plena
mudança, não se apresenta em suas publicações, o anseio acarretado pelas propagandas
ainda representa uma mulher doméstica, quando despontou numa profissionalização e
maiores graus de estudos destas mulheres. Diversos artigos sobre jovens e a importância
de não se afastar de sua mãe apareciam com conselhos para ser uma jovem envolvida
com o seio familiar. E não colocando em debate temas dos espaços públicos como os
vistos em outras seções do jornal O Malho que este Almanaque se preenchia.

E estas características em representações ainda são vistas nesta mídia, mudou a


abordagem dos discursos, pressionados por tantas lutas sociais que ocorreram nas
décadas seguintes, porém o conceito que estes assuntos são ligados ao feminino ou a
mulher está associada a estas atividades mostra que não estamos muito longe desta
dúvida se as revistas falam com as mulheres que de fato as leem.

Referências:

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história das revistas no Brasil: um olhar sobre o segmentado mercado editorial. Revista
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BIROLI, Flávia. Gênero e política no noticiário das revistas semanais


brasileiras: ausências e estereótipos. Cadernos Pagu, v. 34, p. 269-299, 2010. Disponivel
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IMAGENS DE RESISTÊNCIA:
A PRESENÇA FEMININA NAS ARTES VISUAIS BRASILEIRAS

Indiara Launa Teodoro


Graduanda, Universidade de Pernambuco
indilauna.il@gmail.com

Resumo:
Sob uma perspectiva sociocultural e histórica, as mulheres são invisibilizadas, de forma
que, quando são representadas nas artes, estão constantemente marcadas pelo olhar
hegemônico do masculino. Este cenário, no Brasil, apenas começou a apresentar
mudanças a partir do início do século XX. É no panorama dos anos 1980-1990, com
suas transformações culturais, econômicas e políticas, tendo em foco, principalmente, o
campo das lutas feministas, que passaram a abordar questões como o corpo e a
sexualidade, que a mulher aconteceu de marcar sua presença nas artes visuais
brasileiras, naquele momento, sob significativa expansão de suas dimensões e temas.
Tendo isto em mente, este artigo busca, ao analisar cinco obras de artes, de duas
gerações de mulheres artistas, cada qual encaixada em um contexto histórico próprio,
com suas características, lutas e protagonismos e trajetórias, enquanto mulheres
brasileiras, abordando temas como a auto representação, a sexualidade, o machismo, o
racismo e a violência, direcionar um olhar para a presença das mulheres nas artes
visuais e suas participações ativas como forma de resistência, ampliando o diálogo
sobre a representação feminina na arte.

Palavras-chave:
Artes Visuais; Mulheres; Resistência.

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Andréa Tolaini, 2017.

“A arte permite que nós, como mulheres, criemos nossa própria saída. E se
caso não quisermos sair, criemos nosso próprio colchão e cobertor. A criação
é nosso grande poder de libertação.
Ela nos possibilitará retomar as rédeas de nossas vidas, e faremos do nosso
protagonismo, nossa revolução” (TOLAINI, Andréa, 2017).

Introdução
Ao entender as ideias de gênero e sexualidade como construídas socialmente por
processos culturais e plurais constituídos historicamente a partir de discursos que as
regulam e normatizam, produzindo saberes e verdades (LOURO, 1999), a representação
da mulher e do corpo feminino nas obras de arte, marcada por um olhar objetificador do
masculino vai mais que apenas reproduzir esse discurso acerca do papel social da
mulher, mas naturaliza-lo e legitima-lo.
A legitimação desse processo da divisão dos sexos, do poder, dos corpos e de
seus papéis, depende senão de uma relação de força física, mas passa por uma
institucionalização dos conceitos (BORDIEU, 2002). A partir de um poder masculino já
institucionalizado e aceito, o corpo, e fundamentalmente o corpo feminino, tem papel
essencial, onde se estruturam as ideias de poder e de binarismo que definem o sujeito e
o não-sujeito na História. Escrita por homens, essa narrativa histórica efetiva o

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“masculino universal”, pontuado no domínio da linguagem e do discurso, colocado


também no campo das Artes Visuais, tanto no que diz respeito a representação
simbólica do feminino como a presença das produções das mulheres artistas nos espaços
de notoriedade.
Assim, concorda-se com Bandeira quando ela afirma: “A história das mulheres,
como a história do outro, significa reduzir a sujeita ao espaço marginalizado tolerado. A
história das mulheres, diferente da história, não é a história da humanidade (2017, p. 7).
E no mundo artístico, não difere: durante toda a História da Arte ocidental, o corpo
feminino vai ser exaustivamente representado, ao contraponto de que a presença das
mulheres artistas é constantemente apagada1. As mulheres, assim, são marginalizadas ao
cenário da domesticidade, tendo seus trabalhos legitimados somente a partir de sua
relação com homens, e o fazer feminino considerado inferior perante as produções
masculinas2, em especial as técnicas associadas a uma ideia de feminilidade, como o
bordado3. Quando representadas, elas estão constantemente marcadas pelo olhar
hegemônico do masculino, solidificando uma imagem feminina de passividade. Sempre
como o tema de contemplação e não agentes, sua imagem é associada a submissão a um
espectador masculino para quem a obra é pensada. Padrão que se repete durante séculos
de expressão artística.
Todo esse processo vai articular as próprias imagens como práticas discursivas,
recriadas e significadas a partir das análises que se produzem em torno delas, por onde
se exerce o poder (LAPONTE, 2002). Configurando um conceito de Pedagogia Visual
acerca do feminino e de como ele é representado culturalmente, a partir de uma História

1
Cenário que se agrava ao se pensar nas artistas negras e indígenas, já que, ao contrário das mulheres
brancas, mesmo no decorrer dos séculos XX e na entrada para o XXI, elas não possuem o mesmo acesso
às academias e linguagens de arte instituídas. Ver: BAMONTE, Joedy Luciana Barros M. A Identidade
da Mulher Negra na Obra de Rosana Paulino: Considerações sobre o Retrato e a Formação da Arte
Brasileira. “Dentro do cenário mundial, o universo artístico, mesmo no início do século XXI ainda é
descrito como masculino, branco e elitizado, e a presença feminina considerada minoria [...]. No Brasil,
esses dados vêm sendo alterados, mas no que diz respeito à produção da mulher negra as mudanças ainda
são pouco expressivas” (BAMONTE, 2008, p. 8).
2
“As mulheres que ousavam entrar no mundo artístico tinham que se contentarem com a representação de
pinturas de interiores, naturezas mortas – gêneros de menor valor no mercado artístico e que não as
fariam configurar no rol dos grandes artistas. Às mulheres era vedado o acesso à pratica de desenho do
natural como modelo nu, que foi a base do ensino acadêmico e da representação na Europa do século XVI
ao XIX. (LAPONTE, Grupelli Luciana, 2002, p. 287).
3
“O bordado é visto como um caso exemplar: arte feminina por excelência, é adequado a esse sexo por
sua graça, encanto, domesticidade e, poderíamos dizer, ‘textilidade’. A percepção social de que os objetos
realizados em tecidos eram, “por sua natureza”, frutos de atividades de mulheres e apropriados aos
recintos domésticos era por demais difundida e arraigada, a ponto de penetrar inadvertidamente, e por isso
mesmo com força, as crenças e práticas em vigor nos campos artísticos. Assim, as artes têxteis, mesmo
em inícios do século XX, ainda encontravam-se indissociavelmente ligadas aos estigmas do amadorismo,
do artesanato e da domesticidade” (SIMIONI, Ana Paula, 2010, p. 8).

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da arte que privilegia um modo de ver masculino como o único possível, produzindo
efeitos no nosso modo de olhar e entender questões de gênero e sexualidade.
A história da mulher é, então, uma história de exclusão e luta por um
reconhecimento enquanto sujeitas de si mesmas e de sua própria história. Este cenário
de apagamento, no Brasil, apenas começou a apresentar mudanças a partir do início do
século XX, com as transformações sociais decorrentes da virada do século, onde a
mulher aconteceu de ganhar espaço e marcar sua presença no campo das artes, ainda
que de forma hesitante e em um processo gradual.

A mulher artista na contemporaneidade


Com a inserção e as demandas do movimento feminista, a partir dos anos 1970,
provocando a afirmação da mulher nos mais diversos campos do conhecimento, vai
começar a se efetuar um processo de transgressão e ressignificação dos símbolos
constituintes dos exercícios de poder sobre o gênero nas produções artísticas,
particularmente as realizadas por mulheres, questionando o papel central que os
homens, tradicionalmente tem ocupado. Para os artistas pós 1970, as modalidades
outrora desprezadas por sua “essencial feminilidade”, tornam-se meios de criticar os
discursos de poder disseminados (SIMIONI, 2010). No âmbito da luta feminista no
Brasil, Sarti (2004) aponta para os desafios da construção e reconstrução de uma
identidade feminina como classe4 na cena política dos anos 1980 e 1990, logo após o
processo de reabertura política e redemocratização no país, que reverberam sua
discussão nas questões atuais dentro do movimento.
É nesse panorama dos anos 1980-1990, com suas transformações culturais,
econômicas e políticas, tendo em foco, principalmente, o campo das lutas feministas,
que passaram a abordar questões como identidade, o corpo e a sexualidade, que a
presença da mulher ganha novas perspectivas nas artes visuais brasileiras, naquele
momento, sob significativa expansão de suas dimensões e temas, aliado ao processo de
globalização e do surgimento de novos meios de comunicação. Característica da arte
contemporânea de questionar e romper com os cânones da arte, mesclando diferentes
técnicas e materiais, com a entrada no século 21, essas novas mídias chamam atenção

4
“A discussão ontológica do ser mulher, inspirada por feministas marxistas, como Alexandra Kollontai, e
por Simone de Beauvoir, entre outras, tornou-se uma decorrência do que havia sido vivido. Na busca de
uma articulação entre a luta contra as condições objetivas de opressão social e a reflexão em torno das
relações interpessoais, o feminismo brasileiro [...] enfrentou-se com a questão de articular à sua base
marxista a questão da subjetividade, introduzindo, por essa via, também a psicanálise como sua
referência” (SARTI, Cynthia Andersen, 2004, p. 38).

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para a popularização também dos meios digitais tanto como suporte para as produções
artísticas, tal como para a disseminação dos movimentos sociais, suscitando nestes
trabalhos discussões de cunho político.
O corpo, aqui, ganha locus de resistência. Esse corpo, idealizado, distorcido e
consumido, passa a ser apresentado também como símbolo de denúncias, de lutas:
torna-se um instrumento político (ZACCARA, 2015). O seu empréstimo como o
suporte, sujeito e objeto, reflete um processo autobiográfico, do “contar-se” das
mulheres. Na condição de agente ativo, ela passa a representar cada vez mais uma visão
feminina sobre si mesma num processo de reconstrução identitária e da condição
feminina. O corpo passa a ser suporte da discussão do existir como mulher e o que isso
implica na sociedade.
Em consequência das possibilidades políticas do corpo como arte, a
masculinidade, como uma instância capaz de legitimar artistas e obras através de um
olhar excludente, tem o seu poder questionado e, se não eliminado, arrefecido (idem). É
notável também a presença de temáticas e materiais relacionados ao universo tido como
feminino e relacionados ao universo da “manualidade doméstica”, como tecidos,
bordados, travesseiros, mantas, brocados e sua desconstrução para tratar de forma
honesta temas como violência, racismo, sexo, feminismo e feminilidade (CANTON,
2000). Para essa nova geração de mulheres artistas, que andam de mãos dadas à luta
feminista cada vez mais atual, ser mulher e representar outras mulheres, falando para
um público feminino cada vez mais expressivo, é uma forma de descolonizar o olhar do
espectador de um ponto de vista patriarcal, reestruturando a história da arte como
discurso e ideologia, e ampliando o diálogo acerca da forma que a mulher é
representada e entendida a partir dessa linguagem.
Este texto faz parte de uma pesquisa mais ampla, que estuda as questões da
representação feminina e das pedagogias visuais nas produções da nova cena feminina
nas artes visuais brasileiras, que fazem de sua produção artística uma forma de
reinvindicação política, tendo o corpo e a auto representação como agente
transformador. Ele busca, ao analisar cinco obras de artes, de duas gerações de mulheres
artistas dentro da contemporaneidade, cada qual encaixada em um contexto histórico
próprio, com suas características, lutas e protagonismos e trajetórias, enquanto mulheres
brasileiras, direcionar um olhar para a presença das mulheres nas artes visuais e suas
participações ativas como forma de resistência.

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Os Bastidores de Rosana Paulino


Rosana Paulino (nascida em São Paulo, SP, 1967) começou sua produção
artística nos anos 90, vinda de uma família sem recursos, aprendeu a costurar com a
mãe, empregada doméstica. Em 1998 a artista viaja para Londres com bolsa de estudos
do governo brasileiro para especialização em gravura no London Print Studio, e
atualmente, Rosana é doutora em Poéticas Visuais pela Escola de Comunicações e Artes
da USP. Suas obras, então, carregam as marcas de sua condição como mulher e negra,
utilizando seus elementos biográficos como ponto de partida para uma reflexão que é, a
um só tempo, social e autobiográfica, abordando suas próprias raízes juntamente às da
formação da sociedade brasileira (BAMONTE, 2008). Nesse sentido, as questões de
raça e de gênero são indissociáveis ao se analisar sua trajetória e obras.
Encarando e tratando com intensa honestidade temas como violência, racismo,
sexo e feminilidade, ela se utiliza de objetos e técnicas de uma tradição artesanal
relacionada ao universo, e de domínio quase exclusivo, da mulher, transformando
linhas, agulhas, tecidos e o bordar, em instrumentos de denúncia. São, também, formas
de registros que constituem maneiras de trabalhar a sua memória. Estes assuntos são
característicos do que a pesquisadora Kátia Canton (2000) vai chamar de “Geração
Noventa”, ampliados à realidade brasileira e internacional mostrada nas artes plásticas
neste período de transição entre milênios.
Na sua série intitulada Bastidores (1997), composta de seis peças, a artista
sintetiza tais temáticas: a partir da xerox de fotografias de mulheres, impressas em um
bastidor de bordado, onde são realizadas intervenções com a costura em partes
estratégicas dos corpos femininos, como bocas, gargantas olhos e mãos, elas carregam a
denúncia da violência de gênero sofrida pelas mulheres, amordaçadas, impedidas de ver
ou gritar. Estas fotografias são retiradas dos álbuns de família da artista; são, como ela,
mulheres, que trazem em sua imagem uma ancestralidade com o que, trata-se uma obra
em que a autobiografia contém em si as possibilidades de uma crítica social mais ampla
(SIMIONI, 2010). Elas se apresentam, também, um grupo duplamente marginalizado
pelos recortes da raça e do gênero, tendo como base de sua representação o corpo.
Expor e re-criar o corpo e a técnica, associados a uma feminilidade – passiva –
essencial, neste sentido se configura um ato político, evidenciando e subvertendo, ao
mesmo tempo, os sentidos das imagens e dos discursos históricos sobre mulheres, por
meio de um deslocamento de procedimentos da própria história da arte (idem).

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Rosana Paulino. Bastidor. Imagem transferida sobre tecido, bastidor e linha de costura, 1997.

As Máscaras de Lourdes Colombo


Lourdes Colombo (nascida em São Paulo, SP, 1959) é formada em Artes
Plásticas pela Faculdade de Belas Artes de São Paulo, começando sua carreira em 1984.
Após passar por um período de hiato, tomando outros rumos profissionais devido a
condições financeiras, em 1994, orientada pelos artistas Leda Catunda e Sérgio
Romagnolo, com quem teve contato durante sua trajetória, ela volta a produzir (BOTTI,
2005).
Em toda a sua produção, ela vai ter a figura arquetípica do feminino como
matéria-prima, assumindo personas em um jogo auto reflexivo dos papeis dados as
mulheres. Já na produção de quadros, é explicitada a maquiagem como conceito de
trabalho, assim como na produção de objetos e móbiles, explorando materiais que
remetem ao universo simbólico de uma feminilidade e da sedução, como veludos,
lingeries, flores, sobrepondo sobre estes objetos camadas de batom. Um exemplo é a
instalação intitulada Quarto de sonhar (1996), composto pela reprodução de uma
penteadeira feminina bastante caracterizada em seus significados e na exagerada
disposição de utensílios de beleza, explorando a transição de uma personagem
menina/mulher, dentro de uma sociedade consumidora à beleza e a sexualidade
feminina

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Lourdes Colombo. Máscaras, 1999. Fotografia (BOTTI, 2005, p. 84)

Por meia da imagem fotográfica, Colombo realiza a série Máscaras (1999), onde
a ação de dispor gradativamente grossas camadas de batom sobre o rosto transgrede o
uso tradicional da maquiagem; ora símbolo de vulgaridade e restrita as prostitutas e
atores de teatro, ora acessório realçado através de dicas de beleza e propagandas para o
uso diário, reforçando a construção de uma beleza inserida em um padrão manufaturado
de feminilidade. Aqui, sozinha em frente a uma lente fotográfica que registra a imagem
da artista, a maquiagem transforma-se em uma máscara que esconde o rosto, gesto que
repercute para o seu oposto: ao retirar as camadas de batom, o rosto se revela,
escancarando uma identidade nua, refletindo também sobre os mecanismos de poder e
controle sobre os corpos femininos.

Leila Groth Ibarra, Hystera


Leila Groth Ibarra (1992, Novo Hamburgo - RS) é graduada em Artes Visuais
pela Universidade Feevale, e participante dos Projeto Circular e Coletivo Mariposa, este
segundo onde, com outras três amigas também participantes do cenário artístico atual,
explora a criação audiovisual. Integrante da novíssima geração de mulheres artistas, sua
produção aborda o feminino e o corpo de forma visceral, tendo, declaradamente, a arte
como forma de luta feminista. A questão da figura feminina aparece em suas obras
como reflexo de sua trajetória, tendo seus primeiros contatos com a arte de forma
terapêutica após ser diagnosticada com depressão, estes temas dialogando com seu
próprio processo de aceitação em torno de sua identidade e corpo, aspectos com os

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quais sofreu durante sua vida em consequência dos padrões e violências impostos sobre
eles. A partir disto, o estudo sobre o corpo feminino ganha forma em seus trabalhos,
chegando a menstruação e sua utilização como matéria artística, apresentando um corpo
que transgrede o poder exercido sobre ele, feito poética criadora.
A temática do corpo feminino e a visceralidade, presentes em seu trabalho,
ganham força a partir de “Hystera” (2016), realizado sobre um pedaço de algodão cru,
machado com o sangue menstrual sugerindo o formato de um quadril humano,
sobrepondo a ilustração anatômica em serigrafia, sobreposta a macha e por fim,
bordando um útero com linha vermelha sobre o quadril, criando camadas na imagem
que representam a ressignificação e a criação de uma nova vida fundada no sangue, que
pode ser visto também como uma “não-vida”, como a artista nos conta.8 Propondo o
empoderamento feminino e questionamentos acerca da objetificação feminina na arte, a
obra fala da relação histórica entre o corpo feminino e a moral ao destacar que
socialmente foi inserido no âmbito do tabu: a vagina, a menstruação, o ciclo reprodutivo
da mulher. Essa desconstrução de mitos que envolvem o corpo nu de uma mulher e de
seu sexo passa a ser universal enquanto símbolo de libertação e mobilização política
(ZACCARA, 2015), possibilitando uma tomada de consciência de outras mulheres
sobre seus próprios corpos.

Hystera, 2016. Serigrafia transferida sobre algodão cru, sangue menstrual e bordado.

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A utilização do sangue e do corpo em suas obras, porém, não deixaram de sofrer


uma recepção negativa pelo público, principalmente em um contexto de
conservadorismo crescente na sociedade. Recentemente ela teve sua exposição
intitulada “{Re}Costurando o feminino”, juntamente com a artista Anna Rosa,
cancelada devido a censura imposta pelo espaço cultural acerca das temáticas abordadas
nas obras. Representadas nos eixos do bordado e serigrafia, abordando a anatomia
íntima feminina e os pelos no corpo feminino, assim como trabalhos com crochê,
representando vulvas e celebrando a auto aceitação por meio da diversidade mostrada.
Ao enviar um texto sobre as obras e algumas imagens ao local de exposição, a artista se
deparou com a censura: deveriam ser modificados os textos e enviadas as obras para
aprovação prévia. Episódio sobre o qual escreveu publicamente;

Vale lembrar que, diariamente, o corpo feminino é objetificado, utilizado


para o prazer masculino, sua imagem denegrida; e estes trabalhos, cujo
objetivo era naturalizar a anatomia feminina, tirar o corpo da mulher do
lugar-comum da objetificação e encorajar as mulheres a se amarem, foi visto
como subversivo, julgado impróprio para exposição. Isto apenas revela que,
além de estarmos passando por uma censura tenebrosa, ignorante e absurda
nas artes, ela é, também, hipócrita e machista, e visa somente impor o
conservadorismo de uma parcela da população brasileira sobre todxs que se
negarem a compactuar com ela” (Depoimento: Leila Groth Ibarra. E-mail,
25/10/2017).

Batom, de Maruska Ribeiro


Maruska Ribeiro (Fortaleza, CE) é Atriz, Performer, produtora no Coletivo Deu
Certo e arte educadora. Cursando Licenciatura em Teatro pelo instituto Federal de
Educação, Ciência e Tecnologia do Ceará – IFCE. Em sua obra mais recente, intitulada
Batom, realizada por meio da vídeo-performance (2016) e apresentada em diversos
eventos, tais como o “II Circuito Alternativo de Teatro” – Sede Expressões Humanas de
Teatro – 2014; “II Sacabu de Arte no Sistema” – Grupo Terua – 2015; “Manifesta
Festival” – 2015; “Experimentos de 5°” - IFCE/Fortaleza – 2016; “Pequenos trabalhos
não são trabalhos pequenos” – Casa da Esquina – 2016; Lançamento do livro “Por um
trilho: Memória e Resistência” – Espaço Cazuá – 2016; “Curta o Gênero” – 2016;
“Festival Desvio” – Coletivo Entre Olhos – 2016; e o “Sarau Okupação” – 2017, que
renderam visibilidade ao seu trabalho.
Assim como na série Máscaras, de Lourdes Colombo, em Batom, Maruska
atravessa o processo histórico da criação do utensílio até os dias atuais, assim como seu
papel ao reforçar a construção simbólica de uma feminilidade durante a história.

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Abordando esse ícone que colore os lábios da boca para se referir a cor dos lábios do
órgão sexual feminino, a Performance, como obra indissociável a investigação do corpo
como matéria poética e instrumento político, carrega então a discussão sobre questões
como padrões de beleza, violência sexual, aborto e a sexualidade da mulher.

“Expondo o órgão feminino com suas cores, formatos, desejos e que


menstrua, mas, no entanto é inferiorizado na nossa sociedade. O público
feminino é convidado a ser participante dialogando e interagindo onde muitas
vezes ele se descobre e se conhece como um ser que olha e percebe sua
intimidade” (Depoimento: Maruska Ribeiro. E-mail 26/10/2017).

Alicerçada ao discurso Feminista e do Sagrado Feminino, tema que ganha força


dentro do movimento na atualidade, propondo valorizar os ciclos arquétipos do
feminino, associados aos movimentos naturais, capazes de gerar vida, é a partir da
interação com público, majoritariamente composto por mulheres, que a obra se dá de
fato. Refletindo estes aspectos de forma direta, e convidando estas a olhar para seu
próprio sexo nos momentos de intimidade, mas também como símbolo de emancipação
e rompimento do tabu moral inserido acerca da vagina e do corpo feminino,
principalmente no que diz respeito a sua sexualidade e desejo. Ela abre espaço e as
chama para a aproximação e tomada de conhecimento para consigo mesmas, assim
como suas posições políticas e sociais no mundo, articuladas como mulheres.
Representadas aqui em sua totalidade de formas e cores, atentando também para a
desconstrução de um padrão excludente, hegemonicamente masculino e eurocêntrico de
beleza, por onde atuam os mecanismos de poder e controle sobre os corpos.

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Registro fotográfico realizado durante apresentação da performance Batom, 2016.

As Asas de Paula Schlindwein


Paula Schlindwein (Urussanga, SC, 1977, vivendo em Florianópolis, SC) é pós-
graduanda em Arte e Educação, atuando na área de Artes visuais desde 2010. Com suas
obras, ela participou de quatorze exposições individuais e vinte e três exposições
coletivas, como a Exposição “Conexões Viscerais”, juntamente com a artista Gabriela
Goulart explorando a representação feminina. Além de Feiras como a MOSQ – Feira de
Artes Visuais, e a FAF – Feira de Artes de Florianópolis.
Em suas obras ela tem a representação, e a auto representação, do feminino
como forma de trabalhar suas experiências e dores de traumas e violências sofridas,
assim como uma ruptura de padrões e “ressignifição identitária” do ser mulher. Em uma
técnica mista, que abarca materiais como a aquarela, guache, tinta acrílica e óleo, ela
utiliza também do bordado, como atividade de domínio feminino, o transformando em
instrumento de registro de memórias, ganhando papel de agente ativa de sua história ao
“contar-se”. Contar-se este que, a partir da autobiografia, fala da história das mulheres
como grupo social. O seu corpo, representado, conta sua história, transgrede o poder
exercido sobre ele. É seu, feito de poética e matéria para a criação artística.
Rodeadas por símbolos do feminino e da criação – que reside na mulher, suas
protagonistas transparecem, através de uma troca profunda de olhares com o espectador,
suas dores, seus corações arrebatados dos peitos. Envolvidas por fios e costuras, prontas

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para tomar voo ou criar raízes em si mesmas, falando de uma descolonização do corpo
feminino e de uma conexão profunda criada entre mulheres. Caminho por onde se faz a
resistência.

Asas, 2017. Aquarela e bordado sobre papel - 150 x 200 cm.

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DIREITOS E EMANCIPAÇÃO DA MULHER SOB A ÓTICA ANTICLERICAL


NA PRIMEIRA REPÚBLICA (1901-1904)

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Rose Dayanne Santos de Brito


Doutoranda em Direito
Università degli Studi di Roma Tor Vergata (Itália)
rose.dayanne@posgrad.ufsc.br

Introdução

O objetivo do artigo é identificar na crítica anticlerical e libertária o papel da


mulher na sociedade da Primeira República. Nesse sentido, será analisado um dos
jornais de combate e de grande circulação em São Paulo: A Lanterna. Fundado em
1901, com o objetivo de criticar a influência religiosa no Estado brasileiro e as
violações permanentes a direitos individuais na Constituição de 1891. A questão social
e o tema da mulher restavam silenciados no jornal.
Em 1904, porém, há indícios de ruptura na linha editorial observada pela
narrativa de greves e matérias que criticavam o estigma da mulher na sociedade
brasileira conservadora. Nessa perspectiva, a pesquisa pretende enfatizar o texto
intitulado “A emancipação da mulher”, capa do jornal de 8 de Janeiro de 1904, em que
se verifica o lugar do feminino enraizado a um determinado modelo de família, de
educação e de sociedade.
Neste texto, a crítica anticlerical e libertária protagoniza a questão de gênero,
até então silenciada no periódico, como temática importante na época. Isso sinaliza que
as reivindicações feministas tinham inserção, em maior ou em menor grau, em jornais
dirigidos por homens que acolhiam tais demandas no projeto de transformações da
sociedade burguesa. Conforme se verifica no texto a ser tratado, a crítica anunciava: “é
preciso promover a liberdade da mulher tanto do prejuízo religioso, como do
convencionalismo hipócrita da nossa sociedade” (A LANTERNA, 1904, p.1).
A partir desta fonte histórica, a primeira fase do jornal A Lanterna (1901-
1904), será possível evidenciar os estereótipos da mulher na vida social paulista, desde
sua invisibilidade à inserção na história de lutas por uma sociedade mais justa. Ao final,
será realizada uma breve reflexão sobre a escrita da história feminina intermediada
pelos homens. O discurso masculino que aparenta incluir o Outro (feminino) pode
revelar sua hegemonia, ao se projetar como mediador da emancipação das mulheres.
1. Aspectos jurídicos e políticos do início do século XX no Brasil

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Na Declaração de direitos (secção II) da Constituição do Brasil de 1891, está


assegurada a separação entre Estado e Igreja. Constava no texto: “todos os indivíduos e
confissões religiosas podem exercer pública e livremente o seu culto [...]” (art. 72,§ 3º).
A liberdade religiosa compreendida como um pilar da República tinha
implicações na formação do Estado burocrático independente e na educação. Primeiro,
porque ficava assegurado na Constituição que “nenhum culto ou igreja gozará de
subvenção oficial, nem terá relações de dependência ou aliança com o Governo da
união, ou o dos estados” (art. 72,§7º). Segundo, porque estava garantido o ensino leigo
ministrado nos estabelecimentos públicos (art. 72,§ 6º).
Ao se deparar, no presente, com o texto constitucional de 1891, poderia se
imaginar uma sociedade idealizada que aplicasse no cotidiano os dispositivos da
Constituição. Para não incorrer nesse erro, necessário é confrontar o texto normativo
com a práxis social dos que vivenciaram e deixaram narrativas daquele período
histórico. Isso sobreleva a importância do historiador cujo ofício “tem a ver com sinais,
com testemunhos, com textos: é deles que deve colher o significado para representar,
por meio deles, a experiência transcorrida e desaparecida” (COSTA, 2008, p. 23)
Os debates e implicações acerca do passado não ocorrem necessariamente sobre
a escritura de um texto constitucional, mas também sobre seus silêncios, possibilidades
e disputas interpretativas. Ainda sobre a Constituição de 1891, o art. 70 dispunha sobre
o alistamento eleitoral dos cidadãos maiores de 21 anos e desencadeou várias lutas pela
concretização do direito de voto das mulheres, pois

não obstante a inexistência de proibição ao voto feminino no texto


constitucional, o entendimento firmado já durante os debates constituintes era
de que a expressão “cidadãos” não abarcaria as mulheres. A indignação
perante tal interpretação sempre esteve presente, porém foi ganhando força ao
longo dos anos. Houve, no decorrer da Primeira República, um processo
crescente de mobilização de mulheres que passavam a ocupar espaços na
esfera pública como estudantes, professoras e trabalhadoras e que, assim, se
viam no direito de votar. (GALVÃO, 2016, p. 180)

É possível verificar nessa linha de raciocínio que o texto constitucional pode


esconder tensões e aspectos conflituosos. Diante disso, este artigo adota como fonte
primária a imprensa, pois “a vida cotidiana nela registrada em seus múltiplos aspectos,

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permite compreender como viveram nossos antepassados - não só os ilustres mas


também os sujeitos anônimos” (CAPELATO, 1988, p. 21).

2. O anticlericalismo e a defesa de direitos civis nos relatos d’A Lanterna

Em 1901, é criado na capital paulista o jornal A Lanterna1 sob a direção e


responsabilidade de Benjamim Mota. O objetivo declarado no periódico era o de
“desvendar todas as patifarias clericais e trabalhar pela emancipação da consciência
humana”.
No primeiro número, publicado em 7 de março de 1901 encontram-se as razões
que motivaram a criação do periódico e a pretensão comum entre os colaboradores da
linha editorial. Eles se definem como um “grupo de homens” que lutavam contra um
exército subordinado e fiel às ordens clericais. Reconhecia que a disputa era desigual,
na medida em que os anticlericais não contavam com uma grande quantidade de
simpatizantes no Brasil, porém isto não era visto como um problema. Conforme
sublinhava a redação:

Nós somos apenas um punhado de homens. Somos dez? somos vinte? Que
importa? Seremos legião amanhã, quando todos que sabem quanto o
clericalismo é prejudicial, quanto o jesuitismo é nefasto, quanto o beatismo
embrutece os povos, decidirem-se a vir engrossar as nossas fileiras,
fortalecendo o nosso campo.
Somos poucos, mas anima-nos o mesmo amor pela verdade e o mesmo
horror pela hipocrisia e pela mentira; anima-nos para a luta a confiança na
nossa causa, que é a do progresso e da civilização; (A LANTERNA,
07/03/1901, p. 1, negrito nosso)

Do fragmento acima, pode-se observar que na composição da linha editorial do


jornal não havia representação feminina. Os ideais compartilhados pelo grupo, o
progresso e a civilização, no decorrer do artigo se aproximam da defesa da liberdade de
pensamento e da fraternidade humana. No que diz respeito à tese do progresso, ela não é
utilizada apenas para salvaguardar os avanços científicos, mas se manifesta em todas as
esferas do conhecimento até na concepção de história, evidenciada pela tensão entre um
passado arcaico e o presente civilizado.

1
Este periódico pode ser encontrado no formato digital no acervo AEL Digit@l.

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Para combater o exército religioso, o redator-chefe acentua o papel pedagógico


d’A Lanterna na sociedade brasileira, em especial, na formação dos jovens, que sofriam
com a forte influência religiosa no país. Para confrontar este cenário, afirmava: “A
Lanterna é um toque de rebate. Nós resolvemos despertar as consciências que dormem e
as energias acumuladas que precisam ser aproveitadas na campanha do bem, nas lutas
que o presente empenhou com o passado tenebroso, para vitória do futuro” (A
LANTERNA, 07/03/1901, p. 1).
O jornal intitulava “heróis de ontem” alguns personagens que protagonizaram no
Segundo Reinado a tensão entre Igreja e Estado. Fazia menção a Saldanha Marinho,
bacharel em Direito e integrante do anteprojeto da Constituição de 1891, conhecido por
ser um defensor do ensino laico, e Rio Branco que atuou ativamente na chamada
“Questão Religiosa”. Cita também Luiz Gama, que por sua vez, foi um defensor da
secularização da sociedade brasileira. Não há referência a nenhum nome de mulher.
Apesar desta invisibilidade no jornal A Lanterna, já era conhecida várias lutas de
mulheres por maior participação na esfera pública e por direitos políticos. Sobre a
história do feminismo no Brasil, Duarte argumenta que “essa história teve início nas
primeiras décadas do século XIX – o momento em que as mulheres despertam do “sono
letárgico em que jaziam”, segundo Mariana Coelho –, quero sugerir a existência de pelo
menos quatro momentos áureos na história do feminismo brasileiro” (DUARTE, 2003,
p. 152). A autora menciona estes “momentos-onda” na história em que a luta das
mulheres teve maior visibilidade, que corresponderia a 1830, 1870, 1920 e 1970. Em
cada momento, Duarte menciona vários nomes de mulheres e jornais de escritoras que
apoiavam a causa feminista, não raro, a maioria é desconhecida do público brasileiro.
Apesar de não haver mulheres no corpo editorial d’A Lanterna e o jornal se
auto-intitula “um punhado de homens”, o público alvo deste periódico era diversificado.
O editor-chefe recomendava que a propaganda anticlerical do jornal devesse “ser feita
gratuitamente nas escolas, fábricas e quartéis, para que a criança não se deixe dominar
pelo clericalismo, o operário e o soldado, em vez de serem braço forte de elementos
reacionários sejam defensores da liberdade [...]” (A LANTERNA, 06/06/1903).
Uma característica interessante é que o jornal fazia questão de definir-se “dentro
da lei” e estampava em todas as capas dois dispositivos constitucionais. Tratava-se do
art. 72, § 12 da Constituição Federal que assegurava: “Em qualquer assunto é livre a
manifestação do pensamento pela imprensa ou pela tribuna, sem dependência de
censura, respondendo cada um pelos abusos que cometer, nos casos e pela forma que a

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lei determinar. Não é permitido o anonimato”. Ilustrava também o art. 57, inciso IX da
Constituição Estadual de S. Paulo que dispunha “é inteiramente livre, sem dependência
de censura prévia, a manifestação do pensamento por qualquer modo; respondendo cada
qual nos termos da lei ordinária, pelos abusos que cometer no exercício deste direito. É
vedado o anonimato.”
O que estas características peculiares dizem sobre o conteúdo e pretensão deste
periódico na imprensa da época? Em outras palavras, por que Benjamim Mota, fundador
do jornal, fazia questão de demonstrar que aquele periódico estava em conformidade
com direitos garantidos na Constituição Brasileira? Em primeiro lugar, vincular o jornal
ao argumento de legalidade possibilitava que ele não fosse proibido de circular e seu
redator-chefe não sofresse maiores conseqüências. Segundo, Benjamim Mota que desde
1898 atuava como solicitador (advogado sem formação jurídica) começava a perceber
que diante de tantas violações e ameaças a direitos, lutar dentro do campo jurídico2,
para que a lei fosse cumprida poderia ser mais uma ferramenta estratégica de atuação
político-social.
No ano de 1901, foram publicadas 59 edições do jornal e a quantidade de
exemplares variou muitas vezes. Iniciou em março com uma tiragem de 10.000 e
terminou o ano de 1901 com publicação de 26.000 exemplares. Em junho, já constava
na capa que A Lanterna seria, supostamente, o jornal de maior circulação no Brasil.

3. Interseccionalidade: a questão social e política n’A Lanterna em 1903-1904

A periodicidade do jornal A Lanterna não se repetiu no ano de 1902. Não houve


publicações no segundo ano. A justificativa mais provável eram as dificuldades
financeiras para custeá-lo; este problema, inclusive, já vinha sendo relatado nas últimas
edições de 1901.
Verifica-se, porém, que o redator-chefe Benjamim Mota continua de forma
assídua sua participação na propaganda libertária. Em 1902, participa do jornal O Amigo
do povo. Sobre a criação deste jornal, é possível afirmar:
2
O que implica compreender que “el derecho no es lo que dice ser, lo que cree ser, es decir, algo puro,
completamente autónomo, etc. Pero el hecho de que se crea tal, y que logra hacerlo creer, contribuye a
producir unos efectos sociales completamente reales; y a producirlos, ante todo, en quienes ejercen el
derecho. [...]. Los juristas, en tanto que guardianes “hipócritas” de la creencia en lo universal, detentan
una fuerza social extremamente grande. Pero están atrapados en su propio juego, y construyen, con la
ambición de la universalidad, un espacio de possibilidades, y por tanto también de impossibilidades, que
se les impone a ellos mismos, ló quieran o no, en la medida en que pretendan permanecer em el seno del
campo jurídico” (BOURDIEU, 2003, p. 5).

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“Precisamos de um jornal”, disseram-se um dia os camaradas Benjamim


Mota, Neno Vasco, Alessandro Cerchiai, Juan Bautista Perez, em uma das
reuniões em que junto a outros anarquistas trocavam sonhos de uma
sociedade futura. Diversos grupos articularam-se em torno do novo jornal e
uniram os empenhos de propaganda num esforço coletivo. Era o ano de 1902.
(TOLEDO, 1993, p. 48-49, negrito nosso).

Diferente d’A Lanterna que se declarava unicamente anticlerical, o jornal O


Amigo do povo manifestava de forma explícita sua posição política anarquista. No
primeiro número do jornal, constava: “Nós somos socialistas. [...] nós socialistas tendo a
Anarquia como fim e como meio, devemos reivindicar esse apelido, que é o pavão com
cujas penas tantas gralhas pretendem adornar-se” (O AMIGO DO POVO, 19/04/1902,
p.1). Composta por brasileiros e estrangeiros, o jornal O Amigo do povo voltava-se para
uma propaganda crítica cujo cerne era a questão social e as misérias da sociedade
capitalista.
O público-alvo pretendia ser mais abrangente que o d’A Lanterna. Afirmava a
redação “a todos nos dirigimos: aos proletários, às vitimas de todas as injustiças, de
todas as opressões, aos homens de coração, aos homens de boa-fé, aos próprios
dominadores” (O AMIGO DO POVO, 19/04/1902, p. 1, negrito nosso). Como se
observa, o periódico era composto por homens e destinado aos homens. A par desta
invisibilidade do feminino no jornal, surge a indagação sobre o papel e participação das
mulheres na nova sociedade futura socialista almejada.
Apesar das lutas das mulheres não participarem das narrativas do jornal, havia
uma seção n’O Amigo do povo denominada “Movimento Social” no Brasil, que tratava
de divulgar questões dos trabalhadores e atos de greves e boicotagem, sobretudo dos
operários de S. Paulo. Constava na edição inaugural: “continua ainda a greve que os
operários da fábrica de chapéus de Serrichio, Matanò, Diodato Leme e Cia., da rua
Visconde de Rio Branco, principiaram em virtude de não quererem os proprietários
fazer o pagamento no principio de cada mês” (O AMIGO DO POVO, 19/04/1902, p. 2).
Em 1903, A Lanterna volta a ser publicada sobre direção de Benjamim Mota.
A propaganda anticlerical continua a ser o ponto comum entre os redatores e
colaboradores d’A Lanterna. Conforme se observa na seguinte afirmação: “não
podemos ver impassíveis os favores e os privilégios que a República concedeu ao clero

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e a igreja católica, favores que vão até a auxiliar a construção de igreja, como acontece
em S. Paulo com os benefícios das loterias” (A LANTERNA, 04/07/1903).
O argumento da interferência da religião nas instituições públicas e relatos
indecorosos dos representantes do clero é uma constante até o último número do jornal,
contudo paralelo a estes assuntos ganha evidência, sobretudo em 1904, a questão social
no Brasil. Ações relacionadas a greves passam a ser ressaltadas n’A Lanterna, inclusive,
há notas e informações tanto no plano nacional quanto no internacional. No periódico, a
greve é vista como um instrumento da luta e reivindicação de direitos contra a classe
patronal e as medidas abusivas do Estado. Todavia, o protagonismo dos homens
continua como se verifica na notícia veiculada: “nós estamos ao lado dos grevistas e
conosco todos os homens livres, e saberemos estigmatizar as infâmias de que sejam
vítimas (A LANTERNA, 29/12/1903, p. 2, negrito nosso).
Essa mudança de perspectiva indica que a A Lanterna foi mais que uma folha
anticlerical, tendo se posicionado ideologicamente em favor dos excluídos da sociedade,
dentre eles: os trabalhadores, os imigrantes e as mulheres.

4. “A Emancipação da mulher”: capa d‘A Lanterna 08/01/1904

A pergunta-problema que motivou a pesquisa foi tentar compreender o conteúdo


veiculado na capa do jornal de 08 de janeiro de 1904 com o programa estabelecido pelo
editor do periódico. Como o tema da mulher aparece no jornal? Isso sinaliza para uma
ruptura ou um elemento acidental no programa editorial?
O texto intitulado “A Emancipação da mulher” é um relato da opressão social
sobre o ser feminino. O autor compara a mulher à figura de uma “mísera escrava” e
demonstra que o lugar de subordinação perpassa toda a vida da mulher, desde o
nascimento. Descreve que:

Ao aparecer a mulher na vida já causa a um dos seus progenitores a primeira


irritação – ter nascido mulher em vez de homem. Cresce; chega a idade de
dois ou três anos e é iniciada no estudo de inibição por intermédio de um
livro chamado catecismo que mais tarde a ensina a ser fanática e
supersticiosa. Inoculam-lhe na mente o terror do inferno – o grande
<<papão>> insaciável que devora as almas dos ímpios e mais tarde quando
recebe os primeiros rudimentos de educação e moral, segundo a igreja, ignora
ainda duas coisas essenciais – educação e moral. Enchem-lhe o cérebro de

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sugestões perigosas, atrofiam-lhe as faculdades mentais com um


contingente de preceitos de civilização, atravessam-lhe na boca o osso da
passividade e do silencio; educam-na nas sacristias das igrejas e nos
confessionários e quando chega a noção de dever, não conhece a posição que
ocupa na natureza, tem o desprezo dos inesgotáveis princípios da existência e
ignora por completo quais sejam seus direitos e os seus deveres, com
relação ao homem e a natureza.
Neste caminho sinuoso chega a mulher ao estado em que deve tomar marido.
Nessa nova fase da sua existência a mulher não é menos infeliz. Obrigada
a suportar a moralidade emproada do seu senhor e dono é reduzida às
proporções de um objeto qualquer [...]. (A LANTERNA, 08/01/1904. p. 1,
negrito nosso)

Esse relato sobre o lugar da mulher na sociedade brasileira do início do século


XX, descrito como “infeliz destino” é questionado ao final do texto pelo autor, quando
afirma: “é necessário levantar da lama a sua dignidade até hoje contaminada pela baixa
opinião a que está sujeito o seu sexo, a sua missão de mãe (A LANTERNA, 08/01/1904.
p.1). O discurso acerca da liberdade da mulher tem dois direcionamentos. Primeiro a
educação, pois o autor argumenta que “a mulher é sempre afastada do estudo sério e se
algum conhecimento se lhe dá este é bastante superficial e nunca chega a arrancá-la
do servilismo e do desprezo a que é votada tanto pela sociedade como pela moral
padresca” (A LANTERNA, 08/01/1904. p.1, negrito nosso). A marca anticlerical fica
explícita.
A segunda direção manifestada pelo autor é que “aos incansáveis lutadores do
ideal libertário compete o dever de estender a mão amiga a esse ser até hoje infeliz,
para elevá-lo a altura de uma entidade distinta e nobre e evitar que as vergonhas de hoje
nivelem a mulher ao simples papel de fêmea” (A LANTERNA, 08/01/1904, p.1, negrito
nosso).

4. Notas para reflexão: “A memória tem sexo”

Por um lado, o encontro do texto “A Emancipação da mulher” foi acidental,


visto que o jornal A Lanterna era editado por homens e não tinha como objetivo
protagonizar as lutas e direitos das mulheres. A primeira impressão ao ler o texto foi de
uma abordagem crítica sobre o lugar da mulher na sociedade conservadora da época,
porém após os debates realizados no VII Seminário TRT/UFPE surgiram diversas

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provocações que propiciaram novas reflexões e olhares sobre o texto “A emancipação


da mulher”.
A conclusão a que se chega é necessidade de decodificá-lo. A análise do
discurso verifica que ele não apenas é assinado por um homem (Rogerius), mas é co-
envolto dos estigmas que pretende desconstruir. A mulher aparece ainda como ser
ligado à passividade, ao silêncio e que precisa da intermediação do homem (dos
“lutadores do ideal libertário”) para conquistar liberdades e direitos. O discurso
masculino, neste caso, inclui a alteridade do ser feminino, mas se auto-afirma. Reforça,
portanto, a hegemonia masculina e silencia nomes femininos que neste período já
protagonizam lutas individuais e coletivas por participação política no país3.
A leitura do texto “A emancipação da mulher” esboça o papel feminino em um
determinado contexto social, testemunha o autor: “pela sociedade de hoje, o termo
mulher equivale simplesmente a isto — escrava, escoadouro de misérias, máquina de
prazer, necessidade fisiológica e instrumento passivo de todas as incoerentes
atrocidades dos costumes” (A LANTERNA, 08/01/1904, p.1). Nesse ponto, revela sua
importância e traços singulares para ser debatido no presente. O historiador ou
historiadora deve ter ciência, porém, que “a memória tem sexo; o sexo da memória é o
sexo socialmente dominante; o “se contar” da feminina é amalgamado pelo discurso
prevalecente do masculino” (BANDEIRA, 2016, p. 689).

3
Ver DUARTE, Constância Lima. Feminismo e Literatura no Brasil. Estudos Avançados, v. 17, n.
49. São Paulo: set/dez 2003.

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SIMPÓSIO TEMÁTICO 07
INFÂNCIAS E JUVENTUDES:
HISTÓRIA, EDUCAÇÃO E POLÍTICAS
PÚBLICAS

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DANDO START NA E-STÓRIA: O USO DE JOGOS DIGITAIS NA HISTÓRIA


ENSINADA

Eliud Falcão Correa Lima Junior


Mestrando em História – UFRPE
eliud_falcao@hotmail.com

Resumo:

A crescente imersão da tecnologia digital em nossa rotina aumentou significativamente


o leque de possibilidades a serem utilizadas como material didático em âmbito escolar.
Com a ampla difusão de artefatos tecnológicos, como smartphones e computadores
pessoais, cada vez mais presentes em nosso cotidiano e no cotidiano dos nossos alunos e
alunas, a noção de Objetos Educacionais Digitais ganhou notoriedade em âmbito escolar
e acadêmico. Diante de tal panorama, os jogos digitais, apesar de ainda enfrentarem
certa resistência por parte do universo escolar, começam a se insurgir como alternativa
viável de material didático dentro de sala de aula, primeiro pela estreita relação entre
estes e as crianças e jovens da contemporaneidade, convertendo-se assim em grande
elemento motivador e mobilizador do alunado, visando a disposição para o estudo.
Segundo porque os jogos digitais podem ajudar os discentes a materializar realidades
históricas temporalmente distantes, como o universo medieval por exemplo. Neste
sentido, o presente trabalho pretende discorrer sobre aspecto de um “novo” Ensino de
História que as tecnologias digitais colocam diante de nós, professores e pesquisadores,
com o intuito de contribuir com um debate que ainda pode ser considerado incipiente
em nosso país.

Palavras-chave: Ensino de História; Jogos Digitais; Tecnologia Digital

Abstract:

The ever expanding immersion of digital technology in our routine significantly


increased the range of possibilities to be used as didactic material in the construction of
knowledge process. With the wide diffusion of technological artifacts, such as
smartphones and personal computers, being more and more present in our daily lives

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and in the daily life of our students, the notion of Digital Educational Objects gained
notoriety in school and academic scope. Faced with such a panorama, digital games -
even thought they still struggle with some resistance on the part of the school universe -
begin to appear as a viable alternative of didactic material within the classroom, first
because of the close relationship between these and the children and youth of the
present time, thus becoming a great student motivating and mobilizing element, aiming
at the willingness to study. Second, because digital games can help students to
materialize historical realities temporarily distant, such as the medieval universe, for
example. Hereupon, this present work intends to discuss the aspect of a "new" Teaching
of History that digital technologies put before us, teachers and researchers, with the
intention of contributing with a debate that can still be considered incipient in our
country.

Keywords: History Teaching; Digital Games; Digital Technology

INTRODUÇÃO

A presença da tecnologia digital nas ações humanas tem se tornado cada vez
mais evidente. Um olhar um pouco mais atento ao mundo em que estamos vivendo pode
nos evidenciar isso. Os meios de transporte, por exemplo, são afetados nos mais
diversos níveis, desde um simples mecanismo de orientação, como um GPS, até os
meios de transporte aéreos que operam quase que integralmente sob a orientação de
mecanismos eletrônicos digitais.
O mesmo vale para os meios de comunicação, as românticas cartas foram quase
que totalmente substituídas por e-mails, redes sociais ou aplicativos de smartphones de
mensagens instantâneas. Também podemos mencionar o mundo do trabalho, onde quase
todas as categorias de profissionais contam com grande suporte tecnológico em sua
atuação. Se compararmos o que era um consultório médico ou uma redação de um
jornal contemporânea com o que era há 100 anos atrás essa transformação fica
clarividente.
A tecnologia digital também tem modificado a forma das pessoas se
relacionarem. Os supracitados aplicativos e redes sociais de mensagens instantâneas
estão cada vez mais presentes em nosso cotidiano, a ponto de causar estranheza

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encontrar alguém que não se utilize de tais mecanismos para interagir com os demais,
não sendo exagero dizer que aquele que não faça uso desses aparatos fique parcialmente
excluído socialmente falando.
Porém, essa ampla aceitação da tecnologia não é uma constante. Existem
campos de atuação que ainda oferecem resistência à sua penetração pelos mais variados
motivos, sejam eles resistência “natural” à esfera tecnológica, falta de capacidade em se
adequar a este novo panorama, conservadorismo daqueles que fazem parte deste campo
de atuação entre outros. Creio que o exemplo mais marcante de resistência ao aspecto
tecnológico seja a Escola. E para sustentar o meu ponto, convido o leitor para um
exercício: pesquise em um site de buscas como era uma sala de aula há algumas dezenas
de anos atrás e compare com uma sala de aula contemporânea.
Não queremos dizer aqui que ambas são rigorosamente iguais, ou ainda que não
exista exceções honrosas acerca desta problemática, mas que, especialmente se
comparada a outros campos de atuação, a Escola tem dialogado muito pouco com o
mundo tecnológico.
Entendemos isso como uma grande problemática da educação contemporânea.
Não é novidade que as novas perspectivas pedagógicas sugerem a implementação de
elementos do cotidiano do aluno dentro do processo de construção de conhecimento.
Mas no caso da tecnologia existe um agravante, que é a ampla penetração na vida de
crianças e jovens da contemporaneidade. Esses, quase que em sua totalidade, chegam à
idade escolar já com alguma vivência dentro da esfera tecnológica fazendo com que a
tecnologia digital possa ser convertida em forte elemento motivador dentro do processo
de ensino e aprendizagem. Nesse sentido, concordamos com Maynard e Silva quando
eles afirmam que:
Os mecanismos que predominam na vivência cotidiana dos jovens devem ser
entendidos pelos professores como instrumentos com um potencial
pedagógico a ser explorado de forma criativa em sua práxis educacional. Em
outras palavras, cabe à educação se adequar aos códigos culturais utilizados
entre as novas gerações. (2012, p. 49)
Ou seja, é de nosso entendimento que a geração atual de alunos coloca como
grande desafio ao professor o alinhamento não apenas com artefato tecnológicos, mas
também com a dinâmica e a cultura digital, uma vez que dentro da sala de aula é
possível perceber uma grande dicotomia de gerações, onde temos um professor quase
sempre um “imigrante digital”, tendo nascido na era analógica – anterior à ampla

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difusão da internet e das tecnologias digitais – e só migrado para a “era digital” na


adolescência ou na fase adulta, e uma geração de alunos que, em sua grande maioria, já
é nascida nessa “era digital” e que não teve contato algum com essa era analógica, o que
implica num choque cultural bastante evidente.
Nessa perspectiva, nossa proposta com o presente trabalho é analisar um dos
elementos desse universo tecnológico, os games, por entendermos que:
Os videogames podem ser ferramentas eficazes como forma de aumentar a
capacidade do cérebro para o aprendizado, ajudando no controle cognitivo,
na habilidade espacial, no autodomínio, na autoconfiança, no desejo de
aprender, na motivação e na excitação. (COSTA, 2017, p. 27)
Partindo desta ideia, entendemos que investigar a relação da educação e o
Ensino de História e os jogos digitais é de fundamental importância para nós,
pesquisadores, uma vez que os estes estão estreitamente relacionados com as crianças e
os jovens de hoje em dia, além de representar uma poderosa ferramenta didática dentro
do processo de construção de conhecimento como elemento motivador para o aluno
prestar a sua contribuição no referido processo. Por se tratar de uma temática recente,
dinâmica, e ainda pouco estudada em âmbito acadêmico, além de contribuir para o
estreitamento da relação entre tecnologia digital e Ensino de História, que quase sempre
é associado ao estudo do que é “velho” por parte das nossas crianças e jovens.

E-STÓRIA E O ENSINO NA “ERA TECNOLÓGICA”

A ampla difusão das tecnologias digitais na sociedade tem transformado


drasticamente a forma das pessoas se relacionarem e interagirem, neste sentido defende-
se a ideia que tais tecnologias são dotadas de uma natureza revolucionária (CASTELLS,
1996). O termo “revolucionária” acima mencionado indica que, segundo o teórico
espanhol, o advento destas tecnologias digitais pressupõe ruptura com, até então, a
forma vigente e a implementação de uma nova forma da sociedade interagir, se
relacionar e de se produzir conhecimento.
Um olhar um pouco mais atento no mundo em que vivemos e poderemos constar
que, no mínimo, existe um fundo de verdade nessa ideia. A difusão em massa das novas
tecnologias informacionais afeta profundamente as várias atribuições de um indivíduo.
Darnton (2010, p. 13) afirma que “Hoje as pessoas sentem o chão se movendo sob os
seus pés, tomando o rumo de uma nova era que será determinada por inovações

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tecnológicas”. Reforça esta afirmação o momento em que vivemos, onde elementos


como smartphones, tablets, notebooks e outros estão enraizados em nosso cotidiano de
tal forma que se tornam indispensáveis em nosso dia a dia, seja na esfera profissional ou
pessoal.
Nesse sentido, a educação, como parte inserida neste todo, também vem sendo
influenciada por tais transformações. Ainda que num segundo momento, uma vez que
primeiro se modifica “a sociedade e somente mais tarde muda a educação” (LIBÂNEO,
1998, p. 153). Isso significa dizer que as novas tecnologias da informação começam a se
tornar cada vez mais presentes dentro do universo escolar.
Talvez a principal consequência dessa ampla penetração das tecnologias digitais
seja o democrático acesso à informação. Agora as pessoas possuem a informação na
palma das suas mãos, a um click em seus computadores pessoais e smartphones. Isso
implica em uma radical transformação no papel do professor em sala de aula. Ouso
dizer que em nenhuma outra temporalidade histórica as nossas crianças e jovens
chegaram com uma carga informacional tão grande quanto a que chegam atualmente.
Nesse sentido, entendemos que “A pedagogia da transmissão ficou obsoleta na
cibercultura” (SILVA, 2011, p. 80). Isso implica dizer que a Escola deixou de ser o
local onde as crianças e jovens vão para “receber” o conhecimento e o professor deixou
de ser aquele que detinha o “monopólio” da informação. Este talvez seja o principal
ponto a ser assimilado por nós, professores, sobretudo os professores de História, nosso
primeiro passo diante de tal cenário passa a ser ainda entender que:
Antes de ser caracterizado um mero transmissor de interpretações históricas,
o licenciado em História é acima de tudo, um pesquisador que em sala de
aula deve intervir como sujeito facilitador no despertar da historicidade do
aluno. (MARTINS; BOTTENTUIT JUNIOR, 2016, p. 300)
Ou seja, antes de tudo temos que ter a percepção que nossa função dentro do
processo de construção de conhecimento é o de mediar esta produção junto com os
alunos. Nas palavras de Bittencourt, “Ensinar História passa a ser, então, dar condições
para que o aluno possa participar do processo do fazer, do construir a História. ” (2004,
p. 27). Devemos, entre outras coisas, atuar no auxílio de nossos alunos no sentido de
recombinar as informações e conhecimentos prévios trazidos por ele à sala de aula (ou a
um ambiente virtual de aprendizagem) para que produzam conhecimento também
através disso.

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Nesse sentido, entendemos que os games como elemento fortemente presente na


vivência dessas crianças e adolescentes podem contribuir qualitativamente para a
produção desse conhecimento uma vez que:
Com o auxílio dos jogos eletrônicos, educadores podem explorar o conteúdo
pedagógico de forma mais abrangente. Os estudantes, por sua vez, deixam a
passividade das carteiras convencionais da sala de aula e são estimulados
pelos games a construir seus conhecimentos. (MARTINS; BOTTENTUIT
JUNIOR, 2016, p. 308)
Assim, podemos enumerar uma série de benefícios que podem ser extraídos do
uso dos jogos digitais em sala de aula. Primeiro como elemento motivador para o
alunado, de modo que ele se sinta estimulado e motivado para prestar a sua contribuição
no referido processo. Segundo por colaborar com ruptura da ideia dominante no senso
comum que História só se preocupa com o passado e com o estudo daquilo que é
considerado “velho” ou “antigo”. Terceiro por também colaborar para quebrar entre o
distanciamento do conteúdo trabalhado na disciplina de História da realidade do aluno.
Além de promover uma linguagem muito mais fácil de ser apreendida pelos discentes
dentro do processo de construção de conhecimento.
Em tempo, o que defendemos aqui não é o uso dos jogos digitais no Ensino de
História como “tábua de salvação” para a educação. Acerca disto, concordamos com
Maynard e Silva (2012, p. 249) nos alertam que “só há sentido na utilização de novas
ferramentas instrucionais se elas forem o suporte para formas superiores de
aprendizagem”. Nessa perspectiva, a nossa posição é de que os jogos digitais têm sim
um grande potencial colaborativo para o Ensino de História, porém a sua
implementação demanda bastante cuidado para evitar a reprodução de velhas práticas,
naquilo que Cysneiros (1999) chama de “inovação conservadora”, que nada mais é do
que a reprodução de velhos hábitos com uma nova “roupagem” e nesse aspecto a
tecnologia em si demanda um cuidado ainda maior por existir uma linha tênue entre
essa inovação conservadora e seu uso efetivo e com ganho qualitativo dentro do
processo de construção de conhecimento.
Nossa ideia aqui é apontar um encaminhamento, abordar os limites e
possibilidades do seu uso, evidenciando que esses jogos tem um grande potencial
colaborativo para auxiliar o docente e a alcançar os objetivos da disciplina preconizados
nos marcos normativos da educação brasileira.

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GAMEFICAÇÃO (GAMEFICATION)

Um fenômeno recente que vem ganhando cada vez mais notoriedade nesta
temática é aquele que passou a ser conhecido como gameficação. Podemos entender
este processo como uma espécie de desdobramento dos trabalhos recentes sobre o uso
de jogos digitais na educação. O referido processo:
Pressupõe a utilização de elementos tradicionalmente encontrados nos games,
como narrativa, sistema de feed-back, sistema de recompensas, conflito,
cooperação, competição, objetivos e regras claras, níveis, tentativa e erro,
diversão, interação, interatividade, entre outros, em outras atividades que não
são diretamente associadas aos games, coma finalidade de tentar obter o
mesmo grau de envolvimento e motivação que normalmente encontramos
nos jogadores quando em interação com bons games. (FARDO, 2013 p. 2
apud COSTA, 2017, p. 32)
Porém, ainda segundo os autores:
A Gameficação não implica em criar um game que aborde o problema,
recriando a situação dentro de um mundo virtual, mas sim em usar as mesmas
estratégias, métodos e pensamentos utilizados para resolver aqueles
problemas nos mundos virtuais em situações no mundo real. ” (FARDO,
2013 p. 1 apud COSTA, 2017, p. 32)
As citações acima merecem uma atenção especial. Primeiro porque elas
explicam detalhadamente o que vem a ser o processo de gameficação. Aqui podemos
entendê-lo como a apropriação de aspectos ou da mecânica dos jogos digitais visando a
sua implementação em outros cenários e contextos, podendo ser utilizados em uma ou
mais etapas dentro do processo de ensino e aprendizagem. A grande contribuição disso
consiste no leque de alternativas possibilitadas por esse processo, aumentando
consideravelmente a viabilidade da implementação de alternativas lúdicas na educação.
Segundo, e talvez o mais importante, é que o processo de gameficação não
consiste necessariamente na utilização do jogo propriamente dito ou na utilização de um
mecanismo digital ou virtual dentro do processo de ensino, mas sim em também utilizar
a mecânica dos jogos digitais fora dele. A importância disto se dá na medida que muitas
das escolas, sobretudo as públicas, não possuem estrutura aceitável para a
implementação de jogos digitais, tornando assim o supracitado processo uma alternativa
lúdica para aquelas escolas que não podem usar o jogo propriamente dito.
Ou seja, tal procedimento pressupõe a utilização das mecânicas utilizadas
constantemente nos jogos digitais como grande elemento motivador com o intuito de

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engajar o alunado em situações ocorridas fora do jogo. Em suma, em nosso contexto, a


educação, trata-se da apropriação das estratégias utilizadas pelas produtoras dos jogos
para torna-lo atrativo e instigante, como por exemplo o sistema de recompensas, o
trabalho colaborativo em equipe o avanço de níveis e evolução dos personagens, entre
outros, em situações características da sala de aula, como por exemplo a didática de
ensino, os mecanismos de avaliação ou as atividades extra sala de aula.
Entendemos que tal panorama só reforça ainda mais a importância de se estudar
a utilização de jogos digitais dentro do processo de construção de conhecimento,
primeiro porque ainda existem muitas questões e dúvidas a serem respondidas por parte
dos pesquisadores, o que demonstra que, apesar do crescimento recente, o debate em
torno da temática ainda pode ser considerado incipiente em nosso país. Segundo porque
tais estudos já começam a trazer desdobramentos importantes, como o processo
abordado nessa sessão do artigo, que também se apresentam com um grande potencial
colaborativo para o ensino e a aprendizagem das nossas crianças e jovens, além de se
mostrarem como alternativas viáveis para suprir a falta de estrutura tecnológica em
nossas Escolas, que, infelizmente, é regra no contexto em que vivemos.
Reitero, mais uma vez, que não estamos aqui a defender o processo de
gameficação como solução de todos os problemas da educação, mas sim que:
O uso da gamificação na educação é uma forma de incentivar determinados
comportamentos nos alunos e garantir familiaridade com as novas
tecnologias. Além disso, a ferramenta promove um processo de
aprendizagem mais dinâmico, rápido e agradável. (MARTINS;
BOTTENTUIT JUNIOR, 2016, p. 308)
O que queremos pontuar é que num cenário onde os alunos se sentem
extremamente desestimulados a prestar sua contribuição dentro do processo de
construção de conhecimento, muito em parte por não estarem interessados naquilo que
lhes é passado em sala de aula, as alternativas levantadas no presente trabalho se
configuram como caminhos alternativos viáveis para tornar o Ensino de História um
pouco mais atraente para os alunos através, também, da transposição dos mecanismos,
da ludicidade e do aspecto motivacional dos jogos digitais para dentro da sala de aula.

FECHANDO PROVISORIAMENTE

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O espaço escolar, especialmente na figura do professor, tem se mostrado


bastante conservador no que diz respeito à aceitação da presença tecnológica dentro dos
seus domínios. De certa forma o que temos feito atualmente nada mais é do que uma
“educação analógica” para uma “sociedade digital”. Há um notório desarranjo entre
aquilo que apresentado aos alunos no ambiente escolar e aquilo que são assuntos do
interesse deles, sendo esse, talvez, uma das grandes razões da evasão escolar: as
crianças e adolescentes, provenientes dessa cultura digital, simplesmente não tem – ou
perdem – o interesse nessa dita escola analógica.
Talvez o primeiro passo seja ter a sensibilidade de que a dita revolução
tecnológica tem contribuído dramaticamente para nos colocar indivíduos cada vez mais
singulares e autônomos, com linguagem e cultura própria da juventude. Com elevada
carga informacional que passou, se não a igualar, a “horizontalizar” um pouco mais a
relação entre alunos e professores.
Não que a difusão da tecnologia digital tenha sido a única ou principal
responsável por isso, mas esta ampla penetração de aparatos tecnológico na vivência das
crianças e adolescentes contribuiu significativamente para a perda do protagonismo por
parte do docente dentro do processo de ensino e aprendizagem, além da Escola perder
espaço como lugar privilegiado para a obtenção de conhecimento, uma vez que a
informação, com a ampla difusão da internet está acessível, literalmente, na palma da
mão das pessoas.
A reflexão que se coloca diante de nós, professores, talvez seja a de como
elaborar estratégias e mecanismos para atrair estes alunos que chegam ao universo
escolar com um gama de interesses extremamente diversificados. Partindo da ideia de
que estes procedimentos metodológicos devem partir de uma linguagem acessível ao
estudante, entendemos que utilização de jogos digitais, como elemento amplamente
aceito e íntimo da maioria esmagadora dos alunos da geração atual, transformando
assim a visão que o professor deveria ter acerca desses mecanismos eletrônicos, outrora
vilões com grande capacidade de dispersão e distração dos alunos, agora eles podem
atuar como grande elemento motivador e facilitador para alcançarmos os objetivos
preconizados dentro dos marcos normativos da educação do país.
Para tanto, entendemos que tal problemática deve ser fruto de profunda e
constante reflexão por parte do professor pesquisador. Entendemos que, apesar do
grande potencial colaborativo, é papel do “educador deve conhecer o que cada
ferramenta tecnológica tem a oferecer e como pode ser explorada em diferentes

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situações educacionais” (VALENTE, 1993, p. 18). Isso quer dizer que as estratégias
para a sua implementação devem ser cuidadosamente pensadas pelo educador, além de
estarem perfeitamente alinhadas as temáticas e ao conteúdo a ser trabalhado na
disciplina de História.
Mais ainda:
Caracterizar os jogos de vídeo game como elemento para o trabalho
pedagógico em História é considerá-los mais do que mero entretenimento.
Isso exige a atenção de olhares diferenciados bem como a mobilização dos
pesquisadores na compreensão dos jogos eletrônicos como objetos de
investigação. (MARTINS; BOTTENTUIT JUNIOR, 2016, p. 310)
Ou seja, é preciso também que modifiquemos o nosso olhar para com os jogos
digitais na contemporaneidade. A relação deste com o conhecimento histórico tem se
transformado profundamente dentro da era tecnológica. E as reflexões em torno da
temática devem ir além da educação básica, mas também abarcar os cursos de formação
de professores em prol do fomento de novas pesquisas e problematizações sobre uma
temática que ainda carece de debates mais robustos em âmbito acadêmico.

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O GRÊMIO ESTUDANTIL, UM DIREITO À EDUCAÇÃO CONQUISTADA

Plínio Xavier de Figueirôa


Especialista em Direitos da Criança e do Adolescente – UFRPE
Email – pliniovertentes@gmail.com

1. TEMPOS DE LUTA: PERCURSO HISTÓRICO

A juventude sempre esteve presente nos marcos históricos do Brasil. Os


estudantes de forma organizada começaram a reivindicar e lutar por diretos a fim de
uma sociedade mais justa, temos relatos a partir do ano de 1710 na cidade do Rio de
Janeiro quando mais de mil soldados franceses foram vencidos e expulsos por jovens
estudantes de conventos e colégios religiosos. Em 1786 doze estudantes brasileiros
fundaram no exterior um clube com a finalidade de lutar pela independência do Brasil,
estudantes esses que foram de fundamental importância na Inconfidência Mineira,
segundo Cara (s/data). Com a vinda da família Real Portuguesa para até então colônia,
foi fundada em 1827 a primeira faculdade no Brasil, fecundando o desenvolvimento do
movimento estudantil. Trazendo pouco tempo depois as campanhas pela abolição da
escravatura e a Proclamação da República. Os estudantes do curso de direto da Bahia
em 1897 através de um documentos relataram as atrocidades ocorridas em Canudos
durante os embates.

Divido esse percurso histórico em quatro fases: a do primeira do período de


1900 a 1950 correspondendo ao “Início até o fim da Segunda Guerra Mundial”; a
segunda de 1950 a 1970 “Anos de Chumbo e Lutas”; a terceira de 1970 a 1990 “ A
Luta Pela Democracia”; e a de 1990 a 2015 “Defesa das Conquistas”, segundo apresenta
Muller (2011).

A primeira fase “Do início até o fim da Segunda Guerra mundial” (1990-1950),
um dos primeiros atos é em 1901 com a Fundação de Estudantes Brasileiros, iniciando a
partir da criação de entidades representativas dos estudantes, que na ocasião em 1902
em São Paulo foi criado o primeiro grêmio estudantil. Em 1914 Cara (s/data) estudantes

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tiveram, participação significativamente na Campanha Civilista de Rui Barbosa e na


campanha nacionalista de Olavo Bilac durante a 1ª Guerra Mundial. Em 1929 é criada a
Casa do Estudante do Brasil, com a proposta de assistência social para os estudantes,
que segundo Muller (2011) vinha a ser posteriormente a UNE, local esse que serviu
para fomentar as ideias políticas e participativas do Brasil. Já em 1937 é marcado pela
criação da UNE (União Nacional dos Estudantes), entidade representativa dos
estudantes universitários no país.

Em 1942 os estudantes promoveram mobilizações em vários estados contra o


nazi-fascismo e pela cobrança de posicionamento do Brasil contra Hitler durante a II
Guerra Mundial. Pelo qual estudantes invadiram e ocuparam o prédio de Clube
Germânico, localizada na Praia do Flamengo, Rio de Janeiro. Local esse frequentado
pelos simpatizantes da Alemanha. Na época a política de nacionalização do então
presidente Vargas fechou o local.

A sede-própria da UNE permitiu a congregação das entidades estudantis num


único espaço, possibilitando a interlocução entre elas. Instalaram-se no prédio
da Praia do Flamengo, além as UNE, a Confederação Brasileira de Desporto
Universitário (CBDU), o Diretório Central da Universidade do Brasil
(DCE/UB), a recém-criada União Metropolitana de Estudantes (UME).
Instalou-se também no edifício, após sua fundação em 1948, a União
Nacional de Estudantes Secundários (UNES). (MULLER, 2011, p.17).

Com a busca por uma representatividade maior surge a UNES que


posteriormente vinha a ser a UBES. Pois os estudantes secundaristas já se mobilizavam
desde a década de 1930, se organizavam dentro das escolas formando os grêmios dos
antigos colégios estudais chamados de Liceus segundo Muller (2011). O 1º Congresso
Nacional Secundários ocorreu no Rio de Janeiro elegendo seu primeiro presidente Luiz
Bezerra de Oliveira Lima.

A campanha “O Petróleo é Nosso” partiu dos estudantes em defesa do petróleo


em 1948. Que de início se deu em reuniões e debates, que resultou em várias teses
enviadas para a ONU (Organização das Nações Unidas) como também a vários jornais
nacionais e internacionais. Outra luta significativa dos secundaristas nas escolas foi em
1950 contra o aumento das taxas escolares que resultou em uma greve geral no Rio de
Janeiro e São Paulo.

A Segunda fase “Anos de Chumbo e Luta” (1950 – 1970), em 1952 a campanha


de mobilização por parte dos estudantes em defesa da criação da Petrobras, que foi
fundada no ano seguinte. Em 1956 teve a greve dos bondes luta dos estudantes contra o

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aumento das passagem durante o governo de Juscelino Kubitschek. No primeiro dia de


aumento das passagens os estudantes se deitaram em meio aos trilhos impedindo os
trens de trafegarem. Como forma de inibir o movimento a sede da UNE foi invadida.

O cenário de inicio dos anos 1960 segundo Muller (2011) foi marcado pela
agitação política no país resultado da renúncia do presidente e a alteração da experiência
parlamentarista para o regime republicano. O golpe civil-militar de 1964 se antecede
com um atentado contra o edifício sede da UNE, mesmo com estudantes para
salvaguarda a sede não escapa em 31 de março, foi metralhado e o dia seguinte
incendiado, outras invasões e depredações ocorreram em várias universidades do país
colocando as entidades estudantis na ilegalidade pelo Decreto-Lei nº 228, de 28 de
fevereiro de 1967. Esses atentados representavam a intolerância do governo da época
autoritário as mobilizações estudantis. O AI-5 (Ato Institucional Número Cinco), foi o
que mais marcou todo esse período, trazendo consigo um controle sobre a academia
que também atingiu os estudantes secundaristas.

A Terceira fase “A Luta Pela Democracia” começo mencionando o decreto,


Centro Cívico Escolar (Decreto Federal nº 68.065/71) no artigo 32:

Nos estabelecimentos de qualquer nível de ensino, públicos ou particulares


será estimulada a criação do Centro Cívico Escolar, o qual funcionará sob
assistência de um orientador, elemento docente designado pelo diretor do
estabelecimento de ensino e com a diretoria eleita pelos alunos, destinado à
centralização no âmbito escolar, e à irradicação, na comunidade local, das
atividades de Educação Moral e Cívica, e a cooperação na formação ou
aperfeiçoamento do caráter do educando (Decreto Federal nº 68.065/71).

Decreto esse em 1971 pelo presidente Emílio G. Médici. O período da ditadura


militar no Brasil foi marcado por lutas armadas, greves em vários setores e protestos,
atentados tanto à bomba como em relação à manipulação das Leis. O regime militar
através dos comandantes instituíam e revogavam decretos da maneira que melhor lhe
convinha. Dentre algumas reivindicações: instituiu a disciplina EMC (Educação Moral e
Cívica) sendo obrigatórias em todas as escolas. Tempos difíceis estudantes foram
exilados ou fugiram para outros países, alguns presos e mortos.

Com o enfraquecimento do Regime Militar em 1979 na cidade de Salvador foi


realizado o Congresso de Reconstrução que obteve como resultado fortalecer o
movimento estudantil e reivindicar mais recursos para as universidades e pedir a
libertação de estudantes preso no país. Em uma tentativa frustrada no inicio dos anos
1980 de tomada da sede da UNE a mesma foi demolida pelos militares no Rio de

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Janeiro. Com o fim da ditadura os estudantes voltam as ruas para pedir eleições diretas
“diretas já” apoiando o candidato eleito Tancredo Neves. Em 1985 as entidades
representativas dos estudantes volta a legalidade.

A quarta e última fase “Defesa das Conquistas” (1990-2015) se tem inicio antes
mesmo de 1992, os estudantes já eram contra ao candidato Fernando Collor de Melo por
apresentar ideias neoliberais e distante das lutas históricas do movimento. Os “cara-
pintadas” foram os principais protagonistas na campanha contra Collor pelo qual se
envolveu em escândalos de corrupção, chegando a renunciar o cargo. Com o Presidente
Fernando Henrique Cardoso a pautas das reivindicações dos estudantes eram contra o
neoliberalismo e a privatização do patrimônio nacional.

A UNE posicionou-se firmemente contra a mercantilização da educação,


promovida pela gestão FHC. Durante seu governo, foram privilegiadas as instituições
particulares de ensino com o sucateamento das universalidades públicas e atrito
constante com professores, funcionários e estudantes das federais de todo o país (União
Nacional dos Estudantes, 2017).

Se posicionando contra o cenário político e social da época, marca forte dos


estudantes. Com os governos Lula e Dilma os estudantes recuperaram o dialogo com o
poder público, dentre as conquistas em 2007 é marcado pela retomada do terreno da
antiga Sede na Praia do Flamengo no Rio de Janeiro, onde é transformado em um
museu e um centro cultural voltado para preservar a memória dos estudantes brasileiros.
Reservas de vagas para estudantes de baixa renda nas universidades públicas, a Lei Nº
12.711 em 2012 sancionada em agosto do mesmo ano que reservar 50% das matrículas
por curso e turno em universidades e institutos federais de educação, ciências e
tecnologia.

2. GRÊMIO ESTUDANTIL: CONCEITO E GÊNESE

O grêmio estudantil é um espaço organizado destinado a debates e discursões de


interesses dos estudantes dentro da escola em meio ao processo educacional e até
mesmo da comunidade escolar, em que pese os princípios da democracia e da
participação. Tem como atribuição central incentivar a participação dos alunos nas

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decisões da escola, aperfeiçoando os mecanismos da gestão escolar democrática. De


fato, este núcleo organizativo é considerado uma das primeiras possibilidades orgânicas
que os adolescentes têm de participação na sociedade, se colocando como voz ativa nas
decisões da escola dentre elas: reuniões de pais e mestres, conselho escolar e calendário
da escola.

Para Finger (2008) a terminologia participação aponta para a ideia de liberdade,


e assim uma vivência democrática e republicana na ambiência da escola. Por isso
Monteiro (2005) afirma que o grêmio é um veículo de ação política que tem status
formal e jurídico de representação. Tendo os estudantes as possibilidades de discursões
de problemas específicos ou gerais sem se desprender do contexto social e político ao
seu redor.

Para tanto, vai se configurando como espaço para os adolescentes exercerem sua
cidadania, e fazer o exercício do contraditório. Organizados e atuantes, os estudantes
lutam e propõem saídas para as suas questões mais específicas, e assim aprendem a
engajar-se nas lutas gerais da sociedade, segundo Monteiro (2005), proporcionando o
desenvolvimento do protagonismo.

O termo protagonismo juvenil, enquanto modalidade de ação educativa, é a


criação de espaços e condições capazes de possibilitar aos jovens
envolverem-se em atividades direcionadas à solução de problemas reais,
atuando como fonte de iniciativa, liberdade e compromisso. O cerne do
protagonismo portanto, é a participação ativa e construtiva do jovem na vida
da escola, da comunidade ou da sociedade mais ampla (COSTA, 2001,
p.179)

Ele aponta que o diálogo é uma ferramenta indispensável nesse processo e que
a participação se torna genuína quando é desenvolvida em um ambiente democrático,
pois a participação sem democracia é manipulação segundo Costa (2001). Para Antunes
(2003) na democracia se constrói o respeito, o saber escutar, o expressar ideias,
concordando ou divergindo, avaliando e decidindo.

A iniciativa de organizar o grêmio tem ou deveria, partir dos próprios


estudantes, e a escola favorecer e promover esse espaço afim de apresentar e esclarecer
a importância da participação de todos nas tomadas de decisões escolares. Neste campo,
a presença do Grêmio Escolar incita à tarefa educativa para a troca de experiências,
organização de debates e, segundo Antunes (2015), pode contribuir para a construção de
importantes saberes desde a infância, tais como: preceder e respeitar as diferenças e
construir a autonomia.

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O grêmio é uma unidade orgânica autônomo no espaço escolar, e qualquer aluno


matriculado na escola pode fazer parte dele. Seguindo os procedimentos de qualquer
organização social, deverá ter um estatuto que encontre comunhão com o Regimento
escolar.

Para se forma um grêmio é preciso cinco grandes passos segundo Cara (s/data);

i. Comunicar a escola o interesse de montar de forma organizada uma


representação estudantil dentro da instituição, mobilizar e sensibilizar
toda a escola com a proposta de apresentar a importância do grêmio;
ii. Fazer uma assembleia geral com todos os atores da instituição de ensino
que tem como proposta montar uma comissão eleitoral e construir o
edital para as eleições do grêmio como: nome de chapa, horários das
eleições e campanhas e outras determinações em comum acordo;
iii. Organização dos alunos para formar as chapas, discutir as ideias e
propostas que serão apresentadas no período de campanha;
iv. Composto pela eleição através de voto secreto e a contagem dos votos
feita pela comissão eleitoral e os representantes de chapa;
v. Posse da chapa eleita.

O grêmio possui um coordenador geral ou presidente que é responsável em


organizar as atividades a serem desenvolvidas, mas que todos de forma rotativa devem
ter a oportunidade de orientar as reuniões, possibilitando a maior participação de todos.

O grêmio sempre deverá estar em comunicação com os demais alunos da escola,


e um diagnostico é a melhor ferramenta para se saber quais as demandas dos estudantes,
levantando as prioritárias. Partindo da construção de um plano de trabalho que poderá
ser feito com algumas temática, Cara (s/data) sugere como temática para a construção
do plano: cultura (dança, Saraus, Semana Cultural), esporte (Campeonatos de futebol,
vôlei e basquete), política (palestras, debates, manifestações, parceria com outros
grêmios), social (Reciclagem de lixo, campanhas de prevenção – gravidez precoce e
drogas), comunicação (Rádio escolar, jornal da escola e participação no Conselho
Escolar).

O grêmio tem que atuar de forma independente e autônoma diante da gestão da


escola, conselho escolar e pais e mestres. Tem autonomia de organizar, elaborar de

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sugerir propostas e ações para a escola, mas tem que ter autorização da gestão ou
conselho escolar.

Quanto aos partidos políticos, eles fazem parte da nossa vida politica e atuam
nos movimentos sociais e estudantis, mas o grêmio deve procurar agir sempre
com independência e autonomia, respeitando a pluralidade dos alunos que
representa. Cada estudante pode ter sua preferência político-partidária, assim
como militar em favor dela, no entanto, ela não é condição necessária para a
participação no grêmio Estudantil. (CARA, s/data, p.30).

O Grêmio Estudantil é um espaço a fim de proporcionar e desenvolver o agir


cidadão perante as problemáticas encontradas no espaço escolar e futuramente nos
contextos sociais e políticos encontrados em nosso meio, por isso ele tem que ser regido
pela democracia e participação ativa de todos.

3. O GRÊMIO ESTUDANTIL E A LEGISLAÇÃO

Meados da década de 1980 o país passa pelo processo de redemocratização do


país quando se pôs e o fim de 21 anos de ditadura militar no Brasil. Com as várias
mobilizações do movimento estudantil e das escolas foi elaborada a Lei Nº 7.398 de
novembro de 1985 pelo então presidente José Sarney que apresenta apenas três artigos.

A lei dispõe sobre a organização das entidades estudantis de 1º e 2º grau na


época que hoje corresponde ao ensino Fundamental e Médio. Em seu artigo primeiro
fica assegurado a organização dos estudantes secundaristas em grêmios estudantis como
sendo autônomas e que representem os interesses dos estudantes que tenham como
finalidades educacionais, cívicas, desportivas, culturais e até mesmo sociais. O inciso
primeiro do artigo apresenta que todo o funcionamento e desenvolvimento das ações por
parte do grêmio terão que estar estabelecidas no estatuto aprovado em assembleia geral
com a maioria dos alunos da instituição de ensino de cada grêmio. Já no inciso terceiro
do artigo trata da escolha dos dirigentes e representantes tem que ser através do voto
direto e secreto dos estudantes e se couber as normas da legislação eleitoral.

Em 1988 é promulgada a nova Constituição Federal conhecida como a


Constituição cidadã, que apresenta no capítulo VII como sendo da família, da criança,
do adolescente, do jovem e do idoso que se inicia no artigo 226 falando sobre a
importância da família e da proteção especial por parte do Estado.

Art. 227. É dever da família, da sociedade e do Estado assegurar à criança, ao


adolescente e ao jovem, com absoluta prioridade, o direito à vida, à saúde, à

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alimentação, à educação, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à


dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária,
além de colocá-los a salvo de toda forma de negligência, discriminação,
exploração, violência, crueldade e opressão.( Constituição Federal do Brasil
1988).

Nesse artigo apresenta a prioridade do Estado em reconhecer as crianças e


adolescente com sujeitos dos direitos. Também tem a incumbência de desenvolver
programas de assistência integral para essa faixa etária nas áreas da saúde, e educação
apresentando as punições severas para crimes contra crianças e adolescentes.

Outra lei que traz crianças e adolescentes como prioridades, mas que garante a
forma de organização estudantil de interesse dos estudantes é o ECA (Estatuto da
Criança e do Adolescente) lei essa promulgada em 13 de julho de 1990. Em seu artigo
53º estabelece que criança e adolescente são sujeitos dos direitos à educação que vise o
seu pleno desenvolvimento, qualificação profissional e preparo para exercer a cidadania.
No inciso IV afirma o direito por parte dos estudantes de auto de organizarem e
participar das entidades estudantis.

A LDB (Lei de Diretrizes e Bases) lei nº 9.394 de 20 de dezembro de 1996 em


seu artigo 3º apresenta os princípios que norteiam o ensino que dentre eles são:
igualdade de condições de acesso e permanência nas instituições de ensino, liberdade
para aprender , ensinar, pesquisar, respeito ao pluralismo de ideias e a liberdade e uma
gestão democrática e considerações coma diversidade étnico-racial.

O Estatuto da Juventude Lei nº 12.852 de 5 de agosto de 2013, tem como


princípios a promoção da autonomia e emancipação dos jovens a valorização e
promoção da participação social e politica, de forma direta e por meio de suas
representações, reconhecimento dos jovens como sujeitos dos direitos universais,
respeito a diversidade individual e coletiva dos jovens, promoção da vida , da cultura e
da paz e a valorização dos diálogos e convívios dos jovens com as demais gerações.

4. CONSIDERAÇÕES FINAIS

O grêmio estudantil é uma entidade representativa que contribuir a consolidar e


efetivar crianças e adolescentes quanto sujeito dos diretos. Sendo o Estado junto à
sociedade que devem promover a participação dos jovens na construção de políticas
públicas voltada para o publico alvo e ocupar os espaços públicos de tomada de

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decisões como forma de reconhecer como direito fundamental de participação. Onde o


grêmio pode ser a porta de entrada para os jovens iniciarem sua efetivação em participar
da vida politica da sociedade. Um grêmio pode não apenas cuidar de atividades
recreativas e culturais como também lutar pela melhoria do ensino como por uma ou
mais democracia no espaço escolar e participar e lutas gerais que saiam dos muros da
escola. Com a atuação do jovem nas lutas sociais se torna um protagonista nesse cenário
como sendo um sujeito dos direitos. O grêmio pode ser considerado como um espaço
que efetiva a possibilidade dos jovens em exercitar suas experiências na participação e
atuação no coletivo, em encontros e reuniões em resolução de problemas, discursões e
soluções criando um espaço fértil para a participação social mais ampla.

REFERÊNCIAS

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pública de qualidade. Petrópolis, RJ: Vozes, 2003. Fascículo 13.

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Disponível em http:/portal.mec.gov.br/sesu/arquivos/pdf/lei9394.pdf> Acesso em
19/08/2016.

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BRASIL, Lei n.7398, de 4 de novembro de 1985. Dispõe sobre a organização de


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de legislação. Disponível em: http:/www.diariodasleis.com.br/. Acessado em 16 de
janeiro de 2017.

CARA, Daniel. Caderno Grêmio em Forma. Instituto, Sou da Paz. Secretaria Especial
dos Direitos humanos. Disponível
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São Paulo. Acesso em 06/01/2017.

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ação socioeducativa. 2. Ed. São Paulo: Global: Instituto Ayrton Senna, 2001.

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UNE. Linhas de atuação. Disponível em: http://www.une.org.br/2011/09/linhas-de-


atuacao/. Acessado em 09 de abr. de 2016.

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A REVOLTA DA CHIBATA COMO QUESTÃO SENSÍVEL NA SALA


DE AULA

Levi Cavalcanti Silva.


Mestrando em Ensino de História (ProfHistória) – Universidade Federal de
Pernambuco.
leviohistoriador@gmail.com

A pesquisa “A Revolta da Chibata como questão sensível na sala de aula” discute a


relação entre o ensino de história e a cultura da violência, tencionando encontrar respostas para
a seguinte questão: “Como os professores vêm trabalhando a Revolta da Chibata na sala de
aula?”, verificando as conexões construídas com o tempo presente nas aulas de história e se o
evento é trabalhado como tema sensível. Considera-se que tratar de acontecimentos que
remetam à violência possibilita um diálogo com o tempo presente em virtude de suscitar
memórias recentes ou um passado preservado no presente, com o desafio de evitar o
anacronismo iminente. As reflexões iniciais deram origem a outras problemáticas a serem
discutidas: Como trabalhar a Revolta da Chibata como tema sensível? O que mobilizar em
termos de saberes escolares? Que saberes docentes são requeridos ao se discutir a cidadania em
história? Pressupõe-se que a Revolta da Chibata pode ser um tema propício para transversalizar
questões da cidadania e dos Direitos Humanos. Objetiva-se pesquisar como vem sendo
trabalhada a Revolta da Chibata nas escolas públicas, como são (ou se são) realizadas conexões
com o tempo presente, e discutir a transversalidade dos Direitos Humanos e da cidadania no
ensino de História.

Palavras-chave: Revolta da Chibata. Cultura da violência. Tema sensível.

INTRODUÇÃO

Este artigo tem como objetivo expor o panorama parcial da pesquisa que está em
curso no Mestrado Profissional em Ensino de História (ProfHistória – UFPE) desde o
ano de 2016. Buscamos explicar por que tratamos a Revolta da Chibata como um tema
sensível, a partir de critérios referentes às questões sensíveis, derivados do pensamento
de Verena Alberti (2014) publicado em uma palestra proferida no “IV Colóquio
Nacional História Cultural e Sensibilidades” ocorrido em 2014, na Universidade Federal
do Rio Grande do Norte (UFRN) e de reflexões realizadas sobre a leitura do artigo de
Theodor Adorno “Educação após Auschwitz” (Adorno, 1995). A nossa fundamentação
a respeito do conceito de memória decorre da perspectiva de Michael Pollak (1989),

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pela discussão referente a disputa de memória e percepção de memórias, no plural.


Recorremos também a David Lowenthal (1998) no tocante a ideia de uma memória
recente. Quanto ao conhecimento historiográfico sobre a Revolta da Chibata,
consultamos os trabalhos de Álvaro Nascimento (1997, 2002, 2008), Almeida (2010,
2011, 2014) e Morel (1979).
Inicialmente, expusemos uma breve síntese de nossa pesquisa, em temos de
justificativa, hipóteses e objetivos a alcançar, além de aspectos metodológicos seguidos.
Em seguida, realizamos uma caracterização das questões sensíveis a partir da
perspectiva de Verena Alberti (2014) e através da reflexão sobre uma educação anti-
barbárie de Theodor Adorno (1995). Na sequência, elaboramos uma breve discussão a
respeito de uma das questões norteadoras da pesquisa, “Como trabalhar a Revolta da
Chibata como tema sensível?”, realizando uma análise que justifica por que abordar
esse acontecimento histórico como um tema sensível, para em seguida, ensaiar respostas
a respeito de como trabalhar o Movimento dos Marinheiros de 1910 como uma questão
sensível.

Caminho teórico-metodológico adotado

A pesquisa “A Revolta da Chibata como questão sensível na sala de aula”


discute a relação entre o ensino de história e a cultura da violência, tencionando
encontrar respostas para a seguinte questão: “Como os professores vêm trabalhando a
Revolta da Chibata na sala de aula?”. O nosso intuito é perceber quais as conexões
construídas com o tempo presente nas aulas de história, além de verificar se o estudo da
Revolta da Chibata é trabalhado como tema sensível numa perspectiva
problematizadora da violência ou se é abordada apenas de maneira factual.
Consideramos que tratar de eventos que remetem à violência, seja ela
institucional seja social, possibilite um diálogo com o tempo presente em virtude de
suscitar memória recentes como pontos de introspecção, “insight” que proporcione uma
compreensão súbita, uma “prima-facie” ou um passado “residualmente preservado no
presente” (conforme o conceito de memória de David Lowenthal, 1998) sem esquecer
de evitar o anacronismo eminente.
Em razão dessa problemática que põe frente à frente o passado e a memória do
tempo presente, evocando o risco do anacronismo, mas tendo que evitá-lo, o plano de
trabalhar a Revolta da Chibata como tema sensível suscita outras problemáticas a serem

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discutidas com a pesquisa: Como trabalhar a Revolta da Chibata como tema sensível? O
que mobilizar em termos de saberes escolares? E que saberes docentes devem ser
requeridos ao se discutir cidadania em história?
Partimos do pressuposto que a Revolta da Chibata pode ser um tema propício
para transversalizar questões da cidadania e dos Direitos Humanos, e adotamos como
crivo de análise a perspectiva da questão sensível e da transversalidade nas abordagens
sobre esse movimento de luta por direitos no início da República no Brasil. A partir da
hipótese que considera ser possível elaborar processos de aprendizagem sobre o tema o
relacionando ao processo de conquista de direito à dignidade humana como um aporte
para a luta da ampliação da cidadania no Brasil, direcionamos as análises para a
elaboração de propostas didáticas que incluam formas de trabalhar a “Revolta da
Chibata” fazendo conexões com temas como: violência física e punição exemplar.
Tencionamos elaborar, a partir da pesquisa, uma proposição didática que faça
uma relação com a conquista de direitos infanto-juvenis, com a Lei Menino Bernardo
(Lei nº 13.010/2014). De modo que esse estudo se direciona a partir de outros objetivos
mais específicos, como pesquisar como vem sendo trabalhada a Revolta da Chibata nas
escolas públicas do Cabo de Santo Agostinho e como são (ou se são) realizadas
conexões com o tempo presente; realizar um debate sobre a transversalidade dos
Direitos Humanos e da cidadania no ensino de História; discutir como vem sendo
utilizado métodos, recursos pelos professores de História, ao se trabalhar a Revolta da
Chibata; refletir a respeito do lugar do ensino de História na promoção da cultura da
não-violência e no enfrentamento das punições exemplares; e, por fim, elaborar um
produto educacional na forma de um livro paradidático sobre a Revolta da Chibata
como tema sensível.
O estudo a respeito da Revolta da Chibata como uma questão sensível, em
termos metodológicos, consiste em uma pesquisa qualitativa realizada através de análise
de conteúdo segundo Laurence Bardin, tendo como instrumento de pesquisa a livro
didático, entrevistas estruturadas, aplicação de questionários e recursos empregados no
processo de ensino-aprendizagem na sala de aula. Além disso, tenciona-se promover um
debate historiográfico sobre a Revolta da Chibata e verificar como o saber histórico
escolar se apropria desse conteúdo.
Como embasamento teórico, dialogamos com o pensamento de Verena Alberti
(2014) sobre as questões sensíveis ou controversas, e com Theodor Adorno (1995), no

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que se refere a defesa de uma educação anti-barbárie como meio contenção de projetos
políticos genocidas.

As questões sensíveis a partir de Verena Alberti (2014)

Conforme as concepções de ensino de questões sensíveis de Verena Alberti


(2014), consideramos que o ensino de “questões sensíveis” não tem como objetivo
chocar ou apenas dar a conhecer eventos chocantes do passado, e, sim, de suscitar a
reflexão dos alunos, Para a autora, as “questões sensíveis ou controversas”, como as
denomina, são “temas que não são fáceis de tratar em sala de aula” (ALBERTI, 2014, p.
2), em razão de se tratar de conteúdos da História cuja memória se encontra em disputa
(Pollak, 1989) travadas no âmbito da historiografia e da produção de versões de
memória sobre determinados acontecimentos históricos.
Alberti (2014), ao comentar um estudo do “The Historical Association” de 2007,
um relatório da Associação de História da Inglaterra, afirma que o ensino de temas
sensíveis ou controversos envolvem a ideia de que “injustiças foram cometidas no
passado contra pessoas ou grupos, o que pode levar a disparidades entre o que é
ensinado nas aulas de história e o que é transmitido nas histórias familiares ou
comunitárias” (ALBERTI, 2014, p. 2). De modo que para a autora, o ensino de temas
sensíveis nos faz perceber que estamos no terreno das memórias em disputa, que tem na
escola um de seus palcos políticos talvez mais evidentes.
Outras características das questões sensíveis para a Alberti (2014) dizem
respeito às temáticas que se reportam às violações dos direitos humanos, que requerem
cautela ao ser tratado em sala de aula, e estejam cristalizadas por “verdades” que as
naturalizam, e em função disso requerem que utilizemos fontes afetivas que
sensibilizem quem as estuda a mudar uma suposta atitude de desinteresse pelo tema.

Educação de temas sensíveis pela reflexão de Adorno

O que seria uma educação de um tema sensível para Theodor Adorno? A partir
de Theodor Adorno, como se trabalharia um tema sensível? Theodor Adorno (1995),
defende como meio para se evitar que genocídios (como o que foi posto em prática pelo
Nazismo na Europa, contra os judeus) se repitam, o planejamento de uma educação que
tenha como pressuposto maior o ensino anti-barbárie.

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O autor, que considera que devemos ter a consciência que Auschwitz foi uma
regressão à barbárie e que vivemos numa tendência social imperativa, nos aponta como
caminho para a consolidação de uma educação que impeça a assunção de Estados
ditatoriais, a implantação de projetos pedagógicos baseados na autonomia, que para
Adorno se caracteriza como uma educação dirigida para uma “auto-reflexão crítica”,
através de um processo de socialização sendo iniciado na primeira infância:
A educação tem sentido unicamente como educação dirigida a uma auto-
reflexão crítica. Contudo, na medida em que, conforme os ensinamentos da
psicologia profunda, todo caráter, inclusive daqueles que mais tarde praticam
crimes, forma-se na primeira infância, a educação que tem por objetivo evitar
a repetição precisa se concentrar na primeira infância” (ADORNO, T., 1995,
p. 2).

A autonomia para Theodor Adorno (1995) é alcançada através da reflexão, da


autodeterminação, a da não-participação cega em coletivos humanos – que tornam as
pessoas habilitadas à manipulação por “personalidades autoritárias”. De modo que uma
educação pensada conforme Theodor Adorno defende, deva ser contrária a educação da
severidade posto que esta forma de educar, em decorrência de constituir personalidades
sadomasoquistas, promova o bullying, ao estimular a dureza e a indiferença.
Theodor Adorno (1995) concebe uma educação que deva falar sobre assuntos
como o genocídio, não reprimindo o medo, porém trabalhando os medos como uma
profilaxia contra a indiferença e a frieza, a fim de funcionar como uma prevenção contra
a barbárie. Para o autor, a educação tem que reconhecer os mecanismos que tornam as
pessoas capazes de cometer atos bárbaros, “procurando impedir que se tornem
novamente capazes de tais atos, na medida em que se desperta uma consciência geral
acerca desses mecanismos” (ADORNO, T., 1995, p. 2):
Nas tentativas de atuar contrariamente à repetição de Auschwitz pareceu-me
fundamental produzir inicialmente uma certa clareza acerca do modo de
constituição do caráter manipulador, para em seguida poder impedir da
melhor maneira possível a sua formação, pela transformação das condições
para tanto (ADORNO, 1995, p. 6).

Em síntese, a partir do pensamento de Theodor Adorno (1995), uma educação


para evitar que Auschwitz se repita é uma educação que deva combater e enfrentar a
cultura da barbárie, através da implantação de um processo de socialização secundária
baseada na autonomia, na autodeterminação e na reflexão, e que se oponha a educação
da severidade, responsável pelo sadomasoquismo que redunda em práticas de atos
bárbaros.

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Ou seja, é uma educação que se apresenta como um processo de socialização


contra Auschwitz, contra a cultura da indiferença a dor do outro, onde se deve estudar
os genocídios como um estudo de culturas que se organizam para possibilitar que
Estados Autoritários se constituam e admitam projetos de extermínio de seres humanos,
penas de morte, suplícios e outras formas de punição severa como políticas de governo.

Por que a Revolta da Chibata é um tema sensível?

Antes de apontarmos como se deva trabalhar a Revolta da Chibata como uma


questão sensível, devemos justificar por que consideramos esse acontecimento um tema
sensível. A partir da perspectiva de Verena Alberti (2014), trabalhar a Revolta da
Chibata como tema sensível requer primeiro que a identifiquemos como uma questão
sensível. Se nos guiarmos pelo critério de ser uma memória em disputa, o movimento de
reivindicação dos marinheiros, organizado em 1910, é uma questão sensível porque
suscitou uma “batalha da memória” (Pollak, 1989) desde o momento em que seus
protagonistas realizaram um levante em 22 de novembro de 1910. A memória desse
acontecimento histórico esteve em disputa através dos órgãos de imprensa da época, que
se dividiram entre os que apoiaram os marinheiros em revolta e os que estiveram do
lado da Marinha, numa polaridade que se alongou ao longo do século XX e ainda
envolve disputas de memória atualmente (Morel, 1979; Nascimento, 2008; Almeida,
2010, 2011, 2014).
O historiador Álvaro Nascimento (2008) destacou o caráter de memória em
disputa da Revolta da Chibata, ainda na atualidade:
A memória da Revolta dos Marinheiros de 1910 é uma das mais vivas
na história do país. Vez ou outra está nas primeiras páginas dos
jornais…ainda é mantida em alguma gaveta da Câmara dos Deputados
ou do Senado como projeto de anistia. Ela não consegue ser a luta de
um grupo de marinheiros em busca de melhores condições de trabalho
e de um futuro mais digno para suas carreiras e vida pessoal”
(NASCIMENTO, 2008, p. 15).

Nascimento (2008) interpretou a chamada Revolta da Chibata como um


movimento organizado por marinheiros não apenas motivados a lutar contra as punições
exemplares aplicadas através de castigos físicos e pelos maus tratos enfrentados no local
de trabalho, em função de envolver questões relacionadas ao racismo e às violências
diversas. O que atesta a importância da revolta como um movimento de luta por
cidadania, no Brasil republicano.

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A percepção de um acontecimento histórico que suscita disputas de memória é


apontada por Almeida (2011), quando da comemoração dos cem anos do Movimento
dos Marinheiros de 1910, em um artigo em que tratou da Revolta da Chibata como um
tema da memória nacional brasileira “pela análise dos diferentes momentos e tentativas
de recuperação, apropriação e comemoração do levante”, ao discutir como a edificação
do marinheiro negro João Cândido como herói nacional (p. 61). A autora ainda afirma
que as celebrações relacionadas a revolta revelaram violências, silêncios e
esquecimentos, ao mesmo tempo em que embates são travados na procura por
reconhecimento e legitimação de um ícone da época da celebração de seu centenário”
(ALMEIDA, 2011, p. 61).
De modo que as abordagens da historiografia contemporânea permitiram uma
espécie de ressurgimento da memória desse acontecimento histórico, seja como uma
memória nacional, conforme Almeida (2011) entendeu ser a Revolta da Chibata, seja
como uma memória subterrânea, concebida como uma memória “proibida”,
“clandestina”, que vem à tona em momentos de crise social e política, associada uma
profunda mudança política e uma “revisão (auto) crítica do passado” (Pollak, 1989, p.
5), conforme o trabalho de Nascimento (2008) indicou, relacionando-a ao racismo e às
condições desumanas compondo um cotidiano de punição. A respeito da memória
subterrânea, Pollak (1989) concebe as memórias como mostras de que sobreviveram
lembranças traumatizantes que esperaram o momento propício para serem expressas,
que ficaram confinadas ao silêncio e que foram transmitidas de uma geração a outra
pela via oral.
Enfim, por que trabalhar aspectos de um movimento de reivindicação por
direitos de cidadania, organizado em 1910, por homens oriundos de grupos socais
desfavorecidos, pela perspectiva das questões sensíveis? Primeiro, o fato de a Revolta
da Chibata ter sido interpretada como um movimento social e não como fora tratada
desde o seu acontecimento em 1910, como um evento episódico da história do Brasil
conforme os memorialistas mostraram (Nascimento, 2002), requer que se aborde uma
série de temáticas ainda não resolvidas na sociedade atual: o racismo, a não vivência
plena da cidadania e as violências demandadas de uma cultura ancorada na punição
como forma de manter a coesão social (Adorno, S., 1998).
Entendendo o Movimento dos Marinheiros de 1910 como uma representação da
organização de um projeto de reivindicação de direitos que redundou em uma luta por
dignidade humana, em virtude de reportar-se a um cotidiano de maus tratos diários e da

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crueldade dos ritos de punições exemplares (privação da liberdade, ameaça de


banimento, castigos físicos e pena de morte), requer cuidados ao se abordar o tema da
Revolta da Chibata em sala de aula.
Considerando que esse Movimento de reivindicação por direitos no início da
República no Brasil se caracterizou por ser composto por pessoas em sua maioria
oriundos do Norte e do Nordeste, de terem a cor parda e preta, embora houvesse a
presença de brancos pobres, e cujo número de analfabetos era a maioria, inferimos que
era contra essas pessoas que o Estado republicano brasileiro imprimia uma perspectiva
de educação da severidade (Adorno, T., 1995). O Código Disciplinar da Marinha era um
documento em que estavam previstas as penalidades a ser aplicada ao marinheiro que
fosse surpreendido em atos de indisciplina, que surpreende pela crueldade das penas
contidas naquele manual de punições (Nascimento, 1997, 2002, 2008).
Nascimento (2002) caracterizou uma cultura da punição na Marinha de Guerra,
ao mostrar que independentemente de o governo republicano ter abolido os castigos
físicos e os tratamentos desumanos (cruel ou degradante), a instituição continuou com
os castigos físicos e humilhações em seu Código Disciplinar, por razões de costumes,
inclusive tendo a aceitação dos praças, contestando-se (até as ideias republicanas
ganharem força, e estimular a organização de um movimento contra as punições físicas
pelos marinheiros) apenas os abusos na aplicação das penas. A essa prática de aplicação
de penas à revelia do que era previsto na Constituição Federal da época o autor chamou
de “código informal” (NASCIMENTO, 2008, p. 94).
Entretanto, não podemos deixar de ver nas medidas punitivas da Marinha como
uma evidência do que se produziu no Brasil a perspectiva da educação da severidade,
conforme Theodor Adorno (1995) faz alusão, imputando-lhe a responsabilidade pela
formação de pessoas com personalidade autoritária, frias e indiferentes a dor do outro
(ADORNO, T., 1995, p. 7). A demonstração de que para os sujeitos históricos descritos
como antagonistas nas narrativas da História do Movimento dos Marinheiros de 1910,
os oficiais da Marinha, as punições exemplares eram vistas como uma medida
pedagógica, pode ser compreendida melhor nas palavras de Álvaro Nascimento, ao
narrar um caso de uma aplicação de punição exemplar, a partir do depoimento de Eurico
Fogo, um ex-marinheiro que deu baixa como 2º sargento, quando narrou um ritual de
suplício aplicado por um oficial da Marinha a um marinheiro, em que o autor entende o
ritual como uma ação pedagógica, do ponto de vista da Marinha de Guerra:

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Mas o depoimento de Eurico Fogo tem um terceiro elemento importante


para que possamos entender o castigo: o sentido pedagógico e exemplar.
Ele mencionou as etapas básicas do cerimonial que envolvia o castigo de
chibata. Em primeiro lugar, toda a guarnição deveria estar formada no convés
para assistir ao trágico cerimonial. Tendo os pés atados por um ‘par de
machos’, o faltoso caminhava com dificuldade até o local do castigo. Logo
após, o comandante lia o artigo do código disciplinar relativo à falta
cometida pelo marinheiro, e iniciava-se a aplicação dos açoites. Era um
castigo a que todos deviam presenciar o constrangimento e a dor do faltoso.
Seus passos cambaleantes, o próprio castigo e os artigos do código
demonstravam que qualquer marinheiro poderia ser a estrela do próximo
espetáculo (bastaria, para isso, cometer faltas que atentassem contra a ordem
e a disciplina militar). Havia um público assistindo, compenetrado nos atos
dos superiores hierárquicos. Os oficiais esperavam que os marinheiros
formados aprendessem com aquele exemplo. Com isso, os marinheiros
também tiravam proveito para suas próprias vidas e descobriam até que ponto
poderiam ou não dar largas as suas vontades sem ter de passar por um ritual
constrangedor como aquele da chibata. Os oficiais comandantes, volto a
insistir, tinham reações diferentes ante os problemas diários que cercavam a
rotina das embarcações. Havia-se de aprender com cada um deles, pelo
menos enquanto estivessem embarcados nos respectivos navios, a fim de
evitar marcas de chibata, constrangimentos e humilhações”
(NASCIMENTO, 2008, p. 154-155, grifo nosso).

Procuramos destacar na narrativa de Nascimento (2008), a partir do depoimento


de Eurico Fogo, os trechos que evidenciam o caráter pedagógico do ritual de suplício: a
leitura do Código disciplinar relativo à falta cometida pelo infeliz, a expectativa dos
oficiais de que a aplicação da pena surtisse o efeito esperado (o marinheiro aprendesse
com a dor sofrida) e o sentido pedagógico estendido aos demais, que caracterizava a
punição como uma medida exemplar, que faria com que todos seguissem as normas da
instituição naval.
Todavia, é possível visualizar pela narrativa de Nascimento (2008), aspectos de
um cotidiano de violência nos navios da Marinha. Além da barbaridade do ritual de
suplício, temos uma demonstração de tortura, de violência física, humilhação e ameaça
de punição. São formas de violência presente no depoimento, que remete à questão da
dignidade humana, não respeitada pela prática da aplicação da pena. A discussão da
dignidade humana é um tema ainda por se resolver no mundo atual que o estudo da
Revolta da Chibata atesta ainda permanecer na sociedade brasileira, ao mostrar ser
proveniente de práticas cuja intenção era de ensinar pelo exemplo, conforme o sentido
que se dá à expressão “ensino através do exemplo”, em uma cultura da violência: o
“exemplo” como sinônimo de castigos corporais.
As temáticas demandadas do estudo do movimento dos marinheiros de 1910 que
relacionamos aqui (o racismo, a não vivência plena da cidadania e as diversas formas
violências) se reportam às violações dos direitos humanos, no tempo presente. Muitas

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delas requerem extrema cautela ao ser tratado em sala de aula, ou são conhecidas por
“verdades” cristalizadas que as naturalizam. Em virtude de exigirem cuidados e
requererem uma desnaturalização de verdades a seu respeito, entre os estudantes, essas
temáticas precisam da utilização de fontes afetivas que sensibilizem quem as estudam a
mudar uma suposta atitude de desinteresse pelo tema.

Como trabalhar a Revolta da Chibata como tema sensível?

À guisa de considerações finais, tencionamos apontar modos de se abordar


didaticamente a Revolta da Chibata como tema sensível. Apontaremos caminhos que
podem ser seguidos, através do que Theodor Adorno (1995) e Alberti (2014) nos
auxiliaram a traçar.
A partir da perspectiva de uma educação anti-barbárie, é preciso pensar em
proposições didáticas cujo objetivo seja impedir que uma “consciência coisificada” se
constitua através do ensino, pensando em ações pedagógicas conforme uma espécie de
pedagogia preventiva, em que a violência seja problematizada em sala de aula, a partir
das narrativas historiográficas como a que exemplificamos acima, e depoimentos de
testemunhas oculares, como foi Eurico Fogo, reprovando atitudes de admire dos
valentões, do caráter manipulador, buscando evitar a existência do bullying e dos rituais
de aceitação violentos, conforme alega Theodor Adorno (1995):
Se fosse obrigado a resumir em uma fórmula esse tipo de caráter manipulador
– o que talvez seja equivocado embora útil à compreensão – eu o
denominaria de o tipo da consciência coisificada. No começo as pessoas
desse tipo se tornam por assim dizer iguais a coisas. Em seguida, na medida
em que o conseguem, tornam os outros iguais a coisas. Isto é muito bem
traduzido pela expressão aprontar, que goza de igual popularidade entre os
valentões juvenis e entre os nazistas. Esta expressão aprontar define as
pessoas como sendo coisas aprontadas em seu duplo sentido. Conforme Max
Horkheimer, a tortura é a adaptação controlada e devidamente acelerada das
pessoas aos coletivos” (ADORNO, T., 1995, p. 5).

Embora não exista fórmulas prontas, tampouco receitas que indiquem o passo a
passo de como se deva trabalhar uma questão sensível, experiências como as que
Verena Alberti (2014) descreveu, podem servir de caminho possível de se seguir.
Verena Alberti (2014) trabalhou o Regime Militar de 1964-1985 de sequências
didáticas que envolveram a utilização de diversas fontes históricas da época, além de
textos do livro didático. Entretanto, a autora frisou a necessidade de se preparar os
estudantes para o estudo do Regime Militar através de abordagens de temáticas
relacionadas ao tema: a política externa norte-americana em relação a América latina,

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desde a Doutrina Monroe até a Aliança para o progresso, além da a história do Brasil no
chamado período democrático, de 1946 a 1964, e a Revolução Cubana (ALBERTI,
2014, p. 4).
Essa postura deve ser realizada pelo professor, em que ele compõe seu plano de
aula fazendo opções dos conteúdos a ser ensinados (quebrando com a perspectiva de um
currículo formal, rígido, segundo os programas estabelecidos pelas redes educacionais,
devendo ser cumpridos à risca), dos métodos e das atividades. É nesse sentido que
Alberti (2014) compara a atividade do professor a de uma atividade de pesquisa.
Tanto a perspectiva de Alberti (2014) quanto a de Theodor Adorno (1995)
defendem que se trabalhe com o objetivo de priorizar a reflexão nos estudantes a
respeito das questões sensíveis. Alberti (2014) aponta que se deva lançar mão da
reflexão sobre o tema sensível. Mas, é preciso entender que a reflexão que pressupõe a
realização de conexões com o tempo presente, que as questões a respeito da tortura, por
exemplo, devem caminhar no sentido de buscar entender como se tolerava na época que
existisse tortura, mas deve-se chegar a discussão a respeito da existência da tortura
atualmente.
Se tomarmos como exemplo a Revolta da Chibata como uma questão sensível,
pelas duas perspectivas discutidas anteriormente, podemos inferir alguns passos a serem
tomados. Primeiro, seria preciso selecionar conteúdos relacionados ao estudo da Revolta
da Chibata, considerados como a constituição de um contexto histórico relacionado ao
tema. A título de exemplo, podemos incluir conteúdos referente à consolidação de uma
República no Brasil, considerando temáticas como a “Guerra do Paraguai”, a
“Proclamação da República”, o contexto de libertação dos escravizados, a vinda de
imigrantes europeus, o contexto social e político do Brasil nos primeiros governos
republicanos, movimentos de luta por direitos na chamada República Velha, como
Canudos, a Revolta da Vacina, dentre outros.
Seria necessário selecionar fontes históricas que pudessem ser utilizadas na
composição de recursos didáticos, como narrativas de artigos de jornais, relatos de
memórias, fotografias, charges e desenhos sobre a Revolta da Chibata.
Quanto a conexões com o tempo presente, entendemos que deva ser um
exercício realizado tanto pelo professor quanto pelo estudante. Através do professor, na
perspectiva de uma “socialização histórica”, conforme Pollak (1992), quando se define
os temas que deverão ser discutidos a partir do que os textos a respeito do Movimento
dos Marinheiro: a violência física, os maus tratos e o tratamento cruel e degradante, que

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se apresentam como possibilidades de se realizar a transversalidade de temas do


Estatuto da Criança e do Adolescente a partir das aulas de História, especialmente com
o artigo “18 a” da Lei 13010/2014, a chamada Lei Menino Bernardo.
As conexões espontâneas realizadas pelos estudantes é uma possibilidade de
ocorrer ao longo da aplicação da sequência didática. As relações feitas através de
assuntos tratados pela mídia em geral, que devem ser aproveitadas nas sequências
seguintes, no intuito de servir como base de discussões em que se problematize a
temática da violência física ou outras formas de violência. É preciso apenas entender
que trabalhar as questões sensíveis são significa levar o horror para sala de aula, com a
intenção de traumatizar as crianças e os adolescentes. Mesmo que se trabalhe com
descrições de um ritual de suplício, o objetivo não deve ser causar um choque nos
estudantes. Segundo Alberti (2014), o horror deve ser discutido e problematizado nas
intervenções didáticas, desde que não se utilize imagens agressivas para se abordar as
temáticas que envolvam violência. Embora a autora tenha lançado mão da linguagem
teatral, através de simulacro de um julgamento da anistia em sua experiência de
ensino/aprendizagem do Regime Militar, em que se organizou uma simulação da
votação do projeto de lei do senador Randolfe Rodrigues, que altera o Art. 1º da Lei de
Anistia de 1979 (ALBERTI, 2014, p. 5), penso que se deva analisar o que dos
acontecimentos que compõem a Revolta da Chibata se poderia simular. O simulacro de
um tribunal que envolve ameaça de bombardeio e mortes de oficiais durante um levante
é distinto de se simular um ritual de suplício que se realizava através do emprego de
chibatas, envolvendo tratamento cruel ou degradante, como humilhações e tortura.

REFERÊNCIAS:

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contemporaneidade. Tempo social; Rev. Sociol. USP. São Paulo, 10 (1) maio de 1998.
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de Janeiro, Paz e Terra, 1995.
ALBERTI, Verena. Palestra proferida no IV Colóquio Nacional História Cultural e
Sensibilidades, realizado no Centro de Ensino Superior do Seridó (Ceres) da
Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN), em Caicó (RN), de 17 a 21 de
novembro de 2014.

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LOWENTHAL, David. Como conhecemos o passado. Projeto História. São Paulo
(17) Novembro, 1998. Disponível em:
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marinheiros de 1910. Rio de Janeiro: Mauad X – FAPERJ, 2008.
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janeiro: FGV, v. 2, nº3, 1989.
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OS OLHARES DAS CRIANÇAS SOBRE OS CONSELHOS TUTELARES: UMA


ANÁLISE A PARTIR DO CONCURSO ARTE LIVRE

João Victor Braga de Souza (Universidade Federal Rural de Pernambuco,


Graduando em Licenciatura em História, membro do LAHIN -
Laboratório de História das Infâncias do Nordeste,
joao.souza.ufrpe@gmail.com)

Humberto da Silva Miranda (Doutor em História,


professor adjunto da UFRPE. E-mail:
humbertoufrpe@gmail.com)
Resumo

As crianças têm uma relação com a produção de desenhos de uma forma


diferente dos adultos, por ser uma linguagem muito utilizada na infância pode ser
utilizada como textos imagéticos, onde pode expressar um pouco de sua personalidade,
de suas vivências e experiências e também a sua situação social. A partir disso, o
concurso arte livre é uma ferramenta de grande importância na possibilidade de permitir
a expressividade das crianças e adolescentes matriculados regularmente na escola, seja
da rede pública ou privada de ensino em Pernambuco, fomentando o protagonismo
infantojuvenil e discutindo questões relacionados ao sistema de direito e proteção da
criança e do adolescente. Dessa forma, o objetivo desse trabalho é analisar os desenhos

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enviados para a 10° Edição do Concurso Arte livre – que teve como tema a atuação dos
conselhos tutelares, buscando dialogar com o Estatuto da Criança e do Adolescente e
das resoluções do Conanda sobre o conselho tutelar, visando assim, contribuir com a
historiografia da Infância no Brasil.

Palavras chave: Infância, Arte Livre, Conselho Tutelar.

Introdução

Este artigo compõe um projeto de pesquisa mais abrangente de caráter


monográfico, tendo como objetivo historicizar os conselhos tutelares e discutir o
imaginário a partir dos olhares das crianças e adolescentes por meio de produções
artísticas, mais especificamente desenhos produzidos para o 10° Concurso Arte Livre
realizado no ano de 2017, promovido pelo Conselho Estadual de Defesa dos Direitos da
Criança e do Adolescente – CEDCA/PE. O concurso atende uma demanda de extrema
importância, ouvir as crianças e adolescentes e fomentar a discussão acerca dos seus
direitos e de suas diversas realidades, visto que segundo Abramowicz (2014), há uma
construção social de uma infância única, que age na criança de forma que muitas vezes
impede a mesma de se questionar e se interrogar sobre sua realidade e sua condição de
criança. Essa concepção de uma infância única, minimiza as vivências e ignora as
diversas condições culturais, sociais e econômicas que interferem na forma desse sujeito
enxergar o mundo e de se enxergar, na tentativa de homogeneizar os diversos processos
e concepções que agem nas infâncias.

Os Conselhos de Direitos são órgãos colegiados e deliberativos, responsáveis


por gerir fundos e que tem sua composição paritária, ou seja, metade dos representantes
são escolhidos pelo governo e a outra metade são representantes escolhidos dentro da
sociedade civil. O CEDCA/PE foi criado pela lei Estadual nº. 10.486, em 17 de
setembro de 1990 e tendo o funcionamento a partir de 1991, sendo um dos primeiros
conselhos estaduais criados no Brasil, possibilitado pela constituição cidadã de 1988
que introduz a participação da sociedade civil relativa ao Sistema de Garantia de
Direitos da Criança e do Adolescente, a partir de muitas lutas travadas pela
redemocratização do país, onde muitas pautas se reverteram em políticas públicas e em
redes de proteção social para crianças e adolescentes, que vai ter sua base no Estatuto da
Criança e do Adolescente – ECA, promulgado em 1990.

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Aos Conselhos de Direitos um dos pilares de funcionamento se manifesta em ter


o compromisso de conhecer o contexto sociocultural da criança e do adolescente no seu
espaço de atuação, ou seja, o CEDCA/PE tem como uma de suas funções, conhecer suas
crianças e adolescentes em suas mais diversas realidades, sendo assim, estimular a fala e
a participação de tais sujeitos é uma das formas principais para definir políticas de
afirmação e de garantia do cumprimento do ECA, ou seja, o Concurso Arte Livre, vai se
manifestar como uma importante ferramenta para o cumprimento das diretrizes
estabelecidas como função de tal órgão.

O CEDCA/PE vai atuar juntamente aos Conselhos Tutelares para a efetivação


dos direitos de crianças e adolescentes, e o funcionamento de ambos vai partir do ponto
em que as crianças são sujeitos históricos e ativos, fugindo da ideia caritativa e
filantrópica que muitas vezes ainda se mantém no imaginário da população. Partindo
dessa perspectiva, os dois órgãos vão ter um mesmo fio condutor, com funções
diferentes, na prática os conselhos tutelares vão agir como mediadores de conflitos e de
situações prejudiciais a tais jovens, atendendo as crianças, adolescentes, seus pais e
responsáveis, ou seja, no cotidiano vai estar inserido no contexto familiar, fiscalizando e
principalmente aconselhando e orientando a família, buscando sempre a efetivação dos
direitos que cabem as crianças e adolescentes de forma menos traumática e mais natural
possível. Assim, a busca pela definição exata do que é um conselho tutelar e onde
encaixá-lo é difícil.

Apesar de estar vinculado administrativamente ao Poder Executivo


Municipal, não é um órgão do governo, mas sim um órgão do Estado. Em
geral, atende à camada da população desassistida pelas políticas públicas,
mas não é um órgão ou setor da assistência social. É responsável por
acompanhar crianças de 0 a 12 anos incompletos, autoras de ato infracional,
mas não é órgão da segurança pública. Apesar de suas determinações
possuírem peso de lei, não é um órgão da justiça. (ASSIS, et all. 2010, P.148)

Os conselhos tutelares são diferentemente do CEDCA/PE, órgãos municipais


que são conhecidos na sociedade muitas vezes com alcunha de cuidar de bandido, além
de outras tipificações pejorativas difundidas, dessa forma, um grande desafio é romper
tal estigma que é reproduzido, mostrando a real função e atividade de tais conselhos e
conselheiros tutelares, assim, trazer para o cerne da discussão o ECA é de suma
importância, tratar esse tema diretamente com as crianças e com as escolas é uma forma
de estimular a criticidade de tais sujeitos, elucidando aos mesmos algumas questões

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relacionadas a sua vida cotidiana, mostrando ferramentas e formas de assegurar aquilo


que é estabelecido por lei, podendo assim, contribuir na formação cidadã desses
meninos e dessas meninas.

Os Conselhos Tutelares e o ECA no imaginário social

O conceito de imaginário é discutido por vários historiadores e pesquisadores


das Ciências Humanas e um ponto importante para compreensão dessa discussão é a
perspectiva da representação como um dos elementos fundamentais para o imaginário
social. Dessa forma, Chartier analisa a representação como um conjunto de
classificações, divisões e hierarquizações que vão atuar na compreensão do mundo,
tendo como orientação distinta a partir dos diversos grupos sociais, sendo variável de
acordo com o local social de cada um dos sujeitos. Além disso, o discurso formado para
tal representação, não é e nem será neutro.

As percepções do social não são de forma alguma discursos neutros:


produzem estratégias e práticas (sociais, escolares, políticas) que tendem a
impor uma autoridade à custa de outros, por elas menosprezados, a legitimar
um projeto reformador ou a justificar, para os próprios indivíduos, as suas
escolhas e condutas. (1990, p. 17)

O imaginário formado por essas representações é mutável no tempo e no espaço


e está atrelada ao que se é estabelecido de forma hegemonica, assim falando, a
interpretação criada e difundida pela sociedade acerca de políticas públicas inclusivas e
o sobre o Sistema de Garantias de Direitos das Crianças e Adolescentes, diz mais sobre
o modelo político do que se imagina, visto que esse imaginário coletivo é estimulado e
até certo ponto moldado pelas estruturas sociais do modelo vigente e das permanências
históricas.

A rigor, todas as sociedades, ao longo de sua história, produziram suas


próprias representações globais: trata-se da elaboração de um sistema de
idéias-imagens de representação coletiva mediante o qual elas se atribuem
uma identidade, estabelecem suas divisões, legitimam seu poder e concebem
modelos para a conduta de seus membros. Seriam, pois, representações
coletivas da realidade, e não reflexos da mesma. (PESAVENTO, 1995, p. 16)

Por muitas vezes é visto o constante ataque ao Sistema de Garantias de


Direitos da Criança e do Adolescente, com projetos que visam deslegitimar o ECA e
toda a luta travada por anos para a sua promulgação, com justificativas rasas e sem

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embasamento teórico e nem jurídico, promovendo discursos como “o estatuto protege


bandido”, “menor tem que ir para cadeia”, entre outros, desrespeitando os Direitos
Humanos e toda uma rede de proteção criada e gerida para a construção de uma
sociedade menos desigual e que compreenda os diversos contextos sociais existentes,
com finalidade não da punição, mas da educação.

O ECA completou 27 anos de sua implementação, porém, no relatório


emitido pela Unicef – Fundo das Nações Unidas para a infância sobre os 25 anos do
ECA é apontado as conquistas e avanços e também os pontos não alcançados e que
ainda estão distantes, como a desigualdade nas taxas de mortalidade de crianças
indígenas, quilombolas, além das crianças e adolescentes que estão fora da escola “E
essa exclusão escolar tem rosto e endereço: quem está fora da escola são pobres, negros,
indígenas e quilombolas. Muitos deixam a escola para trabalhar e contribuir com a
renda familiar” (UNICEF, 2015)

A constante busca pela aplicabilidade do Estatuto ultrapassa os muros da


questão punitiva, o ponto principal é a integração e a retirada das crianças de situações
de vulnerabilidades e de violências, ou seja, o ECA não é baseado no antigo Código de
Menores já extinto, que tratava as crianças e adolescentes como menores perigosos
tendo como base a vigilância e a punição desses sujeitos. Então até que ponto esse
código deixou marcas na sociedade brasileira e no seu imaginário? Dessa forma,
assegurar a aplicação do que é estabelecido pelo ECA, é contribuir para que essa cultura
punitiva, repressora e excludente seja abandonada, é contribuir para que a sociedade
compreenda a função do estatuto e do Sistema de Garantias de Direitos da Criança e do
Adolescente na vida de milhares de crianças e de adolescentes que precisam que o
Estado aja e garanta a sua cidadania.

Assim, o Conselho Tutelar vai atuar como um instrumento social de


interesse coletivo, dado que que no artigo 135 do ECA é definido a atividade do
conselheiro como um serviço público relevante, ou seja, é intermitente independente de
qual governo ou situação. A partir disso, a aproximação de tais órgãos com a sociedade
civil é imprescindível, tanto com as crianças e adolescentes, como seus pais e
familiares, tendo um diálogo constante com escolas e comunidades.

Concurso Arte Livre e as representações

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O Concurso Arte Livre foi criado pelo CEDCA/PE no ano de 2006 com
uma configuração diferente da atual, onde os participantes do concurso eram
exclusivamente estudantes que estavam cumprindo medidas socioeducativas de
internação, posteriormente o público participante aumenta para qualquer estudante
matriculado na rede básica de ensino, seja da rede pública ou rede privada. A
participação no concurso no ano de 2017, a sua 10° edição, foi dividida em quatro
categorias para os estudantes, sendo uma de texto para alunos do Ensino Fundamental
II, outra de texto somente para discentes do Ensino Médio, categoria vídeo para
estudantes do nível médio e desenhos para Ensino Fundamental I.

É expresso no seu edital como objetivo geral do Concurso Arte Livre


incentivar manifestações culturais que auxiliem na efetivação dos direitos das crianças e
dos adolescentes.

Considerando que é de suma importância ampliar a discussão sobre os


direitos estabelecidos no Estatuto da Criança e do Adolescente, de forma a
fortalecer o protagonismo infantojuvenil e estimular o debate sobre o papel
do Conselho Tutelar. (CEDCA/PE, 2017)

Ouvir as crianças é uma frase muito falada no âmbito educacional e é de suma


importância para construção de conhecimento e de saberes e fortalecimento do
protagonismo de tais sujeitos, porém, o ouvir não é necessariamente a mensagem
oralizada ou mesmo escrita como se espera, Sarmento (2013) aponta que isso é erro
epistemológico que ocorre pelo adultocentrismo social que ignora o fato da infância ter
seus próprios símbolos, representações e complexidades. Assim, muitas vezes os
desenhos produzidos são deixados de lado como uma categoria de linguagem e de
representação de mundo dessas crianças, mesmo estabelecendo ligações com o real
vivido por elas.

[...] Depois, porque o desenho infantil, não sendo apenas a representação de


uma realidade que lhe é exterior, transporta, no gesto que o inscreve, formas
infantis de apreensão do mundo – no duplo sentido que esta expressão
permite de “incorporação” pela criança da realidade externa e de
“aprisionamento” do mundo pelo acto de inscrição – articuladas com as
diferentes fases etárias e a diversidade cultural. Nesse sentido o desenho
infantil comunica, e fá-lo dado que as imagens são evocativas e referenciais
de modo distinto e para além do que a linguagem verbal pode fazer.
(SARMENTO, 2011, P. 29)

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A partir da compreensão dos desenhos como uma forma de linguagem, pode-se


analisar esses desenhos como fonte histórica, estando inserida em um tempo e espaço,
sendo produzida por sujeitos dotados de direitos e capazes de produzir sua própria
História e suas representações. A historiadora Pesavento (2004), aponta que a História
tem a iconografia como uma rica fonte de documentos para análise, seja, utilizando a
televisão, o cinema, a história em quadrinhos, as fotografias, as pinturas ou desenhos.
As imagens falam e se comunicam e tal abordagem da História Cultural permite o
trabalho com a iconografia para a produção da História do tempo presente, discutindo os
símbolos e representações.

Três desenhos foram escolhidos para serem discutidos e analisados, tendo como
base as múltiplas representações trazidas por essas crianças. O primeiro deles, foi
produzido por um estudante da Escola Municipal Doutor Manoel Borba, do município
de São Vicente Férrer.
Desenho 1 – Gabriel José da Silva

Fonte - Concurso Arte Livre 2017


Feito pelo estudante Gabriel José da Silva, retrata três crianças que representam
o direito ao lazer, a escola e a família, segurando placas de proteção aos direitos de tais
personagens, sendo protegidos pelo Conselho Tutelar representado por uma sombrinha

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que os guarda das mais diversas violências que podem se aproximar e se fazer presente
na vida delas.

Os símbolos de violência são representados em três instâncias diferentes, a


violência doméstica com os desenhos de um cinto e de uma sandália, a violência urbana
com os desenhos de uma arma de fogo com seus projéteis e uma faca, além da violência
do próprio estado para com essas crianças, com o desenho de uma algema, propondo
assim a representação da força policial que muitas vezes se mostra violenta e truculenta
a depender do contexto e do cenário social que o sujeito está inserido, onde o ECA e
suas ferramentas devem se fazer presente e garantir a efetividade dos direitos
assegurados por lei, através de suas ferramentas, como o próprio Conselho Tutelar.

Esse desenho propõe que o autor teve acesso as informações e discussões sobre
as funções e atividades dos conselhos tutelares, mesmo que possa confundir algumas
atribuições ou formas de ação, mas indica conhecer o fato de ser um sujeito dotado de
direitos, um indivíduo que tem por lei garantias e que existem dispositivos que podem e
devem ser acionados por ele para que isso seja cumprido. Então Segundo Sarmento
(2011), um dos enquadramentos possíveis para análise de desenhos de crianças, é
justamente partir da concepção o desenho feito por ele é um ato realizado por um sujeito
concreto, para o qual são mobilizados saberes, vontades, emoções e afetos, o que vai
poder caracterizar como uma produção de uma realidade singular, pertencente aquele
autor que é único e tem todas as suas capacidades, habilidades e conhecimentos para
aquele fato produzido.

O segundo desenho selecionado para discussão e análise foi produzido pela


estudante Brígida de Andrade Rêgo, da Escola Estadual Tomé Francisco da Silva,
localizada no município de Quixaba.
Desenho 2 – Brígida de Andrade Rêgo

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Fonte: Concurso Arte Livre 2017

Nessa produção, o autor divide o desenho entre duas atividades dos conselhos
tutelares, onde ele aponta como missões, uma seria a defesa e a outra missão a garantia.
Assim, ele afirma que o Conselho Tutelar atua na defesa das crianças e dos adolescentes
do abandono, da exploração sexual e do trabalho infantil, e aponta que agem na garantia
do lazer, da educação e da família. Esse desenho propõe reflexões muito importantes no
que se diz ao imaginário social que muitas vezes reproduziu e por vezes ainda reproduz
a ideia errônea que os conselheiros tem como atividade a separação das crianças das
famílias, a retirada desse sujeito do seio e do convívio familiar, quando na verdade, a
proposta e função é garantir uma vivência familiar sadia, que preze pelo respeito aos
seus direitos e que garanta um desenvolvimento adequado para essa criança ou esse
adolescente, o que é trazido pelo autor, indo de encontro com tal questão difundida no
censo comum.

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Assim como o primeiro desenho analisado, o autor demonstra ser dotado de


conhecimento sobre seus direitos legais e sobre as atividades do Conselho Tutelar e dos
conselheiros,
sabendo que tais reflexões
trazidas pelo desenho
realmente condizem
com a legislação.
Desenho 3 – Pérola Milene da
Silva

Fonte: Concurso Arte

Livre 2017

Por fim, o terceiro desenho trazido foi feito pela estudante Pérola Milene da
Silva, da Escola Estadual Tomé Francisco da Silva que também fica localizada no
município de Quixaba.

Diferentemente dos outros desenhos, a autora foca em um problema


especifico que é vivenciada por muitas crianças e adolescentes no Brasil, a violência
doméstica. Nesse aspecto o Brasil se destaca negativamente, visto que dados coletados
pelo instituto know violence in Childhod, ligado a Unicef, apontam que 68% das
crianças sofreram algum tipo de punição corporal dentro de casa no ano de 2015, ou
seja, um número extremamente elevado de violência doméstica, o que acusa o não
cumprimento do ECA, que aponta o dever da família, do Estado e da sociedade

É dever da família, da sociedade e do Estado assegurar à criança e ao


adolescente, com absoluta prioridade, o direito à vida, à saúde, à alimentação,
à educação, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito,à

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liberdade e à convivência familiar e comunitária, além de colocá-los a salvo


de toda forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade
e opressão. (BRASIL, Constituição, 1988, art. 227)

O desenho acima, retrata uma criança ligando para o Conselho Tutelar e fazendo
uma denúncia sobre maus tratos e violência doméstica possivelmente feita pelo seu pai,
o que demonstra assim como os outros dois desenhos já discutidos, que é uma criança
que compreende ser um sujeito de direitos que tem dispositivos legais a que podem
recorrer, mesmo não sendo o Conselho Tutelar que recebe a denúncia, e sim o disque
100 que deve ser divulgado como meio de comunicação mais eficiente para denúncia,
em virtude de ser um serviço do governo federal que foi criado com o objetivo de
atender denúncias contra abuso e exploração de crianças e adolescente, tendo seu
atendimento hoje voltado para qualquer abuso e desrespeito aos direitos humanos.

Considerações Finais

Na produção desse artigo com as leituras dos referencias teóricos e temáticos,


além das fontes documentais que foram os editais do Concurso Arte Livre e o acervo
dos desenhos do mesmo, fica evidenciado a importância de fomentar a fala e o
protagonismo das crianças e adolescentes através de ações e ferramentas dos Conselhos
de Direitos que vão atuar para contribuir na efetivação dos direitos desses sujeitos.

Nessa perspectiva de incentivar o protagonismo e compreender as crianças e


adolescentes como sujeitos de direitos e capazes de produzir sua própria História e de
representar sua realidade, discutir como se dá a prática dos Conselhos Tutelares se
revela de extrema importância para propor novas possibilidades de aproximação dos
órgãos para com a sociedade e avaliar as ferramentas utilizadas, como o Concurso Arte
Livre que foi utilizado como objeto nesse trabalho, a partir de uma metodologia de
análise que pode ser mais abordada e trabalhada pelos historiadores e que traz os
desenhos como uma fonte.

A mudança do imaginário coletivo quanto ao ECA, ao Sistema de Garantia de


Direitos e qualquer outra política afirmativa ligada as crianças e aos adolescentes se
torna possível a partir do fomento a essas discussões, a partir da aproximação do Estado
e de tais legislações no âmbito escolar, no âmbito familiar e nas comunidades, esse é o
maior desafio, principalmente quando é visto o avanço das tentativas de ataque a tais
políticas públicas com certa frequência.

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Encontrar em desenhos feitos pelas crianças representações desses Conselhos


Tutelares como órgãos que atuam realmente na defesa deles, que os protegem das
diversas violências é muito significativo, indica que a função está sendo exercida na
vida de alguns desses meninos e meninas, visto que os Conselhos vão agir na garantia
dos direitos ligados a convivência familiar e comunitária, a liberdade, respeito e
dignidade, a vida e a saúde, a garantia do direito a educação, cultura, esporte e o lazer,
além da proteção ao trabalho, ou seja, proporcionando o desenvolvimento das
capacidades cognitivas e físicas dessas crianças.

Por fim, os Conselhos Tutelares devem fortalecer suas redes de divulgação do


trabalho e dos direitos das crianças e dos adolescentes, evitando a propagação de
inverdades e estimulando a aproximação da sociedade civil junto aos órgãos do Sistema
de Garantia de Direitos e analisar uma dessas ferramentas de aproximação mostrou a
riqueza da produção desses sujeitos que muitas vezes são representados mas tem o
direito negado de se representar, de representar a sua forma de apreensão de mundo e de
como ele se sente inserido nessa sociedade.

REFERENCIAS

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adolescente: Lei n. 8.069, de 13 de julho de 1990, Lei n. 8.242, de 12 de outubro de
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contemporânea: desafios conceituais e praxeológicos. In: ENS, Romilda Teodora;
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O Movimento Nacional de Meninos e Meninas de Rua: A Educação Popular de rua


e a influência do Paulo Freire

Raul Alves da Silva¹


Humberto da Silva Miranda²
Graduando em História na UFRPE e estagiário do LAHIN¹
Professor do Departamento de História da UFRPE, coordenador do LAHIN
Raul.alves17@hotmail.com
humbertoufrpe@gmail.com

RESUMO:
O Movimento Nacional de Meninos e Meninas de Rua é uma organização social política,
fundada em 1985, que visa, através da educação popular, com a influência do pensamento do
educador Paulo Freire, transformar a vida de meninos e meninas em situação de rua no Brasil.
Essa pesquisa tem objetivo analisar as práticas e a metodologia da educação popular de rua e as
contribuições do pensamento do educador Paulo Freire ao Movimento no recorte historiográfico
da década de 1980 – 1990 e suas permanências. Como suporte metodológico utilizamos da
análise do discurso dos documentos produzidos pela Organização, como Jornais, Panfletos,
Estatuto e etc. como também do trabalho produzido pelo Educador. Apresentamos como
resultados a atuação do Movimento, contemplando o debate sobre as mais diferentes formas de
articulações construídas pelos (as) educadores (as) sociais, sobre a educação popular e as
mobilizações para provocar questionamentos sobre a situação das crianças em vulnerabilidade e
conquistas e garantia de direitos a infância, na década de 1980 e 1990.
Palavras-chave: História, Infâncias, Movimentos Sociais.

INTRODUÇÃO:

A reorganização da política brasileira, de acordo com Porfírio, foi possibilitada


pela crise econômica ao qual o país se encontrava no final da década de 1970 e início da
década de 1980, além da instabilidade política e também pelas manifestações de rua
com a presença de partidos políticos com as pautas do movimento que ficaria conhecido
como Diretas Já!. O Historiador afirma que por discordâncias sobre os projetos do
Governo o PDS – Partido Democrático Social – passou por uma instabilidade que fez
com que os seus filiados, ora se aproximassem do apoio ao Presidente João Figueiredo,
ora se opusessem aos seus projetos e se aproximassem dos que se diziam pró-diretas,
em maior caso, do PMDB – Partido do Movimento Democrático Brasileiro. Segundo
Porfírio:

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A instabilidade política do início dos anos 1980 também se acentuava.


Setores do PDS já mostravam sua insatisfação com o cenário de crise. Em
alguns momentos aproximavam-se da oposição, especificamente de alguns
grupos do PMDB, posicionando-se contra projetos do governo. Em setembro
de 1983, o Congresso Nacional rejeitou o decreto-lei n° 2024, que
regulamentava a política de reajuste salarial dos trabalhadores. Na contagem
dos votos contrários, 11 foram do PDS. Era a primeira vez que um decreto-
lei do governo militar era rejeitado pelo legislativo. (PORFÍRIO, 2013 p.
226)

Os movimentos populares ocuparam as ruas, praças e outros espaços públicos


para elaboração de comícios com participação de políticos, artistas e pessoas
envolvidas, enfim, militantes que buscavam um Estado democrático. Tais mobilizações
com o intuito de pressionar tanto os políticos de oposição, quanto de situação em prol de
eleições diretas para presidente do Brasil. Conforme afirma Porfírio:

Mobilização de milhares de pessoas em quase todo o país, envolvendo


artistas, cantores e mesmo atletas, que chegavam a comandar alguns
comícios, pressionou políticos da situação e da oposição a reavaliarem
algumas posturas. No final de 1983, 12 governadores situacionistas haviam
aderido à ideia de uma eleição direta para presidente em 1985. No PMDB,
Ulysses Guimarães e Tancredo Neves decidiram adiar o debate sobre a
posição do partido no processo de redemocratização. (PORFÍRIO, 2013 p.
228)

Na Cidade do Recife, capital de Pernambuco, o ambiente Político década de 1980,


de acordo com Miranda, vivia a efervescência da abertura política e da (re)articulação
dos movimentos sociais. Miranda ainda afirma que:

Os movimentos sociais conviviam com um cenário de desigualdades sociais


e com uma política autoritária. Este período é marcado pelos governos de
João Figueiredo na Presidência da República, do governador biônico Marco
Maciel e do prefeito eleito Gustavo Krauser (1979-1982), que, mesmo na
fase de abertura política, estavam sintonizados com o ideário dos governos
militares. (MIRANDA, 2014 p. 243)

Inserido nesse cenário de desigualdades sociais o Movimento Nacional de


Meninos e Meninas de Rua surge como um grupo questionador das políticas voltadas à
criança em situação de rua, sobretudo, das práticas assistencialistas executadas pelo
sistema FUNEBEM/FEBEM e do Código de Menores. O Movimento procurou
construir uma articulação que combatia a Política Nacional do Bem-estar do Menor,

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institucionalizada pelo Governo Federal, durante a ditadura Civil-Militar, implantada


em 1964. Esse movimento a partir dos debates internacionais sobre os Direitos
Humanos das Crianças e dos Adolescentes, que passavam a ser reconhecidos como
sujeitos de direitos (MIRANDA, 2014).
O problema central da pesquisa é analisar os métodos e práticas educacionais
desenvolvidas pelos educadores (as) social no contexto das ações propostas pelo
Movimento, partindo da hipótese de que os educadores (as) sociais contribuíram para a
formação do MNMMR e da sua identidade enquanto movimento social, além de
analisar a influência do educador Paulo Freire no contexto da educação popular de rua
do Movimento. Nesse trabalho investigativo, também propomos analisar o discurso
acerca das crianças e os adolescentes, que para o Movimento foram considerados os
protagonistas das mobilizações.
O Movimento Nacional de Meninos e Meninas de Rua – MNMMR – foi fundado
no ano de 1985, por homens e mulheres, considerados militantes, que se mobilizaram
em defesa dos direitos da criança e do adolescente, em Recife e em outras capitais
brasileiras. Alegando a ineficácia da proposta da Fundação do Bem-Estar do Menor1 –
FUNABEM – colocavam-se como alternativas as crianças e adolescentes em situação
de rua propondo um olhar progressista. A partir destes questionamentos surgiram
projetos alternativos ao estatal como o Projeto Alternativas Comunitárias de
Atendimento a Meninos de Rua. Posteriormente foram promovidos encontros, onde
caravanas com representações de todo o país se reuniram, sendo a primeira em Brasília
para a organização e realização de debates sobre os “novos direitos da criança”.
Segundo Santos, o MNMMR passou a considerar a criança e o adolescente sujeitos da
história e desenvolver o trabalho educativo no contexto social em que eles estão
inseridos princípios fundamentais do Movimento. Sobre a sua constituição, Santos
afirma que:

No começo da década de 80 surgiu o Projeto Alternativas Comunitárias de


Atendimento a Meninos de Rua (desenvolvido pelo Fundo das Nações
Unidas pela Infância – UNICEF –, Secretaria de Ação Social – SAS – e
Fundação do Bem-Estar do Menor – FUNABEM –, estes últimos órgãos do
Ministério da Ação Social), criado por técnicos insatisfeitos coma a atuação
governamental, ou seja, com a ineficácia da política oficial. O projeto tinha
por objetivo conhecer as experiências alternativas que se realizavam no país
e aprender com quem fazia um atendimento alternativo. [...] Em junho de
1985, esses grupos locais, reunidos em Brasília, decidiram criar uma

1
BRASIL, Fundação Nacional do Bem-Estar do Menor, 1966 p.15 Apud MIRANDA, 2014 p. 45

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organização não-governamental para a defesa e promoção dos direitos dos


milhões de meninos e meninas de rua do Brasil, o Movimento Nacional de
Meninos e Meninas de Rua. (SANTOS, 1994 p. 11 e 12)

O Movimento Nacional de Meninos e Meninas de Rua se coloca como


alternativa pedagógica e, além dela, política. Porém, antes de buscarmos compreender
os métodos pedagógicos do Movimento é importante compreender a presença do
educador de rua na proposta do MNMMR. O Movimento defende que a presença do
educador:

Não foi inventada para ser mais um na equipe, ela aparece em razão da
necessidade constatada no trabalho dia-a-dia, frente ao reconhecimento da
ineficácia institucional repressora e isolada, na busca de um atendimento a
esse contingente espoliado. [e] a luta do educador é caminhar com o menor
no sentido de ajuda-lo a tornar-se efetivo, integrante e transformador, através
de uma convivência participativa e questionadora. (MOVIMENTO, 1985 p.
7 e 8)

Desta forma o educador seria, de acordo com o Movimento, o resultado da


ineficácia do sistema oficial e seu objetivo é transformar o estado social da criança em
situação de rua com a convivência participativa e questionadora. A construção da
prática e do olhar para a criança, elaborado por Freire e o Movimento, como
respeitadora do espaço da criança é um discurso de colocar-se de forma diferente ao que
os meninos e meninas em situação de rua supostamente receberiam da política estatal.
No seu discurso, sua escolha pelo oprimido e não o opressor coloca a política
questionada pelo Movimento, a FUNABEM, como opressora e violenta em relação às
crianças em situação de rua que seriam oprimidas.
Portanto, o Movimento busca construir, a partir do educador social, uma
articulação ideológica com a sociedade e Estado para a resolução dos problemas
sociais. Gohn, ao analisar os ditos “novos movimentos sociais” nos possibilita fazer um
paralelo com o MNMMR, pois para a socióloga atuação dos NMS se dá como “redes
de trocas de informações e cooperação em eventos e campanhas”.
O MNMMR busca, também, construir uma identidade coletiva para que as
pressões sobre as políticas que regem a vida da criança possam ser aquelas que
atendam as expectativas do Movimento. O seu estatuto afirma que a instituição busca:

Divulgação do Movimento, através dos meios de comunicação. [...] as


comissões que constituem o Movimento surgem da base e legitimam-se na
mesma. Deles fazem parte pessoas comprometidas com a causa do menor
articulada com a luta global da população marginalizada. [...] sensibilizar e

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mobilizar a comunidade para que haja uma maior participação da mesma


junto às comissões ou grupos locais. (MOVIMENTO, 1985)

Desta forma, eles buscam construir um coletivo comprometido com sua causa
para causar questionamentos à sociedade em geral e deste questionamento buscar a
mudança proposta no seu discurso. De acordo com Maria da Gloria Gohn, os “Novos
Movimentos Sociais” têm uma perspectiva diferente dos primeiros Movimentos
Sociais, estes de caráter classicista embasados na teoria marxista, na sua construção de
questionamentos sociais, eles são pautados em debates políticos para a garantia e
conquistas de direitos para um determinado sujeito social, este não sendo um ser
individual, mas coletivo. De acordo com Gohn esses movimentos:

Recusam a política de cooperação entre agências estatais e os sindicatos e


estão mais preocupados em garantir direitos – existentes ou a ser adquiridos
para suas clientelas. Eles usam da mídia e as atividades de protestos para
mobilizar a opinião pública a seu favor, como forma de pressão sobre os
órgãos e políticas estatais. Por meio de ações diretas, buscam promover
mudança nos valores predominantes e alterar situações de discriminação,
principalmente dentro de instituições da própria sociedade civil. (GOHN,
2011 p. 125)

Portanto, O Movimento não é pautado sobre uma luta de classes, mas uma luta
ideológica, seu propósito é construir junto com a sociedade, independente da classe
social a qual o individua pertença, uma sociedade mais justa para a criança em situação
de rua. Além desta perspectiva, a construção da identidade coletiva, a busca pela
autonomia e reconhecimento do movimento pelos próprios atores e sociedade em geral
são também características dos Novos Movimentos Sociais. (GOHN, 2011 p. 126)
Para cumprir os seus objetivos o Movimento mantém o discurso da necessidade
de uma proposta alternativa de educação. Sua proposta de transformação social o
menino e menina em situação de rua seriam respeitados e fariam parte do processo
educacional e de mudança junto ao educador formado pelo próprio Movimento. Nesse
cenário, Gohn define que a educação popular tem por objetivo desenvolver, partindo do
pressuposto que o educando não tem ou pouco tem as capacidades necessárias para
sobreviver de forma produtiva dentro de sua sociedade, assim ela define que o intuito da
educação popular é:

Desenvolver nas classes mais desfavorecidas da sociedade algumas


capacidades que foram consideradas necessárias para a sobrevivência ou lhes
ajudariam a viver de uma maneira produtiva – ou a sobreviver – dentro da
ordem social existente. (TORRES, 1994 p. 251, apud GOHN, 2013 p. 36)

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E a partir da contribuição da Socióloga entendemos que o Movimento utiliza da


Educação Popular, influenciada pelos pensamentos do Paulo Freire, para desenvolver
e/ou ajudar a vida de crianças e adolescentes em situação de rua no Recife e em outras
cidades do Brasil, sobretudo as capitais.

PEDAGOGIA NO MOVIMENTO

O Movimento Nacional de Meninos e Meninas de Rua propõe trabalhar as


questões que envolvem às crianças e adolescente em situação de rua a partir do Diálogo,
Participação e Organização. O documento Organização de Meninos e Meninas de Rua:
a arte de educar para a vida, sentidos político-pedagógico-culturais da organização,
produzido pelo Movimento busca, desde seu título, explicitar o seu projeto de educação
alternativa.
Nesta documentação o primeiro elemento-chave é o Diálogo, sendo colocado
como o ponto de partida do educador. Entende-lo como fundamental é entender que o
Movimento busca atingir um público que de alguma forma foi silenciado pela educação
formal.

Um primeiro elemento-chave que identificamos como característica desta


pedagogia é a escuta e a conversa. Os depoimentos revelam que escutar cada
menino/o menina cria um clima favorável à conversa, é o ponto de partida e
constitui um fundamento da relação educativa. (MOVIMENTO, 2002 p. 80)

O documento já citado propõe a Participação e a Organização também como


elementos-chave para a proposta educativa.

Outro elemento-chave que caracteriza a proposta pedagógica do Movimento


está no jeito como é trabalhada e no sentido que adquire a ideia de
participação. O princípio político da organização implica na compreensão do
direito de cada menino/a em tudo que lhe diz respeito. O ambiente criado
pela relação educativa visa favorecer o exercício desse direito.
(MOVIMENTO, 2002 p. 82)

Os Elementos-chaves que o documento sugere se aproxima das idéias do educador


Paulo Freire quando se refere à busca pelo “momento mágico2”. Nesse passo o educador
precisa observar, respeitando o espaço dos meninos e meninas, precisando estar atento
para as escolhas e opiniões dos mesmos. O educador social de rua nesse momento, que

2
FREIRE, 1985 p. 6

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talvez seja o mais importante, precisa ser paciente para não haja uma reprodução da
educação autoritária3.
O Movimento defende a ideia da organização e participação das crianças e
adolescentes na sua proposta pedagógica. No seu discurso a motivação para que as
crianças e adolescentes se expressem se faz presente com o intuito de utilizar dessa
prática para resolver os problemas do dia-a-dia deles.
Em uma passagem sobre a atuação dos educadores e educadoras o Movimento os
caracterizam como sujeitos dinâmicos em suas práticas educativas a ponto de perceber o
momento e o ritmo dos meninos e meninas.
Os educadores e educadoras seguem sempre traçando objetivos e
metodologias concretas, em função de como percebem, sentem o momento
no qual se encontra o grupo. Atuam, se necessário coordenam e facilitam a
organização, respeitando o ritmo do grupo: acompanhando o seu caminhar,
avançando em relação a ele, ou colocando-se atrás quando o grupo está
maduro e consegue caminhar por si mesmo, sempre norteandos pela
concepção de criança enquanto sujeito de direitos e provocadores de uma
educação transformadora. Tornam-se capazes de orientar a turma para a
tomada de consciência de que todos são responsáveis pela construção de
uma nova ordem social. Muitas vezes como mediadores, provocadores,
interlocutores de relações, tentando regular a capacidade comunicativa do
grupo, para que ele possa expressar a sua vida, elaborar uma leitura dela
cada vez mais enriquecedora, resgatar sua identidade e cultura, fomentar a
construção de critérios próprios. (MOVIMENTO, 2002 p. 57)
De acordo com as afirmações do Documento sobre esses profissionais da
educação, eles não têm a intenção de intervir nas concepções dos estudantes, contudo, o
discurso da provocação de uma Educação Transformadora, sustentada pelo Movimento,
se torna um paradoxo desta afirmação, pois a educação, de acordo com Freire, é um
método político, e sendo assim, as concepções do educador não seriam imparciais na
sua prática educativa.
A utilização de imagens de produções artísticas elaboradas por crianças e
adolescentes nas publicações nos remete a um dos Elementos-chave quando se fala em
adquirir a ideia de participação. Ainda na mesma documentação, a instituição busca
destacar a participação das crianças e adolescentes em seu projeto.

3
FREIRE, 1985 p.13 e 14

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Imagem: Organização de Meninos e Meninas de Rua: a arte de educar para a vida, sentidos
político-pedagógico-culturais da organização. Recife – PE – Movimento, 2002.

Os resultados dessa pesquisa nos possibilitam afirmar que a orientação ideológica


do Movimento coloca sobre o educador social a responsabilidade de agir como
questionador da situação das crianças e adolescentes, assim como no questionamento a
sociedade em geral sobre as políticas que as atingem. O educador é para o Movimento o
porta-voz e mediador para colocar em prática a sua ideologia e fundamentar o seu
questionamento sobre a situação de injustiça que rege a vida destas crianças tanto com a
sociedade quanto como Estado. Além de, apontar as crianças e adolescentes como
injustiçados, mas que não precisam de assistência, mas de direitos. Direitos estes que o
MNMMR defende que precisam ser pensados e conquistados juntos das próprias
crianças e adolescentes.

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CONSIDERAÇÕES FINAIS:

O Movimento Nacional de Meninos e Meninas de Rua teve e tem um papel de


importância no questionamento à visão das crianças pela sociedade em geral e,
sobretudo, às políticas publica relacionada à infância e juventude em situação de rua,
assim como na articulação por mudanças e afirmações e reafirmações na legislação
que rege o Sistema de Garantia de Direitos das Criança e do Adolescente, cujo próprio
Movimento foi também responsável para a sua elaboração na década de 1980.

Na sua proposta de educação popular também levantando o questionamento às


políticas educativas e mostrando a sociedade que era e é possível mudar a condição
social das crianças e adolescentes nestas situações a partir do esclarecimento de sua
situação, ou seja, pela educação popular fundamentada pelo educador Paulo Freire, o
que alia ainda mais sua função política social a necessidade de mudança da sociedade,
uma situação de extrema injustiça a aqueles que buscam na rua o seu sustento e sua
vida.

O Movimento também fortalece a atuação dos educadores populares. Esta


presença do educador social que é tão perigosa, no ponto de vista da segurança pessoal
e complexa do ponto de vista operacional, tem através do Movimento e seu curso
instruindo suas ações e dando suporte para as atividades, para que essa presença na rua
se tornasse uma constante.
A condição de criança e adolescente ainda não é algo muito explorado na
historiografia brasileira, tendo este trabalho a função de contribuir para a construção
historiográfica sobre este tema, que além de ser muito jovem no ponto de vista do
estudo das infâncias, é mais jovem ainda no ponto de vista do estudo das infâncias em
situação de rua. Portanto, este trabalho, como toda obra historiográfica, tem o objetivo
político de contribuir para os debates sobre as infâncias no período atual, sabendo que
os direitos voltados às crianças e adolescentes construídos e garantidos no Estatuto da
Criança e do Adolescente de 1990 veem, constantemente, sendo contestados e violados
pela sociedade civil. Assim como, nos debates sobre a possível volta de políticas que
infligem estas prerrogativas, tais como a FUNABEM e a Ditadura Civil Militar.

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Estatuto do Movimento Nacional de Meninos e Meninas de Rua – Data não
disponível.

BRASIL, MOVIMENTO NACIONAL DE MENINOS E MENINAS DE RUA.


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O CONTROLE DO CENTRO SOBRE O CONJUNTO: A EDUCAÇÃO BÁSICA


E O GOVERNO CIVIL-MILITAR NO ESTADO DE PERNAMBUCO

Adriano Ricardo Ferreira da Silva


Graduado em Ciências Sociais pela UFRPE
e graduando em História na mesma
universidade; Iniciação Científica no
Laboratório de História das Infâncias do
Nordeste - LAHIN.
E-mail: adrianoref@gmail.com

Humberto da Silva Miranda


Doutor em História, professor adjunto da
UFRPE.
E-mail: humbertoufrpe@gmail.com)

Resumo

Este trabalho tem por objetivo apresentar uma etapa da pesquisa que estuda os impactos
da Reforma do Ensino de 1º e de 2º Graus de 1971 (Lei n° 5.692/71) sobre os estudantes
da cidade do Recife. Neste momento, estudamos como o Regime da Ditadura Civil-
Militar busca se articular politicamente para exercer o seu controle sobre os estados
federados e, especialmente, sobre suas capitais. Além do objetivo expresso de formar
pessoas para o trabalho, a Reforma de 1971 visa estabelecer, por via da Educação, um
forte controle do centro sobre o conjunto. Neste sentido, segundo Suzeley Mathias
(2004), a Reforma estabelece a doutrina do currículo, que se materializa na elaboração
de um conjunto disciplinar e pragmático comum aos diferentes estados do Brasil. Os
resultados parciais da pesquisa mostram que o poder central do Regime no que se refere
à Reforma de 1971 começou a descer sobre os estados antes mesmo da sua efetivação.
Análises de documentos do Diário Oficial do Estado de Pernambuco evidenciam a forte
interferência do Governo Federal sobre o estado. Ainda em 1970, representantes do
Conselho Estadual de Educação de Pernambuco foram ao Rio de Janeiro para
receberem instruções sobre a Reforma que estava sendo providenciada pelo MEC,
evidenciando que, em Pernambuco, a Reforma se iniciou antes mesmo de 1971.

Palavras-chave: Educação; Reforma; Controle político.

Introdução

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Este estudo é parte de um projeto de pesquisa que tem como finalidade analisar
os impactos da Reforma Educacional do Ensino de 1º e de 2º Graus de 1971 (Lei n°
5.692/71) sobre a Educação Básica do Recife. Nesta etapa da pesquisa, apresentaremos
uma discussão sobre o cenário da implantação da Lei e como a Reforma de 1971
funcionou como instrumento de controle do centro administrativo do Regime da
Ditadura Civil-Militar sobre o conjunto dos estados federados e, especialmente, sobre
suas capitais. Para tanto, analisamos, a partir do discurso político local, como o Regime
buscou se articular politicamente com o estado de Pernambuco para exercer o seu
controle e impor os seus interesses por via da educação básica.

Ainda sobre esta etapa da pesquisa, para analisar o discurso político local e a
articulação do Regime Civil-Militar com o estado de Pernambuco para impor sua
política educacional, tomaremos como principal fonte documental, o Diário Oficial do
Estado de Pernambuco na década de 1970, disponível no Acervo Digital da Companhia
Editora de Pernambuco (CEPE). No entanto, para uma melhor compreensão do cenário,
cruzamos esses dados com outros documentos já estudados, além de estabelecer
constantes diálogos com os referenciais teóricos que já se debruçaram sobre o debate
referente ao estudo da Educação e do cenário político da Ditadura Civil-Militar iniciada
em 1964.

