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livro

SERGIO EDUARDO
DIAS DA SILVA

Por que sou tão idiota?

É porque ainda não


aprendeu a ressignificar
as coisas
Prefácio

Recebi um telefonema da
Espanha, de um convento de
padres. Era tarde da noite, e eu
já estava na primeira etapa do
sono noturno. Encerrada a
conversa, coloquei o fone no
gancho, cabisbaixo e pensativo.
Fiquei a matutar durante algum
tempo, depois dirigi-me a um
cômodo da casa onde se guarda
toda espécie de tranqueira. Abri
meu baú de coisas antigas e
folheei uma pasta com recortes
do jornal Commercio do Jahu, de
cinquenta e tantos anos atrás.
Eram cerca de duas ou três
dezenas de exemplares desse
jornal, cujo tamanho, à época,
era de apenas uma folha dupla.
Tratava-se dos últimos anos da
década de 50.
O primeiro exemplar que
apanhei tinha como manchete
“Adolescente desaparece
misteriosamente”. Tratava-se do
desaparecimento de Carlito.
Sequestro ou morte? Durante
certo tempo, toda a polícia foi
mobilizada, inclusive no
exterior. Por fim, depois de
muito procurarem em vão,
acabaram por dá-lo como morto.
O corpo nunca foi encontrado.
Praticamente, esta era a única
notícia importante em meio
àquelas dezenas de exemplares:
o misterioso sumiço de Carlito.
Lembro que, momentos antes de
seu desaparecimento, ele tinha
participado da sessão de
estudos dos internos e semi-
internos do Colégio dos Padres,
onde eu também estava presente.
Após soar o sinal do intervalo de
meia hora, naquele dia fatídico,
Carlito não foi mais visto.
Ninguém sabia informar o que
acontecera. Mais de uma centena
de alunos, internos e semi-
internos, asseguraram que o
haviam visto momentos antes. A
polícia intimou alguns poucos
para depor. Mas depor sobre o
quê? Ninguém sabia de nada.
Eu não cheguei a ser intimado.
Também pudera. A polícia não
podia intimar todos os cento e
tantos alunos. Era muita gente.
Convocou apenas os
voluntários. Eu não estava entre
eles. O que a polícia não
imaginava, por ironia, é que eu
era o único a saber do que tinha
acontecido.
Aquele telefonema da Espanha
perturbou-me deveras. Fez com
que eu viajasse no tempo, me
levando de volta àquela época
em que éramos adolescentes,
final da década de 50.
Primeira parte
1

Fratura
Durante uma partida de futebol
no campeonato interno dos
alunos do Colégio dos Padres, eu
fraturei o braço, caindo de mau
jeito numa bola dividida. Não foi
culpa nem do adversário, nem
minha; são coisas que acontecem
na vida. O problema é que na
cidade de Jaú não havia um só
ortopedista. Fui levado então a
um médico “cura-tudo” que,
pensando ter colocado o osso no
lugar, engessou meu braço e me
dispensou. O braço continuou a
doer e começou a inchar, quase
estourando o gesso. Ao voltar ao
consultório do médico que me
atendeu, ele disse que nada
podia fazer, e ainda perguntou:
Tudo bem? – ao que, com
ironia, respondi:
Tudo ótimo. Melhor
impossível!
A alternativa encontrada
foi irmos para São Paulo,
capital, meu pai e eu.
Embarcamos no trem da Cia.
Paulista de Estradas de Ferro. O
máximo que eu havia viajado de
trem, até então, foi até Campinas,
onde morava a maioria de meus
parentes, o que dava quatro
horas de viagem. De lá até São
Paulo, havia ainda mais algumas
estações e uma hora de viagem,
totalizando cinco horas dentro de
um trem. Viajar de ônibus ou de
carro? Nem pensar. As estradas
eram de terra e cheias de
buracos. Quando chovia, o
veículo atolava e por lá ficava
até Deus sabe quando. Não
arriscaríamos, iríamos de trem.
Finalmente, fui curado em
São Paulo, por especialistas, e
voltamos no dia seguinte. Mal
cheguei em casa, começou a
chegar gente e mais gente. Tão
logo soube de meu retorno, o
pessoal se apressou em vir saber
do meu estado.
Olhei pela janela e vi na
rua uma pequena multidão.
Estavam ali tanto os amigos do
bairro como os colegas de
escola, do Colégio dos Padres.
Foi aí que notei o quanto eu era
benquisto. Chorei copiosamente.
Não conseguia conter as
lágrimas, que brotavam
espontâneas.
Minha mãe organizou uma
espécie de fila para que todos
pudessem entrar em casa e fazer
sua visita sem confusão e
barulho. Entrava um de cada vez.
Exageros maternos. Minha mãe
me tratava como se eu fosse um
daqueles doentes internados em
UTI hospitalar. E assim foi até
chegarem os dois últimos
visitantes, Junior e Carlito.
Primeiro um e depois o outro.
Negativo
Ao adentrar meu quarto, Junior
foi logo dizendo:
Que azar, hein Sergio? Agora
você não vai poder jogar
futebol no time do Colégio. E,
como você é o melhor do
grupo, estão todos ferrados.
Paciência - respondi.
Além disso - continuou ele -,
vai acabar eliminado do
torneio de pingue-pongue,
porque, com um só braço, fica
muito difícil jogar.
Paciência – repeti, sem muito
ânimo para aquela conversa.
Mas Junior não parava:
E tem mais: com esse braço
imobilizado, como vai poder
dançar no Clube dos
Bancários aquelas músicas de
Ray Connif e Frank Sinatra?
Acho que não vai dar. É uma
pena.
E não é só isso... – insistia
Junior – Vai ter que ficar
quarenta dias longe do piano
por causa desse gesso. Está
mesmo ferrado.
Não posso fazer nada.
E ainda terá que deixar sua
bicicleta encostada esse
tempo todo. Não vai poder
passear mais conosco de bike
enquanto estiver assim. Que
pena!
Muito chato isso – murmurei,
exercitando o máximo de
minha paciência.
Vai ter que dar adeus às nossas
brincadeiras e atividades
esportivas dos finais de tarde.
Meu amigo, você está frito!
É, acho que vai ser muito ruim –
respondi desanimado.
Positivo
Junior retirou-se e entrou seu
irmão. A conversa de Carlito era
bem diferente:
Sergio, pensando bem, o seu
time de futebol estava
vulnerável. O grupo
dependia muito de você.
Todas as jogadas tinham que
passar pelos seus pés. Quem
sabe agora, que você vai ter
de ficar engessado por
quarenta dias, não seja a
grande oportunidade de
experimentarem outras
táticas? Assim, o time
deixaria de ficar tão
vulnerável.
Você tem razão - concordei.
Há uma outra coisa que eu
gostaria de dizer - retomou
Carlito. - É que, na China, o
campeão de pingue-pongue
joga com um só braço. Para
esnobar, ainda coloca o
braço esquerdo nas costas.
Você pode tentar fazer o
mesmo. Se estiver disposto,
amanhã eu começo a treinar
com você desta maneira.
Mas isso é ótimo! - exclamei.
Outra coisa importante: o Cine
São Geraldo começou a
exibir uma série de filmes
avant-premières. A
programação de amanhã é “A
Família Trapo”; depois virão
filmes com Toni Curtis,
Elizabeth Taylor, James
Dean, Rock Hudson, e muitos
outros. Então, ao invés de ir
às brincadeiras dançantes do
Clube dos Bancários, você
poderá ir ao cinema e se
divertir do mesmo jeito.
Que grande notícia, Carlito!
Deixe-me contar algo, antes
que me esqueça. Não sei se
você sabe, mas ouvi dizer
que um pianista austríaco,
muito famoso, perdeu os
movimentos da mão esquerda
e não parou de tocar. Passou
a treinar exaustivamente o
piano só com a mão direita.
Treinou tanto que fazia com
uma única mão, os
movimentos da direita e da
esquerda. Seu caso é bem
menos grave, mas você tem
condições de fazer o mesmo.
Não sabia. Que fantástico!
Muito obrigado por me
contar essa história –
respondi animado. – Vou
tentar fazer o mesmo, usando
só a mão direita.
Mais uma coisa, Sergio. Não
se incomode quanto às voltas
de bicicleta. Você poderá
passear a pé por esses
quarenta dias. Por que não?
Eu posso ir com você. Estou
até pensando em organizar
uma turma para isso. Nos
horários dos passeios de
bike, poderemos caminhar
pela cidade. Será uma nova
experiência.
Poxa, Carlito!... Nem sei como
lhe agradecer! – as palavras
de Carlito me faziam muito
bem.
Agora, antes de eu ir embora,
só mais uma última coisinha
– Carlito frisou. – Aquela
uma hora e meia que a gente
passa brincando e jogando
futebol, todo final de tarde,
pode ser usada agora de
forma bem produtiva. É uma
ótima oportunidade para
terminar todos aqueles livros
que você dizia não ter tempo
de ler: Paulo Setúbal,
Humberto de Campos e
outros, recomendados pela
Dona Rita.
Não é que é mesmo, Carlito?
Eu não havia pensado nisso.
Carlito se despediu
calorosamente e saiu. A sessão
de visitas estava encerrada.

Ressignificando
Na visita que Junior e Carlito me
fizeram, por ocasião daquela
fratura, ficou clara a diferença
de opinião entre um e outro
diante do que me acontecera.
Junior achava que este fato
refletiria negativamente sobre o
time em que eu jogava no
campeonato interno de futebol do
Colégio dos Padres, já que eu
era o melhor da equipe. Carlito,
ao contrário, via tal situação sob
um aspecto positivo, ou seja,
seria uma ótima oportunidade
para testar o time sem minha
presença. Quanto à questão de
não poder dançar com o braço
quebrado, Junior não poderia ter
sido mais negativo, exaltando
minha frustração por não poder
fazê-lo. Felizmente, Carlito,
para compensar, conseguia ver
nisso um lado positivo, e
sabiamente sugeriu-me trocar as
agradáveis brincadeiras
dançantes no Clube dos
Bancários pelas não menos
agradáveis sessões de cinema. E
assim por diante.
O que aconteceu nesses
dois tipos de diálogos pode ser
entendido como uma mudança de
significado, mudança esta que
denominamos “ressignificação”.
Um acontecimento normalmente
classificado como ruim – no
caso, a fratura de meu braço –
foi interpretado por Junior sob
seus aspectos negativos, e
ressignificado por Carlito, que
buscou seus aspectos positivos.
A princípio, vamos adotar aqui a
seguinte definição para
“ressignificação”: ato ou efeito
de atribuir um aspecto positivo
a qualquer acontecimento.
A ressignificação consiste
em mudar a maneira pela qual
você percebe um evento, e, por
consequência, mudar o seu
significado. Atribuímos os
significados de acordo com
nossas crenças, valores,
preocupações, gostos e
desgostos. Podem ser
considerados sinônimos de
“ressignificar” os verbos
“reenquadrar” e “reestruturar”.
Quando o significado
muda, respostas e
comportamentos também mudam.
Muitas vezes, surgem-nos
oportunidades que fariam nossa
vida se transformar exatamente
naquilo que gostaríamos que ela
fosse. Nada no mundo abriga
qualquer significado inerente.
Depende de nossa percepção da
vida a forma como nos sentimos
e nos posicionamos diante dos
fatos.
Um evento só adquire
significado dentro da estrutura ou
contexto no qual o percebemos.
Certamente, deve haver um
número infinito de maneiras de
se interpretar as experiências
vividas. Tendemos a estruturar
os fatos baseados em como os
percebemos no passado. Muitas
vezes, trocando esses padrões
habituais de percepção, ou seja,
por meio da ressignificação,
podemos criar mais escolhas
para nossas vidas.
O fato é que não vemos o
mundo como ele realmente o é,
porque qualquer situação pode
ser interpretada sempre a partir
de muitos pontos de vista.
Ressignificar, em sua forma mais
simples, é mudar um ponto de
vista negativo para um ponto de
vista positivo, substituindo a
estrutura conceitual utilizada na
compreensão da experiência.
2

Papa
Quando no recreio brincávamos
de bambolear, o bambolê de
Carlito escapou.
Concomitantemente, tocou o sino
do colégio para anunciar que um
novo Papa acabara de ser
escolhido. Era João XXIII, que
substituiria o Papa Pio XII,
recentecente falecido. Por se
tratar de um colégio religioso, a
escolha do novo Papa gerava
uma enorme expectativa entre
alunos, expectativa esta, diga-se
de passagem, muito influenciada
pelos padres. Explicaram-nos os
padres do colégio que o nome do
novo Papa seria anunciado após
a reunião dos bispos, que
ficavam incomunicáveis com o
resto da humanidade, até o final
do escrutínio. A única
comunicação por parte deles se
dava através de uma espécie de
código, que informava ao
Vaticano se um novo papa havia
ou não sido escolhido. Foi aí que
ficamos sabendo que
o papa é eleito por um colégio
de cardeais que se reúne no
Vaticano a portas fechadas, e que
a assembléia para a escolha de
um novo pontífice se chamava
“conclave”. Entendemos que,
após a morte de um papa, todos
os cardeais do mundo com
menos de 80 anos deveriam
viajar para Roma e que, quando
o novo pontífice é eleito, ele
recebe um nome especial para
honrar uma tradição iniciada
ainda com o primeiro líder da
Igreja Católica. Segundo a
historiografia cristã, Jesus
mudou o nome do pescador
Simão, um de seus apóstolos,
quando o escolheu para ser seu
representante na Terra, dizendo o
seguinte: "Tu és Pedro, e sobre
esta pedra edificarei minha
igreja". Simão se tornou São
Pedro e, desde então, cada papa
eleito indica o nome que lhe
agrada. O ritual tem a seguinte
sequência:
1. Quando o papa morre, o
camerlengo - cardeal que
assume a Igreja interinamente
- cumpre um ritual. Ele toca
três vezes a testa do Papa com
um martelinho e o chama pelo
nome de batismo. Sem
resposta, ele anuncia
oficialmente o falecimento.
2. O conclave começa 18 dias
após a morte do Papa, tempo
necessário para que os
cardeais de todo o mundo
cheguem a Roma. Eles se
reúnem num edifício ao lado
da Basílica de São Pedro e
recebem um livro contendo
parte da vida e da obra de
cada um dos cardeais
presentes ao conclave - todos
candidatos a ser o novo Papa.
3. A eleição se dá na Capela
Sistina, famosa pelas pinturas
do genial Michelangelo
(1475-1564). Cada cardeal
indica o colega que quer como
Papa e coloca seu voto
(secreto) num cálice. É difícil
que um único nome receba, de
imediato, o número de
indicações necessárias para a
aclamação: dois terços mais
um voto. Por isso, ocorrem
várias sessões de votação,
duas por dia, até surgirem
candidatos fortes que
consigam atrair cada vez mais
apoio.
4. Ao fim de cada rodada, os
votos são contados, e, se
nenhum dos cardeais atinge os
dois terços, os votos são
queimados com um produto
químico, que gera uma fumaça
negra que sai da capela.
Quando a votação indica, por
fim, o nome do novo papa,
esses votos são queimados
com um outro produto, que
torna a fumaça branca.

Assim, naquele momento,


os sinos da escola informavam
que, depois de vários
escrutínios, finalmente a fumaça
branca havia sido expelida, o
que significava a escolha de um
novo Papa.

Bambolê
Voltando ao assunto do bambolê,
quando o bambolê de Carlito
escapou, ele rolou e foi acertar
um aluno do curso Científico. Na
época, os bambolês coloridos
haviam acabado de surgir nos
Estados Unidos e logo se
tornaram moda, principalmente
entre os adolescentes. Em Jaú,
não havia um só jovem que não
tivesse o seu. Pois bem, o
bambolê de Carlito acertou um
aluno que frequentava uma turma
do que hoje chamamos de Ensino
Médio – antigo Científico. Os
alunos desse curso eram mais
velhos, já estavam na fase
posterior ao curso ginasial. Não
aconteceu absolutamente nada
com o aluno atingido pelo
bambolê, uma vez que esse
brinquedo não pesava quase
nada. Ocorre que sempre existiu
uma rixa entre os alunos mais
velhos e os mais novos, onde os
primeiros não perdiam a
oportunidade de demonstrar sua
autoridade sobre os segundos. E
o fato de um aluno mais velho ter
sido atingido pelo bambolê foi
motivo suficiente para deflagar-
se o conflito. Para complicar,
tratava-se e um aluno grande e
musculoso. Mas, antes de
continuar essa história, acho
importante explicar a localização
da escola e suas redondezas,
para melhor ambientar o leitor
nos cenários em que se
desenvolvem esses episódios.

Meu bairro

Eu morava na Rua Tenente


Navarro, que sempre chamava de
“minha rua”. Minha casa ficava
no meio do quarteirão. Saindo de
casa e andando cerca de
cinquenta metros pela direita,
chega-se à esquina da minha rua
com a “Rua do Colégio”. “Rua
do Colégio” porque, na verdade,
nunca soube o seu nome oficial.
Então, para mim, era
simplesmente a “rua do
Colégio”. Não sei se havia
alguma placa com o nome dessa
rua, pelo menos nunca notei.
Nessa esquina, iniciava-se o
prédio do Colégio São Norberto,
mais conhecido como Colégio
dos Padres. O colégio era tão
longe de casa que às vezes eu
levava 30 segundos para chegar
lá. Andando devagar, é claro.
Exageros e piadas à parte, a
construção estendia-se por cerca
de duzentos metros, abrangendo
tanto a minha rua como a rua do
Colégio. Os irmãos Carlito e
Junior moravam na minha rua,
em frente ao Colégio. Seguindo a
minha rua, após passar o
Colégio dos Padres, iniciava-se
um outro educandário, o Colégio
São José, mais conhecido como
Colégio das Freiras. Entre os
prédios, havia um muro alto, de
cerca de três metros de altura,
dividindo-os. O Colégio das
Freiras estendia-se por cerca de
outros duzentos metros, tanto de
um lado como de outro, e ali
terminava a cidade, dando
origem à zona rural, onde havia a
chácara Lopes Rodrigues, a do
Auler, a fazenda do João Ferraz
e outras propriedades.
Voltemos agora ao ponto
de minha casa, para entender
melhor aquela região. Seguindo
pela esquerda e caminhando
cerca de cinquenta metros,
chega-se à esquina onde começa
o Larguinho, que representa o
centro do bairro onde nasci e me
criei. O Larguinho, que só anos
depois eu viria a saber que se
chamava Praça dos Estudantes,
ficava a aproximadamente um
quilômetro do centro da cidade
de Jaú. A cidade de Jaú, como
muitos sabem, situa-se no centro
do Estado de São Paulo.

O Mestre da Paciência

Uma vez entendidas essas


referências geográficas,
retornemos ao caso do bambolê
que atingira o aluno mais velho e
grandalhão. Aos gritos, aquele
brutamontes se aproximou de
Carlito, falando um monte de
impropérios, xingou até não
poder mais. Eu estava
apavorado, porque ele xingava o
Carlito olhando para mim.
Cheguei a pensar que era
comigo. Mas depois percebi que
o brutamontes era vesgo. Ele
xingava um e olhava para outro.
Ou melhor, um dos olhos se
dirigia a Carlito e o outro a
mim. Era tão vesgo que
conseguiria, com os dois olhos
ao mesmo tempo, olhar por um
buraco de fechadura.
Carlito não abriu a boca.
Quando o grandalhão se afastou,
Carlito começou a conversar
conosco naturalmente e de bom
humor, como se nada tivesse
acontecido. Ficamos
impressionado com aquilo e
perguntamos a Carlito como ele
podia aguentar tanto desaforo de
um brutamontes, sem se deixar
intimidar e sem se aborrecer.
Como era possível estar tão
alegre, depois daquele episódio?
Carlito respondeu:
Basta você ficar quieto
enquanto ele despeja uma
porção de desaforos. Este é
o segredo. Nessas horas,
devemos nos lembrar sempre
da lenda do Mestre da
Paciência.
Pedimos então para ele
nos contar a lenda, e Carlito
começou a falar:
Conta a lenda, há muitos
anos atrás, havia um velho
sábio, conhecido como
Mestre da Paciência, que era
capaz de derrotar qualquer
adversário. Certa tarde, um
homem, famoso nas
redondezas por sua total
falta de escrúpulos, surgiu à
frente do Mestre, com a
intenção de desafiá-lo. E
o mau elemento não poupou
insultos. Chegou mesmo a
agredi-lo, atirando-lhe
pedras e cuspindo em seu
rosto. Desferia-lhe todos os
tipos de ofensa. Durante
horas, permaneceu ali,
fazendo tudo para provocá-
lo. Mas o sábio permanecia
impassível. No final da tarde,
sentindo-se já exausto e
humilhado, o sujeito se deu
por vencido e foi embora.
Impressionados com aquela
cena, os discípulos quiseram
saber do Mestre por que ele
havia se submetido a tanta
indignidade e agressão sem
reagir. E o Mestre
respondeu-lhes com a
seguinte pergunta:
Se alguém chega até você com
um presente e você não o
aceita, a quem pertence o
presente?
A quem tentou entregá-lo -
respondeu um dos discípulos.
Pois eu lhes digo – continuou o
Mestre – que o mesmo vale
para a inveja, a raiva e os
insultos. Quando não aceitos,
continuam pertencendo a
quem os carrega! A sua paz
interior depende
exclusivamente de você.
Ninguém pode lhe tirar a
calma. Só se você o
permitir...

