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Projeto

08
"MEMÓRIA-Nona Ilha"

VIEIRA, ALBERTO

DE ROMARIAS E ARRAIAIS NO MUNDO INSULAR

Cadernos de divulgação do CEHA.


Projeto “Memória-Nona Ilha”/SRETC/DRC, N.º 08.
VIEIRA, Alberto – De romarias e arraiais no mundo insular.

Funchal. Outubro de 2018.


De romarias e arraiais no mundo insular

DE ROMARIAS E ARRAIAIS NO MUNDO INSULAR

ALBERTO VIEIRA*
CEHA-SRETC-MADEIRA

ALBERTO VIEIRA. N. 1956. S. Vicente Madeira. Títulos Académicos


e Situação Profissional: 2016- Coordenador do CEHA e de projetos de
investigação; 2013-2015:Diretor de Serviços do CEHA; 2008- Presidente
do CEHA, 1999 - Investigador Coordenador do CEHA; 1991-Doutor em
História (área de História dos Descobrimentos e Expansão Portuguesa), na
Universidade dos Açores; 1980. Licenciatura em História pela Universidade
de Lisboa. ATIVIDADE CIENTÍFICA. Pertence a várias academias
da especialidade e intervém com consultor científico em publicações
periódicas especializadas. É Investigador-convidado do CLEPUL-Lisboa.
Membro da Catedra Infante Dom Henrique. Desenvolveu trabalhos de
investigação nos domínios da História do Meio Ambiente e Ecológica,
História da Ciência e da Técnica, O Mundo das Ilhas e as Ilhas do Mundo,
História da Autonomia, História da Ciência e da Tecnologia, História
da Escravatura, História da Vinha e do Vinho, História das Instituições
Financeiras, História do Açúcar. Atualmente desenvolveu estudos e
coordena projetos sobre Historia Oral /Autobiográfica, com os projetos:
MEMÓRIA das Gentes que fazem a História; NONA ILHA- as Mobilidades
Madeirenses; AUTONOMIA. Memórias e testemunhos. PUBLICAÇÕES.
Tem publicado diversos estudos, em livros e artigos de revistas e atas de
colóquios, sobre a História da Madeira, dos espaços insulares atlânticos,
da Nissologia/Nesologia e sobre os temas de investigação referidos acima.
Informação curricular desenvolvida em: https://app. box.com/s/248a0h63
7wi5llm26o66o9bbw2kd182z.

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De romarias e arraiais no mundo insular

Romeiros atravessando o Paul da Serra em direção ao arraial do Senhor Bom Jesus de Ponta Delgada.

Este ano eu vou ao Monte,


Pró ano, à Ponta Delgada,
Só pelo gosto que tenho
De subir a Encumeada.

Abaixa-te, Pico Alto,


Alteia-te, Encumeada,
Eu quero ver os romeiros,
Que vão prá Ponta Delgada.

Trabalhei um ano inteiro,
Um ano, sim, dia a dia,
Pra comprar o meu tambor
Prá gente ir à romaria.
PEREIRA, 1971, pp. 14, 15

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De romarias e arraiais no mundo insular

O turismo religioso tem sua origem no exercício contemporâneo da peregrinação. O turista


religioso, nesses termos, não deixa de ser um peregrino. Apenas atualiza essa prática
adaptando sua viagem – ora parcial, ora plenamente – às características do processo
turístico, conforme o contexto socioeconômico do fenômeno religioso em questão.
(OLIVEIRA, Christian Dennys Monteiro de. Turismo Religioso.
São Paulo: Aleph, 2004, p. 13)

O que era Romaria? Um caminhar, muitas vezes penoso, doloroso até, em condições volun-
tariamente precárias,por isso demorado, mas cheio de encantos – imersão numa natureza
selvagem e encontros lúdicos no caminho – até a concretização da apresentação e presen-
ça do peregrino a um “Santo”: santuário próximo ou longínquo, Sagrado feito gente, com
quem se conversa, se troca bens, energia e saúde (promessas), perto de quem se vive uma
pequena porção de tempo, o tempo feito Festa: comida, bebida, encontros, dança; até a
volta para um quotidiano transfigurado, já na espera de outra romaria. Um ritmo de vida
– e na vida. Uma relação constituinte com oalém-vida fonte da vida, o Sagrado. Mas uma
relação tradicionalmente pouco regulada pela instituição (a Igreja) em princípio investida
da missão de apresentar, representar, concretizar e distribuir este Sagrado à sociedade
profana em que os homens instauram o quotidiano de suas vidas. Por isso, esta procura
ativa de “refontalização”, a partir de iniciativas repetidamente administradas por cada
um, no quadro de uma tradição que dificilmente aceitava para isso regulações autoritá-
rias, aparecia com freqüência às autoridades eclesiásticas (e políticas) como descamban-
do para manifestações de “paganismo”: promessas sangrentas em atitudes penitenciais
excessivas, que criavam um foco de devoção autônomo, popular e não-oficial, cantos e
espetáculos “profanos”,“arraiais noturnos”, bebedeiras, eventualmente sexo e violência.…
As “romarias” são caso típico de encontro e fricção (criativa) entre a religião do “povo”
e a do “clero”. As multidões peregrinas são em princípio “leigas”, dirá Dupront, o grande
especialista das peregrinações...
(Sanchis, P. (2006). Peregrinação e romaria: um lugar para o turismo religioso. Ciencias
Sociales y Religión/Ciências Sociais e Religião, 8(8),p. 86 e 88)

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De romarias e arraiais no mundo insular

RESUMO

Partindo da ideia de que existe uma prática cultual ligada à Religião, que estabelece um movimento
interno e externo no espaço insular conducente a uma gestão devocional relacionada com a “salvação da
alma”, em que se determinam condutas mobilizadoras geradoras de peregrinações e de uma forma especial
de devoção, parece-nos importante destacar esta realidade enquanto marca da memória e identidade insular.
Olhando os três arquipélagos (Açores, Canárias, Madeira), notámos diferenças notórias na forma como
são vivenciados os diversos rituais. Todos são, porém, um importante fator da mobilidade e da vida das popu-
lações. Se, em relação às Canárias, estamos perante uma diferente matriz europeia, no caso dos arquipélagos
portugueses, a matriz é idêntica, mas revelam formas de evolução distinta, daí a riqueza da situação.
A religiosidade e o calendário das festas e peregrinações determinam uma mobilidade específica, com
o fim de pagar promessas, assumir o custo das festividades do orago, na condição de festeiro ou fazer a
peregrinação a locais sagrados ou devocionais. Esta  mobilidade devocional gera uma realidade distinta em
termos do turismo, hoje conhecido como turismo religioso. Unidos ambos os caminhos, há um desejo, uma
esperança ligada à devoção religiosa, que tem por finalidade a salvação da alma. Daí que esta seja para nós
uma vertente da “economia do céu”, que já tivemos oportunidade de teorizar e documentar e que agora
ampliamos com mais esta realidade diferenciadora da memória e identidade insular.
A “economia do céu” surge-nos na função dos chamados festeiros ou mordomos da festa que assumem
os encargos da celebração religiosa e do arraial, esperando com isso ser recompensados no retorno, com a
salvação da alma associada ao reconhecimento social. Esta atitude, muitas vezes ostensiva, parte quase sem-
pre dos emigrantes, que retornam temporariamente à ilha em romagem de gratidão e de afirmação social.
PALAVRAS-CHAVE: Açores, Arraiais, Canárias, Festividades, Madeira, Mobilidades, Peregrinação, Roma-
rias, Rumerias, Turismo Religioso.

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De romarias e arraiais no mundo insular

Max Römer (1878-1960): Cartão de Boas Festas aguarelado.

DE ROMARIAS E RUMERÍAS NAS ILHAS

A
forma de ocupação e organização dos três arquipélagos (Açores, Canárias, Madeira) deu-se, de
modo diferente, quer em termos de ritual e devoção. Todos são um importante fator da mobilidade
e da vida das populações insulares.
Se, em relação às Canárias, estamos perante uma diferente matriz europeia, no caso dos arquipélagos
portugueses esta será idêntica, não obstante as diversas origens geográficas dos povoadores. O devir his-
tórico, contudo, revela formas de evolução distinta. Desta forma, o quadro que hoje se nos depara é o de
diferentes formas da religiosidade popular, com expressões particulares na devoção e na vivência do profano
que as acompanha. Mas em todos é manifesta a mesma atitude de caminho espiritual interior, a penitência
e o sacrifício e a prática de pagamento das promessas. Talvez, nos Açores, a situação dos romeiros quares-
mais seja a que revela, de forma mais clara, esta situação, enquanto nas Canárias1 e na Madeira, na romaria/
rumería aquilo que mais se torna notório é o arraial que as acompanha, tornando mais evidentes os aspetos
profanos e o espetáculo que as acompanha.

1 Cf. GALVÁN TUDELLA, Alberto, 1987, Las Fiestas Populares Canarias, S.C. Tenerife, Interinsular-Ediciones Canarias; ARRETO V., Carmen Marina,
1997, “Romerías” en Los símbolos de la identidad canaria, Santa Cruz de Tenerife: Centro de la Cultura Popular Canaria; GALVÁN T., Alberto, 1987: Las
fiestas populares canarias, Tenerife: Interinsular Canaria; id., 1984, Los corazones de Tejina, Santa Cruz de Tenerife: Cabildo Insular de Tenerife; id., 1987, as
Fiestas Populares Canarias, Santa Cruz de Tenerife: Interinsular Canaria; GALVÁN T., Alberto y otros. 1989: “La fiesta: Multiplicidad de interpretes,
pluralidad de significados” en Revista Eres 1, vol. 1, pp. 37- 72; GALVÁN, Alberto y BERMUDEZ, F.:, 2000, “Fiestas populares de Canarias” en Cultura
Tradicional canaria, vol. 1, Las Palmas de Gran Canaria: Gobierno de Canarias/Canarias 7. [ Edición en CD]; SANTANA J. , 2001, Gustavo: Fiesta y
modernidad. Análisis de las Transformaciones del Sistema Festivo en Gran Canaria a finales del Siglo XX, Gran Canaria: FEDAC.

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De romarias e arraiais no mundo insular

Nos Açores, em especial na ilha de S. Miguel, os romeiros quaresmais2 continuam a marcar na época
da Páscoa uma mobilidade interna e externa que movimenta açorianos e não açorianos, não contendo a
componente profana do arraial. É neste quadro que os romeiros açorianos adquirem características distin-
tas, que não encontramos nos outros dois arquipélagos. A componente do arraial ganha expressão de uma
forma idêntica na festa do Senhor Santo Cristo, a romaria rainha do arquipélago e que mobiliza residentes e
emigrantes. Encontra situação similar na Madeira com a senhora do Monte ou, nas Canárias, com a Virgem
da Candelária3, patrona do arquipélago.
Por outro lado, os Açores revelam uma diferença na vivência do arraial. Partem sempre da devoção
popular ao divino Espírito Santo, que tem como sede, uma construção diferenciada do templo religioso que
acolhe toda a vivência profana4. As festas do Espírito Santo nos Açores são as festas, por excelência dos Aço-
res, onde o arraial assume uma função de destaque.5
Na Madeira, até princípios do século XX, esta devoção era semelhante, mas a intervenção da estru-
tura eclesiástica fê-la mudar de rumo, acabando com o “teatro” de raiz ou improvisado, como sede destas
manifestações, de forma que, hoje, quase só se resume às visitas pascais6. As romarias populares, de Nossa
Senhora do Monte, do Senhor Bom Jesus da Ponta Delgada, de Nossa Senhora do Loreto de Nossa Senhora
do Rosário em S. Vicente ou do Senhor dos Milagres em Machico, roubaram-lhe protagonismo. As Festas
do Espírito Santo são diferentes, na atualidade. O que ficou na História e tradição madeirense foi o Espírito
Santo da Camacha, a que se associou uma romaria e arraial7. No Porto Santo, também acontece uma situação
muito especial da romaria e arraial da capela do Espírito Santo, no Campo de Baixo, em agosto, mas com uma
vertente distinta de romaria e arraial8, tratando-se de uma festa muito importante.
A expressão da religiosidade e devoção diferenciam-se pelo santo que motiva esta situação, mas em
todas as ilhas, a estrutura da expressão é semelhante. Há uma situação ou lenda na origem desta devoção e
que atua muitas vezes como fator de afirmação desta devoção popular. Depois, a romaria e o arraial vão-se
moldando às condições da época, ganhando cada vez mais animação e colorido: são as iluminações e enfei-
tes, o fogo-de-vista e de estalo, a música em forma de execução popular, pelas bandas filarmónicas, aparelhos
de reprodução e conjuntos musicais.
2 Cf. Carvalho, A. M. P. G. (2012). Romeiros de São Miguel: a música na caminhada da Quaresma (Doctoral dissertation, Faculdade de Ciências Sociais e Hu-
manas, Universidade Nova de Lisboa); LEAL, J. (1989). As Romarias Quaresmais de São Miguel (Açores), Estudos Em Homenagem de Ernesto Veiga de
Oliveira, Lisboa, pp. 409-436; FERREIRA, Pe. Ernesto, 1959, As Romarias Quaresmais na Ilha de São Miguel. Sua Origem e Antiguidade. Insulana, Vol.
XIV: 135 a 14; id., 1962, Regulamento dos Romeiros da Ilha de São Miguel — Açores. Boletim do Governo Eclesiástico dos Açores, vol.: 37, n.° 816: pp. 38
a 46; RIBEIRO, Luís da Silva, 1983, (1942) Romeiros Terceirenses. Obras, vol. III, Angra do Heroísmo, I.H.I.T. / S.R.E.C.: 97 a 98. SARAIVA. Alvaro
e Dias, Teixeira, 1987, Romeiros, Peregrinos de Hoje. Ponta Delgada: edição dos autores; COUTINHO, Alexandre & Luís Felipe Mota Machado & Pedro
Mota Machado, 2006, A Irmandade dos Romeiros, Portugal: Lucerna (1ª ed.); MOURA, Mário & Rodrigues, José António. s.d. Rostos de Fé- Romeiros na Ilha
de São Miguel. Ponta Delgada: Publiçor; VIEIRA, Carlos Manuel Bolarinho, 2004, Diário de uma romaria: rancho de Romeiros da Matriz de São Miguel Arcanjo.
Vila Franca do Campo: Câmara Municipal; BETTENCOURT, José M., 1984, Para a sociologia da música tradicional açoriana. Lisboa: Instituto de Cultura e
Língua Portuguesa - Ministério da Educação, Biblioteca Breve.
3 MARTÍNEZ, A. J., & ÁLVAREZ, G. S., 2017, La Candelaria: herencia cultural de Canarias en la ruta de la mar atlántica: España-Cuba-México/La
Candelaria: cultural heritage of the Canary Islands in Atlantic sea route: Spain-Cuba-Mexico, XXII Coloquio de Historia Canario-Americana, Las Palmas de
Gran Canaria, pp. 1-12.; GUZMAN ARIAS, C. (2011). Historia de la Virgen de la Candelaria. Puno, Perú: IDS-ILLARI.; ESPINOSA, A. de (1980) [1594].
Historia de Nuestra Señora de Candelaria. Introducción de Alejandro Cioranescu. S/C de Tenerife: Goya.
4 Cf. LEAL, João, 1984, Etnografia dos Impérios de Santa Bárbara (Santa Maria, Açores), Lisboa, Instituto Português do Património Cultural; LEAL, J. (1994).
As festas do Divino ES nos Açores: um estudo de antropologia social. Lisboa: PDQ.
5 Cf. COSTA, Antonieta; FÉLIX, Emanuel; FONSECA, Hélder; CABRAL, Mário, 2007, Pelo sinal do Espírito Santo. Angra do Heroísmo: Presidência do
Governo Regional dos Açores, Direcção Regional da Cultura; DUARTE, M., & RAACH, K. H. (2004). As Festas do Espírito Santo na Ilha Terceira–A
Dádiva e a Partilha/The Holy Ghost Celebrations in Terceira Island–A Way of Giving and Sharing. Angra do Heroísmo: Blu Edições; ENES, M. F. (2004).
As festas do Divino Espírito Santo nos Açores: solidariedade e fraternidade. Em nome do Espírito Santo. História de um Culto, 80-87; Leal, João, 1994, As Fes-
tas do Espírito Santo nos Açores, Um Estudo de Antropologia Social, Lisboa, Publicações Dom Quixote; Leal, J. (1991). Ritual e estrutura social numa freguesia
açoriana. As festas do espírito santo em Santo Antão (São Jorge). Lugares de aqui-actas do seminário “Terrenos Portugueses, 27-47; Simões, M. B. (1987). Roteiro
lexical do culto e festas do Espírito Santo nos Açores. Instituto de Cultura e Língua Portuguesa, Ministério da Educação.
6 Cf. VIEIRA, Alberto, 2016, “As Festas do Divino nas Ilhas e Brasil”. in CONGRESSO INTERNACIONAL DO ESPÍRITO SANTO (CIES), “Gé-
nese, Evolução e Actualidade da Utopia da Fraternidade Universal”, organizado, em parceria, com o Centro de Estudos Clássicos e Humanísticos, o
Centro de História da Sociedade e da Cultura da Univ. de Coimbra, o CLEPUL da Universidade de Lisboa, a CIDH da Universidade Aberta e o Instituto
Europeu de Ciências da Cultura Padre Manuel Antunes de Coimbra. 15 e 17 de setembro, em Lisboa e Alenquer; VIEIRA, Alberto, 2016, As festas do
divino, das ilhas para o Brasil? Um caminho ainda por revelar. Cadernos de divulgação do CEHA. Projeto “Memória-Nona Ilha”/DRC/SRETC, N.º
05. Funchal. Setembro de 2016. Disponível em: https://app. box.com/s/5vq1cgqdk8ovhb5j9xt25odrqtk7nx0o .
7 Cf. Dn, 12.06.1889, p. 1.
8 DN.24.08.1934, p. 1; DN.18.08.1935, p. 2.

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De romarias e arraiais no mundo insular

Filarmónica Recreio dos Lavradores, 1894. Photographia museu “Vicentes “, Funchal

A indumentária tinha, dantes, lugar especial, com os chamados trajes da romaria, ou nas Canárias a
chamada roupa do “mago”, isto é o traje típico. Mas sem dúvida o mais esperado era a gastronomia, que se
divide entre os doces da romaria e os pratos da romaria, servidos aos romeiros, para recuperar forças após
uma caminhada.

Grupo de Romarias Antigas do Rochão, 1945

A forma de expressão destas tradições festivas através da música e danças, do traje, da alimentação,
acabam por definir a identidade de cada região, lugar, ilha ou arquipélago. São factores identificadores da
imagem e identidade de uma população que perdura no tempo e os diferenciam dos demais. E são estes ele-
mentos identitários que se revivem anualmente, daí a força da sua presença e atualidade e que fazem parte
daquilo que a mobilidade gerada pela emigração leva ao mundo inteiro.
A partida da ilha sempre foi dolorosa, porque um salto no desconhecido e era o primeiro momento de
invocação dos santos da devoção popular que faziam os arraiais. Na Madeira, temos muitas manifestações
de expressão desta religiosidade. Para 1887, temos o jornal de viagem escrito por João Baptista de Oliveira
e Vicente de Ornelas, que relata a viagem da Madeira (a 8 de novembro de 1887) ao Hawaii (a 14 de abril de
1888.), no navio inglês Thomas Bell,9 onde são manifestos os testemunhos mais evidentes da religiosidade
popular, assentes nesta devoção geradora dos arraiais.
9 OLIVEIRA, João Baptista de, ORNELAS, Vicente de, “Destination, Sandwich Islands”, trad. Lucille da Silva Canario, in Hawaiian Journal of History, vol.
4, Honolulu, 1970. Cf. “Da Madeira para as Ilhas Sandwich, via Cabo Horn, a bordo do navio Inglês “Thomas Bell”, ; CALDEIRA, Susana, 2010, Da
Madeira para o Hawaii: A Emigração e o Contributo Cultural Madeirense, Funchal CEHA, pp. 88-96.

