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A filosofia é reflexão sobre a condição humana no mundo. Ela se debruça sobre diversos
temas que perpassam a existência humana. A morte é uma das temáticas refletidas pela
filosofia. A questão da morte assombra o ser humano, pois ela é fato absoluto em nossa
existência, porém não se sabe se há prosseguimento da vida ou se ela é o fim da condição
humana. A morte é processo natural na condição humana, pois todo ser vivo possui um ciclo
de vida enquanto nascimento, desenvolvimento e morte. O ato de morrer pertence aos
humanos, como parte da physis, ou seja, da ordem natural.
A morte não é o ato final da existência humana, mas todo ele, a cada momento, tem seu
fundamento na mortalidade. Viver é morrer; e morrer é viver, a cada instante na efêmera
estrada da vida. Pensar a questão da morte é ouvir e interpretar a vida em todas as suas
formas; é debruçar-se sobre ele no vigor e na ternura de mil e uma ocupações. Ao pensarmos
na morte, crescemos na competência de viver, porque baixa sobre nós a iluminação plena da
vida. Essa iluminação não é fruto de uma batalha judicial nem a defesa e imposição de um
julgamento apoiado em argumentos lógicos. É fruto do cuidado.
A morte pode ser definida como o falecimento do ser vivo, qualquer que seja, sem referência
específica ao ser humano. Para o filósofo Epicuro, só existe uma atitude perante a morte:
Quando estamos, a Morte não está; quando a Morte está, nós não estamos. Epicuro não
acreditava que o ser humano possuía uma alma espiritual e imortal. Para ele, a alma é um
agregado de átomos que dissolve com a morte e tudo termina no túmulo. Nesta perspectiva,
afirmava o filósofo da linguagem Wittgenstein: a morte não é um acontecimento da vida: não
se vive a morte. A morte é fato que dissolve o sentido da vida. O filósofo Sartre ressaltava que
a morte é um fato puro, como o nascimento; chega-nos do exterior e transforma-nos em
exterioridade. No fundo, não se distingue de modo algum do nascimento, e é a identidade
entre nascimento e morte que chamamos de facticidade.
Para o filósofo Platão a morte é a separação entre a alma e o corpo. A morte representa a
libertação da alma do corpo. A alma é imortal e pré-existe ao corpo. A morte seria processo da
elevação da alma ao Mundo das Ideias ou ao renascimento, conforme o seu grau de evolução
cognitiva. A morte é transmigração da alma de corpo em corpo até que ela alcance a evolução
necessária para se libertar do mundo. O filósofo Plotino afirmava se a vida e a alma existem
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depois da morte, a morte é um bem para a alma porque esta exerce melhor sua atividade sem
o corpo. E, se com a morte a alma passa a fazer parte da Alma Universal, que mal pode
haver para ela? A morte não é o fim da condição humana, mas a integração da alma
individual junto à Alma Universal. A alma liberta do corpo por meio da morte desempenharia
melhor suas funções, pois o corpo é imperfeito, mortal.
A experiência do viver é experiência da morte. O nascimento é morte do ser para uma nova
vida. A evolução do útero materno para o útero terreno. O processo do morrer encaminha o
ser humano para o útero terreno ou para o útero que transcenda o além-túmulo. A morte é
caminho natural do ser humano, porém ela nos instiga a pensar a sua própria superação. Nesta
perspectiva, o filósofo Schopenhauer dizia que a morte é comparável ao pôr-do-sol, que
representa, ao mesmo tempo, o nascer do sol em outro lugar. A morte não seria o findar da
existência, mas a transposição para novas realidades.
A morte como fim do ciclo de vida foi expresso de várias formas pelos filósofos e, dentre eles
se destaca Marco Aurélio que a considerava como repouso ou cessação das preocupações da
vida. Para ele, na morte está o repouso dos contragolpes dos sentidos, dos movimentos
impulsivos que nos arrastam para cá e para lá como marionetes, das divagações de nossos
raciocínios, dos cuidados que devemos ter para com o corpo. A morte é a cessação de todas
as nossas atividades mundanas e cognitivas. Já para o filósofo Leibniz a morte seria o fim do
ciclo vital como diminuição ou involução da vida. Ele acreditava que a morte diminui o valor
da vida, mas não o seu término, pois há continuação da vida pós-morte.
A tese da morte como fim do ciclo da existência individual ou finita, pela impossibilidade de
adequar-se ao universal foi defendida pelo filósofo alemão Hegel. A morte é consequência da
impossibilidade do ser humano se adequar à universalidade, ao Absoluto. Como ser
imperfeito, a morte se constitui como parte de seu destino final. Nesta perspectiva, é relevante
ressaltar que o conceito de morte como possibilidade existencial implica que a morte não é
um acontecimento particular, situável no início ou no término de um ciclo de vida do ser
humano, mas uma possibilidade sempre presente na vida humana, capaz de determinar as
características fundamentais desta.
O filósofo Dilthey afirmava a seguinte tese sobre a morte: relação que caracteriza de modo
mais profundo e geral o sentido de nosso ser é a relação entre a vida e morte é decisiva para
a compreensão e a avaliação da vida. O entendimento importante aqui expressado por
Dilthey é que a morte constitui “uma limitação da existência”, não enquanto término dela,
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mas enquanto condição que acompanha todos os seus momentos. Para o filósofo Jaspers, a
morte é compreendida como situação-limite, como situação decisiva, essencial, que está
ligada à natureza humana enquanto tal e é inevitavelmente dada como o ser finito. A morte
assinala a finitude humana. Ela é o limite e a situação final da odisséia humana.