Essa era a ressignificação


que Carlito utilizava para manter
o pensamento positivo e não se
estressar. Há dois modos
principais para reestruturar,
reenquadrar ou ressignificar, ou
meios de alterarmos nossa
percepção sobre algo. São eles:
a ressignificação de contexto e a
ressignificação de conteúdo.
Ambos alteram a maneira de se
enxergar uma situação,
resolvendo conflitos interiores, e
assim deixando a pessoa num
estado mais rico de recursos.
Ambos os tipos de
ressignificação oferecem uma
flexibilidade do pensamento, que
nos permite olhar para certos
eventos sob um prisma diferente.
Isso nos dá uma grande
liberdade, caso seja feito no
sentido positivo. Portanto,
devemos sempre nos certificar
de que a ressignificação é
positiva. A essência de uma boa
ressignificação é seu poder de
atuar com eficácia no equilíbrio
do indivíduo, de modo a fazê-lo
notar uma mudança fisiológica
para melhor, à medida que ela o
leva a avaliar a experiência de
uma nova maneira.
Carlito lembrava-se
sempre da lenda do Mestre da
Paciência para ressignificar. Mas
havia uma pergunta que ficou no
ar: quem dava tantas dicas para
Carlito?
3

Cuba

Quando nos preparávamos para


uma aula de História com o
Professor Adélio - italiano que
tinha uma excelente didática -,
um dos alunos da turma, meu
amigo João Prado, comentou que
ouvira no rádio uma notícia
alarmante. Segundo o informado,
naquele momento, havia
eclodido uma revolução armada
na ilha de Cuba, localizada bem
próxima aos Estados Unidos. O
ditador local, Fulgêncio Batista,
estava sendo derrotado. Um
outro colega, Rui Pacheco,
também meu amigo, comentou
que também tinha ouvido a
notícia, acrescentando que as
forças rebeladas eram dirigidas
por um jovem cubano, radicado
nos Estados Unidos, chamado
Fidel Castro. Fez questão de
dizer que ouvira a notícia no seu
radinho de pilha Spika, recém-
lançado no Japão, mas já
disponível em algumas lojas de
produtos importados em Santos.
Disse-nos Rui, ainda, que o
governo norte-americano tinha
interesse na vitória de Fidel
Castro, e por isso estava dando
todo o apoio a ele. A conversa
foi encerrada quando tocou o
sino para o início da aula. Quem
tocava o sino era Titica, um
aluno do curso Científico,
portanto, alguns anos mais velho
do que nós, embora não
aparentasse por causa de sua
pouca altura. Diziam que, quando
os padres o escalaram para tocar
o sino, tiveram que aumentar o
cabo do badalo quase até o chão.
E que, se algum dia aquele
colégio precisasse ser pintado
pelos alunos, Titica seria o
encarregado do rodapé, e nada
mais do que isso, porque o resto
ele não alcançaria.
E o Professor Adélio
então iniciou sua aula. O tema
daquele dia versaria sobre a
Alemanha e Adolf Hitler. Mas
antes de falar sobre essa aula,
em particular, gostaria de voltar
aos gêmeos.

Os gêmeos
Carlito e Junior eram gêmeos
bi-vitelinos, ou seja, foram
formados por dois óvulos e dois
espermatozóides. Neste caso, é
como se fossem dois irmãos não
gêmeos, com a diferença de
terem nascido de uma mesma
gestação.
Os dois eram como água e
azeite, nada tinham de igual. E
não se tratava apenas de
diferenças físicas, mas
principalmente de diferenças no
modo de pensar, como já pôde
ser observado na ocasião em que
me visitaram, quando fraturei o
braço. Carlito, sempre com
pensamentos positivos; Junior,
com negativos. Carlito, admirado
por todos; Junior, desprezado.
Carlito, bom em tudo; Junior, só
fracasso. Junior só não tentava
ser menos negativista porque
sabia que nem isso ia conseguir.
As únicas pessoas que não
gostavam de Carlito eram o pai,
que o odiava, e seu irmão Junior,
que nutria por ele a maior inveja
do mundo. Todos os demais
tinham por Carlito uma verdadeira
adoração. O pai não gostava de
Carlito porque não desejava ter
filhos gêmeos, queria apenas um
único filho. Tanto, que já havia até
escolhido o nome da criança: se
fosse homem, teria o mesmo nome
dele, daí o Junior. Na véspera do
parto, no entanto, ficou-se
sabendo que nasceriam duas
crianças. A novidade, ao invés de
ser uma alegria, deixou o pai P da
vida. Isso porque ele era um dos
sujeitos mais avarentos da face da
Terra. Era uma característica
doentia. O homem não abria a
mão nem para jogar peteca. No
seu entendimento, achava que não
teria condições financeiras para
sustentar dois filhos. O planejado
era apenas um. Mas a natureza
ignora planejamentos desta
ordem, e deu a ele dois meninos.
Junior foi o primeiro a nascer, por
isso ganhou este nome. Carlito,
que nasceu dez minutos depois,
tornou-se o filho indesejado pelo
pai. Para agravar ainda mais a
situação e aumentar sua revolta, a
mãe faleceu durante o parto.
Todos sabiam que essa morte
havia sido consequência de um
erro do anestesista. Menos o pai,
que insistia em achar que, se o
parto tivesse sido de apenas um
filho, nada de mal teria
acontecido.
Um gêmeo era o antípoda
do outro, como já disse. Enquanto
Carlito brilhava, Junior
fracassava. E o que mais
chamava a atenção mesmo era a
diferença entre os dois ao
encararem os acontecimentos da
vida. Um só via os aspectos
positivos de uma questão, outro só
os negativos. Essas lembranças
tomavam conta de minha mente
enquanto eu manuseava e
analisava aqueles jornais velhos.
Carlito e Junior moravam
na minha rua, em frente ao
Colégio dos Padres. Éramos
amigos desde os primeiros
passos. Tínhamos praticamente a
mesma idade. Cursamos juntos o
Jardim da Infância. Depois, fomos
colegas de classe durante os
quatro anos do Grupo Escolar.
Fizemos o exame de admissão
juntos, para ingressar no Colégio
dos Padres. E fomos juntos até o
quarto e último ano do curso
ginasial. Sempre na mesma sala
de aula.
Além disso, pelo fato de
sermos quase vizinhos,
frequentávamos os mesmos locais
onde as crianças do bairro
brincavam, como o Larguinho, o
Campinho e tantos outros. Nossos
laços estreitaram-se ainda mais
por termos sido semi-internos no
Colégio dos Padres. Era
impossível não ser próximo deles,
pois nossa jornada na escola ia
das oito às dezoito horas.
Agora, voltemos à aula com
o Professor Adélio.

Aula de História
O Professor Adélio iniciou a
aula da seguinte maneira:
Vamos falar hoje de Adolf
Hitler. Hitler nasceu em 20
de abril de 1889 e morreu em
30 de abril de 1945.
Sua biografia diz que era um
jovem muito sagaz e
inteligente, mas que
cultivava também um
péssimo humor. Preferindo o
lazer aos estudos, na
adolescência e juventude, foi
reprovado por duas vezes no
exame de admissão à escola
secundária de Linz. Também
foi reprovado ao prestar
vestibular para a Academia
das Artes de Viena, e por
duas vezes seguidas.

Foi em Viena que começou a


manifestar suas tendências
antisemitas, o que no futuro
determinaria suas ações.
Mudou-se para Munique, em
1913, para fugir do serviço
militar no exército Austro-
Húngaro, que acabou por
capturá-lo, em seguida, e o
submeteu a um exame físico.
Porém, como foi considerado
inapto, voltou à Munique.
Em seus escritos, Hitler
documentou sua aversão ao
Comunismo e ao Judaísmo,
que eram considerados por
ele como os dois males
gêmeos do mundo. E seu
maior objetivo seria eliminá-
los da face da Terra. A classe
média alemã, que fora afetada
pela inflação na década de
1920 e pelo desemprego
oriundo da grande depressão,
ajudou a colocá-lo no poder.
Hitler também ganhou apoio
dos agricultores e dos
veteranos de guerra, em
especial, os nazistas.
Nos três primeiros anos de
poder, Hitler triunfou com
uma sucessão de operações
militares. A Polônia foi
rapidamente derrotada e
dividida com os soviéticos.
Nada detinha a Alemanha
nazista,que tinha a Itália
como aliada. Em abril de
1940, a Dinamarca e a
Noruega foram invadidas e
dominadas, e, em maio deste
mesmo ano, as forças
militares de Hitler ocuparam
rapidamente a Holanda,
Bélgica, Luxemburgo e
França. Em abril de 1941,
foi a vez da Iugoslávia e da
Grécia. A forças ítalo-
alemãs avançaram também
pelo norte da África, em
direção ao Egito.
A resistência ao nazismo, por
outro lado, começou a
ganhar força. E, a partir de
1943, o declínio da
Alemanha começou a se
desenhar, até que, em julho
de 1944, o atentado contra
Hitler fez valer a força da
oposição. Com a saúde
debilitada, sofrendo de
problemas cardíacos, insônia
e hipocondria, Hitler
envelhecia precocemente e
perdia poder. Após uma
última derrota, em dezembro
de 1944, o grande ditador
refugiou-se em um
esconderijo na cidade de
Berlim, onde viria a falecer.
Há duas versões para o seu
fim. A primeira é que teria
cometido suicídio, e a
segunda que teria sido
assassinado pelos russos,
em 30 de abril de 1945.
Após sua preleção, o
professor pediu para cada aluno
fazer um resumo, por escrito, da
aula. Esse resumo deveria ser
composto por uma descrição do
que, na opinião do aluno,
significava o ponto mais
importante daquela aula.
Cada um deu o seu
depoimento. Mas o que vamos
transcrever aqui são os
depoimentos de Carlito e de
Junior:
Junior
Hitler deflagou a segunda
guerra mundial, onde
morreram mais de quarenta
milhões de pessoas. Houve
muito sofrimento, muita fome,
muita traição, e o mundo
ficou mais pobre. A Alemanha
ficou totalmente destruída,
assim como quase toda a
Europa. E o mundo sofreu e
vai continuar sempre
sofrendo os males daquele
acontecimento, que não
sairão nunca de nossas
mentes.
Carlito
Hitler foi o exemplo de pessoa
que o mundo repudiou e
continua repudiando. Ele era
tão mau que seria capaz de
matar o pai e a mãe só para
ser aceito no baile dos orfãos.
Mas sua existência trouxe
também consequências
positivas. Por exemplo, graças
a ele, a Alemanha nunca mais
vai eleger um ditador ou votar
em qualquer partido cujos
ideais se assemelhem ao
nazismo daquela época. E,
graças a ele, o resto do
mundo, particularmente os
países mais adiantados, só
será governado por pessoas
comprometidas com a
democracia. Há males que
vem para o bem.

Reestruturação

Tanto Junior quanto Carlito


reestruturaram os ensinamentos
do Professor Adélio. E essa
reestruturação nada mais é que
uma ressignificação. Como já
dito anteriormente, há dois
modos principais utilizados para
reestruturar uma situação, ou
para alterar nossa percepção
sobre alguma coisa. São eles:
reestruturação de contexto e
reestruturação de conteúdo.
Ambos alteram a maneira de se
ver um fato, resolvendo conflitos
interiores, e deixando, assim, o
indivíduo num estado mais pleno
de recursos. Ambos os tipos de
ressignificação oferecem uma
flexibilidade de pensamento que
permite enxergar vários eventos
sob um prisma diferente. E isso
proporciona uma grande
liberdade, caso essa visão
assuma o sentido positivo. É
importante, portanto, que a
ressignificação se dê sempre de
maneira positiva, de modo a
desencadear naquele que dela faz
uso um maior equilíbrio e uma
mudança fisiológica para melhor,
à medida que as experiências são
avaliadas de uma nova maneira.
Carlito e Junior fizeram
uso do que podemos chamar de
“ressignificação de contexto”,
ao descreverem as atrocidades
de Hitler. Mas, no caso de
Junior, ele aplica uma
ressignificação inversa, que é o
“padrão do pessimista”. É tão
fácil tomar um evento e atribuir-
lhe um significado de mais
recursos. Por exemplo,
interpretar os resultados da
atuação de Hitler apenas na parte
negativa, sem levar em
consideração sua
ressignificação, pouco
acrescenta. Não se trata aqui de
saber se Hitler foi positivo ou
negativo. Aliás, todos sabem que
ele foi negativo. Trata-se de
interpretar as consequências dos
atos de Hitler dentro de um
contexto mais amplo, tentando
levantar os aspectos positivos
disso. Ou seja, Hitler foi tão
ruim que o mundo ocidental
dificilmente admitirá, depois
dele, ter um governante de seu
estilo.
A ressignificação inversa,
como no caso da interpretação de
Junior, é mais típica quando algum
acontecimento é interpretado
apenas sob um enfoque negativo.
Assim como na interpretação de
Hitler por Junior, é quando, por
exemplo, alguém ganha de
presente a roupa mais cara de uma
loja e põe-se a reclamar que sua
lavagem vai ficar muito cara
depois. Ou então: Fulano vai
passar as férias mais
espetaculares em Porto de
Galinhas, mas, por antecipação,
começa a se queixar da
dificuldade que terá para se
readaptar ao trabalho na volta.
Falamos acima da
“ressignificação de contexto”.
Abordemos agora a
“ressignificação de conteúdo”,
cuja diferença reside apenas na
ênfase quanto ao futuro. Por
exemplo, achar que tudo no
futuro será sombrio, a partir de
um acontecimento negativo, só
agrava a situação. Carlito,
sabiamente, ressignifica o
acontecido da seguinte forma:
reconhece nas atrocidades de
Hitler um acontecimento
negativo, mas acredita que,
apesar disso, o futuro será
melhor, visto que dificilmente tal
experiência se repetirá. E ainda
finalizou sua opinião com a frase
“Há males que vem para o bem”.
Essas duas formas de
ressignificação, de contexto e de
conteúdo, voltarão a ser
abordadas mais adiante.
4

Maria Esther

Aguardávamos o início da aula


com o Professor Terézio. Os
comentários na sala giravam em
torno do campeonato mundial de
tênis, onde uma jovem
paulistana, de apenas dezenove
anos de idade, Maria Esther
Bueno, sagrou-se campeã na
categoria feminina,
representando o Brasil . Ela
vencera o torneio de Wimbledon,
na Inglaterra, o mais importante
do mundo nessa modalidade
esportiva, e passou a ser
considerada a primeira tenista do
mundo. Ainda falando de
esportes, o colega Longhi
comentava com Dória sobre um
jogador de futebol, ainda menor
de idade, que era fenomenal. Um
tal de Pelé, integrante da Seleção
Brasileira, que havia acabado de
conquistar a Copa do Mundo na
Suécia. Dória concordou com
ele, acrescentando que o ainda
desconhecido Pelé ia dar muito
trabalho para a defesa de todos
os times que viessem a enfrentá-
lo. No melhor da conversa,
Titica toca o sino anunciando o
início da aula. Mas, antes de
falar sobre a aula do Professor
Terézio, gostaria de comentar um
pouco sobre alguns professores e
padres do colégio.

Professores

Dentre os mestres que mais me


influenciaram naquele colégio,
talvez a professora de Português
tenha sido a mais importante.
Dona Rita, além de ser minha
professora, era também minha
vizinha. Vizinha de quintal, eis
que os fundos de meu quintal era
separado apenas por uma cerca
do dela. Além disso, era muito
amiga de minha mãe. Velhas
amigas. E, para completar, Dona
Rita ainda tinha um primo-irmão
que era craque de futebol e
jogava no meu time preferido, o
Palmeiras. Uma vez por ano, o
Palmeiras ia a Jaú para jogar
contra o time da cidade, o XV de
Jaú, durante o Campeonato
Paulista. Nessa ocasião, o primo
de Dona Rita, Valdemar Fiume,
ia visitá-la. E eu ficava
esperando pela chegada desse
meu ídolo, para pedir-lhe
autógrafos e dizer-lhe o quanto o
admirava. Eu admirava o craque
e também sua prima, minha
professora Rita de Cassia Fiume.
Durante os quatro anos de curso
ginasial, frequentei suas aulas,
que eram, no mínimo, três por
semana. Aos quatorze anos de
idade, eu havia lido praticamente
todos os livros de Paulo Setúbal
e Haroldo de Campos, dentre
outros, por influência dela.
O reitor da escola era o
Cônego Cristóvão, um belga
muito intelectualizado, cujo
apelido era Sepultura. Aliás,
cada padre tinha um apelido.
Não sei de onde se originavam
esses apelidos, que circulavam
apenas entre os alunos. Ninguém
se atreveria, ao conversar com
os padres, de chamá-los por seus
respectivos apelidos. Ao
contrário, chamávamos a todos
pelo nome, e sempre precedido
por “Cônego”. Assim, o Cônego
Crisóstomo era o Canelinha,
temido por todos devido aos
castigos severos que aplicava. O
Cônego Constantino era o
Tilicão, professor de Latim, que
todos nós detestávamos. Já o
Cônego Vitorino era o Mamute,
em virtude dos seus 140 quilos.
Tinha também o Cônego Lino,
apelidado de Cebolão, porque
sua cabeça tinha a forma de uma
perfeita cebola. Tinha também o
Cônego Inácio, criador de
seriemas e o Cônego Elco. Mas
o padre que mais sofria com
nossas zombarias era o Cônego
Silvestre, vulgo Pombinha. Tão
magro que, de frente, parecia
estar de lado, e de lado
praticamente desaparecia. Era
voz corrente que ele tomava
banho com os braços abertos
para não cair no ralo. Antes de
cada uma de suas aulas, um de
nós escrevia em algum canto do
quadro-negro: “Pombinha”. E a
primeira coisa que ele fazia, ao
ingressar na sala, era modificar
essa palavra por “Bombinha”,
que permanecia no quadro
durante toda a aula. No geral,
havia bons professores. O
professor de Geografia,
Larizatti, em particular, era
excelente; tanto, que essa matéria
tornou-se um de meus hobbies.
Outro excelente didata era o
Professor Terézio, de Ciências, o
mesmo mencionado no início
deste capítulo. Pois bem,
voltemos à aula do Professor
Terézio, que estava prestes a
iniciar.

Aula de Ciências
O professor Terézio iniciou
então a aula de Ciências.
Naquele dia, ele avisou que iria
sair um pouco dos pontos dos
livros. Disse que pretendia
conversar conosco sobre um
assunto que nada tinha nada a ver
com sua cadeira, mas que era
algo que o fascinava e valia a
pena ser abordado em sala, por
tratar-se de um tema de grande
destaque na imprensa, à época: a
crise econômica mundial. Após
pedir-nos desculpas por ter
decidido abordar um assunto
alheio à sua matéria, iniciou seu
discurso falando sobre a crise
financeira mundial. Falou do
desemprego, do fechamento de
empresas, da queda na produçao,
dos gastos públicos. E terminou
acenando com a possibilidade de
o Estado voltar a ser mais
atuante na Economia, resumindo
que as crises podem resultar em
crescimento no futuro.
Terminada a explanação, o
Professor Terézio pediu para que
os alunos resumissem o seu
entendimento sobre a crise
econômica mundial. Vamos
reproduzir aqui os depoimentos
de Junior e Carlito, que são
sempre a nossa referência:

Junior
A crise atual trouxe miséria
ao mundo todo. Ondas de
desemprego, pais de famílias
desocupados, ladrões por
toda parte, aumento da
criminalidade, crianças
passando fome. E a crise não
tem fim. As perspectivas
quanto ao futuro são
sombrias.
Carlito
A humanidade já passou por
isso e conseguiu superar. O
importante é acordar para a
nova realidade e melhorar
sempre. As crises fazem parte
da evolução do mundo, e é por
isso que a humanidade sempre
acha uma saída. O fundo do
poço já aconteceu. Estamos
começando a sair dele.
Depois de cada crise vem um
longo período de crescimento.
A crise renova a economia.
Sobrevivem os melhores. É
nela que acontecem as
melhores oportunidades. É
tempo de criatividade. As
grandes fortunas surgiram
nas grandes recessões.
Devemos agradecer a Deus
por essa crise ter acontecido.

Recontextualização
A ressignificação de contexto,
como o próprio termo sugere, é
uma recontextualização, ou
mudança de contexto. Por
exemplo, da mesma maneira que
Carlito procede em sua
ressignificação sobre a crise
econômica, a morte, em algumas
partes do mundo, pode ser vista
como o início de uma nova vida,
bem melhor e mais evoluída. Isto
quando se acredita que essa nova
vida representa o encontro
supremo da paz celestial e
espiritual. Em nossa cultura,
quando uma pessoa próxima a
nós parte deste mundo, a reação
mais comum é de tristeza e
desolação. Por quê? Por muitas
dolorosas razões, onde a maior
delas é o sentimento de perda.
No entanto, nem todo mundo
reage desta forma. Há pessoas
que aceitam a morte de um ente
querido com serenidade. São
aquelas capazes de reestruturar o
conceito de morte como “perda”,
para significar que o morto
estará sempre com eles, que nada
no universo jamais é destruído,
que a vida apenas muda de
forma. Aquelas que enxergam na
morte uma ascensão para um
nível mais alto da existência, e
veem nisso um motivo de
celebração. Na maior parte do
mundo ocidental, a morte
costuma significar uma grande
perda, uma grande tragédia. Mas
não é assim para todos. O
comportamento humano, diante
de certas circunstâncias, depende
muito do contexto em que ele
está inserido. Na questão da
“morte”, basta perguntar: “Em
que parte do mundo isso
aconteceu?” Mudando-se o
contexto, o seu significado pode
ser alterado. Para ressignificar
um contexto, portanto, imagine
um dado comportamento dentro
de uma outra esfera e tente
perceber que aquilo que, aos
olhos de uns, representava
desvantagem pode se tornar uma
vantagem aos olhos de outros.
Já na ressignificação de
conteúdo sabemos perfeitamente
em que contexto uma situação
ocorre. É o conteúdo que
precisará de um novo
significado. No caso da “morte”,
por exemplo, equivaleria a
modificar o seu conteúdo,
reestruturando o conceito que se
tem dela no mundo ocidental,
conforme descrito anteriormente.
Para ressignificar o
conteúdo, faça as seguintes
perguntas:
O que isso poderia
significar?
O que gostaria que isso
significasse?
Sob que enfoque isso
poderia ser visto como
positivo?
O padrão de
ressignificação de conteúdo
pode ser utilizado para mudar
sua percepção sobre qualquer
coisa que possa ser julgada
como negativa. Vamos a alguns
exemplos:

Exemplo 1
FRASE DE ORIGEM:
Infelizmente, tive de comprar
um carro menor!

