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UNIVERSIDADE FEDERAL DO ESPÍRITO SANTO

PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM EDUCAÇÃO

MAURÍCIO ABDALLA GUERRIERI

Educar para a cooperação:


a nova racionalidade e as perspectivas para a
educação crítica

v. 1

Tese apresentada ao Programa de Pós


Graduação em Educação da
Universidade Federal do Espírito Santo
para obtenção do título de Doutor em
Educação

Linha de pesquisa: Cultura, currículo e


formação de professores.
Orientadora: Prfª. Drª Janete Magalhães
Carvalho

Vitória

2009
MAURICIO ABDALLA GUERRIERI

Educar para a cooperação:


A nova racionalidade e as perspectivas para a
educação crítica

v. 1

Tese apresentada ao Programa de Pós


Graduação em Educação da
Universidade Federal do Espírito Santo
para obtenção do título de Doutor em
Educação

Linha de pesquisa: Cultura, currículo e


formação de professores.

Orientadora: Prfª. Drª Janete Magalhães


Carvalho

Vitória
2009
Para Robson Loureiro e Sandra Della Fonte
AGRADECIMENTOS

É provável que seja menos difícil redigir uma tese do que lembrar de todos
quantos contribuíram para que ela fosse feita, para prestar-lhes os devidos
agradecimentos. Os aportes indiretos não são menos importantes do que os diretos,
mas sua diluição no processo de formação das ideias que precedem a elaboração
da tese torna quase impossível a referência nominal àqueles que prestaram sua
valiosa contribuição. Considerando que nossas ideias, por mais que carreguem o
toque de srcinalidade típico de cada pessoa, são sempre formadas a partir das
ideias de outros, os agradecimentos escritos padecerão eternamente do defeito
incorrigível da ingratidão.
É possível, no entanto, demonstrar a consideração com aqueles que, de uma
maneira ou de outra, estão diretamente envolvidos no processo de redação, que
nada mais é do que o resultado de um acúmulo teórico para o qual muitos
contribuíram.
Em primeiro lugar, agradeço à minha orientadora Janete Magalhães Carvalho
pela tolerância com minha indisciplina e teimosia e pela liberdade que concedeu a
este professor que não foi, nem de longe, um modelo de aluno. Não fosse essa
atitude – não sei se contaria com a mesma tolerância em outros orientadores –
dificilmente esta tese seria concluída. Suspeito que a profª. Janete tivesse alguma
confiança de que o resultado poderia ser positivo e espero não tê-la decepcionado,
mesmo nas partes em que nossas concepções não confluem para as mesmas
ideias. Não quero responsabilizá-la por meus erros, mas, se acertos houver no
trabalho que segue, jamais os haveria se não pudesse ter contado com a liberdade e
confiança com as quais ela me presenteou. Sem contar que seus questionamentos
às partes em que discordamos forçou-me ou a rever algumas ou a incrementar a
argumentação, de forma que as coisas ficassem mais bem esclarecidas.
Sou grato também a Regina Helena Simões, Luiza Mitiko Yshiguro Camacho,
Gaudêncio Frigotto e Romualdo Dias por terem aceitado fazer parte de minha banca
examinadora.
6

Ao Marcos Arruda, agradeço a disposição de ler a tese e o envio de seu livro


inédito, cujo tema é o mesmo deste trabalho. Embora só o tenha recebido quando a
estava concluindo, há grande confluência de ideias, embora em estilos de
abordagem diferentes. Isso não é de surpreender, pois Marcos, bem antes da obra a
que me refiro, foi sempre para mim uma espécie de guia nos caminhos da
cooperação. Andamos com passos diferentes em um mesmo rumo, pois, à minha
maneira, eu sigo suas pegadas! Infelizmente, por desencontros de datas, ele não
pôde fazer parte da banca examinadora.
Agradeço também a Robson e Sandra, aos quais dediquei este trabalho, pela
agradável companhia e salutar troca de ideias que compartilhamos no meu período
de solitário afastamento das atividades docentes. Também a Marinely Magalhães,
pela paciência de ler partes dessas volumosas páginas para tecer seus comentários
e sugestões e por ter acolhido minhas incômodas reclamações nos períodos de
turbulência.
Às minhas filhas, Naiara e Míriam, manifesto minha gratidão por terem
suportado e compreendido o período de reclusão do pai, cuja idade ainda não
justifica o exílio doméstico e o silencioso e constante aprisionamento em um
pequeno quarto de estudos.
Por fim, o maior agradecimento reservo aos trabalhadores e trabalhadoras da
Economia Solidária e àqueles que se unem a esse processo de criação e
fortalecimento de uma outra economia. No fundo, são eles os principais
responsáveis pela existência desta tese.
O relativismo moderno [...] se apresenta como o pensamento da
diferença, do fragmento, do simulacro, do que não tem fundamento
nem finalidade. Mas como deixar-se seduzir por um pensar que
renunciou à busca da verdade e se crê incapaz de qualquer
totalidade? Pois quando o pensamento, frente às questões fortes, se
faz pensamento fraco, então não merece outro nome além de
pensamento covarde. Está aí um claro sinal de decadência de uma
cultura, de uma filosofia de baixo-império.
(Clodovis Boff)

A filosofia que pretende se acomodar em si mesma, repousando


numa verdade qualquer, nada tem a ver com a teoria crítica.
(Max Horkheimer)

O professor criativo não é somente aquele que busca novas tarefas


ou pretende realizá-las de forma pessoal numa área curricular
determinada, mas é quem, além de enriquecer seu conhecimento de
recursos, possui os fundamentos das tarefas que realiza.
(J. Gimeno Sacristán)
RESUMO

A presente tese tem como objetivo defender a pertinência da Teoria


Educacional Crítica diante das transformações pelas quais passaram o mundo e o
pensamento emancipatório nos finais do século XX e início do XXI, revisitando seus
fundamentos teórico-filosóficos e propondo adaptações às novas possibilidades
emancipatórias que se apresentam na contemporaneidade.
Para a consecução desse objetivo, quatro campos de análise são
desenvolvidos, a saber, a justificação do contexto teórico-filosófico no qual é feita a
defesa da Teoria Educacional Crítica; a análise dos fundamentos da teoria crítica e
sua vertente educacional; a investigação sobre as transformações no mundo e no
pensamento emancipatório que exigem revisões e novas proposições; e, por fim, as
proposições possíveis para a Teoria Educacional Crítica à luz das novas
possibilidades de emancipação que surgem das análises anteriores.
A hipótese central é de que a dimensão emancipatória da Teoria Educacional
Crítica deve balizar-se pelas possibilidades emergentes de transformação social
advindas das práticas de cooperação da Economia Solidária e do novoZeitgeist da
cooperação que se conforma na produção teórica em diversos campos da filosofia e
das ciências. A Economia Solidária desponta como a base material possível de um
novo processo civilizatório que deve estar acompanhada da criação de uma nova
racionalidade fundada na cooperação. Essa proposição atribui à educação um papel
estratégico na criação da racionalidade da cooperação
Nesse sentido, uma educação pensada à luz da teoria crítica, para adaptar-se
às novas possibilidades emancipatórias do presente, deve ter o princípio da
cooperação como eixo central de seus fundamentos. Isso traz as implicações para o
pensamento e a prática educacionais, que são analisadas nos capítulos finais da
tese.
ABSTRACT

This thesis aims to defend the pertinence of Critical Education Theory in face of
the changes the world and the emancipatory thought passed in the late twentieth and
early twenty-first, by reviewing their theoretical and philosophical grounds and by
proposing adaptations to new and current emancipatory possibilities.
To achieve this purpose, four fields of analysis are developed, namely the
justification of the theoretical and philosophical context in which one holds the Critical
Education Theory; the analysis of the foundations of Critical Theory e its educational
version; the research on changes in the world and in emancipatory thought which
requires revisions and new proposals; and, finally, the possible propositions for a
Critical Education Theory according to the new possibilities for emancipation which
come out of the previous analyses.
The main hypothesis is that the emancipating dimension of Critical Education
Theory should orientate itself by the emerging possibilities of social change arisen
from the practice of cooperation of Solidarity Economy and the newZeitgeist of
cooperation present in theoretical production in many fields of philosophy and
science. The Solidarity Economy appears as a material ground possible to a new
civilizing process that must be accompanied by the creation of a new rationality
based on cooperation. This proposition ascribes to education a strategic role in
establishing the rationality of cooperation.
In this sense, an education in conformity to a Critical Theory should have the
principle of cooperation as the main point of its grounds in order to adapt to the new
emancipatory possibilities. This has implications for educational thought and practice,
which are analyzed in the final chapters of the thesis.
SUMÁRIO

VOLUME 1
INTRODUÇÃO...................... .............................. ................ ................ ............... ................ .. 12
Objetivo ................ ................ .............................. ................ ................ ............... ................ .. 12
Primeiro passo........................ ................ ................ .............................. ................ ............... 16
I. Sobre a especificidade das teorias sociais em relação às ciências naturais.................... 17
II. Sobre a característica peculiar das teorias educacionais no âmbito das teorias sociais. 37
III. Sobre a dualidade característica da elaboração teórica na modernidade...................... 43
IV. Sobre a dualidade da teoria educacional...................................................................... 56

PARTE I – A TEORIA EDUCACIONAL CRÍTICA .................... ...................... .......... 62


1) ESCLARECIMENTOS INICIAIS ............................................ ................. ................ ......... 63
2) OS FUNDAMENTOS DA TRADIÇÃO CRÍTICA............................................................... 71
2.1. Kant e o idealismo alemão...................... ................ ................ .............................. ........ 73
2.2. A dialética de Hegel .............................. .............................. ................ ................. ......... 77
2.3. O materialismo de Marx........................ .............................. ................ ................. ......... 83
2.4. Especificidades geopolíticas da América Latina............................................................ 97

2.5. Recensão.................. ................ .............................. ................ .............................. ...... 107


3) A TRADIÇÃO CRÍTICA NA EDUCAÇÃO ...................................................................... 111
3.1. O ponto de partida: as teorias da reprodução ............................................................. 112
3.2. Os 3 níveis fundamentais da Teoria Educacional Crítica ............................................ 120
3.3. O caráter propositivo da Teoria Educacional Crítica ................................................... 129
3.4. Recensão.................. ................ .............................. ................ .............................. ...... 153
11

VOLUME 2
PARTE II – OS NOVOS CAMINHOS DA EMANCIPAÇÃO........................................4
4) A DIALÉTICA DA EMANCIPAÇÃO....................... ................ .............................. ............... 5
5) CARACTERÍSTICAS SÓCIO-ECONÔMICAS E POLÍTICAS DO MUNDO ATUAL.......... 11
5.1. Capitalismo financeiro...................... ................ .............................. ................ ............... 19
5.2. Recomposição do sistema produtivo global .................................................................. 23
5.3. Deslocamento do eixo do poder.................................................................................... 27
5.4. Redefinição do papel do Estado ................ ............... ................ ................ .................... 32
5.5. Liberalismo hiperbólico .............................. ............... ................ ................ .................... 35
6) CONJUNTURA E EMANCIPAÇÃO I: LIMITES.......................... .............................. ........ 39
7) CONJUNTURA E EMANCIPAÇÃO II: POSSIBILIDADES ................ ................ ............... 52

8) ECONOMIA SOLIDÁRIA .............................. ............... ................ ................ .................... 57


9) ECONOMIA SOLIDÁRIA E LUTA PELO PODER............................................................ 69
APÊNDICE: EMANCIPAÇÃO E MODERNIDADE .............................. ............... ................ .. 78

PARTE III – EDUCAR PARA A COOPERAÇÃO ..................... ...................... .......... 99


10) O PRINCÍPIO DA COOPERAÇÃO ............................................ ................ .................. 100
10.1. Conceito de racionalidade......................................................................................... 103
10.2. Crise da racionalidade ............................. ............... ................ ................ .................. 109
10.3. Em busca de uma nova racionalidade .............................. ................. ................ ....... 117
11) O PRINCÍPIO DA COOPERAÇÃO E A TEORIA EDUCACIONAL CRÍTICA ................ 124
11.1. Implicações individuais .............................. ................ ................ ............... ................ 131
11.2. Implicações sociais ............................. .............................. ................ ................. ....... 134
11.3. Implicações científicas e ecológicas.......................................................................... 151
CONCLUSÃO......................... ................ ................ .............................. ................ ............. 171
BIBLIOGRAFIA....................... ................ ................ .............................. ................ ............. 178
ANEXO...................... ................ ............... ................ ................ .............................. ........... 189
INTRODUÇÃO

OBJETIVO
O objetivo desta tese é defender a pertinência de uma Teoria Educacional
Crítica diante das transformações pelas quais passaram a sociedade e o
pensamento emancipatório nos finais do século XX. Argumentarei a favor da
urgência de uma Teoria Educacional Crítica renovada, que mantenha intactos seus
aspectos mais fundamentais e adapte suas proposições às demandas apresentadas
pelo presente histórico.
A consecução deste objetivo implica o seguimento dos quatro passos
fundamentais que constituem o corpo teórico da tese. Tais passos são decorrências
necessárias do objetivo proposto e podem ser deduzidos de sua própria proposição,
conforme veremos a seguir.
1) O primeiro passo é justificar o porquê dadefesa de uma Teoria Educacional
Crítica como objetivo da tese. Nenhuma escolha é aleatória, pois revela, na verdade,
uma opção pessoal do investigador. No entanto, tal opção deve ser justificada com
argumentos que legitimem sua pertinência para a pesquisa acadêmica, sua
relevância para o incremento da produção teórica no campo educacional e seus
impactos sociais. Esta é a tarefa da qual me ocuparei ainda nesta introdução.
Embora exija incursões em algumas outras áreas de pensamento e uma exposição
que aparenta desviar-se do foco central, esse primeiro passo é imprescindível para
esclarecimentos metodológicos e conceituais, sem os quais não se pode
compreender o conteúdo da presente tese e seu caráter conscientemente
posicionado no debate teórico e filosófico atual.
2) O segundo passo é a definição do objeto em estudo. O que se pretende
dizer com a expressão Teoria Educacional Crítica? Como ela se desenvolveu no
pensamento educacional e quais são seus fundamentos teórico-filosóficos? A parte I
(que compreende os capítulos 1, 2 e 3) é dedicada à resposta a estas perguntas. O
momento definidor é particularmente difícil, em virtude das inúmeras formulações
que se podem enquadrar no conceito de teoria crítica em educação. No entanto,
13

deve-se esclarecer que esta não é uma pesquisa emhistória da educação, o que faz
com que a delimitação dos traços comuns que caracterizaram a Teoria Educacional
Crítica no pensamento de seus principais representantes seja suficiente para os
propósitos aqui definidos. As imprecisões são inevitáveis quando se quer tratar um
rico campo de reflexão nos limites de uma definição sintética. Sempre haverá
estudiosos (autores ou seguidores) dispostos a não se enquadrar na totalidade da
definição. Isso é absolutamente legítimo, pois a exposição sintética jamais consegue
abarcar todas as nuances teóricas de qualquer movimento de pensamento.
Para superar os entraves decorrentes da definição, a parte I foi elaborada em
íntima relação com as posteriores. Ou seja, trata-se de uma definição que prepara
as reflexões subsequentes e que, por isso, está delimitada por elas. Deve-se,
portanto, acompanhar os capítulos sem a expectativa de se encontrar um compêndio
histórico do pensamento educacional crítico, senão que tão somente uma
delimitação das questões que serão analisadas no restante da tese ou que estarão
em sua fundamentação. Sem dúvida, é preciso justificar, na exposição, que todas as
questões levantadas são relativas à Teoria Educacional Crítica, exigência que, ao
ser cumprida, nos leva a um esboço de sua história e à referência a, pelo menos,
seus expoentes paradigmáticos.
Ainda a respeito do tema da parte I, cumpre tecer uma observação adicional de
grande importância. O capítulo 3 trabalha com algumas ideias que estão abordadas
em inúmeras outras obras e que (ao menos se supõe) já são do conhecimento de
todos os que têm razoável formação teórico-pedagógica. A princípio, tais ideias
poderiam ser dispensadas da exposição e a simples indicação da literatura que

delas trata seria suficiente para os propósitos desta tese. Entretanto, ao ler alguns
autores que pretendem “superar” a Teoria Educacional Crítica por julgá-la
“ultrapassada”, percebi que a forma como muitas vezes a teoria é apresentada não
corresponde àquilo que ela realmente propõe. A maioria das críticas dirige-se a uma
compreensão equivocada da teoria crítica em educação e, por isso, só tem eficácia
em relação à ideia distorcida que dela se construiu. Em virtude disso, para desfazer
os equívocos, foi preciso revisitar “velhas” afirmações e fazer uma contraposição ao
que alguns autores apresentam, de maneira distorcida, como proposições da teoria
crítica em educação. Isso me forçou a estender o capítulo para além do que julguei
inicialmente necessário. Porém, em nome da clareza e precisão, não poderia deixar
14

de esclarecer cada ponto que julgo equivocado, nem me furtar a fornecer razões
para meu julgamento.
3) O terceiro passo, que é tema da parte II (capítulos 4 a 9), é dar respostas a
perguntas quase inevitáveis quando se propõe a defesa de algo: por que é preciso
uma defesa? Que problemas justificam a necessidade de reafirmação da pertinência
de uma teoria? Diante de quais questionamentos se encontra a teoria em defesa?
Conforme foi visto acima, a proposição do objetivo da tese está formulada da
seguinte forma: a defesa da Teoria Educacional Críticadiante das transformações
pelas quais passaram a sociedade e o pensamento emancipatório nos finais do
século XX. A formulação já indica a srcem dos desafios que justificam a defesa:as
transformações na sociedade e no pensamento emancipatório .
Algumas correntes de pensamento afirmam que as referidas transformações
fizeram a teoria crítica perder sua capacidade analítica e propositiva. Tais correntes
utilizam como fundamento uma interpretação inflacionada das consequências das
mudanças pelas quais o mundo tem passado, que supostamente teriam minado a
capacidade de crítica e de proposição das teorias fundadas nos “paradigmas da
modernidade”. Minha tese é, portanto, não apenas uma tentativa de releitura da
teoria crítica à luz das exigências da realidade contemporânea, mas também a
afirmação de que mesmo diante dos alegados impactos devastadores de um tempo
chamado – inapropriadamente, em minha opinião – de “pós-moderno”, a teoria
crítica não só mantém sua capacidade de interpretação e orientação para a práxis,
como também se torna aindamais necessária que em tempos anteriores. Isso nos
leva, necessariamente, à análise de quais são essas transformações e como elas

afetam o objeto em estudo.


A parte II se ocupa em analisar as transformações na sociedade e no
pensamento emancipatório que implicam necessárias mudanças teóricas. Qualquer
teoria que queira relacionar-se com aemancipação social, como é o caso da Teoria
Educacional Crítica, deve acompanhar a dinâmica da sociedade e balizar-se pelas
possibilidades concretas de emancipação e pelas estratégias reais de transformação
social em curso. Ocorre que a sociedade atual não é exatamente a mesma do
contexto no qual foram elaboradas as principais proposições da Teoria Educacional
Crítica. Houve mudanças profundas na forma e nas consequências da exploração
econômica; no papel do Estado – e, consequentemente, na sua função enquanto
lócus estratégico de transformação social –; na articulação das forças hegemônicas
15

na sociedade e, por fim, na dinâmica dos movimentos e lutas sociais. As estratégias


de emancipação precisam (e têm sido) re-elaboradas e isso implica tanto uma
prática diferenciada dos agentes possíveis da transformação social, quanto uma
reflexão teórica adaptada às novas exigências. Nos capítulos 8 e 9 será feita a
defesa da Economia Solidária como estratégia possível de transformação sócio-
econômica, a partir da retomada de reflexões que apresentei no livroO princípio da
cooperação (Abdalla, 2002).
4) O quarto passo é o momento sintético. Diante das questões apresentadas
na parte II, em que sentido é possível defender a pertinência de uma Teoria
Educacional Crítica? Quais as mudanças necessárias em seus fundamentos e em
suas proposições? Como as respostas trazidas nos capítulos anteriores, acerca da
sociedade e do pensamento emancipatório, afetam a teorização sobre a educação e
contribuem para a elaboração teórica crítica? A parte III é o fechamento do ciclo da
reflexão com a proposição do Princípio da Cooperação como eixo de uma teoria
educacional. Isso abre uma série de possibilidades para novas experiências que
podem traduzir, na práxis educativa, os pressupostos teóricos aqui defendidos.
Em função do que foi exposto acima, a revisão dos pressupostos da Teoria
Educacional Crítica sugerida nesta tese difere-se das revisões ensaiadas nos
últimos anos por McLaren e Giroux, que procuram reformular a teoria crítica em
educação a partir das contribuições das teorias pós-modernistas, buscando conciliar
algumas dessas proposições com o caráter emancipatório da teoria crítica, da qual
1
são importantes defensores (ver McLaren, 1993, p. 41-69 e Giroux, 1993, p. 9-40).
Temos, portanto, que da proposição mais simples do objetivo decorrem outras

reflexões que definem quatro campos de argumentação, todos necessários à


consecução do objetivo proposto.

1
Giroux diz, por exemplo, que vivemos em “um mundo que tem pouca semelhança com aquele que
inspirou as grandes narrativas de Marx e Freud” e que a crítica pós-moderna nos situa no interior
desse mundo (1993, p. 42). Que o mundo tenha passado por mudanças profundas desde o tempo de
Marx, isso é algo que não se pode questionar e é um pressuposto também desta tese. Dizer, no
entanto, que o mundo atual guarda “pouca semelhança” com aquele me parece uma hipérbole. Ainda
vivemos sob a hegemonia do sistema capitalista e a sua fase atual mantém, objetiva e
subjetivamente, os eixos básicos desse sistema tão bem analisados por Marx e pela tradição
marxista. As enormes diferenças da fase atual em comparação com seu início guardam uma íntima
relação com o desenvolvimento das potencialidades do capitalismo, e seus efeitos de divisão de
classe ainda são perfeitamente visíveis no terceiro mundo. Além disso, a própria tradição teórica
marxista modificou-se
mundo diferente daquelee no
adaptou-se
qual Marxàs mudanças do mundo, e busca também situar-se em um
viveu.
16

PRIMEIRO PASSO

Esta seção introdutória ocupa-se do primeiro passo (1) descrito acima: justificar
a escolha da Teoria Educacional Crítica como objeto de estudo e o porquê da
assunção prévia da tarefa de argumentar a seu favor. Pode-se objetar que uma

assunção prévia é atitude metodologicamente anticientífica que já condiciona o


trabalho de pesquisa aos limites do que se assumea priori. A atitude supostamente
correta em termos metodológicos seria uma análise isenta que poderia levar,
alternativamente, à conclusão favorável à defesa ou à proposição da necessidade do
abandono da teoria em análise. Tal suposição decorre da extensão dos imperativos
metodológicos das ciências naturais para as ciências sociais. Argumentarei abaixo
sobre a inadequação de tal extensão e sobre como a assunção de um
posicionamento prévio em teorias sociais, e mais especificamente em teoria
educacional, ao contrário de ser umdesvio metodológico, deve ser concebido como
um imperativo metodológico.
O sujeito da teoria social e educacional não é simplesmente um sujeito de
conhecimento, mas um sujeito inserido na sociedade que analisa. A elaboração
teórica está vinculada à sua forma de inserção na sociedade, que acarreia uma
gama de valores, projetos e concepções que, por não serem consensuais e estarem
envolvidos em constantes disputas, inviabilizam qualquer pretensão de neutralidade
e isenção ou a escolha de pontos de partida não-problemáticos que dispensem
justificação.
A argumentação que farei abaixo para sustentar essas últimas afirmações
seguirá por quatro caminhos de reflexão: I) sobre a especificidade das teorias sociais
em relação às ciências naturais; II) sobre a característica peculiar das teorias
educacionais no âmbito das teorias sociais; III) sobre a dualidade característica da
elaboração teórica na modernidade; e IV) sobre a dualidade da teoria educacional.
O seguimento por esses quatro caminhos, ao mesmo tempo em que aduzirá
razões para a escolha do objetivo, preparará o background conceptual e
metodológico a partir do qual se deve ler o conteúdo da presente tese. Ainda que
extensa, a exposição a seguir é imprescindível para situar a tese no debate
contemporâneo e para esclarecer questões que, por seu caráter polêmico, devem
estar previamente compreendidas antes da leitura dos capítulos.
17

I. SOBRE A ESPECIFICIDADE DAS TEORIAS SOCIAIS EM RELAÇÃO ÀS CIÊNCIAS


NATURAIS

Conforme argumenta Thomas Kuhn (1997), as ciências naturais podem


beneficiar-se do compartilhamento de um paradigma e de um relativo (mas
poderoso) consenso teórico que só é rompido em momentos de crise. Nos longos
períodos do que Kuhn designa de “ciência normal”, em que o paradigma dominante
não é posto em dúvida, ciências como a física, química e biologia, podem ser
praticadas uniformemente por cientistas de diferentes inclinações políticas e de
concepções sociais até mesmo contraditórias.2 Isso ocorre pelo fato de seusobjetos
serem passíveis de controle experimental intersubjetivo e de não alterarem seu
comportamento em função de mudanças sócio-históricas. Por isso, torna-se possível
estabelecer teoricamente as regras do comportamento dos objetos, inclusive através
de formalização matemática rigorosa, que serão adotadas por praticamente toda a
comunidade científica de uma determinada época. Mesmo que existam teorias rivais,
é possível a conquista de hegemonia por uma delas, sendo a que fará parte dos
currículos escolares e do ensino superior e orientará o trabalho coletivo de pesquisa
dos cientistas.
As transformações na história humana (compreendida principalmente em seus
aspectos subjetivos) afetam apenas a elaboraçãodas teorias, mas não os objetos
das ciências naturais ou os enunciados factuais que decorrem de experiências bem
controladas. A queda dos corpos e sua proporcionalidade (enquantofatos) não se
alteraram em razão da teoria aristotélica do movimento ter sido substituída pela
gravitação newtoniana e nem por esta ter perdido seu lugar para a concepção de
gravidade einsteiniana. Ainda que mudanças históricas e sociais tenham afetado a
base hermenêutica de interpretação da gravidade e a própria conceituação do
fenômeno, a relação estabelecida entre os corpos com massa na natureza não foi

2
A ciência normal, para Kuhn, é o trabalho cotidiano da ciência e seu ensino regidos por um
paradigma, ou, como ele passou a preferir, uma “base hermenêutica”. É o período consensual a
respeito da aceitação de determinadas teorias científicas basais. Embora, para Kuhn, a compreensão
das concepções de natureza presentes em diversas fases da ciência e na visão de distintas
civilizações só possa ser alcançada por um procedimento hermenêutico, a atividade científica dentro
dessas concepções (ou seja, a prática da ciência normal) não é hermenêutica. Em suas palavras: “[...]
Aquilo que seus praticantes [das ciências naturais] fazem a maior parte do tempo, dado um
paradigma ou base hermenêutica, não é ordinariamente hermenêutico. Ao contrário, eles utilizam o
paradigma recebido de seus professores num esforço que denominei ciência normal, um
empreendimento que teoria
correspondência entre procura resolver quebra-cabeças,
e experiência [...].” (Kuhn, 2006,como os de aperfeiçoar e estender a
p.271-272).
18

alterada. Por isso, a previsibilidade e a criação tecnológica são possíveis, como nos
mostra de forma convincente o mundo moderno e seus inúmeros aparatos que
exigem um conhecimento refinado das leis naturais.3
Tal característica das ciências naturais permite que se dispense,no ato da
pesquisa em períodos de ciência normal, a interrogação acerca dos
posicionamentos sociais e políticos do cientista. Essa afirmação, no entanto, só é
válida quando se pensa no aspecto teórico da ciência, ou naquilo que se chama de
“ciência pura” em contraste com a “ciência aplicada” – com relação a esta última,
uma vez que é impossível desvinculá-la dos imperativos bélicos, industriais e
mercadológicos que a direcionam, torna-se indispensável ao pesquisador
questionar-se sobre o destino dos resultados de sua pesquisa e a quais interesses
seu trabalho pode estar servindo.
Dizer que interrogações de ordem social e política são dispensáveis no ato da
pesquisa em períodos de ciência normal das ciências naturais, em seus aspectos
teóricos, não significa afirmar que a história da ciência não deva ser interpretada à
luz das concepções hegemônicas de sociedade, a fim de compreendê-la como
manifestação, no campo do conhecimento natural, de uma determinada
racionalidade localizada histórica e geograficamente. Ao contrário, as teorias
científicas também refletem o modelo de racionalidade predominante em diferentes
épocas e os cientistas não gozam de imunidade no que diz respeito às disputas
políticas na sociedade. Mas a necessidade de coerência interna e de adequação a
um objeto passível de controle intersubjetivo e com comportamento regular permite
que as teorias em ciências naturais sejam compartilhadas para além das ideias

sociais que possam ser identificadas na srcem de sua base hermenêutica. Um


3
Muitos acreditam que as ideias de “previsibilidade” e “determinismo” foram totalmente banidas das
ciências naturais em função do “princípio de incerteza” de Heisenberg, do comportamento
probabilístico das partículas na mecânica quântica ou pelas teorias da complexidade. Essa ideia
decorre de uma incompreensão das mudanças na física por parte de muitos autores e de uma
apressada empolgação decorrente das proposições nada convencionais da mecânica quântica e das
teorias de sistemas complexos. A previsibilidade sofreu, de fato, mudanças para termos
probabilísticos e estatísticos, mas não deixou de fazer parte da ciência. É justamente ela que permite
que a ciência se transforme em tecnologia, para o bem ou para o mal. Apesar das características
quase “fantasmagóricas” atribuídas amiúde à física quântica, sua aplicação em tecnologia responde
por cerca de 30% do PIB estadunidense (Tegmark & Wheeler, 2001). Esse assunto mereceria um
debate à parte, principalmente devido aos impactos devastadores sobre o determinismo que as
teorias da complexidade realmente tiveram, embora não tenham colapsado a ciência enquanto
tentativa de compreensão rigorosa da natureza. Sobre a compreensão equivocada de proposições
científicas
determinismopor com
partea de filósofos
física e teóricos
quântica, sociais, ver
ver Davidovitch Sokale &
(1998) Bricmont
Omnés (1999); sobre as relações do
(1996).
19

exemplo disso é a teoria darwinista da evolução que, mesmo sendo um reflexo da


concepção liberal do mundo e uma assumida aplicação das ideias de Malthus ao
mundo natural (cf. Darwin, 2003, cap. 3 e Sandín, 2006, p.135-161), é encampada
por biólogos de diferentes matizes ideológicos.4
Por serem passíveis de definições intercambiáveis entre os pesquisadores, os
objetos das ciências naturais e as relações que estabelecem entre eles na natureza
podem ser pontos de apoio não-problemáticos das teorias científicas e, como tal,
gozam de autonomia relativamente às opções políticas e de classe dos cientistas. É
claro, no entanto, que não me refiro a uma autonomia absoluta, como se os objetos
não dependessem do enquadramento subjetivo que lhes dá sentido e os torna
objetos (todo objeto só o é para um sujeito e todo sujeito é orientado por convicções
e interesses – isso tem maiores implicações quando se considera o sujeito social e
não meramente o indivíduo). Refiro-me aqui tão somente às linhas teóricas basilares
que permitem o trabalho científico normal, ou seja, guiado por um paradigma
compartilhado pela maioria da comunidade científica, e às definições consensuais de
seus objetos.
Raramente se encontram problemas na definição do que é um elétron, uma
célula, uma molécula, um planeta, etc. e, quando se os encontram, eles se
restringem a problemastécnicos, jamais ideológicos (por exemplo, o enquadramento
de um organismo a um dos reinos em que se dividem os seres vivos, a definição de
uma propriedade das partículas como ospin, ou a definição de um corpo celeste
como planeta).5
A ciência, ao contrário do que afirmam as interpretações extremistas tanto do

neopositivismo quanto, na outra ponta, do socioconstrutivismo, transita entre o


racional (o rigor das demonstrações e o peso, ainda que relativo, das provas) e o
social (as influências subjetivas da existência humana contingente, determinada
histórica e geograficamente). A absolutização de qualquer uma das dimensões
conduz aos problemas já apontados pela epistemologia do século XX com relação

4
Para um exemplo da contraditória relação de marxistas com o darwinismo ver Viana (2009).
5
Há, no entanto, vertentes da crítica pós-modernista à ciência que postulam ser as próprias
equações da física um reflexo de uma sociedade patriarcal e machista. Sem querer adentrar a
discussão, afirmo somente que considero tais críticas um exagero decorrente da concepção que
reduz toda por
referências, atividade dea Luce
exemplo, conhecimento
Irigaray ema Sokal
uma emera construção
Bricmont (1999, p. discursiva
109-124). arbitrária. Ver as
20

ao empirismo lógico ou ao relativismo inconsequente do Programa Forte do


construtivismo social (cf. Oliva, 2005).6
Essas características das ciências naturais não se estendem, contudo, às
ciências sociais. A diferença no objeto está no cerne da distinção. Por tratarem com
fenômenos que têm como “lastro” a ação humana em sociedade – e, como tais, que
possuem sua objetividade caracterizada por uma subjetividade posta em ação –, as
ciências sociais não lidam com um ponto de apoio autônomo em relação às
mudanças históricas e às outras implicações de caráter subjetivo, como as opções
políticas, classistas, morais e ideológicas do pesquisador.
Thomas Kuhn compartilha dessa concepção (Kuhn, 2006, p. 265-273). Em
suas palavras:

As ciências naturais, embora possam requerer o que chamei de uma base


hermenêutica, não são, elas próprias, atividades hermenêuticas. As ciências
humanas, por sua vez, frequentemente o são e podem não ter alternativa.
[...]. Sustentei antes que os céus gregos eram diferentes dos nossos. Devo
agora
os sustentar
céus que a transição
permaneceram entre eles
exatamente foi relativamente
iguais enquanto a súbita [...] e[que
pesquisa que
ocasionou a transição] esteve em andamento. Sem essa estabilidade, a
pesquisa responsável pela mudança não poderia ter ocorrido. Mas não se
pode esperar por uma estabilidade desse tipo quando a unidade em estudo
é um sistema político ou social (Kuhn, 2006, p.272 e 273).