CADERNOS DE DIVULGAÇÃO DO CEHA 8


De romarias e arraiais no mundo insular

As comunidades de emigrantes são sempre o espelho de uma realidade doutros tempos, que o progres-
so devorou, mas que podemos encontrar, parada no tempo, nos destinos onde estas comunidades assumem
alguma dimensão, como espelho das memórias que acompanharam os emigrantes no momento de partida10.
É essa força identitária das vivências e religiosidade popular que os une no local de destino e os traz de retor-
no à sua terra natal11. Daí a devoção à Nossa Senhora do Monte, do Loreto ou o Bom Jesus da Ponta Delgada
para os madeirenses12, ou a Virgem da Candelária para os Canarianos13 ou as festas do Divino para os Açores14.
A mobilidade humana, tão característica do mundo português, que Eduardo Lourenço15 resume na ideia
de nação-navio, implica esse movimento de pessoas, mas também de usos e tradições. A região ou município
de origem atuam como elo gerador e catalisador da comunidade de origem, sendo um fator de reforço des-
sas revivências, daquilo a que M.B. Rocha-Trindade16 define como micro pátrias. Há, assim, um processo de
desterritorialização17 e transnacionalização18 que define este movimento gerando a chamada L(U.S.A)landia
10 Sobre isto queremos destacar os estudos da antropologa B. FELDMAN-BIANCO (1992-2009). Cf. CF. FELDMAN-BIANCO, B. (2009). Reinventan-
do a localidade: globalização heterogênea, escala da cidade e a incorporação desigual de migrantes transnacionais. Horizontes Antropológicos, 15 (31), 19-50;
Feldman-Bianco, B. (2009). «A taste of portugal»: transmigração, políticas culturais e a mercantilização da «saudade» em tempos neoliberais. Ler História,
(56), 105-199; FELDMAN-BIANCO, B. 2007, Empire, postcoloniality and diasporas (feature). Hispanic Research Journal, London: University of London,
v. 8, n. 3, p. 267-278; FELDMAN-BIANCO, B., 2001, Brazilians in Portugal, Portuguese in Brazil: constructions of sameness and difference. Identities:
Studies in Politics and Culture, v. 4, n. 4, p. 607-650; FELDMAN-BIANCO, B. (1997). Imigração, confrontos culturais e (re) construção de identidade
feminina: o caso das intermediárias culturais portuguesas. Horizontes Antropológicos, 65-83; Feldman-Bianco, B. (1996). Imigrantes portugueses, imigrantes
brasileiros. Globalização, antigos imaginários e (re) construções de identidade (uma comparação triangular). Projeto integrado: identidades: reconfigurações de
cultura e política. Estudos de migrações transnacionais de população, signos e capitais, 607-50; Feldman-Bianco, B. (1996). Imigrantes portugueses, imigrantes brasi-
leiros. Globalização, antigos imaginários e (re) construções de identidade (uma comparação triangular). Projeto integrado: identidades: reconfigurações de cultura
e política. Estudos de migrações transnacionais de população, signos e capitais, 607-50; Feldman-Bianco, B. (1995). The state, saudade and the dialectics of deter-
ritorialization and reterritorialization. Oficina do CES, 46, 1-36; Feldman-Bianco, B., & Huse, D., (1995). Entre a saudade da terra e a América: memória
cultural, trajetórias de vida e (re) construções de identidade feminina na intersecção de culturas. Ler História, (27/28), 45-73; Feldman-Bianco, B. (1995).
A criação de uma nação (portuguesa) desterritorializada e a transnacionalização de famílias. Cadernos (Universidade de São Paulo, Centro de Estudos Rurais e
Urbanos), 6, 89-104; Feldman-Bianco, B. (1993). Múltiplas camadas de tempo e espaço: (re) construções da classe, da etnicidade e do nacionalismo entre
imigrantes portugueses. Revista crítica de ciências sociais, 38, 193-223; FELDMAN-BIANCO, B. Multiple layers of time and space: the construction of class,
ethnicity and nationalism among Portuguese immigrants. In: GLICK SCHILLER, N., BASCH, L.; SZANTON, C.(Org.). Transnational perspective on
migration: race, class, ethnicity and nationalism reconsidered. Nova Iorque: New York Academy of Sciences, 1992. p. 145-174. (Annals of the New York
Academy of Sciences, v. 645).
11 Note-se que nos Estados Unidos da América em Noton em 1934 a comissão das festas dizia que este era um momento para ”matar saudades dos tempos
que se passavam em festas idênticas na formosa ilha da Madeira” e convidava todos “a passar um dia como se estivessem na Madeira.”. Cf. MENDON-
ÇA, Duarte, 2007, DA MADEIRA A NEW BEDFORD. Um capítulo ignorado da emigração portuguesa nos Estados Unidos da América, Funchal, p 295.
12 Nas décadas de vinte e trinta aparecem notícias do reavivar das principais romarias da ilha, nomeadamente do Monte, do Bom Jesus da P. Delgada,
do Santíssimo Sacramento, (Mendonça, 2007: 236, 267-268, 285, 292-296) a Romaria da Camacha (ibidem, 286); VASCONCELOS, Mota, Epopeia do
Emigrante Insular, Subsídios para a sua História, Movimento para a sua Consagração, Lisboa, s. ed., 1959.
13 JUÁREZ MARTÍNEZ, A. (2008). De hortelanos a piratas. Ensayos sobre la cultura canaria en Veracruz. México: Editora del Gobierno del Estado.
14 Cf. Sobre as festividades nas comunidades açorianas, nomeadamente nos Estados Unidos da América: APALHÃO, João António; ROSA, Victor M.
Pereira da, 1983. Da emigração à aculturação: Portugal insular e continental no Quebeque. Lisboa: Casa da Moeda; CABRAL, S. L., 1989.Tradition and transforma-
tion: Portuguese feasting in New Bedford. New ork: AMS Press; COSTA, 2010, Antonieta. Festividades populares e mitos arcaicos na nova geografia atlântica. Ponta
Delgada: Direcção Regional da Cultura; Leal, João, 2002, “Identities and Imagined Homelands: Reinventing the Azores in Southern Brazil”, Diaspora.
Journal of Transnational Studies 11 (2), 233-254; Leal, João, 2004, “A Pomba e a Águia: as Festas do Espírito Santo nas Comunidades Açorianas dos EUA”,
Actas do III Colóquio “O Faial e a Periferia Atlântica nos Séculos XV a XX, Horta, Núcleo Cultural da Horta-Câmara Municipal da Horta-Casa da Cultura
da Horta, 153-174; Leal, João, 2005, “We Are Azorean. Discourses and Practices of Folk Culture in Santa Catarina (Southern Brazil)”, Klimt, A. e J.
Leal (eds.) “The Politics of Folk Culture: Reflections from the Lusophone World”, Etnográfica IX (1), 171-193; Leal, João, 1996, “Festa e Emigração
numa Freguesia Açoriana”, Baptista, F. O., J. P. Brito e B. Pereira (eds.), O Voo do Arado, Lisboa, Museu Nacional de Etnologia, 582-589; Leal, J. (2005).
Tradição e tradução: festa e etnicidade entre os imigrantes açorianos nos EUA. Revista da Faculdade de Ciências Sociais e Humanas, 16, 87-108.
15 Cf. Lourenço, E. (1974). Identidade e Memória: o caso português. Conflitos e Mudanças em Portugal, 1984, 18. Sobre esta ideia cf. Nascimento, N. A. (2014).
A jangada e a nau: a nação portuguesa de José Saramago e de Eduardo Lourenço. Revista Letras, 90 (2); Angelini, P. R. K. (2012). De partidas, ausências e
não regressos: o discurso antiépico de Lobo Antunes. Letras (UFSM); Sabine, M. (2010). “ Pedaços de corpos envoltos no coral”: cânone literário, identidade e
expressão” queer” em” Salsugem” de Al Berto. Colóquio-Letras, 173, 47-63; Dutra, R. L. (2010). Literatura e Insurreição. Revista Magistro, 1 (1); Bela Feld-
man-Bianco, 1999, A Família na Diáspora e a Diáspora na Família In: Holanda, Heloísa Buarque de & Capelato, Maria Helena Rolim. Relações de Gênero
e Diversidades Culturais nas Américas. São Paulo, EDUSP, pp 253-273. 
16 1987, “As Micro pátrias do interior Português”, Análise Social, Revista do lnstituto de Ciências Sociais da Universidade de Lisboa, Terceira Serie, vol.
XXIII, 4: 721-732.
17 Sobre desterritorialização Cf. Haesbaert, R. (2005). Da desterritorialização à multiterritorialidade. Boletim Gaúcho de Geografia, 29 (1); HAESBAERT, R.
(2005). Migração e desterritorialização. Cruzando fronteiras disciplinares: um panorama dos estudos migratórios. Rio de Janeiro: Revan, 35-46; Costa, R. H. (2004). O
mito da desterritorialização: do” fim dos territórios” à multiterritorialidade. Bertrand Brasil; Haesbaert, R. (2004). Definindo território para entender a desterrito-
rialização. O mito da desterritorialização. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil.
18 Sobre o discurso da transnacionalismo: Brittos, V. C. (2005). Globo, transnacionalização e capitalismo. Rede Globo, 40, 131-145; Glick Schiller, Nina &
Basch, Linda & Szanton Blanc, Cristina. (1995). From Immigrant to Transmigrant: Theorizing Transnational Migration. Anthropological Quarterly. 68.
10.2307/3317464; GLICK-SCHILLER, N. etal-1992. “Transnationalism: a new analytic frameworlc: for understandingmigration”. In: Glick-Schiller,
N., Basch, L., & Blanc-Szanton, C. (Eds.). (1992). Towards a transnational perspective on migration: Race, class, ethnicity, and nationalism reconsidered. New York

CADERNOS DE DIVULGAÇÃO DO CEHA 9


De romarias e arraiais no mundo insular

19
ou, para os Açores, a “Décima Ilha” e, para a Madeira, a “Nona Ilha”.
Mas não podemos esquecer esta fronteira ténue que delimita a romaria da peregrinação e que tanto se
faz sentir nos Açores, Canárias ou Madeira. E, por força disso ambas se confundem, muitas vezes. De acordo
com Alberto Galván Tudella,20 “Los términos rumerías y Peregrinación son diferentes sin duda (…). Hacen re-
ferência a fenómenos de massa y de indivíduos, a fiesta y promessa, pero a menudo ambos se unifican. Los
romeros incluyen tanto a a unos como outros, pues muchos (…) aprovechan para cumplir una promessa la
ocasion de una fiesta, de una romería. Más aún, la promessa se convierte a menudo en el primer acto de un
ritual, al que prosigue la fiesta. No obstante es cierto, son muchos (…)que visitan santuários o eremitas para
cumplir uma promessa por un hijo recién nacido. Una peregrinación está ligada al sufrimiento, al silencio, a
los pies descalzos, a una visita al santuário caminhando de rodillas desde la entrada hasta al altar (…).
No obstante lo indicado hasta aqui, en Canarias ir de romeria, ser romero, tiene un sentido doble. En pri-
mer lugar tiene una significación genérica, que implica ir de fiesta a un santuário, tanto lejano como cercano,
pero en que lo essencial es sacar al santo(a) o a la virgen y passearla por un recorrido mais o menos largo. (…)
la romería a una virgen esla la excepcionaón. La fiesta romera está associada a Santos. (…)Además, son san-
tos vinculados a la agricultura en sentido amplio..Es decir acogen debajo su manto a campesinos, pastores,
vaqueros o gañanes.(…)”
Daqui resulta que, nas ilhas, tivemos e aindatemos a possibilidade de vivenciar diversas formas de ex-
pressão da religiosidade popular, através das suas manifestações mais importantes: a romaria/rumería e pe-
regrinação. As divindades que fazem o ciclo anual da devoção, as formas como esta se expressa são o espelho
de diferentes identidades, forjadas em espaço insular, sujeito a múltiplas influências, ao longo da sua História.

Romaria, de Henrique Franco. 1923

Academy of Sciences; SANTOS, M. (1990). Do espaço sem nação ao espaço transnacionalizado. Brasil, 143-161. O transnacionalismo é entendido por
GLICK-SCHILLER (1992, 1) como “um processo social recente no qual migrantes estabelecem campos sociais que transpõem fronteiras geográficas,
culturais e políticas”. Cf. FELDMAN-BIANCO, B. (1995). A criação de uma nação (portuguesa) desterritorializada e a transnacionalização de famílias.
Cadernos (Universidade de São Paulo, Centro de Estudos Rurais e Urbanos), 6, 89-104.
19 Cf. Almeida, Onésimo, 1988, L(U.S.A)landia: A Decima ilha, Angra do Heroísmo. Esta é definida como “uma porção de Portugal rodeada pela América
por todos os lados, (... ) uma nação especial composta por comunidades que não são nem Portugal nem a América ... (que sio) uma mistura de duas
culturas, um mundo entre Portugal e a América” (ALMEIDA, 1988: 198 e 231).
20 GALVÁN TUDELLA, Alberto, 1987, Las Fiestas Populares Canarias, S.C.Tenerife, p. 173-175.

CADERNOS DE DIVULGAÇÃO DO CEHA 10


De romarias e arraiais no mundo insular

Hoje, em pleno século XXI em que todos usufruímos de múltiplas comodidades nos transportes e co-
municações, vemos a peregrinação, dentro e fora da ilha da Madeira a afirmar-se de uma forma ímpar e a
trazer um novo movimento mobilidade interna de romeiros, que trilham os caminhos antigos e o sacrifício
das caminhadas a pé para uma redescoberta interior e afirmação da fé. Mas, na atualidade, a maioria dos
peregrinos que frequentam os santuários de devoção popular, atraídos pela religiosidade e/ou diversão tem
outras possibilidades que favorecem a sua mobilidade, pois os caminhos reais deram lugar às vias-rápidas
e tudo acontece de forma rápida. Mas para alguns a ilha perdeu o colorido que a animava no período es-
tival, com os romeiros que a atravessavam a pé, de lés a lés. A religiosidade popular assume novas formas
de expressão. Estaremos no prelúdio de uma nova era da religião e espiritualidade?
Vozes diversas afirmam que as romarias e a peregrinação interna perderam sentido e as romarias já não são
o que eram. Daí algum revivalismo, com peregrinações a Ponta Delgada ou a Machico, que começam a ganhar
cada vez mais presença no nosso quotidiano21. E as peregrinações a pé deram lugar aos caminheiros que re-
vivem hoje e valorizam os antigos caminhos reais22.

Diário de Notícias. 25.8.1895, p. 1 Achada do Felpa. S. Jorge

A memória destas romarias ficou marcada com o encontro espontâneo de romeiros na Achada da Felpa
em S. Jorge, nos dias do arraial, sendo conhecido como “o setembro”, ou no Chão dos Louros, na segunda-fei-
ra a seguir à romaria da Ponta Delgada. Ambos os lugares persistem na memória como o local de encontro
dos romeiros no momento de retorno da festa. Por outro lado, podemos entender o Folclore atual, como uma
das formas de manifestação imóvel dos arraiais madeirenses?23

21 A primeira peregrinação a pé na actualidade foi recriada em outubro de 2016 com a romaria do Senhor dos Milagres (Cf. https://funchalNotícias.
net/2016/09/07/peregrinos-fazem-caminhada-a-pe-funchal-machico-em-nome-do-senhor-dos-milagres/. Visita a 02.09.2018), mantendo-se hoje.
Também temos informação do reavivar das romarias a Ponta Delgada, em 2018, com um grupo do Porto Moniz em 2018 (https://funchalNotícias.
net/2018/09/01/ainda-ha-quem-faca-uma-longa-caminhada-a-pe-para-ir-a-ponta-delgada/ .Visita a 02.09.2018).
22 Cf. A página da associação Caminhos Reais da Madeira (na web: http://caminhoreal.pt/) foi criada a 17 de fevereiro de 2017, com o objectivo de pre-
servar a tradição e cultura que estava inerente a esta necessidade antiga de mobilidade interna através dos caminhos reais (n.º23, 24, 25, 26, 27, 28), que
também se firmaram historicamente como caminhos de fé e peregrinação dos madeirenses até princípios do século XX.
23 Cf. Corte, 1992: 13-15; TORRES, 1992: 3-4; SERRÃO: 2010:54-68.

CADERNOS DE DIVULGAÇÃO DO CEHA 11


De romarias e arraiais no mundo insular

Chão dos Louros. S. Vicente

Há uma vivência profana e espiritual que acompanhou e ainda está presente em todas estas manifes-
tações de fé. Há realidades que se ofuscam perante o realismo das múltiplas manifestações da fé. Mas o
vivenciar desta relação com o divino não mudou, o que se alterou foi o entorno. Há uma economia que gere,
de diversas formas, estas manifestações de fé que, para nós, são entendidas como a expressão daquilo que já
definimos como economia do céu.
Trata-se de um modelo de análise de realidades e situações que escapam ao percurso normal da eco-
nomia insular, mas que assumem um peso importante na definição de múltiplos aspetos que escapam a uma
visão racionalista. Em anterior estudo,24 lançamos mãos da situação que enlaça o quotidiano material com
o religioso e espiritual da sociedade madeirense, definindo uma nova realidade, a “economia do céu”, que,
em muitas situações, gere a dádiva e devoção madeirense e distribui os excedentes dos recursos económicos
das famílias. Aqui, a distribuição da riqueza, por força dos rendimentos gerados no arquipélago ou fora dele,
obedece a mecanismos externos em que a religião, a sociabilidade assumem uma influência incomum, cuja
expressão está muito próxima da expressão da dádiva e do dom. Aqui há dinheiro, que sai da tradição do sis-
tema de mercado e é expresso numa dádiva de gratidão, que encerra um projeto de promessa e de afirmação
social.
Já vimos que a riqueza gerada pela produção açucareira deu lugar a uma “economia do céu”, que fez a
gestão dos excedentes dos recursos financeiros em torno de uma forma de retribuição que alia a afirmação
social e a salvação da alma. Agora queremos valorizar a mesma realidade adentro de uma diferente situação
gerada pela mobilidade humana na ilha, dando atenção às formas de expressão da religiosidade popular.
Queremos entender a gratidão e a dádiva entre aqueles que saíram da ilha e definiram uma mobilidade cons-
tante que teve um efeito reedificador na cultura e História.
A “economia do céu” foi, historicamente, uma forma dos madeirenses e porto-santenses que tiveram
que sair, manterem as suas ligações à terra e de darem testemunho, aos que ficaram, do sucesso da sua diás-
pora. É neste contexto que queremos ver a economia do céu, com um mecanismo de gestão de recursos, que
acontece no quadro das romarias e arraiais do arquipélago.
24 Cf. VIEIRA, Alberto, 2017, Em torno da “economia do céu”. Retribuição, dádiva e dom na rota do ouro branco, Funchal, CEHA. Disponível na Internet em: http://
memoriadasgentes.ml/blog/caderno-rota-ouro-branco-01-torno-economia-ceu/. Consulta em 17.08.2018.

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De romarias e arraiais no mundo insular

Cartaz: Ponta Delgada

1. Em torno de algumas questões teóricas: do turismo religioso e da


economia do céu

Hoje, cada vez mais, os estudos que se fazem partem de uma perspetiva interdisciplinar, permitindo
uma comunhão de esforços das várias áreas de estudo, no sentido da aclaração do conhecimento. Deixou
de predominar o discurso fechado para dar lugar a um debate aberto multidisciplinar e interdisciplinar que
tem permitido uma diferente colocação dos problemas, com resultados diferenciados e muito produtivos no
final. Para as ilhas, pequenos espaços do universo de estudo e debate científico a Nesologia25 clama por novas
posturas que conduzem sempre a uma conjugação dos vários ramos do saber. É isso que pretendemos fazer
com este breve ensaio sobre as mobilidades, o turismo e as questões do dom e da dádiva.
Na atualidade, a diferenciação dos modelos e áreas de trabalho das diversas ciências deixaram de ser
estanques; invadimos, constantemente, o campo de outras disciplinas, assumindo esta intromissão como
uma forma de avançarmos para além das fronteiras e estabelecermos diversas vias que desembocam sempre
numa contribuição diferenciada e inaudita, que contribui para uma maior compreensão das realidades que
nos são vizinhas nos domínios de estudo e trabalho. Daí que, de forma provocatória e numa intenção de mu-

25 Cf. Henriques, E. B. (2007). A recém-criada comissão das ilhas da UGI e a sua conferência inaugural (Taipei, 2007). Finisterra, 42 (84); Vieira, A. (2010).
As Ilhas: da Nissologia à Nesologia. Anuário do Centro de Estudos de História do Atlântico, 2, 16-21; ESPÍNOLA, Paulo; CRAVIDÃO, Fernanda. 2014, A
ciência das ilhas e os estudos insulares: Breves reflexões sobre o contributo da geografia. Sociedade & Natureza, 26.3.

CADERNOS DE DIVULGAÇÃO DO CEHA 13


De romarias e arraiais no mundo insular

dança de modelos de análise e conceitos, propomos esta incursão na economia do Céu, fazendo apelo a con-
ceitos e realidades da Sociologia e Antropologia, para encontrarmos, no âmbito da Economia e da Religião,
um novo conceito que possa clarificar uma realidade comum da nossa cultura ocidental.
No caso específico das questões que envolvem as manifestações de fé e religiosidade popular do arqui-
pélago implicam uma abertura a múltiplos saberes de forma a poder-se entender a importância e força destas
manifestações no devir e quotidiano. Em torno do ritual de cumprimento de uma promessa que envolva ou
não a peregrinação, há uma envolvência diversa de conhecimentos e agentes. Daí que a gestão pessoal de
cumprimento de promessa tenha uma envolvência mais ampla, que não pode ser entendida apenas como
algo pessoal. Para além do mais faz parte da História de um arquipélago onde se manifestou de diversas
formas na definição da identidade cultural, religiosa, económica e social. Há muito mais para além da socia-
bilidade e do gesto devoção pessoal que ultrapassa os romeiros. Assim, no campo teórico, há necessidade de
entender estas manifestações à luz das mobilidades geradas pelo turismo religioso, como deverá entender-se
a forma como acontecem as dádivas e o pagamento de promessas que envolvem este ritual, que nos reme-
tem paras as questões em torno do dom e da dádiva

AS MOBILIDADES E O TURISMO RELIGIOSO

A viagem para o romeiro é a satisfação espiritual da busca do místico, sendo na maio-


ria das vezes um ato de sacrifício. [...] Para o turista, é uma procura de satisfação reli-
giosa mais do que prazer material [...]. O turista religioso conjuga na viagem o prazer
com a fé, mas a motivação maior é o prazer de viajar, conhecer coisas e lugares novos.
(ABREU, T. N. M. de; CORIOLANO, L. N. M. T., 2003, Os centros de romaria do Ceará e
o turismo religioso. In: CORIOLANO, L. N. M. T. (Org.). O turismo de inclusão e o desen-
volvimento local. Fortaleza: FUNECE. p. 79).

Foi apenas a partir da década de sessenta do século XX que apareceu o chamado turismo religioso26
a definir esta mobilidade humana provocada27 pela devoção e crença religiosa. A viagem/peregrinação faz
parte dos primórdios destas mobilidades humana mas só adquiriu um estatuto diferenciado no contexto da
História do turismo na segunda metade do século XX, sendo, na atualidade, uma das principais motivações
adentro do chamado turismo cultural28. Mas, o chamado turismo religioso pode também ser entendido como
o gerador das mobilidades que se operam interiormente na ilha com os chamados arraiais e romarias, que
estão documentados desde o século XVI e que tiveram múltiplos momentos de afirmação, de acordo com a
importância e fervor religioso destas festividades em torno dos santos patronos, que adquirem uma dimen-

26 Cf. SANTOS, Glauber Eduardo de Oliveira. 2000, Importância das Peregrinações para o Turismo Mundial. São Paulo: Turismo em Análise, nov. p. 38-44.
p. 39; Andrade, José Vicente de 2002 Turismo: fundamentos e dimensões. 8. ed. São Paulo: Ática, p. 79; Abumanssur. E. S. 2003. “Religião e turismo: notas
sobre as deambulações religiosas”. In Abumanssur, E. S. (org), Turismo religioso: ensaios Antropológicos sobre religião e turismo. Campinas, SP: Papirus, p. 53-68
54 e 56; RIBEIRO, Heloisa. 2003, Andar com fé e o sentido do chegar. Rio de Janeiro: Caderno Virtual de Turismo, v.3, n.1, p 1-7, p. 3; OLIVEIRA, C. D. M. Tu-
rismo Religioso. São Paulo: Aleph, 2004., p. 16; ANDRADE, J.V. Turismo: fundamentos e dimensões.São Paulo: Ática, 2008, 8ª edição. p. 77-78; DIAS, R. 2003,
O turismo religioso como segmento do mercado turístico. In: DIAS, R; SILVEIRA, E. J. S. da. (Orgs.). Turismo Religioso: ensaios e reflexões. Capinas: Alínea,
p. 17; ABREU, T. N. M. de; CORIOLANO, L. N. M. T. 2003. Os centros de romaria do Ceará e o turismo religioso. In: CORIOLANO, L. N. M. T.
(Org.). O turismo de inclusão e o desenvolvimento local. Fortaleza: FUNECE, p. 79; BITTENCOURT JR, 2007, A. Penitentes do Senhor dos Passos, identidade
e diversidade na religiosidade popular. In: Encontro Nacional de História das Religiões / ANPUH, Maringá, p. 4; Richards, G. (2009) Turismo cultural: Padres
e implicaes. In de Camargo, P. and da Cruz, G.(eds) 2009, Turismo Cultural: Estratgias, sustentabilidade e tendências. UESC: Bahia, 26; SERRALLONGA,
Silvia; HAKOBYAN, Karine. 2011, Turismo religioso y espacios sagrados: una propuesta para los santuarios de catalunya. Penedo: Revista Iberoamericana
de Turismo, v. 1, n. 1, p. 63-82, p. 65; VILAS BOAS, Nuno Fernando de Sá. 2012. A Pastoral do Turismo: Da peregrinação ao santuário. Braga: p. 39;
27 Cf. OLIVEIRA, Christian Dennys Monteiro de. Turismo Religioso. São Paulo: Aleph, 2004, p. 13.
28 Para uma definição do turismo cultural tenha-se em atenção o que dizem GUERRA, 1989; MONTEIRO, 2003; SANTOS; 2006; SILVEIRA; 2007;
PEREIRA/VILAÇA, 2008; SOUSA, 2014;

CADERNOS DE DIVULGAÇÃO DO CEHA 14


De romarias e arraiais no mundo insular

são que ultrapassa o recinto da freguesia e do concelho e assumem-se como vivências de todos os ilhéus. A
História anota esta mobilidade desde épocas remotas, dependendo a sua afirmação de uma multiplicidade
de fatores, como teremos oportunidade de verificar.

DO DOM E DÁDIVA À “ECONOMIA DO CÉU”

(...) direitos e deveres, que se mostram simétricos dão vazão à circulação de dádivas
entre os diversos grupos. Tudo circula, as dádivas circulam, mas na realidade, o que
está em jogo são as alianças espirituais. Trocam-se matérias espirituais por meio das
dádivas. Os homens estão ligados espiritualmente a seus bens que, quando passados
a outrem, estabelecem ligação espiritual com o doador. E, neste sentido, misturam se
doadores e beneficiários, homens, coisas e matéria espiritual. (MAUSS, Marcel. “O en-
saio sobre a dádiva”. Sociologia e Antropologia. v. 2. São Paulo, EPU e EDUSP, 1974. 53).