FRASE RESSIGNIFICADA:

Legal! Com um carro menor


economizarei na gasolina!

Exemplo 2

FRASE DE ORIGEM:
Minha televisão quebrou
ontem à noite!
FRASE RESSIGNIFICADA:
Já que a televisão quebrou,
vou ter oportunidade e tempo
para ler todos aqueles livros
que gostaria de ler.

Recapitulando:
1. A reestruturação de
contexto consiste em
tomar uma experiência
que aparenta ser ruim,
perturbadora ou
indesejável e observar,
dentro de um outro
contexto, as possíveis
vantagens que essa mesma
situação poderia
proporcionar, e alterando,
com isso, o respectivo
comportamento. A
importância da
reestruturação de contexto
é inestimável no mundo
dos negócios. Um
exemplo: havia uma
empresa onde um dos
sócios era desagregador,
e, por consequência,
ineficiente, o que acabava
afetando os resultados.
Até que um dia
perceberam que esse
sócio poderia vir a ser de
grande ajuda, se passasse
a atuar como observador
crítico, ou seja, como
aquele elemento que nota,
com antecedência,
qualquer problema
potencial. Através dessa
ressignificação, o sócio
tornou-se eficiente,
contribuindo parar os
resultados.
2. A reestruturação de
conteúdo consiste em
pegar exatamente a mesma
situação e mudar o seu
significado. Exemplo:
uma mãe vive reclamando
que seu filho nunca para
de falar, nunca consegue
ficar de boca fechada. Se
reestruturar o conteúdo
deste fato, ela poderá
observar que o menino
deve ser realmente muito
inteligente, do contrário
não teria tanto para dizer.
5

Festa de
aniversário

Estávamos no pátio da escola,


comentando sobre a festa de
aniversário de minha prima
Lelinha, que acontecera na noite
anterior. Cuba-libre, Hi-Fi e
ponche à vontade. À vontade
para os adultos, pois a maioria
da turma, por ser ainda menor de
idade, só tomava guaraná
Caçulinha, seguindo as
recomendações dos pais de não
colocar uma gota sequer de
bebida alcoólica na boca, como
era comum naquela época. O
canapé principal eram os
espetinhos intercalados com
salsicha, azeitona e picles
naqueles palitinhos de limpar
dentes, cuidadosamente
espetados em um mamão verde
ou melancia.
Ali reunidos, divertíamos
com os comentários bizarros.
Ciola resolveu colocar Cestari
na berlinda, dizendo que ele
estava o máximo naqueles trajes
de festa: tênis Keds, calça de
rancheiro e japona. Para quem
não sabe, japona era um casaco
recém-lançado na Europa,
naquela época, e que custava
muito caro aqui, já que era
importado. Cestari explicou que
sua japona fora confeccionada na
alfaiataria Bagaiolo, que a
copiou do modelo europeu, e por
isso lhe custou muito barato.
Rimos mais ainda quando
Ademarzinho resolveu provocar
Junior, dizendo que a paquera
dele, também presente na festa,
era tão feia que, se houvesse um
concurso de beleza entre ela e o
Frankstein apenas, a garota
ficaria em segundo lugar. Na
verdade, Junior não gostava da
menina. E nem poderia, tudo
nela era ruim. Para que ficasse
razoável, teria de se submeter a
duas cirurgias plásticas: uma no
rosto e outra no resto.
Em meio às nossas
gargalhadas, passou o Cônego
Crisóstomo, vulgo Canelinha.
Pensando que ríamos dele,
dirigiu-se a nós muito irritado,
com palavras impublicáveis e
destinando um castigo a cada um
de nós. Ficamos inconsoláveis,
não era justo. Junior chorava
copiosamente, os outros franziam
a cara de raiva. Só Carlito
permanecera impassível e,
quando Canelinha se afastou,
continuou a agir como se nada
houvesse acontecido.
Perguntamos então a Carlito
como ele conseguia conservar o
bom humor, depois de ter ouvido
tantos impropérios por parte de
uma autoridade da escola,
quando todos nós estávamos
amuados.
Mas... Antes de descrever
as explicações de Carlito, devo
dizer ao amigo leitor como
funcionava o colégio.

Colégio dos Padres


O Colégio era dirigido por
padres da Ordem
Premonstratense. É uma ordem
eclesiástica de origem belga,
mais precisamente da cidade de
Antuérpia. E é tão fiel às
origens que a língua falada nas
conversas entre os padres era o
flamingo. Toda vez que um padre
assinava alguma coisa, colocava
após a assinatura: O. Praem.
Aquilo me deixava intrigado.
Posteriormente, minha mãe
esclareceu que o termo era
apenas uma abreviatura de
Ordem Premonstratense.
O Colégio dos Padres teve
início no princípio do século
XX. Antes funcionava ali um
pequeno núcleo, com apenas uma
única sala de aula, construída
por alguns jauenses, no fim do
século dezenove. A entrega do
colégio para os padres deu-se na
virada do século.
Com isso, o número de
alunos aumentava ano a ano. O
Colégio dos Padres passou a ser
uma das escolas mais procuradas
de todo o Estado de São Paulo.
E, para abrigar essa quantidade
de alunos, os padres construíram,
ao lado daquele pequeno núcleo
inicial, novas e mais amplas
dependências, necessárias ao
bom funcionamento da escola.
Fizeram uma nova ala, com uma
capela e outros aposentos, a qual
foi batizada de Ala Nova.
Depois, criaram mais outra ala,
que passou a ser chamada de Ala
Novíssima. O colégio crescia e
ia de vento em popa, não só
porque o nível de ensino era
excelente como também porque
havia poucas escolas de curso
ginasial ou colegial. Só as
grandes cidades dispunham de
um bom número de escolas que
ofereciam esse tipo de curso.
Assim, as famílias das cidades
menores costumavam internar
seus filhos em educandários de
outras cidades, como Jaú, onde
podiam encontrar escolas de
ordem religiosa, que acolhiam
alunos em regime de internato.
Esses alunos recebiam, além dos
ensinamentos básicos da grade
curricular, uma educação
bastante rígida. Mas isso
acontecia antes de eu estudar lá.
Na época em que lá
estudei, o Colégio dos Padres já
estava em plena decadência. Isto
porque havia um movimento
universal ressignificando que os
filhos deveriam ser educados
pela família, e não pelos padres.
Alegava-se que o calor familiar,
derivado do amor, deveria ser
parte indispensável na formação
de um indivíduo. E, com essa
nova concepção pedagógica de
que o adolescente deveria
permanecer junto à família até
atingir a idade adulta, muitas
famílias passaram a repensar se
mandavam ou não seus filhos
para um internato.
O Colégio tinha cerca de
oitenta internos, que só iam para
casa visitar suas famílias duas
vezes por ano: nas férias de
inverno e nas férias de verão.
Eram quatro meses de férias por
ano. Um mês de férias no inverno
e três meses de férias no verão.
Ainda quando lá estudava, os
padres tomaram a decisão de
permitir um maior número de
visitas aos internos cujas
famílias moravam em cidades
próximas, caso houvesse meio
de transporte fácil. Então, esses
alunos passaram a visitar suas
famílias praticamente uma vez
por mês. A decisão beneficiou
principalmente o pessoal das
cidades de Dois Corregos,
Torrinha, Brotas e outras cuja
viagem de trem para Jaú era feita
em menos de uma hora
Os alunos internos
iniciavam o dia às cinco horas
da manhã, com o som de um
apito. Tinham apenas cinco
minutos para ficar de pé, ao
longo das oitenta camas
enfileiradas. Os padres eram
excessivamente rigorosos na
disciplina.
Todos eram obrigados a ir
à missa das seis da manhã,
diariamente e em jejum, por
causa da comunhão. O café da
manhã era servido após a missa,
às sete horas. Em seguida, vinha
a sessão de estudos, em que
todos ficavam em silêncio num
salão enorme. Cada aluno em
uma carteira individual, tipo
escrivaninha, onde davam início
a uma sessão de leituras e
redações. Os livros, cadernos e
demais apetrechos escolares
eram guardados dentro de um
compartimento da carteira. Essa
sessão ia das oito até as onze e
meia da manhã, com um intervalo
de meia hora, das nove e meia às
dez horas. O almoço era servido
no período entre onze e meia e
meio-dia e meia. Em seguida, as
aulas eram iniciadas, indo de
meio-dia e meia às quatro e meia
da tarde. Encerradas as aulas,
havia uma hora e meia de
atividades esportivas e/ou
recreação, que terminavam às
dezoito horas. Das dezoito às
dezenove, era servido o jantar e,
das dezenove às vinte horas e
trinta minutos, havia mais uma
sessão de estudos, após o que os
internos recolhiam-se ao
dormitório.
Os alunos não internos
eram chamados de “externos”.
Estes ficavam na escola de meio-
dia e meia até as dezoito horas.
Mas havia ainda um outro tipo de
aluno, que não era nem interno e
nem externo: o semi-interno. Era
onde eu me encaixava, assim
também como Carlito, Junior,
Dória, Rui Pacheco e outros.
Éramos, ao todo, pouco mais de
vinte semi-internos. Junto com os
internos, ficávamos na escola
das oito às dezoito horas,
fazendo atividades em
comum.
Cara de palhaço
Depois desse passeio pelo
Colégio dos Padres, voltemos à
passagem anterior. Ou seja, à
parte em que perguntávamos a
Carlito como ele conseguia
continuar de bom humor, após os
injustos xingamentos e punições
de um padre estressado, ao
contrário dos outros colegas, que
não conseguiam esconder sua
indignação. Ele nos explicou o
seguinte:
Pois não. Vocês estão vendo
aquelas dez privadas, as
latrinas? – disse apontando
para o toalete dos alunos –
Aquilo é um horror! É pior do
que bater na mãe. São dez
buracos, fossas. Você tem de
se agachar para fazer suas
necessidades. Nem vaso
sanitário tem nessa escola.
Aliás, tem sim, mas só para os
padres e para os professores.
Os alunos têm de se contentar
com esse tipo de reservado,
que se usa nos países mais
atrasados do Oriente Médio,
onde nem rede de esgoto tem.
Pois bem, é isso mesmo. Para
início de conversa, quando
Canelinha me xinga, ele só o
faz na língua nativa dele, o
Flamingo. E, obviamente, eu
não entendo nada. É uma
tremenda covardia da parte
dele utilizar uma língua que
não conhecemos para nos
xingar. Afinal, a gente fica
sem saber se ele está falando
sobre nossa mãe ou se está
nos mandando para aquele
lugar. Pois então... Eu imagino
Canelinha sentado naquela
latrina, fazendo suas
necessidades, com um grande
nariz de palhaço, um óculos
engraçado de cores berrantes,
bigode enorme, me xingando
daqueles nomes que não faço
ideia do que sejam. E,
imaginando-o assim, eu nunca
ficarei amuado e nem
estressado quando ele me
xinga. Além disso, fico mais
resiliente.
Essa era uma das
técnicas que Carlito usava para
ressignificar. Ele mudava o
contexto da coisa. Em vez de se
ater à figura de Canelinha
xingando-o no pátio da escola,
imaginava-o xingando sentado
numa latrina, daquelas bem
antiquadas, como eram as do
colégio, e, ainda por cima,
usando nariz, óculos e bigode de
palhaço.
Como Carlito sabia de
tudo isso? Alguém o teria
ensinado? Era mesmo um
mistério.
6
Eder Jofre

Estávamos aguardando o início


da aula de Latim quando um dos
colegas de turma, Longhi,
comentou que, na noite anterior,
um pugilista brasileiro tornara-se
campeão do mundo. Era a
primeira vez que o Brasil
ganhava esse título mundial.
Nosso país não tinha nenhum
grande boxeador até então.
Tínhamos que acompanhar essa
modalidade de esporte seguindo
lutas de boxeadores de outros
países, principalmente dos norte-
americanos. Quando o assunto
era boxe, citava-se Joe Louis,
Peterson, Rock Marciano, entre
outros, todos estrangeiros. Nunca
os brasileiros, já que não
tínhamos nenhum grande
representante nesse esporte.
Alguma poucas vezes citava-se
Luizão, que, na ocasião, era o
melhor boxeador daqui, mas, em
relação ao resto do mundo, era
um atleta medíocre. E eis que,
para nosso orgulho, surge, de
uma hora para outra, um jovem
paulistano do Brás: Eder Jofre,
boxeador treinado pelo seu
próprio pai, que conquistara o
título mundial. Depois disso,
ainda seria campeão muitas
vezes, e em duas categorias
diferentes, a de peso pena e a de
peso galo . Mas... Antes de
contar sobre a aula de Latim,
quero explicar ao leitor como
era o layout da escola.

Layout
À esquerda da entrada principal
do prédio, ficava a capela. Cinco
degraus da escada levavam até
um alpendre, daí adentrava-se a
porta principal da igreja. Essa
porta principal era para quem
vinha da rua, quem já estava no
interior do colégio entrava pelo
corredor, que unia o pátio da
escola à capela.
Atravessando a porta
principal, chegava-se ao átrio,
que era o início da nave. Nesse
átrio havia dois confessionários,
um de cada lado do corredor, o
mesmo corredor que se unia ao
pátio da escola. A nave
prolongava-se até o prebistério,
onde situava-se o altar. Ao lado
do altar, ficava o coro, de onde
eu normalmente assistia à missa,
quando não exercia a função de
coroinha.
O termo arquitetônico
“nave” é originário do grego
“naos”, e refere-se ao espaço
fechado de um templo; no latim
medieval, seu equivalente é
“navis”. Em suma, a nave é a ala
central de uma igreja onde se
reunem os fiéis para assistirem
ao serviço religioso. O espaço
no prebistério, ao lado do altar,
chama-se “coro”. Ao lado do
coro inicia-se a sacristia, onde
são guardados os paramentos
sacerdotais e as alfaias
litúrgicas. É na sacristia que os
sacerdotes se paramentam para
realizarem as missas. E ainda
tem a abóbada, que fica acima do
altar. A da igreja do Colégio dos
Padres era esferóide, pois a base
fora construída paralelamente ao
maior diâmetro da elipse, o que
dava, portanto, a sensação de
uma cúpula baixa.
O mezzanino no átrio, que
em nossa capela era acessado
por meio de uma escada estreita,
serve para a eventualidade de
utilizar-se um órgão ou qualquer
outro instrumento musical
destinado à execução de músicas
sacras em alguma cerimônia.
Mas nessa capela não havia
órgão nenhum, e, pelo que me
lembre, nunca vi esse mezzanino
ser utilizado.
Após a porta principal do
Colégio, havia um grande
corredor. Seguindo-o pela
esquerda chegava-se à capela, e,
ao atravessá-lo, passava-se em
frente a diversas salas, como o
Museu de Fauna e Flora, a
Tesouraria, a Secretaria, e assim
por diante. A entrada da capela
ficava lá na frente. Seguindo pela
direita do grande corredor,
chegava-se ao refeitório, cozinha
e outras dependências. Tudo isso
no andar térreo. No andar de
cima, ficavam as dependências
que são o cenário do que
narraremos a seguir. Voltemos à
porta principal do Colégio. Não
tomando a direita nem a
esquerda do corredor, mas
seguindo em frente, chegava-se
ao pátio, cercado por todas as
salas de aula, que formavam um
L.
Por enquanto, acho que já
dá para se fazer uma ideia sobre
o layout da escola. Mas voltarei
a falar sobre ele posteriormente.
Retornemos agora à aula de
Latim.

Aula de Latim

A aula de Latim era um


verdadeiro martírio. Até mesmo
para Carlito, que costumava
ressignificar tudo. Tambem
pudera, o Tilicão era um
professor que fazia de tudo para
que os alunos o odiassem. Era
tão chato que, se gritasse numa
caverna, nem o eco responderia.
Além disso, o Latim era uma
língua “morta”. Ou seja, sua
utilidade futura era igual a zero.
A matéria daquela aula era
o supino do verbo “jactar”.
Tilicão iniciou explicando que
supino era uma forma verbo-
nominal; que no Latim existiam
dois tipos de supino, bla, bla,
bla...
Eu cochilei, não vi nada,
não ouvi nada, assim como
outros alunos. Quando a aula
terminou, estavam escritas no
quadro-negro as anotações do
Tilicão:
Supino I e II – acusativo e
dativo ou ablativo – quarta
declinação.
Supino I – usado com verbos
em movimento – termina em
UM
Supino II – usado com
adjetivos – termina em U
Gladiatores ad fuerunt
pugnatum. (Os gladiadores
vieram para lutar.)
Legati gratulatum et cubitum
que venerunt. (Os mensageiros
vieram para parabenizar e
dormir.)
Puer difficilis doctu (criança
difícil de ser educada).
Saímos da classe
comentando que o único que
havia prestado atenção e
acompanhado a aula foi Carlito.
Dória, com uma certa ironia,
perguntou-lhe:
Carlito, você é o único nessa
aula que não cochila, anota
tudo e não reclama. Você
gosta tanto assim da aula do
Tilicão?
Para dizer a verdade, eu
também detesto essa aula –
respondeu Carlito.
Então como consegue
aguentar?
Quando Tilicão fala – explicou
Carlito a Dória –, eu
imagino que ele é o meu
cantor predileto, cantando
minha música favorita. Então
o tempo vai passando,
passando, até a aula terminar.
Mais uma técnica de
ressignificação utilizada por
Carlito. Era uma outra forma de
ressignificar o conteúdo,
mudando a maneira de se ver,
ouvir ou representar uma
situação. Se você se aborrece
com o que alguém lhe diz, pode
se imaginar sorrindo ao
ressignificar essa pessoa
proferindo as mesmas palavras,
só que no tom de voz de seu
cantor favorito.
Carlito completou dizendo
que que nada era definitivamente
bom ou mau neste mundo, a
maneira como representávamos
para nós mesmos uma situação é
que determinava esta ou aquela
condição. Informou, ainda, que
este era um entre os dez
princípios que usava.
Mais um mistério. Carlito
tinha dez princípios? Quais
seriam então os outros nove?
Quem havia ensinado a ele esses
princípios?
7

Cacareco
A aula de Matemática, com o
Professor Samuel, estava prestes
a começar. Enquanto o professor
não chegava, o colega Zeca
Pedroso conversava com outro
colega, o Ademarzinho, sobre as
eleições na cidade de São Paulo,
capital do Estado, onde o
candidato mais votado atendia
pelo nome de Cacareco. Não,
não se tratava do nome ou
apelido de nenhum candidato. É
que a população em peso, já farta
da política e dos políticos,
resolveu votar no rinoceronte
recém-adquirido pelo Zoológico
de São Paulo: o Cacareco. À
época, a eleição era realizada
com cédulas de papel e os
eleitores escreviam o nome do
candidato de sua preferência. E
Cacareco foi um dos mais
famosos casos de votos nulos em
massa da história da política
brasileira, uma vez que se
tornara o "candidato" mais
votado do pleito. Para se ter uma
ideia de sua popularidade, a
soma dos votos dos candidatos
do partido mais votado foi
inferior ao total de votos dados a
Cacareco. O fato tornou-se
notório e serviu como referência
para várias análises de
percentuais no Brasil de voto
nulo e dos chamados votos de
protesto.
Foi uma maneira de a
população manifestar seu
descontentamento com os
políticos. Tanto Ademarzinho
como Zeca estavam
conjecturando se esse mesmo
tipo de protesto poderia ser
aplicado na cidade de Jaú.
Porque, tanto ali como lá, não
era de bom tom chamar o
político de ladrão. Afinal, os
ladrões poderiam ficar
ofendidos.
Mas... Antes de contar
sobre a aula de Matemática,
voltarei a falar um pouco mais
sobre o layout da escola, se o
leitor me permite.
Aposentos

Havia uma escada em frente à


porta principal que levava ao
andar de cima. Era daquelas
escadas antigas, enorme, com
cerca de três metros de largura.
Ao fim da primeira metade, fazia
um giro de cento e oitenta graus e
então começava a segunda
metade.
Ao término da escada,
havia um amplo corredor que se
subdividia em duas alas. Na ala
esquerda, ficava o dormitório
dos alunos internos e, na direita,
os aposentos dos padres. Oitenta
camas, distribuídas em diversas
fileiras, uma ao lado da outra,
preenchiam o dormitório dos
internos. Eu já havia estado lá
algumas vezes, em duas delas,
inclusive, para dormir. Pernoitei
lá por pura curiosidade. Lembro
que perturbei minha mãe até
convencê-la a deixar.
Quanto aos aposentos dos
padres, na ala direita, eram doze
quartos enormes, seis de cada
lado do corredor. As dimensões
de cada quarto eram maiores que
as de uma quitinete dos dias de
hoje. Os doze padres caberiam
perfeitamente em dois desses
quartos, seis padres em cada um.
Mas, como havia doze quartos,
destinados a doze padres, cada
um tinha o privilégio de desfrutar
da imensidão de um aposento
individual. Apesar de enormes,
esses quartos não possuíam um
banheiro interno. Isto porque o
Colégio foi construído no início
do século 20, quando não se
projetavam banheiros privativos
no interior dos aposentos. Esse
tipo de construção ainda perdura
nos dias de hoje, particularmente
em prédios de arquitetura
clássica. É comum, na Europa,
vermos antigos hotéis de luxo
com banheiros coletivos para os
hóspedes. Geralmente, um por
andar e ao fim do corredor.
Aqueles que reformaram suas
dependências, quebrando
paredes para adaptar um
banheiro aos quartos, precisaram
de uma criteriosa autorização do
governo, porque são tombados
como patrimônio da humanidade.
Após os aposentos dos
padres e antes da parede ao final
do corredor, nessa mesma ala,
havia mais dois cômodos, um em
frente ao outro, e depois o vão
da capela. Esses dois cômodos
eram o banheiro, de um lado, e a
Clausura, de outro. Essa
Clausura intrigava todo mundo.
O que era aquilo, afinal? Por que
era terminantemente proibido
entrar ali? Nenhum de nós podia
sequer pisar na Clausura, nem
para conhecer, ou mesmo dar
uma espiada. E esse mistério só
aumentava a curiosidade de
todos.