Alan Ryan (1977) identifica os problemas relacionados à discrepância entre as


ciências naturais e sociais. Um deles refere-se à impossibilidade, em ciências
sociais, da identificação de regularidades no campo de estudo passíveis de serem
formalizadas como regras que irão compor uma teoria científica nos moldes das
ciências naturais. Para o autor, as regularidades encontradas nos fenômenos sociais
não indicam a existência deregras externas que regulam o comportamento humano
em sociedade, mas sim que há regras internas definidas socialmente, cuja
expressão são justamente as regularidades constatadas pelo pesquisador.

6
Essa discussão só pode ser compreendida à luz dos debates atuais em filosofia das ciências e os
desafios a ela apresentados. A reivindicação de exclusividade da sociologia cognitiva para tratar o
empreendimento científico não resolve os problemas da epistemologia contemporânea e não basta
que alguns autores sentenciem a dissolução da racionalidade da ciência no mundo das relações
políticas e sociais para que as ciências naturais se tornem sociais: “Entre o extremo que concebe a
ciência como um sistema formal, justificável por meio de padrões lógico-matemáticos de consistência,
e o que a encara como um processo de produção de ideias tão socialmente determinado como
qualquer outro, transitam os esforços que não se recusam [...] a enfrentar os problemas sempre
desafiadores que se manifestam no âmbito da dimensão semântica da linguagem científica. É vão
propor substituir a Lógica da Ciência, obcecada em especificar requisitos de demonstração lógica e
de
pelacomprovação empírica,” por
natureza do processo enfoques
(Oliva, 2005, p.sociológicos
299). que supõem poder explicar o valor do produto
21

E isso corresponde a afirmar que no caso dos seres humanos – e não no do


restante da ordem natural – temos uma forma de compreensão em termos
de como o agente percebe a matéria, de tal modo que as regularidades que
inicialmente descobrimos são apenas a aparência externa do que podemos
compreender de dentro. (Ryan, 1997, p. 189).

Ryan toma emprestado de Hart o exemplo sobre as relações entre o fluxo do


tráfego de automóveis e as colorações das luzes nos semáforos. A regularidade da
relação “verde” com o fluir do tráfego e “vermelho” com o seu estancamento só pode
ser compreendida como manifestação de uma regra interna criada arbitrariamente
nas convenções sociais de uma determinada sociedade e nunca como relações
regulares de causalidade que nos permitiriam estabelecer regras causais entre as
cores das luzes e o fluxo do tráfego. Para as ciências naturais, ao contrário, tais
regras e a relação de causalidade entre os fenômenos são essenciais para as
teorias.
Os fenômenos sociais só podem ser compreendidos a partir da compreensão
da dinâmica interna da vida social da qual o próprio pesquisador participa ou não.
Para Ryan, isso torna necessário um duplo processo de socialização do cientista
social: o primeiro, com a comunidade científica de sua área, no qual será preparado
para dominar os conceitos e instrumentais teóricos de análise específicos de sua
ciência; o segundo, com a própria sociedade que escolhe como objeto de estudo,
onde tentará compreender a dinâmica interna e os fatores subjetivos que justificam e
dão sentido às regularidades constatadas na pesquisa.
A distinção entre as ciências sociais e naturais poderia dar azo às acusações,
muitas vezes repetidas, de que as ciências sociais se reduziriam a mera “ideologia”,
por não serem capazes de separar, na elaboração teórica, a subjetividade do
pesquisador de seu objeto de estudo. Como tal, não seriam propriamenteciência e,
consequentemente, não veiculariam conhecimentos “verdadeiros”. Ryan tenta
escapar do problema recorrendo à filosofia da ciência de Popper. Sua argumentação
é de que as ciências sociais podem construir hipóteses testáveis, que podem ser
falsificadas ou corroboradas pelo desenrolar temporal dos fenômenos sociais.
Segundo o autor, se as ciências sociais se limitassem à proposição de hipóteses
testáveis, teriam um suporte empírico compartilhável pela comunidade científica e,
assim, garantiriam seu status deciência.
Porém, embora reconheça a diferença entre os dois campos de conhecimento,

a sugestão de Ryan não é satisfatória. O autor se mostra ainda preso a certa


22

tendência cientificista de análise das ciências sociais, pois acredita que a influência
do comprometimento político do pesquisador social poderia tornar sua teoria uma
mera ideologia. Por isso, ele busca um apoio epistemológico que justifique as teorias
sociais como ciência objetiva. Na base desta tendência está a diferença entre
“ideologia” e “verdade” – a primeira, fruto de crenças não testáveis e a segunda,
resultado do escrutínio científico da testabilidade empírica:

Posto que as investigações causais exigem que submetamos todas as


hipóteses apresentadas a teste empírico, a formação institucional da ciência
– incluindo a ciência social – exige que não reconheçamos qualquer
autoridade que não a verdade. Qualquer hipótese pode ser formulada e
suas alegações de verdades consideradas. Estabelecer a verdade por
decreto torna-se, obviamente, prejudicial à prática da ciência e logicamente
incompatível com a atitude científica. Isso, por seu turno, explica porque é
tão errado um intelectual permitir-se engajar num movimento que esposa
um determinado credo: se o movimento considera algumas crenças artigos
de fé – e não seria um movimento político caso não o fizesse – então são
retiradas da arena do escrutínio científico e o cientista cede lugar ao crente.
(Ryan, 1977, p.310).

Contudo, as implicações relativas à “segunda socialização” do pesquisador


social proposta por Ryan não são pequenas, mas ele próprio não foi capaz de levá-
las às últimas consequências. Se o pesquisador deve, antes de tudo, tentar
compreender o objeto de dentro, como se dele fizesse parte ou fazendo parte
efetivamente, sua própria subjetividade (como membro da sociedade ou pesquisador
participante) é colocada como parte constituinte do objeto que pretende estudar.
Como garantir que asua compreensão do objeto, que já está no ponto de partida da
pesquisa, seja livre do seu envolvimento subjetivo com a sociedade, eivado de
crenças, inclinações políticas, ateísmo ou fé, utopias, preconceitos e pré-noções
culturais e étnicas?
Na indicação de uma possível superação desse dilema, que Ryan fornece na
tentativa de livrar as ciências sociais da pecha de ideologia, encontram-se apenas
recomendações gerais de conduta ética do intelectual e de uma vigilância acerca
das influências de sua subjetividade na pesquisa. Mas quando o pesquisador ou a
comunidade dos pesquisadores são, ao mesmo tempo, avaliadores e avaliados
nesse processo, não há como saber quando as recomendações foram realmente
consideradas. Todo pesquisador, na busca pela “objetividade”, se esforçará para
dizer que seguiu todas as recomendações, ao passo que o propositor de uma teoria
rival se esforçará para dizer o contrário a respeito de seu antagonista.
23

Mesmo Ryan reconhece a dificuldade de se construir uma ciência social que


não seja marcada pela subjetividade do pesquisador, mas se apega a uma
esperança que dependeria – caso seguíssemos suas próprias recomendações – de
um teste empírico irrealizável. São as últimas palavras de seu livro:

Pode bem ser extremamente


permanecerem difícil,
objetivos e não quase que
deixarem impossível, aos cientistas
suas esperanças sociais
e temores
tinjam suas crenças; mas há um mundo de diferença entre começar a fazer
algo muito difícil e começar a fazer algo que não faz sentido. O argumento
deste livro é que a ciência social é algo difícil. (Ryan, 1977, p. 320. Grifo
meu).

Mas, não poderíamos considerar que a rejeição da não-cientificidade das


ciências sociais e a defesa de sua objetividade (ainda que difícil) são,
respectivamente, um temor (de se igualarem à ideologia) e uma esperança (de
alcançarem a cientificidade), ambos de caráter subjetivo, que influenciam a própria
crença de Ryan no que devam ser as ciências sociais? Isso indica que talvez a sua
busca por uma ciência social na qual predomine a pura objetividade empírica e a
neutralidade seja não apenas difícil, mas realmente “algo que não faz sentido”.
Vejamos por quê.
A segunda socialização necessária ao pesquisador social exige que ele
penetre subjetivamente no mundo de seu objeto – uma sociedade da qual participa
ou não. Caso participe, seu estudo refletirá a forma como sua participação se
realiza, visto que o ser humano não conhece seu mundo social contemplando-o de
fora, senão que fazendo parte ativamente deste mundo. Se não participa, o
pesquisador enfrentará os limites de compreensão advindos das diferenças de
significação construída pela sociedade estudada e pela sociedade em que ele
próprio vive e foi educado – problema bastante conhecido pelos antropólogos. Para
superar esse limite, é necessário tentar penetrar o universo de significação
construído pelos agentes dos fenômenos tomados como objeto e afastar-se de seu
próprio referencial subjetivo. De qualquer forma, a construção de um ponto de apoio
analítico envolve subjetividades e interpretações que sempre estarão relacionadas
ao lócus do pesquisador. Nesse sentido, os condicionamentos culturais, étnicos,
classistas, políticos e ideológicos estarão presentesde forma decisiva na elaboração
teórica e na pesquisa em ciências sociais.
Ao reconhecer a diferença fundamental entre as ciências naturais e sociais,
Ryan se aproxima da libertação do cientificismo, mas é pego pela armadilha
24

cientificista na qual caiu o próprio Popper – que criticou o positivismo e deu uma
grande contribuição para a crítica do conceito de verdade, mas não quis abrir mão
de uma lógica da pesquisa científica que garantisse a objetividade e a tornasse
possível através de procedimentos empíricos.
Popper argumentou convincentemente a favor da indemonstrabilidade das
teorias científicas. Sua reflexão foi suficientemente forte para influenciar toda a
epistemologia contemporânea.7 Mas, tal como observa Lakatos (1979), um golpe
dessa magnitude não deixa de trazer consequências sérias para a teoria do
conhecimento. Se todas as teorias são indemonstráveis (mesmo nas ciências
naturais), não poderíamos então alegar a inexistência da verdade (ceticismo) e,
sendo assim, toda teoria não passaria de ideologia?
Realmente, vários filósofos e cientistas sociais chegaram rapidamente a essa
conclusão, principalmente porque Thomas Kuhn (1979; 1989) e Paul Feyerabend
(1979; 1993) fizeram críticas convincentes à saída falsificacionista de Popper. Se
somarmos a isso a crítica à possibilidade de um critério não discursivo de fundação
da verdade feita por Wittgenstein, pelo neopragmatismo, por algumas tendências da
filosofia analítica, pela hermenêutica gadameriana e pela filosofia heideggeriana,
temos o ambiente intelectual perfeitamente adequado para a recusa dequalquer
pretensão de verdade e objetividade, principalmente nas ciências sociais (cf.
Habermas, 2004, p. 25-30).
No entanto, antes de cedermos à tentação do ceticismo ou do Programa Forte
do construtivismo social, devemos nos perguntar se reconhecer a presença
inevitável do sujeito na pesquisa social, com tudo aquilo que tal presença acarreia,

significa decretar o fim de qualquer teoria que pretenda dizer algo sobre o mundo
que seja justificado como verdade. Pois, se assim for, não teria sido dado um golpe
mortal à pesquisa e à elaboração de teorias que sejam defensáveis? A filosofia e a
ciência não seriam, então, apenas uma forma de literatura ou um exercício teórico
arbitrário que seguem apenas as inclinações do sujeito?8

7
“O velho ideal científico da epistéme – do conhecimento absolutamente certo, demonstrável –
provou ser um ídolo. A exigência da objetividade científica torna inevitável que todo enunciado
científico permaneça provisório para sempre. Pode-se de fato corroborá-lo, mas toda corroboração é
relativa aos outros enunciados que, novamente, são provisórios. Somente podemos estar
‘absolutamente certos’ de nossas experiências subjetivas de convicção, de nossa fé subjetiva”
(Popper, 1980, p. 123).
8 Rorty (1996, p. 24) afirma que os antirrepresentacionalistas, entre os quais se coloca, "não vêem
sentido em que a física seja mais independente de nossas peculiaridades humanas que a a strologia
25

Minha resposta é que tais conclusões não são necessárias, ainda que se
concorde com os pressupostos que lhes servem de base. Embora a análise do
problema exija mais argumentação do que é possível fazer nesta parte da
discussão, é necessário salientar que o binômioverdade-ideologia foi o fator que
conduziu tanto às tentativas de se estabelecer métodos que garantissem a
objetividade das ciências (Popper, Lakatos e a argumentação de Ryan em ciências
sociais) quanto às alegações de que é impossível um conhecimento com bases
seguras e que, portanto, toda elaboração teórica é absolutamente arbitrária e reflete
nada mais do que os compromissos ideológicos dos pesquisadores.
Se “ideologia”, a despeito de seus diferentes usos, significa, neste caso, o
contrário de “verdade” (no sentido de uma verdadedefinitiva e absolutamente
objetiva), uma vez que este último conceito tenha passado por profundas
reformulações que o deflacionaram, era de se esperar que seu oposto também
perdesse a força. Se, há muito tempo, a verdade incondicional das teorias foi
questionada e a filosofia caminhou para a superação da busca daverdade absoluta,9
isso não deveria significar a vitória da ideologia (sempre compreendida, neste caso,
como o oposto da verdade), mas a derrota (ou enfraquecimento profundo) do próprio
binômio que opõe uma à outra. Sugiro, portanto, que o conceito de ideologianessa
acepção – ou seja, como caracterização geral de qualquer teoria que não seja
objetiva e empiricamente testável e neutra – seja definitivamente descartado, para
que se avance na direção a uma nova definição de critérios para a validade e
pertinência das teorias.10
O que teríamos, então, como critério para justificar a pesquisa e a elaboração

de teorias sobre fenômenos sociais, uma vez que não podemos considerá-las nem
como busca da verdade absolutamente objetiva e neutra, nem como apenas um
exercício discursivo arbitrário ou manifestação de uma ideologia particular?

ou a crítica literária"; e considera “a crítica literária e a física como produzindo verdade, e referência,
exatamente do mesmo tipo” (Rorty & Ghiraldelli Jr, 2006, p. 116).
9
Conforme assinala Habermas (2002, p. 294-295, nota de rodapé 74), isso não foi, como muitas
vezes se supõe, obra de críticos da racionalidade moderna, como Heidegger, Adorno e Derrida. O
abandono dos conceitos “fortes” de teoria, verdade e sistema já pertencem ao passado há mais de
150 anos. Com isso, ele minimiza a importância de uma crítica à razão concebida sob tais conceitos.
10
Note-se
uma que aqui
determinada não me
classe, comrefiro
todasaoas
uso
implicações do termo que
sociológicoconceituais ideologia, como
isso tem conjuntomarxista.
na tradição de ideias de
26

Para o que nos interessa nesta introdução é necessário que, inicialmente,


retenhamos a diferença entre a pesquisa e elaboração teórica nas ciências naturais
e nas ciências sociais. Defendo que o impacto atribuído por alguns filósofos e
cientistas sociais às mudanças nas ciências naturais no século XX (mais
especificamente na física), que está na base da chamada “crise da ciência”, foi
sobrevalorizado e teve um dimensionamento apressado e exagerado. 11

Porém, alguns autores importantes defendem, ao contrário do que afirmo, que


as ciências naturais e sociais se igualaram. Para fundamentar suas posições,
utilizam como argumento as mudanças nas ciências naturais. Para reafirmar o que
está dito no início do parágrafo anterior, sou obrigado a adentrar-me no assunto –
mesmo que isso torne esta introdução demasiado extensa. Trata-se de expor os
argumentos que justificam minha proposição da diferença entre ciências naturais e
sociais mesmo diante das afirmações contrárias que povoam o debate
contemporâneo.
O advento da física quântica e da teoria da relatividade (e, mais tarde, das
teorias da complexidade) forneceu a base factual para que a epistemologia
descartasse a ideia positivista de uma ciência imutável, que se apossara
definitivamente da verdade sobre a natureza e que poderia arrogar-se a única
portadora de sentenças significantes sobre o mundo. Além disso, no processo de
formalização teórica do mundo subatômico, os cientistas sentiram necessidade de
utilizar conceitos que antes pertenciam apenas à filosofia ou às ciências sociais, tais
como “incerteza”, “complementaridade”, “dualidade”, “totalidade” e até “consciência”,
para poderem explicar, em linguagem não matemática, o que se passava no mundo

experimentado.
No entanto, ao passarem da linguagem simbólica da matemática e suas
operações para uma interpretação do comportamento do mundo naturalalém da
teoria, os cientistas já estavam abandonando o estrito campo da ciência formal e
experimental e tentando construir uma metafísica da natureza que acomodasse os
estranhos fenômenos constatados experimentalmente. As discordâncias nessas

11
Isso criou o clima no qual explodiu a última “guerra entre as duas culturas” na década de 90, a
partir da crítica do físico Alan Sokal registrada no seu livro Imposturas intelectuais, em parceria com
Jean Bricmont (Sokal & Bricmont, 1999). Ainda que se possam tecer inúmeras críticas aos dois
autores, é fato que suas alegações não foram desmotivadas, senão que alimentadas pelas
extrapolações das análises
ciência, que animam feitas
e amparam por muitos
o debate filósofos e teóricos sociais sobre as mudanças na
pós-modernista.
27

interpretações metafísicas – das quais a mais famosa foi a polêmica entre Einstein e
Bohr 12 –, não inviabilizou o trabalho esotérico da ciência, o que mostra que não se
pode considerá-las como resultados da ciência e, sim, como especulações dos
cientistas. Dito de outra maneira, as novas teorias científicas não “provaram”
nenhuma das interpretações metafísicas que tanto empolgaram alguns teóricos das
humanidades. Tais interpretações continuam sendo livres especulações de cientistas
que tentam adequar os novos fenômenos conhecidos a uma metafísica naturalista
diferente da que sustentou a física clássica.
Confundindo a física com a metafísica (ou a nova ciência com as
interpretações metafísicas dos cientistas), muitos autores proclamaram a dissolução
dos limites entre ciências naturais e ciências sociais. As ciências naturais seriam,
para eles, tão indeterminadas e subjetivas quanto as sociais, sem nenhuma
diferença de grau. Tal conclusão foi influenciada pelametafísica de alguns cientistas
e não, como se supõe, pelo estudo aprofundado do que se passa no
desenvolvimento interno da ciência.
Boaventura de Sousa Santos, um autor de reconhecida importância para o
pensamento emancipatório atual – e com o qual dialogarei em mais de uma ocasião
nesta tese –, em obra de bastante influência e projeção nos meios acadêmicos das
humanidades e nas pós-graduações em educação,13 afirma que as mudanças nas
ciências naturais romperam limites paradigmáticos e que essa ruptura teve impactos
na totalidade de nossa compreensão de mundo (natural ou social). Segundo o autor,
“começa a deixar de fazer sentido a distinção entre ciências naturais e ciências
sociais” (Sousa Santos, 2004a, p.20), afirmação em franca contradição com o que

defendi acima.
No entanto, ao fundamentar sua afirmação, Sousa Santos recorre a uma
argumentação que só aparentemente conduziria a tal conclusão, pois a reflexão que
ele apresenta nos finais da década de 80 já estava em grande parte presente nos

12
Apesar do debate se ter travado no nível estrito da linguagem formal da física, a motivação principal
da discordância de Einstein com Bohr tinha suas srcens em uma concepção metafísica, da parte de
Einstein, de um universo racional regido por leis deterministas e jamais probabilísticas. Tal concepção
ficou expressa na sua célebre afirmação de que “Deus não joga dados com o universo”. Cf. Bohr
(1995, p. 41-83).
13
Um discurso sobre as ciências (Sousa Santos, 2004a), publicado em 1987, mas retomado
integralmente em obra posterior (Sousa Santos, 2005a). As referências ao sociólogo português
Boaventura de geógrafo
referências ao Sousa Santos seráMilton
brasileiro feita com base em seus dois sobrenomes para diferenciá-las das
Santos.
28

debates epistemológicos na primeira metade do século XX, sem que a epistemologia


tivesse que concluir pelo fim da distinção entre ciências naturais e sociais.
A recorrência a teorias prévias, a aceitação de ideias não testadas e nem
testáveis, a relativização do papel da experimentaçãoe a influência da metafísica
nas elaborações científicas são ideias recorrentes nas reflexões de Gastón
Bachelard e Alexandre Koyré já na década de 30 do século XX. 14 Posteriormente,

passaram definitivamente para os debates epistemológicos com Karl Popper e


Thomas Kuhn, também por volta da metade do século passado.15 Embora tenha
definido uma reconceituação da ciência, a nova epistemologia do século XX não
concluiu pela dissolução dos limites entre estudo da natureza e estudo da
sociedade. 16 Portanto, os fatores que Sousa Santos menciona não levam à
17
conclusão de que as ciências sociais e naturais se igualaram.
A “incerteza” presente na física quântica é limitada a um espectro de
probabilidade muito bem definido e restrito à escala subatômica (ou seja, não se
aplica ao mundo macroscópico – muito menos ao mundo das relações humanas) e a
“imprevisibilidade” que faz parte das teorias da complexidade é decorrente das
características constatadas nos sistemas naturais e não consequência da presença
de subjetividade na natureza (como o é no caso da sociedade).
Essas mudanças nas ciências certamente ocasionaram modificações
profundas na filosofia das ciências, enriqueceram o debate epistemológico e até
serviram para que fosse revisto o papel das ciências naturais na hierarquia dos
saberes. A reivindicação positivista de um conhecimento exclusivamente baseado na
metodologia das ciências naturais tornou-se algo totalmente infundado, uma vez que

14
Cf. Bachelard (1978; 1996) e Koyré (1991).
15
Cf. Popper (1980) e Kuhn (1997).
16
Como se pode ver nas citações de Kuhn acima, mesmo em artigos escritos quase trinta anos após
sua Estrutura das revoluções científicas. Pode-se alegar que as teses kuhnianas abriram caminho
para os argumentos socioconstrutivistas, mas estes não são, de maneira alguma, as únicas
conclusões possíveis; na verdade, são mais propriament e uma hipérbole do relativismo fraco da Nova
Filosofia da Ciência que tem em Kuhn um de seus pioneiros.
17
Os teóricos da Escola de Frankfurt, em um contexto no qual a concepção positivista de ciência
ainda predominava, combateram a idéia de dualismo entre as ciências naturais e sociais,
argumentando a favor de uma complementaridade e do compartilhamento de elementos comuns. No
entanto, a recusa ao dualismo não significa a rejeição das diferenças e peculiaridades de cada uma
das ciências e tampouco a identificação entre elas. Até para combater o dualismo é preciso
reconhecer as diferenças, pois não faz sequer sentido falar de dualismo ou complementaridade entre
coisas iguais.
29

a ciência, assim como outros saberes, pode mudar na história e depende de


especulações para a constituição de suas teorias.
Mas a ruptura com uma axiologia dos saberes, que punha as ciências naturais
no topo, e com a concepção positivista da ciência não representa, necessariamente,
uma ruptura com os limites definidores da especificidade de cada campo do
conhecimento. A reflexão que fiz acima sobre as diferenças fundamentais entre as
duas ciências não é contestada pelos acontecimentos na física no século XX – e não
há uma argumentação sólida o suficiente para nos obrigar a saltar do
reconhecimento das mudanças nas ciências naturais à conclusão de sua
identificação com as ciências sociais.
Mas Sousa Santos chega a falar de uma “progressivafusão das ciências
naturais e ciências sociais” (2004, p. 71). Mas essa fusão que ele advoga é não
apenas questionável, mas também perigosa. Na própria obra citada, o autor se
18
refere ao problema da aplicação dos pressupostos da ciência clássica à sociedade.
Em uma crítica a essa transposição, ele afirma que
O prestígio de Newton e das leis simples a que reduzia toda a complexidade
da ordem cósmica [converteu] a ciência moderna no modelo de
racionalidade hegemônica que a pouco e pouco transbordou do estudo da
natureza para o estudo da sociedade. Tal como foi possível descobrir as leis
da natureza, seria igualmente possível descobrir as leis da sociedade.
(Sousa Santos, 2004a, p.32).

Ora, se essa transposição foi prejudicial na constituição da modernidade, porque


deixaria de sê-lo agora? A ciência não está sob influência de fatores metafísicos e
sociológicos apenas nos dias atuais, mas, sim,desde o seu nascimento. Não existe,
hoje, o irromper de um elemento novo na ciência, como se só agora ela estivesse
sendo influenciada por fatores sociais e metafísicos. O que, na verdade, ocorre é
uma reconstituição desses fatores, uma vez que a base ontológica e epistemológica
anterior ruiu diante dos novos fenômenos que se tornaram acessíveis ao ser
humano. Mas não há motivo para acreditarmos que a nova racionalidade científica
possa, nos tempos atuais, simplesmente ser transposta para os estudos da
sociedade. Muito menos que as ciências naturais se equipararam às ciências sociais

18
Chama-se ciência “clássica”, em oposição à ciência quântica, relativística ou da complexidade, a
ciência queeresultou
de Newton da RevoluçãodeCientífica
o eletromagnetismo Maxwell.do século XVII e que teve suas bases fixadas pela física
30

em métodos e na forma de teorização (não me refiro aqui, evidentemente, a seu


valor no conjunto do conhecimento).
Os cientistas que Sousa Santos cita em sua obra são exatamente aqueles que
ousaram extrapolar os limites da ciência para especularem sobre a significação
filosófica das novas teorias e, por isso, refletiramfilosoficamente. Suas ideias não
podem ser tomadas como científicas apenas porque sua formação acadêmica o é.
Ou seja, ao falaremsobre sua ciência, eles não estãofazendo ciência.
Além disso, a controvérsia sobre as interpretações ontológicas da física
quântica ainda é objeto de debate e varia entre interpretações realistas,
operacionalistas e subjetivistas. No entanto, as discordâncias de cunho ontológico e
epistemológico não afetam diretamente o desenvolvimento da física, o que mostra
que não houve uma mudança substancial nofazer das ciências naturais, mas tão
somente na forma de se compreendê-las. As interpretações ainda são tantas que
Hilary Putnam comenta em artigo:

Todas as interpretações da mecânica quântica são, em certo sentido,


“modificações” da mecânica quântica, porque ela é uma teoria incompleta –
ninguém pode regularizá-la, formalizá-la em uma notação lógica padrão [...]
a não ser que acrescente uma “interpretação”. E, até hoje, a lei de Putnam,
que diz que uma interpretação da mecânica quântica é aceita por seu
criador e por mais seis outros físicos, tem-se confirmado. (Putnam, 2005). 19

Nos teóricos das humanidades, as interpretações de cunho mais subjetivistas


parecem provocar maior impacto e, talvez por isso, acabaram por produzir um efeito
maior. Isso deu margens para que temas controversos, de ordem metafísica, fossem
apresentados como “descobertas” da nova ciência.
Vejamos algumas reflexões de cientistas evocadas por Sousa Santos para
sustentar sua defesa da fusão entre as ciências naturais e sociais.
A tão famosa interferência no ato de observação em física subatômica não é do
“sujeito”, como ele afirma (Sousa Santos, 2004, p. 44), mas doinstrumento de
medida que afeta materialmente a partícula, conforme explica Heisenberg, autor do
“princípio da incerteza” na física.20 Dado que as partículas subatômicas são menores
do que o comprimento de onda da luz visível, sua detecção exige o uso de “luz” de

19
Original em inglês. A tradução de todas as citações em língua estrangeira nesta tese é de minha
responsabilidade. Doravante indicarei apenas o idioma da fonte que tive em mãos, ficando
esclarecido que as partes citadas foram traduzidas especificamente para este trabalho.
20 A partir daí,de várias interpretações metafísicas e Física
epistemológicas são possíveis, tanto que a
interpretação Heisenberg foi publicada com o título e filosofia (Heisenberg, 1995).
31

frequências maiores que, no entanto, afeta o comportamento das partículas (cf.


Heisenberg, 1995, p. 41-42). As interpretações subjetivistas desse fenômeno são
apenas umas das possíveis.21
As ideias de Fritjof Capra (1999a; 1999b) são uma tentativa de reelaboração de
nossa visão ocidental de mundo feita a partir das aproximações que Capra identifica
entre a nova física e a cosmovisão taoísta. Capra não elaborou umateoria científica
baseada no pensamento oriental, pois a física com a qual ele trabalha é exatamente
a mesma de quem desacredita totalmente do taoísmo. Mas Sousa Santos, na obra
citada, faz referência às ideias de Capra incluindo-as no que chama de “recentes
teorias científicas”.
Já David Bohm (2001), também citado, elaborou uma teoria científica baseada
no conceito de totalidade não para romper totalmente com a metafísica da ciência
clássica, mas, ao contrário, como forma de salvar a metafísica determinista
defendida por Einstein. De qualquer forma, seu modelo teórico (diferente do da
Escola de Copenhague de Heisenberg e Bohr)não se tornou paradigma na física.
Francisco Varela, outro dos cientistas citados na obra de Sousa Santos, rejeita
as extrapolações sociais do conceito deautopoiese e insiste em sua aplicação
exclusiva para a célula – portanto, sem implicações sociais. Para ele, a autopoiese
permanece um conceito científico como os outros. Conforme suas próprias palavras:

[...] No geral, tenho um grande ceticismo a respeito da extensão do conceito


[de autopoiese] além da área para a qual foi pensado, isto é, para a
caracterização da organização dos sistemas vivos em sua expressão
mínima [ou seja, a célula]. Ainda que não exista uma razão a priori, após
todos esses anos, minha conclusão é que uma extensão em níveis
“superiores” não é frutífera e que deve ser deixada de lado, ainda que para
caracterizar um organismo multicelular. (Varela, in: Maturana & Varela,
1997, p.54).

Não se pode negar que houve uma mudança de paradigma na física que
afetou diversas ciências naturais. Nem que as novas abordagens das ciências
naturais possam contribuir, fazendo todas as ressalvas necessárias e adaptações às
peculiaridades do objeto, para uma nova interpretação dos fenômenos sociais. Pelo
contrário, há demonstrações de que novas perspectivas teóricas e metodológicas
revelaram ser bastante frutíferas ao tomarem emprestado algumas abordagens das
ciências naturais, principalmente a ideia da complexidade. Isso, porém, não indica,

21
Para um quadro das tendências na interpretação da física quântica, ver Ortoli & Pharabod (1986).
32

de forma alguma, a dissolução das fronteiras que separam o estudo da natureza e o


estudo da sociedade ou, muito menos, que as mudanças de paradigma na física
implicam, ipso facto, uma mudança de paradigmas em ciências sociais.22
Um aspecto que não pode ser relegado é que o ponto de partida da crise do
paradigma clássico na física não foram as novaselaborações teóricas, mas a
inadequação das teorias predominantes aos conjuntos de fenômenos que a
experiência trazia. As novas teorias vieram atender a um problemada práxis
científica. Na terminologia de Kuhn, novos enigmas puzzles
( ) apresentados pela
perscrutação experimental da natureza nem sempre podem ser solucionados à luz
das teorias vigentes, o que dá espaço a novas elaborações teóricas que, caso sejam
profícuas e venham a conquistar hegemonia na comunidade científica, tornam-se
paradigmas. Ou seja, a necessidade de novos paradigmasé dada pela práxis e sua
pertinência se mede pela capacidade de resolução deproblemas concretos.
Aqui atingimos um ponto central que nos interessa nesta tese. Em teoria social,
se é que é possível falar em “paradigma”23, as mudanças teóricas devem possuirum
ponto de partida real, dado pelo próprio estudo da sociedade, e não virem à reboque
das mudanças nas ciências naturais. É necessário, antes de tudo, indicar o que está
em crise na análise da sociedade, para posteriormente se questionar sobre como
novas abordagens teóricas poderiam atender à demanda de compreensibilidade
apresentada por novos fenômenos sociais. Em suma,a construção teórica ou a
“transição paradigmática” não são atividades que têm como ponto de partida as
teorias em si mesmas ou a estrutura dos discursos, mas, sim, o conjunto de
fenômenos aos quais pretendem dar inteligibilidade. Mudanças teóricas não são

respostas a um “espírito temporal” que paira sobre as mentes exigindo, apenas pelo
seu próprio gosto, modificações na forma de se pensar. Tampouco são resultados
“naturais” do fluxo de idéias que se esperaria entre as indistintas ciências naturais e
sociais.