As relações de dádiva, em face da obrigação de retribuir, que se torna ao mesmo tempo


a coisa a ser explicada e a essência de toda relação de dádiva, sua verdadeira natu-
reza, aquela que se esconde por traz das afirmações de gratuidade dos atores. Donde
se conclui que a essência da dádiva não é ser uma dádiva. É o que expressa a ideia de
reciprocidade como fundamento da dádiva” (CAILLÉ, Alain. “Nem holismo nem indivi-
dualismo metodológicos – Marcel Mauss e o paradigma da dádiva.” Revista Brasileira
de Ciências Sociais. v. 13. n. 38. Outubro de 1998. p. 113)

A economia tradicional assenta nas trocas que se operam no mercado, baseadas no valor dos bens e
serviços, enquanto a economia da oferta, da dádiva, do dom, da doação, assenta no valor de uso de objetos e
ações. Mas queremos introduzir um outro conceito de economia, que designamos do Céu, em que a aplicação
assente em valores definidos pela religiosidade e espiritualidade. Aqui, a troca, embora aconteça no espaço
de interação humana, tem subjacente esta realidade e tem em conta finalidades distintas que comandam a
partilha, a doação e que se prendem com a religiosidade e espiritualidade. Daí que entendamos neste con-
texto, quer o consumo de excedentes e da riqueza da economia açucareira madeirense nos séculos XV a XVII,
materializada em dádivas de pintura, escultura, construção de templos religiosos, quer a atitude mobilizadora
dos emigrantes madeirenses com a entrada triunfal de retorno à terra em romagem de gratidão religiosa e
de afirmação social.
Há aqui um jogo subtil entre a dádiva e o dom que merece ser entendido, pela força mobilizadora que
tem na sociedade madeirense, de forma especial na segunda metade do século XX. Este retorno dos emi-
grantes pode também ser definido como uma peregrinação ou romagem de retorno às origens, onde se
expressam promessas e retribuições, que carecem quase sempre de um palco, no lugar e na ilha. E aqui tudo
continua a girar em torno da igreja e do adro, o palco onde se aliam o religioso e o profano. As dádivas em
objetos do culto litúrgico ou em dinheiro para despesas da igreja motivam esta publicidade gratuita que abre
os caminhos da fama, da gratidão e do dever cumprido.
A dádiva expressa uma intencionalidade social, que se confunde com a gestão da economia do sagrado
e que pretendemos valorizar nesta breve aportação, na medida em que se trata da realidade económica que
está subjacente à riqueza.
A Economia do Céu ou da salvação, em nosso entender, é o sistema de troca que se estabelece em torno
do processo de salvação da Alma, através da utilização de bens materiais, através missas, ofertas e legados

CADERNOS DE DIVULGAÇÃO DO CEHA 15


De romarias e arraiais no mundo insular

perpétuos29, mas também das promessas sucedidas de peregrinações que ultimam o seu cumprimento ou
da situação de festeiros nas romarias religiosas. Há uma troca que assume um valor simbólico e ritual signifi-
cativo para os intervenientes. Esta não é medida por igual valor monetário intrínseco à transação, o que nos
leva a aproximar nesta reflexão à questão da dádiva e do dom, tão realçados pelo discurso da Sociologia e
Antropologia30.
A primeira metade do século XX foi o momento de afirmação e valorização de uma forma forma de troca
pré-capitalista, que dominava os sistemas de algumas sociedades em África e no Pacífico. As trocas que aí se
estabelecem não se regem pelo valor atribuído àquele elemento, mas resultam de situações não lineares à
dinâmica capitalista31. Daí as expressões Kula ou Potlach a definirem uma diferente dimensão das trocas, que
acabam na definição de uma economia do dom ou da dádiva. Esta forma de troca alheia à dinâmica capitalista
procura, na sociedade atual, diversas formas de expressão, sendo apresentada, muitas vezes, como economia
social, ou “economia solidária”32.
Vivemos numa sociedade capitalista onde dominam, em tudo, as leis do mercado, pelo que se torna
difícil entender uma sociedade sem o dinheiro como medida de valor. Todavia, outras sociedades houve em
que o dinheiro não existia e o sistema de trocas não obedecia a uma medida de valor regulada. Os estudos
de alguns antropólogos e sociólogos, relativamente a finais do século XIX e o primeiro quartel da centúria se-
guinte, trouxeram ao nosso conhecimento algumas sociedades ditas primitivas, em que o sistema das trocas
comunitárias não se subordinava a uma lógica do valor atribuído pelo mercado capitalista, determinado pela
moeda. Era uma realidade distinta que desvelou grande entusiamo de alguns estudiosos e funcionou, muitas
vezes, como via de oposição ao capitalismo moderno33.
A partir daqui define-se uma dinâmica de mercado que se alheia do valor atribuído pelo capital aos pro-
dutos envolvidos e que valoriza a importância pessoal ou grupal que assume. As trocas que são estabelecidas,
assim como os mesmos produtos, que atuam no sistema monetarizado, perdem esse valor e ganham outro,
de caráter subjetivo, que não pode ser quantificado, mostrando-nos uma realidade fora da racionalidade
económica34. A moeda não existe, nem é substituída por outra forma de atribuição do valor, pois as trocas
baseiam-se em rituais e mecanismos que podem assumir um caráter espiritual. A dádiva e o dom são, assim,
os atos que determinam esta mobilidade dos produtos e estabelecem a harmonia espiritual assim como o
convívio social.
Se transpusermos isto para o sistema de aplicação dos excedentes da economia da emigração madei-
rense dos séculos XIX e XX, é isso que vamos encontrar, noutra dimensão, na sua aplicação em dádivas reli-
giosas e nos investimentos em prol da chamada economia do céu, com as doações em dinheiro para obras
e compras de imaginária, com a celebração plena da festa e arraial, em que os emigrantes assumem o papel
de festeiro ou mordomo. A partir da década de cinquenta do século XX, a entrada do emigrante na função de

29 Esta realidade é definida muitas vezes como de economia de Salvação (RAIUMNDO, 2007, FERRAZ, 2014) ou de assistência à Alma (PEREIRA, 2005,
CARVALHO, 2001-2002).
30 Nomeadamente por Emile Durkheim (1858-1917), Marcel Mauss (1872-1950), Branislaw Kasper Malinowski (1884-1942), Fanz Uri Boas (1858-1942),
Karl Polanyi (1886-1964), Maurice Godelier (n. 1934), J. T. Godbout (n. 1933), Robert Kurz (1943-2012), Claude Levi-Strauss (1908-2009), Pierre Bour-
dieu (1930-2002), Alain Caillé (n.1944), Marshall David Sahlins (n.1930), Camile Tarot (n. 1943). Mas também devemos ter ainda em conta A George
Dalton, James R. Stanfield e muitos outros referenciados na bibliografia sobre o “dom”/dádiva no final.
31 “…a dádiva seria uma experiência em que a distância entre fins e meios é abolida, em que não há mais fins e meios, mas um ato que preenche o espaço de significação do sujeito
e faz com que sejamos ultrapassados pelo que passa por nós. Uma experiência em que a sociedade é vivida como comunidade. “(GODBOUT, Jacques T.. “Introdução à
dádiva”. Revista Brasileira de Ciências Sociais. v. 13. n. 38. Outubro de 1998. p. 49).
32 A expressão “economia solidária”, hoje muito em voga pretende definir Cf. CATTANI, Antônio David (org.). A Outra Economia. Porto Alegre: Veraz,
2003;  LAVILLE, Jean-Louis; GAIGER, Luiz Inácio (2009). Economia Solidária. In. CATTANI, A.D. et al. (coord.) Dicionário Internacional da Outra Econo-
mia. Coimbra: Almedina. p.  162-168; SINGER, Paul (2002). Introdução à Economia Solidária. São Paulo: Perseu Abram; FRANÇA FILHO, Genauto C.,
LAVILLE, Jean-Lois. Economia Solidária: uma abordagem internacional. Porto Alegre: UFRGS, 2004; ARROYO, João Carlos Tupinambá; SCHUCH,
Flávio Camargo (2006). Economia popular e solidária. São Paulo: Perseu Abramo; Economia Solidária vol, I. Disponível na Înternet em: http://www.uff.br/
incubadoraecosol/docs/ecosolv1.pdf. Consulta em 09.03.2017.
33 São, principalmente, os estudos de Marcel Mauss (1872-1950), Branislaw Kasper Malinowski (1884-1942), Fanz Uri Boas (1858-1942), Karl Polanyi
(1886-1964) e Maurice Godelier (1934) que o confirmam.
34 Cf. Mariza PEIRANO, 2003, Rituais. Ontem e hoje, Rio de Janeiro, p. 12.

CADERNOS DE DIVULGAÇÃO DO CEHA 16


De romarias e arraiais no mundo insular

festeiro gerou uma inflação nesta economia do céu. Mas foi a economia a funcionar, na preparação e consoli-
dação do caminho do Céu. Aqui caminhamos entre a retribuição, a dádiva35 e o dom36. Estamos perante uma
realidade alheia à dinâmica do sistema tradicional de trocas capitalista. A dádiva é um gesto ritual, religioso37
e acontece em todos os tempos38, assumindo, nas religiões, um papel fundamental39.
Para os cristãos, a caridade assume uma dimensão fundamental da prática religiosa e está também
presente nesta gestão da economia do Céu, uma vez que os cristãos são chamados, por força da doutrina, a
praticar a caridade que passa pela ajuda ao próximo, na pobreza e doença40. Com a caridade, partilha, dádiva
e dom, o praticante ganha o Reino dos Céus. O mesmo sucede com o Budismo Mahayana, em que um dos
ensinamentos para o caminho da perfeição41 passa obrigatoriamente pela “Dana paramita”, que é o mesmo
que doação, generosidade, oferta. É simbolizada pela tigela de recolher oferendas (patta/patra) que a ima-
gem do Buda apresenta na mão direita.

35 A dádiva assumem uma situação particular pois As relações de dádiva, em face da obrigação de retribuir, que se torna ao mesmo tempo a coisa a ser explicada e a essência
de toda relação de dádiva, sua verdadeira natureza, aquela que se esconde por traz das afirmações de gratuidade dos atores. Donde se conclui que a essência da dádiva não é ser
uma dádiva. É o que expressa a ideia de reciprocidade como fundamento da dádiva. (CAILLÉ, Alain. “Nem holismo nem individualismo metodológicos – Marcel
Mauss e o paradigma da dádiva”. Revista Brasileira de Ciências Sociais. v. 13. n. 38. Outubro de 1998. p. 113). Ainda a dádiva seria uma experiência em que
a distância entre fins e meios é abolida, em que não há mais fins e meios, mas um ato que preenche o espaço de significação do sujeito e faz com que sejamos ultrapassados pelo
que passa por nós. “Uma experiência em que a sociedade é vivida como comunidade. (GODBOUT, Jacques T., Introdução à dádiva”. Revista Brasileira de Ciências
Sociais. v. 13. n. 38. Outubro de 1998. p. 49). E a verdadeira dádiva é um gesto socialmente espontâneo, um movimento impossível de captar uma obrigação que o doador
dá a si mesmo, mas uma obrigação interna, imanente. (Godbout, GODBOUT, Jacques T., “Introdução à dádiva”. Revista Brasileira de Ciências Sociais. v. 13. n.
38. Outubro de 1998. p. 47). Segundo Mauss: (...) direitos e deveres, que se mostram simétricos dão vazão à circulação de dádivas entre os diversos grupos. Tudo circula, as
dádivas circulam, mas na realidade, o que está em jogo são as alianças espirituais. Trocam-se matérias espirituais por meio das dádivas. Os homens estão ligados espiritualmente
a seus bens que, quando passados a outrem, estabelecem ligação espiritual com o doador. E, neste sentido, misturam se doadores e beneficiários, homens, coisas e matéria espiritual.
(Mauss, MAUSS, Marcel. “O ensaio sobre a dádiva”. Sociologia e Antropologia. v. 2. São Paulo, EPU e EDUSP, 1974. 53).
36 Cf. “…sacrificar é oferecer destruindo o que se oferece e, é nisso que o sacrifício é uma espécie de potlatch e que os dons aos deuses, aos espíritos da natureza não apenas pertencem
ao “mesmo complexo” mas, “elevam ao grau supremo” a economia e o espírito do dom (GODELIER, Maurice. O enigma do dom. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira,
2001.p. 50).Sobre o dom cf. COLLIER, J & ROSALDO, M. 1981. “Politics and gender in simple societies”. In Sexual meanings: the cultural construction
of gender and sexuality (ed.) S. Ortner & H. Whitehead, 275-329. Cambridge: University Press. GRAEBER, D. & M. LANNA. 2005 “Comunismo ou
comunalismo: apolítica e o Ensaio sobre o dom“. Revista de Antropologia, vol.48(2), p. 501-23., USP. GREGORY, C. 1982. Gifts and commodities. Academic
Press. HUGH-JONES, S. “Nota sobre Marcel Mausse o Ensaio sobre a dádiva”. Revista de Sociologia e política, 14. P. 173-94. UFPr; VIVEIROS DE
CASTRO, E. 2002. “O conceito de sociedade em antropologia” In A inconstância da alma selvagem. Cosac e Naify;VIVEIROS DE CASTRO, E. 2009.
“The gift and the given; three nano essays on kinship and magic”. In: Kinship and beyond: the genealogical model reconsidered, Sandra C. Bamford
& James Leach (eds)., Berghahn Books; Marcos Lanna, O dom e a teoria ameríndia, Revista de Antropologia Social dos Alunos do PPGAS-UFSCar, v.4, n.1,
jan.-jun., 2012,p. 10-20.
37 Pois, (...) direitos e deveres, que se mostram simétricos dão vazão à circulação de dádivas entre os diversos grupos. Tudo circula, as dádivas circulam, mas na realidade, o que está
em jogo são as alianças espirituais. Trocam-se matérias espirituais por meio das dádivas. Os homens estão ligados espiritualmente a seus bens que, quando passados a outrem,
estabelecem ligação espiritual com o doador. E, neste sentido, misturam-se doadores e beneficiários, homens, coisas e matéria espiritual (Mauss, MAUSS, Marcel. “O ensaio
sobre a dádiva”. Sociologia e Antropologia. v. 2. São Paulo, EPU e EDUSP, 1974. 53). Mais, Na economia da oferenda, a troca se transfigura em oblação de si a uma
espécie de entidade transcendente. Na maior parte das sociedades, não se oferecem materiais brutos à divindade, como ouro, por exemplo, e sim trabalhado. O esforço de transformar
a coisa bruta em objeto belo, em estátua, faz parte do trabalho de eufemização da relação económica. (BOURDIEU, Pierre. Razões práticas: sobre a teoria da ação. Campinas:
Papirus, 1997. p. 158-185). É a consumação de um sacrifício, pois sacrificar é oferecer destruindo o que se oferece e, é nisso que o sacrifício é uma espécie de potlatch e
que os dons aos deuses, aos espíritos da natureza não apenas pertencem ao “mesmo complexo” mas, “elevam ao grau supremo” a economia e o espírito do dom. (GODELIER,
Maurice. O enigma do dom. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2001.p. 50).
38 Assim temos que A troca de presentes de natal, o jogo, o “dar uma recepção”, o ritual da refeição nos restaurantes baratos no sul da França são alguns dos exemplos que
evidenciam a sobrevivência dos dons recíprocos nas nossas sociedades. Um momento em que “os bens não são somente comodidades econômicas, mas veículos e instrumentos de rea-
lidades de outra ordem, potência, poder, simpatia, posição, emoção. O jogo sábio das trocas (onde frequentemente não há transferência real, assim como os jogadores de xadrez não
dão um ao outro as peças que avançam alternativamente no tabuleiro, mas procuram somente provocar uma resposta) consiste em um conjunto complexo de manobras, conscientes
ou inconscientes, para adquirir garantias e prevenir-se contra riscos no duplo terreno das alianças e das rivalidades (LÉVI-STRAUSS, Claude. As estruturas elementares do
parentesco. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1976, p. 94).
39 Cf. BOURDIEU, Pierre. Razões práticas: sobre a teoria da ação. Campinas: Papirus, 1997; CAILLÉ, Alain. “Nem holismo nem individualismo metodoló-
gicos – Marcel Mauss e o paradigma da dádiva”. Revista Brasileira de Ciências Sociais. v. 13. n. 38. Outubro de 1998; CAILLÉ, Alain. Antropologia do dom:
o terceiro paradigma. Petrópolis: Vozes, 2002; DELUMEAU, Jean & MELCHIOR-BONNET, Sabine. De Religiões e de homens. São Paulo: Loyola, 2000;
GAARDER, Jostein et alii. O Livro das Religiões. Trad. Isa M. Lando. São Paulo: Cia das Letras, 2001; GODBOUT, Jacques T.. “Introdução à dádiva”.
Revista Brasileira de Ciências Sociais. v. 13. n. 38. Outubro de 1998; GODELIER, Maurice. O enigma do dom. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2001; LÉ-
VI-STRAUSS, Claude. As estruturas elementares do parentesco. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1976; MAUSS, Marcel. “O ensaio sobre a dádiva”. Sociologia
e Antropologia. v. 2. São Paulo, EPU e EDUSP, 1974; MAUSS, Marcel. “O ensaio sobre a dádiva”. Sociologia e Antropologia. v. 2. São Paulo, EPU e EDUSP,
1974; Pinheiro, Ana, A dádiva no ritual da Procissão do Fogaréu na Cidade de Goiás. Dissertação (Mestrado em Ciências Humanas) - Pontifícia Universidade
Católica de Goiás, Goiânia, 2004, pp. 46-75.
40 Então o Rei dirá aos que estiverem à sua direita: ‘Venham, benditos de meu Pai! Recebam como herança o Reino que foi preparado para vocês desde a criação do mundo. Pois eu
tive fome, e deram-me de comer; tive sede, e vocês deram-me de beber; fui estrangeiro, e acolheram-me; estava nu, e vestiram-me; estive enfermo, e cuidaram de mim; estive preso, e
visitaram-me”. Mateus 25:34-36.
41 São seis: Dana paramita - Doação, generosidade, oferta; Shila paramita - Os preceitos ou treinamentos da atenção plena; Kshanti paramita - Tolerância, a
capacidade de acolher, suportar e transformar a dor infligida a você por seus inimigos e também pelas pessoas que o amam; Virya pammita - O esforço,
energia, perseverança; Dhyana paramita - A meditação; Prajna paramita - A sabedoria, compreensão, insight.

CADERNOS DE DIVULGAÇÃO DO CEHA 17


De romarias e arraiais no mundo insular

Há, porém, um outro aspeto que nos cumpre, aqui, acrescentar. É que a dádiva pode ter um cariz social,
de afirmação e prestígio de quem dá, de perpetuação do seu nome e da publicidade da dádiva. A construção
de uma capela, duma placa tumular, a encomenda de uma pintura ou escultura, publicitam e afirmam social-
mente o nome do seu doador. Quer o nome, quer o gesto do doador perpetuam-se e serão sempre lembra-
dos. É assim que se estabelecem compromissos perpétuos, que comprometem a presente e a futura geração,
estabelecendo uma cadeia geracional de compromissos entre ascendentes e descendentes. Esta cadeia ge-
racional parece não ser tão valorizada no Ocidente, como no Oriente. É no Budismo, Taoismo e Hinduismo
que temos a maior afirmação e as evidências da eternidade desta cadeia geracional42. Esta tripla dimensão
da espiritualidade congrega-se, ainda, por força de uma dimensão afirmada de que o processo evolutivo da
espiritualidade acontece, por interinfluência mútua, nas linhas ascendente e descendente. Desta forma, o es-
pírito é herdeiro, beneficiário, usufrutuário da herança carmica e darmica43, atuando de forma dinâmica, em
sentido inverso, pela sua ação no presente em favor ou desfavor dos antepassados. Daí o respeito geracional
que a cultura e tradição infundem de forma ritualística e religiosa. É neste contexto que devemos enquadrar
a samsara44, a roda da vida que determina o seu permanente fluir e que só para com a “moksha”45.
A retribuição, a dádiva e o dom fazem parte, de forma evidente das regras que emanam da doutrina das
principais religiões e geram outra forma de interação social, mesmo na esfera económica que se alheia da
dinâmica capitalista. Daí a ideia da economia solidária46 e que levou o papa Francisco a acusar, na exortação
apostólica Evangelii Gaudium47, e na encíclica Laudato Sí48, a “economia de exclusão” do mundo atual, assen-
te na “nova idolatria do dinheiro”. Desta forma “[...] os poderes económicos continuam a justificar o sistema

42 Cf. BOWKER, John. Para Entender as religiões: as grandes religiões mundiais explicadas por meio de uma combinação perfeita de texto e imagens. São Paulo: Editora
Ática, 1997; KUNG, Hans. Religiões do mundo: em busca dos pontos comuns. Campinas: Verus Editora, 2004; PIERIS, Aloysius. Viver e Arriscar: Estudos inter-
religiosos comparativos a partir de uma perspectiva asiática. São Paulo: Nhanduti Editora, 2008; USARSKI, Frank. Budismo e as Outras: encontros e desencontros entre
as grandes religiões mundiais. 1 ed. Aparecida, SP: Ideias & Letras, 2009.
43 De acordo com a samsara a vida terrena é cíclica, de forma que todos morremos e renascemos. O nível de evolução de cada reencarnação resulta do
karma, isto é as condutas e ações de vidas passadas, que se alcança através de dharms, ou seja os comportamentos de cada estádio da vida. O ciclo de
reencarnação só termina com a moksha, a liberação das amarras terrenas. Para Radhakrishnan simboliza todos aqueles ideais e objetivos, influências e instituições
que dão forma ao caráter do ser humano, tanto como um indivíduo quanto enquanto um membro da sociedade; é a lei do viver corretamente, o ritual que assegura o objetivo duplo
de felicidade na terra e salvação, já que ele é ética e religião combinados. Esse autor ainda explica que a vida de um hindu é regulada, em um nível muito detalhado, pelas leis do
dharma: seus jejuns e festas, seus laços sociais e familiares, seus hábitos e gostos pessoais são, todos, vistos através dele. (Garcia, R. R. 2014. Ensaio para uma Fenomeno-
logia do Pensamento Védico. Revista de Estudos da Religião (REVER), 14(1), 52-75.). Saliente-se que o karma, originalmente significava sacrifício; depois, passou
a qualificar o comportamento humano na medida em que é ou não a ordem justa das coisas ou dharma (DELUMEAU, Jean & MELCHIOR-BONNET, Sabine. De
Religiões e de homens. São Paulo: Loyola, 2000. p. 308), Cf. RADHAKRISHNAN, S. The Hindu Dharma. International journal of ethics, v. 33, nº.1, p. 1-22,
1922. Disponível em: http://www.jstor.org/stable/2377174. Acesso a 6 fev. 2017; DUMONT, Louis. O individualismo: uma perspectiva antropológica
da ideologia moderna. Rio de Janeiro. Rocco, 1985; DUMONT, Louis.Homo hierarchicus: o sistema de castas e suas implicações. São Paulo: Editora da
Universidade de São Paulo, 1992; WEBER, Max. The religion of India. The sociology of Hinduism and Buddhism. Glencoe, Illinois: Free Press, 1958;
WERNER, Karel. A popular dictionary of Hinduism translation. Richmond, Surrey: Curzon Press, 1994; ZIMMER, Heinrich. Filosofías de la India. Buenos
Aires, 1979. EUDEBA (Editorial Universitaria de Buenos Aires).
44 Andrade, J., & Apolloni, R. W. (2010). Dos ciclos da natureza à roda de Samsara: a geografia na raiz do budismo. INTERAÇÕES, 5 (8), 63-78; SAM-
TEN, Padma. A Roda da vida: como caminho para a lucidez. São Paulo: Editora Peirópolis, 2010. Cf. a nota anterior.
45 Ou Mukti é libertação do ciclo do renascimento e morte com a iluminação espiritual.
46 Sobre a ideia de economia solidária cf. Jacob Carlos Lima e André Ricardo de Souza, TRABALHO, SOLIDARIEDADE SOCIAL E ECONOMIA
SOLIDÁRIA, in Lua Nova, São Paulo, 93 (2014): 139-168; CATTANI, A. D.; LAVILLE J.L; GAIGER, L. I.; HESPANHA, P. (orgs.). 2009. Dicionário
internacional da outra economia. Coimbra: Almedina; GORZ, A. 2005. O imaterial. Conhecimento, valor e capital. São Paulo: Annablume; LAVILLE, J. L. (org.)
1994. L’économie solidaire: une perspective internationale. Paris: Desclée de Brouwer; LEITE, M. P. 2009. “A economia solidária e o trabalho associativo: teorias
e realidades”. Revista Brasileira de Ciências Sociais, v. 24, n, 69, pp. 31-51; LIMA, J. C. 2014. “Economia solidária: de movimento social a política pública”. In:
LEITE, M. L.; ARAÚJO, A. M. C.; LIMA, J. C. O trabalho na economia solidária: entre precariedade e emancipação. São Paulo: Annablume; PAUGAM, S. 2011a
[2007]. “Introduction: les fondements de la solidarité”. In: PAUGAM, S. (org.). Repenser la solidarité. Paris: Presses Universitaires de France; PELLETIER,
D. 1996. Économie et humanisme: de l’utopie communautaire au combat pour le tiers-monde (1941-1966). Paris: Cerf; SANTOS, B. S. (org.). 2002. Produzir para viver:
os caminhos da produção não capitalista. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira; SINGER, P. 2002. Introdução à economia solidária. São Paulo: Fundação Perseu
Abramo; SOUZA, A. R. 2013. Os laços entre igreja, governo e economia solidária. São Carlos: EdUFSCar/Fapesp.
47 Publicado em: https://w2.vatican.va/content/francesco/pt/apost_exhortations/documents/papa-francesco_esortazione-ap_20131124_evangelii-
-gaudium.html.
48 A encíclica Laudato Si, a chamada encíclica verde, foi publicada em junho de 2015 (FRANCISCO. Encíclica “Laudato si’” sobre o cuidado da casa
comum [LS]. São Paulo: Paulinas, 2015). Cf. Reis, É. V. B., & Bizawu, K. (2015). A Encíclica Laudato Si à Luz do Direito Internacional do Meio Am-
biente. Veredas do Direito: Direito Ambiental e Desenvolvimento Sustentável, 12(23), 37; Alves, J. E. D. (2015). A encíclica Laudato Si’: ecologia integral, gênero
e ecologia profunda/The Encyclical Laudato Si’: integral ecology, gender and deep ecology. Horizonte, 13 (39), 1315; Maçaneiro, M. (2016). Vozes do sul
na encíclica Laudato si’: Fontes e temas. Revista Pistis Praxis, 8 (3); FERRARO, B. Laudato si’ e a opção pelos pobres. In: MURAD, A.; TAVARES, S.S.
(orgs.). Cuidar da casa comum. São Paulo: Paulinas, 2016, p. 65-72; MAÇANEIRO, M. A ecologia e o ensino social da Igreja: inscrição e alcances de um
paradigma. In: ZACHARIAS, R.; MANZINI, R. (orgs.). Magistério e doutrina social da Igreja. São Paulo: Paulinas, 2016, p. 230-283.