Clausura
Carlito, no entanto, conhecia bem
a Clausura. A primeira vez em
que esteve lá foi há algum tempo
atrás, quando ele se iniciava
como coroinha nas missas
celebradas pelo Cônego Pedro,
cujo aposento ficava a meia
parede da Clausura. Por duas
vezes seguidas, Carlito esteve no
quarto desse padre. Uma foi
quando o Cônego Pedro pediu-
lhe que o ajudasse a carregar
alguns apetrechos litúrgicos até
seu quarto. Carlito então
atravessou a capela, entrou no
corredor de acesso ao pátio,
subiu a escada defronte à porta
principal do prédio novo, seguiu
à direita no corredor, passou em
frente a diversas portas e entrou
no quarto de Cônego Pedro.
Observou todo o cômodo, a
cama, o guarda-roupa, a
escrivaninha e alguns outros
móveis, que ocupavam parte do
imenso espaço. O resto estava
vazio. Lá deixou os apetrechos e
voltou. Ao sair, notou que,
daquele quarto até o fim do
corredor, só havia mais dois
cômodos, um de cada lado. De
um lado, o enorme banheiro
coletivo dos padres, com
diversos boxes para latrinas e
outros tantos para o banho.
Banheiro feminino não havia
naquele setor. A bem da
verdade, só havia um único
banheiro feminino no Colégio
dos Padres, que ficava próximo à
sala dos professores, já que o
corpo docente da instituição era
também composto por mulheres.
Em frente ao banheiro dos
padres, estava o misterioso
cômodo, em cuja porta se lia:
CLAUSURA. E, embaixo, com
letras menores: “EXPRESSAMENTE
PROIBIDA A ENTRADA”. Nada
passava despercebido aos olhos
de Carlito. Uma vez, ele
perguntou ao Cônego Pedro o
que era aquele cômodo. O
Cônego respondeu que se tratava
de um local reservado
exclusivamente aos padres, e que
não poderia se estender mais
sobre esse assunto. Tão reticente
resposta só fez atiçar mais ainda
a curiosidade de Carlito.
Carlito esteve próximo da
Clausura novamente pouco
tempo depois. Foi na ocasião em
que ele estava na sacristia com
Cônego Pedro, que distribuía
santinhos às crianças, como era
seu costume. Em determinado
momento, acabaram-se os
santinhos, e havia ainda muitas
crianças na fila. O padre, então,
pediu a Carlito: “Filho, dê um
pulo até meu quarto. Lá tem um
maço de santinhos na primeira
gaveta da escrivaninha. Traga-o
rapidamente para mim.” Carlito
foi até lá e pegou os santinhos.
Porém, ao sair, a curiosidade
falou mais alto quando voltou os
olhos para a porta da Clausura.
Olhou pelo buraco da fechadura,
mas não conseguiu ver quase
nada. Ousado, entreabriu a porta
e viu um cômodo fracamente
iluminado. Tinha receio de ser
surpreendido; na certa, receberia
uma grave punição. Estar ali,
naquele corredor, era
perfeitamente explicável. Mas
abrir a porta da Clausura, com
um aviso enorme, bem diante de
seu nariz, indicando acesso
expressamente proibido? Nem os
santos o absolveriam. Preferiu
recuar, até porque o padre
esperava por ele com os
santinhos. Fechou a porta e
correu de volta para a sacristia.
Ainda não seria desta vez a
primeira visita de Carlito à
Clausura, propriamente dita. Isto
aconteceria mais tarde, e será
descrito adiante.
Aula de Matemática

Depois dessas considerações,


voltemos à aula de Matemática do
Professor Samuel. Nesse dia, o
assunto era o Teorema de Pitágoras.
Esse professor tinha um tique
nervoso. Toda vez que alguém se
dirigia a ele, ou mesmo que isso
não acontecesse, ele falava “Epa!”
Era um festival de “Epas!” Ele
iniciou a aula, explicando, em
detalhes, o Teorema de Pitágoras,
com demonstrações práticas, tendo
por protagonistas a hipotenusa e os
catetos. Foram trinta minutos de
uma complicadíssima explanação,
pelo menos para a maioria da
turma.
Terminada essa
explicação, ele pediu a cada
aluno fazer uma aplicação
prática do Teorema de Pitágoras
para um triângulo equilátero.
Epa! Carlito, faça uma
aplicação prática desse
teorema para um triângulo
equilátero.
Não é necessário dizer que
ninguém conseguiu fazê-lo, pois
as explicações não continham
dados suficientes para esse tipo
de pergunta. Então o professor
disse:
Epa! Vou dar nota baixa para
todos vocês. E a aula de hoje
está encerrada.
No intervalo, estavam
todos P da vida. Junior chorava
sem parar. Só Carlito estava
numa boa. Parecia até que tinha
tirado um dez. Penguntamos
então a ele por que ele estava tão
tranquilo enquanto os demais se
desesperavam. Eis a sua
resposta:
Porque agora tenho certeza que
não sei nada sobre o
Teorema de Pitágoras. E
esta será uma excelente
oportunidade para estudá-lo
com carinho e muita vontade.
Se eu tivesse tirado um dez,
mesmo sem saber nada, eu ia
pensar que já sabia o
suficiente e me descuidaria
disso.
Ou seja, Carlito
ressignificou aquele
acontecimento, considerando
apenas o seu aspecto positivo.
Mais um mistério, mais
uma pergunta no ar: Como
Carlito sabia ressignificar todos
esses acontecimentos? Quem
havia lhe ensinado?
8
Tom Jobim

Agora esperávamos pela aula de


Geografia, com o Professor
Larizatti. Foi quando Carlito
apareceu cantarolando uma
música que tinha acabado de ser
lançada: “Se todos fossem iguais
a você”. Seu compositor, um
ainda rapazola e desconhecido
músico, chamado Tom Jobim,
logo atingiria todas as paradas
de sucesso. Quando Carlito
entrou, Ademarzinho, um de
meus melhores amigos, treinava
seus passos de rock no outro
extremo da sala. Era, na época,
uma dança totalmente nova, de
ritmo acelerado, que poucos
dominavam bem. Enquanto
arriscava seus passos,
Ademarzinho cantarolava “Tutti
Frutti”, de Elvis Presley, o hit
mais tocado naqueles dias.
Resolvera aprender a dançar
rock com essa música, que todos
traduziam como “Todas as
frutas”, em português.
“O nome correto em
Português é “Tudo é alegria”,
corrigia Carlito. Ademar
começou a zombar, afirmando,
diante de todo mundo, que a
tradução de Carlito estava
errada. Mas o erro era mesmo
de Ademar. Carlito sabia o que
dizia. Cursava Inglês com um
professor particular, já que Jaú
não possuía nenhuma escola de
inglês, e, por acaso, já havia
aprendido que “Tutti Frutti” era
uma expressão idiomática.
Nesse meio tempo, o
professor entrou na sala, e a
conversa parou por aí. A aula ia
começar. Mas, antes de
continuarmos, deixe-me explicar
como Carlito conheceu a
Clausura, já que estou devendo
esse episódio ao leitor.

Jesus Cristo

Carlito ia para o colégio todos


os dias. Literalmente todos os
dias, e isto inclui fins de semana,
feriados e férias escolares.
Assim fazia porque
simplesmente morava ao lado da
escola, e também porque lá era
um excelente lugar para brincar,
praticar esportes e passar o
tempo. Era uma espécie de
quintal anexo à sua casa.
Pouco tempo depois de ele
estar no quarto do Cônego Pedro
pela segunda vez e ter espiado a
Clausura pela porta entreaberta,
presenciou um estranho fato. Viu
um dos padres sair por trás de
um dos confessionários e
desaparecer. Havia dois
confessionários, ambos no átrio
da capela. Um de cada lado do
corredor que unia a capela ao
pátio da escola. Aquele
desaparecimento do padre por
trás do confessionário o deixou
intrigado. Aguardou um tempo e
foi até aquele confessionário.
Deparou-se com uma porta
estreita, dessas que ficam
escondidas, e que, nos filmes de
cinema, funcionam como porta
secreta. Abriu-a, com cuidado.
Avistou então uma escada bem
estreita, em forma de caracol, que
levava para o andar de cima.
Fechou a porta e se afastou.
No dia seguinte, muito
intrigado, lá retornou. Abriu a
portinhola, entrou, subiu dois
degraus, desceu , subiu
novamente os dois degraus, mas
acabou desistindo de ir adiante.
Tinha receio de ser flagrado por
algum padre.
Tentado pela curiosidade,
lá estava ele novamente no outro
dia. Desta vez, subiu quatro
degraus, desceu, depois subiu
oito, desceu. Nesse vai e vem,
acabou chegando até o fim da
escadinha. Deu de cara com uma
outra portinha. Mas não teve
coragem de abri-la, novamente
receoso de ser descoberto.
No terceiro dia, ele voltou
e subiu a escadinha num só
impulso. Abriu a portinhola do
andar de cima, e sabem onde
saiu? Na Clausura. Ficou ali
parado por alguns instantes. De
repente, ouviu um barulho e
voltou em disparada.
A partir daí, começou a
observar o movimento dos
padres nas diferentes horas do
dia. Notou que eles só
frequentavam a Clausura em
determinados horários. Isto
significava que, nos demais
horários, ele poderia se arriscar
a conhecer aquele lugar que tanto
despertou sua curiosidade.
Retornou ao local em outra
ocasião e fez o mesmo trajeto.
Subiu a escadinha, abriu a porta
da Clausura e entrou. A
iluminação era fraca, apenas
dois pontos de luz ficavam
permanentemente acesos, um em
cada extremidade, com lâmpadas
bem fraquinhas.
Para sua decepção, não
viu nada de especial no interior
da Clausura. Doze bancos,
daqueles do tipo individual que
havia na igreja, com assento,
encosto e suportes para se
ajoelhar. O assento podia ser
retraído, de modo a permitir que
seu ocupante permanecesse de
joelhos ou em pé. A extremidade
esculpida do assento oferecia ao
clérigo a possibilidade de
repouso, em caso de longas
permanências de pé, quando
recolhido verticalmente.
O número de bancos
correspondia à quantidade de
padres existentes no Colégio.
Carlito presumiu que cada banco
era reservado a um padre, ou
seja, os lugares deviam ser pré-
determinados. O cômodo não
tinha janela e nenhuma outra
comunicação externa,
provavelmente para manter
sempre a privacidade e
penumbra.
Na parede frontal havia
um crucifixo enorme, com a
imagem de Nosso Senhor Jesus
Cristo em tamanho natural.
Media cerca de um metro e
oitenta de altura e era feita em
madeira. Nada mais havia dentro
desse cômodo. Por que então era
expressamente proibido adentrar
aquele recinto, se ele nada
abrigava de especial? –
questionou Carlito. Sem entender
muito bem a razão de tanta
proibição, retirou-se dali.
Carlito ainda faria uma
outra visita à Clausura. Mas
sobre este episódio falaremos
mais adiante.
Aula de Geografia

O Professor Larizatti iniciou


então sua aula sobre o Estado de
Israel. Tentarei aqui reproduzir a
essência de sua aula:
O Estado de Israel é um país
situado no Oriente Médio, ao
sudeste do mar
Mediterrâneo. Oficialmente,
foi fundado em 14 de maio de
1948, sob o regime de
república democrática
parlamentar, com a
finalidade de se constituir
em uma pátria para o povo
judeu. Tanto, que muitas
vezes o Estado de Israel é
referido como o Estado
judeu. Ali criou-se a Lei do
Retorno, que concede a todos
os judeus e descendentes de
judeus o direito à cidadania
israelense. Em termos
estatísticos, a população se
resume da seguinte forma:
75,5% é composta por
habitantes de diferentes
origens judaicas; 68%
nasceram no país, 22% são
imigrantes da Europa e das
Américas e 10% são
imigrantes da Ásia e da
África. Os judeus foram
tragicamente perseguidos
pelos nazistas, que os
mantinham prisioneiros em
campos de concentração e,
muitas vezes, os enviavam
para campos de extermínios.
Quando capturados, tinham
de entregar todos os seus
bens aos Nazis, que eram
catalogados e etiquetados,
mediante emissão de recibos.
O maior dos sacrifícios
impostos pelo governo
nazista aos judeus foi
Holocausto, uma forma de
genocídio aterrorizante, e
um dos grandes massacres
da humanidade. O transporte
para esses campos de
extermínios era realizado em
condições aterradoras, com
vagões ferroviários de carga,
abarrotados e sem quaisquer
condições de higiene.
Amontoavam-se ali de 60 a
100 judeus, conforme a
ocasião, num espaço que,
normalmente, comportava 6
cavalos ou vacas.
Atualmente, devido à sua
localização geográfica, que
é resultante de uma partição
da Palestina determinada
pela ONU, o povo judeu vive
em atrito com o povo árabe.
Porém, é um país que vem
crescendo e se
desenvolvendo a passos
largos, tanto
demograficamente como
economicamente.
Um detalhe curioso é que os
habitantes do moderno
Estado de Israel são
denominados "israelenses"
no Brasil e "israelitas" em
Portugal e outros países de
língua lusófona. O termo
"israelita" pode também ser
usado para designar os
adeptos da religião judaica.
A tradição desse povo
defende que a Terra de Israel
é uma “Terra Santa”, a
“Terra Prometida” há quatro
mil anos, desde o tempo dos
patriarcas.
Terminada a explanação,
como era de praxe em várias
aulas, o professor pediu aos
alunos que resumissem, em
poucas palavras, o que eles
haviam entendido sobre a aula.
Vejamos aqui os depoimentos de
Junior e de Carlito, que são os
nossos referenciais:
Junior:
O Holocausto matou milhões
de judeus. Famílias inteiras
foram exterminadas. O caos
imperou. A História foi
carrasca com esse povo, que
quase foi extinto da face da
Terra. O Nazismo deixou-os
para sempre traumatizados.
Devemos sempre ter na
memória essas atrocidades.
Carlito:
Graças ao Holocausto, os
judeus ganharam uma pátria,
depois de quatro mil anos
perambulando pelo mundo.
Mas eles conseguiram se
reerguer e, ao que tudo
indica, será uma nação muito
desenvolvida em pouco
tempo. E seu fortalecimento
como povo e nação deve-se,
em parte, à perseguição que
sofreram no século 20, ao
Holocausto. Esta foi a parte
positiva do Holocausto.
Novamente, Carlito
ressignificava um acontecimento,
a partir de seus aspectos
positivos. No contexto visto
pelos israelenses e por todo o
mundo ocidental, o Holocausto
acabou por propiciar a criação
do Estado de Israel. E este era
um dado positivo.
E, a exemplo dos fatos
anteriores, impôs-se novamente a
dúvida: quem orientava Carlito a
pensar dessa forma?

Segunda parte
9

Os 10 princípios

Carlito resolveu visitar a


Clausura novamente. Subiu a
escadinha atrás do
confessionário e, determinado,
lá entrou. Ajoelhou-se e fez uma
oração em frente à imagem de
Nosso Senhor Jesus Cristo.
Terminada a oração, sentou-se e
pôs-se a observar o lugar. De
repente, ouviu um ruído. Vinha
da cruz. Levantou os olhos,
incrédulo. Notou que uma das
mãos do Cristo se desvencilhava
do prego, até separar-se
vagarosamente da cruz. O
mesmo aconteceu com a outra
mão. Em seguida, os dois pés se
soltaram. E eis que Ele saiu da
cruz e caminhou lentamente até o
banco defronte a Carlito. Sentou-
se e perguntou como Carlito
estava. Iniciou-se então uma
longa conversa, cuja mais
interessante passagem foi a parte
em que Ele começou a revelar a
Carlito os 10 princípios para se
interpretar os fatos da vida. Os
princípios eram os seguintes:
1. Nada tem significado, a
menos que atribuamos
algum.
2. O nível de sucesso que
você experimenta
internamente é o
resultado direto daquilo
que você fez para
consegui-lo.
3. Nossas crenças sobre o
que somos e o que
podemos ser determinam
precisamente o que
seremos.
4. O que acreditamos ser
possível torna-se
possível
5. Quer você acredite ou
não que pode realizar
algo, você está certo.
6. O que importa é o que
achamos de cada
situação. Se a
interpretamos como boa,
ficamos num estado
positivo. O mesmo é
valido para o oposto.
7. O mundo em que vivemos
é o mundo que
escolhemos para viver.
Se escolhermos
felicidade, é o que
teremos. Se escolhermos
miséria, assim será
também. E o pior: na
maior parte das vezes,
inconscientemente.
8. Não existe fracasso. Em
vez disso, ganhamos
experiência.
9. Você é o único culpado
por tudo o que lhe
acontece. De bom e de
ruim.
10. Não há nada
bom ou mau, é o
pensamento que
determina cada situação.
A partir desses
ensinamentos, Carlito mudou
radicalmente sua forma de
encarar o mundo. Passou a
cultivar sempre os pensamentos
positivos, através da
reinterpretação dos
acontecimentos, o que nada mais
é do que a ressignificação. Este
episódio começa a explicar por
que Carlito ressignificava tudo o
que acontecia no mundo, sempre.
10

Como Pollyanna
Carlito havia pesquisado os
horários em que os padres não
frequentavam a Clausura, e um
desses horários era no meio do
período matutino. Entre 5 e 7
horas da manhã a presença deles
por lá era praticamente uma
rotina. O movimento continuava
até as 9, porém de forma
intermitente e com menor
regularidade. Das 9 horas até o
horário de almoço, aí sim, os
padres nunca compareciam à
Clausura. Coincidentemente, os
horários da sessão de estudos
dos internos e semi-internos iam
das 8h às 11h30min, divididos
em duas partes iguais de uma
hora e meia cada. A primeira das
8h às 9h30min, e a segunda das
10h às 11h30min, com um
intervalo de meia hora, no
período entre 9h30min e 10h.
Era justamente nesse intervalo
que Carlito tinha a oportunidade
de conversar com Ele sem ser
percebido pelos padres. Meia
hora era tempo mais do que
suficiente para um longo bate
papo.
E assim as visitas iam se
sucedendo. Narrarei aqui o que
aconteceu em algumas delas, e
você, leitor, assim como Carlito,
irá se surpreender ao saber como
é simples a prática da
ressignificação.
Em um desses encontros,
Ele mostrou a Carlito que valia a
pena viver como a jovem
Pollyanna, das páginas do
clássico infanto-juvenil de
Eleanor H. Porter. Sempre
contente e de alto astral. O livro,
que tem sua protagonista como
título, foi publicado no início do
século XX. Seu sucesso foi tanto
que a autora, em 1915, decidiu
dar continuidade ao romance, em
uma segunda obra intitulada
Pollyanna Moça. Mais onze
Pollyannas se seguiram. O tema
dessa obra permanece sempre
atual, tanto que há sempre uma
nova edição da série Pollyanna
nas livrarias. Em 1920, o livro
inspirou o lançamento do
primeiro filme Pollyanna, ao
qual se seguiram outras versões
cinematográficas. A personagem
Pollyanna Whittier é uma jovem
órfã que vai viver em uma
pequena cidade no interior dos
Estados Unidos com sua única
tia viva, tia Polly. O resto da
história pode ser resumido nas
explicações que Ele deu a
Carlito, por ocasião dessa visita:
A filosofia de vida de
Pollyanna é centrada no que
se chama "o Jogo do
Contente", uma atitude
otimista que a menina
aprendeu com seu pai. Esse
jogo consiste em encontrar
algo para se estar contente,
em qualquer situação por que
passemos. Isso se originou
com um incidente num Natal,
quando Pollyanna, que estava
achando que ia ganhar uma
linda boneca, acabou
recebendo um par de muletas.
Imediatamente, seu pai
aplicou o jogo, dizendo à filha
para ver somente o lado bom
dos acontecimentos — nesse
caso, ficar contente porque
"nós não precisamos dessas
muletas!". Com essa filosofia,
aliada a uma personalidade
radiante e uma alma sincera e
simpática, compassiva,
Pollyanna traz muita alegria e
contentamento para a sombria
e triste propriedade de sua tia,
a qual ela transforma em um
lugar maravilhoso para se
viver.
Carlito interrompeu para
saber Dele se, sem a presença de
Pollyanna, a casa da tia seria
sempre triste. E Ele respondeu:
Com certeza. “O jogo do
contente", além de
transformar a casa em um
lugar agradável para se viver,
protege-a também das atitudes
severas e reprovadoras de sua
tia. Quando Tia Polly colocou-
a num sótão abafado, sem
tapetes ou quadros, ela
exultou com a bela vista que
se descortinava daquela
altura. Quando ela tentou
punir a sobrinha por estar
atrasada para o jantar,
dizendo que só iria comer pão
e leite na copa, com a
cozinheira Nancy, Pollyanna
agradeceu-lhe efusivamente,
porque ela gostava de pão e
leite, e também gostava de
Nancy. Em pouco tempo, a
menina já está ensinando o
“jogo do contente” aos
habitantes mais problemáticos
do vilarejo, onde se incluiam
uma inválida queixosa,
chamada Mrs. Snow, e um
solteirão, Mr. Pendleton, que
vivia sozinho em uma mansão.
Até Tia Polly, diante da
insistente recusa de Pollyanna
em ficar triste e cabisbaixa,
aos poucos, vai abandonando
o seu mau humor e começa a
se tornar mais simpática e
amigável. Foi a que resistiu
por mais tempo a aceitar o
“jogo do contente”, mas
acabou cedendo à força do
otimismo.
Carlito atalhou novamente,
desta vez para saber se
Pollyanna nunca ficou triste na
vida. Ele respondeu:
Sim. Até mesmo o inabalável
otimismo de Pollyanna é posto
à prova quando ela sofre um
acidente de carro e perde o
movimento das pernas. A
princípio, ela não estava
totalmente a par da sua
situação e se mantinha forte.
Mas, ao ouvir acidentalmente
um especialista dizer que ela
nunca mais voltaria a andar,
ela desmorona; seu estado de
espírito se abate
profundamente. Depois disso,
ela se prostra no leito, incapaz
de achar qualquer razão para
ficar contente. Então as
pessoas das redondezas
começam a visitar a casa de
Tia Polly, queriam que
Pollyanna soubesse como suas
vidas haviam melhorado com o
encorajamento dela. E
Pollyanna entende que ainda
pode se sentir contente por ter
podido fazer tudo o que fez. A
partir daí, um médico muito
compassivo (que tinha sido um
antigo amor da Tia Polly)
revela a existência de uma
nova forma de cura para a
lesão da medula espinhal da
garota. Pollyanna passa dez
meses em um hospital distante,
onde, finalmente, se recupera
e volta a andar. Tia Polly e o
médico se casam. E a
felicidade e contentamento é
geral.
“Então...” - disse Carlito -
“a conclusão do efeito Pollyanna
é buscar contentamento em
qualquer circunstância.” Ao que
Ele respondeu: “Correto. Você
vai adotar esse exemplo
ilustrado por Pollyanna, de hoje
em diante.”
Ele contou ainda a Carlito
sobre o “efeito Pollyanna”
reverso, ao qual denominou
“efeito Pirro”. E continuou,
agora com a história de
Pirro:
“Vitória de Pirro” é uma
expressão utilizada para
expressar uma vitória obtida a
alto preço, potencialmente
acarretadora de prejuízos
irreparáveis. Esta expressão
tem origem no nome do
general grego, Pirro, que,
tendo vencido a Batalha de
Ásculo contra os romanos,
com um número considerável
de baixas, ao ser
parabenizado pela vitória
tirada a ferros, teria dito,
preocupado: "Mais uma
vitória como esta e estou
perdido."
Como se vê, é uma
expressão negativista. Pirro
ganhou a batalha, e mesmo
assim preferiu ver na vitória o
seu aspecto negativo. Esse
exemplo de Pirro, ao contrário
do que foi mostrado em
Pollyanna, deve ser evitado, se
quiser ser feliz.