Entendemos que este trabalho se justifica, pois, analisar as políticas educacionais


desse período enquanto instrumento expresso de aquisição de mão de obra permitirá
entender como os problemas provenientes dessas políticas influenciaram negativamente
a estrutura do sistema educacional e o trabalho docente nas escolas da cidade do Recife.
Além disso, discutir como o Regime da Ditadura Civil-Militar buscou se articular
politicamente para exercer o seu controle sobre os estados federados e, especialmente,
sobre suas capitais, pode evidenciar como a classe política de Pernambuco favoreceu as
pretensões desse Regime por via da Educação. Ademais, revolver a memória de um
cenário onde as reformas educacionais objetivaram expressamente o recrutamento de
mão de obra, em detrimento da consciência política, nos possibilita pensar mais
criticamente as verdadeiras intencionalidades das reformas atuais.

Ao iniciar por uma discussão mais geral acerca do cenário nacional, no que se
refere às políticas educacionais do governo da Ditadura Civil-Militar, que não só se
direcionava para os interesses do capitalismo industrial, mas também, atendia as
demandas de um projeto político centralizador, pretendemos criar bases para entender
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como essas políticas vão se materializar no cenário local do estado de Pernambuco e,


especialmente, da cidade no Recife, que se destacou no período, como uma das capitais
de maior resistência política e social e, mesmo por isso, sofreu forte intervenção em sua
política.

O cenário de implantação da Reforma de 1971

Antes de discutirmos como o governo da Ditadura Civil-Militar se articulou com


a classe política de Pernambuco a fim de estabelecer o que a cientista social Suzeley
Kalil Mathias certa vez chamou de “controle do centro sobre o conjunto” para explicar a
estratégia adotada pelos burocratas do Regime para manipular a estrutura educacional
dos estados, convém fazer uma breve discussão sobre o cenário em que a Lei 5.692/71
foi implantada na Brasil.

O cenário político brasileiro nos primeiros anos da década de 1970 apresentava


duas variáveis que gerava sentimentos opostos na população. Se por um lado, se
intensificara a repressão com o Ato Institucional n° 5 (AI-5), baixado em 1968 pelo
então presidente Costa e Silva, e com a política altamente repressora do governante
seguinte, Emílio Garrastazu Médici. Por outro lado, o clima de euforia causado pelo
aparente “milagre econômico” proporcionava certa legitimação por parte da sociedade
diante do Regime.

Além disso, o governo buscou, através de algumas estratégias, legitimar suas


políticas elitistas, excludentes e repressoras. O estigma do suposto “milagre
econômico”, a propaganda e algumas concessões populares se configuraram como
algumas dessas estratégias que, ao que parece, ajudaram a legitimar a Reforma do
Ensino de 1° e de 2° Graus de 1971. Neste sentido, Germano (1990) chama a atenção
para o fato de que mesmo um regime autoritário e ditatorial, necessita de um mínimo de
consenso e legitimação.

Antes da Reforma do Ensino de 1º e de 2º Graus de 1971, o Sistema de


Educação Nacional era divido em Educação de Grau Primário; Educação de Grau
Médio e Educação de Grau Superior. A Lei 4.024/61 (LDB de 1961) estabelecia a
Educação de Grau Primário, dividida em “ensino pré-primário” (com duração de 3
anos) e “ensino primário” (com duração de 4 anos); a Educação de Grau Médio,
formada pelo “ensino ginasial” (com duração de 4 anos) e “ensino colegial” (com
duração de 3 anos). Além do Grau Superior, de duração variada. Com a Lei 5.692/71, o

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ensino primário e o ensino ginasial se fundiram, formando o chamado ensino de 1º


Grau.

Nesse sentido, com essa fusão do ensino primário com o ensino ginasial, que
formou o ensino de 1º Grau, o Regime pôs fim ao antigo exame de admissão,
possibilitando que o aluno que terminasse o ensino primário passasse direto para o
ensino ginasial. Com isso, atendia a uma antiga reivindicação das classes populares.

Ao atender a algumas demandas sociais, o governo colocaria em prática suas


estratégias de legitimação para sua política dita progressista e, ao mesmo tempo,
autoritária. Segundo Noronha; Ribeiro; Xavier (1994, p. 249), o Regime buscava com
isso “(...) administrar as desigualdades geradas no processo, proporcionando uma
suposta igualdade de oportunidade no plano formal”. Ainda neste sentido, as autoras
acrescentam que “ao mesmo tempo, produzia a legitimidade necessária na sociedade
para continuar administrando tal projeto de forma arbitrária e autoritária (p. 249). Com
isso, o governo da Ditadura Civil-Militar pretendia estabelecer uma consciência coletiva
que lhe assegurasse um mínimo de legitimidade em meio a grandes doses de
autoritarismo.

Como já colocamos inicialmente, a passagem da década de 1960 para a de 1970


foi marcada pelo grande aumento da institucionalização da repressão política. Isso não
significa dizer que os movimentos sociais não oferecessem resistência ao processo. No
entanto, o que talvez esses movimentos tenham deixado de perceber, foi o lugar
estratégico que a Educação ocupava nos planos do Regime. Neste sentido, Germano
(1990) chama a atenção para o fato de que além do temor pela repressão, do clima de
euforia pelo aparente “milagre econômico”, da propaganda executada pelo governo, a
Lei de 1971 foi aprovada em um contexto em que os movimentos sociais contrários à
Ditadura Civil-Militar, de certa forma, negligenciavam as questões ligadas à Educação e
a cultura.

O fato é que a Reforma de 1971 foi aprovada quase que sem qualquer
resistência. A respeito disso, Suzeley Kalil Mathias comparou o tempo de maturação
política e social para a aprovação da LDB de 1961 com o tempo necessário à aprovação
da Reforma educacional de 1971. Ela destaca que “(...) enquanto a Lei 4.024/61 [LDB
de 1961] levou dezesseis anos para ser elaborada, a 5.692/71 ficou pronta em menos de
sessenta dias” (MATHIAS, 2004, p.158). Para que a Reforma de 1971 ocorresse de

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forma tão rápida, o Regime utilizou de uma estratégia a qual discutiremos mais adiante,
que foi a “Reforma” antes da Reforma, que consiste na articulação prévia do Regime
Civil-Militar com os estados no sentido de preparar todas as unidades da federação para
a efetivação da Reforma de 1971. Para tanto, nos deteremos ao caso de Pernambuco.

Do centro para o conjunto: a “Reforma” antes da Reforma em Pernambuco

Com o golpe civil-militar de 1964 e a gradativa instalação do Regime, o governo


buscou estabelecer a todo custo o seu controle administrativo sobre os estados federados
e, sobretudo, sobre as capitais. Neste sentido, a Educação foi uma das principais
estratégias não só de materialização do projeto político dito progressista do Regime,
mas de um forte instrumento desse controle. Segundo Mathias (2004), por se tratar de
um veículo difusor de ideias e, portanto, de formação de consciência, a Educação
sempre foi uma das principais preocupações do Regime. Não estamos com isso
afirmando que assim não tenha sido em outros tipos de governo, mesmo nos
democráticos, mas que há uma evidente intensificação do uso do sistema educacional
enquanto meio de formação de consciência coletiva e de legitimação da estrutura
política quando nos referimos ao governo da Ditadura Civil-Militar iniciada em 1964.

Nesse sentido, no campo político, o governo ditatorial escolheu, de acordo com


seus interesses, os governadores dos estados e os prefeitos das respectivas capitais.
Naturalmente, Pernambuco não poderia ser exceção nessa política, visto que, por se
tratar de um estado onde emergiram vários movimentos sociais, a exemplo do
Movimento de Cultura Popular (MCP), que trazia o Método Paulo Freire e dos
movimentos no campo, este foi um lugar de grande visibilidade por parte dos agentes
políticos da Ditadura Civil-Militar. Cabe ressaltar que, segundo Coelho (2004),
Pernambuco foi o estado onde os vencidos sofreram a maior repressão durante o
Regime.

Para analisar como o Regime se articulou com a classe política de Pernambuco,


não apenas para preparar as bases para a Reforma do Ensino de 1º e de 2º Graus de
1971, mas também para sua materialização, estudamos o discurso do governo local a
partir das publicações do Diário Oficial do Estado de Pernambuco (DO/PE) anteriores à
Reforma de 1971, o que nos ajuda a defender que neste cenário, a “Reforma” se iniciou
antes da Reforma.

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Ainda em novembro do ano anterior, o vice-presidente do Conselho Estadual de


Educação, também ligado à Secretaria Estadual de Educação e Cultura de Pernambuco
esteve com representantes do Conselho Nacional de Educação para discutir a Reforma
de 1971 que já estava sendo “providenciada” pelo MEC, conforme podemos observar
no seguinte trecho do Diário Oficial do Estado:

(...) vice-presidente do Conselho Estadual de Educação e chefe da consultoria


técnica da Secretaria de Educação e Cultura, regressou a esta capital após
participar, no Rio de Janeiro, de reunião de todos os conselhos estaduais com
o órgão congênere federal, e o principal assunto debatido foi a reforma do
ensino primário e médio, que já está sendo providenciada pelo MEC” (Diário
Oficial, Pernambuco, 15 nov. 1970).

Como podemos observar, “providenciada” foi uma expressão utilizado pelo


próprio Diário Oficial, o que evidencia a unilateralidade do processo, onde os Conselhos
Estaduais neste momento têm a mera função de cuidar da materialização da política
centralizadora do Regime através do MEC dentro dos seus respectivos estados. Segundo
Mathias (2004), enquanto a LDB de 1961 ainda tinha forças para atuar enquanto
legislação máxima para Educação, os Conselhos Estaduais de Educação ainda tinha a
função de fixar os princípios específicos da Educação nas regiões. No entanto, com a
instalação da Ditadura Civil-Militar, estes conselhos passam a integrar um conjunto
disciplinar comum a todos os estados do país. Neste sentido, o Conselho Estadual de
Pernambuco foi um importante aliado do MEC para reformar a educação básica do
estado antes mesmo da Reforma de 1971.

Como adiantamos na introdução deste trabalho, uma das principais demandas do


Regime com a Reforma do Ensino de 1º e de 2º Graus de 1971 foi o recrutamento de
mão de obra para atender ao programa de industrialização do governo. Para tanto, um
dos instrumentos utilizados nesse processo foram os GOTs (Ginásios Orientados Para o
Trabalho). Cunha (1989) explica a dinâmica dos Ginásios Orientados para o Trabalho,
mostrando como esta etapa do ensino, através da “sondagem de aptidões”, do aumento
das disciplinas vocacionais e, consequentemente, da diminuição das chamadas
disciplinas gerais, se direcionava para uma expressa formação de recrutamento de mão
de obra:

Nas duas primeiras séries do antigo ginasial predominavam as disciplinas de


caráter geral, ao lado de disciplinas vocacionais, destinadas a sondar
aptidões: artes industriais ou técnicas agrícolas, conforme a economia da
região onde o ginásio se localizasse. Nas duas últimas séries, aumentava a
carga horária destinada às disciplinas vocacionais (CUNHA, 1989, p. 62).

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Documentos do Diário Oficial do Estado de Pernambuco mostram, sempre


trazendo um discurso de entusiasmo, como o processo de transformação dos ginásios
tradicionais em GOTs ocorreu de forma articulada e rápida, se configurando como
prioridade no interior da classe política pernambucana. Em 27 de outubro de 1970, o
DO/PE publicou:

As primeiras providências a serem tomadas para a transformação dos


ginásios tradicionais em ginásios orientados para o trabalho (GOT) serão
discutidas quinta-feira próxima [29/10/1970], às 16h, na Secretaria de
Educação e Cultura [...]. Os primeiros ginásios tradicionais a serem
transformados, de acordo com as necessidades dos locais onde estejam
situados, serão fixados nessa reunião” (Diário Oficial, Pernambuco, 27 out.
1970).

Para Cunha (1989), o ensino profissionalizante foi um dos anseios mais


ambiciosos da política educacional do Regime. Segundo ele, uma das principais
estratégias desse projeto foi a multiplicação dos GOTs. Aproximadamente 600
equipamentos desse tipo foram construídos no Brasil no período. No cenário
pernambucano, além das construções, as transformações dos ginásios regulares em
GOTs ganharam forma acelerada às vésperas da Reforma de 1971. O formato que o
GOT assumia, quase que equiparado ao que viria a ser o segundo ciclo do ensino de 1°
Grau após a Reforma de 1971, evidencia que as investidas do centro sobre o conjunto
no sentido de preparar os estados federados para a Reforma de 1971, foram bem
sucedidas neste sentido.

Segundo Mathias (2004), o presidente Médici uniu o discurso base do ensino dos
presidentes anteriores a ele, Castelo Branco (a “ordem”) e Costa e Silva (o
“desenvolvimento”), criando o discurso do “desenvolvimento acelerado e sustentado”.
Para a autora, isto “(...) significa, no campo psicossocial, prioridade para a educação de
mão de obra” (MATHIAS, 2004, p. 171). Isso nos possibilita afirmar que a perspectiva
do controle através da Educação e da formação para o trabalho, que culminou na
Reforma de 1971, não teve seu início com Médici, mas ganhou, com ele, seu ponto
máximo.

Em 10 de março de 1970, em discurso à Escola Superior de Guerra, na


Guanabara, ainda no início do seu mandato, por tanto, antes da Reforma de 1971,
Médici já utilizava o discurso da alfabetização, para de forma entusiasmada, legitimar
sua política de recrutamento de mão de obra por via dos GOTs. “Dentro em breve
estaremos realizando uma grande campanha de alfabetização e iniciando as obras de

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construção, em diferentes partes do território nacional, de mais de duas dezenas de


ginásios voltados para o trabalho” (Médici, 1971, p. 79).

O que Médici enfatizava em âmbito nacional, a classe política de Pernambuco


reproduzia em cenário local, fazendo com que os GOTs preparassem as bases locais
para a emergência, com o advento da Reforma de 1971, do 1º Grau recrutador de
pequenos futuros trabalhadores. Isso pode ser mais uma vez evidenciado a partir do
discurso trazido no DO/PE, de janeiro de 1971:

Para que se atinja o objetivo do ensino integrado, haverá plena inter-relação


entre os departamentos de Educação Média [ginasial e colegial] e de
Educação Primária, promovendo-se a fusão dos dois graus de ensino de
acordo com a filosofia dos ginásios orientado para o trabalho – GOT (Diário
Oficial, Pernambuco, 07 jan. 1971).

Essa movimentação em volta da educação básica por parte do Regime evidencia


não apenas que a Reforma de 1971 veio para tornar institucional um projeto já em vigor
e executado pelo governo, mas também, reforça a tese de que o Regime se utilizou dos
estados federados para exercer o seu controle através da Educação, pondo em prática
uma “Reforma” que começou bem antes da Reforma de 1971. Em Pernambuco, o
projeto GOTs, pode ser pensado como um dos principais elementos que sustentam a
nossa tese de “Reforma” antes da Reforma. Ou seja, todas as bases foram sutilmente
preparadas para receberem o que estabelecia a Lei nº 5.692/71, tanto do ponto de vista
jurídico, quanto do ponto de vista estrutural.

O que Luiz Antônio Cunha traz em seu trabalho a respeito dos GOTs corrobora
com o que estamos colocando quando chamamos a atenção para a ideia de “Reforma”
antes da Reforma. Segundo ele, “cerca de 600 ginásios desse tipo foram construídos no
Brasil [...]. E foram assimilados pela Reforma do ensino de 1º e 2º graus de 1971 (lei
5.692) como se tivessem sido feitos sob medida para o segundo segmento do 1º grau”
(CUNHA, 1989, p. 62). Certamente estes equipamentos educacionais de recrutamento
foram feitos sob medida para a Reforma de 1971.

De fato a Reforma do Ensino de 1º e de 2º Graus de 1971, aproveitou toda essa


organização dos ginásios orientados e nela sentou o segundo ciclo (os últimos quatro
anos) do seu 1º Grau. O que a Reforma de 1971 acrescentaria com o intuito de
complementar a profissionalização dos estudantes, foi a transformação do ensino
colegial em um 2º Grau compulsoriamente profissionalizante, que obrigava o aluno a

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escolher uma área para profissionalização, o que praticamente minava qualquer


possibilidade de continuidade de seus estudos em uma universidade.

Nesse sentido, a tese de uma “Reforma” antes da Reforma, ou seja, de uma


reformulação que preparava todas as bases dos sistemas e das estruturas educacionais
dos estados federados para a implementação da Reforma de 1971, se aplica
perfeitamente ao cenário do estado de Pernambuco. Isso pode ser observado, seja pela
forma como se discorre o discurso político, seja pela elaboração das bases legais para
atender às demandas nacionais, seja pela reestruturação dos equipamentos para se
adequarem ao projeto político centralizador de Educação. A “Reforma” que se deu em
Pernambuco para preparar as bases para a Reforma de 1971 foi, não apenas uma
estratégia, mas uma forma que o “centro” utilizou para materializar o seu controle sobre
o “conjunto”.

Considerações finais

Enquanto parte de um projeto de pesquisa maior, este trabalho apresenta


conclusões que consideramos ainda parciais. No entanto, a leitura do cenário onde foi
implantada a Reforma do Ensino de 1º e de 2º Graus de 1971, nos possibilita observar
esta reforma enquanto uma importante estratégia de governo do Regime Civil-Militar
para empreender o seu projeto político por via da educação básica. Possibilita ainda
perceber que, diante de um cenário de forte tensão e repressão política, aliada a um
ambiente de euforia diante do suposto “milagre econômico”, o Regime conseguiu
propagar um discurso que promoveu, inclusive entre boa parte dos educadores
brasileiros, a legitimação necessária para, em menos de sessenta dias, aprovar uma
reforma que estava sendo empreendida bem antes nos estados da federação.

Neste sentido, o que estamos chamando neste estudo de “Reforma” antes da


Reforma, foi uma das formas que o Regime Civil-Militar utilizou para,
antecipadamente, preparar as bases legais e estruturais para empreender a chamada
Reforma do Ensino de 1º e de 2º Graus de 1971. Para que isso fosse possível, o Regime
articulou, dentro dos estados e suas capitais, as reformulações necessárias para que a
Reforma de 1971 fosse mais facilmente implementada nos cenários locais. Com isso, o
Regime fez valer o domínio que tinha sobre os estados, através de seus aliados políticos,
para exercer, por via da Educação, o controle do centro sobre o conjunto. Ou seja, o
controle do centro sobre o conjunto não apenas foi utilizado para empreender a Reforma

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de 1971 em âmbito local, mas também se sustentou por um bom tempo por meio da
própria Reforma.

Em Pernambuco, sobretudo em sua capital, o discurso político anterior a


Reforma de 1971 evidencia a clara consonância do estado com o que rezava o Governo
Federal para a educação básica. Neste estado, onde, conforme já dissera Coelho (2004),
a repressão foi uma das mais intensas de toda Ditadura Civil-Militar, o controle do
centro sobre o conjunto foi uma tentativa constante do Regime, que encontrou na
Educação, uma forma de legitimação. Neste sentido, cabe ressaltar que o próprio
Conselho Estadual de Educação de Pernambuco, que segundo Mathias (2004) até então
tinha a finalidade de fixar princípios básicos de acordos com as demandas do estado,
passou a integrar uma força tarefa liderada pelo MEC para espalhar, no Governo
Estadual, uma estrutura disciplinar comum a todos os entes da federação. Diante disso,
o CEE foi elemento importante não apenas na criação das bases, mas para a própria
materialização da Lei 5.692/71 no cenário pernambucano.

No que se refere à estrutura criada no sentido da implantação da “Reforma”


antes da Reforma em Pernambuco, podemos colocar o empreendimento dos Ginásios
Orientados para o Trabalho (GOTs) como uma das estratégias que demandaram maior
atenção pelos governantes de Pernambuco para preparar as bases para a Reforma de
1971. Se autores como Luis Antônio Cunha e Suzeley Kalil Mathias chamam a atenção
para a construção de inúmeros equipamentos como esses no Brasil nos momentos que
antecediam a Reforma de 1971, em Pernambuco, os documentos evidenciam não apenas
o surgimento de novos GOTs, mas também a transformação de ginásios tradicionais em
Ginásios Orientados para o Trabalho. Ou seja, a transformação de equipamentos que
possibilitavam a continuação dos estudos e a formação de uma consciência política em
equipamentos que se limitavam a recrutar mão de obra para atender ao projeto político e
econômico do Estado Civil-Militar.

Esses GOTs, conforme Cunha (1989) já nos chamou a atenção, se encaixaram


perfeitamente no que, com o estabelecimento da Reforma do Ensino de 1º e de 2º Graus
de 1971, foi chamado de 1º Grau, o que reforça a nossa tese de “Reforma” antes da
Reforma em Pernambuco. Neste sentido, a Lei 5.692/71 se materializou em Pernambuco
como um dispositivo legal para uma “Reforma” já em curso e espalhava o interesse
expresso do governo da Ditadura Civil-Militar de espalhar o controle do centro sobre o
conjunto.
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Referências

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dezembro de 1961. Brasília, 1961.

______. Diretrizes e Bases para o ensino de 1° e 2º graus. Lei nº 5692, de 11 de agosto


de 1971. Brasília, 1971.

COELHO, Fernando Vasconcellos. Direita Volver: o golpe de 1964 em Pernambuco.


Recife: Bagaço, 2004.

CUNHA, Luiz Antônio; GÓES, Moacyr de. O golpe na educação. 6. ed. Rio de Janeiro:
Jorge Zahar Editor, 1989.

GERMANO, José Wellington. Estado militar e educação no Brasil (1964/1985): um


estudo sobre a política educacional. (Tese de Doutorado). Faculdade de Educação,
Universidade Estadual de Campinas, Campinas, 1990.

MATHIAS, Suzeley Kalil. A militarização da Burocracia: a participação militar na


administração federal das comunicações e da Educação 1963-1990. São Paul: UNESP,
2004.

MÉDICI, Emílio Garrastazu. Nova Consciência de Brasil. 2. ed. Brasília: Secretaria de


Imprensa da Presidência da República, 1973.

NORONHA, Olinda Maria; RIBEIRO, Maria Luisa; XAVIER, Maria Elizabete.


História da Educação: a escola no Brasil. São Paulo: FTD, 1994.

PERNAMBUCO. Diário Oficial do Estado de Pernambuco. Recife, 27 de outubro de


1970.

______. Diário Oficial do Estado de Pernambuco. Recife, 15 de novembro de 1970.

______. Diário Oficial do Estado de Pernambuco. Recife, 07 de janeiro de 1971.

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DA LEI AO TRABALHO: A SITUAÇÃO DO “MENOR” TRABALHADOR A


PARTIR DA CONSOLIDAÇÃO DAS LEIS TRABALHISTAS DE 1943.

Anderson Rafael Lima da Silva


Estudante de Graduação em Licenciatura Plena em História
UFRPE – Universidade Federal Rural de Pernambuco
silvaarl.hist@gmail.com

Humberto da Silva Miranda


Docente do Departamento de Educação da UFRPE e Coordenador do LAHIN
UFRPE – Universidade Federal Rural de Pernambuco
humbertomirandaufrpe@gmail.com

O trabalho infantil é
Triste e desgastante
Faz as crianças perder
A sua infância.

Em vez de estudar
E brincar estão
Todos a trabalhar

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Eu acho errado o
Trabalho infantil
Desse jeito só está
Prejudicando as
Crianças do nosso
Brasil.

Perdendo a Infância
Mirele Sofia de Souza Honorio

A poesia Perdendo a Infância, composta por Mirele Sofia de 10 anos, nos


mostra algumas percepções bastante interessantes sobre a criança e o adolescente no
mundo do trabalho, relacionando-os com a perca da infância, trazendo a educação como
algo que deveria ser estimulado em detrimento do trabalho justificando que, caso não
aconteça, haveria um prejuízo para as crianças do Brasil. O debate em torno desse tema
ainda continua presente na sociedade brasileira, alguns avanços foram conquistados nas
últimas décadas a partir de políticas públicas, como o bolsa família, que tinham como
um dos objetivos a retirada de crianças e adolescentes do mundo do trabalho para a
inclusão no ensino regular, além de avanços relacionados a proteção contra os abusos no
trabalho formal, com maior rigor nas fiscalizações e uma legislação mais rígida.
Mas, atualmente, a partir de uma política de corte de programas de assistência a
população de baixa renda e uma profunda crise econômica, ainda é comum, encontrar
nas cidades crianças e adolescentes trabalhando na informalidade, vendendo pipocas,
doces, trabalhando em pequenos estabelecimentos familiares, fazendo fretes e etc.
Sustentados por um discurso onde o trabalho é colocado como mecanismo de instrução
social para fugir da criminalidade e até regeneração social para aqueles que desejam sair
dela.
O historiador vivendo o presente e com os olhos voltados ao passado, coloca-se
como agente problematizador, fazendo perguntas que seu tempo lhe questiona,
construindo sobre ele sentidos. A inquietação em entender o processo histórico pelo
qual foram construídas as ações de intervenção e controle sobre a criança e o
adolescente no mundo do trabalho se coloca num esforço de historicizar o passado,
criando pontos de articulação e de entendimento com o presente, conforme defendido
por Certeau (1982, p.79) a relação entre presente e passado é um produto que se cria

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mediante uma atitude do historiador em separar, reunir e transformar em documentos


determinados objetivos, os colocando capaz de construir sentidos e interpretações em
torno do passado. Toda produção historiográfica esta articulada com o lugar,
socioeconômico, cultural, institucional e político, sendo submetida a imposições do
presente, que levam a novas questões a serem levantadas, novas compreensões acerca
dos documentos selecionados.
Neste artigo pretendemos analisar as conexões existentes entre o surgimento do
aparato jurídico que regulamenta o trabalhador “menor” a partir da criação do Código
de Menores de 1927 e da Consolidação das Leis Trabalhistas de 1943 com o aumento
do número de “menores” no mundo do trabalho nas décadas seguintes, analisando a
importância dessa mão-de-obra para a economia no Brasil e que tipo de relação
trabalhista essas crianças eram submetidas.

A produção de leis para o “menor” trabalhador

Os mecanismos utilizados pela classe empresarial para direcionar a criança e o


adolescente ao mundo do trabalho articula uma perspectiva econômica e política, onde a
desigualdade social é algo natural. Nessa lógica à população pobre caberia o trabalho,
aos ricos caberia dirigir a sociedade. Os discursos e práticas referentes as políticas para
a infância no Brasil segregam os desvalidos dos validos economicamente e socialmente.
Aos desvalidos resta a preparação mínima para o trabalho e para os validos toda a
educação disponível para comandar a sociedade. Nesse sentido para os dirigentes das
fábricas no início do século XX as condições mínimas de trabalho para as crianças e
adolescentes pareciam máximas e suficientes, como analisa Faleiros.

Se, por um lado, fala-se em proteção à criança, em trabalho perigoso, e


promulgam-se certas leis de impedimento de determinados trabalhos, por
outro, a pratica é de ignorar a lei, de manter e encaminhar as crianças
desvalidas ao trabalho precoce e futuro subalterno, numa clara política de
separação de classes ou de exclusão de vastos grupos sociais do exercício da
cidadania.” (2011, p.34).

Neste período o Brasil vive um clima de efervescência social desencadeada pela


crise econômica do final dos anos de 1912, a conjuntura da primeira guerra mundial
1914-1918, o aumento da população nas áreas urbanas devido ao processo de

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industrialização, o surgimento do movimento tenentista, a coluna prestes, surgem os


partidos comunista (1922) e o Partido Democrático de São Paulo (1926), eleições
presidenciais em 1919.

As greves operárias de 1917 em várias regiões do país e as de 1919 em São


Paulo colocam em movimento a insatisfação operária com os salários baixos e
as péssimas condições de trabalho. A resposta do governo é de imediato, o
desencadeamento das ações de seu aparelho repressivo. (FALEIROS, 2011,
p.45.)

A mão-de-obra infantil é utilizada de maneira vasta na indústria. A ideia da


criança e do adolescente no mundo do trabalho não era malvista, pois acreditava-se nela
como mecanismo de adestramento para o trabalho adulto e o salário adquirido ajudaria
no complemento para os baixos rendimentos das famílias operárias. Na indústria têxtil,
em especial, o peso da mão-de-obra infantil era significativo

Um relatório oficial de 1912 mostra que em 29 dos maiores estabelecimentos


têxteis da cidade de São Paulo estavam empregados 2.952 operários menores
de 16 anos, e entre eles havia 471 crianças com menos de 12 anos, enquanto o
total de maiores de 16 anos era de 6.497 trabalhadores. Ou seja, os menores
constituíram mais de 31% dos operários. (LEWKOWICZ; GUTIÉRREZ;
FLORENTINO, 2008, p. 124).

O setor de manufatura passa a recrutar, nos orfanatos e instituições de caridade,


crianças a partir de cinco anos para o trabalho. Essa prática era justificada se acordo
com Camara. Pela possibilidade de, por um lado, se suprimir a escassez de mão-de-obra
adulta, e, por outro, de se pôr em curso uma ação filantrópica ao mesmo tempo em que
educava as crianças. (2010, p.492). Eram relatados por denúncias vindas da própria
classe operária jornadas de trabalho de doze a quinze horas diárias, condições de
trabalho inadequadas, salário muito inferior aos dos adultos, muitas crianças adoeciam
ou morriam em decorrência das péssimas condições de trabalho.
Em 1919, na Conferência Internacional do Trabalho, sediada em Washington 1,
tiveram destaques temas relacionados a criança e adolescente no mundo do trabalho.

1
Na Primeira Conferência Internacional do Trabalho adotou-se seis convenções. Limitação da jornada de
trabalho a 8 horas diárias e 48 horas semanais, proteção a maternidade, luta contra o desemprego, idade
mínima de 14 anos para o trabalho na indústria, proibição do trabalho noturno de mulheres e menores de
18 anos. Albert Thomas tornou-se o primeiro Diretor-Geral da OIT.

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Idade para admissão, trabalho noturno, atividades insalubres, foram temas de maiores
destaques nas discussões. Entre as principais deliberações previa-se a suspensão ao
trabalho infantil e estabelecer limitações legislativas para permitir que as crianças e
adolescentes possam educar-se e desenvolver-se. Para o Brasil, esse Congresso trouxe
de importante segundo Braga (1993, p.19-20) Uma série de debates sobre o trabalho de
“menores”, na Câmara Federal, entre 1919 a 1921. Esses debates motivaram a criação
de uma Comissão Especial de Legislação Social, encarregada em analisar todos os
projetos relativos à questão do trabalho. (apud CAMARA, 2010, p. 279).
O Decreto 1.313, de 17/01/1891 é a primeira tentativa de regulamentação da
criança e adolescente no mundo do trabalho no Brasil. Foi promulgado, mas não
regulamentado, tinha como ideia base a criança como esteio para o progresso do país,
determinava a idade mínima para o trabalho em doze anos, uma jornada de trabalho
variável de acordo com o gênero e idade, a proibição do trabalho noturno e a
inviabilidade das atividades consideradas perigosas e anti-higiênicas. Porém, de acordo
com Braga (1993, p.33-34) Embora aprovado, o decreto não representou alteração nas
relações que se firmaram durante as décadas seguintes neste campo. O que prevalecia
era o uso indiscriminado da mão-de-obra infantil, notando-se complacência e omissão
do Estado. (apud CAMARA, 2010, p.280).
Os primeiros sinais de um ordenamento jurídico com relação ao Direito da
Criança começam ainda no início do século XX com Lopes Trovão, em 197; João
Chaves, em 1912; Alcindo Guanabara, em 1906 e 1917. Em 1920 realiza-se o 1º
Congresso Brasileiro de Proteção à infância colocando em pauta a agenda sistemática da
proteção social. Em 1921 é apresentado pelo professor, ex-deputado e juiz, José
Cândido de Albuquerque Mello Mattos, o substitutivo do projeto de “consolidar as leis
de assistência e proteção a menores” fazendo o governo sancionar a lei 4.242 de 5 de
janeiro de 1921 autorizando a organização do Serviço de Assistência e Proteção à
Infância Abandonada e Delinquente, a criação do Juízo de Direito Privativo de
Menores, do abrigo para recolhimento dos menores e de outros dispositivos
complementares.
Reconhecido pela atuação na área de defesa a infância e por já estar no processo
de construção de uma legislação voltada para a infância do Brasil, Melo Mattos arrume
em 2 de fevereiro de 1924, o cargo de primeiro juiz de menores do Distrito Federal e do
Brasil. Nessa nova função sua busca é articular o conhecimento teórico com as práticas
da docência, num esforço concentrado para implementar modificações jurídicas nos

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julgamentos e condenações de crianças pela justiça ordinária. Após uma longa


tramitação no Senado, quase uma década, a lei de Assistência e Proteção à infância, foi
consolidada como Código de Menores, pelo decreto 17.943-A de 12 de outubro de
1927, no governo de Washington Luís.
Como já observado as ideias de elaboração de uma legislação para a infância
surgem desde a década de 1910, porém sua aprovação definitiva acontece apenas em
1927, sobre a lentidão no processo, Rizzini (2002, p.23) diz que duas hipóteses podem
ser levantadas:

a primeira relativa ao cenário mundial de eclosão da primeira guerra, em 1914,


que teria desvirtuado as atenções com relação ao problema da infância; a
segunda, de caráter interno ao país, dizia respeito a não prioridade que os
governos republicanos, até então empossados, direcionaram ao tema. (apud
CAMARA, 2010, p. 254).

Concordo com a autora na possibilidade de evento externos, como a primeira


guerra mundial, possam ter influenciado na lentidão da aprovação da legislação voltada
para a infância, porém me parece importante considerar que tanto na Câmara dos
Deputados quanto no Senado, embates e resistências políticas partidárias podem ter
influenciado bastante na lentidão, principalmente relacionados a alguns temas presentes
na lei, por ferirem o patriarcalismo e os interesses representados por uma parte da classe
política brasileira. Já que na época o debate político extava sendo disputado por quatro
forças distintas: os liberais, os católicos os socialistas e os defensores de uma
intervenção gradual do Estado nas questões s sociais. Na percepção de Camara, a lei
deveria significar a possibilidade de se preservar a ordem, ao mesmo tempo em que
demonstrava o seu caráter de modernidade e de adiantamento das iniciativas, visando
içar o país no rol dos países civilizados no mundo. (2010, p.255).

A promulgação do Código de Menores, em 1927, pode ser vista como


o momento em que, juridicamente, a menoridade deixa de figurar como uma
condição a ser levada em conta nos diversos tipos de códigos legais para se
tornar um objeto específico de normatização. Ao regular os procedimentos a
serem adotados em casos de infração ou trabalho envolvendo “menores”, ele
invertia o objeto principal de regulamentação: não se tratava mais de considerar
a menoridade do trabalhador ou do infrator, mas sim de avaliar em que
condições poderia se dar a relação do “menor” com o trabalho ou com a

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infração. Segundo essa lógica, o crime, o abandono ou o trabalho tornavam-se


condições explicativas ou circunstanciais de uma identificação primeira, a de
“menor”. (VIANNA, XX, p. 169, apud CAMARA, 2010, p. 259).

O código de 1927 incorpora duas visões, a higienista de proteção do meio e do


indivíduo e a jurídica repressiva e moralista. A configuração do Código se dá a partir de
uma compreensão da lei como

Dispositivo capaz de assegurar a funcionalidade das relações sociais em nome


da manutenção da ordem e do bem-estar, estruturou-se no contexto de ações
reafirmadoras de um projeto de nação e como dispositivo que, acionado, visava
contribuir para a “integração” da criança [...] O título de Código de Menores
para a legislação expressava a intenção de seu elaborador, no sentido de criar
uma lei que unificasse todas as disposições legislativas e regulamentares com
relação aos menores. (CAMARA, 2010, p. 261).

Nele está previsto a vigilância da saúde da criança de várias maneiras, a


possibilidade da perca do pátrio poder por falta dos pais, os abandonados passam a ter
possibilidade de guarda, podendo ser entregues a “soldada”. A vadiagem também é
expressamente combatida com prisão especial, o menor de 14 anos não será submetido a
infração penal de nenhuma espécie, entre 14 e 18 anos, um processo especial.
Relacionado especificadamente a criança e o adolescente no mundo do trabalho o
Código de Menores de 1927 dispõe de 25 artigos no capítulo IX denominado “Do
Trabalho Dos Menores”. Os dois primeiros artigos delimitam a idade mínima para o
trabalho e colocam nas mãos dos juízes de “menores” e dos médicos que acabam
representando forças hegemônicas no controle da complexa questão social da infância
abandonada.

Art. 101º é proibido em todo o território da Republica o trabalho nos menores


de 12 anos.
Art. 102º Igualmente não se pode ocupar a maiores dessa idade que contem
menos de 14 anos. e que não tenham completando sua instrução primaria.
Todavia. a autoridade competente poderá autorizar o trabalho destes, quando o
considere indispensável para a subsistência dos mesmos ou de seus pais ou
irmãos, contanto que recebam a instrução escolar, que lhes seja possível.
Art. 108º O trabalho dos menores, aprendizes ou operários. abaixo de 38 anos.
tanto nos estabelecimentos mencionados no art. 103, como nos não

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mencionados, não pode exceder de seis horas por dia. interrompidas por um ou
vários repousos; cuja duração não pode ser inferior a uma hora.

A classe empresarial tentava de todas as formas se mobilizar contra o Código,


porém tornava-se difícil perante a enorme aprovação da opinião pública, o que os
levaram a focar em pontos específicos na lei. Como por exemplo na fiscalização das
horas trabalhadas, tendo Melo Mattos multado 520 fábricas nos primeiros anos da
aprovação do Código de Menores, numa clara resposta as manifestações contrarias as
normas que não atendiam a seus interesses. Outro foco de combate da classe
empresarial foi a instituição de idade mínima para o trabalho, Otávio Pupo Nogueira,
que por muitos anos foi diretor da associação patronal dos têxteis, já em 1925 defendia a
ideia de que o “menor” com 12 anos estava completamente apto ao trabalho sem que
isso lhe prejudicasse em nada.

Já deixou a infância a se abeira da puberdade. Isto é mais patente no sexo


feminino, aquele que aliás, mais abunda nas fábricas de tecidos e em todas as
indústrias que exigem mão-de-obra em que devem figurar certos requisitos de
destreza. A menina de 12 anos mesmo que nasce de pais estrangeiros,
principalmente pais latinos, aos 12 anos tem seu corpo formado e bem
assentado o fundo de seu espírito. (LEWKOWICZ; GUTIÉRREZ;
FLORENTINO, 2008, p.126).
Nos anos 30, temos no poder o Getúlio Vargas, com promessas de reforma
eleitoral, moralização da vida pública, reforma tributária, extinção do latifúndio,
bandeiras do movimento tenentista. Apesar dessas ideias reformistas o movimento se
mostrou com um caráter conversar, representando parte das oligarquias e divisões
regionais. O ministério do trabalho, implantado em 1932, adota uma política
corporativista de conciliação de classes, pela regulação do Estado tanto na Justiça do
Trabalho quando pelo sindicalismo aparelhado.
Ainda com o discurso de criança e adolescente no mundo do trabalho presente
na sociedade, em 1932, a classe empresarial consegue modificar o Código de Menores
eliminando a barreia da proibição para se trabalhar antes dos 14 anos, para os que
estivessem em estabelecimentos onde eram empregadas pessoas de uma só família. Na
opinião dos industriais, o Código de Menores aplicado sem cautela, na expressão de sua
letra, fatalmente lançará ao regaço da sociedade uma nova legião de candidatos à
vagabundagem, ao vício e ao delito. O menor de seus males será a multiplicação de

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rufiões e meretrizes (cf. Livro de Circulares da FIESP, 1930, apud FALEIROS, 2011,
p.51).
A lei (Decreto n. 22.042 de 3/11/1932) passou a permitir o trabalho a partir dos
12 anos. Caso a criança obtenha os documentos necessários, poderá exercer trabalho em
usinas, manufaturas, estaleiros, minas ou qualquer trabalho subterrâneo, pedreiras,
oficinas e duas dependências.

Art. 1º É vedado na indústria, em geral, o trabalho de menores que não haja


completado a idade de 14 anos.
Art. 2º Os proprietários, diretores, administradores ou gerentes de fábricas,
oficinas ou quaisquer estabelecimentos industriais não poderão admitir ao
trabalho menores de 14 a 18 anos, sem que estejam estes munidos dos
seguintes documentos:
a) certidão de idade ou documento legal que a substitua;
b) autorização do pai, mãe, responsável legal ou autoridade judiciaria;
c) atestado médico de capacidade física e mental e de vacinação;
d) prova de saber ler, escrever e contar.

A parceria entre público e privado no ensino profissional e técnico,


principalmente quanto ao controle das instituições para implementação do ensino
profissional acaba na criação, em 1942, do SENAI (Serviço Nacional de Aprendizagem
Industrial), que conta com financiamento recolhido dos empresários pelo Estado e é
repassado para os próprios empresários. Estes, deslocam esse montante para atender a
finalidade de treinamento de menores pobres para as fábricas. Seguindo a mesma lógica,
em 1946, surge o SENAC (Serviço Nacional de Aprendizagem Comercial) nos mesmo
moldes do SENAI.
A Consolidação das Leis Trabalhistas de 1943 (CLT) tem no capítulo IV,
intitulado “Da Proteção do Trabalho do Menor”, seis seções e quarenta e nove artigos
relacionados à criança e adolescente no mundo do trabalho. Retira do código de
menores toda a base legislativa para sua formação, regulamentando a proteção da
criança e do adolescente no mundo do trabalhando, proibindo-o até os 14 anos e criando
restrições entre 14 e 18 anos.

Art. 402º Considera-se menor para os efeitos desta Consolidação o trabalhador


de quatorze até dezoito anos

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Art. 403º É proibido qualquer trabalho a menores de dezesseis anos de idade,


salvo na condição de aprendiz, a partir dos quatorze anos

Outro ponto importante é a regulamentação sobre a fixação da duração do


trabalho, que fica estabelecido em oito horas, porém a classe empresarial ganha a opção
de extensão dessas horas a partir de um acréscimo no salário do trabalhador “menor”, a
partir de elaborações de comissões mistas, com presença cativa do empresariado na luta
por seus interesses.

Art. 413º É vedado prorrogar a duração normal do trabalho dos menores de 18


anos, salvo, excepcionalmente:
a) quando, por motivo de força maior, que não possa ser impedido ou previsto,
o trabalho do menor for imprescindível ao funcionamento normal do
estabelecimento;
b) quando, em circunstâncias particularmente graves, o interesse público o
exigir;
c) quando se tratar de prevenir a perda de matérias primas ou de substâncias
perecíveis.

A partir das alterações apresentadas pela Consolidação das Leis Trabalhistas e o


ritmo de industrialização pela qual o Brasil estava vivendo, percebe-se a partir de dados
relacionados a População Economicamente Ativa (PEA) do IBGE, um aumento
significativo da parcela de crianças e adolescentes no mundo do trabalho nas décadas
seguintes pós CLT. Em 1940, 3,7 milhões de crianças e adolescentes estavam no
mundo do trabalho, esse número cresce para 4,1 milhões na década de 1950 e chega a
5,9 milhões na década de 1970. Esses dados nos mostram uma regularidade alarmante
na participação da exploração do trabalho infantil na atividade produtiva formal
brasileira.
Na década de 1950, a economia brasileira se baseava fundamentalmente na
produção agropecuária, com um processo de industrialização ainda focado em produto
intermediários e finais, nesse contexto, 23,9% da força de trabalho vinha da exploração
de crianças e adolescentes. Em 1980, num contexto econômico bastante diferente, com
um parque industrial bastante expressivo, comercio desenvolvido, sistema imobiliário
moderno, boas taxas de importação e exportação, além de uma agropecuária totalmente
capitalizada, 19,8% da força de trabalho ainda vinha da exploração de crianças e
adolescentes.

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Fica patente, pois, que crescimento econômico por si só não libera o menor do
trabalho. Muito pelo contrário, o avanço tecnológico e o progresso técnico ao
desenvolverem condições para mecanização e automação de inúmeras funções,
criam espaço para maior emprego desses trabalhadores. A retirada do menor do
mercado de trabalho supõe mais que apenas um genérico crescimento
econômico. Embora esta seja uma condição necessária, não é suficiente. (DAL-
ROSSO; RESENTE, 1986, p. 29).

As crianças e adolescentes são parte representativa da força de trabalho em todas


as fases do desenvolvimento brasileiro, vista em todos os setores de atividade. Nas
atividades ligadas a agropecuária, extração vegetal e de pesca, são os maiores
absorvedores dessa mão-de-obra. De acordo com o levantamento feito por Dal-Rosso e
Resente (1986), em 1950, 79,5% das crianças e adolescentes no mundo do trabalho
eram locadas no campo. Em 1970 esse número cai para 74,4% e em 1980, 53,3%.
Nesses trabalhos observa-se também o número elevado de meninos em detrimento das
meninas, algo específico do contexto rural, onde o trabalho era ligado ao núcleo familiar
e as mulheres eram ligadas a atividades domésticas como preparo dos alimentos e
cuidado das crianças, atividades que não aparecem nos levantamentos do PEA
(População Economicamente Ativa). Os salários eram sempre entre 3x a 5x menor do
que o trabalhador adulto, mesmo trabalhando a mesma quantidade de horas, a partir dos
13 anos, era exigido a mesma produção que de um adulto, porém os rendimentos
continuavam os mesmo até os 18 anos.
Na Industria, as fábricas têxteis (60%), alimentos (10,3%) e vestuário (6,3)
sempre apareceram entre as que mais empregavam crianças e adolescentes, entre as
décadas de 1940 a 1980. Essas empresas ganham notoriedade justamente por conta da
estrutura econômica brasileira na época, lembrando que, em 1920, mais de 85% da
produção industrial brasileira testava concentrada nos setores de consumo. Para Otávio
Pupo Nogueira, que foi diretor da associação patronal dos têxteis, parecia impossível
sobreviver sem a presença de crianças e adolescentes nas fábricas.

No dia em que fosse entre nós proibida a entrada de menores nas fábricas de
tecidos elas sofreriam um grande abalo na sua vida. Há, em tais fábricas,
tarefas que existem a destreza da infância e só por mãos infantis ganham o
máximo de sua eficiência. (LEWKOWICZ; GUTIÉRREZ, 2008, p. 127).

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Além da habilidade e de uma remuneração menor, outra vantagem era a


docilidade característica das crianças, embora fossem sujeitas a mais acidentes de
trabalho por causa das brincadeiras, sendo constantemente abusados fisicamente e
agredidos por operários adultos ou chefes. Em São Paulo, algumas fábricas como a
Mariângela, tinham máquinas adaptadas às condições infantis, específicas para o
manuseio das crianças e adolescentes, tamanha era a importância e o uso dessa mão-de-
obra na econômica.

Considerações finais

Os menores fazem parte de uma inesgotável força de trabalho, utilizada em


níveis diversos desde estabelecimentos familiares, nos ditos mercados informais, até nas
grandes empresas. Essa realidade que permeia a exploração do trabalho retrata jornadas
de trabalho excessivas, baixa ou nenhuma remuneração, humilhações, abuso de poder,
assédio, violência física e sexual, acidentes de trabalho e inúmeros mortes. Um contexto
de negação completa do direito a infância.
O que se verificou tanto no Código de Menores de 1927, quanto na
Consolidação das Leis Trabalhistas de 1943, com relação à criança e adolescente no
mundo do trabalho, não foi sua proibição, mas sim a regulamentação, deixando de lado
o papel de proteção e abrindo precedente para que a prática de exploração do trabalho
continuasse quase que completamente indiferente a adoção da lei.
A luta pela retirada da criança e adolescente do mundo do trabalho requer mais
que apenas crescimento econômico e avanço tecnológico, depende antes de tudo de
forças políticas de busquem formas mais distributivas de crescimento e distribuição de
renda, que trabalhem em leis mais rígidas para proteção desse grupo e dos movimentos
sociais que garantem os direitos das crianças e adolescentes.

Referências

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RIZZINI, Irene; PILOTTI, Francisco. (Orgs.). a arte de governar crianças A história
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Cortez, 2011.
MENINAS EM SITUAÇÃO DE RUA EM RECIFE: MEMÓRIA E HISTÓRIA
(1980-1990)

Ana Gabriella do Espírito Santo


(Graduanda, Universidade Federal Rural de Pernambuco
gabriellasaant@hotmail.com)
Humberto da Silva Miranda
(Doutor, Universidade Federal Rural de Pernambuco
humbertoufrpe@gmail.com)

INTRODUÇÃO

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O Ano Internacional da Criança, 1979, contribuiu para difundir as problemáticas


referentes às crianças e adolescentes no país, propiciando um cenário em que as
denúncias de criminalidade e negação de direitos ganhassem uma maior conotação
política e mobilização social. Quando se faz um recorte a crianças e adolescentes em
situação de rua, sobretudo as meninas em Recife no período de 1980-1990, pode-se
perceber que essas problemáticas se tornam ainda mais intensas. O objetivo desse
trabalho é analisar os fatores que levaram as meninas a buscarem as ruas como uma
alternativa de liberdade.

A metodologia da nossa pesquisa se desenvolveu nas seguintes etapas: A


primeira foi constituída de leituras acerca dos conceitos de infância, gênero, Movimento
Social, ONG, como também de violência, exploração e abuso sexual, documento e
Memória. A partir disso, a segunda se constituiu de leituras temáticas acerca do cenário
histórico-social entre as décadas de 1980 e 1990. Por fim, a terceira se constituiu de
leituras acerca de quem eram as meninas e quais os motivos que levavam elas a
buscarem a rua.

Cenário político nacional entre 1980-1990

Na década de 1980 o Brasil passava por um processo de transição de uma


ditadura Civil-Militar para a democracia. Todavia, esse período de mudança já se
iniciava com abertura política em 1974 com o governo de Ernesto Geisel. Ele afirmava
que essa “abertura democrática” – ou distensão como era chamada pelo então presidente
– deveria ser lenta, gradual e segura, e construída sobre os alicerces da conciliação.
Todavia, essa medida não passou de uma estratégia de manutenção do governo militar
estabelecido:

Lançadas por volta de 1974, no início do governo de Ernesto Geisel, ainda


sob o nome de “distensão”, as medidas de liberalização política do regime
visavam muito mais perpetuar seus princípios de “segurança e
desenvolvimento” dentro de uma nova ordem constitucional do que
democratizar efetivamente o Brasil. Tanto era assim que o discurso da
abertura conviveu por muito tempo com censura, cassações, torturas e
desaparecimentos de militantes da oposição. (NAPOLITANO, 2015, p. 17).

Não havia possibilidade de conciliação quando sujeitos ainda tinham sua


liberdade individual e coletiva repreendida por práticas estatais sistematizadas, como
também a negação de seus direitos à saúde, à educação de qualidade, à segurança, e até

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de se manifestar contra o governo. Esse cenário foi marcado por uma emergência e
fortalecimento de movimentos sociais e populares, que se articularam possibilitando o
protagonismo de novos sujeitos coletivos. Essa entrada de novos atores políticos
demarcou um novo campo de atuação da sociedade civil na vida pública do país
(GOHN, 2008, p. 88).

No final da década de 1980 e início de 1990, houve uma crise dos Movimentos
Sociais populares urbanos, como aponta Gohn (2008), no sentido de que eles estavam
perdendo parte do seu poder de pressão direta conquistado em sua efervescência durante
a Ditadura Civil-Militar. Por outro lado, a emergência desses movimentos, possibilitou a
entrada de novos sujeitos coletivos na sociedade brasileira. Atuando junto a eles na
década de 1980, as Organizações Não Governamentais – ONGs – eram instituições de
apoio dos movimentos sociais e populares na luta contra o regime militar e pela
redemocratização do país, se preocupando em fortalecer a representatividade das
organizações populares, ajudando na organização, e muitas vezes na conscientização
dessas organizações. (GOHN, 2008).

Segundo Gohn (2013), nos anos 80, apesar das ONGs serem, em sua grande
maioria, contra o Estado, elas contribuíram para a criação de espaços de interlocução
entre o Estado e a sociedade civil. Assim como os Movimentos Sociais, as ONGs se
organizaram em diversos segmentos e a luta pela garantia e promoção dos direitos da
criança e do adolescente conquistou seu espaço dentre eles.

As meninas e a Família

A pesquisa possibilitou a compreensão dos fatores que levavam essas meninas


até a rua e da negação dos seus direitos pela dupla condição de serem “menores” e
mulheres, como também das diversas situações de abandono e violência que elas
vivenciavam nas ruas. Essas meninas eram desrespeitadas, violentadas, abusadas,
exploradas, e para sobreviver em um mundo tão hostil buscavam sair de sua prisão que
por vezes era sua própria casa.

O cenário doméstico dessas meninas era composto em sua maior parte por
famílias matrifocais, ou seja, famílias que se diferenciam por ter, na maioria das vezes,
o pai biológico ausente, levando a mulher a ficar no papel de mantedora do lar. As
causas do aparecimento desse arranjo doméstico são, basicamente, a pobreza e o
desemprego, fatores que interferem na estrutura interna familiar (MENDONÇA, 2010).

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Com a intensificação dos conflitos devido a instabilidade em casa, o abandono do lar


pelo homem se torna frequente, direcionando as funções de provedor e gerenciador da
casa para a mulher.

A relação das meninas com as mães na maioria das vezes era o motivo crucial
que as faziam optar por sair de casa e viver nas ruas. A situação de abandono pela figura
materna está quase sempre presente nos seus relatos:

“Ela pegou, deixou eu lá na cesta, na ponte de ferro, no viaduto. Eu tinha


dois anos. Se tinha condições de me criar?/ Tinha não, tia, ela tem! Aí eu fui
me criando com a mulhé. Aí depois quando eu já tava falando, ela disse que
eu tinha uma mãe, a mulhé que me criou; aí eu pedi a ela pra me levar até lá.
Aí ela pegou e me levou. Aí ela disse que não era mãe minha, que eu não era
filha dela. Aí a mulhé disse que era. Aí mandou ela ir lá num lugar pra
saber, no hospital, aí o doutor disse que era” Angélica, 17 anos. (CASA DE
PASSAGEM, 1997, p. 22).

Embora a menina tenha sido abandonada, em alguns casos a mãe permanece


sendo um referencial importante para ela: a mãe abandona, mas a menina vai em busca
dela:

“...Ela não deixou nem eu entrar lá dentro de casa. Eu cheguei lá, minhas
colegas disseram que ela estava doente, estava passando mal, eu fui levar
remédio pra ela. Aí ela pegou, jogou o remédio nos meus pés e mandou eu ir
embora”. Angélica, 17 anos. (CASA DE PASSAGEM, 1997, p. 22).

Em outros casos, a menina não tinha a mãe como referencial, e no lugar dessa
figura materna a culpa e a revolta se faziam presentes:

“Eu queria amanhecer morta e toda cortada de faca. Queria que o Jornal
publicasse meu retrato bem grande... Queria que a minha mãe me visse
morta, no Jornal. Queria que ela sentisse vergonha de não ter ajudado a
filha”. S, 16 anos. (VASCONCELOS, 1990, p. 40).

Devido a característica da família matrifocal das mães terem companheiros


rotativos, a tentativa de mantê-los muitas vezes significava a expulsão dos filhos,
principalmente das meninas por serem vistas como ameaças por seu sexo:

“Ela pegô arrumou outro marido, aí ele ficou sendo padrasto das meninas,
Aí as meninas foi mudando de idade e crescendo, aí ele pegou tentou comer
Simone. Aí pegou, em vez da mãe dela dá razão a Simone, colocar ele pra
fora, não, ela não acreditou em Simone, fico dizendo que Simone tava a fim

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dele e pego botô Simone pra fora e ele ficô dentro de casa. Aí quando foi
com uns meses, aí as outras duas filhas dela também foi pra rua pelo mesmo
motivo, dele tentá transar com as meninas e ela não acreditar nas meninas,
acreditar nele e as meninas terminando ir pra rua. E todas três é maloqueira
de rua”. Grupo de Discussão. (CASA DE PASSAGEM, 1997, p. 24).

Essa relação conflituosa entre e mãe e filha também era cercada de agressões
verbais e físicas associadas a rejeição e ao desprezo, e quando se trata do recorte de
gênero esse contraste se acentua:

“Minha mãe disse que não queria filha mulhé; não queria filha mulhé
porque filha mulhé não dava resultado pra ela. Eu queria ficar com ela mas
ela não deixou. Ela fez ‘Os filho home que eu gostava eu dei! E as mulhé é
que eu não quero’. O juiz tomou duas dela, porque o juiz sabia que ela tava
maltratando, aí pegou nós de pequena pelo meio da rua perdida. Não sabia
mais onde era minha casa, ela não queria mais em casa, aí fiquei chorando,
toda suja pelo meio da rua e tinha a polícia assim, aí eu peguei no carro
assim, cheguei e pedi a ele dizendo que estava com fome e estava perdida,
porque eu não sabia onde minha mãe tava mais não, ele pegou e me levou
pra FEBEM. Fiquei lá quase três anos. (...) Tinha vontade de vê ela, ela
mandou dizê pela vizinha que não queria vê a minha cara mais não”. Maria
da Penha, 16 anos. (CASA DE PASSAGEM, 1997, p. 25)

Quando havia imagem positiva da mãe muitas vezes estava associada a


questões materiais e de sobrevivência, ou até os cuidados que a mãe tinha vigiando elas
e o dinheiro que elas conseguiam na rua. O agravante dessa situação é que muitas dessas
meninas iam trabalhar na rua para ajudar ou sustentar a casa e a alimentação da mãe e
dos irmãos, em que se esperava delas um amadurecimento para enfrentar o mundo, ou
seja, já era permitido a elas o contato com a realidade exterior, todavia, para além das
boas experiências, a rua também era lugar de negação.

Portanto, nesse sentido, a violência doméstica contra crianças e adolescentes


representa todo ato ou omissão praticado por pais, parentes, ou responsáveis
que sendo capaz de causar dano físico, sexual e\ou psicológico à vítima
implica, de um lado, uma transgressão de poder/dever de proteção do adulto
e, de outro, uma coisificação da infância, isto é, uma negação que crianças e
adolescentes têm der ser tratadas como sujeitos e pessoas em condição de
desenvolvimento. (GUERRA, 1998, p. 32, apud MENDONÇA, 2010, p. 42).

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Mas não só a relação com a mãe era conflituosa, os pais também tinham papel
fundamental na negação desses cuidados. Todavia, diferentemente da fala sobre a figura
materna, a paterna pouco aparece, e quando está presente é marcada por violência.

“Ele pegou a corrente do portão, aí prendeu no meu pé. Ele prendeu eu


dormindo na cama. Amarrou o meu pé. Acordei, eu já tava amarrada na
cama”. Emília, 14 anos. (CASA DE PASSAGEM, 1997, p. 31).

A família matrifocal é composta, muitas vezes, por maridos rotativos, o que


propiciava que a violência causada às meninas viesse de vários homens diferentes ao
longo de sua vida. O homem também agia com abuso de poder quando violentava
sexualmente essas meninas.

Dentro dessa temática, faz-se imprescindível caracterizar a violência sexual, que


na análise em questão, geralmente ocorre em ambiente doméstico. A violência sexual se
caracteriza:

[...] por um ato ou jogo sexual, em uma relação heterossexual ou


homossexual, entre um ou mais adultos e uma criança ou adolescente, tendo
por finalidade estimular sexualmente esta criança ou adolescente, ou utilizá-
la para obter uma estimulação sexual sobre sua pessoa ou de outra pessoa
(FLORENTINO, 2015, p. 1 apud AZEVEDO; GUERRA, 1998, p.33).

Esse tipo de violência, além de ser lesiva ao corpo e mente da criança ou


adolescente violado, desrespeita os direitos individuais como liberdade, respeito e
dignidade previstos no Estatuto da Criança e do Adolescente. A violência sexual pode
ser compreendida através de duas especificidades: a exploração e o abuso, que também
é imprescindível a conceituação visto que são os tipos de violências que as meninas
mais estão expostas. A exploração sexual caracteriza-se:

pela relação mercantil, mediada pelo comércio do corpo/sexo, por meios


coercitivos ou não, e se expressa de quatro formas: pornografia, tráfico,
turismo sexual e prostituição. (FLORENTINO, 2015, p. 1).

Já o abuso sexual se caracteriza:

por qualquer ação de interesse sexual de um ou mais adultos em relação a


uma criança ou adolescente, podendo ocorrer tanto no âmbito intrafamiliar –
relação entre pessoas que tenham laços afetivos, quanto no âmbito
extrafamiliar – relação entre pessoas que não possuem parentesco.
(FLORENTINO, 2015, p. 1).

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As tentativas, muitas vezes concretizadas, de abuso sexual e estupro, seja por


parte do pai ou dos padrastos ao longo da vida, são lembradas pelas meninas com muita
raiva e até culpa:

“Às vezes ele (o padrasto) batia em mim, batia no meu irmão, dava nela
também (...) Quando eu ia dormir, ele vinha mexer comigo, ficava tirando a
minha roupa, eu dizia a ela, mas ela não acreditava, dizia que era mentira.
(...) O cara dela começou a dizer coisa, dizendo que eu não prestava, que eu
era uma rapariga, que minha vida era tá com os machos”. Beatriz, 18 anos.
(CASA DE PASSAGEM, 1997, p. 34).

O cenário doméstico em que essas meninas viviam era o principal fator para elas
buscarem as ruas como alternativa de uma vida. Algumas meninas viviam com outros
parentes como avós, tios, irmão, seja por abandono ou por ser órfãs, todavia, embora a
estrutura familiar fosse diferente, ainda assim era marcada por violência.

As meninas e a FEBEM

Porém, nem só os fatores domésticos levavam as meninas a irem para as ruas.


Muitas delas eram vindas da Fundação Estadual do Bem-Estar do Menor – FEBEM, que
era responsável, oficialmente, pelo atendimento as crianças e adolescentes que viviam
em situação de abandono. A Febem se apresentava como a instituição ideal para
promover a ressocialização das crianças e adolescentes, mas sua estrutura interna e seus
métodos de “cuidado” não eram condizentes com sua fala.

“Na FEBEM as tias deu em mim, sabe? Com cipó aqui; e isso aqui foi que
eu arranhei com berilo (...) com raiva porque elas deu em mim (...) ... os
monitor também, cada homem grandão. (...) levava nós pro Juiz, ele não
acreditava em nós porque eu era uma maloqueira, não é tia? (...) Me
revoltava, quando eu saia de lá eu fazia pior”. Carmem, 19 anos. (CASA DE
PASSAGEM, 1997, p. 53).

Segundo Miranda, “a instituição é lembrada como um local de práticas de


agressão e dos maus-tratos, que utilizavam da força física para garantir o bom
comportamento das crianças e dos adolescentes que ali estavam aprisionadas”, e quando
se tratava das meninas essa situação era ainda mais agravante.

As representações de gênero devem ter conduzido as interpretações de seus


operadores, chegando a prevalecer em relação a certos princípios norteadores
daquele tempo (com as noções de assistência e proteção à menoridade,
inscritas em seus fundamentos), e que lhe garantiriam sua especificidade. Em

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outras palavras, também nos antigos Juizados de Menores, as meninas e os


jovens teriam sido submetidas na representação da mulher. Portanto, na
Justiça de Menores, meninas e jovens, a quem foram atribuídas práticas de
atos transgressores, sofreram, muito provavelmente, as consequências de sua
dupla condição: eram mulheres e menores. (BRITO, 2007, p. 101, apud
MIRANDA, 2014, p. 242).

Mesmo que perante a lei esse sujeito fosse destituído de sexo, na prática as
punições e os delitos eram designados aos menores de acordo com o gênero, ou seja,
antes mesmo de ser menor, a menina é seu sexo, seu corpo. Elas sofriam abusos sexuais
dentro da instituição, e essas ações eram legitimadas pelo discurso de violência como
punição social para a “má conduta” da menina “perdida”, assim como a exploração
sexual era usada como moeda de troca entre os monitores da instituição e essas
meninas.

Miranda aborda em seu trabalho fatores para além da violência sexual, ele traz
na sua entrevista com Betânia a violação de direitos básicos como alimentação, higiene
e bem estar na Febem. Betânia relata sua experiência na cafua:

A cafua era um quartinho, sim eu acho que num sei, um metro ou dois
metros, assim... um lugar muito pequeno que, assim, eu acho que era uma
estratégia que os monitores tinham. Sim, aí com a porta de ferro, né? Na parte
superior da porta, tinha uma aberturazinha para comunicação, e aí sempre que
alguém, enfim, não queria obedecer a alguma regra imposta ou numa situação
de desentendimento entre uma criança e um adolescente e um monitor, aí era
justamente levado para esse quartinho. Aí, ou ficava só ou poderia ter outros
quantos tivesse participando da situação de conflito. E aí, enfim, eu já fui pra
cafua diversas vezes, e tanto fazia entrar de manhã como sair à noite ou ficar
semanas. E sem banho, e a comida na hora que as pessoas achassem que era
conveniente; a água, a mesma coisa. As necessidades fisiológicas todas
tinham que ser feitas ali. Tinha um banheiro que era aquelas privadas no
chão, mas não tinha privada. E assim uns colchões no chão, e, em algumas
situações, já teve o caso de adolescentes incendiarem o colchão e saírem de lá
e irem direto para hospitais. (MIRANDA, 2014, p. 267).

Esse relato mostra que as meninas internadas na Febem muitas vezes viviam em
condições sub humanas, que lá era um espaço de desrespeito e maus tratos, o que levava
a muitas delas a fugirem de lá. Essas fugas eram uma forma de resistência à privação de
liberdade que essas meninas viviam na instituição, e muitas delas viviam nesse ciclo: da
rua para a Febem, da Febem para a rua.

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As meninas e a Rua

As meninas buscavam nas ruas a liberdade que elas não tinham em casa – lugar
que deveria garantir cuidado, proteção e aconchego – e nem na Febem – instituição que
deveria garantir os direitos, mesmo que básicos, às crianças que viviam em situação de
abandono social –, mas quando elas chegavam lá se deparavam com uma nova prisão:
drogas, prostituição, trabalho infantil, fome, abusos de poder, marginalização social.

A faixa etária de maior incidência de ida das meninas às ruas se dava entre os 7 e
11 anos. Essa transição acontecia por meio de grupos de amizade que aos poucos iam
preenchendo o vazio deixado pela família. Esses grupos eram caracterizados pela
solidariedade, onde uma protegia a outra, principalmente quando se tratava da questão
da idade ou quando uma menina nova chegava às ruas. Essa proteção se dava na vigia
da dormida, na divisão do alimento, como também na preparação da menina para a
sobrevivência nesse novo espaço.

“Com 7 anos, eu era pequena, não sabia viver na rua, não sabia roubar,
nem cheirava cola e nem fumava maconha. Aí elas me ensinaram a roubar e
a cheirar cola e essas meninas é que ficaram tomando conta de mim até eu
aprender a sobrevivência na rua”. Rute, 17 anos. (CASA DE PASSAGEM,
1997, p. 44).

Esses grupos eram vistos como novas famílias, e muitas vezes as meninas mais
velhas eram vistas como referencial de mãe para as meninas mais novas, pois além da
proteção, algumas meninas não deixavam as recém-chegadas correr o risco de roubar,
pedir ou se prostituir.

“Eu tenho mais carinho na rua com minhas amigas do que na minha casa.
Na rua o que tem de bom são as amigas, encontrar com as amigas, dividir.
Quando vem uma eu acompanho, eu faço aquilo pra ela, faço aquilo outro, o
que eu puder, tiver ao meu pertence eu faço pra ela porque eu tou mais
acostumada às minhas amigas do que com minhas próprias famílias. (...) Às
vezes a gente briga, discute, mas somo família mesmo, a gente somo uma
família. (...) Eu me criei com elas e quero, sei lá, caducá na companhia
delas”. Yana, 18 anos. (CASA DE PASSAGEM, 1997, p. 44).

Todavia, algumas dessas meninas mais velhas trocavam a dependência da


proteção por alguns benefícios pessoais como roubar para elas: elas tomavam conta, e
depois que ensinavam a roubar cobravam às mais novas que agissem por elas como um

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tipo pagamento. Entretanto, ainda assim as meninas preferiam a isso do que a


sobreviver sozinha nas ruas:

“Descalça na rua, essas maloqueiras que não me considera, de roubar eu,


até Nevinha mesmo, Nevinha Sapatão que tava acostumada a acochar nós.
Quer fazer nós de cachorro. Quer fazer pedir esmola pra ela. Quer que vá
pedir esmola pra ela dá cume a ela a pulso. Se não pedir ela dá em nós. Até
segurá nós pra nós roubar pra ela”. Aparecida, 14 anos. (CASA DE
PASSAGEM, 1997, p. 48).

Embora essas meninas vivessem nas ruas, elas não viam esse espaço como um
bom lugar. Elas fugiam de casa pra sair da miséria e da violência, e iam para as ruas
porque não tinham outro lugar pra ir (VASCONCELOS, 1990, p. 43). Os motivos pra
não gostarem das ruas vão desde o passar fome, frio, andar suja, e ter a dormida
arriscada até as agressões sofridas por policiais e outras meninas, os abusos sexuais, e a
discriminação.

“O pior é a fome, a dormida não é nem tanto, é a fome. Quando chegava


meio-dia que eu olhava assim, minha barriga colada no espinhaço”.
Carmem, 19 anos. (CASA DE PASSAGEM, 1997, p. 47).

“Porque a gente tá quieta, a gente vai pra algum lugar, aí tem uma mulher
no meio da rua, esconde a bolsa, a pessoa já fica com raiva, não tá nem com
a intenção de roubá, de fazer nada, mas já fica com raiva, passa, só porque
tá suja, o pessoa faz “Cuidado, oi um ladrão aí’. A pessoa fica com raiva já,
se droga pra esquecê o que os outros diz na rua quando a gente passa.
Quando eu passo na rua tem muitas mulher, vem duas do colégio, aí passo
com a menina no braço, mas elas ainda escondem o relógio, eu fico assim,
eu faço de conta que não tá acontecendo nada, sabe? Mas a vontade que dá
é de tomá mesmo, ir lá e tomá. Quando eu tava na rua que elas passava junto
de mim... ficava uma se escondendo atrás da outra, eu ia lá e tomava mesmo.
Às vezes eu nem queria. Tomava o relógio e quebrava, estourava no chão,
porque dá raiva mesmo, dá raiva”. Beatriz, 18 anos. (CASA DE
PASSAGEM, 1997, p. 50).

Dentro desse cenário, as meninas precisavam adotar algumas estratégias para


obter renda e sobreviver nas ruas. Destaco aqui três dessas estratégias: o ato de pedir
esmolas, o roubo e a prostituição. A primeira estratégia geralmente era utilizada pelas
meninas mais novas ou recém-chegadas, seja por não saber como realizar as outras
estratégias, seja pelo medo delas. No inicio essas meninas não iam sozinhas, quase

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sempre iam acompanhadas pelas mães que as induziam a pedir esmolas com o discurso
de “você tem que alimentar seus irmãos” – todavia em alguns casos as meninas iam por
vontade própria pelo sentimento de responsabilidade na renda familiar, e a mãe
acompanhava para proteger –, além do fato da comoção se dar em maior frequência
com as crianças pequenas.

“Mãe manda eu pedir. Ela diz: ‘Valéria, vá arrumar uma comidinha prá
mim, eu estou com fome’. Aí eu digo: ‘Mãe, eu vou pedir?? Eu estou muito
grande, quando eu era pequena, tudo bem. Mas agora se eu peço, os outros
mandam eu arrumá emprego, sô xingada, ficam passando na minha cara”.
Valéria, 16 anos. (CASA DE PASSAGEM, 1997, p. 58).

A segunda estratégia mencionada é a do roubo. Quando a menina vai crescendo


e percebe que não consegue mais dinheiro pedindo, recorre a essa atividade. Todavia,
elas não gostavam de roubar, pois tinham medo de ser pegas, mas acabavam roubando
pela necessidade.

“A primeira vez que eu roubei eu senti pena daquela pessoa que eu tava
roubando e medo porque eu tava com muito medo de ser presa e de apanhar.
Porque eu não tinha idade e não sabia direito. Naquela hora eu tava
tomando a bolsa da mulher, ôxente, eu tava sem coragem nenhuma, eu tava
com uma pena! Não queria fazer aquilo (...)”. Rute, 16 anos. (CASA DE
PASSAGEM, 1997, p. 60).

A terceira estratégia é a prostituição. A junção do fator do medo de roubar com o


surgimento da puberdade e da vida sexual, levava a menina a essa escolha. Elas
achavam menos arriscado se prostituir, olhavam para as pensões como um local até de
proteção onde podiam dormir, comer e tomar banho. Todavia, elas saiam de uma
violência mais explícita e iam para uma violência muitas vezes silenciosa.

“Não é muito boa essa vida que a gente leva não porque a gente está
arriscada a tudo, a gente está arriscando a vida da gente a qualquer hora,
mas é melhor do que está no meio da rua, dormindo no meio da rua, certo? É
melhor. (...) Na rua eu levava pedrada dos maloqueiros, dormia nas
calçadas, passava fome, chorava direto, até que enfim encontrei um dia
alguém que me desse a mão. Aí deu e até agora eu... não sou feliz na vida
que eu levo, mas pela uma parte é melhor do que tá no meio da rua,
cheirando cola. Graças a Deus eu nunca cheirei não”. Wilma, 16 anos.
(CASA DE PASSAGEM, 1997, p. 61).

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Embora tenha sido citada essas três estratégias, as formas de sobrevivência não
se resumiam apenas a elas, um exemplo de outra atividade é o tráfico. Todavia, para
realizar essas atividades, as meninas muitas vezes precisavam de coragem, e para isso
recorriam para o uso das drogas. Elas tinham consciência de que este uso fazia mal para
elas, mas estas as encorajavam a roubar, a se prostituir, e algumas meninas não
executavam essas atividades sem o efeito da droga. Esse uso também se dá para ajudar a
lidar com a tristeza e até com a discriminação sofrida por elas. As drogas mais utilizadas
por elas eram a maconha, Rupinol, cola, Artane, Bentil, Valium e o álcool (CASA DE
PASSAGEM, 1997, p. 63; VASCONCELOS, 1990, p.72).

“A pessoa fica com raiva e se droga pra esquecer o que os outros diz na rua
quando a gente passa. Às vezes, eu nem sentia vontade de me drogar, mas se
eu não me drogasse, como é que eu poderia aguentar a rua? E ficar
passando fome”. Beatriz, 18 anos. (CASA DE PASSAGEM, 1997, p. 64).

As meninas saiam de casa por sofrer diversos tipos de violência em casa, seja
física ou psicológica, fugiam para as ruas com a esperança de cessar o sofrimento, mas
esse novo espaço também era negador de direitos, também as faziam sofrer, embora
muitas vezes fosse melhor do que o próprio cenário doméstico.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

É imprescindível estudar essa temática e compreender o lugar social dessas


meninas que viviam em situação de rua em uma sociedade que passava por um processo
de redemocratização e que a questão de gênero permeava fortemente pelos ideais. Em
que essas meninas sofriam pela dupla condição de ser mulher e “menor”, como eram
vistas pela sociedade. Esse trabalho possui uma relevância acadêmica e social, haja vista
que a historiografia das infâncias, embora apresente uma diversidade de trabalhos
acerca da temática das crianças e adolescentes em situação de rua, não explora a
especificidade da dupla condição da menina nesse cenário de negação de direitos.

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CRIANÇAS E ADOLESCENTES: ENTRE RUAS E PRAÇAS

Ellen Raphaela Vieira Santos


(Universidade Federal Rural de Pernambuco
ellenraphaufrpe@gmail.com)
Prof. Dr. Humberto da Silva Miranda
Universidade Federal Rural de Pernambuco
humbertoufrpe@gmail.com)

INTRODUÇÃO

Este trabalho buscou analisar a história do Grupo Ruas e Praças e como se


efetivaram suas práticas educativas no cotidiano das crianças e adolescentes em situação de
rua na cidade do Recife na década de 1980. Este período é o final da transição do regime
de Ditadura Civil-Militar para a redemocratização do Estado, portanto diversos segmentos
sociais estão reivindicando direitos e participação social, embora o surgimento das
organizações não-governamentais no cenário social seja desde a década de 1950, é a partir
de 1970 que aliados aos movimentos sociais estas entidades aumentaram seu número e
também a abrangência de sua atuação.
O Grupo é uma organização não governamental que realiza um trabalho
socioeducativo na região central do Recife, com crianças e adolescentes em situação de
abandono social. Ele surgiu em 1987, após um projeto da Prefeitura do Recife que se
encerra e alguns educadores decidem permanecer com as atividades, o trabalho
inicialmente era feito voluntariamente, não tinham sede própria e os materiais pedagógicos
eram doações. Neste mesmo momento o Movimento Nacional de Meninos e Meninas de
Rua no auge de sua atuação, portanto junto à Legião Brasileira de Assistência financia o
aluguel de uma sala para ser sede do grupo.

A relação entre os movimentos sociais e as ONGs se torna intensa neste primeiro


momento como forma de apoio para ambos, as organizações tornam concretas os
princípios pedagógicos dos movimentos, embora eles sejam ativos com suas práticas a
institucionalização através das ONGs possibilita a legitimação e consolidação destes
princípios. Seguindo este caminho o Grupo Ruas e Praças junto ao Movimento Nacional de
Meninos e Meninas de Rua e também outras entidades atuaram de forma articulada na
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cidade do Recife, integradas por educadores sociais que sobre uma nova perspectiva
pedagógica buscavam desenvolver um trabalho alternativo de atendimento as crianças
estigmatizadas pela sociedade e também pelo Estado.
No Grupo Ruas e Praças esses objetivos ficam explícitos em seu discurso e as
formas de articulação diante do cenário social expressam os princípios metodológicos da
pedagogia social de rua, tendo os educadores sociais um papel importante como agentes
facilitadores e mediadores nesta relação com o educando. Sendo assim a organização se
caracterizou inicialmente pela contraposição as instituições do Estado propondo uma
prática alternativa sob a perspectiva de ressocialização e prevenção, diferentemente do
Estado que se baseia no controle e punição.

METODOLOGIA
A metodologia deste trabalho foi desenvolvida a partir de quatro etapas:
inicialmente foi feita uma pesquisa historiográfica acerca do tema, seu contexto histórico e
conceitos, na segunda etapa foi feita a pesquisa documental. Na terceira etapa foi feita a
análise do documento com pesquisa da história e práticas do grupo, através do livro No
Meio da Rua, que é uma produção coletiva dos membros do próprio. O livro é resultado de
uma sistematização das práticas pedagógicas realizadas pela instituição até meados da
década de 1990, tinha por objetivo a autoavaliação e sistematização das suas práticas para
ser referencial no campo da educação social de rua. Na quarta etapa buscamos referenciais
teóricos específicos sobre como utilizar imagens na pesquisa histórica e selecionamos
fotografias para analisar de acordo com os referenciais teóricos.
A metodologia utilizada se baseou na busca histórica e teórica referente ao contexto
social e político do período de surgimento do Grupo Ruas e Praças, para compreender as
suas faces de atuação e como está inserida no Movimento Nacional de Meninos e Meninas
de Rua. Buscou compreender os conceitos-chave – como o que são ONGs, movimentos
sociais, educação popular e pedagogia social de rua, meninos e meninas de rua – para
poder analisar o documento que mostra o discurso e a sistematização da prática educativa
do Grupo. E também buscou analisar as fotografias selecionadas para compreender as
relações existentes no processo educativo e no cotidiano da organização.

RESULTADOS E DISCUSSÃO

1. Os movimentos sociais e as Organizações não governamentais

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A emergência dos movimentos sociais está sempre atrelada as demandas sociais


que são os conflitos provocados pela insatisfação da população que reivindica por direitos,
maior participação política, moradia e entre outros. Como exemplifica Maria da Glória
Gohn:

O cidadão coletivo presente nos movimentos sociais reivindica


baseado em interesses da coletividade de diversas naturezas. Assim, temos
grupos de mulheres que lutam por creches, grupos de favelados que lutam
pela posse da terra, grupos de moradores pobres que lutam pelo acesso a
algum tipo de moradia etc. Junto com as demandas populares – de forte
conteúdo social por expressarem o lugar que ocupam no processo da
divisão do trabalho, a exploração e a espoliação a que são submetidos –
.(GOHN,2012, p.20)
Porém mesmo diante deste cenário diverso de demandas sociais diferentes, ainda
segundo Gohn(2012) a educação se torna eixo central dos movimentos por estar atrelada a
questão da cidadania. A concepção de cidadania se baseia na construção coletiva interna a
prática social, e a busca por esta cidadania para pela necessidade de uma educação
diferente daquela que é proposta pelo sistema, a partir dos movimentos sociais com o
questionamento desse Estado, começa-se a pensar em novas formas de ação educativa que
possibilite a construção desta cidadania coletiva e também individual.
A partir desta perspectiva os movimentos sociais adquirem um caráter educativo,
que pode ser compreendido através de três dimensões: organização política, cultura política
e espacial-temporal. A primeira é o processo de organização de estratégias para a ruptura
do processo tradicional, para que se adquira o direito e garanta a cidadania, a segunda se
baseia nas experiências como forma de reflexão do presente, fazendo isto através de
processos educativos que conduzam ao questionamento e reflexão da ordem vigente e
mudança desta. E a terceira e ultima dimensão é a espacial-temporal que possibilita a
articulação entre o saber popular e o saber científico, pois no processo de participação no
movimento social o indivíduo a conscientizar-se de suas condições presentes e seu
passado, identificando no seu cotidiano seus espaços. (GOHN, 2012, p.22-26)
Neste sentido, também observamos que esse caráter educativo está relacionado
também com a emergência da educação popular e que influenciam diretamente as práticas
desses movimentos sociais, para Gohn:
Os movimentos sociais populares são formas renovadas de educação
popular. Eles não ocorrem através de um programa previamente

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estabelecido, mas através dos princípios que fundamentaram programas de


educação popular, formulados por agentes institucionais determinados,
tais como grupos de assessorias articuladas a igrejas, partidos políticos, a
instituições governamentais e internacionais, a sindicatos etc. As
metodologias de operacionalização daqueles programas foram formuladas
pelos agentes assessores dos movimentos. A aplicação e difusão da
metodologia desenvolveu-se a partir do trabalho das lideranças da parcela
da população organizada.(GOHN, 2012, p.49)
A aplicação dessas novas metodologias educacionais se deu mais efetivamente
através das Organizações Não Governamentais, que a entre as décadas de 70 e 80 se
tornam ponto de apoio aos movimentos sociais, trabalhando a conscientização dos grupos
organizados e ações mais sistemáticas como também “a face movimentalista encobria, nas
próprias ONGs, sua outra face, produtiva, geradora de inovações no campo de alternativas
às necessidades e demandas sociais”(GOHN, 2008,p.89). Podemos compreender que os
princípios básicos da educação popular irão nortear tanto os movimentos sociais quanto a
ONGs, porém podem haver distinções na prática dos processos e ações educativas de cada
um, geralmente os movimentos sociais são caracterizados essencialmente como ato
político e as ONGs de apenas caráter pedagógico.
Porém pudemos perceber que com o Grupo Ruas e praças e o Movimento
Nacional de Meninos e Meninas de Rua, nos anos iniciais ambos desempenham a prática
pedagógica baseada em um projeto político pedagógico, um modelo de ensino-
aprendizagem ideológico. Inicialmente os objetivos são um ponto em comuns entre eles,
pelo momento histórico necessitar a formação do indivíduo e conscientização daquelas
crianças e adolescentes como sujeitos de direitos e agentes transformadores da sua
realidade.
2. Grupo Ruas e Praças e o Movimento Nacional de Meninos e Meninas de Rua

Antes de analisarmos a trajetória do Grupo Ruas e Praças é importante


compreendermos o Movimento Nacional de Meninos e Meninas de Rua que surge durante
o processo de redemocratização, período que mobilizou diversos segmentos da sociedade,
principalmente os que lutavam pelos direitos das crianças e adolescentes. O movimento
tinha em seus objetivos mobilizar a participação política da sociedade em prol dos direitos
das crianças e adolescentes, mas seu diferencial estava no incentivo a participação das
próprias crianças, como afirma SOUZA(2013):

(...) o Movimento Nacional de Meninos e Meninas de Rua (MNMMR) se

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destacou ao propor um atendimento às crianças e adolescente de forma


diferenciada, no sentido de promover o empoderamento dos jovens moradores de
rua para que percebessem que a realidade em que estavam inseridos não era
natural, mas sim fruto de um sistema que a produz. (SOUZA, 2013, p.2).
Os meninos e meninas eram percebidos como agentes transformadores e sujeitos
da sua própria história, ao contrário da imagem que a sociedade e o Estado construía das
crianças em situação de rua, vistos como marginais e uma ameaça a ordem social. Portanto
este novo olhar sobre a criança influenciou movimentos em todo país, possibilitando a
articulação do Movimento de dimensão nacional e a visibilidade das crianças e
adolescentes em situação de abandono social. Desta forma o Movimento vem atuando
desde o início da década de 1980 sob as diversas formas de luta e construção de debates
em torno dos direitos das crianças e adolescentes, aliado a práticas educativas baseadas no
protagonismo infantil.
O cenário político e social da década de 1980 é o momento em que as demandas
sociais impulsionaram a luta pela redemocratização como também as reivindicações por
direitos de vários grupos sociais. É neste contexto que os movimentos sociais têm sua
efervescência, como mostra Luiz Cláudio Duarte(2000) em seu balanço historiográfico
sobre os movimentos sociais urbanos a partir da década de 1970 no Brasil, as motivações e
significações vão se modificar de acordo com o tempo e o contexto, podendo serem
interpretadas a partir das determinações macroestruturais, conjunturais ou culturais.
Além destas determinações também foi necessário compreender a articulação
entre a prática da educação e os movimentos sociais neste período, que se acentua e se
reflete através da educação popular, sendo esta forma de educação também importante
como afirma Maria Glória Gohn(2011):

De pronto, esclareço: para nós, a educação não se resume à educação


escolar, realizada na escola propriamente dita. Há aprendizagens e
produção de saberes em outros espaços, aqui denominados de educação
não formal. Portanto trabalha-se com uma ampla concepção de educação.
Um dos exemplos de ouros espaços educativos é a participação social em
movimentos e ações coletivas, o que gera aprendizagens e
saberes.(GOHN,2011.p.333)
Ainda segundo a autora em sua outra produção ela traz os conceitos de sociedade
civil por vários intelectuais através da história, buscando conceitua-la para compreender
seus sentidos nas ultimas décadas do século XX, portanto uma das visões principais é que a

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sociedade deve estar inserido em um espaço que possibilite o senso de responsabilidades


sociais, apesar dela também ser palco de ações individuais, que é regida por códigos e
conjuntos de práticas que podem ser modeladas por instituições particulares.( GOHN,
2008. p. 68)
Outros dois conceitos que ela relaciona com a sociedade civil a partir da década
de 1970 são: comunidade e autonomia. Comunidade representava a base territorial que
unia vários setores da sociedade civil, uma força política que abrangia desde os serviços
básicos de infraestrutura até os direitos sociais, o conceito de comunidade nesta década
serviu como principio básico para organização política das camadas populares neste
cenário de intensa reivindicação dos direitos sociais e econômicos.(GOHN, 2008. p.52)

Autonomia está relacionada com a participação política e social, de um indivíduo


ou grupo, na sociedade de forma que seja com consciência crítica e proporcione o
protagonismo na sua própria história. Estes conceitos contribuem para entendermos como
surgem os novos atores sociais e de forma se faz as suas articulações em redes solidárias,
mesmo que ainda tenham este caráter de autonomia essa na maioria das vezes está
relacionada com a independência do Estado, sempre buscando em comunidade
possibilidades de transformação social.(GOHN,2008. p. 30)
É neste cenário em que o Grupo Ruas e Praças surge e que foi possível perceber
estas redes solidárias, pois na Região Metropolitana do Recife existiam outras
instituições,o MNMMR e a sociedade civil estava articulada. Um exemplo disto foi o
“Grupo de Integração do Centro da Cidade” que era formado por membros de vários
setores da sociedade, e que tinham um objetivo comum que era buscar uma solução
alternativa de atendimento as crianças e adolescentes que transitavam nas ruas do centro do
Recife. Portanto a articulação não era apenas entre uma ONG e o Movimento, mas se
estendia também entre as organizações e a sociedade civil que através de debates
construíam as bases para novas diretrizes de ação educativa em contraposição direta ao
Estado.
Acerca das ONGs, Galiza(2001) e Gohn(2008) situam a emergência das ONGs
entre a década de 70 e 80, e que se caracterizavam por serem organizações de apoio aos
movimentos sociais, estavam engajadas na conscientização e luta pelos direitos sociais,
servindo de base para as ações desses movimentos. Os objetivos dessas ONGs tinham
caráter político, prioritariamente como GOHN ressalta:
As primeiras se fundam numa cultura política que priorizam, nos
processos de mudanças e transformações sociais, a conquista, defesa ou

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ampliação de diferentes tipos de direitos da população como um todo e a


emancipação sociopolítica e econômica de amplas camadas da população
que se encontram totalmente excluídas do acesso ao mercado de trabalho,
dos benefícios da civilização moderna para uma vida digna e com justiça
social. (GOHN, 2008. p.92)

A análise das práticas do Grupo Ruas e Praças é possível dentro do contexto de


atuação das ONGs deste período como também do Movimento Nacional de Meninos e
Meninas de Rua, como já foi descrito ambos surgiram na década de 1980, em um período
de discussão e questionamento aos mecanismos do Estado para assistência das crianças e
adolescentes em situação de vulnerabilidade social. Ambos têm como o propósito
desenvolver trabalhos alternativos de assistência a esse público sob a perspectiva de
transformação social, caracterizados pela ação voluntária e oposição ao Estado
intensificam-se as relações entre o movimento popular e as ONGs.(OLIVEIRA,1994)

Para entender a atuação do Grupo como Organização não governamental também é


necessário entender este conceito, portanto utilizamos a definição de Cleide Oliveira de
ONGs especificamente de atendimento à infância:

Desse modo, foram consideradas Organizações Não-Governamentais


Populares de Atendimento à Infancia aquelas entidades sem fins
lucrativos, inseridas no bairro de origem de sua clientela, com um corpo
dirigente oriundo do meio popular, prestando assistência direta a crianças
e adolescentes, desenvolvendo práticas alternativas com o objetivo de
conscientizar o jovem de sua condição de vida e, ao mesmo tempo,
oferecendo possibilidades ao adolescente de se reconhecer como agente de
transformação social.(OLIVEIRA, 1994. p.14)
Ela além de trazer o conceito também traça vários perfis das organizações desde a
década de 1950 até 1990, demonstrando que sua atuação depende do tempo e espaço em
que está inserida. Desde modo o não é por acaso que o Grupo Ruas e Praças surgiu no
Recife na década de 1980, foi devido a situação de abandono, negligência e repressão do
Estado às crianças que transitavam pelas ruas do Recife, no cenário nacional com o
Movimento as lutas se intensificaram pela mudança nos mecanismos existentes, como a
FEBEM e na elaboração de um Estatuto que garantissem os direitos de todas as crianças e
adolescentes.
A ação dos educadores sociais do Grupo é definida pela Pedagogia Social de Rua e
que segundo a concepção da organização era compreendida como ações político

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pedagógicas objetivando a reflexão da realidade e conscientização das crianças e


adolescentes através dos estímulos no processo educativo. Esta também era a basicamente
a mesma concepção do Movimento, que PEREIRA(2011) caracteriza em seu texto:

Em relação ao socioeducativo só foi possível a partir da pedagogia social


de rua que buscava a emancipação de crianças e adolescentes em situação
de vunerabilidade social. Essa prática baseada em uma metodologia de
intervenção que deveria acontecer nos espaços das ruas para ressocializar
os meninos e meninas que viviam em condições subumanas nos espaços
dos grandes e pequenos centros urbanos visava construir possibilidades
reais; promoção cognitiva e social para que eles/as saíssem da
marginalidade imposta, em parte, pelo sistema econômico e social do
país.(PEREIRA, 2011, p.132)
A criança e adolescente era percebida como sujeito em fase de desenvolvimento
peculiar, e que os educadores sempre buscavam compreender a realidade desses meninos e
meninas, através da observação no seu espaço de vivência, que é a rua. Portanto é partir
desta observação e primeiros contatos que acontecem neste espaço que os educadores
constroem suas práticas educativas, enfatizando seu universo e aproximando-se dele. Essas
ações pedagógicas, através da “pedagogia do desejo” que tinham como metodologia a
exploração do lúdico, visavam o autoconhecimento para conscientização e que despertasse
o desejo por mudança na criança e adolescente, como Tainara de Jesus Souza também
afirma sobre o protagonismo infantil que também estava presente nas ações do
Movimento:
A criança e o adolescente eram vistos como sujeitos da situação que
possuíam autonomia e capacidade de refletir acerca das suas condições de
vida. Partindo deste pressuposto, os educadores iam ao encontro desses
jovens no local em que eles se encontravam, sujeitos às más condições de
vida, ausência dos pais, abandono, o que fazia ao governo, e alguma parte
da sociedade, tratá-los como “trombadinhas”.(SOUZA,p.2, 2013)
O Grupo era composto por 14 educadores, que tinham formação em várias áreas,
tais como: Pedagogia, Serviço Social, Técnicos agrícolas, em contabilidade, administração
e também possuíam a formação nos saberes ditos “informais”, que eram a dança,
percussão, serigrafia, teatro e questões culturais. Os educadores do Grupo estavam sempre
engajados em ações formativas, principalmente as que ocorriam no Centro de Formação do
Movimento Nacional de Meninos e Meninas de Rua, também participavam das ações e
eventos promovidas pelo Movimento, para além disto, de 1989 a 1995 dois educadores do

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Grupo foram eleitos Coordenadores Estaduais em três gestões do MNMMR, de 1995 a


1997 uma educadora do Grupo foi eleita Conselheira Nacional representando o o
Movimento de Pernambuco e em 1998 um educador é referendado como suplente do
Conselho Nacional do Movimento.
A organização participava sempre nos eventos de sensibilização e mobilização pela
conquista de direitos para as crianças e adolescentes, teve uma participação ativa na
fundação do Centro de Articulação Retome Sua Vida, na elaboração da Lei Orgânica
Municipal do Recife e no processo de elaboração do Estatuto da Criança e do Adolescente.
Por estar sempre presente no cotidiano das crianças que viviam nas ruas do centro do
Recife, em diversos pontos estratégicos de ação, o grupo também estava sempre fazendo
denúncias das violências que as crianças e adolescente situação de rua sofriam, também
denuncias acerca dos assassinatos desses meninos e meninas que havia aumentado
consideravelmente neste período.
Diante desta realidade a instituição buscou estratégias de ação política pedagógica
para que esta realidade fosse transformada, e que fosse a partir do protagonismo dessas
crianças e adolescentes, portanto se baseou na Pedagogia Social de Rua dividida em etapas
de ação, primeiro lugar na paquera pedagógica ou abordagem, que é a fase de aproximação
e conhecimento do educador para com a criança, neste momento se inicia o diálogo
pedagógico, é através da conversa e outras atividades que o educador toma conhecimento
da realidade da criança e adolescente. Em segundo lugar o namoro pedagógico, é a etapa
que a criança estabelece vínculos com o educador, através do convívio diário e que a partir
de agora realiza atividades sistemáticas como a confecção de objetos artesanais e jogos
específicos. Em terceiro lugar é o aconchego pedagógico, que é o encaminhamento da
criança para um abrigo, o Centro Educacional Vida Nova- Capim de Cheiro e a Escola dos
Jovens Trabalhadores.
Durante o processo inicial as atividades propostas pelos educadores aos educando
se caracterizam por serem lúdicas e culturais, como a confecção e apresentação de
mamulengos, capoeira, frevo, brinquedos populares, tapeçaria e também festas e eventos
temáticos – São João, Carnaval, Natal e entre outros – e se estendem também a
participação dessas crianças e adolescentes nos processos de luta, como na elaboração do
ECA, existiam os Núcleos de Base do Movimento onde eles promoviam debates e
atividades voltadas para os educadores mas também para essas crianças, como forma de
formação para consciências crítica e cidadã.
O trabalho da organização se estende também depois dos encaminhamentos,

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buscam dar continuidade as atividades pedagógicas iniciadas no espaço da rua, no sítio


Capim de Cheiro a criança também passa por outras três etapas, que são: Cheirar,
Experimentar e Vivenciar. Todas as fases são articuladas de forma que a criança vivencie
experiências novas e distantes da sua realidade caótica nas ruas, um processo longo que
pretende respeitar o tempo e os desejos de cada criança ou adolescente.
3. Pedagogia Social de Rua

Antes de conceituar a Pedagogia Social de Rua é necessário compreender como e


quando a educação popular surge, quais as correntes e propostas que se originaram neste
processo de consolidação da educação popular. A educação popular surge em um momento
de crise não só da educação formal, mas também nas questões políticas e sociais portanto
ela surge como alternativa para os modelos educacionais do Estado que já não atendiam as
demandas sociais, aparece como um novo paradigma pedagógico com seu eixo principal a
formação do indivíduo para a transformação social.

Como já foi explicado, ela surgiu no mesmo momento em que os movimentos


sociais estão em efervescência, sendo assim um meio de difundir, ampliar e consolidar
suas práticas. Os princípios da educação popular têm sua base na pedagogia de Paulo
Freire, com o objetivo de construir uma educação emancipadora, Graciani afirma que:

Sua proposta metodológica educativa se inscreve como criadora das


condições lúdicas para que o fazer educativo ocorra em um espaço de ação
reflexão e debate dos principais desafios e dificuldades, concatenados com
a pluralidade dos acontecimentos cotidianos. Possibilitando que o
educando contextualize a sua realidade, problematizando-a, ele pode se
distanciar dela e criticar as múltiplas determinações de sua circunstância
pessoal e social, como autor de sua própria história e com o apoio
imprescindível do educador social.( GRACIANI,1014,p.38)
Assim podemos entender que a educação popular surge em contraposição ao
Estado, como resposta as demandas sociais que buscavam soluções urgentes para os
conflitos sociais, e principalmente no que se refere a situação das crianças e adolescentes,
um cenário de marginalização da infância pobre, violências e negação de direitos. Portanto,
ocorre a mobilização primeiramente dos setores populares articulando assim movimentos
em prol dessas crianças e adolescentes, a busca por soluções se baseava na análise do
cenário para estruturar um novo projeto político pedagógico.
Uma das figuras principais neste processo é o educador social, que Graciani os

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denomina de “educadores populares-militantes”, pois o processo pedagógico não estará


dissociado do ato político, essa é uma das bases da educação popular por isso “vamos
entendê-la como posição política e político-pedagógica, um compromisso com o povo
mediante o conjunto de sua educação e não somente na educação, mas em seu sentido
totalizador”(GRACIANI,2009,p.52-53). Essa característica se baseia na teoria freiriana de
que o indivíduo é capaz de refletir sobre si e buscar alternativas de mudança ele sujeito da
história.
A Pedagogia Social de Rua é um método da educação popular, pois ela se
caracteriza por ser uma “educação libertadora” em que o olhar sobre o educando é
diferenciado, pois é percebido como um sujeito histórico que contém suas experiências e
conhecimentos. Também é necessário compreender a realidade e o cotidiano dessas
crianças e adolescentes, para que a construção da ação social seja efetivada mesmo diante
das problemáticas que podem surgir durante todo processo educativo, por causa do espaço
da rua que é caracterizado por conflitos e tensões sendo assim necessária a flexibilidade
dos educadores sociais.
Graciani define a metodologia deste processo educativo como:
A ação educativa nesse âmbito constitui-se num processo de criação e
recriação do conhecimento que parte de uma determinada teoria dialética
do conhecimento, pois parte da prática, teoriza sobre ela e volta à prática
para transformá-la, ou seja, parte do concreto,realiza um processo de
abstração e regressa ao concreto, num movimento reflexivo crítico e
sistematizador – ação/reflexão/ação.(GRACIANI, 2009, p.72-73)
Para além de apenas a prática nesta pedagogia é necessário a constante reflexão
sobre as ações, por ser um ato político e pedagógico está em constante resignificação,
portanto os educadores sempre buscam sistematizar e avaliar suas práticas pedagógicas.
Deste modo podemos analisar como se estruturou a Pedagogia Social de Rua dentro do
Grupo Ruas e Praças a partir das fotografias que buscavam retratar o cotidiano das crianças
e adolescentes, dos educadores e suas práticas, assim com base em Tania Vicente para
analisar as imagens,precisamos compreender os significados básicos em relação as
imagens e pode ser através de três dimensões:

A iconologia fundamenta-se em três níveis de significados das artes


figurativas: o primário, onde consta a identificação e descrição das formas;
o secundário ou convencional, que atesta os motivos artísticos com base
em textos e documentos elucidativos, elucidativos, e o terceiro que é o da
análise propriamente, sendo aquela que desvenda os valores simbólicos
das obras e de sua época,( VICENTE,2000. p.150)

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Além destas três dimensões Ana Maria Mauad também considera três formas de
como a fotografia pode estar inserida na história, que é em primeiro lugar através da
História da Fotografia, que coloca a fotografia como objeto cultural e como apropriação da
dinâmica social, ela é o objeto e fonte da sua própria história. Em segundo lugar, através da
história cultural em que abordam os usos e funções no meio social e também uma história
feita com imagens, mas que problematiza a fotografia como fonte e objeto de estudo. Em
ultimo lugar, a história fotográfica que considera a fotografia como marca do passado,
como fonte para análise de estruturas sociais, ela se caracteriza como documento e
monumento.(MAUAD, 2015.p.43-46)
Nesta ultima parte iremos detalhar e analisar as etapas das ações pedagógicas as
formas de atuação do grupo com a utilização das imagens retiradas do documento da
organização, é importante ressaltar que a escolha das imagens presentes no documento têm
intencionalidade, pois foi sistematizado pelos próprios educadores do Grupo, assim
retomando a análise Gohn sobre as ONGs, ela nos atenta para a seguinte questão:
Em relação à produção e à construção de conhecimento nas ONGs e pelas
ONGs, observa-se que usualmente elas trabalham com projetos
localizados e focalizados. A possibilidade de produção de conhecimentos
universalisantes é pequena; a preocupação com o registro e sistematização
das experiências só existem em função dos relatórios que devem ser
apresentados aos agentes financiadores dos projetos.(GOHN, 2008. p.97)
Gohn enfatiza para uma questão importante que é parcialidade das produções das
organizações. A maioria das vezes os relatórios e textos produzidos tendem a mostrar
apenas o lado positivo e deixa de lado as tensões e conflitos existentes, fazendo com que as
avaliações sejam em sua maioria quantitativas e não qualitativas. Porém no documento
produzido pelo grupo, por se tratar se tratar de uma sistematização para reflexão das
práticas da organização, e também essa sistematização teve uma assessoria externa, então
na ultima parte do livro eles explicam as dificuldades e problemáticas enfrentadas pelo
Grupo ao longo dos dez anos.
As imagens selecionadas não têm identificação ou data definida, apenas que foram
fotografias tiradas no período da década de 1980, sendo assim a primeira fotografia que

Fotografia 1

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Fonte: Livro No Meio da Rua / Acervo: Grupo Ruas e Praças


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podemos observar retrata a figura da criança no espaço da rua e as problemáticas existentes


no espaço da rua, pois eles estavam inseridos em um espaço de violências e negação de
direitos mas ainda sim a rua era considerada um espaço de resistência.
O Grupo Ruas e Praças atuava em alguns pontos principais na cidade do Recife e
planejavam as ações de acordo com a concentração das crianças e adolescentes de cada
localidade. Os principais pontos de atuação do Grupo foram na Praça 11 de julho em Santo
Amaro,Praça Rio Branco, estacionamento do metrô do Recife, o beco da rua Heitor Feijó(
inferninho) e a pracinha de Boa Viagem. Cada ponto tinha um perfil diferente de público,
mas em termos gerais a organização atendia em média 130 crianças e adolescente
mensalmente, na faixa etária de 3 a 18 anos, a maioria do sexo masculino, oriundos das
comunidades da Região Metropolitana do Recife, as famílias em situação de
vunerebilidade sócio econômica.
Eles distinguiram os educandos em dois grupos, aqueles que moravam na rua,
estavam em conflito com a lei e utilizavam drogas, e outro grupo eram aqueles que
passavam o dia na rua trabalhando e mendigando para obter sustento para seu lar. Na
primeira etapa de abordagem ou paquera pedagógica o educador observar a realidade
desses meninos e meninas, sendo importante que ele se identifique de forma que sua figura
não seja associada as que representam perigo a elas como os policiais ou aliciadores.
As atividades na primeira etapa tinham caráter lúdico e que possibilitasse o
conhecimento do educador da realidade vivida pelas crianças e adolescentes e como
também o maior vínculo entre ambos. A imagem a seguir retrata uma das atividades
propostas pelos educadores as crianças e adolescentes, mas vale salientar que os primeiros
contatos com eles poderiam levar um tempo maior pois depende da receptividade e da
conquista de confiança deles. As atividades iniciais objetivavam conhecer e ouvir deles
suas experiências e vivências naquele espaço, caracterizado pela “escuta” do educando e
proporcionando através das atividades a expressão deles sobre sua história e realidade
social.
Fotografia 2

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Fonte: Livro No Meio da Rua / Acervo: Grupo Ruas e Praças


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As atividades nesta segunda etapa, denominada de namoro pedagógico, são mais


sistematizadas e que poderiam ser em encontros semanais ou diários. Tinha como objetivo
incentivar as crianças e adolescentes resignificar seu projeto de vida, suas perspectivas e
como eles próprios denominam “pedagogia do desejo”. E neste momento os educadores já
têm maior proximidade com eles e buscam mais informações sobre sua família, sendo
assim também buscavam visitar a família das crianças e adolescentes para compreender
melhor as causas e poderem fazer os encaminhamentos e a retomada dos vínculos
familiares.

As atividades se caracterizam pela sistematização e poderiam ser oficinas de dança,


capoeira, serigrafia, confecção de mamulengo e entre outros. A prioridade eram atividades
lúdicas, para que o espaço da rua que por muitas vezes era precário e problemático fosse
amenizado e que fizesse o educando refletir sobre sua condição e as possibilidades
existentes e que pudesse buscar a mudança. Na imagem abaixo uma educadora visita uma
família mostrando como as ações tinham o objetivo de reconstruir vínculos afetivos entre

Fotografia 3

Fonte: Livro No Meio da Rua / Acervo: Grupo Ruas e Praças

os meninos e meninas e suas famílias.

Também eram realizados encontros na sede do grupo durante as atividades


sistemáticas, e havia também a participação das crianças e adolescentes nas reuniões no
Núcleo de Base do MNMMR, com a participação efetiva deles em debates e tomada de
decisões para que eles cada vez mais tivessem a consciência crítica sobre sua realidade, e
estas atividades foram intensas devido a busca e luta pela promulgação do Estatuto da
Criança e do Adolescente.

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A terceira ema tapa do processo, que é denominada como aconchego pedagógico,


pois é quando as crianças e adolescentes saem da rua tem seus encontros, reuniões e
atividades no espaço do Grupo Ruas e Praças, o local podia ser na sede da organização e
como também no sítio Capim de Cheiro. Esta etapa se era principalmente no Sítio, porém
elas só ocorreram a partir de 1991 que foi quando o Grupo adquiriu o sítio, neste espaço
eles também realizavam encontros com as mães das crianças e adolescentes para que o
vínculo familiar fosse retomado, e também para que eles pudessem compreender que
aquele espaço era uma passagem para uma nova vivência, que no sítio experimentariam
novas realidades que pudessem ser possíveis no seu cotidiano.

As atividades do grupo buscavam sempre a interação dos educadores com os


educandos, dos educandos entre si, com sua família e também com a sociedade, pois a
maioria das atividades eram ao ar livre no espaço da rua. A utilização do lúdico como
metodologia de ação pedagógica para emancipação do individuo é uma das marcas da
Pedagogia Social de Rua, pois busca a expressão e reflexão das crianças e adolescentes,
possibilitando uma comunicação diferenciada entre os agentes do processo educativo..

As imagens possibilitam perceber a relações sociais que são estabelecidas durante o


processo educativo, e como modifica a visão que se tinha das crianças e adolescentes em
situação de rua naquele período, a forma de ser retratada nos jornais e revistas é totalmente
diferente. Nestas imagens é possível perceber que mesmo elas estando inseridas em um
cenário de conflitos e negação de direitos, através da Pedagogia Social de Rua novas
possibilidades aparecem para esses meninos e meninas, enquanto que as imagens retratadas
deles nos meios de comunicação mostravam uma infância marginalizada e “trombadinha”
estimulando a estigmatização da infância pobre como também não mostrando soluções
adequadas para a mudança dessa realidade.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

A pesquisa bibliográfica acerca dos conceitos dos movimentos sociais, ONG e


Educação Popular possibilitou compreender que as mudanças da sociedade no tempo e
espaço refletem na forma em que ela se organiza em prol do interesse coletivo. Neste
sentido, investigar a história e as práticas pedagógicas do Grupo Ruas e Praças
proporcionaram a compreensão de como esta prática educativa alternativa possibilitou o
fortalecimento da conquista dos direitos da criança e do adolescente, como também
estabelecendo novas relações entre os educadores e os meninos e meninas que era vistos
como peso social.

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A articulação existente entre o Movimento Nacional de Meninos e Meninas de Rua


e Grupo Ruas e Praças foi reflexo do cenário da década de 1980, pois através da
mobilização coletiva foi possível estabelecer relações de dimensão político e social para a
construção de novas práticas em relação as crianças e adolescentes em situação de
abandono social nas ruas de Recife durante este período. Foi possível perceber a
importância da Pedagogia Social de Rua através do Movimento e do Grupo na luta pelos
direitos das crianças e adolescentes e contra sua violação, como também que continuam a
influenciar outros movimentos e instituições.
Este trabalho também pretendeu contribuir para a construção da história da infância
e da educação popular no Recife, tendo em vista a importância deste tipo de pedagogia na
luta pelos direitos das crianças e adolescentes e contra sua violação, os colocando como
protagonistas e agentes da sua história. Também é relevante contribuir para a historicidade
do Grupo Ruas e Praças, com o foco nas suas práticas pedagógicas e relação com o
Movimento Nacional de Meninos e Meninas de rua reafirmando a prática educativa
voltada para a transformação social, baseada na participação de vários segmentos sociais.

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SIMPÓSIO TEMÁTICO 08
HISTÓRIA DAS RELIGIÕES

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O PROTESTANTISMO NO BRASIL DO SÉCULO XIX: EXPANSÃO RELIGIOSA


E DEBATES SOBRE A LIBERDADE DE CULTO.

José Luciano de A. Dias Filho

Formado em Licenciatura em História pela Universidade de Pernambuco.

luciano.andra@hotmail.com

INTRODUÇÃO

O século XIX não foi o período de primeiro contato com a Religião Protestante,
desde a ocupação colonial, pequenas incursões de navegantes e aventureiros acatólicos se
fizeram presentes nessas terras, como a tentativa de estabelecimento da França Antártica na
Baia da Guanabara (1555). Outro momento de presença protestante foi no século XVII,
dessa vez mais intensa, no entanto restrita em Pernambuco durante a presença holandesa
coordenada pela Companhia das Índias Orientais. (CAMPOS, 2010, p.149) Com a retomada
portuguesa e expulsão dos holandeses, Portugal assegurou que a Igreja Católica fosse a
única com permissão de atuar na América Portuguesa. “A inquisição fechou, então, todos os
portos aos que confessavam a fé protestante.” (HAHN, 2011, p.69) Dessa forma foi
assegurado um monopólio religioso à sociedade colonial, em que o catolicismo assumia
unicamente as devidas responsabilidades sociais e espirituais.

Tal realidade só foi alterada com o Decreto de Abertura dos Portos às Nações
Amigas. Em 1808 a vinda da família real ao Brasil forçou uma modificação na
administração da antiga colônia, que passava à condição de Reino Unido por ser residência
da família real e novo centro decisões políticas. Com o decreto, houve a permissão da
entrada livre para o comércio e a indústria estrangeira, com a garantia que era permitido a
todo imigrante, sem distinção de nacionalidades e religião.

Muitos desses estrangeiros que vinham para o Brasil com interesses econômicos,
procurando novas oportunidades de enriquecer ou uma maior oferta de trabalho, acabam
residindo por longos anos no país. Alguns problemas e questionamentos começam a se
tornar expressivos, como os impasses acerca da liberdade religiosa. Ainda não era claro o
que um estrangeiro podia ou não fazer, até onde as práticas protestantes de alguns seriam

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aceitas não só pela Igreja Católica, que detinha o controle religioso, mas pela própria
sociedade catolizada por três séculos.

O Tratado de Aliança e Amizade de Comércio e Navegação de 1810, entre outras


questões, tocava no ponto sobre liberdade religiosa, regulava a relação entre imigrantes e
brasileiros propondo uma limitada tolerância aos súditos da Inglaterra, desde que esses
cumprissem as restrições corretamente. Aos imigrantes não era permitido proselitismo, as
igrejas protestantes deveriam externamente se parecer com casas e não era permitido falar
mal da Igreja Católica. O tratado citado não chega a estorvar as práticas de culto protestante,
desde que fossem seguidas as imposições do tratado. O estrangeiro tinha uma liberdade
religiosa até onde o tratado determinava que ele fosse livre. É notável uma clara
preocupação para que seja evitado um enfrentamento direto entre o protestantismo e
catolicismo, o monopólio católico continua assegurado desde que a fé protestante seja
apresentada como a religião dos estrangeiros, enquanto o catolicismo continua sendo a
religião dos brasileiros.

Com o passar do tempo e a chegada da segunda metade do século XIX, a tendência


foi aumentar o número de estrangeiros no país, principalmente com o fim do tráfico negreiro
a partir efetuação da lei Eusébio de Queiróz, de 1850. Houve uma necessidade de mão de
obra que buscou ser suprida com o trabalho de imigrantes, colônias foram montadas e nesse
período um dos principais fornecedores de colonos era a Alemanha. Mesmo com o
catolicismo como religião oficial do Estado, como traz o artigo 5º da Constituição de 18241,
o governo brasileiro não deixava de apoiar e financiar a vinda de colonos protestante ao país,
chegando até mesmo a pagar pastores estrangeiros para as devidas comunidades, “Por
decreto de 1858, do governo do Império, o pastor Hesse foi contratado na Alemanha para
servir em Blumenau.” (ALENCASTRO, 1997, p.327) Em relação à proibição do local de
culto com aparência externa de templo, tal obrigação nem sempre era cumprida como traz o
trecho: “Graças ao mutirão de fiéis, ergueu-se um pequeno templo em estilo gótico, sem
torre externa- esse privilégio era reservado apenas à igreja católica[...]”(ALENCASTRO,
1997, p.328)

Esta aparente facilidade e apoio as comunidades alemãs protestantes, foi dada sobre
tudo pelo fato de demonstrarem um perfil independente e privado que os grupos luteranos
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A Religião Catholica Apostolica Romana continuará a ser a Religião do Imperio. Todas as outras Religiões
serão permitidas com seu culto domestico, ou particular em casas para isso destinadas, sem fórma alguma
exterior do Templo. CONSTITUIÇÃO POLITICA DO IMPERIO DO BRAZIL disponível em:
http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicao24.htm > acesso em 21 Set. 2017

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criavam em seus estatutos, parte do governo não enxergando o protestantismo como uma
ameaça à religião oficial, tolerou e até certo ponto as favoreceu. (ALENCASTRO, 1997,
p.327) De fato não podemos caracterizar a atuação desses imigrantes protestante como um
expansionismo religioso, pois o principal objetivo era praticar o culto protestante em suas
comunidades estrangeiras. A partir do momento que eles conservavam a religião,
mantinham vivo um arcabouço cultural próprio de suas comunidades, “Todas essas práticas
religiosas nas colônias alemãs levaram o protestantismo a ser fator de preservação da cultura
germânica no exterior.” (ALENCASTRO, 1997, p.329) Ainda assim é possível considerar
uma leve expansão indireta, lenta e distante, de acordo com o crescimento do número de
templos, sacerdotes acatólicos e impasses jurídicos de ordem religiosa como: questões de
batismo, casamento e sepultamento.

Foi também no início da segunda metade do século XIX que houve a chegada
marcante de missionários protestantes no país, estes se apresentam com características
diferentes dos estrangeiros já mencionados. Os missionários, diferentes dos sacerdotes
protestantes contratados pelo governo, vinham com a intenção de expandir a fé protestante,
converter brasileiros e estabelecer igrejas que atendessem principalmente a população local.
Muitos desses missionários foram reprimidos e perseguidos pela igreja católica ou pela
própria população.

Mediante esses confrontos, temos os debates sobre a liberdade de culto, que se dá


não só no âmbito religioso, mas político e social. É na questão dos casamentos mistos e
acatólicos que podemos notar muito desses embates entre as duas religiões, no entanto era
um debate que se concentrava primordialmente no contexto político. A defesa da
secularização e laicidade, eram pontos pertinentes ao discurso protestante, levando ao
combate da hegemonia católica no país, que era favorecido de várias formas pelo Regime de
Padroado.

Não há discursos neutros na percepção do social, são produzidas estratégias, práticas


sociais e políticas. Por isso para Chartier, a investigação sobre as representações supõe-se
colocadas em um campo de concorrência e competição, cujo desafios se apresentam em
termos de dominação. (CHARTIER, 2002, p.17) A igreja Católica e os missionários
protestantes se encontraram nesse campo de concorrência, em que a competição foi
fundamental para a manutenção da hegemonia do primeiro e a sobrevivência e enraizamento
do segundo. Nessa disputa as lutas de representações eram constantes, no cenário social,
religioso e político. Nos jornais da época temos muitos registros que nos servem como fonte
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na análise de discursos de ambos os lados, esse campo de concorrência é fundamental para a


compreensão da interação entre as duas religiões.

As lutas de representações têm tanta importância como as lutas


econômicas para compreender os mecanismos pelos quais um grupo
impõe, ou tenta impor, a sua concepção de mundo social, os valores que
são os seus, e o seu domínio. (CHARTIER, 2002, p.17)

Dessa forma, através da luta de representações houve a imposição ou a tentativa de


impor, como aconteceu muitas vezes, concepções que não pertenciam ao outro grupo. Tal
prática ocorre entre ambos os lados, católicos e missionários protestantes, pois estão
inseridos nessa disputa em meio as representações. De acordo com o pensamento de
Chartier, focado no campo de concorrência e nas lutas de representações, buscamos
compreender como tais enfrentamentos resultaram nas mudanças socioculturais que
acarretaram uma necessidade da laicizarão do Estado.

Sabendo que tanto a expansão religiosa protestante quanto os debates sobre a


liberdade de culto se estabelecem não só no cenário religioso, mas no político e social, é
encontrado no conceito de Chartier, luta de representações, o arcabouço teórico necessário
para a compreensão das representações no campo de concorrência. Dessa forma a partir da
História das Religiões é possível estudar esse processo de mudanças sociais, políticas e
religiosas, pois são aspectos do âmbito cultural. Qualquer religião está diretamente associada
e ligada ao contexto cultural, pois até o próprio conceito de religião é um produto histórico.
Para Agnolin, a cultura é objeto específico do historiador, isolar a religião de um contexto
específico é inviável. (2013, p.183) Para compreendermos a dinâmica da expansão
protestante em suas atuações no espaço religioso e político, é necessário contextualizá-lo
com o momento histórico.

A EXPANSÃO DO PROTESTANTISMO POR ROBERT R. KALLEY E ASHBEL G.


SIMONTON.

Durante a segunda metade do século XIX, os missionários protestantes passaram a


ver o Brasil como um campo fértil para a disseminação da mensagem cristã protestante. Eles
confrontavam a fé católica que se estendia por toda a América Latina, representando-a em
seus discursos como uma crença inferior. Para esses protestantes a implantação da sua fé
correspondia diretamente ao estabelecimento do reino de Deus na Terra, que equivale a uma

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“civilização cristã” em oposição a uma “civilização pagã”, fiel aos cultos e práticas
idólatras. Esses missionários se achavam detentores de uma cultura superior que precisava
ser compartilhada com outros povos e nações, porque era a expressão do reino de Deus.
(MENDONÇA, 1984, p.108)

Esse campo fértil se dava principalmente pela incapacidade numérica, da Igreja


Católica, de estar presente e atuante no extenso território brasileiro. Ao traçar a história do
presbiterianismo, Antônio Gouvêa Mendonça explana que o alto índice de crescimento, em
relação às outras denominações protestantes, foi o fato de terem alcançado as zonas rurais de
Províncias como São Paulo e Minas gerais, seguindo a trilha do café. (1984, p.121) Esse
crescimento se dava principalmente pela ausência da Igreja Católica, tanto em prestar
serviços religiosos para a população, quanto na participação no campo de competição e nas
lutas de representações. O embate era menor, logo havia uma facilidade no estabelecimento
da fé protestante e no recrutamento de obreiros.

Durante o período imperial a influência da Igreja Católica não aumentou, o número


de seminários, dioceses, padres e bispos eram bastante reduzidos em comparação com outros
países. (RANQUETAT, 2012, p,51) Nas palavras de Émile G. Léonard: “A influência
numérica do clero brasileiro se fez acompanhar de um enfraquecimento de sua vida
espiritual.” (2002, p.35) Esse contexto no qual se encontrava a Igreja Católica foi um dos
fatores que impulsionou a expansão da fé protestante no Brasil, o crescimento vertiginoso
das Igrejas Evangélicas se tornou uma realidade apenas no século XX.

Robert Kalley foi um médico escocês que veio ao país de forma independente, sem
nenhuma relação com alguma junta de missões estrangeiras. Sua atuação no período foi
fulcral para o estabelecimento de um modelo de ação missionária no Brasil, teve grande
influência enquanto gerador de discussões, pois estabeleceu o primeiro trabalho missionário
organizado, fundando igrejas, participando e promovendo debates acerca da liberdade
religiosa.

Kalley havia tido uma experiência mal sucedida na Ilha da Madeira, em que precisou
fugir da repressão e perseguição sofrida por causa de suas ações prosélitas. Em 10 de Maio
de 1855 o missionário chega ao Brasil, juntamente com sua esposa Sarah Kalley, esta teve
um papel fundamental na atuação missionário através da Escola Bíblica Dominical. Carl
Joseph Hahn atribuiu uma extrema importância da Escola Dominical na fundação do
protestantismo de missão, segundo ele tais escolas sempre desempenharam um papel

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fundamental nas igrejas evangélicas brasileiras, pois a maioria se desenvolvia a partir das
escolas dominicais. (2011, p.308,309)

A partir do batismo do primeiro brasileiro foi criado por Kalley, em 11 de Julho de


1858, a primeira igreja contendo membros locais convertidos, ao todo eram 14 pessoas.
(CABRAL, 2017, p.244) A formação desse espaço religioso com brasileiros enquanto
membros, confrontava as estruturas de poder, questionava a hegemonia religiosa da Igreja
Católica. Tornava-se real o campo de competição entre as duas religiões, Kalley foi
responsável por enfrentar o Estado, a partir do momento que ele desrespeitava o artigo 5º da
Constituição de 1824, fazendo proselitismo, batizando e pregando.

Eventos como nascimento, casamento e sepultamento de protestantes se tornaram


uma dificuldade, porque todos eram registrados pela Igreja, não havia um registro civil para
os indivíduos que não professavam a fé católica. A presença de brasileiros protestantes
forçou em 1861 a aprovação pelo parlamento da Lei nº 1144, regulada pelo Decreto nº 3069,
de 1863, assegurando efeitos legais aos casamentos e batizados realizados por ministros das
religiões toleradas. Também resguardava o direito de sepultamentos de não católicos nos
cemitérios públicos, dessa forma compreendemos a hegemonia do controle católico sobre a
vida dos brasileiros, através da instituição religiosa é exercido o controle social e cultural.

No primeiro casamento protestante na cidade do Recife, houve reação negativa por


parte da população. O evento foi visto como uma perversão, pois era a primeira vez que um
rito acatólico de casamento era realizado na cidade. (SILVA, 2016, p.85) Aproximadamente
600 pessoas enfurecidas tentaram agredir Kalley e sua esposa na saída do culto. Tais reações
violentas ocorreram até o advento da República, mesmo com a laicização do Estado, pessoas
contrárias insistiam em tentar reprimir religiões não católicas. Porém, o reconhecimento
legal do Estado é primordial para a efetivação da liberdade de culto em uma sociedade.
Mesmo com direitos religiosos restritos, o protestantismo enquanto religião tolerada sofria a
repressão muitas vezes violentas da própria população, cabendo ao Estado manter os direitos
assegurados, como consta na documentação.

Exige-se a demissão do chefe da polícia da província do Rio de Janeiro [...] não


consentiu que na noite 24 do corrente, vários estrangeiros congregados pelo subdito
inglês Dr. Kalley para a leitura da bíblia na casa n. 93 á rua da Conceição de
Nitherohy, fossem offendidos como fôra anteriormente o Dr. Kalley e sua senhora,
por meia dúzia de turbulentos, que pensarão em deduzir esse direito de discursos de

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alguns membros da minoria da assemblea provincial [...] (Jornal do Commercio RJ,


1864, nº.334, p,2)

Nesse caso reportado pelo Jornal do Comércio do Rio de Janeiro, há uma cobrança
em cima das autoridades, principalmente policial, por não garantir a legalidade da
manifestação religiosa assegurada por lei. A repressão vem de pessoas representadas pelo
jornal como: “meia dúzia de turbulentos”. Logo seria papel do estado conservar a parcial
tolerância concedida aos protestantes. Acontecimentos como esses geraram uma série de
discussões acerca da liberdade religiosa, e o próprio Kalley foi uma figura fundamental
nesse processo.

O trabalho de Ashbel G. Simonton no Brasil começou em 1859, ele era um jovem de


26 anos, diplomado pelo Princeton College e pelo Seminário Teológico de Princeton.
Simonton foi o primeiro missionário enviado pela Junta Presbiteriana de missões
Estrangeiras, desconhecendo a língua do país, teve que começar como uma espécie de
capelão entre os anglo-saxões da capital. Começou a pregar em português apenas em 1861,
em pequenas reuniões em que os colaboradores e fiéis vinham para ouvi-lo e auxiliá-lo. No
ano seguinte batizou seus primeiros convertidos, a constituição oficial da Igreja
Presbiteriana do Rio foi realizada em 15 de Maio 1863. (LÉONARD, 2002, p.62)

As leituras e os sermões de Simonton demonstram que ele nunca se refere


explicitamente à Igreja Católica, mas à “religião de nossa sociedade”. Isso porque não é
explícito nele um espírito abertamente polêmico, mas uma intenção proselitista, de
conversão e exortação para os membros da sua igreja, com o objetivo de incutir neles os
princípios da fé protestante. Ele chama a atenção de seus fiéis para a pouca segurança
presente na religião da maioria, principalmente porque ela não está fixada sobre o conteúdo
dos fundamentos da fé. Logo, de acordo com o discurso de Simonton, a melhor religião não
é a da maioria, mas a que tem os elementos de acesso à salvação e está acessível para todos.
Com todo o cuidado e clareza, ele vai construindo em seus sermões a figura que ele tinha da
Igreja Católica. (MENDONÇA, 1984, p.81,82.)

Em 1864 foi fundada a Imprensa Evangélica, por Simonton e Blackford. Simonton


ficou impressionado com o número de artigos religiosos que eram publicados na impressa
do Rio de Janeiro. Os artigos com enfoque teológicos protestantes normalmente eram
escritos por Robert Kalley, porém outros textos anti-católicos eram escritos por jornalistas,
padres e políticos anticlericais. Tal interesse, ainda que negativo, por temáticas religiosas,

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por parte de políticos e intelectuais foi o que levou Simonton a criar o próprio jornal.
(VIEIRA, 1929, p. 147)

Dessa forma notamos a incontestável importância do trabalho dos missionários


Robert R. Kalley e Ashbel G. Simonton. O primeiro em um contexto de estabelecimento de
uma organização missionária, introdução aos debates religiosos acerca do protestantismo e
conversão de brasileiros, e o segundo com a expansão das ações missionárias e criação de
um jornal, que servia como um intensificador da propaganda protestante, ampliando o
número de receptores da sua mensagem e gerando discussões a respeito da religião,
liberdade e política a partir de um discurso acatólico.

A PROBLEMÁTICA DO CASAMENTO E OS DEBATES SOBRE LIBERDADE DE


CULTO

Diante da propaganda e do seu proselitismo, Kalley sofreu sérias reações do governo.


Ele decidiu elaborar 11 questões2 e mandar para que juristas respondessem de acordo com
suas interpretações, o missionário percebeu que ele poderia induzir uma interpretação
diferenciada do Código Penal em que suas ações missionárias não seriam transgressões da
lei. O corpo de juristas escolhido foi composto por Caetano Alberto Soares, José Tomaz
Nabuco de Araújo e Urbano Sabino Pessoa, autoridades notáveis na época. Como já era
esperado por Kalley, o parecer dos juristas foi positivo para as ações do missionário, se
tornando uma referência de pensamento no julgamento de outros casos protestantes.
(CABRAL, 2017, p.249)

Nesse momento houve outras figuras se expressando sobre a liberdade religiosa, esse
era o momento em que todos aqueles que descordavam da relação do Estado com a religião,

2
1.Os cidadãos brasileiros têm ou não têm liberdade perfeita de seguir a religião que
quiserem? 2. Se algum deles consultar alguma pessoa que não segue a religião do Estado e essa pessoa lhe
explicar sua crença, será um ou outro incurso em qualquer penal legal? 3. Será criminoso aquele que
aconselhar
o cidadão brasileiro a adotar uma religião que não seja a do estado? 4. O caso será o mesmo, estando a pessoa
em sua casa ou fora dela, em público ou particular? 5. Se um cidadão brasileiro se unir a qualquer outra
comunhão que não seja a do Estado, será por isso incurso em qualquer pena, seja debaixo do título de apostata,
blasfemo ou outro qualquer? 6. Os membros da comunhão que o receberem (ou qualquer um deles) serão por
isso incursos em qualquer pena de lei? 7. É lícito aos estrangeiros seguir o seu culto doméstico em suas casas
particulares? 8. Se algum dos seus amigos brasileiros quisesse estar presente com eles, tornar-se-ia por isso o
seu culto criminoso? 9. Se o culto estrangeiro estivesse em uma casa sem forma alguma de templo, mas com a
entrada franqueada aquele que quiser – sem limitar-se aos amigos do morador – seria criminoso? 10. Um
estrangeiro pode ser obrigado a sair do sítio onde mora, ou ser deportado do país a vontade do governador, sem
culpa formada? 11. O que se deve entender pelas palavras publicamente e reuniões públicas nos art. 276 e 277
da Carta Constitucional?

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se posicionarem em apoio ao missionário Kalley e a busca protestante por uma ampla


liberdade prosélita. Machado de Assis saiu em defesa de Kalley, argumentou que de acordo
com a constituição não viu impedimentos, pois o texto em si permitia o culto. Joaquim
Nabuco via na liberdade religiosa um caminho para o desenvolvimento social, juntamente
com outras liberdades como no ensino. Para Nabuco, falta de proselitismo também era falta
de liberdade de culto. (SILVA, 2016, p.113)

A atuação missionária, principalmente de Robert R. Kalley, inseriu no cenário


religioso e social um pequeno número de protestantes brasileiros, que somava com os
estrangeiros que vinham da Europa ou E.U.A. O resultado foi uma pluralização na sociedade
nunca vivida no Brasil, esse contexto foi propício para o início das primeiras discussões
sobre a liberdade de culto, principalmente no âmbito jurídico. É preciso salientar que nesse
momento o país demonstrava um crescimento das ideias liberais e iniciando pensamentos
republicanos, o que levou a causa protestante a obter apoio e simpatia de alguns grupos
políticos.

O liberalismo pretendia interromper a relação do poder político com qualquer


confissão religiosa, uma neutralidade do governo diante das diversas religiões, era um
aspecto central para pensar em um Estado laico proposto pelo liberalismo do século XIX.
Para Mendonça, o protestantismo que atuante através das pregações missionárias, era
amplamente ligada ao liberalismo que no século XIX estava entranhado tanto no
pensamento europeu quanto no norte-americano. (MENDONÇA, 1984, p.142) O choque
primeiramente ideológico no campo de concorrência das lutas de representações, se torna
uma temática importante no espaço político. Nos debates o partido católico enfrentava os
liberais, as Câmaras se ocupavam com discussões parlamentares sobre a ilegibilidade dos
protestantes, de 1879 até a queda do império. (LÉONARD, 2002, p.126)

Os liberais se posicionaram em prol da imigração e da necessidade de mudanças nas


leis do país. Liderados pelo Ministro da justiça, Nabuco Araújo, sua estratégia foi dar ênfase
no aspecto mais vulnerável da questão, o casamento civil. (VIEIRA, 1929, p. 226) Este era
um assunto carregado de agitação, Nabuco Araújo acreditava que se essa problemática fosse
resolvida, as outras limitações dos direitos civis dos acatólicos poderiam ser tranquilamente
solucionadas, como consta no jornal protestante:

[...] mas promettendo propôr importantes reformas com o fim de ampliar as


liberdades individuais e favorecer a vinda de imigrantes. O Ministro da Justiça já
indicou bases de uma reforma judiciaria e de um projecto sobre casamento civil

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entre os catholicos e os acatholicos. Se este projeto vingar, desapparecerá em parte


um dos principaes estorvos á colonização do Império. (Imprensa Evangelica 1866,
nº8, p.8)

A lei de casamento nº 1144 foi apenas um paliativo, defendiam os liberais, pois a lei
presumia que todos os acatólicos sempre seriam estrangeiros. Em continuação na
argumentação liberal, a lei não identificava o casamento protestante como uma cerimônia
verdadeira, apenas fornecia-lhe os efeitos civis do casamento para fins de propriedade e
herança. (VIEIRA, 1929, p. 226)

A luta pela conquista do casamento civil, nunca foi uma questão apenas religiosa,
mas principalmente jurídica. O indivíduo que não realizou o casamento católico não estava
resguardado legalmente pelas leis do Estado, pois a cerimônia mesmo executada por um
sacerdote protestante, não era registrada em cartório. Esse empecilho afetava a vida tanto de
estrangeiros quanto de brasileiros, que convertidos a fé protestante estavam incapacitados de
exercer sua cidadania por não comungar com a religião oficial do país. A Imprensa
Evangélica, jornal fundado por Simonton, trabalhou exaustivamente com essa temática do
casamento, mostrando as dificuldades das pessoas que desejavam um casamento acatólico e
como a aceitação de ideias laicas, a respeito do casamento civil, se apresentava como
solução para tais impasses no meio jurídico, como consta na publicação:

[...] propomo-nos verificar a exactidão das informações que levárão ao Sr.


Burlamaque a negar a necessidade do casamento civil, e a affirmar que a legislação
do Brazil, em vigor, é bastante liberal para assegurar aos estrangeiros e aos
nacionaes dissidentes a constituição familiar. Para conseguir nosso fim vêmo-nos
obrigados a entrar no exame do modo porque a camara ecclesiastica decide os casos
em que se celebrão casamentos mixtos, isto é, casamentos em que uma só das partes
é da igreja estabelecida.” (Imprensa Evangelica 1866, nº11, p.3)

De acordo com o texto citado, compreendemos as dificuldades para a execução do


casamento acatólico no país. A celebração dos casamentos mistos só podem ser realizados
com a permissão da câmara eclesiástica, que decide em quais casos deve ou não ocorrer a
cerimônia. O autor ainda tem a preocupação de conceituar o termo “casamento mixto”,
definindo como um matrimônio em que apenas um dos noivos pertence à Igreja Católica.
Isso porque possivelmente essa é uma temática tão recente das discussões da sociedade, que
provavelmente muitos tenham conhecimento de apenas um único casamento, o católico.
Logo é notável a importância do discurso protestante acerca da liberdade de culto e da
defesa do casamento civil, como um gerador de debates e discussões que apresenta ao

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público outra perspectiva em relação a tais temáticas, abordando a importância de uma


laicidade para a resolução de tais questões, como consta a documentação.

Porém é de lastimar que o governo não julgue necessário a occasião azada para
cortar pela raiz as difficuldades que esta magna questão offerece, estabelecendo o
casamento civil para todas as classes, e deixando ao arbitrio das partes o ir ou não,
depois de casadas civilmente, receber na igreja a benção nupcial. Nisto não haveria
offensa á crença de ninguém. (Imprensa Evangelica 1866, nº8, p.8)

Dessa forma o discurso protestante fornece uma percepção do social, produzindo


estratégias, práticas sociais e políticas. No campo de concorrência os missionários
protestantes disputavam com a Igreja Católica, tendo os desafios como termos de
dominação. É através da luta de representações que há imposições ou tentativas de impor,
como pode ser observado na disputa entre as duas religiões. É nessa perspectiva que
analisamos os discursos protestantes a favor do casamento civil e uma campanha pela
laicidade do Estado, como forma de combater a hegemonia católica no campo de
concorrência, abrindo espaço para a liberdade de culto e expansão do protestantismo.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Para compreendermos as conquistas protestantes em termos de liberdade de culto, é


necessário antes analisar a relação do Estado com a religião oficial. Atualmente o
pensamento de separação entre política e religião é muito comum, fruto do pensamento
liberal e dos regimes republicanos, porém a interação entre os dois nem sempre foi repelida.
A ação missionária protestante foi responsável por introduzir na sociedade, as primeiras
discussões sobre a liberdade religiosa e a necessidade de um Estado laico, a partir da
essencialidade de garantir os direitos dos diversos cidadãos que professavam religiões
diferentes.

Apenas com a instauração do governo republicano o Estado se tornou laico, a


laicização do país foi instituída com o Decreto 119-A, contendo sete artigos que proibiam a
intervenção do governo em questões religiosas. Dessa forma havia a abertura legal para a
atuação de outras religiões, como protestantes e espíritas. (MOURA, 2015, p.80) Porém
havia uma necessidade da laicidade antes da instauração da República, por grupos que eram
prejudicados por não poderem se submeter as práticas cerimoniais católicas, e
consequentemente passar pelos processos legais jurídicos do país.

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REFERÊNCIAS

Fontes

CONSTITUIÇÃO POLITICA DO IMPERIO DO BRAZIL disponível em:


http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicao24.htm > acesso em 21 Set.
2017.
Noticiario. Imprensa Evangelica, Rio de Janeiro, nº8, p.8, Abril, 1866.
O casamento civil. Imprensa Evangelica, Rio de janeiro, nº11, p.3, Junho de 1866.
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RELIGIÃO E EDUCAÇÃO: OS PROJETOS PEDAGÓGICOS DOS JESUÍTAS


PORTUGUESES NO BRASIL (1910 – 1938)

Carlos André Silva de Moura


Universidade de Pernambuco
carlos.andre@upe.br

Resumo

Após a implementação da República em Portugal, em 05 de outubro de 1910, as ações


laicistas do novo governo atingiram as atividades das ordens religiosas. Com os decretos do
novo sistema político, membros da Companhia de Jesus se exilaram em vários países,
sobretudo, na Espanha, Itália e no Brasil. A escolha por cidades brasileiras foi incentivada
pela língua em comum, as aproximações culturais, mas principalmente pelos projetos
religiosos desenvolvidos no país. O artigo tem o objetivo de compreender parte das ações
dos membros da Província Portuguesa Dispersa no Brasil na primeira metade do século XX,
com a análise das relações entre os seus projetos pedagógicos, a organização de uma missão
cultural e o processo de Restauração Católica. A partir da História Cultural das Religiões,
também buscamos compreender como as ações educacionais foram um instrumento de
mediação cultural para a promoção de novas ideias e cultos por parte dos jesuítas.

Palavras-chave: Companhia de Jesus, Missão Cultural, Projeto Educacional, Restauração


Católica.
______________________________________________________________________

Em meio ao conjunto de imigrantes que chegaram ao país na primeira metade do


século XX estavam os membros da Companhia de Jesus que foram exilados de Portugal,
resultado das ações de uma política laicista implementada após a instauração da República.
As representações formadas do clero, o trabalho em torno do movimento de Restauração
Católica e as aparentes afinidades entre o poder político e o religioso foram determinantes
para que alguns membros da hierarquia católica portuguesa se destinassem a várias regiões
brasileiras. Ao se fixarem nas diversas cidades, deram continuidade às atividades que já

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desenvolviam nas dioceses lusitanas, colaborando com a formação de novas práticas


religiosas1.
Ao embarcarem com destino ao Brasil, os religiosos compartilhavam de um
sentimento de dúvida e receio em relação à recepção dos eclesiásticos e principalmente dos
governantes. Mesmo com o processo de liberdade de culto, o país ainda estava no
imaginário de parte dos jesuítas como um lugar de onde tinham sido expulsos,
principalmente com os fatos recorrentes em Portugal.
O deslocamentos dos religiosos portugueses para o Brasil, sobretudo, os jesuítas, foi
incentivada pelo Pe. Luiz Gonzaga Cabral (1866 – 1939)2 e o irmão Gomes Pereira, que
fugiram para Madrid e avaliaram o Brasil como um das melhores possibilidades de destino.
O processo de laicização, acompanhado pelo combate as práticas católicas em alguns países,
como Portugal, França e Espanha, contribuiu com o deslocamento dos membros do clero
para várias nações do Continente americano.
Mesmo com as representações elaboradas sobre o novo local de atuação, o processo
de imigração foi marcado pelo contexto do laicismo em Portugal e a história da expulsão dos
jesuítas do Brasil ainda no século XVIII. Em carta do padre Justino M. Lombardi,
conseguimos compreender as negociações entre os religiosos e os cuidados para burlar a
vigilância dos anticlericais no momento do desembarque no país. No documento,
demonstrou-se que:

[…] Já escrevi ao R. P. Geral e ao P. Provincial desse Provincia convidando-os a


enviar para cá os padres Irmãos de Portugal em caso de expulsão de por acaso a
carta não tivesse chegado ás mãos do dito padre N.R. pode repetir o convite em
nome de todos os padres do Brazil. Única precaução necessária para evitar
perseguições aqui na chegada é de virem em pequenos grupos vestidos como
padres seculares ou disfarçados. Seria melhor que viessem alguns antes da
expulsão oficial se por acaso se tivesse de realisar. Não desesperemos ainda da boa
solução. O Governo aqui nos protege: só a imprensa maçônica nos ataca
violentamente; mas até agora foi batida […] Não obstante o que se escreve contra
nós nos jornais maçônicos o numero dos alunos cresce cada dia mais. Ontem
recebi o pedido para um menino do General Glicerio chefe da revolução em 1889
– e um dos maiores inimigos (Carta do Padre Justino M. Lombardi a…, 1910).

A proibição da entrada de membros da Companhia de Jesus era uma reivindicação de


vários grupos no Brasil, sobretudo, os maçons, que se inspiravam em ações de controle dos

1
No momento da expulsão dos membros da Companhia de Jesus de Portugal, a província contava com 360
membros, com a responsabilidade de ensino para mais de 4000 alunos em Portugal, Índia, África Oriental,
Macau e Timor (SOUSA; CAVALCANTE, 2016, p. 12).
2
Jesuíta Português que chegou a Salvador (BA) em 1917. Na região, dedicou-se a ampliação da educação
católica, com ações no Colégio Antônio Vieira, com as disciplinas de língua e literatura portuguesa e latina,
filosofia e apologética. Entre os anos de 1930 e 1933 ocupou o cargo de diretor da instituição, com trabalhos
que ampliaram as atividades do colégio.

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religiosos instauradas em Portugal desde o início da República. O Jornal do Commercio do


Rio de Janeiro publicou diversos protestos de membros das Lojas Maçônicas sobre a
questão, como a apresentada em 04 de novembro de 1910 ao Presidente da República Nilo
Peçanha (1909 – 1910), que enfatizava que a loja maçônica “[…] Igualdade Florianense […]
protestou contra entrada nosso paiz jesuítas expulsos de Portugal. Igualdade, que tem como
principal dever pugnar sempre favor interesses humanidade, considerou séria essa invasão,
verdadeiro flagelo para toda comunhão brasileira”. (Jornal do Commercio, 1910, p. 04).
Mesmo com as diversas manobras dos opositores, sobretudo os positivistas, os
republicanos e os maçons, os eclesiásticos portugueses receberam autorização para
desembarcar no Brasil, após a intervenção direta dos membros da Câmara dos Deputados, o
jurista Cândido Mendes de Almeida Filho (1866 – 1939)3 e alguns integrantes da polícia que
foram solidários à causa. No entanto, um grupo de religiosos mais receosos seguiu viagem
para Buenos Aires, a fim de evitar novos problemas com o poder civil (AZEVEDO, 1914, p.
234 – 235, 240 – 241, 247).
De acordo com o Pe. Luiz Gonzaga Cabral, entre os meses de outubro de 1910 e
setembro de 1911, foram registrados o desembarque de 85 jesuítas da Província Portuguesa.
Entre os exilados estavam especialistas em diversas áreas do conhecimento, como
naturalistas, biólogos e educadores. Parte da produção destes eclesiásticos foi registrada na
revista Brotéria4, principal periódico de divulgação cultural e científica da Companhia de
Jesus (SOUSA; CAVALCANTE, 2016, p. 13).
As primeiras instalações que receberam os jesuítas lusitanos foram os Colégios de
Nova Friburgo (Rio de Janeiro), o Ginásio Santo Inácio (Rio de Janeiro) e o Colégio São
Luís em Itú (São Paulo), coordenados pela província romana da Companhia de Jesus
(Azevedo, 1914, p. 249). No lugar, os portugueses iniciaram as suas atividades pastorais e os
contatos para se fixarem nas diversas dioceses do país. Assim, podemos afirmar que os
trabalhos da Província Dispersa no Brasil, sobretudo na área da educação, também se
originaram dos religiosos que mantiveram estada nestas instituições.

3
Cândido Mendes de Almeida Filho (1866 – 1939) foi jurista, professor da Faculdade de Direito da
Universidade do Brasil e representante político. Dividiu os seus primeiros estudos entre o Colégio Pedro II, no
Rio de Janeiro, e o Colégio São Luís Gonzaga, na cidade de Itú em São Paulo. Foi condecorado com o título
nobiliárquico de Conde Mendes de Almeida em homenagem ao seu pai, que defendeu o bipo Dom Vital de
Oliveira durante a Questão Religiosa em 1874.
4
Devido à política laicista implementada nos primeiros anos da República Portuguesa, parte da produção
destes religiosos foi perdida no momento de expulsão das ordens eclesiásticas do país. Sobre a revista Brotéria.
(RICO; FRANCO, 2003).

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Com a chegada dos jesuítas no país, alguns bispos aproveitaram a ocasião para
fortalecer o seu clero, uma vez que faltavam padres com especialização em estudos
filosóficos, teológicos e experiência aprofundada em especificidades da administração
eclesiástica. Nos primeiros anos da década de 1910, o padre geral da Companhia de Jesus,
Franz Xavier Wernz (1842 – 1914), recebeu vários pedidos para que enviasse religiosos para
trabalhar nas dioceses do Brasil, colaborando em certa medida, para a estruturação de um
projeto cultural no novo espaço de atuação.
No entanto, alguns eclesiásticos não aceitaram a atuação dos lusitanos de imediato.
Dom Joaquim Arcoverde (1850 – 1930) foi um dos bispos que demonstrou reservas à
“ingerência” dos estrangeiros nas questões religiosas do país (AZEVEDO, 1986, p. 08). O
problema precisou da interferência da Cúria romana, que em carta do Cardeal De Lai aos
líderes da hierarquia católica no Brasil, foram apresentados os problemas políticos em
Portugal e a importância de receberem os “irmãos” para que pudessem superar o difícil
momento vivenciado naquele país (Sacra Congregazione Concistoriale, 1921).
Parte da reação dos religiosos aos imigrantes foi incentivada pelo movimento
nacionalista estruturado entre os membros da hierarquia da Igreja Católica e a carta pastoral
de Dom Sebastião Leme (1882 – 1942), publicada ao assumir a Arquidiocese de Olinda em
1916. O texto do bispo contribuiu com a organização de ideias que valorizavam o
sentimento patriótico, com a gestação de uma lusofobia de caráter político, social e cultural
(MENDES, 2010, p. 162 – 163).
Na mesma medida em que a Carta Pastoral Saudando a sua Archidiocese
apresentou a necessidade da formação de um movimento nacionalista, o documento também
estruturou um projeto de recatolização, com a formação de uma neocristandade,
comprometida com o fortalecimento dos valores católicos na sociedade e a estruturação de
um ensino religioso para a “salvação da pátria”. Tais aspectos foram fundamentais para a
organização dos projetos educacionais dos jesuítas no Brasil, uma vez que parte da atuação
dos membros da ordem teve como base as diversas formas de ensino.
No documento, o bispo destacou a necessidade da organização de ações
comprometidas com os projetos da cúria romana. Em seus escritos, enfatizou que:

[…] ao catholico não póde ser indiferrente que a sua pátria seja ou não alliada de
Jesus Cristo. Seria trair Jesus; seria trair a patria! Eis por que, com todas as
energias de nossa alma de catholicos e brasileiros, urge rompamos com o marasmo
atrophiante com que nos habituamos a ser uma maioria nominal, esquecida dos
seus deveres, sem consciencia dos seus direitos. É grande o mal, urgente é a cura.
Tental-o – é obra de fé e acto de patriotismo. (LEME, 1916, p. 08).

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As ações em torno de um catolicismo militante não estiveram resumidas ao espaço


de atuação de Dom Sebastião Leme. Mesmo com uma inicial ressalva ao trabalho dos
lusitanos no Brasil, as suas ações colaboraram para a coordenação das consciências dos
católicos e da politização do clero em um momento fundamental da relação entre o político e
o religioso.
Apesar das dificuldades aqui apresentadas, os inacianos continuaram com um projeto
cultural em seu novo espaço de atuação. Uma das primeiras ações desempenhadas pelos
exilados da Companhia de Jesus foi iniciada em março de 1911, com a fundação do Colégio
Antônio Vieira em Salvador. A instituição fazia parte das ações educacionais do bispo Dom
Jerônimo Tomé da Silva (1849 – 1924), que ofereceu residência aos religiosos em Santo
Antônio da Barra. O estabelecimento de ensino foi o ponto de partida para outros
empreendimentos dos jesuítas no Norte brasileiro5, com uma efetiva colaboração com os
religiosos Maristas e Salesianos, ordens com projetos já estabelecidos na região
(MONTEIRO, 2011, p. 72; CASALI, 1995).
Os relatos do Pe. Luiz Gonzaga Cabral, que tiveram como base as contribuições dos
membros da Companhia de Jesus para a formação sociocultural do Brasil, são fundamentais
para compreendermos alguns objetivos dos integrantes da ordem no país. Para o eclesiástico,
“A civilização, no seu mistér pedagógico não comprehende somente o ensino, senão
também – e mais ainda – o que em rigor merece o nome de educação. Pelo ensino forma-se
a inteligência; pela educação propriamente dicta forma-se o carácter” (CABRAL, 1925, p.
176). Além das contribuições para a formação intelectual dos brasileiros, a atuação dos
jesuítas também se apresentava como proposta civilizadora e de condução da sociedade nos
“retos caminhos” (SOUSA. In. SOUSA; CAVALCANTE, 2016, p. 169).
Inspirado em um instituto civilizador, a partir das ações educacionais, ainda na
Bahia, por recomendações do monsenhor Luís Pinto Bastos, as atividades dos jesuítas se
estenderam para a região de Caetité, tornando-se uma das principais ligações para as missões
que se destinavam ao Sertão (FOULQUIER, 1940). Os membros da Companhia de Jesus
chegaram à região em 1912, com o objetivo de combater as atividades da Escola Americana,
fundada pelo presbiteriano John Henryz Mac-Cauly, que contava com o apoio financeiro de
políticos da localidade. Com a intensão de promover uma educação católica, no mesmo ano

5
Utilizamos o termo Norte brasileiro, pois o conceito de Nordeste foi elaborado a partir dos anos de 1940, com
a organização de novas divisões geográficas em décadas posteriores. A documentação do período referenda a
nossa afirmação, com a utilização de duas divisões geográficas: Norte e Sul. (ALBUQUERQUE JUNIOR,
2001)

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foi fundado o Instituto São Luís Gonzaga, que apresentou um curto tempo de atividade
devido à reorganização da Escola Normal na localidade (MONTEIRO, 2011, p. 73).
A interiorização das atividades dos jesuítas na Bahia atendeu a uma demanda
política, sobretudo, de afirmação da educação católica frente ao ensino protestante ou laico
(AZEVEDO, 1986). É importante enfatizar que após um ano de atividades dos jesuítas em
Caetité, a região passou a sediar uma nova diocese, com a reconfiguração das divisões
eclesiásticas na Bahia (MATOS, 2016, p. 256). A ereção do bispado, publicada em 20 de
outubro de 1913, a partir da bula Majus animarum bonum do Papa Pio X, não fez referência
ao trabalho dos jesuítas, que se mantiveram a frente de questões educacionais na região até
1925, mas não podemos desconsiderar a validade do trabalho dos religiosos para o processo
de fortalecimento e independência do espaço eclesiástico.
Além das atividades educacionais iniciadas nas instituições que recepcionaram os
jesuítas exilados e os projetos desenvolvidos na Bahia, os membros da Companhia de Jesus
estruturaram ações em São Leopoldo, São Paulo, Rio de Janeiro, São Luís, Belém,
Fortaleza, Aracati, Baturité, dentre outras cidades. Na Região Norte do país, as atividades
em Salvador e no Recife apresentaram o maior destaque para os projetos da Igreja romana,
resultado da localização geográfica, que também era beneficiada por um sistema de
transporte e comunicação que facilitava a organização de projetos direcionados à educação,
a política e a formação de uma neocristandade.
Na capital pernambucana, as ações dos membros da Província Portuguesa Dispersa
foi acompanhando pela implementação da devoção a Nossa Senhora de Fátima. O Pe. José
Aparício da Silva (1879 – 1966), jesuíta exilado e um dos confessores da Irmã Lúcia de
Jesus (1907 – 2005)6, foi o primeiro promulgador das mensagens da “Senhora do Rosário”7
fora de Portugal e encontrou no Recife o principal ponto de implementação e divulgação da
prática para outras localidades (CUNHA, 1953).
Deve-se enfatizar que a estruturação do culto a Fátima também foi acompanhada pela
organização de um espaço educacional. As propostas de uma nova devoção no país, assim
como, a organização de um projeto pedagógico, demonstram que a missão dos jesuítas
portugueses se apresentou de forma ampla, com ações em diversas frentes que colaboraram
com os projetos internacionais de reafirmação política e social da Cúria romana.

6
Junto com Francisco e Jacinta Marto, Lúcia de Jesus foi uma das três crianças que protagonizaram os eventos
em torno das aparições de Nossa Senhora de Fátima entre os meses de maio e outubro de 1917 em Portugal.
(MOURA, 2015).
7
Nas memórias das aparições marianas a partir de maio de 1917, a irmã Lúcia de Jesus destacou que em 13 de
outubro de 1917 a revelação se autodenominou a “Senhora do Rosário”.

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Os primeiros exilados portugueses da Companhia de Jesus chegaram a capital


pernambucana a partir de um convite do Bispo de Olinda, Dom Luís Raimundo da Silva
(1840 – 1915), com a intensão de organizar uma instituição escolar. No entanto, ao
chegarem a cidade, perceberam que o trabalho se destinava a colaborar com a administração
do Colégio Diocesano, o que não se configurava como interesse principal dos integrantes da
ordem (MONTEIRO, 2011, p. 73). As atividades só tomaram forma com as ações
direcionadas a um projeto educacional independente, com uma proposta cultural voltada
para o ensino, a organização política e o fortalecimento do culto mariano, ideias que foram
pensadas durante o bispado de Dom Sebastião Leme (1916 – 1921).
Os trabalhos que estabeleceram as afinidades entre as ações educacionais e o culto
mariano na cidade do Recife apresentaram legitimidade às ações dos eclesiásticos lusitanos,
seja a partir da estruturação de um projeto com base na educação, um dos principais pilares
para o processo de recatolização, ou na organização de uma nova devoção em terras
brasileiras. É importante destacar que as atividades educacionais e o culto a Fátima foram
estruturados de forma paralela, configurando-se em uma missão cultural do grupo em nova
área de atuação.
Mesmo que a Carta Pastoral Saudando a sua Archidiocese tenha se configurado em
um documento que contribuiu com a reação de alguns eclesiásticos à atuação dos jesuítas
exilados, Dom Sebastião Leme foi o principal articulador dos projetos da ordem na região.
Nas questões educacionais, o eclesiástico não se limitou à implantação de uma instituição de
ensino básico ou o trabalho com jovens em idade escolar, mas intencionava organizar ações
para os diversos níveis da formação dos “seus fieis”.
Os objetivos do bispo já tinham sido apresentados na carta pastoral de 1916, quando
o eclesiástico enfatizou a necessidade da construção de um amplo projeto educacional, com
base nos valores católicos e com diálogo com as propostas de recatolização. No documento,
o bispo de Olinda destacou que:

Foi com alvoroço que Nos chegou ao conhecimento a resolução tomada pelos
Senhores Arcebispos e Bispos das províncias Ecclesiasticas Septentrionaes do
Brasil, quando reunidos na Bahia sob a presidência do venerado e preclaro Senhor
Arcebispo Primaz, accordaram em fundar na cidade de Recife uma Universidade
Catholica. Superfluo julgamos dizer que, da Nossa parte, envidaremos todo
esforço para secundar o voto e proposito dos Nossos Veneraveis Irmãos no
Episcopado. (LEME, 1916, pp. 102 - 103).

A decisão de se organizar uma instituição de ensino superior católica na cidade do


Recife demonstra a importância do trabalho eclesiástico na região. Os projetos
desenvolvimentos por Dom Leme, as afinidades com forças políticas da localidade, os

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trabalhos das ordens religiosas, além de fatores como localização, demanda acadêmica e
diálogos com setores do clero, colaboraram para a estruturação da instituição na capital
pernambucana em detrimento a outras regiões.
Mesmo que as ações educacionais da primeira metade do século XX tenham se
configurado como parte de um projeto internacional amplo, as suas propostas foram
fundamentais para a formação de uma neocristandade comprometida com os valores
católicos. Com a organização de uma instituição de ensino superior, a hierarquia da Igreja
romana colaborava a formação de homens e mulheres em todos os níveis de ensino, com
discussões religiosas desde a educação básica, o ensino das profissões e a formação na
educação universitária.
Para colaborar com as ações desempenhadas na região eclesiástica de Olinda e
Recife, em 1917 chegaram à capital pernambucana treze jesuítas, divididos entre seis padres,
seis irmãos e um escolástico. Com o apoio do bispo, os religiosos adquiriram um espaço
para o início das suas atividades devocionais, educacionais e culturais, com a inauguração
do Colégio Manuel da Nóbrega em 19 de março de 1917, localizado no Palácio da Soledade,
residência oficial do bispado (AZEVEDO, 1986, p. 115 – 117)8.
A instituição seguiu o modelo já aplicado pelos religiosos em outras cidades, com
uma educação católica, de formação moral de jovens meninos e a colaboração com as
atividades de recatolização da sociedade (SOUSA, 2013). Em conjunto com a construção de
um espaço escolar, os jesuítas deram início à edificação a um templo dedicado a Nossa
Senhora de Fátima. Deve-se lembrar que esta devoção foi uma das principais propostas de
reconfiguração do catolicismo nas primeiras décadas do século XX no mundo luso-
brasileiro, sobretudo, durante a reafirmação católica após uma política laicista em Portugal.
Ainda que as ideias de construção de um templo dedicado à “Senhora do Rosário”
tenham sido pensadas durante o bispado de Dom Sebastião Leme, foi na gestão de Dom
Miguel de Lima Valverde (1922 – 1951) que as atividades foram efetivamente executadas.
O Pe. Joseph Foulquier ficou à frente do projeto inicial, mas devido a problemas de saúde,
cedeu lugar ao Pe. Domingos Gomes (AZEVEDO, 1986, p. 122).
A construção do templo foi significativa para os jesuítas da Província Portuguesa
Dispersa. Desde 1917, Fátima era referência no combate ao anticlericalismo, à cultura
laicista e tinha se constituído como o principal símbolo do processo de recatolização da

8
Com o desenvolvimento das atividades do Colégio Manuel da Nóbrega e o aumento da demanda por
religiosos, parte dos eclesiásticos que encerraram os trabalhos na região de Caetité transferiram as suas ações
para a cidade do Recife a partir de 1925.

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sociedade em Portugal. Após o reconhecimento do culto pelo bispo de Leiria em 1930, Dom
José Alves Correia da Silva (1872 – 1957), e o posicionamento político das mensagens que
lhe foram atribuídas, várias outras localidades passaram a organizar homenagens que
contribuíram para a internacionalização do culto mariano iniciado em Portugal (AZEVEDO;
CRISTINO, 2007, p. 158 164).
Os projetos para a construção de um templo dedicado à Fátima na cidade do Recife
tiveram início antes do reconhecimento oficial do culto pela Igreja Católica em Portugal.
Desde 1928, o jesuíta Pe. Manuel Rufino Negreiros foi o principal incentivador da execução
de uma obra em homenagem às aparições marianas na capital pernambucana. Com a ajuda
financeira da comunidade portuguesa, os trabalhos tiveram início em 15 de outubro de 1933,
com a inauguração em 08 de setembro de 19359. A igreja foi erguida no terreno onde
também se localizava o Colégio Manuel da Nóbrega, tornando-se um dos principais locais
de circulação dos intelectuais católicos da cidade (Boletim Mensal da Archidiocese de
Olinda e Recife, 1935; AZEVEDO, 1986, p. 125).
As atividades do Colégio Manuel da Nóbrega, assim como, das outras instituições de
ensino secundário fundadas pelos jesuítas na Região Norte do país, tinha como público alvo
os grupos pertencentes à elite econômica local. Com um programa voltado para a formação
intelectual dos alunos, os seus egressos tinham como principal destino as Faculdades de
Direito, Medicina ou Engenharia, formação acadêmica que representava um status para os
discursos de modernização e organização jurídica do país (SILVA, 2015, p. 14)10.
Deve-se compreender está instituição de ensino como um espaço de formação das
propostas direcionadas as ideias da recristianização. As ações dos membros da Companhia
de Jesus, com um projeto de ensino católico, de defesa de uma moral social e política, foram
fundamentais para a validade das atividades educacionais das ordens religiosas, que foram
refletidas nos números dos seus matriculados nos primeiros anos de atividades.

9
Efetivamente, a obra foi executada nos cinco últimos meses, uma vez que após o lançamento da pedra
fundamental, os jesuítas enfrentaram problemas para a arrecadação das verbas destinadas à construção do
templo. Parte da historiografia que relata a importância da igreja dedicada à Fátima na cidade do Recife, como
os livros do Pe. Ferdinand Azevedo, destacou que o templo foi o primeiro construído no mundo, mesmo antes
do erguido em Portugal. No entanto, a instituição no Recife foi a primeira igreja de grandes proporções, pois
entre 28 de abril a 15 de julho de 1919 foi construída a Capelinha em Fátima. A atual Basílica do Rosário
começou a ser erguida em 1928, tendo sido consagrada em 07 de outubro de 1953. (FERNANDES, 1944, pp.
106 – 107).
10
Ao analisar os debates sobre a constituição do ensino superior católico em Pernambuco, a partir da
Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras Manuel da Nóbrega, fundada em 1943, o historiador Newton Cabral
apresentou as mudanças no enfoque educacional do Colégio Nóbrega como acesso a nova instituição
educacional. Para o autor, a Faculdade Manuel da Nóbrega era considerada a “continuação do apostolado
educacional para alunos do Colégio Nóbrega” e o “coroamento do projeto de recatolização” (CABRAL, 2009).