22
Estou enfatizando as teorias sociais em função do foco desta tese, que é a educação, portanto, um
fenômeno social. Mas as reflexões que faço servem também para a psicologia e outras ciências
humanas.
23
Para sermos fiéis à terminologia kuhniana, um paradigma só existe quando conquista hegemonia
na comunidade científica e é ensinado, sem conflitos, nas universidades e instituições de ensino.
Nada semelhante ocorre com as teorias sociais. Embora se possa falar da “predominância” de uma
ou outra teoria em comunidades isoladas (como o marxismo em alguns locais ou a análise weberiana
em
outraoutros)
teoria jamais se pode geral
na comunidade atribuir
doshegemonia ou consenso metodológico prévio relativo a uma ou
teóricos sociais.
33

A transferência dos problemas ontológicos e epistemológicos da física para as


ciências sociais foi aceito muito facilmente por diversos autores, porém jamais houve
uma argumentação suficientemente forte para convencer sobre a necessidade ou,
ao menos, a pertinência dessa transferência. Por outro lado, há demonstrações de
que a aplicação descuidada de conceitos das ciências naturais à sociedade pode
resultar em algo que está mais para “obstáculo epistemológico” do que para
instrumento de interpretação, como no longo exemplo abaixo, retirado do livro de
Berten (2004):

Prigogine e Stengers analisaram diversas pistas que mostram as


consequências desta interpretação do novo paradigma nas ciências da
natureza. Eles sugeriram também aplicações no domínio das ciências
humanas. Pode-se, por exemplo, considerar a sociedade como um sistema
no seio do qual circula a informação. Cada nova informação, surgida de
maneira aleatória, constitui uma perturbação marginal, uma flutuação. À
medida que a comunicação no seio do sistema é forte, as flutuações tendem
a ser neutralizadas. Mas é possível que em um ponto do sistema surja uma
zona relativamente isolada, e portanto imunizada contra a normalização.
Pode-se falar neste caso de “nucleação”: um núcleo divergente se forma e
se consolida ao abrigo das interferências do sistema. É possível que, em
certo nível, ele tenha adquirido suficiente consistência para se abrir e
modificar o sistema. Um exemplo deste fenômeno, imprevisível, poderia ser
a formação de um partido revolucionário, como o partido bolchevique no
período pré-revolucionário. Lênin, em O que fazer? (1901), se opôs
violentamente à “liberdade de crítica” no interior do Partido em via de
constituição porque abrir o partido às críticas implicaria permitir que a
ideologia dominante (o sistema de comunicação dominante na sociedade)
penetrasse no seio do núcleo em formação anulando a pureza
revolucionária da doutrina. (Berten, 2004, p.87).

São inegáveis as possíveis semelhanças entre esse ponto específico do


processo histórico que antecedeu a revolução Russa e a análise de flutuações e
desestruturação de um sistema complexo. Mas talvez, com um pouco de
criatividade, poderemos enquadrá-lo também em descrições da ciência clássica,
como, por exemplo, no modelo da hidráulica que trabalha com “pressão estática”,
“pressão dinâmica”, “vazão”, “válvulas de escape”, “cavitação”, “golpe de aríete”, etc.
Mas qual proveito se pode tirar disso?
O problema da transposição, além de sua duvidosa vantagem analítica, é
ocultar todas as subjetividades envolvidas, os condicionantes históricos e sociais do
processo e os significados produzidosnos e por seres humanos dotados de vontade
e liberdade de ação. A naturalização da sociedade faz parecer que os processos
ocorreriam por uma lei natural, ainda que os agentes históricos fossem outros. Toda

a significação e complexidade da ação humana consciente podem tornar-se


34

inacessíveis a essa abordagem – por isso falei em obstáculo epistemológico. A


capacidade heurística dessa abordagem para fenômenos sociais, ao meu ver, é
praticamente nula.
Portanto, retomando a afirmação anterior, há e deve continuar a haver uma
diferença entre a pesquisa e construção teórica das ciências naturais e as das
ciências sociais. Isso não significa que a diferença deva conduzir a umavaloração
diferenciada entre os dois campos do conhecimento em função de sua maior ou
menor “neutralidade” ou capacidade de objetividade – e essa é, talvez, a principal
lição das mudanças de paradigma na física do século XX: a neutralidade (no sentido
da purgação baconiana dos ídolos) é um mito e o antigo desejo pela objetividade
absoluta deve satisfazer-se com a controlabilidade intersubjetiva do objeto
submetido a interrogações teóricas.24
O que é particular das teorias que têm os fenômenos sociais como objeto e que
as distingue das ciências naturais não é simplesmente o fato de que a subjetividade
do teórico está presente nas elaborações (pois também o está em ciências naturais),
ou de que exerce influência sobre elas (pois a influência da subjetividade na
elaboração das teorias científicas sobre a natureza já é um ponto praticamente
consensual na epistemologia). A característica distintiva da teorização social é que
a
subjetividade subjacente à teoria deve ser um item fundamental de análise para que
a teoria tenha sentido. Este é outro ponto chave para a compreensão dos
fundamentos metodológicos desta tese.
Ao invés de ser apenas objeto da reflexão metacientífica ou de história das
ciências, a compreensão das intenções, desejos, posicionamentos políticos,

comprometimento de classe, utopias, etc. que subjazem às teorias sociais deve ser
um elemento metodológico buscado pelo próprio teórico no ato de elaboração.Só é
possível teorizar sobre fenômenos sociais se a própria subjetividade do teórico e os
vínculos que ela estabelece com concepções em disputa e com sua atividade social

24
A ideia de controlabilidade está relacionada ao aspecto empírico das ciências naturais. Às
proposições e previsões das teorias devem corresponder algum tipo de comportamento do objeto
natural submetido a um processo de experimentação capaz de ser reproduzido intersubjetivamente e
que dará às teorias um apoio fático ou, com o tempo e com resistências, acabará forçando a
mudança ou o abandono de determinadas previsões, ou mesmo de toda a teoria. Ainda que a relação
da experiência com as teorias científicas tenha sido relativizada pela nova epistemologia, ela não
deixou, de maneira alguma, de existir em nenhuma das principais filosofias das ciências. Apenas
quando a vertente sociológica socioconstrutivista arvorou a tarefa de substituir a filosofia das ciências
pela
contrasociologia cognitivadode
toda a evidência matiz
fazer realpós-modernista (cf. Oliva,como
da ciência, a experiência 2005)elemento
é que se passou a desprezar,
importante.
35

estiverem bem definidos e posicionados nas diferentes e, às vezes, contraditórias


concepções e ações existentes na sociedade.
É no âmbito dessa definição e desse posicionamento que se devem erigir os
critérios de verdade, validade e objetividade das teorias, que devem ser defendidas
em coerência com as concepções de ordem sócio-subjetiva que lhes subjazem.
Quando isso não é compreendido, dificilmente se ultrapassam a descrição ingênua
de casos fragmentados do cotidiano, os relatos sem proposição ou posicionamento,
a elaboração com virtudes meramente literárias, ou ainda a reprodução inconsciente
de projetos e utopias que nem sempre o pesquisador ou teórico, se pudessem
identificá-los, estariam dispostos a aceitar como seus.
Sendo assim, diferente das ciências naturais, as análises teóricas que
ultrapassam a simples descrição das manifestações sociais – numérica e estatística
ou narrativa e literária – e asproposições contidas em teorias sociais só podem ser
compartilhadas entre aqueles que compartilham subjetivamente pelo menos os
mesmos pressupostos mais gerais relacionados às concepções sociais, políticas,
utópicas, culturais, de classe ou lócus geopolítico. No entanto, tais análises e
proposições devem ser elaboradas de forma a possibilitar a comunicação e o
confronto argumentativo com as elaborações dos que assumem pressupostos
diferentes.
É esse posicionamento subjetivo prévio que faz com que algumas teorias
pareçam “verdadeiras” e outras “simples ideologias”. Os teóricos sociais que
anseiam por uma objetividade incondicionada costumam considerarrealistas não as
teorias que mais se aproximam “da realidade”, mas sim, “dasua realidade” ou “das

suas concepções”. Dado que o acesso pleno a uma realidade em si, não
enquadrada em uma subjetividade prévia, é algo impossível ao ser humano, o
binômio verdade-ideologia torna-se apenas a expressão de um julgamento baseado
em posicionamentos prévios. “Verdadeiras” (ou “científicas”, como se pode preferir)
seriam as teorias que se aproximam do que já está previamente definido pela minha
inserção e participação na sociedade (ou pelo que foi formado pelo meu processo
educativo) e “ideológicas” (comprometida com interesses de classe, românticas,
utópicas ou idealistas) seriam todas as que contradizem os meus pressupostos
subjetivos (mesmo que eles sejam inconscientes). No fim das contas, o binômio
verdade-ideologia acaba sendo um instrumento para ocultar os posicionamentos
sócio-políticos sob uma suposta objetividade ou realismo em ciências sociais.
36

Mas também não se resolve a dicotomia do binômio fazendo vencer o outro


pólo, como se faz quando se afirma que toda teoria é mera manifestação de uma
ideologia ou uma construção discursiva arbitrária. Nesse caso, de maneira
surpreendente, o critério de “cientificidade”, ou de “aceitabilidade acadêmica”, passa
a ser o autor em quem a pesquisa se apoia e não a fidelidade ao objeto estudado.
Dado que o ponto de apoio ontológico ou existencial da teoria e da pesquisa, nessa
forma de pensar, sucumbiu à arbitrariedade da construção textual, aautoridade do
objeto acaba sendo substituída pelaautoridade do sujeito – vale dizer, de alguns
sujeitos: os autores em voga no meio acadêmico.25
Ao meu ver, só caminharemos em direção à resolução da dicotomia verdade-
ideologia quando o próprio binômio, usado como critério de julgamento de
pertinência teórica, se tornar obsoleto e quando compreendermos a diferença entre
as duas áreas de conhecimento (ciências naturais e sociais) a partir da diferença
essencial entre seus objetos e das subjetividades envolvidas.
Dando mais um passo a partir da reflexão feita por Ryan acerca dos processos
de socialização do cientista social, proponho que se considere um processotriplo de
socialização, e não duplo. Temos inicialmente os dois processos mencionados por
Ryan, a saber, 1) a socialização na comunidade de teóricos e pesquisadores – que
municiará o pesquisador ou o teórico com o rigor discursivo e analítico, necessário à
elaboração teórica e ao debate público entre diferentes concepções, e com o
conhecimento da tradição intelectual de sua área – e 2) a socialização com as
subjetividades que dão significação aos fenômenos sociais – os agentes envolvidos,
sua cultura, intenções, desejos, posicionamento de classe e condição geopolítica,

etc. O terceiro processo de socializaçãoque sugiro decorre da reflexão que fiz acima
acerca da inserção social inevitável do pesquisador. Trata-se, portanto, 3) do
necessário posicionamento do teórico nas concepções e práticas em disputa na
sociedade e do reconhecimento de sua própria subjetividade (concebida
socialmente) como fator que orienta a análise, interpretação e, quando é o caso, as
proposições.

25
Não deve ser por acaso o grande número de trabalhos de pós-graduação em educação que tratam
temas educacionais “a partir de” (o termo de ligação varia: “na perspectiva de”, “segundo”, “no
pensamento de”, etc.) algum filósofo ou teórico social, mesmo que este não tenha feito praticamente
nenhuma reflexão sobre educação ou que a relação de suas ideias com o cotidiano da educação nos
países periféricos
uma outra seja bem longínqua, quando não inexistente. Esse seria um interessante tema para
pesquisa.
37

O terceiro processo de socialização exige aidentificação, assunção, crítica e


sistematização da subjetividade prévia – que é fruto da inserção essencial (teórica e
prática) de todo pesquisador ou teórico em uma sociedade. Sob o aspecto
metodológico, trata-se de umacondição inicial para a pesquisa e teorização sociais.
A compreensão de que existem outras subjetividades prévias decorrentes de
inserções distintas, de diferenças nos processos formativos e opções intencionais
dos pesquisadores faz com que se compreenda o exercício de pesquisa e
elaboração teórica e o enfrentamento com teorias diferentes também como uma
disputa de hegemonia e não como um conflito entre verdade e ideologia ou entre
discipulados de diferentes pensadores.
O grande desafio é fazer com que a ponte entre a subjetividade prévia e o
trabalho de pesquisa e elaboração teórica mantenha o rigor analítico e metodológico
da pesquisa, não abandone a necessária coerência com seu referencial extrateórico
e seja adequadamente municiada de argumentos racionais que legitimem sua
pertinência na comunidade de pesquisadores e no espaço público. Caso contrário,
não poderíamos mais diferenciar as teorias sociais de um manifesto político, de uma
carta de intenções, ou de manifestações literárias e poéticas que narram ou
denunciam fenômenos sociais, porém sem um maior rigor analítico e sem caráter
propositivo.26

II. SOBRE A C ARACTERÍSTICA PECULIAR DAS TEORIAS EDUCACIONAIS NO ÂMBITO


DAS TEORIAS SOCIAIS

A reflexão que fiz acima sobre a pesquisa e elaboração teórica sobre


fenômenos sociais assume uma dimensão mais profunda quando o objeto é a

26
Para citar um exemplo, o best-seller O horror econômico, tão celebrado nos finais da década de
1990, da romancista e crítica literária Viviane Forrester, a despeito de seus méritos e de suas
inúmeras citações em trabalhos acadêmicos, não deixa de ser apenas um “manifesto literário” sobre o
desemprego, sem uma análise mais rigorosa sobre o atual estágio da história econômica mundial e,
principalmente, sem a reflexão sobre alternativas. Ao contrário, para ela, parece não haver
alternativas: “Uma solução? Talvez não haja” (Forrester, 1997, p. 53). “Diante disso, que análises,
que contestações, que críticas, que oposições ou mesmo que alternativa? Nenhuma, a não ser o eco.
Com, no máximo – efeitos de acústica? –, algumas variantes”. (p. 109). “Diante disso, quais
contrapoderes? Nenhum. Sem incidentes, abrem-se os caminhos para as barbáries refinadas, os
saques de luvas brancas” (p. 141). Ao final da leitura pode-se perguntar que consequências o texto
traz além daquelas trazidas pela leitura de um romance dramático. Além disso, a última frase citada,
diante de tantas experiências e lutas existindo nos países periféricos, constitui um exemplo perfeito
do que Sousa Santos chamou adequadamente de “desperdício da experiência” (Sousa Santos,
2005a).
38

educação. Enfrenta-se imediatamente o problema da definição do próprio termo que


indica o objeto de pesquisa. Isso acontece pelo fato de a educação não ser apenas
um fenômeno social, mas por ser, em seu sentido mais amplo, o fenômeno que
possibilita a própria existência da sociedade e que forma as subjetividades que
definem os significados dos fenômenos sociais. É claro que aqui não me refiro
exclusivamente à dimensão escolar da educação, mas à sua existência enquanto
atividade humana essencial – que também se reproduz (e hoje sistematicamente)
em instituições como a escola, mas que não se limita a elas.
Se, conforme foi argumentado acima, os fenômenos sociais só podem ser
entendidos a partir da compreensão das subjetividades que os produzem, a
educação, por sua vez, não só é produzida por essas subjetividades, mas é também
sua produtora. Essa constatação traz consequências enormes para a teoria
educacional e está na base da reflexão da parte III desta tese. Por isso, faz-se
necessário argumentar um pouco mais a seu respeito.
A existência de uma sociedade humana, com regras conscientes determinadas
pelas relações humanas concretas e cristalizadas em configurações simbólicas de
diversos tipos, só foi possível a partir do momento em que o ser humano dominou o
uso da linguagem.27 A possibilidade de um relacionamento intraespecífico mediado
por símbolos abstratos foi o fator definitivo que possibilitou a diferenciação entre o
ser humano e as demais espécies animais. Mais do que o tamanho do cérebro e a
estrutura anatômica que permite o bipedalismo e a preensão com as extremidades
dos membros superiores, o que permitiu o salto cultural do ser humano foi o domínio
da linguagem, fruto de características peculiares da espécie humana (anatômicas e

mentais) sobre a base de uma prática coletiva de produção material de sua


existência.28
A capacidade de simbolizar experiências, planos, desejos e intenções através
da articulação de fonemas e, posteriormente, de formas de escrita, arte e ideografia,
possibilitou a ruptura com os limites espaciais e temporais e com o isolamento do
indivíduo, além de proporcionar a capacidade de articulação e organização da

27
Segundo Mithen (2002), a linguagem possibilitou a integração de módulos distintos da inteligência
humana (os quais abordarei brevemente no capítulo 11), proporcionando o salto cultural registrado a
partir de 40 mil anos atrás.
28
Para ver esta reflexão a partir de um estudo bioantropológico ver Diamond (1997) e sobre as suas
consequências para a compreensão da essência do ser humano e de suas relações sociais, ver
Abdalla (2002, p. 102-112).
39

consciência e de seus diversos módulos específicos (Mithen, 2002), a expressão de


desejos e o compartilhamento de projetos e trabalhos coletivos.
Os conteúdos internos à consciência individual poderiam ser organizados e
intercambiados em um grupo ligado por laços de parentesco ou gregários a partir de
uma simbolização intersubjetivamente gestada. Esse intercâmbio criou estruturas
complexas de relacionamento cujo nível não é igualado nem pelos mamíferos
superiores (incluindo os primatas) que manifestam rudimentos de linguagem e
cultura. A linguagem, portanto, é condição para a existência da sociedade e para a
forma como o ser humano intervém na natureza produzindo sua existência material
e social.
Entretanto, embora seja condição necessária para aexistência da sociedade, a
linguagem não é condição suficiente para o seudesenvolvimento no tempo e para o
incremento de sua complexidade. Para que uma sociedade se desenvolva, é
necessário que as gerações atuais acumulem experiências, conhecimentos e
valores que possam ser sistematizados e transmitidos às gerações posteriores, que,
dessa forma, terão já um patamar de complexidade como ponto de partida para sua
inserção criativa no mundo. Aeducação, em seu sentido mais fundamental, se refere
a esse processo de transferência simbólica da cultura acumulada por gerações
anteriores às atuais e às que as irão substituir no tempo. Sem esse processo não se
pode falar em desenvolvimento da sociedade.29 É por isso que afirmei acima que a
educação não é apenas um fenômeno social dentre outros, mas o processo que
garante a existência da sociedade tal como a concebemos hoje e,
consequentemente, contribui de uma forma decisiva para a significação dada pelos

agentes humanos aos fenômenos sociais – que são objeto das ciências sociais.
Como a práxis humana é sempre intencional, o processo de transferência
educacional não pode ser analisado mecanicamente. Os conteúdos e valores
transferidos são sempre decorrentes da compreensão ética, social e antropológica
sustentada pelos agentes principais da educação (teóricos, gestores do Estado,
dirigentes e profissionais das escolas) e do projeto de sociedade que se quer para a
atual e as futuras gerações.

29
Utilizo a palavra desenvolvimento sem nenhuma conotação de evolução linear ou “aperfeiçoamento”
eaumento
muito menos em seu sentido
da complexidade economicista, mas tão somente em seu sentido de mudança e
no tempo.
40

Dado o crescente incremento da complexidade da cultura – principalmente


após a revolução agrícola do neolítico, que fixou uma parte da humanidade em solo
determinado em diversas regiões do planeta –, não há um “banco de dados”
universal de conhecimentos e valores que possam ser simplesmente transmitidos de
forma neutra e mecânica para as gerações futuras. Se assim fosse, caberia à teoria
educacional refletir apenas sobre a forma mais adequada de transmissão da cultura
acumulada, o que a reduziria a uma questão de técnica educacional e psicologia do
desenvolvimento.
O ato de educar, portanto, é umapráxis social intencional determinada pelas
subjetividades dos atores envolvidos no processo. Nesse sentido, a educação pode
ser concebida como mediação, e não como um fim em si mesma, sem perder a
importância crucial que tem no desenvolvimento das sociedades humanas. É
mediação no sentido de ser uma práxis humana intencional, vinculada a
subjetividades que carregam projetos, valores e perspectivas, e de ter sua
significação somente enquanto expressão dessas subjetividades.Educa-se sempre
a partir de dadas compreensões do processo social e de determinados projetos
relacionados ao presente e ao futuro da sociedade. Esse é outro aspecto crucial
para a compreensão desta tese.
A teoria educacional não pode ater-se apenas ao aspecto descritivo e
interpretativo do fenômeno educacional, pois lida com um objeto que não é somente
fenômeno a ser compreendido, mas práxis humana intencional cujo objetivo é
possibilitar o desenvolvimento da própria sociedade da qual o teórico é parte
constituinte. Assim, a teoria educacional difere-se das demais teorias sociais que

orientam a pesquisa a partir de certos referenciais interpretativos – como uma teoria


antropológica, por exemplo, que guia o pesquisador na abordagem compreensiva de
determinada sociedade à qual ele pode, inclusive, não pertencer. A elaboração
teórica em educação deve, necessariamente, orientar apráxis educativa e não
somente auxiliar a compreensão do fenômeno educação a partir de um quadro
teórico de referências. A teoria educacional, compreendida dessa forma, sempre tem
um caráter propositivo. Pela mesma razão, seuobjeto concreto é definido pela práxis
41

e esta sempre depende de uma concepção prévia a seu próprio respeito e a respeito
da sociedade na qual ocorre.30
Sendo assim, o terceiro processo de socialização exigido do cientista social
possui uma força ainda maior quando se trata da elaboração teórica no campo
educacional. Como a educação está sempre relacionada ao tipo de sociedade e de
subjetividades que pretendemos construir ou manter para o futuro (ou seja, como já
mencionei, não é um processo mecânico de transmissão de informações a partir de
um banco de dados universal), torna-se muito mais necessária a socialização do
teórico na intencionalidade subjetiva que define a práxis educacional em seus
conteúdos curriculares, estruturação, métodos, posturas e práticas do educador e
demais aspectos ligados ao cotidiano da educação.
Há uma diferença sutil, porém importante, entre o terceiro processo de
socialização do teórico em educação e o do cientista social. A este último é dado um
fenômeno que não tem sua configuração definida pela teoria, como a violência, a
pobreza, os indicadores econômicos, os conflitos sociais, a cultura de um povo, etc.
Quando digo que sua configuração não é definida pela teoria, quero dizer que sua
existência enquanto fenômeno não depende de uma teorização. A violência no
mundo, a pobreza, os índices da economia, os conflitos sociais, a cultura de um
povo (para ficar nestes exemplos) não se caracterizam pela forma como os
cientistas sociais as interpretam. A interpretação teórica específica é posterior ao
fenômeno. Embora o teórico e o pesquisador aproximem-se do objeto imbuídos e
orientados por uma teoria prévia, ela é aplicada a fenômenos que a ultrapassam e
que mantêm autonomia em relação ao pensamento que os aborda. Para aexistência

de rituais de magia em determinado povo – enquanto fenômeno com características


distintivas – não importa a teoria interpretativa que um antropólogo carrega ao tentar
compreendê-los: eles continuarão a ter, para aquele povo, a mesma significação. A
dinâmica da violência nos grandes centros urbanos de países do Terceiro Mundo
independe da abordagem teórica que a analisa ou das propostas que se apresentam

30
Objeto “concreto” não pode ser confundido com objeto “empírico”. Empírico é o que é dado aos
sentidos e captado sem a mediação de uma abstração conceitual metódica. Concreto, em uma
perspectiva dialética, é o objeto em sua dimensão real, mediatizado pelos determinantes abstratos
que lhe concedem um sentido para além de seu aparecer imediato. A educação como práxis humana
(e não como fenômeno “dado”) só pode ser objeto de uma teoria se entendida em sua concreticidade,
ou seja, determinada pelas concepções dos sujeitos que a exercem e pelo papel que cumpre na
sociedade.
42

para solucioná-la. A configuração existencial desses e outros fenômenos não


decorre das teorias sociais. As consequências do terceiro processo de socialização
do cientista social limitam-se, portanto, à sua interpretação do fenômeno (a
identificação das causas, a vinculação ou não a uma estrutura ou a fatores que se
encontram além do fenômeno em si mesmo, etc.) e àsproposições que porventura
venha a fazer para solucionar o problema.
No caso da educação ocorre uma coisa distinta. Como ela tem suaexistência
(e não apenas sua significação) assentada em subjetividades que carregam formas
de compreensão, valores e projetos sociais, sua própria configuração – enquanto
fenômeno mesmo – depende da forma como a pensamos e como a vinculamos,
como mediação, a subjetividades sociais.Pensar a educação é ao mesmo tempo
definir sua configuração como práxis. Todo ato educativo é expressão de um
pensamento educacional, que, por sua vez, concebe como a educação se deve
conformar na prática. Por isso a teoria educacional não apenas analisa e propõe
soluções para um problema social, mas, além disso,define seu próprio objeto. Ainda
que haja um fenômeno social que denominamos “educação”, que pode ser
localizado principalmente nas instituições escolares, e mesmo que haja uma
disciplina chamada “sociologia da educação”, que o aborda enquanto fenômeno
social, sua existência é garantida por um pensamento educacional (quando
sistematizado, uma teoria).
Se, conforme afirmei anteriormente, a educação é mediação para o
desenvolvimento da sociedade, pode-se concluir do parágrafo anterior quea
teorização em educação é, ao mesmo tempo, uma sistematização de nossa

compreensão de mundo e do projeto que temos a respeito do presente e do futuro


de nossas sociedades. Portanto, a pergunta fundamental de uma teoria educacional
não é “o que é educação?”, ou “como educar?”, mas sim educar
“ para quê e de que
31
forma?”.
O terceiro processo de socialização do teórico em educação define o caráter da
teoria educacional. A ausência de sua compreensão ajuda a tornar as coisas
nebulosas, a ponto de se confundirteoria educacional com proposições pedagógicas
e, mais ainda, de se acreditar que estas últimas carregam um caráter de

31
A diferença entre a pergunta “como educar?” e a “...de que forma?”, presente na pergunta que fiz
ao final, está no fato de a primeira ser uma pergunta isolada pelo “como” e a segunda estar
indissociavelmente ligada ao “para quê” que a antecede.
43

neutralidade e devem ser avaliadas apenas em sua eficácia no cumprimento de


objetivos meramente “escolares”. Decorre disso uma certa tendência na formação
em Pedagogia de se privilegiar o estudo de tecnologias aplicáveis à educação, de
psicologia do desenvolvimento e didática (compreendida em seu sentido estrito).
Assim como é bastante provável que a atual “onda” que invadiu o senso comum e o
discurso político de que a educação,tout court, é a solução para todos os problemas
sociais se nutra de um desconhecimento a respeito do terceiro processo de
socialização exigido pela teoria educacional.
É nesse sentido que José Gimeno Sacristán, refletindo sobre o currículo,
afirma:

Querer reduzir os problemas relevantes do ensino à problemática técnica de


instrumentar o currículo supõe uma redução que desconsidera os conflitos
de interesses que estão presentes no mesmo. O currículo [...] é uma opção
historicamente configurada, que se sedimentou dentro de uma determinada
trama cultural, política, social e escolar; está carregado, portanto, de valores
e pressupostos que é preciso decifrar. [...] A assepsia científica não cabe
neste
que a tema,
escolapois
temnopara
mundoseuseducativo, o projeto
alunos não cultural
é neutro. De ealguma
de socialização
forma, o
currículo reflete o conflito de interesses dentro de uma sociedade e os
valores dominantes que regem os processos educativos (Sacristán, 2000,
p.17).

O que chamei de terceiro processo de socialização do teórico social


caracterizou a elaboração teórica na modernidade e, ainda hoje, é um imperativo
metodológico que deve ser levado em consideração na construção de teorias e no
direcionamento das pesquisas. Abordarei, a seguir, as linhas gerais que definiram a
elaboração teórica na modernidade e, posteriormente, sobre como a teoria
educacional foi e é afetada por essa definição, o que servirá para concluir o trabalho
introdutório de justificação do objetivo escolhido e de esclarecimento dos
pressupostos metodológicos e conceptuais da presente tese.

III. SOBRE A DUALIDADE CARACTERÍSTICA DA ELABORAÇÃO TEÓRICA NA


MODERNIDADE

O processo de constituição da modernidade ocidental foi marcado por uma


dualidade essencial que se refletiu nas ações da sociedade civil e na elaboração
teórica em filosofia e ciências sociais. Essa dualidade, sobre a qual discorrerei a
seguir, fez com que Hardt e Negri (2001) caracterizassem a modernidade como
portadora de uma crise e afirmassem a existência de “duas Europas e duas
44

modernidades” e que Sousa Santos (2005a) identificasse duas formas de


conhecimento no projeto da modernidade, o “conhecimento-regulação” e o
“conhecimento-emancipação”. O conflito entre duas forças na constituição da
modernidade já havia sido identificado por Adorno e Horkheimer naDialética do
iluminismo (1983), onde refletem sobre a contradição entre o caráter emancipatório
da razão, defendido por Kant, e o triunfo de um de seus aspectos, a razão
instrumental, sobre todos os outros no desenrolar histórico da sociedade industrial, o
que subtraiu do projeto iluminista as forças de emancipação.
Compreender esta dualidade é fundamental para se pensar a modernidade.
Qualquer abordagem que conceba a razão moderna apenas como razão
instrumental deixa de lado o reverso da moeda que, embora embotado pela força do
pensamento conservador, continuou a existir no desenrolar histórico contraditório da
modernidade e ainda nos traz possibilidades de pensamento dentro mesmo da
racionalidade moderna, compreendida em seu aspecto emancipatório. Tal dualidade
possui bases históricas e concretas, conforme veremos a seguir.
A transição do período medieval para o moderno foi resultado do processo
civilizatório protagonizado pela burguesia europeia. Ao desenvolver uma forma de
economia “externa” ao feudalismo, mas existente dentro dele, a burguesia criou uma
racionalidade própria que não reproduzia a base subjetiva que sustentava o sistema
feudal e as relações sociais que dele decorriam.
Tendo como eixo central o mercantilismo e a acumulação de dinheiro, as
relações sociais desenvolvidas pela burguesia e, consequentemente, a cosmovisão
decorrente de sua forma de produzir a existência estavam intimamente relacionadas
32
às exigências das relações mercantis. A difusão e, principalmente, o
estabelecimento da racionalidade burguesa tinham como obstáculo a hegemonia
das relações econômicas feudais, bem como de sua ordem político-jurídica e, no
plano subjetivo, da racionalidade nobiliária. Portanto, o crescimento da racionalidade
burguesa se dava a expensas da destruição gradativa dos pilares que sustentavam
a ordem feudal (tanto no plano subjetivo como no das relações humanas
concretas).33

32
Para maior compreensão da relação da racionalidade burguesa com as relações mercantis, ver
Abdalla (2002, p. 49-95 e 2005b).
33
Isso nãodosignifica
momentos Estado que o processo
feudal foi isento de
para a consecução de seus
contradições. A burguesia
próprios objetivos serviu-se em diversos
de acumulação.
45

Nesse sentido, a racionalidade que viria a predominar na modernidade


possuía, em sua srcem, um caráter revolucionário e só poderia propagar-se e
desenvolver-se se derrubasse os sustentáculos da ordem hegemônica. Era preciso
dissolver o cimento da antiga ordem, provocar uma ruptura com qualquer
estabilidade que perpetuasse a hegemonia da nobreza e do clero e destruir os
fundamentos que sustentavam o predomínio de uma forma de produzir, pensar,
valorar, desejar e relacionar-se com os outros e com a natureza.
A revolução subjetiva produzida pela burguesia europeia no interior do regime
feudal e nobiliário teve sua expressão mais notável no período conhecido como
Renascimento. A liberação de um potencial criativo nas artes, a liberdade de
investigação da natureza e o humanismo na filosofia foram demonstrações de que a
antiga ordem estava ruindo. O transcendentalismo, o teocentrismo, a metafísica
34
qualitativa aristotélica e a representação pictórica na forma de “espaço agregado”
aos poucos deram lugar ao imanentismo, ao humanismo, à metafísica quantitativa
platônica e à arte realista e geometrizada. Mas nada disso pôde estabelecer-se sem
o confronto com a velha ordem e suas instituições, nem sem um apelo radical à
liberdade do ser humano e à necessidade de sua emancipação da submissão à
nobreza, ao clero e à cosmovisão feudal.
Essa foi a primeira face da modernidade: a face revolucionária que evocou os
potenciais de emancipação do ser humano. Segundo Hardt e Negri:

Os começos da modernidade foram revolucionários, e a velha ordem foi por


eles derrubada. A constituição da modernidade não dizia respeito à teoria
isolada, mas a atos teóricos indissoluvelmente ligados a mutações de
prática e realidade. Corpos e cérebros foram fundamentalmente
transformados. Esse processo histórico de subjetivação foi revolucionário no
sentido de que determinou uma mudança paradigmática e irreversível no
modo de vida da multidão (Hardt & Negri, 2001, p.91-92).