CADERNOS DE DIVULGAÇÃO DO CEHA 18


De romarias e arraiais no mundo insular

mundial atual, onde predomina uma especulação e uma busca de receitas financeiras que tendem a ignorar
todo o contexto e os efeitos sobre a dignidade humana e sobre o meio ambiente. Assim se manifesta como
estão intimamente ligadas a degradação ambiental e a degradação humana e ética”49, porque o ser humano
é um “bem de consumo”.

Fonte de N. Sª do Monte, desenho aguarelado de Andrew Picken, 1840

2. O arquipélago. Uma religiosidade de matriz europeia

Tudo começa com a chegada, às ilhas, dos primeiros europeus. Navegadores, agentes da coroa, aventu-
reiros e colonos são herdeiros de uma tradição e cultura religiosa europeia, que será um elo importante no
gerar da nova sociedade insular.
Há uma matriz europeia, predominantemente do norte de Portugal que molda todo este processo de
afirmação da religiosidade e tradições populares50. A dois de julho de 1420 desembarcou João Gonçalves
Zarco no vale de Machico e, de imediato, procedeu à posse da terra em nome do rei e à sua sagração com a
49 FRANCISCO. Encíclica “Laudato si’” sobre o cuidado da casa comum [LS]. São Paulo: Paulinas, 2015, p. 56.
50 Já em 1922 Padre Eduardo Pereira afirmava que As festas populares da Madeira refletem a alegria e a vivacidade das festas das nossas provincias do norte; teem a tristeza
e o saudosismo das canções portuguesas do sul; mas no seu aspecto exterior resentem-se das influencias extranhas dos povos que desde o descobrimento viveram em eontacto comnosco,
e que da sua raça com a nossa raça, sangue, indole e costumes misturaram. (p. 31)

CADERNOS DE DIVULGAÇÃO DO CEHA 19


De romarias e arraiais no mundo insular

primeira missa, rezada pelos franciscanos que acompanharam a viagem. O texto de Francisco Alcoforado é
muito claro: (...) detremynou sajr em terra e levar consygo dous padres que trazia, sajmdo em terra deu graça
a Deos mandou bemzer aguoa e aspargella pello ar (...) mandou dizer mysa (...) Foy a prymeyra mysa que se
dise (...) 51. Em maio do ano imediato, João Gonçalves Zarco regressou à ilha com três navios e a disposição de
proceder ao seu povoamento. De novo o desembarque em Machico e a primeira cousa que fez foy traçar uma
igreja de Invocação de Xpo...52. Depois, foi o novo reconhecimento da costa, com o assentamento de colonos.
Todos os actos eram precedidos pela construção de uma igreja ou ermida. No Funchal foram as capelas de
Santa Catarina e a de Nossa Senhora do Calhau, sendo a última considerada pelo autor a prymeyra casa de
jgreja que se fez na ilha.
Mais além, em Câmara de Lobos a do Espírito Santo, na Quinta Grande a de Vera Cruz, nos Canhas a de
Santiago, na Estrela (Calheta) a de Nossa Senhora da Estrela. E conclui o cronista: ...começou a por em obra
a edificação das jgrejas e llavrança da terra. O templo religioso é o ponto de divergência do processo de po-
voamento e foi em torno dele que surgiram as primeiras habitações de madeira para dar abrigo aos colonos.
Estamos perante mais uma situação reveladora da importância da igreja em todo o processo.
De acordo com a doação régia de 26 de setembro 143353 o infante, como mestre da Ordem de Cristo,
recebeu também a capacidade de intervenção no novo espaço. O Vigário de Tomar, local sede da ordem, era
quem, em nome do infante, estabelecia a estrutura religiosa, provendo os ministros. Apenas a arrecadação
dos dízimos eclesiásticos permanecia a cargo do almoxarife do infante54. Para cada capitania foi nomeado um
vigário, que dependia diretamente do de Tomar, tendo como função administrar a espiritualidade da jurisdição.
No período de 1433 a 1494, as administrações civis e religio­sa estavam a cargo do mestre da Ordem
de Cristo que, no caso da alçada religiosa, determinara a sua superintendên­cia pelo vigário da vila de To-
mar. De acordo com a bula de 1456, as novas áreas atlânt­icas eram consideradas “nullius diocesis”, estando
dependen­te da­quele vigário. Era ele quem determinava a construção das primei­ras igrejas e nomeava os
prelados para o serviço religioso.
O rei concedeu o direito de padroado à Ordem de Cristo. Primeiro em 1433, o arquipélago da Madeira
alargado, depois, em 1454, a todos os territórios descobertos, situação confirmada por bula papal de 17 de
Março de 1456. O governo espiritual ficou entregue ao vigário de Tomar, sede da Ordem de Cristo e na condi-
ção de nullius dioce­sis, enquanto ao administrador da ordem competia a construção dos templos, a nomear
os ministros e pagar o vencimento. Isto não agradou à diocese de Tânger que queria alargar os domínios
às ilhas55. À parte isso, em todas as ilhas, estabeleceu-se ouvido­rias com o obje­tivo de organizar e exercer
o governo eclesiástico. A situação mudou em 1514, com a criação do bispado do Funchal e, depois a 30 de
dezem­bro de 1551, com o regresso à coroa do padroado.
Extinto o senhorio, a Ordem de Cristo através do vigário de Tomar, continuou a superintender o governo
eclesiástico das ilhas até que a 12 de junho de 1514, pela bula “Pro excellenti”, foi criado o bispado do Funchal
com jurisdição sobre toda a área ocu­pada pelos portugueses no Atlântico e Indico. Até então, todo o serviço
episcopal era feito por bispos titulares envia­dos pelo referido vigário, como sucedeu em 1507 e 1508. Mas o
pro­gresso económico e social levou à criação, em 1534, de novas dioce­­­ses em Goa, Angra, Santia­go e S. Tomé,
cujas áreas foram desane­xadas à do Funchal
A 31 de janeiro de 1533, a diocese do Funchal foi elevada à categoria de metropolitana e primaz, englo­
bando “a Ma­deira e Porto Santo, as ilhas Desertas e Selva­gens, aquela parte continental de África, que entes-
ta com a diocese de Safi[m] e bem assim as terras do Brasil, tanto as já descober­tas, como as que se vierem
a descobrir”. Mas esta foi uma situação passageira. Além disso, a bula papal não foi expedida do Vaticano,
51 A Relação de Francisco Alcoforado, publ. por José Manuel de CASTRO, Descobrimento de Ilha da Madeira ano 1420..., Lisboa, SD, p. 90.
52 Ibidem, p. 93.
53 J. M. Silva MARQUES, ob. cit., I, p. 273, 400.
54 Fernando Jasmins PEREIRA, “Bens Eclesiásticos - Diocese do Funchal” in Estudos sobre História da Madeira, Funchal, 1991, pp. 325-327.
55 Cf. António BRÁSIO, “O Padroado da Ordem de Cristo na Madeira”, in Arquivo Histórico da Madeira, XII, 1960-61, pp. 193-228.

CADERNOS DE DIVULGAÇÃO DO CEHA 20


De romarias e arraiais no mundo insular

por a coroa a não ter pago, o que coloca a dúvida da existência real do arcebispado do Funchal. Em 1551, o
papa Júlio III revogou a situação, passando o Funchal para simples bispado sufra­gâ­neo de Lisboa, que passou
a assumir a função de primaz das terras atlânticas, enquanto a de Goa preencherá idênticas funções para as
terras orien­tais. A justificação apresentada pelo papa é expressiva da mudança operada na geografia econó-
mica do espaço atlântico:
Nós, porém, considerando que a navegação da província arquiepiscopal para a cidade do Funchal é
muito difícil e incerta e que se torna não menos perigosa que dispendiosa aos bispos provinciais ao clero e ao
povo, e que muitas vezes acontece que para tal navegação faltam os navios necessários e bem apetrechados,
e mesmo que os haja, nem todos ousam lançar-se ao mar numa viagem tão longínqua e perigosa, pelo que
os mesmos provinciais, que apelam para o arcebispo do Funchal, não podem apresentar-se ao seu tribunal
e à dita cidade, para fazerem valer as suas apelações e conseguirem a justiça desejada e além disso, sofrem
outros incómodos e danos...56.

Arraial, figuras de presépio,séc. XX. Casa-Museu Frederico de Freitas, Funchal

De acordo com Henrique Henriques de Noronha, as imagens “afervoram a devoção” dos moradores,
sendo por isso um das evidências particulares da religiosidade madeirense. Devemos assinalar em primeiro
lugar as dos santos milagreiros e populares que acolhem à sua volta inúmeros devotos e são sempre motivo
de súplica em momentos de aflição. É ainda nas romagens que o povo exterioriza a sua religiosidade. Assim, o
Visconde do Porto da Cruz (1945: 18) afirma que As festas principais chamam peregrinos e romeiros, sempre
atrás de uma Virgem, de um santo, de um milagre ou do pagamento de promessas: As principais festas da
Madeira, que chamam os romeiros dos mais distantes lugarejos e que servem, como balizas para orientar as
minúcias da vida regional, são, pela ordem da sua importância, a «Senhora d’Agosto», no Monte, o «Senhor
Jesus» na Ponta Delgada, o «Senhor dos Milagres» em Machico. Em torno destas romagens, mistura-se sem-
pre o mito, a lenda e a religiosidade instituída.
As romagens completam a exteriorização da religiosidade popular, ganhando protagonismo diverso ao
longo dos séculos. A mais antiga referência é a de Nossa Senhora do Faial ou da Natividade, a 8 de setembro,
que se perdeu no tempo, já referida por Gaspar Frutuoso57. Ainda, de vetusta tradição são as romagens do
56 Pe. Manuel Juvenal Pita FERREIRA, A Sé do Funchal, Funchal, 1963, 84.rep
57 Aí refere que Dizem que ali apareceu Nossa Senhora onde tem a igreja. Dia de Nossa Senhora, que era a 8 de Setembro, se ajuntavam, no Faial, de romagem de
toda a Ilha passante de outo mil almas. Vinham de dez e doze léguas por terra mui fragosa; e entre ca musica de muitos instrumentos: que traziam, «violas, guitarras,

CADERNOS DE DIVULGAÇÃO DO CEHA 21


De romarias e arraiais no mundo insular

Bom Jesus da Ponta Delgada e de Nossa Senhora do Monte, a que se deverá associar o culto a Nossa Senhora
do Rosário, do Loreto e o Senhor dos Milagres.

Banda de música, figuras de presépio, barro policromado e madeira, séc. XX


Casa-museu Frederico de Freitas, Funchal

No século XIX, Isabella de França traça-nos de forma peculiar a romaria de Santo António da Serra, atra-
vés de vivência dos romeiros, cujas manifestações, incompreendidas, pelos estrangeiros são vistas como uma
“palhaçada”, tendo em conta esta mescla entre o sacro e o profano. Aqui é testemunhado o ambiente de
folguedo que anima a romaria. Aqui à devoção junta-se a alegria dos tocares, danças e cantares, e a feira de
venda dos produtos. Ambos os relatos são a melhor imagem que retemos da romaria e arraial madeirenses.
O avanço da rede de estradas a partir da década de quarenta trouxe os excursionistas e acabou por destronar
a animação que se fazia a bordo dos vapores costeiros. A tradição ainda testemunha a vivência dos romeiros.
O folclore preservou muitos dos despiques e cantorias dos Romeiros.

frautas e rabis:.. soavam as célticas “gaitas de fole” do Minho e da Galiza. (Saudades da Terra, ed. de 1873. pag. 99)

CADERNOS DE DIVULGAÇÃO DO CEHA 22


De romarias e arraiais no mundo insular

The Church of Ponta Delgada. Views in the Madeiras, by the Revd. James Bulwer, London 1827

O sacro e o profano aliavam-se na definição de um calendário ritual da ilha. O Senhor Bom Jesus e Nossa
Senhora do Rosário firmaram-se, desde muito cedo, na devoção das gentes do norte e, mais tarde, de toda a
ilha. O Senhor Bom Jesus é a devoção mais antiga e terá surgido em 1466 com Manuel Afonso Sanha, um co-
lono oriundo de Braga que fez transplantar para a sua sesmaria, na Ponta Delgada, o patrono da sua devoção,
fazendo erguer em sua honra uma ermida. Mas este culto privado rapidamente passou a todas as gentes do
local, da encosta norte, e, depois, de toda a ilha. Esta devoção foi promovida, desde finais do século XVI pela
confraria do Senhor Bom Jesus. A fama do Senhor Bom Jesus como milagreiro alastrou a toda a ilha e fez com
que o norte, mais propriamente Ponta Delgada, se transformasse num dos principais centros de peregrina-
ção. O testemunho das assíduas romagens está no facto de, em 1646, Afonso Gomes ter deixado à fábrica da
igreja de Ponta Delgada uma casa para os romeiros58.
Nestas situações, como na devoção e ritual aos santos populares, há uma variada forma de expressão
da religiosidade, partilhada entre a regra instituída pela crença oficial da igreja e do povo, mas ambas se
misturam no momento e no espaço do arraial. Aqui como noutras circunstâncias a fé do povo balbucia entre
a normativa oficial da doutrina católica e as crenças ancestrais que apelam a outras forças e poderes ocultos
que, não obstante serem renegados e perseguidos pela igreja, continuam a manter-se no quotidiano deste
povo. Todos se dizem cristãos e católicos praticantes, mas fica ainda um lugar para a crença em poderes ocul-
tos e a forças da natureza.
Há recordações e lembranças que correm as principais veredas e caminhos do interior da ilha e dos
lugares que nos trazem a imagem desses tempos perdidos na herança do tempo. Sítios como o Curral dos
Romeiros e as casas adossadas ao templo religioso que encontramos em Ponta Delgada, Santo António da
Serra, Santa Cruz, Santo Amaro e Monte, são memórias disso59.
58 No último quartel do século XVI, a festa do Senhor Bom Jesus fazia atrair muitos romeiros à encosta norte. A devoção ao Senhor Bom Jesus e a
afluência dos romeiros redobrou nos séculos seguintes. Em 1657 e 1706 surgem queixas a propósito de o gado, no caso de caprino, pastar nas serras,
sobranceiras às veredas, o que fazia perigar os transeuntes que se dirigiam à missa ou em romagem. E, no último ano, refere-se a morte de muitas pessoas
das contínuas romarias. E este culto foi-se afirmando nos séculos seguintes, persistindo com o mesmo vigor até a atualidade. Cf. VERÍSSIMO, 1998:91-93.
59 Eduardo Pereira (1922: 32-33) diz-nos que Às romarias concorrem peregrinos de quasi todas as localidades aos grupos de dezenas, com cestas de vime ou farneis cheios
de merendas para a viagem e providos de bebidas em bexigas de porco, chifres ou cabaças, dançando homens e mulheres em todo o percurso ao som de gaitas, sanfonas, machetes,
braguinhas. castanholas, pandeiros ou ferrinhos. (…) Caraterizam-se os arraiais das principais romagens da Madeira pelo ajuntamento duma massa compacta e foliona de gente
de todas as partes da ilha que afluem áqueles logares em manifestações de fé e piedade a cumprir votos, fazer promessas, tratar de negócios e procurar diversões. E’ de costume e
necessidade abaterem-se dezenas de rezes para a indispensável espetada ao ar livre no brazeiro improvisam-se barracas de louro para petiscos, cosinhados e bebidas, o vinho espuma

CADERNOS DE DIVULGAÇÃO DO CEHA 23


De romarias e arraiais no mundo insular

As romagens completam a exteriorização da religiosidade popular, ganhando protagonismo diverso ao


longo dos séculos. O sacro e o profano aliavam-se na definição de um calendário ritual em toda a ilha.
É neste quadro, profundamente marcado por uma matriz europeia, que se moldou, em quase seiscentos
anos, a religiosidade madeirense de hoje. Há ligações ancestrais que se cruzam com outras que foram sendo
definidas no decurso do tempo, que criaram as condições para a diversidade de formas de expressão da “eco-
nomia do céu”, onde se entrecruzam o dom, a dádiva e o perdão e remissão do mal ou do pecado.

Vilão tocando viola e viloa tocando machete, bilhete-postal, ed. Bazar do Povo, Funchal

AS ROMARIAS E OS ARRAIAIS

As romarias e os arraiais que as acompanham, assim como as peregrinações são responsáveis por uma
mobilidade em múltiplas direções. De fora para dentro, temos os emigrantes que retornam à terra natal para
vivenciar estas festividades e partilhá-las com familiares e amigos. De dentro para o exterior, acontecem as
chamadas peregrinações aos lugares santos ou a lugares emblemáticos desta caminhada rumo ao sagrado,
como é o caso de Fátima. Mas é sem dúvida internamente que mais se potencializou a mobilidade, por força
dos arraiais em lugares de culto, que tiveram e ainda mantêm um relevo na sociedade das ilhas.

cantante de barris encanteirados sobre muros; ha taboleiros de rebuçados, cavacas doces, bonecas de milho enfeitadas a penas coloridas de aves; os bazares tilintam campainhas e
ronfenham gramofones, insidiam-nos eirios de promessas á volta do templo;despicam-se ao desafio trovadores borrachos; na egreja destilha a bicha do osculo da imagem, da compra
dos registos bento e do toque no santo com raminhos de mangerico. No adro há musica, arcos e bandeiras; o alecrim e a murta reacendem de pisados nos caminhos, estralejam os
dedos das moças como castanholas, aos ranchos, batendo rodas do principio ao fim do arraial.

CADERNOS DE DIVULGAÇÃO DO CEHA 24


De romarias e arraiais no mundo insular

Diário de Notícias, 29.08.1895, p. 4

Com o tempo, foram progredindo os meios de acesso a estes lugares sagrados: a pé60, em romagem,
sulcando os caminhos que enlaçavam os santuários da ilha, de barco, ao longo da costa, à procura dos portos
costeiras que abriam as portas para os arraiais, ou, de automóvel com maior conforto, desde a chegada do
automóvel, em princípios do século XX, e a abertura das primeiras estradas, ao atual sistema viário, servido
por vias rápidas. Há uma concentração destas festividades na época estival, o que permitia a mais fácil mobi-
lidade por terra e mar, como por coincidir com alguns períodos após as colheitas.
A religiosidade popular, assente nestes sustentáculos das romarias e arraiais, mobilizou as gentes, tor-
nando-se num dos mais poderosos agentes da mobilidade interna, com repercussões evidentes na sociabili-
dade e economia.
O dia da festa e arraial é um momento único para as freguesias-sede do orago. Era evidente um desu-
sado movimento nas proximidades da igreja. E a isso associava-se a animação e reboliço que se espalhava a
todos os sítios por onde passavam os romeiros. Eram três ou quatro dias de arraial, anunciado pelos romei-
ros e que contagiava todos sem exceção. Disso nos dá conta, de forma exemplar, Horário Bento de Gouveia,
quanto ao arraial e romagens do Bom Jesus da Ponta Delgada:
60 Com sucedia com a Festa do Senhor Bom Jesus da Ponta Delgada no primeiro domingo de setembro em que as romagens aconteciam a pé pelo interior
da ilha (Cf. Diário de Notícias, 25.08.1895, p. 1; id., 05.09.1933, p. 4), a que, depois, se associaram os vapores costeiros (Cf. Diário de Notícias, 29.08.1895,
p. 4; id., 31.06.1895, p. 4; id., 29.08.1933, p. 1/2) e os automóveis (Cf. Diário de Notícias, 2.9.1933, p. 2; id., 03.09.1933, p. 6; id.05.09.1933, p. 1).