Dito isto, Ele voltou para a


cruz, enquanto Carlito começou a
fazer sua oração final.
11
Caminhos

O colégio tinha um portão


principal, que ficava aberto
apenas por meia hora, antes de
iniciar a aula, ou seja, das 12h às
12h30min. Depois disso,
mantinha-se fechado até o
término das aulas. Esse portão
era usado mais pelos alunos
externos, até porque os internos
não utilizavam portão algum,
pela razão óbvia de
permanecerem trancados no
colégio durante praticamente o
ano todo, só saindo dali nas
férias escolares. Os semi-
internos, como os irmãos Carlito
e Junior, utilizavam a porta que
dava acesso ao pátio do colégio,
onde os alunos se reuniam na
hora do recreio, e ao corredor,
que ia da capela até o refeitório.
Carlito passou a
aproveitar o intervalo de meia
hora para visitá-Lo, sempre que
possível. Mas tomava o cuidado
de evitar essa porta, para não
ser notado. Tendo sido criado
nas vizinhanças do colégio,
assim como eu, acabou por
descobrir outras saídas, que
pouquíssimos alunos conheciam.
Havia um acesso pela portinhola,
que ficava próxima à barra fixa;
outro no quartinho do Irmão
Tadeu, e mais um que ia dar no
quintal do Lucas. Mas esses
detalhes só eram conhecidos por
quem passou toda a infância
brincando por ali. Sendo este o
caso de Carlito, ele sempre
escolhia uma dessas saídas para
as suas escapadas.
As visitas se sucediam.
Nesta última, Ele explicou a
Carlito que não precisava ter
pressa para aprender a
ressignificar tudo. Enfatizou que
deveria ser levada em
consideração a dificuldade de
modificarmos hábitos há tanto
tempo enraizados. Segundo Ele,
o ideal seria iniciarmos esse
exercício desde os primeiros
anos da infância. Mas, como tal
não costuma acontecer,
precisamos de treino. E treino
envolve tempo.
Para ilustrar melhor sua
observação, Ele resolveu contar
a história das moscas no copo de
leite. Essa fábula remete ao
nosso comportamento, quando
nos acostumamos a uma situação.
As moscas no copo
Certa vez, duas moscas
caíram num copo de leite. A
primeira era forte e valente;
assim, logo ao cair, nadou até
a borda do copo, mas, como a
superfície era muito lisa e
suas asas estavam molhadas,
não conseguiu sair.
Acreditando não haver mais
saída, a mosca desanimou,
parou de nadar, de se debater,
e afundou. Sua companheira
de infortúnio, que não era tão
forte mas era tenaz,
continuou a se debater, a se
debater e a se debater.
Debateu-se por tanto tempo
que, aos poucos, por causa de
toda aquela agitação, o leite
ao seu redor foi se
transformando, até criar um
pequeno nódulo de manteiga,
onde a mosca tenaz
conseguiu, com muito
esforço, subir e dali levantar
voo para um lugar seguro.

Esta primeira parte da


história pareceria ser um elogio
à persistência, que, sem dúvida,
é um hábito que nos leva ao
sucesso. No entanto...

Tempos depois, a mosca


tenaz, por descuido ou
acidente, novamente caiu no
copo. Como já havia
aprendido em sua experiência
anterior, começou a se
debater, na esperança de que,
no devido tempo, se salvaria.
Uma outra mosca, passando
por ali e vendo a aflição da
companheira, pousou à beira
do copo e gritou: "Tem um
canudo ali! Nade até lá e
suba por ele!" A mosca tenaz
não lhe deu ouvidos.
Concentrada na sua
experiência anterior de
sucesso, continuou a se
debater e a se debater, até
que, exausta, afundou no
copo cheio de leite.

Terminada a fábula de triste


final, o divino Narrador fez uma
pausa e arrematou:
Quantos de vocês, seres
humanos, baseados em
experiências anteriores,
não acabam por deixar de
notar as mudanças
ocorridas no próprio
ambiente e insistem
obsessivamente em
alcançar os resultados do
passado, até afundarem na
própria falta de visão?
Agem dessa maneira porque
não conseguem ouvir a voz
de quem está
de fora da situação e pode
apontar uma solução mais
eficaz. Assim, acabam
perdendo a oportunidade de
ressignificar uma
experiência, preferindo
permanecer paralisados,
presos aos velhos hábitos,
com medo de errar.
Carlito perguntou: “E qual é
a conclusão que se tira disso?”.
E Ele respondeu serenamente:
Ressignificar é permitir-se
olhar para a situação que
se apresenta aos nossos
olhos como se ela fosse
totalmente diferente de tudo
que já vivemos.
Ressignificar é buscar ver a
vida através de novos
ângulos, de forma a
perceber que, independente
de fracasso ou sucesso,
tudo pode ser encarado
como aprendizagem. Desta
forma, todo o medo se
extingue, e toda experiência
é como uma nova porta que
pode nos levar à energia de
que precisamos, à
motivação de continuar
perseguindo nossos ideais,
à elevação da autoestima
que nos sustenta.

Após tão sábias palavras,


mais uma visita se encerrava.
Impressionado com os
ensinamentos Dele, Carlito
fechou os olhos e se ajoelhou
para fazer a oração final.
Enquanto o menino rezava, Ele
voltou para a cruz da mesma
maneira que havia saído. Em
poucos segundos, suas mãos e
pés estavam ali pregados
novamente.
12

Recreio

No recreio de meia hora, os


alunos se dividiam em grupos.
Havia a turma que gostava de
ficar chutando bola de meia, que
era onde eu me encaixava. Tinha
também o pessoal do pingue-
pongue, o do boliche, aqueles
que ficavam apenas proseando, e
assim por diante. Carlito
costumava se revezar entre esses
grupos. Num dia jogava taco,
noutro amarelinha, noutro
queimada, e isso fazia dele o
único a ter ambiente em todos os
grupos, inclusive nos mais
fechados, tidos como
verdadeiras panelinhas. Desta
forma, quando ele escapava para
a Clausura, naquela meia hora,
ninguém estranhava. Pensavam
que ele poderia estar reunido
com outra turma, e sua ausência
não era questionada. Também
acontecia de, na hora do recreio,
aqueles que moravam nas
vizinhanças do colégio resolver
dar um pulo até sua casa, às
vezes. Eu e Carlito
costumávamos fazer isso, de vez
em quando. Fazia o percurso do
colégio até minha casa em 30
segundos, andando devagar, ou
em 20 segundos, com o passo
mais acelerado. Carlito levava
menos tempo, pois a distância
até sua casa tinha 50 metros a
menos, em relação à minha.
Logo, na pior das hipóteses,
durante seus “sumiços”, também
poderiam pensar que ele havia
ido até sua casa.
Assim, sem despertar
suspeitas, lá foi Carlito fazer
mais uma visita à Clausura.
Neste encontro, a conversa foi
sobre as práticas de
ressignificação. Pacientemente,
Ele explicou que o ser humano
nunca deve desanimar diante de
suas aspirações, mesmo que os
resultados não apareçam de
imediato. “Muitas vezes, só o
tempo pode ajudar. Há certos
fatos negativos que são tão fortes
e marcantes, que enxergar o seu
lado positivo torna-se um grande
desafio” – dizia.

Tudo passará
A conversa prosseguiu:
Há um ditado entre os
homens que diz: “Não há
mal que sempre dure nem
bem que sempre perdure.”
Pense em um grande engano
que cometeu no passado.
Você pode sentir uma súbita
onda de tristeza. Mas é bem
provável que esse engano
tenha sido parte de uma
experiência com mais
sucesso do que fracasso.
Quando você for refletir a
respeito do acontecido,
começará a perceber que
aprendeu muito mais com
aquele engano do que com
qualquer outra experiência
que tenha vivido na época. É
você que produz os
resultados de sua vida. E a
reestruturação é um dos mais
poderosos meios de mudar
seu pensamento sobre uma
experiência. Praticando-a,
verá que, na pior das
hipóteses, o acontecimento
ruim servirá para que
aprenda a evitá-lo no futuro.
Em que sentido o tempo
ajuda nisso tudo? Com o
tempo, tudo passará.
Repare que os piores
acontecimentos que
ocorreram no passado hoje
são até motivo de chacota.
Todos acabam rindo-se
deles, com o passar dos
anos. No final, foram
superados e acabaram
servindo de lição. Além
disso, são esses episódios
indesejáveis e um dia
dolorosos em nossas vidas
que contribuem para nos
tornar um ser humano
melhor. Tudo o que acontece
de bom já traz em si um
conteúdo positivo, e nesses
acontecimentos não devemos
mexer. Mas quanto às
experiências dolorosas e
frustrantes, o que temos a
fazer é uma lista de seus
aspectos negativos e
positivos. Por pior que seja o
ocorrido, há sempre uma
parte positiva a ser levada
em conta. E, após fazermos
esta lista, eliminaremos dela
os fatores negativos,
mantendo nosso foco apenas
na parte positiva.
Carlito perguntou se havia
alguma lenda que pudesse
ilustrar uma frase pronunciada
por Ele, que lhe chamara a
atenção: “Tudo passará”. E seu
Mentor começou então a narrar
uma lenda muito apropriada:

Era uma vez um castelo. E


neste castelo havia um teto.
E o teto estava quebrado. As
mulheres ficavam
tagarelando. Os homens só
pensavam em guerra. O
tempo estava cinza e uma
chuva fina irritante começou
a cair. Os animais não
procriavam e as plantações
não tinham frutos a dar. A
comida começou a faltar
neste reino. O rei daquele
lugar achou que tudo ia mal
e, pensando muito, mandou
buscar um sábio que vivia
longe. O sábio veio, entrou
no castelo com seus sapatos
enlameados, e ouviu do rei
um pedido:
Oh, sábio! Esta
situação está uma lástima!
Faça algo para mudá-la!
O sábio foi até o seu atelier
e voltou trazendo um anel. O
anel continha a seguinte
frase: “Isto também
passará”.
Isto também passará?
Pois que passe então! -
gritou o rei, colocando o
anel em seu dedo.
Algum tempo se passou, o
teto do castelo foi
consertado, as mulheres
voltaram a olhar para os
homens e os homens
voltaram a pensar no amor.
Os animais voltaram a
procriar. E até as plantas
floresceram.
Estabeleceram contatos
comerciais com um país
distante, que produzia vinho.
A fartura de alimentos era
grande e inspirou uma festa.
Nessa festa comemoravam a
vida. No momento de maior
harmonia, o rei lembrou-se
de chamar o sábio.
Oh, sábio! Esta
situação é uma dádiva! Faça
algo para que ela perdure.
Ao que o sábio respondeu:
Oh, grande rei! Isto também
passará!

Terminada esta lenda, Ele


voltou para a cruz, como
sempre fazia, e Carlito
ajoelhou-se para orar.
13
Ausência

Durante o intervalo de meia


hora, o Cônego Pedro apareceu
no pátio procurando por Carlito.
É que Carlito era seu coroinha e
costumava separar suas
vestimentas para o ato litúrgico.
Quando vamos à igreja,
notamos que o altar, o
tabernáculo, o ambão e até
mesmo a estola e a casula usadas
pelo sacerdote combinam.
Geralmente, todos seguem o
padrão de uma mesma cor.
Percebemos também que, a cada
semana, essa cor pode variar. Se
acontecer de irmos, no mesmo
dia, a duas igrejas diferentes,
comprovaremos que ambas
fazem uso da mesma cor, à
exceção, é claro, da igreja que
celebra o seu padroeiro. Na
verdade, a cor usada um
determinado dia é válida para as
igrejas de todo o mundo, que
obedecem a um mesmo
calendário litúrgico. Conforme a
missa do dia, indicada pelo
calendário, fica estabelecida
uma determinada cor. As cores
litúrgicas são seis, e aqui as
descrevo para informar o leitor:
Branco - Usado na Páscoa, no
Natal, nas Festas do Senhor, nas
Festas de Nossa Senhora e dos
Santos, exceto dos mártires.
Simboliza alegria, ressurreição,
vitória e pureza. Sempre é usado
em missas festivas.
Vermelho - Lembra o fogo do
Espírito Santo. Por isso é a cor
de Pentecostes. Lembra também
o sangue. É a cor dos mártires e
da Sexta-Feira da Paixão e do
Domingo de Ramos. Usado nas
missas de crisma, em Pentecostes
e martírios.
Verde - Usado nos domingos e nos
dias da semana do Calendário
Comum. Está ligado ao
crescimento, à esperança.
Roxo - Utilizado no Advento, e
também na Quaresma, a par de
uma variante, o violeta. É
símbolo da penitência, da
serenidade e da preparação, por
lembrar a noite. Também pode
ser usado nas missas fúnebres e
na celebração da penitência.
Rosa - O rosa pode ser usado no
Terceiro Domingo do Advento
(Gaudete) e no Quarto Domingo
da Quaresma (Laetare).
Simboliza uma breve pausa, um
certo alívio no rigor da penitência
da Quaresma e na preparação do
Advento.
Preto - Representa o luto da Igreja.
Usa-se na celebração dos Fiéis
Defuntos.

Estava faltando justamente a


vestimenta daquele dia, razão
pela qual o Cônego Pedro estava
à procura de Carlito. Só ele
sabia onde havia guardado esses
paramentos. Depois de verificar
que Carlito não se encontrava em
nenhum dos grupos, o Cônego
aventou a hipótese de ele estar
em casa. Então pediu para Junior
ir chamá-lo. Este correu até a
casa, procurou por Carlito, mas
viu que o irmão não havia
aparecido por lá. Intrigado,
Junior agora queria porque
queria saber onde Carlito
estava. Lembrou-se das outras
vezes que dera pela falta do
irmão no recreio. Até então, ele
pensava que ele teria ido até em
casa. Viu então que não era o
caso. Começou a se perguntar
onde ele poderia ter estado
durante essas ausências. Decidiu
que iria segui-lo na próxima vez.

Resiliência
Cônego Pedro, que procurava
aflito pelo seu coroinha nesse
dia, estava longe de imaginar
onde Carlito estava. O menino
estava com Ele, em mais uma de
suas visitas. E a conversa do dia
era sobre a “resiliência”. O
secreto Orientador de Carlito
aconselhava-o a ser sempre
resiliente, conselho que ele
seguiria ao longo de toda a sua
vida.
Alguns leitores devem estar
se perguntando: “Mas o que é
resiliência”? Abro um parêntesis
aqui para explicar seu real
significado, com base nas
informações extraídas do livro
“Supere! A Arte de Lidar com as
Adversidades”, de autoria do
consultor Eduardo Carmello.
A palavra “resiliência” tem
origem no termo latino resilio,
que significa “voltar ao estado
natural”. No âmbito das
Ciências Humanas, o conceito de
resiliência está ligado à
“capacidade de um indivíduo em
possuir uma conduta sã num
ambiente insano, ou seja, a
capacidade que o indivíduo tem
de sobrepor-se e construir-se
positivamente frente às
adversidades”. O poder
transformador da resiliência está
na possibilidade de se escolher
como perceber e responder às
situações adversas. É um
conceito oriundo da Física, que,
aplicado ao comportamento
humano, permite mudanças de
atitudes e de qualidade de vida
diante do caos que permeia um
dia-a-dia assolado de cobranças,
compromissos, pressões, onde se
acumula muita tensão e estresse.
A definição genérica do
termo é “a capacidade de um
material voltar ao seu estado
normal depois de ter sofrido uma
pressão”. Aplicando essa
definição ao universo humano,
podemos resumi-la da seguinte
forma: as pessoas não podem
saber se ficarão com raiva ou
não quando algo inesperado
acontecer em suas vidas, mas
podem, sim, definir quanto tempo
vão ficar alimentando esse
sentimento, dispondo-se a
encontrar uma forma de canalizar
essa emoção para uma ação
construtiva. Ninguém consegue
ser 100% resiliente. Só o Super-
Homem das histórias em
quadrinhos. A resiliência não é
fruto da personalidade, é uma
habilidade: a habilidade de
gerenciar um conjunto de
características e/ou atitudes para
lidar adequadamente com
situações consideradas adversas.
É uma competência, um
estado de espírito. Nós não
somos resilientes, nós estamos
resilientes. É um recurso
aprendido. O que pode acontecer
é que algumas pessoas tenham
mais dificuldade (ex: Junior) ou
facilidade (ex: Carlito) para
alcançar a resiliência. Na
verdade, um percentual muito
pequeno de indivíduos possui
esse “talento”. A grande maioria
dos profissionais e das
organizações considerados
competentes, por exemplo,
quando enfrentam uma situação
emergencial, ameaçadora ou
desconhecida, veem suas
competências drasticamente
diminuídas ou desaparecidas.
Cerca de 80% das pessoas
diminuem a eficácia de suas
competências quando vivenciam
situações imprevisíveis,
adversas, turbulentas ou
ameaçadoras. Apenas 20% delas
conseguem se manter
competentes em ambientes de
pressão e são capazes de utilizar
seu potencial afetivo,
comportamental e cognitivo para
enfrentar, com sucesso, uma
situação adversa.
Agora que a “resiliência” já
é um fenômeno conhecido por
vocês, voltemos à conversa na
Clausura, onde Ele começou a
orientar Carlito a esse respeito:
Evite deixar-se dominar por
respostas automáticas. Para
desarmá-la, recorra às
seguintes premissas:
Identifique o gatilho
de sua reatividade – O
que provoca sua
reação? O que o fez
xingar ou sentir
raiva? O que o outro
falou? De que jeito o
outro falou? Como
era sua postura
corporal?
Conheça sua reação
típica a esse gatilho –
Esquiva-se? Fica
zangado? Responde de
maneira agressiva?
Defende-se e explica-
se demais? O que é
que você
automaticamente faz?
Escolha uma resposta
alternativa para
iniciar um caminho
diferente – Da
próxima vez que isso
acontecer – e,
provavelmente, vai
acontecer –, procure
responder de forma
diferente. Você se
surpreenderá com o
resultado.
Mantenha-se
concentrado no
objetivo que
estabeleceu para si
mesmo (algo que seja
aproveitável, que
valha a pena) – Na
maioria das vezes,
perder a calma só
contribui para nos
desviar dos nossos
objetivos e tarefas. É
um gatilho que não
ajuda a realizarmos o
que queríamos. E que,
depois de baixada a
poeira, só nos leva a
perceber que agimos
de maneira
inadequada,
inconveniente,
fazendo tudo aquilo
que não queríamos
fazer.