Com efeito, a mudança que os referidos autores chamam de “paradigmática”


não se efetuou apenas na consciência dos burgueses, mas foi possível para todos
aqueles que não estavam vinculados aos interesses da nobreza e do clero. Portanto,
foi a liberação de um potencial revolucionário na “multidão” e não apenas na

34
O conceito de “espaço agregado” foi utilizado pelo historiador da arte Erwin Panofsky para designar
a característica da pintura medieval de representar a cena com os objetos e pessoas justapostos em
um único plano, sem perspectiva ou ilusão de profundidade. Os personagens de um quadro tinham o
tamanho determinado pelo seu status social. Era, portanto, uma arte preocupada em ser uma
representação qualitativa
representação do do real, com
espaço homogêneo base na da
e geometrizado hierarquia dos papéis (Thuillier,
pintura renascentista sociais, 1994,
diferente da
p. 60).
46

burguesia, embora esta fosse a protagonista das mudanças – movida por seus
próprios interesses de riqueza e poder. À “multidão”, que estava sob o jugo das
castas dominantes da velha ordem, interessava qualquer perspectiva de
emancipação e ruptura com o antigo regime.
Se somos capazes de identificar tais efeitos na história, isso significa que a
burguesia conseguiu imprimir sua racionalidade ao mesmo tempo em que fazia ruir a
ordem feudal. Seu êxito deveu-se tanto à crise interna do sistema feudal, quanto ao
crescimento econômico da nova classe e ao progressivo aumento de sua força
política – fatos intimamente relacionados.35 Ou seja, cada vez mais os burgueses se
aproximavam do controle definitivo do poder econômico e político das sociedades
europeias, visto que a alternativa econômica que desenvolviam dentro do feudalismo
era coroada com êxitos sucessivos – e isso significava um crescimento de seu
poderio econômico e atraía mais pessoas para a sua forma de economia baseada
no comércio e na produção para a troca.
Com a passagem do capitalismo predominantemente mercantil para o
capitalismo industrial e com o enriquecimento progressivo da burguesia a expensas
da exploração de um crescente contingente de trabalhadores que migravam dos
feudos para os centros urbanos, a nova classe revolucionária aproximou-se mais do
poder e sua racionalidade conquistava cada vez mais os espíritos da época.
O fato, porém, de seu crescimento ter dependido da subjugação e exploração
de outra classe (os camponeses que perderam o acesso à terra e os trabalhadores
das indústrias, expropriados dos meios de trabalho) subtraiu-lhe o protagonismo de
um movimento de emancipação sem limites. Ao mesmo tempo em que construía

gradativamente sua hegemonia em alguns países da Europa, a burguesia passou a


ter outra preocupação: conter o espírito emancipador que ela mesma havia liberado,
para que ele não se voltasse contra seu estabelecimento como classe dominante e
protagonista exclusiva de um novo processo civilizatório. Era necessário não só lutar
pela destruição da ordem, masconstruir uma outra. Não há processo civilizatório
possível sem a construção de um ordenamento social e jurídico que estruture a

35
A discussão sobre se a crise no sistema feudal foi ocasionada mais pelo seu próprio
desenvolvimento interno ou por fatores externos (como o crescimento do comércio de longa distância,
dos centros urbanos e da classe burguesa) pode ser encontrada, a partir do debate entre diversos
historiadores, em Sweezy, et,al. (2004) e Santiago (2000). Minha opinião é de que ambos os fatores,
conjugados, criaram
discussão mais as condições
pormenorizada para
sobre e direcionaram
esse a transição
tema encontra-se do feudalismo
no Apêndice da ParteaoII capitalismo.
desta tese. Uma
47

sociedade na medida de seus interesses e submeta o controle social aos seus


projetos.
Quando a Revolução Gloriosa na Inglaterra (1688), a declaração de
independência dos EUA (1776) e, finalmente, a Revolução Francesa (1789)
marcaram definitivamente o predomínio da burguesia sobre o antigo regime, o
processo civilizatório por ela protagonizado adquiriu sua “velocidade de escape”. A
antiga ordem não figurava mais como obstáculo para seus interesses. A nova
civilização podia, agora, exercer sua hegemonia sobre todo o mundo. Contudo, o
seu estabelecimento no poder colocou em pauta um desafio radicalmente diferente:
não se tratava mais de implodir a ordem estabelecida, mas demanter e fortalecer a
nova.
Embora os ideais de emancipação propagados pela burguesia tenham sido
estendidos à “multidão”, o mesmo não aconteceu com a posse do poder e da
riqueza. Ao passar da fase mercantil para a industrial, a burguesia submeteu um
grande contingente de pessoas ao seu domínio e, obviamente, não poderia estender
a elas o seu ideal de emancipação e liberdade. Tratava-se agora de cristalizar uma
ordem que mantivesse a subjugação dos trabalhadores e legitimasse o capitalismo,
ao mesmo tempo, como modo de produção, modelo de relações sociais perfeitas e
ordenamento jurídico justo. O potencial emancipador liberado na Renascença
precisava, a partir de então, ser totalmente contido, através da imposição de uma
nova ordem e uma nova racionalidadecontra a emancipação e mantenedoras do
novo status quo.
Para Hardt e Negri,

este é o segundo modo da modernidade, construído para combater as


novas forças e estabelecer um poder para dominá-las. Ele surgiu com a
revolução da Renascença para alterar sua direção, transplantar a nova
imagem da humanidade para um plano transcendente, relativizar as
capacidades da ciência para transformar o mundo, e acima de tudo opor-se
à reapropriação do poder pela multidão. O segundo modo da modernidade
joga um poder constituído transcendente contra um poder constituído
imanente, ordem contra desejo (Hardt & Negri, 2001, p. 92).

Portanto, a modernidade ocidental é caracterizada por essa duplicidade: é ao


mesmo tempo marcada, já em seu nascedouro, pelos ideais de emancipação e pela
necessidade da ordem. “A própria modernidade é definida por crise, uma crise
nascida do conflito ininterrupto entre as forças imanentes, construtivas e criadoras e
o poder transcendente que visa a restaurar a ordem” (Hardt & Negri, 2001, p. 93).
48

Pelo que foi exposto, podemos observar que esse conflito não é apenas um
conflito de ideias. Ele possui uma característicade classe que lhe é essencial. Não
se trata apenas de um “espírito” contraditório que delineia a essência da história, em
uma perspectiva hegeliana, senão que um conflitoque se expressa na práxis social,
conforme bem identificou Marx. Uma nova classe hegemônica buscava uma ordem
que legitimasse sua dominação e permitisse o desenvolvimento controlado da
sociedade, ao passo que às novas classes subjugadas ainda interessava a
emancipação.
Esse conflito marcou definitivamente os movimentos sociais e a produção
teórica na modernidade. Enquanto, por um lado, a filosofia positivista buscava fazer
valer seu lema de “ordem e progresso” e o liberalismo econômico procurava
naturalizar as regras da economia capitalista, por outro, Marx constatava a
perpetuação e a presença ativa do desejo de emancipação e teorizava sobre sua
potencialidade transformadora. OManifesto do Partido Comunista inicia-se com a
célebre frase: “um espectro ronda a Europa”.
Mas há um outro caráter além do classista na dualidade entre ordem e
emancipação na modernidade. Quando a Europa, já na Renascença, começou a
estender o processo civilizatório burguês a outros povos, através da conquista
violenta, exploração e colonização do que viria mais tarde a se chamar Terceiro
Mundo, a dualidade adquiriu também um carátergeopolítico. Esse é um aspecto de
extrema importância para compreendermos a modernidade como um fenômenoda
história mundial e não somente europeu, como comumente é tratado. A reflexão da
modernidade limitada ao desenvolvimento da Europa não é apenas um problema

histórico, senão que também umentrave analítico que dificulta o seu entendimento e
a sua crítica. Tal entrave afeta, principalmente, os teóricos que vivem nos países
periféricos, que acabam analisando a modernidade apenas como expectadores,
como se seu próprio mundo não existisse ou não tivesse importância para a
elaboração teórica.
Enrique Dussel (2005, p. 80-97), em comentário dirigido a Charles Taylor,
aponta as deficiências das análises eurocêntricas da modernidade e nos chama a
atenção para o esquecimento da alteridade representada pela realidade (material e
espiritual) dos países dominados. Segundo ele:

A “modernidade” é um fenômeno de srcem europeia [...], mas que somente


no século XV consegue implantar-se no mundo e que, por esse fato, vai se
49

formando e reformando simultaneamente através da articulação dialética da


Europa (enquanto centro) com o Mundo periférico (enquanto subsistema
dominado) dentro do principal e único “sistema mundial”. A Modernidade se
srcina de imediato naquela Europa das cidades livres (dentro do contexto
do mundo feudal) aproximadamente a partir do século X, mas só nasce
propriamente quando essa Europa se estrutura como “centro” do
mencionado “sistema mundial”, da História mundial, que se inicia [...] no ano
de 1492 (Dussel, 2005, p. 86).

Conforme o mesmo autor, a conquista de outros continentes (América Latina,


África e Ásia) foi determinante para a própria constituição da modernidade europeia
e fez surgir movimentos de emancipação também no mundo colonizado,
acompanhados de teorias emancipatórias como as de Bartolomeu de las Casas e
Francisco Xavier Clavigero. Portanto, a dualidade essencial do mundo moderno
perpassa suas diferentes dimensões e momentos históricos. Por essa razão, a
compreensão da história mundial não pode limitar-se ao desenvolvimento espiritual
da Europa (nas artes, nas ciências e na filosofia) e a modernidade não pode ser
apenas eurocentricamente concebida.
Ao criticar o eurocentrismo de Habermas,36 Dussel afirma:
Dizer que esse contradiscurso é imanente à Modernidade, ainda se poderia
aceitar se a Modernidade fosse definida com características mundiais, só
que nesse caso a Modernidade deveria incluir, então, a sua Alteridade
periférica. Seria a Modernidade hegemônica mais o mundo periférico
dominado , formando um único sistema-mundo (Dussel, 2005, p. 94).

Nos continentes dominados, a dimensão geopolítica da dualidade entre ordem


e emancipação se manifesta na elaboração de teorias emancipatórias
especificamente (mas não excludentemente) periféricas (como veremos no Capítulo
2, Item 2.4). Na Europa – o outro pólo da relação dialética entre dominador e

dominado – essa dimensão se manifesta, segundo Dussel, na própriaconstituição


da subjetividade moderna:

Grande parte dos êxitos da modernidade não representa uma criatividade


exclusivamente europeia; mas, sim, uma constante dialética de choque e
contrachoque, efeito e contra-efeito, entre a Europa moderna e sua periferia,
até mesmo no tocante ao que poderíamos denominar de formação paulatina
do subjetivismo propriamente moderno enquanto tal (Dussel, 2005, p. 87).

A dimensão geopolítica da dualidade moderna é um elemento teórico subjacente às


análises e proposições desta tese e será mencionada em capítulos pertinentes.

36
Especificamente a afirmação de Habermas (em Discurso filosófico da modernidade) de que o
discurso
europeia. crítico é imanente à modernidade, compreendendo-a apenas como uma construção
50

A partir da identificação do caráter dual de sua constituição, Sousa Santos


distingue duas formas de conhecimento no projeto da modernidade:

[...] o conhecimento-regulação cujo ponto de ignorância se designa por caos


e cujo ponto de saber se designa por ordem e o conhecimento emancipação
cujo ponto de ignorância se designa por colonialismo e cujo ponto de saber
se designa por solidariedade (Sousa Santos, 2005a, p.29).

Ou seja, toda produção teórica e científica que se vincula, de forma intencional ou


ingênua, ao projeto de progresso ordenado das classes ou países hegemônicos
caminha no sentido da regulação e busca evitar o caos através da sistematização
teórica ou da orientação prática constitutivas de uma ordem permanente. Já o
conhecimento orientado pela eliminação do predomínio de uma classe ou nação
sobre outras trilha as sendas da emancipação e busca superar a situação de
colonialismo (seja entre classes ou países) para substituí-la pela solidariedade entre
todos.
Sousa Santos explora essa dualidade, mas afirma que a predominância do
conhecimento-regulação na modernidade foitotal, o que acabou caracterizando a
produção teórica e científica nos últimos séculos, inclusive aquela que buscava um
discurso de crítica e emancipação. Em suas palavras:

Apesar de estas duas formas de conhecimento estarem ambas inscritas na


matriz da modernidade eurocêntrica a verdade é que o conhecimento-
regulação veio a dominar totalmente o conhecimento-emancipação. [...] Ao
negligenciar a crítica epistemológica da ciência moderna a teoria crítica
apesar de pretender ser uma forma de conhecimento-emancipação acabou
por se converter em conhecimento-regulação (Sousa Santos, 2005a, p. 29.
Grifo meu).

Por isso, para ele, um conhecimento-emancipação só seria possível através de


uma “teoria crítica pós-moderna”. Conforme veremos no capítulo 2, os fundamentos
da teoria crítica e as elaborações crítico-emancipatórias latino-americanas, todos
ainda dentro de uma matriz modernista, não nos permite concordar com tal
afirmação. Apesar do conhecimento-regulação ter, de fato, predominado nas
elaborações teóricas da modernidade, sempre houve uma produção voltada para a
emancipação e suas principais características são, simultaneamente, a crítica aos
pilares das teorias regulatórias e a tentativa de se elaborar uma teoria emancipatória
rigorosa adaptada a cada contexto. A dualidade e o conflito teórico, em minha
opinião, perpassou toda a modernidade e se mantém em nossos dias. Por isso, é
51

absolutamente plausível uma teoria crítico-emancipatória dentro do espírito da


modernidade, visando superá-lo em seu aspecto dominador e regulador.
Mas, assinalemos uma vez mais, a dualidade no conhecimento não é apenas
reflexo de uma “disputa de paradigmas” ou um problema relacionado a modismos
acadêmicos ou preferências teóricas. Assim como o caráter dual da modernidade
tem suas raízes em uma estrutura econômica e social dual – seja a dualidade de
classes ou geopolítica –, a produção do conhecimento na ótica da regulação ou da
emancipação tem também um referencial nadualidade concreta e está relacionada,
portanto, ao terceiro processo de socialização do teórico social. A existência de um
conhecimento-regulação está diretamente relacionada aos interesses de uma classe
hegemônica em controlar a sociedade e ordená-la na perspectiva de sua
racionalidade e de seus interesses. Da mesma forma, a existência de um
conhecimento-emancipação relaciona-se diretamente à existência de classes ou
povos que se encontram subjugados por outros e ao desejo de se romper com a
dominação. A socialização do teórico com subjetividades de um ou outro projeto é o
que vai caracterizar a produção teórica, seja na perspectiva da regulação ou da
emancipação.
A modernidade está, então, vinculada ao nascimento, crescimento e conquista
de hegemonia de um sistema econômico diferente do feudalismo e que trouxe
consigo a exigência de novas formas de compreensão das relações dos seres
humanos entre si e com a natureza. Mais que isso, tal sistema moldou a forma de se
compreender o mundo a partir de seu próprio funcionamento, possibilitando a
construção de uma nova ontologia adaptada às exigências de seu estabelecimento.

Mas, ao mesmo tempo e complementarmente, ela se vincula às forças de


emancipação que resistiram prática e teoricamente a esse processo. A imposição
gradativa do capitalismo como sistema dominante e a resistência e elaboração
teórica contrária são processos indissociáveis da configuração da cosmovisão
moderna e estão intimamente relacionados, em uma dialética dedeterminação
reflexiva entre a base material da sociedade e a estrutura subjetiva que a legitima e
a confirma no plano espiritual.37

37
Tal não é, no entanto, a visão de Sousa Santos e de Ellen Wood. Minha divergência com esses
autores, nesse
nesta tese aspecto
e está específico
desenvolvida de suas proposições,
no Apêndice da Parte II. é essencial para a conclusão a que chego
52

Cumpre fazer aqui uma importante observação a respeito da ênfase que dei à
centralidade das relações de produção e ao caráter classista e geopolítico na
discussão sobre a dualidade da modernidade e a emancipação. Tal centralidade
pode ser compreendida, alternativamente, ou como umeixo articulador da vida
social ou como uma estrutura que subsume e explica todos os fenômenos sociais,
em uma relação dereprodução das relações de produção.
A primeira forma de compreensão, que advogo como fundamento do presente
estudo, reconhece que nem tudo é reflexo ou reprodução das relações de produção
e que pode haver (como realmente há) outras formas de dominação não redutíveis à
dominação de classe, bem como outras manifestações psicológicas e culturais que
não devem o seu sentido ao processo econômico de produção da vida humana.
A segunda maneira de se compreender a centralidade dos processos
produtivos (como estrutura) vincula praticamente todas as manifestações sócio-
culturais às relações de produção. Ela esteve presente, por um lado, na visão do
economicismo funcionalista de inspiração marxista, que reduzia a análise da
sociedade a um esquema mecânico de infra e superestrutura e, por outro lado, no
marxismo estruturalista, principalmente em Louis Althusser. Neste último caso, a
relação dos fenômenos sócio-culturais com as relações de produção não se dá no
sentido de um reflexo mecânico, mas de reprodução, no campo subjetivo, do modo
de produção capitalista.
No entanto, diversos estudos nos finais do século XX, mais especificamente os
estudos feministas e os relacionados à dominação de minorias raciais e étnicas,
argumentaram a favor da autonomia de outras formas de dominação relativamente à

dominação econômica e de classe. Alguns defendiam que o sexismo, o racismo e o


etnocentrismo são formas de dominação paralelas e, como tais, não podem
subsumir-se a uma metateoria de emancipação centrada na economia. Questões
respeitantes a gênero, raça e etnia deveriam ter suas próprias teorias de
emancipação independentes das teorias de classe social ou da reflexão que levasse
às relações de produção na sociedade.38

38
Sousa Santos chega a propor 6 “espaços estruturais” a partir dos quais uma nova teoria da
emancipação social (que ele chama de “pós-moderna de oposição”) deveria se erguer: são os
espaços doméstico , da produção, de mercado, da comunidade, da cidadania e o mundial . “Em vez de
me basear numa só macro-estrutura, a divisão do trabalho econômico, proponho uma constelação de
seis espaços estruturais, dos quais essa macro-estrutura é apenas um (o espaço mundial). Entre
esses espaços, não há assimetrias, hierarquias ou primados que possam ser estabelecidos em geral
53

Essa, no entanto, é ainda uma questão em debate. As reflexões teóricas


acerca das relações entre as dominações de gênero, raça e etnia com a dominação
de classe variam entre 1) a total autonomia advogada por algumas teorias da
“agenda pós”,39 2) a vinculação essencial do capitalismo com o patriarcado, o
racismo e o eurocentrismo de algumas vertentes do feminismo socialista e de
estudos étnicos de inspiração marxista e 3) a autonomia relativa proposta por
40
algumas correntes do marxismo e da teoria crítica revisados. Não é meu objetivo
enveredar-me por esse debate, mas alguns esclarecimentos precisam ser feitos para
se ter claro os fundamentos conceptuais desta tese.
Tenho, inicialmente, como correta a afirmação de que uma transformação na
estrutura econômica da sociedade não resolve todos os problemas e nem esgota
todos os sentidos da emancipação. As questões relativas às opressões raciais,
étnicas e de gênero (bem como às outras sobre as quais se fala menos, como idade,
deficiência física ou mental, etc.) não serão resolvidas com a emancipação de classe
ou geopolítica. Sendo assim, gênero, raça e etnia são questões que precisam ser
tratadas por teorias específicas que as percebam dentro de uma realização histórica
e busquem compreender como a dominação econômica se apropria delas para se
fortalecer. São, como dizem adequadamente Torres e Morrow, problemas “[...]
abstratamente autônomos e contingentemente internos a formações sociais
específicas[...]”(in Torres, 2003, p. 57).
A ideia de uma teoria única de emancipação, que englobe todas as formas de
dominação e opressão é cada vez mais difícil de se defender. No entanto, a
interdição de tal pretensão de globalidade não afeta os propósitos da teoria crítica

moderna, pois, segundo Torres e Morrow,


[...] a rejeição de aspectos importantes da tradição marxista ortodoxa e a
emergente sensibilidade em relação à natureza verdadeiramente
constitutiva de gênero e raça demonstram não uma fraqueza, mas o
crescimento contínuo e a vitalidade de uma tradição de análise crítica que

[...]” (Sousa Santos, 2005a, p.314). Não desejo discutir a proposta de Sousa Santos pelas razões que
exporei nos parágrafos seguintes.
39
Para evitar as polêmicas acerca das diferenças entre “pós-modernismo”, “pós-estruturalismo”,
teorias “pós-críticas”, “pós-colonialismo”, “estudos culturais”, etc., Sandra Della Fonte, prefere utilizar,
seguindo Célia Moraes e inspirada em Ellen Wood (Wood & Foster, 1999), o termo “agenda pós”
significando um conjunto de teorias que marca o pensamento nas últimas décadas do século XX (ver
Moraes, 2004 e Della Fonte, 2006, cap. II). Optei também por seguir essa terminologia.
40
Sobre essas três vertentes ver Torres e Morrow, in Torres (2003, p. 33-62).
54

está tentando lidar honesta e abertamente com a complexidade da vida sob


as condições atuais de dominação e exploração (in Torres, 2003, p. 45).

Mas cabe aqui uma reflexão. Antes de pertencermos a determinado gênero,


raça ou etnia, somos seres sociais que precisam produzir a própria existência. E
seres sociais em um mundo de economia globalizada, onde um sistema mundial

articula, material e subjetivamente, a forma de sobrevivência de praticamente todas


as pessoas do planeta. Vivemos em um momento da história no qual predomina
uma racionalidade basilar fundada nos princípios da economia de mercado (princípio
da troca competitiva, individualismo, fragmentação analítica, cálculo de produtividade
como critério de valor social, etc.), que articula a base de nossa subjetividade e
mantém a ordem através de uma práxis (pensamento e ação social) adequada à sua
hegemonia. Como todos, independente de gênero, raça ou etnia, estamos
submetidos ao mesmo sistema mundial, há umaprecedência lógica da produção da
vida sobre outros problemas, principalmente quando a forma de produção

predominante ameaça a existência da vida humana no planeta.


Afirmar que há uma precedência lógica não significa dizer que há um “nexo
causal” ou uma hierarquização valorativa e, sim, que as reflexões de gênero, raça e
etnia, embora possam ser tratadas com autonomia, não podem ser tratadas com
exclusividade e nem são âmbitos que se possam isolar do eixo sócio-econômico na
reflexão sobre emancipação. Ainda que se resolvam, por exemplo, os problemas
relacionados à dominação da mulher e ao racismo, continuaremos a viver em um
mundo dominado pelas relações econômicas capitalistas. A mulher e o negro, ainda
que fossem tratados de forma simétrica ao homem e ao branco em uma virtual
sociedade emancipada nos aspectos de gênero e raça, continuariam vivendo em
uma sociedade que os explorará e os excluirá como trabalhadores(as),
desempregados(as) ou habitantes do Terceiro Mundo.
Não é possível, portanto, falar em emancipação se não se considera a
centralidade da produção da vida. A racionalidade capitalistanão pressupõe as
dominações racial, étnica e de gênero e é capaz de incluir as reivindicações desses
setores sem ter que modificar os seus pilares.41 Inclusive, isso pode ser feito

41
Não se pode, por exemplo, dizer que Condoleeza Rice, ex-secretária de Estado do segundo
mandato de George W. Bush nos EUA, tendo galgado um dos cargos mais importantes da maior
potência do planeta, sofre ou é excluída por sua condição de mulher e negra, mas tampouco se pode
afirmar que tal fato questiona os pilares que sustentam a dominação capitalista ou que significa a
55

simplesmente através da aplicação, sem discriminação, dos critérios de valoração da


racionalidade do mercado às mulheres e aos negros, tal como propôs um dos
principais elaboradores do pensamento liberal do século XX, o economista Ludwig
Von Mises, a respeito dos negros:

Está além
negros da ser
podem capacidade humana
garantidos tornardireitos
os mesmos o negro num branco.
do branco Mas ser-
, e daí pode aos
lhes oferecida a possibilidade do mesmo ganho, se produzirem a mesma
quantidade (Von Mises, 1987, p. 31. Grifos meus).

Creio que a discussão sobre a emancipação que não se atenta para a


precedência lógica da produção da vida e para a hegemonia da racionalidade da
troca competitiva, com suas consequências materiais e subjetivas para a vida em
sociedade (cf. Abdalla 2002), corre o risco de propor a libertação de um jugo para
permanecer presa a outro maior, ou, mais grave ainda, paraadaptar-se a ele.
Quando falo em emancipação nesta tese, refiro-me ao aspecto mais amplo da
emancipação, sem pretensões de englobar todos os outros problemas relativos a
outras dominações existentes na sociedade. A centralidade da produção não é uma
questão de princípio teórico onividente, nem deve nada à vertente estruturalista do
marxismo, mas decorre da compreensão do ser humano comoser social que produz
sua existência e que, a partir disso, desenvolve sua subjetividade em uma sociedade
historicamente configurada.
Assim, as teorias da “agenda pós” que recusam a possibilidade da crítica e da
emancipação compreendida em termos mais globais (limitando-a a emancipações
localizadas em campos autônomos), ainda que seus propositores e seguidores
possam negar com veemência, acabam contribuindo com a manutenção da
estrutura social predominante e, consequentemente, com a hegemonia do
conhecimento-regulação. Apenas por questão de prudência e respeito a suas
reivindicações de serem teóricos progressistas, não incluo tais teorias na categoria
de regulação, pois isso poderia parecer apenas uma adjetivação pejorativa. Mas não
posso deixar de afirmar, por força conclusiva das próprias reflexões que fiz até aqui,

conquista da emancipação.
a ordem social Mesmo
global, embora tenhaasignificado
eleição deum
Barack
passoObama à presidência
extraordinário na lutados
porEUA não modificou
igualdade racial.
56

que, através das teorias “pós”, o pensamento regulatório hegemônico ganhou


grandes aliados entre antigos pensadores de esquerda.42
Retomando a exposição inicial, a compreensão da existência de uma dupla
característica na modernidade impede que a razão moderna seja identificada apenas
com seu lado totalitário e regulador. Ela também possui um caráter crítico e
emancipatório que não pode ser desconsiderado. Ao contrário, ainda deve ser
explorado em suas inúmeras potencialidades.
A dualidade essencial da modernidade caracteriza, como é de se esperar, o
modo de se pesquisar e elaborar teorias em educação, conforme veremos a seguir.

IV. SOBRE A DUALIDADE DA TEORIA EDUCACIONAL

Assim como os movimentos e as teorias sociais foram afetados pela dualidade


básica da modernidade, as teorias educacionais também se caracterizaram por seu

posicionamento em relação à manutenção da estrutura sócio-econômica vigente ou


à sua transformação radical. Conforme a reflexão da seção II, a educação, por ser
uma práxis social que depende das concepções de seus agentes (teóricos e
profissionais), também foi marcada por essa dualidade em seus aspectos práticos e
teóricos. Para utilizar a terminologia de Sousa Santos, as teorias educacionais
também podem ser entendidas a partir das categorias de conhecimento-regulação e
conhecimento-emancipação.
Ainda de acordo com o que foi dito acima, uma teoria educacional que tem
como pressuposto (ainda que não assumido) a manutenção da atual estrutura sócio-
econômica é não-problemática no que concerne às relações da práxis educacional
com o modo de produção vigente. A ausência de problematicidade em tais relações
decorre do fato de que a estrutura econômica da sociedade, para essa concepção, é
um factum, um dado que escapa à governabilidade do planejamento e da teoria
educacionais e que, por isso, não é colocado como questão a ser debatida em
educação. A prática educativa teria como objetivo apenas o fortalecimento ou o
progresso de uma sociedade já dada. Nesse caso, a questão não é “que tipo de

42
Uma excelente reflexão sobre a transição de uma parcela dos intelectuais de esquerda, antes
marxista, parae oWood
Fonte (2006) pós-modernismo e as(1999).
& Foster (orgs.) consequências dessa transição pode ser encontrada em Della
57

estrutura social queremos?”, mas “que tipo de relações sociais queremos (dentro de
uma estrutura dada)?”.43
É um equívoco, embora tenha sido útil por um certo tempo, caracterizar as
teorias educacionais regulatórias apenas como “tradicionais”, pois se pode ter a falsa
ideia de que tais teorias estão calcadas em uma visão estática de sociedade ou que
podem ser identificadas pela defesa de um moralismo antiquado, pela
hierarquização autoritária ou por sugerirem formas ultrapassadas e monótonas de
ensino. Compreendê-las apenas como “tradicionais” faz com que se nos escape o
fundamento que as torna regulatórias e não emancipatórias. Ao mesmo tempo, cria
a ilusão de que para realizar uma práxis educativa emancipatória basta romper com
o moralismo e com a hierarquização dos agentes (diretores, professores, serventes,
alunos, etc.), fazer críticas genéricas às “relações de poder” (sem, contudo,
identificá-las na sociedade, na economia e na política, limitando-se a tratá-las
simplesmente como “culturais” ou de caráter psicanalítico), valorizar qualquer forma
de suposta “transgressão”, “resistência” ou “subversão” presente nas manifestações
dos alunos (sem se perguntar se isso não pode ser apenas uma reprodução, no
espaço escolar, daquilo que é produto do mercado cultural e transmitido
ostensivamente pelas rádios e TV’s comerciais), ou propor métodos e tecnologias
adaptadas aos tempos modernos (como a telemática e o ensino à distância,
informática, utilização de recursos audiovisuais e de dinâmicas bem-sucedidas na
formação empresarial, etc.).
Como as teorias educacionais regulatórias concebem a educação como
caudatária do progresso e das transformações culturais dentro da ordem capitalista,

ou da estabilidade de tal ordem, elas podem ser tanto dinâmicas, inovadoras ou


mesmo “transgressoras”, como conservadoras, moralistas e ordenadoras. O que as
caracterizam como regulatórias é o terceiro processo de socialização de seus
propositores e agentes – no caso, um processo que os vincula às subjetividades
orientadas para a manutenção da estrutura sócio-econômica dominante, ainda que
proponha modificações nas relações que ocorrem em seu interior.
Mesmo que se possa defender um capitalismo “mais humano”, “mais
democrático”, “menos injusto”, “menos violento”, “sem discriminações”, etc. é sempre

43
Coloquei a última oração entre parênteses porque ela pode não estar posta como questão. Mas,
mesmo no caso da sua ausência como questão teórica (e justamente por isso), ela está presente por
não considerar que a sociedade possui uma estrutura construída historicamente e, portanto, mutável.
58

capitalismo, e isso pressupõe a primazia do mercado sobre o ser humano, a


exploração, o predomínio de uma classe ou nação sobre outra, e o submetimento de
todo juízo de valor aos critérios de lucratividade e produtividade – elementos que,
44
obviamente, contradizem o sentido mais radical da emancipação social.
As teorias educacionais que se relacionam com a transformação radical da
estrutura vigente são as que podem ser caracterizadas como emancipatórias. A
Teoria Educacional Crítica, conforme será visto no Capítulo 3, assume
explicitamente essa vinculação. A grande contribuição inicial de uma perspectiva
crítica em educação foi apontar para a íntima relação entre capitalismo e educação,
ou seja, entre a estrutura social, com suas relações decorrentes, e a atividade
educativa das instituições e programas de ensino. As hoje tão criticadas teorias da
reprodução (Althusser, Bowles e Gintis, Bourdieu e Passeron, Baudelot e Establet)
abriram o caminho para se pensar criticamente a educação como uma atividade não
autônoma e intimamente relacionada à lógica do modo de produção. Elas
representam um momento preparatório para as teorias críticas e emancipatórias em
educação. Seus postulados foram incorporados e estão presentes, ainda que com
modificações, nas teorias críticas atuais. Uma teoria emancipatória em educação
deve, necessariamente, identificar o vínculo dos processos educacionais com os
interesses de regulação para, a partir daí, buscar compreender de que forma a
emancipação pode ser incorporada como meta da práxis educacional.
Embora alguns autores atribuam a crítica e superação das teorias da
reprodução sócio-cultural às teorias da “agenda pós”, a revisão dos limites de uma
teoria crítica apenas sustentada na reprodução foi feita insistentemente pelos

próprios teóricos críticos e isso foi condição para uma teoria educacional
emancipatória (como veremos no Item 3.1 do Capítulo 3). É comum encontrarmos
textos que identificam a teoria marxista (principal fonte da maioria das teorias
45
críticas) com o determinismo econômico do marxismo estruturalista. No entanto,
teóricos críticos da educação com influências manifestas da filosofia marxiana
deixaram mais do que claro que suas proposições estavam desvinculadas do