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De romarias e arraiais no mundo insular

DN.0909.1897, p. 3

Na quinta-feira; véspera da grande romagem ao Senhor Jesus, a freguesia metamorfoseia-se,


ganha expressão própria; uma vida transitória mas trepidante corre em suas artérias. Vive-se a
agitação de cidade mercantil.
Os cerieiros armaram as tendas em torno dos plátanos do Largo do Açougue. Há tabuleiros com
círios da altura de um homem e com outros metidos dentro de canas rachadas, e ainda se vêem
molhos de círios com fitas encarnadas a embelezá-los, um por um, circuntornando-os em espiral.
Vitrinas abarrotadas de quinquilharias assentam em cima de caixotes encostados ao resguardo
que limita o Largo. São os primeiros vendedores nómadas que vêm trazer a sua cor pitoresca ao
arraial.
Na orla das ruas principais, os barraqueiros desmoronam muros, espetam estacas no chão, põem
prateleiras, colocam toldos, amarram com espadanas e vimes ramos de loiro e de barbuzano que
formam as paredes das típicas casas de comidas e bebidas. Chaprões de til preto são postos em
esquadria em cima de barricas e outros são firmados sobre cunhais de pedra, nos talhos que
surgem a esmo, ao longo das ruas, e onde as reses vão ser mortas.
Descem os carreiros das ravinas, que vêm morrer à vizinhança dos casais, homens ajoujados com
cargas de espetos de loureiro para a carne assada, com lenha de urze para os braseiros, com

CADERNOS DE DIVULGAÇÃO DO CEHA 26


De romarias e arraiais no mundo insular

galhos de barbuzano e de loiro prenhes de folhas e com alegra-campo para o alindamento do


interior da igreja. O negócio é sempre de tentar na época da festa. Por isso, não há loja que não
fique apalavrada de ano para ano, não há terreno à margem do caminho onde cresça erva nos
três dias que precedem o primeiro domingo de Setembro.
O silêncio da aldeia perdeu a poesia, o mistério que se desentranha da natureza fecunda: o sus-
surro da água que escorre das aguagens, o rumor da viração que afaga as franças das árvores
fazendo estremecer as folhas que se vergam, o bramir do mar e o coro das aves cantadeiras.
Agora havia o que quer que fosse de desabitual, de novo, de estranho. Um alvoroço percorria a
aldeia de cabo a cabo como o sangue circula no corpo. Desde que o Sol se erguera lá para trás
das rochas altas, rompendo a corda de nuvens negras acasteladas no horizonte marinho, come-
çara a azáfama que sempre se repete ao acercar-se a tradicional romagem: negociantes das
povoações mais chegadas vinham tomar conta da sua quitanda ou da nesga de terreno onde
esperavam atrair os romeiros, com servir bem a carne e ovinho. E traziam serrotes, martelos e
podoas, e pregos nas algibeiras dos casacos, em companhia de rapazelhos que vêm munidos de
vimes verdes para amarrar os galhos de loiro que hão-de formar as barracas. Ouve-se o toque de
um «machete», a primeira mensagem do arraial em sua toada de reminiscência árabe. E a cami-
nho da igreja vão camponeses e caseiros com molhos de alegra-campo cantando um conjunto de
sílabas sonoras, que já tinham ouvido aos pais, quando desciam os atalhos da serra, carregados
de lenha para vender aos senhores da freguesia (...)
Na sexta feira, convergem à povoação através dos primitivos caminhos abertos no basalto, su-
bindo planaltos, descendo fajãs, galgando colinas, vadiando ribeiras, os romeiros das freguesias
mais longínquas da ilha. De saias às riscas de cores vistosas, em que sobressaem o encarnado e
o azul, as raparigas bailaricam ao som da viola de arame, do harmónio e dos ferrinhos, com seus
requebros dengosos de cintura, braços no ar batendo palmas, enquanto os tocadores com um
grande chifre cheio de vinho ou de aguardente de cana, a tiracolo, cantam quadras de improviso.
Aos grupos, famílias inteiras vêm cumprir promessas ao Senhor Jesus. Há sempre, um instrumen-
to de música, uma rabeca, um rajão, uma viola, um braguinha, um tambor ou um pandeiro que
acompanha os peregrinos na jornada. Voz clara de rapariga canta: - De Ponta Delgada ao Arco/
Do Arco ao Senhor Jesus/ Tudo são cravos e rosas. Qu ‘eu co ‘a minha mão dispus. (...)

Cartão de Boas Festas aguarelado, 1932. Max Römer

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De romarias e arraiais no mundo insular

Sábado. O Caminho Novo, de lés a lés, é uma vaga humana ressoante de interjeições, frases
enfáticas, trovas e notas desafinadas de instrumentos. Dá-se o fluxo e o refluxo, de gente que
sobe e de gente que desce. São doze horas. O vapor «Gavião», embandeirado em arco, apitou
e ancorou no porto, onde vai golfar centenas de romeiros. As lanchas mal topam no calhau e o
primeiro «parai» se ajeita ao escorregar da quilha, vá de a campanha puxar pela corda que está
presa à popa, antes que uma onda mais forte revire o barco e encharque a malta dos passageiros
que, precipitadamente, saltam em terra aos tropos-galhopos, mergulhando os pés nas poças,
molhando os sapatos e atirando cestas para longe do quebra-mar.
Na igreja a custo se pode respirar. As plantas e as flores mais formosas, jarros, não-me-deixes,
rosas, gereberas, brincos-de-princesa e açucenas enfeitam os altares e as peanhas dos santos,
profusamente. Sufoca-se. Há um mar onduloso de cabeças. Círios sem conto e de alturas várias
ardem nas mãos dos velhos e moças impúberes. Cumprem-se promessas de joelhos.
Distingue-se um murmúrio de rezas, abafado quase pelo clamor do oceano, alma penada em
delírio eterno. Fora do adro, romeiros de faces afogueadas e fatos com engelhas, amarrotados
do calvário da viagem, poisam no chão de cimento as cestas a estoirarem de lauto farnel a que
não faltam as rosquilhas doces cheirando a amassadura fresca.
Aos atropelos, movem-se doceiros ambulantes que vendem bonecas de massa cor de gema de
ovo, bonecas que têm coladas às pernas, aos braços, e à cabeça, lindas fitas coloridas de papel
de seda, nas quais predomina o vermelho. (...)
Anoitecera. Magotes de foliões, uma faradonlagem endoidecida, pisando calos com botifarras
de cordovão e solas de peso, corre Seca e Meca, explodindo vivório, urraria bárbara, ao passo
que outros cantam desafinadamente: - Primavera das flores/ Cuma esta não há mais/ Primavera
vai e volta sempre/ A mocidade nã volta mais. Na Terra Chã, (...) tocava-se, bailava-se, e gargan-
teavam-se trovas portadoras de ironia: Cantas bem nã cantas mal, Gargantinha de marfim. Eu
dava um vintém às almas se o meu cantar fosse assim. (...)
Na mercearia do Pestana, jaziam, a dormir, estendidos a esmo, no chão de calçada áspera, os
que tinham passado em claro a noite de sexta-feira. Em promiscuidade repelente, para ali esta-
vam raparigas de tez queimada ao sol, em contacto com vilões adolescentes; as narinas delas
aspiravam o bafio que se exalava das pernas e dos pés delas, com os dedos sujos e gretados da
jornada fatigante através dos caminhos de cabras que ligam as povoações da ilha. (...)
Numa latada de vinha e pimpinelas, fazendo de dossel, tornava-se mais espesso o escuro da
noite. (...) Uns jogadores de roleta, achando o lugar propício para o negócio proibido pela auto-
ridade do Concelho, ali abancaram. Um caixote de petróleo era a mesa; os dados começaram a
girar à luz bruxuleante de uma vela que, ao derreter-se, alastrava o sebo no tampo do móvel.61

Este arraial cativou diversas gerações de madeirenses e ficou registado na memória das gentes, tendo
chegado até nós através de memórias escritas como a de J. Lourenço de Freitas (2000: 87-88), que nos apre-
senta outra versão do arraial a partir da origem dos romeiros, no caso especifico de Gaula:

A romaria ao «Senhor Jesus da Ponta Delgada» era a maior e a mais participada pelos gauleses
desde tempos muito antigos. Partia das Levadas, da Assomada. Os romeiros organizavam-se
como se fossem para uma grande caminhada. Havia os guias, aqueles que já tinham participado
nas romarias anteriores, depois os chefes de cada família que, por vezes, agrupava duas dezenas
de familiares dum mesmo sítio. A romaria quando entrava nos caminhos da serra tinha dezenas
de pessoas, entre crianças e velhos.
61 NEPOMUCENO, 2014: 378-381.

CADERNOS DE DIVULGAÇÃO DO CEHA 28


De romarias e arraiais no mundo insular

DN.05.09.1933, p. 1 DN.02.09.1933, p. 2 DN.29.08.1933, p. 2

Para dormir durante a viagem levavam à cabeça fardos de cobertores, casacos e cobertas. Para
a sua passadia levavam sacos de farinha, balsas de carne de porco salgada e sacas com carne
de cabra seca, com inhames, feijão e outros legumes. Tanto os rapazes com as raparigas, as mu-
lheres e os homens saudáveis carregavam gígas e cestos de produtos para venderem na festa,
geralmente frutos secos ou passados, figos, pêras e pimentas em ceiras, ou em rosários, e lapas
secas salgadas. Uns levavam ainda para vender, objectos feitos de madeira e outros ainda tape-
tes e cobertas, tecidos com restos de lã com estopa.
Conheciam as pousadas certas ao longo do caminho onde havia água e abrigos. Ai ceavam e
repousavam. Havia determinadas pousadas que eram aproveitadas para amassar e cozer bolo
no caco e onde, além de uma ceia feita ao lume, podiam cuidar dos filhos, dos velhos e dos moles-
tados pela caminhada. Depois da ceia, antes de se acomodarem, havia «o brinco», «os baílhos»,
os despiques.
Chegavam ao «Senhor Bom Jesus», ao fim de três dias, pela tardinha da antevéspera da festa.
Cada família escolhia o melhor lugar para se instalar, geralmente perto do calhau e junto de um
latada de vinha, bom lugar para pernoitar e onde ir «arriba dos pés ». Uma vez instalados, já
começavam a vender na véspera da festa. No domingo, dia do «Senhor Jesus» toda a gente as-
sistia à Missa da Festa. Quem tinha de cumprir promessas comprava os «círos» e ia na procissão.
Uma vez vendidos os produtos que tinham levado para vender, tendo assistido à festa e parti-
cipado na procissão, passavam o resto de domingo no arraial, beberricando u mas «caquetas»
e uns «meígrogues» e, por fim, se «vertendo» entrando nos brincos e nos bailes. Regressavam
à freguesia na segunda-feira seguinte, pelo que chegavam às Levadas geralmente oito ou nove
dias depois, tantos eram os dias gastos na romaria.

CADERNOS DE DIVULGAÇÃO DO CEHA 29


De romarias e arraiais no mundo insular

Camponeses do sul da ilha nas vizinhanças do Funchal vindos da romaria. 1821

NOS CAMINHOS DOS ROMEIROS

Passam em ranchos, romeiros de toda a freguesia, com os seus trajos apurados e o farnel que
puderam arranjar. Entre eles, os grupos que dançam ao som do rajão, ferrinhos e pandeire-
ta - uma dança com ressaibos gentílicos que cada um vai executando, isoladamente, à frente
dos tocadores, voltando-se para eles e a entoar uma cantilena, recuando, avançando, um pé no
chão, outro no ar, o busto descaído para um lado, uma das mãos na cintura, outra levantada, a
dar estalinhos, e a cabeça inclinada, em trejeitos que sublinham o sentido das cantigas. E assim
percorrem léguas, apenas com pequenos descansos para comer e beber; constituindo esses mo-
vimentos e as peripécias da viagem a única e verdadeira animação da romaria. (LAMAS, 1956,
cit. por NEPOMUCENO, 2014, 299-300)

A ocupação e valorização da ilha molda-se também de acordo com os circuitos que internamente mar-
cam a mobilidade interna terrestre. A ilha da Madeira, pela sua configuração geográfica sempre apresentou
dificuldades a esta circulação, tornando-a difícil e perigosa. As encostas, por vezes abruptas, são marcadas
pelos sulcos das ribeiras que obrigam a subidas e descidas, por caminhos íngremes para as ultrapassar.
A História regista um movimento de peregrinação interna que começa a ganhar importância e que se
alastra a toda a ilha, com o desenvolvimento das vias de comunicação terrestre e marítima. Há indicações de
algumas romagens internas a partir do século XVII, como o Monte, Ponta Delgada. Mas foi a segunda metade
do século XIX, com o desenvolvimento dos meios de comunicação que permitiu essa abertura interna e à

CADERNOS DE DIVULGAÇÃO DO CEHA 30


De romarias e arraiais no mundo insular

DN.15.08.1915, p1 DN.15.08.1914, p. 1

plena afirmação dos principais momentos festivos da ilha à disposição e para usufruto de todos.
Os chamados romeiros, isto é, aqueles que anualmente deambulam pelos principais locais de culto e de-
voção, com a intenção de implorar e pagar promessas, começam a cativar a atenção da igreja no século XVII,
quando começam a surgir problemas de acomodação nos dias da romagem62. A par disso, acontecem alguns
desmandos e na ermida de N. S. da Esperança em S. Roque, hoje desaparecida, diz-nos Sarmento (1942), que
“As paredes da capela estavam riscadas com letreiros e datas, rememorando benefícios, além-de nomes, a
carvão, dos romeiros que por ali passavam”. A hierarquia da igreja pretende separar o profano do religioso e
obriga as confrarias a promover espaços para acolhimento dos Romeiros. Mas isso nunca foi bem-sucedido,
pois, em 1919, Luísa Grande de Freitas Lomelino escreve:

62 A hierarquia religiosa não foi favorável a esta situação de fruição do interior do tempo pelos romeiros, para danças ou o simples gesto de dormir e
obrigou as confrarias a dispor de um espaço para tal, fora da igreja daí a Casa dos Romeiros. Em 1606 o visitador não permite essa situação nas ermidas
de Nª Srª da Conceição e dos Remédios na Quinta Grande (Manuel de Nóbrega, 1990, Anais da Quinta Grande, Girão, 4, pp. 158). Depois em 1689 o
visitador proíbe o mesmo no Porto Moniz (Ribeiro, 1996: 261).

CADERNOS DE DIVULGAÇÃO DO CEHA 31


De romarias e arraiais no mundo insular

Como sempre vieram romeiros de toda a ilha. Dormiram no adro e na igreja. É um velho, encan-
tador costume Nossa Senhora oferecer hospitalidade aos seus peregrinos. Pagaram-se inúmeras
promessas. Mais braços e pernas de cera foram guarnecer o altar do milagre. Os círios, essas
delicadas hastes em que treme uma flor de luz, consumiram-se aos pés pequeninos da Virgem.
Mãos postas, olhos em êxtase, mulheres subiram de joelhos, a grande escada que leva à igreja.63

Na atualidade, o adro e a igreja continuam a ser o abrigo seguro para o descanso de alguns romeiros.
Dormir nas latadas era outra opção dos romeiros, a avaliar pelas reclamações dos proprietários dos terrenos
vizinhos do palco dos arraiais. Em Ponta Delgada, insiste-se nos danos causados nas vinhas e nas uvas.
Esta mobilidade de caráter religioso obriga a uma intervenção da igreja, através de múltiplas indicações
dos padres visitadores, sobre a forma de receber e acomodar os peregrinos, sem pôr em causa as questões
de decência e devoção. São estas indicações e limitações sobre a forma de uso do templo religioso pelos
romeiros que obrigam as confrarias do orago em festa a precaver a necessária acomodação para os apoiar e
acolher. Por força disso surgem as casas dos Romeiros, anexas à igreja, e as localidades marcadas pela passa-
gem deste. O sítio dos Romeiros64 aparece em Santo António, Estreito de Câmara de Lobos, Santana.
As casas dos romeiros surgem no século XVI, como a do Monte e depois acabam por generalizar nos
séculos XVII e XVIII por força da valorização da devoção popular dos santos, que obriga a igreja e a confraria
a intervirem no sentido da sua regulamentação. Daí resultam as informações que a documentação nos dispo-
nibiliza sobre a presença da casa dos Romeiros em Santo António da Serra, na Ponta Delgada, em Santa Cruz,
Machico (capela do Senhor dos Milagres, capela de S. Roque), Monte, S. Roque (ermida de N.ª S.ª Esperança),
Funchal (capela de N.ª S.ª de Penha França, capela de Santo Amaro), Caniço (capela de N. R. do Livramento),
C. de Lobos (convento de S. Bernardino, Capela do Espírito Santo), Quinta Grande (ermida de N.ª S.ª dos Re-
médios) e Porto Santo (capela de S. Pedro)
Por outro lado, as casas de abrigo, por iniciativa do Governador Civil José Silvestre Ribeiro, tiveram um
papel importante no apoio aos romeiros e caminhantes65. Releve-se o papel da Casa de Abrigo do Caramujo
pelo importante papel que tinha no apoio à passagem dos romeiros da costa sul para a romaria de Ponta
Delgada.

63 NEPOMUCENO, Rui, 2014, A Madeira na obra de Escritores Portugueses. Séculos XIX e XX, Funchal, Editora O Liberal, p. 148.
64 Já o Curral dos Romeiros, no Monte, embora associado a estes, parece ter uma origem toponímica distinta. Cf. Ernesto Gonçalves,1992, Portugal e a Ilha,
Funchal, CEHA, pp. 185-187; NASCIMENTO, Cabral, 1950, O primeiro aforamento do Curral dos Romeiros: (1537), In: Arquivo Histórico da Madeira.
- Funchal. - Vol. VIII, nº 2, p. 98-102; id., 1950, O segundo aforamento do Curral dos Romeiros: (1630), In: Arquivo Histórico da Madeira. Funchal. - Vol.
VIII, nº 4, p. 200-203. Há quem afirma a sua filiação como uma numa família biscaia, que aparece na ilha no século XVI com João Romeiro, mas na
documentação não vimos essa associação. Cf. VERISSIMO, Nelson, 2004, Toponímia: património a preser var, in lharq, Revista de Arqueologia
e Património Cultural, n.º 4,Machico, ARCHAIS – Associação de Arqueologia e Defesa do Património da Madeira, 2004, pp. 49-59.
65 Cf. VIEIRA, Alberto, 2016, Casas de abrigo, in Aprender Madeira, Disponível na Web: http://aprenderamadeira.net/casas-de-abrigo/. Consulta a
4.9.2018. É de relevar as Casas do Caramujo, do Monte Medonho, na serra de São Vicente; Casa do Lombo do Mouro, na serra da Ribeira Brava; Ra-
baçal, Casa da Bica da Cana, no Paúl da Serra; Casa da Fajã das Nogueiras, na serra do Faial, Casa das Queimadas, na serra de Santana, Casa do Ribeiro
Frio, na freguesia de São Roque do Faial; Casa dos Alpires, no sítio da Choupana, no Funchal, e a do Poiso, na serra da freguesia da Camacha.

CADERNOS DE DIVULGAÇÃO DO CEHA 32


De romarias e arraiais no mundo insular

DN.18.08.1935, p. 2

DN.24.08.1935, p. 2 DN.24.08.1934, p. 1

PORTO SANTO - UMA PEREGRINAÇÃO PERIFÉRICA

O Porto Santo surge no quadro desta mobilidade interna, não obstante enquadrar-se adentro da mobili-
dade marítima, atinente ao sistema de cabotagem, acabando por assumir uma posição periférica e um extra
no quadro desta peregrinação insular. Aqui as romarias assumem um caráter especial no quadro daquilo que
acontece no arquipélago. Há um movimento de peregrinação interna da ilha que é marcado por algumas fes-
tividades com caráter local para a população da ilha e outras, como a festa do Espírito Santo, em agosto, que
ganharam destaque no quadro das romarias do arquipélago.
A devoção ao Espírito Santo acompanha os primeiros povoadores da Madeira e mantém-se presente na
sua religiosidade. João Gonçalves Zarco, o chefe das primeiras expedições de reconhecimento e povoamento

CADERNOS DE DIVULGAÇÃO DO CEHA 33


De romarias e arraiais no mundo insular

DN. 06.10.1909, p. 3

das ilhas do arquipélago madeirense, pode ser considerado um devoto do “Divino”, de forma que, ao come-
çar a demarcar o território em Câmara de Lobos para o seu usufruto, reservou um espaço para a construção
de uma capela em honra do Espírito Santo. Ainda hoje, esta ermida é um dos centros da devoção da Festa do
Pentecostes, nesta comunidade paroquial. Depois, o mesmo Zarco, no Funchal, na primeira igreja erguida sob
a invocação de Nossa Senhora da Conceição, voltou a criar uma capela interior dedicada ao Espírito Santo. A
mesma devoção ao Espírito Santo aconteceu noutras capelas, como em Machico, Caniço, Calheta, Lombada
da Ponta de Sol e Porto Santo.
A festa em honra do Espírito Santo assumiu um caráter regional e manteve-se até a atualidade, com uma
importância inusual no quadro da peregrinação do arquipélago66, assim como a festa de S. Pedro na capela
com o mesmo nome.
66 Os jornais anunciam excursões a para vivenciar as festas do Espírito Santo: Porto Santo (Diário de Notícias, n.º 8749, 9 de julho de 1905, p. 4). Estas eram
o momento para excursões. Cf. dn, 24.8.1934, p. 1, id., 18.8.19345, p2; id, 24.8.195, p. 2.

CADERNOS DE DIVULGAÇÃO DO CEHA 34


De romarias e arraiais no mundo insular

A imprensa refere que estas excursões de veraneio aconteceram entre os anos de 1903 a 1946. O que
motiva estes veraneantes, tanto pode ser a festa do orago da capela do Espírito Santo67, como as vindimas68
ou simplesmente fazer a excursão69. Trata-se de iniciativas dos barcos carreiros, que são publicitadas assi-
duamente na imprensa local, assim como de particulares que organizam excursões nas freguesias, cativando
muitos forasteiros. Não temos muitas informações sobre os aspetos organizativos destas excursões e da sua
logística; sabemos, apenas que elas se realizavam e onde eram apanhados os excursionistas. De uma forma
geral, fica claro que aquilo que acompanha os forasteiros é a necessidade de diversão, que acontece tanto
a bordo, como após a chegada à ilha. Por vezes, a organização contratava uma orquestra ou uma banda de
música que animava os momentos a bordo e após a chegada.
Há ainda as peregrinações que se faziam à Madeira, das quais pouca informação está registada. Mas, de
certeza, que alguns dos arraiais madeirenses mereciam a adesão dos porto-santenses. A romagem de Nossa
Senhora do Monte, pela importância que tinha na devoção religiosa do arquipélago e o Senhor dos Milagres
de Machico pela proximidade geográfica e das ligações marítimas70. Ademais outros vínculos determinaram
a razão de outras romagens como a que foi feita, em 1987, a Santana71.

“Procession with Machetes”, gravura de Andrew Picken, 1841

67 DN. 9 de julho de 1905, p. 4; id., 1 de junho de 1907, p. 1; id. 24 de agosto de 1934, p. 3.


68 DN. 6 de agosto de 1905, p. 4; id., 9 de agosto de 1905, p. 4; id., 19 de agosto de 1905, p. 4; id., 24 de agosto de 1906, p. 4; id., 3 de agosto de 1907, p. 4;
id., 7 de agosto de 1907, p. 4; id., 25 de agosto de 1911, p. 2.
69 DN., 17 de agosto de 1906, p. 2; id., 14 de agosto de 1906, p. 4; id., 29 de agosto de 1906, p. 2; id. 25 de julho de 1911, p. 2; id., 22 de agosto de 1911, p.
1; id., 23 de agosto de 1912, p. 3; id., 8 de julho de 1915, p. 2; id., 12 de agosto de 1915, p. 1; id., 13 de agosto de 1915, p. 2; id., 1 de setembro de 1915,
p. 3; id., 23 de agosto de 1916, p. 2; id., 8 de agosto de 1919, p. 2.
70 Cf. RODRIGUES, 2001:19 e 23.
71 Cf. BRANCO, 1995: 322-324.