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Deve-se enfatizar que a instituição coordenada pelos membros da Companhia de


Jesus colaborou com um amplo projeto de ensino de meninos e meninas no Recife, com a
organização de escolas confessionais na primeira metade do século XX, a exemplo do
Colégio São José das Irmãs Dorotéias, o Colégio Nossa Senhora do Carmo e o Colégio das
Filhas de Maria Auxiliadora, na área central da cidade, ou os Colégios dos Maristas e o
Colégio Imaculado Conceição em regiões mais afastadas do centro. Outras instituições
foram fortalecidas, como o Colégio Salesiano de Artes e Ofícios do Sagrado Coração, que
desenvolvia as suas funções desde 1895.
O trabalho da Companhia de Jesus na Região Norte do Brasil contribuiu com a
expansão da missão desenvolvida pelos representantes da ordem em diversos países. Neste
sentido, as atividades dos eclesiásticos foram fundamentais para o fortalecimento das
propostas católicas e dos projetos em torno do movimento de recatolização da sociedade e
das instituições. As ações organizadas pelos inacianos foram fundamentais para o
intercâmbio cultural em parte do mundo luso-brasileiros, contribuindo com o trabalho
desenvolvido pela Província Portuguesa Dispersa no país.

Fontes:

Archivio Segreto Vaticano (Ciudad del Vaticano) [ASV]. Nunziatura Apostolica del Brasile
(1921 – 1925). Sacra Congregazione Concistoriale. Roma, 6 ouc. 1921. Busta 171,
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religiosos da Companhia de Jesus na revolução de Portugal de 1910. Bruxellas:
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História, Curso de Pós-graduação em História, Universidade Estadual de Campinas.
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entre a Colônia e a República. Brasília: Liber Livro, 2016.
SOUSA, C. Â. de M.; CAVALCANTE, M. J. M. (Orgs). Os Jesuítas no Brasil: entre a
Colônia e a República. Brasília: Liber Livro, 2016.

ENTRE POLÍTICA E RELIGIÃO: DISPUTAS PELA MEMÓRIA E NARRATIVAS


DE PERSEGUIÇÃO EM ABREU E LIMA
Paulo Vinícius da Silva

Universidade Federal de Pernambuco

paulosilva032@gmail.com

Este texto faz parte de uma pesquisa maior que visa compreender a formação do
município de Abreu e Lima no século XX (localizado na região norte da zona metropolitana
do grande Recife). Como demonstraremos mais a frente, o município carrega consigo uma
forte identidade com o protestantismo, mais precisamente com a igreja Assembleia de Deus
e tem uma representativa porcentagem de pessoas pertencentes a essa denominação cristão-
evangélica. Nosso objetivo com este artigo é compreender as narrativas em torno da
perseguição religiosa narrada pelos evangélicos na localidade supracitada. As hipóteses que
levantamos e defendemos aqui são: primeiro, as perseguições religiosas ocorridas na
localidade a partir do final dos anos 20 são à base de uma narrativa que faz parte da
identidade dos evangélicos de Abreu e Lima. Segundo, para além da perseguição religiosa
há também uma perseguição política, a qual geralmente é esquecida pela memória dos
evangélicos entrevistados. Utilizaremos como fontes jornais de grande circulação no Estado
de Pernambuco pesquisados no acervo da Fundação Joaquim Nabuco (Fundaj), no Arquivo
Público Estadual Jordão Emerenciano e na hemeroteca Digital da Biblioteca Nacional.
Utilizaremos também entrevistas orais feitas por nós e de outras pesquisas.

A memória como identidade

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“Todos eles caíram. Mas a Igreja permaneceu firme, prosseguindo sua marcha”
(SANTOS et al, 2008, p 44).
Construir uma narrativa que ajude a responder as questões: “de onde viemos? quem
somos? e para onde vamos?” é um grande passo para criar uma ideia de pertencimento,
fundamental para forjar o sentimento de grupo, nação ou uma identidade nacional. A
memória de um povo pode dar sustentação a essa identidade ligada a um espaço público,
pois ela dá verossimilhança e sustentação à narrativa de um passado em comum entre o
grupo. Um elemento imprescindível para uma narrativa de disputa é, sem dúvida, a
constituição de um adversário, pois este dá um sentido de ser à narrativa, sendo a sua derrota
ou a conquista de um espaço autônomo em relação a ele, a redenção. A memória, construída
posteriormente, é então responsável por dois movimentos: o de dar sustento a uma
identidade oficial ao mesmo tempo em que esconde identidades não desejadas, marginais.
Utilizamos aqui o mesmo conceito de identidade utilizado por Michel Pollack, “sentido da
imagem de si, para si e para os outros” (POLLACK, 1992). Esse fenômeno pode ser
interpretado a partir do filósofo Walter Benjamin, para o qual “nunca houve um documento
da cultura que não fosse simultaneamente um documento da barbárie”. (BENJAMIN, 2012).
Nas palavras da historiadora Márcia Motta:
“(...) A memória exerce um poder incomensurável na construção de uma
identidade de grupo, consagrando os elementos pelos quais os indivíduos se veem
como pertencentes a determinado coletivo, muitas vezes em detrimento de outrem.
A força dessa memória aglutinadora é realimentada, reforçada, reinventada
constantemente”. (MOTTA, 2012).
A frase que escolhemos para iniciar essa parte do texto faz parte da conclusão de um
dos capítulos do livro escrito por pastores da Assembleia de Deus convenção Abreu e Lima
em comemoração aos oitenta anos da fundação da primeira igreja no então distrito de
Paulista, local chamado à época de Maricota. Na obra os autores constroem uma narrativa a
partir da ótica dos fiéis. Sendo assim predomina o olhar confessional cujo texto foca nas
dificuldades encontradas pelos primeiros pastores desta igreja e pessoas convertidas ao
protestantismo no então distrito de Paulista, tais como dificuldades para organizar os
primeiros cultos e, sobretudo a perseguição religiosa na cidade do Paulista pela família
Lundgren, discussão a qual aprofundaremos mais a diante. A partir do capítulo seguinte ao
que conclui com a frase que escolhemos para iniciar essa parte do texto notamos claramente
o lugar de memória que a igreja advoga para si: o de vencedora dos conflitos político-
religiosos enfrentados em Paulista.

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As razões para haver a identificação do dito município como “cidade dos evangélicos”
não se justificam apenas por questões quantitativas de fiéis, pois o censo do IBGE de 2010
demonstra que o número de católicos e evangélicos em Abreu e Lima é praticamente o
mesmo1. Todavia atualmente o município de Abreu e Lima carrega fortemente consigo essa
identidade2. Para facilitar o entendimento, podemos trazer o conceito de identidade utilizado
por Castells, “a fonte de significado e experiência de um povo” (Castells, 2001, p. 22).
Embora Castells nos alerte que um espaço é formado por uma multiplicidade de culturas e
não por uma cultura apenas, compreendemos que a atual cidade carrega consigo o que aqui
vamos chamar de identidade evangélica por haver vários espaços públicos e privados que
fazem referência ao protestantismo. Podemos citar o comercio local, uma escultura em
homenagem a Pastor Isaac Martins3. Destaca-se entre esses locais a igreja sede da
Assembleia de Deus convenção Abreu e Lima, por seu tamanho, localização e arquitetura.
Além dos cultos periódicos a igreja sede realiza anualmente congressos e comemorações que
trazem fiéis de várias partes do Estado e do país. Esses espaços funcionam como o que
Michael Pollack chamou de lugares da memória (Pollack, 1992, p. 202). Como explica
Motta, “os lugares de memória têm um claro conteúdo pedagógico ao imprimirem, ou
buscarem imprimir, uma continuidade temporal com o passado, a partir dos valores do
presente” (Motta, 2012, p. 27).
Contudo essa identidade – essas identidades, como demonstraremos – precisa ser
historicizada. É necessário compreender os elementos que contribuem para sua construção.
Com base na documentação escrita e oral até o início da década de 1980, o distrito de Abreu
e Lima era lembrado nos jornais de grande circulação por seus cabarés, sendo essa a grande
identificação atribuída à localidade. A partir de 1983, ano que a elevação do distrito a
município, há por parte do poder público municipal aliado a pastores da assembleia de Deus
um movimento para fechar os cabarés sob o argumento de que eles atribuíam para uma má
fama à cidade.
“Quando Abreu e Lima se emancipou em 82 que a gente assumiu a câmara, e o
prefeito de Abreu e Lima Jerônimo Gadelha assumiu, se foi feito um levantamento
em Abreu e Lima, e AL tinha 142 cabarés, quase todas as ruas, quase todos os
bairros tinha um cabaré, então...é... uma das coisas mais gritantes que a gente
achava era isso né, ninguém sabia quem era a senhora casa, a prostituta, a moça e

1
< http://cod.ibge.gov.br/2WBVN> Acesso em novembro de 2017
2
<https://noticias.gospelmais.com.br/cidade-pernambucana-e-conhecida-como-cidade-dos-evangelicos.html>
Acesso em novembro de 2017
3
Um conhecido personagem religioso da cidade, um pastor evangélico conhecido entre a população local por
sua atuação religiosa, educacional, política e por trabalhos sociais.

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as prostitutas, se misturavam nas ruas né...então os vereadores se reuniram né, e


tiveram a Ideia de se fazer um requerimento para o prefeito de Abreu e Lima
fechar os cabarés”. (SILVA, 2017).
Embora os jornais impressos das décadas de 1970 e 1980 foquem no incômodo que
esses espaços causavam à população local, o atual secretário de cultura do município,
Reginaldo Silva narra que os bacarés também funcionavam como espaços de socialização,
discussões políticas e de cultura. “Dentro dos cabarés era um lugar que se fazia cultura
também, e política, e se divertia e brincava”. Há uma relação entre a emancipação do
município e o forjamento de uma nova identidade para ele, o de cidade dos evangélicos.
Outro fator que contribui para a construção dessa identidade é sem dúvidas a
aproximação existente entre o poder público e a igreja Assembleia de Deus, sobretudo a
partir do pós-emancipação. Sendo assim é fundamental compreender a formação desta
Igreja. Demonstraremos como os evangélicos, em Abreu e Lima, ajudam a formar no então
distrito identidades marginais em relação à cidade do Paulista. Identidades próprias que se
contrapunham as do município. Esse sentimento de não-pertencimento aliados a uma série
de fatores políticos seriam fundamentais para a emancipação do município.

Uma Igreja como identidade

Segundo a narrativa da igreja Assembleia de Deus convenção Abreu e Lima, é em


1927 que os primeiros missionários desta igreja chegam a uma localidade então chamada de
Maricota - que a partir de 1948 passa a se chamar Abreu e Lima -. Se hoje o município é
conhecido entre os evangélicos como uma das cidades mais evangélicas do país por 35% de
sua população declarar-se pertencente a essa vertente do cristianismo, a memória de parte da
população evangélica local é composta por narrativas de perseguições a cultos religiosos, a
mando da família Lundgren. De origem sueca, essa família chega ao Brasil no final do
século XIX e funda uma das maiores empresas do setor têxtil do país da primeira metade do
século XX, a Companhia de Tecidos Paulista (CTP). A cidade do Paulista – que se forma a
partir da emancipação frente ao município de Olinda, em 1935 – foi um importante polo
industrial do setor têxtil brasileiro do século XX por conter muitas empresas do setor entre
as quais se destacava a CTP. Segundo Sérgio Leite Lopes é a partir dessa pujante indústria
que se constrói a cidade do Paulista, pois a empresa era proprietária e administradora de uma
vila operária contendo 6.000 casas, possuindo assim para além de seu poder econômico,
poderes territoriais e político-administrativos.

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É facilmente notado na memória local de muitos evangélicos, relatos de que seus pais
ou avós sofreram perseguição religiosa em Paulista. Como podemos ver no depoimento oral
abaixo de uma antiga evangélica da cidade, conhecida como Irmã Dinah Vieira:

“Não é da minha lembrança, pois eu era apenas uma criança mas minha mãe me
contava que correra comigo nos braços (por mais de uma vez), sendo perseguida
juntamente com outros irmãos, pelos capangas enviados pelos ‘coronéis’ da
Companhia (CTP). Chegavam de surpresa, armados com bacamartes e acabavam
com os cultos.”4 (Entrevista oral de Irmã Dinah Vieira da Silva, membro antiga
evangélica da Assembleia de Deus de Abreu e Lima)”.

Lopes em sua tese defende que a intolerância religiosa exercida na CTP faz parte do
que ele chama de “teatralização da dominação”. Esse conceito é explicado por uma série de
práticas existentes desde o aliciamento de trabalhadores no interior do Estado para trabalhar
na fábrica com promessas fantasiosas, passando pela vistoria e possível aprovação dos
possíveis trabalhadores da empresa - ritual este geralmente executado por Frederico
Lundgren – e que permanecia após a admissão dos empregados.

“Ao lado do estímulo às associações religiosas dirigidas aos seus operários, a CTP
exercitava sua intolerância no interior mesmo do campo religioso local, como mais
uma demonstração, para os operários, da dimensão do poder de sua forma
específica de dominação.

Assim, as práticas de intolerância da direção da companhia em relação aos crentes


são vistas retrospectivamente pelos operários mais antigos como constituindo mais
um ato dessa “teatralização da dominação” encenada pelo patrão em carne e osso,
enfatizando as idiossincrasias do poder absoluto sobre todas as esferas da vida de
seus trabalhadores, inclusive a religiosa” 5.

Lopes demonstra que os crentes – expressão utilizada à época para se referir aos
evangélicos – eram tolerados na CTP “desde que não exercessem publicamente os cultos em
seu território ou que este exercício nos povoados próximos não ultrapassasse os seus limites
de (in) tolerância ou os da Igreja local6”. Seguindo linha de raciocínio mais abrangente, o
atual secretário de cultura da cidade de Abreu e Lima Reginaldo Silva narra que a família
Lundgren não aceitava que manifestações populares ocorressem na cidade do Paulista e não
apenas cultos evangélicos.

4 SANTOS, Roberto José dos; et. Al. Assembleia de Deus em Abreu e Lima – 80 anos: síntese histórica. Gráfica Flamar, Recife. 2008. P. 41.
5
LOPES, José Sérgio Leite. A tecelagem dos conflitos de classe na “cidade das chaminés”. Editora
Universidade de Brasília, Brasília. 1988. P. 177.
6
Op. cit.

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“(...) a filosofia dos Lundgreen era não permitir nenhuma manifestação cultural do
povo lá em Paulista e mandava fazer em Abreu e Lima. Na época ainda Maricota,
na época se chamava Maricota, caboclinho, mandava se fazer em Maricota,
pastoril, jogava pra Maricota, qualquer manifestação cultural do povo lá em
Paulista ai mandava fazer em Maricota, até o carnaval de rua era proibido em
Paulista, era permitido somente nos clubes”.

As explicações de Lopes e Silva para a perseguição aos evangélicos na CTP nos


ajudam a entender a narrativa construída pela Igreja Assembleia de Deus de Abreu e Lima
em seu livro a cerca dos problemas enfrentados nos primeiros anos após sua chegada ao
distrito. Segundo seus autores esta igreja chega a Abreu e Lima em 1927 e no ano seguinte
passa a ter seu local fixo para a realização de cultos religiosos. Este local foi à residência da
primeira pessoa convertida pelos missionários da igreja na localidade, uma senhora chamada
Maria do Carmo. Lopes reproduz em seu livro uma entrevista de um trabalhador, cuja
ocupação é identificada como ex-banqueiro, acerca da relação entre os Lundgren com a
religião e os evangélicos. O entrevistado narra à existência de um incêndio em casas de
evangélicos e despejos por motivações religiosas. Em 1928 um incêndio – que os autores do
livro da igreja sugerem não ter sido um acidente – leva a uma mudança do local de cultos
para um local chamado Canoa, em Paulista. Os autores desta obra defendem que a partir da
mudança do local de realização dos cultos que se iniciam as perseguições religiosas. A
narrativa sustenta a afirmação de que os Lundgren permitiam a realização de cultos não
católicos desde que realizados em locais não próximos ao centro da cidade.

Por essa razão, na década de 1930 os evangélicos mudaram constantemente os locais


de realização dos cultos. Uma matéria de dezembro de 1934 do jornal Homem Livre
assinada por Adalto Pontes denuncia “as perseguições (...) movidas contra os protestantes
em Paulista”, local classificado por ele como “feudo dos senhores Lundgren”. A matéria foi
escrita com base nos relatos do pastor da Igreja Batista, Rodolfo Alves.

(...) – O vigário de Paulista exigiu dos srs. Lundgren, em nome dos princípios
católicos, a expulsão de todos os protestantes e o fechamento das respectivas
igrejas

A expulsão não se verificou senão duma pequena quantidade, de vez que os 400 ou
500 protestantes daquela localidade são todos ou quase todos operários da fábrica

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que ali existe, o que motivaria uma paralisação parcial da referida fábrica, porém
foram impedidos de se reunirem para fins religiosos 7.

O texto aponta para uma aproximação existente entre o padre da paróquia de Paulista e
a família Lundgren, posto que o pároco solicita a saída dos evangélicos de Paulista. Contudo
muitos dos evangélicos eram trabalhadores da CTP. Sendo assim, os interesses empresariais
foram postos acima das alianças religiosas e apenas alguns evangélicos foram expulsos de
suas casas, os que não tinham vínculo empregatício com a empresa. Essa narrativa de
aliança entre os Lundgren e o vigário de Paulista também consta no livro escrito pela
Assembleia de Deus. Ou seja, parece haver concordância entre os autores de haver uma
estreita relação entre o padre da cidade e os Lundgren. Contudo essa relação carece de ser
mais bem compreendida.

Ou seja, os evangélicos em Abreu e Lima tiveram significativa parcela de contribuição


para a formação de uma identidade que se contrapôs a de Paulista. Durante o século XX este
será o espaço encontrado por evangélicos para praticar seus cultos. Mas há outros grupos
que também se utilizam desse espaço, tais como partidos e sindicatos de esquerda.
Curiosamente nas entrevistas feitas com evangélicos, a utilização desse espaço por essas
organizações políticas geralmente não é mencionada.

1.1 Catolicismo, protestantismo e a organização sindical

A organização de sindicatos e de partidos de esquerda em Paulista e Maricota entre as


décadas de 1950 e 1960 nos ajuda a compreender a relação da família Lundgren e da CTP
com as diversas formas de religiosidade. Lopes explica que entre as décadas de 1930 e 1940
a CTP incentivava a organização da Juventude Operária Católica (JOC) e da Liga Operária
Católica, pois essas organizações religiosas ajudavam a companhia no apaziguamento de
possíveis tensões sociais e ajudavam a CTP no objetivo de formar nos operários e operárias
uma disciplina fabril. Ou seja, a JOC em suas reuniões desenvolvia atividades que
interessavam a Companhia. Em troca a empresa eventualmente liberava alguns de seus
trabalhadores para eventos da JOC como piqueniques, passeios, retiros. A partir do final da
década de 1940 e nos anos 1950 há, segundo o autor, uma politização da atividade religiosa
que pode ser verificada na atividade sindical e participação em greves de pessoas que
compunham a JOC e a Liga Operária Católica. Nesse período há um distanciamento e

7
Ibid. p. 178

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consequente retirada do apoio organizacional dado pela CTP a essas organizações católicas.
Contudo o apoio da CTP à igreja local permanece, posto que ela era da ordem do Sagrado
Coração de Jesus (SCJ), entidade próxima à Companhia.

Já a relação entre a CTP e os evangélicos pode ser compreendida a partir da


organização do Partido Comunista Brasileiro (PCB) em Maricota, pois muitos de seus
integrantes faziam parte da igreja Assembleia de Deus. No final da década de 1940 o PCB
passa a ter significativa atuação política em Paulista ganhando apoio entre os operários da
CTP e os evangélicos residentes em Maricota. Duas matérias do Jornal Folha do Povo entre
os anos de 1946 e 1948 descrevem pastores evangélicos que haviam afastados fiéis de suas
igrejas por esses terem relações com o PCB8. “Nessa Assembleia de Deus, o Pastor condena
os fieis de sua igreja filiados ao PCB” (LOPES, 1988, P 179).

Ou seja, da mesma forma que entre os católicos havia uma diferença no trato com a
Companhia entre a paróquia, gerida pela ordem do SCJ e a JOC, que passou a ser combatida
pela CTP por muitos de seus participantes aderirem ao sindicalismo, também havia uma
diferenciação entre líderes evangélicos e as pessoas que compunham a igreja. Em ambos os
casos, enquanto os líderes religiosos dialogam e se aproximam com mais facilidade do
poder, muitos religiosos parecem confrontá-lo, seja fazendo parte de sindicatos, seja com
partidos de esquerda. Em fevereiro de 1948 o vereador paulistense Brás de Luna denuncia
no Jornal Folha do Povo a invasão e interrupção de um culto evangélico em igreja Batista de
Maricota sob a alegação de se tratar de uma “reunião comunista”. Outra matéria do mesmo
período intitulada “Assaltada (pela polícia) a Igreja Batista de Maricota” sustenta a narrativa
de que o Estado era promotor de perseguição religiosa aos evangélicos.

Outro fator que contribui bastante para a construção da ideia nos Lundgren que a
organização de igrejas evangélicas deveria ser combatida é a oposição política exercida por
Antônio Torres Galvão - Pastor da Assembleia de Deus e presidente do Sindicato dos
Trabalhadores em Fiação e Tecelagem de Paulista - à família Lundgren. O sindicalista e
pastor evangélico era forte aliado político de Agamenon Magalhães, também opositor
político dos Lundgren.

“Os protestantes em Paulista têm sua importância nas diferenciações políticas


locais. O fato do mais importante presidente do sindicato re-fundado em 1942,

8
“O Pastor Evangélico de Maricota afasta os Crentes de sua Igreja” (Folha do Povo, 23/03/1946); “Na
Assembleia de Deus em Maricota Também se combate o PCB” (IDEN, 14/04/1946);

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Torres Galvão, escriturário da CTP, ser um Pastor Presbiteriano 9, não é indiferente


à sua oposição à companhia e sua aliança com Agamenon Magalhães 10.

Essa narrativa de perseguição política e religiosa ajuda a construir entre os residentes


de Maricota uma identidade local que não se vê como parte de Paulista, mas que se opõe a
ela. Como demonstramos, a partir da ótica dos Lundgren as perseguições se justificam não
apenas por razões religiosas, mas também pelo combate a organização dos trabalhadores em
sindicatos e partidos de esquerda.

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SILVA, Reginaldo. Entrevista para Flávio Alves, Abreu e Lima, 2017, transcrição.

9
A maioria das fontes classifica Agamenon Magalhães como Pastor da igreja Assembleia de Deus. José Sérgio
Leite Lopes o menciona como Pastor Presbiteriano. Para nós ainda não está claro como eram denominadas às
igrejas cristãs-não católicas locais à época.
10

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A RELAÇÃO DO POLÍTICO COM O RELIGIOSO NO REGIME SALAZARISTA E


A POLÍTICA CULTURAL EDUCATIVA COLONIAL DO IMPÉRIO PORTUGUÊS
(1930-40)

Giselda Brito Silva

(Universidade Federal Rural de Pernambuco - UFRPE)

giselda.silva@ufrpe.br

Resumo

Este trabalho tratar de questões em torno das contradições da política educativa


colonial entre os discursos nacionalistas do regime salazarista e as práticas missionárias
defendidas pela Igreja no espaço colonial. Conforme procuramos destacar, a política
educativa colonial portuguesa foi construída em franca relação com a concepção de unidade
nacional e unidade cristã nas primeiras décadas de implantação do Estado Novo, objetivando
a consolidação do chamado Império Português. Para viabilizar a concepção imperialista
portuguesa nas colônias foram estabelecidos uma série de acordos e saberes educacionais
entre o Estado e a Igreja católica que garantissem uma formação integrativa entre as colônias
e a metrópole. O projeto de integração educacional nas colônias, contudo, não passava muito

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do campo discursivo, diante da manutenção das práticas exploratórias do trabalho dos


nativos, tornando-se alvo de muitas críticas perante a comunidade internacional.

Em finais do século XIX, as questões de educar e civilizar os nativos das colônias


africanas ganhavam nova dinâmica com a independência do Brasil. Portugal passou a
reconhecer perante a comunidade internacional seu dever de promover a educação,
evangelização e a civilização dos habitantes das colônias africanas. Neste momento, são
divulgadas as primeiras ações, enfocando-se a criação de novas escolas para a instrução
primária, gratificações para os missionários que ensinassem as primeiras letras, a instrução
pública nas missões ultramarinas e outras propostas que procurassem responder à
comunidade internacional acerca dos compromissos civilizatórios portugueses com a África.
Uma das principais criticas desta comunidade era em relação à manutenção do trabalho
escravo nas colônias portuguesas.

Em resposta, o governo português enviava às colônias indivíduos e grupos que


pudessem produzir documentos que evidenciassem seus esforços numa nova política
colonial, destacando aqueles que se empenhavam na abolição do trabalho forçado em
resposta à pressão externa. Um exemplo se pode ver na obra de Sá da Bandeira, lançada em
homenagem ao “El-Rei, o Senhor D. Pedro V, cujos decretos aboliram, nas colônias
portuguesas, o estado de escravidão e o trabalho forçado dos negros” (SÁ DA BANDEIRA,
1873: 04-17) e outros esforços, que, no entanto, enfrentavam muito problemas com os
“negociantes negreiros”. No Capítulo VI da obra, Sá da Bandeira reconhece que a abolição
do trabalho escravo teria causado grave crise financeira nas colônias, mas que por outro lado
teria criado as condições para a prosperidade das colônias. Ao longo do texto, contudo, Sá
da Bandeira relata muito mais os resultados da produção de cereais e da agricultura nas
colônias e outras ações da administração colonial do que a abolição do trabalho escravo e a
implantação das novas práticas do ensino escolar, propagadas como foco de investimentos
para a prosperidade das colônias.

O tema das escolas nas colônias só aparecem no Capitulo VII, muitos dados ainda
em forma de indicação das necessidades, em meio às primeiras ações de criação de escolas
para o trabalho para “civilizar” os nativos. Para estas, contudo, ainda são indicadas a
necessidade de formação de mais professores, particularmente “mestres nativos” que uma

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vez tendo adquirido a capacidade de ler, escrever e contar, mais o sistema métrico, levariam
o conhecimento às suas comunidades.

Outros níveis escolares também são identificados como ausentes, destacando-se suas
necessidades para as questões administrativas das colônias, como as solicitações para que
“em Loanda sejam criadas as escolas liceal e seminários diocesanos para formação de
habilidades para provimento de empregos na administração da colônia”. No Lyceu, dizia Sá
da Bandeira no mesmo capítulo, “se deveria ensinar a lingua bunda ou ambunda, ou nbundu,
cujo conhecimento se deverá exigir de certos empregados que têm de tratar com os
indígenas, e também se exigira que os eclesiasticos que se destinassem ao serviço das igrejas
soubessem esta língua”. Acrescenta ainda a necessidade de outras escolas que preparassem
os nativos para outros cargos e funções coloniais e seus filhos:

No Liceu deveria haver número de lugares reservados para os filhos dos sobas e
dembos da província, bem como para os de alguns potentados independentes
limitrophes, os quais ali seriam ensinados, alimentados e vestidos à custa do
estado, e onde se demorariam mais de três anos. Para o ensino d’estes deveria
prescindir do estudo do latim, convindo organizar um curso de conhecimentos
uteis, para elles e para a colonia, e com especialidade com relação à agricultura, e
ao aproveitamento dos produtos africanos. E, para preparar mestres e mestras
nativas poderia aproveitar-se de Portugal, algums alumnos e alumnas da casa pia,
ou de outros estabelecimento de beneficencia. (SÁ DA BANDEIRA, 1873: 126)
Também em Luanda, continua identificando as necessidades escolares, deveria se
organizar uma escola de auxiliares médicos, como um curso de medicina e cirurgia, cujos
cursos deveriam ser ministrados por aqueles aptos nestes cargos já residentes nas colônias,
ofertando-lhes uma gratificação adequadas. Da mesma forma os missionários católicos
também receberiam gratificações pelo seu trabalho de formar professores nativos que
dessem continuidade aos seus trabalhos. Já para o clero nativo formado, ficava a gratificação
de terem sido “civilizados por ação cristã”, devendo em contrapartida formar novos
indivíduos nativos na mesma direção, ainda que se reconhecesse o potencial deles na missão
por conhecer a língua e os hábitos das comunidades. (SÁ DA BANDEIRA, 1873: 126)

Apesar destes relatos de investimentos das novas ações civilizatórias em finais do


XIX, a política (colonial) educativa portuguesa, contudo, chegou ao século XX ainda
bastante questionada pela comunidade internacional, principalmente pelas sociedades
missionárias estrangeiras, por membros do movimento nacionais e transnacionais, por
representantes oficiais instituições internacionais, viajantes ocasionais e cientistas sociais.
Eles negavam os discursos de investimento educativo das colônias africanas e enfocavam,
além da falta de professores e do número de missões suficientes para o número de nativos
em idade escolar, as permanências do uso do trabalho forçado que se tornavam um entrave
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aos que queriam participar de escolas. As criticas partiam de relatórios emitidos das nações
que diziam assumir a vigilância das práticas colonizadoras portuguesa, apontada pelos seus
atrasos em ultrapassar práticas escravocratas, tidas como um entrave aos novos
desenvolvimentos propostos desde a criação da Sociedade das Nações (SDN), em 1919, e as
novas políticas que deveriam combater o trabalho escravo.

Na década de 1920, houve séria pressão internacional sobre as condições de trabalho


impostas aos nativos pelo colonialismo português, resultando em um grande número de
relatórios sobre a exploração humana em Angola, Moçambique, São Tomé e Príncipe,
praticadas pelo governo imperial e pela administração colonial, que levaram o governo
português a um auto-exame imperial, e à promoção de algumas medidas e códigos do
trabalho (Código do Trabalho Indígena, de 1928), agregando algumas recomendações
internacionais para regular e reformar o trabalho nativo. (JERÓNIMO; MONTEIRO,
2014:17-26)

Apesar das denuncias, da pressão internacional e das reformas propostas, contudo, o


trabalho forçado equiparado ao trabalho escravo persistiu ao longo das décadas de 1930-50,
embrenhado à propaganda de nova política colonial educativa do Estado Novo, sob a
orientação de Oliveira Salazar, para as colônias. Conforme atestam os relatórios
internacionais, o governo português resistiu às convenções de abolir o trabalho forçado até
1956, ainda que estabelecendo diálogos mediadores com a comunidade internacional,
indicando estar implementando ações e os esforços no sentido de abolir tais práticas. De um
lado, procurava apresentar seus próprios relatórios de estudos e pesquisas no sentido de
investigações para a coibição das práticas e conhecer as realidades coloniais nas mãos dos
administradores, e do outro lado, procurava justificar e reforçar o estatuto imperial português
buscando afinar as relações com a Igreja católica. Na década de 1930, por exemplo,
Armindo Monteiro, enquanto Ministro dos Negócios Estrangeiros, elaborou vários relatórios
através dos quais expunha os esforços portugueses com o investimento de estudos sobre os
usos e costumes dos indígenas, e as formas como tentavam “trazê-los para a colaboração
voluntária e civilizatória do trabalho”, reafirmando a capacidade imperial portuguesa na
África. (JERÓNIMO; MONTEIRO, 2014:27)

Além do envio e organização de missões de estudos antropológicos, etnográficos,


geográficos e outros das comunidades indígenas, o governo português procurou investir em
pontos do Acordo Missionário e reafirmar o Ato Colonial procurando garantir respostas à
comunidade internacional pelo campo de investimento nas escolas e ações missionárias nos

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domínios coloniais, através de projetos integradores que uniam a evangelização com a


nacionalização. Desta forma, através das novas relações com a Igreja católica missionária, o
Estado reafirma sua tradição histórica enquanto “civilizadores das raças”, destaca a
potencialidade ultramarina dos portugueses e investe na propagação de uma nova “alma da
Nação”, que representariam juntas as “características marcantes do nacionalismo” português
sob o regime salazarista. (ALEXANDRE, 2006: 9-10)

Em 1944, contudo, a OIT (Organização Internacional do Trabalho), na sua 26a.


Conferência, ainda chama a atenção para os direitos dos nativos das colônias em relação à
manutenção da exploração pelo trabalho nas colônias africanas, reafirmando valores e
direitos, como se lê no trecho abaixo da Declaração da Filadélfia, que precisam ser
implementados:

Considerando que existem condições de trabalho que implicam, para grande


número de indivíduos, miséria e privações, e que o descontentamento que daí
decorre põe em perigo a paz e a harmonia universais, e considerando que é urgente
melhorar essas condições no que se refere, por exemplo, à regulamentação das
horas de trabalho, à fixação de uma duração máxima do dia e da semana de
trabalho, ao recrutamento da mão-de-obra, à luta contra o desemprego, à garantia
de um salário que assegure condições de existência convenientes, à proteção dos
trabalhadores contra as moléstias 3 graves ou profissionais e os acidentes do
trabalho, à proteção das crianças, dos adolescentes e das mulheres, às pensões de
velhice e de invalidez, à defesa dos interesses dos trabalhadores empregados no
estrangeiro, à afirmação do princípio "para igual trabalho, mesmo salário", à
afirmação do princípio de liberdade sindical, à organização do ensino profissional
e técnico, e outras medidas análogas; Considerando que a não adoção por qualquer
nação de um regime de trabalho realmente humano cria obstáculos aos esforços
das outras nações desejosas de melhorar a sorte dos trabalhadores nos seus
próprios territórios.1

Portugal não chegou a participar desta reunião, e manteve as práticas do trabalho


escravo, mas não sem a pressão externa e a necessidade de enviar constantes relatórios pra
responder às acusações. Ao longo da primeira metade do século XX, o governo português
tomou conhecimento do direito da OIT de intervir nos territórios dependentes, estando todas
as nações comprometidas com o desenvolvimento do bem-estar social dos trabalhadores
nativos, cuja política educacional deveria estar voltada para a formação técnica e
profissional dos nativos, e procurou se integrar nos debates. No ano seguinte, 1945 em Paris,
na Conferência Internacional do Trabalho, uma delegação portuguesa foi enviada para
participar da conferência, a fim de defender os trabalhos missionários e humanitários

1
O trecho foi extraído da Constituição da Organização Internacional do Trabalho (OIT). 1944.
Recomendamos também a leitura dos comentários da “Actas do Colóquio Internacional São Tomé e Príncipe
numa perspectiva interdisciplinar, diacrónica e sincrónica”., sob a Coordenação de Ana Cristina Roque (IICT),
Gerhard Seibert (ISCTE-IUL, CEA-IUL), Vitor Rosado Marques (IICT), publicada pelos Instituto de Lisboa
(ISCTE-IUL), Centro de Estudos Africanos (CEA-IUL), Instituto de Investigação Científica Tropical (IICT),
Lisboa, 2012., acerca de outros comentários sobre a formação para o trabalho dos nativos.

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desenvolvidos para proteção e educação dos indígenas. (JERÓNIMO; MONTEIRO,


2014:31-34)

A partir daí é possível acompanhar um interdiscurso entre o Estado e a Igreja que


procuravam divulgar os investimentos na formação educacional e profissional dos nativos
em acordo com as exigências das comunidades internacionais, que acompanhavam mais de
perto o processo civilizatório das colônias africanas. Nesta relação, porém, vamos
observando uma relativa disputa entre nacionalizar e evangelizar os nativos, entre o
programa do Estado Novo e o da Propaganda Fide, que na prática se embaralham com a
persistência das práticas do trabalho forçado impostas aos nativos pelos colonizadores,
particularmente nas áreas rurais, e que lhes impõem uma série de obstáculos para o acesso à
uma formação educacional seja técnica, profissional, nacional ou cristã.

Disto resulta a propagação de programas da política educativa que tem muito mais a
função de responder às indagações internacionais do que sua implementação na prática das
realidades coloniais, tendo em vista as constantes dissociações entre o mundo do trabalho
forçado (escravocratas) e as péssimas condições para a integração dos nativos numa política
de educação para integração social, acessível apenas aos assimilados dos espaços urbanos.
Portanto, se há neste período o crescimento de escolas missionárias, com o novo apoio do
Estado e a participação integrada da Igreja e sua meta de propagação da fé nas colônias
africanas, elas não atingem as necessidades das áreas ocupadas, segundo diagnóstico dos
próprios missionários, que enviam muitas queixas para a metrópole apontando as
dificuldades vivenciadas. (HENDERSON, 2007)

De acordo com alguns estudiosos do colonialismo português em África, no entanto, é


preciso ir mais além para se identificar as questões positivas e negativas do colonialismo
português em África, pelo campo da educação dos nativos, em relação aos discursos
civilizatórios propagados para o exterior. Luíz Reis Torgal, por exemplo, é um dos que
concordam que estas questões ligadas ao processo civilizatório e educacional da metrópole
para as colônias não são tão simples, havendo necessidades de análises mais profundas. Para
ele, entre outras questões, é preciso considerar que a educação colonial se pretendeu
dominar, evangelizar e nacionalizar os colonizados na cultura portuguesa, também resultou
em sua contradição anticolonialista, promovendo a formação daqueles que comandariam os
nacionalismos africanos. Ou seja, considerar também que o colonialismo fomentou o
anticolonialismo pelo campo da educação colonial portuguesa, sendo necessário conhecer a

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escola que se implantou nas colônias, o que ofereceu cotidianamente ao colonizado, que tipo
de promoção de unidade ensinou. (TORGAL, 2008: 229-233)

Há ainda que se considerar, segundo ele, a herança da língua portuguesa que os


movimentos de descolonização assumem no processo de nacionalização das colônias, ainda
que se preserve a diversidade linguística natural. Da mesma forma, é interessante considerar
que o perfil formativo dos líderes da resistência e da formação dos nacionalismos africanos
são herança da educação colonial, implementada por uma variedade de ações missionárias
nas escolas para os nativos assimilados, inclusive as protestantes e estrangeiras. O autor cita
os casos dos líderes da Guiné-Bissau e de Angola, Amilcar Cabral e Agostinho Neto, um
formado em Agronomia e outro em Medicina, ambos militantes de correstes políticas
africanas de oposição ao Estado novo, resultado de suas vivências na Casa dos Estudantes
do império. Assim também o caso de Eduardo Mondlane, formado no âmbito das missões
protestantes. E, Mário Pinto de Andrade e seu irmão padre Joaquim Pinto de Andrade,
resultado da educação nas missões católicas. (TORGAL, 2008: 235)

É preciso considerar, portanto, que nas escolas das missões se ensinava o amor à
“pátria, significando terra dos nosso pais ou terra onde se nasceu, despertando no colonizado
um espírito de comunidade, de família, de laços fortes com a aldeia”, com a etnia, e com os
costumes e às crenças tradicionais que se misturam aos novos valores do processo
nacionalista e evangelizador que os unificava pelas escolas dos missionários e pela escola do
Estado colonizador. Desta forma, os novos países africanos, herança do colonialismo,
constituem uma história que, na compreensão do Torgal, também deverá ser melhor
compreendida pelos fenômenos linguísticos e outros encontros interdisciplinares que tratem
dos seus símbolos, da sua arte, da destruição dos heróis coloniais e a construção dos heróis
nacionais, seus líderes anticoloniais, seus mitos, seus escritores, a língua unificadora imposta
pelo colonizador, que também representa uma formação e representação da diversidade
cultural das nações africanas. (TORGAL, 2008: 235-236)

A política educativa colonial – Estado e Igreja na primeira metade do século XX

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A política educativa2 do salazarismo permaneceu, ao longo do século XX,


entrelaçada às práticas de exploração econômica das colônias africanas, dificultando a
implantação das propaladas missões civilizatórias dos indígena3. O que se pode dizer que
ocorreu foi a implantação de uma cultura assimilativa dos nativos ao novo nacionalismo e o
catolicismo português, que juntos caracterizaram o regime salazarista. Na década de 1930,
as relações entre o Estado e a Igreja foram retomadas em meio à implantação de um novo
regime de governo e de economia, sob o rótulo de Estado Novo, para o qual as colônias
africanas reassumiam seus papéis primordiais na espacialidade política e econômica de
Portugal. No novo regime, o governo e a Igreja estabelecem os acordos missionários para
educar o colonizado até os limites necessários para os usos de sua força de trabalho.

No âmbito do Estado Novo, civilizar o indígena significava particularmente


desenvolver no mesmo a “nacionalização e moralização” em conformidade com a cultura
política e econômica do novo regime implantada na Metrópole e que deveria se estender às
colônias. Para viabilizar o novo projeto colonial, integrado ao antigo projeto de civilização
outros povos, o governo estabeleceu uma série de acordos e estatutos com a Santa Sé que
garantiram a retomada dos trabalhos das missões católicas portuguesas em África, de modo
a manter em mãos portuguesas a nova tarefa de nacionalizar as colônias no âmbito da
cultura e da língua portuguesa. (GUIMARÃES, 2006: 67-75)

Desta forma, foi estabelecido o Estatuto Missionário (1941), através do qual o


Estado Novo salazarista definiu com a Igreja Católica planos e programas de ensino para os
indígenas que deveria garantir o que chamavam de “perfeita nacionalização e moralização
dos indígenas e a aquisição de hábitos e aptidões de trabalho, [...]”, o que na prática

2
Por “Política educativa colonial”, no século XX, estaremos nos referindo às propostas e regulamentos de
uma escolaridade a ser implementada exclusivamente nos espaços coloniais destinada a educar e civilizar os
chamados “indígenas” nas colônias africanas sob o sentido do colonialismo para o Estado Novo português.
Sobre a “Política Educativa” do colonialismo português é interessante destacar a continua proposta de uma
educação que impõe ao colonizado a visão de mundo do colonizador e sua eterna subserviência e submissão à
soberania portuguesa, como portadora do poder de civilizar outras raças. De acordo com José Marques
Guimarães, “independente do regime de que em cada época resultou e pelo qual foi levada à prática,
manifestou sempre uma coerência de propósitos [...] É assim que, a despeito das diferenças que evidenciaram
quer na sua estrutura e funcionamento quer no relacionamento que mantiveram com as sociedades que
governaram, a I República e o Estado Novo não conheceram, no âmbito da política “educativa” desenvolvida
nas colônias portuguesas, soluções de continuidade de tal modo significativas que indicassem uma qualquer
mudança de natureza das relações estabelecidas entre o governo da metrópole e as populações colonizadas”.
(GUIMARÃES, 2006: 5-8).
3
A lei colonial portuguesa considerava Indígenas, todos os indivíduos não civilizados, “de raça negra ou seus
descendentes, que não possuíssem ainda a ilustração ou os hábitos individuais e sociais pressupostos para a
aplicação integral do direito público e privado dos cidadãos portugueses’. (MATEUS & MATEUS, 2015: 27-
28).

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significava “o abandono da ociosidade e a preparação de futuros trabalhadores rurais e


artífices que produzam o suficiente para as suas necessidades e encargos sociais”.4

Pelo Estatuto Missionário, o ensino do indígena deveria ser “essencialmente


nacionalista, prático e conducente para o indígena poder auferir meios para seu sustento e de
sua família e terá em conta o estado social e a psicologia das populações a que se destina”.
Na mesma nota do Estatuto, determina-se que “cabia às corporações religiosas que atuavam
no campo do ensino do indígena indicar os conhecimentos técnicos que em cada região mais
convém ministrar aos indígenas”. O ponto central da nacionalização era garantida pela
obrigatoriedade da língua portuguesa entre aqueles que ministrariam o ensino e aqueles que
o receberiam. Ainda que, para viabilizar o processo de cristianização e comunicação com os
indígenas, abria-se a exceção para “o ensino de religião” que podia livremente usar a “língua
indígena”.5 Alias, as várias línguas indígenas passaram a fazer parte dos conteúdos da
Escola Superior Colonial da metrópole.

A exceção era para o uso da língua dos indígenas, considerada por alguns
missionários como necessária para o entendimento da cultura africana e para a comunicação
com os nativos. Em relação a outras nações européias, prevalecia a lei do nacionalismo
português garantida pelo Estatuto Missionário, que estabelecia a obrigatoriedade do uso da
língua portuguesa e somente em casos muitos excepcionais e autorizados se poderia ter a
presença do estrangeiro, ainda assim sob o compromisso de atuar apenas na língua
portuguesa, tudo a serviço e de acordo com “o seu fim nacional e civilizador”.

Pela leitura do Estatuto é possível perceber uma preocupação do Estado Novo com a
formação do indígena nas circunscrições ou corporações missionárias católicas
portuguesas, inclusive com a formação de professores indígenas que auxiliassem os
missionários em seus trabalhos com outros indígenas na disseminação do colonialismo,
devendo estes já estarem formados na cartilha e língua do colonialismo português preferidos
à presença de missionários e professores estrangeiros nas colônias portuguesas. Além disto,
o Estado deu apoio mobiliário à ação educativa da Igreja com a liberação de terrenos para a
construção de novas missões e escolas com a finalidade de cuidar da educação nas colônias
para brancos e ‘pretos’ nas áreas onde ainda não existissem.

4
Conferir nos documentos do Ministério das Colônias, “Estatuto Missionário” - Diário do Governo. N. 79, 05
de abril de 1941,p. 324.
5
Idem, p. 324.

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Desta forma, as propostas de nacionalização e de evangelização, acordada entre o


Estado e a Igreja, estiveram constantemente presentes nos discursos do Estado Novo, que
defendia uma educação extensiva daquilo que se tinha na metrópole para as colônias. Na
prática a realidade, contudo, era outra. A política educativa colonial se mostrava
discriminatória e racista em relação aos negros das colônias, distanciando-se muito da
retórica imperial salazarista em relação à educação destinada aos brancos da metrópole e da
colônia e aquela destinada os indígenas assimilados e pior ainda dos não assimilados.
(GUIMARÃES, 2006: 67-75).

Observe-se que a política educativa com base na nacionalização das colônias já


impunha em princípio as obrigações do uso da língua portuguesa nas escolas das colônias,
ampliando as diferenças entre a educação do colonizado e do colonizador, que já
demonstrava o domínio da língua nas primeiras séries, enquanto os indígenas gastavam
muito mais tempo aprendendo o básico da língua do colonizador, sua grafia e seus sentidos
em meio ao seu cotidiano cultural.

Assim, além do processo seletivo daqueles que teriam acesso à algum tipo de
educação (rudimentar, elementar e técnica), havia ainda as determinações legais para o uso
da língua e da cultura portuguesa como mediadores obrigatórios do conhecimento nas
escolas das missões e das cidades em detrimento dos valores tradicionais e das línguas das
comunidades africanas, que criavam vários desníveis e barreiras no desenvolvimento e
permanência dos indígenas nas escolas em relação às oportunidades que os filhos dos
colonizadores detinham com o domínio natural da língua e cultura católica da metrópole.6

Paralelamente, foi-se disseminando uma imagem negativa da capacidade mental dos


indígenas, entre as décadas de 1930 a 1960, através dos discursos dos doutrinadores do
regime que reforçaram perante o mundo a imagem dos indígenas como inaptos ao processo
de nacionalização e civilização, porque incapazes de receber uma educação integral e igual à
dos brancos, restando aos mesmos apenas a capacidade de uma educação rudimentar,
elementar e técnica limitada ao mundo do trabalho destinado aos indígenas.

Desta forma, o regime salazarista manteve uma política educativa seletiva, limitadora
e reguladora para os indígenas nas colônias que se distanciava cada vez mais do projeto de
nacionalização e civilização das colônias ao nível do projeto imperial lançado a partir da

6
Sobre esta questão é recomendada a leitura da obra de Eugénio Alves da Silva e Maria João Carvalho:
“Educação em Angola e (des)igualdade de gênero”. Publicação das “Actas do X Congresso Internacional
Galego-Português de Psicopedagogia. Braga: Universidade do Minho”, no ano de 2009. pp. 2401-2416.

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metrópole pelos seus documentos e discursos legais e oficiais. O acesso à escola oferecida
pela metrópole aos colonizados impunha uma série de regras para o ingresso nas escolas das
cidades, e que se agravava mais ainda nos espaços rurais, onde as missões eram quase as
únicas responsáveis por uma educação dos indígenas.

Outro grave problema, ponto de várias criticas externas e internas, era o envio de
indígenas para os campos de trabalho, seja como ação obrigatória ou como prática
educativa e civilizatória, muitas vezes criticada pelos próprios missionários portugueses, que
viam no trabalho forçado um empecilho para efetivação de uma política educativa do
indígena mais coerente com a ‘formação das almas’, incluindo para a formação para o
trabalho, dentro daquilo que consideravam digno. Para o Padre Alves CORREIA (1936)
“não podia haver verdadeira educação cristã numa terra condenada como a África
(sobretudo a ocidental) à maldição do trabalho, à praga da escravatura”. De acordo com este
religioso, era preciso educar pelo trabalho, “mas com dignidade”, dizia o missionário,
relembrando a falência da tentativas de evangelização dos séculos XV ao XVIII, e que
levaram o século XIX a recomeçar o processo de evangelização que tinha dificuldades, pois:
“sem dignidade do trabalho a cristianização de uma raça é tarefa impossível e absurdo todo
o tentame de criar civilização”.7

Desta forma, ao longo da primeira metade do século XX, a questão educativa dos
nativos esteve atrelada às questões do trabalho, fosse para seu desenvolvimento ou
exploração, estando distante dos discursos civilizatórios integrativos e nacionalizadores que
diziam equiparar a colônia à metrópole. De modo geral, entre os críticos do colonialismo
português, dizia-se que a política educativa do salazarismo favoreceu a manutenção de uma
educação discriminatória e excludente, à medida que mantinha muito indígenas fora do
projeto de nacionalização e civilização tão propalados pelo regime. Nas colônias o exército
de homens negros deveriam estar sempre disponíveis como mão-de-obra para o trabalho,
alimentada pelos limites impostos à formação escolar dos indígenas nos cursos secundários
e superiores, logo os excluídos de cargos superiores nas instituições que se iam implantando
nas colônias com o processo de urbanização das cidades, conforme se lê nos relatórios
internos e externos da política educativa do regime salazarista, muitos deles hoje disponíveis
aos pesquisadores do tema.

7
Para aprofundamento destas questões e os posicionamentos do Pe. Alves Correia, recomendamos a leitura da
obra “Missões Religiosas Portuguesas”, publicada nos Cadernos Coloniais, n. 31, em 1936, e disponível no
site http://memoria-africa.ua.pt/Library/CadernosColoniais.aspx, acesso em setembro de 2017.

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ZAU, Filipe. Educação em Angola: novos trilhos para o desenvolvimento. Lisboa:


Universidade Aberta, 2002.

PAJELANÇA RELATIVA AO KANAIMÉ NO CONTEXTO DO RIO BRANCO

Manoel Gomes Rabelo Filho


Doutorando em Ciências da Religião/UNICAP
mgrabelo@bol.com.br

Resumo: Este artigo reflete criticamente acerca dos aspectos discursivos construídos acerca
da Pajelança relativa ao Kanaimé no contexto do rio Branco em Roraima, demonstrando as
categorias construídas sobre os índios e sua religião, configurada por meio da Pajelança. O
uso das categorias para definir o Kanaimé influenciaram os escritos e as ações de agentes
coloniais ingleses e portugueses que se preocuparam mais com a conquista e a manutenção
territorial em sua administração colonial do que com os estilos de vida e sociabilidades
indígenas. Já as representações dos índios, construídas e reelaboradas a partir de suas vidas
em contato com não-índios, transferiram e readaptaram muitos aspectos do que tornaram-se
específicos do Kanaimé no contexto do rio Branco.
Palavras-chave: Pajelança, Identidade, Religião

Os textos e documentos escritos desde o início século XIX definiram o contexto de


realização da pajelança em Roraima. Entre as interpretações desenvolvidas por estudiosos,
acerca do Kanaimé e da Pajelança na Região Circum-Roraima1, estão situados os conceitos

1
Em relação a esta região, fronteira da Venezuela, Guiana e Brasil, O CIDR (1989) considera que só é
possível analisar historicamente a região do lavrado de Roraima se considerado em conjunto com os
territórios dos outros países. Também por este motivo o Circum-Roraima é usado como uma categoria para

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resultantes do que escreveram os irmãos Robert-Hermann (1804-1865) e Richard


Schomburgk (1835-1844), alemães de nascimento e naturalizados na Grã-Bretanha; Henri
Anatole Coudreau (1859-1899), explorador francês da Guiana Francesa que atravessou o rio
Branco no final do século XIX; os diversos missionários britânicos do século XIX; o
antropólogo e explorador alemão Theodor Koch-Grünberg (1872-1924) e a antropóloga
brasileira Gioconda Mussoline no século XX (FARAGE, 1991; SANTILLI, 2001; FRANK,
2017).
Pretendemos usar a análise do discurso para compreender as formações discursivas
acerca do Kanaimé entre os séculos XIX e XX, identificando os principais aspectos que
influenciaram tais formações. Segundo Freire as formações discursivas nascem das
formações ideológicas fazendo nascer os sentidos, se constroem e reconstroem em função da
nossa história e dos pensamentos que praticamos. Isto o leva a afirmar que a ideologia se
organiza na língua em formações discursivas. As formações discursivas são manifestadas
nas formações ideológicas pelo discurso em enunciação específica. A regulação do que o
sujeito pode ou não pode e deve ou não deve dizer é construída nas formações discursivas,
considerada a matriz dos sentidos (FREIRE, 2014).
A contribuição da análise do discurso nos leva a refletir e saber que não somos
conscientes de tudo, mas também nos torna menos ingênuos diante da linguagem. Interessa-
nos saber como o discurso funciona a partir da memória do sujeito e de sua relação com o
sentido. Estes sentidos, estabelecidos ou não, enquanto objetos simbólicos são interpretados,
criando-se um discurso sobre eles, uma fala que interpreta. Pretende-se refletir sobre a
linguagem, o sujeito, a história e a ideologia sem a pretensão de esgotar o discurso,
tornando-o definitivo ou completo, mas entender os princípios e procedimentos analíticos
possibilitando saber sobre o confronto entre a linguagem e o mundo com os sujeitos e os
sentidos na história (ORLANDI, 2000).
A primeira visão usada em textos no processo de colonização da Amazônia foi a
cristã, sendo a principal orientação moral para as colônias portuguesa, espanhola e inglesa.
A segunda refere-se aos acontecimentos vivenciados por quem produziu a formação
discursiva, sejam eles viajantes, exploradores e estudiosos. A terceira é a narrativa dos
índios, que a partir do contato com não-índios foram reelaboradas e escritas. A quarta é a
produzida pelos mitos dos diversos povos indígenas que são construídas em seus processos
socioculturais. Sempre foram priorizados os textos escritos com a visão dos colonizadores,

indicar a região situada entre os três países, certamente desde a década de 1960, tendo sido usada por
Audrey Butt Colson.

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influenciadas tanto pela visão cristã quanto pelas narrativa dos índios acerca do Kanaimé e
dos rituais a ele relacionados.
A Pajelança relativa ao Kanaimé entre indígenas Macuxi, Wapichana e Ingarikó
enfrentou dificuldades a partir do contato com não-índios. Para entender de que forma o
Kanaimé, como figura mítica dos povos indígenas do rio Branco 2, foi interpretado por
diversos exploradores, agentes governamentais e estudiosos, é interessante explorar as
principais ideias sobre ele na literatura a partir do seculo XIX.
A Pajelança, enquanto ritual dos povos indígenas da região do rio Branco, nunca foi
interpretada por exploradores como aspecto cultural relevante no contexto histórico dos
povos indígenas. A visão colonialista construída até o final do século XIX, acerca do modo
de vida e sociabilidade dos povos indígenas, foram elaboradas a partir da concepção
dogmática de que o cristianismo deveria ser a religião a ser seguida. Este entendimento
desenvolveu ranços, por meio das ações desenvolvidas pelos religiosos e os governos, no
sentido de justificar suas práticas.
Estas práticas combateram qualquer tipo de aspecto cultural que fosse estranho e,
no entender dos agentes coloniais, pudessem escandalizar, envergonhar ou distanciar-se do
que era considerado “normal” neste contexto. Entre os Macuxi havia o costume de queimar
os seus mortos na própria casa de morada. Entre os séculos XVIII e XIX estas ações foram
combatidas por agentes coloniais, desenvolvendo um discurso de rebeldia por parte dos
indígenas, fazendo esta expressão religiosa e sociocultural desaparecer.
O Kanaimé, neste contexto, era considerado como o “rabudo”, como o próprio
nome indica, o diabo em figura de gente da visão cristã. Por meio desta interpretação muitos
aspectos socioculturais dos indígenas eram reprovados, incluindo suas manifestações
religiosas que eram consideradas diabólicas. Neste sentido é que confundem-se o Kanaimé e
o nativo sem contato com não-índios, trazendo-os para as formações discursivas ambos os
aspectos como sendo o mesmo.
É desta forma que se deu a construção dos discursos acerca do Kanaimé entre os
povos indígenas na região do rio Branco, em Roraima. A concepção de integração dos índios
à sociedade nacional estava presente, a partir do momento em que os povos indígenas foram
considerados protetores das terras ocupadas pela colônia portuguesa. Assim, a condição do
indígena que era o de “selvagem” e “bárbaro”, interpretações construídas desde a chegada

2
O Vale do rio Branco, região das terras do atual Estado de Roraima, representava uma parte importante do
Estado do Grão-Pará no período colonial português. A partir do final do século XVII foram escravizados
grande número de índios desta região, os quais eram levados para a metrópole Belém do Pará.

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dos europeus na região do Caribe, passou a ser formulada como “inocente” e “pacífica” para
alguns povos. Estas construções discursivas, usadas a bel prazer dos colonizadores conforme
o momento histórico, revelaram-se emblemáticas na configuração do Kanaimé, enquanto
ente violento e matador, no contexto colonial do extremo Norte do Brasil.
Serão estas formações discursivas que exploraremos a seguir, buscando analisar os
aspectos que nos parecem mais importantes na constituição da definição do Kanaimé na
visão colonialista cristã da região do rio Branco, comparadas às representações dos índios.
O primeiro escrito sobre o Kanaimé deu-se por um dos irmãos Schomburgk (Robert
e Richard). Recorremos à forma com que Robert Schomburgk escreveu em carta às
autoridades coloniais à época e sua importância na construção do discurso:

A cabana era habitada por 25 indivíduos e era tão pequena que eu não poderia
imaginar o número de pessoas que estava naquele lugar, em total desconforto. Um
dos homens jovens disse-me, através do intérprete, que seu pai tinha sido morto
recentemente por um Kanaimé. Por este nome é designada uma pessoa que, a
expressão que foi usada, jurou outro de morte e não descansou até alcançar o seu
objetivo. Neste caso o veneno foi utilizado, extraído da planta que, de acordo com
suas descrições, se parece com leite, a substância que é esbranquiçada e disse
causar morte logo após sua administração, de acordo com a quantidade que o
indivíduo engoliu. (Royal Geographical Society, MSS Exped. 3, 1837-39, Third
Bundle, ca. 25 October 1838) (WITHEHEAD, 2002, p. 56). (Tradução nossa)

Robert Schomburgk escreveu isto para as autoridades coloniais da então Guiana


Inglesa. Sua intenção era informar acerca do estilo de vida dos índios da região denominada
Guiana, localizada no alto rio Branco. No entanto, não havia a preocupação com a violência
ocorrida entre indígenas, o que para o estado inglês não constituía nenhum “perigo” para a
vida da colônia.
Esta narrativa influenciou uma série de outras interpretações, que no calor de
acontecimentos, sempre davam margens para indicar o Kanaimé como possíveis causas de
mortes ocorridas na região. Em geral, os fatos ocorridos que envolviam violência por parte
dos índios eram configurados como Kanaimé. Nas representações construídas pelos índios
são incluídas como sendo violência de Kanaimé as doenças desconhecidas ou não curáveis
por parte dos rituais de Pajelança. Ao ocorrer algum assassinato, logo tal acontecimento era
associado ao Kanaimé, mesmo que não tivesse sido demonstrada a evidência desta relação.
Os irmãos Schomburgk mencionaram o Kanaimé com a expressão “líder Macuxi”
(“Macusi Chieftain”) da Maloca Anai. Robert Schomburk faz uma breve alusão como
arqui-inimigo da raça humana e como causa de abandonos e mortes nas Malocas a partir do
momento em que seu mais influente membro morria. Ele diferenciou Kanaimé como mal

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invisível e essência demoníaca, da Pajelança como prática xamânica. O Kanaimé seria um


vingador, que ao realizar suas vinganças nunca ficava frente a frente com suas vítimas. O
autor refere-se a um estilo selvagem de vingança, na qual faz escolha indeterminada das
vítimas. Sugere uma tipologia com uma série de técnicas assassinas de Kanaimé,
envolvendo uso de venenos e práticas rituais (WITHEHEAD, 2002).
Henri Coudreau (1886), em viagem através do rio Branco, revelou que o Kanaimé
teria imensa quantidade de indivíduos, constituídos em uma “tribo”, que estavam em
constante guerra contra “civilizados” e “índios mansos”. Essas tribos seriam assassinas de
profissão, matavam por prazer e usavam os ossos dos mortos para fazer flautas e os dentes
para fabricar colares. Essas tribos estariam associadas às reminiscências de seitas selvagens
de índios. Além do mais muitos povos do alto rio Branco tinham medo de se tornar vítimas
dos Kanaimés, os quais possuíam uma corporação de Pajés, sacerdotes feiticeiros com
grande influência e grande quantidade de “tribos” aliadas, todas solidárias entre si. O autor
destaca que todos estavam preparados para atacar os Kanaimés, uma vez que a qualquer
momento poderiam ser surpreendidos por eles. Inúmeras famílias de índios contavam
histórias da morte de pai e mãe que eram atribuídas aos Kanaimés. Eles possuiriam o
costume de viver em pequenas cabanas nas matas, e se organizavam para atacar seus
vizinhos.
Diversos missionários da região das Guianas também desenvolveram definições
com base na visão cristã. Suas intenções eram demonstrar a vida dos índios, partindo de
pressupostos cristãos, construindo discursos orientados por esta cosmovisão. O missionário
alemão John Henry Bernau (1805-1890) trabalha com a ideia de propiciação do “espírito
mal” que ofertava carne humana. Existe a aproximação que o missionário faz da
propiciação xamânica de divindades predadoras com a moderna prática do Kanaimé, da
aparição parcial às vítimas com uma propiciação ao espírito da onça. Bernau observa que se
a morte é considerada o trabalho de um envenenador, e não usa o termo Kanaimé, então os
índios se consideram ligados e este tipo de morte vingativa. Este missionário também
discute que as normas da Pajelança entre os Macuxi servem como base para entender as
ações do Kanaimé. As características proféticas do Kanaimé são tomadas para fazer parecer
uma prática geral da Pajelança (WITHEHEAD, 2002).
O missionário britânico William Henry Brett (1818-1886) foi o primeiro a
identificar um suposto envenenador entre os Akawaio3 que matou o missionário Thomas

3
Povo indígena da região da Guiana citado por Whitehead (2002) como vizinhos dos Patamona e
Macuxi.

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Youd, aparentemente envenenado por um Kanaimé Akawaio. Ele afirma ter ouvido histórias
terríveis com envenenadores e assassinos da noite, citando em seu texto a morte de Youd,
como exemplo de morte por Kanaimé. A reputação de “ataque de feitiçaria”, atribuída aos
Akawaio, através do profundo conhecimento dos venenos, faz o missionário afirmar que o
pai de um jovem índio teria usado os conhecimentos que tinha de Kanaimé ou tinha acesso a
tais conhecimento para praticar a sua ação. O missionário britânico sugeriu que ele não
estava fisicamente presente quando Youd tomou o veneno. Brett narrou um acontecimento
que supostamente teria se encontrado com Kanaimés no rio Demerara, onde eles tinham a
pele coberta com tintas brilhantes, semelhantes às de uma onça, e que seus olhos brilhavam
e remavam com todas as forças contra a corrente do rio. O britânico ainda acrescentou que
como os Ameríndios tinham uma tendência à vingança de sangue, a morte de um membro
familiar torna-se suspeita de ser trabalho de algum inimigo do reino espiritual, e que um Pajé
é convidado a investigar acerca da origem do ataque. O autor reconheceu que o sistema de
envenenamento por vingança que ocorria entre os índios era associado com o Kanaimé
(WITHEHEAD, 2002).
Outro missionário, Everard im Thurn (1852-1932), situa o Kanaimé como um
aspecto do xamanismo, relacionando o Kanaimé à Pajelança. Ele destaca que existe
constantes combates entre o Pajé e o Kanaimé, o qual tem uma origem próxima à
corporificação do mal. Explica que a ideia nativa da separação entre corpo e espírito faz com
que o homem se transforme e entre nos corpos de animais, insetos e pássaros. O Kanaimé é
um matador, não como assassino, é limitado a matar por determinação e, para o missionário,
em certo estágio da sociedade, sem dúvida é um costume salutar (WITHEHEAD, 2002).
Para Farage, ao referir-se a etnografia do século XIX, sobre os Wapichana, sugere
que “as serras teriam um estatuto simbólico particular: registra E. Im Thurn [1883] que os
índios da Guiana Inglesa acreditavam que nas montanhas Kanuku, bem como em outros
pontos da cordilheira da Paracaraima, viviam povos de hábitos noturnos, que só ganhariam a
planície durante a noite”. (FARAGE, 1991, p. 108). E. Im Thurn diz que “na Guiana Inglesa
criam os índios que a Strychnos toxifera, liana de que era extraída o curare, veneno da caça e
da guerra, crescia apenas nas montanhas Kanuku, em território Macuxi”. Embora a planta
exista em outras partes da Guiana, não é conhecida nem usada por índios. Quase todos
aqueles povos sabiam preparar alguma forma de curare, “mas somente os Macuxi, habitantes
da área das Kanuku, o faziam, e índios de diferentes partes da Guiana acorriam até ali para
obtê-lo” (Ibid., p. 109).

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Segundo Withehead (2002) Theodor Koch-Grünberg realizou trabalho de maior


importância etnográfica. Viajou para o oeste da região de Roraima, ao norte do rio Branco,
fazendo diversas referências ao Kanaimé, onde é considerado local de sua atividade. O que
Koch-Grünberg faz é revisitar fontes anteriores dando maior relevância à suspeita,
defendendo que as desgraças de males ocorridos são expressados através dos ataques de
Kanaimés. Serviu também para a manutenção das fronteiras étnica e política. O autor
destaca destaca para a preferência da noite e uso de roupas de pele de onça e veado pelo
Kanaimé. Mensiona também uma espécie de contra-ataque mágico feito para atacar o
Kanaimé com o auxílio de plantas. O antropólogo alemão referencia a literatura dos
primeiros tempos para explicar o Kanaimé, em especial os mitos de Makunaima e Piai’ima,
a narrativa da origem da Pajelança e o uso de plantas mágicas.
Segundo Nádia Farage para Koch-Grünberg “os espíritos dos xamãs mortos seguem
para as montanhas e ali se transformam em cristais. Por este motivo, de modo generalizado
nas Guianas, os cristais/mauaris são parte imprescindível do aparato dos xamãs vivos, a
estes conferindo sua magia”. No entender de Koch-Grunberg esses cristais são encontrados
em abundância apenas em locais especiais como o Monte Roraima e as montanhas Kanuku.
Desta forma é que Farage afirma: “temos razões para supor que as Kanuku seriam um reduto
privilegiado dos mauaris, cristais cujo valor simbólico repercutia na utopia do colonizador
como sinônimo de riqueza prodigiosa que buscavam”. As serras são espaços que não
pertencem ao domínio da cultura, mas a “espíritos mortos, povos noturnos e belicosos”
(1991, p. 109).
Parece significante o que Whitehead (2002) afirma sobre as narrativas acerca do
Kanaimé, considerando que, no século XIX, todas elas teriam sido decorrentes das
interpretações dos missionários e dos termos usados pelos residentes da colônia, com
exceção de Coudreau e Koch-Grünberg.
Os viajantes tinham poucas chances de encontrar um Kanaimé, mas de ouvir a vaga
referência de “espírito mal” (“evil espirits”), uma vez que é uma prática ritual regional e sua
realização custa a ocorrer. A exceção do viajante que tenha acesso a um incidente particular
de assassinato e mutilação, não veria nada além da poética do discurso nativo a observar
(“[...]the poetics of native discurse to observe”) (WHITEHEAD, 2002, p. 57).
Não houve a preocupação dos viajantes do período colonial com o conhecimento
das diferenças que esses povos, menos ainda com a diversidade de aspectos que
caracterizava cada povo. O Kanaimé foi interpretado dando destaques aos males por ele
realizado, sendo associado ao “selvagem” e aos maus espíritos. A Pajelança a ele associado

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não recebe nenhuma explicação plausível, uma vez que Kanaimé e Pajelança são explicados
como o mesmo no contexto do século XIX. A Pajelança relativa ao Kanaimé só é
caracterizada a partir de Theodor Koch-Grünberg, uma vez que as diversas narrativas
construídas principalmente por missionários não faziam a diferenciação dos rituais.
Todas as observações sobre a interpretação do Kanaimé estão associadas à
Pajelança, sejam aquelas que tratam o Kanaimé como uma maledicência, explicado como
propagador de feitiços (Cf. KOCH-GRÜNBERG, 2006; COUDREAU, 1886; FARAGE,
1991), sejam as que tratam como aspecto simbólico da cultura, como característica da
cultura dos povos do rio Branco que explicam o significado da morte entre as diversas etnias
(Cf. WHITEHEAD, 2002; ARAÚJO, 2006).
Gioconda Mussoline em 1944 afirmou que para os vapidiana [Wapichana], “lugares
distantes ou de difícil acesso são considerados perigosos, freqüentados por entidades
canibais, os Kanaimés”. A autora acrescenta que “as serras ocupam posição mais destacada,
sendo ainda a morada dos mauaris, espíritos dos xamãs mortos”. (FARAGE, 1991, p. 109).
As afirmações de Mussoline, antropóloga brasileira que realizou pesquisas sobre a região do
rio Branco, estabelece uma ligação do Kanaimé com lugares ermos, entidade perigosa e
canibal. Tais afirmações reconfiguram a concepção do canibalismo registrada desde o
processo de colonização dos espanhóis na região, explicando um possível “costume”
atribuídos aos povos nativos que a autora canaliza para a ideia de Kanaimé.
Ao discorrer sobre Ataque de Kanaimé, capítulo de sua obra Do corpo à Alma...
acerca da valorização dada pelos Missionários da Consolata aos índios Macuxi de Roraima,
Melvina Araújo (2006) atribui a ele a causa de doenças que atingem os índios. A resposta
dos missionários foi acionar o conceito antropológico de cultura para reconhecer a
indexação do código religioso ao nativo no sentido de distinguir o Sagrado e o Profano,
articulando os destinos das sociedades em relação. A noção do respeito à cultura dos índios
orientaram os missionários para atuar nos serviços de saúde, mesmo considerando que a
categoria indígena denominada de Kanaimé é de difícil classificação para a linguagem
religiosa. Há, neste sentido, um processo de ressignificação pelos missionários para respeitar
e incentivar tudo o que se refere ao espírito do povo indígena. Assim é que houve “a
positivação das concepções indígenas sobre o kanaimé, causador de doenças seguida de
morte, de acordo com as concepções indígenas” (2006, p. 137).
Dielci Bortolon em dissertação apresentando a Terra Indígena Araça/Roraima,
acerca do povo Macuxi, afirma que um professor da Maloca Três Corações disse:

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Canaimé, não tem como se dizer que ele não existe, porque eu tenho provas reais
na minha família, porque o que que é um canaimé, rabudo como muita gente
chama que o Macuxi chama de kanaimî é a própria pessoa que de um tipo de ritual
uma dessas pajelanças desses pajés como se consagram um pajé pra se tornar um
pajé tem um índio que queira mal pra uma outra pessoa, então em vez de seguir o
caminho de pajé ele pega um outro caminho pra maldade tipo pajé, mas não é um
pajé é um kanaimî, ele tem planta, ele tem orações, ele tem rezas, ele tem
máscaras, ele tem tipo de vida diferente de outros povos da comunidade, ele já não
mais vive totalmente exposto, aquelas rezas, aqueles tipos de consagrações que ele
faz deixa ele separado como ele pega perdiz corta cabeça do perdiz e toma sangue
dele, porque perdiz é uma animal que você vai passando ele tá bem escondido e
você não vê ele assusta, então esse kanaimî ele tem tipo de ritos, esses rituais que
deixa ele totalmente diferente de outros, ele que já fica meio que amedrontado do
grupo, da comunidade, então quando vai acontecendo, pode ser mulher, jovem,
criança que vai seguir aquele tipo de coisa, ele já vai se afastar e formar um grupo,
a gente não vai mais vê disposto com os outros da sociedade, eles vão ter um tipo
de vida sofrido, eles andam muito e pra assustar a gente,[...], não é um assustar
qualquer, é uma coisa ritual, só que o que acontece, que o canaimé ele não mata
uma outra pessoa com arma, as armas deles são as rezas, está em folhas, está no
assustar, então quando ele vai fazer [...] matar alguém é um ritual, é um troféu,
cada morte é um troféu, [...], quando ele mata criança, quando ele mata um adulto
e os indígenas conhece quando a morte é causada pelo canaimé, existem marcas,
pegadas, deslocação, principalmente o que acontece quando o canaimé mata uma
pessoa, o troféu principal é um ossinho que tem lá no ânus, [...] que é um ritual
triste, esquisito, espantoso, é por isso que se mata, a única coisa que ele deixa
assim. Só Deus pra fazer isso pra entender um canaimé, ele num ataca gente com
faca, com arma com outra coisa, se atacou assim não é o canaimé, porque ele ataca
com as mãos, pra ele ser um vitorioso sobre alguém, ele tem que atacar com as
mãos. [...]. É uma crença dele; não pode entregar o grupo, é uma coisa espantosa
(EA 7, 2014, p.7) (2014, p. 112-113).

Destaca-se nesta citação o fato de Kanaimé se apresentar como um ser de causar


medo, diferenciando-o do Pajé, que usa rezas e plantas, toma sangue, assusta pessoas,
esconde-se, usa ritos, é andarilho, causador de mortes e ataca com as mãos. Tais
características marcam o que é apresentado em diversos discursos na literatura e pretende
demonstrar absoluta certeza quando indica que são provas reais de sua família. Este discurso
reflete um pouco do que ocorre com as narrações do índios que são contadas em clima de
terror.
Grande parte das interpretações revelam um Kanaimé vingativo, com poderes
extranaturais associados a espíritos e animais. Observa-se nas afirmações dos missionários
uma aproximação do Kanaimé ao Diabo do mundo cristão ocidental, sinalizando para uma
distorção no sentido que é compreendido pelos povos do rio Branco. E em diversas
literaturas atuais um ser que impõe medo e terror às malocas da região, colocando-se em
oposição aos povos indígenas, numa tentativa de revidar vinganças.
Tomando algumas representações dos povos indígenas do rio Branco, mais
especificamente dos Macuxi que vivem próximo ao rio Cotingo, afluente do rio Branco,
indicam relações do Kanaimé com o “bandido dos brancos” (ARAÚJO, 2006, p. 138).

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Suas orações servem para enfeitiçar e causar doenças, mas também serviriam para
defender seus parentes. O objetivo final do Kanaimé, nas representações dos índios, é matar
as pessoas sem a chance de qualquer negociação por meio de “rezas”. O Pajé e o Rezador,
considerado defensores das Malocas (Aldeias), possuem poucas oportunidades de livrar as
vítimas (RABELO FILHO, 2012).
Os ataques de violência protagonizados pelo Kanaimé na verdade são raros. Mesmo
assim, as representações dos índios acerca destes eventos são narradas como se tivessem
ocorrido a pouco tempo. O Pajé tem a função de realizar os rituais necessários ao
afastamento do Kanaimé, mas dependendo da força física e espiritual e da experiência
atribuída e este, o ritual de pajelança não poderia surtir o efeito necessário, nem para afastá-
lo, nem para livrar as vítimas das doenças causadas por seus feitiços (Ibid.).
Para algumas formas de representação dos índios o Kanaimé estaria associado com
algum espírito do mal. Ele é explicado como causa de muitas mortes: doenças inexplicáveis,
covas reviradas em ritual de necrofagia. Apesar de todos os malefícios indicados como
Kanaimé, ele teria o mesmo estilo de vida e sociabilidade vivenciados pelos povos indígenas
e estaria entre pessoas conhecidas e até parentes. A diferença estaria em que se esconderia
em pelo de animais, podendo atacar as pessoas violentamente, quebrando seus ossos. Sua
imagem é identificada como um matador violento que assusta e fere, podendo vitimar
qualquer pessoa desavisada (Ibid.).
Os rituais de proteção, realizados por Pajés ou Rezadores – consideradas pessoas
preparadas para solucionar muitos problemas nas malocas – seriam realizados para que as
pessoas pudessem andar a noite sem ser importunado pelo Kanaimé. Nesta perspectiva não
existe a cura do Kanaimé, mas as formas de resguardo que funcionam como condições para
o auxílio em seu afastamento. Os perigos vivenciados pelos índios da região do rio Branco
são explicados a partir do poder de auto transformação dos Kanaimés em animais. O
tamanduá é associado aos seus ataques, o qual teria também um poder de sair do próprio
corpo transformando-se em espírito para vagar durante a noite, assustando as pessoas
(RABELO FILHO; ARAÚJO, 2015).
Os rituais assinalados, próximo ao que poderia ser configurado como Pajelança,
como proteções contra o Kanaimé, revelam uma série de procedimentos e efeitos a eles
associados, que são realizados pelo Pajé em diversas situações. Na realização de festas, a
presença do Pajé é solicitada no intuito de se evitar qualquer tipo de problema, sejam eles
naturais, acidentais ou espirituais. Em viagens, seja para os que pretendem ir para locais
distantes de suas moradas, seja para quem se aventure na cidade, sempre há alguma forma

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de proteção estando ela relacionada ao Kanaimé ou não. As “rezas” ou “orações” dos Pajés
são consideradas extremamente necessárias nas diversas formas de mobilidade. Sempre que
os povos indígenas da região do rio Branco reúnem-se para qualquer tipo de comemoração,
festejos ou construções de roças, o Kanaimé é lembrado como um ser que deve ser afastado.
Um dos aspectos adaptados das malocas acerca da Pajelança relativa ao Kanaimé,
que explicavam o Kanaimé como uma entidade com a sociabilidade identificada apenas com
os índios, é o fato dele ser agora representado como qualquer índio, seja o que vive nas
malocas, o que vive na cidade, ou o que estuda. A Pajelança, neste sentido, alcançaria
também o mundo dos não-índios, seja porque os Kanaimés poderiam estar escondidos em
cidades, seja porque estariam se associando ao estilo de vida dos não-índios para realizar
seus feitos.
Numa das entrevistas realizadas em 2011, um Macuxi fez questão de afirmar que o
Kanaimé poderia estar em qualquer lugar, inclusive dentro de um avião. Neste sentido,
ficaria difícil de identificá-los e agir contra seus efeitos maléficos.
Tal dificuldade de se saber onde estaria um Kanaimé também foi demonstrada, em
conversas informais, por diversas pessoas durante um evento de jovens indígenas realizado
em 2015, na cidade de Boa Vista. Como o local de realização do evento era próximo a um
igarapé, muitos disseram que esta entidade teria aparecido ali próximo, sendo que muitos
pais proibiam suas crianças de brincar próximo ao igarapé, por medo dos riscos de seu
aparecimento neste local.
Outro entrevistado tinha a certeza de ter visto um Kanaimé quando esteve na casa
de apoio aos indígenas na cidade de Boa Vista. Ele percebeu atitudes estranhas num doente
que havia chegado da Região das Serras, localizada na Região da Raposa Serra do Sol, no
nordeste do Estado de Roraima. Estas atitudes foram identificadas como “marmotas”
realizadas pelo Kanaimé, configuradas como uma série de performances, da qual entre os
povos indígenas não seria considerado “normal”. O entrevistado contou que duas semanas
depois esta pessoa identificada como um Kanaimé estaria tentando atacar crianças próximo a
um igarapé.
A Pajelança do contexto do rio Branco serve para proteger dos diversos males
referentes à saúde e dos espíritos predadores. A elaboração conceitual da Pajelança relativa
ao Kanaimé dá-se pela contextualização das falas dos índios, uma vez que tais discursos se
acham impregnados do que se ouviu falar no passado. A existência do Kanaimé, enquanto
ritual, entidade ou forças vingativas, requer uma oposição daqueles que deverão assumir esta
entidade enquanto um ser que se apresenta neste mundo, mas que nele estão associados

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poderes sobrenaturais, revelados pela violência, feitiço, entre outras coisas estranhas que
venham a ocorrer entre os povos indígenas do rio Branco. A Pajelança seria, portanto, a
solução dos problemas causados pelo Kanaimé, de forma antecipada, isto é, como uma
prevenção aos seus ataques, doenças e feitiços.

Referências

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Paulo, Humanitas, 2006.

BORTOLON, Dielci Maria Oliveira. Terra indígena Araça/Roraima: continuidades e


transformações envolvendo coletividades Macuxi. 2014. Dissertação (Mestrado em Ambiente e
Desenvolvimento) – Programa de de Pós-Graduação em Ambiente e Desenvolvimento do Centro
Universitário UNIVATES, Lajeado/RS, 2014.

COUDREAU, H.-A. Voyage au rio Branco: aux. montagnes de la lune au haut trombetta (mai
1884-avril 1885). Rouen: Imprimirie de Espérance Cagniard, 1886.

CIDR – Centro de Informação da Diocese de Roraima. Índios de Roraima: Makuxí, Taurepang,


Ingarikó, Wapixana. Coleção histórico-antropológica nº 1. Boa Vista: Editora Coronário, 1989.

FARAGE, Nádia. As muralhas dos sertões: os povos indígenas no Rio Branco e a colonização. Rio
de Janeiro: Paz e Terra, 1991.

FRANK. Erwin. Objetos, imagens e sons: a etnografia de Theodor Koch-Grünberg (1782-1924).


Bol. Mus. Para. Emílio Goeldi. Cienc. Hum., Belém, v. 5, n. 1, p. 153-171, jan.- abr. 2010.
Disponível em: <http://www.museu-
goeldi.br/editora/bh/artigos/chv5n1_2010/memoria_objetos(frank).pdf>. Acesso em 10 jun. 2017.

RABELO FILHO, Manoel Gomes. ARAÚJO, Jacilda Barreto de. A representação social do
Kanaimî, do Piya’san e do Tarenpokon. Olhares Amazônicos: Revista do Núcleo de Pesquisas
Eleitorais e Políticas da Amazônia. NUPEPA/UFRR. Vol. 03 n. 02, p. 626-637, 2015.

RABELO FILHO, M. G.. A representação social do Kanaimî, do Piya’san e do Tarenpokon nas


Malocas Canta Galo e Maturuca. 2012. Dissertação (Mestrado em Ciências da Religião) –
Programa de Mestrado em Ciências da Religião, UNICAP: Recife, 2012.

SANTILLI, Paulo. Pemongon Patá: território Macuxi, rota de conflito. São Paulo: UNESP,
2001.

WITHEHEAD. Dark Shamans: Kanaimà and the poetics of violent dead. Duke University Press.
Duham & London, 2002.

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CAMINHOS DA INTOLERÂNCIA: O PASSADO QUE AINDA NÃO PASSOU.


A FOGUEIRA AINDA ESTÁ ACESA

Rosalia Soares de Sousa


Mestra em Ciências da Religião.
Universidade Católica de Pernambuco
rosageoceano@hotmail.com

Maria da Conceição Barros Costa Lima


Especialista em Metodologia do Ensino Superior.
Universidade Católica de Pernambuco.
poderdemaria@hotmail.com

Resumo:A história das religiões e instituições religiosas está repleta de contribuições para a
sociedade, mas também de males, a exemplo da intolerância através da queima de livros ou
da utilização de métodos dolorosos como a perseguição, matança e queima de pessoas que
professam outros credos ou que simplesmente interpretam de maneira diferente o mesmo
sistema de crença. O presente artigo busca refletir sobre aspectos da intolerância religiosa
ocorridos no passado histórico, mas que ainda hoje se encontram presentes na sociedade
através, entre outras formas, da queima de livros e do acender da fogueira para pessoas
acusadas de bruxaria. Essa prática, ao contrário do que se poderia esperar, ainda acontece na

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atualidade. Longe de colocar essa situação nas generalizações, a intolerância religiosa é fato
ainda que se considere a cultura da época. Violência é violência, apesar de variar no tempo e
espaço. As crenças, os discursos e as práticas utilizadas nas religiões refletem a realidade
dessas na sociedade. Assim, a busca pelo diálogo inter-religioso deve estar presente mais do
que nunca, principalmente na educação como caminho que possibilita minimizar a
intolerância religiosa e solidificar a liberdade.

Palavras-chave: Diálogo inter-religioso; intolerância religiosa; liberdade religiosa.

INTRODUÇÃO

O fenômeno da violência e intolerância religiosa se perde no tempo e no espaço.


Aconteceu na Antiguidade, passou pela Idade Média, Moderna e chegou até a
contemporaneidade. Seja na Europa, seja na América, mais precisamente no Brasil, os casos
registrados sobre matança de pessoas na fogueira acusadas de bruxaria ou de feitiçaria não
foram poucos. Tal atitude representou e representa um desafio para a sociedade,
independentemente das razões que motivaram e ainda motivam tais atrocidades.
O presente artigo reúne alguns casos de violência e intolerância religiosas que ocorreram
no continente europeu, americano, inclusive em nosso país, ora contra pessoas, ora contra obras
religiosas, como é o caso do Ato de Fé de Barcelona. Esse último se deu contra obras espíritas e
envolveu a Espanha e a França.
Para efeito de entendimento deste artigo, foi considerada intolerância religiosa aquela
adotada no Relatório sobre intolerância e violência religiosa no Brasil (2011-2015), ou seja,
“conjunto de ideologias e atitudes ofensivas a diferentes crenças e religiões, podendo - em
casos extremos - tornar-se uma perseguição. Nesse sentido, a intolerância religiosa é um
“crime de ódio que fere a liberdade e a dignidade humana”. É uma violência caracterizada
por perseguição através de discriminação, ofensas e muitas vezes com atitudes que levam
pessoas a serem queimadas na fogueira como casos ocorridos na atualidade1. (BRASIL,
2015, pág. 8).
O referido artigo foi organizado ressaltando três aspectos. O primeiro trouxe pontos
referentes à fogueira da inquisição, como a queima de livros e pessoas. O segundo
fundamenta-se em documentos normativos e no diálogo inter-religioso e o terceiro destaca a
importância da educação como uma possibilidade para minimizar a violência e a intolerância
religiosa no Brasil.

1
ONU faz alerta sobre ataques a pessoas acusadas de bruxaria em Papua Nova Guiné. disponível no site: <
https://nacoesunidas.org/onu-faz-alerta-sobre-ataques-a-pessoas-acusadas-de-bruxaria-em-papua-nova-guine/ >

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1. AS FOGUEIRAS DA INQUISIÇÃO ACESAS: LIVROS E PESSOAS TODOS


QUEIMAM

A intolerância religiosa é muito antiga e se perde no tempo. Apesar dessa antiguidade,


o rastro que deixou e continua a deixar consegue surpreender pela crueldade a qual é
submetida sua vítima. Como exemplos dessa intolerância, destacaram-se as perseguições e
queima de livros e de pessoas nas fogueiras da Inquisição, acusadas de bruxaria,
principalmente no período denominado “caça às bruxas”. Esse período se distingue do
século XV ao XVIII, no continente europeu, e foi caracterizado pela perseguição religiosa e
social nos países que hoje correspondem a Inglaterra, Suíça, Alemanha, França, Itália,
Portugal e Espanha.
A situação de perseguição e acusação de bruxaria era levada tão a sério, que se chegou
a escrever um livro denominado “Malleus Maleficarum”, que significa, literalmente, O
Martelo das Feiticeiras2 ou O Martelo das Bruxas. Perseguição, tortura, subtração de bens e
matança passaram a ser frequentes, e tal livro foi utilizado como um guia durante a chamada
“Santa Inquisição” pelos inquisidores. Como consequência da utilização e aplicação das
orientações contidas nesse livro, foram enviadas à fogueira mais de cem mil mulheres
acusadas de bruxaria
Esse livro se destacou como sendo uma referência sobre heresia por bruxaria e servia
ao cumprimento do que indicava a bula papal denominada Summis Desiderantis Affectibus,
de Inocêncio VIII. Todavia, outra bula papal, Super Illius Specula,do ano 1326, também
destacava a bruxaria como sendo uma heresia. Há quem defenda que a Igreja Católica nunca
foi favorável a essa obra, teria sido inserido no Index Librorum Prohibitorum, e os dois
autores dominicanos excomungados porque teriam continuado com a publicação do livro.
Outras surgiram explicando como lidar com a heresia.

2
O mais famoso de todos os livros sobre bruxaria, MalleusMaleficarum (O martelo das bruxas) foi escrito em
1486 por dois monges dominicanos. No ato e, ao longo dos três séculos seguintes, se converteu no manual
indispensável e a autoridade final para A Inquisição; para todos os "julgadores", magistrados e sacerdotes,
católicos e protestantes, "na luta contra a bruxaria" na Europa. Abarcava os poderes e práticas dos bruxos, suas
relações com o demônio e sua descoberta. A Inquisição, a fogueira, a tortura, mental e física, da cruzada contra
"a bruxaria": tudo isto é conhecido. E por trás de cada um dos atos sanguinários se encontrava esse livro, ao
mesmo tempo justificando e como manual de instrução. Para qualquer compreensão da história e natureza da
bruxaria e do satanismo, MalleusMaleficarum é a fonte mais importante. A primeira fonte. (FREAK,pág. 03).

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Independentemente da obra ter sido proibida ou não pela Igreja, o livro existiu e teria
sido utilizado pelos inquisidores. Todavia, o que tristemente se destaca no livro Malleus
Maleficarum é a clara perseguição às mulheres. Isso é fato:
É marcante na obra de Institoris que a bruxaria era algo exclusivamente feminino -
enquanto outros autores da época consideravam que as mulheres eram apenas
propensas à superstição - ele foi além, afirmando que os pontos fracos tornavam a
mulher passível às ciladas do diabo, em corpo e espírito - sendo o único inquisidor
até então a ligar a bruxaria como algo inerente com o sexo feminino; isto para ele
era algo simples, um fato verificado por meio de sua própria experiência e pelo
senso comum - e qualquer prova em contrário era prontamente posta de lado por
ele. (FREAK, 20017, p.03)

Como é possível confirmar através dessa citação, os homens acusados de bruxaria


eram quase inexistentes, ao contrário das mulheres que eram acusadas de serem bruxas. Tal
atitude reflete uma misoginia machista. Ódio à mulher levado à Inquisição e refletido pelo
livro em questão. Foram inúmeros casos de injustiças que o referido livro tratou como sendo
de bruxarias, mas percebe-se verdadeiros atos de covardia e crueldade. “Isso fez com que a
tortura para se obter confissões de bruxarias incluísse procedimentos tarados, ou seja,
sexualmente perversos, que incluíam o voyeurismo e o sadismo”. (BYINGTON,2016, p 15-
16).
Atitude psicológica não é intensão desse artigo, mas nem por isso poderemos nos
abster. Nesse sentido, importa destacar tão somente que, desde a mais remota antiguidade, a
bruxaria ou feitiçaria existia e se combatia na sociedade e sem ter a pretensão de confirmar
ou negar tal fenômeno (bruxaria ou feitiçaria), mas de afirmar a existência da violência e
intolerância religiosas a partir desses acontecimentos na sociedade, passaremos a destacar
vários casos tidos como bruxaria e feitiçaria que a História registrou. São eles: o Código de
Hamurabi (1800 a. C), a Bíblia hebraica e as Doze Tábuas do direito romano (451 a. C).
Nesse último caso, teria ocorrido a execução de 170 pessoas, na Itália Central. No intervalo
de tempo correspondente entre os anos de 184 a.C. a 180 a.C, Roma teria executado
aproximadamente 5.000 pessoas. A legislação teria sido aprimorada com o passar dos anos,
restringindo a prática de bruxaria por parte do Imperador Augusto, através da queima de
mais de 2000 obras de magia. Tal fato teria acontecido em Roma.
Em 354 a.C, época do Imperador Tiberius Claudiu, 45 homens e 80 mulheres teriam
sido executados acusados de feitiçaria. Ao se tornar a religião oficial do Império Romano
(década de 390), a Igreja Católica teria dado continuidade ao horrendo ato através dos
concílios de Elvira3, em 306 e de Ancira, no ano de 314. Portanto, a fogueira não foi acesa

3
Mais informações no site: <http://www.newadvent.org/cathen/05395b.htm>

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pela instituição Igreja Católica e teria sido combatida por ela num período da Baixa Idade
Média. Posteriormente, ainda nesse período (Baixa Idade Média), a fogueira de caça a bruxa
foi reacendida e essa mesma instituição religiosa fez muito uso dessa prática ao acusar
pessoas de heresia.
No período compreendido entre fim do século XIV até meados do século XVIII, a
fogueira esteve acesa mais do que nunca, majoritariamente contra as mulheres. Esse período
caracterizou-se pela “repressão sistemática ao feminismo”. Assim, “estamos nos referindo
aos quatro séculos de “Caça às bruxas”. (MURARO, 2014, pág. 184). Nesse período,
também aconteceu a Reforma Protestante onde muitos que pensavam diferentes da Igreja
Católica e desejavam uma mudança no seu interior sofreram perseguições que consistia em
acusações de heresia, julgamento, perda dos bens e finalmente a queima na fogueira da
inquisição. Todas vítimas da violência e intolerância religiosa. Período de muito
derramamento de sangue. Importante salientar que independentemente de haver divergências
referentes ao quantitativo de pessoas vítimas da fogueira da inquisição, ter o controle sobre
esse número de execuções é quase impossível pela frequência com que esse fato ocorria no
continente europeu, e mais, para efeito deste artigo, o que interessa é o fato de haver morte
de pessoas na “fogueira da intolerância”, seja por bruxaria, seja por heresia ou outro motivo.

Importante destacar que o passado ainda não passou quando se trata da queima de
pessoas vivas, literalmente, na fogueira. Ato esse de violência e intolerância em pleno século
XX e XXI (pasmem!).

Nessa perspectiva, selecionamos acima, alguns números referentes às pessoas


acusadas de bruxaria ou feitiçaria em vários períodos da História. Destacamos nas linhas
abaixo, alguns casos que entendemos devam ser classificados como sendo de pessoas
acusadas de bruxaria ou feitiçaria e heresia que pereceram, principalmente, no horror da
fogueira.

Matteuccia de Francesco. Ano: 1428. A “Bruxa de Ripabianca” como era conhecida.


O seu julgamento foi registrado na região da Úmbria. Ela foi acusada de ser “uma mulher de
hábitos maléficos e de prostituição, feiticeira e bruxa”, praticando feitiços contra os
moradores de Ripabianca. Foi julgada e condenada à morte na fogueira.(SGI, 2017).

Girolamo Savonarola. De tanto criticar os “abusos na vida eclesiástica, a imoralidade


de grande parte do clero” e dentre eles os da Cúria romana, além de “príncipes e cortesãos”

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foi excomungado e, por ordem do papa, condenado à morte em 1498. “Foi torturado e
enforcado, e o seu corpo queimado em praça pública”. (SGI, 2017).

Joana d’Arc (1412-1431) foi executada em Rouen, França. Foi acusada de heresia.
Foi presa, julgada e condenada à morte na fogueira. No site do Vaticano, o papa Bento XVI
assim se refere a Joana d’Arc.: “Joana é acusada e julgada por eles, a ponto de ser
condenada como herege e enviada à morte terrível da fogueira. ” ‘Os juízes de Joana são
radicalmente incapazes de a compreender, de ver a beleza da sua alma: não sabiam que
condenavam uma santa.”. Vinte e cinco anos depois, abre-se o Processo de Nulidade contra
a condenação de Joana:

Conclui-se com uma solene sentença que declara nula a condenação (7 de julho de
1456; PNul, II, pp. 604-610). Este longo processo, que reuniu as deposições das
testemunhas e os juízos de muitos teólogos, todos favoráveis a Joana, evidencia a
sua inocência e a sua fidelidade perfeita à Igreja. Joana d’Arc será depois
canonizada por Bento XV, em 1920. (BENTO XVI, 2011).
Os juízes, a que o papa Bento XVI se refere foram àqueles incumbidos de apoiar o
julgamento de Joana d’Arc, eram oriundos da Universidade de Paris.

Outras pessoas acusadas de heresia foram registradas nas páginas da História, como
John Hus e Jerônimo de Praga, muito antes da Reforma Protestante. E após esta, houve a
matança aos protestantes huguenotes, na França, que passou para a história como A Noite de
São Bartolomeu. Todavia, aqueles descritos na mídia como os mais atuais datam dos anos
2000-2014,4

Em pleno século XXI, precisamente no ano de 2013, uma “jovem de 21 anos e mãe de
dois filhos foi despida e torturada até confessar que praticava bruxaria. Logo depois, foi
queimada viva no aterro sanitário local diante de uma multidão”. Tal atrocidade ocorreu em
Papua Nova Guiné e credita-se que 150 pessoas sejam queimadas anualmente nesse país. A
maioria, mulheres. (ONU, 2013).

São atos de violência e intolerância que ferem os Direitos Humanos, direitos à vida e a
liberdade religiosa, dentre outros, e precisamos estar atentos para não sermos tomados pela
indiferença. Indignação e reação diante tamanha aberração são atitudes que nos tornam
humanos. Que cada pessoa contribua de conformidade com suas condições para extirpar
essa chaga da sociedade. Afinal, a humanidade já evoluiu tanto tecnologicamente, por que
não evolui humanamente já que somos humanos?

4
Ver relatos no site:
<https://pt.wikipedia.org/wiki/Lista_de_pessoas_executadas_por_acusa%C3%A7%C3%A3o_de_bruxar>

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No tocante à queima de livros, destacaremos o Auto de Fé de Barcelona5. Foi um


episódio de intolerância religiosa contra o Espiritismo, resquícios da Idade Média, por meio
do qual onde a fogueira foi literalmente acesa contra 300 obras espíritas, cujas ideias
sobrevivem até hoje, apesar de terem sido lançadas ao fogo.

Entre as obras queimadas destacam-se: A Revista Espírita, cujo diretor era o próprio
Allan Kardec; O Livro dos Espíritos;O Livro dos Médiuns; O que é o Espiritismo;“A
História de Joana d’Arc, ditada por ela mesma à Srta. Ermance Dufau; ” “A realidade dos
Espíritos demonstrada pela escrita direta, pelo Barão de Guldenstubbé.”

Apesar de ter pago as taxas alfandegárias, o bispo de Barcelona recusou-se a


reexportar as obras de Allan Kardec, tendo alegado que “A Igreja católica é universal; e
sendo estes livros contrários à fé católica, o governo não pode consentir que venham
perverter a moral e a religião de outros países. ” (FEB, 1861, Pág. 466).

Allan Kardec assim escreveu referindo-se ao aludido evento:

“O fato em si mesmo parece tão estranho ao tempo em que vivemos, está de tal
modo longe de nossos costumes que, por maior cegueira reconheçamos no
fanatismo, pensamos sonhar ao ouvir dizer que as fogueiras da Inquisição ainda se
acendem em 1861, às portas da França. ” (Idem, pág.465).

Tal fato ocorrido na Espanha acabou despertando a curiosidade da população local e, a


partir daí o Espiritismo ficou mais conhecido e despertou o interesse da população, pois 11
anos depois desse fato nascia a Sociedade Espiritista Espanhola:

En 1872 nace la “Sociedad Espiritista Española”, bajo la presidencia efectiva


de Torres-Solanot, instalándose la nueva sociedad, en la Calle Cervantes de
Zaragoza, donde se realizaban sesiones y conferencias públicas, y tenía su sede su
órgano, “El criterio espiritista”, de publicación mensual, en cuadernos de 24
páginas, con artículos doctrinarios, de polémica, bibliográficos, traducciones,
comunicaciones de los Espíritus, y resúmenes de los trabajos de las Sociedades
Espíritas, poesías mediúmnicas y noticias interesantes además de para la Doctrina,
también para su divulgación. (FEE)

Nesse contexto, no ano de 1888, é realizado o I Congresso Espírita Internacional em


Barcelona, no mesmo local onde ocorrera o “Auto de Fé de Barcelona”, conforme destaca a
referida Federação:

Este célebre Congreso se realizó en el “Salón Eslava“, situado en la “Ronda de


San Pedro”. En aquella oportunidad no fue posible contar con un local más

5
Para ler a notícia na íntegra, o texto “Resquícios da Idade Média AUTO-DE-FÉ DAS OBRAS ESPÍRITAS
EM BARCELONA”, publicado na Revista Espírita, pág. 465-470. Disponível no site:
<http://www.febnet.org.br/ba/file/Downlivros/revistaespirita/Revista1861.pdf>

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deseado, por realizarse al mismo tiempo la Exposición Universal, ocupando el


propio lugar donde, en 1861, se realizó el “Auto de Fe de Barcelona”. (Idem).

Vários países enviaram representações para participar desse evento, como França,
Bélgica, Rússia, Itália, Porto Rico, México Argentina, Chile e Estados Unidos. Como
consequência desse congresso, o Espiritismo passou a ser visto como ciência. Se Allan
Kardec ficou horrorizado pela violência e intolerância com esse Auto de Fé, imaginemos
qual seria a sua reação frente à queima de pessoas em pleno século XXI.

Nesse sentido, longe de colocar essa situação nas generalizações, a intolerância


religiosa é fato, ainda que se considere a cultura da época (Antiguidade, Idade Média...).
Violência é violência, apesar de ser diversificada no tempo e no espaço. As crenças, os
discursos e as práticas utilizadas nas religiões refletem a realidade destas na sociedade e o
tipo de violência empregada.

2. DOS CAMINHOS DA INTOLERÂNCIA PARA O DIÁLOGO INTER-


RELIGIOSO
A possibilidade de caminhada rumo ao diálogo inter-religioso é uma opção que tem
início na Constituição da República Federativa do Brasil de 1988. Ela é explícita e sem
ambiguidade quando trata do direito à vida, da liberdade, do respeito à opção religiosa, da
violência e da intolerância religiosa:
Art. 5º Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza,
garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade
do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade...
VI - É inviolável a liberdade de consciência e de crença, sendo assegurado o livre
exercício dos cultos religiosos e garantida, na forma da lei, a proteção aos locais de
culto e a suas liturgias;
VIII - ninguém será privado de direitos por motivo de crença religiosa ou de
convicção filosófica ou política, salvo se as invocar para eximir-se de obrigação
legal a todos imposta e recusar-se a cumprir prestação alternativa, fixada em lei;
(BRASIL, 1988, grifo nosso).

Portanto, pensar a questão religiosa é ter a certeza de que, no Brasil, todos têm o
direito constitucional de optar por uma religião6, de mudar de religião, de optar por ter uma
dupla pertença religiosa, ou simplesmente não ter nenhuma religião. E todos devem ser

6
Religião é uma “teia de símbolos, rede de desejos, confissão da espera, horizonte dos horizontes, a mais
fantástica e pretenciosa tentativa de transubstanciar a natureza. Não é composta de itens extraordinários. Há
coisas a serem consideradas: altares, santuários, comidas, perfumes, lugares, capelas, templos, amuletos,
colares, livros. . . e também gestos, como os silêncios, os olhares, rezas, encantações, renúncias, canções,
poemas romarias, procissões, peregrinações, exorcismos, milagres, celebrações, festas, adorações. ”
(ALVES,2014).

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respeitados na sua opção religiosa. Respeitados pelo Estado, pelos governos, pelas
instituições religiosas, pelos líderes religiosos e pela população em geral.
Em harmonia com o pensamento de Rubem Alves sobre a linguagem, religiosa,
acreditamos que ela (linguagem religiosa) fala de “coisas invisíveis”, sentimentos e
sensações que estão “para além dos nossos sentidos comuns” e diferem das coisas profanas:
“É ao invisível que a linguagem religiosa se refere ao mencionar as profundezas da alma, as
alturas dos céus, o desespero do inferno, os fluidos e influências que curam, o paraíso, as
bem-aventuranças eternas e o próprio Deus. ” (ALVES, 2014, pág.27).
Deus, Deuses, Força Cósmica Universal, Tudo, Nada, Encantados e por aí vai. “Para a
religião, não importam os fatos e as presenças que os sentidos podem agarrar. Importam os
objetos que a fantasia e a imaginação7 podem construir.” (Idem, pág.30-31). A religião
busca dar sentido à vida. Portanto, a violência e a intolerância das fogueiras acesas que
apareciam e ainda aparecem, no passado e no presente, não se justificam quando colocamos
as pessoas que professam uma religião à luz do direito ao qual fazem jus. Mas por incrível
que pareça, ainda nos deparamos com noticiários de pessoas mortas acusadas de bruxaria.
É o caso de uma mulher indígena que foi queimada viva: “Indígena acusada de
bruxaria é queimada viva no Paraguai. ” (G1, 2014). E no Brasil: Fabiane Maria de Jesus foi
morta acusada de bruxaria. Na verdade, ela foi confundida com outra mulher acusada de
rapto de crianças para praticar “magia negra8”. (Idem). São violências que geram violência.
Apesar dos inúmeros casos de intolerância religiosa que a história registra, o diálogo
inter-religioso é possível, segundo Raimon Panikka. Nessa perspectiva, buscamos
compreender a necessidade de diálogo na sociedade atual pois:
O encontro entre as religiões é tão vital que, de fato, mais ou menos, todas as
grandes religiões atuais são fruto desses encontros. Que seria hoje o cristianismo
sem o profundo sincretismo que brotou das suas raízes hebraicas, gregas, romanas
e germânicas? Que seria isso a que chamamos hinduísmo sem a contribuição das
numerosas religiões do subcontinente indiano? (PANIKKA, 2007, pág. 39).

7
O pensamento de Rubem Alves sobre a fantasia e a imaginação: “Sei que tal afirmação parece sacrílega.
Especialmente para as pessoas que já se encontraram com o sagrado. De fato, aprendemos desde muito cedo a
identificar a imaginação com aquilo que é falso. Afirmar que o testemunho de alguém é produto da imaginação
e da fantasia, é acusá-la de perturbação mental ou suspeitar de sua integridade moral. [...]. Não, não estou
dizendo que a religião é apenas imaginação, apenas fantasia. Ao contrário, estou sugerindo que ela tem o
poder, o amor e a dignidade do imaginário. [...]. Por que razões os homens fizeram flautas, inventaram danças,
escreveram poemas, puseram flores nos seus cabelos e colares nos seus pescoços[...]? Onde estava a flauta
antes de ser inventada? E o jardim? E as danças? E os quadros? Ausentes. Inexistentes. Nenhum conhecimento
poderia jamais arrancá-los da natureza. Foi necessário que a imaginação grávida para que o mundo da cultura
nascesse. Portanto, ao afirmar que as entidades da religião pertencem ao imaginário, não as estou colocando ao
lado do engodo e da perturbação mental. Estou apenas estabelecendo sua filiação e reconhecendo a
fraternidade que nos une.
8
Sobre a “magia negra”, leia o texto: “Cuidado com a magia negra” disponível no site:
<http://crunicap.blogspot.com.br/2011/03/cuidado-com-magia-negra.html>

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Em consonância com Panikka, é fato que o diálogo é indispensável, haja visto o


desenvolvimento da tecnologia e a facilitação da circulação de pessoas, bens e serviços, as
migrações internacionais migrações muitas vezes forçadas por questões de conflitos internos
ou entre países e dando origem unindo pessoas por um lado e separando, por outro. São
situações que forçosamente promovem o encontro entre pessoas com diferentes religiões.
“Os nossos atuais problemas de justiça, ecologia e paz, requerem uma compreensão
recíproca entre os povos do mundo”. (Idem).
Nessa perspectiva, o autor supracitado esclarece que é indispensável que esse diálogo
seja aberto, pois ninguém fica fora dele, pelo menos a princípio, nenhuma associação deve
ter o monopólio da religião. O diálogo também é interior, pois tem início na “dimensão mais
profunda do nosso ser”. Ele é linguístico, porque o “mundo é um universo simbólico e a
linguagem é o principal órgão humano para participar na vida”. O diálogo religioso inter-
religioso entra em contato com problemáticas humanas que influenciam a vida da pólis.
“(Idem, pág. 49-69).
Ainda em convergência com Panikka, o diálogo inter-religioso é mítico, religioso e
integral. Ele é mítico, pois passa pelos logos e deixa um espaço para o mythos, “a religião é
uma questão de fé. A fé é o mythos9 envolvente que torna possíveis as distintas
manifestações que constituem a religião.”. O diálogo é religioso porque é “uma autêntica
manifestação de religiosidade.” E mais, ele “requer por si uma certa conversão interior e não
pode ser um meio para atrair o outro para o nosso ponto de vista.”. Panikka também afirma
que o diálogo inter-religioso é integral porque ele é “uma aproximação holística” e sua
natureza é litúrgica e cósmica. (Idem, pág. 77-98).

3. AS FOGUEIRAS DA INQUISIÇÃO AINDA ESTÃO ACESAS. COMO APAGAR?

A educação e a escola são mediadoras no processo de socialização do diálogo e da


tolerância10 como possibilidades para minimizar a intolerância religiosa existente.
Materiais pedagógicos, como a Cartilha da Diversidade Religiosa e Direitos
Humanos11, são uma possibilidade para refletir com os estudantes a questão da Diversidade

9
Panikka afirma “ O mythos poderia, com efeito, considerar-se como o conjunto das condições tácitas de
possibilidade (e, portanto, de credibilidade) de um determinado estado de coisas. ” (PANIKKA, 2003, pág. 81-
82)
10
O entendimento sobre tolerância para efeito desse artigo encontra-se em conformidade com a UNESCO na
Declaração de Princípios sobre Tolerância, disponível no site:
<http://unesdoc.unesco.org/images/0013/001315/131524porb.pdf>

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Religiosa no Brasil. Esse documento faz referências ao Estado Laico, à rica diversidade
religiosa em nosso país, a aspectos sobre a Declaração Universal dos Direitos Humanos, ao
Programa Nacional dos Direitos Humanos e à Constituição Brasileira. São reflexões que
contribuem para a socialização do respeito à diversidade cultural-religiosa do Brasil e
combate à intolerância religiosa.
Outro material igualmente importante é o Relatório sobre intolerância e violência
religiosa no Brasil (2011-2015)12. Esse documento apresenta uma pesquisa realizada no
território brasileiro e buscou mapear atos de violência e intolerância religiosa no período de
2011 a 2015.
No âmbito estadual, é importante referenciar os Parâmetros Para a Educação Básica
do Estado de Pernambuco: Parâmetros Curriculares do Ensino Religioso para o Ensino
Fundamental13. Através desse documento, o estado de Pernambuco deu um grande passo
na direção de um Ensino Religioso não confessional, fundamentado nas Ciências da
Religião.
O documento supracitado tem cinco eixos, a saber: “Introdução ao Ensino e ao
Fenômeno Religioso”. O objetivo desse eixo é iniciar docentes e discentes na área de
conhecimento das Ciências da Religião, uma vez que, no estado de Pernambuco, não existe
licenciatura nessa área. O segundo eixo “Diversidade Cultural-Religiosa e diálogo inter-
religioso” destaca documentos normativos de reconhecimento à diversidade.
O terceiro eixo temático “Elementos Constituintes das Tradições e/ou Culturas
Religiosas” tem como preocupação a necessidade de compreensão dos aspectos que
caracterizam a religião em especial as brasileiras.
O quarto eixo “Paisagem Religiosa e Lugares Sagrados” como o nome já sugere,
destaca as paisagens e os lugares sagrados, aborda o conceito de sagrado e de profano. O
quinto eixo “Temas Transversais geradores de diálogo inter-religioso: cidadania, religiões e
democracia” busca destacar aspectos da sociedade atual que surgem no cotidiano escolar.
(PERNAMBUCO, 2015, pág.23).
Nesse contexto, “Compreender as relações entre o visível e o invisível, os elementos
emocionais, vivenciais e intelectuais, ligados à prática religiosa”, “Compreender a
11
Essa Cartilha está disponível no site: <http://www.sdh.gov.br/assuntos/bibliotecavirtual/promocao-e-
defesa/publicacoes-2013/pdfs/diversidade-religiosa-e-direitos-humanos>
12
O referido Relatório está disponível no site: <http://www.sdh.gov.br/sobre/participacao-
social/cnrdr/pdfs/relatorio-de-intolerancia-e-violencia-religiosa-rivir-2015 >
13
Os Parâmetros Curriculares de Ensino Religioso estão disponíveis no site da Secretaria de Educação do
Estado de Pernambuco:
http://www.educacao.pe.gov.br/portal/upload/galeria/4171/Par%C3%A2metros%20Curriculares%20de%20En
sino%20Religioso_atualizado.pdf

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diversidade cultural-religiosa na história da humanidade, valorizando o diálogo e o respeito


para com as outras religiões”, “Reconhecer a diversidade cultural-religiosa como
patrimônio da humanidade”, entre outros, fazem parte das expectativas de aprendizagem do
componente curricular Ensino Religioso do estado. (Idem).
Nessa perspectiva, trazer à tona o passado para compreender as aberrações
(atrocidades) que o ser humano é capaz de cometer para poder escolher novos caminhos que
contribuam para a liberdade, justiça e paz na sociedade passa a fazer sentido quando se
busca dar continuidade ao processo de ensino e aprendizagem pautado nos princípios da
educação nacional, ou seja, liberdade, igualdade, “pluralismo de ideias e concepções
pedagógicas”, e solidariedade humana, entre outros, com base no “pleno desenvolvimento
do educando, seu preparo para o exercício da cidadania” (BRASIL).

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Diante dos vários casos de violência e intolerância religiosa expostos nesse artigo,
bem como naqueles indicados através dos sites, conclui-se que o respeito às diferentes
crenças, a liberdade de religião e a garantia do Estado Laico representam uma necessidade
urgente para a sociedade.
A Secretaria Especial de Direitos Humanos do Ministério das Mulheres, da Igualdade
Racial, da Juventude e dos Direitos Humanos acertou na iniciativa de construir o Relatório
sobre intolerância e violência religiosa no Brasil referente ao período de 2011 a 2015. Esse
relatório pode ser utilizado para reflexão acerca das ações possíveis na educação.
Ainda no contexto da Educação Escolar, é possível contribuir através dos diversos
componentes curriculares, especialmente por meio do Ensino Religioso que em seus eixos,
conteúdos e expectativas de aprendizagens a borda a questão da liberdade religiosa,
intolerância religiosa e respeito à diversidade cultural-religiosa.
Trazer, para a discussão, as heresias por bruxaria ou feitiçaria, como os diversos
documentos registraram, ao longo da História, permite refletir sobre a violência e a
intolerância religiosa que acometeu e acontece nas sociedades.
Assim, a conscientização em relação aos Direitos Humanos fica evidente. Bruxaria ou
feitiçaria não tem respaldo no contexto das Ciências da Religião, mas socialmente ainda são
termos empregados, inclusive pela mídia, ao relatar casos de intolerância religiosa.
E para não concluir este artigo, mas dar uma grande pausa para as reflexões aqui
expostas reiteramos que Raimon Panikka acertou ao chamar a atenção da sociedade para a

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necessidade do diálogo inter-religioso, um diálogo que deve ser aberto, interior, linguístico,
político, mítico, religioso, integral e permanente.

REFERÊNCIAS

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BENTO XVI. Audiência Geral. Sala Paulo VI. Vaticano. Disponível no site:
<https://w2.vatican.va/content/benedict-xvi/pt/audiences/2011/documents/hf_ben-
xvi_aud_20110126.html>. Acesso em 12 nov. 2017.

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<http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicaocompilado.htm> acesso em
20 out 2017.

____. Censo 2010. Notícias: Censo 2010: número de católicos cai e aumenta o de
evangélicos, espíritas e sem religião. Disponível no site:
<https://censo2010.ibge.gov.br/noticiascenso.html?view=noticia&id=3&idnoticia=2170&bu
sca=1&t=censo-2010-numero-catolicos-cai-aumenta-evangelicos-espiritas-sem-religiao>
acesso em 20 out 2017.

____. LDB. Dos princípios e fins da educação nacional. Disponível no


site:http://www.secon.udesc.br/leis/ldb/ldb2

____. Relatório sobre intolerância e violência religiosa no Brasil (2011-2015): resultados


preliminares / Ministério das Mulheres, da Igualdade Racial, da Juventude e dos Direitos
Humanos; organização, Alexandre Brasil Fonseca, Clara Jane Adad. – Brasília: Secretaria
Especial de Direitos Humanos, SDH/PR, 2016. Disponível no site:
http://www.sdh.gov.br/sobre/participacao-social/cnrdr/pdfs/relatorio-de-intolerancia-e
violencia-religiosa-rivir-2015 > acesso em 20 out 2017.

FEB. Revista Espírita. Resquícios da Idade Média: auto-de-fé das obras espíritas em
Barcelona. Ano Quarto. 1861. Disponível no site:
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30 out 2017.

BYINGTON, Carlos Amadeu B. O Malleus maleficarum à luz de uma teoria simbólica


da história. Disponível no site: <http://www.carlosbyington.com.br/site/wp-
content/themes/drcarlosbyington/PDF/pt/prefacio_malleus_III_martelo_das_feiticeiras.pdf>

FEE. FEDERAÇÃO ESPÍRITA ESPANHOLA. Espíritas relevantes. Disponível no site:


<https://espiritismo.es/ano-i-boletin-noticias-no-11-noviembre-2-017/> acesso em 20 out
2017.

FREAK, Alexander. Malleus maleficarum. O Martelo das Bruxas. Disponível no site:


<http://www.mkmouse.com.br/livros/malleusmaleficarum-portugues.pdf> Acesso em 16
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NEW ADVENT. Feitiçaria. Disponível no site:


http://www.newadvent.org/cathen/15674a.htm> acesso em 25 out. 2017.

G1. O portal de notícias da globo. Indígena acusada de bruxaria é queimada viva no


Paraguai. Disponível no site: http://g1.globo.com/mundo/noticia/2014/11/indigena-
acusada-de-bruxaria-e-queimada-viva-no-paraguai.html

____. Acusados de linchar dona de casa após boato na web são condenados. Disponível
no site: <http://g1.globo.com/sp/santos-regiao/noticia/2017/01/acusados-de-linchar-dona-de-
casa-apos-boato-na-web-sao-condenados.html> acesso 30 out 2017.

MURARO, Rose Marie. Breve introdução histórica [ao livro O martelo das feiticeiras].
Disponível no site: <file:///C:/Users/rosalias/Downloads/2452-2501-1-PB.pdf> acesso em 25
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ONU. Organização das Nações Unidas. Violência contra as mulheres, por Navi Pillay.
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PANIKKA, Raimon. O diálogo indispensável – Paz entre as religiões. 1ª edição. Zéfiro,


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PERNAMBUCO. Parâmetros para a Educação Básica do Estado de Pernambuco:


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http://www.educacao.pe.gov.br/portal/upload/galeria/4171/Par%C3%A2metros%20Curricul
ares%20de%20Ensino%20Religioso_atualizado.pdf > acesso em 15 out 2017.

SGI. Sociedade Gnóstica Internacional. Os sete assassinatos mais famosos cometidos


pelos papas. Disponível no site: <http://www.sgi.org.br/pt/religioes/os-7-assassinatos-mais-
famosos-cometidos-pelos-papas/>. Acesso em 05 nov. 2017.

UM GOLPE DE CLASSE EM MARCHA: UM OLHAR SOBRE A


HISTORIOGRAFIA, A PARTICIPAÇÃO CIVIL NO GOLPE EMPRESARIAL-
MILITAR DE 1964 E AS MARCHAS DA FAMÍLIA COM DEUS PELA
LIBERDADE.

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Diego Andrev de Aguiar Lacerda


Mestre em História – Universidade Federal de Pernambuco
diego_andrev@hotmail.com

Diversos trabalhos acadêmicos tratam do período de regime empresarial-militar brasileiro.


Desde o processo de reabertura política, praticamente se consolidou na historiografia
nacional o uso da terminologia “civil-militar” para determinar o golpe que destituiu o
presidente João Goulart, em 01º de abril de 1964, bem como o regime ditatorial que o
sucedeu. Após a publicação do referenciado trabalho do pesquisador René Armand Dreifuss
“1964: a conquista do Estado” (1981), a Academia pôde entrever os meandros e
sinuosidades que envolveram a maior articulação política de nossa história para a conquista
da hegemonia, efetivada por parte do bloco de poder multinacional e associados.
Recentemente, o uso da expressão “civil-militar” vem sendo posto em discussão devido sua
utilização estar sendo relacionada com a visão simplista e controversa propagada pelo
próprio regime golpista de que a sociedade civil participou da derrubada de Goulart e
clamou pela intervenção militar, sendo as “marchas da família com Deus pela liberdade”,
incentivadas e promovidas essencialmente por setores religiosos alinhados ao bloco golpista,
seus principais incentivadores. A problematização dessa temática estimulará o debate
acadêmico envolto no apoio civil à intervenção militar existente, inclusive, em nosso atual
momento político.

PALAVRAS-CHAVE - Golpe 1964; ditadura militar; historiografia

A historiografia brasileira possui extensa produção acadêmica e vem nos últimos


trinta anos exercendo papel relevante na análise científica dos processos históricos
vivenciados pelas mais diversas partes do país. Suas características e especificidades
concedem a esses processos formas e dinâmicas distintas, assumindo um caráter próprio a
cada região do extenso território nacional.

Após a reabertura política do Brasil, em 1985 e o consequente fim do regime de


ditadura militar iniciado em 01 de abril de 1964, muitos trabalhos de pesquisadores
brasileiros dedicaram-se a pensar, problematizar e revelar à comunidade acadêmica,
diferentes aspectos vivenciados durante ele que foi o mais violento regime político da

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história brasileira, superando1 em alcance e métodos de violência a ditadura varguista. Como


sabemos, a redemocratização foi um processo conduzido e controlado pelos militares, que
deixaram o país numa situação econômica grave após os vinte anos de altos empréstimos
internacionais. Àquela altura, discutia-se no anos 1980 diferentes formas de democracia
existentes e quais modelos poderiam ser adaptados ao Brasil. As esquerdas num novo
movimento de forças populares promoviam uma onda de participação política que ficou
denominada como “novos movimentos sociais”2, do qual o maior3 expoente foi o “novo
sindicalismo” surgido na região do ABC paulista, importante polo industrial e metalúrgico
do país.

No seio de toda essa efervescência política, surge uma obra que irá alterar a forma de
se observar o regime de ditadura militar no Brasil, escrita pelo uruguaio René Armand
Dreifuss, A Conquista do Estado: ação política, poder e golpe de classe (1981). Nesta
extensa pesquisa, o autor delineia as formas utilizadas pela elite econômica brasileira,
agrupadas no Instituto de Pesquisa Econômica e Social – IPES – e no Instituto Brasileiro de
Ação Democrática – IBAD – para atuarem na esfera política realizando o maior movimento
de forças econômicas conspiratórias da história brasileira até então. Bem articulados e com
disponibilidade de recursos, esses grupos que o autor denomina de bloco do capital
multinacional e associados derruba a hegemonia do bloco anterior, formado pelas forças
oligárquicas-industriais, provenientes ainda do modelo de Estado criado com a Primeira
República. Vale destacar a riqueza de detalhes com que o pesquisador fornece os dados.
Atas constando nomes de empresários de todo o Brasil e com atuação nas mais diversas
partes do país, são reveladas, bem como suas extensas manobras políticas na busca pela
hegemonia e o controle do Estado. Setores da indústria, do comércio, da extração de
minérios, da grande imprensa nacional, da Igreja Católica além, claro, dos militares,

1
As tecnologias bélicas e de comunicação disponíveis nos anos 1960 eram muito mais abrangentes que as dos
anos 1930 utilizadas por Vargas. Para mais informações acerca do treinamento e incremento das forças
armadas do Brasil com auxílio e assessoramento da escola de guerra estadunidense ver: GAMA, Marcília.
Informação, repressão e memória. Cepe. 2014.
2
Segundo a categorização realizada pelo pesquisador Allan Luna, “os Novos Movimentos Sociais se
construíram com a marca da diferenciação para com outros movimentos sociais, apresentados como velhos e
ortodoxos, a saber, o movimento operário clássico, e seus organismos representativos, sindicatos e partidos
políticos. Surgem no contexto da crise do socialismo real e da esquerda stalinista no mundo pós-68, e mostram-
se mais inclinados a demandas sociais, de liberdade, de autonomia e de cidadania, ou seja, são incorporadas
outras questões aos movimentos, para além das que envolvem a contradição capital/trabalho, tais como
questões de gênero, raça, etnia, sexualidade, ecologia e meio ambiente, dentre outras”. LUNA, Allan. O
discreto charme da democracia: os movimentos de bairro e o festim da participação popular nas periferias do
Recife (1979-1988). UFPE. 2014. Ver também GOHN, Maria da Glória. Teoria dos movimentos sociais:
paradigmas clássicos e contemporâneos. São Paulo: Ed. Loyola, 1997;
3
No sentido apenas de alcançar maior repercussão, não diminuindo a dinâmica e especificidades de outros
movimentos também relevantes em sua alçada.

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exerceram extensa atividade política na preparação ao Golpe que em 01 de abril de 1964


viria solapar o Estado nacional subordinando-o aos interesses desses grupos, deixando
evidente a participação e atuação de elementos civis na preparação e execuação do golpe,
bem como do regime violento que o sucedeu. Damian Melo no trabalho publicado na
Revista Espaço Plural analisa a obra de Dreifuss e sua influência na historiografia brasileira,
afirmando que

a participação de elementos “civis” naquele processo não constitui grande


novidade para os que por acaso venham a se debruçar sobre a literatura acadêmica
produzida ao longo das últimas décadas, não obstante a insistência recente sobre
esse ponto lhe querer atribuir caráter de novidade. Um exemplo merece destaque: a
tese de doutorado de René Armand Dreifuss, publicada no Brasil em 1981 (e que
já se encontra em sua 11ª edição) [...] Ao contrário do que certa historiografia tem
buscado apresentar, Dreifuss não estava empenhado em apenas descrever a
conspiração levada a cabo por organizações da sociedade civil em conluio com
militares e o governo dos EUA [...]. Em sua tese, Dreifuss estudou a ação de uma
importante organização da sociedade civil o Instituto de Pesquisas e Estudos
Sociais (IPES), constituída, já no final de 1961, por setores empresarias,
executivos de empresas e oficiais das Forças Armadas (alguns na reserva, como o
general Golbery do Couto e Silva). Essa entidade, que desenvolveu uma intensa
campanha de desestabilização do governo João Goulart e de construção de um
programa de poder, passaria a atuar ao lado de outras já existentes como: o
Instituto Brasileiro de Ação Democrática (IBAD) que tinha significativa
participação no processo político brasileiro desde sua fundação em 1959; a Escola
Superior de Guerra (ESG), que formularia a doutrina de “Segurança e
Desenvolvimento”, fundamental na estruturação do regime ditatorial; organizações
extremistas como o Movimento Anti-Comunista (MAC); setores expressivos da
imprensa; além das tradicionais entidades patronais, como a Associação Comercial
do Rio de Janeiro, a Federação Brasileira de Bancos (Febraban) e a Federação das
Indústrias do Estado de São Paulo (FIESP) só para citar as mais importantes. Com
base em copiosa documentação do IPES localizada no Arquivo Nacional (RJ), o
cientista político uruguaio buscou entender a ação desta entidade como a de um
verdadeiro “partido político” (no sentido gramsciano) do capital multinacional e
associado, que havia deitado raízes na estrutura econômica do Brasil desde a
década de cinquenta, tornando-se o eixo do processo de acumulação capitalista no
país4.

A partir de então, com a revelação dos diversos setores participantes na ação golpista
de tomada de poder, diversos trabalhos acadêmicos vêm utilizando-se da nomenclatura
“civil-militar” para denominar o golpe, bem como o regime autoritário que o sucedeu, dada
a exposição que o trabalho de Dreifuss deu ao papel dos civis na articulação, preparação e
execução do golpe. Um dos historiadores que vem constantemente levantando a questão é o

4
MELO, Damian. Ditadura “civil-militar”?: Controvérsias historiográficas sobre o processo político brasileiro
no pós-1964 e os desafios do tempo presente. In: Espaço Plural, Ano XIII, N 27.2º Semestre 2012. P. 39-53.
Disponível em:
http://file.smetal.org.br/Publicacao/DITADURA/controverisas_histograficas_sobre_o_processo_politico_brasil
eiro_do_pe_64....pdf acessado em: outubro 2016.

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professor fluminense Daniel Aarão Reis, que em trabalho publicado na Revista de História
da Biblioteca Nacional5, afirmou que

é inútil esconder a participação de amplos segmentos da população no movimento


que levou à instauração da ditadura em 1964. É como tapar o sol com a peneira.
As Marchas da Família com Deus pela Liberdade mobilizaram dezenas de milhões
de pessoas, de todas as classes sociais, contra o governo João Goulart. A primeira
marcha realizou-se em São Paulo, em 19 de março de 1964, reunindo cerca de
meio milhão de pessoas. Foi convocada em reação ao Comício pelas Reformas que
teve lugar uma semana antes, no Rio de Janeiro, com 350.000 pessoas. Depois da
de São Paulo, houve a chamada Marcha da Vitória, para comemorar o triunfo do
golpe, no Rio de Janeiro, em 2 de abril. Narra a lenda que um milhão de pessoas
compareceram. Um exagero. No entanto, esteve ali, no mínimo, a mesma
quantidade de pessoas que em São Paulo. Em seguida, sucederam-se marchas em
todas as capitais dos estados, sem falar em outras, incontáveis, em cidades médias
e pequenas. Até setembro de 1964, marchou-se sem descanso no país. Mesmo
descontada a tendência humana de aderir aos vencedores, ou, simplesmente, à
Ordem, tratava-se de um impressionante movimento de massas de apoio ao golpe
[grifo do autor]6.

Fica muito clara a ênfase concedida pelo autor à presença popular pelos adjetivos que
usa para classificar o processo em curso naquele momento, “amplos” segmentos da
população, ou o “impressionante” movimentos de massas em apoio ao golpe de 01 de abril.
Seriam esse um real e impressionante movimento das massas? Seriam eles espontâneos?
Sem que nos prendamos a essas perguntas, podemos compreender “se pensarmos o conceito
de Sociedade Civil a partir de Gramsci (...) encontraremos os nexos causais a partir dos
quais uma parte da sociedade brasileira apoiou a ditadura contra outra parte da sociedade”7.
Isso ficará mais evidente adiante. O historiador Josep Fontana na obra História dos Homens
(2004) discute um pouco acerca das “guerras da história”, que consistem nas disputas e
rivalidades entre interpretações sobre o passado, constituindo as identidades de diferentes
grupos uma espécie de espaços de “luta pelo passado”. Portanto, faz-se necessário muita
cautela aos que pesquisam a história, estar atento a essas disputas e os interesses em jogo.

O historiador Damian Bezerra de Melo, em trabalho supracitado, destaca que

Daniel Aarão Reis, professor Titular de História Contemporânea da UFF, convida


a que seja retomada a atmosfera da época do golpe para que se entendam como as

5
Trabalho publicado primeiramente no jornal O Globo: REIS, Daniel Aarão. Ditadura civil-militar. O Globo,
Rio de Janeiro, caderno Prosa & Verso, 31 de março de 2012. Posteriormente republicado na Revista de
História da Biblioteca Nacional, Rio de Janeiro, agosto de 2012. Disponível em
http://www.revistadehistoria.com.br/secao/capa/o-sol-sem-peneira acessado em outubro 2016.
6
Artigo publicado na Revista de História da Biblioteca Nacional: REIS, Daniel Aarão. O sol sem peneira.
Disponível em: http://revistadehistoria.com.br/secao/capa/o-sol-sem-peneira acessado em outubro 2016.
7
MELO, Damian. Ditadura “civil-militar”?: Controvérsias historiográficas sobre o processo político brasileiro
no pós-1964 e os desafios do tempo presente. 2012.

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multidões que marcharam contra as reformas de base de Jango temiam a


instauração do comunismo e por isso teriam aceitado apoiar aquela ação, optando
pelo que acreditavam ser um “mal menor”. Trata-se de um tipo de argumentação
que lembra os mesmos argumentos utilizados pelos militares de pijama como o ex-
coronel Jarbas Passarinho, ou eminências “civis” do regime como o ex-ministro do
Planejamento, Roberto Campos. No artigo, o historiador carioca elencou uma série
de argumentos para provar a tese de que não só civis, como a “sociedade
brasileira”, teria apoiado por largo tempo o regime ditatorial que,
controversamente, o autor acredita ter terminado em 1979. A partir desta data, teria
se dado um processo de transição à democracia que seria concluído em 1988, com
a nova Constituição.8

Diante do clima de efervescência política de 1964, o contexto mundial da


bipolaridade existente por consequência da Guerra Fria, a larga literatura e campanha
anticomunista exercida pelo mundo ocidental, subordinado ao capital estadunidense, outras
conotações hão que ser observadas ao processo vivido ali pela sociedade brasileira. Não por
acaso, nesse clima de acirramento político, os golpistas logo se adornaram com o nome de
Revolução Brasileira, para denominar o que fora na realidade um golpe político de classe.
Segundo o professor Caio Navarro de Toledo, em trabalho organizado pelo próprio Aarão
Reis em 2004, a ação golpista

representou, de um lado, um golpe contra as reformas sociais que eram defendidas


por amplos setores da sociedade brasileira e, de outro, representou um golpe contra
a incipiente democracia política que nascera em 1946, com a derrubada da ditadura
do Estado Novo. Sem pretender aqui travar uma batalha semântica, não se pode,
contudo, deixar de reconhecer que as palavras, os conceitos e os símbolos são
decisivos para a correta designação e esclarecimento da história e das coisas. Ao
contrário da linguagem concessiva de certa literatura política e da crônica
jornalística – que se deixam levar pela versão dos vencedores – deve ser afirmado
que 1964 não foi uma revolução. [...] Mais apropriado seria então afirmar que
1964 significou um golpe contra a incipiente democracia política brasileira; um
movimento contra as reformas sociais e políticas; uma ação repressiva contra a
politização das organizações dos trabalhadores (no campo e nas cidades); um
golpe contra o amplo e rico debate ideológico e cultural que estava em curso no
país9.

Aquele momento de extensa acirramento e participação política jamais havia sido


visto no Brasil. A atuação dos partidos e das organizações de classe e dos movimentos
sociais como o estudantil, levaria as demandas sociais de uma sociedade pobre e desigual
para as ruas em formas de manifestações e reinvindicações. Este trabalho de Toledo

8
Op.cit. MELO, Damian Bezerra. Ditadura “civil-militar”?: Controvérsias historiográficas sobre o processo
político brasileiro no pós-1964 e os desafios do tempo presente. p. 39-53.
9
TOLEDO, Caio Navarro. 1964: o golpe contra as reformas e a democracia. In: o golpe e a ditadura militar: 40
anos depois (1964-2004). Daniel Aarão Reis, Marcelo Ridenti e Rodrigo Patto Sá Mota (orgs.). Bauru, SP :
EDUSC, 2004. P 67-77.

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demonstra os diferentes grupos sociais participantes daquele processo político e suas


aspirações no cenário posto à época. Em outro momento ele cita que, em síntese,

as classes dominantes e seus aparelhos ideológicos e políticos no pré-64, apenas


enxergavam baderna, anarquia, subversão e comunização do país diante de
legítimas iniciativas dos operários, camponeses, estudantes, soldados e praças, etc.
Por vezes, expressas de forma altissonante e retórica, tais demandas, em suas
substância, reivindicam o alargamento da democracia política e a realização de
reformas do capitalismo brasileiro [...]. O golpe estancou um rico e amplo debate
político e ideológico que se processava em órgãos governamentais, partidos
políticos, associações de classe, entidades culturais, revistas especializadas (ou
não), jornais, etc. [...]. [Além de outras reinvindicações políticas] entre elas, o
direito de voto dos analfabetos, o direito dos setores subalternos das forças
armadas de postularem cargos letivos (a carta de 1946 lhes vedava esse direito) e a
legalidade do PCB, posto fora da lei desde 1947.10

Diante então dessas diferentes demandas sociais vivenciadas pela população


brasileira em início dos anos 1960, não podemos simplesmente, atribuir à presença popular
nas Marchas da família com Deus pela liberdade, um “impressionante movimento de
massas” como pretendeu Aarão Reis. As marchas eram incentivadas, promovidas e
patrocinadas pelo amplo capital do complexo IPES/IBAD e pela Igreja Católica, uma
instituição que está no território desde a chegada portuguesa, quatro séculos antes, instituída,
solidificada e espalhada por todo o território nacional. Com a Guerra Fria, a batalha política
entre EUA e URSS tornara-se ideológica entre um “capitalismo cristão” contra um
“comunismo ateu”, ameaçador ao cristianismo e à religião católica. Esse fantasma
manifestaria-se nas mais variadas formas do pré-64 e levaria a Igreja a tomar uma posição
golpista frente a polarização vivenciada no Brasil. Seu poder de disseminação de ideias era
tamanho que assim consolidado o golpe de primeiro de abril a Confederação Nacional dos
Bispos do Brasil publicaria uma nota em apoio ao novo regime.

Uma audiência pública realizada pela Comissão Nacional da Verdade na sede da


OAB-RJ em 13 de agosto de 2012, contava com a formulação de uma mesa intitulada
“Antecedentes, contexto e razões do golpe militar”, na qual o pesquisador e historiador
Carlos Fico, logo no início de sua exposição, foi enfático ao afirmar que

“o golpe não foi militar, mas civil-militar”, afirmação seguida por aplausos da
plateia. Ao mesmo tempo, quanto ao caráter do regime que ali se instalou, Fico
pronunciou-se em favor da ideia que aquela foi apenas uma ditadura militar, não
sendo pertinente o adjetivo “civil”. Mas voltemos ao que o pesquisador discutiu
sobre as razões do golpe. Segundo Fico, ao contrário do que diz ser uma “memória
confortável”, o golpe de 1964 foi uma operação que contou não só com o apoio de

10
TOLEDO, Caio Navarro. 1964: o golpe contra as reformas e a democracia. 2004. p. 68-69.

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parte da sociedade civil brasileira, mas com uma ação efetiva de elites civis. E um
dos setores que mais apoiou o golpe foi a Igreja Católica, que ajudou a construir o
movimento de massas que foi a base para o golpe, as conhecidas “Marchas com
Deus, pela Pátria e pela Família”, em São Paulo (antes do golpe), Rio de Janeiro e
outras capitais e cidades do país com o golpe já vitorioso. Segundo o pesquisador,
tais marchas seriam a base de uma narrativa de justificação do golpe construída
pelos militares durante toda a ditadura, segundo a qual “a sociedade clamou pela
derrubada de Goulart, o que em grande medida é verdade!”, concluiu Fico. Ele
também lembrou do apoio da imprensa ao golpe, cujo emblemas são os famosos
editoriais do Correio da Manhã, que estamparam na capa do jornal os títulos
“Basta!”, “Fora!” e “Basta e Fora”, precisamente nos dias 31 de março, 1º e 2 de
abril de 1964 [grifo nosso]. 11

A grande imprensa brasileira e a Igreja Católica empreenderam grandes somas de


esforço pessoal e financeiro na disseminação anticomunista e na desestabilização do
governo João Goulart. Essas campanhas contaram altíssimos investimentos e uma
articulação de forças impressionante. Empresários urbanos, aristocratas rurais, industriários,
banqueiros e setores do alto clero desempenharam um papel fundamental em segmentar cada
dia mais a desaprovação do governo Jango nas camadas populares, em concorrência com –
esse sim – um impressionante movimento de massas nos movimentos sociais brasileiros
com grande atuação nas cidades, mas também de muita participação e crítica no campo,
onde o trabalhador rural desempenhava também agora uma figura de protagonismo nas
reivindicações por melhores condições de trabalho e de vida. Não se pode ignorar esse
amplo esforço desses setores ascendentes e dominantes em consolidar a tomada do Estado.
Não se pode esquecer os editoriais dos grandes jornais brasileiros e a ascensão da televisão
competindo com as peças teatrais promovidas pelo movimento estudantil por todo12 o país, e
as produções do “cinema novo”, iniciativas que colocavam a realidade popular em destaque.
Todo esse distinto movimento de forças sociais e políticas viriam a ser solapados pelo golpe.
Abruptamente interrompido e perseguido ferozmente após a instalação do regime. As peças
teatrais, músicas e publicações que contribuíram para a conscientização popular seriam

11
Da mesa também participaram a cientista política Maria Celina D’Araujo e o histórico advogado defensor
dos presos políticos Modesto da Silveira. Toda a audiência pública pode ser vista no endereço eletrônico
http://aovivorj.com.br/oabrj13082012/ (acessado em 20 de setembro de 2012). In: Op. Cit. MELO, Damian
Bezerra.
12
Para mais informações sobre as produções teatrais do movimento estudantil, basta olhar para as ações dos
Centro Popular de Cultura – o CPC – da UNE, que realizaram inclusive turnês itinerantes como a UNE
volante. As entidades estaduais também possuíam suas ações culturais. Vale também destacar em Pernambuco,
terceiro centro comunista do país, a existência do Movimento de Cultura Popular, que havia sido criado no
governo Arraes em Pernambuco e incumbia-se de realizar um resgate da cultura popular aliado à
intelectualização das camadas populares com sua polêmica Cartilha e seu programa de alfabetização crítica,
baseado no método Paulo Freire.

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proibidas e os insatisfeitos presos e/ou convidados a exilarem-se do país. Isso não pode ser
desconsiderado.

Um13 dos mais relevantes nomes nesse esforço historiográfico em apontar o


reducionismo do termo “civil-militar” e o risco de reproduzirmos o discurso golpista em
nossas produções acadêmicas é o historiador Damian Bezerra de Melo, que em recente obra
intitulada “A miséria da historiografia” propõe o revisionismo como um termo que

tem sua recente utilização em algumas controvérsias recentes da historiografia


contemporânea tem lhe valido censura dos acusados da operação revisionista,
como se seus críticos estivessem aferrados a interpretações tradicionais ou de uma
“História Oficial”, além de supostamente “desatentos” quanto aos “novos
paradigmas” ou à “pesquisa recente” 14

Como pesquisadores da história, fica então evidenciada a importância de se reavaliar


de tempos em tempos, os lugares da história, a disputa existente por esses lugares e a quem
interessa a “vitória” nessas disputas. Em relação ao termo “civil-militar” fica clara a
necessidade passados mais de 35 anos da publicação da primeira edição da já citada obra de
Dreifuss, faz-se necessário agora usá-lo fazendo-se a ressalva da origem social desses civis
que participaram ativamente na preparação ao golpe e no regime ditatorial que o sucedeu,
que, como sabemos, vinham das elites e das camadas mais abastadas da sociedade.

Observar objetivamente a presença popular nas marchas com Deus para família
como apoio maciço do povo brasileiro ao novo regime instaurado é ignorar a luta social e
todo o debate existente no pré-64. É dispensar toda a evolução lenta dos movimentos sociais
brasileiros, que por todo o controle e a força exercida pelas elites da primeira república,
seguido pelo autoritarismo de Vargas, tiveram a partir de 1946 um curto período com espaço
político e social para reivindicar suas demandas, denunciar as desigualdades econômicas do
país e propor projetos diferentes de Estado e de nação.

Dentro das forças que apoiavam Jango, existiam grupos que defendiam maior ou
menor participação dos sindicatos na administração pública, por exemplo. Bem como, nas
forças que eram contra seu governo havia grupos defensores de democracia e voto direto.

13
Para observar outros trabalhos que propõe um revisionismo acerca de temáticas relevantes da história ver
também: LOFF, Manuel. Depois da Revolução?... Revisionismo histórico e anatemização da Revolução;
MATTOS, Marcelo Badaró. As bases teóricas do revisionismo: o culturalismo e a historiografia brasileira
contemporânea. JÚNIOR, Carlos Zacarias Senna. Mito, memória e História: a historiografia anticomunista no
Brasil e no mundo.
14
MELO, op.Cit. 2014. p. 18-19.

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Sendo assim, daqueles presentes nas marchas promovidas pelo clero católico com total
apoio do bloco multinacional e associado, nem todos desejavam um governo militar, bem
como nem todos tinham consciência crítica de sua participação no evento. Ainda mais
relevante, dada a proporção estratosférica das altas somas de dólares utilizadas na
desestabilização do governo Goulart, e em usar a grande mídia nacional para ganhar a
opinião pública pintando a cena da participação popular na política como o cenário do caos e
da desordem que impediam o país de crescer, largamente já comprovada e repetidamente
debatida nos círculos acadêmicos, como pode o historiador observar apenas numericamente
quantas pessoas estavam presentes e atribuir a sua presença um “impressionante movimento
de massas em apoio ao golpe” é um ato imprudente e inconsequente para a análise histórica.

Sendo assim, sejamos nós então parte do coro que evoca para o golpe a nomenclatura
de “empresarial-militar” e de “ditadura empresarial-militar” ao regime que durou entre 01 de
abril de 1964 até 1985. Fazendo jus ao trabalho de Dreifuss, que tão brilhantemente nos
demonstrou e comprovou todos os meandros do jogo político que envolveram aquela ação
como uma ação e um movimento de classe, e, mais especificamente, da classe alta brasileira.

Referências

ARAÚJO, Maria Paula. Memórias Estudantis. 1937-2007 da fundação da UNE aos


nossos dias. Rio de Janeiro. Ediouro, 2007.

DREIFUSS, René Armand. A conquista do estado: ação política, poder e golpe de


classe. Petrópolis. Vozes. 1981.

FONTANA, Josep. História dos homens. Bauru. Edusc. 2004.

GAMA, Marcília. Informação, repressão e memória. Cepe. 2014.

LUNA, Allan. O discreto charme da democracia: os movimentos de bairro e o festim da


participação popular nas periferias do Recife (1979-1988). UFPE. 2014.

MELO, Damian. Ditadura “civil-militar”?: Controvérsias historiográficas sobre o


processo político brasileiro no pós-1964 e os desafios do tempo presente. In: Espaço Plural,
Ano XIII, N 27.2º Semestre 2012. P. 39-53. Disponível em:

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978-85-415-0980-0

http://file.smetal.org.br/Publicacao/DITADURA/controverisas_histograficas_sobre_o_proce
sso_politico_brasileiro_do_pe_64....pdf acessado em: outubro 2016.

_____________. A miséria da historiografia: uma crítica ao revisionismo


contemporâneo. Rio de Janeiro. Consequência Editora, 2014

REIS, Daniel Aarão. O sol sem peneira. Revista da Biblioteca Nacional. 2012.
Disponível em: http://revistadehistoria.com.br/secao/capa/o-sol-sem-peneira acessado em
outubro 2016.

______________ & FERREIRA, Jorge. Revolução e Democracia. Rio de Janeiro.


Civilização Brasileira. 2007.

TOLEDO, Caio Navarro. 1964: o golpe contra as reformas e a democracia. In: o golpe e a
ditadura militar: 40 anos depois (1964-2004). Daniel Aarão Reis, Marcelo Ridenti e Rodrigo Patto
Sá Mota (orgs.). Bauru, SP : EDUSC, 2004. P 67-77.

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SIMPÓSIO TEMÁTICO 09
TRABALHO, MEMÓRIA E FONTES JUDICIAIS

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MARMELADA DE TOMATE: DISCUTINDO AS RELAÇÕES DE TRABALHO


COM O “SISTEMA DE PARCERIA” DA FÁBRICA PEIXE (PESQUEIRA/PE, 1971-
1972)

Fernanda Silva Nunes1


Graduanda do curso de Ciência Política/Relações Internacionais pela UFPE.
E-mail: fehnunes_live@hotmail.com

Resumo

Neste artigo discutimos as relações de trabalho em um cenário de crise nacional e regional


do Capitalismo, que marcou a fase agroindustrial da cidade de Pesqueira/PE, a partir de
meados dos anos 1960. O município de Pesqueira no Semiárido pernambucano, acerca de
215 Km da capital, Recife, onde a Fábrica Peixe destacou-se por adotar o “sistema de
parcerias” nas relações de trabalho agroindustrial. A principal base econômica era a
fabricação de doces com frutas e de notoriedade o extrato de tomate, com plantios na Serra
do Ororubá, em áreas próximas e municípios vizinhos, a exemplo de Sanharó. A força de
trabalho era formada por camponeses, índios Xukuru, pequenos proprietários ou
arrendatários de terras. As fontes para essa pesquisa foram os processos trabalhistas da Junta
de Conciliação e Julgamento de Pesqueira (JCJ), dos anos 1971 e 1972, disponíveis no
laboratório de pesquisa do Arquivo TRT/UFPE; além de entrevistas orais com atores sociais
que participaram das reclamações trabalhistas. Procuramos compreender os desdobramentos
dos “contratos de parceria” para os trabalhadores rurais parceiros da Fábrica Peixe.

Palavras-chave: Justiça do Trabalho; JCJ Pesqueira; “Contrato de Parceria”.

Introdução

“A indústria de Pesqueira é um item de um capítulo da


“formação econômica regional nordestina” que se
reveste de considerável importância para a compreensão
da Formação da Economia Nacional Brasileira”.

(Célia Maria de Lira Cavalcanti)2

1
Bolsista de Cooperação Técnica do laboratório de pesquisa do Arquivo TRT/UFPE, acervo anexo do Tribunal
Regional do Trabalho da 6ª Região, 4º andar do Centro de Filosofia e Ciências Humanas/UFPE (Recife). Site:
www.memoriaehistoria.trt6.gov.br
2
CAVALCANTI, Célia Maria de Lira. Acumulação de capital e a industrialização em Pesqueira
(Pernambuco). Dissertação de Mestrado em Economia-PIMES/ UFPE. Recife, 1979. P.04

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A citação de Célia Maria de Lira Cavalcanti exprimiu como síntese as razões que
determinam a peculiaridade do município de Pesqueira ao construir uma economia
mercantil, marcada pela indústria doceira no início do século XX. O referido distrito
industrial teve como fenômeno econômico, àquela época, o poder de barganha do capital
comercial, marcado pela expansão da linha férrea – Great Western3. A força motriz da
industrialização deste ponto interiorizado do estado de Pernambuco foi a iniciativa privada
local.

Apesar da crise geral do Capitalismo em meados de 1960 atingindo grande parte do


Ocidente, Pesqueira estando situada no Vale do Ipojuca4, no semiárido pernambucano,
caracterizava-se pela sua localização geográfica privilegiada, seguida de uma formação
econômica e social baseada na divisão da força de trabalho, aquela região chamava atenção
pelo acelerado processo de industrialização que surgiu com uma resposta positiva para
superar a crise econômica regional. Para isso, adotando o “sistema de parcerias” nas relações
de trabalho agroindustrial. Embora a busca pela a saída da crise, não tenha sido
exclusividade daquele município, considerando a existência de processos semelhantes no
país e em todo mundo capitalista, tornou-se um polo industrial a partir de inciativa local
(poder político associado ao poder dos monopólios econômicos).

Um dos motivos pelos quais Pesqueira chama atenção terá como uma das suas
explicações a localização geográfica no atual Semiárido pernambucano, seguida de uma
formação econômica e social baseadas na divisão da força de trabalho. Antes da instalação
do polo industrial em Pesqueira aquela região experimentava uma intensa atividade
comercial devido ao povoamento do Agreste, iniciado com a busca de novas áreas para
atividade pecuária, após o crescimento econômico exacerbado da Zona da Mata com a
exploração intensiva da cana-de-açúcar. Entretanto, o principal caráter do núcleo urbano
pesqueirense foi o fenômeno industrial aflorado a partir dos anos 1920. (CAVALCANTI,
1979, p. 35)

Nesse sentido, o presente texto está organizado em três tópicos importantes. A seguir
trataremos da natureza histórica do surgimento de uma cidade industrial à partir dos aspectos
geográficos, e posteriormente traçamos de forma resumida o percurso no tempo da Fábrica

3
FEITOSA, R, J. R. Capitalismo e camponeses no Agreste Pernambucano: relações entre indústria e
agricultura na produção de tomate em Pesqueira-PE. Recife: UFPE, 1985 (Dissertação Mestrado em
Sociologia). P. 33.
4
É uma das três microrregiões do Agreste de Pernambuco (Microrregião do Agreste Setentrional, do
Vale do Ipojuca e do Agreste Meridional). In: MELO, M. L. Os Agrestes. Recife: SUDENE, 1980, p. 173

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Peixe e como ocorria o seu funcionamento. Finalizamos o trabalho discutindo o “Sistema de


Parceria” da referida empresa, assim como fazemos uma análise dos discursos de alguns dos
parceiros-agricultores que trabalharam para a Peixe, - contidos em processos trabalhistas da
Junta de Conciliação e Julgamento de Pesqueira (1971/72). Associamos também a
contestação contra a Fábrica Peixe proferida pelo Dr. José Augusto e a entrevista concedida
por Dr. Paulo Fernando Gambôa, ambos advogados, à época, à favor desses trabalhadores.

Do brejo à fábrica

Ao analisar o município de Pesqueira e as relações de trabalho precussoras do “Contrato


de Parceria Agrícola” da Fábrica “Peixe” discutiremos um estudo de caso. Este método de
pesquisa, sobretudo, no contexto da Ciência Política, possibilita definir e determinar de
forma detalhada os aspectos de um episódio histórico, criando explicações em torno do caso
(GEORGE e BENNETT, 2005, p. 31)5. Ressaltamos que devido às delimitações de recursos
do campo em estudo é uma vantagem analisar um único caso, pois, ao descrever minúcias de
casos particulares estamos evitando perspectivas de cunho abrangentes e generalizantes
sobre as relações produtor rural versus empresas industriais.

Por sua vez, um dos principais aspectos abordados sobre esse objeto de estudo se
refere ao contexto espacial da região do semiárido pernambucano, quando naquele período,
foi o berço da recém cidade industrial, assim, contrariando os condicionantes da sua
estrutura geomorfológica local, onde segundo Mário Lacerda de Melo, na obra Os Agrestes6,
ressaltou ser um lugar improdutivo do ponto de vista agrícola e pecuário:

Clima de estação seca mais longa, a ocorrência de secas calamitosas, um relevo de


amplos pediplanos agravadores da semiaridez climática, a escassez de manchas
úmidas de exceção, os solos escassos, rasos e pedregosos, uma caatinga mais
pobre e uma hidrografia mais acentuadamente intermitente. (MELO, 1980, p. 174)

Dessa maneira, observamos que a paisagem acima descrita a princípio dificultava o


uso da terra para práticas agrícolas e a sobrevivência humana naquela região. Sobretudo,
devido à existência, de uma pecuária dominante, mas, por outro lado as atividades de
lavouras de curto prazo, tendo em vista o baixo regime pluviométrico 7 de chuvas e longos
períodos de seca. A esse respeito, também o historiador Edson Silva afirmou, que a
sobrevivência naquela região está relacionada a poucos rios perenes e aos chamados brejos
de altitudes e brejos de pé-de-serra. (SILVA, 2008, p. 144)
5
GEORGE, Alexander e BENNETT, Andrew. Case Studies and Theory Development in the Social Science.
Cambridge, Mass: MIT Press, (2005).
6
MELO, M. L. Os agrestes. Recife: SUDENE, 1980.
7
“Nos espaços agrestinos semiáridos a pluviosidade é inferior à 700-800 mm”. MELO, p. 181.

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Portanto, o fenômeno natural dos brejos (manchas úmidas de terras situadas entre
espaços semiáridos), em especial os brejos localizados nos pés de serras, caracterizavam as
condições propícias na Serra do Ororubá, em Pesqueira. Segundo Feitosa (1985, p. 35),
baseado nos estudo de Manoel C. de Andrade8, afirmou que as citadas condições geográficas
se apresentaram como algo fundamental para a pecuária sob a forma de criação extensiva,
com pouca mão-de-obra, visto que o rebanho pastava livremente; e de uma produção de
subsistência ocasionada pelas atividades agrícolas por pequenos produtores familiares,
sobretudo os índios Xukuru na Serra do Ororubá.

Contudo, não foi surpresa observar que o caráter das trocas mercantis de Pesqueira
ocorreu pelas trocas dos excedentes do pequeno produtor familiar com as mercadorias
trazidas pelos viajantes que faziam parada na localidade. Mais tarde o cultivo de frutas9, em
especial goiaba e banana, produzidas pelos índios Xukuru - primeiros moradores da Serra do
Ororubá10 - se constituirá a matéria-prima da indústria de doces.

Indústrias Alimentícias Carlos de Brito S/A: a Fábrica Peixe

A fase industrial do desenvolvimento econômico é a mais adequada a ser tratada no


caso de Pesqueira, por ter sido naquele momento que ocorreu maior produção, abrangendo e
expressando a existência de uma organização econômica e social baseada na divisão da
força de trabalho. Por conseguinte, é inegável o impacto integracionista que a empresa
“Great Western” propiciou ao latifúndio, o comércio local e o com o capitalismo para além
da cidade de Pesqueira. Como consequência da instalação da Great Western ocorreram
situações ímpares ao desenvolvimento da indústria doceira com a diminuição dos custos de
produção, aumento dos lucros das empresas, e a rápida logística dos produtos agrícolas em
circulação (CAVALCANTI, 1979, p. 42).

A industrialização do município de Pesqueira “confunde-se com a própria história de


surgimento da Fábrica Peixe”11, uma vez que logo após a instalação desta sugiram outras
fábricas alimentícias como: a Rosa (1906), a Doces Tesouro, a Touro, a Tigre (1919) dentre
outras. Ou seja, a razão, é facilmente compreendida através da origem e organização do

8
ANDRADE, Manuel Correa de. A terra e o homem no Nordeste. Brasilense, São Paulo, 1973, p. 143-176.
9
“Além de frutas como ananases, laranjas, cajus, goiabas, bananas e pinha”. In: SILVA, E. H. Xukuru:
memórias e história dos índios da Serra do Ororubá. Pesqueira/PE, 1950-1988. Campinas/SP: UNICAMP,
2008, p. 147. (Tese Doutorado em História Social).
10
Ibid., p. 148.
11
GALINDO, Betânia F. Cavalcanti. A cidade das chaminés: história da industrialização de Pesqueira.
Faculdade Boa Viagem, Recife-PE, 2007, p. 13. (Dissertação Mestrado em Administração).

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comércio ao longo da história daquela região. Tendo na relação de troca dos excedentes dos
pequenos agricultores com as mercadorias estrangeiras trazidas pelos tropeiros, que faziam
parada na cidade às margens da rodovia, fator importante para consolidação da indústria
pesqueirense.

Ressaltamos que o marco inicial da fase industrial naquela região teve início a partir
da produção de goiaba em larga escala para fabricação de doce na Fábrica “Peixe”. De
forma a contar com a atuação dos camponeses, pequenos proprietários ou arrendatários de
terras como força de trabalho. Esses residiam na Serra do Ororubá onde atualmente é
reconhecida a Terra Indígena Xukuru do Ororubá, e também em outras áreas próximas e
município vizinhos, a exemplo de Sanharó.

Uma narrativa corrente afirma que esta produção doceira ocorreu com o fabrico
caseiro de doce de goiaba na residência do casal Maria da Conceição Cavalcanti de Britto
(D. Yayá) e Carlos Frederico Xavier de Britto, em 1898, após terem se mudado do Recife
para Pesqueira12. Em 1902, foi fundada a M. B. Peixe (Carlos de Britto & Cia)13. Os
trabalhos na fabricação do doce tinham seu caráter ainda artesanal, mas já contava com a
difusão do produto em todo o território estadual e fora dele também. Com o expressivo
aumento das encomendas foi necessário mais pessoas como ajuda na produção, a aquisição
de máquinas de funilaria e mais quantidades de tachos, para o preparo de latas destinadas as
embalagens dos doces. Chegando, em 1904, a exportar os produtos para o Norte do Brasil,
em especial para o Pará e o Amazonas (CAVALCANTI, 1979, p. 47).

Uma década mais tarde, a Fábrica Peixe foi pioneira no processamento de tomate no
Brasil dando início a produção de massa de tomate. A introdução do cultivo de tomate no
país ocorreu com os imigrantes europeus, especificamente os italianos, no final do século
XX. Tendo a partir da década de 1910 um crescimento significativo da olericultura com o
destaque para a produção do tomate (MELO, 2014, p. 10, 8). Entretanto, vale lembrar que
em 1910, o Cel. Carlos de Britto além de fundador das Indústrias Peixe, assumiu o cargo de

12
Outras narrativas “não-oficial” relatam que os doces eram produzidos por escravas negras da Família Britto,
desde fins do século XIX.
13
MELO, Paulo C. Tavares. Agroindústria de tomate no Brasil: 100 anos de história e evolução. UFG,
Goiânia, 2014. Palestra proferida no 7º Congresso Brasileiro de Tomate Industrial. P. 11. Disponível em:
http://www.congressotomate.com.br/2014/pos-evento/palestras/Paulo-Cesar-Tavares-de-Melo.pdf. Acessado
em: 10.10.17.

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Prefeito do município de Pesqueira14, o que possibilitou a manutenção das relações de poder


em todas as esferas da sociedade: política, econômica e social (GALINDO, 2007, p. 68).

Contudo, no ano de 1928, a Fábrica Peixe incrementou sua produção na cultura do


tomate ampliando suas instalações, renovando os seus equipamentos e adquirindo outros
novos com moderna tecnologia, à época. Apesar do fundador da firma Carlos de Britto &
Cia vir à óbito em 1920, o “império” Peixe, permaneceu, pois, seu filho Manuel Britto
assumiu a direção das Indústrias Peixe e continuou o avanço da empresa familiar comprando
unidades industriais em vários municípios de Pernambuco, inclusive na capital, Recife15.
Apenas em 1948 a empresa Carlos de Britto & Cia se transformou em sociedade anônima
com a denominação de Indústrias Alimentícias Carlos de Britto (Fábrica Peixe)16.

Consolidadas como um dos maiores polos industriais no interior do Nordeste,


expandindo, ao longo da década de 1930 com as Indústrias Peixe para além de Pernambuco,
instalando novas empresas no Rio de Janeiro, São Paulo e Minas Gerais (GALINDO, 2007,
p. 74). Assim como adquiriu outras fábricas e mobilizou maiores investimentos. No âmbito
local, ampliou também suas propriedades com uma produção própria no plantio de tomate
em terras arrendadas. Estas, em grande parte na Serra do Ororubá pertencentes à famílias
indígenas Xukuru do Ororubá (SILVA, 2008)17. Como também à pequenos produtores rurais
daquela região, assim, ambas populações somavam-se à mão-de-obra familiar.

Ainda segundo Silva (2008), os Xukuru estabelecidos na Serra do Ororubá,


historicamente, tiveram grande parte das suas terras ocupadas pelas fazendas de gado, e
posteriormente pelos plantios de tomate da Peixe18. Mesmo assim, resistiram de várias
formas, uma delas foi se inserir na lógica da industrialização da cidade: na linha de produção
da matéria-prima ou de processamento. De forma que, constituíram um cenário singular na
região do semiárido pernambucano.