Ele continuou, explicando a


Carlito que, para se atingir a
estabilidade e o equilíbrio
interno, era preciso estar ciente
daquilo que era realmente
importante; descobrir o conjunto
de conhecimentos e experiências
capazes de proporcionar
equilíbrio interno suficiente para
lidar com as altas exigências do
mundo. Desta forma, o ser
humano aprenderia a usar sua
inteligência e sabedoria para
encontrar ideias e soluções
criativas. E definiu o ser
resiliente em poucas palavras:
O ser resiliente é aquele
que decidiu interpretar a
adversidade como uma
circunstância e um
aprendizado da vida,
escolhendo a inteligência e
a esperança, em vez da
vitimização e do desespero.
Carlito quis saber que
posturas ele deveria adotar para
se tornar um “ser resiliente”. E
Ele enumerou cinco delas:
1. Incluir-se na situação:
“Sou responsável de
alguma forma por essa
situação.”
2. Considerar-se
competente, capaz de
mudar: “Sei que posso
fazer alguma coisa
para enfrentar isso.”
3. Declarar-se
protagonista: “Sou o
dono de minhas ações,
a responsabilidade não
está nas estrelas, mas
em mim mesmo.”
4. Ter responsabilidade e
sentir-se capaz de
aproveitar a
experiência, de alguma
maneira: “Se agora
não consigo
influenciar a situação,
posso pelo menos me
acalmar e utilizar essa
experiência como
aprendizado e
aperfeiçoamento
pessoal.”
5. Abrir portas às
possibilidades: “Meu
ser não se encerra no
que sou agora, tenho
condições de pensar e
agir de forma diferente
do que venho fazendo
até o momento.”
Ainda com algumas
dúvidas, Carlito pediu a Ele que
descrevesse as características
de um “ser resiliente”. E Ele
enunciou sete características,
falando que essas pessoas:

1. São autoconfiantes:
acreditam em si
mesmas e naquilo que
são capazes de fazer.
2. Gostam e aceitam
mudanças: encaram as
situações de estresse e
adversidade como um
desafio a ser
superado.
3. Têm baixa ansiedade e
alta extroversão: são
abertas a novas
experiências e a novas
formas de se fazer
algo.
4. Têm autoconceito e
autoestima positivos:
conseguem
administrar seus
sentimentos e suas
emoções em ambientes
imprevisíveis e
emergenciais.
5. São emocionalmente
inteligentes: conhecem
suas emoções, sabem
administrá-las, sabem
se automotivar,
reconhecem emoções
em outras pessoas e
sabem manejar
relacionamentos.
6. São altamente
criativas: procuram
constantemente por
inovações.
7. Dispõem de uma eficaz
capacidade de
resposta: mantêm
altos níveis de clareza,
concentração, calma e
orientação, frente a
uma situação adversa.

Estimulado com tudo o que


ouvia, Carlito então perguntou
que condutas deveria adotar para
conseguir, em pouco tempo,
atingir a resiliência. E Ele
respondeu, explicando como
Carlito deveria desenvolver seu
estado interior:
Saiba adaptar-se a
mudanças e situações
ambíguas.
Esforce-se para
superar os
esgotamentos, a
exaustão, os traumas.
Procure sempre
manter a calma, o
pensamento claro e
uma boa orientação
nas situações
adversas.
Seja cuidadoso na
hora de decidir. Não
se renda às pressões e
mantenha-se fiel às
suas crenças ao fazer
uma escolha.
Não fuja de situações
complexas e seja
flexível ao lidar com
os problemas,
tentando compreender
as suas origens.
Trabalhe em harmonia
com os seus pares, ou
mesmo com seus
superiores, lembrando
que a união faz a
força capaz de
eliminar as grandes
adversidades.

Terminada a explanação do
dia, mais uma vez Ele voltou
para a cruz, e Carlito se pôs a
orar de joelhos.

14

Mudança de crenças
Junior passou a observar aonde
Carlito ia durante o intervalo das
9h30m, toda vez que não o via
junto a algum grupo. Um certo
dia, ao perceber Carlito entrando
furtivamente no quartinho do
Irmão Tadeu, resolveu segui-lo.
Viu quando ele atravessou os
fundos da dispensa, entrou no
jardim de inverno, passou pelo
viveiro de seriemas do Cônego
Inácio, cruzou a porta principal
da igreja e desapareceu. Junior
ficou muito intrigado. Decidiu
que, na próxima vez, faria um
caminho diverso e permaneceria
atrás da coluna da sacristia para
descobrir o destino final do
irmão. Aonde será que ele ia?
Nesse dia, os ensinamentos
Dele a Carlito foram sobre a
mudança de crenças, ou, para ser
mais exato, a ressignificação de
crenças. Mas o que são as
crenças? Vamos definir melhor
esse tema, antes de passarmos ao
diálogo entre os dois. Crença é o
ato ou efeito de acreditar em
algo, com a convicção de que há
alguma verdade nisso. As
crenças podem se tornar uma das
mais poderosas forças, tanto
para atrair o bem como para
atrair o mal em nossas vidas. E
podem ser alteradas ao longo do
tempo. Tanto é assim que muitas
das crenças que cultivávamos
quando crianças ou adolescentes
foram se modificando na medida
em que amadurecíamos.
É normal que muitos as
vejam no sentido de credos ou
doutrinas, e várias delas
realmente o são. Mas, no sentido
básico, uma crença é qualquer
princípio orientador, máximas, fé
ou paixão que podem
proporcionar significado e
direção à vida. Estímulos
ilimitados estão disponíveis para
nós. E as crenças funcionam
como filtros pré-arranjados e
organizados para nossas
percepções do mundo. Atuam
como comandos do cérebro.
Quando acreditamos com
convicção que alguma situação é
verdadeira, estamos, de certa
forma, enviando um comando
para o nosso cérebro, de modo a
representar o que está ocorrendo.
Tratadas de maneira
correta, as crenças podem se
transformar em poderosas forças
geradoras do bem. Porém,
quando não cultivadas de um
modo saudável, elas acabam por
limitar nossas ações e
pensamentos, e podem se tornar
devastadoras. As crenças,
quando bem direcionadas,
funcionam como molas
propulsoras capazes de liberar
os mais ricos recursos que
existem dentro de nós, fazendo-
os atuar em benefício dos
resultados que desejamos atingir.
Enfim, as crenças são os
compassos e os mapas que nos
guiam em direção às nossas
metas e nos trazem a certeza de
que chegaremos lá. Sem elas, ou
sem a capacidade de cultivá-las,
o ser humano pode se tornar
bastante enfraquecido e
vulnerável. Portanto, se
estivermos munidos de fortes
crenças orientadoras, teremos o
poder de tomar medidas e de
recriar o mundo no qual
queremos viver. As crenças nos
ajudam a discernir com clareza
aquilo que queremos,
conferindo-nos a força
necessária para obtermos os
melhores resultados.

Comportamento

De fato, não há uma diretriz mais


poderosa no comportamento
humano do que a crença. Para
mudarmos o nosso
comportamento, devemos
começar a alterar nossas
crenças. Quanto mais
aprendemos sobre o
comportamento humano, mais
compreendemos sobre o
extraordinário poder que elas
exercem sobre nossas vidas. Um
poder que desafia, de certa
forma, modelos lógicos que há
muito existem dentro de nós. Até
mesmo no âmbito da fisiologia,
as crenças são capazes de
controlar uma realidade.
Exemplo disso foi uma
experiência clínica realizada
com placebo e nocebo. Nesta
pesquisa, a maioria dos
pacientes que fizeram uso de
placebo, acreditando tratar-se de
um poderoso medicamento
prescrito para curar úlceras,
tiveram toda a sua fisiologia
modificada, e essa alteração em
seus organismos contribuiu para
a cura da doença. Ou seja, a
crença deles se tornara uma
realidade, o que nos leva a
concluir que o cérebro
simplesmente faz o que lhe é
mandado.
Há muitos outros exemplos
que comprovaram que o único
fator constante a afetar
fortemente um resultado foi a
crença. Ou seja, as mensagens
consistentes e coerentes
enviadas ao cérebro e ao sistema
nervoso transformaram uma
situação. Apesar de ser este um
fenômeno poderoso, não há
qualquer mistério ou confusão no
processo. A crença nada mais é
do que um estado, uma
representação interna, que
governa o comportamento. E ela
pode ser uma crença reforçadora
- a de que seremos bem-
sucedidos em algum
empreendimento - ou uma crença
inibidora - a de que podemos
fracassar, de que nossas
limitações são claras,
insuperáveis, esmagadoras. Em
outras palavras, se você acredita
mesmo no sucesso, estará
fortalecido para alcançá-lo; se
acredita em fracasso, sua crença
tenderá a levá-lo exatamente
para ele.
Lembremo-nos aqui das
palavras de Virgílio:
"Eles podem porque pensam
que podem."
Em uma definição mais
apurada, podemos descrever as
crenças como abordagens pré-
formadas e pré-organizadas da
percepção, que filtram nossa
comunicação para nós mesmos,
de maneira consistente.
Outras questões ainda se
levantam em torno desse tema,
como por exemplo: De onde vêm
as crenças? Por que algumas
pessoas possuem crenças que as
projetam para o sucesso,
enquanto outras cultivam crenças
que só contribuem para o seu
fracasso? Vamos tentar
esclarecer algumas delas, então.
De onde vem a
crença?
As crenças são generalizações
baseadas em experiências
passadas, que modelam futuras
reações e comportamentos. São,
em grande medida, processos
inconscientes de pensamentos
organizados. E, como ocorrem
principalmente a nível
inconsciente, é difícil identificá-
las. Podemos dizer que as
crenças são os princípios pelos
quais nos guiamos, e que sempre
as tomamos como premissas
certas, ainda que nem todas o
sejam.
Não são lógicas, já que sua
função é nos fazer coincidir com
a realidade. São como uma
questão de fé, e muitas das vezes
é a crença, e não o que se
realiza, que opera as mudanças.
Quando um indivíduo crê
verdadeiramente em algo, ele se
comporta de modo congruente
com essa crença. As crenças são
um marco geral, que envolve
todo um trabalho sobre a
mudança pessoal. Sim, porque,
quando se crê incapaz de
realizar algo, vai encontrar,
ainda que de maneira
inconsciente, uma forma de
impedir que essa mudança se
produza, tendendo a interpretar
os resultados de acordo com o
que diz a sua crença.
A crença representa, em
última instância, comandos
inquestionáveis à nossa mente.
Ela nos diz o que é possível ou
impossível mudar. Ela
determina o que podemos e o
que não podemos fazer. Em
suma, ela nos guia em todos os
momentos cruciais da nossa
vida. Ela, enfim, nos diz o que
somos.
E este fenômeno nada mais
é do que um sentimento de
certeza ou de firmeza sobre o
significado de algo. É a força
que nos impulsiona a tentar, a
vencer ou a falhar na vida.
É a crença que nos
empresta a habilidade de
sentirmos algo brilhantemente
significativo ou erroneamente
devastador para as nossas
possibilidades de sucesso. Por
esta razão é que se costuma dizer
que as crenças tanto têm o poder
de criar como de destruir.
Adotar uma crença

Quando adotamos uma crença,


passamos a acreditar cegamente
nela. Porém, muitas vezes
esquecemos que essa crença
pode ser resultado de uma
interpretação errônea sobre algo
ocorrido no passado, ou
resultado de uma interpretação
baseada em uma única ótica e
perspectiva.
Devemos usar de extremo
cuidado ao adotar certas
crenças, uma vez que estas são
os pilares que movem,
literalmente, todo o nosso
comportamento.
Qualquer ideia pode ser
transformada em crença, desde
que se forneça razões
suficientes para torná-la crível.
Mas atenção: nem tudo que
acreditamos é crença. A crença é
uma certeza desprovida de
qualquer hipótese de indecisão.
Por vezes, ela se constitui em
sérios obstáculos à nossa
felicidade, se não temos
inteligência suficiente para
discernirmos as crenças
positivas das negativas.
Crenças negativas ou
limitadoras são mais difíceis de
serem detectadas porque, na
maioria dos casos, elas foram
incrustadas no nosso
subconsciente durante a infância
ou adolescência, quando a nossa
capacidade de discernir entre o
positivo e o negativo ainda não
havia desenvolvido por
completo. Não é raro criarmos
crenças limitadoras para nos
protegermos de certas
circunstâncias negativas que nos
afetaram no passado, ou ainda
por temermos que essas mesmas
circunstâncias negativas se
repitam, fazendo-nos
experimentar novamente essas
frustrações. Como
consequência, passamos a
hesitar, a evitar o risco, a não
tentar e, com isso, a não
conseguir resultados positivos.
E, via de regra, tudo se sucede
de maneira inconsciente.
Os pessimistas veem as
frustrações como obstáculos
intransponíveis,
provenientes de um mundo
inacessível, ao passo que os
otimistas as veem
como experiências que
acrescentam e ensinam, que nos
oferecem uma oportunidade de
mudarmos os métodos para
atingir o sucesso.
Quando um sonho nos
parece impossível, devemos
seccioná-lo em pequenas partes
e, a partir disso, tentar descobrir
o primeiro passo a ser dado para
iniciar essa longa jornada.
A crença, que consiste na
certeza que se tem sobre alguma
coisa, é uma tomada de posição
na qual se acredita até o fim. É
convicção, é fé, é um conjunto
de ideias em torno de algo
admitido como uma
possibilidade verdadeira. É um
sentimento inerente e exclusivo
da raça humana. Nenhum animal
é capaz de cultivar ou transmitir
tamanha subjetividade.
O aspecto mais importante
da crença, no entanto, é que nela
não cabe a dúvida ou a
incerteza. Crer é tomar algo por
verdade certa, independente de
comprovações sociais ou
científicas. É confiar, acreditar,
apostar tudo em uma
possibilidade, movido apenas
pela convicção de que ali está a
verdade. Pode-se dizer mesmo
que é a crença que nos impele a
agir. O homem não tomaria
qualquer atitude, sem a crença
de que será bem-sucedido em
sua empreitada.

14 modos de ressignificar
uma crença

Foi a crença, pois, o tema


central dos ensinamentos
recebidos por Carlito naquela
manhã. Desta vez, Ele ensinou
Carlito o que deveria ser feito
para modificar uma crença,
explicando procedimentos que
viriam a ser desenvolvidos,
décadas depois, pelo
pesquisador norte-americano
Robert Dilts.
E Ele iniciou o assunto da
seguinte maneira:

Mudar ou ressignificar uma


crença é uma maneira de
você quebrar essa crença
através da linguagem.
Existem 14 maneiras de se
ressignificar uma crença.
Você pode utilizar uma ou
todas essas maneiras. Vou
enumerá-las aqui, para que
entenda melhor:
1. REDEFINIR:
Substituir uma palavra
utilizada na afirmação
da crença por outra
com significado
similar, porém com
diferentes implicações
(criar novos
significados).
2. CONSEQUÊNCIA:
Dirigir a atenção para
um efeito (positivo ou
negativo) da crença,
ou para uma relação
definida pela crença
(criar novas
consequências).
3. INTENÇÃO: Dirigir a
atenção ao propósito
da crença (intenção
positiva).
4. ESPECIFICAR
(segmentar para
baixo): Dividir os
elementos da crença
em segmentos
pequenos o suficiente
para mudar as
relações definidas
pela crença.
5. GENERALIZAR
(segmentar para
cima): Generalizar um
elemento definido pela
crença para uma
classificação mais
geral, de modo a
mudar a relação
definida pela crença.
6. CONTRAEXEMPLO:
Descobrir um exemplo
antagônico ao da
relação definida pela
crença.
7. OUTRO OBJETIVO:
Desafiar a relevância
da crença e mudar o
objetivo ao mesmo
tempo.
8. ANALOGIA: Descobrir
uma relação análoga
àquela definida pela
crença, mas que
possua diferentes
implicações
(metáfora).
9. AUTOAPLICAÇÃO:
Avaliar a própria
crença, de acordo com
o critério ou relação
definidos pela crença.
10. HIERARQUIA DE
CRITÉRIOS:
Reavaliar a crença,
de acordo com um
critério que seja mais
importante que
qualquer critério
definido pela crença.
11. MUDANÇA DO
TAMANHO DO
QUADRO: Reavaliar a
implicação da crença:
a) dentro de um
contexto temporal
maior (ou menor); b)
com projeção para um
grande número de
pessoas (ou para uma
dimensão individual e
restrita); ou c) sob
uma perspectiva
conceitual maior ou
menor.
12. METAQUADRO:
Avaliar a crença como
um processo, dentro de
um contexto orientado
para que a pessoa
estabeleça uma crença
sobre a crença.
13. MODELO DE
MUNDO: Reavaliar a
crença a partir de um
modelo de mundo
diferente.
14. ESTRATÉGIA DE
REALIDADE:
Reavaliar a crença
considerando o fato de
que as pessoas operam
a partir de percepções
cognitivas do mundo
para construir suas
crenças.

Carlito pensou, pensou, e


pediu um exemplo. E Ele o fez
com a serenidade e sabedoria de
sempre:

Vamos analisar então cada


um desses 14 itens,
começando com uma crença
hipotética como exemplo:
Tomemos o primeiro padrão,
que é Redefinir, ou seja,
substituir uma palavra
utilizada na afirmação da
crença por outra com
significado similar, mas
diferentes implicações. Que
palavras poderiam ser
utilizadas ou adicionadas
para substituir a frase de
referência da crença, tendo
significado similar, porém
com implicações mais
positivas?

Isto é a ressignificação. Você


substituiu a crença de ter
medo de se arriscar pela
crença de que é muito
corajoso.
O segundo padrão é a
Consequência - dirigir a
atenção para um efeito
(positivo ou negativo) da
crença ou para uma relação
definida pela crença. –
Devemos nos ater sempre aos
efeitos positivos, e não nos
negativos, da crença ou da
relação definida pela crença.
Pensar nos seus efeitos
negativos, com certeza, gerará
em você um bloqueio para
experimentar situações novas.
E, possivelmente, se
arrependerá mais tarde de não
tê-las vivido. A reformulação
da frase então deve ser:

Passemos ao terceiro padrão:


Intenção. Ou seja, dirigir a
atenção ao propósito, à
intenção da crença. Como
deve ficar a nova premissa
aí? Qual é a intenção maior?

Agora o quarto padrão:


Especificando. Isto é, dividir
o elemento da crença em
segmentos pequenos o
suficiente para mudar as
relações definidas pela
crença. Que elemento poderia
gerar uma relação mais rica
ou positiva do que a afinada
na crença?

Quinto item: Generalizando,


que consiste em generalizar
um elemento definido pela
crença para uma
classificação mais geral, de
modo a modificar a relação
definida pela crença. Que
classe ou elemento maior
poderia gerar uma relação
mais rica ou positiva do que
a afirmada na crença?
Podemos otimizar nossa
crença de origem, afirmando:

A sexta consideração refere-


se ao Contraexemplo. Ou
seja, descobrir um exemplo
antagônico ao da relação
definida pela crença. Um
exemplo ou experiência que é
uma exceção da regra
definida pela crença. Como
ficaria o pensamento aí?

Passemos ao sétimo item:


Outro Objetivo, que consiste
em desafiar a relevância da
crença e mudar de objetivo
ao mesmo tempo. Que outro
objetivo poderia ser mais
relevante do que o
estabelecido pela crença?

Oitavo item: Analogia, onde


a proposta é descobrir uma
relação análoga àquela
definida pela crença, mas que
possua diferentes
implicações. Que outra
premissa poderia ser análoga
àquela estabelecida pela
crença, porém com
implicações mais positivas?

Nono item: Autoaplicação,


que remete à ideia de avaliar
a própria crença de acordo
com o critério ou relação
definida pela crença. É a
capacidade de pensar a
própria crença, considerando
as possíveis variáveis dela
em sua vida prática. Como
reformular a premissa neste
caso?
Vejamos o décimo padrão:
Hierarquia de Critérios, que
implica reavaliar uma crença,
com base em um critério mais
importante do que qualquer
outro definido pela crença.
Que tipos de critério seriam
potencialmente mais
importantes do que os
estabelecidos pela crença?
Seguindo a ordem, vamos ao
décimo primeiro tópico:
Mudança do Tamanho do
Quadro, que consiste em
reavaliar a implicação da
crença dentro de um contexto
temporal maior (ou menor);
com projeção para um grande
número de pessoas (ou para
uma dimensão individual e
restrita); ou sob uma
perspectiva conceitual maior
ou menor. Como você deve se
enxergar dentro dessas
variações?

A décima segunda diretriz


fala sobre o Metaquadro:
avaliar a crença como um
processo, dentro de um
contexto orientado para que
a pessoa estabeleça uma
crença sobre a crença. Que
crença sobre esta crença
poderia mudar ou enriquecer
a sua percepção?

O décimo terceiro tópico


aborda o Modelo de Mundo,
e encerra a ideia de reavaliar
a crença a partir de um
modelo de mundo diferente.
Assim, que outro modelo de
mundo proveria uma
perspectiva bem diferente
para esta crença?
Por último, o décimo quarto
item, que é a Estratégia de
Realidade, sugere que
reavaliemos a crença
considerando o fato de que as
pessoas operam a partir de
percepções cognitivas do
mundo para construir suas
crenças. Que percepções
cognitivas do mundo são
necessárias para a
construção desta crença?
Como alguém deve perceber
o mundo para poder cultivar
esta crença? Como vou saber
do que vão gostar, se não me
arriscar?