O filósofo Montaigne dizia que quem ensinasse os homens a morrer, os ensinaria a viver. O
segredo da existência está no aprendizado constante da morte. As perdas e as metamorfoses
físicas e mentais se constituem como experiência do morrer. É o paradoxo da morte e da vida
que perpassam a realidade de nosso ser. Nesta perspectiva, não devemos ocultar-se diante da
ocorrência da morte. Mas ela impulsiona o sentido de vida autêntica no mundo. Não é, pois, a
morte o findar da vida, mas um achego maior à vida, um seguimento mais íntimo, mais
autêntico.
É, pois, o pressentimento da morte que nos põe no cuidado da vida e nos dá a possibilidade de
transcendê-la, transpondo a morte. Esse ir para além da vida, esse transpor a morte é um
caminho de transcendência que nos abre para o Desconhecido que está próximo no mundo
conhecido, bem junto ao nosso ser. No ato de viver, como se fora um ato de morrer, nos
dirigimos, pois ao Desconhecido para nos salvar. Junto a ele construímos um mundo de
segurança e garantias de cooperação dos outros, como o direito, a medicina, a religião, a
política e a economia, considerando-os como meios de salvação de nosso ser no mundo.
O pensador indiano Osho merece ser lembrado na relação do ser humano diante do morrer em
uma passagem de seus escritos:
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Diz-se que, mesmo antes de um rio cair no oceano ele treme de medo. Olha
para trás, para toda a jornada, os cumes, as montanhas, o longo caminho
sinuoso através das florestas, através dos povoados, e vê à sua frente um
oceano tão vasto que entrar nele nada mais é do que desaparecer para
sempre. Mas não há outra maneira. O rio não pode voltar. Ninguém pode
voltar. Voltar é impossível na existência. Você pode apenas ir em frente. O
rio precisa se arriscar e entrar no oceano. E somente quando ele entra no
oceano é que o medo desaparece. Porque apenas então o rio saberá que não
se trata de desaparecer no oceano, mas tornar-se oceano. Por um lado é
desaparecimento e por outro lado é renascimento. Assim somos nós. Só
podemos ir em frente e arriscar. Coragem! Avance firme e torne-se Oceano!
(OSHO, 2004, p. 127).
O pensamento de Osho nos revela a experiência do medo humano diante da questão da morte,
a realidade desconhecida. Para ele não há morte, mas o encontro com a realidade maior. O rio
e o oceano simbolizam o indivíduo e o universo. Morrer é mergulhar na essência do cosmos e
tornar-se um com ele, ou seja, uma totalidade em perfeita sintonia e harmonia com o criador
de todas as coisas. A totalidade com a inteligência universal, o Logos Infinito e Eterno, a
Causa Primeira.
Morrer é ato íntimo da vida: ato contínuo de entrega. Num primeiro ensaio entrega ao mundo
(somos no mundo). No final do ensaio existencial, entrega ao Desconhecido (somos no
outro). A expressão com que definimos o ser humano: existência no mundo é apenas sinal que
significa a essência de nosso ser: somos no outro: doação suplicante de entrega. A doação que
somos estrutura a existência humana no mundo no cuidado das palavras pai, mãe, criança.
Essas palavras lembram que a vida é criança a brincar, a sorrir, a chorar, a suspirar pelo
cuidado do pai e da mãe, no berço da mortalidade.
A morte sendo imperativo natural em nossa existência, o ser humano deve cuidar de sua vida
no mundo em comunhão com a humanidade. Viver é morrer em nossas imperfeições e
renascer em nossas superações diante dos problemas pessoais, coletivos, históricos, sociais,
políticos, econômicos e culturais. Morrer é transpor os condicionamentos humanos e renascer
em novas atitudes.
O ser humano não é ser absoluto. Nós possuímos diversas limitações. Somos seres finitos,
com desejo infinito. A morte é a comprovação inquestionável da finitude do ser humano.
Chega o momento em que a vida pessoal cessa. A morte pertence à condição humana. Sem
dúvida ela repugna à aspiração de viver. Mas é fenômeno natural, embora agressivo.
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Morrer é algo exclusivamente pessoal. Ninguém pode delegar a outro o seu morrer. Por isso, o
morrer é solitário. Morre-se só, afirmava o filósofo Pascal. O morrer faz parte da biografia de
cada pessoa. O filósofo Nietzsche considerava vitorioso quem morre de sua morte. Assim
como cada ser humano tem sua originalidade, também o morrer de cada pessoa é original e
irrepetível. A identidade pessoal inclui o morrer. O morrer não pode ser delegado ao outro,
mas cada indivíduo fará sua experiência pessoal e somente ele saberá o que acontecerá no
instante de sua morte.
A morte não é um ser ontológico, mas uma construção mental. O morrer é realidade concreta.
É fato que se dá em nossa existência. Pensar sobre o processo do morrer é pensar nossa
finitude no cotidiano da existência. Assim, crer ou não em vida pós-morte é desafio para a
racionalidade. Importa-se viver bem para morrer naturalmente bem. O morrer não depende de
nós somente, mas também de fatores externos.
Termino esta reflexão com o poema de Santo Agostinho, filósofo e teólogo, do início do
Período Medieval, descrevendo seus últimos instantes de vida em fase da proximidade da
morte:
Me dêem o nome
que vocês sempre me deram,
falem comigo
como vocês sempre fizeram.
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como sempre foi,
sem ênfase de nenhum tipo.
Sem nenhum traço de sombra
ou tristeza.
Referência Bibliográfica
BARBARIN, Georges. O livro da morte doce – não temer o momento da morte. São Paulo:
Paulus, 1997.