14
Conforme noticia o jornal Diário de Pernambuco do dia 17.06.1910 o resultado das eleições municipais em
Pesqueira: Resultado completo da eleição procedida a 10 de julho em Pesqueira: Prefeito – Cel. Carlos Britto
686 votos; subprefeito – Cel. Thomaz Synesio 687. Disponível em
http://memoria.bn.br/DocReader/docreader.aspx?bib=029033_09&pasta=ano%20191&pesq=carlos%20de%20
britto Acessado em: 15.10.2017.
15
GALINDO, Betânia F. Cavalcanti. 2007. A cidade das chaminés: história da industrialização de Pesqueira.
Faculdade de Boa Viagem, Recife-PE, 2007, p. 73. (Dissertação Mestrado em Administração).
16
Ver: Cópia do Contrato de Parceria. In: PROC.0143.1971. P. 12.
17
Cf: SILVA, Edson. H. Xukuru: memórias e história dos índios da Serra do Ororubá. Pesqueira/PE, 1950-
1988. Campinas/SP: UNICAMP, 2008 (Tese Doutorado em História Social).
18
SILVA, Edson, H. Op. Cit., 2008, p. 196.

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Pelo visto, várias centenas de famílias, indígenas ou não tornaram-se cultivadoras de


tomate no chamado contrato de parceria com a Fábrica Peixe. As relações de trabalho se
deram, primeiramente pelos contratos de arrendamento das terras pela Peixe, mas, logo esta,
se tornava detentora dos meios de produção. Uma vez proprietária, desapossou enorme
número de camponeses de suas terras, obrigando estes a tornarem-se trabalhadores diretos
(FEITOSA, 1985, p. 37).

Os chamados “anos dourado” da cidade industrial de Pesqueira foram marcados pelo


caráter da industrialização que transformou a economia e a vida social da cidade. O
município do Semiárido no Vale do Ipojuca vivia basicamente, da sua produção
agroindustrial, qual dependiam milhares de pessoas em empregos diretos e indiretos. A
Peixe e demais indústrias alimentícias em Pesqueira tiveram excelentes cenários
econômicos, entre as décadas de 1930 e 1950, por sempre encontrar mercado fora do estado
de pernambucano, pois ainda não havia uma concorrência que os ameaçassem (GALINDO,
2007, p. 111).

Contudo, novas empresas foram surgindo em outras regiões do Brasil, em especial as


indústrias alimentícias do Sul e Sudeste (ETTI e a CICA), nos primórdios de 1940. A
concorrência se elevou, de modo que a Fábrica Peixe começou a declinar no mercado da
Região Sudeste. Fato importante que instaurou uma crise estrutural da empresa em meados
dos anos 1950, sobretudo, as novas empresas detinham capital superior às indústrias
nordestinas. Pela a necessidade de tornar-se mais competitiva para recuperar os altos índices
lucrativos, a Fábrica Peixe buscou na parceria agrícola o novo molde da agro
industrialização (GALINDO, 2007, p. 112-113).

O Sistema de Parceria Agrícola

A partir desse tópico onde mais se justifica o título do presente texto, “marmelada de
tomate” sugere uma metáfora entre a inexistência de uma marmelada de tomate e a negação
da parceria agrícola como um contrato de trabalho laboral, defendido pela Fábrica Peixe. O
fato é que o contrato de parceria empregado nos anos de 1960 mais precisamente em 1962 19,
- sistema estudado e idealizado pelo engenheiro agrônomo e Diretor-Gerente, Moacyr Britto
de Freitas, das Indústrias Alimentícias Carlos de Britto S/A, neto do Cel. Carlos de Britto -
era uma armadilha para os pequenos proprietários agrícolas, que se submetiam a acordos
desiguais dos interesses industriais.

19
FEITOSA, Raymundo. J. Rêgo. Op. Cit., 1985, p. 37.

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Chegamos à essa afirmação, a partir da análise do “Plano de Parceria Agrícola de


Indústrias Alimentícias Carlos de Britto S/A (Fabricas ‘Peixe’) para a Agroindústria do
tomate, de Pesqueira” e “A parceria Agrícola de Pesqueira”20 redigido por Moacyr Britto,
assim como utilizamos de alguns processos trabalhistas dos anos de 1971/72 da Junta de
Conciliação e Julgamento de Pesqueira21, para inferências sobre os possíveis
desdobramentos para os trabalhadores com a implantação do sistema de parcerias.
Em 1966, toda produção de tomate era feita na base da Parceria Agrícola, participando
desse sistema cerca de 800 famílias, distribuídas nas fazendas de tomate pelos municípios de
Pesqueira, São Bento do Una, Alagoinha, Sanharó, Arcoverde, Pedra e Poção; nas quais a
Fábrica Peixe absorvia 4% da área e 4% da população rural. Vale ressaltar que o número de
trabalhadores/as naquele ano variava entre 500 a 1.000 por ciclo de safra22.
É importante levar em consideração no que diz respeito ao contrato de parceria, que este
não foi algo exclusivo de Pesqueira; como sugere o trecho abaixo:
A parceria agrícola não representa uma novidade, suas origens são remotas e já era
conhecida na Roma Antiga. Tem sofrido alternância de crédito e descrédito, no
curso da História. Na França, por exemplo, se bem existisse nos séculos XI e XII,
regrediu na Idade Média, ressurgindo nos séculos XVI até o século XVII. Recebeu
condenação dos economistas na metade do século XVII, atitude inteiramente
revista no fim do século. (FREITAS, 1966, p. 23)23

No caso de Pesqueira, o sistema de parceria implantado pela Fábrica Peixe consistia em


um contrato firmado por escrito de seis laudas, entre a parceira proprietária (Fábrica Peixe) e
o parceiro agricultor, composto de 17 cláusulas, as quais incluem condições e estipulações
pré-estabelecidas pela parte contratante. A primeira cláusula contratual se refere ao objeto da
parceria, ou seja, a parceira proprietária cedia e entregava em parceria agrícola ao parceiro
agricultor uma área de 9 quadros (10,89 hectares)24 para cultivar o tomate e lavoura de
subsistência. Além disto, chama-nos atenção as obrigações do parceiro agricultor, ainda na
cláusula primeira, parágrafo primeiro, podemos observar a relação desigual desfavorável aos
parceiros, mediante a condição mínima do trabalhador cultivar sua lavoura de subsistência,
pois, considerando que esta, deveria compreender, exclusivamente, a cultura de milho,

20
PROC.0142.1972, p. 25-65. O Processo encontra-se no acervo catalogado da Junta de Conciliação e
Julgamento de Pesqueira (JCJ), disponível no Arquivo TRT/UFPE, 4º andar do Centro de Filosofia e Ciências
Humanas/UFPE (Recife).
21
Processos disponíveis no laboratório de pesquisa do acervo anexo do Tribunal Regional do Trabalho da 6ª
Região – Arquivo TRT/UFPE, 4º andar do Centro de Filosofia e Ciências Humanas/UFPE (Recife).
22
FREITAS, M. Britto de. A parceria Agrícola de Pesqueira. P. 4. In: PROC.0142.1972.
23
PROC.0142.1972. P.23.
24
FREITAS, M. Britto de. A Parceria Agrícola de Indústrias Alimentícias Carlos de Britto S/A (Fábrica
“Peixe”) na Agro-Indústria do Tomate de Pesqueira, 1966. In: PROC.0142/72, p. 27.

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feijão, fava, jerimum, melancia e verduras de curto ciclo. O cultivo, portanto, era restrito
conforme as determinações da Fábrica Peixe25.
A cláusula quinta contém a principal condição para ser parceiro da empresa. Sendo o
parceiro obrigado a aceitar a parceria agrícola na base de 50% dos frutos, como participação
de cada um dos contratantes, ficando estabelecido que:
a) A parceira proprietária assegurava ao parceiro agricultor a livre disposição de toda a
lavoura, chamada de subsistência, cuja metade caberia a ela;
b) O parceiro agricultor ficava exonerado de pagar à parceira proprietária 50% do preço dos
fertilizantes, fungicida e inseticidas aplicados (...);
c) Em contra partida, o parceiro agricultor se obrigava a vender à parceira proprietária a
metade dos frutos dos tomateiros que cabiam a ele;
Dessa forma, podemos compreender que o trabalhador submetido ao regime de parcerias
entregava (entendamos entregava no sentido mais fiel à situação, ou seja, entrega
gratuitamente) à Fábrica Peixe 50% do tomate colhido na propriedade a qual estava
residindo. Os outros 50% era vendido, exclusivamente, a mesma empresa, não podendo ser
oferecidos à terceiros, por preço previamente estipulado no contrato, a qual era calculado
por caixa de 32 quilos.
Para melhor compreensão tomemos como parâmetro o Processo Trabalhista nº 0143 do
ano de 1971, da Junta de Conciliação e Julgamento de Pesqueira2627, onde eram partes o
reclamante, Cícero Rafael da Silva e a reclamada, Indústrias Alimentícias Carlos de Britto
S/A (Fábrica Peixe)28.
O parceiro agricultor, Cícero Rafael da Silva, trabalhador rural, analfabeto, casado,
residente na Fazenda Milho Branco, município de Pesqueira, em seu termo de reclamação,
datado de 28 de dezembro de 1971, devidamente assistido pelo advogado Dr. José Augusto
Simões Magalhães, moveu uma ação trabalhista na Junta de Conciliação e Julgamento de
Pesqueira contra as Indústrias Alimentícias Carlos de Britto S/A (Fábrica Peixe). Esta

25
“Contrato de Parceria Agrícola”. In: PROC.0143.1971. P. 13.
26
De acordo com a Lei nº 5.650 de 11.12.1970 foi decretada a criação da Junta de Conciliação e Julgamento de
Pesqueira (JCJ). Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/L5650.htm. Acessado em:
11.10.2017.
27
A instalação ocorreu em setembro de 1971, conforme noticia o jornal Diário de Pernambuco do dia
14.09.1971. Houve uma cerimônia presidida pelo Juiz Clóvis dos Santos Lima, Presidente do Tribunal
Regional do Trabalho 6ª Região. Disponível em:
http://memoria.bn.br/DocReader/docreader.aspx?bib=029033_15&pasta=ano%20197&pesq=Junta%20de%20
Concilia%C3%A7%C3%A3o%20e%20Julgamento%20de%20Pesqueira Acessado em: 11.10.2017.
28
PROC.0143.1971. O Processo encontra-se no acervo catalogado da Junta de Conciliação e Julgamento de
Pesqueira (JCJ), disponível no Arquivo TRT/UFPE, 4º andar do Centro de Filosofia e Ciências
Humanas/UFPE (Recife).

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representada pela senhora Maria do Socorro C. dos Santos, acompanhada do advogado Dr.
José Luís Leal Libonati. Durante audiência em 12 de julho de 1972, o reclamante parceiro
declarou que começou a trabalhar para a fábrica em 1951, ainda criança, com apenas 11
anos de idade. Cícero Rafael passou a condição de parceiro agricultor em outubro de 1962,
deixando a parceria porque foi posto para fora. Morava em casa da parceira proprietária,
porém sem instalação sanitária. No que diz respeito a produção do tomate o reclamante
declarou que entregava toda colheita à Fábrica Peixe e o financiamento do plantio era
realizado pela Fábrica Peixe. Sendo este financiamento para remédio, sementes, agrônomo.
Além disto, disse ainda o reclamante que não tinha os contratos da parceria em mãos, pois,
nenhum parceiro ficava com contratos29.
Um mês após o processo acima ter sido instaurado, outra reclamação, de 26 de janeiro de
1972, atribuiu o mesmo caráter do ocorrido com Cícero Rafael como comum à todos os
parceiros agricultores que assinaram o contrato de parceria agrícola com as Indústrias
Alimentícias Carlos de Britto S/A. Portanto, o Processo nº 0036 de 1972, que teve o
reclamante Manoel José Gouveia, casado, trabalhador rural, residente no Sítio Cachoeira,
município de Pesqueira, devidamente assistido pelo advogado sindical Dr. Paulo Fernando
Gambôa da Silva, movia ação trabalhista contra a Fábrica Peixe, representada pelo advogado
mencionado. O depoimento do parceiro possui o seguinte teor:
(...) que o contrato é de 3 anos; que a casa onde mora é do plantio; que a casa é
muito precária; que é coberta de telha; que a casa não tem aparelho sanitário e tem
apenas 1 quarto; que a casa tem um quintalzinho (...) que o produto não pode ser
vendido a terceiros, mas na sua totalidade, tem de ser entregue à Fábrica e em caso
contrário o parceiro será preso, porque considera como furto o fato de vender o
tomate a terceiros e não à Fábrica; que quem marca o preço do produto é a própria
fábrica (...) que tem um quadro de terra para plantar a sua própria roça; que um
quadro equivale aproximadamente a 1,2 hectares; que a empresa fornece as
sementes do tomate, formicida, etc.; (...) que recebe Cr$ 0,85 por cada caixa; que a
empresa fornece 1 litro de leite por dia; que a empresa mantém escola noturna para
as crianças; (...) que a cotação de tomate que a fábrica paga Cr$ 0,85, é de Cr$
5,00 no comércio normal; (...) que o contrato de parceria, ainda não deu lucro ao
reclamante; que foi dispensado da empresa; (...) que não sabe o que está escrito no
contrato30.

Observamos que a Fábrica Peixe colocava o pequeno parceiro-agricultor numa condição


minoritária, pois, a fábrica possuía amplas possibilidades de barganhas como visto nas
reclamações dos dois reclamantes acima citados. A assinatura do Contrato de Parceria
Agrícola exigia dos camponeses uma taxa de mais valia, o quanto mais elevada possível,

29
PROC.0143.1971. P. 53-54.
30
PROC.0036.1972. P. 11-12.

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visando angariar aumentos lucrativos da renda da terra sob uma imensurável exploração da
força de trabalho das propriedades parceiras.

Sistema de Parceria Agrícola: contrato laboral ou não-laboral?

Por sua vez, a Fábrica Peixe contestava todas as reclamações dos parceiros-agricultores
usando sempre os mesmos argumentos. Aspecto observado no próprio depoimento do Dr.
Moacyr Britto, nos Processos 0036.197231 e 0142.197232. Durante as audiências presididas
pela juíza Dra. Ignez de Azevedo Guedes, ao ser questionado se os preços estipulados no
contrato de parceria deveriam ser mantidos sem qualquer compensação, caso houvesse alta
no produto do mercado, o empresário respondeu:
Há dois tipos de exploração da cultura tomateira, 1 para a venda in natura no
mercado e o outro para a industrialização. (...) dentro do contrato o parceiro não
poderia vender para o mercado (...) a empresa teria de concorrer com as empresas
similares do sul do país e na sua projeção de produção e vendas não poderia haver
o tipo de oscilação do tomate produzido para mercado (...) os preços do tomate
eram previamente estipulados, antes mesmo da assinatura do contrato de parceria.
(Apud: PROC.0036.1972. In: 0142.1972, p. 20)

Ao longo do interrogatório, o Sr. Moacyr exemplificou o conteúdo dos contratos de


parceria, afirmando que:

Nós optamos então, por um tipo de parceria que tivesse como base a família, que
considerávamos uma unidade indivisível e capaz de utilizar toda a sua força de
trabalho em determinado período do ano e fazer reserva para o período de entre
safra. (...) o parceiro recebia uma parcela e submetia-se as condições técnicas
determina pela Indústria, que naquele tempo, eram deixar dois terços da terra em
descansos sistemáticos e utilizar, para a cultura do tomate, somente um terço da
terra, reservando, entretanto, um nono da área para lavoura de subsistência. (...) a
empresa recebia a metade do tomate, a outra metade o parceiro-agricultor se
comprometia a vender a mesma empresa, por preço previamente estipulado (...)
que até um paralítico poderia ser parceiro, porque o mesmo poderia se constituir
gerente da sua própria família e assalariar terceiros se assim quisesse.

O que podemos observar nessa fala é o caráter que a parceria agrícola adotou, como
sendo um recurso de preservar os interesses dos Britto. Entretanto, a implementação do
sistema de parceria no procedimento da agroindústria era por demais conservador, mas,
sobretudo, reafirmava as relações de produção entre o dominante (Fábrica Peixe) e o
dominado (parceiro agricultor) na região de Pesqueira e municípios vizinhos. Com objetivo
de reprodução capitalista e nova forma de exploração da força de trabalho.

A Parceria Agrícola instituída pela Fábrica Peixe não poderia caracterizar-se como uma
parceria em si, como afirmou Maria Célia Cavalcanti “a rigor não há como considerar

31
PROC.0036.1972. P. 45-47.
32
PROC.0142.1972. P. 21.

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parceria o que se implantou na área de cultivo de tomate pertencente a Peixe”33. Ora, o


sistema estabelecia uma relação comum de trabalho, haja visto as várias obrigações impostas
pela fábrica ao parceiro agricultor, facilmente observadas nos Contratos de Parcerias. Além
dos relatos auferidos nos processos trabalhistas, incluindo o do próprio Direito-Gerente,
Moacyr Britto, consolidando a face da exploração dos pequenos agricultores e o benefício
exclusivo da Peixe; em vista do aumento da produtividade em detrimento da redução dos
custos dos insumos com a parceria agrícola.
Apesar das Indústrias Alimentícias Carlos de Britto S/A (Fábrica Peixe) ter implantado
na região com o sistema de parceria agrícola e atrelado-o a bons resultados econômicos para
a fábrica, a crise industrial agravou o crescimento econômico do município. Sobretudo, a
concorrência das empresas do Centro-Sul, o desgaste do solo e as condições climáticas do
Vale do Ipojuca não favoreceram o crescimento da indústria doceira do porte da Peixe. A
fábrica foi vendida, em 1968, ao Grupo Financeiro Canadense (BRASCAN) e
posteriormente o Grupo VIGOR assumiu o controle acionário da empresa34. Com o decurso
dos problemas de decadência do “império” da Peixe, a ideia era a extinção dos Contratos de
Parcerias, em 1977, ficando a administração a cargo da CICANORTE35.
O caráter dos contratos de parcerias foram duramente criticados pelos advogados dos
reclamantes nos processos aqui tratados (0143/71; 0035/72; 0142/72),: especificamente nas
folhas 35 e 36, onde o Dr. José Augusto Simões Magalhães, advogado do parceiro agricultor
Cícero Rafael da Silva (PROC. 0143/71), afirmou:

(...) que se verifica dos autos é verdadeira exploração do homem pelo homem. (...)
transformando sua estabilidade (único patrimônio de um operário), em contratos
sucessivos de parceria, procurando a todo custo desvirtuar o vínculo empregatício.
Convém, ainda salientar para surpresa de todos os juristas é que estes contratos
além de contrariarem os dispositivos do Art.9º da CLT, não trouxeram nenhuma
vantagem para o peticionário, muito ao contrário somente cativeiro branco. (...)
Nossos tribunais em tais casos assim se tem pronunciado: contratos de parceria
com a finalidade de obstar estabilidade não têm acolhida, são nulos.

Portanto, para salientarmos a discussão sobre a legitimidade desses contratos e


afirmar a exploração do parceiro-agricultor nos moldes estabelecidos no sistema de parceira
agrícola, entrevistamos o segundo advogado apresentado no PROC.0036/72 e 0142/7236, o

33
CAVALCANTI, Célia M. de Lira. Op. Cit., 1979, p. 84.
34
Ibid., p. 07.
35
Ibid., p. 88.
36
Reclamação Trabalhista de Antônio Pedro Celestino contra as Indústrias Alimentícias Carlos de Britto S/A
(Fábrica Peixe). 10 de maio de 1972. Pesqueira-PE.

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Dr. Paulo Fernando Gambôa da Silva. Ao ser perguntado sobre o Sistema de Parceria
Agrícola, o referido advogado afirmou:

Esse sistema de parceria era um sistema onde só ganhava a fábrica. Porque quem
tinha parceria vai fornecendo o dinheiro para insumos agrícolas, para limpeza,
tamanho de área, tudo isso que for precisar. Quando chega no final há uma
prestação de contas e em toda prestação de conta o parceiro perdia. O parceiro
gastava mais do que tinha fornecido para fábrica, o esquema era esse 37.

Posteriormente, na mesma entrevista o advogado foi perguntado qual era a sua visão
sobre aquele trabalhador rural que era convidado a ser parceiro da Fábrica Peixe, e o
entrevistado declarou: “É uma expressão muito forte, é um animal na coleira. Com um
lugarzinho de botar ração”. Portanto, concluímos que a opção pela implementação da
Parceria Agrícola na agroindústria de Pesqueira evidenciou uma forma de exploração da
força de trabalho local e a reprodução capitalista em ritmo acelerado, configurando uma
estratégia dominante de recuperar o processo produtivo.

Considerações Finais

Conforme o depoimento do Moacyr Britto visto no tópico anteriormente, adotar a


parceria agrícola significava fundar um programa técnico social, incorporando condições
promocionais e assistências para o solo e para qualquer ser humano, fórmula ideal e
definitiva para o Semiárido Pernambucano. Sendo testada durante mais de três décadas, nos
solos da Caatinga na região de Pesqueira e municípios vizinhos, a parceria foi indicada pelos
estudos e entendimentos do diretor e assessor jurídico, Dr. José da Silva Eustáchio. A
parceria agrícola foi implantada no intuito de superar as dificuldades em relação às
fragilidades ecológicas e geográficas daquelas localidades38.

Desta forma é importante analisar as práticas que ocorreram em relação ao “contrato


de parceria”. Evidenciando, como os argumentos do engenheiro Moacyr Britto omitia a
existência de uma estrutura corporativista no interior da qual os “parceiros-agricultores”
estavam submetidos a um extremo controle no âmbito econômico, social, político e
ideológico. Na prática percebemos as vantagens na produção agrícola do cultivo de tomate
para a Fábrica “Peixe”, em detrimento de todos os meios de produção estarem na posse da
empresa. Os processos trabalhistas analisados, 0143/197139, 0036/197240 e 0142/197241

37
Entrevista concedida à Fernanda Silva Nunes e Gezenildo Jacinto da Silva, por Dr. Paulo Fernando Gambôa
da Silva. Ex-advogado dos parceiros-agricultores da Fábrica Peixe, (09/2017, em Pesqueira-PE).
38
PROC.0142.1972. P.25.
39
A Fábrica Peixe pagou a Cícero Rafael da Silva a importância de Cr$2.000,00 (dois mil cruzeiros). O
reclamante desistiu de sua estabilidade. P. 63.

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tiveram seus resultados em conciliações realizadas entre as partes, o reclamante parceiro-


agricultor e a reclamada Fábrica Peixe.

Referências Bibliográficas

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FEITOSA, R, J. R. Capitalismo e camponeses no Agreste Pernambucano: relações entre


indústria e agricultura na produção de tomate em Pesqueira-PE. Recife: UFPE, 1985.
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FONTES

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Lei nº 5650 de 11.12.1970.

PROC.0143/1971

40
A Fábrica Peixe pagou a Manoel José Gouveia a importância de Cr$3.500,00 (três mil e quinhentos
cruzeiros). Em tempo: o reclamante no ato do presente acordo, ficou obrigado a desocupar o imóvel da
propriedade da reclamada. P. 77.
41
A Fábrica Peixe pagou a Antônio Pedro Celestino a importância de Cr$4.000,00 (quatro mil cruzeiros). O
reclamante renunciou à sua estabilidade e teve um prazo de 15 dias para desocupar a propriedade. P. 77.

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PROC. 0036/1972

PROC.0142/1972

O USO DO “CARTÃO CEGO” NA FÁBRICA PEIXE DE PESQUEIRA

Gezenildo Jacinto da Silva

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Mestre em história/UFPE
gezenildo@hotmail.com

Após a conclusão do mestrado, continuamos a pesquisar a atividade rendeira na


região de Pesqueira – PE, procurando responder a algumas questões que ficaram sem
resposta durante a realização daquele trabalho. Inquietava-nos a atitude, um tanto quanto
passiva dos empresários da cidade, diante do surgimento da atividade artesanal da renda
Renascença que poderia concorrer com a atividade agrícola, gerando prejuízos à
agroindústria local. No decorrer desta pesquisa deparamo-nos com o processo nº 142/72 da
Junta de Conciliação e Julgamento de Pesqueira - JCJ, detalhando um plano de parceria
agrícola entre a “Fábrica Peixe de Pesqueira” e o trabalhador, onde incluía, na contabilidade
de rendimento do trabalhador parceiro, a renda auferida em atividades, tanto ligadas à
produção agrícola destinada à indústria, quanto na renda conquistada com a produção de
culturas de curto ciclo, como as culturas de feijão e milho; a criação de animais de pequeno
porte, como galinhas, porcos e cabras; e atividades artesanais como a renda Renascença
desenvolvida pelas filhas dos parceiros. A chamada “parceria” era uma modalidade de
contrato feito entre a empresa, doravante, chamada de Fábrica Peixe, proprietária das terras e
os trabalhadores do campo para a produção de tomates destinados ao beneficiamento na
indústria. Havia claros sinais da existência de alto nível de exploração do trabalhador, uma
vez que toda a atividade desenvolvida pelo chefe da família e pelos demais familiares,
inclusive as crianças, eram contabilizados como rendimento do parceiro. Esta parceria foi
um movimento empreendido pelos industriais de Pesqueira, no final da década de 1950 para
fazer frente ao movimento de mudança que estava prestes a acontecer na legislação dos
trabalhadores rurais.
Embora existissem, no município de Pesqueira, outras indústrias de doce com nível
de exploração do trabalhador, também, muito elevado, como a Fábrica Rosa, escolhemos
pesquisar a Fábrica Peixe, por ser a mais representativa, pela quantidade de processos e por
ter sido a que mais tempo resistiu às adversidades regionais. A Fábrica Peixe, a maior delas,
foi uma empresa fundada pelo casal, Carlos Frederico Xavier de Britto e Maria da
Conceição Cavalcanti de Britto, no final do século XIX, especializada na industrialização de
doces de goiaba e pioneira na produção de massas e extratos de tomates, localizada no
município de Pesqueira, Agreste de Pernambuco.
A luta do trabalhador por direitos, baseada na análise dos processos da justiça, é um
tema pouco estudado pela academia, mas de grande importância para a história do trabalho.

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A Historiografia sobre as indústrias de doces e sobre o município de Pesqueira é bastante


consistente, com trabalhos escritos por memorialista, economistas, sociólogos, geógrafos e
historiadores, contudo, são trabalhos que não apresentam um estudo mais apurado sobre a
situação dos trabalhadores nas fábricas de Pesqueira, nem da sua luta pelo cumprimento da
legislação trabalhista. Muitos desses trabalhos são publicados tão somente para apresentar os
motivos que contribuíram para o fechamento das fábricas, outros para enaltecerem as
qualidades dos empreendedores como, Santos (1953) com o seu “O Bandeirante da Goiaba”
em comemoração aos cem anos de nascimento de Carlos Frederico Xavier de Britto e
Wilson (1980) com o seu “Ararobá Lendária e Eterna” em comemoração aos cem anos de
elevação de Pesqueira a categoria de cidade. Nestes trabalhos a discussão sobre os
trabalhadores é romantizada. No entanto, o Arquivo Memória e História TRT/UFPE,
abrigado nas dependências do Departamento de História da UFPE dispõe de um acervo de
quase 200.000 processos abertos à consulta. Dentre estes processos encontramos aqueles
relativos aos primeiros anos de instalação da Junta de Conciliação e Julgamento de
Pesqueira PE (1971 A 1973). Estes documentos apresentam um conjunto de litígios com
reivindicações dos trabalhadores da região, apontando as práticas de irregularidade
cometidas pelas empresas, como a contratação de trabalhadores sem o assentamento na
Carteira Profissional, o não pagamento de horas extras, as perseguições, o rompimento dos
contratos antes de completar os dez anos, para evitar que o trabalhador conquistasse a
estabilidade, o incentivo ao trabalhador idoso para que requisitasse a sua aposentadoria,
induzindo os mesmos a perder o direito às indenizações, a realização de acordos
desvantajosos.
Ângela de Castro Gomes em parceria com Fernando Teixeira das Silva (2013)
organizaram o livro A Justiça do Trabalho e sua História com artigos de professores e
pesquisadores voltados para o estudo da Justiça do Trabalho e tendo como fontes privilegiadas a
documentação produzida por esta instituição. Eles afirmam que nas últimas três décadas, houve
um crescimento no Brasil, do interesse de historiadores e cientistas sociais pelo estudo dos
processos civis e criminais. As fontes judiciais possibilitam, de forma significativa, um estudo
mais ampliado do seu objeto de estudo. Os pesquisadores estão interessados em investigar a
história da criminalidade, as instituições, as ações normativas e os meios de disciplinarização da
sociedade. No campo da história social, as fontes judiciais apresentam um vasto território para
os estudos da história do cotidiano e da luta dos trabalhadores pelos seus direitos. Os autores
trazem à discussão a questão do lugar social dos dominados a partir da interpretação das queixas
e reclamações encontradas nos arquivos da justiça, afirmando que os “de baixo” passam a ser

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interpretados como atores vivos que questionam as instituições e que por isso mesmo, tornam-se
sujeitos do próprio ordenamento jurídico da sociedade, através das suas reivindicações.
Além da apresentação de diversos artigos versando sobre os caminhos trilhados por
pesquisadores do estudo da história do trabalho, bem como do aporte teórico-metodológico que
nortearam os seus trabalhos, esta obra traz também sugestões para objetos de estudos. Chamou-
nos a atenção o trabalho realizado por Rezende (2013, p. 401), in Gomes, Silva (orgs) Da
gratidão à Luta por Direitos: A regulamentação das relações de trabalho na “capital do calçado”
(Franca-SP 1940-1980), apresentando um estudo sobre a luta dos trabalhadores da indústria
calçadista de Franca e o número excessivo de acordos realizados no âmbito da justiça do
trabalho, em que o trabalhador negocia com o patrão para receber menos do que teria direito.
Neste sentido, o patrão era incentivado a não pagar os direitos dos trabalhadores esperando que
os mesmos acionassem a justiça para propor acordos. Uma prática que French (2001) chamou de
“Justiça com desconto”. Como sabemos, existem mecanismos jurídicos que tornam os processos
morosos, que podem induzir a parte mais vulnerável do processo a fazer acordos, mesmo não
sendo vantajoso.
Cavalcanti (2006: 52), fala sobre a situação do trabalhador pesqueirense dizendo que
era grande a exploração do trabalhador. Que na época da safra, a jornada de trabalho era de
três turnos, praticamente sem descanso e com alimentação à base de café com pão. Que
havia também, alguns trabalhadores que eram chamados pelos demais de “porcos”, que eram
trazidos do campo em cima de caminhões e que trabalhavam no turno da noite, sem o uso de
uniformes, manuseando frutos com a mesma roupa usada no campo. Para Cavalcanti (2006),
a atividade industrial em Pesqueira proporcionou uma alta concentração de terra e de renda a
um pequeno grupo de industriais, deixando o resto da população em extrema dependência,
carreada dos males oriundos desta situação. Colaborando com as afirmações de Cavalcanti
(2006), Silva (2008), diz que eram os índios Xucurus que trabalhavam na chamada “virada”,
o trabalho realizado no turno da noite sem carteira assinada. Depois de perderam suas
melhores terras para os fazendeiros da cidade eram obrigados a trabalhar de “aluguel” ou
como operário das fábricas da cidade. Contudo não há, nestes trabalhos, nenhuma referência
sobre a luta dos trabalhadores das indústrias de doce de Pesqueira para garantir seus direitos
na Junta de Conciliação e Julgamento de Pesqueira. Não há referência à luta dos
trabalhadores por direitos, nem sobre a participação dos advogados, dos sindicatos e da
atuação dos juízes do trabalho.
Galindo (2007), no entanto, exalta ao longo do seu trabalho a iniciativa dos pioneiros
em instalar a indústria doceira em Pesqueira. Para ela, a agroindústria pesqueirense foi a

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principal atividade econômica dessa região, que não só deu condições de subsistência às
populações locais, como também proporcionou um significativo desenvolvimento
econômico na região. Contrariando Galindo (2007), Calado (1979), que é filho de operário
da Fábrica Peixe, em seu trabalho acadêmico, conhecendo bem as estruturas de poder
estabelecidas em Pesqueira, dissertou sobre as relações econômicas, as estruturas de poder e
de seus mecanismos de dominação e dependência no Agreste Centro Ocidental de
Pernambuco – ACOPE. Para Calado (1979), o Nordeste vem representando muito bem o seu
papel de “perdedor”, uma vez que tem uma opressora estrutura agrária que contribui para
fomentar a existência de um exército de trabalhadores rurais dispostos a aceitar o que o
mercado queria pagar pelos seus serviços ou dispostos a se deslocar para “perder” na região
Centro-Sul do país à procura de emprego. Calado (1979) fez uma análise da situação de
dependência, como principal causa da pobreza do Nordeste, seguindo o pensamento dos
economistas da CEPAL.
Analisando o período de vigência das políticas públicas de incentivo ao capital
internacional, do regime autoritário, Feitosa (1985) falou sobre as transformações ocorridas
na estrutura fundiária, nas relações de produção e nas relações entre indústria e a agricultura,
ocorridos ao longo da década de 1960 e 1970 em Pesqueira. Para ele, a grande indústria
capitalista passou a dominar e a agricultura a obedecer às suas ordens. Houve, em fim, um
processo de desenvolvimento do capitalismo no campo, com a adoção de métodos
sofisticados de produção e de aferição de resultados econômicos, através da adoção de
contratos de “parceria”, onde o trabalhador se comprometia a seguir rigorosamente as
recomendações dos agrônomos indicados pelos departamentos agrícola das indústrias. Tudo
isso sem levar em consideração o que estas mudanças poderiam provocar ao trabalhador
rural, como o tipo de relação trabalhista existente entre o agricultor, parceiro, e a empresa,
proprietária das terras.
Cavalcanti (1979) fez uma análise econômica bastante consistente sobre os fatores
que ensejaram o desenvolvimento da indústria doceira de Pesqueira, especialmente da
Fábrica Peixe, que tem o seu desenvolvimento ligado às condições de mercado, da força de
trabalho e do tipo de capital investido. Para Cavalcanti (1979), a década de 1930 marca o
período de desregionalização da indústria doceira que passa a instalar unidades produtoras
no chamado Centro-Sul do País, investindo o capital industrial acumulado no Agreste
Pernambucano em novas unidades fabris. Em sua fase mais crítica, que ocorreu na década de
1950, o capital industrial acumulado cedeu lugar ao capital financeiro para fazer frente à
nova realidade econômica. Segundo Cavalcanti (1979), o Grupo de Trabalho para o

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Desenvolvimento do Nordeste (GTDN) constatara a transferência de rendimentos do


Nordeste para o Sudeste. A década de 1950 encerrava, portanto, a idade de ouro das
indústrias de doces de Pesqueira. Não seria um fato isolado, uma vez que o nordeste inteiro
passou por esse processo de encolhimento econômico. O fenômeno refletia o fim de uma
conjuntura de reprodução do capitalismo regional que se esgotara. Cavalcanti atribui a baixa
remuneração salarial do operariado à grande oferta de mão obra e a baixa qualificação
profissional. O fato é que, salário baixo, sindicato fraco e baixa pressão sindical
possibilitaram maior exploração do trabalhador, concentração de renda e a introdução do
regime de parceria. A parceria agrícola foi, portanto, introduzida como uma tentativa de
encontrar uma nova forma de exploração da força de trabalho local.
O fluxo de pessoas que vinha de diferentes localidades para comercializar foi tema
de estudo do geógrafo Hilton Sette (1956), que focou suas análises no recorte espacial do
município de Pesqueira. Ele dissertou sobre os aspectos da geografia urbana de Pesqueira e
de duas diferentes fases do seu desenvolvimento: Uma comercial e outra industrial. Sette
(1956) fez um trabalho criterioso, com análises técnicas, pertinentes à geografia do lugar,
observando a paisagem e as formas de ocupação humana, bem como seus aspectos
intrarregionais, fazendo análises quanto ao desenvolvimento da economia local e de seus
desdobramentos, apontando, já em 1956, o decréscimo da atividade industrial, mas não se
deteve para analisar as formas do aproveitamento da mão de obra local disponível, nem dos
litígios trabalhistas. No entanto, observou a quase inexistência de força sindical de viés
marxista, pela atuação eleitoral inexpressiva do partido comunista nas eleições de 1945 e
1946 na cidade, com 56 e 67 votos, na eleição municipal e estadual, respectivamente.
Sette (1956), não fez nenhuma referência à postura dos industriais quanto à
organização do Partido Comunista na cidade, nem sobre as razões que levaram o PC a ter
um desempenho tão pífio. Gregório Bezerra (2011), no entanto, fala em seu livro de
memórias que houve reação contrária à organização do Partido Comunista na Cidade. Que
logo após a legalização do Partido Comunista, em 1945, viajou para o interior de
Pernambuco para fazer comícios e dá posse às novas direções. Que esteve em Pesqueira,
conhecida não só por ser um feudo dos Brittos e de reação clerical, mas também por ser
conhecida como um importante núcleo do integralismo pernambucano. Ele disse que os
proprietários das indústrias de doces fizeram uma manobra para impedir que os operários
fossem ouvir o comício dos comunistas e se uniram para oferecer um grande churrasco aos
operários. Bezerra (2011) afirma que logo após a campanha vitoriosa de Miguel Arraes à

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Prefeitura do Recife, viajou pelo interior e ajudou a fundar a Liga Camponesa de Pesqueira,
fato que viria a gerar prisões e perseguições políticas na região.
A luta do trabalhador por direitos não é uma luta isolada que ocorre
esporadicamente, ela acontece em todos os lugares e sempre que houver exploração. A
forma mais sofisticada de exploração do trabalhador ocorreu na modernidade, através do
modo de produção capitalista, quando o trabalhador perde o poder sobre seus meios de
produção e vende sua força de trabalho, que é a única coisa que lhe resta para se manter,
como certamente, ocorreu com os índios Xucurus e pequenos agricultores, ao perderem suas
terras, através de apropriações, esbulho, grilagem, ou mesmo, por aquisição, para os
industriais e fazendeiros da região. A mão de obra abundante e a baixa qualificação
profissional, segundo Cavalcanti (1979:55), possibilitou aos industriais da região ter a sua
disposição um quadro de funcionários com baixa remuneração e a classe operária, pouca
disposição para a luta.
Cavalcanti (1979), assim como, Calado (1979) e Feitosa (1985) trabalham com a
noção de classe de orientação marxista, ou seja, a classe faria parte de uma estrutura, onde a
classe proletária faria oposição a classe burguesa, de modo que uma não existiria sem a
outra. A classe faria parte do próprio processo de organização do trabalho, cabendo ao
trabalhador se reconhecer como classe. Como não havia consciência de classe, nem também,
organização sindical e partidos políticos capazes de empunhar uma bandeira em favor dos
seus interesses, não haveria as condições necessárias para a luta revolucionária do
proletariado. Classe é, portanto, um elemento, chave, para compreendermos a luta do
trabalhador pesqueirense por direitos. Orientamos o nosso trabalho a partir da concepção de
luta de classe e de consciência de classe do historiador inglês Edward Palmer Thompson
(2004).
O objeto de estudo de Thompson (2004) é a luta do trabalhador inglês por direitos.
Em A Formação da Classe Operária Inglesa, ele faz um estudo sobre a trajetória e o
processo de formação da classe operária inglesa entre os anos de 1780 a 1832. É um livro
que foi publicado em língua inglesa 1963 e em língua portuguesa em 1987 é, portanto, uma
formulação teórica que não estava acessível aos primeiros estudiosos que se dedicaram a
escrever sobre os trabalhadores das indústrias de doce de Pesqueira. Dizia-se não haver
empenho dos trabalhadores para lutar pelos seus direitos por não haver consciência de
classe. Se Thompson (2004), diz que:
A classe acontece quando alguns homens, como resultado de experiências comuns
(herdadas ou partilhadas), sentem e articulam a identidade de seus interesses entre
si, e contra outros homens cujos interesses diferem (e geralmente se opõem) dos

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seus. A experiência de classe é determinada, em grande medida, pelas relações


de produção em que os homens nasceram, ou entraram involuntariamente. A
consciência de classe é a forma como essas experiências são tratadas em termos
culturais: encarnadas em tradições, sistemas de valores, ideias e formas
institucionais. Se a experiência aparece como determinada, o mesmo não ocorre
com a consciência de classe (THOMPSON, 2004, p. 10)

Então havia sim, uma classe de trabalhadores com interesses próprios, em oposição a
classe dos proprietários. Para Thompson (2004), classe deve ser entendida como uma formação
social e cultural, surgida de processos, condicionada basicamente a dois fatores: a identidade e
a consciência. Identidade é aquilo que os identifica com o outro ou o grupo e que os
diferencia dos demais. É o que dividimos com aqueles com quem convivemos em nossa
formação. Ela está em nossas origens e ela está no modo como somos socializados, em
nossos lares, na escola, no sindicato, na empresa, na Igreja. Os processos judiciais da Justiça
do Trabalho trazem uma série de depoimento que confirmam a existência de uma rede de
solidariedade e de uma circularidade de ideias e de interesses comuns entre os operários,
colaborando com os ensinamentos de Thompson (2004) sobre a consciência de classe. A
Consciência de classe é o momento em que a pessoa se reconhece como integrante desta
classe e exerce o seu papel histórico passando a batalhar politicamente em defesa dos seus
direitos e da classe a que pertence.
Quando a sirene toca anunciando a mudança de turno, grupos de operários saem e
outros entram para darem continuidade à produção das fábricas. São procedimentos
repetidos semanalmente, sempre nos mesmos dias e nos mesmos horários. Este era,
provavelmente, o cotidiano dos trabalhadores das fábricas de doce de Pesqueira. Às vezes,
morando na mesma rua, na mesma vila operária, no mesmo bairro, saía em grupo realizando
o mesmo trajeto diariamente. O bairro, segundo Certeau (1996), “[...] é uma organização
coletiva de trajetórias individuais: com ele ficam postos à disposição dos seus usuários
‘lugares’ na proximidade dos quais estes se encontram necessariamente para atender as suas
necessidades cotidianas.” (CERTEAU, 1996, p. 46). É na prática do dia a dia que são feitas
as escolhas e estabelecidos os caminhos que serão percorridos para vencer as dificuldades do
dia a dia. Em casa, no bairro ou no interior da fábrica, o trabalhador, certamente, desenvolve
suas estratégias e tática para o enfrentamento do dia a dia. Assim, pode se dizer que a
frequência com que vão aos mesmos lugares, os trabalhadores praticam cotidianamente
sociabilidades, fortalecendo a sua rede de amizades e compartilhando conhecimentos.
Esse companheirismo forjado no dia a dia da fábrica pode ser verificado através do
empenho dos companheiros de fábrica ao testemunhar em favor do outro nas lides
trabalhistas de Pesqueira, contrariando aqueles que dizem não ter havido luta de classe por

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não existir uma consciência de classe dos trabalhadores das indústrias de doce da cidade.
Com a chegada da Junta de Conciliação e Julgamento de Pesqueira, em 1971, órgão
subordinado ao Tribunal Regional do Trabalho da 6ª região, os litígios trabalhistas passaram
a ser julgados por um tribunal criado especificamente para a área trabalhista. Uma primeira
olhada na documentação da Junta de Conciliação e Julgamento de Pesqueira nos passa a
impressão de ordem e formalidade, com a utilização de formulários específicos para cada
tipo de procedimento. Quanto à natureza da linguagem, ela é formal e de certa forma
econômica, uma vez que a narrativa é intermediada pelo secretário onde, muitas vezes,
reporta-se secamente a um tema, para em seguida narrar outro episódio. As instruções são
muitas vezes interrompidas e remarcadas para outra data, sem nenhum motivo aparente. Não
temos uma escrita minuciosa do processo. A análise dos depoimentos é dificultada pela falta
de elementos como a oralidade e o gestual, perdidos na escrita. Assim, entendemos que,
apesar de termos uma vasta documentação escrita com a utilização de meio datilográfico e
formalmente organizada, que facilita, no entendimento da leitura, há pontos cegos e
passagens que precisam ser melhores esclarecidos, através de uma leitura mais aprofundada
da documentação.
Entendemos que o paradigma indiciário apresentado por Ginzburg (1989) é o método
ideal para nos ajudar a decifrar as pistas deixadas na documentação pelos reclamantes e
reclamadas, bem como, as interrupções, o não dito e as camuflagens. Podemos analisar os
sinais, especialmente aqueles negligenciados, para ajudar a interpretarmos os documentos.
Estamos falando de trabalhadores que fizeram reclamações trabalhistas de forma corajosa
contra os patrões, que na maioria dos casos, são economicamente poderosos e muito
influentes na sociedade, podendo sofrer no curso do processo, todo tipo de pressão.
Certamente, sua coragem vinha acompanhada da apresentação de provas materiais e
testemunhal. Contudo, apesar da robustez das provas, há possibilidade de ter havido recuos
no decorrer dos processos.
A documentação sobre os litígios trabalhistas da JCJ de Pesqueira apresenta muitas
reclamações de falta de registro na Carteira Profissional dos trabalhadores. É importante que
façamos uma análise destes documentos a fim de verificarmos quais foram as estratégias
adotadas pelo empregador para burlar a legislação e como o empregado se comportava
diante daquela situação.
Um termo utilizado nos processos que nos pareceu singular e que pode representar o
tipo de relação trabalhista comum em Pesqueira é o chamado, “Cartão Cego”. Este era o
nome dado pelos trabalhadores da Fábrica Peixe a uma modalidade de cartão de ponto, feito

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em cartolina branca, usado por eles para marcar o horário de entrada e de saída da fábrica
sem conter referências à condição de operário sem registro na Carteira Profissional. O
chamado “cartão cego” é citado, de forma muito sutil, em vários processos trabalhistas de
Pesqueira, de forma que representa um documento que ficava ao alcance do operário,
indicando a ilegalidade da empresa e a sua condição de empregado irregular. Essa sutileza
pode representar o medo de perder o emprego e ou de desagradar ao chefe que lhe dera uma
oportunidade na empresa, mas também pode representar a ideia de operário de segunda
linha, sem qualificação definida, contratado para uma atividade casual, condição que o
trabalhador não queria, certamente, se identificar.
Heronides Lopes de Mendonça, casado, empregado da Fábrica Peixe há 27 anos,
testemunha no processo que Antonio Pereira da Silva moveu contra a Fábrica Peixe
identificou o uso do “Cartão Cego” como um problema, mas fez questão de ressaltar o seu
distanciamento desta prática, dizendo não haver este tipo contratação na sessão em que
trabalhava.
[…] que não consta ao depoente que o Reclamante tivesse passado algum tempo
afastado da Fábrica; que o depoente nunca assinou Cartão Cego; que na sua
sessão, nunca existiu problema de cartão Cego; que seu trabalho é isolado e
portanto não tem conhecimento das demais sessões; que sabia que na Fábrica
existia êste Problema de Cartão Cego, porque se negar se isto acontecia, não está
falando a verdade porém na sua sessão não houve esse problema; que não pode
esclarecer sôbre o problema do cartão cego, porque não existia, repete, na sua
sessão.1

O uso do “Cartão Cego”, na empresa, não era objeto da reclamação, mas foi
explorado pelo patrono do reclamante para demostrar que havia a prática de falsas
demissões na empresa a fim de evitar que o trabalhador completasse 10 anos de vínculo com
a empresa e atingisse a estabilidade. Ao ser formalmente demitido, o trabalhador passava a
compor o quadro dos funcionários com “Cartão Cego”, podendo voltar a ser readmitido, seis
meses depois, agora, sem o antigo vínculo. Para o advogado Paulo Gambôa2, que atuou em
vários processos na Junta de Conciliação e Julgamento de Pesqueira, contra a Fábrica Peixe,
o “Cartão Cego” era uma prática utilizada pelos empresários para burlar a legislação
trabalhista. Em alguns casos, o trabalhador estava realizando uma atividade em determinado
setor da empresa, mas o seu vínculo era com outra empresa do grupo. Havia trabalhadores
que estavam contratados ora para Fábrica Peixe, ora para a Companhia Comercial J. Freitas

1
Arquivo Memória e História TRT/UFPE. Processo Trabalhista da Junta de Conciliação e Julgamento de
Pesqueira-PE. Processo, Nº 0130/71, p. 77
2
Entrevista com o advogado Paulo Fernando Gambôa da Silva. Pesqueira, 09 de setembro de 2017

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ou até mesmo, sem nenhum vínculo empregatício legal, atuando na empresa vinculado tão
somente ao contrato da modalidade “Cartão Cego”.
Cartão Cego. As vezes… não você tava num serviço… não, você tá empregado
daqui! No fim do mês você recebe. Você recebia o salário no fim do mês, me dá o
seu cartão. Para que? Você tem que fazer a pergunta, por que se tinha o cartão
cego? Tinha alguma vantagem, não tinha? Qual era a vantagem? Não paga INPS,
não conta tempo em serviço para possível indenização porque antigamente era
indenização na CLT.3

José Rosendo da Silva, Operário da Fábrica Peixe, se dirigiu ao Posto de Fiscalização


da Delegacia Regional do Trabalho situada em Caruaru, no dia 11 de março de 1966 para
prestar queixa contra a referida empresa, acusando-a de não ter feito o registro legal em sua
Carteira Profissional do período em que esteve trabalhando entre os anos de 1962 a 1965.
A Delegacia Regional de Caruaru encaminhou a referida reclamação para o Juiz de
Direito da Comarca de Pesqueira, fazendo ver ao Meritíssimo Juiz de Direito que não era a
primeira vez que encaminhava processos de reclamação trabalhista similar a este, praticados
pelas indústrias daquela comarca. Diz o ofício:
Se verifica também que está omissa na anotação do documento, o período
compreendido entre 29/09/1962 a 14/12/1965, necessitando de um acurado
exame para verificar se houve burla à lei.
Data vênia, não é o primeiro processo que se tem encaminhado a êsse
MM juizo para apuração das alegações dos empregados que procuram esta
repartição, traduzindo reincidência específica da empresa em anotações
similares que o administrativo não se sente a altura de dirimir, dada a
controvérsia levantada nas defesas apresentadas a fim de destruir direitos
porventura adquiridos, que só no Juizo competente poderá ser apurado.4

Feitas as vistas na exposição dos motivos que ensejou a referida reclamação, o


representante da empresa reclamada apresenta veemente protesto contra os termos
utilizados pelo representante da Delegacia Regional do Trabalho, afirmando que todas as
reclamações trabalhistas anteriores foram julgadas improcedentes, sendo prática da
empresa cumprir com todas as obrigações trabalhistas. A defesa não nega a existência das
reclamações, mas também não faz nenhuma observação quanto à natureza dos
julgamentos realizados na comarca de Pesqueira.
José Rosendo da Silva alega que sempre trabalhou para a mesma empresa, que
apesar de ter sido afastado várias vezes, nunca assinou contrato de trabalho na
modalidade “Cartão Cego”. Neste caso, o reclamante, enfatiza o fato de nunca ter
trabalhado em outra empresa, nem muito menos na modalidade “Cartão Cego”, ou seja,
para ele a Fábrica Peixe e a Companhia Comercial J. Freitas, que eram do mesmo dono,

3
Entrevista com o advogado Paulo Fernando Gambôa da Silva. Pesqueira, 09 de setembro de 2017
4
Arquivo Memória e História TRT/UFPE. Processo Trabalhista da Junta de Conciliação e Julgamento de
Pesqueira-PE. Processo, Nº 007/71, p. 27

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era uma empresa só, e o contrato firmado com “Cartão Cego” era considerado por ele e
pelos demais funcionários como um acordo feito entre as partes, que não suscitava
benefícios posteriores. Daí a sua pressa em negar ter feito qualquer acordo naquela
modalidade.
que nunca trabalhou para outra firma durante o periodo que trabalhou para a
firma Reclamada. Novamente perguntado a respeito da mesma Reclamação,
disse que tem conhecimento de existir na firma Reclamada, a modalidade
contratual denominada “cartões cegos”, todavia, o Reclamante nunca assinou
tais cartões; que por várias vezes, com ciencia do reclamante, foi o mesmo
recontratado segundo demonstra a sua carteira profissional, contudo, o mesmo
Reclamante, não obstante as saídas constantes da sua C.P., permanecia o
Reclamante trabalhando na empreza Reclamada.5

Como podemos perceber a modalidade de contrato do tipo “Cartão Cego” na


Fábrica Peixe de Pesqueira era muito comum. O trabalhador era submetido a este tipo de
contrato, motivado muitas vezes, pela necessidade do emprego ou até mesmo na esperança
de não ser perseguido ou transferido para um setor considerado pelos trabalhadores, mais
pesado, como foi o caso relatado por Albino Leopoldino Cunha, segunda testemunha de
Antonio Pereira da Silva: “que voltando a Fábrica para o trabalho, foi mudado de sessão
para um serviço penoso; que quem fazia acordo, ficava trabalhando na Fábrica direto,
assinando um cartão Cego; que o próprio depoente também assinou Cartão Cego.”6
Apesar de ser uma modalidade já conhecida por todos dentro da empresa, a forma
como os depoentes falavam do “Cartão Cego” diante da autoridade constituída mostrava
que esse não era um tema que se conversava abertamente dentro da empresa. Em alguns
depoimentos o tom era de açodada coragem, em outros, era de medo ou vergonha. O
próprio nome “Cartão Cego” nos remete a uma modalidade de contrato sem luz, sem
brilho, sem valor em oposição àquele contrato que lhe garantia todos os direitos. Para
Carlito Lopes Frazão, empregado há 24 anos na Fábrica Peixe e terceira testemunha de
Antonio Pereira da Silva os acordos realizados na empresa eram fictícios, uma vez que os
empregados não recebiam nenhum benefício financeiro.
[…] que não lhe consta que nenhum empregado tivesse recebido qualquer
pagamento de acôrdo feito; que na Fábrica existia um cartão cego; que o
próprio depoente já trabalhou em cartão cego; que quem assinava cartão cego,
era porque dava saída na CP sem haver saído da Fábrica; que quem assinava
Cartão Cego, trabalhava sem ter direito a INPS; que o senhor Expedito Melo
era chefe das fichas de pessoal; que o Reclamante também foi chamado para

5
Arquivo Memória e História TRT/UFPE. Processo Trabalhista da Junta de Conciliação e Julgamento de
Pesqueira-PE. Processo, Nº 007/71, p. 35
6
Arquivo Memória e História TRT/UFPE. Processo Trabalhista da Junta de Conciliação e Julgamento de
Pesqueira-PE. Processo, Nº 0130/71, p. 78

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fazer acôrdo; que não sabe se o Reclamante assinou o papel, poré sabe que o
reclamante, nunca deixou um só dia de trabalhar na firma.7

Diferentemente dos demais funcionários, o auxiliar de escritório, Antonio Pereira


da Silva faz questão de dizer que no setor em que trabalhava assinava no livro de ponto e
que só batia o cartão de ponto na modalidade azul, quando fazia hora extra. Antonio
Pereira trabalhava num setor da administração que lhe possibilitava ter acesso a
informações privilegiadas, mas como era funcionário de baixo escalão era obrigado a
aceitar determinadas condições de trabalho. Contudo, quando resolve reivindicar seus
direitos utiliza de todo o conhecimento que dispunha para lutar por eles.
[…] Reinquerido o reclamante, sobre tal livro de ponto, o mesmo afirmou que o
senhor Nelson, lhe havia recomendado a passar 6 mêses sem assinar o livro de
ponto, segundo parece, e que nesta época, o reclamante batia o ponto num
cartão azul; que o cartão do dia, era de cor creme com pautas pretas e o da noite
era azul; que o cartão dos que estavam afastados, e não podia figurar como
pertencente a empresa era um cartão branco, conhecido na fábrica como
“Cartão Cego”; que não tem lembrança, o reclamante de ter batido o cartão
cego, pelo menos quando estava no escritório, tem certeza que não batia o
“Cartão Cego”; que o cartão azul, o reclamante sempre batia, quando fazia
horas extras. 8
Maria de Lourdes Freitas, solteira, residente na Travessa Clara Camarão, 79 em
Pesqueira, diz que foi admitida na Fábrica Peixe no ano de 1959 na condição de operária.
Tendo registrado em sua Carteira Profissional onze contratos de trabalho, mas que, na
maioria das vezes, não havia quebra de continuidade. Ressalta, no entanto, que houve
períodos em que trabalhou na modalidade “Cartão Cego”. Para Maria de Lourdes “[…]
os períodos anotados na sua CP não traduzem a realidade dos contratos realizados. São
sempre menores que os serviços prestadados.”9
No item cinco da reclamatória a operária menciona o fato de receber através da
modalidade “Cartão Cego” e de ter que trabalhar escondida dos fiscais do Ministério do
Trabalho. Há nesta declaração a plena convicção da natureza ilegal daquele tipo de
contrato e dos prejuízos financeiros que esta modalidade lhe causava.

[…] Que, pelo exposto, faz jus a Recte. a apuração real do seu tempo de serviço,
para que seja paga a devida indenização e Prejulgado nº 20. Não recebeu Aviso
Prévio. Alega ainda a Recte. Que não recebia o Salário Mínimo vigente na
região, e que durante os tempos de trabalho, houve época em que recebia um
cartão “cego”, que vivia escondido dos fiscais. Nunca recebeu férias, 13º salário.
Trabalhava horas extra sem perceber a remuneração devida, seu horário de
trabalho se estendia das 5:00 às 11:00 horas, algumas vezes das 7:00 às 13:00

7
Arquivo Memória e História TRT/UFPE. Processo Trabalhista da Junta de Conciliação e Julgamento de
Pesqueira-PE. Processo, Nº 0130/71, p. 78
8
Arquivo Memória e História TRT/UFPE. Processo Trabalhista da Junta de Conciliação e Julgamento de
Pesqueira-PE. Processo, Nº 030/71, p. 74/75
9
Arquivo Memória e História TRT/UFPE. Processo Trabalhista da Junta de Conciliação e Julgamento de
Pesqueira-PE. Processo, Nº 0172/72, p. 02

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horas, no período da tarde, das 14:00 às 18:00 horas e à noite das 19:00 às 24:00
horas.10

Para o advogado Paulo Gambôa, o princípio básico da relação entre patrões e


operários em Pesqueira era a subserviência. Segundo ele, os operários faziam tudo o que os
patrões queriam. De fato, há diversas narrativas apontando para uma certa letargia do
operariado, contudo, como podemos ver nos processos que estamos analisando,
especialmente, aqueles que mencionam o uso do “Cartão Cego” havia reações. Os
trabalhadores tinham sua rede de solidariedade e de companheirismo; atuavam em defesa da
classe; testemunhavam a seu favor e resistiam da forma que podiam dentro das sessões onde
trabalhavam, elaborando suas estratégias e táticas de resistências. Não eram letrados, mas
conversavam entre si, debatiam sobre direitos e perseguições dentro da fábrica até chegar o
dia que tomam coragem e passam a exigir seus direitos, seja denunciando ao juiz da cidade,
seja denunciando as irregularidades à Delegacia Regional do Trabalho em Caruaru ou
mesmo na Junta de Conciliação e Julgamento de Pesqueira.

REFERÊNCIAS:

BEZERRA, Gregório. Memórias. São Paulo, SP: Editora Boitempo, 2011.

CALADO, Alder Júlio Ferreira. Relações de Dependência Social no Agreste Centro


Ocidental de Pernambuco. DISSERTAÇÃO (Mestrado em Sociologia) PIMES/UFPE,
1979

CAVALCANTI, Bartolomeu. No Tacho o Ponto Desandou: história de Pesqueira, de


1930 a 1950. Recife: Tese (Doutorado em História), UFPE, 2005

CAVALCANTI, Célia Maria de Lira. A Acumulação de Capital e a Industrialização em


Pesqueira. Recife: Dissertação (Mestrado em Economia), PIMES/UFPE, 1979

CERTEAU, Michel de. Invenção do Cotidiano, A. 2. Petrópolis/RJ: Vozes, 1996

FEITOZA, Raymundo Juliano Rego. Capitalismo e Camponeses no Agreste


Pernambucano: Relações entre indústria e agricultura na produção de tomates em
Pesqueira – PE. Recife: Dissertação. (Mestrado em sociologia), PIMES/UFPE, 1985

FRENCH, John. Afogados em Leis. A CLT e a cultura política dos trabalhadores


brasileiros. São Paulo: Editora Perseu Abramo, 2001

10
Arquivo Memória e História TRT/UFPE. Processo Trabalhista da Junta de Conciliação e Julgamento de
Pesqueira-PE. Processo, Nº 0172/72, p. 03

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GALINDO, Betânia Flávia Cavalcanti. A Cidade das Chaminés: História da


Industrialização de Pesqueira. Recife: Dissertação (Mestrado em Administração), FBV,
2007

GINZBURGUE, Carlos. Mitos, Emblemas, Sinais: morfologia e história. São Paulo:


Companhia das Letras, 1989

GOMES Ângela de Castro, SILVA, Fernando Teixeira da (ORGS). A Justiça do Trabalho


e sua história: os direitos dos trabalhadores no Brasil. Campinas, São Paulo: Editora da
Unicamp, 2013

SANTOS, Luiz Cristovão dos. Carlos Frederico Xavier de Britto (O “Bandeirante da


Goiaba”). Recife, 1953

SANTOS, Minervino Osório dos Santos. Eu, A Fábrica Peixe e Pesqueira. Caruaru:
Gráfica Estudantil, 2008

SETTE, Hilton. Pesqueira: Aspectos de sua geografia urbana e de suas interrelações


regionais. Recife, 1956

SILVA, E. Xukuru: memórias e história dos índios da Serra do Ororubá


(Pesqueira/PE), 1950-1988. Tese (Doutorado em História Social). Campinas: UNICAMP,
2008

THOMPSON, Edward Palmer. A Formação da Classe Operária Inglesa: A Árvore da


Liberdade. Rio de Janeiro: Paz e Terra. 1987

WILSON, Luiz. Ararobá, Lendária e Eterna. Prefeitura Municipal de Pesqueira, 1980

ENTREVISTA:
Paulo Fernando Gambôa da Silva. Pesqueira , 09 de setembro de 2017

ARQUIVO:
Arquivo Memória e História TRT/UFPE. Processo Trabalhista da Junta de Conciliação e
Julgamento de Pesqueira-PE (1971-1972)

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SOCIABILIDADES E MODOS DE VIDA EM UMA VILA OPERÁRIA. O CASO DE


CAMARAGIBE. (1900-29)

Autor: Marcos Alesandro Neves dos Santos.


UFPB
Email: marcos.alessandro.neves@hotmail.com

As vilas operárias surgiram na Inglaterra, berço da Revolução Industrial ocorrida no


final do século XVIII e início do XIX, o que gerou uma grande explosão demográfica nas
cidades acarretando a falta de moradias (TRAMONTANO, 1998). Tal situação levou a
várias iniciativas de construção de habitação operária, obedecendo assim não apenas aos
preceitos higienistas1, como também a uma maior vigilância sobre os operários. Dessa
forma, parte da burguesia industrial da época propiciou o surgimento de tentativas de
habitação operária, idealizando uma habitação tida como limpa que se fundasse nas bases do
que seria uma sociedade ideal2 (VIANNA, 2004). Com as mudanças impostas, a antiga

1
O higienismo tem seu surgimento atrelado ao capitalismo industrial no século XIX na Europa. Com o
processo de urbanização das cidades devido á migração populacional, as condições de salubridade passam por
um momento de deteriorização que incidia na saúde da população. Dessa forma, o Estado passa a adotar
medidas que visem frear as pestes e epidemias que acometiam os centros urbanos como, por exemplo,
iluminação das ruas, tratamento de esgoto e a vacinação em massa. Tais medidas irão incidir sob os hábitos das
classes populares, em nome do higienismo, a população pobre será afastada dos centros, das praças e dos
lugares que serão alvo de investimento das classes políticas. CORBIN, Alain — Saberes e Odores. São Paulo,
Cia. das Letras, 1987.
2
Entende-se por sociedade ideal aos padrões burgueses da época, uma sociedade sadia e ordeira, avessa aos
ditos maus hábitos como o vício do álcool, jogo e da prostituição, que no entender das elites políticas e

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forma de produção dos artesãos (em oficinas) passou a ser tida como incompatível pela
indústria, e consequentemente, trouxe consigo uma proposta de reorganização do trabalho, e,
principalmente, do controle dos operários.

Assim como outras capitais, Recife passava por um período de transição, não apenas
temporal na passagem do século XIX para o século XX, mas também da forma de governo,
saindo de um período imperial para o modelo republicano (ARRAIS, 2004). Esses fatores
contribuíram para um suposto pensamento moderno3 (REZENDE, 1987) que tomou conta
do país nas primeiras décadas do século XX juntamente com o discurso higienista e
modernizante4.

Como toda indústria alinhada às questões capitalistas, a fábrica visava ao lucro que
seria obtido através do trabalho dos operários. No entanto, a diferença em relação às fábricas
que não adotavam esse modelo (fábrica com vila operária) era o perfil moralizador que se
almejava de um operário moralmente adepto aos preceitos cristãos.
A classe operária de Camaragibe nas primeiras décadas do século XX através das
associações demonstram um perfil plural do fazer-se operário. Por mais que estejam dentro
do perímetro da Vila operária, associações de caráter mutualístico5 ou de distração
expressavam distorções entre aquilo que era alardeado pelos donos da empresa, (que a
fábrica seria o lugar “dos sonhos” do trabalhador) e a versão dos operários que a fábrica
seria também o local onde as queixas, as reivindicações6 iriam surgir, se não com força

econômicas que “corrompiam” o corpo e a alma. Ver mais: CHALHOUB, Sidney. Cidade febril – Cortiços e
epidemias na Corte Imperial. São Paulo, Companhia das Letras, 1996.
3
Compartilho a visão de modernidade de Marshall, que em sua obra analisa a modernidade como um paradoxo
entre ser revolucionário e conservador ao mesmo tempo, pois sente a segurança dos avanços técnico/científicos
que foram alcançados, porém não possui domínio sob essas questões. Daí sua insegurança diante da
imprevisibilidade do que não pode controlar. BERMAN, Marshall. Tudo que é Sólido Desmancha no Ar; São
Paulo, Cia das Letras, 1988.
4
O discurso foi utilizado com o intuito de promover obras de viés higienista, que visavam uma exclusão da
população que ocupava esses espaços, atendendo aos anseios de uma elite local que clamava por uma cidade
tida como moderna para os seus conceitos. A cidade moderna, entendida como salubre e uniforme do ponto de
vista estético, “com ruas alinhadas, construções suntuosas e pobres expulsos das áreas centrais, começava a ser
gestada” TEIXEIRA, Flávio Weinstein. As cidades enquanto palco da modernidade. Dissertação (Mestrado).
Recife: PPGH/UFPE, 1994.
5
Em geral, as mutuais ocupavam a lacuna provocada pela ausência de seguridade dos trabalhadores em caso de
doenças, acidentes, aposentadoria e falecimento, concedendo, neste caso, pensão à família, embora tal
prerrogativa fosse mais exceção do que regra. Embora não ainda verificado, é possível que de alguma forma as
atividades das mutuais tenham influenciado na discussão das leis de acidentes de trabalho. GASPARETTO
JÚNIOR, Antonio. Sociedade Auxiliadora Portuguesa: práticas de sociabilidade e de seguridade de
trabalhadores lusitanos na cidade de Juiz de Fora (MG), 1891-1950.
6
A Fábrica de Tecidos de Camaragibe teve suas atividades paralisadas do dia 4 de março de 1911 até o dia 9
do mesmo mês por conta de uma greve dos operários que de acordo com o Jornal Pequeno teve sua origem na
redução de salários proposta por Pierre Collier. Tal fato demonstra que contrariando o discurso dos patrões,
haviam distorções e manifestações dentro da vila operária. (Jornal pequeno, 05/03/1922, p.5)

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suficiente para promover a autonomia, mas pequenas fissuras, resistências que se fazem
presentes no dia a dia do operariado de Camaragibe.
As resignificações constituem o cotidiano dos trabalhadores da fábrica. Em meio às
tentativas de dominação por parte da diretoria da fábrica, trabalhadores resistiam através das
bricolagens7 do dia a dia ou questionando diretamente os diretores da fábrica no intuito de
prover melhores condições para sua classe. Em seu décimo relatório, a Fábrica de Tecidos
de Camaragibe8 em 1908 lança uma nota de autoria de Pierre Collier 9, genro de Carlos
Alberto de Menezes10, a respeito da grande importância que as sociedades de distração
teriam para o cotidiano na vila. Dessa forma, é possível compreender que a fábrica apoiava
os centros de recreação não apenas para dar um descanso aos operários.

Nota sobre as sociedades de distração: das sociedades dessa natureza tem


funcionado satisfatoriamente o clube musical. O clube dramático que se estiola dia
a dia deu-nos, contudo sinal de vida, levando-se a cena um belo drama seguido de
duas comédias que agradaram. A sociedade de tiro esta em via de reorganização
funciona uma vez ou outra com seus torneios de tiro ao alvo. Em meio ao
desfalecimento quase geral que invadiu as sociedades de distração entre nós,
surgiu o clube dos martellos, sociedade puramente carnavalesca. Os nossos votos
são que ela possa progredir e sempre existir com garbo, porém contida ao mesmo
tempo nos limites do justo e do honesto. Entretanto é preciso tirar as nossas
sociedades recreativas do marasmo em que caíram. Elas são indispensáveis, pois
trazem sempre alegria ao espírito após o trabalho penoso como é o nosso,
modificando as impressões morais que ele nos deixa. Tratemos, pois de dar-lhes
vida que vae faltando e assim concorreremos para evitar o grande mal que se
infiltra nos centros operários, onde faltam às distrações licitas, sobra à dissipação
do salário. (Série Miscelânia. p, 7. Pasta 4.)

É possível ir além e verificar que as associações recreativas teriam também a função


de “suavizar” a dureza do dia a dia trazendo para o operário de Camaragibe o alento
necessário após jornadas estafantes, concluindo, assim, que as associações tinham uma dupla

7
No tocante as resignificações que os indivíduos são capazes de fazer no seu dia a dia, o autor analisa as
“bricolagens”, as possibilidades de moldar o cotidiano a revelia do que lhe é imposto, como diz o autor, a
possibilidade do dito “homem ordinário” elaborar suas resistências ou suas micro-resistências que possibilitam
pequenas fagulhas de liberdade. Sendo assim, percebe-se o cotidiano como um espaço não rígido, e sim,
possível de ser moldado perante as vicissitudes do dia a dia, possibilitando pequenas rotas de fuga. CERTEAU,
Michel. Invenção do cotidiano. Artes de fazer. 3° edição. Editora Vozes. 1998.
8
Camaragibe é um município situado na região metropolitana da cidade do Recife, estando ha apenas quatro
quilômetros de onde está situada a Universidade Federal de Pernambuco, estando assim intrinsicamente ligada
a capital Pernambucana.
9
Pierre Collier além de genro é o braço direito de Carlos Alberto de Menezes no processo de construção da
Fábrica de Tecidos de Camaragibe.
10
Carlos Alberto de Menezes foi o idealizador do projeto da fábrica de Camaragibe contendo em seu perímetro
uma vila operária que tinha como característica um viés católico em sua organização sendo amplamente
influenciado pela encíclica Rerum Novarum do papa Leão XII. COLLIER, Eduardo. Carlos Alberto de
Menezes: pioneirismo sindical e cristianismo. Recife: Digital Grapp edit. 1996.

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função: almejar uma recreação moral (LIMA, 2012)11 aos trabalhadores e tentar impedir o
foco de revoltas através de momentos de distração. As festividades eram organizadas com o
intuito de promover uma interação entre as associações recreativas que havia na fábrica
como o Clube de tiro, o Clube dramático, o Clube de musical entre outros. Eram momentos
em que ocorria a sociabilidade12 entre os habitantes da vila para além dos teares (DECCA,
1987). Portanto, a presente pesquisa objetiva analisar os espaços de sociabilidade dentro das
associações da Vila a fim de identificar as bricolagens e as resignificações criadas em meio à
tentativa de disciplinarização dos trabalhadores por parte dos patrões.

Entre as sociedades que se destinavam ao divertimento dos operários em


Camaragibe, podemos citar o Clube de Tiro, que tinha o intuito de promover campeonatos
de tiro sob a organização da fábrica. De acordo com a documentação, era uma das
sociedades que tinham suas atividades constantemente interrompidas por problemas
financeiros, uma vez que cada operário que fosse associado deveria pagar uma mensalidade
a fim de não apenas manter em boas condições a sede, mas também de preservar as armas
em bom estado e suprir a constante necessidade de munição através de sua manutenção.
Sobre os artigos que regem tal associação, segue abaixo.

Art 1: O presidente fica encarregado de providenciar tudo aquilo que for preciso
antes de cada reunião. Ele mandará trazer as armas da sociedade (que ficarão
guardadas na casa dele), os cartuchos, os registros de tiro e mandará colocar os
alvos que estão guardados na sede da sociedade de tiro.

Art 2: Cabe ao presidente manter a boa ordem, registrar a sequência de exercícios.


Sobre as armas: Fica terminantemente proibido ter qualquer arma carregada dentro
da sociedade de tiro. Devem estar sempre descarregadas, carregando-as na hora
dos primeiros tiros. Boa ordem: a certeza que deve reinar entre as pessoas de boa
educação era vigorosamente observada onde gente que tem armas a disposição.
(Estatutos da companhia de tiro. P. 2, pasta 11)

No que diz respeito ao Clube Musical, de acordo com a documentação, foi uma das
associações que mais prosperou devido a sua agenda mais abundante de eventos, uma vez

11
A Encíclica Rerum Novarum do Papa Leão XIII, versava sobre o catolicismo social e a importância da
melhoria das condições de vida do operariado e o consequente combate às ditas “ideologias vermelhas”. Por
mais conflitante que fosse estabelecer um consenso nas tensas relações entre patrões e empregados, havia uma
necessidade urgente de prestar auxílio à classe operária que em sua imensa maioria vivia em estado de miséria.
Porém, para não soar como propaganda gratuita das causas socialistas a encíclica Rerum Novarum não se
posicionou contrária à propriedade privada nem aos lucros.
12
Ao falar em sociabilidade utilizo os pressupostos de Agulhon em que a sociabilidade corresponde ao
comportamento do indivíduo em grupo. O autor utiliza o termo Geselligkeit que em alemão significa
“sociável” ou “vem a ser sociável”, sendo assim, a sociabilidade seria a maneira do homem viver em grupo, em
sociedade. AGULHON, Maurice. Visão dos bastidores. In: NORA, Pierre (Org.) Ensaios de Ego-História.
Lisboa: Difel, 1987.

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que ocasiões festivas da fábrica, religiosas ou não, contavam com apresentações do clube.
Não foi possível visualizar a organização através dos estatutos, analisar as leis que norteiam
as ações do Clube Musical, no entanto, seguindo a linha das demais associações existentes
no perímetro do cotonifício, é certo afirmar que estavam de acordo com os rígidos padrões
de moralidade e serviam, assim como as demais, para amainar a dureza dos dias e promover
um divertimento moralizado.

A Sociedade de Mútuo Socorro, de caráter mutualístico13 de acordo com a


documentação analisada, representa o mais importante centro de sociabilidade operária, uma
vez que seria ali o local de ajuda nas adversidades que viessem a enfrentar, desde acidentes
no trabalho, auxílio funeral, chegando a ser o ponto inicial de reivindicações para com os
diretores da fábrica.

Art 1: A sociedade de mútuo socorro tem por fim proporcionar aos operários da
fabrica de Camaragibe as seguintes vantagens imediatas: Assistência médica,
enterro e sepultura, auxílio extraordinário durante um prazo não excedente a 3
meses, salvo de liberação especial do conselho corporativo em caso de moléstia
grave e prolongada em associados indigentes e em acidentes de trabalho.

Art 2: Mais tarde, quando os recursos da corporação possibilitem, indenização a


todo operário doente por mais de uma semana.

Art 3: Serão considerados membros da Sociedade de Mútuo Socorro, todos os


operários que trabalhem na fábrica de Camaragibe, quer mesmo empregados da
corporação sendo suas famílias. São consideradas famílias de operários as que
residem dentro do terreno da companhia da fábrica de Camaragibe.

Art 4: A sociedade de mútuo socorro será custeada: Por 4/5 das contribuições
cooperativas dos seus membros que fizerem também parte da corporação
operarias. Por uma contribuição dos outros 2% sobre salários. Por uma subvenção
semestral, fornecida pela corporação operária.

Art 5: Medicamentos: A Sociedade de Mútuo Socorro fornecerá aos associados


todos os medicamentos que não exigirem manipulação farmacêutica difícil a juízo
do médico. Para os outros terá farmácias contratadas as quais enviará as receitas. A
farmácia própria da vila ficará sob imediata direção do médico, a quem compete
indicar o seu cortimento, fiscalizar a divisão e dosagem dos medicamentos a
distribuir, ordenar e dirigir a preparação dos que julgar poderem ser feitos por
parte do empregado que for encarregado desse trabalho, o qual será designado pelo
presidente do conselho. (2° Relatório da corporação operária de Camaragibe.
Ano: 1901. Série Miscelânia)

Diante dos artigos expostos acima, é possível afirmar que o caixa da corporação não
seria tão vasto, tendo em vista que limitava o auxílio ao trabalhador por, no máximo três
13
Compreende-se que as associações de caráter mutualístico tinham sua gênese no propósito de socorrer seu
grupo em momento de fragilidade, estabelecendo laços solidários. VISCARDI, Cláudia Maria Ribeiro. O
estudo do mutualismo: algumas considerações historiográficas e metodológicas. Revista Mundos do Trabalho,
Vol. 2, Nº 4. 2010

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meses, podendo ser estendido por algum motivo de força extraordinária. Outro indicativo de
que o caixa da corporação não gozava de grandes quantias é a sinalização feita pelo artigo
dois, ao afirmar que, ao sinal de melhora no caixa, a sociedade se compromete a assistir o
operário que esteja afastado do trabalho por apenas uma semana, assim como a opção do
presidente da associação de pedir o adiantamento de um mês de pagamento caso seja
necessário. Os medicamentos adquiridos fora da fábrica e o auxílio sepultura seriam
benefícios concedidos não apenas aos operários que trabalhavam nas fábricas, mas a todas as
pessoas residentes na vila de Camaragibe, ou seja, as famílias dos operários estão inseridas
entre os beneficiados, o que nos dá margem para analisar o quanto era ampla a assistência
proposta pela sociedade.

Analisamos dessa maneira que a Sociedade de Mútuo Socorro configurava-se como


espaço de sociabilidade e de seguridade, uma vez que almejavam oferecer amparo aos
operários da fábrica. Sendo assim, o reforço da identidade através do compartilhamento de
experiências14 em comum, faz surgir em Camaragibe através das mais diversas associações a
solidificação de uma identidade de classe entre os operários.

Porém, como analisar as sociabilidades dentro da vila? Optei por analisar através dos
grupos recreativos e da Sociedade de Mútuo Socorro, pois de acordo com a documentação
coletada é possível contribuir para uma percepção da vida em uma vila operária, aspecto
pouco abordado na história social. Pretendo assim analisar os espaços de sociabilidade
construído na Vila operária de Camaragibe no início do século XX, como os operários
usufruíam do seu tempo livre sob a vigilância dos patrões e descortinar comportamentos do
grupo operário que não tinha sua vida resumida aos teares.

Utilizar as vilas operárias como análise das relações entre patrões e empregados nos
possibilita compreender de melhor forma como, nas primeiras décadas do século XX, a
tentativa de doutrinação imposta ao operário recifense se fez presente e o que se objetivava
com tais medidas. Atualmente, não se tem notícia em Pernambuco, nem em outros lugares
do país, de vestígios de vilas operárias funcionando sob a lógica do ordenamento e da
exclusão15 social que foram implantados pelo Brasil no final do século XIX e primeira

14
Compartilho da visão de classe de Edward Palmer Thompson onde analisa que ela se constitui através das
experiências comuns compartilhadas entre os indivíduos em oposição a outros homens cujo interesse diverge
do seu. THOMPSON, Edward P. A formação da classe operária V.1. A árvore da liberdade. Rio de Janeiro:
Paz e Terra, 1987.
15
As vilas operárias eram espaços projetados por industriais que almejavam o ordenamento e a exclusão do
operário através das normas impostas e do distanciamento dos centros urbanos. Ver mais: SANTOS, Marcos.

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metade do XX. Pelo contrário, assiste-se, desde a década de sessenta do século passado, um
progressivo desmonte das cidades industriais pelos mais diversos motivos, entre eles alguns
citados por CORREIA (1997) que aponta problemas financeiros ou a utilização das áreas
para outras finalidades.

A escolha por analisar tal abordagem explica-se por duas razões: a vasta
documentação encontrada no CEHIBRA- Fundação Joaquim Nabuco que possibilita uma
explanação ampla sobre a fábrica no período estudado, fornecendo importantes informações
sobre as associações, escolas, ambulatórios e outros aspectos do cotidiano. Um traço
marcante que foi implantado na fábrica pelos seus idealizadores foi o seu plano moralizante
através da religião, especificamente o catolicismo. Dessa forma, Camaragibe se apresenta
como um caso único no Brasil no tocante à organização do trabalho em torno da religião. A
segunda razão foi em relação a lacuna identificada na historiografia, após um levantamento
acerca da produção sobre a temática da sociabilidade operária, constatei que apenas alguns
estudos de forma superficial tocavam no tema não por demérito e sim por escolha de outras
abordagens.

No cerne da discussão sobre a trajetória dos operários, alguns historiadores da década


de 1980 passaram a compilar documentações importantes capazes de ampliar a dimensão
dos estudos sobre tal categoria. Mais preocupados com temas clássicos da historiografia do
trabalho (desenvolvimento e mudança de organizações operárias nacionais e as conexões
entre organização da produção, a formação da classe e a ação coletiva dos trabalhadores) e
apesar de algumas pesquisas fugirem dos temas clássicos, ainda se encontra muita produção
acerca das “lutas nos locais de trabalho, movimento operário, sindicatos e correspondentes
orientações ideológicas, ações coletivas, relações com o Estado, ideologia estatal e
empresarial, formas de organização da produção e gestão da força de trabalho” (SILVA,
2003, p. 22).

Na introdução dessa compilação de fontes, os autores destacam (em 1979, vale


frisar) que se inserem nos esforços para superar a ocultação das classes subalternas feita pela
classe dominante e duplicada pelos silêncios de uma historiografia tradicional. A
historiografia tradicional tentou retirar o caráter sociológico de alguns estudos em prol da
história da classe operária a fim de substituí-la por um economicismo que enfatiza as
mudanças nas forças de produção e o desenvolvimento histórico do capitalismo sem falar

Vilas operárias: centros de ordem e exclusão na vila operária de Camaragibe – PE (1900-1929). Dissertação de
mestrado. UFPB. 2017.

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978-85-415-0980-0

das relações de classe. Na história social, os autores advogam que a empreitada vai além de
construir uma história operária, mas “entender como um círculo de classes dominantes
conseguiu assegurar sua autoridade sobre as classes subalternas e desvendar os instrumentos
empregados para o sucesso dessa empreitada” (PINHEIRO e HALL, 1979, p. 16)

Alguns estudos passaram a demonstrar como a história dos trabalhadores brasileiros


não poderia se concentrar única e exclusivamente no sul do país, no eixo Rio de Janeiro e
São Paulo, para vangloriar tais capitais enquanto responsáveis por levar a cabo a
industrialização do país e, tal industrialização formar o movimento operário brasileiro. Foi
uma caricatura tendenciosa e gênese de esquecimentos por algum tempo, pois, os operários
de outras regiões bem como o movimento em busca por direitos pré-industrialização
permaneceu no silêncio de alguns estudos durante algumas décadas.

Dessa maneira a obra de José Sergio Leite Lopes, A Tecelagem dos Conflitos de
Classe na “Cidade das Chaminés” (1988.) é uma leitura obrigatória para aqueles que se
debruçam sobre a temática das vilas operárias. O competente trabalho analisa a fábrica de
tecidos de Paulista e seu "sistema paulista", analisando o recrutamento dos trabalhadores
através da “sopa” 16 e de que maneira a vida dos trabalhadores girava em torno da
residência, sendo essa última o principal instrumento de tentativa de dominação sobre os
operários que dependiam dela não apenas para residir, mas principalmente, pois era
sinônimo de estar empregado na fábrica.

O estudo sobre a história social do trabalhou ganhou um poderoso aliado e guru após
a publicação dos livros de Edward Palmer Thompson sobre a história da formação da classe
operária na Inglaterra. Um estudo pioneiro preocupado com múltiplos pontos de vistas da
vida do operário a fim de compreender como ele se comportava dentro e fora das fábricas.
Muito mais focado no “fora das fábricas” o historiador britânico vai tecendo seu argumento
através de ampla pesquisa sobre a vida social e cultural do trabalhador inglês em finais do
século XVIII e início dos XIX.

Seu principal argumento é o fato da classe operária inglesa só se formar enquanto


classe quando se compreendem enquanto classe. A classe é antes de tudo um devir histórico,
e não se pode fugir às vicissitudes do tempo. São as vicissitudes, ou seja, o que é vivenciado
pelo trabalhador no exercício de seu ofício e fora desse exercício que vai moldando a ele e

16
“Sopa” era o nome dado ao transporte que ia até as cidades do interior em busca de trabalhadores que
tivessem o interesse em trabalhar nas fábricas próximas a cidade do Recife. ALVIM, Rosilene. A sedução da
cidade; os operários camponeses da fábrica dos Lundgren. Rio de Janeiro: Graphia. 1997.

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ao meio em que ele vive sua consciência de relação de classe. Ou seja, a experiência para
Thompson é vivenciada duplamente pelo trabalhador. Primeiro, há a experiência de classe,
aquela na qual o trabalhador está inserido pelo próprio condicionamento de sua relação com
os meios de produção econômicos e na medida em que tais experiências são vividas e
interpretadas pelo trabalhador ele transforma-as em experiência consciente da classe
(consciência) e compreende-se junto a seus pares (THOMPSON, 1987a).

Desse modo o operário não é produto inequívoco da indústria, mas, o sistema


industrial um produto da relação entre o trabalhador e a nova forma de organização da
produção a partir da Revolução Industrial. Ou seja, o operário (classe operária) é um eterno
devir, um eterno fazer-se em meio a circunstancias diárias. A partir da pesquisa e análise de
como os trabalhadores experienciavam suas trajetórias nos permite compreender suas ações
em prol de objetivos comuns a seus pares. Sejam na organização de associações em prol de
um ofício, por meio da greve, petições públicas e a instrução de seus colegas de ofícios
(THOMPSON, 1987a; 1987b; 1987c). Para nós a pesquisa sobre a experiência dos sujeitos
já é uma pesquisa “vista de baixo”.

É importante destacar que na década de oitenta historiadores passaram a ampliar o


leque sobre os estudos envolvendo a classe operária. Se anteriormente, estudos clássicos17
versavam sobre sua atuação em sindicatos, movimentos grevistas e sua organização em
partidos (SILVA, 2003), se faz importante descortinar com as novas abordagens outras
nuances da vida operária. Na história social, os autores advogam que a empreitada vai além
de construir uma história operária, mas “entender como um círculo de classes dominantes
conseguiu assegurar sua autoridade sobre as classes subalternas e desvendar os instrumentos
empregados para o sucesso dessa empreitada” (PINHEIRO e HALL, 1979, p. 16).

O estudo historiográfico preocupa-se não apenas com o passado, mas com o


temporal, no qual a “observação direta” do objeto de estudo é impossível. As fontes nas
quais o historiador se debruça, dotam-no de informações indiretas desse passado. Tais
fontes, acabam constituindo os vestígios pelo qual o historiador monta sua observação,
compreensão e análise do passado – ou melhor, do objeto em sua temporalidade. Efetua-se,
portanto, uma análise documental baseada na busca exaustiva das fontes e um correto
agrupamento das informações encontradas no qual a “crítica das fontes” parta da inferência
dos dados obtidos (ARÓSTEGUI, 2006).

17
Obras como; Trabalho urbano e conflito social (1890-1920) FAUSTO, Boris. Editora: Difel. Ano: 1977.
Movimento operário no Brasil: 1877-1944. CARONE, Edgar. Editora: Difel. Ano: 1981.

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Por fim, estudar a implantação das vilas no Brasil e como a vida dos operários se
organizava dentro dessa estrutura é parte importante da história da classe trabalhadora no
Brasil. Por vezes, a maior ênfase dada às associações, sindicatos e movimentos grevistas
toma para si um grande holofote, no entanto, as vilas, implantadas em grande parte no final
do século XIX e início do XX, nos propiciam uma análise rica em um contexto específico
em que operários viviam em simulacros de cidades promovendo mudanças no convívio com
outros trabalhadores e com seus patrões.

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Fontes primárias

Arquivo Público de Pernambuco. Jordão Emerenciano.

Periódicos.

Jornal Pequeno – 1922

Acervo da FUNDAJ – Fundação Joaquim Nabuco.

Relatórios da CIPER:

11º Relatório do CIPER. 1902

Pasta Miscelânea

2° Relatório da corporação operária de Camaragibe. Ano: 1901. Série Miscelânea.

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O PROCESSO DE EXTINÇÃO DA ESTABILIDADE DO TRABALHADOR


CELETISTA E A INSTITUIÇÃO DO FGTS: O CASO DOS OPERÁRIOS DA
MACAXEIRA (1964-1969)

Emanuel Moraes Lima dos Santos

Mestre em História (UFPE)

mano-moraes@hotmail.com

Resumo: A Lei nº 5.107, de 13 de setembro de 1966, criou o Fundo de Garantia do Tempo


de Serviço como regime optativo ao da estabilidade, conferido pela Consolidação das Leis
do Trabalho em seu art. 492. Contudo, tal ato se deu no contexto político do golpe de 1964,
sob alegação do Governo Castello Branco de estar-se tentando corrigir práticas deturpadas
por parte de empregadores, em detrimento do direito do trabalhador. No entanto, a realidade
dos fatos mostrava que mesmo antes da instituição do regime do FGTS, os patrões desde
abril de 1964 iniciaram um processo mais contundente de perseguição política dos
trabalhadores estáveis. Bem como houve um aprofundamento deste processo, após a sua
legitimação perante a lei. Na Fábrica da Macaxeira, a exemplo das demais fábricas têxteis
nacionais e até mesmo das demais indústrias reconhecidas como as principais ofertantes de
emprego do país, houve diversas práticas administrativas voltadas para a realização de
“acordos” que tinham como propósito a abdicação do trabalhador de sua estabilidade
adquirida ou após o instituto jurídico do FGTS a sua imposição de forma arbitrária, em
detrimento da opção pelo regime da estabilidade ainda vigente, o qual somente foi abolido
com a Constituição Federal de 1988. O fato é que a recorrência dos processos trabalhistas
para fins de homologação destes “acordos” de abdicação da estabilidade encontrados na
Justiça do Trabalho, somados aos relatos de antigos trabalhadores, nos dão um panorama do

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modus operandi do processo de perseguição da estabilidade dos trabalhadores pelas


empresas.

Palavras-chave: Estabilidade. FGTS. CLT. Ditadura Militar.

INTRODUÇÃO

O presente artigo tem por objetivo debater a legislação que instituiu o Fundo de
Garantia por Tempo de Serviço enquanto mecanismo inserido em um projeto de governo
que tinha por finalidade modificar substancialmente as relações de trabalho e opor a nova
fórmula do FGTS ao instituto da estabilidade, como resposta aos imperativos
“modernizantes” do sistema capitalista mundial (FERRANTE, 1978). Neste sentido,
pretendemos demonstrar que o regime do FGTS tinha por objetivo – além de fragilizar a
relação de emprego concedendo maior poder de arbítrio aos empregadores por sobre o
contrato de trabalho – promover a vulnerabilidade sócio-política do empregado diante da
rotatividade do mercado de trabalho, do enfraquecimento do associativismo sindical e da sua
atividade política.

A BATALHA EM TORNO DA ESTABILIDADE NA HISTÓRIA DOS TÊXTEIS DA


MACAXEIRA

Em nossa dissertação de mestrado vimos como o processo paulatino de extinção da


estabilidade decenal desencadeado com a criação do Fundo de Garantia por Tempo de
Serviço, em 1966, provocou muita controvérsia, afetando de forma contundente as regras
que regulamentavam as relações de trabalho e, deste modo, a vida de muitos trabalhadores.
Na ocasião, a indústria têxtil brasileira adentrava historicamente em uma fase de declínio
econômico, que resultaria em sua extinção (na década de 1990), pelo menos em seu modelo
tradicional, vigente desde o fim do século XIX. Mas que ainda assim era responsável pelo
maior contingente do pessoal ocupado no país, pois das quase duas milhões de pessoas
ocupadas, diga-se, com emprego formal, cerca de 18% eram empregadas na indústria têxtil
(340.218 em números exatos). E no caso dos salários e vencimentos, representava um gasto

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global de 221 trilhões de cruzeiros, atrás apenas dos gastos totais da indústria metalúrgica,
por esta ser composta de um perfil ocupacional mais especializado e, consequentemente,
melhor remunerado que o têxtil.
TABELA 1 - INDÚSTRIAS DE TRANSFORMAÇÃO
PESSOAL OCUPADO SALÁRIOS E
EM 31-XII VENCIMENTOS
Pessoal
GÊNEROS DE INDÚSTRIA
Ligado à Total ligado à
Total
produção produção
Cr$ 1 000 000
Ano: 1964
TOTAIS 1 906 651 1 577 122 1 672 876 1 188 482
Minerais não metálicos 138 773 119 390 98 725 73 960
Metalúrgica 242 716 205 398 255 365 190 790
Mecânica 74 424 59 956 79 251 54 088
Material elétrico e de comunicações 83 697 67 789 85 786 59 836
Material de transporte 137 844 110 637 183 183 128 340
Madeira 79 473 67 696 43 313 32 267
Mobiliário 46 467 38 888 36 880 26 780
Papel e papelão 48 129 39 976 44 459 32 312
Borracha 23 512 19 716 24 532 17 405
Couros e peles e produtos similares 23 148 20 367 16 157 12 958
Química 96 076 69 070 133 119 79 690
Produtos farmacêuticos e medicinais 35 778 16 570 48 687 16 300
Produtos de perfumaria, sabões e velas 14 077 8 656 13 463 6 414
Produtos de matérias plásticas 20 644 16 570 21 771 15 507
Têxteis 340 218 315 599 221 065 186 813
Vestuário, calçados e artefatos de tecidos 93 201 80 774 58 339 44 259
Produtos alimentares 257 834 204 233 176 441 119 410
Bebidas 44 012 31 224 36 020 22 228
Fumo 14 764 13 204 12 907 10 644
Editorial e gráfica 56 423 41 930 56 002 39 239
Diversas 35 441 29 479 27 411 19 242
FONTE - Grupo Especial de Trabalho para as Estatística Industriais. Tabela extraída de: Anuário estatístico do Brasil, 1966. Rio de Janeiro: IBGE, v. 26, 1966. (adaptado)

Como a indústria têxtil se constituía ainda na década de 1960 – apesar da crise


econômica – como a principal indústria empregadora do país, e não muito diferente em
Pernambuco, foi ela um dos principais palcos da materialização desse conflito criado em
torno da substituição da estabilidade do trabalhador pelo regime de fundo de garantia. Os
casos averiguados na Fábrica da Macaxeira, seja através dos depoimentos dos antigos
trabalhadores entrevistados, seja através dos processos trabalhistas encontrados nas varas
das Juntas de Conciliação e Julgamento da cidade do Recife reforçam a tese do cunho
político por detrás das intenções “modernizantes” alegadas pelo governo Castello Branco e
pela classe empresarial (FERRANTE, 1978).

O fato é que com a criação do FGTS, pela Lei nº 5.107, de 13 de setembro de 1966,
se legitimou legalmente a perseguição de um direito dos trabalhadores, o qual era obtido
após a permanência de uma década, de maneira ininterrupta, em uma mesma empresa,
impossibilitando assim a quebra unilateral do contrato de trabalho por parte do patrão, sob
pena do pagamento de indenização prevista em lei, calculada em dobro, quando não
caracterizada a justa causa para a demissão do estabilizado (art. 492 da CLT). Contudo, esta
assertiva não excluía o fato de que desde a década de 1950, havia relatos encontrados,
sobretudo, na imprensa operária acerca de medidas obstrutivas da conquista do direito à
estabilidade por parte dos empregadores que se utilizavam de diversos pretextos e

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expedientes para demitir empregados com pleno potencial para aquisição de estabilidade, ou
seja, com 7, 8 e 9 anos de empresa.

Novamente, tais artifícios de burla ao direito eram utilizados mais comumente contra
trabalhadores sindicalizados e/ou atuantes em movimentos políticos associados a partidos
políticos ou não e, de maneira ainda mais contundente, contra participantes e lideranças de
movimentos grevistas. E isso, mesmo com a previsão do §3º do art. 499 de que se a
“despedida que se verificar com o fim de obstar ao empregado a aquisição de estabilidade
sujeitará o empregador a pagamento em dobro da indenização prescrita nos arts. 477 e 478”,
(CLT, 1943), para cujas “frequentes fraudes patronais”, nos dizeres de Vera Ferrante, o
dispositivo era “letra morta”. Assim, o período imediatamente anterior ao período de
aquisição da estabilidade era normalmente marcado por certa intranquilidade para o
trabalhador, haja vista o assédio que pesava sobre ele com vistas à assinatura de acordos
desvantajosos de abdicação do direito da estabilidade, ao cessar amigavelmente o contrato
de trabalho, seja em troca de uma nova admissão e retorno pecuniário de um valor que
muitas vezes aliviava o orçamento doméstico, seja apenas em troca de um valor que
possibilitava ao ex-empregado abrir um negócio ou realizar um investimento (FERRANTE,
1978).

Entre 1947 e 1950, na Fábrica da Macaxeira, a prática de demissões arbitrárias com a


imposição de “acordos” abusivos foi recorrente, sobretudo, porque neste período o Sindicato
dos Trabalhadores nas Indústrias de Fiação e Tecelagem do Recife estava sob regime de
intervenção ministerial (SANTOS, 2017). Tal cenário era comum em momentos políticos
oportunos para o cometimento de arbitrariedades ou quando a contexto sócio econômico
local permitia1.

(...) Várias demissões foram levadas a efeito nas fabricas da Varzea (Anita) e de
Apipucos (Cel. Oton) sendo extorquidos por simulações coação e fraude,
“acordos” de quinhentos cruzeiros com operarios estabilizados. Seus diretores
provocaram prisões arbitrarias de operarios somente porque reclamavam legítimos
direitos, as quais foram logo relaxadas pelas autoridades porque chegaram a
evidencia de que as denuncias dos irmãos Oton era destituídas de fundamento. 2

1
Basta citar os expedientes utilizados por diversas empresas industriais acobertadas pela fragilidade da
fiscalização das leis trabalhistas, como por exemplo, as indústrias localizadas em áreas rurais do nordeste.
Neste sentido, podemos citar o caso da “folha amarela” utilizada pela Companhia de Tecidos Paulista (LEITE
LOPES, 1988) e o expediente similar intitulado de “cartão cego” adotado pela Fábrica (de doces) Peixe, de
Pesqueira-PE (conforme exposição oral de Gezenildo Jacinto da Silva no Simpósio Temático Trabalho,
Memória e Fontes Judiciais do VII Seminário TRT/UFPE & II Caravana ANPUH/PE “História, Trabalho e
Direitos” realizado na Universidade Federal de Pernambuco nos dias 21, 22 e 23 de novembro de 2017).
2
Procedimento irregular e anti-social do “Cotonifício Oton Bezerra de Melo” (O Tear, 29/05/1950, p. 3 e 6).

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O mesmo cenário se repetiu na Macaxeira após o desfecho da memorável greve de


1958 que durou 49 dias, com a demissão, por justa causa, de vários operários estáveis, com
o objetivo duplo de afastar da empresa os mais politizados, ao mesmo tempo em que se
desobrigava de pagar a devida indenização, caso a dispensa fosse sem causa justa.

(...) Setenta e duas horas após a homologação de um acôrdo definitivo entre


patrões e operários da indústria textil, pondo fim ao movimento grevista, foram
lavradas 270 demissoes sumarias (a maioria de empregados estáveis), nos vários
estabelecimentos fabris desta capital.3

Na década de 1960, mais especificamente após o golpe de 1964, estas medidas


abusivas ao direito da estabilidade, assim como aquelas obstativas da aquisição ao direito se
tornaram ainda mais recorrentes, pois amparadas pelo contexto político repressivo e pela
desestruturação dos organismos institucionais de proteção dos trabalhadores. Para isso, além
das demissões em massa sob o argumento de déficit econômico financeiro, por parte das
empresas – coincidindo que na lista de dispensa a grande maioria era constituída de
trabalhadores em vias de adquirirem estabilidade –, havia ainda a prática da oferta de
“acordos” para que os trabalhadores abdicassem de sua estabilidade em troca de uma
indenização que não correspondia ao determinado por lei, cujo método de convencimento
era o da utilização da má-fé no caso dos trabalhadores desavisados de seus direitos e, no
caso dos mais politizados, da coação por meio de assédio moral deliberado, aplicação de
multas e suspensões com fim de rebaixar os salários, como forma de força-los à demissão
com abdicação da estabilidade ou à opção pelo FGTS.

Mesmo antes da criação do FTGS e logo após o abril de 1964, exacerbaram-se as


medidas de afronta ao direito dos trabalhadores estáveis. Sendo os processos nº 1.327 e
1.522/65 da JCJ de Recife-PE da operária Margarida Oliveira Silva representativos das
táticas adotadas pelo Cotonifício Othon Bezerra de Mello contra os seus trabalhadores
estáveis e, sobretudo, militantes, quais sejam: a mudança de operários entre as plantas fabris
de propriedade do COBM localizadas em pontos extremos da cidade, a mudança dos
mesmos para máquinas menos eficientes que minavam os salários recebidos por produção,
bem como a aplicação de suspensões e multas aos que reagiam a estas medidas consideradas
arbitrárias e com a finalidade deliberada de força-los aos acordos.

MARGARIDA OLIVEIRA SILVA, qualificada na inicial, reclama contra o


COTONIFICIO OTHON BEZERRA DE MELLO S/A, estabelecida na Praça
Sérgio Loreto nº 1110, nesta cidade, pleiteando o pagamento dos salários e

3
72 HORAS DEPOIS DO ACÔRDO: Quase duzentos operários têxteis, estáveis, demitidos sumariamente (DP,
13/03/1958, p. 8).

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repouso remunerado, que deixou de receber em virtude de 3 suspensoes que lhe


foram impostas.
Alega a Recte. o que consta na petição de fls. 2. Contestando o pedido, ofereceu a
Recda. a defesa de fls. 6.
Foi interrogada apenas a Recte., que apresentou como prova as 2 testeminhas
ouvidas às fls. 22-23, e os documentos de fls. 11-20. A Recda. não fez prova
nenhuma.
As partes produziram razões finais e não quizeram conciliar.
1- Disse a Recda. que aplicou à Recte. as suspensões contra as quais reclama, em
virtude de haver ela se recusado, repetidamente, a prestar serviços nas condições
vigorantes para tôda a sua secção de trabalho.
Provou, porém, a Recte., com as testemunhas que apresentou, que a Recda., após a
haver transferido da Fábrica Amalita, localizada na Praça Sérgio Loreto, para a
Fábrica Cel. Othon, que fica na Macacheira, (no extremo oposto da cidade, cêrca
de 10 ou mais quilômetros do seu primeiro local de trabalho), porque a mesma se
recusara a trabalhar com maior número de teáres, pretendia obrigá-la a trabalhar
com 4 teáres antigos, tipo conhecido por “pé duro”, submetendo-a a um esfôrço
superior as suas forças.
Provou ainda que trabalhou alguns dias nas condições impostas pela Recda., mas
não mais resistindo recusou-se a continuar trabalhando com aquele número de
teáres antiquados, sendo por isto sucessivamente suspensa.
Provou finalmente, que o esfôrço excessivo e a tensão nervosa a que foi submetida
pelo trabalho com aquêlas máquinas, pela sua legítima resistência às exigências
ilegais da Recda., e também pelas dificuldades de transportes e dinheiro que
passou a sofrer em decorrência da transferência de seu local de trabalho levaram-
na ao esgotamento nervoso evidenciado pelos bilhetes e atestados médicos de fls.
16-20.
2- Justa foi, portanto, a recusa da Recte. a se submeter às exigências abusivas e
deshumanas da Recda., as quais geram realmente a presunção de que pretende
obrigar a Autôra, operária estável, a fazer um acôrdo desvantajoso, e autorizariam
até mesmo considerasse ela rescindido seu contrato de trabalho, para pleitear as
indenizações devidas (art. 483, alínea “a” da C.L.T.).
Em face do exposto,
DECIDE, a 5ª Junta de Conciliação e Julgamento do Recife, Pernambuco, por
unanimidade de votos, julgar procedente a reclamação, para condenar a Recda. a,
no prazo de 5 dias, do trânsito em julgado desta decisão, pagar a Recte. o valor dos
salários dos 8 dias em que esteve suspensa e do repouso remunerado
correspondente, acrescido dos juros de mora legais, o “quantum” da condenação a
ser apurado em execução. (...)”.4
Diante deste cenário de algumas vitórias de operários obtidas na Justiça do Trabalho
que notabilizou-se o fato conhecido na história política local como o “Museu da Macaxeira”,
uma medida extrema de assédio moral criada pela administração fabril, que consistia na
alocação de trabalhadores em uma seção insalubre desprovida de maquinários como forma
de assediar moralmente os trabalhadores por meio do recurso ao ócio e à ausência de contato
com os demais colegas de trabalho, devido ao acesso restrito e controlado dentro da planta
fabril, a fim de que abdicassem do seu direito de estabilidade (ACO, 1990). Esta tática de
assédio moral adotada pela empresa para forçar os trabalhadores aos “acordos” visava
claramente diminuir o número de reclamações que se avolumava na Justiça do Trabalho

4
Proc. nº 1.327/65-TRT, 5ª JCJ. Acervo TRT-UFPE.

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denunciando as medidas tradicionalmente utilizadas para obstruir e erradicar o direito dos


trabalhadores.

Daí que surge todo um debate em torno da eficácia da Justiça do Trabalho na


resolução dos conflitos trabalhistas. De um lado prosperando a corrente que afirma ser a
Justiça do Trabalho instrumento utilizado pelo capital para postergar o cumprimento da lei,
ou mesmo, como um organismo aparelhado pelos próprios empresários. E de outro lado, a
corrente que defende que a Justiça do Trabalho foi, durante o período autoritário de governo,
um mecanismo de possibilidades mínimas diante do contexto político repressivo da época.
Inclusive, durante os ataques aos direitos trabalhistas que sofreram os operários do nordeste,
a Ação Católica Operária que atuou sistematicamente em defesa das diversas categorias
envolvidas, assumindo, em partes, o papel político anteriormente exercido pelos sindicatos,
chegou a questionar com o documento Nordeste: Desenvolvimento sem Justiça (1967) a
eficácia da Justiça do Trabalho enquanto instituição capaz de zelar pela justiça.

Para ilustrar a lentidão com que anda a Justiça do Trabalho, pode-se citar o caso de
dois operários (um homem e uma mulher) de tecelagem, que trabalhavam numa
fábrica do Recife, operando com cinco máquinas mecânicas, já bastante usadas e
obsoletas (a SUDENE considera quatro o número razoável de máquinas mecânicas
por operário). O tecelão era um operário-modelo, conseguindo várias vezes o
primeiro lugar de eficiência no decorrer dos 22 anos em que trabalhava para a
fábrica. A tecelã, com 18 anos de empresa, também já vinha recebendo, há vários
anos, gratificações de eficiência. (...) Em setembro de 1965, os dois entraram com
uma reclamação na Justiça para que fossem reintegrados na fábrica de origem,
com cinco máquinas. Entretanto, ainda em 165, a empresa afastou-os do trabalho,
enquanto o processo tramitava. A tecelã, sem assistência jurídica adequada, obteve
uma vitória apenas parcial (...). O tecelão ainda está aguardando pelo julgamento
final, no TRT. (...) Não apenas há a lamentar, neste caso, a demora no
pronunciamento da Justiça como (...) também a decisão final injusta, que se deve,
principalmente às omissões do setor jurídico do Sindicato. Mas as deficiências
sindicais não podem eximir a Justiça do Trabalho de todas as responsabilidades.
(...).
Embora reconhecesse depositar as esperanças na instituição:

A classe operária, apesar de tudo, confia nos Tribunais do Trabalho e À sua guarda
se entrega quando se sente ameaçada e insegura. E espera que os juízes
correspondam a essa confiança, porque acredita na grandeza de sua missão (...).
(VOZES, 1967, p. 416-418).
Ademais, esta denúncia de perseguição de operários estáveis oferecida pela Ação
Católica Operária chama a atenção para outra deficiência da argumentação patronal e
governamental: a queda do rendimento do trabalhador mais antigo e/ou estável. Seja porque
o parâmetro para tal afirmação era oriundo de pesquisa encomendada pelo governo norte-
americano – indiretamente interessado na relativização das relações de trabalho na Brasil, as
quais propiciariam maior taxa de lucros às empresas estrangeiras em franco processo de
penetração no país–, como também por não existir estudos realmente empíricos que

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comprovassem essa afirmação (FERRANTE, 1978). E, por outro lado, pelo fato da própria
lógica determinante dos salários dos operários conspirar contra a falsa premissa patronal,
pois não fazia sentido algum supor a queda de rendimento de trabalhadores que dependiam
da produção para comporem o seu salário semanal (SANTOS, 2017).

O fato é que para além da resistência havida com denúncias das táticas adotadas pelo
Cotonifício Othon Bezerra de Mello (Fábrica da Macaxeira) na Justiça do Trabalho, da
resistência que aboliu a utilização do mecanismo conhecido por “Museu” e da iniciativa da
Ação Católica Operária em promover a defesa política e econômica dos trabalhadores, esse
conjunto fragmentário de atos de resistência política dos têxteis do Recife, sobretudo, os da
Fábrica da Macaxeira, parece ter destoado de um contexto de inexistência de um movimento
político, organizado a nível nacional, de oposição à criação do FGTS. Muito embora o recuo
do governo em abolir definitivamente a estabilidade, como estava previsto no projeto de lei
inicial, possa indicar algo em contrário.

Entretanto, Vera Ferrante (1978), diz que essa tática adotada pelo governo foi
resultado tanto da articulação política de algumas lideranças sindicais, como de uma
estratégia previa e racionalmente pensada a fim de evitar maiores contestações ao governo
em um período de muita impopularidade. Sobretudo porque, a não abolição instantânea da
estabilidade não impediu a sua abolição prática pelas medidas que foram adotadas pelos
empresários para efetivarem ao máximo a manutenção de um único regime em seu quadro
de pessoal. Neste caso, além das propostas de efetivação dos “acordos” de abdicação da
estabilidade com a opção legal pelo regime do FGTS, sugerida pela lei, persistiu também a
prática da não admissão de candidatos a emprego que optavam pelo regime de estabilidade.

E não obstante esta medida das mais extremas adotadas pela gerência da Fábrica da
Macaxeira (o “Museu”) – que chegou a ser replicada em outras fábricas da região, a
exemplo de Paulista (LEITE LOPES, 1988, p. 570) – encontramos nos anos que se seguiram
(1968 em diante) processos impetrados nas Juntas de Conciliação e Julgamento do Tribunal
de Recife, novas denúncias de operários descrevendo a continuidade e o revigoramento das
táticas utilizadas pela gerência contra os operários estáveis, sendo as mais comuns a
aplicação de multas e suspensões arbitrárias, a mudança do contrato original de trabalho ao
remover os operários de uma fábrica para outra (a Fábrica da Macaxeira integrava o
Cotonifício Othon Bezerra de Mello que consistia em um conglomerado industrial constante
de mais três fábricas espalhadas pelo Recife, duas no centro da cidade e a outra no bairro da
Várzea) com o intuito de dificultar o deslocamento realizado pelo operário no trajeto casa e

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trabalho. Além das medidas comuns de mudança de operários de máquinas com a intenção
de prejudica-los em sua produção.

(...) todas brasileiras, e residentes nesta cidade, com a assistência do Sindicato dos
Trabalhadores na Industria de Fiação e Tecelagem do Recife (...) promovem contra
o Cotonifício Othon Bezerra de Mello S/A (...) a presente reclamação trabalhista,
pelos motivos que passam a expor:
I – que são empregados estáveis da empresa reclamada, percebendo todas salários
por produção;
II – que exerciam suas atividades profissionais de tecelãs, na Fábrica Amalita,
localizada na Praça Sergio Loureto, nesta Capital, trabalhando no horário de 7,00
às 16,00 horas;
III – que as reclamantes residem respectivamente Creusa (...) em Sucupira, Maria
José (...) no Pacheco em Tejipió, Celina (...), Eunice (...) nos Peixinhos, Olinda,
Maria Alaíde (...) na Cabanga e Maria Eutalia (...) em Afogados;
IV – que no dia 1º de setembro do corrente ano, foram as reclamantes transferidas
da Fábrica Amalita para trabalhar na Fábrica Cel. Othon localizada na Avenida
Norte, nesta capital; no horário de 13,30 às 22,00 hs;
V – que no dia 13 de setembro em curso, a reclamada mudou mais uma vez o
horário de trabalho dos reclamantes, determinando que as mesmas passassem a
trabalhar no horário de 5,00 às 13,00 horas;
VI – que, com os reclamantes ponderassem a impossibilidade de trabalhar no
referido horário, face a distância de suas residências para o local de trabalho pois,
teriam que sair das suas casas as 3,00 horas da madrugada, horário em que os
ônibus ainda não estão circulando, foram afastadas no dia 15 do mês corrente dos
serviços, situação que permanecem até a data presente sem solução. (...)5
Na Fábrica da Macaxeira, assim como nas diversas indústrias detentoras de vilas
operárias – após a insistência dos operários em acionar a Justiça do Trabalho e após a
reversão política de uma demissão em massa de operários estáveis em 1967 – tais “acordos”
passaram a se efetivar mediante a contrapartida da aquisição da moradia em que residiam os
operários. Pois além de se desfazer do ônus de “edilidade” que representava este ativo
imóvel para as empresas, ainda mais se considerado o contexto de crise econômica da
indústria, foram priorizados para realizarem “acordos” mediante negociação da indenização
com a casa da vila operária, operários estáveis com mais de duas décadas de empresa. Sendo
esta, na verdade uma medida que se utilizava do sonho da casa própria – sonho este
estimulado pela própria justificativa da implantação do FGTS atrelado à construção de
habitação popular mediante o Banco Nacional de Habitação (BHN) – para atenuar ao
máximo os “passivos trabalhistas” resultantes das indenizações vultosas de empregados com
mais de 20 e 30 anos de empresa.

“A Suplicada [28 anos de empresa] receberá da firma Suplicante pela rescisão de


seu contrato de Trabalho a quantia de NCR$ 3.535,00 importância esta que será
paga da seguinte forma: no presente ato como prestação inicial a quantia de NCR$
735,00 o saldo restante de NCR$ 2.800,00 será pago em 4 prestações mensais de
NCR$ 700,00 sendo que a última prestação, será paga no momento da entrega da
chave da casa sita a Rua Ana, nº 59-Macaxeira, de propriedade da Suplicante, na
qual reside a Suplicada”

5
Proc. nº 1.892/69-TRT, 5ª JCJ. Acervo TRT-UFPE.

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“A Rcda. pagará à Rcte. a quantia de NCr$ 5.000,00 (cinco mil cruzeiros novos),
pela rescisão de seu contrato de trabalho, que é realizado através do presente
acôrdo. A quantia acima referida será paga na forma seguinte: no próximo dia 04
de setembro de NCr$ 2.000,00; no ato da entrega das chaves, onde reside a Rcte. 4
prestações mensais de NCr$ 500,00. Através do acôrdo a Rte. renuncia à
estabilidade no emprego [23 anos de empresa] e dá plena e geral quitação à Rda.
de todos os seus direitos trabalhistas. A Rda. obriga-se a recolher ao INPS as
contribuições da Rte. referentes ao afastamento da mesma ao trabalho, objeto do
processo. (...)”6
Por outro lado, o mecanismo de demissão em massa de operários era um artifício que
tanto obstava o direito à aquisição da estabilidade após a instituição do FGTS, quanto
reafirmava a concentração do poder patronal em cessar ao bel-prazer o contrato de trabalho.
Na Macaxeira houve demissão em massa em 1965, antes da criação do FGTS e em 1967,
logo que a lei passou a vigorar (SANTOS, 2017, p. 410-437). Sendo a primeira onda
demissionária caracterizada mais pela tentativa de obstruir a muitos trabalhadores o direito
de aquisição da estabilidade – quando a maioria dos demitidos estavam próximos de
completarem o período decenal – que de afastar diretamente dos seus quadros operários
estáveis – além, obviamente, de estimular o espectro do desemprego como forma de coagir o
trabalhador estável pressionado a assinar os “acordos” oferecidos pela gerência. E no caso
da segunda onda demissionária, pós-FGTS, embora o Sindicato, sob a presidência de
Manuel Ribeiro Lemos, tenha conseguido reverter a demissão dos 600 operários estáveis
incluídos na lista inicial de demissionários, não conseguiu, contudo, reverter a demissão de
outros 700 operários não-estáveis, mantendo assim, o espectro do desemprego e ratificando
o poder exorbitante dos patrões para cessarem os contratos de trabalho, sem quaisquer
garantia da relação de emprego para com o trabalhador, servindo como presságio para os
efeitos decorrentes do FGTS nas relações contratuais de trabalho (VOZES, 1967, p. 414).

CONCLUSÃO

Enfim, o debate em torno dos benefícios e malefícios do instituto da estabilidade


parece ter ficado de lado após a sua abolição formal com a Constituição Federal de 1988,
haja vista que na prática, desde a criação do FGTS, em 1966, a estabilidade vinha sendo
gradativamente abolida (SAAD, 1991). Contudo, quando o tema é pensado do ponto de vista

6
Procs. nº 270/68 e 1892/68 (da 3ª e 5ª JCJ-Recife, respectivamente). Acervo TRT-UFPE.

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jurídico como parte de um “sistema de garantia de emprego” a ser assegurado aos


trabalhadores como um direito constitucional, o debate deveria ser reaceso – muito embora o
contexto atual de reformas dê continuidade ao projeto político da classe dominante em
desestruturar as relações de emprego e as possibilidades de reação da classe trabalhadora,
objetificada como “pessoa jurídica”7.

Além disso, chama atenção a ausência de uma mobilização política de massas contra
as medidas adotadas pelo governo. Neste caso, além de reproduzir os fatos do passado,
quando da reforma que introduziu o FGTS e praticamente aboliu a estabilidade decenal –
afora as pequenas resistências pontuais, tais como as demonstradas pelos têxteis de Recife,
seja em reclamações impetradas junto a Justiça do Trabalho, seja a notabilizada no “caso do
Museu da Macaxeira” – a própria inação política atual parece reverberar os efeitos
introduzidos com a abolição da estabilidade, uma vez que a eliminação dessa medida de
garantia do emprego, tornou ainda mais crônico o problema do emprego no Brasil e da
politização da classe trabalhadora devido a rotatividade excessiva do mercado de trabalho e
à desestruturação das organizações políticas, sobretudo, os sindicatos (FERRANTE, 1978).
De todo modo, o debate ainda se faz atual, sobretudo pelo modo como se deu a reforma da
Consolidação das Leis Trabalhistas, através da Lei nº 13.467, de 13 de julho de 2017, cuja
aprovação se deu em meio a um contexto político caracterizado pela ilegitimidade do
governo, de um congresso nacional desacreditado por não cumprir o seu papel constitucional
de representar os cidadãos, atuando, na verdade, em prol dos interesses do sistema capitalista
internacional.

Ainda assim, o instituto da estabilidade, embora sua curta existência de pouco mais
de meio século permeada por constantes fraudes e burlas ao direito não deve ser
desconsiderado enquanto um mecanismo capaz de assegurar maior garantia de continuidade
nas relações de emprego. Ainda mais quando o horizonte imposto pela legislação reformada
é de abolição da própria relação de emprego enquanto vínculo estabelecido entre o vendedor
e o comprador da força de trabalho. Pois se desde o período de vigência do regime de
estabilidade do trabalhador, entre 1935 e 1967, as relações de emprego eram frágeis,
inexistindo, de fato, um sistema racionalmente concebido com o intuito de garantir a
continuidade da relação de emprego. A solução adotada de substituir o instituto da
estabilidade pelo FGTS, a partir de 1967, parece não ter sido a adequada, sobretudo pelo fato
de este último não ter características de um regime de garantia do emprego, nem mesmo de

7
Esse é o teor da Lei nº 13.467, de 13 de julho de 2017.

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algo incompatível com a existência da estabilidade no emprego, embora tenha sido colocado
desta maneira pelo governo e pela classe empresarial (FERRANTE, 1978).

Daí que no calor do debate entre a utilidade ou não do FGTS, o José Martins
Catharino falar da possibilidade em não antagonizar as medidas e, ao invés disso, conciliar o
instituto da estabilidade com o FGTS, como forma de criar um sistema de garantia de
emprego que seja ao mesmo tempo favorável ao desenvolvimento econômico brasileiro
diante da posição que ocupa no sistema capitalista mundial e ao trabalhador ao garantir-lhe o
acesso, a permanência e a obtenção de um novo emprego, nos casos de despedida. Menciona
ainda a necessidade de aperfeiçoamento do instituto da estabilidade, para fins de anular os
seus entraves e as brechas utilizadas pelos patrões para burlá-la. Mas conclui, de forma
veemente, que a estabilidade conserva, de fato, o emprego. Sendo, de um modo geral, estas
as conclusões obtidas pelo grupo participante do Seminário do Instituto do Direito Social,
realizado em 1978 (CESARINO JR., 1979).

Eduardo Gabriel Saad (1991), outro jurista do trabalho, também defendia a hipótese
de que o FGTS não antagonizava com o instituto da estabilidade, haja vista que o sistema de
proteção do emprego previsto na CLT era muito débil e facilmente burlado pelos
empregadores. Em contrapartida, defendia a compatibilização dos dois sistemas, talvez até,
aperfeiçoando o instituto da estabilidade decenal, passando esta de decenal para efetivar-se
logo após o período de prova (experiência). Isto porque além de corrigir falhas existentes na
CLT quanto a proteção do emprego, por parte de patrões que despediam os empregados
antes de completarem um ano de serviço para não pagar-lhes indenização e férias, ou então,
a fim de evitar dispensas obstrutivas do direito à estabilidade quando próximo de completar
os dez anos de efetivo exercício na mesma empresa, a proposta defendida pelo autor vinha
também ao encontro de estabilizar o próprio sistema do fundo, pois ao afastar a rotatividade
do emprego garantiria a sustentabilidade da conta vinculada. Porque se a conta vinculada
veio a solucionar os problemas ligados ao calote dos empregadores em pagar seus débitos
trabalhistas (indenizações) para com seus empregados despedidos, ao mesmo tempo em que
transformava um ônus pesado e repentino em um sistema de poupança e seguro a ser usado
nos casos eventuais sem impacto econômico para as empresas; por outro lado, o próprio
modus operandi do sistema inaugurado com o fundo de garantia por tempo de serviço
caracterizado pela alta rotatividade da mão-de-obra em função do poder demasiadamente
concentrado na mão do empregador para fins de quebra da relação contratual do trabalho,
ocasionou a própria instabilidade do fundo criado pelo governo e a inviabilização dos

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objetivos que com ele foram propostos, sobretudo aquele propagandeado da habitação
popular.

É possível dar-se ao empregado maior segurança no trabalho e, de outro


lado, não se faz mister aprisionar a empresa com normas rígidas suscetíveis
de perturbar seu desenvolvimento ou impedir sua adaptação às oscilações
da economia de mercado. (p. 22).
Em suma, a proposta de Eduardo Saad é de preservar o Fundo e ao mesmo tempo
modificar as garantias da estabilidade nos termos da legislação de proteção ao emprego
germânica. Segundo ele, caso o constituinte de 1988 tivesse adotado o modelo de
estabilidade germânico “(...) a rotatividade da mão-de-obra cairia consideravelmente, com
reflexo positivo na situação financeira do sistema do FGTS, o que seria altamente benéfico
ao desenvolvimento do programa habitacional” (SAAD, 1991, p. 48). Contudo, esta não foi
a solução adotada e, ao invés disso, definitivamente abolida, a estabilidade para os
trabalhadores regidos pela Consolidação das Leis do Trabalho8.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

AÇÃO CATÓLICA OPERÁRIA. História da Classe Operária no Brasil: resistindo à


ditadura 1964 a 1978. Rio de Janeiro: Gráfica Portinho Cavalcanti LTDA., 1990.

CESARINO JR., Antonio Ferreira (org.). Estabilidade e fundo de garantia: simpósio


promovido pelo Instituto de Direito Social. São Paulo: LTr, 1979.

FERRANTE, Vera Lúcia Botta. FGTS: Ideologia e Repressão. São Paulo: Ática, 1978.

LEITE LOPES, José Sérgio. A Tecelagem dos Conflitos de Classe na Cidade das Chaminés.
São Paulo: Marco Zero Editora, 1988.

SAAD, Eduardo Gabriel. Comentários à Lei do Fundo de Garantia por Tempo de Serviço:
Lei n. 8.036, de 11.5.90. São Paulo: LTr, 1991 (2ª ed.).

8
Lei nº 7.839, de 12.10.89, e Lei nº 8.036. de 11.05.90.

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SANTOS, Emanuel Moraes Lima dos. A Fábrica de tecidos da Macaxeira e a vila dos
operários: a luta de classes em torno do trabalho e da casa em uma fábrica urbana com vila
operária (1930-1960). Recife: Universidade Federal de Pernambuco (Dissertação de
Mestrado), 2017.

SANTOS, Wanderley Guilherme dos. Cidadania e Justiça: a política social na ordem


brasileira. Rio de Janeiro: Campus, 1979.

VOZES. Nordeste: Desenvolvimento Sem Justiça. Petrópolis: Editora Vozes, 1967.

MEMORIAL DA JUSTIÇA DO TRABALHO PERNAMBUCO: FONTE DE


HISTÓRIA E MEMÓRIA COLETIVA TRABALHISTA

Nilton Gabriel dos Santos Vasconcelos

Licenciando em História – Universidade Federal de Pernambuco (UFPE)

E-mail: nilton99gabriel@gmail.com

RESUMO: Diante da atual conjectura de ataques aos direitos fundamentais, à história e à


memória, faz-se necessário reverberar os espaços museológicos como agentes de
interlocução entre diferentes perspectivas e tempos históricos e que visam, também,
fortalecer a luta na construção do posicionamento crítico diante das políticas repressoras
impostas aos vários segmentos menos favorecidos e representativamente minoritários. Neste
contexto, o atual artigo visa contribuir com a afirmação do Memorial da Justiça do Trabalho
de Pernambuco como peça fundamental para o entendimento dos diversos nuances
compreendidos dentro das relações trabalhistas e dos conflitos entre a classe patronal e a do
proletariado. Fazendo-se valer das ações impetradas no âmbito jurídico trabalhista, esse

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espaço, a partir, principalmente, das especificidades contidas nos dissídios coletivos, vem
desempenhando um trabalho voltado à construção da memória coletiva, conceito de Maurice
Halbwachs. Além desta, busca também a partir dos estudos de casos; a aplicação prática, o
levantamento de informações relevantes para o atendimento das demandas sociais existentes
e a exposição para os vários setores interessados e potencialmente protagonistas.

PALAVRA-CHAVE: História Social. Memória Coletiva. Trabalho.

ABSTRACT: Faced with the current conjecture of attacks on fundamental rights, history
and memory, it is necessary to reverberate the museological spaces as agents of
interlocution between different perspectives and historical times, that also aim to
strengthen the struggle in the construction of the critical position in front of the imposed
repressive policies to the various less favored and representatively minority segments. In
this context, the current article aims to contribute to the affirmation of the Memorial of
Labor Justice of Pernambuco as a fundamental piece for understanding the various nuances
understood within labor relations and conflicts between the employer class and the
proletariat. Taking advantage of the actions taken in the labor legal framework, this space,
based mainly on the specificities contained in collective bargaining agreements, has been
working on the construction of collective memory, a concept of Maurice Halbwachs. In
addition to this, it also seeks from the case studies; the practical application, the collection
of information relevant to the fulfillment of the existing social demands and the exposure
to the various interested sectors and potentially protagonists.

KEYWORDS: Social History. Collective Memory. Job.

INTRODUÇÃO

O Memorial da Justiça do Trabalho de Pernambuco, criado em 2009, através da


Resolução nº 001/2009, expedida durante a gestão da Desembargadora presidente Josélia
Moraes da Costa, é um espaço constituído como o lugar de memória dos documentos
trabalhistas que fazem referência às ações coletivas impetrados no âmbito do exercício da
jurisprudência do Tribunal Regional do Trabalho da 6ª Região (TRT-6).

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Instituído a partir da necessidade presente em reverberar a importância histórica e


social da atuação da justiça do trabalho em Pernambuco, o acervo existente dentro deste,
incide também sobre a memória do tribunal enquanto instituição. Nele estão presentes
objetos e fatos que possibilitam aos seus usufrutuários contemplar os contextos e métodos
rotineiros de trabalho desempenhados, em momentos já superados, pela entidade e seus
componentes, além de apresentar ao público, grandes e importantes, personagens que
atuaram na defesa dos direitos trabalhistas.

O espaço, fruto direto também da demanda histórica constituída na afirmação dos


trabalhadores e das suas lutas, torna-se relevante ao ser pensado como patrimônio e fonte
de memória coletiva trabalhista por agrupar não somente uma gama de arquivos que podem
ser estudados, mas por desempenhar um importante papel na busca do entendimento do
passado dos trabalhadores e das trabalhadoras de Pernambuco, além do desenvolvimento
de uma ressignificação para a melhor compreensão dos atuais contextos de retrocessos e da
conscientização do poder destes enquanto agentes sociais transformadores.

A FORMULAÇÃO DO OBJETO MEMORÍSTICO DO MEMORIAL

A constituição da Justiça do Trabalho no Brasil pode ser considerado como um


fator importantíssimo dentro do contexto de luta por direitos empregada pelos movimentos
sociais trabalhistas. O começo desta, se deu através do Decreto-Lei nº 9.797 de 1946,
quando foram criados, no Brasil e em suas Unidades Federativas, o Tribunal Superior do
Trabalho (TST)¹ e os Tribunais Regionais do Trabalho (TRTs)² – incluindo o de
Pernambuco, designados a substituir respectivamente o Conselho Nacional do Trabalho
(CNT) e os Regionais (CNRs) - órgãos que cumpriam o papel consultivo para os demais
entes público-administrativos vinculados ao poder Executivo.

Neste ínterim de formulação, o Tribunal Regional do Trabalho da 6ª Região, com


sede situada na cidade do Recife-PE, compreendia, inicialmente, em sua jurisdição, o
julgamento dos casos relativos aos conflitos trabalhistas que ocorriam dentro do âmbito
territorial dos Estados de Alagoas, Paraíba, Rio Grande do Norte e Pernambuco,
modificado apenas no decorrer da segunda metade do século, a partir da promulgação de

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decretos e emendas constitucionais que geraram a autonomia destas regiões em relação ao


mérito de julgamento deste tribunal.

O seu funcionamento, diante da multiplicação dos conflitos entre trabalhadores e


seus respectivos patrões, se deu a partir da inserção de Juntas de Conciliação e Julgamento
(J.C.J)³, principalmente dentro das zonas mais interioranas. Esta perspectiva possibilitou a
maior mitigação das problemáticas decorrentes da relação entre os empregados e
empregadores, que, geralmente, eram provenientes dos contextos das Usinas, grandes
agentes da economia pernambucana durante o século passado. Essas Juntas, assim como
pontuou Antônio Montenegro4, não se prendiam a toda extensão pernambucana
igualitariamente, mas sim dentro do âmbito das micro-regiões onde as melhores e mais
concentradas perspectivas econômicas faziam morada. A substituição dessas J.C.J
começou durante o ano de 1999, quando, após a proposição e promulgação da Emenda
Constitucional nº 24, de 9 de Dezembro de 1999, foram criadas as Varas do Trabalho5,
organismos componentes de 1ª instância dentro da estrutura da Justiça do trabalho atual,
responsáveis por julgar, inicialmente, as ações impetradas neste braço da justiça em
decorrência desses conflitos.

O objeto relevado pelo Memorial do TRT-6 reside justamente neste ínterim de


embates em volta do direito e do exercício da jurisprudência. A atuação do tribunal dentro
de Pernambuco, colecionou, durante toda a sua vida institucional, além dos dados e fatos
referente a sua composição e rotina, uma vasta documentação que faz referência a uma
gama de fatores que se constituem, dentro do olhar da história social, como importantes
vestígios das sociedades passadas e que garantem o aspecto do direito a memória social dos
trabalhadores e do povo pernambucano, além de proporcionar a possibilidade de
entendimento e ressignificação dos fatos.

O PROJETO ‘MEMÓRIA E HISTÓRIA’ E SUA IMPORTÂNCIA

Contudo, a não mensuração da importância desta rica documentação para a história,


quase culminou na perda de milhares de arquivos no ano de 2004. No ano em questão, o
tribunal, objetivando o ganho de espaço físico para a maior alocação dos processos mais

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recentemente impetrados, encontrava-se prestes a lançar uma normativa que acarretaria na


incineração dos processos mais antigos, eliminando-os sem nenhum critério discriminativo
e sem uma prévia aferição quanto a relevância histórica destes.

O não tornar em realidade essa perspectiva veio através da atuação de um grupo de


pesquisadores da Universidade Federal de Pernambuco (UFPE), que, tendo ciência do que
estava preste a acontecer, promoveu uma luta em prol da preservação desta documentação
sobre os argumentos da pertinência histórica desta e da garantia democrática da memória.

Como resultado, este grupo conseguiu, no mesmo ano, a assinatura de um convênio


entre a Universidade e o TRT-6 intitulado Projeto Memória e História, que tinha como
objetivos o recebimento de parte desta documentação – realizada a partir de 2006, a
salvaguarda destas peças e também o fomento aos possíveis estudos que poderiam (e
vieram) a ser realizados. O programa que funciona no 4º andar do Centro de Filosofia e
Ciências Humanas (CFCH), localizado no Campus Recife da UFPE, é responsável também
pelo tratamento de higienização e acondicionamento desses processos.

A esta ação dos professores da universidade, pode-se atribuir a importância do


primeiro passo rumo a conscientização em torno da memória que o tribunal pernambucano
desenvolveu. O fato em evidência não somente salvou peças e histórias, mas também
contribuiu incisivamente para a criação do Memorial da Justiça do Trabalho de
Pernambuco e para as políticas preservacionistas e de gestão documental da Justiça do
Trabalho de outros estados.

O MEMORIAL ENQUANTO LUGAR DE MEMÓRIA, PATRIMÔNIO E


MEMÓRIA COLETIVA

A constituição de uma dada localidade dentro da perspectiva de lugar de memória,


conceito de Nora (1993)6, é fundamentada por toda uma gama de princípios e de intenções,
que, por sua vez, são baseados na criação de uma ligação identitária dotada do aspecto
concernente na junção entre sentimentos e motivação. Assim, esses espaços devem ser
pensados como invenções propositais alinhadas a fins definidos em reverberar pontos ou
fatos através de uma ressignificação de resquícios de tempos já superados.

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Deste modo, ao aferir-se a complexidade em que se formula o uso da memória, faz-


se necessário também trazer à tona a perspectiva do corpo na qual esta vem embutida. A
proposição de sentido, que nos leva a construção de uma interação contínua de identificação,
encontra-se diretamente e dependentemente projetada sobre os alicerces basilares da sua
ritualização e da constituição de um espaço físico que a abranja. A memória só pode ser
pensada como a tal a partir da conscientização em si de que: o momento do fato em questão
e a ser lembrado por outrem, já fora levado pela fugacidade do tempo e que a sua
materialização vem a partir do culto de rememoração ou da evocação do ato ou do fato pelos
indivíduos ou grupos que dela se valem. Utilizando-se dos escritos de Arévalo (2004, p. 6)7,
podemos reverberar este processo como uma função social que pode “lembrar aos membros
de um grupo seus princípios, […] ser ferramenta de construção de uma totalidade para o
grupo [ou] […] formar os indivíduos envolvidos”.

“Mesmo um lugar de aparência puramente material, como um depósito de


arquivos, só é lugar de memória se a imaginação o investe de aura simbólica.
Mesmo um lugar puramente funcional, como um manual de aula, um testamento,
uma associação de antigos combatentes, só entra na categoria se for objeto de um
ritual. Mesmo um minuto de silêncio, que parece o extremo de uma significação
simbólica, é, ao mesmo tempo, um corte material de uma unidade temporal e
serve, periodicamente, a um lembrete concentrado de lembrar. Os três aspectos
coexistem sempre [...]. É material por seu conteúdo demográfico; funcional por
hipótese, pois garante ao mesmo tempo a cristalização da lembrança e sua
transmissão; mas simbólica por definição visto que caracteriza por um
acontecimento ou uma experiência vivida por pequeno número uma maioria que
deles não participou.” (NORA, 1993, p. 21-22)8

Pensando objetivamente no contexto no qual está envolto o Memorial, podemos


perceber a relação memorística que pode ser trilhada e mensurada a partir do caráter
conferido ao espaço pela documentação nele presente. A sua formulação dentro da
perspectiva de lugar de memória está diretamente conectada a relação que passa a ser
desempenhada pelos grupos que dele usufruem e se identificam através do processo de
ressignificação dos fatos e da simbologia de luta que é emanada e reconstituída a partir de
suas peças processuais.

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Os dissídios coletivos, presentes no Memorial do TRT-6, que são, segundo Saraiva


(2006) citado por Matsumota (2010, p. 2)9, um tipo de “ação que vai dirimir os conflitos
coletivo de trabalho por meio do pronunciamento do Poder Judiciário”, quando tirados do
enfoque jurisprudencial e colocados a uma óptica histórica, constituem-se, enquanto
documentos, como peça-chave para colocação do referido espaço como um lugar de
mensuração dos fatos. São responsáveis, ainda dentro desta perspectiva, por contar, além das
histórias constituídas do embate entre requerentes e requeridos, os nuances da conjectura na
qual encontra-se inserida a sociedade do momento e também as forças impelidas que
influenciaram os costumes da época.

É através destes, também, que torna-se possível construir um conhecimento histórico


das lutas trabalhistas, aferir os anseios e reivindicações dos trabalhadores e observar as
práticas jurídicas e as relações conflituosas de poder e de direito entre as classes envolvidas,
assim como pontua a Prof.ª. Dra. Marcília Gama

“A produção documental é o reflexo dessas ações, relevante por registrar uma


jurisprudência, que, quando não está posta, nem dada, se constitui. É a
representação das soluções postuladas na esfera da Justiça do Trabalho, cujas
práticas são, por sua vez, constituídas ao sabor da história, influenciadas pelas
tendências de distintas épocas, sendo, portanto, a materialização das questões que
permeiam o social de forma diferenciada.” (GAMA, 2011, p. 178)10

O processo de construção identificado e supracitado possibilita também, através


desta referida documentação, a perspectiva de patrimonialização cultural do grupo social em
si e a âmbito de construção de cidadania. Este aspecto é mensurado a partir do que é
assinalado por Isabel Guillen (2011, p.221)11 ao afirmar que “memória e patrimônio se
relacionam, […] não para ‘preservar’ a cultura, congelando-a, mas como um dos direitos
essenciais para o exercício de uma cidadania plena”.

Ao se pensar através deste ângulo, torna-se cabível interpretar, em uma abertura até
mais macro, a importância deste contexto relacional como uma forma de legitimação de
lutas por direitos empregadas por movimentos sociais e de desenvolvimento dos meios
possam proporcionar o gozo do direito e a constituição histórica do próprio ser ou do grupo.

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A partir da década de 80, quando a historiografia passou a melhor abranger a história


dos oprimidos, os grupos sociais formalizados em estamentos mais baixos ou que eram
reprimidos passaram a ter suas histórias legitimadas e contadas, fato possibilitado através do
viés democrático que se fez presente e começara a ser empregado na sociedade do momento,
principalmente após a promulgação da Constituição Federal de 1988 e do reconhecimento
advindo com ela do direito a memória histórica, que, segundo Fernandes (2001, p.4-5)12 é a
parte da concepção de Cidadania Cultural segundo a qual “todos os homens têm o direito de
ter acesso aos bens materiais e imateriais que representem o seu passado, à sua tradição e à
sua História.”

“[…] desde meados dos anos 1980, os movimentos sociais populares, encetados
por novos atores sociais na cena política (mulheres, índios, negros, sem-terra,
homossexuais, etc.) veem no ‘resgate’ de sua memória um instrumento poderoso
de afirmação de sua identidade e de luta pelos direitos a cidadania”
(FERNANDES, 2011, p. 2-3)13

Junto a esta dinâmica, ao afirmar a questão identitária nos é permitido também


trazer à discussão a constituição das memórias que estão atadas aos grupos sociais e os
mecanismos que as possibilitam. O Memorial, compelido por toda essa junção, adquire um
caráter ainda mais significativo quando pensado como portador de memórias para toda uma
coletividade.

O conceito de memória coletiva (HALBWACHS, 2006)14, fenômeno surgido da


interação social, que ultrapassa a esfera individual do ser sem desfigurá-lo, mas o
englobando dentro da conjuntura de uma memória partilhada e consensualizada, elucida
bem essa relação por caracterizar, na perspectiva do espaço em questão, a intenção em
englobar histórias e identificações ao ser sem a premissa de causar-lhe a substituição da
sua, que é própria.

O objetivo do Memorial reside justamente na busca em afirmar a pertinência e a


importância do empoderamento do indivíduo através da colocação deste diante da história
da qual faz parte e se sente pertencente. Firma suas expectativas não somente no propósito
de inspirá-lo a dar continuidade a luta dos seus, mas também no intuito em conscientizá-lo

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de quem ele é e de proporcionar o entendimento do seu tempo e dos mecanismos que


exercem influências, diretas e indiretas, em sua vida e na do grupo social no qual se
encontra inserido.

Além destes, neste espaço, este modo de lembrança, através deste laço de
identificação, desempenha uma significação para classe trabalhadora que contribui para o
reconhecimento do papel que os antigos desempenharam e para a percepção dos mais
novos quanto a estes fatos.

CONCLUSÃO

A promoção do conhecimento das noções que englobaram e englobam a atuação da


Justiça do Trabalho de Pernambuco aliado ao sentido que o Memorial do TRT-6 vem
buscando reverberar, incide em características relevantes não apenas para a explanação da
história institucional do tribunal, mas também para a construção de todo um entendimento
sobre os movimentos trabalhistas, suas lutas e reivindicações.

A configuração do lugar enquanto espaço museológico, torna-se importante pelos


valores que são perpassados. O trabalho histórico desempenhado em cima destas
documentações ao mesmo tempo em que nos permite aferir todo uma perspectiva sobre as
sociedades nas quais foram produzidas, traz consigo a instituição e o emprego constate de
luta contra o esquecimento, característica mais que marcante do nosso tempo fugaz e
globalizado.

Reverberar estes aspectos mostra-se de extrema importância também por criar um


elo de pertencimento entre distintas gerações e por propagar um reconhecimento que serve
como pilar basilar para a continuação e promoção da busca por direito através da
exemplificação e demonstração dos fatos.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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1.
Conceito em: Sobre o Tribunal Superior do Trabalho. Disponível em:
<http://www.tst.jus.br/institucional >. Acesso em 10 de novembro de 2017.

2.
Conceito em: Tribunais Regionais do Trabalho. Disponível em
<http://www.tst.jus.br/web/acesso-a-informacao/trts>. Acesso em 10 de novembro de
2017.

3.
Conceito em: Juntas de Conciliação e Julgamento. Disponível em:
<https://jb.jusbrasil.com.br/definicoes/100001993/junta-de-conciliacao-e-julgamento>.
Acesso em 03 de novembro de 2017.

4.
MONTENEGRO, Antônio Torres. Trabalhadores rurais e Justiça do Trabalho em
tempos de regime civil militar. Disponível em: < http://memoriaehistoria.trt6.
gov.br/site/index#biblio>. Acesso em 25 de novembro de 2017.

5.
Conceito em: Varas do Trabalho. Disponível em: <http://www.tst.jus.br/web/acesso-a-
informacao/varas-do-trabalho>. Acesso em 10 de novembro de 2017.

6.
NORA, Pierre. Entre memória e história: a problemática dos lugares. Projeto história.
Tradução: Yara Aun Khoury. SP, 10 de dezembro de 1993. Disponível em:
<https://revistas.pucsp.br/index.php/revph/article/view/12101/8763>. Acesso em 05 de
dezembro de 2017.

7.
ARÉVALO, Marcia Conceição da Massena. Lugares e memória ou a prática de
preservar o invisível através do concreto. I Encontro Memorial do Instituto de Ciências
humanas Sociais – Mariana/MG, 9-12 de novembro de 2004. p. 6.

8.
NORA, Pierre. Entre memória e história: a problemática dos lugares. Projeto história.
Tradução: Yara Aun Khoury. SP, 10 de dezembro de 1993. Disponível em:
<https://revistas.pucsp.br/index.php/revph/article/view/12101/8763>. Acesso em 05 de
dezembro de 2017. p. 21-22.

9.
MATSUMOTA, Leandro. Dissídio Coletivo. Revista Idea. V.1, n.2. Jan/Jul. 2010. p. 2.

10.
GAMA, Marcília. Cultura e memória – História & trabalho. Gestão documental o
TRT6: um apelo à história e à memória. In: MONTENEGRO, Antônio Torres,
GUIMARÃES NETO, Regina Beatriz, ACIOLI, Vera Lúcia Costa. História, Cultura,

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Trabalho: questões da contemporaneidade. Editora Universitária UFPE. Recife/PE,


2011. p. 178.

11.
GUILLEN, Isabel Cristina Martins. Memória e patrimônio no movimento negro
pernambucano. In: MONTENEGRO, Antônio Torres, GUIMARÃES NETO, Regina
Beatriz, ACIOLI, Vera Lúcia Costa. História, Cultura, Trabalho: questões da
contemporaneidade. Editora Universitária UFPE. Recife/PE, 2011. p. 221.

12.
FERNANDES, José Ricardo. O direito à memória: análise dos princípios
constitucionais da política de patrimônio cultural do Brasil. (1988-2010). II Seminário
Internacional de Políticas Culturais. Conferência Mesa VI – Política Cultural e Direitos
Culturais. Fundação Casa de Rui Barbosa –RJ. 21-23 de setembro de 2011. p. 4-5.

13.
_________________________. O direito à memória: análise dos princípios
constitucionais da política de patrimônio cultural do Brasil. (1988-2010). II Seminário
Internacional de Políticas Culturais. Conferência Mesa VI – Política Cultural e Direitos
Culturais. Fundação Casa de Rui Barbosa –RJ. 21-23 de setembro de 2011. p. 2-3.

14.
HALBWACHS, M. A memória coletiva. Tradução: de Beatriz Sidou. SP: Centauro,
2006.

OPERÁRIOS E JUSTIÇA DO TRABALHO EM ALAGOAS: CONDIÇÕES DE


VIDA, LUTA POR DIREITOS E CIDADANIA (ANOS 1950)

Kethily Kaliny Leal Silva1


Universidade Estadual de Alagoas – UNEAL
E-mail: kethilyleau@gmail.com

Regina Correia de Lima2

1
Discente do curso de História da Universidade Estadual de Alagoas – UNEAL, Campus III - Palmeira dos
Índios. Membro do Grupo de Pesquisa Memoria, Política e Trabalho, pesquisando sobre trabalho e a Justiça do
Trabalho em Alagoas.

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Universidade Estadual de Alagoas – UNEAL


E-mail: reginacorreiadelima@gmail.com

Marcelo Góes Tavares3


Universidade Estadual de Alagoas – UNEAL
E-mail: rmarce_goes@hotmail.com

RESUMO:

Esse trabalho analisa os litígios entre trabalhadores e fábricas em Alagoas na década de


1950, com ênfase nas demandas por direitos de operários têxteis. Abordaremos como tais
demandas expressavam dimensões das condições de vida e o protagonismo dos operários
nas lutas políticas por cidadania durante o período democrático no Brasil (1945-1964).
Como corpus documental, utilizamos processos trabalhistas impetrados a partir de
reclamações na Junta de Conciliação e Julgamento – JCJ de Maceió na década em tela, bem
como seu cruzamento com outras fontes, como periódicos. A análise e construção narrativa
são ainda balizadas por referenciais historiográficos como Ângela de Castro Gomes,
Antonio Torres Montenegro, José Murilo de Carvalho, Antonio Luigi Negro e Marcelo Góes
Tavares.
PALAVRAS-CHAVE: História; Operários; Justiça do Trabalho.

Abstract

This paper analyzes the disputes between workers and factories in Alagoas in the 1950s,
with an emphasis on demands for textile workers' rights. We will address how these
demands expressed dimensions of living conditions and the protagonism of the workers in
the political struggles for citizenship during the democratic period in Brazil (1945-1964). As
documentary corpus, we used labor lawsuits filed from complaints at the Board of
Conciliation and Judgment - JCJ de Maceió in the decade on screen, as well as its
intersection with other sources, such as periodicals. Narrative analysis and construction are
still marked by historiographic references such as.
KEYWORDS: History; Workers; Work justice.

2
Discente do curso de História da Universidade Estadual de Alagoas – UNEAL, Campus III - Palmeira dos
Índios. Membro do Grupo de Pesquisa Memoria, Política e Trabalho, pesquisando sobre trabalho e a Justiça do
Trabalho em Alagoas.
3
Doutor em história pela Universidade Federal de Pernambuco e professor de história do Brasil e Alagoas na
Universidade Estadual de Alagoas – UNEAL. Nessa instituição coordena o Grupo de Pesquisa Memoria,
Política e Trabalho.

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Apresentação

Adalgiza Roberto da Silva e mais 14 operárias têxteis eram operárias da Fábrica


Carmen, em Fernão Velho na cidade de Maceió.

Tratava-se de uma fábrica de fiação e tecelagem, cujo funcionamento remete ao


século XIX. Foi a primeira fábrica têxtil em Alagoas, e umas das mais antigas do Brasil. Na
medida em que sua produção foi se expandindo, e respectivamente foi sendo contratado
mais funcionários, também foi sendo paulatinamente delineado uma vila operária.
Administrada por Othon Lynch Bezerra de Mello, em 1943 esta foi rebatizada como Fábrica
Carmem em homenagem a sua filha.

Vale ressaltar que nessa época, a Fábrica já se destacava entre as demais em Alagoas.
As famílias operárias viviam em casas cedidas pelos patrões mediante um desconto nos
salários. Além da moradia, na vila operária se disponibiliza aos moradores, praças,
ambulatórios, escola, sede de sindicato entre outros. Ao mesmo tempo em que se supria
demandas dessas famílias, assegurava-se também formas de controle.

Configurava-se dessa forma um complexo fabril de fábrica com vila operária, a


exemplo de outras no Brasil como a Fábrica Paulista em Pernambuco. Em Fernão Velho era
uma estratégia patronal de dominação, assegurando a disponibilidade de seus operários e
operárias para o trabalho durante as diversas seções e escalas da fábrica. Uma forma de
disciplina e poder capaz de controlar comportamentos, movimentos, e rotinas desses
operários na produção fabril. Porém, estas não eram imunes às resistências do operariado.

Adalgiza Roberto da Silva e mais 14 operárias têxteis da Fábrica Carmen, e todas


representadas por seu sindicato de classe, no dia 21 de fevereiro de 1958 realizaram na Junta
de Conciliação e Julgamento - JCJ de Maceió uma reclamação trabalhista. Reivindicavam o
cumprimento do auxílio maternidade, até então não pago Fábrica.

Tratava-se de um direito previsto aos trabalhadores urbanos através do Decreto-Lei


n.º 5.452, de 1° de maio de 1943. Na época segundo o artigo 392 dessa Lei:

Art. 392. É proibido o trabalho da mulher grávida num período de Seis (6)
semanas antes e seis semanas depois do parto.§ 1° para os fins previstos
neste artigo, o afastamento da empregada de seu trabalho será determinado
pelo atestado médico a que alude o artigo 375, que deverá ser visado pelo
empregador.§ 2º Em casos excepcionais, os períodos de repouso antes e
depois do parto poderão ser aumentados de mais duas (2) semanas cada

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um, mediante atestado médico, dado na forma do parágrafo anterior


(BRASIL; 1943).

Este artigo analisa litígios trabalhistas entre as operárias e a Fábrica Carmen,


considerando também, as condições de vida e trabalho desse operariado em Fernão Velho,
Maceió-AL.

Operários e experiências de lutas por direitos

Com a introdução das fábricas têxteis em Alagoas, e respectivamente seu


desenvolvimento, havia a necessidade de contratação de trabalhadores. Estes geralmente
provinham de zonas rurais, muitas vezes submetidos em degradantes condições de trabalho e
precariedade de vida, marcados também pelo jugo do poder de latifundiários e coronéis. Ao
migrarem para a cidade, buscavam nas fábricas melhores condições de vida e trabalho
representados nas vilas operárias e benefícios oferecidos pelas fábricas. Eram também
beneficiados pela legislação trabalhista que até 1963 abrangia apenas os trabalhadores
urbanos.

Tal legislação não representava sua efetividade nas relações trabalhistas. A negação e
não cumprimento de direitos pelos patrões era algo comum, e da mesma forma a
reinvindicação dos trabalhadores, inclusive por ampliação da leis do trabalho no Brasil.
Configurava-se um cenário marcado por lutas entre operários e patrões, disputas políticas
que expressavam também as condições e limites da cidadania no Brasil.

Os anos 1950 configuraram um momento histórico de instabilidade no Brasil. As


alternâncias de poder suscitavam regimes de exceção, e por vezes, permitiam situações de
possibilidades de golpes de Estado. Colocava-se em xeque os avanços da cidadania e
direitos sociais, e nesse mesmo caminho, tornava-se comum práticas repressivas contra
trabalhadores e movimentos sociais que lutavam pela ampliação e efetividade das condições
de cidadania. Acirravam-se as lutas e protagonismos, sejam de operários, comunistas e
sindicalistas, sejam de empresários e patrões. E desse modo, diversos campos se tornavam
espaços de disputas e lutas, desde os territórios fabris até a própria Justiça do Trabalho.

Nos arredores da Fábrica Carmen, eventualmente ocorriam manifestações dos seus


operários por melhores condições de vida e salário. Tais manifestações geralmente sofriam

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influência de comunistas, inclusive tentando informar os operários sobre seus direitos,


elevando essas disputas para a esfera política. Tavares (2016) relata que:

O PCB atuava de forma intensa na sociedade brasileira na década de 1950


e início dos anos 1960. Mobilizava ações não somente nas fábricas e
sindicatos, mas também em bairros populares, preocupando-se com
problemas do cotidiano como as condições de saúde, lazer, transporte,
habitação, custo de vida e saneamento. (TAVARES,2016, p.172)

A atuação do Partido Comunista Brasileiro - PCB auxiliou muitas das manifestações


em defesa e ampliação de direitos. Comícios, reuniões, manifestações, até mesmo greves
eram realizadas como meio de reivindicação para garantia de direitos dos trabalhadores, que
não estavam sendo cumpridos pelo o patronato. Os patrões muitas vezes alegavam que essas
agitações eram produzidas pelos comunistas. Possivelmente isto seja uma das razões por que
estes sofrerem perseguições tanto pelo estado durante o governo Arnon de Mello (1951-
1956), que era da União Democrática Nacional – UDN, um partido conservador e de direita,
quanto pelo patronato.

Era comum que comunistas tentassem se aproximar, e até infiltrar-se entre os


operários. Buscavam conquistar o carisma entre os trabalhadores, arregimentando novos
companheiros de luta. As perseguições aos comunistas atrapalhavam muito a organização
dos movimentos operários, uma vez que, existiam fiscalizações dentro das fábricas, tornando
os comunistas propensos a demissões.

Segundo Melo (2012), o jornal “A voz do povo” denunciou em sua edição de 18 de


fevereiro de 1958 que quando os operários e comunistas estavam coletando assinatura para o
“Apelo de Estocolmo” foram reprimidos violentamente. Foram emboscados, espancados e
presos pela ação estatal. “Jaime Miranda (editor do jornal) ferido a faca por um policial.
Dentro dessa atividade do PCB, na cidade de Rio Largo, o alfaiate Luiz Luna teve as mãos
quebradas de palmatória (MELO, 2012, p. 37-38)”. Uma prova de quanto esses
trabalhadores sofriam por lutar por melhores condições de vida, direitos e trabalho,
evidenciando a violência como forma de desestabilização do movimento operário por meio
do medo.

(...) a justiça só prendia uma proporção irrisória de criminosos; ela se


utilizava do fato pra dizer: é preciso que a punição seja espetacular para
que os outros tenham medo (FOUCAULT, 2017. p. 330).

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A perseguição era uma prática que poderia servir como exemplo para os demais,
instituindo um sentido de justiça para proteção da ordem e paz social, produzindo também o
medo como sugere Foucault (2017).

No caso das lutas políticas em Alagoas, o governo e patrões perseguiam os


comunistas e operários que lutavam por direitos, podendo considerá-los como subversivos.
Os patrões faziam represarias dentro das fábricas e o Estado à nível político. Muitas vezes
patrões recorriam à Justiça do Trabalho para demitir o empregado ou simplesmente demitia
como podemos observar. Nos estudos de Melo (2012) se relata sobre um grupo de operárias
da Fábrica Carmen em 1962, que entraram em greve reivindicando um aumento salarial em
virtude do aumento de números que teares que passaram a operar, incidindo sobre uma
maior produtividade não paga pelos patrões. Após a greve as líderes do movimento foram
presas sem motivos e passaram três dias na cadeia como criminosas, embora não houvesse
crime algum.

Nesse contexto podemos destacar o caso da operária da Fábrica Carmen, Elizabete


Silva. Ela possuía o direito à estabilidade, pois já trabalhava na fábrica há dez anos
ininterruptos. Segundo a CLT/1943, em seus artigos nº492 e 493,

Art. 492 - O empregado que contar mais de 10 (dez) anos de serviço na


mesma empresa não poderá ser despedido senão por motivo de falta grave
ou circunstancia de força maior, devidamente comprovadas. Parágrafo
Único – considera-se como de serviço todo o tempo em que o empregado
esteja a disposição do empregador.

Art. 493 – Constitui falta grave a prática de qualquer dos fatos a que se
refere no art. 482, quando por sua repetição ou natureza representem séria
violação dos deveres e obrigações do empregado (BRASIL; 1943).

A Fábrica Carmen, seguindo a legislação então vigente, moveu processo na JCJ de


Maceió. Trata-se do processo de nº 109 da JCJ de Maceió no qual a Fábrica Carmen acusava
a operária Elizabete Silva de ser filiada ao então extinto PCB, e que nessa condição
propagava o credo vermelho dentro da fábrica durante seu horário de trabalho. Tratava-se de
uma suposta grave falta, conforme interpretação do suposto comportamento da operária à
luz da legislação trabalhista mobilizada pela Fábrica. A operária era também acusada de
violar suas obrigações, praticando baixa produtividade, o que era considerado prejuízo para
o patrão.

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Porém, a operária conseguiu mostrar o contrário na Justiça. Comprovou que era uma
operária produtiva e que até a própria Fábrica já havia reconhecido. Elizabete Silva recebeu
da Fábrica Carmen um prêmio por produtividade.

A JCJ analisou os documentos e os depoimentos das testemunhas, e juntamente com


o juiz, decidiu pela improcedência o processo movido pela Fábrica. Esta, por sua vez,
insatisfeita com o resultado na primeira estância da Justiça Trabalhista, recorreu contra a
sentença. Novamente, agora em segunda instância, a sentença foi favorável à operária. O
Juiz José Leite alegou que as atividades políticas fora do emprego não eram da alçada do
tribunal, e assim, os fatos alegados pela Fábrica não tinham cabimento.

Diante desses pressupostos torna-se plausível que na busca por seus direitos,
operários alagoanos também fossem influenciados pelo viés revolucionário dos comunistas,
pois estes conseguiam realizar manifestações envolvendo grande número de trabalhadores
para lhes falarem sobre os direitos que possuíam e deveriam ter, principalmente no período
da década de 1950. E que embora Fábrica estivesse passando por um período de
prosperidade, seus operários continuavam com baixos salários e exercendo a sua mão-de-
obra em condições precárias. Situação que tornava justa as reinvindicações pelo aumento de
salário, dentre outras demandas.

No intuito de serem atendidos os trabalhadores usavam várias formas de lutas por


seus direitos. Entre os métodos de resistência, podemos citar as greves, os comícios e
manifestações, e a própria Justiça do Trabalho. Esta última, era um meio legal para tentar
assegurar o direito que o patronato negava.

A Justiça do Trabalho se tornava então uma instância de poder mobilizada tanto por
patrões como sobretudo por trabalhadores na luta por seus interesses, seja individual ou de
classe. Ou em outros casos, era mobilizada até mesmo contra o partido que defendia a CLT e
o discurso trabalhista que tanto prometia avanços para os trabalhadores em termos de
direitos.

O processo JCJ/Maceió de nº 136, aberto em 27 de março de 1952, tinha como


reclamante a trabalhadora Ubaldina de Oliveira Melo, e reclamada o Partido Trabalhista
Brasileiro – PTB, para quem ela prestava serviços domésticos. A reclamante alegava que foi
admitida em 15 de janeiro de 1949 e recebia o salário de Cr$ 350,00, mas que foi desviada
de suas funções para trabalhar no Sindicato dos Trabalhadores na Indústria da Construção
Civil de Alagoas. Alegava que por esse serviço, a princípio extra, nada recebeu. Reclamava

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também salários atrasados, indenização e férias, resultando num montante de Cr$ 6.945,60.
O juiz decidiu pela procedência da reclamação, condenando o reclamado a pagar 6.951,60.

Paulatinamente, os trabalhadores se tornavam conscientes de seus direitos. Muitos


vislumbravam o desejo de valorização de seu trabalho, tomando a luta pelo direito como luta
por dignidade enquanto trabalhador. Por outro lado, mesmo que as decisões da Justiça do
Trabalho fossem em grande número favoráveis aos trabalhadores, não os eximia de
represálias.

Líderes sindicais e de classe foram perseguidos, denunciados e demitidos como


mostra o Inquérito judiciário nº 182 de 10 de dezembro de 1950. O requerente Othon
Bezerra de Mello, Fiação e Tecelagem S/A, proprietário da Fábrica Carmen, moveu
processo contra José Correia da Silv. O requerente alegava que o operário estimulou outros
funcionários a greve e a perda da produtividade da fábrica ao fazer comentários sobre o
salário mínimo. O operário era estável, e na primeira instância foi oferecido um acordo, mas
que foi negado entre as partes. Testemunhas foram interrogadas e documentos analisados
pelo juiz da JCJ de Maceió, que decidiu favorável à parte reclamada, nesse caso, o
trabalhador.

Trabalhadoras grávidas na Justiça do Trabalho e o caso das operárias de Fernão


Velho - AL

Logo quando a Justiça do Trabalho foi criada, os maiores números de reclamações


vinham de mulheres grávidas que pediam à proteção que o Estado com o advento da
legislação trabalhista era obrigado a conceder-lhes.

O estado por meio da justiça do trabalho obrigava aos patrões a cumprir as leis
trabalhistas, quando estas estavam em estado de gravidez. Entretanto, os patrões muitas
vezes omitiam seu dever, muitos deles até quando, colocados em audiências na justiça,
argumentavam que por não ser o pai da criança não devia arcar com as despesas da
maternidade das operárias, Gomes (2002), por exemplo, relata que em uma decisão de
presidente de Junta de Conciliação e Julgamento, o patrão “(...) argumenta que tinha a
certeza de que não era o pai da criança e, por isto, não tinha obrigação de manter a
empregada(...)” (GOMES; 2002, p. 8).