44
Para uma análise das relações das propostas e teorias educacionais com o sistema capitalista e
sua dinâmica, ver: Frigotto (1995; 2001); Frigotto e Ciavatta (2001); Gentili e Silva (1997) e Saviani;
Lombardi e Sanfelice (2002).
45
Esse tipo de equívoco será devidamente identificado e contestado no capítulo 3.
59

determinismo economicista e buscavam ser uma superação dialética das teorias da


reprodução.
A Teoria Educacional Crítica se caracteriza pela constatação da insuficiência
das teorias da reprodução para o pensamento emancipatório – sem, contudo, rejeitar
os nexos identificados entre educação e estrutura social – e pela necessidade de se
pensar a educação e a escola como elementos essenciais para a transformação
estrutural da sociedade.
Sem a menor dúvida, o principal elaborador de uma teoria emancipatória para
a educação que rompeu os limites da compreensão reprodutivista e deu à práxis
educativa um papel positivo e emancipatório, sob a ótica dos dominados e excluídos,
foi o educador e teórico brasileiro Paulo Freire. Embora ele não tenha sido nem o
primeiro e nem o único a pensar a educação dentro dessa perspectiva, sua obra
Pedagogia do oprimido (Freire, 1975) foi um marco internacional que caracterizou
profundamente o pensamento educacional chamado de Teoria Educacional Crítica,
Pedagogia Libertadora, Pedagogia Radical (nos EUA) ou Pedagogia Crítica. O
pensamento de Freire foi incorporado definitivamente à tradição crítica em
educação.
O caráter emancipatório da pedagogia de Freire está no assumido
posicionamento ao lado dos oprimidos, visando à superação de sua condição de
opressão. Mais do que um ponto de partida teórico que possa ser defendido com
argumentos racionais, trata-se de um posicionamentoético, manifestado em toda
sua obra. Acadêmicos não habituados a revelar seus pressupostos éticos – e que,
por isso, creem não os ter – tecem inúmeras críticas ou levantam suspeitas a

respeito da terminologia de Freire, que inclui palavras como “amor”, “fé”, “vocação”,
“humildade”, etc.46 Mas é bastante curioso constatar que se tem o hábito de
considerar “científicos” o pressuposto hobbesiano doódio na ciência política (homo
homini lupus), a ideia de luta encarniçada pela sobrevivência na sociologia de
Spencer e o seu correlato na biologia darwinista e oanti-humanismo e o pessimismo
de inspiração nietzscheana ou heideggeriana, presentes em elaborações

46
O próprio Freire mostrava-se consciente da possibilidade de reações negativas diante de sua
postura assumidamente utópica. Já na Pedagogia do oprimido, na introdução, ele afirma: “[...] haverá,
talvez, os que não ultrapassarão suas primeiras páginas. Uns por considerarem a nossa posição,
diante do problema da libertação dos homens, como uma posição idealista a mais, quando não um
‘blá-blá-blá’
em diálogo, emreacionário.
esperança,‘Blá-blá-blá’ de quem
em humildade, se ‘perde’ (Freire,
em sim-patia”. falando1975,
em vocação
p. 21). ontológica, em amor,
60

contemporâneas. Embora não sejam mais do que sentimentos, não se costuma


criticar tais pressupostos como “românticos” ou “sentimentais”. Contraditoriamente,
porém, seus opostos (amor, cooperação, solidariedade, fé no ser humano e
otimismo) são tidos como romantismo ou algo equivalente e, por isso, não podem ter
espaço no mundo acadêmico, científico e, por consequência, nas teorias
educacionais.47
Ao invés de uma adesão (deliberada, ingênua ou inconsequente) a um projeto
de educação que favorece a manutenção da estrutura social – adesão que se
reveste ou de uma “neutralidade” científica em sua terminologia, ou, mais
recentemente, de um “hipercriticismo” desconstrutivo que equipara as teorias de
regulação e emancipação, tratando-as como manifestações indistintas da
“modernidade ocidental, masculina, branca e europeia” superada –, Freire admite
sua parcialidade e deixa claro como se dá, nele, o que chamei aqui de terceiro
processo de socialização do teórico em educação. O posicionamento de Paulo
Freire ao lado dos oprimidos é um pressuposto de sua teoria, uma priori ético sem
nenhuma pretensão de assepsia científica: é uma assunção do processo de
socialização que caracteriza toda a teoria social na dualidade do pensamento
moderno. Essa assunção incide no trabalho educativo, na pesquisa e na elaboração
de teorias educacionais e direcionam seu caráter.
Portanto, a presença de uma dualidade essencial também na teoria
educacional exige um posicionamento explícito do teórico. Esta exigência não é uma
questão ideológica, mas um imperativo metodológico que dará sentido e
compreensibilidade às suas elaborações e fornecerá uma base sólida às suas

pretensão de verdade – à medida que possibilita o questionamento público de seus


fundamentos e submete as teorias ao teste de aplicabilidade ao campo para as
quais se destinam, à luz dos objetivos assumidos no posicionamento.

*****
Pelo que foi exposto, torna-se necessário assumir em que esfera de
conhecimento (regulação ou emancipação) pretendi situar esta tese e quais os
pressupostos da terceira socialização do teórico que incidem em sua autoria. A

47
Tive oportunidade de refletir mais detidamente sobre essa questão em Abdalla (2006b).
61

defesa de uma Teoria Educacional Crítica como pressuposto justifica-se por uma
socialização prática e teórica com as necessidades de emancipação dos povos do
mundo periférico, do qual sou parte integrante. O objetivo escolhido de defendê-la
diante das mudanças na sociedade e no pensamento emancipatório decorre do
reconhecimento de que o mundo atual realmente oferece desafios que precisam ser
enfrentados por qualquer elaboração teórica que se pretenda crítica.
Tal objetivo se enquadra bem na explicação de Horkheimer sobre a evolução
da teoria crítica:

As suas alterações não exigem que ela se transforme em uma concepção


totalmente nova enquanto não mudar o período histórico. A consciência da
teoria crítica se baseia no fato de que, apesar das mudanças da sociedade,
permanece a sua estrutura econômica fundamental – as relações de classe
na sua figura mais simples – e com isso a ideia da supressão dessa
sociedade permanece idêntica. Os traços decisivos do seu conteúdo,
condicionados por este fato, não sofrem alterações antes da transformação
histórica. Por outro lado, a história não ficará estagnada até que ocorra esta
transformação. O desenvolvimento histórico das oposições, com os quais o
pensamento crítico está entrelaçado, altera a importância de seus
momentos isolados, obriga a distinções e modifica a importância dos
conhecimentos científicos especializados para a teoria e a práxis críticas
(Horkheimer, 1983, p. 149).

Contudo, a relevância de tal estudo e sua justificação em termos de pesquisa


acadêmica, em minha opinião, não se restringem aos que compartilham de meus
pressupostos. Para os que deles compartilham, esta tese pode ser uma contribuição
na sistematização teórica de suas perspectivas que dê maior sentido a algumas de
suas convicções. Além disso, a Parte III (principalmente o Capítulo 11) pode
fornecer algumas inspirações para os desafios da prática educativa nos países
periféricos.
Porém, para os que se situam em outra perspectiva teórica ou conceptual, este
trabalho cumpre a função (necessária e infelizmente rara) de trazer razões e
argumentos ao debate público sobre as diferentes concepções que se confrontam no
mundo atual. Se esta tese puder, ao menos, ser contestada com razões
argumentativas contrárias, no todo ou em parte, creio que terá cumprido uma
importante função.
PARTE I – A TEORIA EDUCACIONAL CRÍTICA
1) ESCLARECIMENTOS INICIAIS

A teoria crítica, atualmente, tem enfrentado questionamentos de diversas


ordens, mas os principais são de ordem teórico-filosófica. A filosofia da segunda
metade do século XX foi marcada por uma transição que não pode ser
desconsiderada por nenhuma corrente filosófica. Pode-se, provisoriamente, resumir
essa transição da seguinte forma: nos inícios da modernidade, a filosofia descobriu o
sujeito do conhecimento e deslocou sua atenção do ser para o conhecer;
recentemente, porém, descobriu-se o sujeito que descobriu o sujeito do
conhecimento.
Ao dar-se conta de que o mesmo sujeito que indica o caminho seguro do
conhecimento é aquele que está perdido e pede informações, a filosofia enredou-se

em um problema de difícil solução: o que sustentava a legitimidade dos discursos


era também um discurso que precisava ser legitimado. A aporia da autoreferência e
da regressão ao infinito tornou-se evidente. Os ideais de uma “filosofia primeira” ou
de uma fundamentação última para o conhecimento baseada em uma filosofia do
sujeito ficaram totalmente abalados.
A superação da aporia da autoreferência só foi possível quando se trouxe a
questão dos fundamentos e da validação do conhecimento para o mundo das
relações intersubjetivas mediadas pela linguagem:48

[...] A questionável abstração lógico-científica ligada à sintaxe e à semântica


construtivas poderia ser superada pela pragmática da relação de sinais
enquanto relação cognitiva [...] em favor de uma teoria científica
transcendental-pragmática . Esta última não poderia mais simplesmente
banir a problemática da validação do conhecimento para um sujeito
cognoscente , remetendo-a ao campo da psicologia empírica; deveria, antes,
tematizá-la no sentido de uma transformação normativo-semiótica da
problemática kantiana do sujeito transcendental, ou seja, enquanto
problemática da formação de consensos na comunidade comunicativa
transcendental (Apel, 2000a, p. 34-35).

48
Essa transição da filosofia no século XX foi chamada de lingustic turn, ou “virada linguística”.
Existem várias traduções da expressão, como “guinada linguística”, “reviravolta linguística” ou “giro
linguístico”, todos corretos do ponto de vista idiomático. Pessoalmente, penso que a palavra “guinada”
expressa melhor o desvio brusco de caminho, mas utilizo “virada” nesta tese por ser a expressão
mais conhecida e utilizada no meio acadêmico. A expressão foi criada por Gustav Bergmann (cf.
Rorty e Ghiraldelli
geral da filosofia doJr., 2006,XX.
século p. 51), mas foi Richard Rorty quem lhe atribuiu a característica de marco
64

Mas, assim, pagou-se o preço de uma nova concepção de verdade que (de
novo) teve de lidar com os problemas do ceticismo e do relativismo forte. Como sair
da linguagem e encontrar um ponto de apoio que garanta a legitimidade dos
discursos? Esse é um dos pontos centrais do debate filosófico contemporâneo.
A transformação da filosofia afeta particularmente as teorias que se pretendem
críticas. Uma interpretação radical da virada linguística conduz ao seguinte
problema: se estamos aprisionados à linguagem, toda referência extralinguística nos
é vedada como ponto de apoio e lastro das teorias; e se toda linguagem é contextual
e sujeita a distorções e arbitrariedades de acordo com interesses localizados, a
crítica seria, na verdade, apenas mais um discurso vinculado a determinado contexto
e que carrega as distorções da linguagem e a arbitrariedade de seus proponentes.
Alguns autores chegaram a afirmar que a materialidade de uma sociedade existente
por si, se existe, não pode afetar objetivamente a construção dos discursos, que
49
perdem assim a sua característica de referência a um mundo externo.
Como, então, defender, do ponto de vista teórico-filosófico, a possibilidade de
um discurso crítico e emancipatório, fincado na existência objetiva de um
determinado modelo de sociedade e de relações humanas, na forma da teoria crítica
(e de sua aplicação à educação), mesmo aceitando as mudanças do pensamento
que culminaram na virada linguística?
Abordar de maneira mais profunda tais questões exigiria um desvio de grandes
proporções para os objetivos desta tese e optei por deixar a análise dos
fundamentos do problema para um trabalho posterior. Mas é possível tomar um
atalho na argumentação que justifique, pelo menos, a insistência em uma

perspectiva teórica criticamente realista que defende a possibilidade do acesso e


compreensão do mundo social extralinguístico.
A argumentação está baseada em um raciocínio relativamente simples, que
busca responder à pergunta sobre se é possível o acesso a um mundo além da
linguagem para torná-lo objeto de crítica. A crítica filosófica e social, se quer
apresentar-se como algo diferente da crítica literária,50 depende da afirmação da
possibilidade de tal acesso. O atalho provisório que desejo tomar segue por uma

49
Para uma síntese dos argumentos do que se chamou de Programa Forte do Construtivismo Social,
ver Oliva (2005).
50

emSobre as diferenças
Habermas (2002, p.das críticas filosóficas e literária, ver a crítica de Habermas a Derrida e Rorty
261-296).
65

linha de argumentação negativa, ao meu ver suficiente para prosseguirmos no


estudo proposto.
Comecemos simulando a aceitação da hipótese do aprisionamento ao universo
linguístico que nos privaria do acesso ao mundo além da linguagem. A questão que
se coloca imediatamente, neste caso, é: como temos acesso à própria linguagem
que se veicula por meios físicos que estão, eles mesmos, além do universo
linguístico?
As palavras e símbolos são transmitidos por meios materiais, que vão desde a
impressão de tinta em um papel até a organização sequencial de bits que se
transformam em sinais luminosos na tela de um computador, passando pelas
vibrações sonoras que se transmitem pelo ar e afetam a película fina com que
nossos ouvidos são equipados. A organização e estrutura material desses símbolos
linguísticos, bem como as regras sintáticas que os tornam inteligíveis, devem estar,
necessariamente, imunes à total arbitrariedade dos sujeitos que com eles lidam e, ao
mesmo tempo, devem ser acessados de maneira igual por todos os integrantes de
um universo comunicativo. Caso contrário, como teríamos acesso ao significado
básico dos enunciados linguísticos propostos por um interlocutor? De que maneira, a
não ser pelo acesso a um mundo físico extralinguístico com uma estrutura e
organização comum a diversos sujeitos, teríamos acesso à própria linguagem?
Mesmo os múltiplos sentidos possíveis de serem atribuídos a um enunciado
são limitados à compreensão de sua estrutura básica que é veiculada por um meio
material submetido a regras universais, ao qual devemos necessariamente ter
acesso, livres do aprisionamento de nossa compreensão à linguagem. Se isso não

fosse assim, sequer os enunciados que propõem o aprisionamento ao universo


linguístico seriam compreendidos e a comunicação seria inviabilizada – e, com isso,
a própria linguagem. Se levássemos a hipótese da inacessibilidade ao mundo
extralinguístico ao extremo de suas consequências lógicas, restar-nos-ia apenas o
solipsismo.
Como contestar, por exemplo, uma afirmação como esta: “segundo Derrida, a
linguagem é um tamanduá e, portanto, deve ser estudada pela zoologia”? Nenhum
estudioso desse filósofo estaria disposto a aceitar tal afirmação. Mas como
demonstrar a sua inconsistência a não ser recorrendo aos escritos de Derrida e
mostrando, pela estrutura física comum da tinta no papel submetida a regras
universalmente aceitas, que o autor jamais expressou um enunciado que
66

corroborasse tal afirmação? Ou mesmo que a afirmação é destituída de qualquer


sentido objetivo na relação da linguagem com o mundo?
Ora, se nos é possível o acesso a um mundo físico e social objetivo no qual a
linguagem se expressa, cujas regras estão imunes à arbitrariedade do sujeito
individual, por que nos seria vedado o acesso a outros campos físicos e sociais
objetivos, sujeitos a regras não-totalmente-arbitrárias, a partir dos quais poderíamos
elaborar nossas reflexões – estas sim, passíveis de múltiplas abordagens – e
elaborar a crítica baseada em fenômenos reais passíveis de acesso e controle
intersubjetivo?
Dessa maneira – e levando em conta o fato de que se aceitássemos o
solipsismo esta própria tese perderia sua razão de existir – assumo como
pressuposto a acessibilidade ao mundo social que possibilita a crítica, assim como o
faz com a linguagem. Embora tal atalho não resolva as questões intricadas do
debate filosófico contemporâneo, ao menos podemos prosseguir sem o fantasma da
suposta aporia que inviabilizaria, já no início, a defesa de uma teoria crítica.
Outra questão que pode ser adequadamente proposta com respeito à defesa
da teoria crítica relaciona-se a seu suposto anacronismo, dado ser a teoria em pauta
um produto da modernidade, vinculado aos paradigmas modernos, e que, portanto,
51
estaria fora de sintonia com a realidade pós-moderna do mundo atual.
Como não é propósito desta tese debater a relação entre modernidade e pós-
modernidade (ao menos não como questão central), apresentarei apenas breves
reflexões em defesa da atualidade do tema desta Parte I, a fim de contestar
previamente qualquer acusação de anacronismo ou desconhecimento do debate que

se trava na filosofia e ciências sociais contemporâneas. Tais reflexões relacionam-se


a duas posturas diante das transformações na filosofia que podem gerar a suspeita
de anacronismo ou desconhecimento de teorias atuais: (a) a vinculação das
mudanças na filosofia ao suposto advento de uma era pós-moderna e (b) a
aceitação de ideias de autores específicos sem inseri-los em um debate não
consensual.
a) Pode-se considerar (ao meu ver, equivocadamente) a virada linguística
como um momento de transição entre uma filosofia “moderna” e uma filosofia “pós-

51
A crítica
(Sousa de Sousa
Santos, 2005a).Santos à teoria crítica (moderna) está fundamentada nessa argumentação
67

moderna”. Dessa maneira, a defesa de teorias vinculadas à modernidade sofreria,


ipso facto, de anacronismo por princípio, pois trabalharia com conceitos de uma era
já ultrapassada.
Tal postura, no entanto, depende fundamentalmente de uma concepção da
relação entre história do pensamento e história da sociedade que está longe de ser
consensual. Em minha concepção, uma nova era histórica no pensamento deveria
estar acompanhada de uma transição de era histórica na sociedade. É essa relação
que permite aos historiadores vincularem a filosofia antiga com a antiguidade
clássica grega, a filosofia medieval com o medievo ocidental e a filosofia moderna
com o advento da modernidade na sociedade europeia. Uma filosofia “pós-moderna”
seria, portanto, a caracterização de um pensamento de acordo com a época
histórica em que florescesse.
Contudo, a identificação de uma já ocorrida transição de era histórica da
modernidade para a pós-modernidade é extremamente problemática. Todas as
transições de épocas históricas foram frutos de novos processos civilizatórios
acompanhados de mudanças profundas no modo de produção e/ou na estruturação
das relações sociais entre nações ou classes. Em termos de história econômica e
social, é mais evidente que estamos no apogeu do processo civilizatório
protagonizado pela burguesia europeia (que caracterizou a modernidade), uma vez
que o modo de produção capitalista em sua fase atual e a estrutura das relações
classistas e geopolíticas, ao contrário de negarem os princípios desse processo,
confirmam-nos e os plenificam.52 As transformações no mundo que serão analisadas
na Parte II (principalmente no Capítulo 5) são mudanças dentro do mesmo

ordenamento econômico da sociedade e podem ser compreendidas pela lógica de


seu próprio desenvolvimento. Elas não têm a força necessária (a não serin potentia)
para caracterizar uma nova era na história.
Por esse motivo, as transições do pensamento nada têm a ver com mudanças
de era em sentido profundo. São, na verdade, problemas internos da filosofia em sua
evolução histórica e não expressões espirituais de uma nova era.

52
Segundo Jameson (1991, p. 60-61), citando Mandel, a realidade do capitalismo atual, “longe de
resultar inconsequente com a grandiosa análise realizada por Marx no século XIX [...] constitui, ao
contrário, a forma mais pura de capital que já surgiu, uma prodigiosa expansão do capital para zonas
que não haviam sido anteriormente transformadas em mercadorias. Este capitalismo mais puro de
nossos
(Edição dias elimina os entraves de organização pré-capitalista que até o momento havia tolerado [...]”
em castelhano).
68

Consequentemente, não há nenhum anacronismo essencial nas teorias da


modernidade, como é a teoria crítica, e tampouco em sua defesa.
As mudanças no pensamento devem ser analisadas a partir de uma
abordagem filosófica. Aceitá-las e incorporá-las à discussão não significa aderir a um
movimento pós-modernista. Nem é necessário que se trate explicitamente da
polêmica “modernidade versus pós-modernidade” para que se reconheça a
necessidade de avançar e transformar os fundamentos de qualquer teoria que queira
estar em sintonia com seu próprio tempo.
O espírito desta abordagem se alia às seguintes afirmações de Giroux e de
Torres, respectivamente:

Saber se essas mudanças sugerem uma ruptura entre modernidade e pós-


modernidade pode não ser uma questão tão importante quanto a de
compreender a natureza das mudanças e quais podem ser suas
implicações para a reconstituição de uma política cultural radical apropriada
à nossa época e lugar (Giroux, 1993, p.50).

[...] Assumiremos
defenderemos necessariamente
– a contínua pertinência e– o valor
e, em alguns
analítico momentos,
de uma postura
crítica modernista radicalmente revista na teoria social. O fato de essa
posição ser ou não agraciada com o rótulo de teoria crítica “pós-moderna”
[...] é menos importante que os temas substantivos que estão em jogo
(Torres, 2003, p. 37-38).

b) Ainda que não se concorde com o advento dapós-modernidade (ou de


qualquer coisa que, sob outra designação, indique uma transição já ocorrida de era
histórica), não se pode negar a existência de um movimentopós-modernista no
pensamento. Para Jameson (1991), tal movimento é a expressão cultural da atual
fase do capitalismo – o “capitalismo tardio, ou multinacional” –, tanto quanto o foram

omercado
realismo e o monopolista,
e fase modernismo respectivamente.
com relação às Oufases
seja,anteriores – capitalismo
ao contrário de
de um espírito
que marca uma nova era, trata-se apenas de uma expressão espiritual específica de
uma mesma era histórica capitalista.
As características da manifestação cultural pós-modernistas (na literatura,
cinema, arte e arquitetura), analisadas por Jameson (1991) e Harvey (1993), entre
outros, resvalaram para o campo da filosofia e das teorias sociais (cf. Evangelista,
1992; Wood & Foster, 1999), caracterizando um tipo de pensamento que acabou por
se estabelecer no universo acadêmico e teórico social – independente do julgamento
que dele se possa fazer.
69

Desde Lyotard (1986), o termo foi incorporado no discurso de uma quantidade


enorme de filósofos e outros teóricos. Sua utilização foi tão abundante a ponto de
saturá-lo, o que resultou em um fenômeno peculiar: autores cujas proposições se
enquadram perfeitamente nas caracterizações do pós-modernismo já recusam a
designação, ao mesmo tempo em que antigos defensores do pós-moderno buscam
outra expressão para referir-se praticamente à mesma coisa. 53

Isso torna particularmente difícil tanto a caracterização, quanto a crítica do pós-


modernismo no pensamento, não porque seja impossível identificar seus traços
fundamentais, mas porque é difícil que alguém assuma o endereçamento da crítica
ao pós-modernismo em geral para poder contestá-la. Some-se a esse fato as
diferentes reivindicações da designação “pós-moderno” com um adjetivo
diferenciador, que aumentam enormemente a equivocidade do termo, como “pós-
moderno de oposição” (reivindicado por Sousa Santos, 1999, p 35; 2005a, p. 29, 32,
36 e 37) ou “pós-modernismo de resistência” (mencionado por Giroux, 1993, p. 43,
50 e 66). A despeito disso, não se pode negar a existência de um movimento de
pensamento que se baseia na virada linguística para dela deduzir uma série de
consequências polêmicas para a filosofia e as ciências humanas, incluindo a teoria
educacional.
Como é óbvio, movimentos de pensamentos decorrem da elaboração de certos
autores. Pode-se ter a impressão – principalmente para aqueles que não estão
familiarizados com a história do pensamento filosófico ou com os debates internos
que se travam entre especialistas – que as novas questões da filosofia estão
relacionadas a autores específicos, que fazem derivar da transição da filosofia as

ideias que questionam qualquer possibilidade de um pensamento crítico e


emancipatório. Mais grave ainda é a crença não declarada, mas infelizmente
presente, de que a simples colocação das ideias por um autor importante já é
argumento suficiente para que se aceite suas proposições. Mas os problemas que
levaram à transição não pertencem a um único movimento de pensamento e, mais
especificamente, não foram trazidas à reflexão pelos filósofos pós-modernistas .
Estes procuram tirar suas conclusões particulares, mas que, de maneira alguma, são
as únicas possíveis.

53
Gilles Lipovetsky (2004), por exemplo, prefere falar em “tempos hipermodernos” e faz uma
autocrítica de sua defesa anterior do pós-modernismo, embora seja difícil identificar as diferenças
entre sua atual elaboração e o estilo e o conteúdo do pós-modernismo.
70

Os elementos principais da transição da filosofia partem da nova filosofia das


ciências pós-positivista e são a conclusão das tentativas fracassadas de se dar um
fundamento último e perfeitamente seguro para a totalidade do conhecimento. São,
portanto, questões que surgem de um debate e consequências de um caminho
percorrido por inúmeros pensadores. Ainda que se possa conhecê-las pela via de
um único pensador (seja Wittgenstein ou Heidegger ou algum representante da
filosofia analítica) elas não são exclusividade de nenhuma corrente de pensamento.
Ao expor, nos capítulos seguintes, sobre a teoria crítica e a Teoria Educacional
Crítica, não abordarei diretamente os debates filosóficos contemporâneos, mas
certamente os terei como pano de fundo. Como é de se supor, nenhum pensamento
é descolado de um posicionamento no debate efetivamente travado no campo
teórico e isso ficará claro a partir da defesa de minhas posições nesta tese.
Portanto, a exposição dos capítulos seguintes não desconhece as refutações,
problemas filosóficos e debates em torno da teoria crítica, nem ignora a passagem
do tempo e os novos movimentos intelectuais. Apenas rejeita, por razões filosóficas
e sociais, a tese de que a teoria crítica moderna é algo, em essência, superado ou
anacrônico, seja porque se acredita em uma transição de era, ou porque alguns
autores assim afirmam.
2) OS FUNDAMENTOS D A TRADIÇÃO CRÍTICA

Em suas srcens, a tradição da teoria crítica está diretamente relacionada ao


idealismo alemão (desde Kant), à dialética de Hegel e, mais diretamente, ao
materialismo de Marx. Tomando este último como fundamento inicial, os teóricos da
Escola de Frankfurt (Adorno, Horkheimer, Benjamim, Marcuse, Fromm e, mais tarde,
Habermas – dentre outros) renovaram a tradição crítica, livraram a dialética
materialista das amarras economicistas e deterministas com as quais o marxismo
vulgar a imobilizava – principalmente a partir do marxismo “oficial” soviético – e
ampliaram o alcance da crítica dialética para diversos fenômenos da superestrutura
social (cf. Horkheimer, 1983). Por isso, o termo “teoria crítica” encontra-se vinculado
mais comumente às elaborações dos filósofos da Escola de Frankfurt e seus

herdeiros.
No entanto, como sua srcem precede e seu alcance ultrapassa as reflexões
dos filósofos da escola de Frankfurt, é mais adequado referir-se à teoria crítica como
uma tradição teórica que, embora compartilhe fundamentos comuns, possui diversas
expressões na atualidade, de acordo com a área a que se dirige e ao contexto social
em que se desenvolve. Conforme afirmam, respectivamente, Torres e Wiggershaus:

A teoria crítica já não é apenas um fenômeno exclusivamente alemão ligado


à Escola de Frankfurt; pelo contrário, ela representa uma tendência
interdisciplinar e internacional de caráter geral, que foi objeto de diversas
rotulagens ao longo das duas últimas décadas (Torres, 2003, p.244).

O conceito de teoria crítica deveria ser tomado em um sentido mais amplo –


distinto do foco de Horkheimer, Adorno e do Instituto de Pesquisa Social –
para referir-se a uma forma de pensamento comprometida com a abolição
da dominação e que se situa em uma tradição marxista aberta a uma ampla
variedade de associações (Wiggershaus, 1995, p. 658). 54

Portanto, o uso da expressão “teoria crítica” nesta tese refere-se tanto à crítica
marxista e ao marxismo renovado da Escola de Frankfurt, quanto às outras
elaborações no campo da filosofia marxista (como as de Gramsci e Lukács) e
àquelas que procuram pensar a possibilidade da construção de um referencial
teórico rigoroso capaz de, complementarmente, desvendar os mecanismos da

54
Original em inglês.
72

dominação, estabelecer critérios de validação dos conhecimentos– capazes de dar


sustentação às pretensões de verdade das proposições – e sistematizar
teoricamente os caminhos para a emancipação; mesmo que algumas não estejam
direta e estritamente vinculadas à tradição marxista ou frankfurtiana. Dessa maneira,
a utilização da expressão atinge um espectro de pensamento bem mais amplo do
que a teoria crítica da Escola de Frankfurt, englobando, inclusive, as teorias que
nascem de processos de emancipação em continentes periféricos, como a Filosofia
da Libertação de Enrique Dussel, a Teologia da Libertação dos teólogos latino-
americanos, a Pedagogia Libertadora de Paulo Freire e diversos outros movimentos
de pensamento crítico-emancipatório.
O aumento da amplitude do campo que se quer abarcar com a expressão
teoria crítica requer, no entanto, a identificação de alguns temas essenciais que
caracterizam as teorias incluídas nesta tradição. Se não considerarmos esses
elementos essenciais, ficamos impossibilitados de identificar o que unifica
pensamentos diferentes em um mesmo conceito – além de corrermos o risco de
interpretar o adjetivo “crítica” quase em seu sentido vulgar, aplicando-o a qualquer
teoria que se coloque “contra” algo. Por isso, ao invés de uma exposição sobre
autores ou sobre uma corrente de pensamento específica, optei por abordar os
fundamentos da tradição crítica, para posteriormente analisar como ela foi
apropriada pela teoria educacional.
Como ampliar a aplicação do conceito não significa romper com suas raízes,
iniciarei a exposição seguindo os pressupostos conceptuais nos quais se
fundamenta a teoria crítica moderna em sua versão europeia e que se estenderam,

de diferentes maneiras, a outras formulações. Tais pressupostos são: o idealismo


alemão desde Kant (2.1); a dialética de Hegel (2.2); e o materialismo de Marx (2.3).
Para que se estenda o conceito de teoria crítica a outros movimentos de
pensamento, visando abarcar sua dimensão geopolítica, adicionarei à exposição um
pressuposto adicional: os processos reais de emancipação nos países periféricos e
as características particulares das teorias que deles decorrem (2.4). Para esse item,
tomarei como referência a América Latina, apenas por ser o local desde onde se
elabora esta tese, mas sem desconsiderar que a dimensão geopolítica da
emancipação é um entrelaçamento das práticas e elaborações teóricas de todos os
países do “Sul” (os chamados paísesperiféricos, em referência aocentro geopolítico
do capitalismo mundial).
73

A exposição estará limitada ao que interessa aos objetivos desta tese e aos
temas que serão retomados posteriormente, opção que a tornará bem mais breve e
incompleta do que exigem a amplitude e complexidade do tema. Uma abordagem
mais ampla só teria sentido se o propósito fosse compendiador, o que, porém, não é
o caso.

2.1. KANT E O IDEALISMO ALEMÃO

A grande contribuição de Kant para o pensamento moderno foi ter postulado o


sujeito como elemento ativo e inextricavelmente vinculado ao processo de
conhecimento. A necessidade e universalidade das proposições (características que
as tornavam verdadeiras) não podiam provir da experiência de fatos ou coisas
singulares, conforme Hume já havia argumentado. Por isso, Kant atribui ao sujeito
(compreendido como subjetividadeem si e não como sujeitos individuais) a posse de

ideias puras a priori que dariam forma aos dados da intuição sensível e
possibilitariam o pensamento conceitual daquilo que é recebido pelos sentidos –
donde se distinguem a sensibilidade (a receptividade para as representações do
mundo exterior) e o entendimento (a espontaneidade da razão subjetiva para pensar
as representações em conceitos).
As duas espécies de ideias puras a priori (as formas da sensibilidade e as
categorias do entendimento) são absolutamente desvinculadas de qualquer relação
empírica e não existem no mundo externo, pertencendo, então, exclusivamente à
razão subjetiva. No entanto, ambas são essenciais para a experiência e, como tais,
são condições de possibilidade da ciência e do conhecimento do mundo. A
objetividade do conhecimento, neste caso, passa a ser dada narelação do sujeito
com o objeto e não na simplesrepresentação, no sujeito, de um mundo existenteem
si ou na clareza e distinção das ideias inatas na mente – como pensavam,
respectivamente, o empirismo e o racionalismo.
A importância da transformação que Kant introduz na filosofia não é pequena.
Primeiro, trata-se de um deslocamento das condições de verdadedo objeto para o
sujeito cognoscente em sua relação com o mundo exterior (acoisa em si, que em
Kant é incognoscível fora da relação com o sujeito determinado pelas ideiasa priori).
A crítica efetuada por Kant é dirigida à razão como elemento central do processo do
74

conhecimento e, portanto, tem a pretensão de livrar a ciência e a filosofia dos erros e


distorções da razão pura da forma como era concebida até então.