Assim, depois de se aplicar


um ou mais desses 14
padrões de abordagem, uma
nova crença deverá surgir:
A importância das
perguntas

Após ouvir àquelas explanações


muito atentamente, Carlito, ainda
confuso, perguntou a Ele se
havia um modo mais simples de
se aplicar esses padrões. E Ele
respondeu:
Uma das formas para se
aprender e aplicar estes
padrões é fazendo perguntas
relativas a eles. Comece
escrevendo uma crença. Em
seguida, escreva os 14
padrões, na ordem correta.
Vamos fazer um exercício
aqui para que você assimile
bem esses conceitos.
Tomemos por base a seguinte
crença hipotética:

“Quando me magoam,
tenho dificuldades para
esquecer o fato.”
1. Será que não estou
tendo a oportunidade
de crescer quando sou
criticado?
2. Será que pensar dessa
maneira não faz com
que eu fique preso ao
passado, o que me
impede de ir adiante?
3. Estou me protegendo
para não ser magoado
novamente?
4. Que palavras e
atitudes me
magoaram?
5. Todas as pessoas
ficam magoadas?
6. Por que eu admiro as
pessoas que não ficam
magoadas?
7. Por que sempre evito
magoar os outros?
8. Que tal deixar entrar
por um ouvido e sair
pelo outro?
9. Será que não estou
magoando a mim
mesmo com esta
crença?
10. Não é melhor falar
com a pessoa e
resolver o mal-
entendido?
11. Se eu esquecesse as
mágoas, será que não
seria visto de uma
maneira melhor?
12. O que é preferível?
Ser amado do jeito
que sou ou criar um
personagem só para
me sentir amado?
13. Muitos acham que
as pessoas que não se
magoam são mais
fortes.
14. Como vou saber o
que acontecerá, se eu
não tentar superar
medos e mágoas e
correr o risco?
Respondendo a essas
questões e tentando se
arriscar a novas
possibilidades, a nova
crença será:
“Eu perdoo a todos e a
mim mesmo.”
Carlito gostou tanto das
explicações que pediu mais um
exemplo. Então Ele continuou:
Então vejamos, a crença
agora é:
“Diante da crise mundial, a
humanidade tem medo do
futuro.”
1. Esse medo ajuda a
buscar soluções?
2. Não é melhor acordar
para uma nova
realidade e melhorar
sempre?
3. É medo de quê? Da
escassez?
4. Que parte de mim tem
medo?
5. Todas as pessoas
também estão com
medo?
6. Se a humanidade já
passou por isso e
conseguiu superar, por
que não superaremos
desta vez?
7. A crise não faz parte
da evolução?
8. Não estou sendo
influenciado pela
máxima de que “Quem
tem c... tem medo”?
9. Se a humanidade
sempre acha uma
saída, por que
alimentar o medo?
10. Por que não usar
a criatividade nessa
hora?
11. Se o medo é
desencadeado no
homem, por que não
pode também ser
interrompido por ele?
12. A humanidade
não é capaz de criar
curas e soluções?
13. O que vejo na
humanidade não é o
que vejo em mim?
14. Por que não
escolher usar a minha
crença, direcionando-
a para a cura da
humanidade?

A partir dessas questões, a


nova crença tende a tomar
a seguinte forma:
“A humanidade é corajosa e
deve confiar num mundo
melhor.”

Carlito agradeceu ao seu


Guia por toda ajuda e sabedoria
recebida. Estava tão empolgado
que agora partia para uma
situação particular. Pediu então a
Ele que o auxiliasse em uma
necessidade particular: passar a
gostar de Matemática. Ele sorriu
ternamente e começou a instruí-
lo:
A ressignificação também
pode ser usada para desafiar
crenças limitadoras, como é
o seu caso de não gostar de
Matemática. Vamos usar
como origem a crença:
“Aprender Matemática é
difícil para mim.”
Esta crença pode adquirir
os seguintes
desdobramentos:
Estou tornando a
situação mais difícil
ainda.
Não preciso aprender
tudo em Matemática,
apenas familiarizar-
me com ela.
Aprender Matemática
não é difícil, só exige
um pouco mais de
esforço.
Quanto mais rápido
eu aprender
Matemática, mais
fácil ela parecerá.
Se eu não tentar,
jamais saberei quão
difícil ou não é
aprender
Matemática.
A aprendizagem de
Matemática, de um
modo geral, pode não
ser tão difícil.
Já houve uma época
em que achava fácil
aprender
Matemática?
Eu não sei se
aprender Matemática
é difícil ou fácil.
Para descobrir, é
preciso tentar.

E assim a explanação do
dia se encerrou. Carlito
agradeceu, depois ajoelhou-se,
pôs-se a rezar, e Ele voltou
para a cruz.
15

Mudança de
comportamento
Carlito ficou algum tempo ser ir
à Clausura, deixando Junior cada
vez mais ansioso. Ele estava
determinado a descobrir o
esconderijo do irmão. Passados
alguns dias, Carlito voltou a se
ausentar na hora do recreio.
Junior, sempre de olho, viu
quando ele passou pelo quartinho
do Irmão Tadeu e, prevendo que
o irmão seguia para a capela,
resolveu fazer outro caminho
para lá chegar antes dele.
Disparou em direção à saída
pela portinhola que ficava perto
da barra fixa. Correu até a
capela e ali permaneceu,
furtivamente escondido atrás da
coluna da sacristia.
Quando Carlito ali surgiu, o
irmão começou a acompanhar
com os olhos todos os seus
movimentos. Viu claramente
quando ele entrou por trás do
confessionário e desapareceu.
Junior foi até lá e notou a
portinhola fechada. Mas,
receoso, não quis entrar.
Esperou por quase meia hora, e,
vendo que o irmão não aparecia,
resolveu ser mais ousado e abrir
aquela portinhola. Subiu a
escadinha em caracol que havia
lá dentro e se deparou com uma
outra porta ao seu final. Parado à
soleira, identificou a voz de
Carlito conversando com
alguém. Mas com quem? Apurou
os ouvidos e concluiu que a voz
do interlocutor não era de
nenhum dos padres. Junior
conhecia muito bem a voz de
todos eles. Tampouco a voz se
parecia com a de algum de seus
colegas, era uma voz de adulto.
Ficou ali refletindo, tentando
descobrir quem poderia ser a
pessoa que falava a seu irmão,
até que, ao ouvir Carlito se
despedindo do dono da voz
misteriosa, zarpou correndo
para não ser descoberto. Mas
não se deu por vencido.
Prometeu a si mesmo que na
próxima vez haveria de
descobrir.
Naquele dia, Ele ensinava a
Carlito como mudar de
comportamento através da
ressignificação. Falava da
possibilidade de se transformar
comportamentos indesejáveis em
comportamentos desejáveis,
mantendo os benefícios
importantes da postura anterior.
Esta era uma forma de
ressignificação que viria a ser
desenvolvida, décadas depois,
por dois pesquisadores norte-
americanos: Richard Bandler e
John Grinder. Os dois estudiosos
resolveram atribuir a esse
processo a seguinte
denominação: “Reestruturação
em 6 passos”.
Logo de início, Ele fez
algumas recomendações a
Carlito, para melhor desfrutar
das vantagens da Ressignificação
em 6 Passos. Essas
recomendações não seriam
usadas naquele momento inicial
da aprendizagem, mas depois,
quando Carlito fosse praticá-la
sozinho. E a primeira delas foi
que o menino escolhesse uma
cadeira bem confortável, antes
de começar a seguir os
procedimentos. Alertou também
que alguns dos passos do
processo poderiam parecer-lhe
um tanto estranhos, mas que
seriam estranhos apenas no
início. Logo ele descobriria seus
benefícios e se acostumaria ao
método. Após fazer este pequeno
preâmbulo, Ele entrou
diretamente no tema:
Primeiramente, reviva esse
comportamento indesejável.
Entre em contato com a
sensação, e procure em seu
corpo onde ela se manifesta.
Peça para se comunicar com
ela. Uma vez estabelecida a
comunicação, pergunte o que
esse comportamento lhe traz
de bom. Pergunte como seria
se houvesse outras boas
opções. Pergunte a essa
sensação indesejada se ela
aceitaria outras ideias.
Caso sinta que a resposta
seja um “sim”, apresente
três alternativas. A parte
indesejada de seu
comportamento vai então
tentar sentir que alternativas
lhe caberiam melhor. Depois
disso, uma segunda parte é
gerada, a parte desejável.
Integre então essas duas
partes, juntando as mãos. E
pergunte se, no futuro, o
comportamento pode ser
outro.
Carlito achou o método
muito interessante, mas
argumentou que era algo
complexo demais para uma
explicação tão resumida.
Precisava de mais
informações, queria conhecer
logo os 6 passos. Com toda a
paciência do mundo, Ele
começou a descrever cada
passo, com riqueza de
detalhes.
Passo 1 – Identificar as
partes do seu Eu
Escolha um comportamento
ou sentimento de que não
gosta. Por exemplo, o de um
fumante mal-educado, o de
um obeso que não consegue
se controlar e come demais, o
de alguém que deixa tudo
para a última hora, ou
qualquer outra atitude que
lhe desagrade. Algo
específico. E tem que ser
único. Se quiser corrigir mais
de um comportamento, vai
aplicar esse método um para
cada comportamento. Faz o
primeiro comportamento ou
sentimento que quer mudar, e
teminando este, começa tudo
de novo para o segundo, e
assim por diante.
Enfoque qual a parte de seu
corpo que sente cada vez que
você tem esse
comportamento. Cada
comportamento ou
sentimento tem uma parte do
corpo responsável Quando
pensamos em um
comportamento ou
sentimento indesejável,
alguma parte do corpo sente
um reflexo instantaneamente.
Às vezes a coluna, o peito, o
estômago, a cabeça, enfim,
alguma parte do corpo é
responsável por esse
sentimento ou
comportamento. Sempre tem
alguma parte. Se você,
Carlito, não havia notado
isso, vai ser uma boa
oportunidade para começar a
sentir.
Reviva esse comportamento
ou sentimento, e veja qual a
parte de seu corpo que fica
sensível. Entre em contato
com a sensação e procure em
seu corpo onde essa
manifestação se manifesta
Repita isso quantas vezes
forem necessárias. Isso
pertence ao nosso
inconsciente, nosso instinto
animal. É a parte que vocês,
humanos, não controlam. São
as sensações automáticas.
São os neurônios e as
sinapses. Os caminhos que
essa reação ao estímulo
percorre. Esse é o primeiro
passo.
“Estou entendendo
perfeitamente.” – atalhou Carlito
– “Então, a primeira coisa a
fazer é localizar a parte do corpo
em que sentimos a sensação
desse comportamento
indesejado”.
Ele assentiu com a cabeça e
prosseguiu, explicando o
segundo passo.
Passo 2 – Comunicar-se com
suas outras partes
Agora vamos ao Passo nº 2:
Inicie uma conversa com esse
seu outro lado. Primeiro,
volte-se para dentro de si
mesmo e peça desculpas a
essa parte do seu ser por não
lhe ter dado a devida
importância até então. Diga-
lhe que agora percebe a sua
real intenção de fazer algo
importante e positivo por
você, mesmo gerando um
sentimento ou
comportamento indesejado.
Converse sobre isso com esse
outro lado, ainda que
desconheça as vantagens que
estará lhe proporcionando
com isso. Sim, porque tudo o
que fazemos na vida,
consciente ou
inconscientemente, visa obter
algum tipo de vantagem. São
milhões de acontecimentos
que formam e formaram a
nossa história,
principalmente os da
infância. E temos consciência
de apenas uma pequena parte
deles. O que não vem à
consciência permanece
alojado nos recônditos do
inconsciente.
Carlito interrompeu
pedindo um exemplo. Ele deu:
Vejamos... Quando uma
pessoa é repreendida, é
comum que ela fique
automaticamente amuada. É
uma sensação sintomática,
inconsciente. Alguns chamam
a isto de “intenção positiva”,
outros de “mecanismo de
defesa”.
Vou abrir um parêntese aqui
para mostrar que, quanto
mais delicado e educado você
for com esse seu lado, mais
ele estará receptivo a se
comunicar com você. Para
que essa comunicação se dê
de forma harmoniosa, basta
fechar os olhos e fazer em
silêncio a seguinte pergunta:
“Será que este meu lado
estaria disposto a se
comunicar agora comigo, de
maneira consciente?” Em
seguida, observe o que vê,
ouve ou sente. A ideia pode
lhe parecer estranha, mas
não importa; apenas observe
o que acontece.
Geralmente, recebemos
vários sinais do nosso lado
inconsciente. Pode ser a
imagem de uma pessoa ou de
um animal que sacode a
cabeça, uma cor ou uma
forma, sons ou palavras
aleatórias. Muitas pessoas
têm algum tipo de sensação
no corpo — um repuxamento
na espinha, calor nas mãos
ou no rosto, aumento dos
batimentos cardíacos, ou
algo fora do comum. Talvez a
pessoa esteja sentindo aí
algum aspecto de antigas
reações em relação a um
determinado problema. Por
exemplo, se estiver
trabalhando com um lado
que esteja deixando você
zangado ou amargurado,
talvez sinta um ponto de
tensão no estômago ou um
aperto no coração. Alguns
sinais são tão específicos e
surpreendentes que intuímos
imediatamente a existência
de um outro lado nosso que
está querendo se comunicar.
Às vezes, os sinais enviados
por ele podem assumir a
forma de pensamentos e
imagens normais. Seja lá
como for, assim que
conseguir obter um sinal,
pare para agradecer a este
seu lado por estar tentando
estabelecer uma
comunicação. Considerando
que a remodelagem atua em
conjunto com os lados
“inconscientes” das pessoas,
é muito importante
permanecer atento à forma e
à força dos sinais, de modo
que possa repeti-los depois
através de um esforço
consciente. Isso lhe dará a
certeza de que não estará
enganando a si próprio.
Tente, sempre que possível,
imitar conscientemente o
sinal recebido. Se não
conseguir, não tem problema,
o sinal é válido de qualquer
maneira.
Caso consiga repetir o sinal,
diga simplesmente ao seu
lado interior: “Para que eu
possa ter certeza de que
estou me comunicando com
você, preciso receber um
sinal que esteja realmente
fora do meu controle. Como
consegui repetir o sinal que
você acabou de me enviar,
por favor, escolha um outro
que eu não consiga repetir.”
Assim, a cada vez que o lado
interior se comunicar,
agradeça-lhe a resposta —
mesmo que ainda não a
compreenda bem. O que quer
que veja, ouça ou sinta como
resposta à sua pergunta é de
suma importância. É
necessário saber o que
significa o sinal, saber
quando o lado que se
comunica está dizendo
“sim” ou “não”. Você
mergulhar dentro de si e
perguntar: “Para que eu
possa saber exatamente o que
você quer dizer, se isto é um
‘sim’, se está disposto a se
comunicar comigo em nível
consciente, por favor,
aumente o sinal em
luminosidade, volume ou
intensidade. Se você quer
dizer ‘não’, que não está
disposto a se comunicar, por
favor, diminua o sinal.”
Normalmente, o sinal deve
aumentar ou diminuir, e não
importa qual seja a resposta.
Se o seu lado interior enviar
um sinal de que não deseja se
comunicar, ainda assim é um
tipo de comunicação.
Quase sempre, esta
mensagem quer dizer
simplesmente que existe um
tipo de informação que esse
seu lado não quer comunicar,
e, neste caso, não há
necessidade de comunicação.
E aqui termina o 2.º Passo.
– disse Ele – Creio que
você entendeu, Carlito.
Alguma dúvida?
Carlito , mostrando-se
muito interessado em tudo o que
ouvia, tentava recapitular o que
Ele já havia explicado: “Quer
dizer que, primeiramente,
procuramos identificar a parte
do nosso corpo onde o
comportamento indesejável se
manifesta. Depois, perguntamos
a essa parte afetada se ela quer
se comunicar. Correto?”
Correto! - respondeu Ele - E
agora avancemos ao 3º Passo.
Passo 3 – A intenção positiva
O 3º. Passo consiste em
separar o comportamento
da intenção positiva...
Carlito interrompeu,
dizendo que não era a primeira
vez que Ele mencionava a
expressão “intenção positiva”,
insinuando que gostaria de
conhecer melhor o significado
desse termo. E Ele abriu um
novo parêntese para explicar ao
menino o que era a “intenção
positiva”.
Todo comportamento guarda
em si uma intenção positiva.
Sempre. Pelo menos, do
ponto de vista de quem o
pratica. Reconhecer este fato
pode ser a solução para a
maioria dos problemas de
relacionamento.
Imagine uma criança que
finge estar com dor de
barriga para não ir à escola.
Provavelmente, ela está
tentando se proteger de algo
(uma prova, uma briga) ou
buscando algum ganho
(brincar, jogar futebol) com
isso. Para resolver o
impasse, o primeiro passo é
conhecer qual é a intenção
positiva que está por trás do
comportamento da criança.
Ou seja, conversar com ela
para saber o que ela ganha
se ficar em casa e o que
poderia perder se fosse à
escola. Imagine que a
criança afirma que não quer
ir à escola porque alguns
colegas ameaçaram lhe dar
uma surra. Neste caso,
poderíamos dizer-lhe algo
como: “Entendo que você
não queira apanhar. É muito
ruim apanhar.” Com estas
palavras, estamos mostrando
à criança que reconhecemos
a intenção positiva de seu
comportamento e que damos
valor a ela. Então
continuamos: “E o que você
poderia fazer para poder ir à
escola e não apanhar?” Aqui
estamos buscando
alternativas junto com a
criança.
Reconhecer a intenção
positiva, reconhecer seu
valor e buscar alternativas.
Esta sequência de atitudes
pode resolver a maioria dos
problemas entre as pessoas.
Quando vocês, humanos,
forem capazes de reconhecer
a intenção positiva que
existe no comportamento de
cada um, serão realmente
capazes de amar uns aos
outros, como outrora ensinei.
Fica mais fácil entender o
outro quando nos colocamos
em seu lugar, olhamos a
situação com os olhos dele e
conhecemos o porquê de suas
ações. Desta forma, mesmo
desaprovando o
comportamento do outro, não
deixaremos de gostar dele.
Passaremos a dizer que
Fulano ‘está’ e não que ‘é’
chato, agressivo,
desanimado, ou o que seja.
Separamos, assim, a pessoa e
seu valor de seu
comportamento.
Carlito pediu para Ele se
estender um pouco mais nesse
assunto. E Ele prosseguiu:
Ao longo do dia, as pessoas
processam milhares de
pensamentos e condutas
diferentes. Desde a hora que
vocês, humanos, se levantam
até o final do dia, realizam
ações diferentes, algumas
conscientes e outras - a
maioria - inconscientes.
Vocês, humanos, carregam
em si milhares de aspectos
que se complementam
mutuamente. A estes
diferentes aspectos de uma
mesma pessoa chamamos
‘partes’. As condutas apenas
sinalizam que alguma destas
partes está tentando
comunicar. Porém, uma coisa
é a conduta em si, e outra,
muito diferente, é sua
intenção. Muitas vezes
ocorre de, depois de fazerem
algo que tenha prejudicado
alguém, vocês se lamentarem
dizendo: “Minha intenção
era boa!” É preciso separar
a conduta da intenção.
As consequências da conduta
não têm nada a ver com a
intenção. Ante uma situação
concreta, há uma parte que
se inclina à ação, outra que
tem medo das consequências
e uma terceira que se
preocupa em evitar danos a
terceiros. Em cada uma
dessas três partes há uma
intenção positiva, ainda que,
provavelmente, a pessoa não
esteja consciente disso.
Imaginemos uma pessoa que
beba em excesso. Beber é
uma conduta negativa, já que
as consequências desse
hábito são nefastas. Mas
vejamos o que pode ocorrer,
se analisarmos a fundo essa
conduta. Beber pode ter para
essa pessoa uma intenção
positiva, mesmo que a
conduta não o seja. Talvez
lhe reduza a ansiedade de
uma vida pouco afortunada,
talvez lhe proporcione
atenção por parte de algum
familiar, talvez evite uma
possível depressão... Essa
conduta inadequada pode
estar ajudando, inclusive, a
uma terceira pessoa - por
exemplo, a reação de sua
parceira. Qualquer terapia
com alcoólicos (ou com
pessoas que sofrem de
alguma dependência) que
pretenda alcançar bons
resultados deve levar em
conta esta intenção positiva.
Nas relações interpessoais
há sempre uma intenção
positiva. Vocês, seres
humanos, fazem as coisas
com uma finalidade
determinada, mesmo que a
conduta possa ser
inadequada, ou mesmo
destrutiva. O que falo aqui
não se trata de aprovar uma
conduta negativa, mas de
reconhecer a intenção
positiva. O importante é
manter a intenção positiva,
mas mudando a conduta não
apropriada. Reconhecer o
aspecto positivo na intenção
de uma conduta nos permite
iniciar um processo de
comunicação com essa parte.
A mudança se inicia quando
reconhecemos a parte que
está gerando uma conduta
não apropriada e buscamos
sua intenção positiva. Se só
modificarmos a conduta, o
problema voltará em pouco
tempo. Um exemplo: você
resolveu emagrecer mudando
sua conduta alimentícia?
Pois agindo assim estará
garantido o seu fracasso.
Analise primeiro qual é a
intenção positiva de seu
excesso de peso, e a solução
virá por si só.
Voltando então ao início do
Passo nº 3, é preciso separar
o comportamento da
intenção positiva. Este é o
momento de saber distinguir
o comportamento ou reação
do lado interior de seu
objetivo ou intenção
positiva. É importante
lembrar que partimos do
princípio de que,
independente de o lado
interior estar gerando
reações indesejáveis, ele só
está se comportando desta
forma em função de um
propósito positivo
importante. Vá para dentro
de si mesmo e pergunte a
esse seu lado: “Você está
disposto a me informar o que
há de positivo quando me faz
ter esse comportamento
indesejável?” Ele pode lhe
responder com o mesmo sinal
de ‘sim’ ou ‘não’,
mencionado no Passo nº 2.
Se o seu lado interior disser
‘sim’, agradeça-lhe e
pergunte-lhe se deseja
esclarecer o motivo. Se ele
disser ‘não’, agradeça-lhe
também e diga-lhe que você
está partindo do princípio de
que ele deve ter suas razões
para não lhe esclarecer o
motivo nesse momento.
A ressignificação fornece às
pessoas um meio de obter
diretamente a resposta
fornecida pelo lado interior.
Caso não tenha certeza do
que ele está tentando dizer
ou mostrar, você pode usar o
sinal de ‘sim’ ou ‘não’ para
identificar a resposta. Por
exemplo, pode-se dizer
mentalmente: “Acho que sua
intenção positiva é me
ajudar a ser bem-sucedido.
Por favor, dê um sinal de
‘sim’, se for verdade, ou de
‘não’, se eu estiver
enganado.” Cada pessoa
recebe mensagens que são
válidas apenas para ela
mesma e que podem divergir
completamente no caso de
outras pessoas. A enxaqueca
pode conter uma mensagem
diferente, dependendo de
quem a sente. Não devemos
tentar adivinhar o que os
lados interiores dos outros
estão tentando manifestar,
nem ousar dizer à nossa
outra parte o que achamos
ser um propósito. Caso
receba um “propósito
positivo”que não lhe agrade
ou que lhe pareça negativo,
agradeça ao seu lado pela
informação. Em seguida,
pergunte-lhe: “O que quer
fazer por mim de positivo
com essa atitude?” Continue
a fazer esta mesma pergunta
até obter um propósito
positivo com o qual esteja de
acordo. Até aqui, nos
referimos a esse lado
interior de “o lado que
desencadeia um
comportamento indesejado”.
Mas a partir de agora,
depois que conseguimos
reconhecer e aceitar sua
intenção positiva, podemos
nos referir a ele como “o
lado que quer ter um
comportamento desejado”.
Carlito O interrompeu
para fazer outra breve
recapitulação: “Localizar a parte
do corpo em que se manifesta o
comportamento indesejável,
puxar conversa com esse lado e,
se essa parte aceitar o diálogo,
separar a intenção positiva desse
comportamento indesejado.”
Passo 4 – Descobrir
alternativas
Após concordar com Carlito, Ele
prosseguiu com os ensinamentos,
dando início ao Passo 4:
O próximo passo é descobrir
novos comportamentos ou
reações. Peça mentalmente
ao seu outro lado que
responda com um ‘sim’ ou
um ‘não’ à seguinte
pergunta: ‘Se houvesse
outras maneiras que você
considerasse como positivas,
gostaria de usá-las?’
Se seu lado interior
compreender o que você está
dizendo, a resposta será
sempre ‘sim’. Você está lhe
oferecendo melhores opções
para conseguir o que deseja,
sem eliminar a sua antiga
maneira de agir. Se obtiver
uma resposta negativa, isto
significa apenas que esse
lado não entendeu o que
você está lhe oferecendo.
Neste caso, tente explicar a
situação mais claramente,
para que ele possa entender
e concordar. A partir de uma
resposta positiva, você vai
gerar maneiras alternativas
de satisfazer a intenção
positiva. Mergulhe dentro de
si mesmo e peça a esse seu
lado que pretende o
comportamento desejado que
“entre em contato com o
lado criativo e diga-lhe qual
é a sua intenção positiva,
para que ele possa
entender”. Convide seu lado
criativo a participar. Assim
que a intenção positiva ficar
clara, comece a criar outras
possibilidades para atingir
esse propósito, e comunique-
as ao lado que a deseja.
Algumas dessas
possibilidades não vão
funcionar, outras talvez
funcionem parcialmente, mas
boa parte delas pode
funcionar às mil maravilhas.
A função do lado criativo é
examinar rapidamente as
possibilidades, de forma que
o outro lado possa escolher a
que julgar mais conveniente.
O lado que está pedindo o
comportamento desejado, ou
seja, o lado crítico, poderá
então selecionar novas
maneiras tão boas ou
melhores aquelas presentes
no comportamento
indesejado para alcançar o
seu propósito positivo. A
cada vez que selecionar uma
escolha melhor, ele
sinalizará com um ‘sim’.
Quando tiver recebido três
sinais positivos, agradeça
tanto ao seu lado criativo
quanto ao lado crítico o pela
ajuda que acaba de receber,
mesmo não sabendo
conscientemente quais são
suas novas opções.
Carlito se pronunciou,
resumindo o conteúdo dos
passos que aprendera até então:
1) localizar a parte do corpo em
que se manifesta o
comportamento indesejável; 2)
puxar conversa com esse lado e,
se essa parte aceitar o diálogo,
separar a intenção positiva desse
comportamento indesejado; 3) e,
partir daí, criar alternativas de
comportamento desejado,
mantendo a intenção positiva.
Passo 5 – Sim ou não?
Mais uma vez, Ele acenou
positivamente para Carlito, e
continuou:
O 5.º Passo é muito simples.
Pergunta-se ao lado que
deseja o comportamento
positivo: “Você está
realmente disposto a usar
essas novas opções nas
situações apropriadas, para
descobrir como elas vão
funcionar?” Peça a esse
lado que responda com o
sinal de ‘sim’ ou de ‘não’.
Se entender um ‘não’,
descubra qual é a objeção.
Volte então ao Passo 4 para
obter novas opções que
satisfaçam à objeção, até o
lado com o qual está se
comunicando concordar,
emitindo um sinal de ‘sim’.
Quando esse sinal for
emitido, avança-se para o
passo seguinte, que já vou
explicar.
Carlito o interrompeu
novamente, deduzindo que, além
dos passos já citados, o seguinte
deveria estar relacionado à
concordância com as opções
oferecidas. Ele aprovou
novamente e prosseguiu:
Passo 6 – Verificar a coerência
O Passo n.º 6 consiste em
verificar a coerência
interna; se o lado que deseja
o comportamento desejado
(lado crítico) está satisfeito,
agora que há novas opções.
Pergunte mentalmente,
então, aos seus outros dois
lados (lado criativo e lado
inconsciente): “Algum de
vocês tem alguma objeção às
novas opções?” Se não
receber qualquer sinal
interior, o processo está
completo. A partir do
momento em que todos os
lados estiverem de acordo,
você irá, automaticamente,
agir por meio de novas e
mais eficientes maneiras.
Carlito quis saber como
funcionava essa “coerência
interna”. E Ele explicou:
O ser humano é um sistema
complexo e organizado. Ele
é um todo, um conjunto
composto por várias partes
interdependentes que
buscam o equilíbrio. A
coerência interna nada mais
é do que o equilíbrio dessa
interdependência entre as
partes.
Todos vocês, seres humanos,
tem uma coerência interna,
que garante a manutenção e
o equilíbrio de seu sistema.
Um exemplo desta
coerência, que sempre atua
a favor, são aquelas
mudanças que vocês querem
realizar mas não conseguem.
Nestes casos, é como se
sentissem que algo os
impede, os bloqueia.
Muitas pessoas se revoltam
contra si mesmas e chegam
a sentir raiva por não
conseguirem efetivar
determinadas mudanças. Na
verdade, a coerência interna
sempre as protege. O que
aconteceria se alguém, de
repente, fosse impedido, por
si mesmo ou por outrem, de
obter um prazer, mesmo
sabendo que este é
proveniente de
comportamento indesejado?
Por exemplo: fumar.
Ocorreria um desequilíbrio
grave, e todo o sistema seria
afetado, prejudicando
também outras partes.
Exagerando um pouco, esta
pessoa, ao se ver privada de
um hábito que a deixava
alegre (o cigarro), poderia,
por consequência, perder
também motivação para
trabalhar, resolver
problemas, sair com os
amigos.
O que fazer então?
Desenvolver outras
alternativas que garantam o
mesmo prazer
proporcionado pelo cigarro,
mas que não sejam nocivas à
saúde e ao equilíbrio do
sistema, ou seja,
alternativas coerentes. A
prática de exercícios é uma
delas. Porém, se alguém que
detesta atividades físicas, se
propõe a fazer exercícios
para compensar a falta do
cigarro, a medida não irá
funcionar, já que a
alternativa não é coerente.
Gerará objeções na parte
que é avessa a exercícios.
Também não funcionaria o
recurso de prometer a si
mesmo um prêmio, ao final
de um ano, comprado com o
dinheiro que seria gasto com
cigarros. Não seria
coerente, pois a alternativa
deveria proporcionar um
prazer imediato, como o
cigarro, e não no prazo de
um ano. Portanto, há que se
procurar uma opção
coerente, algo que lhe dê o
mesmo prazer do cigarro,
sem ser prejudicial à saúde.
Há pessoas que
desconsideram sua
coerência interna, que
tentam sabotar as partes
internas que fazem objeções
à mudança pretendida. É o
caso daqueles que trancam o
maço de cigarros à chave,
saem de casa sem levá-lo
consigo, impondo-se
verdadeira guerra interna.
Há, ainda, aquelas pessoas
que querem emagrecer, e
para isso usam a chamada
força de vontade. Como o
próprio nome diz, trata-se
de uma força. Só que neste
caso ela é usada contra a
pessoa, contra aquela parte
interna que quer comer.
Trava-se aí então uma
batalha interna, da qual ora
uma, ora outra parte sairá
vitoriosa. Com isso, essa
pessoa vai engordar e
emagrecer por sucessivas
vezes.
Considerando que o sistema
de vocês, humanos, busca o
equilíbrio, se ele for privado
de algo por um certo tempo,
tentará recuperá-lo em um
outro período.
Redescobrir
Carlito ouvia-O fascinado. Sua
forma de falar era tão clara e
sábia, que a vida parecia
assumir um novo sentido, à
medida que ele prosseguia:
É como se a parte que quer
emagrecer e a parte que
quer comer vivessem
disputando o poder, e, a
cada período, uma delas
assumisse o controle da
situação.
Melhor seria se elas
entrassem num acordo, de
forma que a intenção
positiva de ambas fosse
respeitada e que elas não
mais se interrompessem.
Neste caso, caberia a
pergunta: “O QUE,
QUANTO e QUANDO vou
comer para pesar tantos
quilos”? “QUANTO preciso
comer para poder emagrecer
tantos quilos em tantos
dias?”
Ou então se cada uma das
partes buscasse uma outra
alternativa para conseguir
realizar sua intenção
positiva. Poderíamos
perguntar a essas partes:
“Existem outras formas de
obter prazer e alegria além
de comer?”ou “Existem
outras formas de perder
peso além de reduzir a
quantidade de alimentos
ingeridos?”
Por exemplo, se a parte que
quer comer para satisfazer a
intenção positiva de
preencher aquele vazio que
sente falta de afeto (ou de
alegria, carinho, atenção,
novidades, etc). concordar
em obter este afeto através
do contato com amigos de
verdade (e não mais com o
“amigo imaginário” que o
alimento representava), ela
perceberá que não lhe será
negado aquilo que buscava
(o afeto), apenas mudará a
fonte através da qual o
recebe.
Conclui-se assim que,
sempre que alguém está
diante de uma questão como
“Quero mas não consigo
“ou “Quero X, mas Y me
impede”, esse alguém está
vivendo um problema de
coerência interna. Neste
caso, é necessário conhecer
todas as partes envolvidas
na questão para que se
encontre uma alternativa
satisfatória para todas elas,
uma alternativa que seja
coerente, o que equivaleria
a um acordo entre as partes.
Além disso, é necessário
resignificar (redescobrir o
verdadeiro significado,
atribuir um novo significado
a) a comida, o cigarro. No
caso da comida, por
exemplo, deve-se separar o
sentido de ‘afeto’ e do de
‘alimento’, de modo a
perceber que receber afeto
não é equivalente ao prazer
gustativo – que não deixará
de existir, nem de ser
apreciado.
Carlito agradeceu muito
por todas aquelas sábias
informações, e teceu algumas
considerações. Comentou que, o
fato de olharmos apenas para os
comportamentos e sentimentos
que nos desagradam, acaba por
impedir que gostemos de nós
mesmos e dos outros. E que a
ressignificação nos ajudava a
sermos receptivos a cada um
desses comportamentos e
sentimentos, graças aos seus
propósitos positivos. “Quando
estamos nos sentindo infelizes,
culpados, zangados ou
embaraçados” – dizia –, “ao
invés de nos criticarmos por
esses sentimentos indesejáveis,
podemos aceitá-los e descobrir
qual o propósito positivo de
cada um deles. Na medida em
que formos descobrindo outras
formas de atingir esses objetivos
positivos, entenderemos que os
sentimentos desagradáveis ou
comportamentos problemáticos
não serão mais necessários.”
Com a expressão satisfeita,
Ele elogiou a observação de
Carlito e pediu-lhe um resumo
de tudo que ele havia entendido
sobre esses 6 passos. O menino
então os enumerou, ressaltando a
essência de cada um deles:
Esse método serve para mudar
um comportamento
indesejado, e pode ser
resumido da seguinte forma:
reviva esse comportamento;
entre em contato com a
sensação e procure em seu
corpo onde ela se manifesta.
Peça para se comunicar com
ela. Se o pedido de
comunicação for aceito,
pergunte o que esse
comportamento lhe traz de
bom (intenção positiva).
Pergunte-lhe, se houvesse
outras boas opções, como
seria? Se ela aceitaria outras
ideias? Se sim, chame o seu
lado criativo e deixe que esse
lado apresente novas
alternativas. A parte
indesejada vai experimentar e
sentir qual ou quais
alternativas lhe caem melhor.
Por fim, integre as duas
partes, juntando as mãos, e
pergunte se, no futuro, o
comportamento poderá ser
outro.
Com estas palavras, o
aprendizado do dia se encerrava.
Carlito ajoelhou-se para a
oração final e Ele voltou à cruz.
16