Não era de se estranhar que o patrão agisse de tal forma, presumindo que nesse
período existiam casos em que o patrão se utilizava do poder que detinha na fábrica para

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abusar das trabalhadoras. Gravidez não era uma condição que os patrões almejassem entre
suas operárias. No Brasil alguns patrões até exigiam um atestado de laqueadura, e somente
certo de que as operárias não fossem mais passíveis da gravidez, assim as contratava.
Buscavam evitar despesas como o auxílio maternidade. O que não os eximia de processos.

Aos 21 dias do mês de fevereiro de 1958, Adalgiza Roberto, casada, operaria e


residente em Fernão velho e outras 13 mulheres deram entrada na JCJ de Maceió, com uma
reclamação trabalhista contra Othon Bezerra de Melo, proprietários da Fábrica Carmen.
Reclamavam o auxílio maternidade, amparadas pela lei de n° 392 garantido na CLT. Essa lei
proibia o trabalho de mulheres gravidas durante a sexta semana antes e depois do parto.

Nesse processo, pudemos observar que algumas tecelãs em condição de gestantes,


somente paravam de trabalhar no dia em que entravam em trabalho de parto. Foi o caso de
Iraci Ferreira de Lima, operária da fábrica Carmen. Mesmo tendo a possibilidade de se
afastar 6 semanas antes, como era previsto na lei, somente se afastou do trabalho no dia em
que deu à luz, 7 de julho de 1957, e voltou ao trabalho no dia 12 de agosto, passando assim
um mês e 5 dias de licença maternidade.

Desse modo, casos como o de Iraci mostra o a falta de compromisso da Fábrica para
com o cumprimento da lei, ensejando a negação de direitos. O que os leva a questionar a
efetivação da CLT, e do próprio sindicato em defesa dos trabalhadores. A Justiça do
Trabalho foi procurada por essas trabalhadoras na tentativa de tornar efetivo de fato os seus
direitos trabalhistas, porém isso não se concretizou. O processo foi arquivado, alegando-se
como motivo, o não comparecimento das operárias na audiência marcada no dia 15 de julho
de 1958. Não bastasse a perda de direitos, as operárias ainda foram condenadas a pagar as
custas do processo.

Esse desfecho é um ponto de interrogação. O que teria motivado as operárias a


desistirem do processo? Terá sido ameaças? Medo das retaliações e represarias? Tendo sido
o sindicato o endereço das operárias informadas no processo, será que o sindicato as avisou
sobre a audiência? Ou terá tido algum acordo entre as partes envolvidas? Eis questões que
não temos respostas, e provavelmente nunca teremos. Mas que nos lança a pensar nas
possibilidades plausíveis sobre as relações de trabalho nos idos dos anos 1950.

Entre as certezas, podemos destacar a violência nesse tipo de relação de trabalho,


muito comum naquela época. “Acordos” eram feitos constantemente com as fábricas, e do
mesmo modo, a desistência dos processos também existia em virtude do medo. E que desse

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modo afasta a possibilidade de coincidência o não comparecimento e desistência coletiva


das operárias.

Considerações finais

As informações contidas nos processos são de inestimável importância para entender


todo um emaranhado de relações, o patrão e o empregado, o operário e os sindicatos, os
comunistas e os trabalhadores, os direitos e suas negações. As informações neles impressas
possibilita releituras sobre a história do trabalho, de trabalhadores e da própria Justiça do
Trabalho. Quanto ao arquivamento do caso de Adalgiza e outras 13 mulheres, enseja-nos a
compreender que trata-se de uma luta em meio a um período de exceção. Um tempo em que
questionar direitos poderia proporcionar situação de periculosidade social, tornando
passíveis enquadramentos considerados pejorativos e passíveis de repressão, tais como
perseguição, suspensão de serviço, demissão, e até prisão. E em casos mais extremos, a
própria condição de trabalho degradante, nocivo à vida, seja daquelas que operavam teares
entre outras máquinas nas fábricas têxteis, ou mesmo seus filhos que já nasciam em meio à
situação de negação de direitos. Filhos de operárias e operários que desde o nascimento, já
herdavam os limites da cidadania no Brasil, mas que tomando exemplo nas lutas de seus
pais, poderiam também perpetuar a esperança de conquistas nas novas lutas do porvir.

REFERÊNCIAS

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<http:www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto-lei/Del5452>. Acesso em 09 de Dez. de 2017.

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Janeiro: Civilização brasileira, 2002.

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pronunciada em e de Dezembro de 1970. 22 ed. São Paulo: Edições Loyola, 2012.

______. Microfísica do Poder. 5 ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2017.

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GOMES, Angela de Castro; SILVA, Fernando Teixeira da (Orgs.). A justiça do trabalho e


sua história. Campinas: Editora da Unicamp, 2013.

MELO, Airton de Souza. Operários têxteis em Alagoas: Organização sindical, repressão e


vida na fábrica (1951-1964). 2012. 157 f. Dissertação (Mestrado em História) - Programa de
Pós Graduação em História, Universidade Federal de Pernambuco, Recife, 2012.

TAVARES, Marcelo Góes. Do tecer da memória ao tecido da história: Operários,


trabalho e política na indústria têxtil em Fernão Velho (Maceió, AL, 1943-1961). 2016. 310
f. Tese (Doutorado em História) - Programa de Pós Graduação em História, Universidade
Federal de Pernambuco, Recife, 2016.

______. "O que acontece quando arranjei emprego nessa fábrica...": Fernão Velho,
cidadela operária (Maceió, 1940-1950). Disponível em:
<http://www.snh2015.anpuh.org/resources/anais/39/1434071656_ARQUIVO_Oqueacontec
e_FernaoVelho_Marcelogoes_anpuh2015.pdf>. Acesso em: 18 de Nov. De 2017.

O ARCEVO DO MEMORIAL DA JUSTIÇA DO TRABALHO COMO FONTE


PARA HISTÓRIA: CASO DA USINA SANTA TEREZINHA E OS CONFLITOS

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ENTRE TRABALHADORES RURAIS E INDUSTRIAIS DA MATA SUL EM


PERNAMBUCO E OS USINEIROS NA DÉCADA DE 1980.1

Maria Janyne de Queiroz Santos


Milena Pereira dos Santos
Universidade Federal de Pernambuco
janynequeiroz@hotmail.com
milena_psantos@hotmail.com

Resumo

A pesquisa tem como fonte de estudo o processo da Usina Santa Terezinha, existente no
Memorial da Justiça do Trabalho, da década de 1980, em que foi travado um dos mais
longos conflitos envolvendo os trabalhadores rurais e industriais, a Junta de Conciliação e
Julgamento de Palmares, o Instituto do Açúcar e do Álcool e a Cooperativa dos Usineiros de
Pernambuco. Trabalhamos o conceito de luta de classes em Marx (2009), para trazer à tona
o objeto da investigação que é as rupturas e continuidades que permeiam o universo laboral
dos trabalhadores da usina. Assim como, entender quanto à propriedade da terra define as
relações conflituosas entre as referidas classes e de que forma as velhas estruturas de poder
oligárquicas se organizam para negar direitos que a própria Justiça do Trabalho reconheceu,
ao determinar, em decisão histórica, a reabertura da Usina, destinando a produção para
pagamento das dívidas trabalhistas, dando origem a disputa entre as partes e colocando em
cheque o papel da própria Justiça do Trabalho. Por se tratar de agentes sociais distintos, é
possível vislumbrar as fissuras no âmbito das relações conflituosas do campo, assim como,
perceber a tensão e o embate travado na Justiça trabalhista com a classe proprietária, os
usineiros.

Palavras-chave: Usineiros, trabalhadores e conflitos sociais.

O Processo da Usina Santa Terezinha contém quatorze caixas e foi localizado no


Arquivo-Geral do Tribunal Regional do Trabalho da 6ª Região (TRT-PE), atualmente, o
mesmo se encontra no Memorial da Justiça do Trabalho em Pernambuco, sendo este, o
primeiro Tribunal do Trabalho a ser reconhecido pela UNESCO como Patrimônio da

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Trabalho apresentado no VII Seminário TRT/UFPE & II Caravana ANPUH/PE: História, Trabalho e
Direitos, organizados em novembro de 2017 pela ANPUH-PE em parceria com o Projeto História e Memória.

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Humanidade. O Memorial possui um importante ofício na busca e preservação da história e


memória do trabalho em Pernambuco.

Figura 1: Processo referente à Usina Santa Terezinha em Palmares. Fonte: Acervo do Memorial da Justiça do
Trabalho da 6ª Região.

Considerando a trajetória da Historiografia, é possível perceber a relação que o


Processo da Usina Santa Terezinha mantém com o campo da História Social, que se
desenvolveu na tentativa de reduzir a tendência da historiografia de contar a história dos
grupos mais favorecidos e com base nas fontes oficiais produzidas sob o filtro do Estado.
Tal História busca assim, produzir um conhecimento científico a partir de uma perspectiva
crítica. A exemplo disto, podemos mencionar o historiador social, Sidney Chalhoub que
procura estudar a história do Brasil dentro do âmbito de experiência dos trabalhadores e não
de um discurso construído a respeito dela, valorizado, por exemplo, pela História Cultural.
Ele também faz um alerta sobre os cuidados necessários ao se utilizar a historiografia
tradicional. Desta forma, inferimos que o vasto acervo pertencente ao Memorial está,
também, sob forte influência dessa História Social, a qual possibilita uma ampla diversidade
de fontes.
O interesse dos historiadores pelos arquivos judiciários é recente e surge da
“necessidade de contar a história brasileira desde perspectivas outras que não as que eram
tradicionalmente utilizadas”. (SCHMIDT, 2010, p. 92). Ao analisar, por exemplo, as

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experiências dos escravos e as relações de trabalho no Brasil, em períodos posteriores à


escravidão, é possível reconhecer a importância de guardar os processos para que se
conheçam novas histórias através deles. Além disso, vale ressaltar que grande parte da
documentação da justiça e do judiciário ganha valor de patrimônio histórico com o passar do
tempo.
Do ponto de vista teórico e metodológico, os novos temas e abordagens propostos
pela História Social possibilitaram a ampliação do campo de conhecimento histórico e a
legitimação de novas áreas para a investigação sendo então, considerado um dos maiores
feitos da História Social, trabalhada a partir das décadas de 60 e 80 (séc. XX).
Ao analisar o contexto histórico do período aqui estudado, percebe-se que o Brasil
estava inserido em um conturbado momento político e econômico. O país, que no início dos
anos 1980 passava por uma transição política na busca de uma redemocratização, tentava se
recuperar dos altos índices inflacionários que abarcou uma grave crise econômica no Estado
brasileiro. A crise do Petróleo, por exemplo, que se expandiu a níveis globais, acarretou ao
Brasil uma paralisação em seu crescimento econômico, uma vez que os produtos produzidos
pelo setor primário do país já não estavam mais sendo exportados, gerando assim uma
grande recessão.
Durante a década de 1980 o Brasil também passava por um momento de intensa luta
e fortalecimento dos movimentos sindicais. Concretizando, assim, a ideia de que o
sindicalismo seria o principal caminho para as reivindicações de classes e melhorias nas
condições de vida e de trabalho. O Processo de Santa Terezinha nos revela que os
trabalhadores estavam fortemente envolvidos nesse ambiente de luta e tomavam decisões
junto às lideranças sindicais, que já assumia uma posição de destaque no meio político.
Em meio a todo contexto açucareiro no Brasil, Pernambuco sempre esteve à frente na
produção e distribuição desse produto, que durante alguns séculos foi base para a economia
nacional, todavia, no século XX, o Estado pernambucano foi ultrapassado por São Paulo.
Nota-se que assim como no restante do país, na década de 1980 instaurou-se em
Pernambuco uma séria crise que foi desenvolvida por alguns fatores externos já antes
mencionados, e, em meio a tudo isso estava a Usina Santa Terezinha inserida em um dos
mais longos conflitos envolvendo trabalhadores e autoridades governamentais.
No ano de 1926, o comerciante de tecidos José Pessoa de Queiroz adquiriu uma
pequena fábrica de açúcar, localizada entre as divisas de Pernambuco e Alagoas. A partir de
seu trabalho, em 1930 e 1936, respectivamente, ele transformou a Usina Santa Terezinha na
terceira maior fábrica de açúcar e na primeira maior de álcool anidro do país. A Usina se

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tornou tão importante para a região que fez Água Preta – município onde ela se localizava –
entrar para a historiografia do Estado. Devido ao seu forte crescimento, a cidade recebeu
uma ferrovia que ligava Palmares à Região Metropolitana de Pernambuco, em seguida, criou
vínculos com outros estados. No entanto, após o falecimento do senhor José Pessoa de
Queiroz, em 1971, a Usina passou para as mãos da família e em 1981 foi envolvida por uma
grave crise.

Figura 2: Usina Santa Terezinha S/A. Água Preta-PE. Fonte: Revista da Semana, Nº 40, 9/9/1939. Disponível em:
estacoesferroviarias.com.br

O Processo encontrado no Arquivo-Geral tem início no ano de 1986, quando os


Usufrutuários representados por Antônio Matias da Silva e outros resolveram denunciar o
atual administrador judicial, Silvio Carneiro Leão por conta de irregularidades que estavam
ocorrendo na Usina, bem como, pela desativação das estradas de ferro, com a venda dos
trilhos, de locomotivas, vagões em bons estados de conservação e outros ferros. Além disso,
foi também constatado o arrendamento de imóveis rurais e empréstimos de utensílios sem a
devida oneração.
No ano anterior foi determinado que um valor mínimo de 5% do apurado pelos
lucros da empresa deveria ser destinado aos usufrutuários, todavia, esta medida estaria sendo
desrespeitada. Devido a essa denúncia foi possível constatar a venda de melaço em um
mercado paralelo, o que estava prejudicando a satisfação do crédito trabalhista, e o então
administrador judicial nada esclarecia com relação às prestações de contas.
Frente a tudo isso, a Usina recebia cada vez mais reclamações trabalhistas e uma das
denúncias era a de que havia um grande número de trabalhadores rurais sem permissão para
trabalhar e sem o recebimento de salários, apenas sendo jogados de um lado a outro, não
tendo, se quer, o direito à alguma justificativa sobre que se passava. É importante frisar o

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fato de que a empresa se dividia em duas partes, uma, envolvendo os operários (a indústria)
e outra, os canavieiros (o campo). Por conseguinte, o que antes era um processo que
continha apenas reclamações dos usufrutuários, tomou maiores proporções e integrou todo o
operariado da empresa.

As condições econômicas transformaram, primeiro, a massa da população do país


em proletários. O domínio do capital criou, para essa massa, uma situação comum
e interesses comuns. Assim, essa massa já é uma classe para o capital, mas ainda
não é uma classe para si mesma. Na luta, da qual não assinalamos mais do que
algumas fases, essa massa se une, constituindo-se numa classe para si. Os
interesses que defende, convertem-se em interesses de classe. (MARX apud
PEREIRA, 2001)

Assim discorre Marx sobre a transição da “classe-em-si à classe-para-si” (PEREIRA,


2001). Procurando relacionar a existência da classe proletária, grupo regido pelo capital,
com o momento em que este grupo adquire consciência sobre a situação vivida e sobre o
processo histórico no qual ele está inserido, passando a atuar de forma independente no
cenário político e nos embates ideológicos.
Segundo alguns registros processuais e a matérias publicadas no Diário de
Pernambuco os salários da classe operária da Usina estavam retidos, pois, a administração
da indústria açucareira andava desviando canas para a moagem em outras fabricas. Tal
denúncia foi feita pelo presidente do Sindicato dos Trabalhadores nas Indústrias do Açúcar
em Pernambuco, Benedito Arcanjo da silva, a qual exigia uma imediata providencia oficial.
Devido ao fato de que a Usina só estava moendo, no máximo, duas vezes por
semana, os administradores acharam oportuno desviar as canas já cortadas para outras
indústrias de açúcar e álcool, como Caxangá, Estreliana e 13 de Maio, e nelas efetuar a
moagem. Além disso, outra irregularidade, segundo Benedito Arcanjo, que agravava ainda
mais a situação, era o fato das canas de Santa Terezinha terem sido, também, levadas para a
Usina Santana, em Alagoas. Por essas e outras razões o dirigente sindical solicitava que a
justiça colocasse na administração da usina um representante dos trabalhadores rurais, outro
dos operários e também dos credores, a fim de impedir os desmandos.
O desvio de canas para outras indústrias fazia crescer a dívida da empresa açucareira
e apenas beneficiava os rendeiros e donos de engenho, que deixavam de recolher os
descontos para os órgãos financeiros do governo. Segundo o dirigente sindical, Benedito
Arcanjo, enquanto as canas estivessem sendo desviadas, os operários – num total
aproximado de 500 – continuariam sem receber pagamento. Com salários retidos, sem
perspectivas de um futuro melhor e com a fome já massacrando os operários e suas
respectivas famílias, o estado de tensão entre os vinculados à empresa só fazia aumentar e

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Benedito Arcanjo temendo uma possível reação violenta por parte dos trabalhadores, que já
se mobilizavam e revelavam descontentamento com a administração judicial, pediu imediata
providência ao IAA (Instituto do Açúcar e do Álcool), ao Governo do Estado e ao Banco do
Brasil.
“Os operários não tinham opção: morrer de fome ou iniciar a luta.” (MARX apud
SOUZA, 2010). Dentro desse contexto, tem-se início um longo confronto histórico travado
pela classe trabalhadora da Usina Santa Terezinha contra a classe proprietária. Nos
meandros desse processo é possível observar que diversas foram as formas de resistência
desses trabalhadores contra as medidas abusivas daqueles que possuíam a administração da
empresa. Dentre essas resistências estão os vários processos judiciais abertos contra a Usina,
planejamento de ações junto a lideranças sindicais, elaboração de abaixo assinado e saques
aos depósitos da indústria.
De acordo com alguns relatos existentes no Processo, os atrasos salariais
acumulavam 10 semanas e o então administrador judicial, Silvio Carneiro Leão, procurava
se esquivar das denúncias transferindo a culpa para a Cooperativa dos Usineiros que
juntamente com autoridades governamentais, como o IAA, o Ministério da Fazenda e o
Banco do Brasil haviam retido uma quantidade estimada em três milhões de cruzados
pertencente à Usina Santa Terezinha. No entanto, a Cooperativa rebateu as acusações e
justificou que a Usina estava em débito com o governo. Após isso, Silvio Carneio Leão se
defendeu afirmando que, aos poucos, estaria cumprindo seus compromissos com os
empregados da empresa, pois, não havia condições da Usina quitar todas as suas dividas
imediatamente. Além disso, o mesmo dizia ter tomado todas as atitudes em benefício dos
trabalhadores, não satisfeito, foi até a mídia para argumentar que temia que fossem tomadas
medidas arbitrarias para destituí-lo do cargo. No entanto, o estopim se deu quando o
administrador judicial resolveu sem nenhuma justificativa, paralisar as atividades da Usina,
ampliando ainda mais o desconforto dos trabalhadores com a sua administração.
Além dos salários atrasados e do não recebimento do 13º, os trabalhadores
denunciaram que jagunços foram implantados na Usina com o intuito de intimidar os
reclamantes e fazê-los desistir dos processos. Segundo dados do Diário de Pernambuco,
aproximadamente 490 operários da empresa e mais de 2000 trabalhadores do campo sofriam
diversas injustiças, ameaças e retaliações.
Durante a década de 1980 o Brasil também passava por um momento de intensa luta
e fortalecimento dos movimentos sindicais. Concretizando, assim, a ideia de que o
sindicalismo seria o principal caminho para as reivindicações de classes e melhorias nas

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condições de vida e de trabalho. O Processo de Santa Terezinha nos revela que os


trabalhadores estavam fortemente envolvidos nesse ambiente de luta e tomavam decisões
junto às lideranças sindicais, que já assumiam uma posição de destaque no meio político e
tinham sua atuação refletida nos jornais da época:

A situação da Usina Santa Terezinha sempre foi “uma pedra no sapato” segundo o
presidente do Sindicato dos Trabalhadores na Indústria do Açúcar, Benedito
Arcanjo da Silva, “e piorou muito, ultimamente. Há cinco anos a empresa está
sobre intervenção, sendo três anos do IAA – Instituto do Açúcar e do Álcool, e há
dois anos sob intervenção judicial, decretada pelo juiz Luiz de Alencar Bezerra,
visando garantir o usufruto de 656 trabalhadores do campo que entraram com ação
(e tiveram ganho de causa) na Junta de Conciliação e Julgamento de Palmares. Os
490 operários da indústria estão com os direitos assegurados pela intervenção
anterior do IAA. (Diário de Pernambuco).

Durante a década de 1980 o Brasil atravessou uma intensa crise na economia do setor
açucareiro, a qual deixou marcas em sua história e afetou, drasticamente, a vida de muitos
brasileiros que dependiam direta ou indiretamente da produção de açúcar. Com a Usina
Santa Terezinha não foi diferente, a crise agravou ainda mais sua situação, que já não era
positiva devido aos desmandos de seus administradores, fomentando assim, seu fechamento.
As consequências desse acontecimento atingiram muitas famílias, principalmente, aquelas
que residiam em Água Preta, município que mantinha suas atividades econômicas em torno
da indústria açucareira.
O impacto da paralisação das atividades corroborou em um protesto em frente ao
Tribunal Regional do Trabalho da 6º Região com a presença da imprensa que noticiou todo
o ocorrido e muitas foram às consequências dessa paralisação, a começar pelo saque que
ocorreu nos armazéns da Companhia Brasileira de Alimentos (Cobal), que ficava localizado
em Água Preta, na Mata Sul, a 30 km de Palmares, pois eles passavam situações de fome e
tiveram que ter alguma alternativa para evitar a morte das crianças. Os trabalhadores, que
estavam famintos, não encontraram outra saída que não fosse invadir o armazém da
companhia de onde levaram toneladas de alimentos, eram 200 homens e 200 mulheres que
em meia hora levaram pães, biscoitos, doces e refrigerante.
Mais de mil crianças, filhos de trabalhadores, deixaram de frequentar a escola, as que
ainda compareciam, frequentemente eram levadas para casa por estarem desmaiando de
fome. Essa situação culminou também no fechamento de várias escolas da região e o
prefeito local João Fernandes de Lima a quem os trabalhadores haviam recorrido para

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encontrar uma solução, alegou que não existiam condições para a compra de alimentos
destinada aos carentes.
Uma saída encontrada pelos trabalhadores foi à coleta de alimentos que estava sendo
feita com o auxílio de um “carro de som” – veículo comum em cidades do interior –, o qual
chamava a comunidade para ajudar os trabalhadores, juntamente a isso também foi usado
um caminhão para o recolhimento e transporte dos mantimentos.
O clima de tensão e a sensação de abandono por parte das autoridades era presente
entre os trabalhadores, que ameaçavam voltar ao centro de Água Preta e dessa vez para
quebrar os vidros das lojas, culminando com a invasão à Junta do Trabalho em sinal de
protesto; pois, eles cobravam solução da mesma, no entanto não estavam obtendo sucesso.
Os trabalhadores reivindicavam o afastamento de Silvio Carneiro Leão, bem como o
seu substituto Sr. Adelson Correia de Amorim, em razão das medidas abusivas tomadas por
eles, que estavam sendo prejudiciais para a Usina, que até então estava ameaçada do seu
fechamento definitivo. Foi determinado que fosse instaurado um conselho de administração
provisório, sendo os representantes escolhidos entre os próprios trabalhadores. Foram eles,
Rubens Carneiro Costa e José Mario Souza do Rêgo Barros, além disso, também foi decido
que determinassem a modificação da remuneração dos mesmos, eliminando os valores que
foram acrescentados pela administração anterior.
Cerca de 40 mil pessoas dependiam direta e indiretamente da empresa, os municípios
de residência dos trabalhadores estavam divididos entre Pernambuco e Alagoas. Mediante a
todo esse quadro de insegurança a indústria decretou situação de falência, por conta disso, os
trabalhadores foram demitidos antes de receber as devidas indenizações, o débito
ultrapassava a casa dos 200 bilhões.
Para tentar quitar as dívidas com o operariado foi instaurada uma ação judicial de
reabertura da usina com o intuito de leiloar as máquinas ainda presentes na estrutura física
do local, e o capital obtido com a arrematação dos bens seria destinado à quitação das
dívidas trabalhistas. Durante o leilão não foram exigidos depósitos prévios, contudo, o
arrematante deveria garantir o lanço com o sinal de 20% do seu valor, o preço mínimo seria
a quantia correspondente à avaliação; e caso o arrematante ou o fiador não pagasse em 24
horas o preço da arrematação, perderia o bem e o mesmo voltaria a leilão, o depósito
também estaria sujeito a juros e correção monetária.
Com o leilão, as expectativas em torno da quitação do déficit trabalhista
aumentaram, haja vista que as probabilidades de lucro em valores imensuráveis eram altas.
E assim, se sucedeu, a arrematação foi um importante acontecimento desde a instauração de

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todo processo trabalhista, a exemplo da venda de um conjunto de moendas “Smith” de


fabricação inglesa, para a Usina Santa Bárbara S.A – Açúcar e Álcool, localizada no
município de Santa Bárbara, no Estado de São Paulo a Usina atingiu um lucro de
250.000.000.00 (duzentos e cinquenta milhões de cruzados).
Sendo a cana, a principal fonte de renda das cidades da Zona da Mata Sul do estado
de Pernambuco, por muitos anos, os moradores do município de Água Preta alimentaram a
esperança de que um dia, a moenda da Usina Santa Terezinha seria reativada, gerando,
novamente, empregos e renda para aquela população. No entanto, aparentemente, hoje os
moradores possuem motivos suficientes para desacreditarem numa possível reativação da
Usina, pois, o atual proprietário, Ricardo Pessoa de Queiroz, bisneto e herdeiro de José
Pessoa de Queiroz, afirma não haver interesse algum de que a indústria volte a moer cana.

Figura 3: Imagem da Usina Santa Terezinha atualmente. Fonte:


http://jconline.ne10.uol.com.br/canal/suplementos/jc-mais/noticia/2015/11/23/em-pernambuco-festival-faz-usina-
moer-arte-209319.php

Apesar da falta de interesse, por parte do empresário Ricardo Pessoa de Queiroz, pela
reativação das atividades açucareiras da Usina, o mesmo, possuía planos para com a
indústria, transformada em ruínas pelo tempo e o abandono. Com a intenção de dar novos
rumos à empresa e ressignificar a vida dos moradores daquela região, dando a eles a
possibilidade de enxergar novos horizontes, o espaço, onde antes se produzia açúcar, foi
transformado num ambiente de vivência cultural, onde hoje, se produz arte. O projeto de
renovação da Usina Santa Terezinha em parceria com outros órgãos dispõe de atividades

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empreendedoras, exposições artísticas, escola de música, integração de um jardim botânico


na parte campal da empresa; além de promover, anualmente, o festival Arte na Usina, que
proporciona, exposições de filmes, debates, apresentações, oficinas de fotografia, cinema,
pintura, dentre outras atrações para a comunidade.

REFERÊNCIAS

CARLI, Gileno Dé. Açúcar no Brasil – Personalidades XII – José Pessoa de Queiroz. In
História de uma Fotografia, Recife, 1985. Disponível em:
<http://webcache.googleusercontent.com/search?q=cache:http://www.cbg.org.br/baixar/acuc
ar_no_brasil_12.pdf&gws_rd=cr&dcr=0&ei=S80tWouUKMikwASRhZzgBA> Acesso em:
05/12/2017.

MARX, Karl; ENGELS, Friedrich (1977). In: SOUZA, Charles. Pensamento Moderno e
“Questão Social”: esboço de uma interpretação ontológica a partir de Karl Marx e
Friedrich Engels. Dossiê: A “questão social” Temas & Matizes – Vol. 9 – Nº 17 – Primeiro
semestre de 2010. pp. 7-34. Disponível em:
<http://saber.unioeste.br/index.php/temasematizes/article/viewFile/4701/3626> (2010).
Acesso em: 05/12/2017.

MARX, Karl. Miséria da Filosofia. In: PEREIRA, Duarte Pacheco. Das classes à luta de
classes. Disponível em: <https://marxismo21.org/wp-content/uploads/2012/06/DP-Classes-
e-luta-de-classes-2.pdf> (junho/2012). Acesso em: 05/12/2017.

SCHMIDT, Benito Bisso. Trabalho, justiça e direitos no Brasil: pesquisa histórica e


preservação das fontes. São Leopoldo: Oikos, 2010, p. 90-105

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“JUSTIÇA PARA OS SECURITÁRIOS”: PODER NORMATIVO E AUMENTO


SALARIAL EM DEBATE NO TRIBUNAL SUPERIOR DO TRABALHO (1946-1947)

Alessandra Belo Assis Silva


UNICAMP
alessbelo@gmail.com

O jornal carioca Diário de Notícias (DN) estampou na sua publicação do dia 17 de


outubro de 1946 a seguinte notícia: “deve ser julgado hoje, no Tribunal Superior do
Trabalho, o recurso dos securitários no dissídio que instauraram perante a Justiça. Será, bem
dizer, o primeiro grande julgamento do órgão reformado da Justiça do Trabalho, que já
dirá sobre o critério de seus julgados (grifo meu)”. (DN, 1946)
O trecho anterior faz menção a dois eixos importantes que serão analisados neste
texto: em primeiro lugar à ampla disputa judicial que envolveu a reivindicação por aumento
salarial da categoria dos securitários, contra seus empregadores, donos de lucrativas
companhias privadas de seguros e capitalização. O fenômeno aconteceu em um contexto de
intensa onda de reivindicações por aumento salarial da classe trabalhadora no Governo
Dutra, muitos deles com influência do PCB. Por último o jornal menciona a transformação
da Justiça do Trabalho (JT) em órgão do Judiciário em setembro de 1946 e à criação dos
Tribunais Regionais e Superior, antes denominados Conselhos, subordinados ao Executivo,
cuja “reformação” lhes garantiu autonomia e poder. Uma característica marcante está
relacionada ao polêmico poder normativo, que não coincidentemente foi de fato disposto
pela Carta de 1946, fato que engendrou grandes debates na Assembleia Constituinte daquele
famigerado ano.
O poder normativo estava, na prática, em debate e construção, principalmente, a
partir do questionamento de quais seriam os limites de seu exercício por parte dos juízes nos
tribunais. Em outras palavras, no que se refere ao contexto desse período, a Justiça do
Trabalho, recém-investida desse “poder”, dava seus primeiros passos como protagonista nos
conflitos de classe que envolviam a matéria do aumento salarial. Os trabalhadores, por sua
vez, na sua experiência de luta por direitos, aproveitaram amplamente a Justiça do Trabalho

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para fazer cumprir suas demandas de reajuste nos vencimentos. Nesse sentido, os
empregadores seriam os principais opositores ao exercício do poder normativo.
Desde pelo menos julho de 1945, os trabalhadores das lucrativas companhias de
seguros privados vinham lutando pelo aumento de seus salários. Tratavam-se de lutas
concomitantes, porém não fruto do acaso, dos Sindicatos dos Empregados das Empresas de
Seguro Privado e Capitalização respectivamente do Rio de Janeiro, o principal aglutinador
do movimento, de São Paulo e Porto Alegre. Os securitários faziam parte da onda
reivindicatória que tomara conta do Brasil entre 1945 e 1947, em que a luta pelo aumento
salarial e a defesa da democracia consistiam-se nos dois pilares da reivindicação da classe
trabalhadora principalmente, sob a influência do Partido Comunista (PCB).
O Rio de Janeiro foi o primeiro a tornar a conflito público e também foi o precursor
na luta judicial através de dissídio coletivo no CRT. No dia 18 de abril de 1946, o Diário
reproduzia as principais demandas do grupo em uma manchete intitulada Pretendem os
securitários 100% de aumento sobre os salários. Nessa reportagem, seguia-se um resumo
das reivindicações da categoria, que eram uma explicação das condições sobre as quais
queriam o aumento duplicado dos salários. Segue abaixo o que pleiteavam:
1.Deverão ser incorporados aos salários os abonos, ou outras quaisquer
remunerações, recebidas sob títulos diversos.
2. Para efeito do cálculo do aumento serão somados ao salário os abonos ou outras
quaisquer remunerações recebidas sob títulos diversos.
3. Os aumentos serão calculados sobre os salários, mais abono, etc., conforme
previsto nas notas anteriores, percebidos pelos empregados em 31 de março de
1946.
4. A tabela entrará em vigor a partir de 1º de abril de 1946. (DN, 1946)

Os securitários acreditaram, em um primeiro momento, que obteriam aumentos em


acordo direto com o sindicato patronal. Isso confirmou-se em fins de abril quando reuniram-
se com a classe patronal para tentar negociar um acordo, sem chegar a um consenso.
Assim, os trabalhadores resolveram ir a dissídio coletivo. O conflito passou para a
arbitragem compulsória da Justiça e o julgamento foi marcado para o dia 12 de julho de
1946 no ainda CRT da Primeira Região. Devido às tentativas do Conselho em negociar com
os patrões, os trabalhadores davam como certa a conquista do aumento proposto pelos
conselheiros.
O sindicato patronal adiantou-se ao julgamento por meio de uma preliminar em que
alegou que os securitários, no ano anterior, haviam obtido aumento legal. De fato, o mesmo
Conselho homologou um contrato coletivo de trabalho, acordo sindical que preencheu todas
as formalidades previstas na CLT. Assim, o CRT julgou improcedente o pedido de aumento

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dos trabalhadores, alegando a existência de um “dissídio coletivo” anterior instaurado em


menos de um ano em relação ao atual. De acordo com a CLT não poderia haver outro
dissídio instaurado pela mesma categoria em um período inferior a um ano.
Os securitários, por sua vez, inconformados, denunciaram que além de se tratar de
uma argumentação infundada, por não ter sido realizado um dissídio, aquele primeiro acordo
teve como resultado um “aumento irrisório” homologado pelo CRT, o que os levou a decidir
pelo recurso junto ao Conselho Nacional do Trabalho (CNT), a última corte recursal da
Justiça do Trabalho.1
A categoria, respaldada pela própria atitude dos patrões, deixava, então, de lado o
“espírito conciliatório” e passou a confrontar os seguradores de forma aberta. Para isso,
contaram amplamente com a imprensa. Durante o mês de agosto intensificaram a campanha
em prol do aumento durante dias seguidos. O Diário de Notícias e o jornal Tribuna Popular
publicaram, por vários dias, o slogan produzido pela associação: “Confiam os securitários no
Conselho Nacional do Trabalho: são justas as suas reivindicações”, que era acompanhado de
outras máximas como “justiça para os securitários”, “metade dos securitários ganham menos
de 800 cruzeiros mensais”.2
A categoria também utilizou da tentativa, bem-sucedida em outros grupos de
trabalhadores, de obter apoio parlamentar. No dia 19 de julho, realizaram uma concentração
no Palácio Tiradentes a fim de fazer a entrega de um memorial aos constituintes, solicitando
seu apoio na campanha em prol do aumento de salário. Nesse documento os securitários
explanaram as razões do dissídio coletivo por suscitarem os fundamentos do recurso ao
Conselho Nacional do Trabalho, na medida em que o Conselho Regional havia denegado o
pedido de melhoria dos salários (DN, julho de 1946).
O recurso dos securitários arrastava-se por três meses desde julho. Como aconteceu no
caso dos bancários, este período de espera foi marcado pela promulgação da nova Carta
constitucional e por mudanças significativas na Justiça do Trabalho: a integração ao poder
Judiciário, a efetivação do poder normativo e a transformação dos Conselhos em Tribunais

1
Os trabalhadores haviam denunciado desde o início do ano a insignificância dos aumentos praticados em
1945. Segundo o jornal Hoje, “os parcos aumentos de salários concedidos durante o ano de 1945 ficaram
praticamente inutilizados em poucos meses com a alta constante dos preços dos gêneros de primeira
necessidade e dos produtos industriais mais indispensáveis. Já no fim do ano as dificuldades dos trabalhadores
eram de tal ordem que a possibilidade da obtenção de um abono lhes apareceu como uma perspectiva
salvadora”. Os comunistas referiam-se ao abono de Natal, benefício que não era somente uma “perspectiva
salvadora”, mas que foi motivo de duras lutas e muitas paralisações em que várias categorias de trabalhadores
se mobilizaram para reivindicá-lo no ano seguinte. Ver: Hoje, 5 de janeiro de 1946.
2
Tais publicações preencheram ambos os jornais durante todo o mês de agosto de 1946.

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onde a carreira de juiz do trabalho foi finalmente criada e novas turmas de magistrados
passaram a compor os tribunais.
Então, no dia 6 de outubro, nas vésperas da decisão do já denominado Tribunal
Superior do Trabalho, o Sindicato dos securitários publicou um manifesto em que pedia a
“sólida união dos securitários em torno do seu Sindicato e a mobilização geral de todos, a
sua coesão, e uma firme e inabalável disposição para a conquista da “Tabela Justa”
(DN,1946).
O jornal Diário de Notícias, bastante ativo na contenda, emitiu uma espécie de
editorial em defesa da categoria, com um título sugestivo A estreia do Superior. O periódico,
neste texto, elaborou uma argumentação cuja estratégia era: de um lado ligar a conduta do
CRT do Rio de Janeiro à ditadura do Estado Novo como forma de desqualificar àquela
instância, jogando toda a responsabilidade para o “novo” TST, e por outro lado, o periódico
tentou enaltecer posições favoráveis aos trabalhadores dentro da própria Justiça do Trabalho,
como foi o caso do procurador Evaristo de Moraes Filho.
De fato, naquela época segundo o próprio Moraes Filho, os procuradores empossados
por Vargas em 1941, eram “jovens e entusiasmados”, “favoráveis à reforma social e
tendentes a defender os direitos dos trabalhadores” (MOREL; GOMES, PESSANHA, 2007,
p.82). Além disso, o procurador defendia a possibilidade de se conceder aumento antecipado
de salários, quando as crises econômicas, como a de 1946, colocaram em xeque o
(DN, 1946).
dispositivo da CLT que fixava a periodicidade para reajuste de salários Assim, o
procurador regional encarnava, para os trabalhadores, que estrategicamente apensaram seu
parecer no dissídio, o personagem da Justiça do Trabalho que era amplamente favorável à
concessão dos aumentos salariais.
A categoria, que já confrontava a classe patronal por todos os lados, passou neste
momento a consolidar mais uma estratégia: por meio do apelo à opinião pública,
demonstrava ampla confiança na Justiça do Trabalho. O já citado slogan “confiam os
securitários no CNT” era mesclado com o enaltecimento de seus magistrados por parte da
categoria, impondo-lhes características de integridade e patriotismo.
Talvez levados por essa onda de louvor às suas ações, porém ainda bastante relutantes
em tomar para si a resolução da “tabela justa”, o TST, no dia 17 de outubro de 1946, por
unanimidade de votos concedeu o direito à categoria de obter o aumento de salários.
Entretanto, a última corte decidiu pelo retorno do dissídio ao Tribunal Regional da Primeira
Região para que o mesmo decidisse pela “tabela”. Essa decisão, por mais que protelasse o
famigerado aumento, foi “recebida pelos securitários sob as mais entusiásticas

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manifestações” ainda dentro do próprio tribunal, cujas dependências estavam


sobrecarregadas de trabalhadores que assistiam a sessão. Após o acontecimento, os
securitários realizaram uma grande assembleia, aclamando o presidente do Sindicato Luiz
Leivas Lacroix e o chamado líder da classe José Cesar Borba Nunes Machado.
Os seguradores estavam bastante resistentes ao aumento salarial. Após a decisão, foi
noticiado que os securitários estavam sofrendo represálias das empresas, como foi o caso da
Sul América Capitalização, que segundo o sindicato, repreendeu 13 de seus funcionários
que compareceram no abarrotado Tribunal Superior do Trabalho no dia do julgamento do
recurso (DN, 1946).
Tais intimidações por parte dos seguradores intensificaram-se, é verdade, depois da
saída de alguns trabalhadores do turno da tarde dos seus respectivos serviços para
acompanhar, diretamente no Tribunal Superior, a decisão sobre o aumento.
O turbulento ano de 1946 chegava ao fim e a situação dos securitários cariocas
aguardava uma solução que ficara adiada para o ano seguinte. No dia 6 de fevereiro de 1947,
cinco mil securitários concentraram-se no Tribunal Regional da Primeira Região para
assistir a decisão da segunda instância. A tabela proposta pelo TRT3 carioca não foi aceita
pelos securitários que recorreram novamente ao Tribunal Superior do Trabalho.
Entre fins de 1946 e fevereiro de 1947, quando o dissídio dos securitários cariocas
viveu uma verdadeira saga de idas e retornos às instâncias, o Tribunal Superior do Trabalho
receberia em sua mesa mais dois recursos da categoria. Tratava-se do recurso do dissídio dos
securitários paulistas cuja decisão realizou-se no dia 18 de novembro de 1946 e o dissídio da
categoria gaúcha que foi finalizado no dia 4 de fevereiro de 1947. O dissídio carioca passou
de primeiro a último no que se refere à sentença do Tribunal Superior, sendo julgado apenas
no dia 21 de julho de 1947.
Todavia, foi no recurso dos paulistas, ainda em 1946, que o Tribunal Superior do
Trabalho discutiria de forma intensa e prolongada o tema do aumento salarial, do poder
normativo e da greve. A mencionada apelação resultou em tabela de reajuste que seria
reproduzia nos demais recursos da categoria em Porto Alegre e Rio de Janeiro.

Poder normativo em debate no TST


Os recursos dos dissídios correspondentes à luta dos securitários no Tribunal
Superior do Trabalho são extremamente significativos para a análise dos conflitos de classe

3
Dedicarei um item exclusivo para as tabelas no decorrer do texto.

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naquela conjuntura em geral. As discussões dos ministros não trazem à tona somente o
desenrolar da contenda envolvendo os securitários, como abre ampla margem para a
compreensão de como era o entendimento do TST sobre alguns temas caros ao direito do
trabalho, a saber: o aumento salarial e o direito de greve, cuja articulação passava pelo poder
normativo da Justiça do Trabalho
O debate no TST iniciava-se com um enorme e duradouro discurso do ministro
representante dos empregadores, Ozéas Mota. Acostumado sempre a tomar a palavra no
início dos debates, e por isso ditar o rumo da conversação naquele espaço, o representante
classista não escondia sua repulsa à decretação de aumentos salariais pela Justiça do
Trabalho a ponto de ter decidido, segundo suas próprias palavras, “não votar mais em
nenhum aumento de salário na Justiça do Trabalho. Ficava claro que o ministro era contra o
exercício do poder normativo.
Ozéas Mota também deixou bastante clara a sua posição política, relacionando os
aumentos salariais a uma prática comunista por parte dos trabalhadores que deveria ser
amplamente combatida. O representante classista citou uma declaração do então recém-
empossado ministro da Guerra, Canrobert Pereira da Costa, “anticomunista extremado, mas
cuja ascensão era lógica, dado o importante papel que desempenhara junto a Dutra durante o
Estado Novo”.4 Neste discurso, consubstanciado numa circular, Pereira da Costa
supostamente atacava o comunismo e “assinalava a grave ameaça que os aumentos
[salariais] podiam determinar”. (TST, 1946) Assim, Ozéas Mota, colocando-se numa posição
não somente de representante dos empregadores, mas também de defensor da política levada
a cabo pelo Executivo, afirmava:
a palavra “comunista”, Sr. Presidente, contra a qual devemos reagir,
acompanhando o Exército, neste momento é de desorganização, de pedir o
aumento maior possível, de 100%, 150% e até 240%, como já tivemos um caso
neste Tribunal. Foi assim que se fez na Rússia a campanha, aproveitando-se a
miséria que tinha outra origem, de desgostar todas as classes, de espalhar a
dissenção em toda a nação para que pudessem, nessa situação de anarquia, galgar o
poder, como galgaram, sob o aspecto do protetor da classe operária, que está sob o
julgo da maior ditadura. O Exército acaba, pela palavra do seu ilustre Ministro da
Guerra, de lançar uma circular contra o comunismo (grifo meu). Nós, na Justiça
do Trabalho, devemos acompanhar esta situação, porque não dando o aumento de
salário, perguntarão aqueles que solicitam este aumento: nós temos a vida
encarecida cada vez mais, mas por causa do aumento de salário (grifo meu)
(TST, 1946).

4
Pereira da Costa era também antivarguista declarado e substituía momentaneamente no ministério da Guerra,
o conhecido artífice do Estado Novo, Góes Monteiro. Tal fato evidenciava cada vez mais, o afastamento do
governo Dutra em relação a Vargas. Assim, as eleições de janeiro de 1947 foram disputadas com um novo
alinhamento das forças políticas do país, em que o PTB, o PCB e o Partido Social Progressista (PSP), do ex-
interventor em São Paulo Ademar de Barros, estavam em oposição ao governo Dutra.

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Ozéas Mota era claramente contrário ao exercício do poder normativo pela Justiça do
Trabalho. Contudo, o ministro togado Edgard de Oliveira Lima, problematizou de forma
mais profunda a utilização desta prerrogativa pelos tribunais, como se vê abaixo:
Mas, Sr. Presidente, diante de um problema complexo e tormentoso como é este,
complexo como poderá depor um técnico da matéria que é o ilustre Ministro que
nos ouve e que já foi Presidente da Comissão de Preços, Sr. Julio Barata – diante
de um problema na França, obrigou a intervenção do Governo não para conceder
mas para limitar o aumento, penso que, uma vez que a Constituição da República
homologando a jurisprudência anterior admite o poder normativo neste e vai
regulá-lo, evidentemente, pesa sobre este Tribunal uma grave responsabilidade
(grifo meu).(TST, 1946)
Oliveira Lima demonstrava bastante cautela na análise do exercício do poder
normativo, recém-sancionado pela Constituição de 1946, pois se neste momento de
turbulências econômicas tornava-se “grave a responsabilidade da Justiça do Trabalho”,
também era a de “outros poderes até que o preceito constitucional” fosse “regulado pelo
legislativo, que é o competente, e sancionado ou vetado parcialmente pelo Executivo. Isto
porque “se a Constituição outorga a lei e nós juízes temos de cumpri-la, evidentemente só
poderemos pautar nossas restrições ou negativas diante do que for ditado pela lei”. O
ministro, certamente, fazia alusão ao parágrafo segundo do artigo 123 da nova Carta já
citado neste trabalho. Segundo o artigo constitucional, caberia a lei regular o poder
normativo da Justiça do Trabalho.
É possível observar que o magistrado se convencera, afinal, da legalidade do poder
normativo. Em 1947, Oliveira Lima publicou um artigo revelador sobre o tema na Revista
Forense. O ministro iniciou sua argumentação com uma alegoria. Segundo ele, os três
poderes se colocavam diante do poder normativo como Édipo diante da esfinge: “Ou me
decifras ou te devoro (LIMA, 1947)”. Esta metáfora incluía a sua noção de como tal cláusula
colocava a Justiça do Trabalho em um patamar diferenciado, ao mesmo tempo em que
reconhecia como era difícil dissertar sobre o assunto, já que causava “à primeira vista,
natural perplexidade que, dentro dessa sistemática, o magistrado se substitua ao legislador”.
(LIMA, 1947).
Oliveira Lima, como foi visto em fala anterior, fez referência ao conhecimento sobre o
assunto de outro ministro presente àquela discussão. Tratava-se de Júlio Barata, que já havia
sido presidente da Comissão Central de Preços, criada em abril de 1946 por Dutra com “o
objetivo de impedir o encarecimento da vida”.5 Talvez seja por fruto desta recente

5
Decreto-Lei nº 9.125, de 4 de abril de 1946. De acordo com alguns economistas, o diagnóstico da inflação, de
acordo com a política econômica do Governo Dutra, era o de que controlar os preços exigia liberar
mecanismos de mercado e limitar influências nocivas do governo. Aproximadamente em metade do mandato,
uma crise cambial forçou o governo a voltar atrás na abertura comercial para defender reservas cambiais e

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experiência, que ao tomar a fala naquele tribunal, Barata afirmara que “as causas reais desse
fenômeno (o aumento salarial) não são, exclusivamente, de ordem política e é preciso dizer
que não envolvem, sistematicamente, intuitos de agitação social”. (LIMA, 1947)
Assim, o ministro tentava, por um lado, distanciar-se do ponto de vista que via nos
aumentos salariais apenas uma atitude de “comunistas grevistas” como Ozéas Mota
enfatizara e, por outro, afinava-se com a postura de Oliveira Lima, que embora bastante
legalista, havia levantado a necessidade de se discutir critérios econômicos e sociais com o
intuito de defender a prerrogativa do poder normativo.
Júlio Barata reproduziu em seu discurso uma argumentação, que predominou de modo
significativo no TST: o de que os aumentos salariais tinham como pano de fundo os
conflitos econômicos e sociais entre capital e trabalho naquela conjuntura. De acordo com
ele, toda aquela discussão no Tribunal era “em miniatura, o que se está passando em todo o
Brasil, porque, evidentemente, os dissídios coletivos de natureza econômica, que aqui
chegam, representam uma pequena parcela das reivindicações que estão sendo apresentadas
por todas as classes operárias, pelo país afora.”
Em seguida, Barata fazia referência a imagem de Leão XIII que cobria parte da parede
daquele tribunal. Conhecido por ser o pai do pensamento social católico, o papa Leão XIII
personificava o ideal de justiça social, e certamente seria outro ponto de encontro com
Bezerra de Menezes, fervoroso católico que defendia a relação entre aumento salarial e
justiça social.
Em uma de suas numerosas obras, o presidente do TST defendia o exercício do poder
normativo no que tangia à estipulação de tabelas salariais, principalmente à época de sua
criação, em 1946, “na fase aguda dos dissídios coletivos motivados pela elevação crescente
do custo de vida”. (MENEZES, 1957) Para o presidente do TST, “o problema do salário e
da sua melhoria enche quase toda a vida do operário: os conflitos para sua determinação,
dentro de bases de equidade e justiça social, constituem os fenômenos de maior relevo e
dramaticidade da história social contemporânea (MEZENEZ, 1957; DROPPA, 2015).
Entretanto, é preciso entender que tais ideais de “justiça social” estavam impregnados
nas mentes de políticos e juristas do país naquele contexto, como por exemplo nas
discussões sobre o direito de greve na Constituinte. Este conceito, amplo e vago, era
utilizado pelos constituintes com o intuito, sobretudo, de elevar o papel da Justiça do
Trabalho como mediadora de conflitos e contrapor-se ao exercício da confrontação direta

resguardar importações essenciais. Ver: BASTOS, Pedro Paulo Zaluth. O presidente desiludido: a campanha
liberal e o pêndulo de política econômica no governo Dutra (1942-1948).

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representada pela greve. Quando da Assembleia Constituinte de 1946, “a tese da Justiça do


Trabalho como instrumento de contenção das greves foi habilmente manipulada pelos
parlamentares do PSD”. Ela remontava às discussões entre Oliveira Vianna e Waldemar
Ferreira sobre o poder normativo. “Na releitura dos pessedistas, os tribunais especiais
dispunham dos meios adequados para dirimir as questões trabalhistas, “dentro de um
elevado critério de justiça social”. (CAMPANINI, 2015, p.84)
Contudo, a discussão sobre a vida econômica do país como fundamentação dos pontos
de vistas não era defendida por todos os presentes. O procurador-geral do trabalho Antônio
Batista Bittencourt, cujo papel incluía a constante emissão de pareceres nas decisões do TST
embora não tivesse poder de voto, mostrou-se contrário a perspectiva “econômica” de Júlio
Barata e Bezerra de Menezes assim como a argumentação de Ozéas Mota.6 Segundo ele, tal
discussão não tinha qualquer pertinência na medida em que os trabalhadores estavam
pleiteando aumento salarial sob a égide da lei, aproximando-se assim de uma concepção
puramente jurídica.
Outra questão interessante para Bittencourt residia na defesa do aumento salarial sem
distinção de categorias, quando o governo havia realizado o reajuste para trabalhadores que
estavam fora do âmbito de empresas privadas, como os servidores públicos e militares. É
curioso observar como essa argumentação também foi utilizada pelos comunistas em sua
campanha a favor dos aumentos salariais, quando afirmaram no jornal Hoje que a situação
de pobreza da classe operária “não pode perdurar. O próprio governo federal deu provas de
assim o compreender, decretando um aumento substancial de salários para os funcionários,
civis e militares da União. Cabe agora estender essa medida a todos os trabalhadores do
Brasil (HOJE, 1946).
Batista Bittencourt estava muito mais preocupado com as greves do que com a vida
econômica do país. Ao emitir sua defesa do aumento salarial e consequentemente do poder
normativo, o procurador evidenciava sua opinião sobre as paralisações:
Ora, existe uma lei para impedir as greves e antes das greves os trabalhadores tem
que recorrer à Justiça do Trabalho para reclamar aquilo a que se julgam com
direito. Desatendendo ao que dispõe esse diploma legal, então aí sairão fora da lei
e estão sujeitos até a punições das mais severas. No caso dos autos é o que estamos

6
Antônio Batista Bittencourt foi nomeado procurador da Justiça do Trabalho em janeiro de 1941, segundo
consta nas informações do Jornal do Brasil. Segundo a mesma fonte, o procurador era “ex deputado federal e
advogado militante”. Bittencourt dividia os pareceres naquele tribunal com outros dois procuradores também
bastante presentes e conhecidos personagens da história do trabalho no Brasil: Dorval Lacerda, participante da
comissão que elaborou a CLT, e Agripino Nazareth, que antes de ser nomeado procurador, foi importante líder
socialista do movimento operário brasileiro ao longo da Primeira República. Ver: CASTELUCCI, Aldrin.
Agripino Nazareth e o movimento operário da Primeira República. Revista Brasileira de História. São Paulo,
v. 32, nº 64, p. 77-99 – 2012.

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vendo. É o dissídio seguindo norma regular e legal, pleiteando aumento de salário


(grifo meu).
Os ministros certamente estavam cientes da legalidade controversa das greves. De
acordo com o famigerado Decreto 9.070 que regulara as paralisações no Governo Dutra, “os
tribunais deveriam intervir logo que instalado o conflito, trazendo para si a responsabilidade
pela sua resolução e constituindo uma sentença à qual as partes eram obrigadas a se sujeitar.
Nessa formulação simplista, não haveria espaço ou fundamento para a paralisação do
trabalho” (CAMPANINI, 2015, p.137).
Interessante, nesse caminho, era a visão do ministro representante dos empregados,
Antônio Carvalhal. Ele alegava a necessidade de conceder aumentos salariais aos
trabalhadores como meio eficaz para evitar as inúmeras greves que assolavam o país. Assim,
o ministro voltava-se para a discussão do direito de greve e reproduzia, dessa forma, o
conhecido binarismo Justiça do Trabalho versus greve, em que o funcionamento daquela
instituição seria não somente incompatível com as paralisações como também seria a Justiça
do Trabalho o instrumento capaz de erradicá-las. Afinal, segundo Carvalhal
tendo sido criada a Justiça do Trabalho para dirimir os conflitos entre empregados
e empregadores, ela pode minorar a situação que vem ocasionando no país as
greves. A Constituição hoje permite o direito de greve. Verificamos que se a
Justiça do Trabalho não puser termo a esta desordem, atendendo aos que pleiteiam,
teremos mais breve do que pensa o Ministro Ozéas Motas uma desorganização
geral, porque atualmente até procuram fugir da Justiça do Trabalho atiçando
greves aqui e acolá para o aumento de salários (grifo meu). Eu pergunto? Essas
greves quando rebentam aqui e acolá, dirigiram-se os grevistas antes à Justiça do
Trabalho?(grifo meu) Não, porque se assim fosse receberiam, quando não for o
pedido por inteiro, mas alguma coisa. Daí eu disse discordar “data vênia” do
ministro Ózeas Mota, de que devemos negar sistematicamente todos os aumentos,
porque assim recorreriam eles a greve geral e isso ocasionaria talvez a queda do
governo e também a nossa. (TST, 1946)

O ministro classista Antônio Carvalhal era, de fato, um personagem interessante. Ele


não deixava, salvo em casos específicos, de defender a causa dos trabalhadores naquele
tribunal. Tal visão, contudo, repousava numa concepção da greve como ameaça à harmonia
social. A posição de Antônio Carvalhal, talvez fosse um motivo que o levara a ser acusado
de pelego pelos comunistas, embora ficasse clara a sua combatividade a favor dos
trabalhadores se olharmos para as disputas nos tribunais. Para se ter uma ideia, o ministro foi
voto vencido, solitariamente, a favor dos trabalhadores em 27% dos recursos que chegaram
ao Tribunal Superior do Trabalho somente entre janeiro e fevereiro de 1947.
Esta contradição é reveladora: se para os magistrados da Justiça do Trabalho as greves,
as negociações diretas e os dissídios na Justiça possuíam uma grande incongruência entre si,
para os trabalhadores tal inadequação não se verificava na sua prática de luta. Assim, seja

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conjunta ou separadamente, o movimento operário lançaria mão dos seus instrumentos de


luta que lhes conviessem de acordo com as circunstâncias trazidas pela própria experiência
do conflito.
Tal interpretação fica mais clara, quando fazemos um paralelo entre o significado da
fala de Antônio Carvalhal, o comportamento adotado pelo sindicato dos securitários e a
concepção do PCB sobre a Justiça do Trabalho e a greve. Afinal, o Partido Comunista estava
à frente da maioria das paralisações de grande vulto no período e, como pude apurar, a
associação estava por trás da reivindicação dos securitários.
De acordo com Hélio da Costa, se no imediato pós-guerra o PCB mostrava-se
hesitante quanto à utilização da greve, após a posse de Dutra, no conflituoso ano de 1946,
passaram a defender o direito de greve, sobretudo dentro da Constituinte. E fora dela,
passaram a classificar as paralisações como justas e de agitação embora sempre cautelosos,
afinal visavam livrar-se do estigma de comunistas revolucionários. (COSTA, 1996)
Foi nesse sentido, que em agosto de 1946, justificaram a greve dos ferroviários da São
Paulo Railway, como medida necessária e justa, quando as negociações diretas e os dissídios
na Justiça resultaram infrutíferos. Segundo o editorial do jornal comunista Hoje:
Para atingir um objetivo tão simples e tão justo teria sido mesmo necessário lançar
mão da arma da greve, a mais poderosa arma dos trabalhadores? Claro que não.
Através de negociações diretas entre patrões e trabalhadores se podia e devia ter
chegado a esse objetivo. Através de um dissídio coletivo instaurado na Justiça do
Trabalho também se poderia ter chegado ao mesmo resultado. Não teriam os
ferroviários trilhado esses caminhos conciliatórios? (grifo meu) A história diz que
sim. Que os ferroviários organizaram a sua Comissão de Reivindicações, debateram
os seus problemas, que se dirigiram à direção da empresa e que não foram sequer
atendidos por ela. Que depois se dirigiram à Justiça do Trabalho e ali viram seus
esforços para uma solução rápida sabotados por uma burocracia mais ou menos
obediente aos patrões. (grifo meu). A história diz também que, cansados de esperar
uma solução para seu caso, os ferroviários da São Paulo Railway paralisaram os
serviços. (HOJE, 1946)

De forma conclusiva, os trabalhadores discursavam contra a Justiça do Trabalho,


porque entendiam que seus magistrados estavam empenhados em defendê-la como
contraponto ao direito de greve, mas isso não significava que deixariam de utilizar
amplamente os tribunais para reivindicar, e fazer valer, efetivamente os seus direitos.
Sabe-se que os securitários recorreram de forma aberta à negociação direta
inicialmente como os ferroviários, mas que apostaram todas as suas fichas, posteriormente,
não na greve, e sim nos recursos que empenharam no Tribunal Superior do Trabalho. Tal
escolha, talvez possua um sentido mais claro, quando analisamos a contradição representada
por Antônio Carvalhal: se a Justiça do Trabalho recusava a greve como manifestação justa,
ela defendia amplamente os aumentos salariais.

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As tabelas de reajustes: decisões sobre o aumento salarial dos securitários no TST


Como foi visto os tribunais regionais julgaram os aumentos salariais dos securitários,
cujas tabelas e outras demandas não foram suficientes para que os trabalhadores colocassem
fim ao conflito. Interessante observar que os empregadores, também recorreram ao TST com
suas próprias demandas, inconformados em conceder qualquer tipo de aumento.
Infelizmente, não foi possível obter a tabela de reajuste decidida pelo TRT da 2ª
Região no dissídio dos securitários paulistas. Entretanto, pela decisão da última corte
observa-se que o Tribunal Superior seguiu a mesma base para toda a categoria, o que pode
ter significado uma diminuição do valor em relação ao TRT paulista. Outra consideração de
destaque, é que o Tribunal da 2ª Região decidiu pela incorporação dos abonos aos salários e
também das chamadas gratificações de fim de ano, posteriormente denominadas “abono de
Natal”, como ficou claro pela citação dessa parte do acórdão pelos ministros da corte
superior. Todavia, o TST, como veremos, modificará em grande parte o padrão da sentença
do Tribunal Regional, a começar pelo reajuste salarial.
Esta tabela abaixo, que se tornou um modelo, foi sugerida pelo ministro togado
Manuel Caldeira Neto e aceita por unanimidade no Tribunal Superior do Trabalho:
Tabela 3- Reajuste dos securitários paulistas no TST
Salários (Cr$) TST
Até 500,00 Aumento de 50%
De 501,00 a 801,00 Aumento de 40%
De 801,00 a 1000,00 Aumento de 30%
De 1001,00 a 1500,00 Aumento de 20%
De 1501,00 a 3000,00 Aumento de 10%
Fonte: Recurso nº 8156/46 do Tribunal Superior do Trabalho
Vamos ver em seguida que o TST manteve a mesma tabela para os casos de Porto
Alegre e Rio de Janeiro. No caso dos securitários gaúchos, o TRT da 4ª Região antes do
recurso à última corte, decidiu pela tabela que veremos logo abaixo, cujo aumento foi dado
sob as seguintes bases: os salários seriam calculados após a incorporação aos salários fixos,
dos abonos concedidos até 31 de dezembro de 1945, excluídas, assim, da incorporação
definitiva aos vencimentos, as gratificações de função ou de cargo ou outras de caráter
extraordinário. Então, o TRT gaúcho incorporava os abonos aos salários, mas não as
chamadas gratificações, o que significava uma conquista parcial para os trabalhadores.
Vejamos como ficou a tabela de aumento salarial dos securitários gaúchos:
Tabela 1- Reajuste dos securitários gaúchos no TRT e TST

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Salários (Cr$) TRT da 4ª Região TST


Até 500,00 Aumento de 60% Aumento de 50%
De 501,00 a 750,00 Aumento de 45% Aumento de 40%
De 751,00 a 1000,00 Aumento de 30% Aumento de 30%
De 1001,00 a 1500,00 Aumento de 30% Aumento de 20%
De 1501,00 a 3000,00 Aumento de 15% Aumento de 10%
Fonte: Recurso 10956/46 do Tribunal Superior do Trabalho
Quando o recurso do dissídio dos gaúchos chegou ao TST, os trabalhadores acabaram
perdendo significativamente em termos de conquistas. Em relação à decisão daquele
Tribunal Regional, o percentual de aumento caíra principalmente para aqueles que recebiam
menos e, para os securitários com salários intermediários. Tal decréscimo resultou em um
valor 10% menor que aquele decidido pelo Tribunal Regional. Outros valores tiveram uma
queda de 5%.
Repetia-se, portanto, a tabela de São Paulo elaborada por Caldeira Neto. O ministro
justificava o empreendimento, afirmando que “o custo de vida” não diferia muito” entre a
Capital Federal, São Paulo e Rio Grande do Sul. Mostrou também que o Tribunal levaria
“em consideração os dados oferecidos pela Estatística da Previdência que diziam ao
aumento do transporte, vestuário, higiene, educação e gêneros de primeira necessidade.
Levou-se em conta, então, para a elaboração da tabela os mesmos “5 elementos da
conceituação do salário mínimo.”
Os trabalhadores viram sua conquista de incorporação dos abonos no TRT gaúcho
também virar letra morta no Tribunal Superior. Foram excluídas as incorporações de
qualquer espécie, porém tal decisão aconteceu depois de muito debate, com 3 ministros
votando a favor da incorporação, sendo, entretanto, vencidos pelos demais. Sobre os abonos,
dedicarei um item para discutir a questão, embora seja importante considerar para esse
momento que os TRTs paulista e gaúcho decidiram pela integração dos abonos, enquanto o
TRT do Rio de Janeiro optou pela sua exclusão.
O supracitado Tribunal da Primeira Região, no amplo caso dos securitários do Rio de
Janeiro, decidiu também sob as mesmas bases propostas pelo Tribunal Superior nos casos
anteriores. Isto nos leva a crer, que o TRT do Rio de Janeiro estava ciente do aumento que o
Tribunal Superior vinha concedendo à categoria em outras cidades, optando por manter a
decisão.
O diálogo entre ambas as instâncias mostrou-se bastante frutífero, quando o Tribunal
Superior do Trabalho, no dia 21 de julho de 1947, proferiu sua decisão colocando fim ao
longo conflito carioca, em que por 5 votos a 4 manteve a decisão do TRT, negando

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procedência ao recurso dos trabalhadores e mantendo a tabela da segunda instância, tão


questionada pela categoria securitária. Vejamos a tabela abaixo.
Tabela 2 – Reajuste dos securitários cariocas no TRT e TST
Salários (Cr$) TRT da 1ª Região e TST

Até 500,00 Aumento de 50%


De 501,00 a 801,00 Aumento de 40%
De 801,00 a 1000,00 Aumento de 30%

De 1001,00 a 1500,00 Aumento de 20%


De 1501,00 a 3000,00 Aumento de 15%
3001 em diante Aumento de 10%
Fonte: Recurso 7598/46 do Tribunal Superior do Trabalho
Os trabalhadores e a imprensa comunista revoltaram-se com a decisão do Tribunal
Superior em relação ao dissídio do Rio de Janeiro. Enquanto o Sindicato dos Securitários do
Rio de Janeiro encarava outro problema com a invasão de sua associação pela Junta
Governativa, criada pelo Ministério do Trabalho no governo Dutra para reprimir e intervir
nos sindicatos, o jornal Tribuna Popular não mediu palavras ao atacar a decisão do TST. Em
manchete intitulada Esbulhados os securitários pelo Tribunal Superior do Trabalho, o
periódico comunista apontou que o aumento concedido pelo Tribunal Regional, que já era
baixo, foi “reduzido praticamente a zero” na última corte.
Porém, os debates sobre o reajuste no TST que levaram a decisão final foram
também acirrados. Desta vez, destacou-se a figura do procurador-geral do trabalho Dorval
Lacerda, que empreendeu ampla defesa em prol dos securitários, propondo uma tabela mais
favorável à classe, em que garantia maior equidade nos aumentos, principalmente entre os
níveis salariais da categoria. Vejamos abaixo a tabela proposta pelo procurador.
Tabela 4- Reajuste dos securitários proposto por Dorval Lacerda
Salários (Cr$) TST

Até 500,00 Aumento de 50%


De 501,00 a 801,00 Aumento de 50%
De 801,00 a 1000,00 Aumento de 50%

De 1001,00 a 1500,00 Aumento de 40%


De 1500,00 a 2000,00 Aumento de 30%
De 2000,00 a 3001,00 Aumento de 25%
3001 em diante Aumento de 20%
Fonte: Recurso 7598/46 do Tribunal Superior do Trabalho

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Ao justificar seu parecer, Dorval Lacerda teve ocasião de afirmar ser o dissídio de
natureza nitidamente econômica, baseado nas situações de prosperidade crescente das
empresas de seguros e capitalização, enquanto os empregados “veem os seus parcos salários
cada vez mais reduzidos pela elevação desordenada do custo das utilidades, cuja ascensão
em um ano” segundo os seus cálculos, “baseados nas estatísticas oficiais e, principalmente
nos preços reais do mercado, ultrapassam os 43%”.
Em seguida, o revisor do caso carioca, o ministro Rômulo Cardim7, que substituía o
desembaraçado Ozeás Mota na representação dos empregadores no TST, defendia que os
lucros das seguradoras consistiam em um fato eventual, resultante das sobretaxas instituídas
obrigatoriamente pelo Instituto de Resseguros durante o período da Guerra.
Foram também excluídos, os cálculos para concessão do aumento dos abonos,
comissões de corretagem, gratificações sendo que “nenhum dos itens constantes dos
recursos dos securitários logrou provimento”. Entretanto, ganharia procedência o apelo que
foi objeto dos recursos dos seguradores: a assiduidade de 100%, à qual ficou condicionado o
direito ao aumento já concedido pelo TRT, que cumpre lembrar, se deu com os votos
vencidos de Antônio Carvalhal, cujo ponto de vista era o de não conceder nenhum tipo de
exigência de assiduidade, e o ministro Godoy Ilha, ambos representantes classistas dos
empregados.
Por fim, pude concluir, analisando todos esses números, que o TRT gaúcho foi a
instância mais favorável aos trabalhadores, assim como a proposta de Dorval Lacerda para o
TST. Entretanto, ficou bastante claro que o Tribunal Superior restringiu em muito as
conquistas trabalhistas: decidiu por uma tabela menor que a proposta nos tribunais regionais
e, como vamos discutir detalhadamente em seguida, eliminou a integração dos abonos e
impôs a cláusula de assiduidade integral como critério de aumento salarial.

Considerações finais
No terreno dos debates e dos discursos boa parte dos ministros do Tribunal
Superior do Trabalho defendiam o poder normativo por meio de um critério muito próximo
ao ponto de vista adotado pelo patrono da cláusula, Oliveira Vianna. A ideia de que as
circunstâncias econômicas desfavoráveis ao trabalhador brasileiro levariam inevitavelmente

7
Ozéas Mota teve uma carreira curta no TST. Entrou no dia 11 de setembro de 1946, quando o Tribunal
Superior do Trabalho ganhou esse nome e saiu menos de um ano depois, em 2 de abril de 1947, assumindo o
seu lugar o ministro Rômulo Gomes Cardim. Tal representante classistas, ao contrário de Ozéas Motta, teve
uma longa carreira na Justiça do Trabalho, perdurando no TST até 1969.

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à necessidade da Justiça do Trabalho em conceder aumentos salariais permeara boa parte


dos pontos de vista dos magistrados da corte superior.
Por outro lado, o Tribunal Superior do Trabalho, na prática, mostrou-se bastante
conservador principalmente em relação às decisões das instâncias inferiores, tanto no que se
refere às tabelas de aumento salarial, quanto à incorporação dos abonos aos salários e à
cláusula da assiduidade integral. Todavia, as sentenças mais contrárias aos trabalhadores não
aconteceram sem debates acalorados.
Outra consideração importante é que o Tribunal Superior do Trabalho deixou bem
claro seu ponto de vista sobre as greves: as paralisações, em geral, eram incompatíveis com
o recurso à Justiça do Trabalho por parte dos trabalhadores. Tal atitude imprimia a ideia de
que os aumentos salariais concedidos pelo Tribunal, por meio do poder normativo,
consistiam em um direito dos trabalhadores, desde que eles seguissem o trâmite legal
optando pelos dissídios no lugar das paralisações.
Os trabalhadores, aqui representados pelos securitários, utilizaram amplamente de
estratégias para a conquista de seu aumento salarial: tentaram a negociação direta com os
empregadores até esbarrarem na insistente intransigência patronal. Foi a partir daí, que
passaram a confrontar de forma aberta a classe patronal, decidindo por utilizar a opinião
pública a seu favor, por meio, sobretudo, da imprensa comunista. Elaboraram uma Comissão
representativa e foram diversas vezes ao parlamento, na tentativa de obter apoio dos
deputados favoráveis à sua causa.
Em seguida, os securitários vislumbraram conscientes a Justiça do Trabalho como
mais um capítulo vasto de luta, abrindo mão do recurso grevista em prol de uma confiança
publicamente declarada na última corte recursal daquela instituição: empenharam-se em
cortejar e elogiar abertamente o Tribunal Superior do Trabalho, conscientes de que ele
acabara de angariar autonomia e poder naquela conjuntura. Por meio da luta judicial, os
securitários não hesitaram em impetrar quantos recursos fossem possíveis, diante da
contraofensiva patronal que resistia ao máximo à concessão do famigerado reajuste salarial.
Por fim, conquistaram a sua tabela, embora não tão “justa” como imaginaram: perderam
conquistas em relação aos tribunais regionais e o Tribunal Superior não atingiu as
expectativas que nele foram depositadas pela categoria.
O poder normativo, por sua vez, mostrava a sua força e a Justiça do Trabalho, por
meio de amplas demandas de trabalhadores, passou a utilizá-lo amplamente nos períodos
posteriores. Resta, portanto, analisar como foram empenhados os conflitos de classes nos

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tribunais nos anos que se seguiram à consolidação do poder normativo e da própria JT como
instituição.

FONTES E PERIÓDICOS
Notas taquigráficas do Tribunal Superior do Trabalho. Anos de 1946 e 1947. Disponíveis na
Coordenadoria de Gestão Documental do TST.
Jornal Hoje. Ano de 1946. Disponível para consulta do Arquivo Edgard Leuenroth (AEL).
Jornal Diário de Notícias (RJ). Anos de 1946 e 1047 Disponível na Hemeroteca Digital da
Biblioteca Nacional.
Jornal Tribuna Popular (RJ). Ano de 1946. Disponível na Hemeroteca Digital da Biblioteca
Nacional.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
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política econômica no governo Dutra (1942-1948). História Econômica & História de
Empresas, v. VII, p. 99-136, 2004.
CAMPANINI, Andrei Felipe. Entre usos e abusos do direito de greve: Assembleia Constituinte
de 1946 e paralisação do trabalho. Dissertação (mestrado) – IFCH-Unicamp, Campinas, 2015
CASTELUCCI, Aldrin. Agripino Nazareth e o movimento operário da Primeira República.
Revista Brasileira de História. São Paulo, v. 32, nº 64, p. 77-99 – 2012.
COSTA, Hélio da. Em busca da memória : comissões de fábrica, partidos e sindicatos no pós-
guerra. São Paulo: Scritta, 1995.
DROPPA, Alisson. Direitos trabalhistas: legislação, justiça do trabalho e trabalhadores no Rio
Grande do Sul (1958-1964). Tese de doutorado – IFCH-Unicamp, 2015
LIMA, Edgard de Oliveira. Poder normativo da Justiça do Trabalho: art. 123 par 2, da
constituição. Revista Forense, Rio de Janeiro, v. 114, n. 533, p. 256-261, nov. 1947.
MENEZES, Geraldo Montedônio Bezerra de. Dissídios coletivos do trabalho e direito de greve:
doutrina, legislação e jurisprudência. Rio de Janeiro: Borsoi, 1957
MOREL, Regina de Moraes; GOMES, Ângela Maria de Castro; PESSANHA, Elina da Fonte.
Sem medo da utopia: Evaristo de Moraes Filho, arquiteto da sociologia e do Direito do
Trabalho no Brasil. São Paulo: Editora LTr, 2007.

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DISPUTAS TRABALHISTAS E PODER POLICIAL: UMA ANÁLISE DA


PARTICIPAÇÃO POLICIAL NOS PROCESSOS TRABALHISTAS NO
MUNICÍPIO DE NAZARÉ DA MATA-PE NA DÉCADA DE 70.

Gustavo Galvão Portela Melo1


Universidade Federal de Pernambuco
gustaavogalvao0@gmail.com
Resumo

Este artigo tem como um dos seus objetivos analisar a atuação da polícia nos
municípios encontrados na Zona da Mata Norte pernambucana e suas práticas em plena
ditadura civil-militar, mais precisamente nos anos de 1974 e 1975. Por meio de dois
processos trabalhistas pertencentes a extinta Junta de Conciliação e Julgamento de Nazaré da
Mata em Pernambuco, será possível perceber as relações envolvendo os trabalhadores rurais
desta região, seus patrões, e o papel da polícia local neste encadeamento. Constam nestes
processos alegações de práticas ilícitas praticadas pelos representantes da delegacia de
polícia de Nazaré da Mata e Timbaúba a fim de favorecer as partes detentoras de maior
poder dentro do espectro social da Zona da Mata pernambucana: os proprietários de rurais. É
importante perceber também como as autoridades policiais se aproveitavam do ambiente da
delegacia de polícia para realizar práticas coercitivas contra os trabalhadores.

1
Aluno do curso de bacharelado em História pela Universidade Federal de Pernambuco e bolsista do Programa
Memória e História do TRT 6ª região, coordenado pelo Prof. Dr. Antonio Torres Montenegro, professor titular
do Departamento de História da UFPE

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Palavras –Chave: Nazaré da Mata- Justiça do Trabalho- Delegacia de Polícia

Introdução

Antes de partir propriamente para a análise dos processos e seus desdobramentos,


parece necessário apresentar uma breve história da Justiça do Trabalho no Brasil, instituição
a que eram subordinadas as Juntas de Conciliação e Julgamento (JCJ). Em 1939, durante o
governo ditatorial de Getúlio Vargas, foi criado o aparato judiciário do trabalho dentro do
Departamento Federal de Justiça. Para conduzir a arbitragem dos conflitos laborais no
âmbito urbano e industrial, foi promulgada em 1943, a CLT. A estrutura da Justiça do
Trabalho tinha como sua primeira instância as JCJ, que por sua vez, eram subordinadas ao
Tribunal Regional. Entretanto, somente mais de 20 anos após a efetivação da CLT, é que os
trabalhadores rurais passaram a gozar dos mesmos direitos que os trabalhadores urbanos e
industriais tinham acesso. Ao assumir a presidência da república após a renúncia de Jânio
Quadros, João Goulart, ex-ministro do trabalho de Vargas, conseguiu com que em 1963 o
Estatuto do Trabalhador Rural (ETR) fosse aprovado no congresso. Foi o ETR que garantiu
aos trabalhadores rurais os direitos básicos que já estavam previstos na CLT para o âmbito
urbano. O Estatuto garantia o direito à carteira de trabalho; disposições sobre diária de
trabalho; duração dos contratos; e ao salário mínimo. A partir da promulgação do ETR, é
que os trabalhadores rurais vão efetivamente ter garantidos os direitos enquanto assalariados
e dispor de alguma força quanto à sua exploração de sua força de trabalho. O conceito de
“direito trabalhista” vai adentrando gradativamente no cotidiano do trabalhador, e mais
especificamente no do trabalhador rural, ainda mais massacrado por causa de suas condições
de trabalho particulares. Gradativa também, é a participação dos sindicatos no que diz
respeito à luta pela garantia dos direitos e acesso as políticas públicas, principalmente na
região de Nazaré da Mata-PE, onde se passam os processos a serem analisados a seguir.

Grande parte dos trabalhadores que vieram a lutar pelos seus direitos trabalhistas
desde 1963, eram sindicalizados, número que cresce exponencialmente no decorrer dos
anos. Apenas alguns meses após a promulgação do ETR, em 31 de março, ocorreu o golpe
militar que depôs o então presidente João Goulart. Instalados os militares no poder, estes
passaram a exercer um forte controle interventor sobre os sindicatos, incluindo os que
atuavam na zona canavieira. Entretanto, segundo o cientista político, Maybury-Lewis (1994
apud DABAT;Rogers 2014, p.331), com os sindicatos intatos, os trabalhadores rurais
podiam manter algum espaço de manobra frente aos seus empregadores. Atenta ainda para o

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caso específico do município de Nazaré da Mata, fundado pelo catequista Euclides do


Nascimento, onde descreve como os líderes sindicais adotaram uma abordagem pragmática
para proteger os direitos dos trabalhadores rurais no espaço da JCJ. Logo após o Golpe, com
o intuito de manter a “ordem” no campo, o governo militar criou a lei 4.330 sobre as greves,
cuja decretação dependia do Estado e controlado pelo Ministério do Trabalho e comunicada
com antecedência aos patrões e praticamente permitida apenas em casos de
descumprimentos claros da legislação trabalhista vigente

As Juntas de Conciliação e Julgamento atuaram com o intuito de mediar as relações


laborais nesta região, contribuindo, assim, para suprimir a exploração da força de trabalho
dos trabalhadores da região por seus empregadores. Debruçando-se sob um pequeno número
de processos oriundos da JCJ de Nazaré da Mata torna-se possível perceber diversos casos
em que trabalhadores sofrem agressões físicas ou morais por parte de funcionários ou até
mesmo proprietários dos engenhos da região. Estes casos tornam-se ainda mais notáveis se
postos em comparação com outras regiões pernambucanas.

Os processos a serem apresentados a seguir, além de servirem como exemplo destas


questões, expõem como o poder policial, na figura das Delegacias de Polícia se mostravam
negligentes, e até mesmo defendiam os interesses dos proprietários rurais, colaborando para
a manutenção da exploração da força de trabalho e consequentemente do status-quo social.
Por questões metodológicas e epistemológicas, os dois processos serão apresentados de
forma expositiva para em seguida serem analisados de forma mais detalhada.

1. Processo 295/74: Lourival Severino Mendes X Engenho Jussara Grande


Lourival Severino Mendes, brasileiro, casado, trabalhador rural, residente no
município de Timbaúba-PE, apresentou uma reclamação trabalhista contra o Engenho
Jussara Grande, estabelecido no mesmo município. O reclamante alegou na petição inicial
em 23 de dezembro de 1974, que foi admitido nos serviços da reclamada em junho de 1964,
porém foi demitido sem que lhe fosse apresentado justa causa. Também não recebeu
diversos direitos trabalhistas em dezembro de 1974. Por isto, veio a reclamar Indenização,
aviso prévio, férias, prejulgado nº 20, horas extras, repouso remunerado e diferença salarial.

Em audiência ocorrida em 28 de janeiro de 1975, o advogado do reclamado afirmou


que Lourival Mendes não teria sido demitido, e sim, cometido falta grave em dezembro de
1973. Pelo fato de este ser empregado estável propôs inquérito contra o reclamante, não
tendo havido, portanto, demissão, mas, simplesmente suspensão para propositura do referido

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inquérito. Por isto, requereu à JCJ de Nazaré da Mata-PE que a reclamação interposta fosse
considerada improcedente.

No inquérito interposto, Antônio Acácio de Melo, arrendatário do engenho


reclamado, acusou Lourival Mendes de ter lhe furtado. Afirmou que o reclamante, em
virtude de exercer as funções de feitor, aumentava em suas anotações, os números da
produção de alguns cortadores de cana do engenho e em contrapartida estaria recebendo
cigarros, aguardente, dinheiro, etc. Ao notar que estava sendo furtado e suspender “Louro”,
como era conhecido Lourival Mendes, o queixoso admirou-se com a saída de 18
trabalhadores do engenho que não quiseram trabalhar com o novo feitor. Desta forma,
Antônio Acácio de Melo levou um destes trabalhadores, de nome José Galdino, ao Sindicato
dos Trabalhadores Rurais, pois este seria um dos trabalhadores que estaria se beneficiando
das supostas alterações na contagem da produção. José Galdino teria confirmado ao
presidente do referido sindicato que Lourival Mendes anotava o dobro dos feixes de cana
que ele realmente cortava e em troca teria que dar ao feitor garrafas de aguardente, cigarros
e arrobas de cará. O presidente do sindicato, por sua vez, teria dito que o caso em questão
era pertinente a Delegacia de Polícia, para onde o queixoso prontamente se dirigiu em
seguida.

Chegando na Delegacia de Polícia, Antônio Acácio de Melo requereu a apresentação


de três testemunhas para corroborar com sua versão. Eram elas: Manoel Vitor de Miranda,
Severino Bernardo de Pontes e Severino Roberto da Silva, todos trabalhadores rurais recém
contratados pelo Engenho Jussara Grande. Todos estes prestaram depoimentos semelhantes,
afirmando que Lourival aumentava, em suas anotações, a produção de quase todos os
trabalhadores do Engenho Jussara Grande, em especial a de José Galdino, o maior
beneficiado. No seu depoimento na Delegacia de Timbaúba, o acusado Lourival Mendes
teria admitido que se enganou na contagem dos feixes de cana, entretanto, acreditava que
alguns trabalhadores desmanchavam a contagem da cana, para lhe prejudicar. Continuou seu
depoimento afirmando que se recordava “perfeitamente” de ter adulterado a contagem da
cana do Sr. José Galdino, apesar de não saber como isso aconteceu, sabendo “apenas que o
sr. Antônio de Melo estava sendo roubado”. Esclareceu que nunca manteve nenhuma
transação com nenhum trabalhador nesse sentido, tendo sido oferecido e recusado apenas
uma vez uma carteira de cigarro por José Galdino, que teria desaparecido após a descoberta
do furto pelo arrendatário do engenho. “Louro” também teria confirmado viver embriagado.
E após a sua suspensão a contagem dos feixes de cana teria voltado ao normal.

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José Galdino, em depoimento prestado na mesma delegacia, afirmou que desde que
começou a trabalhar no Engenho Jussara Grande, vinha tendo sua produção aumentada por
Lourival Mendes, sem que soubesse o motivo deste último realizar tal ação. E que as vezes
que o acusado pedia para ele trazer algo, mandava também o dinheiro para fazer o
pagamento da mercadoria. Após deixar de trabalhar no Engenho Jussara Grande, José
Galdino afirmou ter ido cortar cana no Engenho Sítio Novo, no município de Aliança-PE.

Em audiência ocorrida em 25 de março de 1975, o advogado do reclamante, aduziu a


defesa afirmando que o inquérito deveria ser julgado improcedente, visto que as alegações
do requerente são infundadas. Alegou que o empreiteiro mandava Lourival pesar e contar as
canas cortadas pelos trabalhadores. Após realizar este serviço, o trabalhador conhecido
como Galdino descruzava as canas já contadas, complicando a contabilidade a ser feita por
Lourival. A juíza substituta da JCJ de Nazaré, Drª Zélia Martins Alves, determinou o
sobrestamento do feito, para aguardar a solução do inquérito interposto pelo arrendatário do
engenho.

Após a análise do inquérito, o juiz da comarca de Timbaúba, Dr. Sebastião Romildo


considerou que a acusação era curiosa, pois o acusado somente recebia como compensação
uma “cachaça ordinária” pela quantia de Cr$ 4,00. Além disso não concebia que somente
após 30 anos de serviços prestados exercendo a função de feitor no Engenho Jussara Grande,
Lourival Mendes seria implicado como estelionatário. O juiz concluiu a decisão com a
assertiva de que “Não era nos canaviais do Nordeste que poderia surgir um novo Robin
Hood”. Decidiu, então, que o inquérito deveria ser julgado improcedente, por considerar que
as provas apresentadas não eram suficientes para condenação do acusado.

Em nova audiência na JCJ de Nazaré, em junho de 1978, Lourival Mendes afirmou


que nunca recebeu “agrado” dos trabalhadores, e que só tomou conhecimento de que estava
sendo acusado de receber propina depois que o reclamado apresentou queixa contra ele e
que somente ingeria bebida alcóolica nos domingos, nunca tendo se apresentado embriagado
no trabalho. Declarou ainda, que acreditava que o proprietário do engenho o tenha acusado
de aumentar a produção dos trabalhadores para poder demiti-lo, pois ele era trabalhador
antigo. E após a propositura do inquérito policial, o reclamado teria lhe oferecido Cr$
1.000,00 (mil cruzeiros) para rescindir seu contrato com o engenho. Ao chegar no sindicato
para prestar seu depoimento, Lourival se deparou com cinco trabalhadores de fora da cidade
de Nazaré, os quais tinham sido chamados pelo reclamado para depor contra ele, reclamante,
com promessas de recompensas para as testemunhas. No sindicato lhe foi entregue um papel
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para que ele assinasse, porém recusou-se a fazê-lo por não conhecer o conteúdo do
documento. Não confirmou também, o conteúdo do seu depoimento prestado na Delegacia
de Polícia de Timbaúba-PE. Afirmou que ao chegar na delegacia para prestar o depoimento,
este já estava pronto e somente o assinou, sem saber o que continha, a pedido do escrivão da
referida delegacia.

Em audiência ocorrida no dia 18 de julho de 1978, as partes apresentaram


testemunhas. As testemunhas do reclamado prestaram depoimento alegando, entre outras
coisas anteriormente relatadas, que Lourival Mendes tinha comprado uma espingarda a um
trabalhador de fora da região, de nome José Vicente, embora nunca tivessem chegado a ver
tal arma. Como não tinha dinheiro para pagar tal arma, o acusado teria feito um acordo para
também aumentar a produção deste trabalhador. Por outro lado, as testemunhas apresentadas
pelo reclamante afirmaram que o mesmo não tinha aumentado suas produções, e que ficaram
sabendo da aquisição da arma somente na data desta audiência, além de terem afirmado que
“Louro” gostava de beber, porém nunca o viram embriagado no serviço. Uma das
testemunhas do reclamante, Heleno Antonio da Silva, afirmou que teria deixado de trabalhar
no Engenho Jussara Grande, para não “levar uma surra da polícia”, pois aconteceu um caso
com ele no engenho e o proprietário do engenho mandou a polícia cercar sua casa.

A JCJ de Nazaré da Mata decidiu por considerar a reclamação procedente em parte,


por considerar que o reclamante descumpriu com suas obrigações como empregado, a fim de
receber benesses dos empregados. Julgou que como o reclamante tinha a função de realizar
as anotações, não haveria razão para o mesmo alegar que não sabia o que continha no
depoimento prestado na polícia. Condenou, assim, o reclamado a pagar ao reclamante
somente o valor referente a férias e repouso remunerado.

Não concordando com a decisão proferida na JCJ, Lourival Mendes interpôs, por
meio de seu advogado, recurso no TRT da 6ª região, sob o argumento de que o trabalhador
rural em questão já encontrou o suposto depoimento dado na delegacia de polícia pronto.
Alegou para os juízes do egrégio tribunal regional que “o lógico seria estudar os
depoimentos prestados no Judiciário, onde o poder de coação não existe, onde um pequeno
trabalhador braçal, lutando contra um grande proprietário rural, fica mais tranquilo”. Para
embasar o seu argumento, o advogado do reclamado apresentou na contestação do recurso
interposto no TRT da 6ª região, um termo de acordo coletivo celebrado entre o Engenho
Jussara Grande e dez empregados do mesmo engenho, datado do dia 10 de dezembro de

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1972 que deveria ter sido apresentado na instrução, porém teria sido extraviado dos autos do
inquérito policial e somente em agosto de 1978 teria sido reencontrado.

Os juízes do TRT da 6ª região, seguindo o parecer da Procuradoria Regional decide


por negar o recurso do requerente e dar provimento parcial do recurso interposto pelo
reclamado, excluindo o mesmo do pagamento referente ao repouso remunerado. Entretanto,
Lourival mendes apresentou recurso de revista ao TST, por discordar da decisão proferida
pela jurisdição inferior. Recurso que é negado pelos juízes do TST.

Após realizado o cálculo de liquidação, o reclamado realiza o depósito no valor de Cr$


5.274,00 (cinco mil duzentos e setenta e quatro cruzeiros) em favor do reclamante.

2. Processo 117/75: Severino João da Silva x Engenho Lagoa Dantas


Severino João da Silva, brasileiro, casado, trabalhador rural, residente no município
de Nazaré da Mata-PE, apresentou reclamação trabalhista em 19 de maio de 1975, contra o
engenho Lagoa Dantas, onde era residente.

O reclamante alegou na petição inicial, que foi admitido nos serviços do referido
engenho em maio de 1958, exercendo qualquer serviço exigido pelo empregador, desde que
dentro de suas capacidades físicas. Entretanto, após se transferir para um outro sítio de
propriedade do reclamado, procurou, em 15 de maio de 1975, seu advogado para que este
entrasse em entendimento com o proprietário do engenho em relação as fruteiras que havia
deixado no sítio onde residia anteriormente. Ao levar a carta escrita pelo advogado na casa
do administrador a fim de pleitear uma solução amigável para o imbróglio, foi vítima de
maus tratos por parte do administrador do engenho, recebendo palavras injuriosas da parte
deste. Se sentindo desmoralizado, achou-se sem condições de continuar trabalhando para o
referido engenho, tendo inclusive prestado queixa na Delegacia de polícia de Nazaré da
Mata, tendo sofrido ameaça de morte por parte do administrador. Por isto, veio a reclamar na
Junta de Conciliação e Julgamento de Nazaré da Mata-PE, indenização por demissão
indireta ou salários vencidos e vincendos, caso a Junta considerasse a reclamação interposta.

Em audiência ocorrida no dia 17 de julho de 1975, o advogado do reclamado, em sua


contestação, afirmou que o fato alegado pelo reclamante na inicial nunca teria acontecido na
propriedade do seu representado, visto que este último nunca teve conhecimento do
ocorrido. Alegou ainda, que estranhara a reclamação interposta, visto que Severino João da

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Silva já havia realizado um acordo com o reclamado a respeito da mudança de sítio, tendo o
primeiro recebido uma quantia “justa”. Negou, ainda, qualquer intenção em desligar o
reclamante de seus serviços, tendo inclusive, o convidado a retornar para o trabalho,
assegurando uma tranquila permanência do mesmo.

Em nova audiência ocorrida em 2 de setembro de 1975, Severino João da Silva


afirmou em interrogatório, que ao entregar a carta do seu advogado na casa pertencente ao
administrador do engenho, chamado popularmente de “Sr. Valentinho”, foi maltratado pelo
mesmo, tendo este, inclusive o ameaçado com um revólver. Ao ver o administrado pôr a
mão no revólver, saiu correndo para falar com o advogado do sindicato, o qual o
encaminhou para a delegacia de polícia, onde prestou queixa. Ao chegar na delegacia de
Nazaré da Mata, o administrador do engenho teria sido aconselhado pelo delegado a tratar
bem os trabalhadores.

As partes indicaram testemunhas que apresentaram depoimentos conflitantes em defesa de


sua respectiva parte. Severino João da Silva apresentou três testemunhas. O escritor das
folhas de pagamento do engenho, Sr. Max José de Araújo, afirmou que o reclamante não foi
ofendido moralmente, nem tampouco ameaçado com o revólver pelo “Sr. Valentinho”. José
Francisco da Silva, trabalhador rural, afirmou que o administrador do engenho se recusou a
receber a carta do advogado do reclamante, proferindo palavras ofensivas a este, porém não
viu o “Sr. Valentinho” ameaçar Severino João com o revólver, embora o referido
administrador ande portando arma no serviço. Depoimento semelhante ao de José Francisco,
foi proferido por Alfredo Miguel dos Santos, também trabalhador rural.

O reclamado também indicou três testemunhas para prestar depoimento. Severino


Manuel dos Santos, cabo rural, antes de prestar depoimento, foi alvo de contradita por parte
do advogado do reclamante, pois o depoente teria propalado que tinha interesse em defender
o proprietário do engenho e abordou o Sr. Max José de Araújo, quando este se retirara da
Junta de Nazaré da Mata, tendo sido impedido pelo oficial de justiça. Aluisio José da Silva,
tratorista do engenho Lagoa Dantas e José Pereira Lopes, barraqueiro do engenho afirmaram
não ter visto o administrador do engenho proferir palavras ofensivas ao reclamante e que não
sabiam informar se o “Sr. Valentinho” portava arma no serviço.

A Delegacia de Polícia de Nazaré da Mata apresentou documento em que certificava


que não existia nenhum registro de queixa prestada contra o administrador do Engenho.

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Houve, “segundo investigações colhidas” apenas o comparecimento do Sr. Valentin na


referida instituição policial para ser resolvido um caso de intimação, tendo sido tudo
resolvido e acordado no presente momento. Por outro lado, o Dr. José Gonçalves Moisés,
advogado de Severino João da Silva, apresentou documento alegando que os documentos
oriundos da delegacia de Polícia de Nazaré da Mata, não seriam “merecedores de crédito,
uma vez que ali são fabricados documentos e a verdade sempre é omitida” e para corroborar
esta alegação, apresentou documentos referentes a um outro caso envolvendo a delegacia de
polícia de Nazaré da Mata.

O documento constava a declaração de Antonio Honorio da Silva, mecânico de 65


anos de idade, a respeito de um processo instaurado contra José Francisco da Silva,
motorista profissional, na época com 28 anos de idade. José Francisco da Silva teria
causado um acidente automobilístico em que tiveram vítimas fatais e Anotnio Honorio foi
contatado pela Delegacia de Polícia de Nazaré da Mata para realizar a perícia dos
automóveis envolvidos neste acidente. Antonio Honorio realizou a perícia, respondendo
todos os quesitos questionados, exceto os itens 6 e 7, que diziam respeito a negligência ou
imprudência do motorista acusado e em seguida assinou o documento sem atentar para
qualquer responsabilidade criminal, pois o documento era oriundo da delegacia de polícia de
Nazaré da Mata. O outro contatado pela Delegacia de Nazaré foi Antonio Prudencio Neto,
ajudante de mecânico. Este por sua vez, afirmou nem ter chegado a examinar os automóveis
envolvidos no acidente, e que somente o escrivão da delegacia apresentou os laudos da
perícia já preenchidos para que ele assinasse. E assim o fez, pois foi informado pelo policial
que Antonio Honorio já tinha realizado a perícia.

Em 07 de Outubro de 1975, a Juíza presidente da JCJ de Nazaré da Mata, Drª Ana


Maria Schuler Gomes, apresentou sua decisão quanto ao caso. A juíza considerou que as
provas testemunhais apresentadas se apresentavam bastante contraditórias quanto ao
ocorrido, principalmente no que dizia respeito à ofensa moral sofrida pelo reclamante. Por
considerar que as provas testemunhais apresentadas pelo reclamante foram mais
convincentes em seus depoimentos. Pois duas das três testemunhas apresentadas pelo
reclamante eram empregados estáveis do engenho reclamado e prestaram depoimentos mais
homogêneos, pois afirmavam ter visto a ofensa moral proferida pelo Sr.Valentim, porém não
chegaram a perceber o administrado ameaçando Severino João. Contrariando o voto do
Vogal dos empregadores, a JCJ de Nazaré decidiu por julgar a reclamação procedente,
condenando o Engenho Lagoa Dantas ao pagamento de indenização em dobro, prejulgado nº

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20, 5/12 do 13º salário de 1975, férias simples e em dobro, totalizando a quantia de
Cr$14.789,40, o que equivalia a cerca de 39 salários mínimos da época. Após a decisão, as
partes entram em acordo de conciliação a fim de parcelar o pagamento da condenação e
Severino João desocupar o sítio em que residia no Engenho.

3. Uma análise das Disputas


Os processos trabalhistas aqui selecionados e expostos para análise, ambos
pertencentes à Junta de Conciliação e Julgamento da cidade de Nazaré da Mata-PE, porém
de cidades distintas. O primeiro se concentra no município de Timbaúba-PE cerca de 28 km
de distância em linha reta para o município onde se encontra a JCJ e onde se deu o segundo
processo apresentado. Analisar estes processos, além de fomentar uma discussão acerca das
relações de trabalho na zona da mata pernambucana, permite compreender de uma forma
mais detalhada a relação tricotômica que envolve a Justiça do Trabalho, as atividades
policiais locais e a relação envolvendo patrão e empregado; tudo isto durante o período do
regime civil-militar (1964-1985).

No que diz respeito a relação do trabalhador rural com a polícia local, os processos
apresentam empreitadas diferentes. Enquanto no processo 0295/74, Lourival Mendes é
acusado de ter furtado o engenho, adulterando a contagem das canas cortadas pelos
trabalhadores, no processo 0117/75 Severino João busca a delegacia de polícia por temer
pela sua vida, após ser ameaçado pelo administrador do engenho. No entanto, as práticas
policiais nas delegacias de polícia de Timbaúba e Nazaré da Mata, respectivamente,
atendiam aos interesses dos proprietários de engenho, que eram na prática quem
desmandavam na região, como pode-se perceber em depoimento do proprietário do engenho
Itamatamirim, Constantino Carneiro Maranhão, no documentário “Brazil- The Troubled
Land”2 (1964), dirigido por Helen Jean Rogers. O cientista político Peter Houtzager (apud
DABAT;Rogers 2014, p.331) a respeito do papel dos sindicatos frente as atividades do
regime civil-militar, atentou para a “abertura aparente da ditadura em relação a uma aliança
com os grandes proprietários fundiários” (DABAT; Rogers, 2014).

Quanto ao caso de Lourival Mendes, é bastante curiosa a assertiva do advogado do


reclamante ao recorrer da decisão proferida na junta de Nazaré. Após seu representado
afirmar que o depoimento prestado na delegacia já estava pronto quando chegou no

2
Disponível em <https://www.youtube.com/watch?v=jWq4__898mg&t=1036s>. Acesso em 18/06/2017

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estabelecimento policial, Mozart Borba Neves afirma que “o lógico seria estudar os
depoimentos prestados no Judiciário, onde o poder de coação não existe, onde um pequeno
trabalhador braçal, lutando contra um grande proprietário rural, fica mais tranquilo”. É
perceptível a mudança no discurso do trabalhador rural se forem colocados lado-a-lado os
depoimentos prestados na Delegacia de Polícia e em seguida no âmbito da Justiça do
Trabalho. Não somente em termos do conteúdo prestado, mas principalmente no tom
narrativo que é empregado. Enquanto no depoimento prestado no ambiente coercitivo da
polícia local, Lourival Mendes afirmou lembrar “perfeitamente” de ter adulterado a
contagem, sem, contudo, lembrar como teria feito isso; no depoimento na Justiça do
Trabalho; Lourival Mendes se mostra mais convicto de sua situação ao apresentar a tese de
que o proprietário do engenho tenha lhe acusado de improbidade, para poder demiti-lo, pois
era trabalhador estável. Elina Pessanha e Regina Morel (apud MONTENEGRO, 2014,
p.131) destacam que a justiça do trabalho pode ser considerada um dos poucos espaços de
defesa dos direitos sociais durante a vigência do regime instalado em 1964, o que vem a
corroborar com a tese de alteração do discurso quando proferido sob a mediação da Justiça
do trabalho. Alessandro Portelli, ao comentar a teoria de Jan Vansina de que “Um
testemunho é a soma de todas as afirmações a respeito de um mesmo assunto” afirma que:

Essas afirmações também podem se modificar e se contradizer com o


tempo: quem trabalha com as fontes orais tem a vivência para saber que as
narrações possuem um alto grau de mutabilidade e instabilidade. Isso deriva
sobretudo do fato de que a memória não é um ato imediato e binário de retirada de
informações já formadas, mas num processo múltiplo de produção gradual de
significados, influenciado pelo desenvolvimento do sujeito, pelo interlocutor, pelas
condições do ambiente. (PORTELLI, 2010, P.72)
Decerto, é improvável que se tenha plena certeza de uma ou outra versão a respeito
do ato de improbidade que causou a demissão de “Louro”. Porém, é cognoscível a influência
dos ambientes policial e da Justiça do Trabalho nos depoimentos prestados em ambos os
locais. Enquanto, o primeiro se apresenta como um ambiente coercitivo, o segundo, pela
mitigação de seus agentes, dá ao trabalhador rural, muitas vezes analfabeto, uma sensação
pelo menos momentânea, de um emparelhamento de direitos.

Os casos presentes nos documentos do judiciário além de se apresentarem como


embates entre as partes envolvidas (aqui Reclamante X Reclamado), são também, uma
disputa entre a oralidade e a escrita; entre o depoimento e o documento. Para a Juíza Drª Ana
Maria Schuler, que julgou a decisão na JCJ de Nazaré o processo que envolvia Lourival
Mendes, pouco importou se o trabalhador rural, em situação pouco favorável, prestou
depoimento num ambiente coercitivo, ou ainda como afirmara: que seu depoimento já estava

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pronto ao chegar na delegacia. A referida juíza, certamente por questões teóricas próprias do
Direito e da prática jurídica, teve que se ater aos documentos, mesmo que tivessem sido
“fabricados” na delegacia de polícia, como alegado pelo advogado de Severino João, no
processo 117/75.

Sobre o múnus do juiz a sua diferença para o historiador, Alessandro Portelli, afirma
que:

Ao historiador oral interessam tanto os eventos materiais como os mentais


(crenças, imaginário, mentalidade), enquanto o juiz deve ater-se a eventos
concretos e comportamentos materiais. [...] A exatidão factual é realmente um
critério de validade do testemunho judiciário, enquanto em história oral os relatos
errados, de segunda mão, têm muita utilidade (exatamente porque os distinguimos
daqueles verificáveis factualmente). Lança-se mão do que está implícito; da
análise formal do relato enquanto construção verbal. (PORTELLI, 2010, P.74)

Esta teoria dispõe aos documentos do judiciário, e mais especificamente aos da


Justiça do Trabalho no Brasil uma gama imensa de caminhos a serem traçados pelo
historiador que venha a se debruçar sobre esses vestígios. O regime de exceção que se
apresentou no Brasil entre 1964 e 1985 e suas características que se mostraram presentes no
Nordeste e mais especificamente aqui trabalhado, no estado de Pernambuco, permite ao
pesquisador, seja de qualquer área, analisar as relações sociais na região; a atuação dos
sindicatos; uma história da vida privada, relatada pelos depoimentos e penhora de bens;
ainda é possível encontrar relatos de história oral, apesar da demografia da região na época
fazer com que a expectativa de vida dos envolvidos seja relativamente baixa. Tudo isto vem
contribuindo para um movimento de crescimento que os historiadores vêm atribuindo aos
arquivos judiciais, principalmente no Brasil, uma grande importância social e
historiográfica, onde retomam os trabalhadores como protagonistas das narrativas.

4. Referências Bibliográficas
• Abreu e LIMA, Maria do Socorro de. Construindo o Sindicalismo Rural:
Lutas, Partidos, Projetos. 2ª. ed. Recife: Editora Universitária da UFPE, 2012.
• MONTENEGRO, Torres, A. Trabalhadores Rurais e Justiça do Trabalho em
Tempos de Regime Civil-Militar. In. A Justiça do Trabalho e sua História: Os
direitos dos trabalhadores no Brasil. Org. Ângela de Castro Gomes, Fernando
Teixeira da Silva. 2013

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• PORTELLI, Alessandro. Ensaios de história oral. São Paulo: Letra e Voz,


2010. 258p.
• DABAT, C; Rogers, T. (2014). Uma peculiaridade do trabalho nesta região:
A voz dos trabalhadores nos arquivos da Justiça do Trabalho na Universidade
Federal de Pernambuco. Revista Mundos do Trabalho, Vol.6, núm.12, p.327-
342, 2014.

AS FONTES JUDICIAIS E O GOLPE CIVIL MILITAR EM PERNAMBUCO:


POSSÍVEIS (RE)ABORDAGENS
Raphael Henrique Roma Correia
Mestre em História (PPGH/UFPB)
E-mail: raphaelromaczr@gmail.com.

A década de 2010, precisamente o ano de 2014, faz completar o quinquagésimo


aniversário do golpe civil-militar de 1964. Quando, em 2004, Carlos Fico analisou a
produção acadêmica sobre a Ditadura Militar no Brasil ele atestou que havia certa ausência
de estudos propriamente históricos acerca deste período, predominando, apesar disso,
estudos com autoria de cientistas políticos e sociólogos (FICO, 2004). Contudo,
recentemente a produção historiográfica já demonstrou, a partir de diversas oportunidades, o
quanto os 21 anos de governos militares possuem um potencial fecundo e múltiplo ao ofício
do historiador.
Levando em conta a divulgação e apreciação destes novos trabalhos historiográficos
sobre o período em questão, percebe-se que há um certo consenso relacionado com a
viabilidade do golpe de estado em 1964, pois evidenciaram-se as contribuições de parcela
considerável da população civil brasileira que possibilitaram ou tornaram menos dificultosas
as manobras políticas e institucionais de estabelecimento do regime autoritário arquitetado
pelos militares. Um dos desdobramentos desta perspectiva é a utilização do termo “civil-

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militar” para representar a participação direta de civis na articulação, execução e


manutenção do golpe de estado, fatos analisados em pesquisas acadêmicas recentes1. Sendo
cada vez mais difícil negar a célebre e polêmica afirmativa de Daniel Aarão, em que o autor
adverte, aos que atribuem apenas aos militares a destituição do governo de João Goulart, que
o golpe de estado de 1964 “foi um processo de construção histórico-social, não um acidente
de percurso. Foi processada pelos brasileiros, não imposta, ou inventada por marcianos”
(REIS FILHO, 2004, p. 50).
Apesar disso, é fundamental que se deixe evidente que apesar da participação dos
civis para “legitimação” do golpe, na prática, isto é, na aplicação do poder, sobressaiu-se a
atuação dos militares, até porque os grandes prejudicados pela instituição do regime, após
golpe de estado, foram justamente a maioria dos brasileiros, os que não gozavam das
vantagens do status quo estabelecido e que procurou ser mantido. Isto é, mesmo
reconhecendo o apoio de parcela significativa da opinão pública aos militares na fase inicial,
influenciados em grande medida pelo clima de medo espalhado, entre outros agentes, pela
imprensa, é preciso conferir a execução jurídico-administrativa e o processamento do poder
instituído aos representantes das forças armadas (FICO, 2014).
Admite-se, dessa forma, que há uma distinção entre o momento de destituição do
governo democrático e a ditadura militar que se seguiu. Ao longo do texto serão
apresentadas situações que evidenciam tal separação.2 Por exemplo, o historiador
pernambucano Antonio Torres Montenegro, que, aliás, vem coordenando, através da linha
de pesquisa de Cultura e Memória da pós graduação em História da UFPE, há tempos uma
série de análises relevantes sobre Pernambuco no século XX, adverte que:

A luta dos trabalhadores por direito à cidadania era transformada por grande parte
da imprensa e diversas instituições da sociedade civil em um grande medo, em um
grande perigo que ameaçava a todos. Assim de forma gradativa eram elaboradas as
condições que justificariam a ruptura do pacto constitucional. (MONTENEGRO,
2008, p. 24)

Assim, como pode-se encontrar em alguns títulos, editoriais e notícias destacadas em


meados nos anos 1950 e 1960 na imprensa nacional, e consequentemente pernambucana,

1
Ver: REIS FILHO, Daniel Aarão. Ditadura militar, esquerdas e sociedade. Rio de Janeiro: Zahar, 2000;
BANDEIRA, Luiz Alberto Moniz. O governo João Goulart: as lutas sociais no Brasil (1961-1964). Rio de
Janeiro: Ed. UnB, 2001. BARRETO, Túlio V; FERREIRA, Laurindo. Na trilha do Golpe: 1964 revisitado
(orgs). Recife: Fundaj; Ed. Massangana, 2004. DREIFUSS, René A. 1964, a conquista do Estado. Petrópolis:
Vozes, 1981;
2
Para uma argumentação mais elaborada sobre essa questão, consultar, por exemplo: FICO, Carlos. O golpe de
64: momentos decisivos. Rio de Janeiro: Editora FGV, 2014; NAPOLITANO, Marcos. 1964: História do
Regime Militar Brasileiro. São Paulo: Contexto, 2015.

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atualmente uma onda de manifestações ocupa o noticíario jornalístico e as conversas


familiares e de amigos. “Intervenção militar, já!” “Não à cubanização do Brasil!”, “Fora
comunismo!”, entre outras, são mensagens que estavam constantemente estampadas,
também, nos cartazes e faixas dos protestos organizados pelo impeachment da presidenta
Dilma Rousseff nos primeiros meses de 2015. Sobretudo, destaco os elementos de matizes
anticomunistas e a exaltação aos governos militares sinalizados nestes cartazes.
Podemos realizar consideraçoes acerca destas atitudes a partir do que François
Hartog adverte quando reflete sobre a contemporaneidade, tomando como ponto inicial o
século XX, e avalia que, progressivamente, instaura-se nas sociedades ocidentais um regime
hegemônico de historicidade diferente dos anteriores, ou seja, o presentismo, o qual, contra
a celebração o passado e a ideia futurista de progresso, proclama o presente como único
tempo possível, negando qualquer referência ao passado ou ao porvir, para Hartog:

[...]. Passou-se, portanto, em nossa relação de tempo, do futurismo para o


presentismo: para um presente que é, para si mesmo, seu próprio horizonte. Sem
futuro e sem passado, ou gerando, quase diariamente, o passado e o futuro de que
necessita cotidianamente. O slogan “Tudo, imediatamente!”, pichado nos muros de
Paris, em 68, é um bom exemplo dessa “hipertrofia do presente” (HARTOG, 2013,
p. 11- 13).

Presumivelmente, neste sentido, os episódios sociopolíticos dos anos 60 do século


XX brasileiro permanecem eruptivos em nosso cotidiano nacional. No entanto, outro
exemplo contemporâneo, como contraponto aos anteriores, revela que tal imediatismo, ou
presentismo hartogiano, obscurece as versões sobre esse passado, como quando houve a
publicação, em 2015 também, do relatório final da Comissão Nacional da Verdade que visa
aos registros e ao esclarecimento das circunstâncias dos casos de graves violações de
direitos humanos praticadas, principalmente, durante o período da Ditadura Militar.3
Contudo, os esforços, empreendidos por dois anos de catalogação de testemunhos,
informações, dados e documentos sobre torturas e desaparecimentos, amargam a ausência
dos desdobramentos pretendidos. A opinião pública, no geral, parece não ter se comovido
com os relatos dos perseguidos políticos e clamam pela volta dos militares ao poder.
Sob este prisma, não posso deixar ausente estas características contemporâneas do
referido tema neste texto. Atualmente encontro-me na qualidade de discente do curso de
mestrado pelo Programa de Pós-Graduação em História da Universidade Federal da Paraíba
(PPGH/UFPB). Como resultado destas atividades, elabora-se um artigo que terá por alvo a

3
Oficialmente os dados contidos no relatório abrangem as violações dos Direitos Humanos entre os anos de
1946 e 1988, apesar de ser evidente a ênfase dada às ações dos governos militares. Ver: Brasil. Comissão
Nacional da Verdade. Relatório / Comissão Nacional da Verdade. – Brasilia: CNV, 2014.

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problematização das prisões políticas, especialmente as “preventivas”, efetuadas em


Pernambuco no ano de 1964, isto é, imediatamente após a oficialização do golpe civil-
militar.
Tal pesquisa busca contribuir com o debate historiográfico da produção recente sobre
a ditadura militar no Brasil, ou seja, a partir da “Nova História” acerca destes
acontecimentos, em que a maioria das problemáticas ocupa-se com a reconstrução dos fatos
históricos demonstrando suas passividades de compreensão e explicação (para além das
determinações político-econômicas e do peso as estruturas), entre outras coisas, preocupo-
me com os anônimos, o cotidiano dos indivíduos, os seus relatos de memórias e suas
trajetórias de vida.
Não há, entretanto, como negar a existência da diversidade considerável de estudos
sobre os perseguidos políticos, os presos e torturados, os desaparecidos e os exilados do
Brasil. Contudo, nas leituras iniciais da historiografia do período, percebe-se a
predominância de atenção às ações pós AI-5. Mas, ao invés de reexaminar a biografia dos
grandes líderes, uma possibilidade é o estudo das trajetórias de vida (BORDIEU, 1996),
condicionadas a esta conjuntura, como a dos cerca de 300 detidos4 entre os primeiros oito
meses de governo ditatorial, abril a dezembro, no 1964 em Pernambuco pela polícia política
(DOPS) e forças militares.5 Acreditando haver muito ainda a ser analisado sobre estas
detenções, considero relevante pesquisas que procurem estabelecer hipóteses e
esclarecimentos contemporâneos, aliados à produção historiográfica recente, sobre a
repressão desenvolvida pelos militares, suas instituições, suas práticas e seus discursos
legitimadores.
Os métodos do fazer historiográfico constituem-se numa dimensão tão relevante
quanto os próprios acontecimentos para o historiador. Representam, também, um objeto de
estudo da historiografia, sobretudo, devido ao debate gestado a partir do positivismo do
século XIX acerca da validade dos conhecimentos elaborados pelas denominadas ciências
humanas, em contraponto às valorizadas ciências exatas. Considero importante registrar isto,
pois é necessário que se extinga a perspectiva Rankeana da narração de fatos históricos
como verdadeiramente aconteceram. Ao contrário, aqui não se entende a dinâmica social
como algo pronto e acabado, mas de maneira múltipla e em movimento. Ou utilizando as

4
Vale ressaltar que este número é o que contabilizo de acordo com a minha documentação, mas existem
estimativas de milhares de prisões executadas apenas em 1964 no Estado de Pernambuco. Ver:
CAVALCANTI, Paulo. O caso eu conto como o caso foi – Da coluna Preste à queda de Arraes: memórias. São
Paulo: Editora Alfa-Omega. 1978. SILVA, Hélio. 1964: Golpe ou Contragolpe?. Rio de Janeiro: civilização
Brasiliense, 1975.
5
Fundo: SSP/DOPS-PE/APEJE. Prontuário Funcional n. 26.981.

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palavras de Walter Benjamin, entende-se que “articular historicamente o passado não


significa conhecê-lo "como ele de fato foi", Significa apropriar-se de uma reminiscência, tal
como ela relampeja no momento de um perigo”(BENJAMIN, 1986, p. 244).
Sabiamente, Jacques Le Goff compreende que “a história está sempre no centro das
controvérsias” (LE GOFF, 2003, p. 74), ou, noutros termos, que seus profissionais sempre se
controvertem em busca de um modelo “ideal” de (re)fazer história. Dessa forma, este texto
tem como objetivo principal apresentar algumas possíveis alternativas de análises teórico-
metodólicas em relação a um regime ditatorial brasileiro, comandado pelos militares em
meados do século XX, especificamente o pernambucano.
Destaco a estruturação das práticas de controle social dos órgãos de segurança e
informação do regime militar, sendo, inclusive, potencialmente interessante analisar os
artifícios e recursos que antecedem o ano de 1964, uma estrutura inicialmente arquitetada
desde o inínio do século XX e que teve um desenvolvimento efetivo durante os anos 1940. 6
Afinal, o regime que se instala não pode ser pensado e analisado separadamente do aparato
da tortura e repressão que o constituiu e que durante certo período encontrou apoio em
diversos setores da sociedade civil e política para absolver suas ações autoritárias como
decorrentes da ameaça comunista.
Um dos empreendimentos orquestrados pelos militares durante seus governos foi a
legitimidade e a legalidade da ditadura, conceitos nem sempre sinônimos. Por meio de atos
institucionais e constitucionais, ansiava-se a aprovação moral e a justificação para as ações
autoritárias (REIS FILHO, 2014). Outra característica destacada pelo cientista político
Anthony Pereira no livro Ditadura e Repressão é a sobrevivência ou adaptação do sistema
judiciário já existente em países Latino-Americanos, em que houve ditaduras militares,
mesmo após a implantação do regime ditatorial. Assim ele afirma que:

“Os líderes dos governos militares do Brasil e do Cone Sul preocupavam-se com a
legalidade de seus regimes. Apesar de todos eles terem chegado ao poder pela
força, esses governantes despenderam grandes esforços para enquadrar seus atos
num arcabouço legal, uma mistura do antigo e do novo. Em todos esses regimes
houve, por um lado, uma esfera de terror estatal extrajudicial e, por outro, uma
esfera de legalidade rotineira e bem estabelecida.” (PEREIRA, 2010, p. 53) 7

6
Ver: ANDREUCCI, Álvaro Gonçalves Antunes. O risco das idéias: intelectuais e a polícia política (1930-
1945). São Paulo, Tese de Mestrado, FFLCH/USP, 2001 AZEVEDO; Débora Bithiath de. Em nome da ordem:
democracia e combate ao comunismo no Brasil ( 1946-1950). Brasília: UnB, 1992. Dissertação de Mestrado
em História; DIAS, Romualdo. Imagens de Ordem: A doutrina sobre Autoridade no Brasil (1922-1933). São
Paulo: UNESP, 1996.
7
Ver também WASSERMAN, GUAZZELLI, Ditaduras Militares na América Latina, 2004.

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Precisamos perceber que assim que se efetuou o golpe civil militar em 1964, não
estava disponível, nem tinha dado tempo para ter-se criado uma infraestrutura jurídica e
política capaz de satisfazer todas as pretensões repressivas dos militares. No entanto, as
estruturas que existiam serviram intensamente para as primeiras manobras.
Além do isolamento dos indivíduos que consideravam como inimigos públicos, os
militares aproveitavam a dimensão da informação ao executar as prisões, preventivamente,
políticas. Tomar ciência das estratégias, ações e planos dos comunistas e “subversivos” era
preocupação recorrente dos militares. Inclusive, existiam, desde pelo menos os anos 1930,
órgãos de informação, aproximados por meio de uma rede e/ou comunidade8 de
informações, especializados na análise, decomposição e desdobramento dos dados colhidos
nos depoimentos dos confinados. Carlos Fico ao estudar a documentação desses órgãos
conclui que:

“Deste modo, tomados inteiramente pela desconfiança sistemática, os agentes de


informação desenvolveram algumas técnicas de trabalho capazes de gerar culpados
em quantidade compatível com o forte sentimento anticomunista de que estavam
tomados” (FICO, 2001, p. 100)

Efetuando um jogo de escalas entre as configurações nacionais e as tensões locais,


pode-se realizar um debate com a vasta produção acadêmica sobre e do período delimitado.
Ao remeter-se a indivíduos presos por motivos políticos, abre-se um conjunto de pessoas
relacionadas a diversos setores sociais como filiados a partidos políticos (PCB e PTB,
principalmente), trabalhadores ligados a sindicatos rurais e urbanos, aos envolvidos nas
ações das Ligas Camponesas, do Movimento Estudantil, e até aos “simpatizantes” e
associados aos integrantes destes grupos empenhados em, por um lado, realizar mudanças
nas estruturas de desigualdade existentes, por outro, no embate pelo poder político estatal
também. Sobre estes grupos de contestadores desfruta-se de estudos profícuos focalizados
nas particularidades de Pernambuco, como os de Page (1972), Montenegro (2004), Porfírio
(2009) e Silva (2007); além das produções historiográficas que analisam a dimensão macro
do golpe conforme os de Bandeira (2001), Napolitano (2014), Reis Filho (2007, 2014), Fico
(2004, 2014), Ferreira (2011, 2014), Motta (2002), Ridente (1993) e Matins Filho (1995),
entre outros.

8
A utilização de um termo ou de outro correspondem à perspectiva dos estudiosos. Autores como Carlos Fico
utilizam comunidade em conformidade aos termos utilizados pelos próprios agentes em documentos; já outros,
como Marcília Gama utilizam rede por considerar a palavra mais representativa da complexidade da atuação
dos órgãos articuladas pelo regime com militares e civis.

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Salienta-se a história política e sua importância para a compreensão deste debate.


Acredito, pois, que o diálogo estabelecido entre as ciências humanas permitiu uma expansão
teórico-metodológica fortuita a elas, como já mencionei. Para a história, especialmente, este
debate resgatou, entre outros, as atenções conferidas ao político. Assim, o conceito de
cultura política, visando agregar perspectivas da antropologia, da história e da psicologia,
configura-se como um dos mais capaz de representar a dimensão do político na vida
cotidiana. Principalmente a amplitude pluralista e culturalista da cultura política proposta
por autores como René Remond, Serge Berstein e Rodrigo Motta. Ou seja, cultura política
como um:

“Conjunto de valores, tradições, práticas e representações políticas, partilhado por


determinado grupo humano, que expressa uma identidade coletiva e fornece
leituras comuns do passado, assim como fornece inspiração para projetos políticos
direcionados ao futuro. ” (MOTTA, 2009, p.21)

O que faz com que o trabalho com política adquira uma propriedade múltipla,
diferente da visão clássica da narração das grandes figuras, grandes batalhas, eventos
cronológicos marcantes. Transformando-se neste método indispensável para entender o
cotidiano, as tradições, as relações de poder estabelecidas e/ou combatidas e as regras e
normas sociais como um todo.
Nesta perspectiva, considera-se valorosa as propostas teóricas elaboradas por Giorgio
Agamben de que existi um elo entre a prática da soberania e a ambição de controle da vida
das pessoas na política moderna – a biopolítica. De tal maneira, a partir das análises de
Agamben, em sua obra o Poder Soberano e a Vida Nua, pode-se indentificar pontos de
congruência com o quadro do poder soberano (militar) e da perseguição aos subversivos
(biopolítica). Num ambiente de:

“estado de exceção, no qual a vida nua era, ao mesmo tempo, excluída e capturada
pelo ordenamento, constituía, na verdade, em seu apartamento, o fundamento
oculto sobre o qual repousava o inteiro sistema político; quando as suas fronteiras
se esfumam e se indeterminam, a vida nua que o habitava libera-se na cidade e
torna-se simultaneamente o sujeito e o objeto do ordenamento político e de seus
conflitos, o ponto comum tanto da organização do poder estatal quanto da
emancipação dele.”(AGAMBEM, 2002, p. 16-17)

Discussão, inclusive, que se associa aos apontamentos foucaultianos, explicitamente


referenciado como fonte de elaboração conceitual por Agamben, sobre o controle social dos
cidadãos, autor que apresenta pontos de vistas sobre a política que aparentam ser fecundos
para entendimento, entre outros, do sentido da vigilância como método de controle social;

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para vislumbrar a utilização da informação, colhida muitas vezes através de tortura, como
saber-poder.
Baseado nas análises de uma série de documentos acerca dos encarceramentos
realizados em 1964, principalmente os prontuários – individuais e funcionais – arquivados
no Arquivo Público Estadual Jordão Emerenciano (APEJE) relativos a Delegacia de Ordem
Política e Social – DOPS/PE; bem como os relatos de memória do Centro de Documentação
e de Estudos da História Brasileira (CEHIBRA) da Fundação Joaquim Nabuco de Pesquisas
Sociais (FUNDAJ); e as entrevistas realizadas pelo Projeto Marcas da Memória: História
Oral da Anistia no Brasil 9: História Oral da Anistia no Brasil. Além de reportagens
jornalísticas publicados pelos grandes veículos de informação do período em Pernambuco: o
Jornal do Commécio, o Diário de Pernambuco e o Última Hora Nordeste. Pode-se arquitetar
uma nova literatura historiográfica sobre este universo, bem como eu inicialmente tento
realizar.
Remetendo notadamente ao grupo social desfavorecido pelas consequências do golpe
civil-militar, torna-se capaz os desenvolvimentos de pesquisas relacionadas com uma fonte
documental rica como o Prontuário Funcional de número 1865-D arquivado no fundo
26.981 da Delegacia de Ordem Política e Social de Pernambuco (DOPS/PE). O qual
cataloga as ordens de prisões de 290 pessoas decretadas pelo “comando da revolução”, já a
partir de 1° de abril. Um documento que registra um painel preciso sobre os presos políticos
em 1964, entre abril e dezembro, nas diversas instituições de segurança da capital
pernambucana, o 7° Regimento Militar, a Delegacia Auxiliar, a Casa de Detenção do Recife,
a Colônia de Férias10, e ainda os detidos e encaminhados aos “Hospitais Militares” (com
aspas no documento original), ao Quartel do Corpo de Bombeiros e em suas Residências.
Nestas listas estão cadastrados o nome completo, a data de entrada e a data de saída
da prisão (alguns apenas com a data de entrada), a profissão, o local de trabalho, o município
e um espaço para “observações”. Além do mais, todas as pessoas referenciadas nesta lista
possuem um Prontuário Individual que varia de extensão, particularmente, conforme o grau
de ameaça conferido ao indivíduo. É precisamente da análise, classificação e exposição

9
Entrevistas disponíveis para análise na internet, no canal do youtube.com “Marcas da Memória”. Link:
https://www.youtube.com/channel/UCc_-o5ZHJRo3GDtpUqCvvXg/feed acessado no dia 05/05/2015 às
17:01.
10
Sobre este local de detenção é preciso que se abra um parêntese devido à falta de informações acerca deste
ambiente de isolamento dos presos políticos em Pernambuco. Gratificantemente contamos com um empenho
atual do historiador Rodrigo Silva que se empenha em esclarecer alguns aspectos desta prisão: SILVA, José
Rodrigo de Araújo. Colônia de férias de Olinda: presos políticos e aparelhos de repressão em Pernambuco
(1964). Dissertação (Mestrado em História), UFPB, João Pessoa, 2013.

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desta farta documentação policial que se manifestou boa parte das problematizações sobre as
“prisões preventivas” do ano de 1964 articuladas até aqui.
Neste momento que em nome da “Segurança Nacional”11, que combatia os “inimigos
internos” (o comunismo, a afronta à moral e aos bons costumes – “subversão” e a corrupção,
dentre outras coisas) o aparato estatal buscou controlar a vida dos cidadãos. Aos que não se
alinhassem ao modelo dos “bons costumes” e ordenamento ideológico, estava reservado o
aparato repressivo orquestrado pela polícia política. Repressão, inclusive, que atingiu todas
as esferas de poder, tendo sido encarcerados os indivíduos sem distinções de posições
políticas, recursos financeiros ou prestígio social, tal como nas listas de presos registram-se
advogados, médicos, policiais, professores de universidades públicas, políticos, bancários,
militares, camponeses, comerciários, estudantes, funcionários públicos, engenheiros, entre
outros.
Nestes termos, após a efetivação do golpe civil-militar em abril de 1964 empreende-
se uma verdadeira caça às bruxas em Pernambuco, que se concentra não apenas nas áreas
urbanas, de maior incidência de comunistas, mas também no meio rural.
Esta segurança nacional era significada por meio da própria Lei de Segurança
Nacional de 1953, pela qual se fundamentou as detenções de todas as quase 300 pessoas
referidas. Um ponto de grande importância é justamente analisar esta busca de uma
justificativa legal do autoritarismo militar, numa busca evidente por manter uma aparente
democracia, pois as ações repressivas no Brasil, de certa forma destoando das outras
ditaduras empreendidas por vizinhos sul americanos, quase sempre buscam ser legitimadas
por meio de atos institucionais e/ou leis constitucionais. 12
Um dos empenhos da referida “nova história” é conferir relevância aos múltiplos
acervos documentais escritos, orais e visuais. No intuito de fazer os documentos
significantes por meio do entrecruzamento com outros documentos produzidos, todos eles,
sem exceção, com intenções e propósitos relacionados às suas origens produtoras. Por isso,
para a materialização de uma pesquisa como a que vem se propondo ser possível, a partir de
indivíduos pouco conhecidos, a análise de fontes orais torna-se crucial, cogitando-se que

11
A caracterização dos objetivos militares articulados pelo binômio segurança e desenvolvimento pode ser
acompanhada no texto do padre belga Joseph Comblin, elaborado a partir de experiências pessoais do
sacerdote como a que realizou enquanto assistente do arcebispo de Olinda e Recife, Dom Hélder Câmara.
COMBLIN, Joseph. A Ideologia da Segurança Nacional: O Poder Militar da América Latina. Trad. A. Veiga
Filho. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1980.
12
Ver: FRANÇA, Andréa da Conceição Pires. Doutrina e Legislação: os bastidores da política dos militares
(1964-1985). São Paulo: 2009.

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estas fontes possuem grande fecundidade num estudo sobre pessoas desconhecidas, ou
melhor, “protagonistas anônimos” (VAINFAS, 2002). Já que, como afirma Antônio
Montenegro (2010, p.63), a história oral é um meio privilegiado para o resgate da vida
cotidiana, opera-se com as fontes orais, precavidamente, como documentos férteis, mas que
necessitam de uma análise peculiar. Levando em conta que “refletir acerca de uma história
de vida a partir do relato oral de memória é debruçar-se sobre fragmentos que o narrador –
ainda que com a participação do entrevistador - selecionou para construir uma imagem, uma
identidade”.
Pode-se refletir as experiências das detenções destes presos políticos através de suas
próprias falas gravadas tanto nas comunicações prestadas em “termo de declarações” aos
tribunais militares quanto nos colóquios firmados com entrevistadores acadêmicos. No
entanto, é indispensável dar relevo as incompletudes em ambos os tipos de narrativas orais,
devido a vários motivos, entre eles os momentos e ambientes em que se fornecem as
memórias, precisamos, neste sentido, elaborar uma relação não de hierarquização, mas
preocupada em evidenciar ao máximo os aspectos dos impactos subjetivos dessas prisões
para esses indivíduos.
Sobre os impactos subjetivos, pode-se trazer a debate os apontamentos de Alette
Farge, que propõe articular historicamente os sentimentos. Desta maneira, na oportunidade
em que se compromete em sondar os aspectos subjetivos de uma prisão política em 1964
deve-se buscar a realização, entre outros, daquilo que Farge fez aos processos policiais do
século XVIII, isto é encontrar os:

“[...] ditos por pessoas ordinárias pegas a um só tempo pelo poder e por seu déficit
de saber, enunciam a mágoa, a pena, a raiva ou as lágrimas: são palavras de
sofrimento. Encontrá-los, retranscrevê-los, é uma primeira coisa, extremamente
importante: é tão raro em história escutar as falas.” (FARGE, 2011, p. 16)

Esclarece-se que não acredito que seja papel do historiador julgar e/ou condenar os
seus objetos de estudo, isto é, não devemos buscar construir uma versão favorável a um lado
da história, uma bandeira de luta contra os militares, pois, como demonstra Daniel Aarão,
existe uma disputa de memórias sobre os acontecimentos da Ditadura Militar, uma
recorrente análise de senso comum que coloca de um lado as vítimas e de outro os
opressores, maniqueisticamente divididos entre vilões e heróis (REIS FILHO, 2004).
Considera-se, sob este prisma, a proposta de Pablo Porfírio mais fecunda quando este afirma
que é “importante desenhar a ampla rede social, cujas ações e/ou omissões, ao longo da

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década de 50, e principalmente no início dos anos 1960, favoreceram ao estabelecimento de


uma ditadura militar no Brasil a partir de 1964”(PORFÍRIO, 2009, p. 16) .
Além do isolamento dos indivíduos que consideravam como inimigos públicos, os
militares aproveitavam a dimensão da informação ao executar a prisão política. Tomar
ciência das estratégias, ações e planos dos comunistas e “subversivos” era preocupação
recorrente dos militares.
Observando as transformações ocorridas em Pernambuco na área da segurança,
desde 1930, a historiadora Marcília Gama mostra a forma especial que o Estado, através da
polícia, esteve atento à sociedade. Percebendo os ditames e as necessidades de cada
momento, o governo procurou conduzir da melhor forma o controle da sociedade, seja
criando e ordenando suas instituições, ou até mesmo firmando acordos internacionais para
melhor preparar seu corpo administrativo.
Para a autora, essas transformações nos aspectos administrativos possuíam uma
relação com as peculiaridades de cada período histórico. Na medida em que as práticas
sociais caminhavam em uma via divergente da ordem estabelecida e/ou almejada pelo
Estado, este corresponderia com adaptações e um novo direcionamento administrativo dos
órgãos responsáveis pela segurança
Neste sentido, uma das hipóteses preliminares baseada na observação da
documentação do DOPS/PE que registra as breves reclusões de 1964 pode ser de que o
objetivo central destas detenções era a coleta de informações. Um dos principais estudos que
contribuem com a efetivação deste pensamento é o de Marcília Gama sobre o DOPS.
Quando a autora elaborou seu brilhante trabalho sobre a repressão em Pernambuco ela
percebeu que a preocupação do aparato de segurança era “ter o controle da vida dos
indivíduos, produzir, apreender, divulgar, fantasiar e manipular informações reais ou
imaginárias passa a ser o principal objetivo da polícia política de Pernambuco”(SILVA,
2007, p. 58). Apresentando um quadro nítido sobre o complexo sistema de vigilância que se
desenvolvia antes e durante o período militar.
Abertos recentemente para a consulta pública, com infraestrutura de arquivos
públicos a partir da década de 1990, os documentos catalogados pelas Delegacias de Ordem
Política e Social brasileiras fornecem, para pesquisadores e sociedade, um panorama
abundante das estratégias de repressão, das resistências individuais, das associações
institucionais, da unidade dos órgãos de segurança, entre outros, arquitetados ao longo do
século XX. No entanto, apesar da fartura, o trato dessa documentação necessita de cuidados
expressamente cautelosos, devido às intencionalidades presentes na sua composição e aos

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aspectos encobertos por uma linguagem oficial e oficiosa. Isto é, como adverte Étienne
François é fundamental identificar as “miragens” presentes nos arquivos policiais, estudando
a principal organização de polícia secreta e inteligência da Alemanha Oriental o autor
conclui que esses documentos construídos por órgãos de segurança “inclusive os mais
secretos, encobrem tanto quanto revelam” (François, 1998, p. 157). Sem esquecer-se de
deixar expresso o cuidado no tratamento desses documentos delicados, em vista das
dimensões “sensíveis” desta documentação13, sendo necessário ainda considerar os aspectos
subjetivos envolvidos na produção desses arquivos repressivos, compostos por documentos
apreendidos sem permissão de seus proprietários, interrogatórios e inquirições que
desrespeitam qualquer norma penal ou de direitos humanos, por exemplo, e
consequentemente as divulgações ou utilizações indevidas de informações, muitas vezes,
traumáticas para as vítimas desse processo.
Lidar com a complexidade dos arquivos policiais nunca será tarefa fácil, mas
atualmente algumas opções proveitosas foram elaboradas a partir das experiências
adquiridas pela relação crítica dos estudiosos com esses repertórios de registros. Como
detalhado anteriormente, a crise política atual do sistema democrático brasileiro e suas
aproximações evidentes com o universo político da primeira metade do século XX precisam
ser mais divulgadas e debatidas. Espero ter conseguido expor, de maneira clara e objetiva,
neste pequeno texto as minhas pretensões metodológicas na apreciação do golpe civil-miliar
em Pernambuco. Consequentemente, aspiro, a partir de minha humilde posição de eterno
aprendiz historiográfico, poder amplicar horizontes no tratamento de questões que contam
com uma cultura histórica dilatada, tamanha é multiplicidade de análises acadêmicas,
jornalisticas e de senso comum.

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13
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O ALGODÃO NOS ENLACES ENTRE MEMÓRIA E HISTORIOGRAFIA


EM ALAGOAS
Marcelo Góes Tavares1
Universidade Estadual de Alagoas- UNEAL
E-mail: marce_goes@hotmail.com
Érica de Oliveira Santos2

1
Historiador, Doutor pelo Programa de Pós-Graduação em História pela UFPE. Mestre em História Cultural
pela Universidade de Brasília – UnB. É professor de História do Brasil na Universidade Estadual de Alagoas –
UNEAL / Campus Palmeira dos Índios, onde também coordena o grupo de pesquisa “Memória, política e
trabalho”. Atua também como docente no Centro Universitário Tiradentes – Unit.

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Universidade Estadual de Alagoas -UNEAL


E-Mail: erica18olivet@gmail.com
Clara Maysa Alves da Rocha Torres3
Universidade Estadual de Alagoas -UNEAL
E-mail: mayza_cl@hotmail.com

Resumo: Este artigo analisa o algodão e sua presença e/ou ausência na historiografia em
Alagoas. O algodão, foi um dos principais produtos agrícolas em áreas alagoanas do
Agreste, Sertão e até mesmo sendo registrado na Zona da Mata (onde prevalece a cana-de-
açúcar) entre meados do séc. XIX e XX, no entanto foi pouco referenciada na historiografia
alagoana. É comum nessa mesma historiografia uma prevalência da temática do açúcar,
sendo esta atividade considerada por alguns autores, como determinante na formação
histórica de Alagoas. No entanto, algodão possuía ampla abrangência, e sua inserção na rede
produtiva era diferenciada. Era plantado em pequenas e médias propriedades rurais,
articulava-se com a indústria de beneficiamento e fábricas têxteis, permitia a fixação do
trabalhador no campo, foi objeto de órgão estatal, foi exportado para estados vizinhos e/ou
países. Propomos, desse modo, discutir a memória sobre o algodão em uma relação de
lembrança e esquecimento (Benjamin, 1996; Ricouer, 2007), que reconheça outras
possibilidades de histórias e narrativas sobre o passado, abordando uma história cultural
(Chartier, 2002; Hunt, 2001; Pesavento, 2003) sobre o cotidiano (Certeau, 2001), o trabalho
e a produção do algodão.
Palavras-Chave: Memória; Historiografia; Algodão.

Apresentação: nos enlaces da história


Na língua portuguesa, um enlace geralmente se refere ao matrimônio, a uma relação
afetiva. Porém, pode-se também se referir à relação, ao que se liga, formando um
encadeamento. E é esta concepção que nos interessa tomar por empréstimo como mote para
movimento de análise nesse artigo.
Há na historiografia alagoana (SANTA’ANA, 2011; ALTAVILA, 1988; DIÉGUES
JR., 2002) certa primazia à cana-de-açúcar. Essa centralidade produz ainda uma espécie de
mito fundador e razão de toda a prosperidade e desenvolvimento econômico do Estado. É
comum certa prevalência para a atividade açucareira. Diégues Jr. (2002) afirma na
introdução de sua obra “O banguê nas Alagoas – Traços da influência do sistema econômico
do engenho de açúcar na vida e cultura regional”, que a história do engenho de açúcar em
Alagoas quase se confunde com a própria história desse estado, que outrora fora o sul da

2
Acadêmica do Curso de História da Universidade Estadual de Alagoas - UNEAL. Bolsista de Iniciação
Científica – PIBIC da UNEAL / Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de Alagoas - FAPEAL. É membro
do grupo de pesquisa Memória, política e trabalho, pesquisando sobre o trabalho na produção algodoeira em
Alagoas.
3
Acadêmica do Curso de História da Universidade Estadual de Alagoas - UNEAL. Bolsista de Iniciação
Científica – PIBIC da UNEAL / Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de Alagoas - FAPEAL. É membro
do grupo de pesquisa Memória, política e trabalho, pesquisando sobre o trabalho na produção algodoeira em
Alagoas.

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Capitania de Pernambuco. Que “não parece acreditável que possa existir uma história das
Alagoas sem o açúcar” (DIÉGUES Jr., 2002, p. 26).
Longe da aqui desmerecer tal obra, destacamos o quanto é significativo sua proposta
interpretativa, produzindo uma narrativa na qual o açúcar e o sistema de engenho são
determinantes, desde o período colonial, no processo de ocupação do território em Alagoas.
Nessa interpretação, vislumbramos ainda outros efeitos oriundos do açúcar. Para além de
uma atividade que repercute consideravelmente na formação econômica, política, social e
cultural, produz ainda um certo silêncio sobre outras possibilidades de narrativas para
Alagoas.
Possibilidades que o próprio Diégues Jr. (2002) parecia ter conhecimento. Mesmo
julgando inacreditável uma história de Alagoas sem o açúcar, ressalva que tal história
“quase” se confunde. O “quase”, julgamos, é significativo e indicativo, pois permite ainda
reconhecer outras possibilidades para a história de Alagoas, sobretudo na medida em que o
açúcar embora tenha ocupado de fato a região litorânea e zona da mata, no agreste e sertão
não obteve a mesma expressividade. Percebemos uma outra Alagoas para além da Zona da
Mata e do Litoral.
Nos territórios que compõem o agreste e sertão, identificamos a partir de algumas
narrativas presentes em obras historiográficas (TENÓRIO, LESSA, 2013; SANT' ANA,
2011) e fontes documentais (INDICADOR GERAL, 2016; REGULAMENTO, 1924), uma
maior presença da atividade algodoeira. Sua produção se difere em grande medida do
açúcar, seja no sistema de ocupação da terra, na forma do trabalho, a relação com outras
atividades seja agrícola ou fabril, e até mesmo o destino do produto final. E que apesar dessa
expressividade, tem ocupado outro lugar na história de Alagoas: o silêncio.
Nesse sentido, o algodão, que fora durante muito tempo um dos principais produtos
agrícolas em áreas do Agreste e Sertão, sendo registrado em áreas da Zona da Mata – local
onde prevalecia o cultivo da cana-de-açúcar –, não foi amplamente abordado por uma
historiografia que tem como fator determinante o açúcar, negando também sua relevância na
formação social, econômica, cultural e territorial de Alagoas. Sendo assim, falar da produção
do algodão no estado é apontar novos horizontes para a historiografia alagoana.
Neste artigo, pretendemos historicizar a produção algodoeira, e sua presença e/ou
ausência na historiografia em Alagoas. É como se no enlace da história, o algodão e açúcar
fossem os nós que não se encontram, mas que no âmbito da historiografia e memória
podemos analisar suas relações... Mesmo que sejam nas disputas sobre as formas como o

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passado alagoano é lembrado, ensejando assim, também projetar um presente e futuro com
outras possibilidades para além do açúcar.

Por um lugar na historiografia de Alagoas

A presença do algodão no Nordeste não é recente. De acordo com o economista


Cícero Péricles Carvalho (2015), o algodão teve uma grande expressividade na região
nordestina.
A presença algodoeira no Nordeste é antiga. Os indígenas alagoanos dominavam a
produção dessa planta, mesmo antes do descobrimento do Brasil e, com ela,
fabricavam as redes, cordas e panos para vestimentas. No século XVII, os
holandeses encontraram, nas proximidades de Porto Calvo, algodoais que
descreveram como “arbustos cheios de lã que pareciam cobertos de neve.
(CARVALHO, 2015, p.210)

Contudo, embora reconheça a produção algodoeira pelos povos indígenas, não indica
os começos dessa produção em termos comerciais. Para Manuel Correia de Andrade (2005,
p.157), foi no século XVIII que parece ter sido iniciado uma revolução agrária no Agreste,
sobretudo vinculando-se às demandas trazidas pelas então novas relações de produção, em
especial, alavancados pela Revolução Industrial.
Segundo Sant'ana (2011), que se utilizou dos relatos do geógrafo Tomás Espíndola, a
introdução do plantio de algodão para fins comerciais em terras alagoanas se deu por ação
do ouvidor José de Mendonça de Matos Moreira entre 1779 e 1798. Sua produção foi
delimitada em alta escala, chegando a ter seu preço comercial superior ao do açúcar.
O valor comercial do algodão sempre foi superior ao do açúcar. No mercado o seu
preço era cotado em mais 100% acima do daquele outro produto e, em ocasiões
excepcionais, a exemplo do que ocorreu durante a Guerra Secessão, quando os
ingleses passaram a alimentar seus teares com algodão alagoano, principalmente nas
safras de 1862-63 e 1863-64, sua cotação quase que superou em 1.000% a do açúcar
(SANT`ANA, 2011, p. 56)

Este fato é significativo. Demonstra-se que a comercialização do algodão não estava


restrita ao comércio local, regional, ou nacional, mas também a exportação para outros
países. O algodão se adaptou nas terras nordestinas, era resistente as secas e não demorou
muito para se tornar capaz de ‘competir’ com a cana-de- açúcar. Segundo Craveiro Costa
(1931) especificamente em Alagoas, a produção algodoeira veio a se expandir pelo fato de
que apesar seu terreno ser seco, é admiravelmente produtivo.
É no século XIX que a presença dos algodoais de fato se tornou expressiva e
relevante na economia alagoana, bem como para a rentabilidade de famílias do campo e até
mesmo da cidade. Segundo Moraes (2012), devido aos elevados preços do algodão, boa

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parte dos pequenos agricultores não priorizavam mais as lavouras de subsistência, passando
assim a se inserirem numa produção de caráter mercantil. Na passagem do século XIX para
o século XX a produção algodoeira já se espalhava pelo Agreste, Sertão e até mesmo por
algumas áreas da Zona da Mata alagoana. Em 1930, o cultivo da malvaceae - o algodão -
abrangeu uma área total de 29.000 hectares no Estado, e a produção da fibra após
beneficiamento, alcançou o montante de 18.240 toneladas (COSTA; CABRAL, 2016, p.65).
Para termos uma referência do papel e expressividade dessa produção na economia
alagoana, Craveiro Costa (2016), também contabilizou outras produções agrícolas, entre os
quais, destaca-se o açúcar, então principal produto agrícola alagoano, com 120.000
toneladas, o milho com 44.000 toneladas, o feijão com 12.000 toneladas, entre outros de
menor expressão (COSTA; CABRAL, 2016, p.65).
Entre todos esses produtos, o algodão era exclusivamente destinado à produção industrial, desde seu
beneficiamento. Alagoas no século XIX, segundo o historiador Marcelo G. Tavares (2016), já contava com
cinco fábricas texteis. A primeira fundada em março de 1857 foi a União Mercantil localizada em Fernão
Velho, seguida pela Companhia Alagoana de Fiação e Tecidos em Cachoeira fundada em 1888, a Companhia
Pilarense de Fiação e Tecidos de 1892 e localizada em Pilar, a Progresso Alagoano de Rio Largo em 1892, e
por fim a Industrial Penedense de 1897 em Penedo. Considerável parte do algodão produzido era consumido
por estas fábricas têxteis.
Segundo Craveiro Costa na obra Indicador Geral do Estado de Alagoas (COSTA; CABRAL, 2016, p.
26) publicado pela primeira vez em 1902, o estado de Alagoas apresentava no início do século XX um total de
34 munícipios autonômos.

Imagem 01 – Mapa da incidência da produção algodoeira nos municípios alagoanos em 1900

Fonte: Produção própria a partir dos dados do Indicador Geral do Estado de Alagoas, 1902.

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Entre o total de municípios alagoanos, 23 foram registrados como produtores de algodão, seja em
pequena, média ou grande escala. No mapa anterior (Imagem 01), os municípios representados na cor branca
se referem aos que foram registrados como produtores de algodão. Fato que revela uma Alagoas não tão
somente canavieira, mas também algodoeira. Podemos, portanto, considerar que a produção do algodão foi
bastante representativa para a economia do estado. Possuía ampla abrangência no território alagoano.
Sua inserção na rede produtiva era diferenciada. O aspecto geral do solo do estado era fator relevante.
No agreste e sertão do estado, apesar da insidência de períodos de secas, o solo era e ainda é fertilizado por um
número considerável de rios, riachos, brejos e lagoas. O algodão era plantado em pequenas e médias
propriedades rurais, e passível de ser realizada no âmbito familiar. Seu plantio poderia ser consorciado com
outras sementes, como o feijão, fava, milho e outros produtos do ramo alimentício. Essa simultânea produção
permitia capitalizar o produtor algodoeiro e assegurar a agricultura de subsistência, como até os dias atuais
ainda é praticado nesse território. Além do que, no primeiro ano de cultivo, o algodão não crescia o suficiente,
o que implicaca num lucro diminuto.
Mas que nas safras seguintes, poderia assegurar uma maior produtividade e respectiva rentabilidade.
A produção do algodão para além do abastecimento do comércio local, era comercializado em outras cidades
como Maceió, estados circunvizinhos e até mesmo exportados, e nesse aspecto se percebe a relevância para
constituição econômica do estado de Alagoas. O escritor Benedito Ramos (2013), analisa que até mesmo a
Associação Comercial de Maceió era primordialmente uma associação de comerciantes de algodão, dado o
volume de negócios realizado para essa malvácea. Essa Associação era localizada estrategicamente no bairro
de Jaraguá na capital alagoana Maceió, um bairro portuário e que concentrava o principal centro comercial e
financeiro de Alagoas.
Segundo Moraes (2012) o algodão contribuiu decisivamente com o desenvolvimento da vida urbana
nordestina, como o surgimento de vilas, e destas cidades. Foi responsável pela implantação de diversos ramais
férreos, que uniam desde o litoral as áreas do sertão do estado, tornando assim o comércio mais dinâmico,
retirando a centralidade da capital. Assim o algodão se tornou um dos principais produtos do Nordeste, e o
único que conseguiu enfrentar a cana-de-açúcar.

De fibras malváceas às plumas de valor digno de ouro

No século XX, em virtude do potencial produtivo do algodão na economia e no


trabalho em Alagoas, foi criado um órgão estatal para orientar, fomentar, e regular a
produção algodoeira no estado. Trata-se do Serviço do Algodão no Estado de Alagoas, que
foi um órgão criado pelo próprio Estado no século XIX. A criação desse órgão foi resultado
das preocupações do Estado em regular a produção algodoeira, mas também mensurar a
quantidade, identificar os locais e condições de produção.
Este órgão, numa tentativa de estar ainda mais próximo dos produtores desta cultura,
criou o “Regulamento para o Serviço do Algodão”. Era uma espécie de informativo com
vinte e nove artigos, tendo como primeira função fazer a propaganda do algodão no Estado,

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e instruía sobre métodos e aparelhos provindos do Ministério da Agricultura, como os


informativos acerca da posse de prensas e seus usos. Informava também o produtor sobre
seus direitos e numerosos deveres para com essa produção uma vez que fosse subsidiado
pelo Estado. Todos esses artifícios provindos do Estado serviam como meio de fiscalização
e de controle da produção, tendo em vista que muitas multas eram cobradas se os devidos
artigos não fossem cumpridos.
Estratégia de controle de produção e território que para Michel Foucault (1979) seria
mais uma forma da arte de governar, já que vivemos desde o século XVIII em uma
governamentalidade. E que o Estado ao se utilizar de conhecimentos sobre a economia, o
solo, e as técnicas produtivas do algodão, inclusive delineando instrumentos para a
produção, este conjunto de saberes passa a também funcionar como estratégia de poder na
arte de governar. O Estado agia e age mobilizando relações de poder para regular e
disciplinar, tanto as produções quanto as pessoas e seus territórios. Se efetivando nas
práticas de organizações, disciplinares; medidas que podem ser entendidas como
dispositivos. Ou seja, “[...]qualquer coisa que tenha de algum modo a capacidade de
capturar, orientar, determinar, interceptar, modelar, controlar e assegurar os gestos, as
condutas, as opiniões e os discursos dos seres viventes (AGAMBEN, 2009, P. 40).”
Dessa forma, as práticas estatais de regulamentação da produção se configuravam em
um dispositivo de poder, ou seja, uma rede de relações heterogêneas presentes em um
determinado discurso. E que para Alagoas se demonstrava uma relevante questão,
considerando que a produção algodoeira era registrada em 23 dos seus 34 municípios,
incidindo em sua economia e população.
O algodão era um produto de múltiplos fins. Além de sua comercialização e
exportação, seus subprodutos eram amplamente rentáveis. Suas ramas e até o bagaço
resultante do processamento das sementes serviam de pasto para o gado. Suas sementes
eram comercializadas e delas poderia ainda ser extraída o óleo vegetal. Ambas, sementes e
óleo, eram comercializados e exportados, sobretudo para cidade de Liverpool na Inglaterra.
A produção algodoeira, portanto, possuía intensa dinâmica econômica. E que de acordo com
Moraes (2012), por vezes chegou até superar a cana-de-açúcar em termos de exportação em
Alagoas.
Além da produção agrícola, também agenciava uma produção de caráter industrial, sobretuo no
benefeciamento da fibra do algodão preparando-a para uso na indústria têxtil. Trata-se do processo de
descaroçamento do algodão que inicialmente era realizado em máquinas movidas manualmente, prosseguindo-
se com outras intervenções artesanais como tingimento e fiação. Em Alagoas se destaca o ano de 1838 como

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marco de introdução de máquinas ou engenhos para descaroçar o algodão colhido, sendo estas movidas por
força animal, dispensando inclusive o emprego de escravos (SANT’ANA, 2011, p.53).
Após o beneficiamento, o algodão era comercializado em fardos e quilos, e seus
caroços e os bagaços do caroço em sacos. Mapeando as informações contidas no Indicador
Geral do Estado de Alagoas (COSTA; CABRAL, 2016, p. 92), de julho de 1898 a junho de
1899 foram escoados pelo porto de Maceió com destino aos mais variados portos brasileiros,
10.363 fardos de algodão, 787.588 quilos de algodão, 300 sacos de caroços de algodão e 52
sacos do bagaço do algodão. Nesse mesmo período foi registrado movimentos de exportação
através do porto de Maceió. Para a Inglaterra, na cidade de Liverpool, foram exportados 13
fardos de algodão, 936 quilos de algodão e 30.895 sacos de caroços de algodão. Já para
Leixões foram 3.000 de algodão e 222.289 quilos. No total do escoamento pelo porto de
Maceió nesse período, foram registrados 13.376 fardos, 1.1010.813 quilos, 31. 662 sacas de
caroços do algodão e 52 sacas de bagaço do algodão. Uma produção e comércio com
expressiva rentabilidade...

Considerações finais: Alagoas também é algodoeira

Nos enlaces entre memória e historiografia em Alagoas, podemos observar as


relações entre o açúcar e o algodão e suas possíveis disposições em um encadeamento
narrativo sobre a história. Tratam-se de disposições de disputas por memórias, ou mesmo
prevalência de narrativas historiográficas capazes de atribuírem sentidos ao passado e ao
presente à contrapelo.
É notório e inegável a prevalência do açúcar nos começos da formação econômica de
Alagoas, o que de certo modo também foi determinante, para afirmação de pertencimento de
um presente ao passado açucareiro, pautando-se em narrativas que se colocam como
fundadoras das razões de ser e produzir em Alagoas. Desse modo, atualiza-se o passado dos
engenhos no presente das usinas de açúcar. Atualização essa que também se faz presente nos
sistemas de dominação social e das continuidades das oligarquias açucareiras.
Ao observarmos o passado por outros prismas, depurando recortes temporais e
problematizando os silêncios sobre certas atividades econômicas, nesse caso o algodão, é
possível ver a história de Alagoas como quem enxerga através de um caleidoscópio. Ou seja,
ao olhar por pequenos fragmentos (fontes documentais e experiências) sob os quais
lançamos luzes a cada movimento (ou leitura sobre o passado), podemos perceber outras

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histórias por vezes simétricas às narrativas do açúcar, porem capazes de configurarem


contornos diferentes.
Como enlace, essa relação entre açúcar e algodão na narrativa historiográfica,
apresenta-se como tensões entre as formas de lembrar e esquecer o passado, buscando
também afirmar os sentidos de cada uma dessas atividades econômicas e respectivas
sociabilidades no presente.
Ao girar o caleidoscópio pelo qual observamos a história e o passado, ensejamos
também adentrar nas diversas experiências que eram proporcionadas pela produção
algodoeira como trabalho e atividade econômica, entre as quais identificamos: o cultivo e
beneficiamento do algodão, o comércio, e as formas de governamentalidade sob o território
na sua relação com a economia algodoeira e população que dela sofre e produz efeitos.,
inclusive em termos de relações de poder.
Para Michel Foucault (1979), tais relações de poder é algo que se exerce dentro de
práticas sociais que foram e são constituídas historicamente. E que são entendidas a partir de
pesquisas genealógicas, ou seja, o “[...] acoplamento do conhecimento com as memórias
locais, que permite a constituição de um saber histórico das lutas e utilização deste saber nas
táticas atuais (FOUCAULT, 1979, p. 171).”
Permite-nos acessar a um passado marcado por múltiplas experiências. Estas, quando
narradas na historiografia, entre outras formas, “convida o leitor a refletir sobre o sentido de
uma vida (BENJAMIM, 1996, p.213)”. Possibilita a compreensão de uma cultura – o
universo algodoeiro -, oportunizando-nos a se relacionar com outro - o trabalhador do
algodão - sob diversas formas. A memória, e sobretudo a história, tornam-se instrumentos
políticos. E quando postas em relação – história e memória - são convertidos em "meio de
iluminação reciproca entre um passado - até aí esquecido - e um presente concebido como
limiar possível de uma transformação existencial, individual e coletiva (GAGNEBIN 2014,
p.242).”
Recuperar historiograficamente a relevância do algodão é compreender também a
formação de diversas cidades alagoanas no agreste e sertão, tendo em vista que muitas delas
surgiram com o auxílio dessa atividade econômica. E ao mesmo tempo, por meio de uma
genealogia do algodão em Alagoas, contribuir para a historiografia, apontando novos
caminhos para abordagens que interpretem Alagoas em seu sentido plural. Ou seja, ao
afastar-se da centralidade do açúcar, reconheça a variabilidade das formas de
governamentalidade do território, da produção econômica, e das práticas sociais e culturais.

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E que na construção do conhecimento historiográfico, possamos compreender que as


memórias estão sempre sujeitas a disputas, e que por vezes ocupam lugares hegemônicos nas
lembranças e produção de sentidos para o passado e presente, tornando-se também em um
instrumento político de projeção de futuros.

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OS DEPOIMENTOS DE TRABALHADORES RURAIS NOS PROCESSOS


TRABALHISTAS E A MEMÓRIA DAS RELAÇÕES DE TRABALHO NA ZONA
CANAVIEIRA DE PERNAMBUCO NO PERÍODO DO REGIME CIVIL-MILITAR
(1964-1985)

Ademir Bezerra de Melo Junior


Mestrando do Programa de Pós-Graduação em História da UFPB
ademirjr330@hotmail.com

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RESUMO
Esse artigo busca refletir sobre a importância dos arquivos da Justiça do Trabalho
para a preservação da memória das relações de trabalho em nossa sociedade. Para tanto,
enfocamos os depoimentos de trabalhadores rurais da zona canavieira pernambucana,
buscando salientar de que maneira tais relatos, tanto pelo que dizem como também pelo que
silenciam, podem ajudar no resgate da memória das relações de trabalho nessa região no
contexto do Regime Civil-Militar (1964-1985). Tais relatos são fornecidos em
circunstâncias bastante específicas, sendo parte de processos no âmbito da Justiça do
Trabalho, e resguardam elementos essenciais da vivencia cotidiana dessas relações de
trabalho, do ambiente marcado pela onipresença da violência dos proprietários, seja ela
potencial ou praticada de fato, da consciência que os próprios trabalhadores tinham das suas
condições de vida, da margem de manobra que possuíam para reivindicar direitos e para
ampliar as possibilidades apresentadas pela Lei.
Palavras-Chave: Fontes Judiciais; Trabalhadores Rurais; Regime Civil-Militar.