CADERNOS DE DIVULGAÇÃO DO CEHA 35


De romarias e arraiais no mundo insular

O ARRAIAL

A devoção religiosa é importante, mas a maior implicação desta mobilidade está no arraial que desen-
cadeia, gerando uma economia e sociabilidades caraterísticas. Há algo novo que, na data aprazada, chama
à festa e molda estes momentos, de forma diferente: o templo e o entorno são vestidos de ornamentações
e iluminações72, há a música das bandas filarmónicas, ou uma modalidade conhecida como “a musica de ar-
raial73. Para além disso juntava-se a animação de grupos de romeiros, com diversos instrumentos musicais74.
O fogo-de-artifício chama a atenção pela sua forma de expressão ruidosa e colorida. Os manjares, a espeta-
da, as bebidas, servidas na tradicional “Casa de Chá” ou nas barracas completam este quadro da diversão,
oferecendo aos presentes o alento necessário75. Mas, no interior do templo decorrem as cerimónias rituais
do orago ou festividade evocada, dominada pelo momento da pregação76 da liturgia, e, depois, a procissão.
A romagem e arraial do Monte davam o mote para os demais que aconteciam por toda a ilha no período
estival. Em 1919, na voz de Luísa Grande, o registo:

(…) Cada noite a filarmónica de S. Roque, tremendamente desafinada, atroou os ares com polkas,
valsas retumbantes e o fogo-de-artifício estalou alegremente numa chuva de estrelas de mil co-
res. O povinho encantado murmurava um longo ah! de admiração e esquecia que tem fome, que
a dificuldade, a carestia da vida aumentam todos os dias. (...) No campo, sobre a erva, à fresca
sombra das árvores, desenrolou-se em pitorescos quadros o lado pagão da festa. Abriram-se os
cestos do farnel.
Assaram-se no espeto gordas pernas de vitela e de carneiro. Ao monótono som dos machetes
rapazes e raparigas dançaram. O Monte, jardim azul como o céu, florido de hortênsias - cá cha-
mam-se novelos - e coroas de Henrique, ficou luminoso e lindo. E tudo decorreu com o habitual
entusiasmo, com a habitual devoção.
Proclamou-se a república. Podem proclamar-se mais trinta repúblicas, esfalfarem-se a dizer as-
neiras trinta mil pensadores, que a Senhora do Monte nunca deixará de ter a sua festa, será
sempre a doce rainha, a suave padroeira dos madeirenses.77

Nestes momentos, o profano alia-se ao sagrado, criando formas de mobilidade e sociabilidade distintas,
que marcam o devir histórico do arquipélago.
É dentro deste contexto que pretendemos valorizar as peregrinações, romarias e arraiais no contexto
do chamado turismo religioso. Mas, antes disso é necessário definir as formas de expressão da religiosidade

72 Cf. Diário de Notícias, 28 de outubro de 1878, p. 4 (aluguer de bandeiras e ornamentações); id.20.08.1911, p. 1 (Machico); id., 22.06.1920, p. 3 (Rª Brava).
73 Cf. Diário de Notícias, 13.08.1904, p. 2 (A rubrica “Notícias religiosa” da os pormenores das festividades); idem, 08.09.1905, p. 3; idem, 10.08.1908, p. 2;
idem, 28.08.1918, p. 1.
74 Cf. Diário de Notícias de 16.8.1916, p. 1 (na Festa do Monte).
75 A tradição da espetada vem do século XVII, mas pressente-se nas Notícias da imprensa do século XX a valorização desta como um elemento essencial
do arraial, que está em relação direta de importância com o abate de cabeças de gado, com de litros de vinho. Assim em 1938 reporta-se para o arraial
dos Canhas o consumo de 1000Kg de carne e de 5000 litros de Vinho (PITA, 2003: 138). Cf. DN, 05.10.1894, p. 2; DN,16.09.1912, p. 1 (refere na arraial
de Nossa Senhora do Livramento o abate de 20 vacas, para consumo entre os romeiros); idem 30.09.1912, p. 3 (anúncio sobre a arrematação do imposto
das carnes verdes para os dias do arraial dos Milagres em Machico); idem, 03.09.1914, p. 1 (para o arraial de Nossa Senhora do Livramento na Ponta
de Sol, com o abate na véspera de muito gado para consumo dos romeiros); id., 12.09.1933, p. 1 (arraial no Caniço em que foram abatidas algumas dezenas de cabeças
de gado vacum para o consumo dos romeiros.). O consumo de vinho corrente a copo também pode ser documentado pela informação sobre a cobrança do
imposto do vinho, no local, pelos fiscais das Finanças. Cf. DN, 17.08.1915, p. 1 (Na festa do Monte); idem 11.09.1915, p. 1 (festa de N. Sra. Livramento).
76 Nas notícias da imprensa há referência especial aos pregadores da cerimónia, havendo alguns que ganharam fama ao longo dos tempos. Cf. as Notícias
dada na imprensa: Diário de Notícias, 13.08.1904, p. 2 (A rubrica “Notícias religiosa” da os pormenores das festividades); idem, 08.09.1905, p. 3; idem,
10.08.1908, p. 2.
77 Luzia, 1923, Cartas do Campo e da Cidade, Lisboa, p. 214. Cf. NEPOMUCENO, 2014: 148-149.

CADERNOS DE DIVULGAÇÃO DO CEHA 36


De romarias e arraiais no mundo insular

A saída de urna procissão na Madeira. Taylor. 1888

DN.13.08.1902, p. 4 DN.16.08.1916, p. 1 DN.09.08.1902, p. 1

CADERNOS DE DIVULGAÇÃO DO CEHA 37


De romarias e arraiais no mundo insular

Elevador do Monte (1893-1943). Bilhete Postal

no arquipélago. Tal como refere Henrique Henriques de Noronha, as imagens “afervoram a devoção dos mo-
radores”, sendo por isso neste domínio que se encontram aspetos particulares da religiosidade madeirense.
Aqui incluem-se as imagens milagrosas que acolhem, à sua volta, inúmeros devotos e são sempre motivo de
súplica em momentos de aflição. Nossa Senhora do Monte assume aqui um lugar cimeiro e atraía romeiros de
toda a ilha78, gerando grande animação no comércio da cidade79. O transporte até à cidade poderia acontecia
de barco, sucedendo depois a subida ao Monte a pé, de comboio e, depois de carro80 ou, como acontece, nos
nossos dias, de teleférico. O Caminho do Monte aparece no século XVIII, com o atual percurso, precisamente
para facilitar o acesso dos romeiros. A rede viária foi ganhando importância até destronar por completo os
vapores costeiros81. Note-se que, em finais do séc. XIX, haviam ocorrido mudanças significativas na navegação
de cabotagem, por força do aparecimento dos serviços da Casa Blandy Bros & C.º e da Empreza Funchalense
de Cabotagem.
A partir de meados do século XIX, a cabotagem82 teve um notável sucesso na ilha, sendo favorecida por
uma rede de portos costeiros83 e uma rede de serviços entre eles. A par disso, desde os princípios desta cen-
túria que se nota uma maior valorização da rede viária, com a abertura de um eixo fundamental de ligação in-

78 Cf. Diário de Notícias, 14.08.1888, p. 1: id., 14.8.1935, p. 1.


79 Cf. Diário de Notícias, 15.8.1914, p. 1. Já em outubro este comércio acontecia com o arraial do Rosário, do primeiro domingo de outubro, em S. Vicente.
Cf. Diário de Notícias, 7.10.1894, p. 2.: LUZIA, 1923: 209-210.
80 Cf. Diário de Notícias,09.08.1902, p. 1; id. 13.08.1902, p. 4; id., 15.08.1915, p. 1.
81 CARITA, Rui, 1982,  Paulo Dias de Almeida, Tenente Coronel do Real Corpo de Engenheiros e sua Descrição da Ilha da Madeira de 1817-1827, Funchal, DRAC:
RIBEIRO, Orlando, 1985, A Ilha da Madeira até Meados do Século XX, Lisboa, Instituto de Cultura e Língua Portuguesa; SIMÕES, Álvaro Vieira (coord.),
2002, Transportes na Madeira, Funchal, DRAC.
82 Cf. LOUREIRO, 1910, Adolpho Ferreira, Os Portos Marítimos de Portugal e Ilhas Adjacentes, Lisboa, Imprensa Nacional; MATOS, Artur Teodoro de, 1980,
Transportes e comunicações em Portugal, Açores e Madeira (1750-1850), Ponta Delgada; ARAÚJO, Lídio, 2013, 100 Anos de Transporte de Passageiros em Autocarro
no Arquipélago da Madeira (De 1907 a 2013), Funchal, O Liberal; RIBEIRO, João A, 1996, Ilha da Madeira. Roteiro Histórico-Marítimo, s.l., Centro Treino Mar.
83 A cidade ficou servida desde 27 de abril de 1892 de um cais para desembarque de passageiros, ampliado para 80 m em 1932. Este cais terá sido o fator
determinante no desenvolvimento de uma rede costeira de navegação, juntamente com a construção, pela Junta Geral, de cais acostáveis na Ponta do
Sol (1850), em Santa Cruz (1845, 1875, 1909), no ilhéu de Fora (1870), em Lazareto (1874), em Machico (1874, 1905), no Faial (1903, 1905), no Porto
Santo (1902), em Câmara de Lobos (1876, 1903), no ilhéu de Cima (1902), em Porto da Cruz (1903), na Ponta Gorda, em São Jorge (1904), em Porto
Novo (1905, 1908), na Baía de Abra (1905), na Ribeira Brava (1904-1908), no Campanário (1908), na Ponta da Oliveira e no Caniço (1909), em Ponta
da Cruz e em São Jorge (1910), no Porto Moniz e no Seixal (1916).

CADERNOS DE DIVULGAÇÃO DO CEHA 38


De romarias e arraiais no mundo insular

Max Römer (1878-1960). Aguarela de 1941

terna, o caminho do Palheiro Ferreiro84, mas em 1856, o Governador António R. G. Couceiro não tem pejo em
afirmar que As estradas e caminhos que existem são quasi todos de muito difícil transito, e nem um só delles
permitte o uso de carros nem de outros meios de transporte, sem o que a indústria prospere neste paiz.85
O panorama mudou com o aparecimento do automóvel e com a definição de uma rede viária que atin-
giu toda a ilha em meados do século XX, tornando as romagens facilitadas e introduzindo o automóvel neste
movimento, à medida que foram surgindo novas estradas86.
Insiste-se, também, numa devoção institucionalizada pelo município, resultante da peste que assolou
a ilha no primeiro quartel do século XVI. A devoção a S. Sebastião, S. Roque e S. Tiago Menor é fruto disso,
mantendo-se a última até à atualidade.
Na organização e financiamento destas festividades há um protagonista, o mordomo ou festeiro. Esta
figura ganha destaque desusado nestas festividades no post segunda-guerra mundial, com o protagonismo
assumido pelos emigrantes, que deixam de aparecer nos anos sessenta, para retornaram, uma década de-
pois.87 São os emigrantes no Brasil, Curaçau, Venezuela e África do Sul, aqueles que assumem agora o papel
de festeiros, com muita pompa e circunstância.
Mas esta presença dos festeiros emigrantes é muito anterior, pois em 15 de agosto de 1904 com a festa
de Nossa Senhora da Graça temos um grande arraial com 6 filarmónicas a cargo de um grupo de emigrantes
no Cabo da Boa Esperança, que pretendiam “que lla fosse feita de forma que naquela freguesia nunca se
tivesse realisado uma solemnidade com tanto brilhantismo”88.

84 O caminho é de 1800 e diz a lápide: NA FELIZ REGÊNCIA/DO PRINCIPE D.JOÃO NOSSO SENHOR/O CORREGEDOR JOZE MARIA
CORDEIRO SUEIRO, AJUDADO/DA CONFIANÇA PUBLICA/FEZ CONSTRUIR ESTE CAMINHO PARA O ORIENTE/ E NORTE DO
FUNCHAL/ SEM VEXAME DOS POVOS/31 DE JULHO DE 1800. Referenciado por SARMENTO, A. A., 1952, Ensaios Históricos da Minha Terra
(Ilha da Madeira), vol. III, Funchal, p. 116.
85 Relatório sobre o Estado da Administração Pública..., Lisboa, 1857, p. 380.
86 Em 1916, temos já o serviço de automóveis para o arraial de S. João (dn. 25.06, p. 2), em 1919 (dn de 11.09 , p. 1) o do Caniço, em 1931 o da Ajuda (dn,
19.09, p. 3). A abertura da estrada entre S. Vicente e Ponta Delgada foi um momento importante (DN, 2.9.1933, p. 2).
87 Cf. GONÇALVES, João Luís, 2011, Caminho da vigia. sonhos e lágrimas da emigração e da guerra do ultramar / Gonçalves. - Câmara de Lobos: O Liberal, p.
80; GOMES, Joselin Nascimento GOMES, 2018, Emigração Madeirense para a Venezuela (1940-1974), Funchal, CEHA; Duarte MENDES, 2010, Matriz
toponímica da Fajã da Ovelha. Achegas para a sua identificação, Fajã da Ovelha, pp. 29; CF. Diário de Notícias, 02.02.1974, p. 5; id., 31.08.1974, p. 6; id., 28.01.1975,
p. 4; id., 01.02.1993, p. 1.
88 DN.13.08.1904, p. 2

CADERNOS DE DIVULGAÇÃO DO CEHA 39


De romarias e arraiais no mundo insular

DN.04.10.1931, p. 5

DN.25.06.1916, p. 2 DN.11.09.1919, p. 1

O festeiro tem um grande protagonismo em torno da festa89. A tradição apresenta vários palcos para
a sua exibição. A sua casa é um primeiro palco que chama a atenção e onde se partilha parte do profano.
Depois, as cerimónias da igreja o entronizam, atribuindo-lhe um lugar relevante nas cerimónias litúrgicas.
Finalmente tudo culmina com a apreciação global da festa que remata a sua coroação pública, que acontece
no almoço da segunda-feira, a seguir ao arraial.
O festeiro emigrante encontrou aqui nas festas do orago da sua freguesia a oportunidade para a gratidão
e dádiva sob a forma de ostentação social. A diversão e as festividades religiosas tiveram por muito tempo
nesta situação uma forma de financiamento. Mas, não faltaram os críticos desta ostentação e a denegrir os
protagonistas90.
Hoje, parece que tudo mudou. Consumou-se a separação da festa religiosa do arraial que passa a ter
administrações diferentes embora partilhando o mesmo lugar e tempo. As festas ou os festivais assumem
deliberadamente a sua vocação profana e ganham uma nova dimensão no lazer e quotidiano dos madeiren-
ses e forasteiros. Há uma componente comercial muito evidente, que afasta ambas as realidades. O festeiro,
emigrante ou proprietário abastado, dá lugar ao promotor, tanto ligado a uma empresa comercial, como a um
produto. Tudo mudou e os arraiais e romarias perderam muito daquilo que as definiam. Há mais de arraial do
que romaria. Hoje, as operadoras de telecomunicações e empresas cervejeiras assumem o papel de promo-
tores e lugar dos festeiros emigrantes, na promoção destes espetáculos.

89 FERREIRA, 1956; 15-16, 140; FREITAS, 2000: 89-94; GOUVEIA, 1979: 19 e 22; GOMES, 2010:81-83; GONÇALVES, 2010: 37-38, 2011: 20, 80;
HOMEM, 1992; MENDES, 2010: 29; MENDONÇA, 2017: 178, 532, 547, 557; PEREIRA, 1989:487-488; PITA, 2002: 116-117, 140;
90 Cf. o que dizem Fernando Luís de Góis (1977, Aspectos Económicos -Sociais do Meio Rural Madeirense: Colectânea de Escritos (Publicados na Imprensa Regional),
Funchal: Fernando Luís de Góis. 1977. p. 112 ), que anota o papel destas celebrações como uma forma do festeiro celebrar o seu nome e mostrar a Deus e ao
mundo o seu poder financeiro, do que para honrar a Deus e aos Santos. Atente-se ainda ao texto de Maria Aurora (1992, A Santa do Calhau, Lisboa, Ed. Notícias)

CADERNOS DE DIVULGAÇÃO DO CEHA 40


De romarias e arraiais no mundo insular

Max Römer (1878-1960): Sd.

A ALIMENTAÇÃO E OS ARRAIAIS

Também não podemos esquecer no quadro da alimentação o papel que era atribuído no passado à
administração da copa. Para além das questões ritualísticas ou que, por força da continuidade se tornam
um ritual, importa saber de que forma se fazia a gestão dos mantimentos e bebidas que faziam parte das
romarias. A gastronomia é uma parte importante das celebrações festivas. Na Madeira e nos Açores, a carne
assume um lugar de destaque no repasto das festas. Não pode ser também ser esquecido para os arraiais
madeirenses, as iguarias que se fazem para o momento ou que são vendidas no momento, e que recebem
o epíteto da romaria. Em S. Vicente, local de passagem de romeiros para a Ponta Delgada e de acolhimento
dos romeiros de N.S. do Rosário, ainda persiste o chamado caldo da romaria, feito à base de carne, que era o
manjar de muitos romeiros.

CADERNOS DE DIVULGAÇÃO DO CEHA 41


De romarias e arraiais no mundo insular

DN.11.10.1907, p. 2

A alimentação é resultado de um processo evolutivo onde participam diversos fatores91. Aquilo que hoje
definimos como a gastronomia madeirense é o corolário da intervenção de múltiplas aportações geradas no
tempo. Neste caso, a tradição92, a cultura, a religião e a técnica, aliada às possibilidades do solo e a disponibi-
lidade de plantas e sementes para o seu cultivo assumem uma dimensão fundamental naquilo que define os
aspetos particulares da dieta alimentar de uma determinada região ou lugar.
Na atualidade, não obstante uma padronização dos produtos e hábitos alimentares, graças às grandes
superfícies comerciais, ainda é possível definir uma variedade que abre caminho a uma identidade alimentar
das regiões. Desta forma, há produtos ou pratos que identificam regiões. E também temos uma identificação
relacionada com aquilo que comemos93.
A religião, por força dos preceitos limitadores ou da valorização de alguns produtos e bebidas no ritual
religioso, foi responsável pela forma como se definem os hábitos alimentares dos crentes, conduzindo à dife-
renciação de povos e espaços geográficos. A presença dos cereais e da vinha na civilização ocidental cristã e
do arroz e chá no Oriente (China, Índia, Japão…) resultam dessa situação. O Catolicismo é o mais tolerante de
todos, apenas estabelecendo o preceito do período quaresmal, como de abstinência do consumo de carne.
Também na Madeira, o fenómeno religioso esteve presente na definição da dieta alimentar. A mesa
madeirense foi sempre muito frugal, situação que era quebrada nos momentos festivos, nomeadamente
no Natal, Espírito Santo e festividades em honra dos diversos oragos das paróquias da ilha. É em torno do
calendário religioso que o madeirense estabelece os vários momentos que marcam a sua gastronomia. Para
ele, o Natal é a festa, isto é o momento mais importante da vivência festiva quotidiana. A devoção religiosa
mistura-se com os folguedos e as delícias da mesa.
A tradição anota mesmo um calendário para este ritual. A 8 de dezembro, faz-se o bolo de mel. A 15 de
dezembro, mata-se o porco, de modo a que as linguiças e a carne de vinho e alhos estejam prontas para o
Natal. Neste dia, no regresso da missa do galo, prova-se a carne. A mesa mantém-se farta de licores, doces
e bolos, para gáudio dos que estão e dos visitantes. O caldo de galinha caseira e a carne assada com cuscuz
completavam o repasto natalício. É em torno desta quadra religiosa que o madeirense estabelece o momento
nobre da gastronomia.
O calendário religioso e o ano agrícola estabeleciam o resto. Na Sexta-feira Santa, é a
tradição do inhame cozido, o bacalhau, no S. Martinho o atum salpresado no S. João. Hoje, este calendário
gastronómico perdeu algumas das suas razões de ser. As atuais técnicas de conservação dos produtos, a atual

91 Eric Schlosser afirma: O que as pessoas comem (ou não comem) sempre foi determinado por uma interação complexa de forças sociais, econômicas e tecnológicas. A antiga Repú-
blica de Roma era alimentada por seus cidadãos agricultores; o Império Romano, por seus escravos. A dieta de um país pode ser mais reveladora que sua arte ou literatura. Citado
por Carlos Roberto Antunes dos Santos, O IMPÉRIO MCDONALD E A MCDONALIZAÇÃO DA SOCIEDADE: ALIMENTAÇÃO, CULTURA
E PODER, Disponível em https://www.passeidireto.com/arquivo/5889802/o-imperio-mcdonald-e-a-mcdonalizacao-da-sociedad—alimentacao-cul-
tura-e-poder. Consulta em 25.05-2017.
92 Devemos ter em conta a tradição inventada, pois, segundo E. Hobsbawm: Por tradição inventada entende-se um conjunto de práticas, normalmente reguladas por
regras tácitas ou abertamente aceitas, tais práticas de natureza ritual ou simbólica, visam inculcar certos valores e normas de comportamento através da repetição, o que implica,
automaticamente, uma continuidade em relação ao passado. Aliás, sempre que possível, tenta-se estabelecer continuidade com um passado histórico apropriado./(…) Contudo, na
medida em que há referência a um passado histórico, as tradições inventadas caracterizam-se por estabelecer com ele uma continuidade bastante artificial. Em poucas palavras, elas
são reações a situações novas que ou assumem a forma de referência a situações anteriores, ou estabelecem seu próprio passado através da repetição quase obrigatória. (Hobsbawm
E, Ranger T. A invenção das tradições. Rio de Janeiro: Paz e Terra; 1997. p. 9-10).
93 De acordo com Contreras J, Gracia M. (Alimentação, sociedade e cultura. Rio de Janeiro: Ed. Fiocruz; 2011, p. 16). Comemos aquilo que nos faz bem, ingerimos
alimentos que são atrativos para os nossos sentidos e nos proporcionam prazer, enchemos a cesta de compras de produtos que estão no mercado, e na feira, e nos são permitidos por
nosso orçamento, servimos ou nos são servidas refeições de acordo com nossas características: se somos homens ou mulheres, crianças ou adultos, pobres ou ricos. E escolhemos ou
recusamos alimentos com base em nossas experiências diárias e em nossas ideias dietéticas, religiosas ou filosóficas.

CADERNOS DE DIVULGAÇÃO DO CEHA 42


De romarias e arraiais no mundo insular

DN.12.09.1933, p. 1 DN.02.08.1934, p. 3

sociedade de consumo disponibilizam os produtos o ano inteiro, pelo que o consumo perde a sazonalidade.
À mesa do povo, a carne e o peixe eram escassos e apenas em dia de festa. O peixe era maioritariamente
importado, o que demonstra o pouco desenvolvimento da pesca local, baseando-se em bacalhau dos Estados
Unidos e peixe seco, salgado ou em salmoura do Norte da Europa. Destaca-se o arenque de fumo (trigo do
mar, como ficou conhecido no norte da Europa) ou salmoura, muito apreciado pelo povo, como conduto para
o pão e batatas. De acordo com Isabella de França, o gaiado e o chicharro eram espécies raramente comidas
por pessoas que não sejam pobres. Muitas vezes, o que ia à mesa dos pobres era o atum, conhecido como
“carne”, na época alta, pelo seu preço baixo no mercado local.
Em 1958, Fernando Góis, em artigo na imprensa local, referia um estudo do Dr. Manuel Boavida em que
se chamava a atenção para o facto de a Madeira ter o mais baixo consumo de carne per capita, rondando os
4,2 kg anuais. E, neste final da década de cinquenta, o incremento do consumo da carne bovina parecia ser
um dado adquirido, pois, segundo o mesmo,

...hoje para as mesmas freguesias (Ponta Delgada e Boaventura), são abatidas duas, três e até
quatro, e no domingo à tarde já não há nem ossos sequer. Nas principais festividades das fregue-
sias rurais a maior parte das famílias matava um animal da serra, para ter carne da sua lavra
com fartura para esses dias e sem fazer despesas; as poucas vacas que se abatiam eram quase
só para consumo dos forasteiros, e por isso, apesar do seu baixo preço, quase sempre sobejava
muita carne nos arraiais; agora, onde nesse tempo dificilmente se consumiam quatro rezes, doze
não chegam para fartar a todos.

Para isso, terá contribuído o incentivo dado pela Junta de Lacticínios da Madeira à criação de bovinos.
Quase não faziam sentido as limitações impostas pela Igreja ao consumo de carne em determinadas
épocas do calendário religioso. A força das circunstâncias obrigava a maioria dos madeirenses a esta absti-
nência quase diária, pelo que as mesmas determinações só fariam sentido para as classes mais abastadas.

CADERNOS DE DIVULGAÇÃO DO CEHA 43


De romarias e arraiais no mundo insular

Uma tradição que sempre se manteve foi a de comer carne assada no espeto por alturas das festas e
romarias populares, cuja origem desconhecemos. A referência mais antiga que conhecemos traz-nos Gaspar
Frutuoso no século XVI, com a festa de S. Roque do Faial:

Pelo seu dia, que vem a outo de Setembro, se ajuntão de romagem de toda a ilha, passante de
outo mil almas, onde se vê huma rica feira de mantimentos de muita carne de porco, vaca e chi-
barro, a qual he huma estremada de carne de gostosa naquella ilha, ainda que em muitas outras
terras e ilhas seja a peior de todas. Ali se ajuntão muitos cabritos e fructas, e outras cousas de
comer, para os romeiros comprarem, os quaes muitas vezes se deixão estar dous, tres, e mais
dias em Nossa Senhora, descançando do trabalho do caminho, porque vem de dez, e doze legoas
por terra mui fragosa, e juntos fazem muitas festas de comedias, danças, e muzicas de muitos
instrumentos de violas, guitarras, fructas, rabis, e gaitas de fole; e pelas faldeas das ribeiras, que
tem grandes campos, no dia de Nossa Senhora é em seu outavario, se alojão os romeiros em
diversos magotes, fazendo grandes fogueiras entre aquelas serranias. Dizem que ali apareceo
Nossa Senhora onde tem a igreja.