Recapitular
Na segunda tentativa de
descobrir as misteriosas
escapadas do irmão, Junior, ao
vê-lo se dirigir ao quartinho do
Irmão Tadeu, disparou em
direção à outra saída, entrou na
capela e ficou dentro do
confessionário aguardando
Carlito. Não tardou para que este
ali chegasse. Atravessou a
portinhola, subiu a escadinha e
entrou na Clausura. Junior o
seguiu até aí, mas permaneceu do
lado de fora, muito intrigado.
Quando Carlito se ajoelhava
para fazer a oração inicial, o
irmão não resistiu e entreabriu
levemente a portinha. Para sua
surpresa e espanto, viu quando
Jesus Cristo saiu da cruz e
caminhou até Carlito. Viu quando
os dois se sentaram para
conversar e reconheceu a voz do
irmão, dizendo:
Queria hoje, Mestre, recapitular
tudo o que aprendi sobre a
Ressignificação. Tenho
utilizado diariamente todos os
seus ensinamentos. E sei que
estou indo bem. Se não se
importasse, gostaria que
resumisse todas as conversas
que tivemos nesses dias. Um
resumo geral seria importante
para que eu fixasse melhor
todo esse grande aprendizado.
Junior, ali à espreita, ouvia
a tudo atentamente. Viu quando o
Mestre iniciou sua preleção,
resumindo os ensinamentos
repassados a Carlito:
Vamos ao resumo do nosso
aprendizado, então.
Ressignificação é o método
utilizado para fazer com que
pessoas possam atribuir novo
significado a acontecimentos
através da mudança de sua
visão da vida. Existem várias
técnicas para fazer com que
as pessoas percebam o mundo
de uma maneira mais
agradável, proveitosa e
eficiente.
O significado de todo
acontecimento depende da
maneira pela qual o vemos.
Quando mudamos essa
maneira, mudamos o
significado do
acontecimento, e a isso se
chama ‘ressignificar’. Ou
seja, modificar a maneira
pela qual uma pessoa percebe
os acontecimentos, a fim de
alterar o significado deles.
Quando o significado se
modifica, as respostas e
comportamentos da pessoa
também se modificam.
A ressignificação é um
elemento chave para o
processo criativo,
significando a habilidade de
situar o evento comum numa
maneira útil ou capaz de
propiciar prazer. Através da
ressignificação, podemos
aprender a pensar a vida de
outro modo, vislumbrar novos
pontos de vista ou levar
outros fatores em
consideração.
Na prática, ser capaz de
ressignificar é aprender a
observar que todas as
circunstâncias na vida podem
ser compreendidas. Na
realidade, todos nós
ressignificamos muitas coisas
todos os dias,
imperceptivelmente. O ideal é
que aprendamos a fazê-lo
conscientemente.
Enfim, ressignificação é a
habilidade que temos de
atribuir um significado
positivo, satisfatório, para
um acontecimento que muito
nos incomoda ou prejudica.
De tal forma que, após
ressignificado, passamos a
encará-lo com muita
tranquilidade, chegando até
mesmo a agradecer por
essas "oportunidades de
crescimento".

Carlito agradeceu, se
despediu e ajoelhou-se para a
oração final. E Ele, como
sempre, voltou para a cruz.

O desfecho

Após presenciar tudo aquilo,


Junior ficou desorientado. A
inveja transformou-se em ódio.
Agora ele entendia por que seu
irmão sabia tantas coisas. A
inveja se apoderou de Junior de
forma tão irracional, que ele
pegou um taco de basebol que
alguém deixara perto da escada e
entrou na Clausura furioso.
Carlito ainda fazia a oração
final, ajoelhado, quando Junior
invadiu o recinto.
Não houve tempo sequer
de Carlito virar-se para ver o
que acontecia. Sentiu apenas o
golpe fulminante na cabeça. Uma
agressão tão violenta que a
morte foi instantânea. Não houve
uma gota de sangue, apesar da
força. Apenas um afundamento
do crânio, porém letal.
Quando Junior caiu em si
e notou o estrago que havia feito,
apavorou-se. Em estado de
choque, bateu a porta e
abandonou o local, colocando o
bastão no lugar onde o tinha
encontrado. Pálido e trêmulo,
saiu em disparada para o pátio
da escola. Tão perturbado estava
que nem notou que alguém o
observava pelo buraco da
fechadura. E esse alguém era eu.
Assisti a tudo, atrás da porta que
separava a Clausura do corredor
dos dormitórios dos padres.
Minha presença ali tinha uma
razão: havia notado que algo de
estranho devia estar acontecendo
entre os irmãos gêmeos naquele
intervalo de meia hora.
E eu vi. Desolado, vi
com meus próprios olhos quando
Jesus saiu novamente da cruz e
tomou em seus braços o corpo
inerte de Carlito. Flutuavam no
ar. Então Jesus, com Carlito nos
braços, começou a subir.
Ultrapassou o teto, como se não
houvesse para ele nenhum
obstáculo, e desapareceu no
espaço.
Depois daquela visão,
fiquei atônito, sem saber o que
fazer. A única coisa que lembro
foi de ter ouvido uma voz que
parecia vir de outra dimensão,
dizendo para eu me calar
enquanto Junior fosse vivo.
Não é necessário dizer
que, quando notaram a ausência
prolongada de Carlito, foi um
Deus nos acuda. Ele não mais
voltou. Durante um mês, seu
misterioso desaparecimento foi
manchete no jornal Commercio
do Jahu. A polícia procurou por
todo o país. Acionaram até a
polícia internacional. E ninguém
soube informar o que aconteceu.
Misteriosamente, a
imagem do Cristo pregado na
cruz, que havia na Clausura,
também havia desaparecido. A
cruz estava vazia. Naquele dia,
quando os padres se
alvoroçaram quando deram por
conta do sumiço dessa estátua.
Era tudo muito estranho e sem
sentido. Se a imagem tivesse
sido roubada por ladrões, estes
teriam levado também a cruz,
cujo valor era até maior que o da
própria estátua, por ter sido
esculpida em madeira rara. Dar
parte na polícia? Não, não
valeria a pena. Preferiram
acreditar na versão de que a
estátua de Nosso Senhor foi
levada por algum religioso
fanático, e simplesmente
mandaram fazer uma nova estátua
para ocupar o lugar da original.
Epílogo
Neste momento, sinto um
profundo alívio por ter, enfim,
contado tudo o que sabia sobre o
misterioso desaparecimento de
Carlito. Durante mais de meio
século, carreguei sozinho este
segredo. E dele me só me
libertei porque acabei de receber
um telefonema do Mosteiro de
San Martin Pinario, na Espanha,
comunicando a morte do padre
Leandro Ludeño, naquele país.
Anos depois daquela
tragédia, Junior foi ordenado
padre e trocara de nome, como
exigia a ordem religiosa em que
ele ingressou, a CFP -
Congregação dos Irmãos dos
Pobres de São Francisco
Seráfico. Saiu do Brasil e foi
para o convento espanhol, e ali
permaneceu, passando a maior
parte do tempo na clausura.
Provavelmente, para se
penitenciar pelo assassinato do
irmão.
Com a morte de Junior,
fiquei livre para contar tudo o
que eu sabia. De alguma forma,
sentia-me atrelado à sua história
e ao seu segredo, o que era uma
espécie de fardo. Desde aquele
fatídico acontecimento, passei a
acompanhar os passos de Junior.
Quando ele ainda vivia no
convento aqui no Brasil,
mantinha-me sempre informado
sobre sua vida. Após a morte dos
pais, ele se transferiu para a
Espanha. Mas continuei a
acompanhar sua vida de longe.
Sabendo que não tinha mais
qualquer parente vivo, em uma
de minhas viagens à Espanha, fui
até o convento em que ele se
enclausurara e deixei meus
dados na Diretoria, pedindo para
ser avisado sobre qualquer
ocorrência com Junior, ou
melhor dizendo, com o padre
Leandro Ludeño. E aqui termina
essa história.
Os fatos aqui expostos são
parcialmente ficcionais e
parcialmente verdadeiros. Caso
o leitor queira se certificar, basta
consultar nos arquivos alguns
exemplares do jornal Commercio
do Jahu, de mais de meio século
atrás. Ali poderão ser lidas as
tristes manchetes sobre o
desaparecimento de Carlito.
Também comprova a morte de
Junior o boletim de óbitos
ocorridos na semana passada
naquele mosteiro espanhol.

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