1. A peculiaridade das relações de trabalho na Zona Canavieira pernambucana nos


depoimentos dos trabalhadores rurais
A história das relações de trabalho na zona canavieira pernambucana é marcada pela
permanência de relações e práticas que remontam ao período escravista, sendo um dos seus
traços fundamentais a intensa exploração da força de trabalho num contexto em que o
modelo predominante da estrutura fundiária, baseada na posse da quase totalidade das terras
nas mãos de algumas poucas famílias, que sustentaram desde sempre uma estrutura
produtiva voltada para a monocultura com vistas ao abastecimento do mercado externo, esta
na base da reprodução de tais relações ao possibilitar a constituição destas a partir da
ausência de alternativa a que estiveram submetidos os trabalhadores rurais, sujeitos a
condições desumanas de trabalho e de vida pela necessidade de garantirem tanto sua
subsistência pessoal quanto familiar.
Nesse sentido, contribuições como as das historiadoras Christine Rufino Dabat
(2012) e Maria do Socorro de Abreu e Lima (2012) são exemplos de trabalhos que têm
vindo a aclarar cada vez mais as circunstâncias em que foram vivenciadas tais relações no
espaço da zona canavieira pernambucana, e até mesmo para além deste espaço, visto que o
trabalho no cultivo da cana-de-açúcar no nordeste apresenta uma série de similitudes mesmo
se observarmos o contexto de outros estados. Pensamos, por exemplo, no caso da Paraíba,
abordado por trabalhos relevantes como o artigo Territórios de Confronto, em que

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historiadora Maria do Socorro Rangel explora a experiência de alguns trabalhadores rurais


no contexto das transformações vivenciadas a partir do processo de expulsão dos
trabalhadores das terras de proprietários paraibanos no bojo da reestruturação produtiva do
setor açucareiro no contexto do período pós-guerra, elemento que também exercerá forte
influência no caso pernambucano, deixando clara a existência de diversos elementos comuns
quando são consideradas as relações de trabalho nesses espaços.
Por sua vez, tais relações não transcorreram sem contestação, e os trabalhadores em
diversos momentos reagiram à exploração imposta pelos proprietários, sendo inventivos na
construção de organizações, como são os casos das Ligas Camponesas e dos Sindicatos
Rurais, que lhes possibilitaram constituir seu espaço próprio de reivindicação. As lutas dos
trabalhadores rurais ganharam força a partir dos deletérios efeitos das modificações na
produção agrícola, motivadas por uma reorganização produtiva na agroindústria açucareira a
partir do final do século XIX, e que terá um papel relevante no setor, uma vez que a
industrialização do processo de produção do açúcar, que tem como característica o
surgimento das usinas, promoveu “modificações nas relações de produção e nas relações de
trabalho até então vigentes”. A partir da década de 1950 a questão da terra, sempre
dramática, tornasse ainda mais crucial no bojo do processo de expulsão dos trabalhadores
rurais movido pelos proprietários que agora viam aberta a possibilidade de ampliar a área
ocupada pela lavoura de cana a partir dos subsídios advindos dos programas
governamentais, justificados pela ampliação da demanda externa no contexto de recuperação
das economias européias após a Segunda Guerra Mundial, num movimento que, como
salientamos acima ao falar brevemente da experiência paraibana, não se restringiu ao caso
pernambucano. (JACCOUD, 1990, p. 30)
Se passarmos por fatos relevantes e que tiveram relação com a luta dos trabalhadores
rurais, podemos também esclarecer como tais conflitos tornaram necessária a existência de
Juntas do Trabalho em municípios que apresentavam maior atividade reivindicatória por
parte dos trabalhadores, e de que maneira trabalhadores e patrões reagiram ao seu
surgimento, ou seja, como os trabalhadores aprenderam a usar o recurso ao tribunal como
forma de ampliar cada vez mais suas possibilidades de reivindicação por melhores condições
de trabalho e de vida, de que maneira perceberam a promulgação do Estatuto do Trabalhador
Rural e como eram conscientes das possibilidades apresentadas pela legislação trabalhista.
Nesse caso específico, podemos perceber com maior profundidade o lugar de uma
instituição como o Sindicato Rural, que assumiu uma relevância impar no cotidiano dos
trabalhadores, enquanto um espaço de discussão onde esses homens e mulheres podiam

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debater coletivamente seus próprios problemas, assim como formular estratégias para
enfrentá-los, limitando e enfrentando a violência patronal.
A sindicalização dos trabalhadores rurais, no entanto, por muito tempo foi impedida
de tornar-se realidade por uma série de medidas articuladas pelo que Dabat chamou de
“Bloco Agrário”, apesar de prevista pela CLT desde 1943. A autora lembra ainda que até
1955 só haviam cinco sindicatos de trabalhadores rurais reconhecidos em todo o Brasil. Um
dos quais era o de Barreiros, sediado em Pernambuco, tendo sido reconhecido em 1954.
Vinte outros sindicatos aguardavam sua regularização junto ao Ministério do Trabalho em
1960, tendo surgido apenas na primeira metade dessa década a legislação específica voltada
à sindicalização no campo, contida no Título VI, “Da Organização Sindica”, do Estatuto do
Trabalhador Rural. (DABAT, 2012, p. 112)
Por outro lado, não se pode perder de vista as medidas adotadas pelos proprietários
para impedir o recurso dos trabalhadores ao judiciário trabalhista, que em muitos casos nos
remetem até mesmo à violência física, situação que será agravada com o advento do Golpe
Civil-Militar de 1964, que inaugura o período que delimita o recorte temporal do presente
trabalho. No caso de pernambucano, a violência policial contra os trabalhadores rurais havia
sido estancada pela atuação direta do primeiro governo de Miguel Arraes (1963-1964),
quando “a polícia foi disciplinada e deixou de servir de capanga aos plantadores.” (DABAT,
2012, p. 116)
De alguma maneira, o Regime Civil-Militar veio a restabelecer a instrumentalização
do Estado por parte das classes dominantes contra os trabalhadores rurais. De todo modo, tal
instrumentalização foi objeto de contestação pelas lutas referidas acima, além de ser
questionada por movimentos que viam nela um motivo para o atraso do país, e mesmo nos
anos mais tensos da Ditadura, após a edição do Ato Institucional nº 05,1 em 13 de dezembro
de 1968, a CLT e o Estatuto do Trabalhador Rural conservaram sua validade e regulavam as
relações de trabalho no campo. Tal fato já merece uma reflexão sobre a relevância de uma
instituição como a Justiça do Trabalho na mediação dos conflitos advindos da relação
capital-trabalho, sobretudo no âmbito do campo. De todo modo, no que concerne as lutas
dos trabalhadores, haviam agora motivos para enquadramentos, investigações, prisões e
torturas.
Ao considerar esses elementos, poderemos ampliar ainda mais a abordagem dos
depoimentos de trabalhadores rurais encontrados nos Processos Trabalhistas, na busca de

1
Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/AIT/ait-05-68.htm

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perceber não apenas aquilo que é dito, mas também o que é silenciado por eles, e de que
maneira podemos notar um ambiente em que o significado (para nós) nem sempre explicito
das palavras eram compreendidos por aqueles que vivenciavam aquelas relações, que viviam
aquele cotidiano marcado pela coerção de uma violência sempre presente, em potencial,
mesmo quando a agressão física não era praticada de fato.
Como salientamos no início, a questão da terra, cristalizada no modelo da estrutura
fundiária bem como na escolha pela monocultura como modelo de exploração da mesma,
influenciaram de maneira decisiva a forma como se desenvolveram as relações de trabalho
na zona canavieira pernambucana. Por isso mesmo que esse tema é recorrente nos processos
referentes aos trabalhadores rurais, e aparecem em seus depoimentos. A total dependência
dos proprietários aparece relatada pelos trabalhadores com bastante consciência logo no
início da abertura da possibilidade do recurso a Justiça do Trabalho para a categoria dos
trabalhadores rurais, em decorrência da promulgação do já referido Estatuto do Trabalhador
Rural em 1963. Já naquele ano é recorrente que conste, na reclamação inicial apresentada
por trabalhadores rurais, um ponto específico em que eles relatam que “antes da vigência do
Estatuto do Trabalhador Rural (...) não percebiam salário mínimo nem repouso
remunerado”, como é o caso neste processo em que o trabalhador rural Sebastião José dos
Santos reclama contra o Engenho Cachoeira, onde trabalhava e residia, demonstrando
bastante clareza na diferenciação da sua atual situação com aquela vivenciada anteriormente
à promulgação do Estatuto. (Processo Trabalhista da Junta de Conciliação e Julgamento de
Goiana. Processo 02/70, p. 02)2

É seguindo este mesmo diapasão que, em depoimento realizado no dia 29 de janeiro


de 1970, e constante na reclamação inicial do processo 62/70 da JCJ de Nazaré da Mata, o
trabalhador rural José Vicente da Silva, então com quarenta anos, afirma trabalhar para o
proprietário do Engenho Triunfo, situado no município de Timbaúba, desde os 12 anos de
idade. Encontrando-se então doente, e por isso “impossibilitado de trabalhar”, alega o
trabalhador mover a ação pelo fato de seu empregador, em face de seu estado de saúde, ter-
lhe sentenciado que “com 30 dias o (ele) reclamante deveria desocupar a casa onde mora na
propriedade”, em face do que se considera demitido, vindo então requerer o “auxílio
enfermidade, o aviso prévio”, e sua reintegração ao trabalho por se tratar de trabalhador

2
Gostaríamos de salientar nesta altura que optamos por reproduzir literalmente a transcrição de todos os
depoimentos constantes nos processos trabalhistas citados no presente trabalho, mesmo nos casos em que estas
apresentam erros gramaticais evidentes.

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estável. (Processo Trabalhista da Junta de Conciliação e Julgamento de Nazaré da Mata.


Processo: 62/70. p. 09)

Esse processo é um dos muitos que registram depoimentos de trabalhadores em que


se revela com clareza que, em diversas ocasiões, a maior motivação do trabalhador rural ao
acessar a justiça do trabalho não é necessariamente a manutenção do vinculo empregatício
per si, mas sobretudo a garantia da residência ou mesmo do sítio que encontra-se
diretamente jungida à tal vinculo, ou seja, envolve querelas relativas ao controle da terra
pelo proprietário.
O empregador, por sua vez, ingressa no mesmo período com um Inquérito a fim de
apurar o cometimento de falta grave por parte do trabalhador, e assim ensejar sua demissão
por justa causa. Alega ele que o trabalhador teria se ausentado do trabalho sem justificação,
tendo inclusive dado “pouca importância as solicitações feitas no sentido de que voltasse ao
trabalho.” Já na primeira audiência de instrução do inquérito o trabalhador José Vicente
alega que os colegas que testemunharam em seu desfavor o fizeram por “medo do
Requerente (Proprietário)”. Por fim, a decisão da JCJ de Nazaré da Mata acaba por favorecer
ao trabalhador e, muito embora considere que o mesmo não teria direito a nenhum tipo de
indenização, reconhece as limitações advindas de sua enfermidade após a apresentação do
atestado médico, determinando que o mesmo fosse reintegrado ao trabalho numa função
compatível com a sua atual condição de saúde. (Processo Trabalhista da Junta de
Conciliação e Julgamento de Nazaré da Mata. Inquérito 02/70, pp. 01-03)
Tais depoimentos salientam a importância da questão da terra no contexto da zona
canavieira pernambucana, além de possibilitarem uma reflexão mais ampla sobre a
modificação que essas relações experimentaram após a promulgação do Estatuto do
Trabalhador Rural. É relevante percebermos como os elementos do costumes, mas também
aqueles ligados à violência patronal, construídos ao longo de vário anos, e mesmo séculos,
passaram a ser objeto de contestação a partir das possibilidades apresentadas pela lei, por
isso é de singular importância observarmos brevemente a peculiaridade dessa legislação,
bem como a maneira com que ela foi mobilizada pelos trabalhadores, que também tiveram
de enfrentar a resistência patronal e, após o Golpe Civil-Militar de 1964, a repressão do
regime de exceção.

2. Os depoimentos de Trabalhadores Rurais na Justiça do Trabalho no período do


Regime Civil-Militar (1964-1985): um campo de possibilidades

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Cabe salientar de início que compreendemos o Direito como um espaço de disputa,


de tal maneira que cabe ao ordenamento jurídico conformar toda uma série de conflitos
sociais, a fim de que, por meio da atuação do Sistema Judiciário, eles sejam acomodados no
interior do aparelho estatal, impedindo que seu acirramento ponha em risco a própria
reprodução social. Por outro lado, o caráter historicamente específico do Estado moderno
encontra-se estreitamente vinculado à forma de organização social capitalista, onde a relação
entre capital e trabalho assume uma posição central, uma vez que
“o núcleo da forma política capitalista reside num poder separado dos agentes econômicos
diretos, que se fazem presente por meio da reprodução social a partir de um aparato
específico, o Estado, que é o elemento necessário de constituição e garantia da própria
dinâmica da mercadoria e da relação entre capital e trabalho.” (MASCARO, 2012, p. 39)
Nessa leitura, o caráter de classe do Estado reside não na sua captura eventual por uma
classe específica, que dessa maneira teria o monopólio do governo, mas no fato de que a
própria existência do aparelho estatal se encontra baseada nessa forma específica de
organização social, fundada na propriedade privada dos meios de produção, resguardando
continuamente a reprodução dessas próprias relações. Nesses termos, a legislação que visa
regulamentar as relações de trabalho tem uma vital importância social dada à centralidade
dessa relação, sendo que sua vigência, reformulação ou mesmo sua eventual extinção
refletem o equilíbrio de força entre as classes em um dado momento.
Dessa maneira, ao pensarmos na CLT, no seu lugar como instrumento Estatal para a
mediação da relação entre Capital e Trabalho, não nos parecem produtivas as formulações
que consideram a vigência de tal legislação “boa” ou “ruim” para os trabalhadores, pois
essas asserções não captam o essencial. Por exemplo, em sua obra sobre o “Novo
Sindicalismo Urbano” em Pernambuco (1979-1984), Rafael Leite Ferreira nos diz o seguinte
sobre a CLT: “a CLT é uma estrutura jurídica contraditória, que, propositalmente, dá
margem a diversas interpretações, podendo ser utilizada tanto a serviço do trabalhador bem
como contra ele...”. (2012, p. 120) Ora, o que está descrito nessa passagem senão o caráter
contraditório de uma legislação que visa tomar para si a mediação de interesses
contraditórios? A CLT, bem como o conjunto da Justiça do Trabalho, não tem como
objetivo acabar com as mazelas dos trabalhadores, agir em seu favor ou contra eles, ou
mesmo garantir-lhes um salário justo ou injusto, muito menos é sua finalidade acabar com a
contradição entre Capital e Trabalho. Ela tão somente cria as condições para que essa
contradição possa se mover, garantindo que esse conflito não ponha em risco o conjunto da
reprodução social (capitalista). Como bem salienta Lukács, a própria formação do Direito “é

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necessariamente resultado de uma luta entre forças sociais heterogêneas (as classes), não
importando que se trate de um conflito levado às últimas consequências ou de um
compromisso de classe”. Assim, o critério da (re)interpretação que determinada norma
jurídica deve ter “não pode ser a identidade ou a convergência objetiva em sentido
gnosiológico; o motivo consiste na possibilidade de utilização atual, em circunstâncias
concretamente presentes, segundo a resultante da luta entre interesses sociais concretos.”
(LUKÁCS,2012, p. 389)
Por outro lado, o contato com o posicionamento de Gramsci nos parece um
importante complemento ao que foi desenvolvido acima, uma vez que em sua obra o Direito
assume também uma importância pedagógica, contribuído para moldar os indivíduos às
exigências da reprodução social ao estabelecer, no caso da legislação trabalhista, não apenas
a possibilidade de reivindicação, mas também ao limitar aquilo que pode ou não ser
reivindicável legalmente, que está ou não previsto na legislação, contribuindo com a
“tarefa educativa do Estado, cujo fim é sempre o de criar novos e mais elevados tipos de
civilização, de adequar a “civilização” e a moralidade das mais amplas massas populares às
necessidades do contínuo desenvolvimento do aparelho econômico de produção e, portanto,
de elaborar também fisicamente tipos novos de humanidade.” (2002, p. 23)
O exemplo da regulamentação da lei de greve é, nesse aspecto, bastante eloquente, uma vez
que acaba por estabelecer uma série de exigências para que o movimento dos trabalhadores
seja considerado legal, impedindo que ele ocorresse livremente, limitando assim sua
eficácia. Esse é um dos exemplos elencados por Bernard Edelman, em sua obra A
Legalização da Classe Operária (2016), onde o autor defenderá a tese de que a legalização
da classe operária, ou seja, a regulamentação do trabalho no mundo burguês, significou seu
enquadramento dentro do marco legal da sociedade capitalista, estabelecendo, na mesma
medida, os limites para a sua atuação política. A compreensão aqui defendida acerca do
papel do Direito na sociedade moderna, em sua estreita ligação com a questão do trabalho,
encontra-se resumida na passagem de Marx, segundo a qual “o reconhecimento dos direitos
humanos por parte do Estado moderno tem o mesmo sentido do reconhecimento da
escravatura pelo Estado antigo”, o seja, a regulamentação de tais relações. (2013, p. 132)
Por sua vez, se propomos por no centro da análise o papel da Justiça do Trabalho, a
abordagem proposta pelo historiador Fernando Teixeira da Silva, em sua obra
Trabalhadores no Tribunal, (2016) nos parece bastante frutífera, sobretudo se pensarmos na
maneira como tal Justiça se relacionou com as querelas trazidas pelos trabalhadores rurais,
bem como a significação destes elementos para o Golpe de 1964. Nessa obra o autor defende

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que o golpe de 1964 não foi resultado da incapacidade dos trabalhadores em perceberem
que, ao adentrarem os espaços abertos pelas instâncias oficiais a partir da promulgação da
CLT, estavam pondo em movimento o mecanismo que invariavelmente acabaria por
dominá-los, esquecendo que a Justiça do Trabalho era na verdade apenas uma “Justiça de
Classe”, a serviço dos patrões, o que teria sido explicitado com o advento do Golpe, por
outro lado, também se recusa a ideia de que o Golpe sinalizaria a incapacidade apresentadas
pelas instituições criadas no primeiro governo de Vargas de absorver e controlar os conflitos
sociais. Ao contrário, para o autor, e isso é fundamental no presente trabalho,
“o que parecia inadmissível para grande parte dos envolvidos nas articulações golpistas,
especialmente os empresários, era a maneira pela qual os trabalhadores e seus “representantes”
haviam ocupado e dado sentido diversos aos espaços oficiais de representação de interesses.” (...)
nesse sentido, “o que o estudo sobre a atuação da Justiça do Trabalho naquela conjuntura
demonstra é que um conjunto de lutas acumuladas pela expansão dos direitos dos trabalhadores
urbanos e rurais encontrou, de fato e de direito, vazão institucional” (2016, p. 23)
No caso mais específico das relações de trabalho vigentes no Campo, parece ainda mais
clara a ação de proprietários e, após o golpe, das forças de repressão, no sentido de
limitarem o recurso dos trabalhadores rurais ao judiciário trabalhista, assim como a
perseguição aos sindicatos. Não parece ser prudente crer que seja casual o fato de que o
Golpe venha a ocorrer imediatamente no ano que se seguiu a promulgação do Estatuto do
Trabalhador Rural e, dessa maneira, da introdução dos trabalhadores rurais na arena da
Justiça do Trabalho, sendo necessário percebermos essas disputas como elementos que
compões o cenário vivenciado pelos trabalhadores rurais e que por isso comparecem de
diversas maneiras em seus depoimentos. Em suma, temos de ter presente que
“do início de 1963 até abril de 1964, não foram apenas os movimentos pela reforma agrária e as
Ligas Camponesas que estiveram sob a mira do golpe, mas, sobretudo, o rápido processo de
organização dos trabalhadores e suas conquistas no interior das instituições corporativistas,
destacando-se, entre outras, os sindicatos e a Justiça do Trabalho”. (SILVA, 2016, p. 23)
É nesse contexto que pretendemos analisar um caso bastante paradigmático de violência
contra um trabalhador rural, que parece condensar todos os elementos que abordamos até o
presente momento.
Trata-se do caso do trabalhador Manoel Biró da Silva, que se encontra registrado no
Inquérito nº 02 do ano de 1969, da Junta de Conciliação e Julgamento de Nazaré da Mata.
Neste processo, o proprietário do Engenho Diamante, situado na cidade de Nazaré da Mata,
vem perante a Justiça do Trabalho requerer a apuração de cometimento de falta grave por
parte de Manoel, seu trabalhador estável, que teria “desaparecido do serviço (...) após rixa

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com um policial da guarnição militar sediada em Nazaré da Mata, (...) sem sequer avisar ao
Requerente (proprietário)” tendo ainda “avisado na propriedade que não mais voltará ao
serviço.” Sob tais alegações tem início o Inquérito, que apresenta já na primeira audiência de
instrução a versão do trabalhador acerca dos fatos ocorridos, e que motivaram sua ausência
no trabalho. (Processo Trabalhista da Junta de Conciliação e Julgamento de Nazaré da Mata.
Inquérito 02/69, p. 02)
Manoel conta então que, após regressar do trabalho, estava em sua casa quando
“apareceram três policiais, os quais perguntaram o seu nome e tendo ele se identificado
como sendo a pessoa procurada lhe disseram que tinham conhecimento que ele (...) era
possuidor de um revolver e de uma espingarda de cartucho”. Nesse momento Manoel afirma
ter ouvido os policiais conversando entre si, tendo um deles dito aos outros que “nem todas
ordens que se recebe pode ser cumprida, olha os filhos deste moleque”, dando ordem em
seguida para que Manoel lhes seguisse e entrasse na viatura. Uma vez o veículo em
movimento, Manoel recorda que lhe perguntaram, entre outras questões, “se os outros eram
agitadores como você é”, ao que respondeu prontamente que “assim sendo todos nós seriam
agitadores, porque cobra o salário do dia.” Continuando com o percurso ditado pelos
policiais, que dirigiram até a residência de outro trabalhador que, segundo o próprio Manoel,
também tinha armas, procederam à abordagem do trabalhador indicado. Nesse momento de
seu relato, Manoel não explica exatamente como aconteceu a abordagem desse trabalhador,
continuando seu depoimento a partir do momento em que foi novamente posto dentro da
viatura e esta seguiu mais uma vez o caminho ditado pelos policiais, tendo ele ouvido de um
dos policiais que eles “haviam recebido a missão na Secretaria do 4º Exercito, (...) a missão
de matar o requerido (Manoel)”. Nesse momento ele relata que a viatura saiu da pista e
entrou pelo canavial, sendo o trabalhador em seguida espancado pelos três policiais, após o
que um dos policiais continuou dizendo, em tom de recomendação, para ele “nada dizer a
ninguém nem mesmo no sindicato” e “que se algo dissesse voltaria por uma madrugada, o
enforcaria e o colocaria em um saco e que o enterraria na beira do rio, no massapé e que no
final lhe deram dois banhos em uma barreira.” Afirma ainda o trabalhador que “acha que o
espancamento partiu do seu patrão.” (Processo Trabalhista da Junta de Conciliação e
Julgamento de Nazaré da Mata. Inquérito 02/69, pp. 08-09)
A brutalidade deste relato nos traduz de maneira bastante impactante a realidade
cotidiana de parte significativa dos trabalhadores rurais no contexto do Regime Civil-
Militar. Naqueles anos a violência patronal por diversas vezes contou com o apoio das
forças do regime, que tiveram nos movimentos de trabalhadores rurais um de seus alvos

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privilegiados. Tais práticas repressivas acabaram por criar um ambiente em que os próprios
trabalhadores sustentavam justos receios acerca do recurso à Justiça do Trabalho, temendo
ter uma sorte semelhando à de Manoel Biró da Silva e de tantos outros trabalhadores
perseguidos. Alguns dos depoimentos constantes neste processo salientam essa situação,
como o do trabalhador rural Luiz Batista de Lima, que afirma que Manoel “sempre vivia de
encontro com o engenho por motivo de questões de trabalho”, atribuindo uma visão negativa
a essa atuação reivindicatória de Manoel perante as questões em que julgava ter seus direitos
feridos. Ainda mais relevantes neste sentido são os relatos do comerciante José Ramos e do
administrador do Engenho Diamante, Manoel Miguel da Silva. O primeiro afirma não saber
se Manoel
“é bom elemento;” acreditando, no entanto, “que ele é mais mau elemento porque ouvia falar
que antes ele vivia sempre com questões; que não sabe se o Requerido já sofreu alguma
punição no engenho; que as questão de que falam referentes ao Requerido são questões
trabalhistas”.
O segundo, por sua vez, afirma que o trabalhador espancado “criava incidentes; que
convidava os colegas para fazer greve no engenho; que não tem conhecimento tenha ele sido
punido por estas propostas”. (Processo Trabalhista da Junta de Conciliação e Julgamento de
Nazaré da Mata. Inquérito 02/69, pp. 33-34)
Por outro lado, a atividade da repressão não visava apenas os trabalhadores rurais
individualmente, mas também tinha como objetivo criminalizar aquelas instituições
construídas por eles ao longo de vários anos de lutas. É esse o caso, por exemplo, dos
sindicatos rurais, que, na fala do policial responsável pelo espancamento de Manoel, aparece
como uma instituição absolutamente subversiva, que incitava seus afiliados contra a ordem
estabelecida. Em seu depoimento, o Sargento Severino José de Santana fornece um relato do
fato ocorrido com Manoel que parece bastante inverossímil. Além de negar o espancamento
do trabalhador, ele conta que
“deslocando-se juntamente com dois soldados em direção a uma Cerâmica situada no
município de Tracunhaem passou por uma casa defronte da qual se encontrava o Requerido
debruçado sobre um cavaco o qual preferiu as seguintes expressões: “lá vão os macacos do
governo” e que iriam por ali comer bala e que a polícia vivia com fome; que ouvindo as
expressões ditas pelo Requerido voltou a ele e se dirigiu cumprimentando-o e dele indagando
se aquelas palavras se referiam a sua pessoa e a dos seus acompanhantes, tendo ele
respondido que sim e perguntado se iria acontecer alguma coisa. Respondeu-lhe, então, que
sim; que interrogou-o sabendo se ele possuía porte de arma para ter um revolver e uma faca,
tendo ele respondido que não, pois era sócio do sindicato e sendo assim poderia portá-las;”.

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(Processo Trabalhista da Junta de Conciliação e Julgamento de Nazaré da Mata. Inquérito


02/69, p. 32)
Esse relato é importante, pois expressa diversos elementos da repressão aos trabalhadores
rurais. Gostaríamos neste ponto de salientar especificamente a parte que se relaciona mais
diretamente com a caracterização do Sindicato Rural. Já nos referimos a essa questão
anteriormente, mas acreditamos que é importante concretizar valendo-nos de um exemplo
retirado da obra da historiadora Maria do Socorro de Abreu e Lima, Construindo o
Sindicalismo Rural, que nos permite perceber a importância dessas instituições para os
trabalhadores rurais e como as forças de repressão e os proprietários perceberam o perigo
que eles podiam representar para seus interesses. Trata-se da fala do trabalhador e dirigente
camponês Amaro Luís de Carvalho, que rememora o grande acontecimento que eram as
assembléias sindicais:

“eram verdadeiras apoteoses. As denúncias contra os crimes dos senhores de engenho, dos
fornecedores de cana e usineiros eram levadas às assembléias e às praças públicas. Os reacionários
locais eram denunciados. Os policiais títeres eram apontados e surrados pelos camponeses. Os agentes
secretos do exército, como aconteceu no engenho Oiteirão eram presos e desarmados. Os ‘cortejacas’
e ‘chaleiras’ eram postos para fora dos sindicatos. Os administradores comprometidos, desarmados e
presos eram trazidos até os sindicatos. Os vigias surrados e desarmados. Os camponeses medrosos
foram filiados à força aos Sindicatos. Em cada cidade, os comerciantes tidos como ‘tubarões’ eram
denunciados na assembleia sindical. As delegacias de polícia foram abjuradas pelos camponeses.
Todas as questões eram levadas ao sindicato, não mais a polícia, tamanho era o respeito que tinham
pela organização. As autoridades constituídas, para os camponeses, não tinham nenhum valor, todo
poder emanava do sindicato.” (2012, p. 49.)
Tal relato nos ajuda compreender a relevância dessas instituições enquanto espaços
construídos pelos próprios trabalhadores para discutirem suas questões, num ambiente de
relativa liberdade da opressão patronal.
No caso do processo de Manoel, o trabalhador obtém ganho de causa ao comprova o
espancado e a internação de 21 dias em decorrência dos ferimentos provocados pelos
policias, justificando dessa maneira sua ausência no trabalho. Em rigor, sua vitória no
tribunal significou a garantia de retornar ao trabalho nas condições anteriores ao seu
espancamento.
Neste sentido, acreditamos que os depoimentos aqui trazidos possibilitam a
ampliação da massa crítica acerca das condições de trabalho na zona canavieira
pernambucana e, aliados à bibliografia existente acerca desse período, nos permitem, apesar
dos limites e da especificidade do ambiente em que foram realizados, ter acesso à fala dos

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próprios trabalhadores, resgatando dessa maneira as memórias dessas relações de trabalho,


apresentando assim um enorme potencial analítico, ao passo que atesta a importância da
documentação da Justiça do Trabalho para a História do Trabalho no Brasil.

CONCLUSÃO
O presente trabalho teve como objetivo refletir acerca do potencial apresentado pelos
depoimentos de trabalhadores registrados nos processos trabalhistas para o resgate da
memória das relações de trabalho em nossa sociedade. Para tanto, utilizamos exemplos de
processos referentes às relações de trabalho na zona canavieira de Pernambuco, a fim de
refletir sobre o potencial analítico de tais documentos com o auxílio de obras
historiográficas importantes acerca desse objeto. Acreditamos que os depoimentos aqui
trazidos ajudam a compreender não apenas elementos fundamentais que estruturam tais
relações de trabalho, como a questão da terra, mas também esclarecem elementos relevante
no que diz respeito a aspectos particulares dos movimentos de trabalhadores rurais no
período do Regime Civil-Militar, como a criminalização dos sindicatos rurais, que se
constituíram em um importante espaço de luta dos trabalhadores por melhores condições de
trabalho e de vida. Dessa maneira, acreditamos contribuir também com o reconhecimento da
importância da documentação da Justiça do Trabalho para a compreensão da História do
Trabalho no Brasil, ajudando a refletir sobre a importância da sua preservação.

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REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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Partidos, Projetos. 2. ed. Recife: Editora Universitária da UFPE, 2012.
DABAT, Christine Rufino. Moradores de Engenho: relações de trabalho e condições de
vida dos trabalhadores rurais na zona canavieira de Pernambuco, segundo a literatura, a
academia e os próprios atores sociais. 2ª. ed. rev. Recife: Ed. Universitária da UFPE, 2012.
EDELMAN, Bernard. A Legalização da Classe Operária. São Paulo: Boitempo Editorial,
2016.
JACCOUD, Luciana de Barros. Movimentos Sociais e Crise Política em Pernambuco
1955-1968. Recife: FUNDAJ, Editora Massangana, 1990.
KARL, Marx e ENGELS, Friedrich. A Sagrada Família. Tradução, organização e notas de
Marcelo Backes. 1 ed. revista. 1ª reimp. São Paulo: Boitempo, 2013.
LUKÁCS, György. Para uma Ontologia do Ser Social I. São Paulo: Boitempo, 2012.
MASCARO, Alysson Leandro. Estado e Forma Política. São Paulo: Boitempo, 2013.
FERREIRA, Rafael Leite. O “Novo Sindicalismo” Urbano em Pernambuco (1979-1984):
entre mudanças e permanências. Recife: Editora Universitária da UFPE, 2012.
RANGEL, Maria Socorro. Territórios de Confronto:uma história da luta pela terra nas Ligas
Camponesas. IN: LARA, Silvia Hunold; MENDONÇA, Joseli Maria Nunes (orgs). Direitos
e Justiça no Brasil: ensaios de História Social. Campinas: Editora da Unicamp, 2006, p.
457-501.
SILVA, Fernando Teixeira da. Trabalhadores no Tribunal: conflitos e Justiça do Trabalho
em São Paulo no contexto do golpe de 1964. 1. ed. São Paulo: Alameda, 2016.

ARQUIVOS PESQUISADOS

1. Acervo do Memorial da Justiça do Trabalho em Pernambuco – TRT6


a. Processos Trabalhistas da Junta de Conciliação e Julgamento de Goiana
b. Processos Trabalhistas da Junta de Conciliação e Julgamento de Nazaré da Mata

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A CONSTRUÇÃO HISTÓRICA DAS RELAÇÕES SOCIAIS E DE DIREITOS


TRABALHISTAS REFERENTE ÀS FAMÍLIAS DE TRABALHADORES RURAIS E
INDUSTRIAIS DA USINA SANTA TEREZINHA EM PERNAMBUCO NA DÉCADA
DE 1980.1

Cheyenne David de Medeiros Teodózio


Willams Fernando Santos da Silva.
Graduandos em História pela UFPE
Estagiários do Memorial da Justiça do Trabalho em PE
cheyenneteodozio@hotmail.com
willams-13@hotmail.com

Resumo:
A pesquisa analisa a crise econômica e social instalada a partir da intervenção
judicial na Usina Santa Terezinha responsável por um dos maiores descumprimento ao
direito do trabalho, envolvendo cerca de seus 3.000 trabalhadores da indústria e do campo.
Com as denúncias de desvio e corrupção de usineiros, do administrador - indicado como
interventor pelo o então juiz da Junta de Conciliação e Julgamento de Palmares - também
acusado de participação nos desvios dos lucros fraudatórios, desencadeou o escândalo, que
foi levado aos governadores dos dois estados e ao presidente José Sarney. Além das intrigas
políticas, chama-nos a atenção à condição de miséria imposta a classe trabalhadora dos
municípios de Água Preta e Palmares - PE, Jundiá e Jacuípe - AL, cuja fome e miséria de
várias famílias ligadas às atividades laborais da usina motivaram o saque ao comércio e o
colapso da economia, paralisando diversas atividades. O estudo da crise tem como viés o
aporte teórico de “solidariedade orgânica” de Durkhein (2007). O processo datado da década
de 1980 e as notícias do escândalo são manchetes dos jornais Diário de Pernambuco e
Gazeta de Alagoas, encontrados no acervo do Memorial da Justiça do Trabalho.

Introdução

Localizada no município de Água Preta em Pernambuco, a usina Santa Terezinha


S/A foi fundada nos anos 20 quando comprado o Engenho de Santa Tereza por José Pessoa
de Queiroz, a empresa passou a funcionar na região influenciando também a economia de
algumas cidades vizinhas como Jundiá e Jacuípe do estado de Alagoas, além de estar no
ranking das três melhores usinas açucareiras do Brasil na década de 1930. No período de
1
Artigo apresentado no VII Seminário do TRT 6ª Região/UFPE e II Caravana ANPUH/PE - História, Trabalho
e Direitos, sob orientação da Prof. Dr. Marcília Gama da Silva, DEHIST - UFRPE. Apoio: TRT-
6/UFRPE/UFPE no projeto "Sindicalismo em Pernambuco em tempos de Ditadura (1974-1985)" do Memorial
da Justiça do Trabalho em Pernambuco. Recife, 2017.

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1960 essa empresa colheu uma de suas melhores safras e usufruiu de uma economia estável,
entretanto a partir dos anos 70 enfrentou o começo de uma instabilidade financeira e
trabalhistas, tendo como consequência o inicio de leilões públicos de seus imóveis. Ao
chegar aos anos 80, ponto de partida do nosso estudo, o declínio financeiro e as
transgressões aos direitos trabalhistas fizeram com que o poder judicial trabalhista
interviesse confiscando os bens e controlando a administração da instituição, abrindo espaço
para venda de ações que descentralizavam o poder administrativo e financeiro da família
Pessoa de Queiros, proporcionando o descontrole também dos pagamentos aos funcionários.
Mais precisamente no ano de 1984, enfrentou outra grande crise, e foi nesse contexto
que surgiram denúncias de corrupção na parte corporativa da empresa, seus trabalhadores
sofreram cortes e muitos não receberam seus salários, instalando fome, saques e protestos na
cidade de Água Preta. Segundo notícia do Diário de Pernambuco de 09.03.1986, a economia
da cidade parou, as escolas pararam de funcionar por não ter custo de manutenção, o
barracão da empresa que fornecia alimento aos funcionários foi saqueado. Com o medo
instalado e com a ordem judicial de paralisação da empresa, partiu da Associação dos
Fornecedores de Cana de Pernambuco um comunicado levando ao conhecimento do caso ao
presidente José Sarney, ao Banco do Brasil, aos ministros da Indústria e Comércio,
Planejamento e Fazenda, ao governador de Pernambuco Roberto Magalhães e também ao
presidente do IAA (Instituto do Açúcar e do Álcool) para que medidas fossem tomadas
quanto a esse processo. Nesse telex era pedido que houvesse solução em relação às
retenções da produção açucareira pedida pelo IAA2.

Uma breve história sobre a cana-de-açúcar no Brasil

Pernambuco foi o principal produtor de cana-de-açúcar do Brasil até o século


XX, quando foi ultrapassado pela produção de São Paulo (ANDRADE, 2001). Esse cultivo
foi iniciado no século XVI com o sistema de plantation. Para o geógrafo Manuel Correia
(2001), fatores físicos e humanos fizeram com que o cultivo de cana fosse tão produtivo no
estado de Pernambuco. A proximidade entre o estado e o mercado consumidor europeu era
maior do que os demais locais produtores brasileiros. Além disso, o solo massapé

2
O Instituto do Açúcar e do Álcool foi criado em 1933 no governo de Vargas com o intuito de orientar,
fomentar e controlar a produção de açúcar e álcool e de suas matérias-primas em todo o Brasil. Foi criado sob
uma intervenção governamental na agroindústria da cana depois de pedido dos usineiros que alegaram mais
uma crise na produção. Essas crises historicamente são pretexto para os usineiros recorrerem ao subsídio do
Estado. Sua extinção aconteceu em 1990 pelo então presidente, Fernando Collor.

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extremamente fértil para a agricultura domina a zona da mata pernambucana e ainda o clima
quente com duas estações definidas de chuva. Dentre os fatores humanos, o sistema da
agricultura açucareira também foi definitivo para esse sucesso. Na atualidade, apesar da
forte produção canavieira de Pernambuco, o eixo principal encontra-se no sudeste de país.
Isso por conta das inovações de técnicas agrícolas mais sofisticadas que as do nordeste e da
proximidade com o mercado platino, forte comprador no presente.
Durante o período de Estado Novo, o presidente Getúlio Vargas sancionou a
Consolidação das Leis do Trabalho, mais especificamente no ano de 1943. Esse
acontecimento foi um marco na história brasileira por pela primeira vez incluir os direitos
trabalhistas na legislação do Brasil. Nessa época, o Brasil efervescia com as lutas sindicais
dos operários de São Paulo, mas também era um país de maioria agrária e nesse momento os
trabalhadores rurais foram atendidos superficialmente na CLT. Por isso, no final dos anos
50, os movimentos sociais rurais ficaram cada vez mais fortes, fazendo pressão por uma
legislação que pudesse ser eficaz para o campo. As Ligas Camponesas tem forte participação
nesse contexto com participação dos próprios trabalhadores. Além delas, também se teve a
presença dos sindicatos incentivados principalmente pela Igreja Católica e pelo Partido
Comunista. A CLT era deficiente no tratamento do trabalhador do campo, então em 1963 foi
criada uma legislação exclusiva para eles: o Estatuto do Trabalhador Rural. Apesar de ter
sido a primeira lei rural que tratava do tema, é perfeitamente possível notar sua ineficiência
quando se percebe a quantia de infrações nas áreas rurais que duram até a atualidade.

Fundação da Usina Santa Terezinha

Comprada de 1926 por José Pessoa de Queiroz o meio aparelho “São Luiz”
só foi transformado em usina em 1928. O sobrinho do ex-presidente do Brasil (1919-1922),
Epitácio Pessoa, era comerciante de tecidos em atacado e também foi presidente do IAA
(1950-1951). Já em 1930, a usina era a 3ª maior produtora de açúcar do Brasil e logo em
1936, a maior produtora nacional de álcool. Localizada no município de Água Preta, na zona
da mata de Pernambuco, podia escoar sua produção por uma ferrovia que ligava desde 1862,
Recife a Una (atual Palmares). Essa rodovia tinha sido construída por concessão imperial à
Great Western Railway Company. Com o tempo, os donos da usina fazem diversas
solicitações ao governo do estado para que construam rodovias, auxiliando no fluxo de
transporte dos produtos. De acordo com notícia do jornal Diário de Pernambuco da década

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de 1980, a cidade já sofria com as enchentes do rio Una que passa pela região de Água Preta
e Palmares.
O centro industrial foi construído no antigo Engenho Santa Teresa comprado da
montadora The Dyer Company de Cleveland – Ohio – U.S.A. Na década de 30, a sua
inovação se dava no maquinário capaz de extrair o açúcar e o beneficiamento dele com
reduzido uso de operários. Além disso, alta capacidade de produção e armazenamento de
melaço e álcool se destacava nacionalmente.

Do doce ao amargo: crise na produção açucareira da Usina Santa Terezinha

O caso da Usina Santa Terezinha foi um dos mais polêmicos julgados pela
Junta de Conciliação e Julgamento de Palmares. Partindo do principio, a empresa quando
fundada dispunha de grande aparato social e trabalhista em relação às outras usinas do país e
por esse motivo foi considerada inovadora no ramo da produção açucareira nacional. Essa
indústria açucareira assim quando instalada tratou de desenvolver atividade social na
comunidade do município de Água Preta, oferecendo escolas aos funcionários e seu
familiares, ensino técnico, além de desenvolver moradias através da construção de vilas ao
seu entorno, tudo foi custeado pela usina. Para seu período de inicial em suas atividades
produtivas no ano de 1930, o caráter moderno foi o destaque para José Pessoa de Queiroz, a
instituição manteve em sua direção administrativa até a sua terceira geração essa mesma
família. A industria dos Pessoa de Queiroz pode aproveitar de um bom funcionamento
produtivo, e assim como o sucesso dessa instituição, sua crise também entrou e marcou a
historiografia nacional como um dos maiores colapsos da produção açucareira do Brasil.

"Assistência Social: Para os seus operarios (sic) a diretoria da usina


construiu ultimamente uma vila operaria. As casas são agrupadas em arruados com
aspecto uniforme, piso ipermeabilisado (sic), cobertura de telhas, fossa liquefatora
e iluminação elétrica (sic)." (Diário de Pernambuco. A mais moderna fabrica de
assucar (sic) de Pernambuco – 01.01.1932).

A usina dispunha de 14 propriedades agrícolas, dentre elas está a própria Santa


Teresinha, Gabinete, Aquidaban, Bom sossego, Jarari, Xexéu, todas essa contribuíam para o
seu fornecimento de cana-de-açúcar. A propriedade também utilizava terceiros para o
fornecimento de sua matéria prima, "além das canas fornecidas por seus engenhos a Santa

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Teresinha recebe cana de outras 12 propriedades pertencentes a terceiros." (Diário de


Pernambuco. A mais moderna fabrica de assucar (sic) de Pernambuco – 01.01.1932). Para
seu funcionamento dispunha de uma oficina mecânica para construção e concerto de peça de
seu maquinário, por sua localização tinha acesso à chegada de matéria prima podia tanto ser
por sua via férrea, dispondo de 70 quilômetros que ligava até a estação de Gravatá.
Quanto ao seu histórico de funcionamento, a empresa agro-açucareira seguiu do seu
fundamento até os anos 60 como um parque industrial próspero, porém chegando aos anos
de 69 e 70, os problemas econômicos da empresa começaram a se acumular por casos
trabalhistas. Especialmente em 1972, quando houve uma de suas maiores crises, chegando
ao caso de ter seus patrimônios levados a leilão público. Entretanto com a ajuda do IAA, a
empresa conseguiu amenizar seus problemas financeiros temporariamente. Mas esse
imediatismo da intervenção do IAA não foi suficiente para evitar a maior crise da história da
Usina Santa Terezinha e que segundo documentos do administrativo da empresa foi a
principal causa dessa crise3, que aconteceu em 1982 paralisando a indústria. As safras
sofreram com essa paralisação nos períodos de 82/83 e 83/84, assim não podendo fornecer
pagamento aos seus funcionários gerando a instalação da fome e da calamidade social aos
empregados e familiares que dependiam da usina como fonte primária de renda. Em 1984, o
IAA com o apoio do Ministério da Indústria e Comércio voltou a investir na empresa
pagando as folhas dos empregados, quitando uma grande parcela de suas dívidas.

As consequências sociais da crise econômica e reivindicações dos trabalhadores

A estrutura inovadora da Usina Santa Terezinha não foi capaz de suprir o descontrole
causado por sua crise financeira aos seus empregados. O papel desempenhado por esta
instituição foi marcante para o município de Água Preta, a estrutura tecnológica e social foi
grandemente afetada depois desse colapso social, entretanto a real consequência refletiu no
modo de vida dos seus trabalhadores. Nessa perspectiva é que deve ser levado em conta,
visto que para Marc Bloch (2002) em seus estudos da história na obra "Apologia da
História", essa ciência histórica tem como objeto de estudo o homem e o seu comportamento
social através do tempo. Sendo assim, todas essas reações referentes às causas exercidas pela
ação da usina devem ser consideradas com toda a influência do espaço, o mesmo deve ser
analisado e considerado como um todo, visto que as relações de trabalhos e modo de vida

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Relatório arquivado pela Justiça do Trabalho feito pelo administrador da usina, Silvio Souza Leão.

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estavam ligadas diretamente ao funcionamento da instituição e várias famílias dependiam


dela como renda para o seu subsídio.

"O espaço deve ser considerado como uma totalidade, a exemplo


da própria sociedade que lhe dá vida (...). O espaço deve ser considerado como um
conjunto de funções e formas que se apresentam por processos do passado e do
presente (...) o espaço se define como um conjunto de formas representativas de
relações sociais do passado e do presente e por uma estrutura representada por
relações sociais que se manifestam através de processos e funções" (SANTOS,
1978, p 122).

Os casos de greves e protesto se intensificaram, saques, paralisações das atividades


na cidade foram palco de muitas notícias no estado de Pernambuco. A notícia envolvendo o
candidato a prefeito do município, "João de Dito" do PMDB, fez a seguinte denúncia no dia
13 de julho de 1982 em entrevista ao jornal Diário de Pernambuco: "A crise da Usina Santa
Terezinha já é também responsável por quase 1 mil reclamações trabalhistas na Comarca de
Palmares, sempre por problemas relativos à falta de pagamento" e complementa dizendo que
"o município de Água Preta passou a viver séria crise, pois agora existem mais de 5 mil
chefe de famílias sem trabalho". Esse caso se deu devido à paralisação no funcionamento da
produção de açúcar da usina, o ano de 1982 marcou a crise intensa dos anos 80 das usinas
em Pernambuco, visto que outras usinas da Zona da Mata Sul no estado passavam pelo
mesmo problema a uma nota da diretoria da Associação dos Fornecedores de Cana de
Pernambuco na data de 12 de abril de 1983, afirmando que a usina do município de
Barreiros também se encontrava em debito com seus trabalhadores.
O caso é que a usina instalada na região de Pernambuco também mexeu com o
estado de Alagoas com toda essa crise, no total de municípios afetados foi contabilizado em
oito. Nesse contexto, o debate de que o homem faz a sociedade na mesma medida que ela o
faz pode referir-se a situações crítica e deploráveis em que os trabalhadores e seus familiares
passaram, notícias referentes a saques a mercados, greves e violências na localidade de Água
Preta.
"FOME: Mais de mil crianças, filhos de trabalhadores, deixaram de
frequentar a escola de Água Preta e algumas foram levadas para, porque estavam
desmaiando de fome. Várias escolas de Água preta, desde a sexta-feira, estão
fechadas por conta do problema da Usina Santa Terezinha." (Diário de
Pernanbuco, 9 de março de 1986).

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Esses casos ficaram comuns no município de Água Preta, porém a reação dos
trabalhadores foi de forma combatente a indústria. A instalação de greves, protestos e
exigências foram feitas por esses operários, noticiado no Diário de Pernambuco na data de
21 de fevereiro de 1986 que esses funcionários pediram a demissão do dirigente da usina.
Outros protestos envolveram o governado de Pernambuco Roberto Magalhães em uma
reunião no Palácio, que afirmou que a usina estando a cargo do poder judiciário não poderia
fazer mais nada.
Referente ao pensamento do sociólogo Émile Durhkeim, o fenômeno social do crime
é que ele fere a consciência coletiva, esse fatos de retenção salarial da usina, a fome, os
protestos dos operários foram todos atos que interagiu com essa consciência social do
município de Água Preta, no ponto que cada condição seguiu uma sequência de reações
condizentes aos abusos que a em presa estava causando com seus funcionários. De certa
forma, toda essa região passou a depender dessa usina, por motivos que já foram citados
anteriormente, o caso é que, especialidades e especificidades dos moradores se voltaram
todas para a indústria, a dissidência direta desse povo para com essa instituição gerou
divisões, no sentido de o trabalho foi dividido e cada um passou a aprender uma função, e
aqueles que não trabalhavam na usina, também poderiam desenvolver atividades
econômicas ligadas a ela. O principio de Solidariedade Orgânica fundamentado por
Durkheim ligado a sociedade moderna, que se estabeleceu entre os indivíduos que se
relacionam com elevação no grau de divisão do trabalho pode ser levado em conta de que a
usina foi a base econômica da região, cerca de 3.000 trabalhadores contabilizados no mês de
janeiro de 1986, sendo esses trabalhadores industriais e rurais que articulava o trabalho cada
um especializado em sua função e em caso de paralisação de atividade ficavam sem exerce -
lá.
"As pessoas não estão juntas porque fazem juntas porque fazem juntas as
mesmas coisas, mas o contrário: estão juntas porque fazem coisas diferentes e,
portanto, para viver (inclusive para comer, beber e vestir) dependem das outras
que fazem coisas que elas não querem ou não são mais capazes de fazerem"
(RODRIGUES, Tosi Alberto. Sociologia da educação. 2011).

O processo judicial e intervenção da Justiça

As paralisações tornaram-se uma realidade constantemente vivida pela Usina Santa


Terezinha e por seus funcionários devido ao seu histórico de crise. As safras produtivas de

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cada ano era o que ditava se a indústria teria condições de seguir com o funcionamento ou se
paralisaria. No ano de 1982, a usina, por ter tido problemas com a safra de 1981, passou a
não pagar novamente os seus trabalhadores. Visando resolver esse problema, ela sofreu sua
primeira intervenção, sendo sua administração passando a ser gerenciada por uma comissão
constituída de representantes do governo do estado, o funcionário do BANDEPE, Reynaldo
Fernandes Vieira de Souza.
No ano de 1984 junto com os 1200 processos de denúncias trabalhista com grande
parte de seus funcionários demitidos não recebendo seus devidos direitos, o juiz presidente
da Junta de Conciliação e Julgamento de Palmares, em Janeiro 1984, decretou a intervenção
judicial na empresa. O argumento utilizado foi que a ordem judicial controlaria a empresa
por cerca de 10 anos para colocar o parque em uso novamente, até que as causas trabalhistas
e débitos fossem resolvidos, a fim também de pagar cerca de 150 pequenos e médios
fornecedores que disponibilizavam e se deslocavam cercam de cem quilômetros com ônus, e
tudo isso contribuiu para o empobrecimento de oitos municípios, seis Pernambucanos e dois
alagoanos.
. Nessa mesma época existia ainda a divida referente ao empréstimo financeiro feito
pelo IAA, que agora estava cobrando o debito juntamente com o Banco do Brasil que
também havia emprestado dinheiro para a usina. Dividas também referentes a pagamentos
de impostos, no caso ICM do estado de Alagoas.

A situação jurídica: Por sentença judicial datada de 05 de janeiro de


1984 e publicada no Diário Oficial do Estado de Pernambuco em 12 de janeiro do
mesmo ano, o então Exmo. Sr. Dr. Juiz Presidente da JCJ dos Palmares decretou o
usufruto pleno e abrangente de todos os frutos, utilidades e rendimentos que
fossem produzidos pela Usina Santa Teresinha S/A durante o prazo de 10 (dez)
anos, em favor dos credores trabalhistas, todos munidos de títulos executivos
judiciais, em Final de execução. Como a Usina Santa Teresinha S/A é a titular da
maioria das ações ordinárias da K-METAL S/A INDÚSTRIA METALÚGICA,
esta empresa também sob o controle da administração judicial." (RELATÓRIO
DA ADMINISTRAÇÃO JUDICIAL DA USINA SANTA TERESINHA).

Até que em dezembro de 1985 com a reativação da Usina por intervenção judicial
retomou a suas atividades, porém mesmo com sua safra boa prevista para a produção de
aproximadamente 720 mil sacos de açúcar, o dinheiro que foi pedido aos órgãos públicos
como o IAA, Banco do Brasil e "bilhões de cruzeiro" a justiça do trabalho, em Palmares.
Essa safra que serviria para o retorno da empresa foi cobrada como fonte de quitação de

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débitos aos órgãos públicos que cobravam o retorno, foi suspendido novamente ao
pagamento de seus funcionários. Em suma, com o aparato prestado pelo judicial a usina e
com as safras de 1986 e a de 1987 a industria conseguiu lucrar cerca 6.728.112,37 cruzados
segundo o seu relatório de demonstração financeira do ano de 1987, conseguindo quitar
majoritariamente suas dividas.

O joio no meio da cana-de-açúcar: supostos casos de corrupção na Usina Santa


Terezinha

Os direitos trabalhistas assegurados pelo Estatuto do Trabalhador Rural (ETR)


"permitiu às grandes massas de empregados uma existência legal enquanto assalariados, no
sentindo de garantir regras às relações de trabalho e propor uma solução legal aos conflitos"
(DABAT, Christine - 2008). E referente aos direitos dos trabalhadores rurais da Usina Santa
Terezinha, aquilo que o ETR garantia foi negado a partir do ano de 1972, quando aconteceu
a primeira crise. Os trabalhadores dessa instituição ficaram sem receber seus salários e foi
necessário recorrer a Junta de Conciliação para prestar denúncias. Esse primeiro impasse da
empresa foi corrigido graças ao financiamento do IAA que financiou o pagamento desses
trabalhadores. Entretanto, outras crises vieram e mais retenções de salários. Tanto que entre
o ano 1983 e 1984, a usina acumulou mais de mil e duzentos processos trabalhistas na Junta
de Conciliação e Julgamento de Palmares, só sendo menor que a taxa de funcionários
demitidos. Esses mesmos empregados passando por situação de fome e miséria segundo o
documento da administração judicial da Usina Santa Terezinha referente ao "acervo em
execução perante a Junta de Conciliação e Julgamento de Palmares, conforme Diário Oficial
do Estado de Pernambuco, de 14.11.1984, Diário da Justiça, p. 20".

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Outros casos de corrupções foram denunciados por trabalhadores, abuso e desvio de


mercadoria referente ao administrativo colocado da indústria que foi designado pela Junta de
Conciliação e Julgamento de Palmares. Esse caso tornou-se público graças ao líder do
movimento e presidente do sindicato, Benedito Arcanjo da Silva, que organizou mais de 800
operários para protestarem na frente ao Tribunal Regional do Trabalho (TRT), reivindicando
os salários dos trabalhadores que não tinham recebido mais uma vez. O caso foi dialogado
com o presidente do TRT, que prometeu uma solução para esses empregados.

"Os operários da Usina Santa Terezinha estão há cinco semanas sem


receber os salários porque a industria paralisou suas atividades e começou a
desviar canas para fábricas de açúcar da Região, como Estreliana, 13 de Maio e até
para a Santana em Alagoas. O desvio das canas, segundo Benedito Arcanjo,
contribuiu para aumentar o passivo da usina" (Anexo do jornal Diário de
Pernambuco ao processo trabalhista da Justiça do Trabalho 6° Região).

Outro caso de denúncia envolve o próprio representante judicial, Sílvio Carneiro


Leão, acusado de estar dilapidando o patrimônio da empresa e recusando-se a cumprir
obrigações trabalhistas, segundo o anexo do processo da Justiça do Trabalho da Junta de
Conciliação e Julgamento de Palmares. Os trabalhadores também denunciaram outro caso de
falta de pagamentos, agora envolvendo o 13° salário e nesse mesmo documento jornalístico
anexado revela a presença de jagunços na usina ameaçando trabalhadores, instalados para
amedrontar e calar cerca de 490 operários da usina e 2000 mil trabalhadores de campo.
Segundo esse mesmo inquérito, Sílvio Carneiro estava vendendo o patrimônio contabilizado
em terras da usina, vendendo o maquinário e ficando com o dinheiro, sem promover os
pagamentos dos usufrutuários. Toda essa denúncia foi feita pelo presidente do Sindicato dos
Trabalhadores na Indústria do Açúcar, Benedito Arcanjo da Silva, também em notícia do
Diário de Pernambuco no ano de 1986.
Sendo assim, a historiografia pernambucana envolvendo o caso polêmico da
Usina Santa Teresinha foi noticiada com frequência pelas fortes irregularidades que
cometeram com os seus trabalhadores, o processo referente a esse artigo se encontrava em
caso confidencial e foi disponibilizado pelo Memorial da Justiça do Trabalho em
Pernambuco, o caso que envolveu órgãos públicos como o Banco do Brasil, ministros da
Indústria e Comércio, planejamento e Fazenda e o IAA (Instituto do Açúcar e do Álcool).

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REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

ANDRADE, Manuel Correia de. Espaço e tempo na agroindústria canavieira de


Pernambuco. Revista de Estudos Avançados 15 (43): 267-280. São Paulo, 2001.
BLOCH, Marc. "Apologia da História ou O Ofício de Historiador". Rio de Janeiro: Jorge
Zahar Editor LTDA, 2002, P. 55.
DABAT, Christine Rufino. "UMA 'CAMINHADA PENOSA': A extensão do Direito
trabalhista à zona canavieira de Pernambuco". Clio: Série Revista de Pesquisa Histórica - N.
26-2, 2008, P. 292.
RODRIGUES, Tosi Alberto. "Sociologia da educação". Rio de Janeiro: Lamparina editora,
2011, P. 25.
SANTOS, Milton. "Por uma Geografia Nova". São Paulo: Hucitec, Edusp, 1978, P. 122.

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O "ZÉ FERRUGEM VARREU OS PELEGOS DO SINDICATO": (RE)


ORGANIZAÇÃO, GREVES E MOBILIZAÇÕES DOS METALÚRGICOS DE
PERNAMBUCO 1981-1986.
Suzane Batista de Araújo
Mestranda pelo Programa de Pós – Graduação em História/UFPE
E-mail: suzanebaraujo@hotmail.com

O Sindicalismo no pré-64 em questão: breve balanço historiográfico

Em fins da década de 1970, estava sendo forjada no seio da classe trabalhadora e do


movimento sindical (levando-se em consideração, obviamente, as conjunturas temporais e
espaciais de cada região brasileira) características que se diziam “Novas” na forma de se
fazer a luta frente ao órgão de representação, apresentando-se em oposição ao sindicalismo
anterior de 1945-1964 apregoado de “Velho Sindicalismo”. Já durante a ditadura, alguns
trabalhadores passaram a agir de forma silenciosa no interior das fabricas devido à
impossibilidade de “dar as caras” em vista do duro golpe sofrido com a instalação do
Regime Ditatorial, o qual havia deixado “pouco ou quase nenhum espaço de manobra 1” à
classe trabalhadora brasileira.

Assim, o cenário político, econômico e social vivenciado no fim de 1970 fomentou e


efervesceu a retomada do movimento sindical atingindo a academia e líderes sindicais que,
na altura, cunharam o termo “Novo Sindicalismo” contrapondo-se ao sindicalismo pré-64.
Suas condutas deveriam ser pautadas de modo diferente daquelas apresentadas pelos
“Velhos Sindicalistas”, ou seja, distante das bases, cupulista, reformista, atrelado ao Estado
e mais aliado aos grupos dominantes e, portanto, pouco combativo e sensível aos interesses
da classe. Nesse sentido, essa corrente, na prática, desprezava toda uma trajetória sindical
percorrida pelos trabalhadores e seus órgãos de representação entre 1945-1964.

FERREIRA2 (2012,p.90) ao falar sobre a problemática do termo “Novo


Sindicalismo”, apresenta as conclusões que Francisco Weffort utilizou para cunhar o
sindicalismo pré-64 de “sindicalismo populista”

1
SANTANA, Marco Aurélio. Política e História em Disputa: O “Novo Sindicalismo” e ideia de Ruptura com
o passado. In O Novo Sindicalismo- Vinte anos depois. RODRIGUES, Iram Jácome (ORG.). Petrópolis:
Vozes. 1999. P. 134.
2
FERREIRA, Rafael Leite. O “Novo sindicalismo” urbano em Pernambuco (1979-1984): entre mudanças e
permanências. Recife: Editora Universitária da UFPE, 2012. P. 90.

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O movimento sindical populista é um fenômeno de formação recente na


história brasileira. Só começa a tomar corpo em início dos anos 50 e só a partir da
segunda metade dessa década chega a definir-se plenamente. É a partir dos anos
50, portanto, que se podem perceber mais claramente suas características: no plano
da orientação, subordina-se à ideologia nacionalista se volta para uma política de
reformas e de colaboração de classes; no plano da organização, caracteriza-se por
uma estrutura dual em que as chamadas “organizações paralelas” formadas por
iniciativas da esquerda passam a servir de complemento à estrutura sindical oficial,
inspirada no corporativismo fascista como um apêndice da estrutura do Estado; no
plano político subordina-se as vicissitudes da aliança formada pela esquerda com
Goulart e outros poucos fieis à tradição de Vargas. O sindicalismo populista
atingirá o seu ponto máximo de seu desenvolvimento nos anos 60 na linha de uma
aproximação e subordinação crescentes ao regime populista. Em 1964, este
sindicalismo entra em crise para finalmente desaparecer com o regime político ao
qual associara seu destino3.

O pensamento de Weffort sobre o “sindicalismo populista” fez história e inspirou


outros pensadores a escreverem sobre a relação entre o operário e o seu sindicato ao longo
da década de 1980. Apresentando um viés negativo sobre o sindicato pré-64, GONÇALVES
(1985, p.140.) aponta uma série de causas que levaram a fraqueza do movimento sindical
nesse momento. Afirma que:

Desde 1930 o sindicato foi integrado ao aparelho de Estado, sendo em


primeiro lugar posto a serviço dos interesses políticos dos grupos dominantes, a
sua direção sendo exercida por lideranças que apenas eventual e excepcionalmente
poderiam assumir alguma representatividade. Seria nessa medida inevitável que o
operário encarasse o sindicato como uma entidade estranha ao seu mundo, um
órgão desnecessário, na medida em que evidentemente se sobrepunha a ele, tanto a
Justiça do Trabalho, quanto o próprio Estado, através do Ministério do Trabalho 4.

Weffort (1973 e 1978, p.90), nas palavras de SANTANA (1999,p.134), culpa o PCB de
ter sido a principal entidade que deu forma à estrutura sindical corporativista, atrelando o
“movimento sindical ao Estado populista”5.

Todavia, estudos recentes apontam para outros caminhos que não os do “sindicato
populista”. No lugar do corte brusco entre o “novo e o velho” sindicalismo, aparecem
possibilidades que revelam muito mais traços de limites e continuidades do que um
completo desligamento com o passado de luta dos trabalhadores pré-64. MATTOS
(2003,p.21)6 ao falar das contribuições desses recentes estudos, cita a contribuição de Hélio
da Costa ao estudar o sindicato paulista no fim do Estado Novo. Costa esclarece que havia
uma articulação sindical que não estava engessada no “modelo sindicato populista”, mas que

3
WEFFORT, Francisco Correa. Origens do sindicalismo populista no Brasil (a conjuntura do pós-guerra).
Estudos CEBRAP, São Paulo, Nº4, Abr/Jun.,1973. P.67 Apud FERREIRA, (2012) p. 90.
4
GONÇALVES, José Sérgio R.C. Mão de obra e condições de trabalho na indústria automobilística do Brasil.
São Paulo: Editora Hucitec, 1985. p. 140.
5
SANTANA, Op. Cit. (1999) P. 134.
6
MATTOS, Marcelo Badaró. Os historiadores e os operários: um balanço. In: Greves e repressão policial ao
sindicalismo carioca 1945-1964. MATTOS (org.). Rio de Janeiro: APERJ/FAPERJ. 2003. P.21

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buscava representatividade em lideranças sindicais nas empresas e pela existência, em várias


industrias, de organizações por local de trabalho. E conta ainda que “as organizações nos
locais de trabalho não foram apenas um impulso do pós- guerra, elas fazem parte do
patrimônio de lutas da classe trabalhadora desde as suas primeiras gerações que
sobreviveram às formas diferenciadas de organização sindical e partidária7”.

Ainda na obra de MATTOS (2003,p.21.) este, ao estudar o sindicalismo carioca,


rompe com a visão reduzida de que as mobilizações operárias só ocorriam se fossem
articuladas e puxadas pela cúpula ou que as necessidades da classe vinham de “fora pra
dentro”. Constatou que as greves no sindicalismo carioca eram organizadas em seu próprio
local de trabalho, contando com forte aderência dos trabalhadores e que na pauta das
reivindicações constavam tanto envolvimento em aspectos políticos quanto econômicos
diretamente ligados às necessidades dos operários8.

Outros pesquisadores se debruçaram na perspectiva de recuar no tempo na tentativa


de encontrar nos anos anteriores ao de 1964 as “origens” do “Novo Sindicalismo”. Nesse
sentido, NEGRO (1999)9, buscou em seu artigo refazer a trajetória grevista dos operários
automobilísticos do ABC paulista desde as suas mobilizações e paradas ocorridas no chão da
fábrica (ocorridas em Maio de 1959, Março de 1964, Maio de 1968) até chegar na “onda”
grevista que ocorreu no ABC paulista em Maio de 1978 com forte aderência dos
metalúrgicos.

Por fim, citamos o trabalho de FERREIRA (2012p.10.) que no capítulo dois de sua
obra se empenhou em analisar o percurso do Partido Comunista do Brasil (PCB) e do
Partido Trabalhista do Brasil (PTB) ao longo do período dito “populista”. Demonstrou,
contrariando algumas ideias, que embora agindo dentro e nunca contestando o caráter oficial
do sindicato legitimado pelo Estado, houve, nesse período, “organizações nos locais de
trabalho; greves (300 mil, 400 mil e a dos 700 mil); mobilizações dos partidos com
proximidade com as bases; significativos índices de sindicalização, atividades culturais e de

7
COSTA, Hélio da. Em busca da Memória: Comissão de fábrica, Partido e sindicato no pós-guerra. São Paulo:
Scritta, 1995. P.200 In MATTOS (2003). P. 21.
8
MATTOS, op. Cit (2003) p. 22.
9
NEGRO, Antonio Luigi. Nas origens do ‘Novo sindicalismo” – O maio de 59,68 e 78 na Indústria
automobilística. In O Novo Sindicalismo- Vinte anos depois. RODRIGUES, Iram Jácome (ORG.). Petrópolis:
Vozes, 1999, P. 10.

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formação nos sindicatos; além da participação desses órgãos nos assuntos políticos do
país10”.

Convergindo nessa linha na qual descarta a ausência e o descuido de articulação


entre os Partidos de esquerda e o sindicato, no período anterior a instalação da ditadura
empresarial/militar, vemos aqui em Pernambuco, segundo o artigo de ABREU E LIMA
(2012,p.21), que “acontecia lutas significativas que contavam com a atuação do PCB no
movimento popular e sindical”11. Esse trabalho, aponta para a existência de duas grandes
greves, envolvendo a categoria dos têxteis, motivada por questão de salário, horas extras e
descontos indevidos nos anos de 1952 e 195812.

Ao apontarmos aqui nessas breves linhas alguns dos estudos que foram além da
dicotomia “sindicalismo populista”/“sindicato combativo ”, “Novo” sindicalismo /“Velho”,
percebemos que só os estudos embasados em pesquisas empíricas e delimitadas em tempo e
espaço podem contribuir para ampliar visões generalizadoras acerca da trajetória dos
trabalhadores e de seu sindicato no Brasil.

O duro “Golpe” sobre os trabalhadores: os delineamentos econômicos, sociais e


políticos do Regime.

Para compreendermos as lutas, atuações e práticas desempenhadas pelos


trabalhadores no “Novo Sindicalismo”, faz-se necessário compreender, mas sem
adentrarmos profundamente sobre esse período, quais foram as posturas adotadas pelo
regime frente à classe trabalhadora e seu órgão de representação. A partir de 1964 o país
viveu sob fortes sanções que cercearam os direitos civis da população. Os Atos
Institucionais foram legitimando, aos poucos, a nova configuração política a ser seguida
pelos militares. Alicerçados nos moldes conservadores e autoritários agiram de forma
ferrenha contra aqueles que comprometessem a segurança nacional.

Nesse sentido, a promulgação do AI- Nº 1 assinado nos primeiros momentos do


Golpe (09 de abril de 1964), legitimava, dentre outras coisas, a “ (...) cassação de direitos
mandatos e direitos políticos de deputados e senadores” além da “suspensão de direitos
políticos, por dez anos, de pessoas consideradas inimigas da Revolução e implicadas em atos

10
FERREIRA. Op. Cit. (2012). P. 93.
11
ABREU E LIMA, Maria do Socorro de. Trabalhadores Urbanos em Pernambuco de 1950 a 1980: uma
trajetória de lutas. In ROSAS, Suzane Cavani; PINHEIRO DE MELO, Patrícia. (orgs.). Poder, Sociabilidades,
Ambiente. Recife: Editora Universitária da UFPE, 2012. P.21.
12
ABREU E LIMA. Op. Cit.(2012) P. 23.

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de subversão ou de corrupção13”. Desse modo, os políticos considerados inimigos do


Regime, foram cassados e impedidos de exercerem suas responsabilidades parlamentares.
Os Inquéritos Policiais Militares (IPM’s) associados ao Departamento de Ordem Política e
Social (DOPS) e demais órgãos comprometidos com a Segurança Nacional agiram em
conjunto para investigar, prender, punir e julgar crimes de subversão. Os militares não agiam
sozinhos, tinham ao seu lado a aliança militar com os EUA que lhes garantiam apoio nos
aspectos econômicos, nos projetos sociais e até políticos14.

Para ferir ainda mais os direitos constitucionais dos cidadãos e punir qualquer
atitude contrária à “Revolução”, criou-se o AI- Nº 5 (13 de dezembro de 1968), que
suspendeu o Habeas Corpus recaindo sobre aqueles que estivessem respondendo por crimes
políticos contra a segurança nacional e a ordem econômica. Percebemos que nesse primeiro
momento era necessário legitimar o regime criando mecanismos legais (leis) que lhes
conferissem legalidade ao Golpe, garantindo o apoio de parcela da sociedade e eliminando o
inimigo da vez: os “subversivos”.

A Ditadura se comprometeu, no aspecto econômico, com a continuidade do projeto


nacional-desenvolvimentista assumindo, contudo, configurações mais conservadoras e
repressoras aos movimentos populares. Com o objetivo de “desenvolver um moderno
capitalismo industrial15”, facilitou a entrada de investimentos externos ao passo em que
buscou fortalecer a indústria nacional em setores específicos, tendo o cuidado de não
competir com os empreendimentos internacionais instalados no país. Em linhas gerais,
continuou (desde o governo de Vargas) a investir na substituição de importações a fim de
favorecer a balança comercial brasileira. Sendo assim, o compromisso da Ditadura era com
o capital facilitando, por meio de leis e decretos, o seu desenvolvimento e amadurecimento
no país.

Castelo Branco alinhado aos economistas de perfil liberal e pró-norte-americanos,


Otávio Gouveia de Bulhões e Roberto Campos que ocuparam as pastas do Ministério da
Fazenda e do Planejamento, respectivamente, adotou medidas com o objetivo de
impulsionar o crescimento econômico às custas de duras medidas que atingiram em cheio

13
ANDRADE, Manoel Correia de. Formação Territorial e Econômica do Brasil. Recife: Editora Massangana,
2008. P. 195.
14
PAGE, Joseph A. A Revolução que nunca houve. O Nordeste do Brasil. Tradução de Ariano Suassuna. Rio
de Janeiro: Editora Record, 1972, P. 269.
15
VIZENTINI, Paulo G. Fagundes, O Regime Militar Brasileiro e Sua Política Externa. In O Golpe de 1964 e
o Regime Militar. Novas Perspectivas. MARTINS FILHO, João Roberto (Org.). São Carlos: Editora da
Universidade Federal de São Carlos, 2006, p. 157.

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aos trabalhadores. Nesse sentido, essa nova equipe se empenhou em criar medidas
econômicas que pudessem

(...) conter a inflação e o déficit orçamentário: compressão salarial e do


crédito, corte nos gastos públicos, desvalorização cambial e redução da emissão
monetária, (...) promulgação de uma lei dando garantias de investimento a
empresas estrangeiras16.

Como podemos observar, o alinhamento com os interesses norte-americanos na


economia e na política externa rendeu vantagens ao Brasil como o desbloqueio de centenas
de bilhões de dólares que foram negados ao governo de Jango, os quais foram injetados na
economia nesse momento de crise e de recessão econômica que se arrastava antes de 1964.
No ano seguinte o Banco Mundial e o FMI também passariam a investir em recursos no
país.

Esses investidores de fato contribuíram para estabilizar a situação econômica,


contudo, todas essas medidas só puderam ser levadas a rigor mediante o compromisso do
Governo Ditatorial em desmantelar o salário dos trabalhadores, restringir o direito de greve,
tudo isso aliado à “desestruturação dos partidos, dos sindicatos e dos movimentos
populares”17. Agindo assim, o Brasil passou segurança aos investidores financeiros
internacionais. A mão pesada do Regime agiu sobre os sindicatos sob a forma das
intervenções. Valendo-se dessa ferramenta, os militares combateram e cassaram líderes de
grandes sindicatos, com forte atuação política vinculados a ideologias de esquerda.

Na presidência dos sindicatos estariam pessoas de confiança e de comprometimento


com o Regime, devendo, segundo o Decreto Nº 229 de 02 de fevereiro de 1967, se submeter
às regras da Constituição militar bem como às investigações da candidatura ao cargo de
presidente do sindicato18. Assumindo essa medida, a Repressão praticamente esvaziou os
sindicatos, diminuindo a quantidade de seus membros. Muitos foram os perseguidos e
reprimidos pelos órgãos repressores da ditadura. Líderes sindicais passaram a ser vigiados
de perto pelo Ministério do Trabalho e pelas Delegacias Regionais. Com essa situação, a
articulação do sindicato com sua base, em moldes mais combatidos e de conquistas por meio
das lutas, foi se esvaindo devido a postura dos interventores comprometidos com o sistema.

Os sindicatos estavam assumindo uma nova configuração de, na visão de NEGRO


(1999,p.17):

16
VIZENTINI. Op. Cit. (2006).,P. 144.
17
Idem. P. 145.
18
FERREIRA. Op. Cit. (2012). P. 134.

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(...) dar continuidade à vigilância, fazendo do sindicato um lugar de


identificação dos ativistas que permanecessem atuantes. Sua segunda função seria
deslocar a atuação dos sindicatos do campo da reivindicação por melhores
condições de trabalho para o assistencialismo. A hipertrofia das funções
assistências e a orientação política dos interventores desligariam os sindicatos das
questões especificas dos locais de trabalho e da situação geral das categorias que
representavam. Por fim, os interventores teriam que conter tanto as oposições
sindicais quanto as mobilizações que questionassem a política da ditadura militar e
a autoridade empresarial, neutralizando ou desencorajando ações a partir do local
de trabalho19.

Tal quadro favoreceu a corrupção nos meios dirigentes e a redução do sindicato para
instituição assistencialista que se limitava a oferecer assistência médica e jurídica para os
trabalhadores, longe de qualquer atitude mais combativa.

As medidas repressivas de Castelo Branco sobre o trabalhador já vinham de antes.


Sob a Lei nº 4.330 de 01 de junho de 1964, estabeleceu-se uma série de impedimentos ao
exercício de realizar greve, dentre elas contava-se o completo esvaziamento dos aspectos
políticos que legitimavam os movimentos grevistas até aquela altura, substituindo por
medidas de natureza meramente econômicas. Aqueles que fossem pegos participando,
incitando greves poderiam, de acordo com essa normativa, serem suspensos ou demitidos do
trabalho ou, no caso mais grave, punidos sob pena de um a três anos de reclusão.

Para agravar ainda mais o quadro, a “compressão salarial” que sobreveio como um
“rolo compressor” esmagando o salário dos trabalhadores diminuindo o seu poder de compra
personificou-se na figura do Ministro de Fazenda de Castelo Branco, Otávio Bulhões. O
economista estipulou em circular do dia 19 de junho de 1964 que os aumentos de seus
rendimentos estariam baseados no “salário médio dos trabalhadores estipulados nos 24
meses anteriores ao aumento, da antecipação inflacionária estimadas paras os 12 meses
seguintes ao aumento e da estimativa do aumento anual da produtividade20”. Ou seja,
coeficientes e estimativas sempre colocavam o salário do trabalhador abaixo do custo de
vida, além disso, essas variantes não levavam em consideração o custo de vida de cada
região, causando graves danos ao poder de compra da classe trabalhadora.

Percebemos que para a manutenção e ampliação da “modernização” baseada no


nacional desenvolvimentismo, adquiriu novas roupagens com a instalação do Regime
Ditatorial em 1964 e que para tanto foi necessário limitar a atuação dos trabalhadores e de
seus sindicatos via restrição de greves, arrocho salarial, criação do Fundo de Garantia por
Tempo de Serviço (FGTS) acabando com a estabilidade, e a intervenção na instituição de

19
NEGRO, op. Cit. (1999) p. 17.
20
FERREIRA, op. Cit. (2012) P. 145.

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representação da classe trabalhadora. Os anos de 1970, momento da retomada de lutas do


“Novo Sindicalismo”, foram marcados, inicialmente, pelo conhecido “milagre econômico”,
que tinha a meta de elevar o “Brasil à Potência”21. Nesse contexto, a economia cresceu cerca
de 10% entre 1970-1973. Contudo, as condições de salário do trabalhador não foram tão
animadoras. O surgimento de uma nova classe média, que surgiu graças ao desenvolvimento
das empresas estatais, das indústrias de bens de consumo e do investimento de capitais
privados nacionais que atuavam na produção de insumos e bens para o consumo da
população, reforçava ainda mais a concentração de renda.

Essa situação foi ainda mais sentida quando a crise do petróleo, em 1974, atingiu as
potências mundiais repercutindo nos investimentos dos países, prejudicando a indústria
brasileira ainda muito dependente do capital internacional e da importação de fontes de
energia. Houve forte recessão nos países industrializados, prejudicando as exportações dos
produtos brasileiros. A consequência foi o desemprego, corte de gastos e crescimento da
inflação. Em 1979 sob o governo de Figueiredo, houve a subida do preço do petróleo devido
à Guerra do Golfo.

Aliado a esse fato, os anos 1970 são marcados por uma nova configuração da
economia mundial, reestruturando-se em novas formas de produção, voltando-se cada vez
mais para os meios científico-tecnológicos (produção flexível) o que agravou a situação de
países que conviviam com formas “retrogradas” de produção, como o Brasil, aumentando
ainda mais a desigualdade entre os países avançados e os em desenvolvimento. A produção
flexível se expressaria na implementação de práticas como, segundo BOTELHO (2008,
p.62):

(...) flexibilidade dos processos de trabalho dos produtos de padrões de


consumo; (...) surgimento de novos setores de produção e de novas maneiras de
fornecimento de serviços financeiros; (...) manutenção de taxas altamente
intensificadas de inovação comercial, tecnológica e organizacional; (...) passagem
de uma grande parcela de trabalhadores para o setor de serviços; (...) criação de
conjuntos industriais novos em regiões até então pouco industrializadas; (...)
aumento das pressões sobre o controle do trabalho por parte dos empregadores
sobre uma força de trabalho enfraquecida pela instabilidade e insegurança
crescente no mercado de trabalho; (...) retrocesso do poder sindical e
estabelecimento de práticas regressivas de exploração da força de trabalho tanto
nos novos quanto nos antigos centros industriais22.

Por toda essa dura trajetória, econômica e política, que trouxe desvantagens nítidas à
classe trabalhadora, podemos pensar em que terreno se manifestaram as lutas e articulações
21
VIZENTINI. Op. Cit. (2006). P. 149.
22
BOTELHO, Adriano. Do Fordismo à Produção Flexível. O espaço da indústria num contexto de mudanças
das estratégias de acumulação do capital. São Paulo: Annablume, 2008, P.62.

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retomadas em fins da década de 1970 pelos trabalhadores. É nesse contexto que o “Novo
Sindicalismo” irá se configurar contra o sindicalismo “pelego”, as demissões e demais
abusos de seus direitos promovidos pelos empresários, mobilizando os companheiros no
“chão” das fábricas contrariando expressamente a ordem vigente.

O Novo Sindicalismo em Pernambuco: a (re) organização do Sindicato dos


Metalúrgicos em 1979.

Como temos visto, a Ditadura que se instalou no país a partir de março de 1964
promoveu, durante a sua permanência, períodos difíceis para a população civil devido as
duras medidas econômicas adotadas, como o arrocho salarial, inflação, desemprego, FGTS,
restrições à pratica de greve, intervenção nos sindicatos. Também foram muitas as
perseguições políticas realizadas contra indivíduos, movimentos sociais, estudantis e
Partidos de esquerda,23 recaindo sobre esses uma série de investigações, prisões, exílio,
torturas e até mortes. Pernambuco, já desde os anos de 1950, quando da atuação das Ligas
Camponesas e do governo de Miguel Arraes e Pelópidas da Silveira, era visto como uma
região de potencial foco de convulsões sociais propicias à formação de comunistas. Por essa
razão, acredita-se que a repressão promovida pelo Golpe tenha recaído com tanta
intensidade neste estado.

Mesmo fazendo uso da repressão, aos poucos, alguns sinais de lutas foram sendo
forjados no Brasil, nesse período, como as que aconteceram aos metalúrgicos nas greves de
Contagem e Osasco em 1968. Em Pernambuco não foi diferente. Nesse mesmo ano, houve a
organização de um Congresso promovido pela Juventude Operaria Católica (JOC) e pela
Ação Católica Operária (ACO) no Recife. Alguns anos antes, houve atos de resistência
contra determinados abusos cometidos pelos patrões nas Fábricas têxteis da Macaxeira e na
Torre, em 1965 e 196824, respectivamente. Nesse mesmo ano ocorreu uma greve de
canavieiros no município do Cabo. Isso mostra que mesmo sob pressão parcelas da
sociedade não acatavam as medidas impostas pelo Regime e, na medida do possível, se
organizavam.

Em meados da década de 1970, mais precisamente a partir de Geisel (1974), o


Regime Ditatorial foi procurando promover certa abertura, inclusive porque estava perdendo
espaço político, como bem mostrou as eleições para o Senado em 1974, quando o MDB

23
ABREU E LIMA, Op. Cit. (2012) nos conta que o PCB e as Ligas Camponesas foram duramente atingidas
pelo Golpe e até mesmo a sede da Ação Católica Operária foi invadida. Cf. p. 27.
24
Idem. P.28 e 29.

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levou a melhor. Então foi sendo “golpeado” pela constante pressão de diversos movimentos
sociais, o que pode ser exemplificado pela atuação da Ordem dos Advogados do Brasil –
OAB, da Conferência Nacional dos Bispos do Brasil – CNBB, da Associação Brasileira de
Imprensa – ABI. Mais no final da década os Sindicatos- principalmente os do ABC e suas
greves -, os movimentos estudantis e de bairros foram assumindo lutas mais gerais como
eleições diretas, o fim do regime, a redemocratização e a liberdade de expressão e de
imprensa, assim como a Anistia.

Além desse clima de esperança que melhores tempos estavam por vir, ventilados
pelo contexto político a partir de 1974, o pesadelo econômico batia à porta (refletido pelo
aumento da produtividade gerando mais exploração e frequentes acidentes de trabalho;
arrocho de salários que não acompanhava o custo de vida, etc.) chacoalhando e
impulsionando a população. Todo esse contexto político e econômico exigia alguma atitude
por parte da sociedade e principalmente dos trabalhadores, categoria afetada diretamente
pelas duras medidas econômicas criadas pelo Golpe, ao passo em que também aumentava a
consciência da população sobre os problemas que o país enfrentava.

Sob a luz dessas novas perspectivas políticas que apontavam certo recuo da Ditadura
e frente às penosas sanções que os trabalhadores foram submetidos ao longo do Regime, em
1979, no ABC paulista explodiu, (mas não de forma espontânea, do nada) mediante uma
trajetória de conscientização, lutas e articulações o “Novo Sindicalismo “que buscou, dentre
outras questões, se aproximar de sua base, tornando-a combativa através da (re) organização
das práticas sindicais, mobilizando os trabalhadores em torno de suas reivindicações.

Já Pernambuco na segunda metade da década de 70 era governado por José


Francisco Moura Cavalcanti, escolhido, como todos os governadores à época, pelos escalões
militares. Aqui ocorria um verdadeiro controle por parte daquele governante, empenhando-
se em conter possíveis agitações de modo ferrenho. Todavia, não podemos desprezar os
“pequenos trabalhos” que corriam às escondidas no interior das fábricas, sindicatos e nos
bairros. Esses momentos vivenciados e compartilhados pelos trabalhadores nos seus locais
de trabalho visavam chamar a atenção e conscientizar a classe para os abusos cometidos
pelas empresas. Atitudes como essa irão servir de embrião para as oposições sindicais contra
os pelegos no processo de formação do que viria a ser o “Novo Sindicalismo” em
Pernambuco.

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A partir de 1974, e se intensificando em 1979, a Ação Católica Operária (ACO),


desempenhou importante papel de aglutinação e formação política dos trabalhadores. Seus
membros participavam de reuniões com diversas categorias de profissionais (metalúrgicos,
têxteis, comerciários, etc.) com o objetivo, dentre outras questões, de denunciar os abusos e
demissões nas fábricas de Pernambuco, de acordo com FERREIRA 25(2012, p.255/256).
Outro fator que também contribuiu para o “Novo Sindicalismo” no Estado foram os intensos
movimentos grevistas (professores da rede pública e particular, além de universitários,
motoristas, médicos e eletricitários) ocorridos em 1979. Dentre o grupo dos que “partiram
para a luta” em Pernambuco nesse momento, destacamos neste trabalho a atuação dos
metalúrgicos que, naquela altura, formavam um grande volume de trabalhadores e que, em
pleno Regime Ditatorial, realizaram um movimento de oposição à diretoria do sindicato (re)
organizando-o e participando ativamente de diversos movimentos ao longo dos anos 1980,
contribuindo assim para o processo de redemocratização.

A situação do sindicato oficial pode ser percebida por esta fala do antigo presidente
reeleito em 1979:

Ao assumir o mandato sindical que hoje se inicia, declaramos para todos


os fins que zelaremos pela fiel observância das leis do país que, acataremos as
ordens emanadas das autoridades constituídas e nos comprometemos a cumprir
fielmente os nossos estatutos. Na condição de órgão de consulta e defesa da classe
metalúrgica, procuraremos por todos os meios engrandecer o nosso sindicato e
conduzir os nossos associados, pregando, acima de tudo, a ordem e a disciplina,
sem a qual não poderá haver a Paz Social26.

Diante da situação econômica de crise que o país enfrentava, ficava difícil concordar
com a “passividade” apregoada pelo sindicalismo oficial que, agindo dessa forma, aliado ao
Sistema Ditatorial, não representava os interesses da categoria que buscava por mudanças.
Assim, as reuniões clandestinas que contavam com a presença de diversas categorias
profissionais, além dos metalúrgicos, de militantes da ACO (Ação Católica Operária), da
Setor Operário do Movimento de Evangelização (SOME) e do Movimento de Jovens
Trabalhadores buscavam alertar e conscientizar os trabalhadores para os problemas políticos
mais gerais do país, e principalmente, levaram-nos à reflexão a partir das dificuldades do
dia-a-dia no seu trabalho.

25
FERREIRA. Op. Cit. (2012). P. 255 – 256.
26
GT SINDICAL – CENTRO JOSUÉ DE CASTRO. 1 CADERNO DE APOIO À FORMAÇÃO. Até Chegar
no Zé. 1988. p. 38.

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A partir de 1975/76 já se vinha tentando conscientizar o trabalhador para a


importância de seu órgão de representação. Jorge César, ex-metalúrgico e integrante da
chapa de oposição à diretoria pelega em 1979, conta que as reuniões com a ACO “Era (...)
formado por têxteis, gráficos, comerciários, metalúrgicos entre outras categorias. O pessoal
se encontrava na Casa do Povo, em Beberibe. Éramos aproximadamente 15 pessoas”27.

Aos poucos, devido às condições estabelecidas pela repressão e à desarticulação do


movimento sindical na época, foi se organizando um grupo de trabalhadores de algumas
metalúrgicas de Pernambuco que se reuniam para discutir sobre os problemas e
preocupações da realidade dos trabalhadores. Depois do período de Campanha Salarial
orquestrada pelo sindicato oficial, alguns metalúrgicos pensaram em

(...) se organizar dentro da própria fábrica e formamos um grupo de companheiros


que começou a se reunir na Paróquia do Pina. (...) a gente via que era necessário
articular companheiros de outras empresas. Aí começou a se pensar: Fulano de tal,
de tal empresa assim, e a gente criou um esquema de todo final de semana visitar
um companheiro metalúrgico. Assim a gente ia se organizando até chegar no
Sindicato28.

Esse grupo de metalúrgicos de oposição manifestou a intenção de formar uma chapa


para as eleições sindicais em junho de 1978, contudo a iniciativa não vingou porque não
dispunham de um programa de propostas amadurecidas e estruturadas. Mesmo assim,
formaram uma comissão para encaminhar várias reivindicações, tendo o apoio de 400
assinaturas. Ainda assim, não foram recebidos. No ano seguinte, assumindo uma postura
mais organizada e ao longo de algumas reuniões se articularam para mobilizar a categoria
em torno da Campanha Salarial.

Partindo de uma aproximação maior com os trabalhadores de cada fábrica a fim de


conhecer de perto suas dificuldades e necessidades, elaboraram as propostas apresentadas
pela oposição na Assembleia realizada para a discussão do aumento de salário da categoria.
Essas propostas foram aceitas. A saber: aumento maior para salários menores, exigência de
um piso, comissão de salários para acompanhar a diretoria; estabilidade antes e depois da
data base dentre outras questões.

Esse movimento de “rebeldia” não passou incólume aos olhos do presidente do


sindicato “pelego”. Segundo Marcos, um ex-operário,

27
______________, p. 39.
28
GT- SINDICAL. Op. Cit. (1988) P.40.

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(...) a maioria dos companheiros foi dedurado por Zé Luis (dirigente


oficial do Sindicato) nas empresas. E nós, que fazíamos parte da Comissão fomos
colocados na “lista negra”. (...) A diretoria estava contra. Fazia de tudo para
esvaziar e desanimar o movimento29.

A partir desses acertos e atropelos, percebemos que o movimento da Oposição


Metalúrgica ia ganhando força e visibilidade dentro da categoria. Mediante o ganho na
campanha salarial, os metalúrgicos fecharam o ano de 1979 planejando formar uma chapa, a
do Zé Ferrugem, para as eleições de 1981. Naquele ano saiu o primeiro o Boletim do Zé, no
qual não se apresentavam declaradamente como oposição, mas traziam em seu editorial o
balanço da Campanha Salarial e as informações sobre os reajustes salariais acordados.

O trabalho foi intenso denunciando os altos salários da diretoria e os preços das


mensalidades. Quando das greves dos metalúrgicos do ABC em 1979, os “rebeldes”
metalúrgicos do Zé, lançaram notas de apoio aos “companheiros metalúrgicos do ABC e de
outras cidades de São Paulo”30. No entanto, a postura oficial do sindicato foi de afirmar que
“os metalúrgicos daqui não tem nada a ver com o movimento dos trabalhadores paulistas” 31,
em declaração ao Diário da Noite.

Era assim, no dia-a-dia, que as divergências de opiniões e posturas de cada chapa


iam ficando cada vez mais nítidas. Finalmente, nos dias convocados para a eleição em 1981,
a chapa do Zé Ferrugem ganhou por uma diferença de 506 votos. Dali por diante o desafio
era o de traçar novos caminhos após (re) tomar um sindicato que tinha passado anos sob a
administração pelega, afinal, em certo sentido o sindicato estava agora nas mãos de um
grupo inexperiente. Em face da conjuntura econômica de crise ao longo dos anos de 1980
por conta, entre outros fatores, da instalação do modelo neoliberal incidindo sobre as
indústrias que não acompanharam esse modelo, ocasionando, inclusive, no fechamento de
muitas fábricas, o sindicato atuou em inúmeras greves em Pernambuco, alinhando-se a uma
postura combativa, denunciando os abusos cometidos nas empresas contra os trabalhadores.

Finalmente, enquanto testemunhas e participantes do contexto da redemocratização,


os metalúrgicos buscaram estar presentes no processo de formação de uma central sindical
nacional, atuando na Coordenação Geral da Classe Trabalhadora – CONCLAT, e, no ano de
1983, na formação da CUT (Central Única dos Trabalhadores), na intenção de se articular
junto a outros movimentos de trabalhadores. A trajetória política dos metalúrgicos, traçada

29
_____________ p. 40.
30
GT – SINDICAL, Op. Cit. P. 43.
31
____________. Op. Cit. P.43.

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de forma breve nesse texto, continuou de forma combativa e atuante ao longo dos anos
1980, como atestam os jornais da época32. O estudo do percurso desses atores sociais se
apresenta como importante tema de análise para a história da memória sindical e das lutas
dos trabalhadores de Pernambuco, ainda em desenvolvimento.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

ABREU E LIMA, Maria do Socorro de. Trabalhadores Urbanos em Pernambuco de 1950 a


1980: uma trajetória de lutas. In: ROSAS, Suzana Cavani; PINHEIRO DE MELO, Patrícia
(Org). Poder, Sociabilidades, Ambiente. Recife. Editora Universitária UFPE. 2012.
ANDRADE, Manoel Correia de. Formação Territorial e Econômica do Brasil. Recife.
Editora Massangana. 2008.
BOTELHO, Adriano. Do Fordismo À Produção Flexível. O espaço da indústria num
contexto de mudanças das estratégias de acumulação do capital. São Paulo.
Annablume.2008.
FERREIRA, Rafael Leite. O “Novo sindicalismo” urbano em Pernambuco (1979-1984):
entre mudanças e permanências. Recife. Editora Universitária. 2012.
GT SINDICAL – Centro Josué de Castro. 1º caderno de apoio à formação. Até Chegar no
Zé. Recife. 1988.
GONÇALVES, José Sérgio R.C. Mão de obra e condições de trabalho na indústria
automobilística do Brasil. São Paulo. Editora HUCITEC.1985.
MATTOS, Marcelo Badaró. Os historiadores e os operários: um balanço. In: MATTOS,
Marcelo Badaró (org.). Greves e repressão policial ao sindicalismo carioca 1945-1964. Rio
de Janeiro. APERJ/FAPERJ.2003.
NEGRO, Antonio Luigi. Nas origens do ‘Novo sindicalismo” – O maio de 59,68 e 78 na
Industria Automobilística. In: RODRIGUES, Iram Jácome (org.). O Novo Sindicalismo-
Vinte anos depois. Petrópolis. Editora Vozes. 1999
PAGE, Joseph A. A Revolução que nunca houve. O Nordeste do Brasil. Tradução de Ariano
Suassuna. Rio de Janeiro. Editora Record.1972.

SANTANA, Marco Aurélio. Política e História em Disputa: O “Novo Sindicalismo” e ideia


de Ruptura com o passado. In: RODRIGUES, Iram Jácome (org.). O Novo Sindicalismo-
Vinte anos depois. Petrópolis. Editora Vozes. 1999.
VIZENTINI, Paulo G. Fagundes, O Regime Militar Brasileiro e Sua Política Externa. In:
MARTINS FILHO, João Roberto (Org.). O Golpe de 1964 e o Regime Militar. Novas

32
Arquivo NUDOC – Notícias sobre os metalúrgicos/PE. Diário de Pernambuco. 1981 a 1986.

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Perspectivas. São Carlos. Editora da Universidade Federal de São Carlos (EDUFSCar).


2006.

MOBILIZAÇÕES E ORGANIZAÇÕES DA SOCIEDADE AGRÍCOLA DE


PLANTADORES E PECUARISTAS DE PERNAMBUCO NO PERÍODO PRÉ-1964.

Thâmara Brenda Lopes de Souza.


Graduanda em Licenciatura em História (UFPE).
thamarabrendasouza@gmail.com

Resumo: O presente artigo tratará do estudo sobre as mobilizações, movimentos e lutas


sociais agrárias no período que antecede o Golpe Civil-Militar no Brasil. O estudo busca
demonstrar as repressões, violações e as resistências que ocorreram antes do período
ditatorial em Pernambuco. Além disso, tem como objetivo pesquisar as motivações,
organizações e a atuação da Sociedade Agrícola dos Plantadores e Pecuaristas de
Pernambuco (Ligas Camponesas) antes de 1964, tomando por base o jornal “A Liga”,
utilizado pelo movimento para demonstrar a luta dos camponeses ao longo do país em busca
da Reforma Agrária e por melhores condições de vida e trabalho no meio rural. A pesquisa
mapeia registros e documentos do movimento, estudando e sistematizando esses arquivos,
com enfoque nos órgãos de informação e de repressão do regime militar ao investigar as
mobilizações, lutas, resistências e reivindicações do movimento.

Palavras-chave: Ligas Camponesas, lutas sociais, mobilizações.

A FUNDAÇÃO DA SOCIEDADE AGRÍCOLA E PECUÁRIA DOS PLANTADORES


DE PERNAMBUCO
A Sociedade Agrícola e Pecuária dos Plantadores de Pernambuco (SAPPP) foi criada
no Engenho Galileia, no município de Vitória de Santo Antão. Sendo uma sociedade de
ajuda mútua entre os camponeses, servia para amparar os foreiros que se encontrassem em
dificuldade, como para a compra de remédios, alimentos e assistência funerária, além de
assistência jurídica e a criação de escolas.
O proprietário do Engenho, Oscar Beltrão, acreditava que essa sociedade iria livrá-lo
de algumas obrigações oferecidas pela sociedade para com os camponeses. Beltrão chegou a

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ser convidado para o cargo de presidente honorário da sociedade, aceitando em um primeiro


momento. Porém, após receber conselhos de seu filho mais velho e de outros proprietários
de terra sobre essa sociedade, que estaria “provocando” a sua posição de proprietário e se
demonstrava subversiva, recusou o cargo e ordenou que essa sociedade fosse fechada.
Os foreiros se recusaram a acabar com a sociedade, implicando na resistência ao
paternalismo e o compadrio; além de iniciar a busca pelo processo de reconhecimento de
seus direitos e de construção da cidadania. Como a ordem do proprietário foi descumprida, a
polícia entrou no caso, já que essa resistência implicava na mudança do modus vivendi de
conformismo e submissão. Os camponeses buscaram apoio político e jurídico na capital para
enfrentar a repressão policial, procuraram o governador do Estado, Cordeiro de Farias,
deputados e alguns advogados na capital, mas não obtiveram sucesso. Eis que surge o nome
de Francisco Julião, que fora indicado aos camponeses nas suas idas a Assembleia
Legislativa em busca de apoio.
No Recife, Julião era um dos poucos advogados capaz de representar os foreiros em
assuntos jurídicos. Após o porta-voz dos trabalhadores do Engenho Galileia, José dos
Prazeres, expor a situação posterior à fundação da associação e a ordem do proprietário do
Engenho em dissolver a sociedade, Julião aceitou defender os trabalhadores do Galileia e,
em alguns dias, decidiu viajar para o Engenho. Tornou-se conselheiro legal e depois foi
promovido a presidente honorário da sociedade, tomou para si a tarefa de tornar a sociedade
organizada e registrada corretamente de acordo com as leis do Estado.
O caso tomou grandes proporções e um jornal apelidou a sociedade do Engenho
Galileia de “Liga Camponesa”, com a intenção de dar um significado pejorativo ao
movimento e fazendo uma referência as Ligas Camponesas organizadas pelo Partido
Comunista Brasileiro em 1945. Os foreiros não se incomodaram com o novo nome e o
incorporaram. Para acompanhar as atividades das Ligas Camponesas espalhadas pelo
Nordeste brasileiro, estudou-se as seguintes fontes:

O JORNAL “A LIGA”
O jornal “A Liga”1 reportava sobre as principais notícias dos movimentos
camponeses, além de informar sobre questões políticas, econômicas e as relações do Brasil

1
O contato com o jornal “A Liga” deu-se através do Programa Institucional de Bolsas de Iniciação Científica
(PIBIC) História e Memória na Universidade Federal de Pernambuco. O acervo encontra-se na hemeroteca do
site Armazém Memória (http://armazemmemoria.com.br/), possuindo exemplares desde outubro de 1962, até
meados de 1963, somando, portanto, 45 itens. Vale ressaltar que apesar de a primeira Liga ter sido fundada em
Pernambuco, o jornal tinha sua sede no Rio de Janeiro. Acesso em: 16 de outubro de 2017.

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com outros países. O jornal pode ser encontrado no Armazém Memória, onde contém em
seu acervo na hemeroteca o jornal “A Liga”. Seu primeiro exemplar é datado aos 9 de
outubro de 1962, tendo como seu diretor o deputado Francisco Julião. Semanalmente, o
jornal buscava informar os seus leitores sobre os acontecimentos políticos e econômicos no
Brasil e no exterior; aproximando-se dos leitores com os ideais das Ligas Camponesas que
surgiram no país.
A utilização deste material fará parte do levantamento de dados para entender como
se deu a luta dos camponeses ao longo do país em busca da reforma agrária e por melhores
condições de vida e trabalho. Dando ênfase as relações do movimento das Ligas
Camponesas com países da América Latina, como Cuba, Venezuela, Chile e outros.
O exemplar de número cinco, datado aos 6 de novembro de 1962, traz em sua
primeira página a notícia “Nada de recuos: com Cuba hoje e sempre!” podemos notar que
há uma dura crítica pela falta de atitude do governo brasileiro em apoio a Cuba. Podemos
analisar isso no seguinte trecho:
“Nestes últimos tempos, a única coisa que se tem aproveitado dos nossos governos é
uma política externa relativamente independente. Consubstanciada na defesa da
autodeterminação dos povos e no princípio da não-intervenção, esta política – que se
concretizava no tímido respeito à soberania da Cuba – começa a se esvaziar à
medida que o governo recua nas horas de decisão”.2

Observa-se ainda neste trecho do jornal, um elogio à política brasileira à época na


presidência João Goulart, onde não havia uma dependência política e intervenção externa.
Porém, é válida a crítica ao governo que demonstrava um respeito tímido a Cuba, contudo,
nos momentos decisivos, o Brasil recuava nas decisões e não mostrava seu respeito pela
política cubana.
No mesmo exemplar3, na página 6, o leitor pode encontrar a notícia "Os 5 pontos que
garantem a paz" idealizados por Fidel Castro, onde os Estados Unidos deveriam cumprir
para se alcançar a paz. As reivindicações cubanas se estabelecem nas seguintes questões:
exige-se que os EUA parem de incendiar as plantações de açúcar, continuar as ofensivas
contra Cuba, que acabe a pirataria, a entrada no espaço aéreo cubano, a evacuação da base
de Guantánamo, além do fim do bloqueio econômico. O jornal demonstra amplo apoio aos
pontos propostos por Fidel e acreditam que o cumprimento desses, seria necessário para que
houvesse paz entre as relações cubanas e estadunidenses.

2
A Liga. 06/11/1962. p. 01.
3
A Liga. 06/11/1962. p. 05.

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O exemplar número 6, datado aos 13 de novembro de 1962 em sua sexta página4,


traz uma notícia intitulada como “OEA colocará Goulart diante do dilema: povo ou anti-
povo”, no corpo do texto podemos notar que existem pressões sob o presidente João Goulart
em apoiar a revolução cubana ou não. No trecho a seguir observa-se uma clara intervenção
dos EUA nas relações entre Cuba e outros países da América Latina:
“A reunião da OEA, convocada pela Venezuela para discutir, mais uma vez, o caso
cubano, tem endereço certo: é a manobra mais seria já feita pelo Govêrno Kennedy
para “gorilizar” ou, então, derrubar o Presidente João Goulart. A reunião é
exclusivamente para resolver que todas as nações da América Latina devem cortar
relações com Cuba. Com isso colocam o sr. Goulart diante do maior risco que já
correu desde que assumiu a presidência. Se o sr. Goulart, não quiser cortar relações
com Cuba, seguindo a orientação da OEA, será convidado pelos militares “gorilas”
brasileiros a abandonar o govêrno, em nome da segurança nacional e por não
merecer mais a confiança das Fôrças Armadas”. 5

Com a intenção de demonstrar apoio a Cuba devido às manobras dos EUA para que
outros países da América Latina cortem relações com os cubanos, organizou-se no Brasil um
Congresso Continental de Solidariedade a Cuba, várias personalidades do mundo foram
convidadas, entre os nomes estão: Jean Paul Sartre, Simone de Beauvoir, Pablo Neruda,
general Lázaro Cárdenas, entre outros. No exemplar de número oito, datado aos 27 de
novembro de 1962, observa-se na primeira página uma manchete com a confirmação do
general Lázaro Cárdenas ao convite de comparecimento ao Congresso Continental de
Solidariedade a Cuba.
“Atendendo ao convite da Comissão Organizadora do Congresso Continental de
Apoio a Cuba, na pessoa do general Luís Gonzaga de Oliveira Leite, o general
Lázaro Cárdenas, ex-presidente do México e destacado líder revolucionário da
América Latina, deverá estar no Rio de Janeiro, nos meados de janeiro do próximo
ano, a fim de participar do conclave internacional convocado por Francisco Julião
em agosto passado. A exemplo do ilustre dirigente popular mexicano, o Comitê Pró-
Paz e o Movimento de Libertação Nacional também se dispuseram a dar o seu mais
amplo apoio ao Congresso, afirmando que não se deve confiar nas promessas
hipócritas do govêrno imperialista dos Estados Unidos, pois a política de agressão a
Cuba continua, variando unicamente os motivos de sua atitude, na medida em que o
esfôrço conciliador e pacifista de Cuba e da União Soviética satisfaça seus pedidos.
Os trabalhos de coordenação da Comissão Organizadora do Congresso se
desenvolvem com intensidade”.6

Até o momento da pesquisa não houve confirmações do comparecimento do general


Lázaro Cárdenas no Congresso Continental de Solidariedade a Cuba, bem como também
não houve informações sobre o encontro do general com o deputado Francisco Julião.
Partindo para o ano de 1963, observamos o exemplar de número 21, datado aos 6 de março,

4
A Liga. 13/11/1962. p. 06.
5
A Liga. 13/11/1962. p. 06.
6
A Liga. 27/11/1962. p. 01.

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notamos a seguinte manchete: “Julião desenvolveu intenso programa no Chile: prometeu


regressar de Havana”7. O deputado causa entusiasmo na população e ainda promete um
regresso ao Chile quando estiver de volta ao Brasil, como podemos notar no trecho a seguir:

“Durante sua bréve estada nesse país, o deputado e líder camponês Francisco Julião
foi considerado hóspede oficial da Central Única dos Trabalhadores do Chile,
realizando extenso programa de visitas e despertando o interêsse geral pela sua
condição de líder de milhões de homens no campo brasileiro, fundador que é das
Ligas Camponesas do Brasil. Apesar de, apenas encontrar-se em trânsito para
Havana, os poucos dias que o deputado Julião passou no Chile foram marcados
pelas demonstrações de amizade chegadas de tôdas as partes do país e prometeu
deter-se mais alguns dias quando estiver de regresso ao Brasil”.8

Retomando ao Congresso Continental de Solidariedade a Cuba, no jornal de número


24 em sua primeira página, datado aos 27 de março de 1963 traz a manchete “Congresso
Continental reafirma dia 28 na ABI: todo apoio a Cuba!”
“Há um dever que os patriotas brasileiros não podem deixar de cumprir: participar
ou prestigiar o Congresso Continental de Solidariedade a Cuba, que se realiza esta
semana no Rio.
Procedendo assim, estaremos somando nossas vozes às milhares que ecoam por tôda
América e por todo o mundo. Estaremos revivendo jornadas memoráveis que já se
tornaram parte da nossa vida: manifestar sempre que necessário nosso efetivo apoio
ao princípio de auto-determinação do povo cubano.
Quando nos dispomos a promover reunião desta natureza é porque nosso próprio
futuro, o futuro dos nosso filhos, está intimamente ligado a esta causa que não é
nada mais do que parte de nossa própria causa: a revolução de Fidel Castro”. 9

Com as manchetes publicadas durante os anos de 1962 e 1963, podemos notar a


função política do jornal em questão. Suas manchetes e editoriais eram direcionados para um
público que apoiava a Reforma Agrária e a causa dos trabalhadores rurais; tendo como
objetivo definir uma posição política no contexto da Guerra Fria. E, sua posição é amplo
apoio à Cuba e total aversão as políticas estadunidenses, tanto no Brasil, como em Cuba e
outros países da América Latina. O jornal busca informar aos seus leitores a importância da
luta pela reforma agrária e por melhorias trabalhistas e, fazer com que seu público alvo tenha
acesso a notícias do mundo inteiro a partir de suas perspectivas políticas.

“OPENING THE ARCHIVES”


Em busca de documentos norte-americanos que fizessem menções ao movimento das
Ligas Camponesas, ou comentários sobre a situação política, principalmente no Nordeste

7
A Liga. 06/ 03/1963. p. 03.
8
A Liga. 06/03/1963. p. 03.
9
A Liga. 27/03/1963. p. 01.

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brasileiro, fez-se necessário analisar os arquivos contidos no acervo da “Opening the


Archives” (Abrindo os arquivos, em tradução livre):
““Opening the Archives” é um esforço conjunto da Brown University, o National
Archives and Records Administration, a Universidade Estadual de Maringá, e o
Arquivo Nacional para digitalizar e indexar 100.000 documentos do governo dos
Estados Unidos sobre o Brasil produzidos entre 1960-80 e torná-los disponíveis para
o público em um site de acesso livre.”10

Os arquivos encontrados no acervo “Opening the archives” (Abrindo os arquivos,


em tradução livre) são boletins semanais enviados aos presidentes dos Estados Unidos da
América no período que compreende as décadas de 1960 a 1980. Nesses boletins semanais,
o objetivo da pesquisa se direcionou a busca de menções as Ligas Camponesas, ao deputado
Francisco Julião, e ao governador Miguel Arraes.
No relatório semanal Weekly Summary Nº 8 (week of August 19 through August 25,
1963) que compreende a semana do dia 19 ao dia 25 de agosto do ano de 1963, encontramos
nesse documento menções a Miguel Arraes e as Ligas Camponesas, como podemos observar
no trecho traduzido abaixo:
2. Sugar workers-land owners Sign Accord11: Trabalhadores rurais da zona de
açúcar, ou “trabalhadores açucareiros”, assinaram um acordo com os proprietários
de terra para estabelecer salários uniformes, além de definir as quotas de trabalho
para as diversas atividades envolvidas no cultivo da cana-de-açúcar. O acordo foi
assinado ao tanto pelos trabalhadores das Ligas Camponesas, quanto por sindicatos
rurais. Isso foi um resultado de negociações promovidas por Miguel Arraes e pelo
delegado do trabalho, Enock Saraiva.
Ao permitir que a Ligas Camponesas participe das negociações e assine o acordo, o
Governador Arraes, de fato, concedeu reconhecimento legal a uma organização que
não possui base legal para negociar coletivamente. A Federação dos Sindicatos
Rurais é a única organização trabalhista rural estadual reconhecida pelo Ministério
do Trabalho e deve ser a única autorizada a se sentar na mesa de barganha. Pareceres
legais, acredita-se que Arraes e o delegado do trabalho Saraiva continuem a
reconhecer as Ligas pelo menos até que o governo estadual possa arrancar o controle
da federação da Igreja.12

O relatório semanal de número Weekly Summary Nº 16 (week of October 14 through


October 20, 1963), compreendendo a semana do dia 14 ao dia 20 de outubro de 1963,
reporta uma possível chamada de greve geral dos trabalhadores da zona de açúcar, após uma
intervenção do delegado do trabalho, Enoch Saraiva, na cidade de Barreiros, Pernambuco. A
informação contida no relatório informa da possível greve e a sucessão de fatos.
1. Ligas Camponesas Back down on General Strike Threat 13: As Ligas Camponesas
ameaçaram convocar uma greve geral na zona açucareira esta semana, a menos que
o Delegado do Trabalho Enoch Saraiva reverta sua decisão de intervir no trabalho

10
http://library.brown.edu/create/openingthearchives/pt/?lang=pt
11
Trabalhadores rurais da zona de açúcar e proprietários de terra assinam acordo (tradução livre).
12
Weekly Summary Nº 8 (week of August 19 through August 25, 1963). p. 03.
13
Ligas Camponesas desistem da ameaça de greve geral (em tradução livre)

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rural em Barreiros, Pernambuco. As Ligas informaram a Saraiva em 16 de outubro


de que ele tinha quarenta e oito horas para restaurar os oficiais sindicais perdidos ou
assumir a responsabilidade de uma completa paralisação das operações açucareiras.
Saraiva recusou-se a cancelar a intervenção e advertiu que não toleraria nenhum
abuso das ligas. Possivelmente temendo um conflito aberto com Saraiva, ou tendo
decidido o tempo inoportuno para um confronto de poder, as ligas recuaram e
nenhuma greve geral foi chamada.14

A intervenção feita pelo Delegado do Trabalho Enoch Saraiva, se refere as disputas


para liderança no Sindicato Rural em Barreiros, Pernambuco. A disputa gerou um clima de
desconforto e terror na cidade de Barreiros, pois como podemos notar:
A disputa de corrida entre facções contestando para líder do Sindicato Rural em
Barreiros, Pernambuco, assumiu uma semelhança com o oeste selvagem esta
semana, quando o líder sindical expulso Julio Santana reapareceu na cidade com um
grupo de homens armados, invadiu a sede da União, e, em seguida, saiu para o
território amigável com os registros da União e mobiliário, deixando vários
resistentes para trás para evitar que o inimigo reocupasse o edifício.
Esta explosão, mas uma em uma série, foi aparentemente provocada pela expulsão
de Santana da União por seus funcionários recém eleitos. Anteriormente, Santana
tinha liderado uma junta que governava a União. Quando a União votou, a junta
elegeu novos oficiais, há alguns meses, Santana realizou sua primeira invasão,
expulsando o Presidente, Moacir Pedro, e restabelecendo-se na cabeça da União.
Posteriormente, a União votou novamente contra Santana e elegeu Amaro Silva dos
Santos como seu novo Presidente. Em 2 de outubro, Silva dos Santos expulsou
Santana da União, e em 3 de outubro, Santana realizou sua segunda invasão.
A última ação de Santana foi altamente protestada pelo prefeito de Barreiros, Clovis
Tenorio, que afirmou que a polícia estava sob ordens do governador para não
interferir com Santana. Tenorio descreveu Barreiros como vivendo em um clima de
terror. O governo do Estado, por outro lado, insistiu que os observadores enviados
para Barreiros tinham relatado que a calma absoluta e tranquilidade reinava naquela
cidade.15

Nos comentários realizados ao fim dessa observação sobre as intranquilidades


políticas ocorridas em Barreiros, o documento de número 14 traz um comentário sobre as
disputas pela liderança no Sindicato Rural da cidade. A disputa pelo sindicato em questão
também envolvia a Igreja, e notou-se que quando esta instituição está envolvida, o governo
do Estado e as Ligas Camponesas se unem em oposição a ela.16
O acervo Opening the archives também conta com uma significativa quantidade de
arquivos que se referem ao deputado Francisco Julião, líder das Ligas Camponesas e
também diretor do jornal A Liga. Podemos encontrar em um dos documentos, uma menção a
Julião como organizador das Ligas Camponesas, um pequeno partido dissidente do Partido
Comunista no Brasil.
“O Partido Comunista não é ilegal, como tal, no Brasil, embora tenha sido banido da
votação desde 1948, isto é, não pode dirigir candidatos sob seu próprio nome. Mas o

14
Weekly Summary Nº 16 (week of October 14 through October 20, 1963). p. 02.
15
Weekly Summary Nº 14 (week of September 30 through October 6, 1963). p. 04.
16
Weekly Summary Nº 14 (week of September 30 through October 6, 1963). p. 04.

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partido funciona abertamente. Sua cabeça, Luís Carlos Prestes, faz discursos,
escreve artigos de jornal e é conhecido por todos para ser o chefe do Partido
Comunista no Brasil.
(...) há um pequeno partido dissidente, agora bastante vocal, que parece seguir mais
uma linha de tipo chinês e cubano do que a linha de Moscou. Esta linha é seguida
pelo conhecido Francisco Julião, o organizador das Ligas Camponesas no Nordeste
do Brasil”.17

Existem diversas menções ao deputado Francisco Julião, ao governador Miguel


Arraes e as Ligas Camponesas nos boletins semanais enviados aos presidentes
estadunidenses durante o período de 1962 a 1964. Esses boletins informam as atividades das
Ligas Camponesas no Nordeste brasileiro, além das movimentações políticas que envolvem
Julião e Arraes, porém, os documentos não apresentam planos de ações ou repressões a estas
pessoas citadas ou ao movimento camponês.
Vale salientar a importância dos dois personagens citados anteriormente, para o
contexto político a época. Miguel Arraes tornou-se governador do Estado de Pernambuco
pelo Partido Social Trabalhista (PST), em 1962, recebendo apoio do Partido Comunista
Brasileiro (PCB). Seu governo possibilitou inúmeras mudanças no cenário político
pernambucano, tomou medidas a favor dos trabalhadores rurais, além de nomear integrantes
do Partido Comunista a cargos em seu governo. Fato esse que se fez voltar a atenção do
governo norte-americano para o governador de Pernambuco.
Francisco Julião enquanto agente político, posicionou-se claramente em favor as
políticas tomadas em Cuba, demonstrou-se a favor da Revolução, e esteve ao lado dos
trabalhadores rurais das Ligas Camponesas, sendo considerado como líder e organizador do
movimento. Como já citado anteriormente, utilizou seu conhecimento legal, pois era
advogado, para ajudar a causa dos trabalhadores do Engenho Galiléia. Tornou-se deputado
em outubro de 1962, apoiado pela coligação do PSB (Partido Socialista Brasileiro) com o
Partido Social Trabalhista (PST)18.

CIA (CENTRAL INTELLIGENCE AGENCY)


O estudo dos documentos da Central Intelligence Agency (CIA) é necessário para
entender e também acompanhar quais as principais preocupações do governo norte-
americano tinha em relação ao avanço dos ideais socialistas pelo mundo, e quais os impactos

17
Communist Position in Brazil (April 20, 1963). p. 01.
18
http://cpdoc.fgv.br/producao/dossies/Jango/biografias/francisco_juliao

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que poderiam surgir mediante a influência de países que viravam as costas para o
imperialismo dos Estados Unidos.
Um fato político importante acerca dos documentos da CIA é que em sua maioria,
boa parte das informações estava cobertas por uma tarja branca, com informações sigilosas e
que não foram liberadas para o conhecimento público. Isso pode ser caracterizado como um
fator que demonstra a dificuldade na obtenção de informações sobre o crescimento do
socialismo em várias partes do mundo além de informações políticas confidenciais sobre o
Brasil.
Porém, obtiveram-se informações importantes sobre o acompanhamento realizado
pela agência norte-americana sobre o Brasil. Podemos observar no documento
DOC_0005992298, datado aos 13 de abril de 1962, relatos sobre uma movimentação das
Ligas Camponesas na Paraíba decorrente ao aumento do preço do alimento; além de uma
menção ao deputado Francisco Julião. Observemos: “Um aumento acentuado dos custos dos
alimentos acentuou as tensões endêmicas da área deprimida. Várias unidades do exército
foram chamadas no estado da Paraíba, onde as Ligas Camponesas lideradas pelo pró-
comunista Francisco Julião, promovem ativamente distúrbios.” 19.
O documento nos mostra que o movimento das Ligas na Paraíba estaria sofrendo
repressões pelo exército nas suas movimentações em decorrência do aumento dos custos dos
alimentos. O documento DOC_0005992300, datado aos 15 de abril de 1962, nos mostra que
o exército brasileiro realizou monitoramentos nas estradas para verificar o fluxo de armas
para alguns estados do Norte do país, além de reprimir as atividades das Ligas: “As unidades
do exército brasileiro estabeleceram blocos rodoviários em todas as estradas que levam ao
interior de cinco estados do norte para verificar um fluxo suspeito de armas, bem como para
reprimir a atividade das Ligas Camponesas.” 20.
Nos relatórios também encontramos a preocupação do governo norte-americano com
a expansão dos ideais comunistas e socialistas no Brasil. O documento traz menções ao
governador Miguel Arraes e ao seu posicionamento político:
“O pró-comunista Miguel Arraes, governador do estado de Pernambuco, no
nordeste, é citado de forma confiável dizendo recentemente que "podemos socializar
o Brasil e depois afastá-lo do Ocidente sem que os americanos se tornem histéricos,
sem despertar para o fato e sem eles intervindo militarmente, se o fizermos

19
DOC_0005992298. Disponível em: (https://www.cia.gov/library/readingroom/docs/DOC_0005992298.pdf)
13/04/1962. p. 04.
20
DOC_0005992300. Disponível em: (https://www.cia.gov/library/readingroom/docs/DOC_0005992300.pdf)
15/04/1962. p. 05.

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lentamente, gradualmente e silenciosamente”. O cônsul dos EUA em Recife relatou


seu alarme no ritmo da atividade comunista em Pernambuco”.21.

Na biblioteca do site da CIA há um amplo número de documentos referentes às


diversas temáticas, a principal é ao que tange o avanço do comunismo e do socialismo do
mundo, mostrando as preocupações e táticas da potência norte-americana em frear esse
processo e ampliar sua hegemonia capitalista pelo mundo. Porém, ao interesse da pesquisa
se limita a busca de menções ao movimento das Ligas Camponesas no Nordeste brasileiro.
Um número resumido de documentos serviu de banco de dados para o interesse de
nossa pesquisa, pois, como já dito anteriormente, o site não disponibilizou todas as
informações do seu acervo, possuindo documentos com tarjas em algumas informações,
impedindo que mais pudesse ser analisado e extraído.
CORREIO DA MANHÃ (RJ)
Ao mesmo tempo em que a pesquisa se dedica ao estudo do jornal A Liga para
entender as articulações, relações do movimento com outros países da América Latina, assim
como dedicar a sua escrita para a causa camponesa e ter seu posicionamento político
declarado em apoio à reforma agrária e a Revolução Cubana, e a luta por melhorias de
trabalho no campo. É importante dar visibilidade a outros jornais e suas matérias sobre o
movimento camponês da época. Para que isso fosse possível, o corte temporal determinado
foi os anos de 1960 -1964.
Para isso, deu-se visibilidade as matérias publicadas no Correio da Manhã, do estado
do Rio de Janeiro. Como o jornal A Liga pertencia ao movimento camponês, houve a
necessidade de se analisar e observar menções ao movimento a partir de um jornal que não
pertencesse aquele contexto. Além disso, os exemplares do Correio da Manhã atingem todo
o território nacional, podendo nos dar uma compreensão mais ampla de alguns fatos.
Em uma reportagem com o título Congresso de Camponeses no Piauí, do jornal
Correio da Manhã, ao dia 23 de agosto de 1960, vemos a preocupação em se estar
financiando no Piauí (ainda que indiretamente) a causa comunista quando o governador do
Estado dá seu apoio a iniciativa das Ligas Camponesas:
O governador do Estado, dando seu apoio à iniciativa das denominadas "Ligas
Camponesas", que recentemente iniciaram suas atividades neste Estado,
encaminhava mensagens à Assembléia Legislativa, propondo a dotação de um
milhão e quinhentos mil cruzeiros para fazer face às despesas com um Congresso de
Camponeses, a realizar-se brevemente nesta Capital.
Certos setores oposicionistas, entretanto, advertem as autoridades para o "grave
perigo que nos ameaça, de patrocínio indireto à causa comunista 22.

21
DOC_0005996317. Disponível em: (https://www.cia.gov/library/readingroom/docs/DOC_0005996317.pdf)
27/04/1963. p. 10.

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São inúmeros os exemplares que fazem menção as Ligas Camponesas no ano de


1960, pelo menos 33 itens citam as atividades realizadas pelo movimento ou algum fato
relacionado. No ano de 1961, o número de exemplares aumenta expressivamente, chegando
aos 71. Entre os jornais, encontramos uma reportagem sobre a intercessão feita pelo padre
Manoel Monteiro para que o Engenho Galileia fosse vendido aos camponeses por um preço
justo.
A matéria tem o título: Padre interveio por Galiléia e govêrno recusou e nela
podemos observar o desenrolar do apelo feito pelo padre em nome dos agricultores do
engenho:
Recife, 7 - O governador do Estado, sr. Cid Sampaio, recusou o apêlo feito pelos
agricultores do engenho Galiléia, para que as terras daquela propriedade lhes sejam
vendidas por preços fixados pelo govêrno, de acôrdo com os recursos de cada um. A
pretensão foi formulada pelo padre Manoel Monteiro, que representava perante o
govêrno do Estado, os agricultores23.

No ano de 1962, o ano auge da atividade das Ligas Camponesas, pode-se observar
comentários realizados sobre a figura de Francisco Julião e sua projeção política. Nessa
matéria, existem críticas as declarações feitas por Julião, quando afirma que o Brasil não iria
mudar “pois – ajuntou – o país está perfeitamente identificado com a revolução cubana”.
Ao título Julião, observa-se a matéria:
Francisco Julião tem explorado bem a posição que conquistou, em Pernambuco, com
a criação das Ligas Camponesas. Tem viajado bastante e até figurou na Conferência
de Punta del Este por sua conta, como observador. Depois, foi mais uma vez a Cuba,
convidado especial de Fidel Castro, para assistir a uma concentração em
homenagem ao chefe comunista daquela ilha. Lá declarou que o Brasil não vai
mudar, pois - ajuntou - o país está, perfeitamente identificado com a revolução
cubana.
(...) O que há hoje, aqui, com relação a Cuba, é a decepção dos que acreditavam que
Fidel Castro fosse um valente democrata, capaz de reintegrar seu país nas doutrinas
liberais dêste Continente. O barbudo, porém, era um vermelho embuçado e logo que
se sentiu segurou compareceu à praça pública para esclarecer a seu povo com a
declaração de que sempre fôra comunista stalinista 24.

Com a chegada do ano de 1963 e a proximidade da realização do Congresso


Continental de Solidariedade a Cuba, observa-se a reportagem intitulada como: Julião
garante subversão camponesa na A. Latina caso Cuba seja atacada; reposta as tentativas de

22
Correio da Manhã (RJ). p. 02. Edição 20678. 1960
23
Correio da Manhã (RJ). p. 02. Edição 20947. 1961.
24
Correio da Manhã (RJ). p. 02. Edição 21126. 1962.

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ataque dos Estados Unidos ao povo cubano. Encontramos na matéria as seguintes


afirmações:
Havana, 27 - o ex-presidente do México, general Lazaro Cardenas e o candidato
socialista à presidência do Chile, Salvador Allende, participarão do "Congresso de
Solidariedade Continental com a Revolução Cubana", convocando para o mês de
março - segundo o líder das Ligas Camponesas do Nordeste do Brasil, deputado
Francisco Julião.
O parlamentar brasileiro referiu-se à presente situação do problema cubano, dizendo
que "caso Cuba fôsse atacada pelo imperialismo, tôdas as massas brasileiras se
levantariam e atacariam violentamente tôda propriedade americana, irrompendo uma
guerra civil, se o govêrno não se pusesse ao lado do povo" 25.

O Correio da Manhã no ano de 1964 reservou muitas citações e menções ao


movimento das Ligas Camponesas que formavam a frente, juntamente com outras forças
denominadas democráticas naquele período, de várias mobilizações nacionais em favor de
direito dos trabalhadores e operários. As Ligas, em específico, são ligadas a ameaças de
ocupações de terras ocorridas em alguns estados do país, como a Bahia, por exemplo:
Fazendeiros de vários municípios do Sudoeste da Bahia, descontentos com o que
classificam de omissão do govêrno do Estado, diante da ameaça de invasão de terras,
por parte das Ligas Camponesas, estão dispostos a fundar uma Associação de Defesa
dos Pecuaristas e Agricultores, e liderados pelo deputado Clérico Correia,
convocaram uma reunião para o dia primeiro de março, na Cidade de Conquista 26.

Outra notícia relacionada à ocupações de terras é reportada na Bahia pelo jornal,


assim como podemos verificar:
Salvador (Do correspondente) - Notícias chegadas do interior informam que
camponeses invadiram fazendas do município de Santa Inês pertencentes à União
que estavam destinadas à instalação de núcleos de experimentação. Observadores
políticos atribuem às ligas camponesas a responsabilidade pelas invasões, que teriam
sido fomentadas para coincidir com a visita do presidente da SUPRA, sr. João
Pinheiro Neto à Bahia, nos próximos dias27.

Nas verificações, as publicações do jornal Correio da Manhã com menções às Ligas


Camponesas e as figuras relacionadas a este movimento, tem um teor político contrário aos
ideais da luta dos camponeses, demonstrando algumas vezes um sentimento de aversão e de
combate a este movimento. Podemos perceber isso na reportagem onde Julião afirma que o
Brasil se identifica com a política cubana, trazendo em seguida, termos relacionados a Fidel
Castro como o barbudo, e comunista stalinista.
CONSIDERAÇÕES FINAIS

25
Correio da Manhã (RJ). p. 01. Edição 21442. 1963.
26
Correio da Manhã (RJ). p. 01. Edição 21738. 1964.
27
Correio da Manhã (RJ). p. 13. Edição 21748. 1964.

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O objetivo geral deste artigo é demonstrar como se deu o estudo das mobilizações,
movimentos e as lutas sociais realizadas em busca da reforma agrária e melhorias das
condições de trabalho dos trabalhadores rurais. A pesquisa diz respeito ao projeto de
Iniciação Científica (IC): Mobilizações e movimentos agrários, repressão e resistências do
pré-1964 à ditadura civil-militar: a trajetória das Ligas Camponesas em PE pela
Universidade Federal de Pernambuco (UFPE), sob orientação dos professores Dr. Pablo
Porfírio e do Dr. Márcio Vilela. A pesquisa busca menções ao movimento das Ligas
Camponesas em diversos instrumentos de informação de circulação nacional.
Os instrumentos estudados e analisados até o momento da escrita deste artigo foram
o jornal A Liga; o acervo da Brown University em parceria com a Universidade Estadual de
Maringá, o Opening the archives; o acervo da CIA; e o jornal Correio da Manhã. É
importante salientar que o projeto está em andamento, e as informações levantadas até o
momento por meio destes instrumentos servirão como banco de dados para a finalização do
projeto.
Acompanhar as mobilizações e lutas camponesas por melhorias trabalhistas e por
melhores condições de vida é essencial para a compreensão da História do trabalhador rural,
como ser político e atuante na construção de seus direitos. O objetivo deste trabalho é trazer
novas perspectivas, aprofundando o estudo sobre origens, motivações, mobilizações, lutas e
repressões sofridas às Ligas Camponesas.

REFERÊNCIAS
LIMA, Maria do Socorro de Abreu e. Construindo o sindicalismo rural: lutas, partidos,
projetos. Recife: Universitária / UFPE, 2005.
MONTENEGRO, A. T.. As Ligas Camponesas às vésperas do Golpe de 1964. Projeto
História (PUCSP), São Paulo, v. 02, n.02, p. 391-416, 2004.
PAGE, Joseph A. SUASSUNA, Ariano. A revolução que nunca houve. Rio de Janeiro:
Record, 1972.
PORFIRIO, P. F. A.. Francisco Julião: em luta com seu mito. Golpe de Estado, exílio e
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de 2017.
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2017.
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Universidade de Maringá. Disponível em: <http://www.uem.br/> Acesso em: 4 de agosto de
2017.

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VIOLÊNCIA NO CAMPO: REGISTROS DE VIOLÊNCIA CONTRA OS


TRABALHADORES RURAIS DENUNCIADOS PELO JORNAL “A LIGA” E A
RESISTÊNCIA DOS TRABALHADORES.

Luiz Henrique Santos Ferreira da Costa.


Graduando em Licenciatura em História (UFPE).
luizhsfcosta@gmail.com

Resumo
O presente artigo analisa a trajetória da Sociedade Agrícola de Plantadores e Pecuaristas de
Pernambuco, posteriormente conhecido como Ligas Camponesas, no período pré ditadura
civil militar de 1964, principalmente no que tange o contexto de repressão e violência
institucional e civil sofridas pelos trabalhadores rurais espalhados pelo Brasil. Será tomado
como norte o jornal “A Liga”, fundado e publicado por Francisco Julião entre 1962 e 1964, a
fim de dar voz aos trabalhadores rurais, denunciar os desmandos do Estado e dos
latifundiários frente aos movimentos sociais camponeses, bem como servir como um
mecanismo de resistência e de luta pela reforma agrária. A pesquisa se propõe a analisar os
registros de violência publicados no jornal, observando suas motivações, papel do Estado e a
mobilização camponesa de resistência frente às repressões.

Palavras-chave: Ligas Camponesas, violência, jornal “A Liga”.

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INTRODUÇÃO

O jornal A Liga foi fundado em 1962 pelo então Deputado Estadual Francisco Julião,
famoso por sua atuação e liderança no movimento das Ligas Camponesas em Pernambuco.
Tal movimento teve início no engenho Galiléia, localizado no município de Vitória de Santo
Antão, Pernambuco. Em 1955, a Sociedade Agrícola e Pecuária dos Plantadores de
Pernambuco foi fundada e ficou posteriormente conhecida como “Ligas Camponesas”.
Diante disso, o nome “A Liga” sugere para o leitor o alinhamento político ideológico que o
editorial do jornal se pautará. A primeira edição do jornal data de 09 de outubro de 1962 e
foi publicado até o dia 31 de março de 1964.
O periódico deixou de circular devido a repressão que o regime de ditadura civil-
militar instaurou no país. “A liga” teve circulação em diversas partes do território nacional,
entretanto não foi possível encontrar informações sobre o número de tiragem. O Jornal
contemplou o desenvolvimento do movimento das ligas camponesas Brasil afora, trazendo
matérias que noticiavam a criação da Liga Camponesa de alguma região ou pedidos urgentes
para que o movimento chegue a determinado lugar e funde uma Liga Camponesa.
Geralmente, tais pedidos eram impulsionados pela violência que os trabalhadores do campo
sofriam e pela violação de direitos. Destarte, o Jornal A Liga serviu para dar voz aos que
imploravam ajuda no campo, denunciar a repressão policial, a violência dos latifundiários
bem como pautas de caráter internacionalistas, pois o periódico noticiou diversas notícias
sobre Cuba e o regime de Fidel Castro, entre outros acontecimentos na América Latina e de
nações socialistas espalhadas pelo mundo.
É necessário compreender que o jornal fundado por Francisco Julião se encaixa
dentro de um período de importante exposição da imprensa comunista, sendo assim, é
possível perceber que os intelectuais que tomam a frente do jornal são militantes e
camponeses. Diversos colunistas contribuíram para o Periódico, alguns deles são: Francisco
Julião, Padre Alípio, Pedro Motta, Wania Filizola, Pedro Porfírio Sampaio, Inácio Cava,

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entre outros. Alguns nomes como Padre Alípio de Freitas e Pedro Porfírio Sampaio também
assumiram cargos gerenciais como Diretor executivo e Secretário, respectivamente.
O Jornal A Liga, durante seu período de existência se propôs a fazer análises
conjunturais da situação da política, economia e da sociedade como um todo. É possível
perceber que o jornal se posicionava a favor da união operário-camponesa, publicava
matérias sobre arte, cultura e educação, mostrando possuir uma função de instrução
ideológica que se materializa nos editoriais, opiniões dos colunistas e até em uma série de
quadrinhos chamada “ O regime como ele é – romance do dia a dia camponês”, o qual
trabalha com o imaginário dos leitores em relação ao sofrimento, resistência e esperança na
reforma agrária radical como via de acesso à melhora de vida e justiça social.
O mote da reforma agrária radical é algo que perpassa o jornal do início ao fim e
fundamenta sua posição no espectro político da época. Além de servir como recrutador
popular para a luta a favor da liberdade, também foi usado como instrumento de agitação das
massas e propaganda.
É preciso deixar claro que a intenção de analisar os assentamentos acerca da
violência não visam produzir justiça, mas sim memórias, debates e reflexões acerca dos
atentados cometidos contra a vida das pessoas do campo bem como promover marcas de um
momento vivido no país, observando assim a complacência do Estado e seu aparato
repressor, o qual possibilitou uma criação no imaginário social onde a violência e a tortura
são legítimas e toleráveis justamente pela instituição que deveria assegurar os direitos dos
cidadãos.

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1- METODOLOGIA

Nesse trabalho será analisado como o jornal A liga foi instrumentalizado como um
canal de denúncia contra o os desmandos dos latifundiários, da polícia e do Estado, bem
como um canal de visibilidade para o homem do campo em sua luta contra o latifúndio. O
jornal A liga encontra-se disponível na hemeroteca do site Armazém de Memórias. Todas as
49 edições disponíveis foram analisadas em busca de registros violentos. Foram encontrados
51 registros, dos quais 9 foram selecionados para serem analisados.
Seria impossível abordar todos nesse trabalho, portanto, serão analisados os registros
de acordo com categorias como: violência policial, violência partindo dos latifundiários e
seus jagunços, a situação do trabalho no campo, registros de violência contra a mulher, bem
como registros em que os trabalhadores rurais usaram de violência como arma para a
resistência e para tentar fazer a reforma agrária “na marra”.

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2- A situação de exploração do trabalhador no campo

Nesse tópico, será abordado as notícias que perpassam a temática dos trabalhadores
submetidos a situações de exploração de sua força de trabalho. O primeiro registro a ser
trabalhado é do dia 13 de novembro de 1962, referente à edição de número 6. A matéria
chega a ocupar um terço da capa do jornal e tem como chamada “Trabalhadores rurais
ganham salário de morte”1.
A notícia trata de um depoimento do senhor Marcos Martins da Silva, presidente do
sindicato dos trabalhadores rurais dos municípios de Escada, Ipojuca e Amaraji. O senhor
Marcos se queixa a respeito do não cumprimento da legislação trabalhista vigente, alegando
que nunca foi aplicado nenhum de seus dispositivos legais e que uso de violência para quem
reclamar era recorrente. Dessa forma, o trabalhador rural discorre a respeito do salário
mínimo que, dependendo da região e segundo a matéria, alcança o valor de Cr$ 276,30 ou
Cr$224,00 por dia, mas a média que o patrão efetivamente paga é Cr$80,00.
O senhor Marcos continua suas queixas agora em relação ao trabalho infantil (na
época, permitido a partir dos 14 anos de idade). O líder camponês alega que os latifundiários
estão obrigando crianças, a partir dos 8 anos de idade, a pegarem em enxadas para trabalhar.
Outro descumprimento da lei é referente a jornada de trabalho, a qual deveria ser de 8 horas
diárias, entretanto, segundo o senhor Marcos, é de 10 a 12 horas e o pagamento das horas
trabalhadas não é com dinheiro, mas sim com o vale barracão. A matéria traz alguns valores
de artigos vendidos no barracão: 1kg de feijão custava Cr$ 180; 1kg de charque era vendido
por Cr$ 300; uma cuia de farinha de mandioca (6 a 10kg) saia pelo valor Cr$ 1200,00.
As últimas queixas tratadas pela matéria trazem o relato da exploração do cambão-
foreiro (pagamento realizado para morar na terra que, nesse caso, o variava de Cr$ 8.000 a
10.000 por ano) e da previdência social camponesa onde era descontado 6% por semana dos
ganhos para quando o trabalhador adoecer, ganhar Cr$ 100,00 para cobrir as despesas. Por
fim, também é relatado que no município de Escada, os latifundiários fazem as leis (pena de
morte, sequestro, tronco, surras) e possuem capangas armados com armas das forças
armadas, como o fuzil 1908.

1
Jornal A Liga, 13/11/1962, N°6, pág3. Disponível em
<http://www.docvirt.com/docreader.net/DocReader.aspx?bib=HEMEROLT&pesq=A+liga>

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Algumas reflexões podem ser feitas a partir dessa matéria, a começar com o valor
efetivamente pago por hora trabalhada em comparação com os preços de alguns artigos do
barracão. Ora, para comprar 1kg de feijão, os trabalhadores teriam que trabalhar, pelo
menos, três dias. Entretanto, é bom lembrar que a maioria dos trabalhadores sustentam
famílias em que a presença de grande número de filhos é comum, desse ponto de vista,
percebe-se que o salário pago, segundo a matéria, limita o suprimento alimentício das
famílias camponesas localizadas nessa região.
Para agravar essa questão, a denúncia do uso do “vale barracão” é algo a ser
refletido, afinal, o barracão é um mecanismo instrumentalizado para prender o trabalhador à
terra, pois a barraca do latifúndio opera com preços maiores ao do mercado formal e faz com
que o empregador não dê liberdade para o camponês comprar em outro lugar, eliminando a
circulação financeira e fazendo com que o produto do trabalho camponês seja gasto no
próprio barracão do latifundiário.
Outro ponto a ser tocado é o trabalho infantil que, aos olhos do presente, é algo
extremamente condenável, contudo, era muito comum no campo, visto que as crianças
precisavam ajudar a família a sobreviver. É importante se pensar em quais as perspectivas
em relação a vida possuem as crianças que começam a sentir na pele a dura realidade do
campo, do peso da enxada, da secura da terra e do calor do sol a partir dos 8 anos de idade,
em um momento da infância fundamental para construção de sua identidade.
Outra matéria que trata desse tema foi realizada na primeira edição do Jornal a Liga,
datando de 9 de outubro de 1962. Trata-se de uma carta, destinada a Francisco Julião, de um
camponês do município de Poxoréu-MT que teve seu nome ocultado para fins de proteção
do mesmo. A chamada da matéria é “Mato Grosso: Nordestinos vendidos como escravos”2.
Na carta, o camponês afirma que está cansado de ver nordestinos chegando em paus
de arara para serem vendidos por “20 contos” para trabalhar na lavoura. Também é
denunciado a violência dos latifundiários que mandam embora ou matam os trabalhadores e
escondem as ossadas após os serviços prestados. Para além disso, o camponês alega que se
houver uma investigação, será encontrado diversos cemitérios clandestinos usados para
enterrar as pessoas que os latifundiários assassinam.
Na mesma carta, consta um apelo para que se funde uma Liga Camponesa em
Poxoréu-MT. Nessa matéria, é possível identificar as migrações de camponeses que saem de
suas terras em busca de uma condição de vida melhor, porém acabam encontrando uma

2
Jornal A Liga, 09/10/1962, N°1, pág5. Disponível em
<http://www.docvirt.com/docreader.net/DocReader.aspx?bib=HEMEROLT&pesq=A+liga>

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realidade tão dura ou pior do que de onde saíram, até o ponto de, segundo a carta, serem
vendidos como escravos. Também era possível que o trabalhador migrante contraísse
diversas dívidas quando chegasse no novo local e ficasse impossibilitado de deixar esse
lugar e voltar para sua terra, pois estava agora em dívida e um regime de repressão violenta
dos latifundiários poderia ser imposto.
Outro ponto marcante da matéria é perceber como o camponês enxerga nas Ligas a
esperança de mudança e de defesa de seus direitos, pois com a presença das Ligas
amedrontariam os donos das terras. Entretanto, é preciso ponderar, afinal, essa matéria
também pode estar sendo instrumentalizada pelo jornal para fortalecer a identidade das
Ligas Camponesas como entidade de proteção ao camponês e de luta por direitos.

3- Violência policial

O periódico traz diversas matérias que colocam o braço armado do Estado na figura
da polícia como agentes ativos da violência imposta aos camponeses. Muitas vezes a polícia
age a mando dos latifundiários e se juntam aos jagunços para reprimir, coagir e espalhar o
terror no campo. A respeito desse tema, a edição de número 44, datada de 21 de agosto de
1963, traz um registro cujo o título da matéria é “Polícia arranca unhas e bigodes”3.
A matéria expõe que os latifundiários alagoanos, acobertados pela polícia, empregam
métodos bárbaros contra os lavradores. Camponeses dos engenhos de Samba, Carao, São
Pedro e Espírito Santos, chegaram ao Recife fugidos de Alagoas e contaram que unhas e
bigodes são retirados com alicates quando os trabalhadores reclamam algum direito.
Segundo a notícia, as autoridades disseram que nada tinham a fazer por se tratar de outro
Estado.
Nessa notícia, é possível observar a omissão seletiva que a polícia exerce, pois
quando é para proteção do trabalhador, a polícia se omite de suas funções, porém, quando
não é agente ativo da violência, acaba se tornando complacente com a repressão dos
latifundiários, apoiando a opressão violenta contra os camponeses.

3
Jornal A Liga, 21/08/1963, N°44, pág3. Disponível em
<http://www.docvirt.com/docreader.net/DocReader.aspx?bib=HEMEROLT&pesq=A+liga>

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Outra matéria envolvendo diretamente a polícia foi divulgada na edição número 15,
do dia 16 de janeiro de 1963. Tal matéria ganhou metade da última página do jornal e teve
como título “Polícia saqueia e destrói casas de dois mil camponeses em Magé”4.
A matéria apresenta duas fotografias. A primeira aparece três policiais de costas,
andando em direção a uma plantação. A segunda, retrata dois policiais armados na frente da
casa de uma família de lavradores. Uma mulher com uma criança de colo e dois camponeses
de costas aparecem na foto. Nessa reportagem, é exposto que, 150 soldados da polícia
militar do estado do Rio de Janeiro, expulsaram 2 mil camponeses das terras que ocupavam
o distrito de Pau Grande e que foram griladas pela fábrica América Fabril, com conivência
do Juiz local, Nicolau May Júnior. A polícia derrubou casas com auxílio de caminhões e
incendiou casas e plantações.
Segundo a notícia, essa operação foi comandada por um oficial da polícia militar,
dois oficiais de justiça, o gerente da América Fabril e dois altos funcionários da fábrica. O
desenrolar da matéria trata da intervenção do estado e de uma vitória parcial dos
camponeses, pois a fábrica não possuía nenhuma comprovação legal de que as terras lhe
pertenciam. Destarte, o governador Carvalho Janotti assinou um decreto desapropriando
aquela área. Entretanto, tal decisão irritou os empresários da fábrica e o juiz Nicolau May.
Foi realizada uma manobra para contornar essa situação, uma vez que para efetuar
legalmente a desapropriação, o governo do estado do Rio de janeiro deveria pagar uma
indenização à fábrica no prazo de 30 dias, contudo, o governador Carvalho Janotti estava no
final do mandato e havia perdido a eleição. Quem assumiria seria Badger Silveira. Então, o
novo governador foi procurado pelos poderosos empresários e persuadido a negar o
pagamento de indenização para a fábrica, alegando que tal atitude seria um desrespeito ao
cofre do Estado e que não daria continuidade à corrupção do antigo governador.
É possível perceber como os sujeitos que estão em situações de poder lidam com a
derrota legal. Articulações e conchavos políticos são realizados na tentativa de se manter o
status quo em detrimento dos direitos dos homens e mulheres do campo.

4- A violência dos latifundiários

É possível dizer que o latifundiário é um dos principais agentes de violência física e


mental contra os trabalhadores rurais. Esses sujeitos tinham a capacidade de usufruir da

4
Jornal A Liga, 16/01/1963, N°15, pág6. Disponível em
<http://www.docvirt.com/docreader.net/DocReader.aspx?bib=HEMEROLT&pesq=A+liga>

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complacência da polícia, bem como de seus agentes para atender suas necessidades no que
tange a repressão dos camponeses. A edição número 2 do periódico, de 16 de outubro de
1962, possui uma matéria intitulada “Em meio ao terrorismo nasce as Ligas Camponesas no
Mato Grosso”5.
A matéria aborda o assassinato do trabalhador rural Araceto Silva, de 75 anos, no
munícipio de Jussiara, no Mato Grosso. O camponês foi assassinado por jagunços do
latifundiário Oswaldo Costa Ferreira, proprietário da Companhia Industrial Pecuária e
Agrícola do Mato grosso. O acontecimento revoltou ainda mais os camponeses, pois o
latifundiário foi solto 4 horas após ter sido capturado pela polícia. A notícia informa que as
Ligas Camponesas de Jussiara terá jurisdição em todo o Estado e que foram criadas para
tentar lutar contra os desmandos dos latifundiários, pois a violência, a pobreza e a fome
imperam nessa região.
Diante dessa notícia, é interessante notar uma tendência de organização das Ligas
Camponesas em uma região em que a violência e a impunidade são acentuadas. Tais
aspectos servem como propulsores tanto para o apelo quanto para a efetiva criação das ligas.
A matéria não traz nada a respeito do desenrolar do caso, nem em edições posteriores foi
publicado nada sobre esse caso em específico.
O seguinte registro que tem como título “No Paraná a vida é mais cara e os
salários mais baixos”6, referente à edição número 8, do dia 27 de novembro de 1962 é uma
reportagem com a Sra. Nair Burmayer, membro da Associação de Senhoras do Alto Cajuru.
Nessa entrevista, a senhora Nair revela o alto custo de vida que vem aumentando dia
após dia e o descontentamento com o salário mínimo que além de ser muito baixo, não é
cumprido no interior do Estado. Segundo a entrevistada, o salário mínimo legal seria de Cr$
10.000, mas que nem esse valor era pago no interior. A Sra. Nair também revela um
desapontamento com o presidente Jango, acusando-o de fazer o jogo dos tubarões e trair o
povo a quem deu esperanças. Ela também relata a violência sofrida por uma família
camponesa que foi expulsa de suas terras e teve a casa incendiada com as filhas do casal de
camponeses dentro (uma de 12 anos e outra de 7 meses). A menina de 12 anos morreu ao
salvar sua irmã. A mãe enlouqueceu e foi internada e o pai se suicidou.
É interessante perceber que a narrativa procura mostrar que a situação no campo do
Paraná é similar ao Nordeste, reafirmando assim a generalização do problema agrário
5
Jornal A Liga, 16/10/1962, N°2, pág5. Disponível em
<http://www.docvirt.com/docreader.net/DocReader.aspx?bib=HEMEROLT&pesq=A+liga>
6
Jornal A Liga, 27/11/1962, N°8, pág2. Disponível em
<http://www.docvirt.com/docreader.net/DocReader.aspx?bib=HEMEROLT&pesq=A+liga>

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brasileiro. Outro ponto a ser refletido é que o poder de violência dos latifundiários não é
caracterizado apenas quando há violência física, mas a imposição de salários abaixo da
legalidade para os trabalhadores, as constantes ameaças de expulsão da terra, de incêndios e
de agressão, criam um verdadeiro clima de terro psicológico para os homens e mulheres do
campo.

5- Violência contra mulheres

Sabe-se que a violência contra a mulher do campo existia e a maioria das mulheres
vivia uma relação de dependência do marido. A historiadora Maria do Socorro Abreu e
Lima, trabalha essa dependência da mulher e a insegurança que as mesmas conviviam, pois
caso a mulher fosse casada, geralmente, tinha muitos filhos, sendo assim suprida pelo
marido enquanto ficava em casa cuidado das crianças e da casa, ou muitas vezes trabalhando
para ajudar o sustento da casa e cumprindo uma dupla jornada no cuidado com as crianças.
A historiadora Maria do Socorro Abreu e Lima segue discutindo “Se viúva, podia
ser expulsa do engenho com os filhos e substituída por outra família. A moça desvirginada,
que por vezes era deflorada pelos proprietários e administradores também era expulsa. ”
(2012, p.25). Nesse ponto, será destacado um registro em que aparecem expressamente o
termo “mulheres” na matéria.
A matéria tem por título “Policiais e jagunços atacam camponeses em porto wilma,
dourados”7. Esse registro é da edição 12, publicada em 25 de dezembro de 1962. Em
síntese, a matéria relata a tentativa de expulsão dos camponeses das terras dos latifundiários
conhecidos como “irmãos Tavares”. Foi utilizada a força policial e jagunços. Diante do
clima de terror, os camponeses se organizaram para fazer uma denúncia na delegacia. O
delegado de Dourados, Capitão Azambuja, conhecido como “agricultor da maconha” enviou
forte contingente policial para dar cobertura aos jagunços.
Os policiais e jagunços queimaram ranchos, defloraram mulheres e surraram
camponeses. Os camponeses procuraram Humberto Neider, o suplemente do Senador eleito,
que lhes prestou ajuda jurídica. Diante dessa matéria, é possível refletir a motivação da
escolha do termo “deflorar” ao invés de “estuprar”. É possível que ao usar o termo
“deflorar” queira se colocar um peso maior nessa violência baseado na moral e na honra.

7
Jornal A Liga, 25/12/1962, N°12, pág3. Disponível em
<http://www.docvirt.com/docreader.net/DocReader.aspx?bib=HEMEROLT&pesq=A+liga>

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Afinal, uma mulher desvirginada antes do casamento era vista com maus olhos pela
sociedade da época.
Para além da violência dos jagunços e da polícia, também cabe pensar que o estupro
pode ter sido utilizado como ferramenta de humilhação, tal qual os estupros em cenários de
guerra.

6- Resistência dos trabalhadores

Nesse quinto e último ponto do presente artigo, dois registros em que mostram a
resistência dos trabalhadores rurais frente as injustiças a eles impostas. A edição número 10,
do dia 12 de novembro de 1962, publicou uma matéria chamada “Camponeses repelem à
altura terror latifundiário”8, que em suma, fala da reação camponesa aos abusos dos
latifundiários e da polícia em diversas regiões como Pernambuco, Paraíba e Paraná.
A matéria afirma que os camponeses perderam a paciência de esperar pela polícia,
pois nada fazem para ajudar. Em Pernambuco, os camponeses repeliram a altura os policiais
mandados pelo Investigador Aurino. Houve agressão e até o investigador acabou sendo
agredido e repelido pelos camponeses. Já na Paraíba, os camponeses prenderam e
desarmaram o administrador da fazenda Teone que estava arrancando as plantações dos
trabalhadores.
É necessário perceber que matérias com o teor de reação camponesa contra os
latifundiários ou contra o Estado, ganham destaque a fim de mostrar que a mobilização
camponesa é o caminho para o fim das injustiças, bem como criar uma imagem de que os
trabalhadores rurais possuem a capacidade de reagir e lutar pelos seus direitos. Desse ponto,
colocar os holofotes para esses acontecimentos fortalece os envolvidos e mostra que essa
luta não é invisível.
Por fim, o registro datado de 29 de maio de 1963, na edição 32, cujo título da matéria
é “Camponeses fluminenses fazem reforma agrária na marra! ”9, traz relatos de diversas
regiões onde os camponeses, cansados de esperar pela reforma agrária legal, tomaram por
bem fazê-la na marra. São citados os municípios de Magé, Itaboraí, Paracambi e Casemiro
de Abreu.

8
Jornal A Liga, 12/11/1962, N°10, pág3. Disponível em
<http://www.docvirt.com/docreader.net/DocReader.aspx?bib=HEMEROLT&pesq=A+liga>
9
Jornal A Liga, 29/05/1963, N°32, pág6. Disponível em
<http://www.docvirt.com/docreader.net/DocReader.aspx?bib=HEMEROLT&pesq=A+liga>

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O jornal fornece metade da página para essa matéria e discorre as especificidades dos
casos de cada município em relação ao que levou os camponeses a reagirem e iniciarem um
processo de reforma agrária radical em suas respectivas localidades. É interessante notar a
visibilidade que o periódico dá para esta matéria, afinal, o tema da reforma agrária radical,
“na lei ou na marra”, é abordado sem cessar nas edições do jornal A Liga.
Essa notícia serve de combustível para o discurso do movimento e como instrumento
de motivação para a arregimentação dos camponeses. Portanto, não é difícil perceber as
intenções do jornal em fortalecer o próprio movimento, utilizando-se das matérias para
propagar seus ideais, entretanto, o jornal A Liga cumpre sua função social ao dar voz aos
homens e mulheres do campo, ao se colocar como um veículo acessível para que os
camponeses denunciem as opressões sofridas e também ao tornar público o que acontecia na
zona rural brasileira.

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CONSIDERAÇÕES FINAIS

Dos 51 registros encontrados em uma primeira análise do periódico, apenas 9 foram


abordados nesse trabalho. Isso mostra como esses registros podem ser ricos e que podem
levar o historiador a analisá-los e debatê-los de forma minuciosa. A intenção desse trabalho
não é de buscar justiça ao relatar os casos violentos que o jornal traz à luz, mas sim de
levantar o debate, a reflexão e, fundamentalmente, produzir marcas do que se viveu.
Também é preciso ponderar que não é a intenção deste trabalho tomar como fonte
fidedigna da verdade, ou baluarte da isenção, o periódico fundado por Francisco Julião. Por
outro lado, não se pode desprezar como fonte histórica o jornal. Desse modo, analisar o
Jornal A Liga, vai ao encontro do que a historiadora Maria Helena Rolim Capelato afirma,
quando diz que os impressos servem para “despertar as consciências e modelá-las, conforme
seus valores e interesses, procurando indicar uma direção ao comportamento político do
leitor”. (1988, p.23). Portanto, é preciso que o historiador, ao trabalhar com a imprensa,
esteja ciente para identificar sua inserção no contexto histórico e social da época.

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REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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1988.

MONTENEGRO, ANTÔNIO TORRES. As ligas camponesas às vésperas do golpe de


1964. Proj. História, São Paulo, (29) tomo 2, p. 391-416, dez. 2004.

DE A. PORFIRIO (Pablo F.). Medo, comunismo e revolução: Pernambuco (1959‒ 1964).


Recife, Editora Universitária UFPE, 2009, 144 p. (ill.). 3285.

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JUSTIÇA DO TRABALHO: DISPUTAS E DISCURSOS NA JUNTA DE GOIANA


(1979-1980)

Clarisse dos Santos Pereira


Mestre em História pela UFPE
clarisse.pereira@ufpe.br

Este artigo tem como objetivo ampliar a discussão, presente na minha dissertação1,
sobre o aparato jurídico da Junta de Conciliação e Julgamento de Goiana2, município da
Zona da Mata Norte pernambucana. Na discussão que apresento aqui, procuro analisar, por
um lado, as possibilidades de funcionamento da Justiça do Trabalho diante do contexto
político e social do Brasil no fim da década de 1970, e por outro, o posicionamento dos
magistrados que atuaram na JCJ de Goiana, legitimando ou não os discursos e as táticas
formuladas por trabalhadores rurais e patrões.
Os trabalhadores que acionam a Junta de Goiana fazem parte de vários setores
produtivos – da indústria, do comércio, de serviços –, mas a grande maioria está ligada às
grandes indústrias açucareiras da Zona da Mata Norte. Dentre esses trabalhadores, grande
parte é nomeado como “trabalhador rural”, ou seja, aqueles que trabalham no cultivo e corte
da cana e têm seu salário com base no mínimo regional3. Mas também há os que prestam

1
Trabalho de dissertação intitulado “Precarização e resistência: a vida dos trabalhadores rurais nos processos
trabalhistas (Goiana, 1979-1980)”. O objetivo geral da dissertação foi analisar os discursos tecidos por
trabalhadores rurais e proprietários de terra da Zona da Mata Norte de Pernambuco no embate por direitos na
Justiça do Trabalho, e que denunciam a extrema precarização do trabalho, através da análise dos processos
trabalhistas dos anos de 1979 e 1980 da Junta de Conciliação e Julgamento de Goiana, destacando as táticas e
estratégias construídas por empregados e empregadores.
2
A cidade de Goiana, localizada na Zona da Mata Norte de Pernambuco, a aproximadamente 62 km da capital,
Recife, desde os tempos da colonização do território brasileiro foi profundamente marcada pelo cultivo de cana
para a produção do açúcar, sendo esta uma das principais atividades econômicas do município. Segundo Acioli
e Santos, tal atividade esteve intimamente ligada à reprodução de uma sociedade patriarcal, que não se
preocupou em desenvolver uma modernização da produção frente às novas demandas apresentadas em meados
do século XX, o que concorreu para aprofundar as desigualdades sociais e a violência patronal no município.
(ACIOLI; SANTOS, s/d, p. 06).
3
Até 1984 existiam no Brasil 14 valores de salários mínimos, diferentes em cada região do país. Eram
chamados de “mínimo regional”. Em 1979, o valor do mínimo regional para trabalhador permanente em
estabelecimento agrícola, em Pernambuco, era de Cr$ 1.484 no primeiro semestre e Cr$ 2.202 no segundo
semestre. Este era menor do que a média do salário mínimo do Nordeste, que no primeiro semestre era de

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serviço como “industriários”, outros como “serventes”, ou aqueles que são classificados pela
realização de atividades mais específicas nos engenhos e usinas: chefe de campo,
administrador, fiscal, motorista.
Segundo o Estatuto do Trabalhador Rural, o trabalhador rural é “toda pessoa física
que, em propriedade rural ou prédio rústico, presta serviços de natureza não-eventual a
empregador rural, sob a dependência deste e mediante salário”4. Os que se identificam como
industriários, por sua vez, fazem uso da Súmula 57 do Tribunal Superior do Trabalho, que
afirma que “os trabalhadores agrícolas das usinas de açúcar integram categoria profissional
de industriários, beneficiando-se dos aumentos normativos obtidos pela referida categoria”5.
Nesse contexto, é importante discutir como uma súmula se configura um aparato
importante para entender de que maneira os magistrados julgam, ou seja, como eles
constroem a sentença para cada caso. Uma súmula é um verbete que registra a interpretação
jurídica de um Tribunal, que podem ser aprovado tanto pelo Tribunal Regional do Trabalho
(TRT) quanto pelo Tribunal Superior do Trabalho (TST). É um mecanismo que torna
pública a jurisprudência adotada em determinados casos do direito, com o objetivo de
manter constantes das decisões jurídicas. A Súmula 57 foi definida através de um acórdão6
do TST em 18 de outubro de 1974, e desde então os magistrados do trabalho baseiam-se
nela para proferir suas sentenças, até ter sido suspensa em maio de 19937.
A utilização da Súmula 57 pelos trabalhadores revela uma tática deste grupo na luta
por melhoria de vida, através do aumento do salário: os pedidos de pagamento de diferença
salarial baseados na Súmula 57 é a segunda causa mais encontrada na Junta de Conciliação e
Julgamento de Goiana, atrás apenas dos processos que têm como objeto a demissão sem
justa causa e sem aviso prévio, que representam 61% dos processos trabalhistas da Junta de
Conciliação e Julgamento de Goiana, do ano de 1979, e 69% dos processos do ano de 1980.
Mas também revela que a categorização dos tipos de trabalho nas usinas e nas fazendas tem

Cr$1.595, e no segundo Cr$ 2.209. Se comparado com estados do Sudeste, como São Paulo, este valor
apresenta uma diferença ainda maior: Cr$1.960 no primeiro semestre, e Cr$2.821 no segundo semestre.
(Informação consultada em Fundo Lygia Sigaud, Série Agroindústria Canavieira, BR MN LS – AC3, P21-
D17, SEMEAR – UFRJ/Museu Nacional).
4
BRASIL, Artigo 2º da Lei nº 5889. Estatui normas reguladoras do trabalho rural. Junho de 1973. Disponível
em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/L5889.htm>. Acesso em nov. 2016.
5
Disponível em: <http://www.conteudojuridico.com.br/sumula-organizada,tst-sumula-57-
cancelada,2948.html>, acesso em 31 jul. 2016.
6
Um acórdão é uma decisão final proferida sobre um processo pelo Tribunal Superior, que funciona como
jurisprudência para solucionar casos análogos.
7
Informação disponível em: Disponível em: <http://www.conteudojuridico.com.br/sumula-organizada,tst-
sumula-57-cancelada,2948.html>, acesso em 31 jul. 2016.

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um alcance limitado, pois a tentativa de utilização da Súmula 57 pelos trabalhadores


extrapola as definições usuais do tipo do trabalho.
Analisar as decisões dos magistrados da Junta de Conciliação e Julgamento de
Goiana nos ajuda a entender o alcance dessas táticas e estratégias praticadas por
trabalhadores e patrões. Os discursos construídos ao longo dos processos trabalhistas são o
principal objeto de análise, pois é a partir deles que se materializam as atuações de cada uma
das personagens identificadas nos dissídios (FOUCAULT, 2014).