Uma tal ciência [um sistema da razão pura] teria que se denominar não uma
doutrina, mas somente Crítica da razão pura, e sua utilidade seria realmente
apenas negativa com respeito à especulação, servindo não para a
ampliação, mas apenas para a purificação de nossa razão e para mantê-la
livre de erros, o que já significaria um ganho notável (Kant, 1980, p.33).
Ou seja, as condições para um conhecimento correto seriam dadas por uma
autocompreensão do sujeito realizada pela própria razão. A crítica da razão é, na
verdade, uma autocrítica catártica que expõe o sujeito aos condicionamentos
subjetivos de seu processo de conhecer. Para Kant, embora não pudéssemos
prescindir da materialidade de um mundo existente por si mesmo, o conhecimento
não era a simples representação das coisas no intelecto, mas umaação do sujeito
sobre o objeto conhecido, através da receptividade das formas a priori da
sensibilidade e da atividade das categorias a priori do entendimento. Isso significa

que para compreendermos o mundo, nossa atenção deve voltar-se não para a coisa
em si, mas para a sua objetividade disposta ao sujeito como fenômeno. O
conhecimento correto exige que a razão se purifique por meio de um
autoconhecimento que lhe revele as condições subjetivas que conformam o ato de
conhecer. Portanto, não é o sujeito que deve adequar-se passivamente ao objeto,
mas é o objeto que se adapta às determinaçõesa priori do sujeito no processo
cognoscitivo.
Tal ideia, contudo, aponta tanto para a possibilidade da ciência e do
conhecimento, quanto para seus limites: não conhecemos as coisas tais quais elas

são, pois estamos eternamente presos à moldura de nossa subjetividade, por meio
da qual tornamos presentespara nós o mundo que existe em si. A garantia kantiana
para a necessidade e universalidade do conhecimento, condições de sua
veracidade, é dada pelo postulado de uma subjetividade transcendental (comum à
espécie e não variável para cada indivíduo ou para cada época) que pode ser
conhecida por uma filosofia da razão pura.
Assim, a crítica da razão pura e a identificação das pré-condições subjetivas do
conhecimento possibilitariam o descobrimento dos motivos dos erros passados
(mormente da metafísica) e dariam à filosofia a possibilidade de indicar o caminho
seguro do conhecimento:
75

A crítica da razão conduz, por fim, necessariamente à ciência; o uso


dogmático da razão sem crítica conduz, ao contrário, a afirmações
infundadas, às quais se podem contrapor outras igualmente aparentes, por
conseguinte ao ceticismo (Kant, 1980, p.32).

Na filosofia kantiana, a moldura subjetiva do conhecimento constitui-se de


ideias fixas e atemporais, vazias de conteúdo, de caráter puramente espiritual e
formal, mas que podem, apesar disso, ser conhecidas e categorizadas em uma
filosofia transcendental, ou seja, um sistema de todos os conhecimentos humanosa
priori (pertencentes à razão subjetiva). Kant inaugura, assim, a tradição do idealismo
alemão que viria a afetar, inclusive, a teoria crítica materialista dialética. Para seus
seguidores mais imediatos, como Schelling e Fichte, não foi um passo muito largo
transportar toda a problemática do conhecimento e do ser para o campo apenas do
sujeito, prescindindo da afetação da coisa em si e de sua materialidade.
De qualquer forma, o passo dado por Kant ao colocar as condições subjetivas
prévias como elementos determinantes na conformação de nosso conhecimento

veio a caracterizar quase toda a moderna teoria do conhecimento. Em outras


palavras, a ideia fundamental de umaconstrutibilidade subjetiva do conhecimento
permaneceu em todo o idealismo alemão e manteve-se na sua superação
materialista dialética:

A teoria crítica da sociedade está de acordo com o idealismo alemão no que


diz respeito à relação da produção humana com o material dos fatos
aparentemente últimos, aos quais o especialista tem que se ater. Desde
Kant, o idealismo tem contraposto este momento dinâmico à veneração dos
fatos e ao conformismo social subsequente (Horkheimer, 1983, p. 156).

A filosofia, após deter-se na metafísica do ser durante o medievo, começou, já


com Descartes, a perguntar-se sobre as possibilidades do conhecimento como
representação dos objetos por um sujeito. As preocupações filosóficas passaram a
centrar-se nas condições mentais em que tal representação poderia acontecer; ou
seja, as condições para o conhecimento seriam desvendadas por umaautorreflexão
operada pelo sujeito.
As respostas fornecidas tanto pelo racionalismo quanto pelo empirismo
caracterizavam-se pela ideia de umEu isolado em si mesmo, que representava o
mundo dualisticamente concebido como um não-Eu. As diferenças das duas
correntes situavam-se apenas nasrcem dessas representações (se está na razão
ou no mundo da experiência) e nadireção causal do ato de representar (se tem
como ponto de partida a receptividade do espírito humano aos dados do mundo
76

disposto para si ou aespontaneidade da razão cognoscente) (cf. Habermas, 2004, p.


186-187). Com Kant, no entanto, introduziu-se na filosofia a ideia de um sujeito que
conhece o ser submetendo-o às pré-condições subjetivas e transcendentais do
conhecimento. Não se tratava mais da representação da essência pura de um
mundo existente como não-Eu, e sim da relação queconstrói a verdade como ação
da subjetividade sobre o objeto do conhecimento.
Se, por um lado, Kant elimina o dualismo sujeito-objeto característico das
teorias do conhecimento empirista e racionalista – substituindo-o por uma interação
entre sujeito transcendental e mundo da experiência possível –, por outro, mantém-
se o isolamento da estrutura do sujeito cognoscente em relação ao mundo real. O
sujeito é concebido como uma mente isolada do mundo vivido e sua estrutura é
postulada por uma arquitetônica fixa do saber, propedêutica ao conhecimento em
ato, ou seja, à ciência. Habermas denomina essa forma de compreender o processo
de conhecimento de “mentalismo”. A abordagem mentalista dirige-se às
determinações abstratas da subjetividade e as concebe como “paralelas” ao mundo
real, sem considerar qualquer influência da vida material na conformação estrutural
do sujeito. Daí decorre umafilosofia da consciência que, na modernidade, substituiu
a metafísica do ser da Idade Média. O paradigma mentalista exclui toda e qualquer
vinculação ou influência causal da vivência histórica do sujeito no processo de
conhecimento. A tradição idealista iniciada em Kant manteve as pré-condições
subjetivas do conhecimento como coisas puramente espirituais, que nada devem à
existência concreta dos seres humanos, à vida social e às contingências da história.
Na filosofia kantiana, expressam-se notavelmente também a dualidade própria
55
da modernidade e a duplicidade básica do Iluminismo: o conflito entre liberdade e
ordem. Pois é um pensamento que busca a emancipação do ser humano do erro e
da ausência de liberdade e, ao mesmo tempo, a construção de um ordenamento
racional que regule o processo de emancipação e mantenha a razão sob um
controle rígido de uma racionalidade bem estruturada. Nas palavras de Émile
Bréhier:

O criticismo é [...] estimulante do pensamento, doutrina que transforma os


pretensos dados em tarefas da atividade, uma filosofia do trabalho
espiritual, que deu nascimento, no século XIX, a todas as doutrinas que
buscam na realidade uma obra a empreender, mais do que uma coisa a

55
Exposta aqui na introdução, seção III.
77

constatar. Mas [...] apresenta-se como implacável justificação do dado. Da


ciência, tem uma concepção estática, subordinada a condições que as
ciências, desde muito tempo, ultrapassaram; da moral, uma concepção
rigorista, que a situa fora das condições reais da atividade humana; da arte,
uma concepção formalista, que corre o risco de esvaziar-lhe o conteúdo.
[...]. O a priori kantiano assinala, a um só tempo, o domínio e a
subordinação do espírito (Bréhier, 1977, p. 230).

A contradição do pensamento kantiano (e de sua expressão maior no


Iluminismo) foi reconhecida por Adorno e Horkheimer. Em comentário sobre Kant, os
autores dizem que “o que aparece como triunfo da racionalidade subjetiva, a
sujeição de todo ente ao formalismo lógico, é pago com a subordinação dócil da
razão aos achados imediatos” (Adorno & Horkheimer, 1983, p. 105). Isso, contudo,
não subtrai ao criticismo kantiano a virtude de ter assentado as bases para a
concepção moderna da crítica e da emancipação ao postular uma subjetividade
geral prévia que subjaz ao sujeito individual do conhecimento e da ação e que deve
ser desvendada por uma autorreflexão. Como o próprio Horkheimer reconhece:

[Kant] compreendeu que atrás da discrepância entre fato e teoria que o


cientista experimenta em sua ocupação especializada, existe uma unidade
profunda, a subjetividade geral de que depende a cognição ( Erkennen)
individual (Horkheimer, 1983, p.127).

Para chegar-se, contudo, a uma teoria crítica não idealista, com bases
históricas e sociais e com conteúdo mais radical de emancipação, foi necessário
rejeitar o pensamento kantiano em seus aspectos transcendentais idealistas, sem,
no entanto, abrir mão de suas intuições básicas a respeito da subjetividade
construtora do conhecimento e dos condicionamentos subjetivos do ato de conhecer
e agir no mundo. Em outras palavras, foi preciso “destranscendentalizar” a

subjetividade kantiana.

2.2. A DIALÉTICA DE HEGEL

De acordo com Habermas (2004, p. 183-223), o primeiro passo para a


destranscendentalização da crítica kantiana foi dado por Hegel. A abordagem
puramente mentalista da crítica transcendental é substituída, na filosofia hegeliana,
por uma dialética que compreende o sujeito como tambémconstruído pela história,
em sua relação com o mundo em que vive e do qual faz parte junto com outras
consciências. Nesse sentido, o mundo real não é apenas um dado a ser processado
pelas formas fixas e a priori da razão isolada de um Eu puro – formas já contidas no
78

sujeito –, mas é também um fator determinante da própria constituição da estrutura


subjetiva que se envolve no ato de conhecer.
O Eu transcendental kantiano dá lugar a uma consciência historicamente
determinada, em interação com o seu Outro (o que está além de si) e com outras
consciências. Ao invés de um Eu concebido formalmente, o sujeito é espírito que se
desenvolve na história e que carrega toda a contingência e contextualidade de seu
existir histórico determinado, além de só poder ser compreendido como sujeito
coletivo – como um “Eu, que é Nós, Nós que é Eu” (Hegel, 1992, p. 125). Por isso, a
relação entre o pensamento e a configuração do mundo em determinada época não
é somente de contemporaneidade, mas de expressividade, no pensamento, das
condições em que o mundo se encontra em um momento histórico específico.

A figura determinada de uma filosofia não é, pois, apenas contemporânea


de uma determinada figura do povo em cujo seio emerge, da sua
constituição e forma de governo, da sua eticidade e vida social, das suas
destrezas, hábitos e conveniências, das suas indagações e trabalhos na
artegeral,
em e na ciência, das suas
da decadência dosreligiões,
Estadosdas
em suas relações
que este bélicas
princípio e exteriores
determinado se
fez valer, e da srcem e ascensão de novos Estados em que um princípio
superior encontra sua gênese e desenvolvimento (Hegel, 1991, p. 36).

Todos esses fatores mencionados por Hegel constituem o Espírito da época


(der Geist der Zeit). A razão subjetiva só pode ser concebida em consonância com a
totalidade do presente histórico, pois não é, como está dito na citação acima,
“apenas contemporânea” a ele. Ela só pode ser compreendida na unidade entre
consciência e mundo e, por isso, tal como o mundo, a razão também temhistória.56
Hegel supera a dualidade sujeito-objeto através da proposição da unidade essencial
entre ambos: sujeito e objeto são unificados no conceito deespírito.
Mas a proposição de uma subjetividade construtora do mundo historicamente
determinada poderia levar ao questionamento cético acerca das verdades e à
suspeita do romantismo quanto à racionalidade do mundo. O sistema hegeliano evita
ambas as consequências recorrendo ao extremo idealismo de uma subjetividade
geral, existente por si como Espírito Absoluto. A história é concebida não como
contingência, mas como necessidade do Ser que caminha rumo à plenitude de sua
realização por meio da superação dialética Aufhebung
( ) da contradição entre sua
finitude no mundo (sua existência determinada) e sua potencialidade infinita de Ser

56Essa noção é de extrema importância para a reflexão sobre uma nova racionalidade que farei na
Parte III, capítulo 10.
79

absoluto. A razão não está além ou separada da realidade; ao contrário “o racional é


o real e o real é o racional”. A historicidade do mundo é uma epopeia do Espírito, da
qual o ser humano e suas realizações são apenas partes.
O sujeito se relaciona com o mundo em uma totalidade que tem a linguagem e
o trabalho como mediação. Em Hegel,

A linguagem e o trabalho são meios nos quais os aspectos de interior e


exterior, separados pelo mentalismo, são aglutinados. Isso também joga
uma luz sobre a natureza essencialmente prática do sujeito cognoscente. As
operações sintéticas do sujeito transcendental saem da esfera privada da
consciência para ingressar no espaço público (Habermas, 2004, p. 194).

Assim, o isolamento de um sujeito transcendental nos moldes kantianos ganha


traços de subjetividade geral, compartilhada por outras consciências e também
composta por elas. O sujeito individual que conhece e se relaciona com o mundo a
partir de uma estrutura fixa pré-estabelecida dá lugar a umaintersubjetividade que
compõe a totalidade do mundo e se inter-relaciona com seu Outro pela mediação da

linguagem e do trabalho, constituindo o “espírito objetivo”. Mas em Hegel a ideia de


intersubjetividade ainda não traz para a vida social o fundamento último do
conhecimento. Ela ganha, nos seus escritos mais famosos, contornos de uma
subjetividade absoluta da qual a vida social, a atividade humana e as instituições são
apenas manifestações objetivas na história. O verdadeiro fundamento da superação
do Eu isolado de Kant é oEspírito absoluto e não a concreticidade da vida dos seres
humanos em sociedade. Parece que Hegel, assim como Kant – ambos filósofos
partidários dos ideais da Revolução Francesa e entusiastas da nova ordem –, não
pretendia uma total destranscendentalização da subjetividade, mesmo tendo criado

as bases para a fundamentação da verdade em um mundo humana e historicamente


construído. Mais uma vez, o ideal da razão ordenadora suplanta a razão
emancipatória e imanente.
De qualquer maneira, é na unidade entre sujeito e mundo e na
intersubjetividade, ambas mediadas pela linguagem e pelo trabalho e determinadas
historicamente, que a verdade do mundo pode ser conhecida. Mas, para Hegel, tal
verdade é produto do próprio Sujeito absoluto. Sua filosofia não trata do problema,
que se inicia em Descartes, de como o sujeito pode representar o objeto, pois o
próprio conteúdo da consciência é um produtosintético da relação do sujeito com
seu Outro – na qual a linguagem é a objetivação da relação entre consciências
individuais e o trabalho a objetivação da relação do pensamento com a natureza.
80

Nessa concepção de unidade entre sujeito e mundo, não há sequer sentido para a
pergunta sobre a possibilidade de representação do mundo no pensamento ou sobre
a correção da referência do pensamento ao mundo (cf. Habermas, 2004, p. 199),
questões que só podem pertencer a concepções dualistas ou paralelistas da
existência de mundo e sujeito.
Sendo, pois, relação mediatizada e historicamente determinada, o
conhecimento do mundo não é conhecimento do “dado”, masconstrução que
persegue a totalidade subjacente ao existir determinado dos objetos. As coisas ou
fenômenos reais não possuem seu fundamento em si mesmos, ou seja, não são, em
última instância, a sua "própria verdade". Tudo o que existe édeterminação do ser
absoluto em diferentes níveis de concretização. "Opuro ser constitui o começo,
porque é tanto pensamento puro como o imediato indeterminado e simples" (Hegel,
1988, p. 138). Como Hegel concebe o ser como “Sujeito” e “Espírito”, a realidade é
um pôr-se a si mesmo do ser através da passagem de sua unicidade à multiplicidade
do mundo real. O próprio mundo real é a realidade do ser absoluto. E é na
passagem do absoluto indeterminado para a diversidade dos entes – ou seja, na
"transformação" do espírito em coisa ou do ser em natureza e mundo – que se situa
o ponto central da dialética hegeliana.
Por ser o fundamento de todas as coisas, categoria mais simples e
indeterminada, o ser (concebidoem si mesmo) é absolutamente vazio de conteúdo,
ou seja, não é nenhum isto em particular. Tudo é, mas o ser, em si mesmo, não
pode se resumir a nenhuma coisa que é. O ser é tudo, mas ao mesmo tempo não é
nada (não é nenhum algo). Segue-se daí, no pensamento de Hegel, a identificação
57
contraditória do ser com o nada. Contudo, a contradição, na filosofia hegeliana,
não é algo estático, mas motor da superação em uma síntese dialética. Odevir é,
então, postulado comosíntese superadora da unidade contraditória entre ser e nada.
A unidade entre ser e nada gera o movimento da história (Hegel, 1988, p. 141).
Assim, por um processo subjetivo do ser absoluto, o mundo (como ser determinado,
ou seja, como ser queé algo) aparece como superação (Aufhebung) da contradição
intrínseca ao absoluto:

57
"Ora, imediatamente,
também o puro ser é a épura abstração
o nada , por1988,
” (HEGEL, conseguinte,
p.139). o absolutamente negativo , que, tomado
81

No devir, o ser enquanto uno com o nada, como também o nada, uno com o
ser, são apenas evanescentes; o devir, mediante a sua contradição em si,
coincide com a unidade, em que ambos são removidos; o seu resultado é
assim o ser determinado (Dasein) (Hegel, 1988, p. 143).

No entanto, conforme o princípio de Spinoza omnis


“ determinatio est negatio”
(“toda determinação é uma negação”), o ser determinado, como mundo existente, é
também uma negação do absoluto: o finito nega o infinito. O mundo possui a
contradição de conter em sua existência, ao mesmo tempo,ser e determinação,
infinito e finito, algo e seu outro, razão pela qual muda e devém, ou seja, possui
história. As mudanças no mundo não são simples mudanças de um algo a outro,
mas processo de superação das contradições. O ser se determina (nega-se
enquanto absoluto) justamente para poder ser (isso é, para superar a sua
identificação com o nada). Faz parte do destino do ser o momento de sua negação.
Conforme assinala Herbert Marcuse, em comentário à dialética de Hegel, “A
negatividade que se encontra em todas as coisas é o prelúdio necessário à realidade

delas. É um estado de privação que força o sujeito a procurar remédio. Como tal tem
um caráter positivo” (Marcuse, 1978, p. 73).
Dessa maneira, Hegel postula uma ambiguidade essencial da realidade: as
coisas são, ao mesmo tempo, elas mesmas e o seu contrário (a negação de si ou de
suas potencialidades), e sua essência consiste naquilo que elasvêm-a-ser (e não
simplesmente no que são). Por isso, a realidade, em seus múltiplos aspectos, deve
ser compreendida como oresultado, em um determinado momento, de suas várias
determinações de ordens histórica e lógica, ambas de caráter abstrato e não
aparente. Hegel diz que o conceito éconcreto, porque é unidade resultante de
múltiplas determinações (Hegel, 1988, p. 99).
As mudanças que vemos na história e na consciência são passos na direção
da perfeição do ser e da superação de seus aspectos negativos. A mesma
processualidade que Hegel vê na realidade é atribuída também ao pensamento, pois
ambos constituem uma unidade. Dado que sujeito e objeto são concebidos como
espírito, em Hegel “a processualidade do pensamento é consequência da
processualidade de toda a realidade" (Lukács, 1979, p. 29).
A virada que Hegel realiza no plano do pensamento quando atribui à lógica
(movimento do pensamento) os mesmos princípios da ontologia (movimento da
realidade) é também destacado por Lukács:
82

[...] ao contrário de toda a lógica tradicional, onde era óbvio reconhecer


como dadas as formas objetivas da realidade, suas conexões, etc., para
depois extrair delas as formas especificamente lógicas, a lógica hegeliana –
querendo ser ao mesmo tempo ontologia (e gnosiologia) – é levada a não
assumir simplesmente os objetos e elaborá-los em termos lógicos, mas a
ser pelo menos coexistente com os mesmos (Lukács, 1979, p. 43).

Assim, a razão, que em Kant era uma estrutura estática portadora de formas
fixas, eternas e pré-existentes em uma subjetividade transcendental, ganha, em
Hegel, movimento e história, coloca-se junto ao mundo e desenvolve-secom ele, na
unidade do espírito.
A dialética hegeliana, enquanto movimento do pensamento, possui um caráter
eminentemente crítico. Ela nem ignora os objetos, nem os têm como dados
acabados, senão que, partindo de seu aparecer imediato, rejeita-os como o
essencial e verdadeiro: o revelar-se dos objetos à consciência é apenas um
momento de sua essência. O momento dialético do pensamento é o quenega o
objeto dado, mas dele se serve como o ato do comer: depende do alimento, mas,

para satisfazer-se, destrói a forma com a qual ele se apresenta (Hegel, 1988, p. 81).
A essência é o ser que aparece – não é, portanto, nem puro ser nem mero aparecer.
A verdade não está "por detrás ou para além do fenômeno" (Hegel, 1988, p. 166),
mas tampouco se esgota nele.
Sendo o mundo uma totalidade e resultado de um processo – e não um dado
em-si, isolado –, só pode ser verdadeiro o conhecimento que o apreenda em sua
gênese e totalidade. O “entendimento” V( erstand) só apreende os entes em sua
imediatidade e individualidade e, por isso, permanece na aparência exterior;
somente a razão (Vernunft) dialética consegue apreender os objetos em sua

verdade, ou seja, na unidade de suas determinações históricas e lógicas. A dialética


para Hegel é precisamente isso: “a natureza própria do pensar”, que deve,
“enquanto entendimento, enredar-se na negação de si mesmo, na contradição”
(Hegel, 1988, p. 80). Mas, como sua filosofia unifica o conhecimento da realidade
com a realidade mesma, a dialética não é tratada como um método de
conhecimento, mas como o princípio fundamental do movimento do real (ou, melhor
dito, do Espírito absoluto que se põe, como sujeito, na realidade).
Lukács afirma que, em Hegel, “as categorias lógicas não são concebidas como
uma simples determinação do pensamento, mas devem ser entendidas como
componentes dinâmicos do movimento essencial da realidade” (Lukács, 1979, p.27).
Nas palavras de Hegel:
83

É importante que a filosofia tome nota de que o seu conteúdo não é mais
nenhum senão o que srcinariamente se produziu e se produz no domínio
do espírito vivo, conteúdo que se tornou mundo , mundo externo e interno da
consciência – isto é, de que o seu conteúdo é a realidade [efetiva]
(Wirklichkeit ) (Hegel, 1988, p. 73).

O passo destranscendentalizante dado por Hegel e a capacidade crítica de sua


dialética ficaram, contudo, atolados na idealização do Espírito absoluto que subtraía
ao ser humano o papel de sujeito último de seu mundo. Ao mesmo tempo em que
abriu a possibilidade de se pensar a razãono mundo e de se vincular a verdade à
história humana, a filosofia hegeliana jogou os fundamentos para um Sujeito
absoluto que, mesmo sendo histórico, não era imanente à história e, portanto,
permanecia transcendente – embora diferente do Eu transcendental kantiano. Esse
pensamento acabou sendo também uma legitimação das instituições que se
solidificavam após a Revolução Francesa e as conquistas napoleônicas, pois as
concebia como expressão racional máxima da história do Espírito.
O arremate decisivo para a teoria crítica moderna foi dado pelo materialismo de
Marx, que trouxe a dialética hegeliana para o mundo concreto dos seres humanos e
a transformou em um instrumento de crítica social.

2.3. O MATERIALISMO DE MARX

Marx serviu-se amplamente da dialética hegeliana. Sob o ponto de vista


filosófico, há mais continuidade na sua relação com Hegel do que ruptura. Segundo
ele próprio:

O fato de que a dialética sofra nas mãos de Hegel uma mistificação não
impede
amplo eque este filósofo
consciente suas tenha
formassido o primeiro
gerais que soube
de movimento. expor
O que de um
ocorre modo
é que a
dialética aparece nele invertida, posta de cabeça para baixo. É necessário
apenas virá-la, melhor dizendo, colocá-la de pé, e em seguida se descobre
sob a crosta mística o núcleo racional (Marx, 1974, p. XXVI).58

Portanto, sob o aspecto dos fundamentos filosóficos da dialética, Marx


conserva o essencial da filosofia hegeliana. Ele via naFenomenologia do espíritoa
presença de “todos os elementos da crítica” (Marx, 1978, p. 37) que, no entanto, não
foram levados às últimas consequências por Hegel. Cabe aqui, somente, expor os
pontos centrais da diferença do pensamento de Marx que vieram a constituir a

58
Edição em castelhano.
84

tradição teórica crítica em sua versão materialista e como, com ele, a crítica se livrou
tanto de seu aspecto transcendental, como de seu caráter idealista – fato que tanto o
aproxima como o afasta de Hegel.
A destranscendentalização do sujeito iniciada por Hegel foi reconhecida por
Marx da seguinte forma:

A grandeza da Fenomenologia hegeliana e de seu resultado final [...]


consiste [...] em que Hegel compreenda a autogeração do homem como
processo [...]; em que compreenda então a essência do trabalho e conceba
o homem objetivado, verdadeiro, pois esse é o homem efetivo como
resultado de seu próprio trabalho. O comportamento efetivo e ativo do
homem para consigo mesmo, na qualidade de ser genérico ou a
manifestação de si mesmo como ser genérico, isto é, como ser humano,
somente é possível porque ele efetivamente exterioriza todas as suas forças
genéricas – o que por sua vez só se torna possível em virtude da ação
conjunta dos homens enquanto resultado da história [...] (Marx, 1978, p. 37).

Mas Hegel, como vimos, não aceita todas as consequências de trazer a


subjetividade para a história humana. Sua fascinação com a nova ordem era tanta

que sua filosofia deveria legitimá-la e não considerá-la como algo contingente e
transitório. Hegel, com efeito, via nas conquistas napoleônicas – que, a seu modo,
estendia os ideais da Revolução Francesa para outros países da Europa – como a
realização plena do Espírito racional.59 Por isso, mesmo que reconhecesse o caráter
histórico e transitório das realizações humanas e da própria essência da
subjetividade, ele atribui um caráter de necessidade e absolutidade à ordem
presente ao considerá-la a expressão objetiva e final do Espírito absoluto. Esse
aspecto fez com que Marx considerasse a crítica hegeliana como uma crítica apenas
“aparente”, pois ao invés de utilizar-se da dialética para desvendar a forma pela qual
as estruturas são construídas historicamente (inclusive as burguesas), ela acaba por
justificar e legitimar as do seu tempo, concedendo-lhes caráter de perenidade. Ou
seja, no que diz respeito à modernidade, ao invés de buscara essência além da
aparência, Hegel deu ao aparente o aspecto de essência:

Assim, em Hegel, a negação da negação não é a confirmação da essência


verdadeira mediante a negação do ser aparente, mas a confirmação do ser
aparente ou do ser alienado de si em sua negação, ou a negação deste ser
aparente com um ser objetivo, que habita fora do homem e é independente
dele, e sua transformação em sujeito (Marx, 1978, p. 43).

59
O encantamento de Hegel com as conquistas de Napoleão pode ser notado em suas palavras em
uma missiva: “Vi o imperador – essa alma do mundo – sair da cidade para fazer reconhecimento: é
realmente uma
montado num sensação
cavalo, maravilhosa
se estende sobre o ver um e tal
mundo indivíduo
o domina” que, apud
(Hegel, concentrado
Châtelet,aqui
1995,num ponto,
p. 22).
85

Dessa forma, a crítica hegeliana não efetua a superação dialética das


instituições burguesas revelando seu fundamento construído nas relações sociais, e
sim supera-as dialeticamentepor si mesmas como objetivação do Espírito absoluto.
“Na realidade, continuam de pé direito privado, moral, família, sociedade civil,
Estado, etc.” mudando-se apenas a forma de se compreendê-los (Marx, 1978, p.
43). Por isso, trata-se de uma crítica “aparente”.
Marx vincula sua perspectiva a uma época em que o ser humano se vê
desafiado a assumir para si a tarefa de explicar o mundo. Tanto Hegel quanto seus
seguidores, mesmo alguns críticos da propriedade capitalista, como Proudhon,
recorriam a um fundamento supra-humano para legitimar suas teorias. Marx quis
assumir todas as consequências de uma fundamentaçãoimanente da subjetividade
e do mundo. Para ele, o estabelecimento da moderna sociedade burguesa teve um
caráter constantemente revolucionário e colocou em evidência as potencialidades do
ser humano. No Manifesto comunista, o autor expõe a necessidade de se
reconhecer na práxis humana o fundamento do mundo e, consequentemente, da
teoria:

A revolução contínua da produção, o abalo constante de todas as condições


sociais, a eterna agitação e incerteza distinguem a época burguesa de todas
as precedentes. Suprimem-se todas as relações fixas, cristalizadas, com
seu cortejo de tradicionais e veneradas concepções e ideias [...]. Tudo o que
era sólido e estável, evapora-se no ar, tudo que era sagrado é profanado, e
por fim os homens são obrigados a encarar com serenidade suas
verdadeiras condições de vida e suas relações com os demais homens
(Marx & Engels, 1977, p. 87. Grifo meu).

As tentativas do idealismo crítico alemão, de Kant a Hegel, de legitimar a nova


ordem a partir de uma filosofia transcendentalizante – seja através da afirmação do
Eu transcendental ou da transcendentalidade de um Sujeito absoluto – deveriam ser
submetidas a uma crítica que colocasse a ação humana como fundamento último do
mundo. Essa era a perspectiva humanista que caracterizou o espírito emancipatório
do Renascimento, mas que foi embotada pelo pensamento que buscava um novo
ordenamento teórico legitimador para a sociedade burguesa (cf., acima, a Seção III
da Introdução). Mesmo as críticas da esquerda hegeliana não se mostravam
suficientes para trazer a filosofia para o mundo da práxis humana.
Marx diz, na primeira tese contra Feuerbach, que os erros dos materialismos
anteriores foram não considerar aatividade humana e limitar-se a conceber o objeto
apenas sob a forma de “objeto ou de intuição, e não como atividade humana
86

sensível, como práxis” (Marx, 1978, p 51). Isso fez com que a dimensãoativa do
sujeito, postulada por Kant, fosse apropriada de maneira puramente abstrata pelo
idealismo. Seu propósito, então, era constituir uma teoria materialista que
considerasse a atividade subjetiva como algo concreto, pertencente à ação humana
na sua relação com o mundo e com os outros. O fundamento da filosofia marxiana é
um materialismo que mantém as conquistas teóricas do idealismo crítico e, ao
mesmo tempo, resgata o aspecto humanista e emancipatório do espírito
renascentista.
Marx reconhece em Feuerbach o mérito de ter fundado o “verdadeiro
materialismo” quando faz da “relação social homem a homem o princípio
fundamental da teoria” (Marx, 1978, p. 34). Mas, mesmo Feuerbach ainda não havia
compreendido o fundamento como práxis, ou seja, como ação humana concreta.
Esse é o mérito específico de Marx, muitas vezes deixado de lado até por
intelectuais marxistas: o conhecimento vincula-se com a vida de forma
indissociável.60 A insistência de Marx na fundamentalidade da práxis revela a sua
contribuição central para a filosofia e o seu caráter de srcinalidade. O criticismo e o
idealismo alemães trouxeram a novidade da construtibilidade subjetiva do
conhecimento, mas compreenderam o sujeito ou como uma estrutura pré-formada
para o ato cognoscente ou como um absoluto estático que põe a realidade. Hegel
historiciza o sujeito, concebendo-o como coetâneo à época em que vive, não por
contingência, mas em essência; porém subsume o sujeito ao desenrolar da história
do Espírito absoluto, em relação ao qual sua ação cumpre uma função demediação
para a objetivação e superação-elevação Aufhebung
( ) desse Espírito. Marx, por sua

vez, traz todo o fundamento para a ação humana enquantopráxis que, em última
instância, fundamenta-se a si mesma. “Toda vida social é essencialmenteprática.
Todos os mistérios, que induzem às doutrinas do misticismo, encontram sua solução
racional na práxis humana e no compreender dessapráxis” (Marx, 1978, p. 52).