Mas nem sempre esta tradição foi bem aceite e entendida, surgindo alguns testemunhos reprobatórios,
assim, contra esta tradição se manifestava um dos articulistas do almanaque de 1913 que referia os defeitos
perniciosos da tradicional usança dos dez reis ao sábado do pão e da carne em dias solenes ao som de fogue-
torios e musicórios em que o pobre come a rebentar, uma vez por ano, com a presença de centenas de imbecis
sem pejo de desfrutar esse espectáculo que devia ser banido dos países civilizados. Mas isto não demoveu os
madeirenses da sua tradição. Tenha-se em conta que, no Monte, uma das mais tradicionais romarias da ilha,
segundo o Padre Joaquim Plácido Pereira, em 1913, se vendia muita carne em espetada. Já em 1932, Horácio
Bento de Gouveia, referindo-se à romagem da Ponta delgada, afirma que:

o aspecto da cozinha, nas romagens é típico. A alimentação dos romeiros é feita exclusivamente
de carne de rezes que são abatidas nos lugares da festa. Nos arrais notáveis é vulgar observar-
mos uma alameda com mais de 150 bois e vacas dependurados de latadas. A carne é enfiada
num espeto de loiro e assada nas brasas.

A importância do arraial mede-se habitualmente pelo número de rezes que se abatia para saciar a fome
dos romeiros. Um dos aferidores populares, na avaliação da importância dos arrais, era o número de reses
abatidas para a espetada94.
Mas a carne assada em espeto de louro era condimentada com pão e semilhas que a cesta do farnel
guardava para estes momentos. A isto juntava-se, ainda, o chamado vinho-seco que refrescava as gargantas,
dava mais força às cordas vocais, gastas pela secura. Ao farnel do romeiro, deveria ainda juntar-se a cabaça da
aguardente, que assumiu um desusado uso entre os romeiros, sendo o mata-bicho matinal e o calorifico ar-
tificial face às geadas matinais que sucediam nas romagens. Carne de espetada, vinho seco e aguardente, eis
os ingredientes fundamentais que faziam parte da gastronomia dos romeiros e que, hoje, ainda continuam
a impor-se nos novos festivais que deram lugar às romarias e arraiais do Paço. Com a única diferença, que a
aguardente é agora servida em cocktails diversos, diferenciados por uma variedade de frutas.
Ademais há uma doçaria dita da romaria, por se vender em arraiais ou para ser degustado nesses mo-
mentos. Ao bolo da romaria soma-se o caldo da romaria, que a tradição ainda preserva, com um prato forte
de carne, que era servido à sua passagem por S. Vicente.
94 Cf. Diário de Notícias.16.09.1912, p. 1(N .N. Livramento-Caniço); DN.03.09.1914, p. 1(N .N. Livramento-Caniço); DN.03.10.1914, p1(N .N. Livramen-
to-P. Sol); Heraldo da Madeira, 11.10.1914, p. 1; DN.12.09.1933, p. 1(N .N. Livramento-Caniço); DN.20.08.1935, p. 2 N.S. do Monte).

CADERNOS DE DIVULGAÇÃO DO CEHA 44


De romarias e arraiais no mundo insular

DN.20.08.1935, p. 2 Voz da Madeira, 161, 1956, p. 4 DN.30.09.1912, p. 3

Outro momento em que os madeirenses aproveitavam também para comer carne era nas festas de ca-
samento, onde quase sempre as carnes de porco e vaca eram assadas no espeto e partilhadas por todos os
convidados, com pão de rosquilha ou bolo do caco. Muitas vezes, algumas famílias mais abastadas aproveita-
vam a ocasião para matar uma vaca ou um porco, situação que sucedia também na época da festa do Natal
com o porco e raras vezes com a vaca. Outros mais motivos festivos, como a Festa do Espírito Santo, eram
momentos em que todos esperavam que a carne fosse servida de diversas formas.
Desta forma, a culinária do arquipélago assume-se na atualidade como herança histórico-cultural do
devir histórico madeirense. As romarias do passado, tal como as do presente sempre carecem de uma or-
ganização própria definida por aqueles que se juntavam para o efeito. Haveria uma gestão, que ignoramos,
que gerenciava o transporte dos mantimentos, da cesta com o pão, da carne, das semilhas, e das cabaças,
bexiga de porco e borrachos, do vinho e aguardente95. Mais ainda havia que atender ao transporte e uso dos
instrumentos musicais (bombo, machete, rajão, castanholas, acordeão, castanholas e búzio) que animavam o
arraial. Tudo isso deveria estar definido, dentro de uma orientação grupal, mas não ficou memória escrita e
hoje serão já poucos os testemunhos orais desses tempos.
Os grupos folclóricos reavivam as músicas, letras e danças das festas das romarias. As romarias transfor-
maram-se. Deixamos de ouvir e presenciar os romeiros. Persistiram as cantigas, os instrumentos as danças,
mas noutros palcos e em forma de recriação folclórica.
A tradição das romarias perdeu muito do colorido, persiste apenas a carne na espetada, o pão caseiro e
o vinho seco com laranjada. Perderam-se as bonecas de massa e os rosários de peras passadas96 ou de casta-
nhas, que deixaram de enfeitar o pescoço das raparigas97.

95 Os excessos eram comuns e não havia regra de idade, pois em 1912 (DN.16.8.1912, p. 1) no arraial do Monte uma criança desmaiou pelo excesso de
vinho e aguardente que lhe deram.
96 De acordo com o Padre Eduardo Pereira (1989: 673-674) Esta era uma tradição da festa de N. Senhora do Livramento no Caniço; A pêra do Caniço dá
lugar a uma indústria local de fruta seca, muito antiga e original. Seca-se este fruto por dois processos: ao sol e no forno. Depois de descascado, é posto a amolecer sob a acção do
calor e em seguida premido entre duas tábuas para achatá-lo. Antigamente achatava-se a mão, entre as palmas, a pêra passada, o que foi banido por trabalhoso e anti-higiénico.
Uma vez endurecido e achatado o fruto, é enfiado, um a um, em forma de rosário, e vendido aos romeiros de todos os arraiais religiosos de verão. Uma informação mais recente
de Lourenço de Freitas (2000: 190-191) Quanto aos figos e às pêras cozidas, o processo consistia em cozê-los. inteiros os figos e, as pêras, cortadas em duas metades. Eram
cozidos em pouca água de modo a não desperdiçar o doce, ou o mel das frutas. Podiam ser usados como refeição, como podiam ser expostos ao sol, durante mais ou menos tempo.
Mantendo os figos e as pêras muito tempo expostos ao sol, obtinha-se figos e pêras secos, durante menos tempo, pêras e figos passados. Quando secos eram guardados em seiras de
palmeira, alguns para consumo caseiro e uma parte para levar em gígas a vender nas romarias. Com as pêras passadas ou secas eram feitos rosários que os romeiros compravam
para dependurar ao pescoço, como indicativo da sua participação na romaria.
97 Em 1909 J. Reis Gomes (1942: 2003-204) afirmava que As raparigas garbosas, de tranças desalinhadas pelo folguedo das danças, tasquinham peras passadas e castanhas,
arrancadas aos “rosários” que as cingem em várias voltas e donde pendem as bonecas de massa, amarelas de açafrão, galhardamente enfeitadas com penas de ave tingidas de verde
e de vermelho. Cf. cf. Gomes, 1942:204; Pereira, II, 1989: 496; GOMES, 2010:61.

CADERNOS DE DIVULGAÇÃO DO CEHA 45


De romarias e arraiais no mundo insular

DN.16.08.1904, p. 2 DN.29.07.1906, p. 1

DN.12.09.1912, p. 2 DN.17.01.1914, p. 1

DN.17.08.1916, p. 3

CADERNOS DE DIVULGAÇÃO DO CEHA 46


De romarias e arraiais no mundo insular

Percurso Santa Cruz Funchal, meados do século XlX. Gravura da Quinta das Cruzes

SINISTRALIDADE E VIOLÊNCIA NOS ARRAIAIS

Em torno das romagens e arraiais, devemos ainda notar os casos do dia que habitualmente ensombra-
vam os arrais. Sendo estes momentos de grande sociabilidade e de movimento de pessoas acabavam sempre
por acontecer situações de violência que marcavam, de forma negativa, estes momentos. O arraial era um
momento festivo de encontro, mas também poderia ser uma altura de acerto de contas, com roubos98 e
violência99, potenciados pelo efeito do álcool, que acabavam por denegrir o espírito festivo e religioso que
acompanhava estes momentos. Daí a necessidade das autoridades locais em providenciar o necessário poli-
ciamento, durante os dias de arraial.100

98 Cf. DN, 6.9.1677, p. 2 (Bom Jesus de Ponta Delgada); id., 30.6.1910, p. 2 (S. Pedro em Santa Cruz); id.,12.9.1912, p2 (Loreto); id., 29.6.1920, p. 4 (Santo
António); id.,15.9.1931, p. 2 (Caniçal).
99 Cf. DN., 30.6.1910, p. 2 (Santa Cruz); id., 17.1.1914, p. 1 (Santo Amaro); id.,9.9.1915, p. 2 (Loreto); id., 27.9.1915, p. 3 (N. S. Vitória); id., 17.8.1916, p. 3
(Monte); id.,31.7.1917, p. 2 (Santana); id., 15.9.1931, p2 (Caniçal, Caniço); id.,12.9.1933, p. 1 (Sítio do Moreno- Stª Cruz); id., 10.10.1934, p. 1 (Senhor dos
Milagres-Machico); id., 9.12.1934 (N. S. Remédios- Stª Cruz).
100 Cf. DN., 11.10.1907, p. 2; id., 7.10.1908, p. 1; id., 8.10.1910, p. 3.

CADERNOS DE DIVULGAÇÃO DO CEHA 47


De romarias e arraiais no mundo insular

Caminhos por entre montanhas e ribeiras.1900 DN.05.09.1933, p. 4

É ainda, de referir a sinistralidade que estava presente no percurso dos romeiros, da qual temos referên-
cias avulsas. Foi no percurso de retorno dos romeiros de Ponta Delgada, em S. Vicente101 que, em 1933, suce-
deu um acidente de automóvel. Mas o pior estava na dificuldade de passagem dos romeiros nos caminhos do
interior da ilha onde sucedia sempre acidentes.102
A ação das forças policiais atendia também ao horário de abertura dos estabelecimentos103, ao preço da
venda da carne nas barracas dos arraiais104, na coibição do jogo clandestino105. A cobrança da imposição do
vinho vendido nas barracas era também alvo da fiscalização e provocava inúmeras vezes situações de conflito
e violência, como o que sucedeu em 1915106 no arraial do Loreto, por causa da cobrança da imposição do
vinho pelos fiscais.

101 Cf. DN., 5.9.1933, p. 4.


102 Cf. DN., 16.8.1904, p. 2 (acidente caminho entre a Tabua e Estreito); id., 5.9.1933, p. 4 (acidente com romeiro na Madalena).
103 Cf. DN., 27.6.1916, p. 2.
104 Cf. DN., 18.9.1917, p. 3.
105 Cf. DN., 27.9.1915, p. 3 (N.S. Vitória).
106 Cf. DN., 9.9.1915, p. 2. Sobre a cobrança da imposição ver. Dn, 17.8.1915, p. 1; id., 11.09.1915, p. 1.

CADERNOS DE DIVULGAÇÃO DO CEHA 48


De romarias e arraiais no mundo insular

DN.05.09.1933, p. 4 Naturaes da Ilha da Madeira dançando. Litografia anónima. Séc. XIX

3. A economia do céu e as mobilidades, peregrimação, romarias e


arraiais

Elle trazia o bom fato de caxemira azul, a boa calça de cazemira amarela, o bom chapéo de palha
d’abas largas, e essa corrente de oiro posta por defronte do casaco prendendo o relogio mettido
no bolso- só anneis de oiro, grandes, eram tres: dois na mão direita e um na esquerda. Eu fiquei
maxima, visinha, fiquei maxima quando vi aquillo!
Era verdade: o Manuel dera-se bem com o negocio, e voltara á freguezia a cumprir uma pro-
messa, e comprar uma casa. (…) e já disse que este anno se ha de fazer a procissão do Senhor S.
Pedro e que hade pparecer uma barquinha que vae deixar todos admirados. (…) (SILVA, 1883, 61)

A economia do céu aqui tem, como protagonistas, os emigrantes que desde finais do século XIX, assu-
mem um papel na terra-natal, como festeiros, pagadores de promessas e protagonistas duma nova sociabili-
dade, em que a ostentação se exibe publicamente, através de sinais exteriores de riqueza, como o vestuário
e os adereços de ouro. A imagem do festeiro começa a substituir a dos mordomos da confraria do orago. É
alguém da terra que retorna para cumprir a promessa e testemunhar o seu sucesso.
Idêntica atitude acontece em relação aos Açores, com as Festas do Divino. Esta situação, que definimos
como economia do Céu, com base nas aportações teóricas de M. Mauss, também merecem aceitação nos
estudos antropológicos sobre o Divino, nos Açores107.
Se, no século XVI, a ostentação da riqueza se manifestava em doações de obras de arte, na construção
de ermidas e capelas, agora a mesma situação acontecia com os emigrantes, os novos-ricos da sociedade,
que se manifestavam, no retorno, com uma indumentária ostensiva e com a encenação pública do pagamen-
to da promessa. Nos séculos XIX ou XX, o sucesso da festa é quantificado nos números de romeiros que o
arraial e festa conseguem congregar, trazidos pela informação numérica, do número de bandas de música,
dos minutos ruidosos dos foguetes e do fogo-de-artifício.
107 Cf. Leal, J. (1994). As festas do Espírito Santo nos Açores: um estudo de antropologia social. Lisboa: Publicações Dom Quixote, pp. 17, 51, 54,72-73, 79, 84-85.

CADERNOS DE DIVULGAÇÃO DO CEHA 49


De romarias e arraiais no mundo insular

Max Römer (1878-1960): Fim-de-Ano na Madeira, 1948

“O demerarista” é primeiro retrato da ostentação que a emigração propicia. É ela que que apresenta
como um dos primeiros festeiros desta pompa e exibição do dinheiro, que se diferencia pelo vestuário e orna-
mentos de mouro. Em 1883, Mariana da Silva apresenta-nos o primeiro emigrante, demerarista, de retorno à
terra para celebrar e se mostrar. De acordo com Mariana Silva

Ele trazia o bom fato de caxemira azul, a boa calça de cazemira amarela, o bom chapéo de palha
d’abas largas, e essa corrente de oiro posta por defronte do casaco prendendo o relogio mettido
no bolso só anneis de oiro, grandes, eram tres: dois na mão direita e um na esquerda. Eu fiquei
maxima, visinha, fiquei maxima quando vi aquillo!
Era verdade: o Manuel dera-se bem com o negocio, e voltara á freguezia a cumprir uma promes-

CADERNOS DE DIVULGAÇÃO DO CEHA 50


De romarias e arraiais no mundo insular

sa, e comprar uma casa. (…) e já disse que este anno se ha de fazer a procissão do Senhor S. Pedro
e que hade apparecer uma barquinha que vae deixar todos admirados. (…) Tudo era alegria na
pobre casinha dos pescadores: alegria que compartilhavam os visinhos e de que participou no
dia de S. Pedro toda a freguezia. Nunca em anno algum no dizer dos velhos se fez procissão mais
bonita: abriram o prestito quatro rapazes dos mais bem postos, montados a cavallo e vestidos
à turca com sua calça encarnada muito larga, seu turbante muito alto, que era um gosto ver e
segurando cada um sua bandeira de cores, que esvoaçava à brisa da tarde.
Logo apoz ia uma dança em que tomaram parte mais de vinte homens, metade dos quaes vcsti-
dos de mulher, e com fatos cada qual mais estravagante, levando todos uma carapuça ao uso da
ilha, mui enfeitada de fitas e flores: em seguida quatro raparigas vestidas á moda antiga da ilha
e que ainda hoje figuram nas festas do Espírito Santo e a que chamam saloias.
Levavam o peito cheio de joias, o pescoço quasi coberto pelos cordões de oiro, e as carapuças
artisticamente enfeitadas com fios de perolas e flores.
Quatro homens do mar dos mais valentes conduziam em seguida a barquinha, que ia cheia de
doces, fructas, milhares de ramos de flores, muitos ovos, grande quantidade de pães de assuear,
muitas garrafas de vinho, tudo disposto com a maior arte. Ao pé da barquinha iam os doze
“apóstolos” levando uma rede de pescar, nova, e vestidos de modo a querer imitar o trajo dos
companheiros do Divino Mestre: seguiam depois as irmandades, sendo a ultima confraria a do
Santissimo. A imagem de S. Pedro ostentava se enfeitada com grande variedade de flores. Atraz
da imagem o antes do pallio, lá se via com a sua capa de seda nova e vara de prata o nosso
Manuel.
Ao lado o velho pescador, que não sabia se havia de rir, ou chorar; e passava de uma para a outra
mão o “cirio”, tão distrahido caminhava, a rever-se no filho.
A musíca da cidade alegrava com seus harmoniosos sons aquella festa, e de quando em quando
estalejavam foguetes e ouviam-se os tiros de “apedreiros”
Finda a procissão a barquinha foi depositada no meio da igreja para quem a quizesse ver; e reco-
lhida depois pelo senhor vigário a quem pertence todos os annos. (SILVA, 1883: 61-64).

Manuel, filho dum humilde câmara-lobense, é o primeiro nessa função que os anais da História até ao
momento têm registado. Depois de 1883 até ao presente, outros se seguiram, alimentando, durante muito
tempo, o quotidiano e a vida dos conterrâneos. Tudo parecia ser feito no sentido de impressionar os que cá
estavam e presenciavam atentamente tudo, para que ficasse a certeza do sonho concretizado. Era um deme-
rarista de sucesso, que se mostra nas passerelles do cais da vila, como no adro da igreja e no momento da
procissão em honra de S. Pedro, na vila de Câmara de Lobos. O seu sucesso impressionava os que cá tinham
ficado e acendia esperanças naqueles cujos filhos tinham também emigrado que ansiavam também por um
dia ter a possibilidade da partilha deste momento de glória. A muitos jovens, ditava o alento para prosseguir
nos mesmos passos para que um dia aquele sonho se concretizassem. É este enlaçar de promessas compridas
com ambições e esperanças de outros que dita a resiliência do ilhéu, que o leva a prosseguir e não cruzar os
braços perante as adversidades. Afinal, todos se reviam neste demerarista e aguardavam pelo seu momento
de fama.
Outros festeiros, por força da roda do tempo histórico, foram aparecendo e dando continuidade a esta
tradição onde, muitas vezes, na ilusão da dádiva, se mistura o fugaz momento de afirmação social do festeiro,
promovendo-se a realidade socioeconómica que subjaz esta realidade. Daí que aos demeraristas, sucederam
os que vinham do Curaçau, Venezuela, África do Sul e outros mais destinos onde o madeirense fez fortuna,
que marcaram de forma evidente os arraiais madeirenses, na segunda metade do século XX.

CADERNOS DE DIVULGAÇÃO DO CEHA 51


De romarias e arraiais no mundo insular

Desenho inserto na obra de W. R. Wilde, Narrative af a Voyage to Madeira,


Teneriffe and a/ong the shores ot the Mediterranean, Dublin 1840

De acordo com Maria Lamas, o festeiro da festa da Ascensão do Senhor na Ponta de Sol era o alvo das
atenções:
Mas quem se torna alvo de todos os olhares e atenções, entre os mortais, ali na Ponta do Sol, é
o festeiro, que tem, por sua vez, a responsabilidade da magnificência da festa. Ele e a família,
incluída em todas as deferências que lhe são dispensadas, assumem também a categoria de
festejados, no plano humano, e esse aspecto da festividade é o que lhe dá carácter especial. De
resto, tudo se liga, pois as honrarias dirigidas ao respectivo festeiro serão tanto mais calorosas
e convictas quanto maior foro esplendor das cerimónias religiosas, o aparato com que ele e a
família se apresentarem e a abundância, variedade e requinte do banquete por ele custeado,
reunindo à sua volta parentes, aderentes, amigos, sacerdotes, a mesa da confraria e todas as
outras pessoas que tomaram parte na organização e realização da festa. Porque não se trata
apenas duma celebração limitada à Fé e às pompas do culto externo, mas dum acontecimento
com carácter cívico e um significado social da maior importância naquele meio.
Ser festeiro da festa da Ascenção corresponde a subir de categoria e ingressar numa espécie de
escol, onde são admitidos, exclusivamente, os homens de conduta irrepreensível abastado have-
res. Receber essa honra equivale a ser publicamente incluido entre as pessoas de «maior riqueza
e honorabilidade. Assim, o título de festeiro confere ao seu possuidor uma dignidade vitalícia que
é a mais ambicionada recompensa do chefe de família que se presa - sem falar na prosperidade
que, implicitamente, ele testemunha. É no próprio dia da Ascenção, em plena missa, que se pro-

CADERNOS DE DIVULGAÇÃO DO CEHA 52


De romarias e arraiais no mundo insular

The Xero/a. Desenhado por Pitt Springett e publicado no álbum Recollections of Madeira, London 1843

clama o festeiro do ano seguinte. Essa comunicação incumbe ao pregador: logo que sobe ao púl-
pito, antes de iniciar o sermão, ele pronuncia, pausadamente, gravemente, o nome do escolhido.
Momento culminante na vida dos homens considerados da Ponta do Sol! - descendentes directos
dos «homens-bons, de antanho, que tão alta missão desempenhavam nos seus burgos. Quantos
passam a existência esperando esse instante que para sempre os dignificará!
Quanto ao festeiro «em exercício», é a figura máxima do dia: vai a filarmónica buscá-lo a casa,
antes de principiar a festa, e com ele vem a família, compenetrada do seu privilégio. Todo o per-
curso é feito entre alas de povo, em atitude respeitosa - os homens de cabeça descoberta - ao
som duma vibrante marcha. Depois, na igreja, ele e os seus têm lugar reservado junto do altar-
-mor e ali se conservam, segurando, cada um, na mão uma tocha acesa, durante as cerimónias, e
recebendo, tal como os sacerdotes, três ductos de incenso - uma honra excepcional que confirma
e aumenta todas as outras que lhe são dispensadas.108

A figura do festeiro venezuelano marcou de forma evidente o panorama dos arraiais da segunda metade
do século XX109. Maria Aurora legou-nos a memória de um desses na festa de N. Srª da Esperança.
No arraial da Senhora da Esperança é o cheiro a louro das espetadas, a alegria dos despiques ao
ritmo do rajão, ao desacerto da banda, ao troar do fogo. É o deslumbramento perante a prodiga-
lidade dos festeiros que coroam as ruas de arcos e bandeiras e queimam milhares de contos em