Táticas no mundo rural: reivindicações através da Súmula 57 e argumentação dos


patrões contra os trabalhadores
No ano de 1979, 93 processos trabalhistas tinham como objeto de causa a
equiparação salarial para a categoria de industriário, o que significa 23% do total8 de
processos impetrados na Junta de Conciliação e Julgamento de Goiana. No ano seguinte, em
1980, esse número é menor, mas ainda assim expressivo: 60 processos, 15%, têm este
mesmo objeto como causa. Os trabalhadores das usinas que evocavam e conseguiam na
Justiça do Trabalho a aplicação da Súmula 57 gozavam os direitos assegurados à categoria
dos Trabalhadores na Indústria do Açúcar no Estado de Pernambuco, e tinham a garantia de
receber um salário maior do que o mínimo regional. Porém, o texto da Súmula abria a
possibilidade para que todos os trabalhadores da cana reivindicassem o recebimento do
salário normativo da categoria de industriário, quer trabalhasse no cultivo da cana, quer
trabalhasse na produção do açúcar, porque a decisão explicitada no verbete era direcionada
aos “trabalhadores agrícolas das usinas”, sem especificar quem seriam estes trabalhadores.
Esta imprecisão jurídica presente no texto da Súmula se torna ainda mais complexa
quando percebemos que, muitas vezes, uma mesma empresa era proprietária de usinas e de
vários engenhos9, que reunia as fazendas fornecedoras da cana para a produção do açúcar.
Dessa maneira, os trabalhadores dos engenhos executavam atividades relacionadas ao
plantio da cana, enquanto os trabalhadores das usinas poderiam exercer atividades tanto nos
engenhos quanto nas indústrias – as usinas – lhe cabendo tanto a designação de “trabalhador
rural” quanto a de “industriário”. Entretanto, até 1971 os trabalhadores rurais não gozavam
dos mesmos direitos dos industriários, o que só passa a acontecer após a criação do Funrural.
8
Aqui me refiro ao total de processos trabalhistas da Junta de Conciliação e Julgamento de Goiana dos anos de
1979 e 1980, encontrados no Arquivo Memória e História – TRT 6ª Região/UFPE, catalogados e analisados
para este trabalho. O número total de processos trabalhistas analisados no ano de 1979 é 412, e no ano de 1980,
406.
9
As duas principais usinas da cidade de Goiana – Companhia Açucareira de Goiana e Agrimex – tinham ao
menos um engenho vinculado a sua produção.

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O pedido de pagamento da diferença salarial é uma reivindicação constante nos


litígios da Junta de Goiana. Mesmo trabalhadores enquadrados como “trabalhadores rurais”
dão entrada na JCJ com o pedido de equiparação salarial e de direitos dos industriários, haja
vista a resolução da Súmula 57:
O reclamante é trabalhador rural da reclamada, prestando serviços de
natureza rural no Engenho Barreirinhas, conforme anotação contida em sua
carteira profissional. Pelos serviços prestados percebe o reclamante o
salário mínimo regional. Ocorre, entretanto, que, por força da Súmula 57
do TST, o reclamante faz jus ao salário fixado para os industriários, bem
como tem direito também aos aumentos normativos concedidos àquela
classe.10

Penso as ações desses trabalhadores rurais que acionam a Súmula 57 chamando a


atenção para as suas atuações de resistência, como sugere a historiadora Regina Beatriz
Guimarães Neto (2008, p. 139):
[...] procurei chamar a atenção às práticas de homens e mulheres que se
contrapõem às normas, que se reapropriam de espaços e maneiras de viver,
diferenciadas daquilo que os aparelhos produtores das normas e regras
sociais defendem, mesmo não se situando fora do campo onde os controles
se exercem (GUIMARÃES NETO, 2008, p. 139).

A astúcia destes trabalhadores está em utilizar a Súmula 57, ordenamento jurídico


constituído a partir da Justiça do Trabalho – um lugar normativo –, como uma tática que
possibilita conquistas nas disputas com seus empregadores (CERTEAU, 2014). Eles se
apropriam deste aparato “que os regula num primeiro nível”, mas “introduzem aí uma
maneira de tirar partido dele” (CERTEAU, 2014, p. 87). Os trabalhadores da agroindústria
encontram na regulamentação jurídica um lugar onde podem, de alguma maneira, contrapor
às relações de poder e às estratégias arquitetadas pelos patrões.
Diante das reclamações dos trabalhadores na Justiça do Trabalho 11, os representantes
dos donos de usinas e engenhos de açúcar criam diversas estratégias que tentam deslegitimar
as ações dos empregados. Alguns argumentos aparecem com maior frequência nas atas de
instrução dos processos. A contestação jurídica da Súmula 57 e a tentativa de desqualificar o
serviço prestado pelos reclamantes – argumentos que estão sempre presentes nos discursos
da defesa – levantam questões importantes para entender o funcionamento e as ações da
classe patronal na relação com os empregados.

10
Processo da Junta de Conciliação e Julgamento de Goiana (PE). Arquivo Memória e História, TRT 6ª
Região/UFPE, processo 589/79, p. 02. Grifo nosso.
11
Aqui estou referindo-me de maneira específica as ações que têm como causa o pagamento de diferença
salarial, baseado na Súmula 57 do TRT.

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No dia 06 de fevereiro de 1979, um dissídio coletivo reunia sete trabalhadores que


reivindicavam a condição de “industriários”. Este litígio, protocolado no processo nº 055/79
da Junta de Conciliação e Julgamento de Goiana, estava sendo impetrado contra a
Companhia Açucareira de Goiana. Os reclamantes pedem que a empresa pague-lhes o
salário da categoria de trabalhadores na Indústria do Açúcar, e não o mínimo regional, como
vinha acontecendo. Este direito já havia sido garantido pela Junta de Goiana em decisão
anterior, mas não estava sendo cumprido12.
Como parte da estratégia de defesa, o advogado da empresa ré no processo –
Joaquim Dias – apresenta um extenso texto que desqualifica tecnicamente a Súmula 57,
afirmando que ela se choca com a Lei nº 5.889 de 1973, lei que estatui as normas que
regulam o trabalho rural. Segundo a interpretação de Dias, a referida lei não excluía os
trabalhadores das empresas agroindustriais da categoria dos trabalhadores rurais, pelo
contrário, a lei considerava esses trabalhadores industriários como rurais, e alega: “Ora, se a
lei não distinguiu, segundo o conhecimento e assaz refrão jurídico, não é dado ao intérprete
o direito de distinguir, quando a própria lei não distinguiu, Ubi lex non distinguit nez nos
distingui re debemus”13. E finaliza afirmando:

Portanto, a interpretação do Egrégio Tribunal Superior do Trabalho aos


dispositivos legais acima referidos, através da Súmula 57, é, a todas as
luzes inteiramente, ilegal, sendo mesmo flagrante a incompatibilidade
existente entre os dispositivos acima apontados e a Súmula. [...] Deverá V.
Exa., rejeitar o pedido formulado pelos reclamantes, uma vez que a
caracterização do trabalhador, como rural ou industriários, é, antes segundo
a melhor doutrina, a atividade pessoal, a ação específica desenvolvida pelo
trabalhador, independentemente, do fim último que a empresa dá ao
produto14.

O advogado operacionaliza em sua fala a falta de força da Súmula enquanto


instrumento jurídico válido, e classifica quem a utiliza de ser incompatível com a função de
julgar, por ter “horror à responsabilidade”, “temor de desagradar”, desqualificando através
do seu discurso qualquer ação que tome como base o instrumento da Súmula 57, mesmo que
esta ação parta do entendimento do Tribunal Superior do Trabalho.

12
Não é raro que os trabalhadores anexem à Petição Inicial uma cópia da publicação do acórdão no qual
baseiam seu pedido, como uma maneira de enfatizar o valor legal da Súmula através da qual apelam. Além
disso, também é comum que os reclamantes levem cópias de dissídios anteriores, que provam que a JCJ já
havia considerado como pertencentes à categoria de industriários.
13
Processo da Junta de Conciliação e Julgamento de Goiana (PE). Arquivo Memória e História – TRT 6ª
Região/UFPE, processo 055/79, p. 12, grifo no original. A frase em latim é uma expressão que designa um
princípio do Direito. Pode ser traduzida como “onde a lei não distingue, não pode o intérprete distinguir”.
14
Processo da Junta de Conciliação e Julgamento de Goiana (PE). Arquivo Memória e História – TRT 6ª
Região/UFPE, processo 055/79, p. 12.

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Os discursos estão imbricados nas relações de poder (FOUCAULT, 2014). O


advogado Joaquim Dias formula seu enunciado a partir dessas relações de poder e de um
saber que o autoriza a construir determinadas argumentações. É preciso pensar o momento
histórico específico em que ele enuncia seu discurso. Discurso esse que não se inicia desde a
fala de Joaquim Dias no tribunal da JCJ de Goiana, mas está emaranhado em outros
discursos, em outros sujeitos, carregado de historicidade. É neste sentido que procuro pensar
os enunciados dos processos trabalhistas, especialmente as falas do advogado de defesa da
empresa Companhia Açucareira de Goiana.
Joaquim Dias aponta um caminho único para a atuação dos magistrados e podemos
pensar que este artifício é também uma investida para acuar os juízes da JCJ de Goiana, que
no período do regime civil-militar sofreram com ameaças e controle do governo,
encurralando-os em uma situação de constante vigilância.

A Justiça do Trabalho em debate


A literatura específica sobre este período aponta caminhos que permitem pensar
como a Justiça do Trabalho atuou diante das mudanças políticas e sociais pelas quais passou
a sociedade brasileira, em especial, na ditadura civil-militar. As sociólogas Regina Morel e
Elina Pessanha afirmam que os governos autoritários que se instalaram ao longo do período
civil-militar agiram no sentido de tentar minimizar o poder de ação dos juízes trabalhistas,
suspendendo direitos como a estabilidade dos magistrados e usando dispositivos legais, já
presentes na legislação de 1943, para definir a atuação dos magistrados. Mesmo assim, as
pesquisadoras afirmam que a Justiça do Trabalho representou “durante esse período
autoritário, um dos poucos espaços de defesa de direitos sociais” (MOREL. PESSANHA,
2007, p. 91).
A historiadora Larissa Rosa Corrêa destaca como a criação de dispositivos legais
restringia a atuação dos juízes do trabalho, como Lei nº 4.725/65, também conhecida como
“lei do arrocho salarial”, que controlava o poder normativo15 da Justiça do Trabalho na
mediação entre empregados e empregadores para o reajuste do salário. Vinculando o
aumento salarial a índices criados por órgãos do governo, com dados imprecisos, variáveis e
que provocavam a perda real do valor do salário. Além deste cerceamento legitimado por

15
O poder normativo da Justiça do Trabalho conferia-lhe competência para decidir, criar e modificar normas
em dissídios coletivos, ampliando direitos (nunca restringindo, em respeito às garantias já previstas em lei)
onde as leis não contemplassem amplamente as questões levadas aos tribunais trabalhistas. Estabelecido pela
Constituição de 1946, o Art. 123, § 2º diz “A lei especificará os casos em que as decisões, nos dissídios
coletivos, poderão estabelecer normas e condições de trabalho” (Disponível em:
<http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicao46.htm>, acesso em 15 abr. 2017).

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uma legislação, Corrêa ainda destaca a perseguição, ameaça e vigilância a magistrados e


advogados, vistos pelo regime como suspeitos de “atividades subversivas”. A historiadora
destaca casos do TRT da 2ª Região (São Paulo) de pessoas perseguidas porque divergiam de
alguma maneira do regime autoritário, como o do advogado trabalhista José Carlos Arouca,
que não conseguiu assumir o cargo de juiz do Trabalho, e do magistrado Carlos Figueiredo
Sá, constantemente vigiado pelo Deops e afastado do cargo em 1968, acusado de ser
“comunista” porque deferia suas decisões em favor dos trabalhadores (CORRÊA, 2013).
Em estudo sobre a história da Justiça do Trabalho através da visão dos magistrados,
Ângela de Castro Gomes afirma que, entre as décadas de 1960 e 1980, houve “um bloqueio
político ao caminho clássico de inclusão social, via legislação do trabalho, mas sem sua
eliminação formal” (GOMES, 2006, p. 65). Isto porque apesar da manutenção da Justiça do
Trabalho, os governos militares não ofereceram condições para a atuação efetiva ou a
expansão do poder desse órgão. Segundo o depoimento dos magistrados, “o regime militar
‘vetou’ a ação dos órgãos garantidores dos direitos do trabalho, simplesmente não lhes
dando recursos humanos e materiais para um funcionamento eficiente” (GOMES, 2006, p.
66). Além disso, a partir de dezembro de 1968 passou a vigorar no Brasil o Ato Institucional
nº 5; entre os decretos do Ato estava a perda da vitaliciedade do cargo de juiz, que ficavam
muito mais vulneráveis a quaisquer acusações (GOMES, 2006, p. 77).
Em sua tese de doutorado, Claudiane Torres da Silva lança a pergunta “que direitos
são possíveis dentro de um Estado de exceção?”, e debate a legislação trabalhista do regime
civil-militar. Segundo a historiadora, os governos militares tinham o objetivo de sustentar
uma aparência de legalidade. Conservar a Justiça do Trabalho estava dentro desse plano,
mas exigia a reformulação de leis e o controle das decisões através de instrumentos jurídicos
que atendessem aos objetivos políticos e econômicos do regime (SILVA, 2015, p. 59). A
atuação regulada da Justiça do Trabalho era essencial para o projeto político da ditadura, que
ao atuar a partir das leis e decretos regulamentados desde 1964 legitimaria as ações do
governo militar dissimulado de democrático, ao mesmo tempo que garantiria controle dos
trabalhadores, através da aplicação as leis produzidas pelo Executivo.
Entre os mecanismos estabelecidos pelo regime autoritário, Claudiane Torres destaca
a criação, em 1964 do Departamento Nacional de Emprego e Salário (DNES), que
coordenava e executava a política salarial, apresentava as bases que pautariam a relação
entre os poderes Executivo e Judiciário, e em 1965, a já citada Lei nº 4725/65, do arrocho
salarial. A implementação do AI-5, em 1968, trouxe uma nova configuração do cenário
político brasileiro e o cerco aos juízes do trabalho foi intensificado (SILVA, 2015). A

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historiadora afirma que “Essas mudanças legislativas não só alteraram o contexto de


atividades da Justiça do Trabalho e de seus respectivos tribunais, mas também modificaram
o cotidiano do trabalhador urbano e rural” (SILVA, 2015, p. 79).
É importante destacar estes estudos porque eles revelam o funcionamento da Justiça
do Trabalho ante o estado de repressão produzido pelos governos militares. As pesquisas
nos oferecem subsídios para pensar como foi possível a emergência da carta de defesa da
empresa açucareira, assinada pelo advogado Joaquim Dias. Assim, entendo que a relação
que o regime militar estabeleceu com a Justiça do Trabalho possibilitou a emergência de um
determinado tipo de estratégia de defesa das agroindústrias, que podia vir a ser efetiva nos
tribunais das Juntas Trabalhistas, viabilizando até mesmo toda deslegitimação e tentativa de
encurralar a atuação dos magistrados do trabalho que o advogado aponta no seu discurso.

A Súmula 57 e os magistrados
As categorias “trabalhador rural” ou “industriários” eram agenciadas a partir da
utilidade que apresentavam para os grupos nos embates jurídicos. Os trabalhadores
acionavam a Súmula 57 na tentativa de terem suas rendas melhoradas, enquanto os patrões
procuravam, de várias maneiras, desqualificar as táticas dos trabalhadores, procurando ter o
mínimo de gasto possível a partir da exploração deles. Nesse contexto, os magistrados são
figuras centrais. De acordo com os pesquisadores Adalberto Cardoso e Telma Lage,
[...] as normas legais não esgotam o desenho formal do direito do trabalho.
Sua interpretação pelos tribunais é parte ativa do processo de efetivação da
lei, estando sujeita às mais diversas injunções, algumas propriamente
jurisdicionais, outras decorrentes das conjunturas econômica e política
(CARDOSO; LAGE, 2007, p. 28).

Assim, entendo que a interpretação dos juízes insere outras variáveis dentro destas
disputas, e em muitos sentidos ajuda a compreender a atuação e os procedimentos das Juntas
de Conciliação e Julgamento na Zona da Mata de Pernambuco.
Antes de analisar as ações e decisões dos juízes que atuaram na Junta de Conciliação
e Julgamento de Goiana é importante ter em mente que o direito do trabalho é regido por
princípios que orientam a função normativa da Justiça do Trabalho. A Doutora em Direito
Patrícia Martins Bertolin, baseada no jurista Américo Plá Rodriguez16, define os princípios
do direito do trabalho: i) o princípio da proteção, que admite o trabalhador como
hipossuficiente na relação de trabalho, deixando à parte a orientação da igualdade, que rege

16
De acordo com a autora, a classificação dos princípios mais aceita na doutrina do Direito é a de Américo Plá
Rodriguez, por isso ela opta por tê-lo como referência (BERTOLIN, 2005).

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o Direito; ii) princípio da irrenunciabilidade dos direitos trabalhistas, que se fundamenta na


impossibilidade jurídica do trabalhador abdicar de direitos trabalhistas, sem o qual o
empregado poderia facilmente ter suas garantias trabalhistas reduzidas; iii) princípio da
continuidade do contrato de trabalho, que assegura a permanência do trabalhador em seu
emprego mesmo em caso de mudança estrutural ou funcional no ambiente de trabalho; iv) o
princípio da primazia da realidade, que acredita que a realidade do fato tem prevalência
sobre documentos apresentados como provas, caso aja dissonância entre eles; v) princípio
da razoabilidade e da boa-fé, determina que os indivíduos – empregados, empregadores e
juízes, agem em conformidade com a razão, cumprindo seus deveres, determinando a
lealdade de princípios das partes17.
De acordo com Bertolin, um princípio é algo mais amplo do que uma norma, pois
seu objetivo é exatamente guiar tais condutas. Os princípios têm força normativa, dando
sentido à norma positivada, orientando e integrando as interpretações das normas jurídicas.
Eles definem os padrões a serem empregados pelo Direito do Trabalho. A jurista afirma que
“a inserção desses princípios no ordenamento jurídico, a ponto de adquirirem força
coercitiva, pode acontecer por meio do processo legislativo, mas, com maior frequência,
ocorre pela atividade jurisdicional” (BERTOLIN, 2005). Com base nestas considerações,
fica mais evidente a importância da análise da interpretação e das decisões proferidas pelos
juízes.
Além dos princípios, para entendermos como os magistrados trabalhistas operam, é
necessário pensar as singularidades da atuação da Justiça do Trabalho diante de um
momento peculiar da ditadura civil-militar: o processo de distensão desse regime político. A
historiadora Claudiane Torres da Silva (2010, p. 04) ressalta o aspecto legitimador e
repressivo característico do período militar, e chama atenção para a relação entre os
governos militares e a Justiça do Trabalho:
No tocante ao primeiro aspecto [legitimador], o Judiciário teve importante
papel no sentido de firmar um espaço de práticas relativamente
democráticas. Trata-se de um desafio pensar como o poder Judiciário atuou
na ditadura civil-militar e como um Estado de exceção se relacionou com
uma instituição tradicionalmente vista como representante e defensora dos
direitos sociais.

A Justiça e o Direito do Trabalho emergem, no Brasil, na década de 1940, no sentido


de construir uma justiça social e mediar as relações entre empregados e empregadores.

17
Patrícia Tuma Martins Bertolin afirma em seu texto que a maioria dos juristas considera este um critério
aplicado a toda área do Direito, e não apenas no direito trabalhista, diferente do que considera Plá Rodriguez.

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Considerando a condição hipossuficiente do trabalhador, o Direito e a Justiça do Trabalhado


atuariam na intenção de garantir leis e a aplicação destas, na tentativa de efetivar algum tipo
de controle das desigualdades de uma sociedade capitalista (GOMES, 2006, p. 60). Então, é
pertinente questionar qual foi o alcance e a efetividade da Justiça do Trabalho durante o
Estado de exceção em que o Brasil se encontrava na década de 1970.
Entrevistando magistrados do trabalho, Ângela de Castro Gomes percebeu que a
experiência da vivência enquanto magistrado no período do regime civil-militar manifesta-se
nos depoimentos de juízes como um mecanismo estratégico para o entendimento do sentido
político que foi sendo cada vez mais atribuído pelos magistrados ao Direito do Trabalho, a
partir da década de 1970. Os juízes entrevistados compreendiam a centralidade do papel
político-social da magistratura do trabalho em um momento de repressão de direitos sociais.
Destacando a importância da atuação dos magistrados neste momento histórico, a
historiadora afirma:
[...] se numa cultura política autoritária os direitos do trabalho
materializaram um conceito de cidadania social, a partir dos anos 1970-80
– por força das feridas abertas pelo próprio autoritarismo – tais direitos
foram situados como um dos loci mais valiosos para o exercício de uma
cidadania plena (GOMES, 2006, p. 60).

Sem tentar estabelecer qualquer relação de causa e consequência ou engessar os


documentos em considerações explicativas deterministas, penso que a análise de Ângela de
Castro, assim como o entendimento dos princípios fundamentais que regem as normas
jurídicas do trabalho, ajudam a encontrar uma lente para a leitura dos enunciados dos juízes
da Junta de Conciliação e Julgamento de Goiana, em pleno regime civil-militar.
Durante os anos de 1979 e 1980 dois magistrados figuram como presidentes da Junta
de Conciliação e Julgamento de Goiana: a juíza Maria Helena Guedes Soares Pinho e o juiz
José Soares Filho. É preciso dizer, então, que a interpretação da Súmula 57 não era
homogênea entre os juízes da referida Junta. Na deliberação do processo nº 066/79 – em que
cinco trabalhadores rurais pediam o pagamento da diferença salarial, alegando que a JCJ de
Goiana já havia reconhecido este direito àqueles empregados, por serem considerados
industriários com base na Súmula 57 – José Soares mantém a decisão, reconhecendo aos
trabalhadores o direito de receber o salário de industriário, “em obediência à ‘res judicata’”18
para quatro dos cinco reclamantes, pois eles figuravam em processos transitados em julgado
naquela Junta, apresentados como prova no litígio. Mas um dos trabalhadores, Luís Pedro da

18
Processo da Junta de Conciliação e Julgamento de Goiana (PE). Arquivo Memória e História – TRT 6ª
Região/UFPE, processo 066/79, p. 32.

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Silva, teve sua ação julgada improcedente porque ele não aparecia como reclamante em
nenhum processo trabalhista apresentado como prova. Nos fundamentos da decisão, José
Soares expõe sua discordância em relação à Súmula 57. No entendimento do juiz, considerar
os trabalhadores rurais como industriários criava uma situação incompatível com o
ordenamento jurídico da Previdência Social, uma vez que os trabalhadores rurais eram, neste
momento, assistido pelo Prorural19. Para Soares Filho, havia um “desajuste de entendimento
com o sentido do mandamento legal em apreço”20, criado pela Súmula 57. Luís Pedro era
um trabalhador rural, que aludia a uma “categoria profissional diferenciada (art. 511, § 3º da
CLT), que, como tal, apresenta condições de vida singulares, próprias, distintas das de outras
categorias, especialmente a dos trabalhadores na indústria do açúcar”21. Assim, preservando
a “inenarrável supremacia da lei sobre a jurisprudência”22, ele justificava sua sentença, não
admitindo a classificação de Luís Pedro da Silva como industriário, logo, este não teria
direito a receber o salário fixado para esta categoria.
Os processos trabalhistas anexados como prova ao litígio datavam de 1976 e haviam
sido julgados pela juíza Maria Helena Guedes Soares Pinho. A magistrada tinha uma
perspectiva diferente de José Soares Filho sobre a aplicação e abrangência da Súmula 57.
Em um dos processos juntados é possível ter ideia do entendimento da juíza sobre a vida dos
trabalhadores rurais e sobre o emprego da Súmula 57:

Verdadeira avalanche de reclamações de campesinos das usinas de açúcar


invadem a Junta, na ânsia não só de conseguirem um salário superior ao
ora recebido como na esperança de se verem acobertados pelo INPS,
livrando-se assim, do malfadado FUNRURAL que tão precariamente os
assistem. Apenas por um princípio de equidade passamos a acolher a
aplicação da Súmula 57. [...] Prejudicados se acharam os laboristas com a
prescrição aplicada àqueles direitos que nunca lhes foram pagos, daí,
sabedores das vantagens que lhe poderiam advir com a aplicação da
Súmula citada, não hesitaram em propor estas reclamatórias. [...] Não
temos a menor dúvida sobre a conceituação de trabalhador rural que nos dá
a Lei nº 5889/73, a qual reconhecemos não ter sido muito feliz ao defini-lo,
embora declare no § 1º do seu art. 3º, que se inclui “na atividade
econômica referida no capítulo desse artigo, a exploração industrial em

19
O Prorural foi implementado em 1971, ligado ao Funrural. Era o programa de previdência ao trabalhador
assalariado rural, que, diferente do trabalhador urbano, não precisava contribuir para ter assistência nas áreas
de aposentadoria e assistência médica. A Constituição de 1988 promove uma mudança neste sentido, definindo
que todos os trabalhadores brasileiros seriam assistidos pelo INPS.
20
Processo da Junta de Conciliação e Julgamento de Goiana (PE). Arquivo Memória e História – TRT 6ª
Região/UFPE, processo 066/79, p. 33.
21
Processo da Junta de Conciliação e Julgamento de Goiana (PE). Arquivo Memória e História – TRT 6ª
Região/UFPE, processo 066/79, p. 33.
22
Processo da Junta de Conciliação e Julgamento de Goiana (PE). Arquivo Memória e História – TRT 6ª
Região/UFPE, processo 066/79, p. 33.

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estabelecimento agrário não compreendido na C.L.T.”. Estariam as usinas


de açúcar enquadradas na definição de empresa rural da citada lei? [...] O
trabalhador rural pertence a uma categoria diferenciada, não só por ser
regido por lei especial, como também por ter condições de vida singulares
(art. 511 §3º da C.L.T.), um “modus vivendi” peculiar, que o distingue
muito da categoria profissional dos industriários.23

Assim como José Soares, Maria Helena Guedes também reafirma a condição de vida
diferenciada dos trabalhadores rurais, fato que justificava a legislação trabalhista específica
para esta categoria. Mas ela reconhece os limites dessa legislação, especialmente do
Funrural, referindo-se a ele como “malfadado”, não sendo o suficiente para assistir de
maneira digna os trabalhadores do campo. A magistrada reconhece também o papel ativo
dos trabalhadores rurais na luta pela melhoria de vida, quando os adjetiva de “sabedores”.
Ou seja, os empregados estão ali não por acaso, mas conscientes das possibilidades de ganho
que aquela ação trabalhista oferece. Na sua argumentação, a juíza admite que acredita que o
TST tenha deixado vago o critério que usou para criar a Súmula 57, uma vez que nem
sempre as usinas têm engenhos de cana – muitas vezes este serviço era terceirizado a
arrendatários ou outros proprietários fazendas –, e aí se daria a dúvida: os trabalhadores
desses engenhos poderiam ser atendidos pela Súmula 57? Para a juíza sim, já que o destino
final da cana produzida nessas propriedades eram as usinas24.
Baseada nisso, e expondo uma perspectiva diferente de José Soares, ela entende que
a Súmula 57 é eficaz em sua aplicação no sentido de tentar diminuir a precariedade da vida
dos trabalhadores rurais, e aceita o pedido dos trabalhadores de terem seus salários
equiparados ao salário dos industriários. A decisão se repete em 1979, quando a juíza
condena a mesma empresa, a Companhia Açucareira de Goiana, a pagar a diferença salarial
de sete trabalhadores reclamantes no processo nº 055/79.
É importante destacar que os dois magistrados usam o mesmo artigo da CLT para
amparar seus argumentos. O artigo referido, o 511 da Consolidação das Leis Trabalhistas,
versa sobre a associação em sindicatos, permitindo a associação para fins de estudo,
coordenação ou defesa de trabalhadores que exerçam a mesma profissão ou atividades
similares. O parágrafo segundo define que a categoria profissional se estabelece pela
“similitude de condições de vida oriunda da profissão ou trabalho em comum”. E no
parágrafo terceiro, utilizado pelos magistrados nas sentenças, o artigo diz que “categoria

23
Processo da Junta de Conciliação e Julgamento de Goiana (PE). Arquivo Memória e História – TRT 6ª
Região/UFPE, processo 066/79, p. 11.
24
Processo da Junta de Conciliação e Julgamento de Goiana (PE). Arquivo Memória e História – TRT 6ª
Região/UFPE, processo 066/79, p. 12.

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profissional diferenciada é a que se forma dos empregados que exerçam profissões ou


funções diferenciadas por força de estatuto profissional especial ou em consequência de
condições de vida singulares”25.
José Soares e Maria Helena levam em consideração a vida peculiar do trabalhador do
campo para julgarem a causa dos reclamantes, mas pronunciam sentenças diferentes. Esta
questão evidência os limites e a validação (ou não) da Súmula 57 pelos magistrados da JCJ
de Goiana, ou seja, a utilização, na Justiça do Trabalho, da jurisprudência normatizada. Há,
no direito, estratégias para produzir alguma uniformidade das decisões judiciais. As súmulas
são importantes para criar uma regularidade, através da jurisprudência, mas não têm força de
impor uma única possibilidade de julgamento; assim, interferem também outros fatores,
como a atuação dos advogados. Eles agem nos tribunais como negociadores, que têm um
papel de influência nos conflitos (BRANDÃO, 2012). Entretanto, a interpretação e decisão
do magistrado inserem outras variáveis dentro destas disputas, evidenciando o caráter
heterogêneo das sentenças.
As análises aqui construídas ajudam a compreender a efetivação de um projeto
político do regime civil-militar para a Justiça do Trabalho que, mantendo seu funcionamento
precarizado e diminuindo sua autonomia, conseguia, por um lado, manter uma aparente
legalidade e, por outro, exercia um controle tanto sobre os magistrados quanto dos
trabalhadores que acionavam as Juntas de Conciliação. Tal projeto acabava também por
legitimar ações dos patrões e dos seus advogados dentro das Juntas, que em suas
argumentações chegavam mesmo a utilizar tons ameaçadores e intimidar os magistrados
com mecanismos políticos e jurídicos, a partir de dispositivos criados por um estado de
exceção. Contudo, este projeto não consegue engessar totalmente a ação da Justiça do
Trabalho, haja vista que ela se constituiu, durante anos na ditadura militar, como um dos
principais meios de reivindicação dos trabalhadores pelos seus direitos, que inventam táticas
de enfrentamento e sobrevivência dentro de uma situação de violência, pobreza e
precarização da vida.

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25
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“A TAREFA DE ABERTURA DA AMAZÔNIA” E OS DESLOCAMENTOS DE


GRUPOS SOCIAIS: DISCURSOS, DECRETOS-LEI E PLANOS DE
DESENVOLVIMENTO NACIONAIS E REGIONAIS
Joana Maria Lucena de Araújo
Doutoranda do PPGH-UFPE
joana.lucena25@gmail.com

Cumpre destacar, de saída, que o deslocamento de trabalhadores rurais do Nordeste


para a Amazônia pode-se configurar como um movimento recorrente, na História do Brasil 1.
Observando os Censos Demográficos do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística
(IBGE), percebe-se que existe um movimento de migração contínuo partindo do Nordeste
em direção aos estados do Centro-Oeste, em especial, o Mato Grosso. Entretanto, os
deslocamentos são intensificados em alguns momentos da História do Brasil, acompanhando
políticas públicas nas quais o governo estimula as migrações por motivos diversos. Um dos
exemplos mais importantes e citados é a política conhecida como “Marcha para o Oeste” 2 de
Getúlio Vargas.
Durante o Regime Militar, o deslocamento de trabalhadores rurais será parte
integrante das políticas públicas federais. Entretanto, embora exista flagrante “afinidade”
entre os dois sistemas de governo – o de Getúlio Vargas e o dos militares -, no que diz

1
Realizando uma discussão sobre a ideia de Amazônia que foi utilizada em discursos de políticos e intelectuais
ao longo da História do Brasil, o antropólogo Alfredo Wagner Berno de Almeida aponta que o direcionamento
de trabalhadores rurais, em particular, aqueles oriundos do Nordeste, para o território amazônico pode ser
observado desde o Século XIX, quando, no ano de 1877 (época em que o Nordeste passou por uma grande
seca), o governo implementou políticas que favoreceram as migrações. Segundo o autor, tais argumentos
“podem ser identificados sob uma forma de vulgarização científica quando todos discutem ou preconizam
formas de exploração ‘racional’, ocupação ‘racional’ e ação ‘racional’ como ‘moderna’, suportando planos,
projetos e programas oficiais de desenvolvimento da região amazônica” (p. 25). Ou seja, a cada governo que
passa, são “recicladas” diversas ideias a respeito do território amazônico nas quais são projetados planos de
desenvolvimento geralmente envolvendo dispositivos para “ocupar os espaços vazios”, afirmando que os
governos anteriores apesar de colocarem planos semelhantes em funcionamento, erraram em algum aspecto
qualquer. Essa prática, influencia na divulgação da ideia de uma Amazônia homogênea e fictícia, muitas vezes
corroborada por intelectuais que atuam em favor do estado burocrático. Cf. ALMEIDA, Alfredo W.B.
Antropologia dos Archivos da Amazônia. Rio de Janeiro: Casa 8/ Fundação Universidade do Amazonas, 2008.
2
Chama-se de “Marcha para o Oeste” a política do governo Vargas (durante o Estado Novo, 1937 a 1945) que
tinha como objetivo conduzir os fluxos de deslocamentos populacionais internos para a Amazônia com a
justificativa de ocupar espaços considerados de “vazio demográfico”. Há na historiografia uma rica bibliografia
que desenvolve a temática, entre eles, Cf. OLIVEIRA, Lucia Lippi. Estado Novo e a conquista de espaços
territoriais e simbólicos. Revista Política e Sociedade, no 12 de abril de 2008.; LIMA, Nísia Trindade. Um
sertão chamado Brasil: Intelectuais e representação geográfica da identidade nacional. Rio de Janeiro:
Renavan: IUPERJ, UCAM, 1999. LENHARO, Alcir. Sacralização da política. Campinas, SP: Papirus, 1986.

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respeito às ações direcionadas ao deslocamento de trabalhadores para o território amazônico,


há características distintas, nas respectivas políticas públicas.
Nessa perspectiva, é importante destacar que existem diferenças de objetivos – os
quais podem se consubstanciar em metas – entre a “Marcha para o Oeste”,
predominantemente, destinada a ocupar a parte oeste do país, com a criação de colônias
agrícolas3, e a ação dos Governos Militares, nos quais, fixa-se, como meta, a ocupação,
mesma, da Amazônia (com amplo apoio da iniciativa privada) considerada, segundo o
discurso oficial, uma área de “vazio demográfico”. É importante ressaltar que o número de
trabalhadores que se deslocam para este território nas três últimas décadas do século XX foi
substancialmente superior do que em qualquer outro momento da história do país, visto o
esforço dos governos militares para atrair trabalhadores não só do Nordeste mas de outras
áreas como o Sul do Brasil.
Nesse contexto, não será possível analisar a migração de trabalhadores rurais do
Nordeste para o território amazônico, sem antes levar em conta as políticas públicas,
implantadas pelos governos federais, para o referido espaço. A escolha das décadas de 1970
e a primeira metade da década de 1980, para o início dessas análises, não foi realizada de
forma aleatória, pois, pode-se acompanhar a implementação e o desdobramento de um
extenso conjunto de medidas governamentais que tinham, por principal objetivo a ocupação
amazônica e influenciaram na intensificação do deslocamento de trabalhadores para aquele
território.

1.1 – A Amazônia e o Nordeste segundo o discurso governamental e o deslocamento de


trabalhadores rurais.

Para o governo federal, o movimento de deslocamento de parte da população que


vivia no campo era necessário, por conta das dificuldades enfrentadas pelos trabalhadores
rurais e pequenos proprietários, em especial, do Nordeste (entre as mais graves e frequentes
a alta concentração de terras e superexploração do trabalho). A principal causa das
adversidades, na visão do governo, eram as secas frequentes e a pretensa “falta” de terras
agricultáveis. Tais elementos impediam que as famílias se desenvolvessem e produzissem no
campo, gerando, assim, um grande contingente de miseráveis. Em visita ao Conselho

3
Um grupo de autores optam por analisarem a História econômica e política do território amazônico através de
ciclos (como os da borracha). Entre muitos exemplos recomenda-se a leitora de: MAHAR, Dennis J.
Desenvolvimento Econômico da Amazônia: Uma análise das políticas governamentais. Rio de Janeiro:
IPEA/INPES. 1978 (Coleção Relatórios de Pesquisa nº 39 – IPEA) e CARDOSO, Fernando Henrique.
MULLER, Geraldo. Amazônia: expansão do capitalismo. São Paulo: Ed. Brasiliense/CEBRAP, 1977.

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Deliberativo da Superintendência de Desenvolvimento do Nordeste (SUDENE), em seis de


julho de 1970, o Presidente Emílio Garrastazu Médici se propõe a resolver os problemas
gerados pela seca do ano de 1970, enfrentando-os com três ações principais: a primeira
delas, investir em um plano de irrigação em áreas selecionadas. A segunda, promover o
desenvolvimento de projetos agrícolas e fomentar instituições de pesquisas que se dediquem
a estudar as “perspectivas de produtividade” das áreas atingidas pela seca e no Nordeste em
geral. A terceira e última ação proposta pelo governo para o combate à miséria era incentivar
a colonização de outras áreas do país, em especial, as “áreas úmidas do Nordeste do
Maranhão, do Sul do Pará, do Vale do São Francisco e do Planalto Central” (MÉDICI, 1970,
p. 76). As linhas seguintes resumem a visão do Nordeste, compartilhada pelos integrantes do
governo federal e funcionários da SUDENE, expressada através da palavra do Presidente
Médici:
Aqui vim para ver, com os olhos da minha sensibilidade, a seca deste ano, e vi
todo o drama do Nordeste. Vim para ver a seca de 70, e vi o sofrimento e a miséria
de sempre [...] vi como os homens se vinculam à terra, vinculadas aos seus donos.
Vi essa pobre lavoura de sustento, sem água, sem técnica, sem adubo, sem
produtividade, desenganada de dar o esperado fruto, e, pior que isso, vi a angústia
dos meses que ainda virão sem chuva (MÉDICI, 1970, p.71-72).

É interessante como, mesmo em uma reunião, na qual o objetivo era discutir ações
para amenizar os problemas causados pela seca, chega-se à conclusão de que, mesmo tendo
a sua disposição os recursos do Fundo Especial para os Estados do Nordeste, as atitudes
tomadas foram de caráter emergencial e paliativas. É visível na fala do Presidente o fato de
que algumas áreas, especialmente as mais secas, como o Sertão, estão além de qualquer
ajuda, e muitos projetos implantados na área pelos governos anteriores, não passaram de
desperdício de recursos. Esse discurso constrói uma imagem de uma terra que não pode mais
comportar o contingente de trabalhadores que possui. Nesse âmbito, é colocada como uma
das providências emergenciais para a situação da população atingida pela seca que se
encontra sem nenhuma condição de obter renda (caso dos trabalhadores rurais), o trabalho
na construção das rodovias, construídas com recursos do Plano de Integração Nacional
(PIN), lançado, ainda, no ano de 1970. As obras de irrigação, citadas no discurso, serão
apenas realizáveis em algumas áreas selecionadas. Logo, muitas áreas não foram
comtempladas, pois não se encaixaram nas “perspectivas de produtividade”, de acordo com
o plano de desenvolvimento do governo federal, criando, assim, uma ideia de “excedente
populacional”. Visto que o número de terras agricultáveis seria pequeno, não comportariam
o número de trabalhadores que lá viviam. Assumindo a impossibilidade de manter os
trabalhadores rurais em suas terras, o governo afirma que os problemas da região extrapolam

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o âmbito particularizado e atingem a nação inteira. A recuperação das áreas atingidas pela
seca, deveria contar com a ajuda de todos os brasileiros. Esse discurso, mais do que um
anúncio de medidas para auxílio de áreas afligidas pela seca, é um apelo à consciência
nacional.
Todavia, as preocupações do governo federal com os trabalhadores rurais do
Nordeste não foram apenas de ordem econômica. Segundo Octavio Ianni:
A essa época, a SUDAM colocava o problema da colonização como um assunto
setorial, definido principalmente em termos de ‘colonização e segurança’, isto é,
nos termos de geopolítica inspirada na doutrina de defesa nacional. A colonização,
civil e militar, oficial ou particular, era posta pelo poder público como uma forma
de preencher vazios, reforçar núcleos preexistentes, ocupar áreas de modo a
garantir a Amazônia na esfera do poder nacional (IANNI, 1979, p. 37).

Ou seja, era imperativo, para o governo, orientar os “excedentes populacionais” do


Nordeste para a Amazônia não apenas por causa dos problemas sociais e econômicos que
atingem a região, mas, também, por conta do perigo “subversivo” que ela representa. Em
Pernambuco, por exemplo, existe a conhecida atuação das Ligas Camponesas, duramente
combatidas quando os militares assumiram o governo do país. A mobilização dos
trabalhadores rurais era vista como um perigo à segurança nacional. Logo, o impulso dado
ao deslocamento, juntamente com o controle ostensivo dos sindicatos rurais era uma forma
de diluir sua organização4. No que diz respeito a Amazônia, é preciso considerar os perigos
de ter uma significativa área do país “despovoada” de acordo com o discurso oficial, e sem a
presença efetiva do Estado.
É preciso nunca esquecer que não se pode chamar de “vazio demográfico” o
território amazônico, visto o grande número de nações indígenas existentes no local,
posseiros, populações ribeirinhas, entre outros seguimentos sociais. A Amazônia Legal,
contudo, representava, segundo dados do IBGE, um dos menores índices de ocupação
humana no Brasil (dados que serviam de base às políticas oficiais). Ainda foi levantado
como uma das motivações para a ocupação do território amazônico a intenção que outros

4
Na historiografia há diversos autores que dedicam-se a analisar a atuação de organizações de trabalhadores
rurais, em particular os Sindicatos e Ligas Camponesas, antes e durante a vigência do Regime Militar, entre
eles, destaca-se a contribuição de: CARNEIRO, Ana; CIOCCARI, Marta. Retrato da repressão política no
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países demonstravam em servir-se da biodiversidade da região, ferindo os direitos de


soberania nacional do Brasil5.
A imagem da Amazônia que o governo federal divulga nessa época, especialmente,
no início da implementação de suas políticas para esse território no início da década de
1970, e as quais usa como base para seus planos de governo, deve ser desnaturalizada. A
ideia do “vazio demográfico” foi utilizada com certa frequência como uma justificativa para
a ocupação do território. Todavia, considerar a Amazônia como demograficamente vazia é
ignorar a existência de inúmeros povos indígenas e comunidades chamadas “tradicionais”6
que vivem nesse local há gerações e, ainda, é preciso considerar os núcleos populacionais
formados pelos migrantes que se dirigiram para o referido espaço, seja por conta das
políticas de migrações dos governos brasileiros7 ou de forma espontânea a procura de terra e
trabalho.
O “vazio demográfico” amazônico faz parte de um conjunto de noções sobre esse
território que já se encontrava solidificado em muitos estudos sobre o assunto. Segundo
Alfredo Wagner de Almeida, existe uma relação entre os argumentos que intelectuais e
políticos utilizam para explicarem a Amazônia, baseados em “formulações de esquemas
interpretativos cristalizados”, ou seja, são noções que perpassam várias épocas, que, de tão
fixadas no senso comum são repetidas mesmo em textos acadêmicos, sem grandes
questionamentos (ALMEIDA, 2008, p.15-126). Naturaliza-se a concepção do território
amazônico como lugar rico de recursos naturais, porém, pobre de homens. Os governos
militares, ainda, complementaram essa ideia com a noção de que o território está pronto para
receber os corajosos homens que se dispuserem a explorá-lo. A falta de questionamentos dos

5
A ideia de que o território amazônico precisava ser salvo da cobiça de outros países que desejavam utilizar-se
da biodiversidade do local transparece em vários discursos do Presidente Médici, em especial, o discurso
proferido em Manaus, na Reunião Extraordinária da Superintendência de Desenvolvimento da Amazônia,
SUDAM, em 08/10/1970. Este pronunciamento tornou-se bastante conhecido por causa da emblemática frase
proferida pelo presidente de que as iniciativas de colonização no espaço amazônico tinham o objetivo de sanar
dois problemas: “o do homem sem terras no Nordeste e o da terra sem homens na Amazônia” p. 149.
Disponível em: http://www.biblioteca.presidencia.gov.br/ex-presidentes.
6
O antropólogo Alfredo Wagner de Almeida, em importante artigo discute a ideia das chamadas “terras
tradicionalmente ocupadas” e sua relação com a formação da identidade dos povos e grupos sociais que se
relacionam intimamente com a natureza. Cf. ALMEIDA, Alfredo W.B. Terras tradicionalmente ocupadas:
Processos de territorialização e movimentos sociais. In. Revista Brasileira de Estudos Urbanos e Regionais.
V.6, N.1 / MAIO 2004.
7
O período conhecido como “ciclos da borracha” foi estudado por diversos autores, entre eles: GUILLEN,
Isabel Cristina Martins. Errantes da selva. Histórias da migração nordestina para a Amazônia. Recife: Editora
Universitária da UFPE, 2006. SANTANA, Arthur Bernady. A BR-163: “ocupar para não entregar”, a política
da ditadura militar para a ocupação do “vazio” Amazônico. In: Anais do XXV Simpósio Nacional de História –
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argumentos construídos sobre a Amazônia, leva a análises generalizadoras do seu espaço.


Mesmo a referência do território amazônico como uma região pode levar à conclusão de que
este constitui um espaço homogêneo.
A imprensa desempenhou um papel fundamental na divulgação dos conceitos sobre o
território amazônico, sedimentada em boa parte da população até os dias de hoje. A
construção de uma Amazônia rica em biodiversidade, de solo fértil e demograficamente
pobre, ressoava através dos meios de comunicação, em especial, os jornais, com riqueza de
detalhes. Realizando um estudo sobre a cobertura da imprensa sobre a construção da
Rodovia Transamazônica, César Martins de Souza revela que grande parte das reportagens
que falavam sobre o tema apresentavam a floresta como um “organismo vivo”, que tentava,
continuamente, “expulsar” os invasores que ousavam penetrar em seu espaço. Eram
frequentes as matérias que cobriam as epidemias de malária, os ataques de animais
selvagens e o clima, sempre úmido. São ressaltados os perigos da floresta, especialmente,
porque ainda se encontra vívida na memória nacional a construção da Estrada de Ferro
Madeira-Mamoré, episódio, marcado por frequentes tragédias, incluindo epidemias e
violência (SOUZA, 2014, p.7).
Em reportagens escritas durante o ano de 1970, nos locais atingidos pela construção
da Rodovia Transamazônica, o jornalista Alberto Tamer, em matéria escrita para o Jornal “O
Estado de São Paulo”, revela as repercussões que a obra de grandes dimensões terá nos
trabalhadores contratados para construí-la. O autor afirma:
Para construir-se a Transamazônica será preciso sanear o ambiente e curar o
homem para depois lançá-lo mata a dentro, na luta ingente e pioneira de vencer a
selva. Malária, febre amarela, tifo e amebíase generalizada, eis apenas alguns dos
elementos do ambiente hostil que tudo fará para expulsar o invasor, devolvendo-o
à civilização das cidades iluminadas ou jogando-o na imensidão das caatingas
ressequidas. Há condições para construir-se a grande rodovia e abrir novamente a
selva ao homem nordestino, mas será preciso adotarem-se já, imediatamente, com
urgência, medidas bem planejadas e imprescindíveis para que não se repita a
tragédia da Madeira-Mamoré deixando, agora, um morto a cada 500 metros de
estrada (TAMER Apud SOUZA, 2014, p. 8).
É possível notar no texto do jornalista, os receios provocados pela floresta, onde o
ambiente desconhecido e selvagem tenta, como um ser consciente, expulsar aqueles que
querem prejudicá-la. Como se, ao adentrarem na mata virgem, devessem mostrar-se dignos
de usufruir de seus tesouros. O autor também se refere a “abrir novamente a selva ao homem
nordestino”, que, historicamente, é aquele eleito para desbravar a selva amazônica. É
também necessário “sanear o ambiente”, ou seja, controlar e subjugar a mata hostil, para que
ela não esmague aqueles homens que, atendendo ao chamado de seu país, vieram enfrentar a

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“luta ingente e pioneira” de levar o desenvolvimento as áreas menos povoadas do Brasil


(TAMER Apud SOUZA, 2014, p. 8).
É interessante observar, que em nenhum momento, o autor questiona sobre a
necessidade da construção da rodovia, se era preciso realizar a ocupação do referido espaço,
ou ainda, sobre a existência de núcleos populacionais existentes antes da implementação dos
planos de construção da Transamazônica, ou mesmo, a presença no local, de nações
indígenas e qual o impacto que essa construção recairá em na organização social dessas
nações. Os motivos para a ocupação, não são contestados, bem como não são questionados
os argumentos utilizados para a consecução desse objetivo: a discussão, nesse caso
específico, limita-se a debater formas de melhor enfrentar a tarefa, muitas vezes, colocada
como um destino manifesto, de enfrentar a “mata selvagem” e integrar todas as suas áreas ao
país.
No entanto, também, deixava-se transparecer nos jornais a euforia de uma parcela da
sociedade que se mostrava empolgada com as enormes proporções dos programas
governamentais para a Amazônia, que se propunham a ocupar e desenvolver o mencionado
espaço tomado como indômito (TAMER, 2001). Onde antes apenas havia a floresta irão
surgir cidades, hospitais, escolas. É a civilização, chegando onde, antes, nada existia.
Em discurso, proferido em outubro de 1970, na ocasião da Reunião Extraordinária da
Superintendência de Desenvolvimento da Amazônia (SUDAM), Médici afirmou que, até
aquele momento, a Amazônia ainda não havia encontrado sua “vocação”. Segundo o
Presidente, mesmo depois de tantas tentativas de desenvolvê-la economicamente, com o
café, a borracha e madeira, por exemplo, o que ocorreu foram “momentos passageiros de
riqueza”, que não conseguiram fazer com que o território amazônico mostrasse todo o seu
potencial. Ou seja, a Amazônia tinha enormes áreas disponíveis que, sequer, eram
conhecidas, pelos brasileiros, terra escura, fértil, dizia o presidente, mas que não estava
acessível àqueles que mais precisavam: os trabalhadores rurais do Nordeste.
Segundo o discurso, havia uma “falta de homens” no referido espaço, tornando-o
“vulnerável à infiltração, à cobiça e à corrosão de um processo desnacionalizante, que se
alimenta e se fermenta em nossa incúria”. Segundo o argumento veiculado pelo governo,
através de suas propagandas e discursos, o problema da “falta de homens na Amazônia”,
assim como da “falta” de terras, no Nordeste, é um problema nacional, que diz respeito a

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todos os brasileiros8. E a única forma de conhecer essa área, tão importante para o país, é
povoá-la. Como afirma Médici:
Somente quem testemunhou no Nordeste a caminhada de milhões de brasileiros
sem terra e, agora, vem à Amazônia contemplar essa paisagem de milhões de
hectares ainda desaproveitados, pode sentir, em toda a sua crueza, o quadro vivo
de nossa luta pelo desenvolvimento. [...] Não posso falar à Amazônia sem pensar
no Brasil integrado. Tenho bem presente o espetáculo de 30 milhões de
nordestinos, que vivem em torno de núcleos esparsos de produção agrícola e
industrial, produzindo e consumindo menos de 15 por cento da renda interna. [...]
No confronto desses dados, compreende-se afinal que, para eliminar essas
disparidades econômicas e injustiças sociais, teremos de desenvolver a Amazônia
solidária ao Nordeste, em consonância com o desenvolvimento de todo o Brasil9.

Um ano depois de sua participação na reunião extraordinária da SUDENE, o


presidente volta ao Nordeste, a fim de acompanhar de perto os ajustes para o encerramento
da última das Frentes de Trabalho montadas pelo exército brasileiro para fornecer ajuda aos
vitimados pela seca de 1970. No discurso aqui comentado, o Presidente reitera a ideia de que
o deslocamento de trabalhadores, para a Amazônia ainda é a melhor solução para o homem
do campo que deseja viver dos frutos da terra. Entretanto, nesse propagado discurso, o
Presidente lança a ideia de que, a partir da seca que atingiu o Nordeste no ano de 1970, esse
território e a Amazônia foram ligados pelo destino como se alguma força superior houvesse
enviado um ano de grande seca, para o primeiro, com o objetivo de que os trabalhadores
rurais se deslocassem para o lugar onde haveriam de encontrar a verdadeira felicidade, a
Amazônia. Mais do que uma terra que precisava ser ocupada para fins de desenvolvimento,
ela – a Amazônia - era uma terra prometida. Uma terra que não era castigada pela seca.
Afirma o presidente:
A seca de 70 traçou, na terra, para sempre, a solidariedade e o destino
complementares da Amazônia e do Nordeste que, no passado, os mares e os rios
levaram para a enxurrada das terras baixas10.

No discurso, Médici ainda exalta os feitos do Exército na ajuda para os atingidos pela
seca, mostrando a diferença entre o governo ditatorial dos militares e seus antecessores, pois
os últimos, corruptos como eram, nunca poderiam ter prestado a ajuda de que o Nordeste,
tanto necessitava. Os investimentos vultuosos, afirma o presidente, teriam se perdido nas
redes da corrupção e do desperdício. Para ele, tal “eficiência”, na ajuda ao Nordeste não deu
oportunidade para levantes subversivos de opositores ao regime. Ou seja, para o governo, o
fato de direcionar os investimentos para as áreas mais afetadas e distribuí-los de uma

8
Ibidem, pp. 145-146.
9
Ibidem, pp. 146, 147-148.
10
Mensagem dirigida ao Nordeste, no encerramento da última das frentes de trabalho, abertas quando da
grande seca de 1970, em 08/06/1971. p. 22. Disponível em: http://www.biblioteca.presidencia.gov.br/ex-
presidentes.

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maneira eficiente, faz com que a população fique satisfeita e não seja “influenciada” pela
ideologia comunista que tinha como principal objetivo trazer o caos ao país. Isso mostra
como o incentivo ao deslocamento de trabalhadores para o território amazônico, também,
tinha como meta, deixar a população satisfeita com as ações do governo, sentindo-se
assistidas, e desafogar uma área reconhecida pela luta dos trabalhadores pela melhoria das
condições de vida no campo e pela posse da terra. Ainda é reiterada a ideia de que a
colonização não deve ser vista como uma questão apenas das áreas afetadas – Nordeste e
Amazônia – mas sim, como um problema nacional. Incentivar a colonização é, para o
governo, “oferecer um novo horizonte ao nordestino”11.
É possível observar, depois de uma análise atenta aos discursos de Médici, em
conjunto com as medidas políticas e econômicas (o lançamento dos programas de
desenvolvimento nacional e regional, a instituição da SUDAM e reformulação da SUDECO
e etc.), que o governo federal pretende, através da promulgação dos planos regionais de
desenvolvimento, dividir o território amazônico em áreas “especializadas”, com base em
várias atividades econômicas. Quando analisam-se os muitos projetos implementados na
Amazônia, emerge o discurso governamental de que o principal objetivo seria testar várias
atividades econômicas, a fim de encontrar uma que seja a “vocação final”. A primeira
tentativa do governo com os projetos de colonização, depois com os agropecuários e
mineradores, cada um aplicado a uma parte do território, demonstra que se queria fazer
daquela área um foco de investimentos mistos, voltados para uma indústria de base, como a
agropecuária, tendo em vista suprimir a demanda industrial e alimentar do país e do mundo.
O governo apresentava os problemas da Amazônia, como profundamente
concatenados com os do Nordeste, ora, uma grande terra sem homens e em outra parte,
muitos homens sem terra, seguindo a lógica do Estado, estava justificada a escolha de cuidar
dos problemas de forma conjunta, estimulando o deslocamento populacional. Contudo, é
preciso atentar para outros fatos que levaram a Amazônia para o centro das preocupações
dos militares, em particular, no que tange às questões de segurança nacional. Segundo Ianni,
já no final da década de 1960, o governo federal anuncia a existência de focos guerrilheiros,
no sul do Pará. Os guerrilheiros estariam escondidos entre os muitos posseiros da região, e
se utilizavam da mata como esconderijo. Como os números de posseiros se multiplicavam a
cada dia, a ocupação “desordenada” do espaço estava dando margem a existência de grupos
subversivos que tinham alguns habitantes da região como aliados (IANNI, 1979, p. 22).

11
Ibidem. p. 22.

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Grande parte das políticas públicas direcionadas à Amazônia foi promulgada, através
de Planos Nacionais e Regionais. A implementação desses pacotes de ações era uma forma
de o governo cobrir várias frentes em um único projeto, lançando as bases para sua
intervenção. Um importante projeto é o Plano de Integração Nacional (PIN), um dos
principais planos de desenvolvimento do Governo Médici que, além de ter estabelecido a
construção de rodovias estaduais e federais e o financiamento de obras de infraestrutura,
ainda, reservou para “colonização e reforma agrária” uma faixa de dez quilômetros, às
margens das rodovias previstas12.
Nessa perspectiva, a questão da terra torna-se um assunto de segurança nacional.
Governando através da promulgação, principalmente, de decretos-lei, os governantes
militares trabalharam arduamente para legitimar suas ações, em especial, aquelas que tinham
por objetivo facilitar a compra de terras devolutas do Estado pela iniciativa privada,
evitando, segundo eles, a ocupação “desordenada” de espaços que eram de interesse para a
segurança da nação. Foi aprovado em 1º de abril de 1971, o Decreto-lei Nº 1.164, que
declara “indispensáveis à segurança e ao desenvolvimento nacionais na região da Amazônia
Legal [...] as terras devolutas situadas na faixa de cem (100) quilômetros de largura, em cada
lado das seguintes rodovias. Já construídas, em construção ou projeto”13. Com a aprovação
do decreto-lei, o governo retira dos estados a jurisdição para cuidar das terras devolutas do
Estado, lançando as bases para a implementação de sua política de ocupação do território
amazônico. Uma das áreas mais afetadas por essa lei foi o estado do Mato Grosso14, que
teve grande parte das terras devolutas do Estado compradas a preços irrisórios, por grandes
empresas de capital internacional e bancos.
Outro programa que obteve grande impacto no território amazônico foi o Programa
de Redistribuição de Terras e de Estímulo à Agroindústria do Norte e do Nordeste
(PROTERRA). Destinado ao crescimento da agroindústria, nas áreas de atuação da SUDAM
e da SUDENE, e, ainda, prevê a desapropriação de terras para a Reforma Agrária, mediante
indenização. O Presidente Médici em discurso proferido no Palácio do Planalto, para o

12
BRASIL. Decreto-Lei nº1.106, de 16 de junho de 1970 que “cria o Plano de Integração Nacional (PIN),
altera a legislação do imposto de renda das pessoas jurídicas na parte referente a incentivos fiscais, e dá outras
providencias”. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto-lei/1965-1988/Del1106.htm.
13
O Decreto-Lei nº 1.164, de 1º de abril de 1971 “declara indispensáveis à segurança e ao desenvolvimento
nacional terras devolutas situadas na faixa de cem quilômetros de largura em cada lado do eixo de Rodovias da
Amazônia Legal, e dá outras providencias”. Nas margens destas rodovias serão implementados os projetos de
colonização, agropecuários e mineradores. FONTE: Decreto-Lei nº 1.164, de 1º de abril de 1971. Disponível
em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto-lei/Del1164.htm.
14
Que é transpassado por várias importantes rodovias federais, entre elas: BR- 163 (Cuiabá – Santarém), a BR
– 158 (Barra do Garças – São Félix do Araguaia), que se conecta com a BR-070 (Brasília – Cárceres MT
[fronteira com a Bolívia]).

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anúncio da implementação do PROTERRA afirma que o encaminhamento de recursos para


áreas privilegiadas pelo Programa é necessário e urgente, pois a agroindústria seria uma
parte da economia historicamente desprezada no Brasil, especialmente, em comparação com
a indústria que alcançava bons índices de crescimento. O Presidente ainda afirma que os
recursos do programa serão direcionados aos pequenos e médios produtores.
O governo anuncia os benefícios do que ele chama de “experiência creditícia”, ou
seja, os empréstimos destinados aos pequenos produtores, para o desenvolvimento da
agricultura no campo. É objetivo central do governo federal transformar esses créditos
especiais em um programa de governo, pois, apenas através do incentivo à agroindústria
poderão haver desenvolvimento no campo e melhora na vida dos trabalhadores rurais. É a
distribuição de “crédito barato para a retenção do homem no campo”15.
Entretanto, chama-se a atenção, para o fato de que esses empréstimos nem sempre
eram aprovados para os trabalhadores rurais mais descapitalizados e, quando eram, a
aprovação dependia do cumprimento de uma série de exigências. É importante entender que,
além do discurso de realizar uma reforma agrária, através dos projetos de colonização, o
governo federal também anunciava a criação de cooperativas. Essas cooperativas seriam
uma forma de o governo controlar o desenvolvimento no campo, especialmente voltado para
a mecanização das lavouras e a monocultura, pois, assim que os trabalhadores se
aglutinavam em cooperativas, se “especializavam” na produção de apenas um produto. O
trabalhador rural que não era filiado a uma cooperativa, enfrentava dificuldades, na obtenção
de empréstimos e financiamentos (ACEVEDO, HÉBETTE, 1979). A historiadora Regina
Beatriz Guimarães Neto, em estudo sobre o projeto de colonização, implementado na cidade
de Alta Floresta (MT), narra como a empresa colonizadora, no caso estudado, a Indeco S/A,
estipula, para os seus colonos, quais produtos os colonos deveriam desenvolver. No caso
analisado, primeiramente, os colonos deveriam plantar café. Como muitos dos colonos
atraídos para este projeto, eram originários do Sul, em especial, do estado do Paraná, a
cultura do café, já, era bastante conhecida deles e contava com a sua experiência no plantio.
Logo, servia de fator atrativo para o deslocamento. Depois vieram, sob o incentivo da
colonizadora as plantações do cacau e do guaraná (GUIMARÃES NETO, 2002).
Também, destaca-se um outro programa de desenvolvimento regional, desta vez
direcionado aos estados de Mato Grosso, Goiás e Distrito Federal. Lançado em 1971, o
Programa de Desenvolvimento do Centro-Oeste (PRODOESTE), visava desenvolver

15
Discurso perante o Ministério, no Palácio do Planalto, anunciando a instituição do PROTERRA, em
06/071971. Disponível em: http://www.biblioteca.presidencia.gov.br/ex-presidentes.

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economicamente esses estados a fim de promover uma melhor integração nacional. Assim
como o PROTERRA, o PRODOESTE também vai dedicar boa parte de seus recursos para o
agronegócio. Dessa vez, entretanto, não visando apenas à facilitação para a compra de terra,
mas, direcionando recursos para a construção de rodovias federais e estaduais a fim de
melhor escoar a produção desses estados. Eram objetivos do projeto, de acordo com o que
era anunciado, a construção de uma rede rodoviária básica e a realização de obras de
saneamento geral com a retificação de cursos de água e a recuperação de terras. Essas obras
de infraestrutura tinham por objetivo fornecer as bases para um melhor desenvolvimento da
agricultura e da pecuária nos estados atingidos pelo programa. Na promulgação do
programa, o governo promete entregar a rede rodoviária básica até o ano de 1974 e, ainda,
construir uma rede de estradas vicinais, para canalizar a produção para os grandes eixos
rodoviários16.
Ainda se coloca como políticas que tinham por objetivo desenvolver
economicamente a Amazônia, a criação do Instituto Nacional de Colonização e Reforma
Agrária (INCRA)17 que objetivava promover e executar os planos de colonização.
Entretanto, é imperativo salientar que antes do início da década de 1970, o governo federal,
lança as bases que vão apoiar sua intervenção no espaço amazônico, pois, além de criar e
reformular novas instituições, os governos militares “reciclaram” boa parte do aparato
estrutural dos governos anteriores, e ainda, reestruturaram instituições financeiras como por
exemplo, o Banco da Amazônia (BASA), que era denominado Banco de Crédito da
Amazônia e a Superintendência de Desenvolvimento da Amazônia (SUDAM), criada a
partir da antiga Superintendência do Plano de Valorização da Amazônia (SPVEA) (IANNI,
1979, p. 36-37). Outra instituição que, também, merece destaque, é a Superintendência de
Desenvolvimento do Centro Oeste (SUDECO), criada em 1967, que terá, como principal
área de atuação, os estados de Goiás, Mato Grosso e Rondônia.
Como, no discurso já mencionado anteriormente, o Presidente Médici afirma, em
pronunciamento no Nordeste, em 1975 que investimentos aplicados nos lugares “certos” e
sem desperdício de recursos, fazem com que a população confie no governo e não seja

16
Discurso perante o Ministério, no Palácio do Planalto, anunciando a criação do PRODOESTE, a 8 de
novembro de 1971. Disponível em: http://www.biblioteca.presidencia.gov.br/ex-presidentes.
17
O Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (INCRA) foi criado pelo Decreto-lei nº 1.110, de 9
de julho de 1970. Absorvendo as atribuições do Instituto Brasileiro de Reforma Agrária (IBRA), do Instituto
Nacional de Desenvolvimento Agrário (INDA) e do Grupo Executivo da Reforma Agrária (GERA). O INCRA
terá como principal objetivo, além de do direcionamento dos projetos de reforma agrária, coordenar os projetos
de colonização do governo federal e empresas privadas para a Amazônia. FONTE: BRASIL. Decreto- lei nº
1.110, de 9 de julho de 1970. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto-lei/1965-
1988/Del1110.htm. Último acesso: 15/07/2015.

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acometida, por “pensamentos subversivos”. O deslocamento dos trabalhadores rurais, em


especial, aqueles que vivem no Nordeste não apenas visava à melhoria de vida destes
trabalhadores, levando-os a ocuparem um espaço, que supriria as necessidades que seus
lugares de origem não podiam, mas, a segurança do próprio regime, que desafogava uma
área tida como “problemática”, do país.
A orientação dos fluxos migratórios que se direcionavam para o território amazônico,
visava à ocupação dos lugares “certos”, nesse território. Não interessava, ao governo, uma
“ocupação desordenada” das terras que pertenciam ao Estado: a ocupação espontânea era,
severamente, combatida.
Apesar do que alardeavam os discursos e propagandas, a Amazônia não tinha terras
disponíveis para o usufruto do homem do campo, o qual almejava possuir um lugar para
trabalho e moradia, mas sim, um espaço que “disponibilizava algumas terras” para uso desta
população (IANNI, 1979, p. 127).

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WILLYS OVERLAND EM JABOATÃO (1966-1967)

Karlene Sayanne F. Araújo


Doutoranda do Programa de Pós-Graduação em História – UFPE
Karlene1005@hotmail.com

1. Considerações Iniciais

O ano era 1966. Paulo Feliciano juntou as poucas coisas de casa, comprou passagens
para toda família e partiu da cidade de São Paulo rumo a Jaboatão. A cidade localizada a 18
km de Recife, a capital de Pernambuco, recebia as instalações da fábrica Willys Overland do
Brasil.
A família Feliciano, naquele momento composta de sete pessoas, viajou por seis dias até o
destino final. Paulo foi empregado como operador de empilhadeira. Segundo relatos,
fixaram moradia na praia de Candeias, onde “os meninos só saem da água para irem à escola
e a mulher ficou boa da asma assim que chegou” (Revista Quatro Rodas,1966. P.42-47)
A cidade escolhida pela Willys para instalar uma nova filial no Brasil foi Jaboatão.
Vários são os discursos que dão conta da chegada da primeira fábrica de automóveis do
Nordeste. Dois desses discursos se repetem em jornais, revistas, documentos oficiais; um diz
do processo de modernização da cidade e o outro diz que era preciso conter as agitações
políticas e sociais que partiam dos trabalhadores rurais da região.
O estado estava sob a administração do governador Paulo Guerra. Durante sua gestão
propagou a ideia de que o principal objetivo de seu governo era proporcionar condições de
industrialização em Pernambuco, para isso, “considera que a ação administrativa, nesse

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sentido, tem que ultrapassar várias etapas, como eletrificação, estradas, saneamento,
formação de mão de obra qualificada e facilidades de crédito.” (Jornal Diario de Pernambuco,
1965) Segundo Paulo Guerra o seu governo foi inspirado na promoção do homem, “trabalho
em equipe, realizado com base no planejamento técnico e a que não faltou o estímulo do
povo pernambucano. E todo êle orientado no sentido do progresso industrial e do
desenvolvimento sócio-econômico de Pernambuco.” (CHRISTIANE, Alcântara, 2011)
“Jipe do chapéu de couro revoluciona Jaboatão”, “O jipe substituindo o jegue,
promoverá no Nordeste, sobre quatro rodas”, “Futuro anda de Jipe” eram chamadas que
comumente se viam nos jornais e revistas naquele momento. Apostava-se que a Willys
tornaria Jaboatão em um grande pólo industrial, seria a nova São Bernardo do Campo.
Levaria o progresso para a região de Cavaleiro e Prazeres. Os seus trabalhadores sairiam da
linha da pobreza e teriam a oportunidade de bons salários, boas condições de trabalho,
poderiam morar na orla da praia e ainda teriam escola para os seus filhos, assim como foi
para os cinco filhos de Seu Paulo Feliciano. O moderno, o progresso, o desenvolvimento
chegavam na região e assim diziam: “Esperança dos moços é indústria; a dos velhos secou
nos canaviais.” (Revista Quatro Rodas,1966. P.42-47)
Certamente a fábrica, que empregou no primeiro ano cerca de 400 trabalhadores e
produziu em torno de 560 veículos por mês, não chegou livre de disputas e opiniões
contrárias àquelas que só lançavam felicitações. Em 14 de fevereiro de 1965, o Jornal de
Notícias (Rio de Janeiro) já lançava “o local foi mal escolhido, pois a zona é aquela em que
é mais agudo o problema social. Quando surgir qualquer questão de atrito, de sensibilidade
nacionalista, vão voltar-se contra a Willys, embora injustificadamente, as iras dos
governantes e do povo da região. A Willys está fazendo a festa na boca do leão (do norte)”.
Em todo o ano de 1965 os jornais locais noticiaram os interesses políticos municipais
em receber a instalação da fábrica Willys. A prefeitura de Olinda, prefeitura de Jaboatão,
Prefeitura de Recife e o governo do estado de Pernambuco destacaram-se nas reportagens ao
se posicionarem sobre o assunto.
Apresentado nosso quadro, seguiremos na trilha proposta por Orhan Pamuk sobre a
escrita. As personagens aparecerão. Aquelas que guiarão os traços dos pincéis e que aos
poucos vão desenhando e pintando o seu mundo vivido.

2. Pensando a narrativa histórica

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A ciência História passou por diversos momentos de incertezas, de críticas e por


vezes foi colocada a prova se realmente era uma ciência ou pertencia ao campo das artes.
Nesse último sentido o trabalho do historiador era comparado ao dos romancistas. Os
historiadores escreviam ficção, usavam a imaginação, se apropriavam das figuras de
linguagens e, por conseguinte, narravam romances.
As ciências sociais em todo mundo passaram por uma grande crise dos paradigmas
predominantes na década de 1960. Na História, o marxismo e o estruturalismo já não
respondiam as questões propostas pelos historiadores. Nesse momento, o “retorno do sujeito
e da narrativa” e a virada linguística (linguistic turn) colocaram em tela as incertezas do
nosso campo de saber. A História recebeu grandes críticas, quanto aos seus métodos,
campos de saber e a própria narrativa. Hayden White, escritor norte americano, despontou
nesse cenário como um dos grandes nomes que questionou o trabalho do historiador. Este
sempre colocado como literatura levanta várias outras questões como o que é verdade, o que
o real. (CHARTIER, 1994)
Superado o momento de crises, incertezas e com definições firmes de metodologias
de trabalho e do uso das fontes na construção das verdades para a história e reconstrução de
determinadas realidades, a História e a Literatura se tornaram grandes aliadas no que se
refere à escrita, ao ato de contar uma história, de narrar acontecimentos.
Muitos são os historiadores que discutem e dialogam com a literatura em seus
trabalhos: Antonio Paulo Rezende, Teresinha Queiroz, Nicolau Sevecenko, por exemplo.
Muitos são os escritores que discutem a questão da escrita, tanto no campo da História como
no campo da literatura: Milan Kundera, HAruki Murakami, Tony Judt, Michel Foucault,
Michel de Certeau.
Acredito que um ponto em comum com todos os autores citados, é de que o ato de
escrever é prática, é um trabalho árduo e diário. Esses autores retiram de cena a ideia de
escrita como inspiração e trazem para o palco a escrita como trabalho, que deve ser
cirúrgico, descrever as cenas, os lugares, as personagens, os recortes temporais. No nosso
caso, uma escrita que dê conta das configurações históricas nas quais nossos objetos e atores
sociais da pesquisa estão inseridos.
Jennifer Homans escreveu sobre o trabalho de escrita do historiador Tony Judt,

Era ótimo escritor porque se mostrava sempre em absoluta sintonia


com suas palavras, trabalhando como um artesão, até alcançar a
essência mesma delas. Dispunha de um sistema para escrever [...].
primeiramente lia tudo o que pudesse a respeito de uma tema,

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fazendo anotações extensas, à mão, em folhas amarelas pautadas.


Em seguida vinha o esboço geral, [...]. Depois ficava horas a fio,
como um monge, na sala de jantar, determinando cada frase em suas
anotações, cada fato, data, argumento ou ideia, para colocá-la no
plano geral. Em seguida - e este era o fator decisivo, o segredo - ele
transcrevia novamente todas as suas anotações originais seguindo a
ordem do plano que havia traçado. [...] Então as portas fechadas,
vinham as jornadas de oito horas seguidas escrevendo até que o texto
estivesse concluído[...] (HOMANS, 2016. P.17)

O regime de trabalho do historiador diz da prática da qual falamos. Homans ainda


nos diz que para Judt “o trabalho realmente importante, ele acreditava, não consistia em
dizer o que não era, mas sim o que era - contar uma história convincente e escrita com
clareza a partir dos indícios disponíveis [...]”(HOMANS, 2016. P.15)
O trabalho solitário às portas fechadas é descrito também por tantos outros escritores, como
Valter Hugo Mãe e Orhan Pamuk. Para este, ao falar sobre o ato de escrever “o que primeiro
me vem à mente não é um romance, um poema ou a tradição literária, mas uma pessoa que
fecha a porta, senta-se diante da mesa e, sozinha, volta-se para dentro; cercada pelas
sombras, constrói um mundo novo com as palavras.” (PAMUK, 2007. P13)
Assim como Tony Judt precisava reunir tudo que envolvesse o universo no qual
pretendia escrever, Pamuk diz no livro A maleta do meu pai que antes de entregar para os
seus leitores a escrita do mundo que criara, antes era “preciso viajar pelas histórias e pelos
livros de outros.” (PAMUK, 2007. P.19)
Neste artigo faremos o exercício de pensar a narrativa histórica a partir da escrita do
romancista Orhan Pamuk. Pensaremos então quais caminhos percorridos por este escritor
podem nos ajudar a pensar a construção de uma narrativa, ou seja como a escrita de Pamuk
nos ajuda a contar uma história. Nesse caso, como contar uma história da fábrica Willys em
Pernambuco e dos seus trabalhadores, nas décadas de 1960 e 1970, momento no qual o país
vivia sob um regime militar.
Abordaremos aqui pontos muito específicos que Orhan Pamuk nos diz no livro o
romancista ingênuo e o sentimental. Nesse caso, nossas chaves de leitura são as palavras, a
tela, a pintura, o mundo, os personagens. O romancista apresenta o escritor como o pintor de
quadros e afirma que “a maioria dos romancistas institui que ler as páginas iniciais de um
romance é semelhante a entrar numa paisagem pintada.” (PAMUK, 2007. P14) Talvez, o ato
de pensar e o ato escrever o romance são questões que permeiam todo o livro. Pintar com

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palavras, recriar o mundo e assim criar quadros compostos de narrativas para apresentar
novos mundos.
Nesse sentido pensaremos a escrita da história. A narrativa histórica, vista como um quadro.
Pensaremos a história como retrato e descrição do momento passado escolhido para a
pesquisa. A história a ser contada é costurada e amarrada pelo fio condutor. O fio que puxa
as tramas, as lutas, os desafios, os embates, as práticas, o cotidiano. O fio que passa pela
moldura, pela verdade, pelos personagens, pelos lugares e pelos discursos. Os fios que
produzem e são produzidos de e pelos sentidos. É fazer no contar da história o que Pamuk
nos diz sobre o romance: “descrever com palavras os esplendores do mundo visual real ou
imaginário para o uso de quem nunca os viu” (PAMUK, 2011. P.75)
É no constante diálogo com Pamuk sobre escrita, narrativa e romance que
pensaremos sobre escrita, narrativa e história. O romancista propõe que a escrita é como
um quadro e a pintura se torna o produto final do trabalho do escritor. Assim, a imagem do
quadro será nosso ponto de partida, pois é por meio dele que apresentamos o mundo para
nossos leitores.
Com o quadro branco em mãos, o primeiro passo para começar a colori-lo é a
vontade de elaborar determinados tópicos. Pensar sobre o que desejamos discutir, quais
questões queremos levantar, quais são os nossos recortes. O segundo passo é buscar as
figuras que elucidarão os tópicos levantados. Quem são os nossos personagens, nossos
atores sociais, onde moram, o que fazem, onde trabalham, em quais teias sociais, políticas,
econômicas e culturais estão inseridos.
É a partir desses dois primeiros pontos que a pintura começa a ser desenhada pelo
pintor. É preciso, segundo Pamuk, ligar os muitos pontinhos, mas não em linhas retas e sim
com zigue- zagues. Também assim acontece na escrita histórica. É necessário buscar os
vestígios, puxar os fios, fazer ligações. No caso da história, buscamos nas fontes e no
diálogo entre elas fazer os zigues-zagues que vão costurando a narrativa. As fontes registram
indícios do passado estudado. Elas não são o real. Os documentos tomados como fonte pelos
historiadores norteiam a construção de verdades. Para Pamuk a narrativa literária é uma
proposta de realidade. Por outro lado, a narrativa histórica propõe leituras do real. Assim,
contar uma história legível, clara, na qual os leitores consigam ler o mundo descrito, as
personagens e suas tramas parece ser um esforço compartilhado pela história e pela
literatura. Talvez no ato de narrar e descrever, se distanciem em um ponto. Para além do uso
das metodologias próprias de cada campo do saber, o romancista planeja os detalhes,
constrói seus personagens física e psicologicamente; o historiador mergulha nos escritos,

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jornais, fotografias em busca das particularidades, reconstroem homens e mulheres a partir


do que lhe é apresentado.

3. Os atores sociais (olhar das personagens)

Veremos como nossos atores liam o mundo, adentraremos nas suas jornadas de
trabalho, nas suas relações sociais, entre os anos de 1966 e 1977. Como historiadora, intento
descrever com palavras as imagens criadas, as memórias faladas, as práticas dos
trabalhadores fabris. Seguindo as colocações de Pamuk “o prazer real de ler um romance
surge com a capacidade de ver o mundo não a partir de fora, mas pelos olhos dos
protagonistas que habitam esse mundo” (PAMUK, 2011. P.15)
Paulo, Flérida, Mathias, Cida, Severino, Carlos e cerca de outros 400 trabalhadores
urbanos fabris são tomados como personagens principais deste trabalho pesquisa.
Trabalhadores que faziam parte do setor administrativo e de direção da fábrica e
trabalhadores que estavam no chão da fábrica. Muitos deles vieram do trabalho no meio
rural e a qualificação da mão de obra foi feita na própria empresa.
Seguiremos então os fios lançados pelas nossas personagens. Ora por meio de seus
relatos orais, ora pelos caminhos percorridos na Junta de Conciliação e Julgamento de
Jaboatão – JCJ.

3.1 Relatos sobre o 14 de julho

“A inauguração foi no dia 14 de Julho de 1966, uma inauguração digna de primeiro


mundo, diga-se de passagem [...] (CORTIZO,2016), assim começa a fala de Flérida Cortizo,
sobre a chegada da Willys Overland em Jaboatão. Instalada nas margens da Br. 101,
ocupava uma área de 180 mil metros quadrados. Quanto à produção, vale ressaltar que a
princípio seriam fabricados o modelo Rural Willys e Jipes, estes que ficariam conhecidos
como de Chapéu de Couro e assim seriam diferenciados dos jipes produzidos em São
Bernardo do Campo. Relatos dão conta da presença de 3 mil pessoas na inauguração.
Autoridades políticas locais e nacionais, jornalistas locais e do Rio de Janeiro e São Paulo,
trabalhadores, além dos responsáveis pelas fábricas da Willys Overland no Brasil. Também
estava presente “Dom Helder Câmara, quem benzeu a fábrica... e o primeiro jipe fabricado

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em Jaboatão foi doado a Dom Helder Câmara, para ele vender para esses institutos que ele
tinha aí de caridade.” (CORTIZO,2016) O primeiro jipe produzido em solo pernambucano foi
doado a Dom Hélder para beneficiar as ações da “Operação Esperança”.
Na inauguração a fábrica já contava com toda estrutura necessária para começar os
trabalhos. Foi divida em pavilhões, como lembra Dona Flérida “Tinha a funilaria, tem o
tratamento de peças, tinha a pintura, tinha a montagem, aí a montagem vinha frizo, teto,
porta, vidro depois ia para a montagem de pneus, antes quando ele vinha já pintado tinha os
chassis, o motor essas coisas. A linha de montagem era toda certinha aí saia no final pronto”
(CORTIZO,2016). A fábrica ainda contava com um restaurante com capacidade para 500
trabalhadores e a ala da enfermaria.

4. Considerações finais - Trabalhadores na Justiça do Trabalho

Desde os anos de 1960 e com mais intensidade na década de 1970 os historiadores


passaram a se debruçar sobre as fontes judiciais e usá-las na construção da historiografia do
país. Sobre a importância dessa documentação para a história do Brasil, o historiador Sidney
Chalhoub diz que é possível analisar comportamentos, práticas costumeiras entre os
trabalhadores, relações entre patrões e empregados. (CHALHOUB, 2005)
Aqui tomamos os processos trabalhistas impetrados na Junta de Conciliação e
Julgamento de Jaboatão, localizada na Rua Des. Henrique Capitulino, nº134, centro –
Jaboatão, como uma possibilidade de conhecer os trabalhadores da Willys. Entre os anos de
1967 e 1973 localizamos cerca de 100 processos trabalhistas dentre eles rescisões de
contrato de trabalho e reclamações trabalhistas – FGTS, Horas Extras, Insalubridade, Aviso
prévio. Ora o trabalhador reclamava na justiça os seus direitos, ora a fábrica reclamava o
direito de demitir seu empregado.
Os processos trabalhistas nos permitem conhecer o local onde os trabalhadores
moravam, como eram as jornadas de trabalho, qual a função na fábrica, qual o salário. Ainda
é possível pensar na movimentação dos trabalhadores pela Justiça, como tinham acesso, se
eram sindicalizados. A própria ação da JCJ de Jaboatão pode ser analisada. Como eram as
decisões dos juízes, quantos processos foram conciliados, quantos julgados procedentes para
os trabalhadores, quantos julgados improcedentes. A leitura desses processos nos abre um
leque de possibilidades de perceber a realidade daqueles trabalhadores.
Larissa Côrrea escreve sobre a forma como a ditadura civil militar instaurada em 1964
impactou na atuação da Justiça do trabalho, tentando explicar a diminuição do poder de

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decisão dos juízes nesse período. Segundo Corrêa, com os militares no poder, o direito a
greve e o poder normativo da Justiça do Trabalho passaram a ser alvo de pressões e
cerceamentos por parte do poder executivo. Para esse trabalho a autora estudou os dissídios
coletivos na cidade de São Paulo a partir de 1941 - ano da criação da Justiça do Trabalho.
(CORRÊA, 2013)
O primeiro processo trabalhista no qual a Willys aparece como reclamada
corresponde ao processo número 436/66 e data de 17 de agosto de 1966. Os reclamantes
foram Letácio Justino Ferreira e Paulo Teixeria do Nascimento, ambos ajudantes, casados,
brasileiros e residentes em Ponte dos Carvalhos, no município do Cabo de Santo Agostinho,
distante cerca de 13 km da fábrica. Letácio e Paulo afirmavam terem sido contratados em
julho, que trabalhavam das 7 horas da manhã as 5 horas da tarde, com uma hora de intervalo
para o almoço, perfazendo assim 8 horas de trabalho diários. Recorreram a JCJ com o
intuito de reclamarem o direito do 13º salário e aviso prévio já que haviam sido demitidos. O
processo foi arquivado, não havendo justificativa para tal nos autos. Uma possível leitura é a
desistência dos trabalhadores. (JCJ Jaboatão, Processo nº 436/66)
O processo 0555/68 apresentou a demanda de Ivaldo Salviano Machado contra a
reclamada Willys – Ford. Nos autos foi descrito que o reclamante era solteiro, montador na
fábrica, residente no Cabo de Santo Agostinho. O trabalhador reclamava pela suspensão de
dois dias recebida. Ele relatou que após trabalhar dez horas, seu chefe mandou que ele
montasse mais um carro. Ivaldo Salviano alegou que aquela montagem correspondia ao dia
seguinte e por isso foi suspenso. Este processo possibilita ao historiador levantar importantes
questões a serem pesquisadas, como o regime de trabalho, os conflitos e disputas entre
trabalhadores ocorridos na linha de montagem. (JCJ Jaboatão, Processo 0555/68)
Reencontramos Paulo Feliciano no proc. Nº 1188/68. No dia 4 de dezembro de 1968
a reclamante Willys Overland compareceu a JCJ para pedir a rescisão contratual de seu
trabalhador que apresentava a carteira de profissional nº 51.232, série 92ª. Paulo Feliciano se
fez presente à audiência presidida pelo Drº Edgar da Silva Lacerda e assinou seu nome no
Recibo de Quitação Geral. Naquela tarde de dezembro, Paulo confirmou que fora admitido
no dia 9 de maio de 1966 e demitido no dia 28 de novembro de 1968. Na ocasião ficou
acordado que a empresa pagaria NCr$ 515, 18 (quinhentos e quinze cruzeiros novos e
dezoito centavos) e que assim nada mais havia de ser requerido pelo reclamado daquela
ação, nem aviso prévio, indenização, férias, 13º salário e pré-julgado 20. (JCJ Jaboatão,
Processo 1188/68) A família Feliciano que havia se mudado, em 1966, de São Paulo para

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Jaboatão, para trabalhar na fábrica, morando na praia de Candeias, onde as crianças não
saiam do mar, iria seguir para outros rumos.

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localizado no 4º andar do CFCH/ UFPE. Processo nº 436/66.

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GOVERNO PAULO GUERRA EMPENHADO EM ELEVAR NÍVEL DE INDUSTRIALIZAÇÃO


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SIMPÓSIO TEMÁTICO 10
ARTISTAS E INTELECTUAIS: PRODUÇÕES,
ESPAÇOS INSTITUCIONAIS, TRAJETÓRIAS E
SOCIABILIDADES LETRADAS

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978-85-415-0980-0

A PESQUISA SOCIOLÓGICA E O FILME DOCUMENTAL EM CAJUEIRO


NORDESTINO (1955-1962)

Arthur Gustavo Lira do Nascimento


Doutorando em História (UFPE)
arthurlira31@hotmail.com

Resumo: Sediado no Recife, o Instituto Joaquim Nabuco de Pesquisa Sociais (IJNPS)


exerceu um importante papel na promoção da pesquisa social e do filme etnográfico sobre o
Nordeste brasileiro. Em 1962, o IJNPS produz o curta-metragem O Cajueiro Nordestino,
contando com a direção do paraibano Linduarte Noronha e fotografia do pernambucano
Rucker Vieira. Filme baseado na tese homônima do jornalista Mauro Mota, com a qual se
submeteu ao concurso para a cátedra de Geografia do Brasil do Instituto de Educação em
Pernambuco, em 1955. Nela, Mota enfoca a relação do cajueiro com os indígenas, suas
origens, distribuição geográfica, a castanha, o cajueiro na cultura popular e na literatura. O
livro ganha sua primeira edição em 1956, mesmo ano em que Mota é nomeado pelo
Presidente Juscelino Kubitschek para o cargo de diretor executivo do IJNPS, onde
permanece até 1970. Este trabalho se propõe a fazer uma análise do documentário, as
articulações de sua realização e a relação com a pesquisa social, como ferramenta para a
compreensão da construção discursiva do Nordeste.

Palavras-chave: Cajueiro Nordestino; Nordeste; Documentário.

Entre a pesquisa social e o filme documental, a história do Cajueiro Nordestino pode


ser vista através de duas significativas obras: a primeira delas, está relacionada a um dos
principais livros do poeta, jornalista, ensaísta pernambucano Mauro Ramos da Mota e
Albuquerque. Com O Cajueiro Nordestino, Mauro Mota, como era conhecido, se submeteu
ao concurso para a cátedra de Geografia do Brasil do Instituto de Educação em Pernambuco,
em 1955. Nesta tese, enfoca a relação do cajueiro com os indígenas, suas origens históricas,
distribuição geográfica, a castanha, o cajueiro na cultura popular e na literatura. O livro
ganha sua primeira edição em 1956, editado pelo Ministério de Educação e Cultura (MEC),
mesmo ano em que Mota é nomeado pelo Presidente Juscelino Kubitschek para o cargo de
diretor executivo do Instituto Joaquim Nabuco de Pesquisas Sociais (IJNPS), onde
permanece até 1970.
Por outro lado, falar sobre O Cajueiro Nordestino também pode nos levar a outra
produção cultural, desta vez no campo da arte cinematográfica, através do filme etnográfico
produzido em 1962 pelo IJNPS, que contou com a direção do paraibano Linduarte Noronha
e fotografia do pernambucano Rucker Vieira. Filme baseado na tese homônima de Mota. O

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filme ficou conhecido junto com outra produção de Linduarte Noronha, Aruanda (1960),
como principais expoentes do cinema novo nordestino1.
Cada obra teve um valor significativo em seu campo. Com sua tese, Mauro Mota
além da aprovação na cátedra, com a alta média de 9.45 (nove e quarenta e cinco) 2,
conseguiu um reconhecimento ainda maior dentro da pesquisa social e do campo intelectual
pernambucano, seu trabalho chegou a ser aclamado pela comunidade acadêmica e literária,
recebendo elogios em cartas publicadas na imprensa local de personalidades como o
antropólogo René Riberio, do diretor da Biblioteca Nacional, Eugênio Gomes e do geógrafo
e professor da Universidade Federal de Pernambuco, Manuel Correia de Andrade3. Este
último, afirmando que “O Cajueiro Nordestino conseguiu fazer um livro tão bom quanto
saborosos são os cajus sem ranço da praia de Muriú, Ceará-Mirim, Rio Grande do Norte”
(Diário de Pernambuco, Recife, 24 de março de 1957, p. 8), para Andrade, Mota procurou
estudar o cajueiro em seus aspectos não só científicos, como literários, explicando sua
origem nordestina e distribuição geográfica. O poeta Manuel Bandeira, também escreveria
sobre a obra de Mota afirmando: “este seu livro O Cajueiro Nordestino. Que saudades ele
me deu do Monteiro onde nos meus oito anos fui caçador de caranguejo na lama do
Capibaribe, usando como isca um caju chupado, preso na ponta de um barbante” (Diário de
Pernambuco, Recife, 5 de julho de 1959, p. 2).
Com o filme, Linduarte Noronha deu seguimento a um trabalho frente ao IJNPS na
promoção do filme etnográfico sobre o Nordeste brasileiro, obtendo o reconhecimento e
atenção da crítica cinematográfica nacional, em um momento em que o próprio
documentário brasileiro se fundamentava esteticamente. Devido ao sucesso de Aruanda,
Linduarte Noronha conseguiu para o Cajueiro Nordestino uma projeção nacional. Em 1965,
na crítica escrita no Jornal do Brasil, do Rio de Janeiro, a jornalista Miriam Alencar afirma
que o movimento cinematográfico do Nordeste está se tornando cada vez mais forte e usa

1
Conforme citado em artigo de Ivan Soares “Pernambuco e o Cinema Novo”. In: Diário de Pernambuco,
Recife, 9 ago. 1964, Terceiro Caderno, p. 1.
2
Sua banca foi formada por Dácio Rabêlo (presidente da banca), diretor do Instituto de Educação e catedrático
de Geografia do Brasil da Faculdade de Filosofia; Gilberto Osório de Andrade, catedrático de Geografia Física
da Faculdade de Filosofia de Pernambuco; Clóvis Lima catedrático de Geografia Humana da Faculdade de
Filosofia de João Pessoa e diretor da Faculdade de Ciências Econômicas da Universidade da Paraíba; Estevão
Pinto, catedrático de Antropologia e diretor da Faculdade de Filosofia de Pernambuco e Antônio Figueiredo,
catedrático de Geografia do Brasil do Colégio Estadual da Bahia. Assistiram a defesa nomes como Gilberto
Freyre, Luiz Delgado, Silvio Rabelo, Sizenando Silveira, Nilo Pereira, Amaro Quintas, entre outros. (Diário de
Pernambuco, 27 nov. 1955, p.1)
3
René Ribeiro: Diário de Pernambuco, Recife, 8 de janeiro de 1956, 2º seção, p.1; Eugênio Gomes: Diário de
Pernambuco, Recife, 15 de Janeiro de 1956; e Manuel Correia de Andrade: Diário de Pernambuco, Recife, 24
de março de 1957, p. 8.

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como exemplo, as duas realizações do paraibano como produções que acompanham o


movimento do cinema arte (Jornal do Brasil, Rio de Janeiro, Caderno B, 18 ago. 1965, p. 7).
Em crítica assinada por Pedro Lima, O Jornal também exalta a exibição que
promoveu a apresentação do filme na cidade do Rio de Janeiro, realizado pelo Clube de
Cinema do Rio de Janeiro e pelo Cineclube Lumière no Palácio da Cultura. O jornalista
destaca o trabalho fitogeográfico de Linduarte Noronha e seu trabalho em humanizar o
cajueiro durante o filme. No entanto, afirma Lima que sob o aspecto técnico e artístico: “(...)
não tem o filme a beleza e a sedução de ‘Aruanda’, mas acreditamos que com montagem
mais cuidada, ‘O Cajueiro Nordestino’ poderá ser um clássico dentro da nossa produção de
curta metragem” (O Jornal, Rio de Janeiro, 31 jul. 1962, p.4). A exemplo do desejo de
Pedro Lima, podemos citar que o filme recebeu no ano de 2015 uma homenagem do VI
Festival Internacional do Filme Etnográfico do Recife (FIFER), como uma referência para o
gênero, a obra foi exibida numa sessão especial intitulada Narrativas do Nordeste, no então
recém inaugura Museu Cais do Sertão.
É de ressaltar, no entanto, que boa parte da crítica cinematográfica ao falar sobre o
filme documental cita as péssimas condições de exibição e circulação desses filmes, que
ficavam restritas à públicos pequenos do próprio meio cinematográfico e cineclubes.
Ficando o reconhecimento a Linduarte Noronha e seus dois filmes, muito restritos a um
espaço cinematográfico específico. Antonio Carlos da Fontoura, em texto publicado na
coluna do crítico Glauber Rocha cita os filmes de Noronha no artigo intitulado “Quem verá
‘O Circo’?”, no jornal Diário Carioca. Referindo-se ao curta-metragem de Arnaldo Jabor –
O Circo (1965) – como exemplo à crítica as precárias condições de formação de públicos
aos documentários e curta metragens nacionais, Fontoura afirma que estes filmes, sem fins
propagandísticos, estão destinados às prateleiras ou às exibições privadas para amigos:

“Arraial do Cabo”, “Aruanda”, “Cajueiro Nordestino”, “Festival de Arraias”, “O


Poeta do Castelo”, “Integração Racial”, “Ziriguidum”, “Meninos do Tietê” –
ninguém viu os documentários brasileiros. São todos filmes importantes, alguns
até brilhantes, como “Arraial do Cabo” de Paulo César Saraceni e “Aruanda” de
Linduarte Noronha. Todos conferem ao documentário sua condição mais digna,
que não é vender caminhões, tecidos, pneus ou políticos, mas sim investigar a
realidade, documenta-la, criticá-la (Diário Carioca, Rio de Janeiro, 26 fev. 1965,
p. 6).

Apesar das dificuldades, a trajetória do documentário brasileiro viveu um momento


importante de atividade na década de 1960. Um momento de transição estética do gênero,
renovação que buscou traduzir a realidade nacional a partir de uma forma autenticamente
brasileira. Neste cenário, a pesquisa social e filme documental convergiam em seus objetos,

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apresentando uma dimensão sociológica. Um exemplo disso é o Cajueiro Nordestino. O eixo


de ligação entre as duas obras, sociológica e cinematográfica, se encontra no próprio Mauro
Mota e consequentemente em sua gestão como diretor executivo do IJNPS.
Sediado no Recife, o Instituto Joaquim Nabuco de Pesquisa Sociais, exerceu um
importante papel na promoção da pesquisa social e do filme etnográfico sobre o Nordeste
brasileiro. Sob a direção de Mauro Mota o IJNPS produziu Aruanda (1960), O Cajueiro
Nordestino (1962) e A Cabra na Região Semi-Árida (1966). Que conforme nos aponta Paulo
Carneiro da Cunha Filho (2014, p. 74), foi a segunda fase de produção etnográfica do
IJNPS4. Filmes que tinham ligação com a realidade sócio antropológica do homem
nordestino, expondo através do audiovisual as reflexões das pesquisas sociais. Conforme
aponta Karla Holanda (2008, p. 98), estes filmes conseguiram elevar o status do gênero na
região.
Para falar sobre o filme O Cajueiro Nordeste e difusão do filme documental como
ferramenta para a pesquisa social é relevante compreender a própria administração de Mauro
Mota frente ao IJNPS. Mauro Mota nasceu em 1911, formou-se em Direito na Faculdade de
Direito do Recife no ano de 1937. Dedicou-se em sua carreira, especialmente à literatura e
ao jornalismo. Trabalhou como redator-chefe do jornal recifense Diário da Manhã, indo
posteriormente para o Diário de Pernambuco, onde chegou ao cargo de diretor, ainda na
década de 1950. Mota assumiu o cargo de diretor executivo do IJNPS em 15 de março de
1956, em meio a turbulenta destituição de Paulo Maciel e a inesperada nomeação do poeta
Ascenso Ferreira. Segundo relatos de Antônio Carolino Gonçalves, contemporâneo de Paulo
Marcial, cedido à pesquisadora Joselice Jucá:

“Paulo Maciel foi chamado pelo DASP [Departamento Administrativo do Serviço


Público] para discutir o próximo orçamento do Joaquim Nabuco para 1956, e lá
tomou conhecimento, através do Dr. Madureira do Pinho, Chefe do Gabinete do
Ministro, da chegada de um processo da Presidência de caráter urgente e
confidencial, recomendando o afastamento de Paulo Maciel da direção do Joaquim
Nabuco” (GONÇALVES apud JUCÁ, 1991, p. 80).

Em seu lugar a recomendação era a nomeação imediata do poeta Ascenso Ferreira,


situação que gerou consternação de Paulo Maciel que comunicou a situação a Gilberto
Freyre, nome com grande influência política no instituto. Freyre enviaria então um
telegrama ao presidente Juscelino Kubitschek que no dia seguinte tratou de “corrigir” o erro

4
Na década de 1950, o IJNPS financiou a realização de diversos filmes etnográficos encomendados a cineastas
franceses como O Mundo do Mestre Vitalino de Armando Laroche e Bumba-meu-boi de Romain Lesage, no
entanto, segundo o autor, estes curtas eram “(...) documentários pouco expressivos, descontando-se o aspecto
de serem registro da cultura popular” (CUNHA FILHO, 2014: 74).

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e nomear Mota5. Nos relatos trazidos por Joselice Jucá não fica claro os motivos que
levaram saída de Paulo Maciel e o não retorno dele a chefia após aos protestos, no entanto,
podemos notar que se trata de um período de transição política, onde no dia 31 de janeiro de
1956, Kubitschek inicia seu mandato presidencial substituindo o governo de quase três
meses do catarinense Nereu Ramos. As mudanças políticas na presidência do Brasil também
representaram efetivas mudanças nas estruturas instituto.
É neste cenário político conturbado que Mauro Mota assume a direção executiva do
IJNPS. Conturbado também para o instituto, pois, conforme ressalta Joselice Jucá (1991, p.
88-89), as circunstâncias ao qual Paulo Maciel, querido pelos funcionários da casa, foi
destituído do cargo fez com que o instituto carecesse de um certo período de transição e
adaptação à nova direção.
Passado o período de adaptação, Mauro Mota empreendeu inúmeras mudanças,
organizando o IJNPS. Restaurou o salão e demais dependências do casarão; instalou
azulejos portugueses no chamado jardim ecológico; expandiu a biblioteca; transformou o
instituto numa autarquia federal – que dava mais autonomia financeira, lei assinada em
1960; e naquele mesmo ano, ainda efetivou a mudança de nome da casa, que passou traza
então a denominação “de Pesquisas Sociais”6. Além dessas ações administrativas, o IJNPS
organizou também suas atividades científicas e culturais. Da produção científica, diversos
departamentos passaram a se estruturar enquanto tal.
Ao mesmo tempo que se desenvolviam as atividades científicas, o IJNPS também
passara a se aproximar ainda mais do filme documental como ferramenta para a pesquisa
social. Da preocupação social com o Nordeste e na construção de um discurso
cinematográfica que correspondesse aos anseios da pesquisa etnográfica sobre a região,
nasce em 1960 o célebre filme Aruanda, com a direção do paraibano Linduarte Noronha e
fotografia do pernambucano Rucker Vieira. O documentário sobre os remanescentes de um
antigo quilombola na Serra do Talhado, no sertão paraibano, contou com o apoio do INCE
através do diretor Humberto Mauro e do IJNPS, sob a chefia de Mota.
O curta-metragem Aruanda tornou-se um marco para a nova fase do cinema
brasileiro. Tornando-se para muitos autores e críticos, como Glauber Rocha, um marco para
o Cinema Novo, ao lado de Arraial do Cabo (1959), de Paulo César Saraceni. Este período

5
Segundo depoimento de Carolino Gonçalves trazidos por Joselice Jucá: “(...) o Presidente Juscelino
justificara a nomeação de Ascenso Ferreira julgando tratar-se, o Joaquim Nabuco, de um ginásio de interior”
(GONÇALVES apud JUCÁ, 1991, p. 81).
6
Até dezembro de 1960 era denominado de Instituto Joaquim Nabuco (IJN), com Mauro Mota a casa
incorpora em seu próprio nome as atribuições que lhe foram designadas com a sua Lei de criação, tornando-se
Instituto Joaquim Nabuco de Pesquisa Sociais (IJNPS).

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marca uma nova fase estética do documentário, aliando a crítica social a uma definição de
Brasil. Aruanda contou com a fotografia de Rucker Vieira, predominando a imagem da
aridez, construída com excelência pelo fotógrafo, e as mazelas da denominada estética da
fome, que assume naquele momento um lugar de destaque no cinema nacional.
O financiamento do IJNPS neste filme é um indício de que o projeto sociológico
estava em consonância com as propostas do documentário brasileiro, em seu novo modo de
retratar o “verdadeiro” Brasil. Uma imagem do Nordeste brasileiro foi então edificada sob a
inferência de um realismo supostamente traduzido pelo gênero documental e pela pesquisa
social.
Aruanda também havia circulado nacionalmente, passando pelo Rio de Janeiro, onde
teve várias exibições, incluindo a sua estreia em julho de 1960, num evento promovido pelo
Clube de Cinema do Rio de Janeiro; e em São Paulo, tendo com destaque de sua exibição na
VI Bienal das Artes. Com efeito desta passagem, Glauber Rocha afirmou que, “Linduarte
Noronha e Rucker Vieira entram na imagem viva, na montagem descontínua, no filme
incompleto. Aruanda, assim, inaugura o documentário brasileiro (...)” (ROCHA, 1963, p.
101). O sucesso de Aruanda trouxe um reconhecimento não só para a equipe
cinematográfica do filme, mas também ao projeto auspicioso do Instituto Joaquim Nabuco,
ressaltado nos periódicos desde o início de sua produção, como em matéria publicada na
revista Cinelândia em fevereiro de 1960, que destacava a parceria entre o INCE e o IJNPS
em realizar o filme sobre a região onde outrora existiu um quilombo e onde hoje vivem
cerca de cinco mil descendentes dos escravos fugidos (Cinelândia, Fev. 1960, 2º quinzena,
Edição 175, p. 77).
Dois anos depois de Aruanda surge a versão cinematográfica o livro de Mauro Mota,
O Cajueiro Nordestino. Contando com basicamente a mesma equipe de Aruanda, Linduarte
Noronha a frente da direção e Rucker Vieira responsável pela fotografia do filme, Cajueiro
Nordestino teve ainda a participação dos técnicos de som Manuel de Almeida e Ivan
Oliveira; na montagem e edição musical, Manuel Cardoso; arranjos musicais de Augusto
Simões; direção de arte de Elcir Dias; e uma vasta equipe de instrumentistas.
O filme apresentou uma equipe musical muito mais ampla que em Aruanda.
Característica de uma montagem que não possuía voz over e toda narrativa foi acompanhada
por um fundo musical com canções populares. Ao som de “Cajueiro Tim-Tim-Tim”,
Cajueiro Nordestino inicia com a imagem de dois grandes cajueiros, focalizando o gado à
sua sombra. Uma representação da fruticultura e pecuária do Nordeste. Exibe na sequência
aspectos do processo de colheita, do doce-de-caju, da cachaça, das festas populares e da

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castanha, verdadeiro fruto do cajueiro. O filme é uma etnografia do cajueiro, não se


resumindo à agricultura ou a economia, mas como expressão da cultura nordestina.

Figuras 1 e 2: Cenas do filme Cajueiro Nordestino (1962) de Linduarte Noronha.

Não há uma linearidade entre a narrativa literária e a narrativa cinematográfica, no


entanto ambos apresentam um registro etnográfico do cajueiro. O livro de Mauro Mota
começa com uma genealogia do Anacardium occidentale, nome científico do cajueiro,
planta da família Anacardiaceae. Buscando identificar os primeiros relatos sobre a espécie,
abarcando a tradição indígena e as crônicas coloniais. Atribuindo em sua pesquisa, o
cajueiro ao nordeste brasileiro, e como de lá, chegou em outras partes do mundo: “a
disseminação do Anarcadium occidentale na África e no Hemisfério Oriental justifica-se
porque os portugueses o levaram do Brasil ‘para os seus domínios do Levante’” (MOTA,
2011, p. 32-33). Uma prova disse é o que nome tupi original da planta, aparece, segundo os
relatos trazidos por Mota, em doze idiomas orientais.
Mauro Mota então desenvolve uma análise do cajueiro e suas utilidades,
especialmente focando o caju e a castanha. Na qual, inicia dizendo que:

A espécie Anacardium occidentale, L., dos botânicos, da qual nos ocupamos, é,


segundo Southey, a árvore mais útil da América. Certamente não apenas segundo
Southey e agora não apenas na América. Pois levado do Brasil para zonas asiáticas
ou africanas, o Anacardium occidentale, L., para onde foi, foi com suas utilidades.
(MOTA, 2011, p. 37)

Sob a pesquisa, Mota constata ainda que o cajueiro oferece os mais completos
recursos de exploração. Do caju, bebidas típicas como a cajuada (suco de caju), a cajuína
(vinho de caju) e o tradicional doce de caju. Produtos de intensa exportação no Nordeste
brasileiro. Da castanha, verdadeiro fruto do caju, assada, cozida ou extraída seu óleo, são
algumas de suas possibilidades mais exploradas.

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No filme, tais processos também são retratados, buscando uma experiência


etnográfica do cajueiro, que vai desde a árvore em si, passando pelos usos do caju e da
castanha, e também a fabricação das bebidas do caju. Uma investigação no domínio da
antropologia visual que se pretende observar – sem inferência da voz over –determinados
usos dos derivados do cajueiro, a sociedade e seus costumes.

Figuras 3 e 4: Cenas do filme Cajueiro Nordestino (1962) de Linduarte Noronha em que podem ser vistos a
produção do doce de caju e da cajuada.

Este filme trata-se de uma antropologia visual do Nordeste Brasileiro. Sua


caracterização, num momento político e estético específico, fez com que as representações
geradas sobre essa denominação geográfica fossem tão fortes que a ideia de ser nordestino
muitas vezes se sobrepõe ao brasileiro. Conforme aponta Durval Muniz de Albuquerque Jr.
(2009), a construção do Nordeste é histórica, neste cenário descrito ao longe deste trabalho,
a sociologia e o cinema, além de outros campos, produziram e reproduziram estereótipos e
memórias que definiram essa formação.
Na estética cinematográfica, durante os anos 60, predominou a imagética da aridez,
construída com excelência pela fotografia cinematográfica de Rucker Viera, e as mazelas da
denominada estética da fome, que assume um lugar de poder na história do documentário
brasileiro. Presentes em obras como Aruanda, O Cajueiro Nordestino e o terceiro filme que
compõe os mais famosos financiados pelo instituto, A cabra na região semi-árida (1966).
De acordo com Bill Nichols (2012), os documentários tornam visível uma realidade
social, sobre o que ela foi ou poderá vir a ser, através da seleção e organização do cineasta.
Seus objetos pertencem ao mundo em que vivemos, por isso, sua ligação com o mundo
histórico é intensa. Estes filmes geram representações que estão situadas num determinado
momento histórico. São representações que constituem os objetos quanto os sujeitos. Em um
momento em que a estética da fome traria supostamente um Brasil nunca antes visto.

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Nichols aponta ainda que a ficção nos promove uma “escopolifia”, um prazer de
olhar. O documentário, porém, nos instiga ao conhecimento, ao prazer de conhecer. O
compromisso social em contração com o mundo histórico. “Nos comprometemos con un
realismo histórico que representa la experiencia colectiva de un modo subjetivo”
(NICHOLS, 1997, p. 234). O documentário atesta uma presença. O realismo documental nos
ajuda a ver o que quem sabe não tínhamos visto ainda, apesar de estar aí, no mundo,
esperando nosso descobrimento. O Nordeste brasileiro ganha assim, na imagem
cinematográfica uma visibilidade e dizibilidade que não tinha antes, torna-se conhecido,
visível em seus temas: os remanescentes dos quilombos, um cajueiro ou uma cabra na região
semiárida.
Tanto para sociologia, quanto para o filme documental, o que está em cheque neste
momento é a realidade social. Para o historiador Roger Chartier, o real é a forma com que a
realidade é construída. O historiador francês julga as representações coletivas como matrizes
de práticas que constroem o mundo social. A construção das identidades sociais é um
resultado de uma luta de representação, “como a tradução do crédito conferido à
representação que cada grupo dá de si mesmo, logo a sua capacidade de fazer reconhecer sua
existência a partir de uma demonstração de unidade” (CHARTIER, 2002, p. 73). As práticas
construídas através de um mundo como representação nos norteiam para compreender a
formação de um discurso cinematográfico sobre o Nordeste, que tem nos filmes do IJNPS
uma matriz importante.
No entanto, devemos destacar que o realismo do documentário não é uma garantia da
realidade. Mas trata-se de um aparato de registro, de presença, um retalho da realidade
histórica ordenada pelo diretor e também pelos próprios interesses do instituto, este
representado na figura de Mauro Mota, cujos interesses e articulações se expõe na própria
realização do filme.
Utilizar o cinema documental na narrativa histórica é para nós investigar o passado
através de novos caminhos. Um caminho aberto à inquietação e novas descobertas.
Conforme aponta Jean-Claude Bernardet, muitos pesquisadores se mantiveram atentos aos
ficcionais desprezando o gênero documental, quadro geral da história do cinema brasileiro
(BERNARDET, 1979, p. 28). Isso pode ter sido motivado pela dificuldade de contato com o
material não ficcional, ou mesmo pela ênfase da indústria cinematográfica aos filmes de
ficção. Por esse certo desprezo, damos atenção à produção de documentários do Instituto
Joaquim Nabuco de Pesquisas Sociais que construíram imagens sociais do Nordeste na

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década de 1960, verificando as relações que se estabeleceram entre a pesquisa social e o


filme documental.

Referências Bibliográficas
ALBUQUERQUE JÚNIOR, Durval Muniz de. A invenção do Nordeste e outras artes.
São Paulo: Cortez, 2009.
BERNARDET, Jean-Claude. Cinema brasileiro: propostas para uma história. Rio de
Janeiro: Paz e Terra, 1979.
CHARTIER, Roger. À beira da falésia - A história entre certezas e inquietude. Porto
Alegre: Ed. Universidade/UFRGS, 2002.
HOLANDA, Karla. Documentário nordestino: mapeamento, história e análise. São
Paulo: Annablume; Fapesp, 2008.
MOTA, Mauro. O cajueiro nordestino. Recife: CEPE, 2011.
NICHOLS, Bill. La Representación de la Realidad. Buenos Aires, Paidós, 1997.
NICHOLS, Bill. Introdução ao documentário. Campinas: Papirus, 2012.
CUNHA FILHO, Paulo C. A Imagem e seus Labirintos: o cinema clandestino do Recife
(1930-1964). Recife: Nektar, 2014.
JUCÁ, Joselice. Joaquim Nabuco: uma instituição de pesquisa e cultura na perspectiva
do tempo. Recife: FUNDAJ / Ed. Massangana, 1991.
ROCHA, Glauber. Revisão crítica do cinema brasileiro. Rio de Janeiro: Civilização
Brasileira, 1963, p. 101.

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PARTE DA HISTÓRIA DE UM MUSEU ESTÁ ATRIBUÍDA A SEU NOME:


GALERIA METROPOLITANA DE ARTE DO RECIFE (1981)

Eduardo Castro
Mestrando no Programa de Pós-Graduação em História da UFPE
Educastro1703@gmail.com

Um museu pode ser denominado de várias maneiras, como o local onde o museu
estava inserido, homenagens às características ou até às personalidades daquele local.
Porém, esse nome fará parte da história da instituição como um adjetivo que o designa
enquanto o museu existir. Um exemplo são os “museus de arte moderna” que, como apontou
Maria Cecília Lourenço (1999), carregam consigo uma localização histórica e também
marcam uma vocação museológica: a imagem da arte moderna é vitoriosa e unida a valores
positivos. Assim, o presente artigo tem por objetivo investigar a constituição da Galeria
Metropolitana de Arte do Recife em 1981. Por que Galeria Metropolitana de Arte? Por que
galeria e não museu? A instituição foi criada dentro do “padrão do museu tradicional =
edifício + coleção + público” (MACHADO, 2009: 11) em um histórico casarão em estilo
neoclássico, construído no final do século XIX, na Rua da Aurora, centro da Cidade do
Recife.
Ao escrever histórias dos museus de arte, neste caso particular da Galeria
Metropolitana de Arte do Recife, podemos tecer compreensões de aspectos da vida social,
do comportamento humano, das sensibilidades e dos possíveis desejos de preservação
artística de um lugar e de um tempo. Este é o caminho a ser traçado neste momento, para
tanto, faz-se necessário uma reflexão inicial sobre estes espaços. Estas instituições são locais
privilegiadas para produção e reprodução do conhecimento na sociedade em que ele se
localiza, especialmente em países carentes, como o Brasil, porquanto trabalham com matéria
viva e presente – a cultura, material ressaltável, com a qual, nem sempre, a escola e o
ambiente familiar podem contar.
No decorrer do século XIX, as obras artísticas começaram aos poucos a serem vistas
não somente como peças de decoração. Das antigas galerias de onde as preciosas
pinacotecas eram expostas, surgem os primeiros museus especializados em obras artísticas.

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Fomentando a atribuição de novos valores ligados aos artistas plásticos e às transformações


de suas práticas, esses novos museus vão se distanciando do arraigado mito da origem, que
preservava pelo antigo, pelo exótico e que carregava consigo a essência da lembrança, do
testemunho, da nostalgia (MACHADO, 2009). Distinto do objeto antigo, o tempo se
encarregou de deixá-los sempre com “o ar de estar sobrando”. O objeto artístico
contemporâneo, por sua vez, acompanha o acontecimento, anda ao lado da história, sendo
abraçado por aqueles que os possuem, como companheiros de contemporaneidade.
Para compreender a formação dos primeiros museus compostos estritamente por
objetos de arte moderna, deve-se entender essa mudança paulatina dos valores artísticos
ocorridos no início do século XIX na Europa. “E, dentre as principais mudanças, está aquela
que acontece quando o museu começa a consagrar o talento dos artistas vivos.”
(MACHADO, 2009: 9)
A primeira ação neste sentido aconteceu no palácio de Luxemburgo, no ano de 1818,
com a criação do “museu dos artistas vivos”, tendo sido contemplados à época os escultores
Thowaldsen e David d’Angers e os pintores Turner e Gustave Moreau (SCHAER, 1993:
100).1 A valorização dos artistas e a comercialização de suas produções de arte moderna
ganharam impulso em 1929, com a fundação do Museu de Arte Moderna de Nova York
(MoMA), nos Estados Unidos.
Seguindo Maria Cecília França Lourenço (1999), percebemos que parcela
significativa de museus dedicados às artes nasce no pós-guerra. Estas já haviam militado,
desde as duas primeiras décadas do século, com virulência vanguardista, investindo na
renovação estética; porém, a partir dos anos 1930, esse momento modernista se altera, em
paralelo às mudanças político-sociais. “Chocar dá lugar ao convencer, no entre guerras”, diz
a autora, e acrescenta: “pleiteia-se transformar a arte moderna em cultura urbana. (...) essa
luta encontrará nos museus lugar adequado para a arte moderna, acreditando no ideal de
colocá-la a serviço da sociedade.” (1999: 11).
Entender o percurso reflexivo operado por Lourenço (1999) no âmbito da criação
desses museus, ajuda-nos a, em seguida, aplicarmos na criação da Galeria Metropolitana de

1
A historiadora Fernando Tozzo Machado traçou o percurso dos primeiros museus de arte que valorizavam
artistas vivos: “A partir dos anos de 1870, muitos museus públicos dos países europeus, e principalmente os
franceses, adquiriram obras de artistas inovadores. Roland Schaer (1993, p. 100) ressalta que na Alemanha, no
ano de 1989, o conservador (profissional de museu) alemão Hugo Van Tschudi, da Galeria Nacional de Berlin,
sofreu pressão de artistas e críticos após adquirir Manet, Monet, Ronoir e Cézanne, tendo de se demitir do
Museu alguns anos após. A Galeria Nacional de Arte de Roma, hoje de Arte Moderna e Contemporânea, foi
inicialmente criada no ano de 1883 para exibir artistas vivos e recém falecidos. A partir do século XX, no ano
de 1911, a Galeria Italiana incorpora a arte do século XIX, além das estrangeiras e premiadas pelas Bienais
Internacionais de Veneza (LA STORIA, s.d.])” (MACHADO. 2009: 10).

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Arte do Recife. Para a historiadora, a questão do nome “museu de arte moderna” carrega
consigo uma localização histórica, como foi dito no início do artigo, marca um período e
uma vocação museológica. O adjetivo “moderna” foi um tipo de designação que orientava a
incorporação do acervo às artes na época, uma forma de atribuir ao museu de arte esta
inclinação pela atualidade.
A concepção do moderno busca um bem maior para a coletividade, por meio do
aprimoramento de hábitos e de costumes (mos/moris), elegendo valores morais (moralis),
acalentados com desvelo, incluindo-se outros, éticos, de elevar o Brasil à condição de país
atualizado e justo, sendo a criação de museus um locus ideal. Esses valores, em parte,
confluem com os do governo, que procura incutir o reconhecimento de uma nação forte
como seu paradigma, os Estados Unidos. O museu com tais obras incorpora para si tanto os
valores já associados ao moderno, quanto aqueles museológicos advindos do Museu de Arte
Moderna (MoMA) nova-iorquino.
No Brasil, “o padrão do museu tradicional = edifício + coleção + público”
(CHAGAS apud MACHADO, 2009: 11) está presente na formação dos principais museus
de arte públicos, da Pinacoteca de São Paulo (1909), passando Museu Nacional de Belas
Artes (1937), no Rio de Janeiro, até chegar a Galeria Metropolitana de Arte do Recife
(1981). É importante destacar que para essa pesquisa, a categoria “museu de arte” se refere a
objetos artísticos de concepção contemporânea e de faturas inovadoras, ou não, todavia
múltipla, isso em detrimento à arte sacra, arte antiga, entre outras categorias.
A partir de sua vocação jurídica, os museus de arte podem surgir de três maneiras
distintas. Há os museus particulares, ou formados a partir de coleções privadas – tal qual o
Instituto Ricardo Brennand localizado no Recife –, outros são criados por meio de
associações civis de direito público – como os Museu de Arte Moderna (MAM) de São
Paulo e do Rio de Janeiro –, por fim, há também os que são criados por órgãos públicos,
esse é o caso da GMAR, criado em 1981, pela Prefeitura da Cidade do Recife.2
O órgão responsável pela implantação da GMAR e, posteriormente, pela
administração, foi a Fundação de Cultura da Cidade do Recife (FCCR), criada pelo decreto-
lei nº 13.535, em 1979, sancionada pelo prefeito Gustavo Krause. O artigo segundo da lei de
criação da FCCR diz que:
A Fundação de Cultura Cidade do Recife terá por finalidade a indução das
atividades culturais, com ênfase na cultura popular, consubstanciada no

2
Sobre a vocação jurídica dos museus ver: MACHADO, Fernanda Tozzo. Os museus de arte no Brasil
moderno: os acervos a formação e a preservação. Dissertação – Universidade Estadual de Campinas, Instituto
de Filosofia e Ciências Humanas. Campinas, SPS: [sn.], 2009.

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desempenho das seguintes atividades: preservar o universo cultural e a


memória Nacional, nos limites da Cidade do Recife; despertar na
comunidade o gosto e o amor por sua própria cultura, através de
eventos culturais e programas de participação comunitária; incentivar a
produção artística e literária, de modo a desenvolver o gosto e a
preservação da cultura em suas diversas formas e manifestações; executar
programas de recuperação e preservação de documentos, sítios e
monumentos históricos da Cidade do Recife; e realizar programas de
criação, recuperação e manutenção das casas de espetáculos da Cidade. (Lei
Municipal da Cidade do Recife nº 13.535/1979. Grifos nossos)

Esse artigo da lei de criação da FCCR nos faz ver alguns dos valores socioculturais
que a recém-chegada Fundação de Cultura municipal deveria seguir a fim de despertar na
sociedade recifense. Podemos destacar os anseios na preservação do universo cultural e na
memória nacional, o desejo em despertar na comunidade o gosto pela cultura local, bem
como o objetivo de incentivar a produção artística e literária. Esses objetivos também nos
lembram que o Recife é uma dessas cidades de forte tensão entre o moderno e o tradicional,
neste caso particular, entre a criação de uma instância de organização e incentivo cultural e
seus objetivos que quase se resume a valorização de sua tradição.
Segundo Antônio Paulo Rezende (1997), no início do século XX a história desta
cidade estava “atravessada por momentos de deslumbramentos e fantasias sobre o seu futuro
possivelmente moderno, pelo medo de vê-la distante das tradições e o desejo de reafirmar
seu passado profundamente idealizado” (1997: 25). O desejo de sempre exaltar suas
histórias e tradições parece não ter sido abandonado e continua ao lado das novidades da
cidade no último quarto do século.
Sob a égide da FCCR, a Galeria Metropolitana de Arte do Recife aparece como um
braço executor desses valores, com ênfase na preservação do universo cultural e o incentivo
à produção artística. Podemos perceber isso quando refletindo sobre as “intenções e
realidades” dos museus de arte no Brasil, Maria Cecília Lourenço lembra que “inúmeras
intenções são proferidas ao serem inaugurados os museus de arte” (1999: 29). Entre os
discursos da inauguração da GMAR que atravessaram o tempo e podemos hoje analisar,
encontramos as intenções da Prefeitura da Cidade do Recife na matéria do Jornal do
Commercio de Pernambuco do domingo, 29 de março de 1981. Lá encontramos que a
criação da galeria-museu faz parte do projeto cultural do chefe do executivo, Gustavo
Krause, que incluía a
Revalorização das festas populares – como o carnaval, o São João e o Natal
– a reconquista e preservação dos Sítios e Monumentos históricos.
O Prefeito Gustavo Krause cumpre no segundo ano de mandato,
integralmente aquilo a que se comprometeu quando assumiu: devolver ao
Recife as tradições culturais e artísticas que a tornaram o centro das

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decisões de toda a região nordestina (Jornal do Commercio de Pernambuco,


domingo, 29 de março de 1981).

A argumentação que encontramos na matéria divulgada pela imprensa pernambucana


dialoga com o artigo segundo da Lei de criação da Fundação de Cultura Cidade do Recife,
órgão responsável pela criação e administração da Galeria-museu, ou seja, havia um
alinhamento dos valores almejados, que perpassava a “preservação do universo cultural e a
memória Nacional, nos limites da Cidade” (Lei Municipal da Cidade do Recife nº
13.535/1979).
Segundo o historiador Allan Cavalcante Luna (2014), é durante a administração
municipal de Krause (1979-1982), período de desmantelamento político e de crise
econômica, que é reelaborado o projeto de reaproximação do poder público, para com os
novos sujeitos coletivos que emergiam nos bairros da cidade – vale lembrar que esse é o
período que o Estado começa a perder adesão e o considerável grau de legitimidade que
conseguira nos anos de milagre (1969-1973).
A política de incentivo municipal foi direcionada para as camadas sociais onde se
encontravam grande número de opositores ao governo: as associações de bairros e a classe
artística foram grandes beneficiárias destas medidas – as associações de bairros nesse
período eram consideravelmente apoiadas por partidos de esquerda, tais como a maioria dos
artistas do Recife. As ações da administração municipal parecem convergir com as ações do
Governo Federal, que também buscava melhorar suas relações com intelectuais e artistas.
Segundo José Carlos Durand,
como não havia parlamento aberto para controlar o orçamento e as decisões
do executivo, a decisão dos militares de melhorar as relações com artistas e
intelectuais permitiu-lhe ampliar o financiamento aos artistas reforçar a
base institucional do ministério da educação, sem nenhum embaraço ou
dificuldade (DURAND, 2013 52).

A abertura da Galeria Metropolitana de Arte do Recife, espaço institucional de


preservação, legitimação e divulgação da arte, agitou o cenário artístico pernambucano. Esta
Galeria-museu recifense, como vimos, foi criada sob a égide e administração da Fundação
de Cultura Cidade do Recife (FCCR), órgão público da municipalidade. Com isso e
entendendo as reflexões da historiadora Fernanda Tozzo Machado (2009), vamos ver que o
patrimônio incorporado a essa Instituição é público por excelência, e coube à constituição da
FCCR, suas respectivas legislações, que são os atos que garantem a pesquisa, a permanência
e a conservação do acervo.

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Maria Cecília Lourenço (1999) acrescenta que a base material de um museu é seu
acervo, criado, difundido, mantido e ampliado com base em valores estabelecidos, pela
demanda ou por estudos, sendo habitual o interesse para que as peças do acervo atestem
raridade, exemplaridade, preciosidade. Ela também nos lembra que os museus instalados
pelo poder público reúnem obras, em geral, deslocadas das várias unidades, compostas por
paisagens e personagens regionais de interesse apenas iconográfico, “quase para justificar a
cerimônia inaugural, sendo incomuns os selecionados por algum tipo de valor e pela
natureza tipológica esclarecida no nascedouro” (1999: 31).
Raridade, exemplaridade e preciosidade não foram os critérios iniciais da formação
do acervo da Galeria-museu, ou seja, este espaço chegou com sua base material sem um
estudo que estabelecesse sua composição, sem uma política de acervo. Ele foi composto em
grande parte por obras espalhadas por diversos órgãos da PCR, de decoração de gabinete de
secretário à decoração de cemitério, sem esquecer dos porões. A informação da composição
do acervo do museu está difundida na imprensa, nos arquivos do Projeto Expográfico e foi
confirmada pelas lembranças Leonardo Dantas em entrevista. Entre essas memórias elenco
uma anedota que ilustra bem como ocorreu:

Cada secretário que tinha uma peça de arte no seu gabinete não queria
ceder. Por exemplo, tinha um painel de [Gilvan] Samico que é mais ou
menos do tamanho disso aqui [apontando para metade da sua estante de
livros de uns quatro metros à olho] e não queria ceder, eu tive que tomar
aquilo, tomar com a ordem do prefeito. O prefeito deu uma ordem de onde
tivesse. Até no cemitério a gente trouxe, um Mário Nunes lindo.
(DANTAS, Entrevista cedida em 15/09/2017).

A justificativa dada por Leonardo Dantas em suas memórias é a falta de recursos


financeiros, tal como já descreveu a pesquisadora, já citada, Maria Cecília Lourenço, “quase
para justificar a cerimônia inaugural”. Importante destacar que as explicações de Dantas
vêm antes de qualquer pergunta sobre acervo, enquanto justificava porque galeria e não
museu, ele já nos narrou como foi a composição do acervo: “Porque a Galeria Metropolitana
de Arte quando eu criei, a prefeitura não tinha acervo, nem tinha dinheiro para fazer a
Galeria, tinha somente o prédio. O que foi que eu fiz, eu fui ver aonde é que na prefeitura
tinha obra de arte”. Um garimpo que, segundo ele, foi demorado. “E o DTO [Departamento
de Transporte e Oficina], o que tinha de quadro porque os outros secretários chegavam,
achava aqueles quadros feios e mandava para o Departamento de Transporte, porque era
uma espécie de deposito”.

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Fundação de Cultura Cidade do Recife decompôs esse acervo em três grandes


grupos: 1) denominada de “Coleção de Arte Popular”3, era composta pela coleção da antiga
Galeria Nega Fulô – que pertencia a pesquisadora Flávia Martins4 e foi adquirida pela
Prefeitura do Recife –, obras da coleção de Abelardo Rodrigues5 e da feira de artesanato; 2)
chamada de “Coleção Vicente do Rego Monteiro”6, possuindo um conjunto de obras deste
pintor7, mas que reunia também obras de diversos artistas; 3) e, separada das demais, a
“Coleção Cenas da Vida Brasileira”8, composta apenas pela série de João Câmara Filho.
A palavra coleção associa-se a voluntarismos, em que um sujeito elege
objetos como parte reveladora de sua existência, seja por lazer, capricho,
amuleto ou vaidade. (...). Nem sempre a palavra coleção possui aqui
significado restrito, mas, também indica conjunto fechado e privado,
transferido ou não para instituições.
O acervo implica no processo cotidiano de reconhecimento e de formulação
de sentidos. Pressupõe o debate e a eleição de critérios, o estabelecimento
de plano de metas, dentro de padrões especialmente formulados segundo a
realidade existente. (LOURENÇO, 1999: 9)

A partir dessas definições traçadas por Maria Cecília Lourenço (1999), percebemos
que a Galeria-museu tem início com um acervo composto também por coleções, das mais
diversas origens. De todas as coleções e obras, apenas uma foi adquirida intencionalmente
pela Prefeitura a fim de compor o acervo da Instituição, a coleção da série Cenas da Vida
Brasileira 1930-54. “E assim montamos com pouco dinheiro, porque o desembolso foi só a
compra da coleção de João Câmara” (DANTAS, 2017)9.
O que essas fontes não respondiam era: porque “Galeria Metropolitana de Arte do
Recife”? Porque galeria e não museu? Como sabemos, um nome não é coisa pouca. Em
entrevista, o primeiro presidente da Fundação de Cultura Cidade do Recife nos contou que a
escolha foi inspirada no Metropolitan Museum of Art, de Nova York. A motivação teve
origem em um curso que o mesmo fez nos Estados Unidos na época. Segundo Dantas, o

3
Relatório do Projeto Museológico e Museográfico. Arquivo do Museu do Homem do Nordeste.
4
Junto com sua mãe, Silvia Coimbra, Flávia Martins diretora da Galeria Nêga Fulô Artes e Ofícios no Recife
entre 1969 e 1980. Também coordenou e participou de diversos projetos e pesquisas envolvendo arte popular,
cultura e artesanato, como o importante livro “O reinado da Lua – Escultores populares do Nordeste”, do qual
foi coautora.
5
Junto com Hermilo Borba Filho, Abelardo Rodrigues é autor do importante livro "Cerâmica Popular do
Nordeste", produzido pelo Ministério da Educação e Cultura, a partir da Campanha de Defesa do Folclore
Brasileiro, RJ, 1969. Um dos maiores colecionadores de arte sacra do país, foi homenageado com a criação de
um museu com seu nome no estado da Bahia, onde hoje se encontra o seu acervo.
6
Relatório do Projeto Museológico e Museográfico. Arquivo do Museu do Homem do Nordeste.
7
Segundo a historiadora Joana D’arc Lima, o artista Vicente do Rego Monteiro “negociava” seus trabalhos
com o poder público, sobretudo, em troca de passagens aéreas, para realizar seus deslocamentos entre Recife e
Paris (LIMA, 2015).
8
Relatório do Projeto Museológico e Museográfico. Arquivo do Museu do Homem do Nordeste
9
A compra da série do pintor João Câmara Filho reverberou no cenário artístico local. Esse debate está sendo
estudando pelo autor desse artigo no seu trabalho de dissertação a ser apresentado em 2018.

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curso foi em Administrador em Artes, teve um formato de seminário e durou quatro meses.
Lá, ele se empolgou com o Metropolitan Museum of Art. “Vi que no Metrpolitan tinha de
tudo, tinha artes plásticas, escultura, tinha história, tinha arte popular, tinha tudo. E eu em
vez de criar um museu só histórico, eu naquele espírito da museologia norte americana, eu
criei uma galeria metropolitana de arte”. Para o presidente da FCCR, um museu é um centro
de pesquisa histórica, não pode apenas exibir as obras artísticas, que era o que ele e a
Fundação buscavam na Galeria.
A história narrada oralmente pelo primeiro presidente da Fundação de Cultura já
pode nos explicar muita coisa – a presença de tantos elementos expostos: esculturas em
barro, cerâmica, madeira, ferro, estandartes carnavalescos em tecido, além das já
mencionadas pinturas à óleo, por exemplo – porém, o historiador não pode parar na primeira
“prova”, neste caso ela deixa de lado quais os valores e símbolos foram atribuídos ao nome
da Galeria. Buscar esses significados não foi tarefa simples, muito menos exata. Nem
sempre os atores político-sociais se expõem seus reais interesses, o espaço de trabalho do
historiador não é um campo neutro.
O complexo socioeconômico do sistema brasileiro na segunda metade do século XX
apresentou um traço diferenciador entre os fenômenos de suas transformações, o espaço
social, econômico e político denominado Região Metropolitana. A ocorrência, como se sabe,
longe de constituir apanágio do Brasil, teve praticamente âmbito mundial, representando
uma característica daqueles tempos. Em nosso país, ela possuía manifestação expressiva e
variada.
Mário Lacerda de Melo (1978) destaca uma ideia sobre as dimensões que a tendência
metropolizadora assumiu no Brasil na concentração populacional a ela inerente. Embora
somente um segmento ínfimo da superfície do país, as regiões metropolitanas brasileiras em
1970 possuíam 24% do efetivo humano nacional. E o fato de realizar-se o seu crescimento
demográfico em ritmo muito mais acelerado do que o encontrado na média das demais áreas
brasileiras tornava cada vez maior a sua participação relativa. “Em 1960 ela era de 18,4%.
Em 1975, segundo dados constantes de estimativa oficial, deve ter passado para 27%”
(1978: 21).
O próprio trabalho do Professor Mário Lacerda de Melo, aqui utilizado também
como fonte, “Metropolização e subdesenvolvimento: o caso Recife” de 1978, ou seja, três
anos antes da inauguração da Galeria Metropolitana de Arte do Recife, teve o apoio do
Departamento de Ciências Geográficas do Centro de Filosofia e Ciências Humanas da

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Universidade Federal de Pernambuco, mostra como a sociedade recifense estava refletindo


esta concentração humana e econômica geradora do fenômeno da metropolização.
A Constituição Brasileira de 24/01/1967 (10 do artigo 157) e a Emenda
Constitucional Nº 01, de 17.10.1969 (artigo 164) conferiram ao Governo da
União a faculdade de, mediante lei complementar, delimitar os segmentos
do espaço nacional correspondentes a esse tipo de região. Trata-se de
providência destinada às áreas “constituídas por municípios que,
independentemente de sua vinculação administrativa, integram a mesma
comunidade de interesse comum”. A partir dessa disposição constitucional,
tem constituído demonstrações expressivas de que o poder público se vem
mostrando capacitado da relevância assumida por esse novo elemento
integrante dos quadros espaciais, sociais e econômicos do país: i) os estudos
realizados para regulamentação e efetivação do aludido prefeito legal; ii) a
promulgação da Lei Complementar Nº 14 de 08.06.1973 que definiu as
noves regiões metropolitanas brasileiras; iii) as medidas destinadas à
implementação daquela lei; iv) a elaboração e implementação dos
programas de dos programas de desenvolvimento das regiões em causa
(MELO, 1978: 22)

Em 1970 a cidade do Recife ultrapassou a marca de um milhão de habitantes (1.060


mil). Naquele ano a sua região metropolitana possuía uma população urbana de 1.629 mil
pessoas. Era a RM brasileira que populacionalmente se colocava em terceiro lugar no país.
Um terceiro lugar situado à longa distância da primeira e segunda colocações, pertencentes à
RM de São Paulo (7.837 mil habitantes urbanos) e à do Rio de Janeiro (6.847 mil), porém
não muito acima da RM de Belo Horizonte, situada em quarto lugar (1.505 mil) e da de
Porto Alegre (1.346), porém expressivamente acima da de Salvador, que se classificada em
sexto lugar (1.067 mil). Às outras três regiões metropolitanas – a de Fortaleza, a de Curitiba
e a de Belém do Pará – possuíam, cada uma, menos de um milhão de habitantes: 864 mil,
647 mil e 606 mil, respectivamente (MELO, 1978).
Denominar o espaço voltado para as artes como Galeria Metropolitana de Arte do
Recife, era dizer que nas artes esta cidade também era referência. Esse paralelo é notado
facilmente utilizando a matéria do Jornal. Seu título: “No Recife, a 3ª maior galeria do
Brasil” – como vimos, mesma colocação da RM do Recife em relação ao número de
população urbana. Bem como o trecho já lido por nós, no qual afirma que
O Prefeito Gustavo Krause cumpre no segundo ano de mandato,
integralmente aquilo a que se comprometeu quando assumiu: devolver ao
Recife as tradições culturais e artísticas que a tornaram o centro das
decisões de toda a região nordestina (Jornal do Commercio de Pernambuco,
domingo, 29 de março de 1981).

Melo também lembra que dentro do mapa do Brasil, esse tipo de região representava,
antes do mais, concentrações de populações a nível variavelmente elevado, sempre superior
a meio milhão de habitantes, mas chegando, no caso de São Paulo, a perto de oito milhões.

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Assim, “suas áreas de influência mais intensa confundem-se em grande parte com os
espaços territoriais dos Estados onde se encontram” (1978: 26). O que nos leva a crer que o
nome “Metrópole” para designação da Galeria de Arte parece ter sido aprovado sem
ressalvas, o que não ocorreu com a opção por Galeria e não Museu e isso quem nos revela
também é a memória de Leonardo Dantas, “Fui criticado por muita gente, inclusive por
Paulo Brusky que dizia que tinha que ser um museu de arte” (DANTAS, Depoimento,
15/09/2017).
Os indícios indicam que alternativa por Galeria foi mesmo de Leonardo Dantas e sua
admiração pelo Metropolitan Museum of Art, de Nova York. Em entrevista com o Prefeito
do Recife à época, Gustavo Krause, questionamos sobre as especificidades da Galeria
Metropolitana de Arte do Recife, como nome do espaço, escolha dos artistas e a opção pela
configuração da exposição. De maneira sincera, o ex-prefeito disse que delegava essas
atividades para Leonardo Dantas, diretor executivo da Fundação de Cultura Cidade do
Recife, e Luiz Otávio Cavalcanti, Secretário de Planejamento e Urbanismo. Recordo um
excerto espirituoso do depoimento: “Isso aí eu deixava pra Leonardo cuidar. Umas
complicações... ‘Traga pra eu decidir que eu decido’. E, evidentemente, não tem nada
simples que dois intelectuais não possam complicar [risos]” (KRAUSE, Depoimento,
10/10/2017).
Ao escrever a história da Galeria Metropolitana de Arte do Recife, percebemos que
sua criação em 1981 fez parte de um projeto maior de valorização cultural da gestão
municipal do Recife, que teve início com a Criação da Fundação de Cultura Cidade do
Recife em 1979. O prefeito Gustavo Krause, tinha por objetivo desde o início do mandato
fortalecer na cidade as” tradições culturais e artísticas que a tornaram o centro das decisões
de toda a região nordestina”. Raridade, exemplaridade e preciosidade não foram os critérios
iniciais da formação do acervo da Galeria-museu, ou seja, este espaço chegou com sua base
material sem um estudo que estabelecesse sua composição, sem uma política de acervo. Ele
foi composto em grande parte por obras espalhadas por diversos órgãos da Prefeitura da
Cidade do Recife.
Estas reflexões, além de apontar os motivos do anseio de preservação artística,
também nos mostrou aspectos da compreensão da vida social daquela cidade. Como vimos,
10 anos antes da abertura da GMAR, a cidade do Recife ultrapassava a marca de um milhão
de habitantes, significativamente acima de salvador e Fortaleza, as outras duas regiões
metropolitanas do Nordeste, entre os noves espaços nacional correspondente a esse tipo de
região. Uma região metropolitana representava concentrações de populações a nível

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variavelmente elevado, sempre superior a meio milhão de habitantes, e suas áreas de


influência mais intensa se confundem em grande parte com os espaços territoriais dos
Estados onde se encontram.
Parte da história de um museu está atribuída a seu nome. Aqui tentamos contar um
pouco da história do nome da Galeria Metropolitana de Arte do Recife, criada em 1981, em
um histórico casarão construído no final do século XIX, na Rua da Aurora, as margens do
rio Capibaribe, centro da Cidade do Recife

Referências bibliográficas

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UFPE, 2013.
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MELO, Mário Lacerda de. Metropolização e subdesenvolvimento: o caso do Recife. Recife:
UFPE – Centro de Filosofia e Ciências Humanas, Departamento de Ciências Geográficas,
1978.

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MONTENEGRO, Antonio Torres. Memória, metodologia, memória. 1. Ed., 1ª reimpressão


– São Paulo: Contexto, 2010.
REZENDE, Antônio Paulo. Desencantos Modernos: histórias da cidade do Recife na década
de vinte. Recife: FUNDARPE, 1997.

CÂMERA NA MÃO: OLHARES SOBRE O SUPER 8 EM NOTURNA RÉ-CIFE MAIOR

Ghita Almeida Galvão


Mestranda em Historia pela Universidade Federal de Pernambuco –UFPE
ghita.almeida@hotmail.com

Em Pernambuco e em grande parte do Brasil aparece um cinema composto por ciclos


(FIGUEIROA, 2000), de acordo com os estudiosos do tema. É sabido, no entanto, que estes
ciclos não encerram o cinema produzido naquela bitola ou daquela forma, ou seja, é um
período em que existe muita produção com características parecidas, passando longos
períodos de tempo com uma produção menor.
Tendo início na década de 1920 o cinema de Pernambuco aparece com o “Ciclo do
Cinema Silencioso”, ou “Ciclo do Recife”, no qual se faziam filmes mudos, um movimento
que durou uma década. Passando então por um período de baixa criação e voltando para uma
produção mais desenvolvida somente na década de 1970, com o Ciclo do cinema Super 8,
no qual, segundo Amanda Mansur, são produzidos mais de 200 filmes financiados na
maioria das vezes pelos próprios cineastas, pois tinham um caráter doméstico onde era
possível, filmar, revelar e montar de forma caseira, ainda que com uma qualidade inferior.
Era a solução para os que queriam fazer filme em Pernambuco, na época. (NOGUEIRA,
2009, p.37)
Muitos dos jovens da Classe Média recifense da década de 70, que viajavam para o
exterior com o objetivo de estudar, voltavam em posse de uma câmera Super-8. Por ser
barata e de fácil transporte, virou o material para a produção de filmes não só em

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Pernambuco, como no Brasil. Os filmes eram em sua maioria de curta metragem e


participavam de festivais, apesar de não haver intenção de conexão, como afirma Geneton
Moraes Neto: “Nunca houve uma tentativa de unidade no movimento de Cinema Super-8 de
Pernambuco. Pode ter havido, no máximo, coincidência de intenções entre as bússolas de
um e outro navegante.” (NETO In: FIGUEIROA, 1994, p.6), acabavam por deixar uma linha
comum, por afinidades no grupo, sendo um cinema marcado pelo trabalho em conjunto e
pela amizade, que mesmo sendo um cinema feito em Pernambuco, não necessariamente era
feito por pernambucanos e que chegou ao fim em meados dos anos 80, em decorrência do
desenvolvimento de novas tecnologias de produção cinematográfica como o cassete.
Por outro lado a História do Brasil, da década de 1970 é marcada pelo regime de
governo militar de caráter ditatorial, que já vigorava desde 1964 e só acaba em 1985, com as
eleições (indiretas) presidenciais. Inicia-se em fins da década de 1960 os chamados “anos de
Chumbo” quando Emílio Garrastazu Médici governou o pais com mão de ferro, pouco
depois, começa a produção em Super-8 em Pernambuco, mais especificamente em 1973.
A repressão artística e intelectual se fez presente em todo o período da ditadura,
sendo a censura, na época, um grande instrumento de manutenção da ordem e do poder.
Segundo Nadine Habert:

A criação artística e intelectual eram vistas como ameaça ao regime e a partir


da censura, institucionalizada e controladora de diversas áreas de produção,
muitos filmes, músicas e livros foram proibidos, além de fazer prender, ou
exilar, intelectuais e artistas que se contrapunham ao regime de exceção. 1

Trata-se, portanto, de um período em que o cinema pernambucano e brasileiro de


uma forma geral, foi bastante rico em termos de produção, ainda que com pouco recurso e
com pouco investimento por parte do Estado, posto que muitas vezes fazia frente ao que era
imposto social e politicamente. Nesse sentido Jacques Rancière afirma, “Passado o tempo da
denúncia do paradigma modernista dominante quanto aos poderes subversivos da arte, vê-se
de novo a afirmação mais ou menos generalizada de sua vocação para responder às formas
de dominação econômica, estatal e ideológica.” (RANCIÈRE, 2014, p.).
O presente artigo se propõe a fazer uma analise do cinema superoitista em
Pernambuco, citando o filme “Noturno em Ré-cife Maior” de Jomard Muniz de Britto,
Tomando como base os trabalho de analise de Marc Ferro onde explicita que “o filme se

1
HABERT, Nadine. A Década de 70: Apogeu e crise da ditadura militar brasileira. São Paulo: Editora Ática
S.A., 1992.

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torna um agente da História pelo fato de contribuir para uma conscientização” (FERRO,
2010, p.17), afirma ainda que o filme não é ingênuo, ele quer falar sobre algo, ele propõe
algo e sobre as filmagens em super 8 declara, “outrora ‘objeto’ para uma ‘vanguarda’, a
sociedade pode de agora em diante encarregar-se de si mesma”(FERRO, 2010, p.17).
O cinema Super 8 em Pernambuco inicia de fato na II Jornada Nordestina de curta-
Metragem de Salvador, com onze filmes de vários cineastas locais, sete concorrendo na
mostra competitiva e quatro sendo somente exibidos. Começa assim, um tempo de mostras
em para os cineastas de Pernambuco e de trocas com estados como Bahia e Paraná.
Muitos dos cineastas da época trabalhavam em jornais locais, a divulgação e
propaganda do super 8 eram inevitáveis, muitos artigos comentavam filmes e festivais e
incentivavam a criação nessa bitola. Já em 1973 Cleto Mergulhão organiza a I Mostra
Pernambucana de Belo Jardim com o apoio da prefeitura local e da Empresa pernambucana
de turismo, onde passaram os sete filmes que concorreram na Jornada de Salvador e no
início de 1974 estes filmes são também, exibidos numa mostra na Universidade Católica de
Pernambuco.
Nesse contexto ainda em 1973, o Teatro do Parque passa a abrigar o Cinema
Educativo do Recife, a partir de um convenio entre prefeitura e Instituto Nacional do
Cinema (INC) e Hugo Caldas abre um auditório com 30 lugares para a projeção de Super 8
em sua casa em Boa Viagem, chamado de Sala Sérgio Porto, que servia, segundo Figueiroa,
como ponto de encontro dos realizadores da bitola, sendo a primeira do Norte e Nordeste.
O super 8 pernambucano começa a crescer e ganhar prestigio, em 1974 o filme de
Fernando Spencer “Valente é o galo” – documentário que denunciava a briga de galo –
ganha o premio fundação cultural do Estado da Bahia de Melhor Filme Super 8 e o premio
TV Universitaria do Recife de melhor filme pernambucano, também foi convidado para
participar da Mostra Especial do Festival de Oberhausen, na Alemanha, ganhando copia
legendada e narrada em alemão. O super 8 pernambucano passou a ser tema de conferencias
em mostras realizadas pelo Instituto Joaquim Nabuco de pesquisas Sociais, assim como
também passou a sofrer censura em festivais, sendo o primeiro a ser censurado, o filme de
Talvani Guedes “36 poses e nenhum gesto”, que foi interditado no Festival Nacional do
Super 8 em dezembro de 1974, em São Paulo.
Já em 1975, Pernambuco era o estado nordestino com maior produção em super 8,
mesmo com o reconhecimento, os filmes em super 8 eram assistidos em Pernambuco por
realizadores e pessoas da suas redes sociais, o grande publico veio conhecer esses filmes
apos a I Mostra Recifense do Filme Super 8, no Cinema Educativo do teatro do Parque,

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promovida pela Secretaria de Educação e Cultura do Recife, foram 32 filmes


pernambucanos, em três dias, com cerca de mil pessoas por noite que votaram nos seus
filmes preferidos, cada realizador ganhou credito para a compra de filmes virgens, revelação
ou sonorização em super 8, de acordo Figueiroa (FIGUEIROA, 2000, P.46).
Nesse contexto o Teatro de Amadores de Pernambuco (TAP) também começa a
fazer filmes na bitola super 8, fundando a produtora Amadores de Cinema de Pernambuco, a
Amacine, Enéas Alvarez que era inspetor do INC e secretario do Cinema Educativo, além de
ator do TAP, propôs para um dos diretores do grupo a ideia, e fez sua primeira produção
bastante sofisticada para os padrões superoitistas, estes filmes com melhor qualidade técnica
eram inclusive, mais bem aceitos em mostras e festivais e por tanto, ganhavam mais prêmios
e prestigio, como afirma Alexandre Figueiroa.
Em fins de 1975 em uma Jornada Brasileira de Cinema, como passou a ser
chamada a Jornada Nordestina de curta-Metragem de Salvador, para limitar a participação
de filmes em super 8, que crescia bastante, decide que osfilmes que deveriam passar, seriam
somente os que não tivessem participado de outro festival em âmbito nacional, tivemos
então somente um filme pernambucano no evento esse ano, as reclamações foram inúmeras,
mas o movimento serviu para repensar o cinema e o cenário nacional, a censura passou,
inclusive, a fazer a interdição de filmes nos festivais, tanto explicitamente, quando
implicitamente, fazendo sumir filmes, como foi o caso do filme “tempo nublado” de Amin
Stepple que deveria participar do I Festival Universitário do Filme Super 8 no Rio de Janeiro
e não participou.
Houve a exibição de 10 filmes na mostra e seminário “Super 8 em Questão”,
organizada pelo cineclube Glauber Rocha, com a colaboração da Cinemateca do MAM e
Federação dos Cineclubes do Rio de Janeiro que foi acompanhada por um debate intitulado
“ O movimento dos realizadores independentes, surgido no Nordeste apos a Jornada
Nordestina de Curta-Metragem na Bahia, suas experiências e evolução” e com uma analise
critica de Jean-Claude Bernardet, no seminário Opinião.
E ainda assim, apesar desse visível crescimento e dessa expressividade que o super
8 tinha no cenário nacional, ele continuava sem circuito exibidor, sendo exposto
principalmente em festivais e mostras, os realizadores entretanto se aproveitavam de
diversas situações para exibirem seus filmes, Jomard Muniz de Britto elaborou um programa
chamado Cinevivendo, em quem exibia filmes e fazia debates em diversos espaços, Eduardo
Maia e Felix Filho criaram o “Dois Programas em Super 8” que ofereciam a exibição de dois

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filmes de forma profissional em escolas, cineclubes e associações, inclusive cobrando


ingresso, mas ainda assim os festivais estavam na preferencia dos superoitistas.
O super 8 de Pernambuco era feito em cooperação entre os participantes do
movimento, ademais, contando com o trabalho jornalístico de Fernando Spencer e Celso
Marconi que também eram realizadores, para divulgação, na intenção de criar uma coesão
para realização de festivais de Super 8 de importância nacional, como o de Salvador. Em
fins de 1976 é fundado o Grupo de Cinema Super 8 de Pernambuco que se consolida em
1977, como entidade de apoio a produção do super 8. Também nessa época o super 8 ganha
um publico, sendo o universitário o mais interessado e o que mais tinha chance de ver os
filmes em mostras não oficiais e por tanto, não censuráveis, de acordo Figueiroa.
Os estatutos do Grupo de Cinema 8 se fixam em janeiro de 1977 e grande parte dos
cineastas pernambucanos se associam ao Grupo, que tinha como diretores e sócios
fundadores os cineastas documentaristas, donos de uma visão mais convencional da
realização cinematográfica. O grupo promoveu logo de inicio, o I Curso de Cinema no
Colégio Marista, com 46 alunos de diferentes formações acadêmicas, tendo sido considerado
um sucesso.
Nesse mesmo ano, o super 8 era usado em experimentações com o teatro em
Pernambuco, por exemplo, na peça “O mito do silencio” de Sergio Sardou, em seguida Belo
Jardim teve a segunda edição de sua mostra, logo depois a UFPE promoveu uma mostra de
filmes com um debate sobre a censura no super 8 e os aspectos econômicos da realização, a
Católica promoveu um cineclube, o Imagem Livre, que ficou pouco tempo em atividade,
mas que chegou a apresentar uma programação em super 8. Posteriormente Spencer
apresentou no Liceu de Artes e Oficios e no Centro de Comunicação Social do Nordeste, o
CECOSNE, uma seleção com seus filmes com temas folclóricos, o “folclore 8” e Jomard
apresentou o Cinevivendo na Associação do Servidores da Sudene, com filmes seus e o
curta “Di”, de Glauber Rocha.
Todas essas exibições impulsionam o Grupo 8 a criar um festival de filmes super 8
no Recife, com o apoio do Instituto Joaquim Nabuco de Pesquisas Sociais e do governo do
estado de Pernambuco o festival aconteceu, junto com o simpósio sobre o Filme
Documental Brasileiro, promovido pelo IJNPS, uma diversidade de prêmios é distribuída
entre os filmes participantes da mostra, pelos patrocinadores. Nesse sentido o Grupo 8
começa a ganhar uma postura mais ligada a cultura oficial, em maio de 1978 o Grupo 8 é
considerado de utilidade publica, através de lei sancionada pelo prefeito Antonio Farias.

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No entanto o Grupo 8 tencionava se aproximar dos órgãos oficiais para manter o


status e conseguir investimento para o II Festival de Super 8, afitma Figueiroa, nessa
perspectiva, ele cita a Amon Stepple dizendo:

Toda aproximação com órgãos oficiais, implicava numa aproximação com a


ditadura e isto não era bem visto pelos realizadores, que preferiam continuar
no amadorismo, fazendo filmes em super 8, a partir, por exemplo, para
produção em 16 ou 35mm financiada pela Embrafilme. 2

Apesar deste cenário, nem tudo esta indo tão bem quanto parece e já no XI Festival
de Brasília, se faz uma carta para a diretoria da Kodak do Brasil, informando o mau
tratamento dos seus laboratórios ao super 8, em dezembro de 1976, o equipamento super 8 é
incluído na lista de produtos supérfluos, sua importação é proibida e em agosto de 1977, se
passa a exigir o deposito de 100% do valor do produto para o importar. Os preços aumentam
e a produção que já não era barata e nunca teve um mercado consumidor concreto, passa a
deixar de ser tão interessante então a produção começa a decair. Mas, mesmo com a redução
das realizações filmicas o II Festival do Recife acontece em novembro de 1978, passando
por ele três mil pessoas em cinco dias de evento, 46 filmes, 26 pernambucanos, alguns
filmes com caráter de protesto a ditadura, inclusive.
Em 1979 o Grupo 8, junto com o Ares 8 de São Paulo e com o Compass Film
Association, promove o Brazilian Super 8 Film Festival na Universidade de Yale, nos
Estados Unidos com filmes de Pernambuco e São Paulo, também em João Pessoa recebeu
uma mostra de filmes pernambucanos, no entanto, o super 8 foi excluído da VIII Jornada
Brasileira de Curta-Metragem, sob a justificativa de existirem outros eventos para a bitola no
Brasil e para dar espaço para filmes de 16 mm e 35mm, entretanto exibem filmes franceses
em super 8, o que provoca bastante desagrado aos realizadores superoitistas.
É nesse contexto que acontece o III Festival do Recife, ainda bem patrocinado, mas
dessa vez com menos filmes pernambucanos que de outras partes do Brasil, houve,
entretanto, a participação do artista plástico Paulo Bruscky, recebida com entusiasmo. Ainda
assim, organizadores e participantes perceberam as dificuldades do festival, em relação aos
anos anteriores. O super 8 estava bastante oneroso de ser feito, inclusive nos moldes que
propunha parte dos realizadores de Pernambuco, com pouco planejamento e recurso e
acabou por ir perdendo cada vez mais espaço em festivais e sendo cada vez menos
produzidos.

2
FIGUEIRÔA, Alexandre. Cinema Pernambucano: uma história de ciclos. Recife: Fundação de Cultura da
Cidade do Recife, 2000, p. 58.

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Este é então, o ultimo grande festival dedicado ao super 8, feito em Recife durante
o ciclo, algumas outras mostras acontecem com exibições de filmes, nem sempre novos,
também alguns cineastas permanecem fazendo filmes na bitola em questão, como é o caso
de Jomard Muniz de Britto. Tempos depois o super 8 reaparece em trechos de filmes
pernambucanos, para trazer uma ideia diferente, de lembrança, por exemplo, como no caso
do “ O Ceu de Suely” filme de 2006 dirigido por Karim Aïnouz.
Já em fim de produção superoitista, nos meados de 1981 Jomard Muniz de Britto
realiza seu filme “Noturno em Ré-cife Maior” o qual iremos trazer a luz nesse artigo.
Jomard é uma das pessoas mais conhecidas no cenário cultural recifense ainda hoje, nascido
em Recife, passou grande parte da vida entre João Pessoa e a capital pernambucana,
transitou também entre diversas artes, como teatro, poesia e cinema, sua produção em super
8 foi bastante significativa, mesmo sendo somente uma parte dos 200 filmes feitos durante o
ciclo super 8 em Pernambuco. Foi professor de filosofia e artista, assegurou o movimento
tropicalista em terras pernambucanas, fez inúmeras amizades em tanto tempo de arte, seus
filmes tinham um ar experimental, irônico, brincalhão e subversivo, ele parecia misturar
suas muitas metades muito bem, em seus filmes.
“Noturno em Ré-cife Maior” parece trazer esses elementos todos, é produzido em
1981, em fins do movimento superoitista, e ainda assim, é ainda bastante inquietante,
algumas vezes trabalha com a ideia de câmera na mão, outras com plano aberto, close, com
pouca fala, mas com alguns murmúrios, percebe-se um áudio muitas vezes atrasado ou
adiantado em relação ao filme, no entanto, não faz o filme perder de fato, em qualidade, pois
o mesmo tem um ar de brincadeira que o perpassa por inteiro, ainda que queira discutir algo
serio, tem uma forma de falar distinta de um filme serio, ele é sempre irônico, por vezes
parece falar diretamente com o espectador, como que querendo disparar um discurso, que
parece por outras vezes poemas e apesar de em alguns momentos lembrar a forma de
Godard se expressar, faz parecer mais leve, ele diz por exemplo, que “O contrario do
burguês e o boêmio”, parece que vai fazer um discurso a favor do proletariado, mas na
verdade, faz um discurso a favor da diversão.
O filme inicia com os créditos, neles são citados os músicos da trilha que aparece
ao longo do filme, como Rita Lee, Caetano, Arrigo Barnabé, músicos que já é sabido qual o
posicionamento politico e comportamental, que seguem uma linha dentro do meio musical
bastante contundente, parece um preparativo para o que nos espera no decorrer do filme.
“Noturno em Re-cife Maior” inicia, após essa passagem de créditos, com um
homem na beira do mar, no que parece ser um fim de tarde, com uma capa. Em seguida

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alterna a imagem para este homem sentado numa mesa, se maquiando, o mesmo usa capa e
parece estar sujo de sangue, é um vampiro, enquanto isso um poema é declamado, uma
música com ar dramático toca ao fundo, a cena fica alternando entre o mar e a maquiagem,
em seguida aparece o vampiro com a bandeira do integralismo, logo depois novamente no
mar.
E então aparece uma mulher vestida de verde e amarelo com um coroa e uma
espada, representando o que seria a republica, ele a espera e a conduz a subir em um banco,
enquanto isso Gal Costa canta a música “Meu Brasil Brasileiro”, ali ele a corteja, a beija o
corpo e corta para outra cena em que o vampiro passa aos pulos, aparentemente feliz pela
noite do Recife, em seguida, ele aparece sozinho numa mesa de bar, bebendo e fumando,
pensativo, enquanto toca “mal necessário” com Ney Matogrosso cantando, nesse momento a
câmera abre e mostra as pessoas no bar olhando com curiosidade para o vampiro, volta o
vampiro e entra uma imagem de um poema de Carlos Pena Filho, volta para o vampiro
novamente e mais uma declamação/ fala, enquanto o nosso personagem continua a tomar
sua cerveja, em seguida ele aparece na ponte de ferro do centro do Recife, o filme se passa a
noite, a fora algumas poucas partes em que o vampiro não parece se intimidar com o sol, ele
segue para outro bar, carregando flores murchas.
Aqui ele começa a interagir com outras pessoas, parece cortejar e querer assustar ao
mesmo tempo, homens e mulheres. Continua passeando pelo Recife e em bares, chegando
em um, começa a tocar “nosso estranho amor” de fundo enquanto ele encena uma cena de
sexo com uma mulher em cima de uma mesa no bar, todos observam. Jomard não parece se
importar muito com a reação do que seriam os figurantes no bar e eles acabam demostrando
um misto de curiosidade e constrangimento, que parece ser bem autentico em sua maioria.
Desse bar o vampiro sai pela manhã, parecendo bastante satisfeito e saudoso da
noite anterior, vai até a estação de trem, muito provavelmente a estação central, aqui não se
utiliza plano aberto, enquanto ele paga e entra no trem, outro poema é declamado e ele volta
a cena do mar. Esses poemas parecem, como dito anteriormente, mais um protesto que
simplesmente um recurso sonoro/ estético.
“Soy loco por ti América” toca enquanto o vampiro dança e corteja pessoas em o
que parece ser uma danceteria, ou boate, ele parece se divertir muito enquanto dança, a
musica muda para “Lança perfume” de Rita Lee. O vampiro então, volta as ruas e essa
imagem se alterna com as do mar, agora com imagens da lua, com uma técnica que parece
bem deficiente nesse momento, para fazer a imagem da lua e do vampiro.