60
O erro do saber exclusivamente acadêmico situa-se, muitas vezes, em ter com o mundo uma
relação muito distante, como se a teoria tivesse uma autonomia com relação à vivência concreta e
corpórea da sociedade e dos indivíduos. Uma possível solução para os impasses do pensamento na
atual fase da modernidade, em minha concepção, deve ser buscada exatamente nessa vinculação do
pensamento com a existência humana material, corpórea, com a práxis cotidiana de seres que não
querem apenas elaborar teorias, mas viver uma vida que valha a pena ser vivida. Sendo a
Universidade uma parte desta sociedade (e mantida por ela), sua produção não pode alienar-se do
aspecto vivencial
exclusivos do mundo
de validação, emeles
sejam que de
existimos
caráter para lidar
lógico, apenas
estético oucom discursos avaliados por critérios
retórico.
87

Não devemos relativizar a importância deste aspecto, uma vez que é também
essencial para a reflexão sobre as teorias educacionais. O trabalho intelectual, por
suas próprias dimensões e exigências, só pode ser realizado quando algumas pré-
condições estão dadas: quando se está alimentado, quando se teve acesso aos
meios de formação (educação, livros, etc.), quando se tem saúde, etc. É
compreensível – embora não necessariamente aceitável – que o trabalho teórico se
desvincule das exigências básicas da natureza humana, visto que o próprio ato de
realizá-lo atesta que tais exigências elementares, ao menos para o intelectual, já
foram sanadas e não se colocam como problema imediato. Muitas vezes ocorre uma
ruptura entre o mundo no qual vivemos e o mundo sobre o qual pensamos, o que
deixa o trabalho intelectual livre para conceber-se apenas como um trabalho “ideal”,
puramente teórico, resultado do esforço cerebral espontâneo e não contaminado
com os interesses da vida cotidiana, sejam os do próprio intelectual ou os das
pessoas que povoam o mundo no qual ele vive.61 Por isso, a insistência no caráter
praxiológico do conhecimento, da forma como Marx o concebe, cumpre uma função
importante para evitar a dissociação entre conhecimento e mundo vivido; o que será
também fundamental para a compreensão das proposições da Parte 3 desta tese
(principalmente as do Capítulo 11).
Nos Manuscritos econômico-filosóficos, Marx traz a teoria para a existência
natural do ser humano, proposição que ele designa de “naturalismo realizado”, ou
“humanismo”, diferente tanto do idealismo quanto do materialismo, mas que é, “ao
mesmo tempo, a verdade unificadora de ambos”. Tal naturalismo é o único “capaz
de compreender o ato da história universal” (Marx, 1978, p. 40). Ele se fundamenta

na afirmação do ser humano como um “ser que padece”, ou seja, possui


necessidades e carências que precisa suprir por meio do acesso a um mundo
objetivo existente exteriormente, fora de sua subjetividade. Portanto, o sujeito se
dirige ao objeto não srcinariamente como um ser cognoscente, mas como umser
que padece e necessita da exterioridade para ser o que é.

61
Talvez seja por essa razão que muitos não estranham o fato (por si mesmo surpreendente) de que
nas universidades brasileiras o interesse por uma filosofia latino-americana ou por uma teoria
educacional voltada
avidez por uma paraenrediça
exegese a realidade dos países
de textos periféricos
obscuros seja,
de algum muitas
filósofo vezes,oubem
francês menor do que a
alemão.
88

Ao invés de enredar-se em argumentações especulativas para justificar esta


“virada humano-naturalista”, Marx recorre a um princípio vivencial, pragmático, que
qualquer um pode colocar em teste:a fome.

A fome é um carecimento natural; precisa, pois, de uma natureza fora de si,


um objeto fora de si, para satisfazer-se, para acalmar-se. A fome é
necessidade
está (Bedurfnis
fora dele ) confessa que
e é indispensável meua corpo
para tem de um e objeto
sua integração para que
sua
exteriorização essencial (Marx, 1978, p. 40).

Nesse aspecto, sua visão distancia-se do idealismo ao afirmar uma


exterioridade material não posta pela consciência, mas existente em si e por si, com
a qual o sujeito se relaciona. Os questionamentos a respeito das possibilidades de
relacionamento do sujeito com o mundo externo, objetivo, e que pode ser
subjetivado – ou seja, pode ser apropriado pelo sujeito e incorporado à subjetividade
– podem ser respondidos não teoricamente, mas de maneira pragmática: qualquer
teórico pode suspender a alimentação e experimentar seu padecimentoessencial,

cuja superação exige um mundo objetivo de objetos reais passíveis de subjetivação.


O “naturalismo realizado” de Marx, ouhumano-naturalismo, pode ser uma base
sólida para a defesa de uma teoria crítica terceiromundista em contraste com os
antirrealismos ou antirrepresentacionalismos (cf. Rorty, 1996) decorrentes de certas
interpretações da virada linguística. A fome é um dado bastante próximo em nossas
sociedades, ao qual podemos recorrer como fundamentação extralinguística da
objetividade do mundo e como ponto de apoio para uma teorização crítica. Sua
característica essencial é a de ser um padecimento que conduz à ação consciente
em um mundo que precisa e pode ser conhecido e transformado. A satisfação da

fome depende da correspondência entre o termo “fome” e o objeto real que a


satisfaz, que deve, necessariamente, ser alimento e estar à disposição do sujeito
que padece. Portanto, há a necessidade de referência e correspondência entre, por
um lado, a expressão linguística “satisfação da fome” e, por outro, os objetos do
mundo real e as relações sociais que os tornam disponíveis ou negados, que tornam
efetivo o sentido da expressão.
O distanciamento dos materialismos anteriores se dá no fato de que Marx não
concebe, na relação sujeito-objeto, a existência de um mundo natural como um
dado, mas como produto da atividade humana. O ser humano “não é apenas um ser
natural, mas um ser natural humano”, ou seja, um ser que precisa construir-se e
89

confirmar sua humanidade (característica essencial, ontológica) no agir dinâmico no


mundo.

Por conseguinte, nem os objetos humanos são os objetos naturais tais


como se oferecem imediatamente, nem o sentido humano, tal como é
imediata e objetivamente, é sensibilidade humana, objetividade humana.
Nem objetiva nem subjetivamente está a natureza imediatamente presente
ao ser, humano
nascer de modo
assim também adequado.
o homem possuiE seu
como atotudo o que é natural
de nascimento: deve,
a história
que, no entanto, é para ele uma história consciente, e que, portanto, como
ato de nascimento acompanhado de consciência é ato de nascimento que
se supera. A história é a verdadeira história natural do homem (Marx, 1978,
p. 41).

A dialética hegeliana ganha aqui uma nova dimensão: ao invés de ser o


movimento crítico que nega o aparente como aparente para justificá-lo como
objetivação do Espírito, ela passa a ser a maneira crítica de se conceber o mundo
como história do ser humano; história que possui movimento e que se supera
dialeticamente. A não-imediatidade é tantodo objeto quanto do sujeito; ambos não

podem ser concebidos como dados. Segue-se daí que o conhecimento é algo
processual, e não se limita às representações imediatas presentes no sujeito. Faz-se
necessário uma superação dialética do pensamento baseado nas intuições e
representações – o que Marx chama nosGrundrisse de “representação caótica do
todo” – em direção ao pensamentoconcreto.
O pensamento possui a tarefa de negar o aparentemente dado para captar a
essência não imediata. Mas isso não ocorre como mera contemplação do real,
senão que como atividade do sujeito sobre o objeto. Para Marx, não há objeto real
sem a sua subjetivação. Por isso, nosGrundrisse, ele afirma que uma estrada de
ferro que não é usada, ou seja, não é consumida por um sujeito, ou uma casa que
não é habitada, ou, ainda, um vestido que ninguém veste, nada disso pode ser
considerado real, mas tão somente “em potência”; é apenas na relação com uma
subjetividade ativa que os objetos adquirem a completude de sua realidade (Marx,
1985, p. 13-14). Por conseguinte,

[...] a totalidade concreta, enquanto totalidade de pensamento, como um


concreto pensado, é na realidade um produto do pensamento, da
concepção; mas de modo algum do conceito que nasce por si mesmo fora
ou por cima da intuição e da representação, senão que da elaboração da
intuição e da representação [como produto] no conceito. O todo, tal como se
manifesta na mente, como um todo discursivo, é um produto da cabeça
pensante que assimila o mundo do único modo que pode fazê-lo (Marx,
1985, p. 16).
90

As mudanças que sofreu a dialética hegeliana na teoria de Marx foram


consequências da mudança na concepção do princípio fundante gerador do mundo
– a percepção de que ele era produto de determinações materiais (resultantes da
práxis humana) e não do desenrolar épico do Espírito Absoluto. Para Marx, assim
como para Hegel, o mundo possui uma dimensãoracional (cf. Markovic, 1978, p. 66-
67). Se a representação imediata do mundo não explicita sua racionalidade, isso se
deve à incompletude tanto do objeto quanto do sujeito.Do lado do objeto, o mundo
não realiza, no seu existir presente, todas as suas potencialidades nem no sentido
ontológico (ele não é o real acabado), nem no sentido histórico (sua existência é
sempre temporal e potencialmente futura).Do lado do sujeito, por ser a consciência
também processual, o pensamento precisa construir-se por meio de uma
autorreflexão que o compreenda também como produto histórico e como produtor da
história.
A sociedade é constituída de elementos contraditórios, distintos, cotidianos
que, no entanto, passam a ter unidade de sentido dentro de um todo teórico
sintético, fruto da atividade subjetiva humana, ou seja, da ação construtiva do
pensamento teórico – e não do acúmulo derepresentações. Para Marx, a totalidade
teórica sintética da modernidade estava no conhecimento da estrutura da sociedade
burguesa.62
O pensamento dialético, no contexto teórico marxiano, é o que realiza o
movimento teórico-racional que, considerando as contradições e a superação
(Aufhebung) da realidade histórica, reprocha o aparecer fenomênico do mundo e faz
surgir a totalidade concreta. Voltado para as instituições da sociedade, esse

pensamento revela as raízes da exploração social e da produção material do mundo


humano e apela para a necessidade da ação emancipatória do ser humano como

62
É comum ouvir-se a afirmação de que o marxismo se resume a “explicar tudo pela economia”. Tal
afirmação está tão distante de Marx que talvez nem merecesse ser comentada. Mas apenas para que
se desfaça a confusão na cabeça de leitores intelectualmente honestos, que procuram conhecer uma
teoria antes de rechaçá-la, é preciso assinalar o seguinte: quando se fala da unidade de sentido que a
realidade possui dentro de um todo sintético não se está eliminando a inesgotável fonte de sentido
possível que esta possui e nem se afirmando que basta a compreensão do todo para se entender as
partes . Com relação à primeira afirmação, Marx defende a existência da realidade fora dos limites da
mente humana, com relação à qual guarda uma exterioridade infinita que nunca se esgota no
conhecimento. Contra a segunda afirmação, basta ver na obra total de Marx que seu método procede
por análise e síntese – ou melhor, esses momentos são complementares e indissociáveis – e jamais
nega que o particular guarda uma autonomia relativa com o todo. Nos Grundrisse (Marx, 1985), a
primeira parte reflete sobre a relação do todo com as partes (no caso, da produção em geral com o
intercâmbio, a distribuição e o consumo) e mostra bem essa autonomia em uma análise não-
determinista.
91

sujeito coletivo. Em Marx, a partir da análise de sua época, o sujeito coletivo da


emancipação resumia-se a uma classe social, o proletariado. Mas, como isso não é
a essência de sua teoria, e sim uma aplicação à sua época histórica, nada impede
que a coletividade agente da emancipação seja compreendida em termos mais
ampliados, como resultado da compreensão das mudanças do mundo
contemporâneo (conforme veremos na Parte II).
Portanto, por ser resultado de um processogenético em que a práxis é o
fundamento, o mundo só pode ser conhecido por um procedimento teórico que seja
também processual e subjetivamente ativo. Aqui, então, se assentam as bases para
a teoria crítica. Não se trata de uma reprodução do real na somatória das
representações sensíveis (positivismo) e nem da criação unilateral do real pelo
sujeito (idealismo), mas da recriação teórica e conceitual do real em sua ordem
essencial.
Marx soube, portanto, aproveitar da dialética hegeliana aquilo que diz respeito
à reflexão subjetiva e à processualidade do pensamento – adialética da consciência
– e contribuiu com a vinculação dessa dimensão espiritual à materialidade de nossa
existência histórica prático-corpórea – adialética do mundo vivido. Isso está evidente
tanto nos escritos da juventude, quanto nosGrundrisse, o que significa – como
mostrou de forma convincente os estudos marxianos de Dussel (1985; 1988) – que
essa base filosófica não é apenas do “jovem Marx”, mas um elemento fundamental
da filosofia marxiana em sua totalidade (incluindoO capital).
Karl-Otto Apel (2000b, p. 9-31) destaca que autores marxistas (elaboradores do
que ele cuidadosamente adjetiva de marxismo “ortodoxo”) deixaram de lado o

primeiro elemento da dialética (a dialética da consciência), o que resultou em uma


concepção dogmática e objetivista da dialética materialista. Esse abandono torna
necessário uma rearticulação entre “reflexão e práxis material” para que o conceito
de dialética apareça em sua essência integradora de subjetividade e vida material,
(essência que Apel identifica apenas no “jovem Marx”). O fato é que a filosofia
marxiana e grande parte das elaborações dos autores que a têm como fonte de
inspiração não podem ser interpretadas à maneira do marxismo “ortodoxo” – de
resto, já exaustiva e suficientemente criticado (atualmente, até por quem sequer
chegou a conhecê-lo).
Uma compreensão adequada da filosofia marxiana exige, sempre e cada vez
mais, um “retorno” a Marx. Pode ser que o Marx cuja morte ainda tem sido
92

ostensivamente alardeada seja não mais que um sósia. A compreensão da dialética


em seu duplo aspecto mencionado por Apel e destacado na exposição acima – a
dialética da consciência e da práxis material – é fundamental para o aproveitamento
da teoria crítica na educação e estará na base de toda a reflexão da Parte III.

*******
Temos aqui, em resumo (em 2.1; 2.2; e 2.3), os traços fundamentais da teoria
crítica em sua srcem europeia. Antes de refletir sobre os aspectos latino-
americanos da tradição crítica (2.4), é necessário ver como Horkheimer (1983)
sistematizou a teoria crítica que caracterizou tanto os estudos da Escola de
Frankfurt, quanto outras elaborações teórico-críticas. Os aspectos fundamentais da
teoria, expostos por Horkheimer emTeoria tradicional e teoria críticae em Filosofia e
teoria crítica, constituem o essencial da tradição crítica e representam o que há de
comum em distintas elaborações – como as dos próprios frankfurtianos, cuja
unidade está mais na base teórica do que em seus diferentes conteúdos.
Os próximos parágrafos constituem uma síntese dos pontos principais dos
referidos artigos. Mais que uma elaboração própria e srcinal de Horkheimer, eles
63
são uma sistematização da tradição teórica que fundamentava seus estudos.
Trata-se, portanto, do esclarecimento de como os fundamentos refletidos nas seções
acima afetam a elaboração teórica e a pesquisa social – que, obviamente, também
valem para a teoria educacional.
a) A teoria crítica compreende que o trabalho teórico não é independente da
base material da sociedade e está indissociavelmente vinculado ao processo de
produção econômica e ao desenvolvimento de uma dada sociedade . Portanto, a
atividade teórica e a produção de verdades são também elementos determinados
pela história. A teoria que não se atenta para esse vínculo, supondo-se autônoma,
neutra e aistórica, possui caráter de ideologia, pois acaba ocultando a raiz de sua
produção e criando a ilusão de verdades imunes ao questionamento. Assim, o
positivismo é rejeitado como ideológico, à medida que coisifica o conhecimento e
torna a teoria desvinculada dos interesses que se manifestam na sociedade e

63
As referências às páginas das citações seguintes referem-se tanto ao texto Teoria tradicional e
volume.crítica quanto ao Filosofia e teoria crítica , publicados, na edição que utilizei, em um mesmo
teoria
93

disputam entre si. O conhecimento existente e sua aplicação aos fatos “não têm
srcem em elementos puramente lógicos ou metodológicos, mas só podem ser
compreendidos em conexão com os processos sociais reais” (p. 121).
b) O pensamento crítico não lida com “dados puros” a serem explicados por
uma teoria explanatória, mas com fenômenos que devem ser compreendidos pela
razão dialética. “Os fatos que os sentidos nos fornecem são pré-formados de modo
duplo: pelo caráter histórico do objeto percebido e pelo caráter histórico do órgão
perceptivo” (p.125). Portanto, a crítica dirige-se tanto aoobjeto, que aparece
disposto a nós apenas em sua dimensão aparente, quanto aosujeito cognoscente,
cuja espontaneidade produtora do conhecimento também está submetida às
vicissitudes do processo histórico e precisa realizar o movimento de superação
(Aufhebung). Não perceber isso é quedar-se no aparente do objeto ou no
dogmatismo da consciência abstrata. Por isso,o conhecimento crítico deve ser uma
autorreflexão crítica acerca do próprio processo de conhecimento e não
simplesmente um desvelar redentor do sentido oculto do objeto . A forma como os
fenômenos se mostram não revelam sua essência concreta, e esta só é alcançada
de modo teórico a partir de uma crítica dialética.
c) Os indivíduos só reconhecem seu mundo quando compreendem que as
relações que travam em seu cotidiano e os limites impostos à plena realização de
seus desejos como ser humano são relações e limites vinculados a uma totalidade
histórica com bases materiais. Na perspectiva crítica, os indivíduos percebem que
“este mundo não é o deles, mas sim o mundo do capital” (p. 130). Segue-se daí que
“o reconhecimento crítico das categorias dominantes na vida social contém ao

mesmo tempo a sua condenação” (p.130). Isso implica umposicionamento ético


diante do mundo conhecido e não apenas sua compreensão em categorias
explicativas dentro de uma teoria meramente descritiva. A teoria crítica é também
valorativa, donde decorre ocaráter eminentemente políticodo conhecimento crítico.
Essa é uma característica distintiva fundamental na teoria crítica em qualquer
uma de suas vertentes e é assim exposta por Horkheimer:

O especialista “enquanto” cientista vê a realidade social e seus produtos


como algo exterior e “enquanto” cidadão mostra seu interesse por essa
realidade através de escritos políticos, de filiação a organizações partidárias
ou beneficentes e participação em eleições, sem unir ambas as coisas e
algumas outras formas suas de comportamento, a não ser por meio da
interpretação ideológica.
tentativa de superar Ao contrário,
realmente o pensamento
a tensão, crítico
de eliminar é motivado
a oposição pela
entre a
94

consciência dos objetivos, espontaneidade e racionalidades, inerentes ao


indivíduo, de um lado, e as relações do processo de trabalho, básicas para
a sociedade, de outro. O pensamento crítico contém um conceito do homem
que contraria a si enquanto não ocorrer esta identidade (p. 132).

d) O teórico crítico possui também a tarefa de contribuir para a mudança de


pensamento da classe dominada.Ele não deve ser passivo diante da forma como a
classe dominada representa o mundo na sua consciência. Nesse sentido, a teoria
crítica possui um carátereducativo. Suas proposições não são meras acomodações
da teoria às “situações psicológicas da classe” (p. 135). A teoria é “um elemento
crítico e estimulador” da superação da visão de mundo dada mesmo entre as
classes dominadas.64 A relação entre intelectual e classe dominada, não é, contudo,
uma relação unilateral, mas dialética, conforme deixa claro o texto de Horkheimer:

A função da teoria crítica torna-se clara se o teórico e a sua atividade


específica são consideradas em unidade dinâmica com a classe dominada,
de tal modo que a exposição das contradições sociais não seja meramente
uma expressão da situação histórica concreta, mas também um fator que
estimula e que transforma (p.136).

e) Em função de todos os elementos acima, resulta quea teoria crítica possui


um caráter essencialmente emancipatório. Seu propósito não é meramente analítico,
mas engajado na transformação da sociedade.

O comportamento crítico consciente faz parte do desenvolvimento da


sociedade. A construção do desenrolar histórico, como produto necessário
de um mecanismo econômico, contém o protesto contra esta ordem
inerente ao próprio mecanismo, e, ao mesmo tempo, a ideia de
autodeterminação do gênero humano, isto é, a ideia de um estado onde as
ações dos homens não partem mais de um mecanismo, mas de suas
próprias decisões (p. 145).

Tal caráter abre espaço, na concepção tradicional de teoria, para acusações de


parcialidade e subjetivismo, que, no entanto, Horkheimer identifica e refuta (p. 138).
Devo acrescentar, a esse propósito, que a mesma parcialidade que pode ser
destacada como “defeito” da teoria crítica pode ser apontada também como
elemento das teorias que não se posicionam e que, por isso,aliam-se ao dado e são
influenciadas por essa atitude que só aparentemente é neutra. Uma vez que o

64
A compreensão do tipo de tarefa educativa que possui o teórico crítico e como ela pode ser
concretizada é passível de diversas interpretações e deu margem a muitas polêmicas a respeito da
“capacidade redentora”
Esclarecimento 2). do intelectual-educador, como veremos mais adiante (Capítulo 3, Item 3.3,
95

“dado” se constrói pela hegemonia de determinados interesses, aliar-se ao já-dado é


posicionar-se ao lado dos interesses hegemônicos.
f) Por essas características da teoria crítica e pelos pressupostos que a
fundamentam, modifica-se também, de forma relevante, a reflexão sobre a
veracidade das teorias. O foco na imanência subjetiva e histórica da produção
intelectual e da ciência retira a discussão sobre a verdade do âmbito de um suposto
mundo supra-humano, onde as verdades existiriam à nossa disposição para serem
cotejadas com nossas representações falíveis, e a insere na existência real e
determinada dos seres humanos que vivem em sociedade:

Ninguém pode colocar-se como sujeito, a não ser como sujeito do instante
histórico. A discussão sobre a constância ou mutabilidade da verdade só
tem valor para as mentalidades polêmicas. Isso contraria a suposição de um
sujeito absoluto e supra-histórico e a substituibilidade dos sujeitos, como se
fosse realmente possível a transposição do momento histórico atual para
qualquer outro momento histórico, passado ou futuro. [...] A teoria crítica é
incompatível com a crença idealista de que ela própria representaria algo
que transcende os homens [...]” (p. 152).

Dessa maneira, a validade e pertinência da teoria não são mais julgadas pelo
tribunal abstrato de uma razão genérica, mas pela sua relação com o objetivo que
ela própria coloca para si e que compartilha com a parte da humanidade que tem a
realização da plenitude de sua vida cerceada pela materialidade da organização
social que a oprime. Por isso, “a teoria crítica não tem [...] nenhuma instância
específica para si, a não ser os interesses ligados à própria teoria crítica de suprimir
a dominação de classe” (p. 154). Portanto, a teoria crítica, por seus fundamentos,
não rejeita a problemática da verdade, distinguindo-se tanto do dogmatismo – para o
qual a verdade não é uma questão problemática –, quanto do ceticismo ou do
relativismo forte – para os quais a questão da verdade é algo insolúvel, que veda
qualquer pretensão à veracidade das teorias. Ao contrário, os critérios de veracidade
são definidos na imanência e historicidade da práxis humana fundadora do mundo e,
se não são critérios absolutos, tampouco são inexistentes. Conforme diz Marx na
segunda tese sobre Feuerbach,

É na prática que o homem deve comprovar a verdade, isto é a realidade


efetiva e a força, o caráter terrestre de seu pensamento. A disputa referente
à realidade ou à não-realidade efetiva do pensamento – que está isolada da
prática – é uma questão puramente escolástica (Marx, in Labica, 1990,
p.31).
96

g) Por fim, a teoria crítica distancia-se das interpretações deterministas do


marxismo – e, assim, se aproxima mais da filosofia de Marx – por perceber
dialeticamente a relação da base econômica com a superestrutura social:

A crítica teórica e prática tem que focalizar inicialmente a causa primeira da


miséria, a economia. Mas, julgar também as formas da sociedade futura,
baseando-se
sim apenas
mecanicista. na economia, histórica
A transformação não serianão
umdeixa
pensamento dialético,
intocáveis mas
as esferas
culturais (p. 158-159).

Esse caráter declaradamente não-determinista repele, imediatamente, qualquer


crítica à teoria crítica baseada em acusações que cabem apenas às versões
dogmáticas e “’oficiais” do marxismo. A esse propósito, é bom observar que a
dialeticidade da teoria crítica não é um afastamento do marxismo, e sim a
recuperação de seus fundamentos filosóficos em oposição à sua dogmatização. Foi
justamente esse aspecto, ou seja, a insistência na reflexão teórica sobre os
elementos supra-estruturais da sociedade, como a cultura, a arte, a ciência, etc. –

aspecto bastante visível nas elaborações dos teóricos de Frankfurt – que ensejou a
reflexão crítica na educação. A percepção de que a dominação não se resume à
economia, mas afeta diversas instituições e realizações do ser humano, abriu um
campo de possibilidades para a crítica dos modos de educação caracterizados pela
ideologia e pela manutenção da cultura capitalista e,também, para a defesa de seu
potencial emancipatório.

********
Esses são, portanto, os aspectos mais gerais e característicos da tradição
crítica europeia. Os elementos destacados por Horkheimer nos textos aqui
referenciados são consequências de uma evolução intelectual descrita nos três itens
acima (2.1, 2.2 e 2.3). Eles não são criações da Escola de Frankfurt, mas a
sistematização acurada da tradição que se complementa com Marx e se abre para
inúmeras outras aquisições e transformações, conforme a época histórica e a
realidade local na qual se concretiza. Assim, a reflexão a seguir, sobre a produção
teórico-crítica na América Latina, é fundamental para complementar qualquer estudo
sobre a tradição crítica, pois revela a especificidade histórica e local que a teoria
assume em nosso continente, mantendo suas raízes descritas acima e
acrescentando novidades enriquecedoras.
97

2.4. ESPECIFICIDADES GEOPOLÍTICAS DA AMÉRICA LATINA

Conforme mencionei na Introdução (Seção III), a modernidade e a dominação


essencial do sistema capitalista ganharam um carátergeopolítico, além do classista,
com a conquista, colonização e manutenção da dependência dos países que

formam o chamado terceiro mundo. Aqui nos interessa mais a América Latina por
ser o lócus geopolítico a partir do qual se elabora esta tese, mas as especificidades
geopolíticas relacionam-se também às lutas emancipatórias e suas expressões
teóricas nos países da África e Ásia, que constituem o “Sul” no quadro atual da
divisão de poder no mundo pós-Guerra Fria. A América Latina faz parte desse
quadro que deve ser compreendido de forma sistêmica. A dimensão geopolítica que
a dominação adquire define também um caráter específico dos processos de
emancipação e, consequentemente, das teorias crítico-emancipatórias elaboradas
no contexto dessa realidade.
A criação de uma situação de prosperidade dentro do capitalismo europeu e
anglo-americano, que gerou mudanças no pensamento crítico nos países centrais,
aconteceu a expensas do depauperamento das nações periféricas. Quando o
capitalismo nos países centrais conseguiu atingir altos níveis de bem-estar social e
uma significativa redução na diferença entre as classes sem a necessidade de uma
revolução proletária, uma parte dos teóricos daqueles países passou a desacreditar
da (ou, ao menos, relativizar a) ação emancipatória como ação revolucionária
fundadora de uma nova ordem econômica. Nos países dominados, porém, o
capitalismo recrudesceu o abismo entre as classes e ampliou a dominação no
campo cultural. A emancipação adquiriu, em nosso contexto, uma dimensão de
“libertação”, que envolve muito mais do que um problema de classe – embora esteja
perpassado também por esta dimensão.65

65
Bárbara Freitag, comentando o que ela considera um “afastamento” de Horkheimer da teoria
marxista, alega que um de seus motivos foi o fato de que “Horkheimer admite que o capitalismo
conseguiu produzir um excedente de riquezas que desativou o conflito de classes” (Freitag, 1988, p.
40). Sobre como a “época de ouro” do capitalismo desenvolvido afetou o pensamento da esquerda
das nações centrais, ver Della Fonte (2006). Ainda que se possam tecer inúmeras críticas a respeito
da capacidade analítica de teóricos sociais quando não se atentam para a realidade de outros países
e para a imbricação sistêmica do desenvolvimento econômico de seus países com o processo de
multinacionalização do capitalismo, é possível compreender a mudança de foco na dimensão
emancipatória de suas teorias a partir do eurocentrismo secular que sempre esteve presente na
produção intelectual dos países desenvolvidos. Para compreender, no entanto, como essa mudança
de foco pôde afetar as análises de intelectuais do mundo periférico – que jamais testemunhou
nenhuma “época de ouro” do capitalismo e onde as diferenças de classe chegam ao nível de relações
98

Após a II Guerra Mundial, as potências centrais tiveram que reestruturar suas


organizações político-econômicas e definir também novas formas de relação com
seu campo de dominação nos países periféricos. Segundo Samir Amin (2003), o
pensamento social e as teorias econômicas que adotavam uma perspectiva de
crítica ao modelo econômico adotado – seja rejeitando o próprio capitalismo (como
era o caso do marxismo) ou apenas combatendo a ortodoxia liberal (como fazia o
keynesianismo) – acabaram por se converter em teorias dogmáticas e simplistas
quando passaram a legitimar ou o estatismo soviético, ou o Estado de bem-estar
social europeu, ou o nacional-populismo de governos de países do terceiro mundo.
Por essa razão, as teorias sociais pensadas a partir do centro do sistema mundial
tiveram sua capacidade crítica reduzida. A potencialidade crítica do pensamento
social, que perdera sua força nas elaborações teóricas do centro, reapareceu nas
décadas de 1960 e 1970 na produção teórica realizada desde a periferia do sistema:

O pensamento social crítico moveu-se, então [...], para a periferia do


sistema. [...] Aqui, as práticas do populismo nacionalista – uma versão
empobrecida do sovietismo – provocaram uma brilhante explosão na crítica
do “socialismo real”. No centro dessa crítica havia uma nova advertência
sobre a polarização criada pela expansão global do capitalismo que havia
sido subestimada e, às vezes, ignorada por um século e meio. Essa crítica –
do capitalismo realmente existente, do pensamento social que legitimava
sua expansão e da crítica socialista de ambos – está na srcem da entrada
da periferia no pensamento moderno. Aqui há uma crítica rica e variada [...],
uma vez que o pensamento social reabriu debates fundamentais sobre o
socialismo e a transição para ele. Mais que isso, essa crítica reavivou o
debate sobre o marxismo e o materialismo histórico, entendendo desde o
princípio a necessidade de transcender os limites do eurocentrismo que
vinha dominando o pensamento moderno (Amin, 2003).66

No pensamento crítico produzido nos países periféricos, os elementos culturais

de povos subjugados, mantidos em condições de dependência e exclusão no


desenvolvimento capitalista mundial, passam a ser um importante elemento na
análise e elaboração teórica. Os processos reais de luta pela emancipação na
América Latina envolvem a luta secular de povos indígenas, lavradores sem-terra,
vítimas da seca, famílias sem-teto, crianças abandonadas, mulheres trabalhadoras,
negros marginalizados social e economicamente, culturas silenciadas, povos
mantidos na ignorância acerca da linguagem e dos conhecimentos necessários à

feudais e mesmo escravagistas – seria necessário uma reflexão de maior alcance que foge aos
limites desta tese.
66
Original em castelhano.
99

socialização no mundo moderno e a religiosidade popular característica deste


continente. Nenhuma teoria crítica e emancipatória desenvolvida nessas condições
poderia deixar de ser afetada pelas peculiaridades da realidade continental, jamais
pensadas a partir da teoria crítica europeia.
A Filosofia da Libertação (Dussel, 1977a; 1977b; 1983; 1984; 1986), a Teologia
da Libertação (Gutiérrez, 1985; Boff, 1983; Boff & Boff 1985; Boff, Regidor & Boff,
1996), a Pedagogia Libertadora (Freire, 1975, 1982) e outras teorias emancipatórias
específicas da América Latina ou de outros países do terceiro mundo carregam as
características geopolíticas da dominação e são por elas afetadas. A teoria crítica
latino-americana não se resume simplesmente a uma aplicação da teoria crítica
europeia à realidade deste continente, pois trata-se, na verdade, de uma
recomposição da tradição crítica a partir da situação real em que se encontra a
sociedade em análise – sem, contudo, romper com os pressupostos teóricos
67
fundamentais da tradição crítica europeia assinalados acima.
A noção de emancipação como “libertação” passa a ser sistematizada
teoricamente na década de 1960. É a partir de elaborações desse período histórico
que se pode falar propriamente de uma tradição crítica latino-americana como um
movimento teórico. A teoria marxista já era conhecida e utilizada como referencial
teórico, mas ainda carregava um caráter exclusivamente europeu – com algumas
exceções, como as elaborações do peruano José Carlos Mariátegui (1895-1930) que
vinculavam a análise marxista às tradições andinas e à religiosidade popular, em
obras de surpreendente srcinalidade (cf. Löwy, 2005). O ponto de partida para as
teorias de libertação foi a mudança de paradigma analítico sócio-econômico sobre a

realidade de pobreza do continente.