108 LAMAS, 1956: 257-258.


109 Cf. GOMES, 2018: 12, 90, 148.

CADERNOS DE DIVULGAÇÃO DO CEHA 53


De romarias e arraiais no mundo insular

Fogo-de-artifício na Madeira. Lady Brassey. 1885

três dias disputando a palmo e de ano a ano a glória da melhor festa. Diz o Padre Custódio que
tem o arraial arrematado, sempre, com quatro, cinco anos de antecedência.
Foi por um arraial da Senhora da Esperança que a aldeia viveu uma das mais lindas histórias da
sua vida, escreveu uma das mais brilhantes páginas da sua história, dando razão ao padre Cus-
tódio e à sua teimosa fé, fazendo o gáudio de Justininho e a felicidade da população.
O Evangelino Feijão emigrara há muitos anos para a Venezuela. Poucas novas houve dele nos
primeiros tempos. Umas cartas para a mãe - o pai já morrera há muito -, uns dinheiritos, poucos,
para ajuda do curso da irmã, hoje, a professora Celestina, casada com o Porfírio, presidente da
Junta de Freguesia, em tanto se cifraram as notícias do Evangelino ao correr de quase trinta
anos.
Quando o Justiniano regressou de vez, a professora fizera-lhe uma longa conversa. Para saber
novas, pois, nessa altura, já as cartas do irmão rareavam. O Justininho lembrava-se da época em
que o rapaz fazia uns biscates num barzeco de Caracas. Perdera-o depois de vista. Disseram-lhe
que tinha ido para o interior e falara-se então que urna certa mulher dum bordel da cidade, que
o agasalhava a tempos, partira com ele. (…)

CADERNOS DE DIVULGAÇÃO DO CEHA 54


De romarias e arraiais no mundo insular

Anos passados, começaram a chegar cartas do Evangelino. E bolívares. Estava próspero. Foi
anunciando a visita. Primeiro para a festa depois para o arraial. Até que o padre Custódio con-
firmou. Viria pelo arraial e seria o festeiro. Nessa altura já a Celestina era mãe de dois rapazotes
e acrescentara a casa, que herdara da mãe, fazendo um grande salão junto à garagem para as
festas: o marido entrara na vida política, sonhava com a presidência da Câmara, e recebia, para
grandes comezainas, os políticos da zona, que ali alapavam em período de eleições.
Quando o Justininho soube da chegada do Evangelino a transpirar dinheiro, cheirou-lhe a novi-
dade grossa. (…)
Anos passados, começaram a chegar cartas do Evangelino. E bolívares. Estava próspero. Foi
anunciando a visita. Primeiro para a festa depois para o arraial. Até que o padre Custódio con-
firmou. Viria pelo arraial e seria o festeiro. Nessa altura já a Celestina era mãe de dois rapazotes
e acrescentara a casa, que herdara da mãe, fazendo um grande salão junto à garagem para as
festas: o marido entrara na vida política, sonhava com a presidência da Câmara, e recebia, para
grande comezainas, os políticos da zona, que ali alapavam em período de eleições.
Quando o Justininho soube da chegada do Evangelino a transpirar dinheiro, cheirou-lhe a no-
vidade grossa. convites para os deputados seus conhecidos. E, regalado, já se via nas listas das
próximas eleições como candidato à presidência da Câmara.
Levantaram-se barracas de comes e bebes na rua principal com pipas de vinho seco ao lado. O
cheiro a louro espalhava-se por todos os sítios.
Na última carta, o Evangelino dava nota do dia da chegada e acrescentava que o santeiro a
quem encomendara o trabalho dera a Santa por terminada. Viria de contentor. (...)
Chegou a véspera do arraial. Logo pela manhãzinha um troar de vinte e um foguetes levantou
ecos desde a muralha da montanha até ao rés do mar. Logo a banda arrancou, afinada, rumo à
casa do Evangelino. A família aprumou-se toda no terraço enquanto arrancava o hino. E todos
entraram depois para o salão de festas, nos fundos da casa, para comerem os doces e beberem
uns copos.
Quando de lá saíram, romperam a tocar com mais força para a habitual volta à aldeia anuncian-
do o início das festas.
Camionetas enfeitadas de gente despejavam garrafões e cestas no largo da igreja. Encheram-
-se as ruas de risos e despiques e havia no ar um cheiro doce a espetada, perfume a vinho e a
pão fresco. Era grande o movimento ao redor das barracas no descarregar de grandes peças de
carne. Passeavam nas mãos da pequenada nuvens de açúcar-doce, pipocas coloridas, balões
garridos.
O padre Custódio não parava. A igreja era um jardim, prenhe de flores, forrada de cortinas de
verdura. Cedo pela manhã os primeiros romeiros acenderam as velas das promessas. O Justini-
nho metera dois empregados para os dias do arraial. Reforçara o stock, esfregava as mãos de
contente ao pensar no fecho da caixa ao fim do dia. Fervilhavam os comentários. (…)
As portas da casa da professora Celestina estiveram abertas todo o dia. Era um vaivém de gente
bebendo à saúde do festeiro. Corria o vinho das pipas, esquartejavam-se vitelos para o espeto.
Da cozinha vinha um cheiro bom a assados, bolos, pudins. Que à noite havia grande banquete
para os convidados especiais. Comentava-se à boca fechada que o Presidente do Governo estaria
presente, para homenagear, no Evangelino, todos os emigrantes da região que não esqueciam
a sua terra.
Fumando um grosso charuto, o Evangelino passeava-se entre os visitantes. A Amarilda de lante-

CADERNOS DE DIVULGAÇÃO DO CEHA 55


De romarias e arraiais no mundo insular

Banda Municipal da Ribeira Brava, 1972-1976. Photographia-Museu “Vicentes “, Funchal

joulas e cetins, gargantilha de ouro e anéis fulgurantes nas mãozinhas pequenas, sorria receben-
do as senhoras. As filhas, esplêndidas, de pregadores de brilhantes nas cabeleiras fartas, todas
dourados e rosa, borboleteavam entre olhares gulosos.
(…) O dia foi acelerando em ruídos, cores e sabores. Pelo fim da tarde não se rompia por entre
a multidão. Chegaram os grupos folclóricos, os conjuntos musicais e mais as bandas. Vista de
longe, a aldeia era um fogacho de luz, no resplendor das gambiarras, dos projectores e dos fo-
guetes.
Pelas ruas acotovelava-se o despique, em rodadas de vinho seco, em breves goladas de poncha.
(…) A aldeia adormeceu quase na pequena luz da madrugada. Pelas ruas arrastavam-se os últi-
mos copos.
Na igreja iluminada, incendiada a círios, pernoitavam os romeiros, encostados à sombra dos
altares.
O foguetório, pela manhã, encontrou ainda a aldeia meia adormecida. A banda voltou à rua,
o pessoal que pernoitara nas camionetas comia a bucha do pequeno-almoço. E um ar lavado
passeava na sombra das vinhas. Perto do meio-dia já se ouvia a música religiosa. E todos se
preparavam para a missa. Abriram-se alas à entrada do Evangelino, cabelo esticado a gel, fato
branco, ar próspero e feliz. A Amarilda estava deslumbrante num vestido azul-eléctrico com re-
flexos verdes no dobrar da seda. Trazia no braço uma pele vistosa. As meninas, essas, eram um
apetite, envoltas em tule e coroadas de rosas.
Quem não conseguiu entrar na igreja acompanhou a celebração no adro. E a procissão atraves-
sou as ruas entre filas de fiéis e afinado coro.

CADERNOS DE DIVULGAÇÃO DO CEHA 56


De romarias e arraiais no mundo insular

Mas o que todos desejavam era o cortejo da tarde. Aquele que devolveria à capela do Calhau a
sua Santa.
E o povo apinhou-se junto da casa da professora Celestina.
Saíram primeiro as meninas da escola com ramos de flores, depois os irmãos da confraria e a
seguir, aos ombros dos filhos da professora Celestina, do presidente da Junta, seu marido, e do
Evangelino, o andor.
Uma verdadeira obra de arte! Todo dourado e atapetado por centenas de cravos brancos, onde
assentavam os pés da Santa. De ambos os lados fitas de cetim seguras por mãos de gentis senho-
ras, donde se distinguiam a Amarilda e a menina Zulmira.
Atrás, o padre Custódio, mais o presidente da Câmara e o deputado da terra e mais o chefe dos
Bombeiros e outras autoridades. A seguir, a banda em hino desconcertado. Fez-se silêncio no
largo. Depois um sussurro e finalmente o povo rebentou num aplauso. E foi entre palmas, vivas
e muita surpresa que a Santa desfilou rumo ao Calhau.110
A tradição não se apaga facilmente e as promessas sempre encontram momento da sua concre-
tização. É o caso da Quinta Grande:
Em 2009, quarenta e dois anos depois de sair da Madeira, Abílio e família, finalmente, regressa-
ram o Campanário, para cumprir a promessa. A festa começou muito antes, com a preparação e
a tradicional apanha de açucenas.
Na madrugada do dia 25 de setembro, tal como é tradição, os festeiros e populares dirigiram-se
às serras da Quinta Grande, com o fim de apanhar açucenas para os enfeites da festa de Nossa
Senhora do Bom Despacho. Ao toque de búzios, foguetes, acordeão e concertinas, e a compa-
nhia das garrafinhas de licor, aguardente e o garrafão de vinho, as pessoas reuniram-se, pela
madrugada, na volta do Pico, atrás da capela, e lá foram, em cortejo, apanhar as flores. Durante
o percurso, o grupo foi crescendo. Antigamente, deslocavam-se a pé. Atualmente, como a es-
trada é boa, a maior parte das pessoas transporta-se em veículos próprios ou à boleia, até às
Fontainhas. No regresso, a maior parte dos participantes vem a pé, em romagem, pois, assim,
há mais sociabilidade e respeita-se a tradição. O senhor gostinho, fogueteiro, de vez em quando,
lança um foguete. Nas fontainhas, reuniram-se a cantar ao despique, ao som das concertinas.
Logo que começou a amanhecer, as pessoas dividiram-se, indo cada um para seu lado, procurar
açucenas. Alguns locais estão cheios de flores, outros nem tanto. É preciso procurar, mas sempre
se encontra flores. A apanha das açucenas é uma tarefa estimulante, mesmo que, por vezes,
tenhamos de molhar os pés na lama ou arriscar a picarmo-nos nos silvados. O regresso é um
espetáculo inesquecível para aqueles que têm o privilégio de nele participar. As várias dezenas de
cestos, baldes ou ramos de açucenas perfazem um colorido maravilhoso. O perfume das flores dá
um toque único os romeiros, na esta. Cerca das 9h, começam a reunir-se as pessoas, com as flo-
res já colhidas, para os carros. Concentram-se nas Fontainhas. Um grupo desceu a pé pela vereda
do Escrivão, das Fontainhas até à Quinta Grande. No final desta vereda, junto à estrada regional,
outros ali esperaram. De seguida, vem um grupo a pé, à frente e, logo atrás, algumas dezenas de
carros. Na Vera Cruz, há uma paragem obrigatória para o de jejum, com sandes de bacalhau e
algumas bebidas. A partir daqui, o cortejo reagrupa-se, novamente; a romagem prossegue pela
estrada, até à capela, num percurso de vários quilómetros.
No sábado, teve lugar o habitual arraial. Após a girândola, ao meio-dia, segue-se a visita da
banda de música, à casa do festeiro. Mas, Abílio e Francisca fizeram questão de que esta visita
se estendesse à casa dos pais, já falecidos. Foi uma homenagem em sua memória, comovente

110 HOMEM, Maria Aurora Carvalho, 1992, A Santa do Calhau, Lisboa, Editorial Notícias, pp-17-27.

CADERNOS DE DIVULGAÇÃO DO CEHA 57


De romarias e arraiais no mundo insular

Peasants in usual costume, litografia, ed. R. Ackermann, Londres, 1821

e emotiva. Muitos familiares choraram nessa visita, tal foi a emoção. No domingo, a procissão
saiu da capela, até ao Tomadouro, Porta Nova e volta do Pico desce, novamente, em direção ao
Tomadouro e regressa à capela. Algumas pessoas queixaram-se no adro, antes da procissão sair,
pelo facto de terem feito promessa, mas não haver mais círios disponíveis: tinham-se esgotado,
tantas foram as promessas. - O que conta é a intenção! – diziam , outras. Por isso, muitos romei-
ros cumpriram a promessa, sem círio, acompanhando a procissão. Neste dia 27 de setembro de
2009, pela primeira vez, a procissão passou no novo caminho, entre Porta Nova e Chamorra. As
confrarias, os andores, os cumpridores de promessas, a banda de música e os acompanhantes,
fizeram da procissão, como sempre acontece, o ponto alto e mais sentido da festa de Nossa Se-
nhora do Bom Despacho.111

Depois, temos os festeiros da festa de Nossa Senhora do Bom Despacho.

O João do Meia emigrou para a Venezuela, em 1966. Um dia, teve um acidente, ficou muito mal,
quase morria. Prometeu, se recuperasse, que iria agradecer a Nossa Senhora do Bom Despacho,
se possível, organizando a festa. De regresso da Venezuela, para fixar-se no Campanário, asso-
ciou-se o seu vizinho, também emigrante e ambos chamados João, foram os festeiros numa das
festas do Bom Despacho.112

Já para as bandas do norte, temos outras recordações e vivências doutros festeiros e festas.

A Irmã Maria das Dores chegou à Ilha Florida no último fim de semana de Julho, mais precisa-
mente quando a freguesia comemorava a sua padroeira. Todos os arredores da Igreja estavam

111 GONÇALVES, J. L., 2011, Caminho da Vigia, Funchal, O Liberal, pp. 56-59.
112 GONÇALVES, 2011.80.

CADERNOS DE DIVULGAÇÃO DO CEHA 58


De romarias e arraiais no mundo insular

primorosamente engalanados, com mais flores e arcos que o habitual, pois naquele ano, os orga-
nizadores festeiros, dois amigos que haviam chegado da Venezuela, prometiam festa rija. Além
da banda local que entraria em actividade lá mais para a tarde, a do Arco de S. Jorge, freguesia
que integra o mesmo concelho, já percorria as ruas, animando a zona com seus acordes musi-
cais. Os foguetes estalavam no ar e aquele ambiente solene trouxe-lhe à memória os poucos
momentos alegres da sua mocidade. De repente, o seu subconsciente foi abalado com as peripé-
cias das fugidas nocturnas e dos passeios com as amigas, naqueles dias, sob arcos de verduras,
enfeitados com flores naturais, sempre vigiada de perto pelo pai ou pelos irmãos. O seu maior
prazer era, embora tímido, ansioso mas obstinado, cruzar-se com o único amor da sua vida. Os
olhares trocados com malícia encoberta, satisfaziam em parte a sua ambição. (…).
Que nostalgia (...) Que saudade desses tempos (...) Onde andaria ele? Estaria ainda vivo, ou já
na eternidade? Com a girândola do meio dia, evocou uma oração em sua memória. Se estivesse
morto, pela sua alma, mas se ainda vivesse, pela sua felicidade. (…).113

Nos Canhas, a celebração da padroeira teve, durante muito tempo, a garantia do apoio dos festeiros da
Venezuela:

A festa de Nossa Senhora da Piedade, a padroeira da paróquia, não era só o dia e a véspera. As
novenas preparatórias mobilizavam os diversos sítios, na recolha de fundos para pagar cada um
a sua e ofertas, em dinheiro e em géneros, que seriam leiloados no fim da festa religiosa, com
destino às obras de conservação da igreja. Em casa, era a azáfama das “limpezas do Verão”- lim-
peza geral da casa e eliminação de utensílios já gastos - e conclusão apressada de bordados, em
tela ou tecido, para oferecer à igreja e que tinham de estar prontos até sábado ao meio-dia, para
serem transportados até ao bazar de cada sítio, instalado no adro.
Tudo isto decorria já num ambiente de festa, expresso pelos enfeites no adro, nas Murteiras e
no sítio de S. Tiago, e pela música transmitida pelos altifalantes colocados na torre da igreja, ao
longo da semana anterior. Toda esta animação era fruto da vontade e participação dos paroquia-
nos, mas tinha o suporte financeiro dos “venezuelanos”, ou seja, dos filhos da terra emigrados
na Venezuela, nesse ano de visita ao seu berço natal. Aliás, nesta quadra respirava-se o ar da
Venezuela por toda a parte. O festeiro era, com raríssimas excepções, emigrante na Venezuela
ou já tinha sido; da Venezuela vinha a maior parte da música transmitida pelos altifalantes;
com o dinheiro dos emigrantes, presentes ou ausentes, adquiriam-se, por esta ocasião, alguns
electrodomésticos e peças novas de mobiliário para casa e compravam-se os tecidos com que as
costureiras faziam os vestidos novos, para possibilitar às raparigas solteiras serem namoradas
pelos emigrantes que buscavam casamento; os emigrantes da Venezuela animavam a vida das
tabernas, convidando todos os presentes a tomarem um copo com eles, levavam os parentes e
amigos a passear à serra para comer uma espetada ou um cabrito e aumentavam os lucros das
empresas de aluguer de automóveis e das gasolineiras, muitas vezes com alguma exibição estra-
tegicamente usada para seduzir as raparigas. Ao longo da noite da véspera e no dia do arraial,
no grupo onde houvesse um emigrante, era este que pagava as bebidas. E os afilhados podiam
também contar nestas ocasiões com uma oferta do padrinho.114

113 VALERIO, Teresa, 2006, Momentos de Sonho, Lisboa, Guide Artes Gráficas Lda, pp. 263-264,
114 PITA, 2003:115-116.

CADERNOS DE DIVULGAÇÃO DO CEHA 59


De romarias e arraiais no mundo insular

Peasants returning from the Festival

Partimos da origem da riqueza gerada na ilha nos séculos XV e XVI para podermos chegar à noção de
riqueza e de dádiva e buscar o impacto das palavras bíblicas que apontam para a sua negação, como meio
para a salvação da alma e a busca intencional, pelo madeirense, de uma gestão harmoniosa desta situação, a
que chamámos “economia do céu”.
Fomos descobrindo a diversão e a devoção religiosa do ilhéu que foi moldada no tempo, por força de
múltiplas contributos e evidências. Hoje, apenas temos a sua memória e revivência propiciada pelos estudos
de Folclore e da representatividade pelos atuais grupos folclóricos, através dos chamados festivais de Folclo-
re. Tudo isto faz com que a diversão seja servida como uma forma de reavivar as vivências passadas.
Descobrimos um roteiro de romarias e arraiais que se organizou institucionalmente em torno da Igreja,
mas gerou uma mobilidade e intervenção na sociedade madeirense, que suplanta o aspeto religioso e que
se pode calendarizar da seguinte maneira: em abril/maio, nas festas do Espírito Santo, faziam-se romagens
locais e davam colorido à Camacha e aos caminhos115; em junho, os santos populares (Santo António, S. João
e S. Pedro) que traziam os romeiros à freguesia de Santo António, ao S. João da Ribeira (Funchal) e do Porto
Santo, ou ao S. Pedro em Câmara de Lobos, Ribeira Brava ou Porto Santo; em julho, as romagens orientavam-
-se para Santa Maria Madalena, no Porto Moniz; em agosto, o mês por excelência das romarias e arraiais, os
peregrinos celebravam a solenidade maior, no Monte, com réplicas em algumas freguesias do interior, a de
Nossa Senhora das Neves, nos Prazeres, do Santíssimo Sacramento em Câmara de Lobos; em setembro, rodo-
piam entre o norte e o sul, trazendo romeiros ao Bom Jesus da Ponta Delgada, à Nossa Senhora do Loreto no
Arco da Calheta, à Nossa Senhora do Livramento no Caniço, à Nossa Senhora da Piedade no Caniçal; em ou-
tubro, culminava o roteiro de peregrinação, com a apoteose dos fachos ao Senhor dos Milagres em Machico.
Arraial, romagem ou festa guiam-se pelas mesmas regras, definindo uma sociabilidade e mobilidade
incomuns no quotidiano. Aliam-se a devoção e diversão, o pagamento de promessas e a gratidão devocional.

115 No Porto Santo, a festa da capela do Espírito Santo celebra-se em agosto e no passado como no presente era motivo de importante romaria de madei-
renses. Confunde-se muitas vezes com as festas do Pentecostes.

CADERNOS DE DIVULGAÇÃO DO CEHA 60


De romarias e arraiais no mundo insular

Max Römer (1878-1960): igreja do Monte (1954)

Vive-se um período invulgar de lazer, que celebra a riqueza das colheitas, em que se recobram forças e se
arranja condições para um retorno ao trabalho. Daí a celebração do pão, do vinho e da carne. A gastronomia
do momento tem um peso notório no quotidiano, tendo a espetada, o vinho seco e a aguardente, como as
iguarias do momento.

DN. 17.08.1915, p. 1 DN. 11.09.1915, p. 1

O arraial gera um ambiente de folia, que se expressa por sons, cheiros e o colorido da indumentária:
os instrumentos tradicionais, executados por exímios romeiros dava ao alento e animação nos caminhos da
romagem como no adro da igreja, depois começou a aparecer a chamada “música de arraiais” debitada por
altifalantes. As barracas de comes e bebes, a casa de chá enchiam-se os foguetes, o fogo preso ou de artifício
eram a apoteose da festa.

DN. 21.05.1907, p. 1 DN. 30.08.1908, p. 1

CADERNOS DE DIVULGAÇÃO DO CEHA 61


De romarias e arraiais no mundo insular

Mas o arraial também acontecia com o ver passar os romeiros, que acontecia tanto no Funchal, com
os romeiros do Espírito Santo da Camacha116, como no Arraial do Monte, ou noutros do interior da ilha, em
Ponta Delgada. Os romeiros associavam-se aos olheiros dos romeiros que em sítios estratégicos dos caminhos
se envolviam com os forasteiros117.

Funchal, from the Palheiro road DN.02.08.1934, p. 3 DN. 17.07.1887, p. 4

Desde o século XVII que as romarias e arraiais têm associado uma feira onde se gera um mercado de
ocasião para as produções do momento, assim como para a compra e venda de artefactos. Há uma outra
economia que envolve estes momentos e que acompanha o pulsar festivo dos locais de culto118.
A descoberta nos anais da História desta faceta do quotidiano histórico da ilha é um legado do atual
Folclore e faz parte da nossa memória coletiva, apesar de muitas vezes descontextualizado.
Há uma tradição religiosa e lúdica que determina a História dos espaços insulares, com uma destacada
posição na definição da identidade arquipelágica, no espaço de convívio das ilhas ou gerado fora delas. É uma
marca identitária insular que teima em persistir de múltiplas formas, nesta sociedade global e que merece
ser valorizada e divulgada.

116 Cf. DN, 5.6.1895, p. 1; id. 5.6.1906, p. 2; id., 12.5.1910, p. 1; 27.5.1912, p. 2.


117 Cf. Dn, 5.9.1895, p. 2; id., 5.6.1895, p. 1: id.,15. 5.1895, p. 1; id., 25.08.1895, p. 1; id., 10.09.1910, p. 2.
118 Cf. Dn, 7.10.1878, p. 4 (Festa do Rosário em S. Vicente); dn.18.06.1886, p. 1 (“feira na Santa do Porto Moniz”); DN.15.07.1887, p. 4 (Madalena do P.
Moniz); DN.07.10.1894, p. 2 (N. S. Rosário-S. Vicente).

CADERNOS DE DIVULGAÇÃO DO CEHA 62


De romarias e arraiais no mundo insular

Tocares e Cantares da Ilha. Estudo do Folclore da Madeira, pri- Trovas e Bailados da Ilha, segundo livro de Carlos Maria
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CADERNOS DE DIVULGAÇÃO DO CEHA 71


P
Partindo da ideia de que existe uma prática cultual ligada à Religião que esta-
belece um movimento interno e externo no espaço insular conducente a uma
gestão devocional relacionada com a chamada “salvação da alma”, em que se
determinam condutas mobilizadoras geradoras de peregrinações e de uma forma
especial de devoção, parece-nos importante destacar esta realidade enquanto marca da
memória e identidade insular.
Olhando os três arquipélagos (Açores, Canárias, Madeira), notámos diferenças notórias
na forma como são vivenciados os diversos rituais. Todos são, porém, um importante fator
da mobilidade e da vida das populações. Se em relação às Canárias estamos perante uma
diferente matriz europeia, no caso dos arquipélagos portugueses, a matriz é idêntica, mas
revelam formas de evolução distinta, daí a riqueza da situação.

Projeto "MEMÓRIA - Nona ilha"

Centro Estudos de História do Atlântico (CEHA)


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Tel: 291 214 970
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