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Em seguida, o vampiro está em outro bar, então chega um homem com uma
máscara de palhaço e uma câmera de super 8 na mão, filmando as pessoas que estão no bar
até chegar no vampiro, quando outra declamação começa, nesse momento o nosso
personagem passeia pelas ruas e encontra um homem deitado o qual ele beija, em seguida
corta para a próxima cena em que novamente encena uma cena de sexo com outro homem
desta vez, enquanto todos observam, na próxima cena ele está no banheiro masculino
observando os homens, há um close no pênis de um dos homens, que parece meio sem
sentido de aparecer na cena, em seguida ele passa correndo em um corredor, aí se observa
um microfone que aparentemente não deveria fazer parte do filme, toda essa sequencia apos
a declamação é feita ao som de “doce vampiro” com Rita Lee.
Novamente o vampiro aparece no mar e então um novo verso é declamado e ele
aparece na estação de trem, então começam os verso da musica de Caetano Veloso vejo uma
trilha clara pro meu Brasil apesar da dor, a cena é cortada para outra em outro bar com a
música “mel” com Maria Betania cantando, novamente ele corteja outro homem enquanto os
dois bebem cerveja então a cena é cortada para o vampiro e a mulher vestida de republica na
cama, onde ela empala o vampiro com sua espada, enquanto mais um verso é dito. O filme
continua entre bares e numa cena em quem o vampiro encontra Paulo Bruscky no bar e este
come suas flores, logo depois o filme acaba.
Uma análise do filme mostra muito do que seria parte do super 8 de maneira geral,
a confluência de outras artes, como a poesia, de outros filmes que tinham um cunho mais
problematizador, a influencia da musica brasileira, a interpretação que parece bastante com a
dramaticidade teatral, a maquiagem pesada ou não existente, o não se importar tanto com a
técnica cinematográfica, muito provavelmente intencionalmente, como no caso de mostrar o
microfone, tudo parece uma grande performance filmada e o filme querer dizer algo, na
verdade ele é bem explicito em seus questionamentos.
Por fim, o super 8 em Pernambuco apesar de não ter uma unidade em termos gerais,
parece ter um acordo a não submissão, e ser uma grande escola para os realizadores se
afirmarem realizadores de fato, talvez nem sempre superoitistas ou nem sempre cineastas,
mas estudiosos de cinema também. Entendemos o Ciclo do Cinema super 8 em Pernambuco
como um cinema múltiplo, cheio de elementos de outras artes como no caso do TAP que
cria a Amacine, com artistas diversos que se completavam, numa brothagem que Amanda
Mansur fala sobre, no cinema de retomada, mas que já pode ser observada desde a década de
1920, fazer cinema em Pernambuco foi por muito tempo uma forma de expressão que
precisava de uma rede de amizade para se sustentar, principalmente pela falta de recurso,

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mas também pela falta de estudo no sentido clássico mesmo e então, como Figueiroa afirma
sobre o super 8, a necessidade de aprender observando e experimentando, que em grupo é
facilitada, o Grupo 8 foi um grande exemplo de como a unidade consegue fortalecer o
movimento.

Bibliografia
FERRO, Marc. Cinema e História. São Paulo: Paz e Terra, 2010.
FIGUEIRÔA, Alexandre. Cinema Pernambucano: uma história de ciclos. Recife: Fundação
de Cultura da Cidade do Recife, 2000.
FIGUEIRÔA, Alexandre. O Cinema Super 8 em Pernambuco: do lazer doméstico à
resistência cultural. Recife: FUNDARPE, 1994.
HABERT, Nadine. A Década de 70: Apogeu e crise da ditadura militar brasileira. São
Paulo: Editora Ática S.A., 1992.
NOGUEIRA, Amanda Mansur Custódio. O Novo Ciclo de Cinema em Pernambuco: A
questão do estilo. Recife: Ed. Universitária da UFPE, 2009.
RANCIÈRE, Jacques. O Espectador Emancipado. São Paulo: Editora WMF Martins Fontes,
2014.
ARTISTAS E INTELECTUAIS CATÓLICOS E A CULTURA ARQUITETÔNICA
DA NEOCRISTANDADE: TRADIÇÃO E FUNCIONALIDADE NA ARQUITETURA
RELIGIOSA NO BRASIL DA PRIMEIRA REPÚBLICA.

Diomedes de Oliveira Neto


Mestre em História Social – PPGHIS/UFRJ
diomedesneto85@gmail.com

RESUMO: A presente pesquisa pretende problematizar, sob uma perspectiva da história


cultural, as narrativas escritas por artistas e intelectuais católicos na primeira metade do
século XX no Brasil acerca da arquitetura religiosa. Atentou-se nos textos às razões
estéticas, funcionais e litúrgicas para novas práticas construtivas num momento em que a
Igreja Católica brasileira experimentava rearranjos institucionais naquilo que a historiografia
convencionou chamar de neocristandade. Para tanto, foram analisados escritos de literatos
como Gustavo Barroso e Alceu Amoroso Lima presentes nas revistas ilustradas das décadas
de 1920 e 1930, veículos dispostos a debater junto à sociedade letrada, dentre outros
assuntos, por uma nova cultura arquitetônica sintonizada com os centros urbanos europeus.
Também para a pesquisa recorreu-se às revistas católicas que traziam discussões sobre arte,
moral e religião em textos do artista plástico Carlos Oswald e do religioso Mons. Joaquim
Nabuco. O que se percebe nas narrativas desses autores, leitores da tradição romântica e dos
ideais nacionalistas e cristãos, é o desejo por uma arquitetura que conseguisse se abrir às

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novas experimentações técnicas, mas apoiada na tradição do catolicismo e na liturgia.


Portanto, uma arte a serviço da religião.

Palavras-chave: intelectuais católicos, arquitetura, neocristandade

INTRODUÇÃO

A partir do século XIX, no Brasil, a maneira de se pensar e fazer construções


começava a se modificar. A vinda em 1816 de um grupo de artistas franceses
subvencionados pela Coroa de João VI, com a presença nesse grupo do arquiteto Grandjean
de Montigny, facilitou para que aos poucos se iniciasse a formação de uma cultura
acadêmica de ensino e prática de arquitetura fundada nos preceitos das Belas Artes e de uma
História da Arquitetura.
Nos tempos de colônia no Brasil, o ato de construir uma edificação orbitava em torno
do trabalho de engenheiros militares e mestres de obras que se baseavam nos tratados de
construção renascentistas e posteriormente barrocos lusitanos, resultando por vezes em
práticas vernaculares adaptadas aos materiais e necessidades tropicais. Ao longo do século
XIX essas práticas começaram a ceder espaço para as técnicas e soluções construtivas dos
manuais confeccionados pelas Academias de Belas Artes, de origens sobretudo francesas,
com força nas formas e inspirações do Belo firmado no clássico greco-romano, além de se
iniciar uma abertura para experimentações com formas e vocabulários arquitetônicos de
outras épocas do passado europeu. Naquele momento, a figura do arquiteto passa a ganhar
maior destaque no ofício de projetação e construção de um edifício. Uma nova cultura
arquitetônica emerge nos centros urbanos brasileiros.
A essa prática de se utilizar formas e referências de arquiteturas do passado num
tempo presente, o historiador da arte, Giulio Carlo Argan a conceituou como revival, quando
a produção artística consegue subverter uma pretensa linearidade evolutiva de fazer arte e
lança-se ao passado na busca de referências para satisfazer necessidades de um presente. O
passado no revival, portanto, não é apenas pensado, mas sobretudo agido. (Argan,1974).
Debruçados sobre a diversidade de formas e partidos arquitetônicos do passado
ocidental, e por vezes também em tradições orientais, os revivalismos se colocam como
múltiplos para a escolha do arquiteto e de sua clientela, com maior profusão ao longo do
século XIX, época de aprimoramentos nos estudos arqueológicos e na pesquisa histórica.
Passeiam os revivalismos desde a antiguidade grega (neogrego), aos estilemas medievais
(neoromânico, neobizantino, neogótico), aos academicismos da renascença

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(neorenascentista), à nem tão antiga tradição barroca (neobarroco), chegando também às


regiões mais distantes da Europa como Egito Antigo, China Imperial, Oriente Islâmico.
No Brasil, a prática dos revivalismos foi absorvida pelas Escolas de Arquitetura no
século XIX, assim como pelos profissionais estrangeiros que migraram para o império
naquele século, com destaque para arquitetos e engenheiros franceses, italianos e alemães.
Ainda nas primeiras décadas do século XX no país, o uso de formas do passado para se
construir foi largamente utilizado nos projetos arquitetônicos e nas re-estruturações urbanas
sofridas por muitas das capitais, a exemplo da capital da república, Rio de Janeiro, com a
sua emblemática nova Avenida Central.
Naquele momento, o uso das formas do passado acompanhava o desenvolvimento de
novas técnicas de construção assim como a produção de novos materiais. Partidos e
ornamentos de diferentes épocas por vezes dividiam uma mesma fachada e estrutura, através
das experimentações de projetos encabeçados por arquitetos e engenheiros alinhados aos
desejos da clientela urbana dos comerciantes e industriais, e em sintonia com as feições das
capitais européias. Era o momento da arquitetura chamada posteriormente de eclética
(Fabris, 1993).
Durante as primeiras décadas de República, a Igreja católica no Brasil, representada
por suas dioceses e paróquias, também não ficara alheia às transformações percebidas pela
cultura arquitetônica. O fim do regime do Padroado, vigente até fins do Império, que
limitava as ações e mesmo um anseio de expansão por parte da Igreja no Brasil do século
XIX, e a separação desta instituição da tutela do Estado republicano, possibilitou que as
dioceses não apenas firmassem maiores laços diretamente com Roma, como também
propiciou uma maior liberdade nas suas jurisdições no território brasileiro, aumentando-se o
número de dioceses e a conseqüente construção de novas catedrais e igrejas paroquiais.
Neste caso, as referências de formas arquitetônicas para as novas edificações, ou mesmo
para as reformas de estruturas já existentes, não seriam mais as do barroco e rococó
lusitanos.
Esse novo rearranjo institucional das dioceses brasileiras nos primeiros momentos de
República, marcado não apenas por um movimento de romanização da Igreja no Brasil, mas
também de sua aproximação junto às esferas do poder republicano, ficou conhecido na
historiografia como neocristandade (Azzi, 1994; Miceli, 1985). O termo faz uma referência
ao sistema de Cristandade, que vigorou na época do Antigo Regime europeu, quando Estado
e Igreja governavam em consonância. A proposta da neocristandade não seria buscar um

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retorno a essa união, mas fazer valer os interesses da Igreja Católica junto à nova estrutura
de poder republicano no Brasil.
As dioceses, junto a seus intelectuais leigos ou religiosos, posicionaram-se em
atuações inspiradas por movimentos de restauração católica europeus experimentados no
século XIX, em países como França e Alemanha. A ordem era salvaguardar o catolicismo da
proliferação de ideias em torno do racionalismo, do socialismo, das instituições maçônicas,
o avanço protestante e a laicização do Estado. Buscava-se uma uniformização do
catolicismo, de seus cultos e práticas, no sentido de combater regionalismos e tendências
populares.
As encíclicas papais daquele momento prezavam pela unidade da Igreja e pela
expansão de uma civilização cristã no mundo, ancorada principalmente na tradição e história
da instituição no continente europeu. Os projetos eram por uma ação católica de catequese a
acompanhar projetos tomados como civilizatórios. No Brasil, as dioceses sofreriam um
processo de europeização, desencadeado, sobretudo pelo aumento na vinda de religiosos
italianos, franceses e alemães, e suas ideias e propostas estéticas européias. Na
neocristandade, a filosofia tomista, os ritos litúrgicos e as formas artísticas do medievo como
o gótico, o românico e o bizantino se colocaram como principal referência diante do peso
que então representavam na história da instituição católica. É quando a Igreja também
abraçou os revivalismos arquitetônicos, com um destaque para a arquitetura neogótica.
Na cultura arquitetônica do Brasil das primeiras décadas do século XX, não apenas o
campo acadêmico e as dioceses europeizadas apresentavam uma circulação das ideias dos
revivalismos europeus na arquitetura e debates por outras soluções e práticas construtivas de
catedrais e paróquias. Também as narrativas escritas por arquitetos, críticos de arte,
connoisseurs, literatos e intelectuais católicos, presentes nos periódicos ilustrados e nas
revistas católicas, contribuíram para uma difusão das representações em torno das
arquiteturas revivalistas, a possibilitarem conseqüentes práticas para construções e reformas
de igrejas no país.
As chamadas revistas ilustradas eram periódicos produzidos principalmente na
capital Rio de Janeiro, com larga circulação nas capitais das províncias e centros urbanos
regionais. Traziam em seu conteúdo, temáticas como moda, literatura, esportes, crônicas de
viagens, festas e vida social, arte e arquitetura, então sintonizadas com as tendências e
práticas européias. A proposta era de formar entre a população letrada do país uma cultura
firmada em hábitos europeus, tomados aqui como representativos de uma sociedade
civilizada.

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Com relação ao tema de arquitetura, as revistas se predispunham à formação de uma


nova cultura arquitetônica nas cidades (e consequentemente nas igrejas), desvinculando-as
de seu passado colonial lusitano, considerado atrasado e insalubre. A ordem era requalificar
as cidades tomando por modelos capitais como Paris, Londres e Viena, além das
representações dos revivals arquitetônicos tecidas desde o século XIX por críticos de arte,
literatos e arquitetos europeus. O cosmopolitismo, portanto, deveria vencer o vernacular, o
regional, o colonial.
Já as revistas católicas, que se tornaram uma espécie de voz da neocristandade
brasileira a reunir textos e manifestos dos intelectuais católicos, também apresentavam
artigos que debatiam as produções culturais católicas, incluindo-se aí a arquitetura das
igrejas e quais seriam as melhores formas e soluções a serem adotadas, fazendo com que a
construção estivesse em conformidade com as práticas litúrgicas.
Os textos que versavam sobre arte e arquitetura, presentes nas revistas ilustradas e
nas revistas católicas, traziam em seu conteúdo representações literárias em torno das
arquiteturas revivalistas (tecidas por uma tradição historicista europeia firmada no século
XIX), apresentavam debates estéticos acerca das questões do Belo na arte e das relações
entre arte, natureza e sociedade, além da problemática da funcionalidade na arquitetura
(apontando as relações entre forma e função). No caso dos textos sobre arquitetura religiosa,
o tópico da liturgia e das necessidades funcionais das igrejas também eram postos em
discussão.
O objetivo deste trabalho, portanto, é problematizar historicamente as narrativas de
artistas e intelectuais católicos presentes nas revistas ilustradas e católicas das primeiras
décadas da República, a respeito da arquitetura e arte religiosa. A estruturação desses textos
trazia não apenas representações constituídas sobre as arquiteturas historicistas européias,
como também estimulava debates entre os intelectuais na busca de soluções para novas
práticas arquitetônicas religiosas nas perspectivas da neocristandade brasileira.
Para tanto, foram analisados artigos nas revistas ilustradas Fon-Fon! e Illustração
Brasileira, redigidos pelo literato Gustavo Barroso durante o início da década de 1920, dois
textos na revista católica A Ordem de autoria do Monsenhor Joaquim Nabuco, e outro
presente na revista Vozes de Petrópolis escrito pelo artista plástico Carlos Oswald, esses
últimos produzidos na década de 1930.
Os artigos foram problematizados numa perspectiva da história cultural tomando por
base a ideia de história das representações do historiador francês Roger Chartier (1988). As
narrativas desses textos, percebidas como uma construção de representações sobre as

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arquiteturas revivalistas religiosas (com destaque para o neogótico), também foram


inspiradas pelas leituras que esses intelectuais fizeram de representações gestadas por
arquitetos, críticos de arte, filósofos e religiosos europeus que vinham pensando o passado
nas formas arquitetônicas ao longo do século XIX. Buscou-se também nesta presente
pesquisa evidenciar essas leituras feitas pelos intelectuais católicos brasileiros e como as
mesmas proporcionaram outros debates por uma nova cultura arquitetônica religiosa.
Cabe delimitar também o campo de formação e de atuação desses intelectuais, que
além de terem uma filiação religiosa comum, o catolicismo, pertenciam às camadas
privilegiadas da sociedade, tornando-se influentes formadores de opinião no início da
República. Além disso, apesar de escreverem sobre arte e arquitetura, as formações destes
literatos e críticos se davam nos campos do direito, medicina e engenharia. O campo de
formação de um crítico ou teórico específico de arte ainda era uma realidade distante no
Brasil.
As narrativas e práticas desses intelectuais se misturavam entre atividades literárias e
científicas, que por vezes tocavam a carreira política, possibilitando um maior sentido de
práxis dessa intelligentsia em formação que buscava compreender e construir uma
identidade nacional no alvorecer republicano. (Sevcenko, 1985). Uma dessas figuras de
destaque foi o cearense Gustavo Barroso (1888-1957).

ARQUITETURA RELIGIOSA NAS REVISTAS ILUSTRADAS – PASSADO E


TRADIÇÃO NAS IMPRESSÕES ROMÂNTICAS DO LITERATO GUSTAVO
BARROSO

Gustavo Barroso foi uma dessas vozes do início do século XX no Brasil que se
debruçou sobre questões por uma identidade nacional. Advogado de formação foi deputado
federal pelo Ceará entre os anos de 1915 a 1917 tendo estabelecido uma rede de contatos
com figuras influentes da época, a exemplo do então senador Epitácio Pessoa que viria ser
presidente da República em 1919. Foi durante a gestão de Pessoa que Barroso assumiu a
direção do Museu Histórico Nacional, criado em 1922.
O passado seria um elemento presente nas obras de Barroso, apresentado como um
importante fator civilizatório ao mesmo tempo em que se colocava como um guardião das
tradições e autoridades de instituições como a Igreja Católica. Essa ambigüidade entre uma
defesa por ideais de tradição com vias a uma modernização de teor mais conservador e sem
ameaçar a ordem e autoridade das esferas de poder marcou boa parte dos intelectuais nos

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primeiros anos da República, sobretudo aqueles que possuíam simpatias ou filiações às


ideias integralistas, como era o caso do próprio Gustavo Barroso.
Porque não o temos, ainda, precisamos crear o culto de nossas tradições (...) Sem a
lição do passado e a lição dos feitos antigos, não pode haver nacionalidade. Amar
a história é amar a terra (...) incutindo em todos os brasileiros a religião do
passado, que é a alma mesma da pátria. (Barroso, 1940, p.49)

Ao mesmo tempo em que buscava definir um autêntico personagem brasileiro,


esperado na figura do indivíduo sertanejo, Barroso se valia da ótica eurocêntrica do sentido
de civilização e das teorias do pensamento romântico, colocando-se mais uma vez ambíguo
entre a busca por uma identidade nacional, porém pautada em modelos europeus de
civilização que deveriam preservar valores republicanos e nacionais, mas, sobretudo da
tradição e do passado cristãos. Pode-se perceber nesse conjunto uma afinidade das ideias
deste literato para com os preceitos de tradição e ordem da neocristandade brasileira, por
exemplo, quando ao escrever sobre arte e arquitetura religiosa, Barroso se colocaria
consonante com os conservadores das dioceses.
As ideias de Barroso encontram também uma relação com o pensamento romântico
europeu dos séculos XVIII e XIX, em figuras como o literato Victor Hugo, o crítico de arte
John Ruskin e o filósofo François-René Chateaubriand. Este último com destaque para a sua
obra Génie Du Christianisme em que se vislumbra o cristianismo como uma força
propulsora para as artes e arquitetura no mundo ocidental, tendo possibilitado a criação de
obras de arquitetura consideradas como ideais num sentido estético do Belo. (1802, p.381).
Com relação a John Ruskin, Barroso se inspirará nas análises do crítico de arte com
relação à figura do artesão dos tempos do medievo considerado um sujeito cristão e
moralmente mais sincero em seu trabalho manual dos ornamentos e técnicas construtivas do
que a produção em série e a desumanização ocasionada pelas máquinas nas sociedades
industriais do século XIX. (Ruskin, 1853). O literato brasileiro enxergará no indivíduo
medieval o personagem do sertanejo, aquele a ser tomado como sujeito mais autêntico de
um passado nacional no Brasil.
Barroso, portanto, estava afinado com os românticos europeus e a valorização destes
para com o passado, principalmente o que se situava em tempos medievais. Conhecia e
admirava a literatura do medievo, a poesia popular, as tradições orais e a arte e arquitetura
gótica. Trazendo às realidades brasileiras, poderia considerar o próprio passado institucional
da Igreja Católica, pautado em referências no medievo, tempos onde a Cristandade melhor
se desenvolveu.

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Situando-se como um admirador e propagador da arquitetura gótica, Gustavo


Barroso escreve sobre a temática para algumas revistas ilustradas na década de 1920. Na
revista de variedades FonFon!, na qual fora um dos fundadores, assina artigos do gênero sob
o pseudônimo de João do Norte. Na crônica de suas viagens pelos Estados Unidos intitulada
de Norte Americanas, Barroso expressa desconforto no uso de formas do gótico para
construções modernas de caráter não religioso. Traz como exemplo o recém construído
edifício Woolworth Building localizado em Manhattan, New York. Para ele tratava-se de
“uma perversão de gosto porque o gótico foi feito para exprimir o sentimento geral e
profundo duma época religiosa, não para enfeitar os arranha-céus dum tempo comercial e
materialista”. (Barroso, 1919).
Noutro artigo da mesma revista, publicado em junho de 1919, Barroso apresenta
outra crônica, agora de suas viagens pela França intitulado de Parisianas. Ao visitar a
Catedral de Notre Dame de Paris, o autor parece sintonizado com as representações do
gótico construídas desde o século XIX, nas tintas de autores como Chateaubriand e John
Ruskin:
Toda aquela renda de pedra é uma imitação completa de outras rendas de pedra
anteriores que por sua vez o foram das sombrias selvas de pinheiros do Norte, de
onde desceu o gothico, trazendo na forma dos brotos que grimpam pelas cimalhas
e pelas ogivas a impressão das formas dos gelos miúdos e pontudos, esquecidos no
rebordo das ramas, das florestas escandinavas. Em arte, o plágio é uma miséria,
mas a imitação ousada é uma glória, porque ella é a própria arte. (Barroso, 1919)

Barroso toma de empréstimo as análises estéticas dos autores românticos a respeito


das estruturas e ornamentos da arquitetura gótica, considerados como uma imitação direta da
natureza, portanto, da própria criação divina e assim, a ser moralmente aclamada. Trata-se
de uma forma de petrificação da natureza, que é selvagem, irregular e espontânea, diferente
da natureza ideal preconizada pela tradição clássico-renascentista. Abre-se, portanto,
propostas para outras reflexões sobre o belo na teoria da arte, e Gustavo Barroso se
predispõe a trazer essa discussão nos círculos letrados brasileiros.
Na Revista Illustração Brazileira, periódico de grande circulação nos círculos
culturais do país (vigente entre 1909 a 1958), aparece em 1921 um artigo de Barroso
intitulado A alma das catedrais. Formado ainda como um resultado de suas viagens na
França, o artigo propunha apresentar a importância religiosa presente nas arquiteturas da
catedrais européias do medievo. Entre fotografias de catedrais brasileiras e europeias, o
autor afirma ser a arquitetura gótica “uma expressão da religião de ― Christo, da Virgem,
da Esperança e da Fé” (Barroso, 1921) contrapondo-a à arquitetura do neoclássico

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considerada uma referência aos tempos das religiões da antiguidade greco-romana, e


portanto, pagã.
A Catedral dos tempos medievais é apresentada pelo autor como um espaço
materializado das relações de poder entre Igreja e Estado e a arquitetura gótica seria a arte a
coroar essas relações. As nove páginas do artigo de Barroso apresentam uma síntese das
representações tecidas sobre arquitetura gótica desde o século XIX na Europa. Encontram-se
referências no texto ao já citado John Ruskin e suas análises sobre a moral e o trabalho do
artesão cristão do medievo, além das imagens românticas de experiência cristã na arquitetura
gótica trazidas por Victor Hugo em seu romance Notre Dame de Paris e nos escritos
filosóficos de Chateaubriand. Por fim, não escapa a Barroso seu conhecimento sobre o
movimento arquitetônico do neogótico, ao fazer referência nos trabalhos do arquiteto francês
E. E. Viollet-Le-Duc, personagem importante na configuração de uma tendência
arqueológica e estrutural para a arquitetura neogótica no século XIX.

OS ESCRITOS SOBRE ARQUITETURA RELIGIOSA NAS REVISTAS


CATÓLICAS: ARTE A SERVIÇO DA RELIGIÃO

Enquanto nas revistas ilustradas literatos como Gustavo Barroso pensavam as


arquiteturas historicistas, com destaque para o gótico, sob aspectos de representações
literárias e de uma crítica de arte em sintonia com as representações européias; os
intelectuais católicos nas revistas católicas nas décadas de 1920 e 1930 tentavam debater
sobre arquitetura religiosa partindo de premissas teóricas na direção de uma prática, ou seja,
de possibilidades para a construção de novas igrejas e catedrais, levando em consideração
não apenas tópicos de estética, mas sobremaneira das funções litúrgicas de um espaço de
culto católico.
Construir ou reformar uma igreja naquele momento, portanto, deveria priorizar a
funcionalidade de um espaço construído, atentando-se aos usos e necessidades
contemporâneas tanto dos celebrantes dos rituais como de seus freqüentadores.
Constantemente, nas páginas da Revista A Ordem, por exemplo, apareciam ataques desses
intelectuais contra as arquiteturas historicistas/revivalistas, acusadas de serem anacrônicas e
de não corresponderem às necessidades do então século XX; uma crítica consonante com as
ideias modernistas já pensadas no campo da arquitetura naquele momento. Assim utilizar as
formas do passado era vista por esses críticos como um exercício de mera cópia de
ornamentos e estruturas presentes nos manuais de história da arquitetura, naquilo que o

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historiador modernista da arquitetura Nikolaus Pevsner chamou de “ortodoxia da imitação”


(Pevsner, 1970).
As críticas também recaiam sobre as formas e práticas ainda coloniais de se construir
nos interiores do Brasil, aos regionalismos e costumes populares que se amalgamavam junto
às normas e recomendações oficiais de Roma. Também nas preocupações da liturgia
católica, esses intelectuais observavam a importância dos profissionais envolvidos nos
projetos construtivos de conhecerem a tradição litúrgica e os significados das formas e
ornamentos que seriam utilizados, não sendo recomendada uma mera reprodução de formas
arquitetônicas esvaziadas de um sentido religioso.
Aparecem também nas páginas das revistas debates relacionados à figura do
arquiteto-artista, tomado como um gênio, ao mesmo tempo limitado e desafiado pelo peso
das tradições e cânones das escolas e das teorias da arquitetura. Propõe-se também uma
superação da dialética: intenção plástica versus questões de funcionalidade, quando o
arquiteto conseguiria harmonizar sua plasticidade às necessidades funcionais de uma
construção; um debate que também permearia o campo da arquitetura modernista durante
todo o seu período de expressão.
Mas a principal observância daqueles que escreveram sobre arquitetura religiosa nas
revistas católicas era o cuidado dos profissionais construtores com as razões religiosas-
espirituais, devendo estas se sobreporem às razões técnicas e estéticas dos projetos e
canteiros de obras. As recomendações de arquitetura que foram gestadas após importantes
concílios litúrgicos da Igreja como o Concílio de Trento (século XVI) e o Concílio Vaticano
I (século XIX), deveriam se tornar palavras e práticas de ordem. Ou como fora dito num
desses artigos das revistas: “Não existe a apreciação do gênio nem da originalidade artística
sem a significação representativa, cúltica” (Eckhardt, 1932).
Os dois artigos do Monsenhor Joaquim Nabuco de Araújo (1894-1967) presentes na
Revista A Ordem evidenciam bem essas questões tratadas acerca da arquitetura e do
construir de igrejas num período de neocristandade no Brasil. O primeiro artigo, datado do
segundo semestre de 1933, intitulado Um novo modo de construir igrejas no Brasil atenta
para uma uniformização dos cultos, dos ritos litúrgicos e dos ornamentos e técnicas de
construir, devendo as comunidades católicas livrar-se das referências populares e coloniais-
ibéricas. Numa crítica às construções populares, Nabuco dispara:

Pareceu-me também que já era tempo no Brasil de se sair do período semi-bárbaro


do nosso catholicismo popular de fogos, santos de carton Pierre, flores de papel e

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outras exterioridades vistosas e de mau gosto, que tanto distam das verdadeiras
normas do christianismo. (Nabuco, 1932)

Nabuco recomenda, antes de tudo uma escolha de elementos e partidos


arquitetônicos que valorizem a liturgia e estejam em conformidade com uma melhor
funcionalidade das celebrações dentro de uma igreja. Destaca a importância da verticalidade
na estrutura, a austeridade de ornamentos na nave e altar da igreja e a presença de altares que
reforcem determinados cultos adotados pela neocristandade e pelos movimentos católicos na
Europa como o Sagrado Coração de Jesus e a Imaculada Conceição. Em seu segundo artigo,
datado de 1942 intitulado Arquitetura religiosa, o religioso reforça a primazia da liturgia
frente às soluções estéticas e estruturais, acusa o excesso de ornamento e “anacronismos”
das formas historicistas e recomenda a compreensão do arquiteto acerca das leis canônicas
católicas.
Na Revista Vozes de Petrópolis, periódico que surgiu em torno do que se tornaria
posteriormente a Editora Vozes, um outro artigo do ano de 1933, dessa vez redigido por um
artista plástico, traria importantes discussões entre as relações de arte e religião. Tratava-se
de Carlos Oswald (1882-1971) artista conhecido por seus trabalhos de temáticas católicas,
ficando conhecido por seu desenho para a escultura do Cristo Redentor no Rio de Janeiro.
O texto de Oswald, intitulado Arte, religião e moral, se apresenta como um curioso
debate estético emergindo temas entre a experiência artística e a experiência religiosa. Nas
esteiras da filosofia cristã de Chateaubriand (1802), também enxerga o cristianismo como
um grande propulsor da arte e da figura do gênio-artista, sendo esta religião responsável pela
produção de grandes obras arquitetônicas na história do Ocidente. Para Oswald, a arte, por
imitar a natureza e esta se tratar de uma criação divina, faz com que o fazer artístico também
seja uma força do deus criador. O deus que irá inspirar o ser humano, sujeito que a partir da
teologia cristã passa a ser tomado como um indivíduo em suas particularidades, um ser com
alma, único e responsável por suas escolhas e ações em vida.

Acabou-se a escravidão dos cânones, a gélida harmonia das puras formas. Com o
advento do Christianismo, abre-se a liberdade ao artista para representar seu
pensamento com sinceridade, conforme seus meios, sua technica. (Oswald,
1933)

Não é coincidência a interpretação do indivíduo artista-gênio e cristão de Carlos


Oswald com a figura do artesão medieval cristão e livre dos escritos de John Ruskin (1853)
sobre o ornamento gótico. Em ambos, artesão e artista são antes de tudo cristãos, indivíduos

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com alma, livres e artisticamente inspirados pela força divina. Coloca-se aqui uma outra
perspectiva de interpretação artística que já vinha se desenrolando desde o século XVIII no
pensamento romântico e as definições de gênio e expressividade para além das tradições e
cânones artísticos (pautados no peso do classicismo). A reflexão de Oswald se coloca
também como uma reflexão estética.
As catedrais góticas da Idade Média aparecem como uma referência de arte
moralmente religiosa, e em seu texto Carlos Oswald evidencia o espírito de coletividade
cristã na construção dessas edificações. “Que differença com as cathedraes da Idade Média!
Ellas construídas por uma inteira sociedade, um povo de crentes, manifesta o caracter de
cada um dos indivíduos que tomaram parte na sua construção” (Oswald, 1933).
Entre a individualidade do sujeito e o espírito cristão presente na coletividade por um
projeto como a construção de uma igreja ou catedral, Oswald situou, assim como os outros
intelectuais já localizaram, a arte a serviço da religião, não apenas num sentido funcional e
litúrgico, mas antes de tudo espiritual, metafísico, como se o produzir arte (e arquitetura)
fossem primordialmente uma experiência eminentemente cristã.

CONCLUSÃO

O que se pode perceber na diversidade desses escritos e posicionamentos a respeito


da arquitetura religiosa nas primeiras décadas do século XX no Brasil é que não havia um
ponto pacífico entre arquitetos, críticos de arte e intelectuais católicos quanto às
representações e escolhas de formas e partidos para construções e reformas de igrejas.
Tratava-se de um momento em que as práticas da arquitetura historicista entravam em
conflito com um pensamento de arquitetura modernista em gestação, no entanto, até meados
do século muitas dioceses continuaram adotando as formas do passado, principalmente dos
tempos medievais, para compor suas igrejas e catedrais.
A arquitetura gótica, revista no movimento do neogótico, se colocou como uma
arquitetura símbolo da Cristandade, ou seja, referente a tempos de uma extensão de poder da
Igreja Católica. Dessa maneira, nas movimentações da neocristandade no Brasil republicano,
tais formas do medievo ancoradas na tradição católica acabaram por se tornar uma escolha
freqüente nas soluções arquitetônicas.
O fenômeno do neogótico na arquitetura religiosa no Brasil encontrou expressividade
na conjunção de forças oriundas das representações do gótico europeu que se faziam circular
no país pelas revistas ilustradas e pelos ambientes das academias, pelos rearranjos

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institucionais da Igreja Católica que vislumbrava no seu passado medieval as referências


teológicas, litúrgicas e artísticas, e nos posicionamentos das dioceses e intelectuais que
defendiam que a arte (e consequentemente a arquitetura) deveriam estar a serviço da religião
católica e de seus ideais e ofícios.
A proposta dessa pesquisa se colocou no sentido de pensar o fenômeno da arquitetura
na ótica de uma história das representações, para além de análises formais tomadas pelos
campos tradicionais da História da Arte e Arquitetura centrada em artistas e escolas. Pensou-
se aqui neste trabalho em relacionar o pensar e fazer arquitetônicos com diferentes agentes
envolvidos, as condições e limitações de pensamento e produção, além de evidenciar um
emaranhado de relações de cunho político e social trazidos nas narrativas de indivíduos que
se interessaram pela temática de arquitetura religiosa num momento em que a Igreja
Católica no Brasil sofria movimentações junto à sociedade e aos poderes políticos.

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MICELI, Sérgio. A Elite Eclesiástica brasileira: 1890-1930.Campinas: Unicamp, 1985.


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SEVCENKO, Nicolau. Literatura como Missão: Tensões sociais e criação cultural na
Primeira República. 2° edição. São Paulo: Brasiliense, 1985

RECIFE NÃO EXISTE: SENSIBILIDADE E POLÍTICA EM DELMO


MONTENEGRO
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Francisco Pedrosa de Andrade


Mestrando pelo departamento de história da UFPE – Universidade Federal de Pernambuco
francisco_pedrosa94@hotmail.com
Introdução

O pertencimento a uma comunidade é construído coletivamente. Discursos políticos


e sociais se mesclam a uma infinidade de emoções, estas últimas acentuando a coesão em
determinado grupo. Neste contexto a cidade do Recife se estabelece como um território com
forte senso de autonomia. Elementos como o passado holandês e a riqueza da cultura
popular são enaltecidos para dar uma atmosfera de autenticidade local. Dentro dessa
perspectiva as artes, em especial a literatura, tem forte papel como formadora de
determinadas imagens de uma identidade comum. Porém, antes de considerar esta como
algo estático, é imperativo pensá-la como um processo específico dentro do espaço e do
tempo. Neste sentido a história das sensibilidades literárias, e seus possíveis
questionamentos, seriam de suma importância para o estudioso da cultura.

Em nível de estabelecimento conceitual devemos desenvolver o que melhor


significaria essas identidades literárias. É preciso questionar o papel, comum de uma
determinada estética, que representa o escritor como gênio puro criador da arte. Este, em
uma perspectiva das teorias culturais, está imerso em um contexto mais amplo. Todo o
mundo das relações sociais interfere na sua produção escrita. Porém, devemos respeitar o
caráter singular dessa relação. Não podemos simplesmente considerar a arte como reflexo da
sociedade1. A criação é uma atividade que tem seu grau de independência. Podemos
entendê-la dentro de três aspectos. O primeiro seria o da convenção da linhagem. A
literatura se arquiteta dentro de um uso especial da língua, que se afastando do cotidiano, faz
com que determinadas convenções formais sejam desenvolvidas. O autor justamente se
conformaria ou transgrediria estas ordens especiais da língua. Neste sentido, não se poderia
pensar a literatura sem o seu passado. É perante os resquícios das práticas literárias que um
autor demarca sua obra. Por exemplo, pensar o romantismo sem seu embate com o
classicismo, uma disputa sobre ordens de linguagem, de uma determinada visão de mundo,

1
Uma boa discussão crítica sobre os limites de uma teoria reflexiva das artes, em todo seu desenvolvimento
histórico, pode ser lida nos trabalhos do sociólogo Raymond Williams principalmente em seu Marxismo e
Literatura.

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empobreceria as próprias inovações românticas. O segundo aspecto seria o das emoções.


Estas sendo constitutivas da atividade literárias não seriam simples antípodas da razão. Nem
tampouco consequências da fisiologia do corpo. As emoções são entendidas como entidades
complexas próximas da noção de julgamento2. Nesta reflexão, estas últimas, seria um
verdadeiro modo de interpretar o mundo, em que a experiência teria um papel fundamental.
O terceiro ponto seria o aparato conceitual. Desde uma vulgarização da estética kantiana se
estabeleceu a fruição artística como advinda de algo desnecessário. No decorrer do tempo
este fator se tornou de fato o caráter ontológico da arte. Esta estaria fadada a tratar do lúdico
e fictício – no sentido de irreal – da sociedade. Contra essa abordagem podemos bem
destacar que a literatura, ao invés de ser algo ligado à gratuidade, revela um regime de
verdade próprio. Juntando os dois pontos passados, poderemos afirmar que a escrita
estabelece na sociedade uma determinada interpretação que comungaria a linguagem e
emoção. Esta não se daria de modo sistemático como o regime de verdade filosófico ou
cientifico. Porém revelaria determinados aspectos da natureza humana, que outras análises
não poderiam suprir. Por exemplo, a experiência proposta em um Guerra e paz, de Tolstoi,
diria algo mais que um estudo de estatística e estratégia de um conflito bélico. O papel da
literatura como forma de dizibilidade da verdade, de conceitos que engajariam uma
determinada leitura de mundo, é fundamental. Esclarecendo, poderemos então colocar as
manifestações específicas da identidade literária no cerne da encruzilhada da linguagem,
emoções e conceituação. É nesse ímpeto que uma comunidade constrói sua interpretação
influenciada pela literatura. A história analisaria esse movimento. As imagens que a
literatura constrói do pertencimento de uma comunidade, ao contrário de algo arbitrário,
demonstra uma participação – como criadores e leitores – daqueles que a compõem.

Somando-se a concepção de identidade literária, e a colocando em uma análise mais


ampla, poderemos sublinhar a contribuição teórica de Jaques Rancière. Em seu conceito de
partilha do sensível é colocado as letras como participando de uma determinada organização

2
Na tese de Caroline Marim é desenvolvido uma grande discussão a respeito da emoção e seu papel na
determinação da ação. Neste trabalho utilizaremos sua leitura das teorias cognitivistas, que partindo das
emoções as colocam em um patamar que as afastam de uma passividade vulgar e aproximam, em sua
complexidade, do julgamento moral: “Assim, para Solomon, o conceito de intencionalidade captura uma
propriedade enganosa das emoções e também não podemos dizer que as emoções são meramente sentimentos,
mas são modos de ver, modos de indicar uma experiência de mundo. O conceito de intencionalidade sugere,
tanto algumas projeções ontológicas extravagantes, quanto o fato de que uma emoção e seu objeto são
fenômenos distintos, com uma conexão problemática entre eles. Solomon aponta que (2010, apud SOLOMON,
2003, p. 75) ‘It leads us to think of the object as na independent particular, when in fact it is virtually always
embedded in a large context – a world – in which it has the special meaning essential to that emotion’ ”

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da sensibilidade. Neste sentido, em sua leitura de Platão3, percebe que sua desconfiança com
a literatura, se advinha justamente que esta promulgaria uma nova ordem do sensível,
tirando os indivíduos, de seus papeis usuais. Por exemplo, seria o caso do artesão que ao
assistir uma tragédia emulasse uma possibilidade não contida em sua vida, em que a
imaginação o levasse a participar emocionalmente de algo que não deveria. Este sentido
amplo em que uma ordem do sensível é questionada, no qual a literatura estabelecesse um
dissenso, um descontrole da sensibilidade, é onde estaria o potencial político. Nestes termos
poderíamos pensar a manifestação das varias identidades literárias ao longo do tempo como
jogos de poder em que uma determinada ordem sensível é questionada em detrimento de
outra. As maneiras de dizer uma cidade na linguagem revelaria um determinado estado da
partilha do sensível, isto direcionando também um determinado estado da participação
política. Rancière ajudaria ainda a refletir sobre as transformações desta partilha do sensível,
como este dissenso se desenvolveria na sociedade ocidental, em suas varias etapas4.

Com base nessa abordagem tratada até agora tentaremos definir as identidades
literárias, em suas respectivas ordens de sensibilidade, dentro das transformações da
literatura feita em Recife. De antemão poderemos utilizar, de modo bastante peculiar, como
veremos, a sugestão de Antonio Candido: “Se fosse possível estabelecer uma lei de evolução
da nossa vida espiritual, poderíamos talvez dizer que toda ela se rege pela dialética do
localismo e do cosmopolitismo, manifestada pelos modos mais diversos” (CANDIDO, 2006.
P-117)5. Esta característica de uma dialética entre o particular e o universal, pensada por
Candido dentro da sociedade paulista pode, respeitando a singularidade, ser percebida em
nossa história literária. A angústia de permanecer autêntica, mesmo que utilizando os
arcabouços acadêmicos e artísticos vindos da Europa e dos Estados Unidos, revelaria uma
verdadeira maneira de constituir a identidade literária recifense. Isso estabelece, ao longo do

3
No seu livro A partilha do sensível Rancière define três regimes das artes. O primeiro que seria o
representado por Platão que chamaria o regime ético. O segundo que seria o inspirado em Aristóteles que seria
o regime representativo. E o terceiro que abarcaria o nosso tempo é intitulado de regime estético.
4
Será importante para este trabalho às duas maneiras, e suas variantes, que Rancière estabelece o dissenso
literário em seu livro As políticas da escrita. Uma delas seria quando a literatura vai atrás de um estado
original, onde a coisa e a linguagem, o representante e representado, seriam uma coisa só. Neste sentido,
amplamente influenciado por Hegel, a literatura se faz no movimento em busca de uma autenticidade original.
O segundo seria a desistência da busca por esse corpo além da linguagem e a aceitação de que não existe nada
que prescinda a ficção. Tudo é devedor do emaranhado, arbitrário e caótico, das narrativas voltadas para si
mesmas.
5
É interessante, que este problema dialético, que é também uma criação narrativa, está inserido na própria
trajetória de Candido. Este foi pertencente a umas das primeiras gerações de intelectuais da USP, na época em
que esta se estabeleceria como bastião modernizador das universidades brasileiras, com a presença de vários
professores estrangeiros. Candido aplicaria seus conhecimentos em sociologia, antropologia e filosofia
europeias na tentativa de formular um modo autêntico de estudar a realidade literária brasileira.

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tempo, várias ordens de sensibilidade, que se complementando e questionando, podem ser


percebidas na produção poética. Perceber isto como uma construção ficcional, a partir dos
poemas de Delmo Montenegro, será o tocante dessa pesquisa.

Ordens de sensibilidade: formações e rupturas

As primeiras manifestações da busca por uma autenticidade literária pernambucana,


algo que a colocaria de maneira singular dentro da produção da literatura global, podem ser
percebidas no movimento cultural da Escola do Recife no século XIX. Porém, é sobretudo
nas primeiras décadas do século XX que esta problemática alcançou seu mais alto grau de
sistematicidade. Em um Recife, com grande âmbito modernizador, no qual vários
mecanismos urbanos eram estalados, como a reforma do porto, que modificou o Bairro do
Recife, a luz elétrica, automóveis e a aviação sendo cada vez mais presentes, os costumes
vindos da Europa, uma nova moda feminina, inovadores hábitos noturnos e boêmios,
acabaram por estremecer o ambiente provincial da cidade. Interpretando este processo uma
geração de intelectuais se colocou perante essa voragem modernizadora. Existia a formação
regionalista ligada a Gilberto Freyre6 que era mais reativa a modernização da cidade e ao
modernismo literário, propunha construir uma síntese artística que levasse em conta a
tradição. Seria entre a cultura popular, considerada como a voz original e positiva de
Pernambuco, junto com alguns aspectos inovadores que consagraria essa corrente. Outra
estaria ligada a Joaquim Inojosa, que aceitando os aparatos técnicos do modernismo,
polemizava com os regionalistas. Uma terceira seria relacionada à Revista do Norte e a
Joaquim Cardozo, que planava entre a aceitação e admiração perante a modernidade. A
corrente freyriana foi a que teve mais força institucional e que estabeleceu, de melhor forma,
o primeiro momento da ordem sensível dialética. Nesta a cultura popular e suas
manifestações eram vistas como o elemento autêntico, que engajaria as emoções nativistas
da pernambucanidade, a qual as inovações deveriam dialogar. Em um poeta como Ascenso
Ferreira podemos ver umas das principais vozes desse movimento:

NOTURNO

Sozinho
nas ruas desertas
do velho Recife

6
Não podemos retirar dessa visão freyriana um apego ao paternalismo e uma certa nostalgia do passado
senhorial, porém a valorizações da agremiações populares vindas dessa ordem de sensibilidade pode ser
percebida até hoje na identidade literária pernambucana.

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que atrás do arruado


moderno ficou...
criança de novo
eu sinto que sou:

— Que diabo tu vieste fazer aqui, Ascenso?

O rio soturno,
tremendo de frio,
com os dentes batendo
nas pedras do cais,
tomado de susto
sem poder falar.
o rio tem coisas
para me contar:

— Corre senão o Pai-do-Poço te pega, condenado!

Das casas fechadas


e mal-assombradas
com as caras tisnadas
que o incêndio queimou
pelas janelas esburacadas
eu sinto, tremendo,
que um olho de fogo
medonho me olhou:

– Olha que o Papa-Figo te agarra, desgraçado!

Dos brutos guindastes


de vultos enormes
ainda maiores
nessa escuridão...
os braços de ferro,
pesados e longos,
parece quererem
suster-me no chão!

Ai! Eu tenho medo dos guindastes,


Por causa daquele bicão!

Sozinho, de noite,
nas ruas desertas
do velho Recife
que atrás do arruado
moderno ficou...
criança de novo
eu sinto que sou:

— Larga de ser vagabundo, Ascenso!

Esse poema que claramente mostra uma nostalgia, lembrando o posterior Evocação
do Recife de Manuel bandeira, apresenta como o passado da cultura popular é talhado pelo
Recife moderno que destrói seus sobrados. Os guindastes esfacelam os homens que
perderam a familiaridade com uma urbe que se transformava. A partir de fins da década de

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1940 um novo momento da ordem dialética começa a se configurar. O povo não é visto
simplesmente como esteio da tradição perante um presente violador. Porém, sim, um ente
fragilizado em sua situação de pobreza. O mesmo povo, com sua cultura criativa, é
destroçado pela miséria. A poesia demonstra esse estado calamitoso, com isso, fazendo
surgir emoções de indignação. As notações deixam de ser o povo como manjedoura da
cultura. O desagravo social começava a fazer parte da ordem sensível dialética. Em suas
primeiras irrupções podemos destacar os poemas sobre a tecelã, de Mauro Mota, ou a tríade
do rio de João Cabral de Mello Neto. Porém é sobretudo nos anos de 1950 e principalmente
no pré-golpe militar de 1964 que essa identidade alcança uma coesão. Os movimentos
políticos do campo, ligas camponesas, e da cidade, os governos de esquerda da Frente do
Recife, se alimentam a um campo cultural no qual o engajamento se torna um lugar latente.
Existe uma junção da política partidária da sensibilidade. Autores como Audálio Alves,
Olympio Bonald e Edilberto Coutinho fariam parte desse grupo. Neste trecho do poema
Guia prático da cidade do Recife de Carlos Pena, no qual a cidade é apresentada em um tom
irônico ressaltando suas feridas, podemos compreender essa atividade literária:

SUBÚRBIOS

Nos subúrbios coloridos


em que a cidade se estende,
em seus longos arredores,
onde, a cada instante nasce
uma rosa de papel,
caminham as tecelãs.
Restos de amor nos cabelos
que ocultam por ocultar,
levam a noite no ventre
e a madrugada no olhar
e em esqueletos da sombra,
onde a luz chega filtrada,
as tecelãs vão parar.
Adeus lembrança de amores,
adeus leve caminhar.
Agora resta somente
um desencanto sereno:
o gerente e as botinas,
magoando o silêncio pleno.

Mas, nos domingos mais claros,


as tecelãs se transformam
em puras rosas de sal
e oferecem os seus braços
à curva do litoral.
Nem se lembram mais do mangue,
podre, virgem, vegetal,
onde os homens são sem sonhos,
como qualquer mineral.

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Essa ordem sensível continuou fortíssima no período da ditadura militar. A geração


de 1965, mesmo criticando uma poesia panfletaria, utilizou amplamente das convenções de
linguagem de revolta e indignação. Neste sentido se voltavam com bastante ênfase contra a
ditadura. Alguns membros da antiga ordem sensível, como Gilberto Freyre, apoiaram o
regime, e neste momento o conflito entre essas duas interpretações tornaram-se mais
evidente7. Em livros como Nordestinados de Marcos Accioly é um bom exemplo. Porém, é
neste poema de Alberto da Cunha Melo8 que percebemos a tensão:

PARA OS MESTRES, COM DESRESPEITO

Dizem que meu povo


é alegre e pacífico.
Eu digo que meu povo
é uma grande força insultada.
Dizem que meu povo
aprendeu com as argilas
e os bons senhores de engenho
a conhecer seu lugar.
Eu digo que meu povo
deve ser respeitado
como qualquer ânsia desconhecida
da natureza.
Dizem que meu povo
não sabe escovar-se
nem escolher seu destino.
Eu digo que meu povo
é uma pedra inflamada
rolando e crescendo
do interior para o mar.

O recrudescimento da ordem sensível de crítica social, a partir dos anos de 1980,


sofre uma mutação. Escritores ligados ao movimento de escritores independentes não mais
utilizavam a identidade dialética. Em certo sentido se contrapunham a esta buscando uma
experiência urbana de marginalidade. Esta se daria, dentro dos limites específicos de cada
urbe, de maneira pretensamente universal. O artista marginalizado em Barcelona tem muito
em comum com o mesmo tipo em Nova York. O capitalismo urbano em processo de
globalização representava uma nova etapa de vivências compartilhadas. Os poetas
independentes, e posteriormente denominados como marginais, formulavam uma identidade
a contra luz da ordem dialética, seu caráter performático, com saraus nas ruas, e seus signos

7
Um momento da ordem dialética, de grande importância, é aquele representado pelo movimento armorial. A
ordem sensível aproxima, como nos anos de 1920, uma visão de positividade das raízes populares. E as
aproximam da cultura erudita europeia, tendo como foco a cultura medieval e moderna ibérica. Figuras como
Ariano Suassuna e Hermilo Borba Filho, que se relacionaram com as outras interpretações, inventaram essa
maneira singular de tratar o problema da identidade literária e artística.
8
Alberto da Cunha Melo, Jaci Bezerra e Eugênia de Menezes juntos com outros intelectuais nos anos de 1970
organizaram as Edições Piratas que publicavam livros alternativos na gráfica da Fundação Joaquim Nabuco.

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da cidade eram marcados por uma exclamação da violência. A grave crise econômica do
final dos anos de 1970 e durante a década de 1980 e a desilusão com o processo de abertura
política se tornou, nessa geração, uma junção do engajamento político com o pessimismo
individual. Autores como Raimundo de Moraes, Francisco Espinhara, Fátima Ferreira,
Eduardo Martins e Cida Pedrosa faziam parte dessa formação. Podemos perceber no poema
de Espinhara um bom exemplo dessa ordem sensível:

FANTOCHES

Os fantoches da Rua Sete


Seguem cegos na procissão.

A puta diurna da Palma


Traz uma venérea na alma
E uma cova diária na mão.

Da Ponte Velha a secular ferrugem


Reticente ao trajeto branco da nuvem
Come o estrado, o arco, o vergão.

Os poetas esquecidos no beco


Transam sangue a trago seco
Dormem como trapos sobre o chão.

Recife, musa, maldição


Cadela suja, traiçoeira
Seta certeira
Encantada cidade do cão.

Nos anos de 1990 percebemos uma nova fase da formulação dialética. Come víamos
tratando esta maneira de interpretar a identidade recifense, apesar de expressar uma longa
continuidade, muda de maneira substancial seus elementos. Com o Mangue Beat não seria
diferente. A imagem alegórica da antena enfiada da lama revela, com bastante potência, esta
tendência de articulação entre o local e o universal. Uma síntese entre a música pop e a
eletrônica com os ritmos locais, feito o maracatu e o coco, modificou profundamente as
maneiras de produzir música. Em suas letras, o urbanismo marginal, as desigualdades
sociais, são adicionadas as noções do povo com símbolo de revolta. Uma figura cara a
geração dos anos de 1950, Josué de Castro, volta a ser referência. A juventude citadina se
torna um tema recorrente. O movimento se caracteriza além da música se tornando uma
moda e comportamento. Bandas como Nação Zumbi e mundo livre s.a, no qual o líder Fred
Zero 4 escreveu o manifesto do movimento, se tornaram ícones. Nesta música escrita por

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Chico Science podemos perceber uma mescla do ritmo tradicional do maracatu com o rock,
em uma letra que narra uma passagem de violência urbana:

MARACATU DE TIRO CERTEIRO


(Urubuservando, a situação:
uma carraspana, na putrefação;
a lama chega até o meio da canela;
o mangue tá afundando e não nos dá mais trela!)
De tiro certeiro, é de tiro certeiro
Como bala que já cheira a sangue
Quando o gatilho é tão frio
Quanto quem tá na mira - o morto!
Eh, foi certeiro - Oh se foi
O sol é de aço, a bala escaldante
Tem gente que é como o barro
Que ao toque de uma se quebra
Outros não!
Ainda conseguem abrir os olhos
e no outro dia assistir tv
Mas comigo é certeiro meu irmão
Não encosta em mim que hoje eu não tô pra conversa
Seus olhos estão em brasa
Fumaçando! Fumaçando! Fumaçando!
Fumaçando! Fumaçando! Fumaçando! Fumaça!
Não saca a arma não - a arma não? a arma não! a arma não? a arma não!
Já ouvi, calma!!!
As balas já não mais atendem ao gatilho, já não mais atendem ao gatilho, (e) já não mais
atendem...
Por queêÊ é de tiro certeiro, é de tiro certeiro
Como bala que já cheira a sangue
Quando o gatilho é tão frio
Quanto quem tá na mira - o morto!
Eh, foi certeiro - Oh se foi
Ahhh...
Mas o sol é de aço, a bala escaldante
Tem gente que é como o barro
Que ao toque de uma se quebra
Outros não!
Ainda conseguem abrir os olhos
e no outro dia assistir tv (ha, ha!)
Mas comigo é certeiro meu irmão
Não encosta em mim que hoje eu não tô pra conversa
Seus olhos estão em brasa
Fumaçando! Fumaçando! Fumaçando!
Fumaçando! Fumaçando! Fumaçando! Fumaça!
Não saca a arma não - a arma não? a arma não! a arma não? a arma não!
Já ouvi, calma!!!
As balas já não mais atendem ao gatilho, já não mais atendem ao gatilho, (e) já não mais
atendem...
Seus olhos estão em brasa
Fumaçando! Fumaçando! Fumaça!
Ah, ah, ah, ah, ah, ah, Êêê....

Obviamente a identidade literária pernambucana, e as suas mais diversas ordens de


sensibilidade, não se resumem a lógica dialética. Podemos destacar a geração de 1945 e os

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trabalhos de um Paulo Bruscky ou Jomard Muniz de Brito como práticas literárias que se
concatenam com aspirações dos grandes centros ocidentais de arte, sem passar pela busca de
uma autenticidade local. Porém, em termos de uma longa duração, podemos dizer que estas
formulações da identidade pernambucana é a que de fato se instituiu. Muitas das políticas
culturais, como no carnaval, ainda hoje se baseiam nestas construções sensíveis. Aqueles
que a questionaram, antes de superá-la, destacando as bases de sua arquitetura histórica, na
verdade serviam com a contraposição que afirmava a regra. Não conseguiram fugir, de
maneira sistemática, dessas fortes ordens de sensibilidade. Estas que sempre em busca de
um corpo autêntico, da linguagem mais que a linguagem, para usar um termo de Rancière,
não conseguiram de fato identificá-las como um invenção. A identidade como uma ficção.

Uma nova ordem sensível, que na verdade questionaria toda a identidade literária
pernambucana até então, seria bem caracterizada pela poética de um Delmo Montenegro 9.
Este poeta com forte influência concretista e intenso ativismo literário na cidade se
caracterizaria como um outsider das gerações. Sua poética não poderia ser facilmente
definível em algum grupo local. No Prêmio Pernambuco de Literatura do ano de 2013 o
tema era sobre a cidade do Recife. Como polêmica Delmo lança um livro cujo titulo é
justamente: Recife, No Hay. Este escrito em sua forma-conteúdo encarna a imagem do
dissenso do que se esperaria das ordens sensíveis dialéticas. Na verdade se caracterizaria
pela proposta de uma nova ordem, a da ficcionalização absoluta. A literatura aceita como
palavras órfãs é expressa nos vários poemas. O Recife é então entendido como instigador de
invenções, mas fruto destas. Uma invenção criadora. Podemos ver esse ponto de vista a
partir do conflito do poema Hell’s Kitchen Park, um bairro nova-yorkino, no qual as
notações infernais se somam ao protagonista enquanto incógnita, “desafio linguístico”. A
saída é que “só resta a literatura”. Assim podemos ver o poeta enquanto prisioneiro da
ficção:

HELL’S KITCHEN PARK

Idiota
prisioneiro
do primeiro andar
amiguinho
de tarântulas
assim sou para você
– desafio linguístico –
escudo de Cortez?

9
Poeta, tradutor e ensaísta, Montenegro nasceu em Recife, em 1974. Publicou os livros Les Joueurs de Cartes
- Os Jogadores de Cartas (2003) e Ciao Cadáver (2005). Organizou, junto com Pietro Wagner, a antologia
Invenção Recife (em três volumes). Realizou a Mostra de Poesia Visual Brasileira (Pernambuco, 1994)

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cara anfitriã
carpideira
mãe e filha de Osíres
meu naco de algodão
congelou
meu dia de amanhã
não é mais
meu naco de algodão
mãe e filha
– onde estão os desafios? –
cara anfitriã
carpideira
Deus escreveu para mim:
“Papai Noel está morto”
assim foi meu dia
sei que estou me guardando para os helicópteros
e só
o resto é literatura

A narrativa que tem consciência de si mesma é presente em vários poemas. A


consciência dos estratos genealógicos, de seus limites, do passado pode ser percebida. A
cidade é compreendida como o lugar das letras. As gerações vão se sucedendo e construindo
a ficção da comunidade. Como um arqueólogo da linguagem identifica, com certa ironia, os
fósseis do que um dia já foi comunicação:

ARCHAEOLOGY OF ANCESTORS

os últimos freyreanos
deixaram
suas
pegadas no gelo

os últimos freyreanos
deixaram
parágrafos
de

inteligência

a câmara criogênica que guarda a cabeça de W.H.Auden

Outro sentido que pode ser analisado seria aquele que combate de maneira mais
direta a noção de autenticidade, da possibilidade da literatura de retornar a um estado
original. Várias línguas e referências de outras culturas são citadas nos textos. Vemos vasta
presença à tradição literária ocidental tanto quanto elementos das mais diversas religiões
como o budismo e hinduísmo. Na prática esse Ready Made cultural, criando um regime
poético de verdade próprio, questiona a própria natureza da identidade literária saturada dos
símbolos dialéticos da cultura popular. A exclamação da mistura é tratada neste poema que
remete as correspondências de Van Gogh e seu irmão:

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THEO REVISITED

Ah, Vicent,

como eu aprecio os dragões em copos de vidro


os cãozinhos de Mao
ficam tão belos entre as palmeiras
tão adequados
para deixar o meu New York Time umedecido
Thank you
meu hai-kai de Issa pequena flor flamejante
pela sua contribuição à Imprensa Americana
Bufallo Bill & A Camarilha dos Quatro agradecem
No meu pequeno Hades privativo em Acapulco
nos brincávamos
com o novo caderno perdido de Heidegger
meu Lhasa aprecia a estrela morta
de linotipos esquecidos

toda esta tropicália & aves-do-paraíso

Uma faceta que se relaciona mais diretamente a semântica dos textos é o realce a
determinados personagens e ambientes. Um lado esquecido de Recife, escamoteado pela
hagiografia das outras ordens sensíveis, tem uma centralidade na obra. O erotismo como um
todo, e especialmente a homossexualidade, são presente em poemas como o último dos rosa.
Existe ainda a reutilização da violência urbana. Porém esta não cabe mais à denúncia ou aos
relatos de uma experiência urbana marginalizada, feito nos Escritores Independentes ou no
Mangue Beat. A miséria do povo é também a da própria linguagem, como no poema a
seguir:

VIADUTO SANTA IFIGÊNIA

último jato de amor


sobre

flor morta

teus dentes explodidos de crack

querem me dizer
mas não dizem

teus poemas explodidos de crack

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querem me dizer
mas não dizem

Quando se coloca em questão determinadas ordens de sensibilidade, que também são


sistemas de partilha político, as dificuldades são evidentes. Julgar determinado engajamento
emocional presente na identidade literária de uma cidade como ficção, requer disposição
para o enfrentamento. Neste sentido a resistência poética, e por isso sensível, é logo também
política. Por uma nova partilha do sensível em que a invenção do pertencimento coletivo
seja a norma. Ícones, alguns conhecidos como poetas malditos, trágicos que questionaram o
status quo artístico, servem como parâmetro para aqueles que fazem da linguagem um
dissenso. A doença do corpo de Charles Baudelaire como a patologia da literatura ocidental.
Aceitar a loucura da letra, para usar conceito de Rancière, é uma maneira de insurgência:

A QUEDA DE BAUDELAIRE

Em Saint-Loup de Namur
ao lado
do pintor satanista Félicien Rops e do editor August
Pollet-Mallases
o poeta
caiu

pela primeira vez


a sífilis

não mais
no

estágio afásico

beija-lhe a fronte
a larva
de

Namur

arma-se o clitelo
Em Saint-Loup de Namur
Ao lado do pintor satanista Félicien Rops e do editor August
Pollet-Mallases
o poeta
caiu

pela segunda vez

queda-se o Adão
de

Namur

aos pés

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da
árvore tautológica

cai
o poeta
pela terceira vez

cai a Literatura Ocidental

quedam-se
os guizos

seus
mórbidos

frutos
da árvore da ciência

caem
os

epígonos

_______________ a fruta de Goya ________________

os Delacroix

infinitos

{insira-se aqui a resistência}

É uma tarefa difícil esgotar a possibilidade de análise do livro de Delmo


Montenegro. Destacamos alguns pontos considerados interessantes. Não é possível prever se
a composição de Montenegro se tornará, de fato, uma nova ordem sensível e habitará a
identidade literária da cidade. Porém, é um fato, e talvez seja isso que mais importe, que sua
poética traz questões instigantes para a vasta história das sensibilidades literárias de Recife.

Conclusão

Temos consciência das dificuldades metodológicas de estudar quase um século de


produção poética em quinze páginas. Obviamente existirão várias lacunas e as
generalizações são evidentes. Porém, levando em consideração o caráter ensaístico dessa
proposta, e não monográfico, poderemos intuir que uma abordagem macroscópica traz novas
questões que são impossíveis para os estudos de caso. Como, por exemplo, de entender de
modo abrangente, com tensões e continuidade, um largo movimento da história das

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sensibilidades literárias. De uma identidade literária. Este trabalho heterodoxo, com bases
filosóficas e históricas, tem por objetivo não estabelecer uma interpretação acabada, mas
sim, oferecer uma sugestão, uma pista, que possa contribuir para novos estudos.

Bibliografia

Bosi, Alfredo. História concisa da literatura brasileira. Editora Cultrix, 1994.


Candido, Antônio. Literatura e sociedade. Companhia das Letras, 2009.
Espinhara, Francisco. A poesia possível. Edições Claranã, 2017.

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AS COMEMORAÇÕES DO CENTENÁRIO DE PEREIRA DA COSTA: O(S)


HISTORIADOR(ES) E AS INSTÂNCIAS DE CONSAGRAÇÃO

Wagner Carlos da Silva


Doutorando PPGH-UFPE
e-mail: wag.carlos.silva@gmail.com

RESUMO:
Este trabalho buscará tratar sobre as comemorações do centenário de nascimento de
Francisco Augusto Pereira da Costa (1851-1923) que ocorreram em dezembro de 1951.
Identificamos que esse acontecimento mobilizou algumas das principais instâncias culturais
de Pernambuco daquele período. Nesse sentido, buscaremos visualizar como cada instância
e seus agentes se posicionaram durante as comemorações, priorizando os investimentos
aplicados na publicação do livro Anais Pernambucanos, de Pereira da Costa, que ocorreu
durante a semana comemorativa. A partir da priorização dessa obra historiográfica de
Pereira da Costa, procuraremos refletir sobre a sua consagração como historiador.
Palavras-chave: campo historiográfico pernambucano; Anais Pernambucanos; Pereira da
Costa.

1. A semana comemorativa do centenário de Pereira da Costa: as instâncias culturais e


os agentes
Inicialmente iremos tratar da semana comemorativa do centenário de nascimento
de Francisco Augusto Pereira da Costa (1851-1923) que durou sete dias, iniciando na
segunda, dia 10 de dezembro, e indo até o domingo, dia 16 de dezembro de 1951. Iremos
olhar para essa semana comemorativa tentando ver a partir dela aspectos do campo
historiográfico pernambucano da década de 1950. Nesse sentido, buscaremos visualizar
como cada instância cultural e seus agentes que participaram do evento se posicionaram
durante as comemorações.
A semana comemorativa teve a participação do Governo do Estado de
Pernambuco, com participação ativa do governador Agamenon Magalhães. A Secretaria de
Interior e Justiça e a Secretaria da Educação e Cultura foram as secretarias do governo que
mais participaram. A semana também contou com a participação de órgãos do governo
estadual, como o Arquivo o Público do Estado e do Museu do Estado de Pernambuco
(MEPE). Também houve a participação da Prefeitura da Cidade do Recife, da Assembleia
Legislativa, do Tribunal de Justiça, da Universidade do Recife, do Instituto Arqueológico,

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Histórico e Geográfico Pernambucano (IAHGP), do Liceu de Artes e Ofícios e da Academia


Pernambucana de Letras (APL).

O professor José Joaquim de Almeida, secretário do Interior e Justiça, foi o


presidente da Comissão Organizadora das Comemorações do Centenário de Pereira da
Costa. No início de dezembro aparece no jornal Diário de Pernambuco a transcrição de um
ofício assinado por Almeida. Nesse ofício ele faz solicitações direcionadas a determinadas
instâncias e agentes, recomendando que elas colaborem na semana comemorativa. Entre as
indicações do secretário, destacamos a orientação que afetou três instituições culturais, a
partir da proposta de uma sessão conjunta entre o IAHGP, o Liceu de Artes e Ofícios e a
Academia Pernambucana de Letras que deveria ocorrer na noite do dia 10 de dezembro1.
O curioso é que um dia antes desse ofício ser divulgado no Diário de
Pernambuco já tinha aparecido os comentários sobre a proposta do secretário J. J. Almeida
nos Semanais do Instituto Arqueológico2. Essa coluna informa que em reunião dos membros
do IAHGP, Valdemar de Oliveira, que na ocasião era presidente da APL, comunica que a
Comissão do Centenário de Pereira da Costa incluiu o Instituto no programa do centenário
numa sessão conjunta de conferências com mais duas agremiações, a APL e o Liceu. Na
reunião debateu-se sobre o local e os oradores. Após o debate os membros do Instituto
decidiram que o melhor local para a realização da sessão seria o salão do Liceu, apesar do
secretário J. J. Almeida indicar o salão do Instituto. Quanto ao orador, o presidente do
Instituto, Luiz Estevão, escolhe Aderbal Jurema para proferir um discurso representando o
IAHGP3.
No dia seguinte após a sessão conjunta, o Jornal Pequeno narra o acontecimento
que inicia a semana das comemorações do centenário de Pereira da Costa4. O evento ocorreu
no dia 10, às oito e meia da noite, no salão do Liceu de Artes e Ofícios, como foi decidido
em reunião entre os membros do Instituto. Na mesa tomaram assento: J. J. Almeida,
secretário de Interior e Justiça; Joaquim Amazonas, reitor da Universidade do Recife; Luiz
Estevão de Oliveira, presidente do IAHGP; Valdemar de Oliveira, presidente da APL,
Agripino de Barros Falcão presidente do Liceu e Carlos Pereira da Costa, em nome da

1
O centenário de Pereira da Costa. Diário de Pernambuco, Recife, 02 de dezembro de 1951.
2
As semanais do Instituto Arqueológico, 01 de dezembro de 1951. Jornal desconhecido, recorte de jornal
encontrado no Acervo Mário Melo do IAHGP.
3
Ainda nessa reunião foi decidido que Mário Melo inauguraria uma placa de bronze na casa em que nasceu
Pereira da Costa.
4
Centenário de Pereira da Costa, Jornal Pequeno, Recife, 11 de dezembro de 1951.

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família Pereira da Costa. Na ocasião discursaram: Humos Passos, pelo Liceu; Fernando
Mota, pela Academia e Aderbal Jurema, pelo Instituto.
Durante a semana ocorreram três palestras. A primeira aconteceu na noite da
quarta-feira, dia 12, no Gabinete Português de Leitura tendo como palestrante Gilberto
Osório de Andrade. A segunda palestra aconteceu no sábado, dia 15, no prédio do IAHGP e
teve como conferencista Hélio Viana, da Universidade do Brasil. A terceira palestra foi
proferida por Câmara Cascudo e aconteceu na noite de encerramento no Teatro de Santa
Isabel.
Durante a semana comemorativa também ocorreu uma sessão solene na
Assembleia Legislativa a pedido do deputado Nilo Pereira5. Em sessão da Assembleia do dia
03 de dezembro, quando Nilo Pereira solicita a participação dos deputados, ele destaca a
importância do evento e a necessidade da Assembleia colaborar na semana comemorativa:
Venho sugerir à mesa que, ouvido o plenário, faça realizar, no dia 14 do corrente,
uma sessão extraordinária dedicada à comemoração daquele acontecimento, que
será celebrado pelo Governo do Estado e pelas associações culturais. A
Assembleia Legislativa não pode deixar de prestar sua homenagem ao nome ilustre
do pesquisador, do cronista, do parlamentar, que é uma das mais legítimas glórias
de Pernambuco6.

Por meio desse discurso de Nilo percebemos que os deputados se sentem


pressionados a se mobilizarem e a participarem do evento em homenagem a Pereira da Costa
devido a presença do Governo do Estado e de algumas associações culturais que exerciam
força no cenário social e político pernambucano daquele período.

Durante a semana comemorativa também aconteceu duas exposições


relacionadas a Pereira da Costa. A primeira exposição foi aberta ao público na sexta-feira,
dia 14, no final da tarde no Arquivo Público. Essa exposição foi organizada por Jordão
Emerenciano, diretor do Arquivo. A outra exposição foi aberta no dia seguinte, também à
tarde, no Museu do Estado de Pernambuco, exibindo uma coleção etnográfica reunida por
Carlos Estevão. Nas duas exposições estavam presentes o governador e seus secretários de
Educação e Cultura e de Interior e Justiça.

A Prefeitura da Cidade do Recife empenhada em divulgar para a população


informações sobre a vida e a obra de Pereira da Costa promoveu em parceria com as
emissoras de rádios locais um programa de palestras radiofônicas que foram dirigidas pela

5
Essa sessão solene aconteceu no dia 14 e teve como orador o dep. Andrade Lima Filho.
6
Na assembleia legislativa. Diário de Pernambuco, Recife, 04 de dezembro de 1951.

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Diretoria de Documentação e Cultura da Cidade do Recife. Diariamente, entre os dias 10 a


16 de dezembro, a Rádio Jornal, a Rádio Clube e a Rádio Tamandaré ofereceram aos
ouvintes dados sobre Pereira da Costa por meio das falas de diversos intelectuais que
atuavam na cidade, como: Hilton Sette, Mauro Mota e Amaro Quintas.

Como veremos mais adiante, foi a publicação do livro de Pereira da Costa, Anais
Pernambucanos, o momento mais significativo para os envolvidos na semana
comemorativa. No dia da inauguração da exposição do Arquivo Público, Jordão
Emerenciano entregou um exemplar do primeiro volume dos Anais Pernambucanos ao
governador, ao presidente da comissão do evento e ao neto de Pereira da Costa.

Percebemos que quem recebe o mérito pela publicação do livro é principalmente


o governador que deu condições materiais para a realização da impressão, mas também a
figura de Jordão Emerenciano que se dedicou em concretizar a tarefa. Em discurso, logo
após o governador receber o primeiro volume do Anais Pernambucanos, Agamenon enfatiza
a importância de Jordão Emerenciano na semana comemorativa e sua enorme contribuição
aos estudos sobre a história de Pernambuco. O Diário de Pernambuco expõe os elogios que
Agamenon direciona ao diretor do Arquivo:

O governador do Estado, em seu discurso, fez lisonjeiras referências à atuação do


escritor Jordão Emerenciano, à frente do Arquivo Público. Salientou o quanto o
diretor daquele serviço público contribuiu para a publicação dos Anais e a
dedicação com que vem divulgando materiais para a história de Pernambuco 7.

O historiador José Antônio Gonsalves de Mello também atribuiu o êxito da


semana comemorativa a iniciativa inteligente de Jordão Emerenciano por ele marcar o
centenário não apenas com medalhas e placas em paredes, mas também por publicar
trabalhos relevantes para a comunidade de pesquisadores8.

2. Anais Pernambucanos: a trajetória da publicação


Para os historiadores pernambucanos o acontecimento mais importante da
semana comemorativa foi a publicação dos Anais Pernambucanos, livro que Pereira da

7
Centenário de Pereira da Costa. Diário de Pernambuco, Recife, 15 de dezembro de 1951.
8
Diário de Pernambuco, Recife, 16 de dezembro de 1951.

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Costa começou a trabalhar na década de 1870 e lutou pela sua publicação desde o início do
século XX, mas só aparece publicado em 1951, 28 anos depois da sua morte. Devido ao seu
desejo de publicação das suas pesquisas, ele percorre um verdadeiro caminho de
dificuldades e sofrimentos até o fim da sua vida. No entanto, Pereira não caminhou sozinho,
vários personagens se empenharam na luta pela publicação e em 1951 encontraram uma
situação favorável para a materialização das suas vontades. É sobre esse esforço coletivo que
tentaremos tratar nesse tópico.

Em um texto escrito por Pereira em 20 de setembro de 1923 que é colocado


como prefácio do primeiro volume dos Anais Pernambucanos, ele explica um pouco da sua
trajetória como historiador para explicar sobre como produziu o seu livro e as vias que ele
buscou para publicar o seu trabalho. Inicialmente, Pereira tinha a intenção de publicar um
livro sobre os acontecimentos do passado de Pernambuco em formato de dicionário,
organizando o livro em ordem alfabética9. O livro se chamaria Dicionário histórico e
geográfico pernambucano e enquanto não conseguia publicar o seu trabalho completo, ele ia
divulgando partes, sempre colocando notas informando que o presente texto fazia parte do
livro Dicionário histórico e geográfico pernambucano, a publicar.10

No entanto, Pereira decide abandonar a publicação do Dicionário após a


publicação, em 1910, do Dicionário Corográfico e Histórico de Pernambuco de autoria de
Sebastião de Vasconcelos Galvão11. A atitude de Galvão de escrever e publicar o Dicionário
é lida por Pereira como um ataque desleal que o faz desistir de continuar de prosseguir na
confecção do seu Dicionário, argumentando que cedia o “campo ao feliz competidor, uma
vez que não nos era dado anteceder” (COSTA, 1951, p.7). Então, Pereira buscando construir
um trabalho original e, ao mesmo tempo, tentando se esquivar da acusação de plágio idealiza
a produção dos Anais Pernambucanos buscando agora organizar o seu trabalho numa ordem
cronológica.

Na ata da sessão da reunião do IAHGP do dia 23 de fevereiro de 1922, Mário


Melo argumenta que Pereira da Costa já tem pronto o livro Anais Pernambucanos e que

9
Destacamos que Pereira já havia publicado um livro em formato de dicionário. O livro se chama Dicionário
Biográfico de Pernambucanos Célebres, de 1882.
10
Pereira informou que o Dicionário histórico e geográfico pernambucano já estava bastante adiantado, nos
seus livros A ilha de Fernando de Noronha (1887) e Enciclopediana Brasileira (1889) e nas revistas do
Instituto Arqueológico e Geográfico Pernambucano: Nº 46 de 1894; Nº 53 de 1900; Nº54 de 1901.
11
Sebastião de Vasconcelos Galvão, assim como Pereira, era sócio do Instituto Arqueológico e Geográfico
Pernambucano e devido a publicação do seu Dicionário surge uma polêmica com Pereira que provocou uma
crise no Instituto. Ver: SOUZA, George Félix Cabral de. Instituto Arqueológico, Histórico e Geográfico
Pernambucano: breve história ilustrada. Recife: IAHGP, 2010.

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Pereira não conseguiu publicar por faltar recursos financeiros. Na ocasião Mário Melo diz
que “seria lamentável que o Dr. Pereira da Costa, no fim da vida, deixasse inédito o seu
principal trabalho a que se dedicou cinquenta anos de esforços”12. Continuando seu discurso,
Mário Melo propõe que o “Instituto se interesse perante o governo do estado, para promover
a publicação da referida obra”. A proposta de Mário Melo é aprovada e fica decidido que
três sócios do Instituto tratem do assunto com o governador do estado.

A Instituto fracassa não conseguindo convencer o governo do estado a publicar a


obra. Segundo Pereira, o governador nega o pedido argumentando dificuldades financeiras,
mas Pereira não aceita o argumento destacando que o governo havia a pouco tempo
recompensado Mário Rodrigues com 12 contos por escrever uma memória comemorativa.
Após a recusa do governador, a Assembleia Legislativa do estado se posiciona em favor de
Pereira e no dia 09 de março de 1922 um projeto de lei é aprovado exigindo que “com a
possível brevidade, em comemoração do centenário da independência, fazer por conta do
estado uma edição de 1.000 exemplares da obra de autoria do dr. Francisco Augusto Pereira
da Costa: Anais Pernambucanos”13.

Apesar da criação da lei, os Anais Pernambucanos não consegue ser publicado


nesse ano. Pereira da Costa demonstra insatisfação pelo modo como o governador o trata.
De acordo com Pereira, após a lei ser aprovada o governador lhe comunica que lhe pagará
10 contos, mas Pereira não aceita pois na lei é decretado que Pereira deverá receber 15
contos. Assim, ele conclui que deve esperar por um momento político mais favorável para a
publicação da sua obra, que para ele “não é uma simples memória, sobre um dado e limitado
assunto, mas uma obra vultosa, concretizando a belíssima história do nosso altivo e glorioso
estado” (COSTA, 1951, p.14 e 15).

Pereira ainda argumenta que a tipografia na Casa de Detenção onde o governo


mandou realizar a impressão do seu livro não era de boa qualidade frustrando-o por
completo. No ano seguinte, no mês de novembro, Pereira falece sem que seu principal
trabalho fosse publicado. Após a sua morte o IAHGP promove uma sessão em sua memória
e mais uma vez aparece um discurso que se empenha em valorizar o livro Anais
Pernambucanos. Mário Melo lança algumas propostas para homenagear Pereira e uma das
propostas se referia a publicação dos Anais Pernambucanos, estabelecendo “que envide

12
Revista do IAHGP. Vol. 30, Recife, 1930, p.330.
13
Esta lei estadual de 1922 aparece no prólogo do livro de Pereira. Ver: COSTA, F. A. Pereira da. Anais
Pernambucanos (1493 – 1590). Volume I. Recife: Arquivo Público Estadual, 1951. P.12

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todos os esforços junto ao governo do estado para a publicação dos Anais Pernambucanos,
cujos originais foram adquiridos para este fim, em virtude de autorização legislativa”14.

A proposta de Mário foi aprovada, mas o Instituto novamente não conseguiu


fazer avançar a publicação. No entanto, enquanto isso eles iam utilizando recursos próprios
para fazer divulgar os trabalhos de Pereira. Na revista do Instituto que foi impressa em 1934
é publicado um trecho dos Anais Pernambucanos. Antes de começar o texto de Pereira da
Costa há uma explicação sobre a decisão dos editores da revista em publicar os Anais de
Pereira. Inicialmente eles lamentam que ainda seja inédito o principal trabalho de Pereira, o
“saudoso consócio benemérito” do Instituto, a qual ele se dedicou a maior parte de sua vida.
Eles também destacam o fracasso do Instituto em publicar o livro de Pereira, no qual “desde
o seu falecimento, há mais de dez anos, vem o Instituto tentando a publicação da grandiosa
obra de tanto mérito para Pernambuco”15. Apesar do empenho do Instituto durante a década
de 1930, os resultados foram inúteis.

O Instituto só consegue ter acesso a um pedaço dos manuscritos de Pereira para


colocar na revista do IAHGP. O trecho recuperado que eles colocam na revista ocupa 140
páginas e se refere ao primeiro século de colonização16. É uma transcrição de um material
que Pereira publicou na Revista de Pernambuco. Para os membros do Instituto os originais
encontram-se perdido, pois não se encontrava nem na Secretaria da Justiça e nem na
Biblioteca pública. Para eles, esses eram os locais onde Pereira deveria ter deixado devido a
premiação recebida pelo governo estadual em 1922.

No entanto, quando os Anais Pernambucanos é publicado em 1951 é colocado


um prefácio escrito por Pereira da Costa dois meses antes de falecer em que ele comenta o
caso da não publicação do seu livro em 1922 e o destino do seu manuscrito. De acordo com
a lei estadual 1483 de 15 de abril de 1922, Pereira deveria entregar o seu manuscrito
completo para impressão para recebimento do seu prêmio de quinze contos de réis. Mas,
segundo Pereira, ele desistiu da impressão do seu trabalho porque considerou a tipografia
com um péssimo material, denunciando a mal vontade do governador.

Em face de tais ocorrências, retiramos, contrariadamente, da tipografia para a


nossa guarda, o original daquele primeiro volume dos Anais, que tínhamos
entregue para impressão, e assim ficamos esperando por uma solução oficial
qualquer sobre semelhante impressão, que aliás em face do artigo primeiro da Lei

14
Revista do IAHGP. Vol. 30, Recife, 1930, p.370.
15
Revista do IAHGP. Vol. 32, Recife, 1934, p.89.
16
Na revista seguinte eles colocam mais 110 páginas continuando o Anais Pernambucanos.

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n. 1483 de 1922, imperativamente, incumbe ao Governo do Estado a vulgarização


da obra (COSTA, 1951, p.16)

A divulgação da obra de Pereira só será realizada no ano de 1951 pelo governo


de Agamenon Magalhães. No relatório anual do Instituto relativo ao ano de 1951, os
membros do Instituto comemoram a publicação do livro e o compromisso de Agamenon
Magalhães com a intelectualidade pernambucana:

Passaram-se vinte e oito anos de tentativas, sendo o assunto tratado ora no


Congresso Nacional, ora na Assembleia do Estado, até que, em cumprimento
duma sugestão do Instituto ao governador Agamenon Magalhães, para tomar o
estado a iniciativa de comemoração condigna a quem tanto dera espiritualmente a
Pernambuco, foram dadas as providências necessárias, e, na semana da
solenização, distribuído o primeiro volume dos Anais. 17

No Diário de Pernambuco também é destacado o comprometimento de


Agamenon com os historiadores pernambucanos, valorizando o ato do governador em
“divulgar e difundir obras que interessam a coletividade: e editando-o, realiza uma tarefa
reclamada pela própria tradição das letras históricas pernambucanas”.18

Imediatamente após o falecimento de Pereira o Diário de Pernambuco demonstra


a decepção dos historiadores pernambucanos por os Anais pernambucanos ainda não ter sido
publicado. Percebemos que a publicação teria um efeito de satisfazer a necessidade coletiva
devido ao trabalho de Pereira ser entendido como obra de grande valor científico e patriótico
e também serviria para a intelectualidade retribuir pelo seu paciente trabalho dedicado a
história de Pernambuco:

A publicação desse monumental trabalho, sob a direção de pessoas competentes,


uma vez que já está desaparecido o autor, constituiria o maior preito de veneração
de Pernambuco a esse grande espírito que ontem deixou de existir. 19

Na semana comemorativa é apenas publicado o primeiro volume dos Anais


Pernambucanos. Nos anos seguintes são publicados os próximos volumes indo até o décimo
volume que foi publicado em 1966. Cada volume tem em média 500 páginas e essa grande
quantidade de páginas talvez foi um dos fatores que dificultaram a impressão dos Anais de
Pereira anteriormente. Os volumes estão divididos por períodos seguindo uma ordem
cronológica que começa em 1493 e vai até 1850. O primeiro volume tem 629 páginas e
expõe os fatos relativos ao passado de Pernambuco, ano a ano, entre 1493 a 1590.

17
Revista do IAHGP. Vol. 43, Recife, 1950-1953, p.473.
18
Diário de Pernambuco, Recife, 16 de dezembro de 1951
19
Diário de Pernambuco, Recife, 22 de novembro de 1923

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Apesar da publicação ocorrer décadas depois da composição da obra,


entendemos que ela está em sintonia com o período em que foi publicada. Instituições
políticas e culturais se mobilizaram para realizar a publicação, quase uma unanimidade a
favor do nome de Pereira. Parece que aquela geração de 1950 queria uma história geral de
Pernambuco, um retrato de corpo inteiro que exibisse as principais marcas da personalidade
pernambucana. O Diário de Pernambuco se referindo as comemorações do centenário de
Pereira enfatiza na atualidade da sua obra e diz que a “tradição não quer dizer que os vivos
estão mortos, mas que os mortos estão vivos”20. Esse mesmo jornal noticiando a morte de
Pereira, afirma que ele “era a tradição viva da nossa história e que amou como nenhum
outro, a sua terra natal”21

3. O mestre de nós todos: a imagem social de Pereira da Costa


Este último tópico do nosso trabalho buscará se aproximar de Pereira da Costa,
tentando compreender a construção coletiva da sua imagem por meio da imprensa local e da
revista do IAHGP como também por meio da sua própria fala. Também buscaremos
entender como a sua imagem chegou até a geração de historiadores da década de 1950.
Destacamos que os discursos que encontramos tem uma conotação positiva sobre Pereira e
esses discursos vem de instituições que ele teve uma atuação ativa durante décadas da sua
vida.

Pereira da Costa nasceu no dia 16 de dezembro de 1851, no bairro de Santo


Antônio, localizado no centro do Recife. Aos 16 anos começa a trabalhar como caixeiro em
uma livraria e permanece por 4 anos. Em seguida, em 1871, torna-se funcionário público
pelo governo do estado. Cinco anos depois ingressa no Instituto Arqueológico e Geográfico
Pernambucano. Tardiamente inicia o curso na Faculdade de Direito do Recife, recebendo o
diploma aos 40 anos, quando já era casado e com filhos.

No início do século XX, Pereira era membro de diversas instituições culturais,


tais como: Academia Pernambucana de Letras, Instituto Arqueológico e Geográfico
Pernambucano, Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, Instituto Varnhagen, Sociedade
de Geografia do Rio de Janeiro e de Lisboa. Conciliou as suas pesquisas e participações
nessas instituições com o ofício de jornalista, escrevendo por mais de 50 anos no Diário de

20
Diário de Pernambuco, Recife, 19 de dezembro de 1951
21
Diário de Pernambuco, Recife, 22 de novembro de 1923

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Pernambuco. Também exerceu o cargo de deputado estadual, sendo eleito pela primeira vez
em 1901.

Os jornais comentando a sua trajetória sempre destacam a difícil situação


financeira que passou Pereira. O Diário de Pernambuco coloca a transcrição do discurso do
deputado Otávio Tavares no enterro de Pereira e antes de fechar a catacumba Otávio define
Pereira como um homem pobre e sem prestígio político22. O próprio Pereira admitia que
vivia apenas com a sua pequena aposentadoria nos últimos anos da sua vida. Apesar dele
obter reconhecimento como historiador, ele não conseguiu obter benefícios financeiros e
essa situação era considerada uma contradição:

Tendo ultrapassado os setenta anos de idade sem haver adquirido um pouso para
descanso, Pereira da Costa dizia aos íntimos, referindo-se a uma rua com o seu
nome: ‘tenho uma rua e não tenho uma casa’23

Pereira da Costa exterioriza um ressentimento por entender que o seu trabalho


possuía uma relevância intelectual e social, mas não recebia a devida recompensa financeira.
Para muitos, os Anais Pernambucanos significava 50 anos de esforço que visava o
engrandecimento de Pernambuco24. Pereira da Costa também se via como um apaixonado
por Pernambuco e buscou reforçar sua imagem social como um homem que renunciou
vantagens materiais para se dedicar ao extremo a sua terra natal:

O amor da pátria, desta terra querida, do meu Pernambuco, as suas glórias e


veneradas tradições, embriagavam-me e absorveram toda a minha atividade no
desvendamento e propagação dos ocultos mistérios da sua belíssima e portentosa
história; e por esse amor, e pelo culto santo que sempre tributei a esta minha terra,
empenhadamente, desinteressadamente, tudo esqueci, tudo sacrifiquei. 25

Os historiadores da época reconheceram esse sacrifício de Pereira e o


admiravam pelo difícil trabalho que ele executou. Na ocasião do seu velório foi destacado o
seu eficiente trabalho como historiador sendo exposto como aquele que “mergulhara
pacientemente nos arquivos em busca da verdade histórica”26. Durante a trajetória de Pereira
foi sendo construído socialmente uma imagem dele como “o mais paciente investigador de
nosso passado, o mais autorizado cronista de Pernambuco”27.

22
Diário de Pernambuco, Recife, 23 de novembro de 1923
23
Diário de Pernambuco, Recife, 22 de novembro de 1923
24
Revista do IAHGP. Vol. 32, Recife, 1934, p.89.
25
Diário de Pernambuco, Recife, 22 de novembro de 1923
26
Diário de Pernambuco, Recife, 23 de novembro de 1923
27
Diário de Pernambuco, Recife, 22 de novembro de 1923

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A imagem de um historiador que fez uma longa e paciente pesquisa nos arquivos
favoreceu na construção de uma outra imagem de Pereira que colocava ele como o guardião
e protetor do passado de Pernambuco, pois “se não fora a sua ação paciente e tenaz, muita
coisa que está nos seus Anais Pernambucanos teria desaparecido”28.

Pereira da Costa, numa época em que todo o mundo destruía (até as associações
ditas culturais deixavam destruir ou não protestavam contra a destruição) não fez
mais do que construir, procurando salvar da ruína o que podia. Daí ter acumulado
um trabalho enorme. 29

Mário Melo, como historiador, considerava Pereira o “mestre de nós todos”30.


Mário não é o único a utilizar essa denominação. Mário Melo e os outros historiadores ao
utilizar essa expressão referenciam Oliveira Lima, pois é atribuído a ele a invenção dessa
alcunha31. Os historiadores pernambucanos que atuavam na década de 1950 ainda
consideravam Pereira como um mestre pelo seu conjunto de habilidades, mas principalmente
pelo fato dele ter feito da história sua principal ocupação, sacrificando o seu próprio corpo
com a finalidade de fazer a obra historiográfica mais completa.

Esses discursos positivos sobre Pereira da Costa que são pronunciados na


ocasião das comemorações do seu centenário, no final do ano de 1951, tem como principal
meio de divulgação os jornais, principalmente o Diário de Pernambuco. Destacamos que
Pereira foi colaborador do Diário por 51 anos. Entendemos que O Diário elogiando Pereira
conseguia se promover ao colocar o Diário como aquela instituição que abrigou o maior
historiador pernambucano.

Tanto no Diário como nos outros jornais locais, a maioria das crônicas eram
assinadas por membros do IAHGP, instituição que Pereira esteve intimamente ligado.
Pereira ingressou no Instituto aos 25 anos e 11 anos depois tornou-se sócio benemérito por
considerarem um membro bastante dedicado e seus serviços fundamentais para o
funcionamento do Instituto. Nesse sentido, como o nome de Pereira estava fortemente
vinculado ao Instituto, entendemos que os historiadores procuraram propagar e positivar a
sua imagem porque acreditavam que com isso estavam fortalecendo a imagem do Instituto e
do ofício historiográfico.

28
Diário de Pernambuco, Recife, 16 de dezembro de 1951
29
Diário de Pernambuco, Recife, 16 de dezembro de 1951
30
Revista do IAHGP. Vol. 30, Recife, 1930.
31
Diário de Pernambuco, Recife, 16 de dezembro de 1951

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Mário Melo, a figura de maior força no IAHGP em 1951, demonstra alegria por
Pereira obter um grande reconhecimento social devido as comemorações do seu centenário.
Este reconhecimento póstumo corrigia uma grande injustiça e consagrava Pereira de modo
pleno e incontestável, colocando-o ao lado dos antigos heróis pernambucanos: “as portas do
céu lhe foram abertas agora, quando comemoramos o centenário de seu nascimento, de cujo
programa fez parte a publicação dos Anais”32.

REFERÊNCIAS
BOURDIEU, Pierre. O poder simbólico. Lisboa/Rio de Janeiro: Ed. Difel/Bertrand
Brasil, 1989.
___________. A Economia das Trocas Simbólicas. São Paulo: Perspectiva, 1992.
___________. As Regras da Arte. São Paulo: Cia. das Letras, 1996a.
___________. Razões práticas: sobre a teoria da ação. Campinas, SP: Ed. Papirus, 1996b.
___________. A Distinção: crítica social do julgamento. São Paulo: Edusp; Zouk, 2007.

COSTA, F. A. Pereira da. Anais Pernambucanos (1493 – 1590). Volume I. Recife:


Arquivo Público Estadual, 1951.

GUIMARÃES, Manoel Luis Salgado. Nação e civilização nos trópicos: o Instituto Histórico
e Geográfico Brasileiro e o Projeto de uma História Nacional. Revista Estudos Históricos,
Rio de Janeiro, n. 1, 1988.

SOUZA, George Félix Cabral de. Instituto Arqueológico, Histórico e Geográfico


Pernambucano: breve história ilustrada. Recife: IAHGP, 2010.

32
Crônica da Cidade, Jornal do Comércio, Recife, 16 de dezembro de 1951

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CAMPO INTELECTUAL, CAMPO DE PODER: AS RELAÇÕES


(DES)AMISTOSAS ENTRE GILBERTO FREYRE E MAURO MOTA A PARTIR
DA PERSPECTIVA TEÓRICA DO SOCIÓLOGO PIERRE BOURDIEU

Tércio de Lima Amaral


Mestre em História da Cultura Regional (UFRPE)
tercio.amaral@uol.com.br

Introdução
A relação entre intelectuais é um exercício político construído sistematicamente.
Político não no sentido partidário, mas no sentido diplomático, na construção de pontes de
diálogo na arte de aparar arestas. A necessidade de projeção, espaço e até mesmo firmação
no mercado editorial – no caso, por exemplo, de poetas e escritores – quase sempre esbarra
na ambição de adversários e até mesmo de aliados dentro de um mesmo campo. O objetivo
desse artigo é discutir a relação (des)amistosa entre dois intelectuais que tiveram presença
marcante no jornalismo e nas ciências sociais em Pernambuco no século 20: o sociólogo e
jornalista Gilberto Freyre (1900-1987), autor do clássico Casa Grande & Senzala, e o poeta
e jornalista Mauro Mota (1911-1984), editor do suplemento literário do Diario de
Pernambuco, nos anos de 1947 e 1959. Os dois intelectuais, que gozavam de parcerias em
várias frentes, por meio de livros publicados em conjunto, artigos com elogios mútuos,
também travaram disputas silenciosas em instâncias de poder, como instituições de cunho
científico e acadêmicas.

Mauro Ramos da Mota e Albuquerque, mais conhecido como Mauro Mota, nasceu
em Recife, em 16 de agosto de 1911, e faleceu na mesma cidade em 1984. Apesar de ter
nascido na capital, fez seus estudos iniciais na cidade de Nazaré da Mata, na Zona da Mata
Norte de Pernambuco. Assim como muitos intelectuais de sua geração, fez o curso de
Direito na Faculdade de Direito do Recife, concluído em 1937. Iniciou a carreira no
jornalismo no jornal Diário da Manhã, como secretário e redator chefe, mas foi no Diario
de Pernambuco, que marcou toda uma geração com a edição do suplemento literário,
relevando nomes locais e da região Nordeste. No Diario de Pernambuco, Mauro Mota
iniciou a carreira no ano de 1941 teve mais 40 anos de atuação, ocupando cargos de redator,

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secretário de redação e até diretor do jornal. Sua obra de destaque são as Elegias,
produzidas em homenagem à morte de sua mulher Hermantine Soares Cortez, em 1947. As
Elegias foram lançadas em 1952 e lhe rendeu o Prêmio Olavo Bilac da Academia Brasileira
de Letras (ABL).

Gilberto Freyre também nasceu no Recife, mas em 15 de março de 1900, falecendo


na mesma cidade em 1987. Estudou o primário e o secundário no Colégio Americano do
Recife. Em 1918, foi aos Estados Unidos realizar os estudos universitários. Fez o curso de
bacharelado em Artes Liberais, com especialização em Ciências Políticas e Sociais, na
Universidade de Baylor e mestrado Ciências Políticas, Jurídicas e Sociais na Universidade
de Columbia, com o trabalho sobre a vida social do Brasil no século 19. Seu trabalho mais
importante é o clássico Casa Grande & Senzala, lançado em 1933. Gilberto Freyre foi o
intelectual de mais projeção de Pernambuco no século 20, tendo suas obras traduzidas em
diversos idiomas, além de ter conquistado reconhecimento internacional, a exemplo do título
de Cavaleiro do Império Britânico, recebido pela Rainha Elisabeth II. Assim como Mauro
Mota, trabalhou no Diario de Pernambuco, nos anos 1920, e no jornal A Província. Os dois
também tiveram outros pontos em comum em suas trajetórias: ocuparam assento no
Conselho Federal de Cultura e estiveram à frente do Instituto Joaquim Nabuco de Pesquisas
Sociais (IJNPS), sendo Mauro Mota diretor e Gilberto Freyre presidente do conselho diretor
da instituição.

O primeiro desencontro nesse sentido, de acordo com relatos colhidos por esse
trabalho – que faz parte de uma pesquisa em andamento no Programa de Pós-Graduação em
História na Universidade Federal de Pernambuco (UFPE) sobre a intelectualidade em torno
do poeta e jornalista Mauro Mota nos anos 1950 – foi quando o sociólogo pernambucano
Gilberto Freyre teve seu nome preterido para figurar entre os imortais da Academia
Brasileira de Letras (ABL) pela escolha de Mauro Mota, no ano de 1970. Outro desencontro
entre os dois intelectuais foi na sucessão de Mauro Mota, então diretor do Instituto Joaquim
Nabuco de Pesquisas Sociais (IJNPS), atual Fundação Joaquim Nabuco (Fundaj), que
pretendia continuar no cargo e foi substituído pelo filho de Gilberto Freyre, o bacharel em
ciências jurídicas e administrador Fernando Freyre (1943-2005) no ano de 1971.

O Instituto Joaquim Nabuco foi criado por meio de um projeto do então deputado
federal por Pernambuco Gilberto Freyre, em 1948, por ocasião do centenário de nascimento
do diplomata e historiador pernambucano de mesmo nome. O instituto foi criado pela lei
federal nº 770, de 21 de julho de 1949, quando lhe destinou 1 milhão e quinhentos mil
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cruzeiros para sua criação e início de funcionamento. Em 1953, devido uma omissão no
projeto original, uma nova lei deixa claro que o instituto é submetido ao Ministério da
Educação e Saúde (posteriormente Ministério da Educação). Em 1960, uma nova lei
concede personalidade jurídica e autonomia ao instituto. Em 1963, o nome é oficialmente
mudado para Instituto Joaquim Nabuco de Pesquisas Sociais (IJNPS). Em 1980, na ocasião
do 80º aniversário de Gilberto Freyre, é decretada a transformação do IJNPS em Fundação
Joaquim Nabuco (Fundaj), cuja nomenclatura mantém até os dias atuais.

Neste artigo, trabalhamos com a perspectiva teórica do sociólogo francês Pierre


Bourdieu que defende em Campo de poder, campo intelectual que a estrutura de um campo
é “um estudo da relação de forças entre os agentes e as instituições que intervém na luta, ou,
se preferirem, na distribuição do capital específico que tem sido acumulado durante as lutas
anteriores e que orienta as estratégias anteriores” (BOURDIEU, 2002, p. 120). Aliás, é esse
livro de Bourdieu que baliza o título deste trabalho. Entendemos o campo no qual tanto
Gilberto Freyre como Mauro Mota compartilhavam como o campo intelectual do
Regionalismo, liderado por Freyre desde os anos 19201 e que influenciou diretamente outros
intelectuais, como o poeta Manoel Bandeira, o pintor Lula Cardoso Ayres e o também
jornalista Nilo Pereira, entre outros. Sobre a luta no campo, Bourdieu também assinala:
“Outra propriedade e menos visível de um campo: toda gente comprometida com um campo
tem uma quantidade de interesses fundamentais comuns, e decerto com tudo aquilo que está
vinculado com a existência do campo” (BOURDIEU, 2002, p. 121).

Do sociólogo Pierre Bourdieu ainda utilizamos os trabalhos As razões práticas e As


regras da arte. Neste segundo trabalho, por exemplo, chama a atenção sobre as disputas
internas no campo e seu desfechos, que, segundo ele, são arbitradas pelas sanções externas.
“As lutas que se desenvolvem no interior do campo literário (etc.) dependem sempre, em seu
desfecho, feliz ou infeliz, da correspondência que possam manter com as lutas externas (as
que desenvolvem no seio do campo do poder ou do campo social em seu conjunto) e dos
apoios que uns e outros possam encontrar aí” (BOURDIEU, 1996, p. 285), defende o

1
Na região Norte, teria sido lançado o Manifesto Regionalista, em 1926, liderado pelo sociólogo e jornalista
Gilberto Freyre. Na órbita do pernambucano, estão literatos como Graciliano Ramos, José Lins do Rêgo, José
Américo de Almeida e Antônio Cabral. A intenção do grupo, que ganhou força na década de 1930, era criticar
o “paulistocentrismo” e valorizar a modernização das artes e da cultura sem perder o “caráter regional”. A
discussão é polêmica e não pretendemos nos aprofundar nela, mas estudos recentes negam o fato de que o
Manifesto Regionalista tenha sido lançado em 1926, data do Iº Congresso Regionalista do Nordeste. De acordo
com o historiador Flávio Weinstein Teixeira, que reproduz uma tese de Neroaldo Azevedo, apenas em 1952 é
que o manifesto foi publicado. IN TEIXEIRA, Flávio Weinstein. Recife: notas em torno da gênese de um
campo cultural. Clio. Revista de Pesquisa Histórica. Nº 32.2. p. 129.

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sociólogo. No caso de Gilberto Freyre e Mauro Mota, apesar das diferenças em alguns
episódios, os dois nunca romperam publicamente. Além disso, os dois foram beneficiados
mutuamente em virtude da boa relação que mantinham publicamente e que sempre foi
preservada por artigos em jornais e livros dos publicados pelos intelectuais.

Ou seja, nem só de disputas vivia essa relação. Um dos exemplos do benefício dessa
relação foi justamente a indicação de Mauro Mota, em 1956, ao cargo de diretor do Instituto
Joaquim Nabuco de Pesquisas Sociais (IJNPS), criado por Gilberto Freyre no ano de 1949.
A indicação teria contado com o aval de Gilberto Freyre, que, por ter criado o IJPNS por
meio de um projeto lei quando era deputado federal por Pernambuco, permaneceu exercendo
influência na instituição até sua morte. Aliás, nesse episódio, chama a atenção participação
de dois personagens: o pernambucano Álvaro Lins, poeta e crítico literário chefe da Casa
Civil do governo do então presidente da República Juscelino Kubitschek e o poeta
pernambucano Ascenso Ferreira, que, foi nomeado para a presidência do IJNPS, mas não foi
mantido no cargo em detrimento de Mauro Mota. O filho de Mauro Mota, o antropólogo
Roberto Motta, nomeia a indicação do pai para o IJNPS como um “verdadeiro golpe de
sorte”. Porém, questões políticas e até familiares teriam contribuído para a ascensão de
Mauro Mota ao cargo – na época em que o mesmo ainda editava, simultaneamente, o
suplemento literário do Diario de Pernambuco – jornal fundado em 1825 e ainda circulação
na cidade do Recife.

Relações amistosas: a conquista da diretoria do IJNPS e o sonho ministerial

Enquanto editava o famoso suplemento literário do Diario de Pernambuco, o poeta e


jornalista Mauro Mota assumiu, simultaneamente, uma nova missão: a direção do Instituto
Joaquim Nabuco de Pesquisas Sociais, o IJNPS, em 1956. O jornalista assumiu a direção do
IJNPS na sucessão do professor Paulo Maciel, que deixou o instituto em 1956. Assim como
Mauro Mota, Paulo Maciel era um nome influente e bem relacionado no meio social e
cultural no estado. Depois da direção do instituto, Paulo Maciel foi secretário da Fazenda no
governo Cid Sampaio, nos anos de 1959 e 1962; presidente do Instituto do Açúcar e do
Álcool, entre 1964 e 1966; deputado federal pela Aliança Libertadora Nacional (Arena),
entre 1967 e 1971; e finalmente reitor da Universidade Federal de Pernambuco (UFPE), ente
1975 e 1979. De família de políticos, Paulo também chegou a ser candidato indireto ao
governo de Pernambuco em 1917. A substituição dele no IJNPS teria que ser de um nome à
altura.

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No entanto, o nome indicado para a substituição de Paulo Maciel foi o poeta


pernambucano Ascenso Ferreira (1895-1965), que, também, era um dos intelectuais que
orbitavam em torno do Regionalismo, liderado pelo sociólogo Gilberto Freyre. A nomeação
de Ascenso durou apenas 10 dias. Em parte, seu insucesso no cargo independente
unicamente de si próprio. Além de receber diversas críticas por não ter experiência alguma
em pesquisa em ciências sociais – o poeta era servidor público do Tesouro do Estado -, sua
personalidade boêmia e polêmica contribuíram para sua saída relâmpago. Há várias versões
sobre a saída de Ascenso e a ascensão de Mauro Mota ao cargo. A primeira delas é
reproduzida pelo próprio Mauro Mota publicada em um dos seus livros: Modas e Modos
(1976), que trata a recusa do nome de Ascenso por seu comportamento excêntrico.

No artigo “Ascenso Ferreira e a cultura popular”, Mauro Mota trata da polêmica em


torno da nomeação de Ascenso no IJNPS, além de revelar suas qualidades de poeta e
boêmio. Em uma entrevista ao jornal Diário da Noite, em 5 de março de 1956, Ascenso
Ferreira diz ao jornalista Edson Régis revela que teria rejeitado um jeep do IJNPS como
carro oficial e revela detalhes de sua vida íntima. “Jeep não me cabe, meu bem. As lotações
não param para mim porque eu sou grande demais e ocupo o lugar de dois passageiros”
(MOTA, 1976; 72), responde Ascenso. O repórter também pergunta sobre a possibilidade do
poeta assumir um escritório comercial do Brasil em um país da América do Sul em virtude
de seu prestígio junto a JK. “Juscelino me daria uma chefia dessas, mas eu não posso sair do
Recife. Um homem como eu, que tem casa civil e militar não pode nem ao menos pensar em
residir no Rio, quando mais no estrangeiro”, revela Ascenso, sem titubear: “Matriz e filial, tá
bem? Quero dizer que tenho duas casas, duas famílias, duas mulheres” (MOTA, 1976, p.
72).

Os diálogos foram reproduzidos no livro de Mauro Mota e um dos pontos curiosos é


que, apesar das críticas à sua aptidão para assumir a direção do IJNPS e seu estilo
“pitoresco”, Mauro Mota trata Ascenso como mais um dos intelectuais nordestinos que
orbitavam em torno do Regionalismo, de Gilberto Freyre, assim como ele mesmo. Outra
questão é que Mauro Mota não cita que o desgaste em torno de Ascenso Ferreira acabou por
privilegiá-lo e levou ele mesmo a assumir o IJNPS. O sociólogo Pierre Bourdieu trata dessa
questão: a disputa de intelectuais do mesmo grupo por um mesmo espaço ou objetivo.
Apesar de não deixar claro que estava no jogo na disputa pelo instituto, em nenhum
momento Mauro Mota descredencia o trabalho de Ascenso como poeta. Além, faz diversos

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elogios ao seu trabalho, mesmo quando sua vida pessoal trazia prejuízos um salto para
assumir um cargo público de destaque.

Em As razões práticas, Pierre Bourdieu diz que “querer fazer a revolução em um


campo é concordar com o essencial do que é tacitamente exigido por esse campo, a saber,
que ele é importante, que o que está em jogo aí é tão importante a ponto de se desejar aí
fazer a revolução” (BOURDIEU, 1996, p. 140-141). Mesmo com a disputa, não há registro
de rompimento entre Mauro Mota e Ascenso ou até mesmo Gilberto Freyre, que teria
influído na disputa, como mostraremos a seguir. “Entre pessoas que ocupam posições
opostas em um campo, e que parecem radicalmente opostas em tudo, observa-se que há um
acordo tácito a respeito do fato de que vale a pena lutar a respeito das coisas que estão em no
campo” (BOURDIEU, 1996, p. 140-141) reforça Bourdieu. Em relação a Ascenso Ferreira,
Mauro Mota tinha vários pontos a seu favor: uma boa relação com Gilberto Freyre, destaque
na imprensa, por meio do Diario de Pernambuco, além da amizade e proximidade com o
poeta pernambucano Álvaro Lins – de quem foi amigo de infância, no Recife –, então chefe
da Casa Civil do governo Juscelino Kubitschek.

Na mesma linha, segue o sociólogo Gilberto Freyre. No intitulado “Meu caro ‘Jornal
do Brasil’”, publicado no Diario de Pernambuco e reproduzido na revista do Arquivo
Público Jordão Emerenciano (Apeje), instituição na qual Mauro Mota foi diretor entre os
anos de 1972 e 1985, Freyre revela que teria atuado diretamente junto ao então presidente da
República Juscelino Kubitschek para que voltasse atrás com o nome de Ascenso Ferreira e
nomeasse Mauro Mota. Na avaliação do sociólogo pernambucano, faltava em Ascenso
aptidão ao cargo e que ele só estaria interessado em benefício: o uso de um carro oficial. O
próprio Mauro Mota cita essa questão em seu livro Modas e Modos, de 1977, e reproduz um
diálogo atribuído a Ascenso: “Que besteira é essa? Não vou mexer em nada naquela
repartição. Comigo tudo fica como está. A mim só interessam o ordenado e a camioneta.
Juscelino me prometeu um emprego e me arranjou uma encrenca”. (MOTA, 1976, p. 72).

Gilberto Freyre mostra certa intimidade com o então presidente, se coloca como
centro das atenções, e o trata como colega de Câmara, dizendo que lhe faltou informações
precisas sobre a nomeação de Ascenso. “Vi que lhe tinha faltado informes exatos sobre o
assunto. Ele como que supunha o Instituto Nabuco um centro de indagações apenas – e
superficialmente – folclóricas” (REVISTA, 1984, p. 98). Freyre argumenta que Ascenso já
tinha sido nomeado e, em uma ligação telefônica, JK lhe pediu para que assumisse o
comando da instituição, que lhe foi negado. O presidente, então, teria pedido uma indicação.
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“Indiquei prontamente Mauro Mota. Especifiquei tratar-se, como o Presidente sabia de um


grande poeta – um dos maiores do Brasil – que essa condição juntava a de geógrafo
magistral. Portanto, cientista social idôneo” (REVISTA, 1984, p. 98), argumentou o
sociólogo.

Em nenhum momento Gilberto Freyre cita o revés político que teria sofrido e se
coloca como protagonista da nomeação de Mauro Mota, sem falar da relação que o jornalista
tinha com o crítico literário Álvaro Lins. O jornalista Nilo Pereira, um dos biógrafos de
Mauro Mota cita que sua relação com Álvaro Lins começou no Colégio Salesiano, do
Recife, quando os dois colaboravam para o jornal O colegial (PEREIRA, 1987, p. 139). Há
ainda uma relação pouco explorada: o fato de tanto Álvaro Lins como Mauro Mota terem
militado, juntos, na Ação Integralista Brasileira, movimento de extrema direita que ganhou
projeção no país a partir da década de 1930. Em prontuário sobre o movimento no
Departamento de Ordem Política e Social de Pernambuco (DOPS-PE) há uma foto de Mauro
Mota com Álvaro Lins vestindo as chamadas “camisas verdes”. No registro, estão com os
dois poetas nomes como Gilberto Osório e João Roma (MORAES, 2014, p. 13).

Outra versão, mais embasada politicamente e contextualizada, é do filho de Mauro


Mota, o antropólogo Roberto Motta, que é reproduzida no artigo do sociólogo Paul Freston
sobre a história da Fundação Joaquim Nabuco (Fundaj). De acordo com essa versão, a
nomeação do poeta Ascenso Ferreira não se tratava de uma “simples resolução leviana”, mas
um gesto político do então presidente da República. Até porque o sociólogo Gilberto Freyre,
fundador do IJNPS, fez campanha para o candidato derrotado e adversário de Juscelino
Kubitschek na disputa presidencial: Juarez Távora. A nomeação de Ascenso Ferreira por JK,
que não nutria uma amizade forte com Gilberto Freyre, lhe representava um verdadeiro
desprestígio.

Em um depoimento ao jornal Diario de Pernambuco, datado em 28 de dezembro de


1986, reproduzido por Freston, Roberto chama a nomeação do pai de um golpe de sorte: “O
chefe da Casa Civil de Juscelino era... Álvaro Lins, amigo fraternal de Mauro Mota...
Mauro, por sua vez, era amigo sólido de Gilberto... recorra-se a Mauro!”, relata o
antropólogo. “(...) Mauro, que talvez há muito esperasse um convite dessa espécie, não se
fez de rogado e foi nomeado pelo presidente”, completa Roberto Mota (FRESTON, 2001, p.
330). Em As regras da arte, o sociólogo Pierre Bourdieu trata esse tipo de disputa e questão
por meio da teoria do “campo de poder” e argumenta que as práticas de representação dos
artistas e dos escritores não se deixam explicar senão por referência ele. “O campo de poder
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é o espaço das relações de força entre agentes ou instituições que têm em comum possuir o
capital necessário para ocupar posições dominantes nos diferentes campos (econômico ou
cultural, especialmente)” (BOURDIEU, 1996, p. 244).

Além do campo de poder, a relação de Mauro Mota e Gilberto Freyre também era de
confidências e de amizade. Não estamos defendendo aqui uma disputa sistemática dos dois
intelectuais. Um dos exemplos é a possível troca de confidências dos dois, a exemplo do
desejo de Mauro em assumir o Ministério da Educação do Brasil. No mesmo artigo que trata
da disputa pelo comando do IJNPS, publicado em 1984, Freyre trata da possível pretensão
política nacional do poeta. “O que houve, em Mauro Mota, tanto de brasileiro total, como,
além de lírico superior, epicamente poeta, no seu modo de ser abrangentemente poeta,
poderia ter vindo a fazer dele um criativo Ministro da Educação e Cultura” (REVISTA,
1984, p. 99), comenta Freyre. “O impedimento pode-se sugerir ter sido sua condição de
brasileiro de Pernambuco em época de presença quase de todo desprezível dessa velha
província, aos olhos dos arbitrários senhores do poder político no Brasil. Ou de Brasília”
(REVISTA, 1984, p. 99).

“Será que ele pensou nessa possibilidade? Como amigo de sua intimidade, posso
dizer que sim. Pensou. Mas sem contar com qualquer espécie de apoio válido. Liricamente”
(REVISTA, 1984, p. 100), completa Freyre, que fez a mesma defesa um ano antes, na
apresentação do livro Itinerário (1983)¸ que reuniu parte da obra poética de Mauro Mota.
“Pode vir ainda ser bissexualmente Ministro de Estado no Brasil ou Embaixador do Brasil
em Lisboa. Mas sendo, antes de tudo, poeta de corpo e alma que é”. (FREYRE, 1983, p. 27).
De qualquer forma, o próprio Gilberto Freyre tinha revelado desejos similares: ser
governador de Pernambuco e ministro das Relações Exteriores do Brasil (FRESTON, 2001,
p. 324). Desejos e ambições também nunca alcançados. Isso demonstra que, além dos cargos
já ocupados, esses dois intelectuais projetavam para si novos desafios constantes, que
dependiam não somente de suas capacidades técnicas, mas também de articulação do seu
campo com o jogo do poder.

Relações (des)amistosas: uma vaga na ABL e a perda da diretoria do IJNPS

As relações entre Gilberto Freyre e Mauro Mota também envolviam disputas e até
movimentações possivelmente inesperadas, como foi o caso da saída de Mota da direção do
IJNPS e a ascensão de Fernando Freyre, filho de Gilberto, para o cargo. Outros casos

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também chamam a atenção, a exemplo da escolha de Mauro Mota para ocupar um assento
na Academia Brasileira de Letras (ABL), no ano de 1970, quando o antigo ocupante do
posto, o imortal Gilberto Amado, teria revelado, em vida, que esperava ser substituído pelo
sociólogo Gilberto Freyre. No artigo “Mauro Mota”, reproduzido na Revista do Apeje,
publicado originalmente no jornal Última Hora, no dia 29 de novembro de 1984, o também
imortal Antônio Carlos Vilaça faz a revelação: “Na Academia Brasileira, Mauro sucedeu a
Gilberto Amado, que estava certo, ao morrer em 1969, de que seu sucessor seria Gilberto
Freyre. Não foi Gilberto, mas foi Mauro. E ele nos ofereceu aquele belo estudo sobre as
relações entre Gilberto Amado e o mar”. (REVISTA, 1984, p. 68).

Como essa pesquisa está em andamento, reforçamos que não encontramos até o
momento documentação que comprove o desejo de Gilberto Freyre em entrar na ABL e
propor uma candidatura. No entanto, a academia era um dos grandes espaços – e ainda é nos
dias atuais – para a consagração dos intelectuais brasileiros. Só em outubro de 1986,
Gilberto Freyre é eleito para uma organização similar, mas de menor projeção: a Academia
Pernambucana de Letras (ABL), onde ocupou o assento deixado por Gilberto Osório de
Andrade. A viúva de Mauro Mota, a artista plástica Marly Mota, também membro da
Academia Pernambucana, publicou um artigo no jornal Diario de Pernambuco, em 20 de
janeiro de 2017, no qual destaca as relações familiares do marido para conquistar a vaga na
ABL. Marly se refere ao poeta João Cabral de Mello Neto, primo de Mauro Mota, que
poderia ter interferido na escolha do nome dele para o assento como imortal. Os dois tinham
como origem em comum o mesmo bisavô: Francisco Antônio Cabral de Mello, também
chamado por João Cabral e Mauro Mota de “Mello do Engenho Tabocas”.

“Mauro Mota ganhando terreno resolveu candidatar-se a vaga que pertencera a


Gilberto Amado. João Cabral já acadêmico, Mauro Mota envia telegrama ao primo. Quero
dois bisnetos na Academia: Ass. Seu Melo de Tabocas” (MARLY, 2017), diz Marly no
artigo, também destacando que Mauro Mota teve como grande incentivador nessa
candidatura o amigo de infância e crítico literário Álvaro Lins, que também era imortal da
ABL. O argumento do parentesco com João Cabral é levado como “trunfo” na escolha de
Mauro Mota por essa versão. No entanto, o filho do jornalista e poeta, o antropólogo
Roberto Motta diz que não havia relação íntima entre os dois primos, apesar da resposta
amigável de João Cabral ao telegrama. “Há uma diferença de doze anos entre o poeta João,
nascido em 1920, e o poeta Mauro, nascido em 1908. Teria sido a convivência de um rapaz
de 20 anos com um menino de oito? De um homem de 30 com um adolescente de 18?”

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(MOTTA, 2012, p. 13), diz Roberto, completando que havia outros fatores impediam essa
convivência. “Tinha havido fortes, na verdade violentas desavenças entre os primos da
geração anterior, com efeitos que perduraram durante muitas décadas” (MOTTA, 2012, p.
13).

Outro ponto de disputa entre os dois intelectuais foi a saída de Mauro Mota do
Instituto Joaquim Nabuco de Pesquisas Sociais (IJNPS). De acordo com o sociólogo Paul
Freston, sob a gestão de Mota, o IJNPS, entre os anos de 1956 e 1970, conheceu sua
primeira fase de expansão. Na gestão do poeta, foi adquirida uma sede permanente pelo
Ministério da Educação, em 1953. Além disso, Mauro Mota ampliou as atividades do
instituto com ciclos de conferências, simpósios, seminários sobre os assuntos ligados à
cultura. Na fase de Mauro Mota à frente do IJNPS foi inaugurado, em 1958, o Museu de
Antropologia e cria-se uma biblioteca, em 1970, cujo acervo contou com mais de 13 mil
volumes. O IJNPS também iniciou uma série de documentários cinematográficos em
parceria com a Fundação Rockefeller, a Fundação Getúlio Vargas (FGV), a
Superintendência de Desenvolvimento do Nordeste (Sudene), entre outros.

“É só na época de Mauro Mota que o IJN consegue montar um quadro de


funcionários técnicos e ter recursos para a realização de algumas pesquisas de interesse ao
instituto que não fossem locais (como as de René Ribeiro sobre os xangôs do Recife)”, diz
Freston (FRESTON, 2001, p. 332). Ainda segundo o sociólogo, embasado em depoimentos
do intelectual René Ribeiro, o apoio de Álvaro Lins e Gilberto Freyre favoreceram a
continuidade da gestão de Mota e sua política de expansão. “Mauro deu um impulso
burocrático... ele estabilizou mais a coisa. Ele tinha Álvaro Lins, então, tinha tudo na mão.
Conseguiu montar uma estrutura burocrática mínima que começou a se expandir...”, diz
René Ribeiro a Paul Freston. “Ele realizou uma coisa que os antecessores dele não estavam
realizando, que era a total subordinação aos desejos de Gilberto” (FRESTON, 2001, p. 331).
Segundo a tese de René Ribeiro, membros anteriores do IJNPS já tinham consciência do
“seu valor” e tinham “bagagem científica” em postos de professorado, o que dificultava a
relação com Gilberto Freyre. Outro ponto importante para Mauro Mota seria sua boa relação
com os meios de comunicação, a exemplo dos veículos dos Diários Associados.

No entanto, a “Era Mauro Mota” teve um fim melancólico. O mesmo aliado que lhe
ajudara anos antes a assumir a diretoria do IJNPS, o sociólogo Gilberto Freyre, teria atuado
nos bastidores para que seu filho, Fernando Freyre, assumisse o posto. O sociólogo Paul
Freston credita, entre os pontos da saída de Mauro Mota, o fato da competição entre o
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instituto com as universidades, que passaram a se organizar com departamentos de ciências


sociais. Outro fato é que órgãos públicos, que antes dependiam de pesquisas do IJNPS,
começaram a montar equipes e realizar pesquisas independentes. O bacharel em direito
Fernando Freyre assumiu o instituto em 1971 e ficou na direção até o ano de 2003. Sobre o
fato, há duas versões: a do próprio Fernando Freyre, que tenta demonstrar que não houve
nenhuma disputa ou desentendimento. Outra versão é do filho de Mauro Mota, o
antropólogo Roberto Motta.

Em depoimento ao jornal Diario de Pernambuco, em 28 de novembro de 1986,


também reproduzido por Freston, Fernando Freyre tenta demonstrar que transição foi
relativamente tranquila. No depoimento ao jornal, Fernando Freyre lembra o fato de Mauro
Mota ter lhe convidado para cuidar da parte relativa ao som e as gravações magnéticas do
seminário sobre Cana e Reforma Agrária no ano de 1963. Posteriormente, foi convidado
para atuar o quadro de pesquisadores da IJNPS, saindo em pouco tempo para assistente de
administração do instituto. E quando estava prestes a morar no Rio de Janeiro para realizar
um curso de Mestrado em Administração de Empresas, na Fundação Getúlio Vargas (FGV),
Mauro Mota, junto com o escritor Renato Carneiro Campos tomaram a iniciativa de, junto
ao Conselho Diretor, de incluir seu nome na lista destinada à escolha do diretor executivo do
IJNPS. “Após muito relutar, mais uma vez, capitulei. Mauro saiu para dirigir o
Departamento de Cultura e eu, no dia 8 de julho de 1971, assumia o cargo de Diretor
Executivo”, revela o filho de Freyre, tratando a transição como amigável e natural.
(FRESTON, 2001, p. 334).

No entanto, mais uma vez, o filho de Mauro Mota refuta a versão. Na avaliação do
antropólogo Roberto Motta, também em depoimento ao jornal Diario de Pernambuco, na
edição de 18 de janeiro de 1987 seu pai não esperava que Fernando Freyre assumisse o
comando do instituto e esperava “fidelidade” na votação para a escolha do dirigente do
IJNPS. Mauro Mota, mais uma vez, viu seu destino modificado por meio das relações com o
amigo e sociólogo Gilberto Freyre, que era o presidente do Conselho Diretor do IJNPS.
Desta vez, seu projeto de permanência à frente do instituto foi interrompido. Revela Roberto
Mota:

Há uma coisa que é preciso lembrar. Quando as pessoas querem ocupar


ou continuar em certos cargos e tem de enviar listas tríplices ou sêxtuplas... elas
tentam preencher as listas com nomes seguros, isto é, de personalidades que,
mesmo possuindo competência indiscutível, não tem a ambição nem esquema
político necessário para a nomeação. Obedecidas essas condições, Mauro sempre
procurou compor as listas da melhor maneira possível (...). Estou querendo dizer

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que Mauro Mota, com toda certeza, pretendia ainda continuar, por muitos
mandatos. (FRESTON, 2001, p. 335).

Não há registros nessa pesquisa da posição do próprio Mauro Mota sobre a perda da
diretoria, nem de Gilberto Freyre, seu antigo aliado. De qualquer forma, após a experiência
como gestor do IJNPS – atualmente Fundação Joaquim Nabuco, Fundaj –, Mauro Mota
assumiu a direção do Arquivo Público Estadual Jordão Emerenciano (Apeje), em 1972. No
arquivo, sua gestão foi marcada pelo slogan “é preciso desarquivar o arquivo”, ganhando
reconhecimento do público e da academia. No arquivo, eram comuns lançamentos de livros,
edição de revistas acadêmicas e realização de seminários. O poeta retornou ao IJNPS em
1983, como membro titular do Conselho Diretor da Fundação Joaquim Nabuco. Tanto na
Fundaj e no Apeje, Mauro Mota permaneceu até o ano de sua morte, em 1985.

Considerações finais

A relação entre Mauro Mota e Gilberto Freyre, baseada em elogios mútuos na


imprensa, foi marcada por perdas e ganhos. De ambas as partes. Na época da nomeação ao
Instituto Joaquim Nabuco de Pesquisas Sociais (IJNPS), Mauro Mota não só precisou dessa
relação de amizade, como também dependeu dela para permanecer no cargo até o ano de
1970. No período em que foi gestor da instituição, mais especificamente diretor executivo,
publicou artigos e comentários afetuosos, quando não elogiosos, ao desempenho científico e
até poético de Gilberto Freyre. As gentilezas foram retribuídas em livros publicados em
conjunto e outros artigos que reforçaram as habilidades de Mauro Mota como gestor ou
mesmo poeta.

No entanto, essa mesma parceria sofreu momentos sensíveis, a exemplo de quando


Mauro Mota assumiu uma vaga na Academia Brasileira de Letras (ABL), em 1970, na vaga
de Gilberto Amado, que, publicamente, desejava que seu assento fosse ocupado por Gilberto
Freyre. Mauro Mota saiu “vitorioso” na disputa e sua rede de relacionamento, seja por meio
de Álvaro Lins, amigo de infância, ou do poeta João Cabral de Mello Neto, primo, foi
decisiva. Ao mesmo tempo, Gilberto Freyre também “virou o jogo” quando articulou a saída
de Mauro Mota do IJNPS e referendou o nome de seu filho, Fernando Freyre, para a direção
do instituto, em 1971. Para Gilberto Freyre, não seria mais interessante a permanência do
velho amigo. Nesse contexto, surgia um nome nas ciências sociais (Fernando Freyre), que
permaneceu no poder da Fundaj até meados de 2003.

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Uma questão é certa: mesmo com essa disputa quase invisível por espaço, Mauro
Mota e Gilberto Freyre tiveram muitos pontos em comum. Ambos tiveram trabalhos
publicados nas áreas de ciências sociais, foram diretores de jornal e se aventuraram pela
poesia. No caso de Freyre, não podemos deixar de destacar que sua força enquanto
intelectual fosse muito maior do que a de Mota. De qualquer modo, os dois mantiveram
publicamente, até a morte – pelo menos nos registros encontrados por nós até o momento – a
parceria intelectual e afetiva. A descrição, também, foi um ponto comum entre os dois.
Versões sobre essas rupturas foram reveladas, aos poucos, por parentes, descendentes e
colaboradores mais próximos. Enfim, com esse artigo pretendemos mostrar, à luz do
trabalho do sociólogo Pierre Bourdieu, que o campo intelectual é um palco privilegiado de
análise nas relações de forças entre agentes e suas instituições. Assim como foi o caso dos
dois “amigos” Regionalistas.

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Papirus, 1996.

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Montressor.

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cultural. Clio. Revista de Pesquisa Histórica. Nº 32.2.

A CONTROVÉRSIA DESENVOLVIMENTISTA E A LUTA INTELECTUAL POR


UMA “NOVA” CIÊNCIA ECONÔMICA (1955 - 1964)

Lucas Souto Maior Gonçalves de Carvalho


Universidade Federal de Pernambuco
lucassouto.carvalho@gmail.com

1. O desenvolvimentismo: a pressa e o caos


O interregno democrático que foi o período da história brasileira entre 1945 e 1964 é
marcado, além de grandes ebulições políticas e da maior amplitude de movimentos
coletivos, pela consolidação da “ideologia do desenvolvimento” - o desenvolvimentismo -
não só como política de Estado, mas como um prisma que passou a definir visões

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filosóficas, atitudes de conjunto e análises científicas, dentro dos mais variados setores da
sociedade e nas diferentes regiões do país.
Geralmente associado, no caso brasileiro, ao governo de Juscelino Kubitschek (1956
- 1960), o desenvolvimentismo é tributário de um movimento maior, tanto nacional quanto
internacionalmente, e que transcende os pilares do referido governo. A gradual
preponderância que o setor industrial vai ganhando durante a era varguista (1930 - 1945),
formando uma classe empresarial mais coesa em suas ações políticas, assim como a
atmosfera de reconstrução do pós-guerra, com a definição do jogo geopolítico bipolar da
Guerra Fria e o “surgimento” do bloco de países subdesenvolvidos, suscitando movimentos
identitários e que reivindicavam condições de vida similares às do dito Primeiro Mundo e
melhores relações com estes, são apenas alguns dos vários aspectos que entraram na receita
que levou à pressa pelo desenvolvimento vista a partir dos anos 1950. Durante o governo
JK, então, o que vemos é a condensação de diferentes movimentos, que já vinham
acontecendo, em uma plataforma capaz de exercer força centrípeta em relação a vários
grupos sociais, no mais das vezes distantes entre si e até antagônicos em vários outros
aspectos. Em grande medida, o termo “desenvolvimentismo” surge para designar processos
que já vinham acontecendo na sociedade brasileira (mas que, ao mesmo tempo, estavam
longe de se manterem os mesmos desde sempre). Não à toa, o período juscelinista é definido
por Bielschowsky (2000) como o auge do desenvolvimentismo, mas não sua concepção.
Não é o objetivo deste artigo fazer maiores análises sobre as raízes e fundamentos do
que seria essa ideologia do desenvolvimento1, mas alguns outros pontos precisam também
ser ressaltados. O desenvolvimentismo tem como um de seus principais elementos a pressa,
a velocidade, a ânsia por sair de uma situação precária e alcançar o oásis do progresso.
Embora “superar atraso” e “alcançar progresso” possam parecer expressões sinônimas, é
importante frisar as diferentes nuances que ambas trazem. “Superar atraso” dá muito mais
ênfase em um presente miserável e caótico do qual pretende-se fugir, e empresta à ideia de
desenvolvimento todo um caráter redentor e mesmo messiânico, o que explica a força
mística que este conceito carregou e ainda carrega, mesmo após vários questionamentos e
reformulações (RIST, 2008, p. 23). A ideia de “atraso” insere-se nos países
subdesenvolvidos com todo vigor, primeiro como denúncia, depois como base de construção
de uma identidade própria para cada país e seus respectivos povos. Também demonstra a

1
Para tal, ver Bielschowsky (2000) e Fonseca (2012).

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adoção de um parâmetro a ser perseguido - o de “desenvolvido” -, e o estabelecimento dos


padrões de vida europeus e norte-americano como norma.
Essa pressa em sair de uma situação conturbada estava dentro de um paradoxal jogo
de velocidade versus velocidade. A situação de pobreza de países como o Brasil seria um
barril de pólvora prestes a explodir ao menor movimento. Em janeiro de 1964, no limiar das
tensões política do país, Celso Furtado escreveu
Alcançado certo ponto de irreversibilidade, a História já não poderá cumprir pelos
métodos convencionais, e terá início uma era de imprevistos em que a velocidade
dos acontecimentos reduz a quase nada a eficácia de toda liderança racional
(FURTADO, 1964, p. 173)
Josué de Castro (1980, p. 294), por sua vez, afirmava que o desenvolvimento era
uma “necessidade histórica” da qual o país não poderia fugir; Hélio Jaguaribe (2013, p.
219), em 1958, previu que a burguesia industrial só teria o prazo da “atual geração” para
assumir o controle do processo desenvolvimentista, sob risco de causar um levante
proletário; Raul Barbosa (1979, p. 130), um ano antes, demonstrou confiança de que os
estadistas estavam convencidos de que acelerar o processo de desenvolvimento era uma
forma de se aproximar das “aspirações populares”. A pressa pelo desenvolvimento aparecia
como antídoto para uma outra velocidade, que seria incontrolável e que levaria, como um
tornado, toda e qualquer possibilidade de crescimento harmonioso e planejado. Os
sentimentos de urgência e aceleração impregnaram a vida política nacional de maneira
inédita. Muitos viam essa época com otimismo - por vezes, exagerado -, outros a viam com
certa angústia e receio do porvir.
Enquanto aceleração do tempo histórico, pois, o desenvolvimento estava
intimamente ligado ao ideal de revolução. É presente, no discurso de vários intelectuais do
período, a confiança de que o desenvolvimento seria a “revolução brasileira”, a redenção
esperada pela nação desde sua formação, e que confirmaria seu status de “país do futuro” 2.
Dentro do jogo velocidade versus velocidade, essa revolução também aparecia como um
remédio - um remédio contra outro tipo de revolução. O medo da subversão popular, e
especificamente de subversão comunista, alimentado durante a Guerra Fria, foi combustível
para a locomotiva desenvolvimentista e para a ação de diferentes profissionais em direção a
esse objetivo. Desse modo, desenvolvimento parece ser mais uma fuga de um futuro que

2
Tal concepção era principalmente presente dentre os intelectuais do Instituto Superior de Estudos Brasileiros
(Iseb), como Hélio Jaguaribe. Álvaro Vieira Pinto e Cândido Mendes, mesmo antes da maior ocorrência dos
debates reforma versus revolução, nos anos 1960. Fazia-se presente também em outros, como Rômulo Almeida
e o próprio Celso Furtado.

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parecia próximo do que qualquer outra coisa. Era preciso desenvolver para evitar maiores
perigos; era preciso progresso para manter a ordem3.
Kubitschek adotou todas essas ideias em suas declarações durante a campanha e após
ela. Afinal, todo o lema do “50 anos em 5” e o posterior Plano de Metas vieram a sintetizar a
vontade por uma aceleração como forma de agradar e aquietar diferentes grupos. Em 1957,
já eleito, declarava
A ampliação de nossa base econômica [...] viria afastar progressivamente, pela
melhoria das condições de vida do povo, a possibilidade de infiltrações
subversivas que, mercê de Deus, não encontram curso no espírito cristão e
democrático de nossa coletividade [...] [O Governo] Combate-os [os comunistas]
também indiretamente, pelo fomento intensivo da riqueza nacional, pelo aumento
da produção, pela elevação do padrão de vida dos nossos trabalhadores e
mediante outras realizações de caráter social e econômico em benefício dos
trabalhadores das cidades e dos campos (KUBITSCHEK, 1957, p. 83 - 116)
O discurso de “tensões sociais” e a necessidade de evitá-las passava pela defesa do
maior poder do Estado no âmbito econômico, pois seria o único capaz de regular e investir,
no grau adequado, na produção nacional. Deixadas à mercê do livre jogo do mercado, as
forças econômicas só causariam mais e mais gargalos na atividade do país, não resolvendo
os problemas urgentes que se colocavam em pauta - pelo contrário, agravando-os. O Estado
deveria controlar a velocidade do desenvolvimento, acelerando-o harmoniosamente, a fim
de evitar as convulsões sociais esperadas.
Tal tarefa exigia grandes esforços dos intelectuais - e, em especial, dos economistas -
partidários do desenvolvimentismo. Primeiro, porque tal planejamento harmonioso vinha
com a corolário de um maior rigor científico e de cálculo, exigindo maior integração entre
diferentes ramos do saber e a expansão de uma certa burocracia estatal para esse fim.
Segundo, porque encontrou-se resistência muito bem estabelecida dentro da política
brasileira, expressa na figura de economistas e políticos de orientação liberal, que
constituíram oposição atuante - e, por vezes, feroz - ao desenvolvimentismo.
Todo o ambiente conturbado do país, então, refletiria-se nas ciências sociais como
um todo, e especialmente em Economia. Os embates não se restringiriam ao campo das

3
A associação entre “ordem” e “progresso”, no sentido aqui explicitado, já era presente durante o governo
Vargas, mas aparecia muito mais como funções paralelas: dentro do modelo de Estado corporativista, manter
certo controle social (principalmente sobre sindicatos) era uma ação complementar ao desenvolvimento
econômico, e que tinham como objetivo liquidar a luta de classes e instalar um clima de pretensa harmonia
social. Durante o Estado Novo, e mesmo antes, muitos intelectuais brasileiros beberam na fonte do
corporativismo do romeno Mihail Manoilescu, que viria a apoiar o fascismo na Europa.

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ideias - os diferentes intelectuais passaram a ocupar espaços distintos, entrando em conflito


permanente, desenhando estratégias e traçando suas atitudes em relação aos outros.

2. Na ponta do lápis: a disputa pela verdade na Economia


Não é incomum encontrar nos escritos desse período um certo discurso de que a
teoria econômica não necessitaria de maiores revisões. Lincoln Gordon 4 (1967, p. 79), por
exemplo, em artigo de 1961, após defender que as discussões sobre as relações comerciais
entre Estados Unidos e América Latina deveriam passar pela Organização dos Estados
Americanos (OEA), e não pelas Nações Unidas (ONU), afirmou que não havia motivos para
as políticas eonômicas latino e norte americanas serem diferentes, pois, afinal, a Economia é
“objetiva e única”, não existindo “duas teorias” para dois casos diferentes.
De maneira similar a Gordon, Eugênio Gudin (1952, p. 49-53) - importante
economista liberal brasileiro - já havia negado a necessidade de uma “nova teoria
econômica”, criticando aqueles economistas que queriam “invadir o espaço de engenheiros,
físicos, agrônomos, etc.” ao discorrer sobre inovações tecnológicas, e alegando que
desenvolvimento econômico era, principalmente, resultado de fatores climáticos. O
canadense Jacob Viner, ao realizar um ciclo de palestras no Brasil, afirmava que a teoria
clássica do comércio internacional era insubstituível, e também chegou a defender que
O economista, na qualidade de economista, não tem a menor obrigação de
assumir o papel de estadista; estará cumprindo seu dever plenamente se fornecer
ao estadista sua opinião correta, quanto a meios econômicos e fins econômicos
(VINER, 1951, p. 12)
Todos esses discursos sobre a teoria econômica e o papel do economista são apenas
alguns exemplos de uma verdadeira reação suscitada pela ação de uma corrente paralela
dentro da ciência econômica, que exigia modelos científicos para além do aparato liberal, e
que fossem capazes de dar conta do que seria uma situação social inédita e urgente.
Representam, pois, um ponto de disputa dentro da história da ciência econômica, que, como
outras, caracteriza-se pelo discurso de neutralidade científica como ponto de defesa de seu
status de verdade5.

4
Gordon foi embaixador dos Estados Unidos no Brasil entre 1961 e 1966, sendo um dos principais
articuladores do golpe militar de 1964.
5
Para Bourdieu (2004, p. 47), a substituição do “interesse desinteressado” (neutralidade) por “atendimento da
demanda social” demonstra, dentro do campo científico, a busca por uma nova legitimidade, relativamente
indiscutível, e que dá aos atores uma nova força simbólica nas lutas internas dos campos.

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No âmbito internacional, os questionamentos sobre a teoria liberal foram fortes


desde o século XIX, em figuras como Marx e List, mas ganharam novo fôlego com a
“revolução keynesiana”, cujo ponto de partida é associado à publicação de General Theory
(1936). Com suas ideias de que a economia precisava, constantemente, de ajustes e
regulações, Keynes foi um dos principais - senão o principal - fundadores de uma corrente
de pensamento que enxergava no capitalismo imperfeições intrínsecas, mas sem negar sua
validade enquanto melhor modelo econômico a ser seguido: para sua sobrevivência, então,
era necessária a ação do Estado. As críticas concentraram-se na ideia de “equilíbrio estático”
do liberalismo, que advogava que, a longo prazo, os movimentos econômicos compensam-
se uns aos outros, tendendo a estabelecer o equilíbrio continuamente. Defender essa ideia
era ignorar as flutuações cíclicas a curto prazo que toda economia está sujeita, e que
provocam consequências graves o suficiente para desestruturar sociedades e indivíduos.
Como dizia Keynes: a longo prazo, estaremos todos mortos.
Já no final da Segunda Guerra Mundial, e principalmente após seu fim, foram
ganhando força os estudos sobre desenvolvimento e industrialização. Os artigos do austríaco
Paul Rosenstein-Rodan, publicados a partir de 1943 no britânico The Economic Journal, nos
quais defende a industrialização como maneira de diminuir o vácuo entre os países da
Europa, sendo de interesse geral a ajuda aos países mais atrasados do Leste europeu por
meio do modelo de big push6, são geralmente tidos como origem da formação da teoria do
desenvolvimento, que arrastaria nomes como Albert Hirschman, Joseph Schumpeter, Ragnar
Nurkse, Hans Singer, Gunnar Myrdal, entre outros. Este último, inclusive, enquanto
Secretário-Executivo da Comissão Econômica para a Europa7 (Unece, na sigla em inglês),
foi um dos importantes economistas e defender a ligação da teoria econômica com o seu
contexto social e político. No ensejo de reconstrução pós-guerra, Myrdal (1960, p. 12 - 23)
dizia que as disparidades econômicas entre os países eram a principal causa das tensões
internacionais, e que, para erradicá-las, era preciso uma “nova teoria” que desse conta do
problema do subdesenvolvimento.
Esse movimento internacional encontrou-se, na América Latina, com movimentos de
defesa do desenvolvimento que vinham desde os anos 1930, em alguns países, e que já

6
Tal modelo defendia uma ação de investimentos simultânea em vários ramos da indústria, a fim de quebrar o
“círculo vicioso da pobreza”. O big push foi melhor definido, mais tarde, por Nurkse.
7
A Unece foi criada pela ONU em 1946 com o objetivo de organizar os estudos sobre a reconstrução
socioeconômica europeia no pós-guerra.

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negavam a validade do liberalismo como forma de promover o desenvolvimento da região 8.


A criação da Comissão Econômica para a América Latina (Cepal), em 1947, representa
ponto forte desse encontro, criando uma instituição que se revelaria como principal espaço
de produção e divulgação dessas “novas teorias” no continente.
Em 1948, o argentino Raúl Prebisch se tornaria Secretário-Executivo da instituição,
lançando no ano seguinte o trabalho O Desenvolvimento Econômico da América Latina e
Alguns de Seus Problemas Principais, definido por Hirschman como “Manifesto Latino-
Americano”, dada a importância que tal texto assumiu. Nele, Prebisch (2000, p. 71-72)
ressalta o descompasso que, em Economia, via-se entre as “ideologias” (teorias) e os
“acontecimentos” (fatos), sendo que aquelas nem sempre acompanham estes. O
subdesenvolvimento, enquanto situação inédita, necessitaria de teorias inéditas, e não da
simples cópia de conceitos tirados da experiência dos países desenvolvidos. O argumento
keynesiano de que o liberalismo só era válido em condições bastante específicas (pleno
emprego) era, de certa forma, reavivado para o Terceiro Mundo, sendo este visto como
condição singular de desemprego e inflação estruturais, não cabendo aí esses aportes
teóricos. A teoria da deterioração dos termos de câmbio, aspecto pelo qual Prebisch ficou
mais conhecido, é uma das personificações desse aspecto.
Desse modo, o desenvolvimento socioeconômico dos países subdesenvolvidos
confundia-se com o desenvolvimento da própria ciência econômica. Defender essas novas
teorias era colocar em pauta a necessidade de melhoramentos dentro da disciplina, que
corresponderiam a melhoramentos similares dentro do mundo real, uma vez aplicados. Em
uma espécie de circuito retroalimentador, a necessidade de uma “nova ciência” indicava
novos jeitos de influenciar a realidade, alterando-a, enquanto desta eram retirados cada vez
mais indicativos que sustentavam essa “nova ciência”, também mudando-a constantemente.
As mudanças teóricas eram uma resposta ao contexto de aceleração, mas que também
acabavam o incentivando.
Há, paralelamente, uma expansão dos problemas presentes na órbita do economista,
o que gerou os comentários restritivos sobre o papel dessa profissão, citados no início deste
tópico. O discurso de que o economista deveria se contentar com “aquilo que cabe à
disciplina” foi uma reação às preocupações cada vez mais sociais - para usar um termo
amplo o suficiente - trazidas por essa outra corrente e que, à primeira vista, fugiriam à
“economia pura”. A concentração dos comentários contrários a essa tendência na questão do

8
Para maiores análises sobre esses movimentos, ver Love (2011).

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“progresso tecnológico” era sintomática: o problema da industrialização era, em grande


parte, um problema de técnica, de uso de máquinas mais avançadas ou não. Para o
oposicionistas da pressa pela industrialização, dizer que não era papel dos economistas
versar sobre progresso tecnológico era uma maneira de minar os argumentos a favor desse
processo. Do mesmo modo, dizer que “economistas não deviam ser estadistas” era uma
maneira de criticar o uso do planejamento econômico estatal como forma de
desenvolvimento.

3. Legitimação e instituições: a disputa na ciência econômica no Brasil


A situação da ciência econômica brasileira não escapava a todas essas disputas
teóricas e políticas. Em 1961, João Paulo de Almeida Magalhães escrevia
O sentimento imediato de quem se encontra em tal situação, e dispõe somente de
aparelhos de análise criados em países de capitalismo avançado é o de completa
frustração. A aplicação pura e simples das conclusões de economistas europeus e
norte-americanos leva, quase sempre, a resultados altamente insatisfatórios
(MAGALHÃES, 1961, p. 7)
Em que pese o tom conciliatório que esse economista adota, em muitas passagens, na
sua obra Controvérsia Brasileira sobre o Desenvolvimento Econômico9, Magalhães não
deixa de atentar para a especificidade do Terceiro Mundo como justificativa para novas
teorias a serem produzidas. Mais do que isso, porém, seu trabalho é exemplo da consciência
de que aquele momento era singular, e que de seus resultados dependia o futuro da
Economia e, mais do que isso, o futuro do país como um todo.
A controvérsia10 sobre o desenvolvimento brasileiro teve vários pontos de inflexão e
picos de agressividade, alternados com períodos de relativa “calmaria”. Segundo Magalhães,
em poucas ocasiões a controvérsia se personificou em embates pessoais, o que não impediu
o reconhecimento de profundas discordâncias dentro do meio científico, de lados que
estavam permanentemente em oposição (ibidem, p. 11). Essa oposição não era simplesmente
de viés teórico: representava mesmo ocupação de instituições e espaços políticos diferentes.

9
Magalhães se esforça, nesse livro, em demonstrar que essa controvérsia poderia ser resolvida adotando pontos
“moderados”, mas não deixa de ser partidário do discurso de “atentar à realidade” para construir a teoria, assim
como de acreditar na especificidade do Terceiro Mundo, que demandaria métodos diferentes do Primeiro,
como o planejamento e a industrialização pelo incentivo do Estado.
10
Controvérsia aqui entendida como na corrente anglo-saxã do social studies, de que, “em um dado momento,
o ato de confrontar teorias científicas não diz respeito somente a seu conteúdo, mas também à sua definição de
ciência, aos lugares onde se pratica a ciência, às modalidades de trabalho e, em termos gerais, às concepções da
prova, à representação do mundo social e às regras que devem governar a comunidade científica”
(CHARTIER, 2012, p. 83).

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Um dos embates mais conhecidos do período - o ocorrido entre Roberto Simonsen e


Eugênio Gudin entre 1944 e 194511 - demonstra bem isso: o industrial Simonsen, advogando
um maior planejamento e ação estatal na economia, representava o viés do Conselho
Nacional de Política Industrial (CNPIC), enquanto Gudin, discordando veementemente das
visões de Simonsen, era ligado à Comissão de Planejamento Econômico (CPE), que optava
por meio mais tradicionais e suaves de intervenção econômica, como mudanças na taxa de
câmbio e juros.
Nesse sentido, é importante frisar que o estabelecimento dessa controvérsia sobre o
desenvolvimento confunde-se com o estabelecimento da própria profissão de economista no
país, que se dava no período, e com a organização do ensino universitário dessa ciência.
Assim, não eram simplesmente os preceitos teóricos que estavam sujeitos a melhoramentos:
paralelamente, a própria estrutura de formação do economista entrava na pauta de discussão.
O jovem aplicado e inteligente que criteriosamente fez o seu curso de Economia,
entre nós, terá conseguido um razoável conhecimento das múltiplas dependências
dessa mansão senhorial que é a teoria dos preços [...] Conhecerá muitas doutrinas
sobre o ciclo econômico [...] Ao enfrentar-se com o mundo real, esse economista
sente-se, para surpresa sua, extremamente frustrado (FURTADO, 1962, p. 93)
Com essas palavras, Furtado criticou a falta de vínculo entre o ensino de Economia e
a realidade dos países subdesenvolvidos. Muito aplicado a teorias puras, o ensino
universitário seria bastante abstrato, não formando profissionais minimamente preparados
para administrar os rumos econômicos do que quer que fosse - desde pequenas empresas até
o Estado nacional. A forma verdadeira de ensinar ciência seria “apresentar seus quadros
conceituais como sistemas de hipóteses”, sendo sempre confrontadas com os dados reais
(ibidem, p. 96). Ignácio Rangel (1957, p. 18) dizia que as leis da ciência haviam perdido
rigidez, tornando-se históricas - ou seja, passíveis de relativização. Furtado conclui que
Existe, no momento presente, óbvia necessidade de reconsideração crítica do
conjunto de ensinamentos teóricos que professamos e aprendemos em nossas
escolas de Economia [...] Desde logo, devemos aceitar como fato comprovado

11
O embate se deu em uma série de quatro textos. O primeiro deles é um parecer de Simonsen ao CNPIC, em
1944, em que aponta a política econômica para o pós-guerra, defendendo a intervenção e o planejamento
industrial, sendo seguido por um relatório de Gudin ao CPE, criticando tal parecer. A tréplica de Simonsen foi
dada também na CPE, já em 1945, revalidando os dados utilizados no parecer original e a necessidade da ação
do Estado. A controvérsia se encerra com uma carta de Gudin, também ao CPE, negando quaisquer desavenças
pessoais, mas reiterando sua posição de que o Estado deveria se ater às atividades que não cabiam à iniciativa
privada (educação, saúde, impostos, infraestrutura, etc.). Gudin é geralmente tido como o “ganhador” do
embate, por dominar melhor as teorias e instrumentos econômicos.

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que entre nós ainda não existe atividade econômica de natureza científica
(FURTADO, op. cit., p. 99)
Esse discurso voltado para o âmbito universitário - e, mais especificamente, à
juventude universitária - era uma preocupação constante de muitos intelectuais partidários
do desenvolvimentismo. Além de Furtado, o filósofo Álvaro Vieira Pinto (1963), ligado ao
Iseb, foi outro dos grandes incentivadores de diálogos maiores com esse setor. Para ele, a
reforma universitária seria um meio de eliminar os “resquícios aristocráticos” do ensino
superior brasileiro, abrindo caminho para que a “juventude insatisfeita” pudesse fazer suas
reivindicações e, assim, garantir a trilha para a mudança revolucionária - o desenvolvimento
- do país. Esse contexto parece corroborar a ligação entre desenvolvimentismo e juventude,
apontada em tom jocoso e irônico por muitos oposicionistas, como Benedito Costa Neto12:
“Já tenho lido e ouvido que o desenvolvimentismo é o moderno deus ex-machina pairando
sobre o espírito das novas gerações brasileiras” (Folha de São Paulo, 30 de junho de 1960, 1º
Caderno, p. 3). A pressa pelo novo e pela mudança caía como uma luva nos anseios de
jovens adultos, que representavam a fronteira da expansão educacional do país - desde a
alfabetização crescente até o próprio ensino universitário. A disputa por uma nova ciência
era, em parte, uma luta de gerações.
Em Economia, a principal instituição de ensino superior, no país, era a Faculdade
Nacional de Ciências Econômicas (FNCE), ligada à Universidade do Brasil (RJ). A FNCE é
instituída em 1945, pelo Decreto-Lei nº 7.998, substituindo a antiga Faculdade de Ciências
Econômicas e Administrativas do Rio de Janeiro (FCEARJ), de caráter privado e mais
regional, e anos após a profissão de economista ser incluída dentro do bojo de “profissões
liberais” da Consolidação das Leis do Trabalho (CLT). As disciplinas exigidas no decreto já
demonstram certo grau de ênfase maior na teoria do que em estudos práticos 13. Já no
segundo governo Vargas (1951-1954), novas regulações são feitas sobre a profissão: a Lei
nº 1.411, de 1951, estabeleceu as normas de titulação e organização desse ramo, criando o
Conselho Federal de Economistas Profissionais, futuro Conselho Federal de Economia. Em
comemoração à realização desta lei, a data de sua promulgação foi escolhida como dia do
economista (13 de agosto).

12
Costa Neto foi vice-presidente do grupo Folha da Manhã S/A a partir de 1951, tendo exercido cargos como o
de Ministro da Justiça (1946 - 1947) e deputado federal (1947 - 1951).
13
Destacam-se História Econômica, História das Doutrinas Econômicas e Princípios da Sociologia Aplicados à
Economia como disciplinas que fogem a esse aspecto. Ao final, porém, constituem minoria.

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Gudin era um dos principais professores da FNCE, exercendo paralelamente cargos


de diretoria na Fundação Getúlio Vargas (FGV), outra instituição de formação em
Economia. Foi também um dos articuladores do decreto-lei de 1945 - onze anos depois, em
1956, ele ainda elogiava essa legislação, negando que necessitasse de quaisquer reformas:
para ele, haveria uma “indefectível tendência em nossa terra para atribuir os nossos males
aos defeitos das leis” (GUDIN, 1956, p. 55). Tal discurso já era uma reação aos problemas
que iam sendo apontados de forma crescente em relação à Faculdade.
Onze anos depois, porém, a FNCE não tinha cumprido com o que se esperava dela. É
sintomático que a leva de economistas desenvolvimentistas não tenham passado pela
Faculdade: Furtado era formado em Direito pela Universidade do Brasil, fazendo doutorado
em Economia na Sorbonne (França), assim como Almeida Magalhães; Rangel era também
formado em Direito, mas pela Faculdade São Luís (MA), e sua especialização em Economia
foi de maneira autodidata, trabalhando em órgãos como a Assessoria Econômica de Vargas
e no Iseb, e posteriormente participando de cursos da Cepal; coisa similar ocorreu com
Rômulo de Almeida, formado pela Faculdade de Direito da Bahia, mas que enveredou pelo
campo econômico trabalhando em institutos estatísticos e na referida Assessoria; Jesus
Soares Pereira, que não tinha formação acadêmica, fez sua carreira no Ministério da
Agricultura, atuando posteriormente no Conselho Federal de Comércio Exterior (CFCE), na
FGV e também na Assessoria de Vargas; Hamilton Prado era advogado pela Faculdade de
São Paulo, trabalhando na consultoria econômica da Companhia Antártica Paulista,
conseguindo cargo no Conselho Federal de Economia em 1950.
São apenas alguns exemplos do “problema” que Gudin - ele mesmo, formado em
Engenharia - e os articuladores da FNCE não conseguiram resolver até os anos 1950: a
maioria dos economistas tinha uma formação autodidata ou, em raros casos, no exterior. Ter
o título de “economista”, apesar da legislação então vigente, ainda se passava por meios que,
aos olhos de hoje, parecem heréticos. A legitimação do economista enquanto tal ainda
estava, em boa parte, fora dos meios acadêmicos: demonstrar conhecimento na área,
trabalhando e produzindo nela, era suficiente para o reconhecimento dos pares. As
disciplinas econômicas dadas nos cursos de Direito ainda eram a principal fonte de
formação básica. Por outro lado, o fato de não passarem pela FNCE (ou pela FGV, ou por
qualquer outra) permitiu a esses economistas “forasteiros” reunir instrumentos outros que,
pelo contexto do período, ganharam legitimidade como meios de contestação do padrão de
ensino estabelecido. O discurso de nova ciência estava ligado à meios de formação não

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convencionais - ao mesmo tempo, não há o desejo de se continuar alheio às faculdades de


Economia, pelo contrário: há o desejo de se inserir nelas e, então, mudá-las.
Dentro do país, outros meio de formação em Economia foram ganhando espaço. O
Iseb foi um deles, mas também os cursos oferecidos pela Cepal foram outro ponto
importante, que acabava reunindo aqueles que já se interessavam pela temática do
desenvolvimento, que não eram poucos. Além da formação, porém, também meios de
divulgação científica alternativos eram tentados.
No Brasil, havia a bem estabelecida Revista Brasileira de Economia (RBE), da FGV,
sob direção do onipresente Gudin, com ajuda de outros intelectuais de peso, como Octávio
Bulhões. Embora seja tida, nesse período, como órgão de propagação de ideias ortodoxas no
país, nem sempre a RBE teve esse viés. Pelo contrário, sua exacerbação liberal foi
consequência da escalada da controvérsia desenvolvimentista no cenário brasileiro. No final
dos anos 1940 e início dos 1950, a RBE ainda abria espaço para economistas de outras
correntes: foi lá que Furtado publicou muitos de seus primeiros textos, assim como a
tradução de O Desenvolvimento Econômico da América Latina, de Prebisch. Furtado, que
inclusive chegou a trabalhar em outra revista da FGV (a Conjuntura Econômica, mais
voltada a pesquisas estatísticas), cita um expurgo ideológico feito na Fundação, por volta de
1953, que demitiu, entre outros, o editor da Conjuntura, Américo Barbosa de Oliveira, e
Jesus Soares Pereira (FURTADO, 1985, p. 83). Esse acontecimento marca a virada
definitiva para o lado liberal da RBE e da FGV, assim como a tomada de consciência de
Furtado da necessidade de um meio de divulgação científica que pudesse entrar em choque
com a RBE.
Existiam outras revistas de temas econômicos não ortodoxos à época, como a
Brasiliense, ligada a marxistas como Caio Prado Júnior e Nelson Werneck Sodré, ou a
Desenvolvimento & Conjuntura, ligada à Confederação Nacional da Indústria (CNI). Porém,
a necessidade vista por Furtado da criação de uma outra se justifica não só porque ele não
via como maiores afinidades nessas outras publicações, mas também porque procurava uma
instância de legitimação que tivesse um status de igual para igual com a FGV enquanto
núcleo intelectual e científico.
Nesse bojo, Furtado decide reunir economistas de visão parecida com a sua - entre
eles, Américo Barbosa e Jesus Pereira - e, em 1954, é fundado o Clube dos Economistas,
que passam a ter uma publicação, a Revista Econômica Brasileira. Pouco se sabe sobre o
funcionamento interno do Clube, como aponta pesquisa feita por Andrada, Boianovsky e
Cabello (2016). Os ganhos vinham das assinaturas da Econômica Brasileira, que nunca

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foram muitas, exigindo que os membros do Clube tivessem, por vezes, que tirar dinheiro de
seus próprios bolsos para financiar a revista. Como consequência, muitos números deixaram
de ser publicados, sendo o último volume da revista lançado em 1962 - o Clube só acabou
definitivamente após o golpe de 1964 (ANDRADA et. al., 2016, p. 12-16).
Enquanto existiu, porém, a Econômica Brasileira foi importante meio de divulgação
de ideias desenvolvimentistas dentro do âmbito científico - mesmo publicando artigos de
outras correntes, como do próprio Gudin. Ignácio Rangel e Hélio Jaguaribe (além, claro, de
Furtado) foram alguns dos nomes já consagrados que tiveram trabalhos publicados na
revista, assim como outros economistas que ainda se tornariam ilustres, como Delfim Netto
e Mário Simonsen. Mesmo não atingindo o mesmo grau de estruturação que a RBE,
representou um esforço independente de criar novos espaços para sociabilidade científica
nacional.
Desse modo, vemos que a controvérsia desenvolvimentista não se limitou às simples
teorias, mas enveredou pelo esforço consciente de intelectuais de criar grupos e instituições,
mais ou menos coesos, como forma de ganhar força simbólica dentro das disputas por uma
“nova” ciência econômica que pareciam ser da ordem do dia no contexto de então. “Pressa”
e “novo” tiveram um casamento perfeito, em que a superação de uma velha ordem, no
menor prazo possível, exigia cada vez mais aparatos que fossem capazes de levar esse
processo adiante.
O que estava em jogo era, de fato, uma nova legitimidade do fazer científico em
Economia, que representava novas cobranças sociais feitas a esta ciência. Houve um
alargamento das preocupações do economista, assim como de suas funções dentro da
sociedade - e do aparelho de Estado, principalmente. No Brasil, pois, podemos dizer que a
controvérsia desenvolvimentista foi a parteira da maior estruturação da ciência econômica,
de uma nova legitimação que a permitiu adentrar maiores espaços, influenciar a política e
ganhar um novo peso social.

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