Sob o paradigma desenvolvimentista, a teoria social compreendia o problema
da pobreza e da marginalidade nos países periféricos à luz do binômio
desenvolvimento-subdesenvolvimento. As proposições decorrentes desse
paradigma pautavam-se por um aceleramento na industrialização e na acumulação
do capital, a fim de se alcançar as etapas já percorridas pelos países ricos e atingir

67
Dussel, Gutiérrez, Boff e Freire, por exemplo, utilizam-se amplamente da análise marxista e de
outros intelectuais críticos europeus, mas não fazem uma simples aplicação dessas análises, senão
que as incorporam em construções teóricas que têm a realidade latino-americana como ponto de
partida.
100

seu nível de bem-estar social. É evidente, nesse paradigma, a concepção linear da


história e uma abordagem estritamente economicista do problema latino-americano.
Na década de 1960, um novo paradigma analítico despontava para lançar
luzes à interpretação desse problema. Tratavam-se das “teorias da dependência”,
cujos representantes mais reconhecidos foram o brasileiro Fernando Henrique
Cardoso e o chileno Enzo Falleto.68 O paradigma da dependência, em contraste com
o desenvolvimentismo, trabalhava com uma visão estrutural e sistêmica da
economia mundial e percebia que as raízes da pobreza e da marginalidade nos
países do terceiro mundo estavam fincadas em um processo de inclusão submissa
no capitalismo multinacionalizado. Ou seja, não era um problema deevolução
atrasada, mas do papel atribuído a esses países na estruturação mundial do sistema
capitalista. Para o desenvolvimento dos países ricos era imprescindível o
“subdesenvolvimento” dos países pobres.
Com base nesse novo paradigma, as teorias emancipatórias passaram a
trabalhar com o binômio “dependência-libertação”.69 O problema tinha raízes que
ultrapassavam o aspecto meramente econômico, o que levou a uma análise mais
política da situação estrutural, com todas as consequências que a dominação
política traz para a cultura e o pensamento. A teologia latino-americana, como
movimento de pensamento, pode ser considerada, nesse aspecto, uma das
pioneiras na elaboração de uma teoria crítica autóctone. Descrevendo as raízes
sócio-analíticas da Teologia da Libertação, da qual foi um dos principais teóricos,
Leonardo Boff afirma:

Os países subdesenvolvidos são mantidos subdesenvolvidos pela rede de


dependência
Bogotá ou emdos centrosoutro
qualquer de decisão
centro,que
masnão
emestão
Novaem Buenos
Iorque, Aires, Paris,
Londres, Lima,
Falkenburg, etc. O sistema de dependência é interiorizado dentro dos
próprios países pelas grandes empresas multinacionais. Penetra a cultura, a
escala de valores, os meios de comunicação, o mundo simbólico, a moda,
as ideias e a teologia. A categoria dependência ganhou estatuto científico

68
Contribuíram também para essa transição de paradigma os estudos dos brasileiros Celso Furtado,
Theotônio dos Santos e Darcy Ribeiro e do peruano Aníbal Quijano, dentre outros.
69
Para Paulo Nogueira Batista Jr., a proposição do paradigma da dependência por Cardoso não era
uma proposição “de esquerda” e nem propunha a emancipação da dependência, mas o ajustamento
das economias nacionais ao papel de “sócios-menores” do capitalismo internacionalizado, uma
espécie de “adesão estratégica” em nome do desenvolvimento nacional (Batista Jr., 1999). A mesma
observação faz Salgado (2006, p. 103-104). No entanto, teóricos de esquerda utilizaram o paradigma
para elaborar social
transformação uma baseadas
nova compreensão da asituação
na ruptura com latino-americana
dependência e mundializado.
do capitalismo pensar estratégias de
101

como chave interpretativa e explicativa da estrutura do subdesenvolvimento


(Boff, 1983, p. 17).

É aí que Boff – assim como Gustavo Gutiérrez, primeiro a usar o termo


“libertação” associado à teologia – situa a base sócio-interpretativa da Teologia da
Libertação. Gutiérrez (1985, p. 28-45) expõe com detalhes essa transição na

fundamentação de uma nova perspectiva crítico-emancipatória na elaboração teórica


latino-americana. Essa mesma base foi compartilhada por outros campos da
elaboração teórica, como a pedagogia, com Paulo Freire, a filosofia, com Enrique
Dussel e outras áreas das ciências humanas e sociais que, quase simultaneamente,
incorporaram a libertação como eixo de seu caráter emancipatório.
A teorização em todos esses campos possuía um traço não-economicista e
extrapolava a ortodoxia marxista na mesma linha de Gramsci e dos teóricos da
Escola de Frankfurt, embora compelidos por diferentes fatores da realidade sócio-
econômica e cultural. As teorias de libertação se diferenciavam da interpretação

determinista de algumas vertentes do marxismo europeu por incluir temáticas como


religião, cultura, sexualidade, gênero, raça, etnia e por compreenderem, desde as
suas srcens, a libertação não apenas como uma transformação da base econômica,
mas como uma libertaçãointegral do ser humano em diversas dimensões, mas que
passa, necessária e primordialmente, por uma transformação também nas bases
econômicas da sociedade.
Muitas vezes se acredita, equivocadamente, que essas temáticas foram
trazidas para a teoria social apenas com as teorias da “agenda pós”. Paraíso (2004),
por exemplo, comparando as teorias críticas e “pós-críticas”, atribui a estas últimas o
mérito de ter “abdicado da exclusividade da categoria classe social e discutido,
também, questões de gênero, etnia, raça, sexualidade, idade”. Esse é um equívoco
recorrente e pode ser encontrado em diversos autores. Silva, por exemplo, afirma
que “na teorização influenciada pelo pensamento pós-moderno [...] toda a tradição
filosófica e científica ocidental moderna é colocada sob suspeita como eurocêntrica,
falocêntrica e racista” (Silva, 1993, p. 125). O equívoco de tais afirmações pode ser
facilmente demonstrado. Por exemplo, na coleçãoPara uma ética de libertação
latino-americana (Dussel, 1977b), os 5 volumes de Dussel tratam exatamente das
temáticas da imposição do pensamento eurocêntrico, falocêntrico e “adultocêntrico”
e das suas consequências para a cultura e a filosofia latino-americanas, bem como
da necessidade de sua crítica rigorosa.
102

Temas como religiosidade, cultura, sexualidade, opressão de gênero,


discriminação racial, direitos de etnias oprimidas, encontram-se em diversas
elaborações de Dussel, da Teologia da Libertação, da Pedagogia Libertadora, etc. e
foram vivenciados e debatidos em grupos populares por todo o continente latino-
americano. Basta constatar, por exemplo, a quantidade de organizações e
movimentos populares de indígenas, negros, mulheres, etc., os materiais produzidos
sobre essas temáticas pelos centros de educação popular latino-americanos e as
reflexões e práticas das Comunidades Eclesiais de Base e outros grupos religiosos
críticos (com pastorais específicas para mulheres, negros, índios, etc.), todos
desenvolvidos desde as décadas de 60, 70 e 80 do século XX, e investigar quanto
disso foi influência de teorias pós-modernistas vindas de fora, que só passaram a ter
força no Brasil a partir da década de 90 – curiosamente, no mesmo período em que
se registra um certo arrefecimento daqueles movimentos.
Nas elaborações de teóricos europeus e nas práticas emancipatórias dos
países centrais esses temas podem ter sido realmente novidades teóricas ou até
mesmo temas ainda a serem incluídos em pauta. Como uma parte da
intelectualidade latino-americana só conhece o mundo através de elaborações
estrangeiras, muitos celebram como novidade pensamentos que já circulavam em
seu entorno há décadas, mas que só agora foram colocados em pauta por autores
dos países centrais.70 A forma de abordar essas questões é diferente nas teorias da
“agenda pós”, mas de maneira alguma é seu mérito a inclusão dessas temáticas no
pensamento social e a sua teorização.
A inclusão, na teoria social crítica, da forma específica de dominação do povo

latino-americano, de suas tradições culturais com caráter emancipatório e das


especificidades da colonização e submissão em um quadro geopoliticamente
determinado – donde decorrem estratégias de autoafirmação cultural, social,
econômica e política exclusivas dos povos periféricos – é uma novidade que não
pode ser conhecida através do estudo da tradição crítica europeia e anglo-

70
Com relação a isso, embora referindo-se a outro tema, Dussel faz uma espécie de desabafo, em
nota de rodapé: “É aqui que o filósofo da periferia sente tristeza, dor e até raiva. Há vinte anos
publiquei ‘em espanhol’ uma ética em cinco volumes; em outras palavras, ela ainda está ‘inédita’ para
os filósofos do Centro (ingleses, alemães ou franceses)! Muitos mal entendidos se teriam resolvido se
meus colegas tivessem lido esses tomos. Mas, como estão ‘em espanhol’, é como se não tivessem
sido publicados!” (Dussel, 2005, p. 22, nota 63). Constrangedor é constatar que esse “ineditismo” de
uma obra
apenas publicada
pelos “na periferia” é provocado também por próprios intelectuais periféricos e não
do centro.
103

americana. Os fatores incluídos levam a um novo entendimento do conjunto de


fenômenos que compõem a sociedade. Boff destaca:

Na análise da realidade não atuam somente preocupações vindas das


ciências sociais (sociologia, economia, politologia), mas também as de
ordem histórico-cultural, antropológica, da cultura popular. As imensas
maiorias esmagadas criaram sua cultura do silêncio, suas maneiras próprias
de dar sentido
é que se vão àestudando,
vida, de libertar-se
em quase embora
todo vivam no cativeiro.
o continente, Nessae linha
a cultura a
religiosidade popular como sementeira de valores não afetados pela
ideologia imperialista e dinamismo para um autêntico processo de libertação
(Boff, 1983, p. 35).

A preocupação com aspectos culturais é um dos elementos característicos


também da teoria crítica frankfurtiana e do marxismo de Gramsci. Houve influências
manifestas dessas análises no pensamento crítico latino-americano, mas a base da
preocupação neste pensamento é mais vivencial do que teórico-especulativa e
ganha contornos diferenciados nas teorias de libertação. Ainserção nos meios
populares latino-americanos – que pôde ser vivenciada profundamente em
processos revolucionários (como Cuba, Nicarágua e El Salvador), em movimentos
indígenas e de cultura popular e na presença capilar das Comunidades Eclesiais de
Base em locais jamais atingidos pela esquerda tradicional – revelou uma diversidade
de manifestações populares (impossíveis de serem subsumidas a um único conceito
de classe) e um povo profundamente marcado por sua cultura, srcinalidade,
religiosidade e por toda história de colonização sócio-cultural do continente. Esse
aspecto foi incorporado às teorias crítico-emancipatórias latino-americanas e é um
de seus elementos característicos.
A proposição marxiana do proletariado como sujeito histórico da emancipação

foi radicalmente ampliada pela a noção depovo oprimido que alargava a categoria
71
classe social sem rejeitar o abismo e o conflito entre as classes. Se na Europa a
relativização da categoria classe social ocorreu em função de umaredução das
diferenças entre as classes que a fez perder força na teoria crítica, na América
Latina a categoria relativizou-se em sentido contrário, ou seja, para ganhar força.
Isso se deu por uma ampliação de sua capacidade definidora a fim de incluir
contingentes maiores de pessoas que sofrem a exploração capitalista e que não se
incluem no conceito clássico de proletariado.

71
Para que não se perdesse o horizonte classista das teorias, Gutiérrez diz, por exemplo, que “a
teoria da dependência equivocaria seu caminho e levaria a engano se não situasse sua análise no
marco da luta de classes que se desenrola em nível mundial” (1985, p. 83).
104

A preocupação com as diferentes manifestações culturais e com o respeito às


tradições de diversas etnias – a fim de não se repetir, no trabalho popular de
educação e mobilização social, os mesmos erros do processo de colonização –, a
necessidade de se compreender a realidade local para além das categorias teóricas
clássicas da filosofia ocidental e a compreensão da especificidade dos processos de
emancipação na América Latina trouxeram inúmeras novidades teóricas para o
pensamento crítico latino-americano. A “alteridade” como categoria filosófica e a
concepção do “outro” não mais como categoria filosófica abstrata, mas como
indígena, negro, mulher, lavrador, etc., todos submetidos à opressão silenciadora e
desumanizante, marcou profundamente a teoria e a prática social, aparecendo no
conceito de “oprimido” de Paulo Freire, como aquele que deve ser tambémsujeito no
diálogo educativo; na “outridade fundante” de Dussel, como princípio de
72
exterioridade absoluta para a qual se deve estar em permanente abertura; e na
“inculturação”, conceito presente como imperativo do trabalho popular dos teólogos
da libertação.73
Essa marca concreta das teorias de libertação deu rosto às categorias frias da
filosofia e da teoria social e interpelou o teórico a não só analisar a realidade, mas a
viver, sentir e escutar essa realidade (humana) como algo que não pode ser
simplesmente deduzido de seu referencial teórico e cujo inesgotável sentido deve
estar sempre emanando do contato vivencial do teórico com seu povo e,
fundamentalmente, dodiálogo. Dussel assinala:

O outro se revela realmente como outro, em toda a acuidade de sua


exterioridade, quando irrompe como o mais extremamente distinto, como o
não habitual ou cotidiano, como o extraordinário, o enorme (fora da norma),
como pobre, o oprimido; aquele que à beira do caminho, fora do sistema,
mostra seu rosto sofredor e contudo confiante [...]. Seu direito absoluto, por
ser alguém, livre, sagrado, funda-se em sua própria exterioridade, na
constituição real de sua dignidade humana. Quando avança no mundo, o
pobre comove os próprios pilares do sistema que o explora. Seu rosto [...],
pessoa, é provocação e juízo por sua simples revelação (Dussel, 1977a, p.
49).74

72
Para uma comparação dos fundamentos do pensamento de Freire e de Dussel, ver Boufleuer
(1991).
73
Sobre o sentido da inculturação no trabalho pastoral-popular inspirado na Teologia da Libertação,
ver Brandão, et.al. (1986).
74
Ver também sobre isso Dussel (1977b, V. I, p. 93-145).
105

O pensamento emancipatório latino-americano, em suma, propõe a afirmação


de um pensar a partir do mundo periférico, aproveitando a tradição do pensamento
ocidental, mas recompondo-a de acordo com as implicações de se pensar um
mundo diferente daquele que foi o berço da filosofia moderna. Sousa Santos, um
dos teóricos europeus mais afinados com a perspectiva de emancipação dos países
periféricos – mas sempre falando, como é óbvio, a partir de seu próprio lócus
geopolítico – reconhece oportunamente a necessidade de um pensar “a partir do
Sul”, quando afirma que

Para se aprender a partir do Sul, devemos, antes de mais, deixar falar o Sul,
pois o que melhor identifica o Sul é o fato de ter sido silenciado. Como o
epistemicídio perpetrado pelo Norte foi quase sempre acompanhado pelo
linguicídio, o Sul foi duplamente excluído do discurso: porque se supunha
que ele não tinha nada a dizer e nada (nenhuma língua) com o que
dissesse. Perante as assimetrias do sistema mundial, a construção da
subjetividade do sul [...] deve desenvolver-se por processos parcialmente
distintos no centro e na periferia do sistema mundial (Sousa Santos, 2005a,
p. 372).

Como se pode depreender da citação, o “deixar falar o Sul” é, pela sua própria
formulação, uma recomendação que parte de um teórico europeu e se dirige a um
público europeu. As teorias de libertação já cumprem há quatro décadas a tarefa de
“falar a partir do Sul”, tendo acumulado um acervo teórico considerável que, no
entanto, ainda tem sido pouco explorado pelos próprios intelectuais do Sul – e, por
isso, talvez a recomendação de Sousa Santos deva estender-se também para a
intelectualidade dos países periféricos.
Para se ter um exemplo da especificidade e da grande contribuição do
pensamento crítico latino-americano para os debates teóricos atuais, basta assinalar

que alguns problemas que autores contemporâneos identificam na teoria crítica


moderna ou que afirmam ser novidades trazidas pelo pós-modernismo já se
encontram presentes na teoria crítica latino-americana, ainda sob as condições de
uma teoria crítica modernista.75 O que Sousa Santos alega, por exemplo, ser um dos
princípios de uma “teoria crítica pós-moderna”, a saber, o reconhecimento do “outro
como sujeito” (Sousa Santos, 2005a, p. 30) – na mesma linha de Giroux que diz que

75
Dussel (1977a) usou o termo “pós-moderno” para referir-se ao seu pensamento, mas bem antes
desse termo servir para designar o que hoje entendemos como tal. O que ele queria dizer com isso,
conforme esclarece posteriormente (Dussel, 2005, p. 45-48), era que sua filosofia se situava além da
modernidade eurocentricamente concebida. O termo não tem nenhuma relação com a sua utilização
atual.
que foiHoje, Dussel
pensado pelaprefere o termoeuropeia.
modernidade “transmoderno” para referir-se ao pensamento que vai além do
106

“o pós-modernismo forneceu um fundamento teórico para envolver o Outro não


apenas como um objeto desterritorializado de dominação, mas também como uma
fonte de luta, de resistência coletiva e de afirmação histórica” (Giroux, 1993, p. 54-
55) – já é trabalhado exaustivamente por Dussel desde o final da década de 60!
De fato, Sousa Santos tem toda a razão em criticar e tentar superar a teoria
crítica eurocentricamente concebida que, conforme afirma, acabou adquirindo
características de “conhecimento-regulação”. Mas antes de aderirmos ao que ele
chamou de “teoria crítica pós-moderna”, dando como esgotadas as capacidades
teórico-críticas modernistas, acredito ser de grande proveito conhecer o que foi
produzido a partir do “Outro” da modernidade europeia, ou seja, pelas teorias
emancipatórias latino-americanas, cujo estudo pode ser bastante profícuo e trazer
elementos teóricos mais novos do que é possível construir a partir do lócus teórico
geopoliticamente determinado do mundo Europeu e Anglo Saxão. É apenas quando
se limita a tradição crítica às suas raízes europeias que se pode dizer, como Peter
McLaren, que
a linguagem da teoria crítica, que tem suas raízes epistemológicas na
história e no pensamento europeus, carrega consigo uma violência
eurocêntrica debilitadora que continua a privilegiar o discurso do colonizador
branco e masculino (McLaren, 1993, p. 18).

Essa visão leva muitos intelectuais a buscarem uma saída “pós-modernista” à


modernidade eurocentricamente concebida; mas é uma saída que não deixa de ser
eurocêntrica ao não reconhecer uma alteridade periférica na modernidade –
alteridade que, embora moderna, já supera o colonialismo, o etnocentrismo, o
racismo e o sexismo em seus próprios fundamentos – e ao privilegiar autores
europeus e anglo-americanos como vanguarda intelectual no combate à
modernidade ocidental.
É ainda Dussel quem afirma que

O estudo do pensamento (tradições e filosofia) na América Latina, Ásia ou


África não é uma tarefa episódica ou paralela ao estudo da filosofia pura e
simplesmente (que seria a europeia); mas se trata de uma história que, com
toda a razão, vem resgatar o contradiscurso não-hegemônico, dominado,
silenciado e esquecido, o da Alteridade, que constitui a própria modernidade
(Dussel, 2005, p. 95).

O quadro da filosofia contemporânea geralmente traçado nos livros demarca a


divisão entre uma filosofia “continental” e uma “anglo-saxônica” – a primeira mais
“humanística” e metafísica e a segunda mais “científica” e analítica. Reproduzimos
107

essa divisão em nossos discursos, sem atentarmo-nos para a existência de um


pensamento “externo” a ela, que se desenvolveu e se desenvolve nos continentes
periféricos. Abordar a teoria crítica (ou a própria modernidade) na América Latina
sem compreender a sua especificidade geopolítica e as estratégias reais de
emancipação desenvolvidas atualmente pela população excluída (como veremos na
Parte II) ou sem compreender a peculiaridade das elaborações teóricas
fundamentadas nesta realidade é repetir abstratamente os problemas filosóficos
gestados em uma outra realidade à qual não pertencemos; é fazer umarremedo
inconsequente, seja da teoria crítica ou da “crítica à teoria crítica” (ou dos problemas
relacionados à modernidade e pós-modernidade).76 O que ocorre é que

[Como a] Modernidade é definida como pertencente ao horizonte


exclusivamente europeu, pretendem que esse “contradiscurso” também seja
fruto exclusivamente europeu. Dessa forma, a própria Periferia, para criticar
a Europa, deveria se europeizar, já que deveria usar um contradiscurso
“europeu” a fim de mostrar à Europa as suas contradições, sem poder, uma
vez mais, apresentar nada de novo e vendo-se obrigada a negar a sua
identidade (Dussel, 2005, p. 94).

2.5. RECENSÃO

A esta altura da reflexão, faz-se necessário esboçar uma sistematização


pessoal dos princípios fundamentais da tradição teórica crítica, baseado no que foi
exposto em todo este capítulo. Para evitar a repetição de tópicos que já foram
tratados anteriormente, limitar-me-ei a listar, sem ordem hierárquica, os quatro
princípios (P) e suas respectivas implicações (I) que considero característicos e
fundamentais para que se possam subsumir diversas proposições teóricas sob uma
mesma categoria de “teoria crítica”, ao menos sob uma perspectiva modernista.

76
O vício maniqueísta que ainda temos em nossa forma habitual de pensar me obriga aqui a fazer
uma observação que muitos poderiam até julgar desnecessária, mas que acho oportuna em nome da
clareza na exposição das ideias. Ao insistir na necessidade de conhecermos a produção teórica
latino-americana e na rejeição da simples reprodução de teorias estrangeiras, não estou, de maneira
alguma , negando a riqueza do pensamento europeu e anglo-americano e a necessidade de se
estudá-lo. A história do nosso pensamento é decorrente da tradição teórica do ocidente como um
todo, visto que somos, queiramos ou não, uma expansão colonial da Europa. Além disso, a produção
intelectual e a sua validade jamais estão restritas a um único lócus, tendo aspectos de universalidade
válidos em qualquer contexto. Refiro-me aqui apenas aos problemas da descontextualização e da
mera
vezes repetição dasmeio
ocorrem no teorias e à cegueira intelectual para as produções do mundo periférico que muitas
acadêmico.
108

Amparado, portanto, na reflexão anterior, destaco os seguintes princípios que


77
estão na base do que estou considerando nesta tese como teoria crítica:

Pa) A realidade que aparece não contém, em si mesma, a sua verdade(o


fenômeno não esgota a essência).
Ia1) O pensamento deve assumir como tarefa o esforço teórico-conceitual de
construir um quadro racional que subsuma a realidade aparente, capaz de
dar inteligibilidade aos fenômenos para além de sua manifestação imediata.
Ia2) É fundamental pressupor-se a capacidade do sujeito (da subjetividade
em geral e de diferentes maneiras) deconstruir ativamente verdades sobre o
mundo objetivo, ainda que estas não sejam definitivas e acabadas.
Ia3) Decorre dos anteriores a defesa da possibilidade derelacionamento
justificável e com determinado nível de controlabilidade factual entre sujeito
e objeto, com a consequente possibilidade de se escolher teoriasmais
verdadeiras com base em critérios definidos a partir do ponto de vista das
subjetividades envolvidas eda práxis a elas relacionada. Questionamentos
sobre a verdade em si, independente da condição histórica dos sujeitos, não
são considerados válidos.

Pb) O mundo possui uma racionalidade(defesa da cognoscibilidade do mundo).


Ib1) O objeto aparece imediatamente fragmentado e as relações entre os
fenômenos não estão imediatamente disponíveis ao conhecimento. Porém, o
sentido unificador que torna o mundo compreensível sinteticamente pode ser

perseguido e alcançado subjetivamente com esforço teórico e rigor analítico.


Ib2) O sujeito deve superar a representação imediata, ascendendo do
conhecimento comum ao conhecimento concreto. A formação da
subjetividade cognoscente é processual, dondea educação cumpre um
papel fundamental.
Ib3) O caráter racional do mundo, independente do nível de precisão, é
acessível à teoria. Nesse sentido, é possível a construção de proposições
significativas sobre a realidade e, ao mesmo tempo, de critérios de verdade

77
Algumas implicações podem estar relacionadas a mais de um princípio. Como o propósito é apenas
de esclarecer a categoria e não de criar um rígido esquema definidor, renunciei às minudências da
interconexão dos princípios com as implicações.
109

fundamentados na racionalidade subjacente à ação humana geradora do


mundo.

Pc) O conhecimento da realidade deve ter como consequência tanto um


posicionamento valorativo perante o mundo, quanto a proposição de alternativas
pautadas pelo imperativo da emancipação do ser humano – ou a adesão às
alternativas já existentes (afirmação da diferença entre ser e dever ser).
Ic1) A teoria crítica vincula-seinextricavelmente a uma realidade existente e
procura estar em sintonia com ela. As carências do ser humano concreto
são problemas teóricos relevantes. As disputas conceituais não se dão
apenas no campo da lógica, da retórica ou da autoridade de pensadores,
mas na análise da práxis de emancipação relacionada a um determinado
contexto.
Ic2) A teoria crítica possui um caráter deliberadamenteposicionado ao lado
dos que necessitam emancipar-se. A neutralidade teórica é impossível e, por
conseguinte, uma teoria social que se reivindica “neutra” alia-se
ideologicamente à situação dada.
Ic3) A elaboração teórica crítica deve relacionar-se com os processos reais
de emancipação do ser humano em suas diversas formas de existência
(trabalhador, negro, indígena, mulher, povo geopoliticamente dominado, etc.)
e perceber que as diferentes faces da existência do ser humano oprimido
encontram-se integradas em um mesmo sistema geral de exploração e
opressão. Coexistem, contudo, no interior do sistema formas específicas de

dominação e opressão que guardam autonomia relativa com a totalidade.


Ic4) A teoria não é redentora. Os sujeitos da emancipação não são os
teóricos, mas as organizações, movimentos e lutas das classes populares.
Ic5) A teoria crítica vincula-se a umprojeto futuro (utópico) de sociedade e
direciona sua reflexão para a concretização desse projeto.

Pd) A concepção do ser humano em geral como sujeito de sua história,


existente em condições sociais determinadas e submetido a constrições
características de sua subjetividade (de ordem cultural, psicológica e biológica), e
como substrato último do trabalho teórico (defesa de um humanismo radical
contextualizado).
110

Id1) O “Outro” não é apenas uma categoria filosófica relacionada ao abstrato


ser da metafísica e sim pessoa concreta, corpórea, vivente em condições
variadas. Sem essa compreensão da alteridade, o conceito de “humano” se
dissolve em abstrações de umpuro Eu isolado, concebido idealisticamente.
Id2) A elaboração da teoria crítica em diferentes contextosmodifica-a em
aspectos fundamentais, em função da presença plena e de sentido
inesgotável da alteridade de seres humanos em situação histórica e
geopoliticamente determinada.
Id3) Nos países periféricos, a teoria crítica ganha, portanto, contornos bem
diferentes daquele que caracterizou a teoria crítica europeia e anglo-saxã.
Sua riqueza e novidade só podem ser compreendidas a partir de suas
manifestações teóricas locais, sem perder os vínculos com as raízes
cosmopolitas do trabalho teórico.

*******
Tendo, pois, caracterizado as bases da tradição crítica e sistematizado uma
definição da categoria “teoria crítica” – que doravante deverá estar subentendida em
toda reflexão dos capítulos posteriores – estamos em condições de refletir sobre a
sua utilização nas teorias educacionais, que será o tema do próximo capítulo.
3) A TRADIÇÃO CRÍTICA NA EDUCAÇÃO78

Conforme já foi afirmado, a ênfase dos teóricos da Escola de Frankfurt e de


Gramsci na análise crítica dos fenômenos supra-estruturais do capitalismo avançado
(mais especificamente da cultura) ensejou a utilização da teoria crítica para estudos
sobre a escola e a educação. A escola, por ser uma instituição privilegiada para o
trabalho com valores e cultura na sociedade, cumpre uma função estratégica na
formação da subjetividade social. Por isso, ela deve ser analisada criticamente em
sua relação com os processos sociais mais gerais.
Um dos autores de destaque no esforço de vincular a teoria crítica europeia à
educação foi o estadunidense Henry Giroux. Suas elaborações iniciais estão
fortemente marcadas pelas ideias dos teóricos frankfurtianos e pelas reflexões de

Gramsci. Amparado nessas fontes, Giroux assume a proposição de que a esfera


cultural deve ser colocada no centro da luta social na fase avançada do capitalismo:

De acordo com a escola de Frankfurt [...] a esfera cultural agora constitui um


lugar central na produção e transformação da experiência histórica. Da
mesma forma que Gramsci, Adorno e Horkheimer argumentaram que a
dominação vinha assumindo uma nova forma. Ao invés de ser exercida
primariamente através do uso da força física (o exército e a polícia), o poder
das classes governantes era agora reproduzido através de uma forma de
hegemonia ideológica; isto é, estabelecida primariamente através do
consentimento, e mediada via instituições culturais como as escolas, a
família, os meios de comunicação de massa, as igrejas, etc. Em suma, a
colonização do mundo do trabalho era agora suplementada pela
colonização de todas as outras esferas culturais (Giroux, 1986, p.41).

Dessa maneira, para o pensamento crítico a teoria educacional deveria ter


como objeto não somente os fenômenos relacionados diretamente ao cotidiano
escolar e aos aspectos técnicos e psicológicos do ensino, mas a educação como
fenômeno inserido na totalidade social, em cuja existência concreta manifestavam-

78
Quero reafirmar aqui a observação que fiz na introdução a respeito da exposição da temática deste
capítulo: não se trata de uma sistematização compendiadora das ideias dos teóricos críticos em
educação, senão que do esclarecimento sintético do que é essencial e distintivo nessa tradição de
pensamento aplicada à educação e dos temas que estarão na base da reflexão dos capítulos
posteriores. A recorrência a algumas (às vezes longas) citações e a ênfase em alguns aspectos
específicos se justificam pela existência, na literatura pedagógica recente, de interpretações
distorcidas que falseiam os propósitos e os fundamentos da Teoria Educacional Crítica –
interpretações que serão 1referenciadas
chamadas “Esclarecimento e 2”. e debatidas oportunamente nas seções intermediárias
112

se a cultura, valores, conflitos e a lógica subjacentes ao sistema de produção. A


inserção na totalidade caracteriza a própria significação da educação enquanto
fenômeno. A teoria educacional, portanto, deveria extrapolar o campo estritamente
pedagógico para poder compreender seu objeto. Ou, o que significa o mesmo, o
campo pedagógico passa a ser concebido como muito mais amplo do que
tradicionalmente se concebia a partir da ótica positivista, o que exige uma
abordagem da pedagogia cada vez mais interdisciplinar e o aporte de disciplinas de
caráter mais especulativo, como a filosofia e a sociologia.

3.1. O PONTO DE PARTIDA: AS TEORIAS D A REPRODUÇÃO

O vinculo da educação com a totalidade social e, mais especificamente, com o


modo de produção capitalista – em relação aos quais cumpre a função de
reprodução espiritual e meio eficaz para a manutenção da ordem – foi identificado

primeiramente pelos chamados “teóricos da reprodução”. Entre os mais conhecidos


estão: Louis Althusser, com sua análise dos “aparelhos ideológicos do Estado”,
responsáveis por manter o sistema através da reprodução de sua ideologia; Bowles
e Gintis, com seu “princípio de correspondência”, segundo o qual as relações de
poder e dominação do capitalismo se repetem nas relações estabelecidas no interior
da escola; Bourdieu e Passeron, com a “teoria da violência simbólica”, para a qual a
escola cumpre a função de impor a cultura e os valores das classes dominantes aos
alunos das classes dominadas, contribuindo com a reprodução da cultura de
dominação; e Baudelot e Establet, com a “teoria da escola dualista”, que identifica
um sistema educacional que forma os futuros cidadãos de acordo com a divisão de
classes essencial no capitalismo.79
As teorias de reprodução, a maioria inspirada no instrumental analítico
marxista, revelaram o nexo entre a formação espiritual realizada pela escola e os
interesses de manutenção do modo de produção capitalista. Nesse aspecto, deram
uma importante contribuição para a crítica da educação tradicional e para a
politização da teoria educacional. A identificação de uma “função” específica da
educação nas sociedades modernas cumpre a tarefa da teorização crítica de

79
Análises das ideias centrais das teorias de reprodução, bem como sua crítica, podem ser
encontradas em Giroux (1986, p. 102-134); Snyders (1981) e Saviani (1991a, p. 27-40).
113

vincular os fenômenos e instituições sociais a uma totalidade que lhes dá sentido,


conforme foi visto no capítulo anterior (Item 2.5., princípio aP), desmascarando,
dessa maneira, qualquer suposta neutralidade no processo educativo.
Torres e Morrow (in Torres, 2003, p. 59-60) assinalam que a crítica efetuada
pelos modelos de reprodução é um dos modos de abordagem fundamentais a
qualquer teoria crítica em educação. Ela se justifica no contexto de umateoria social
explanatória, que procura compreender a educação como um fenômeno social que
serve a interesses específicos e identificar seu papel no complexo mecanismo de
dominação. O reconhecimento do vínculo essencial da educação com a cultura e os
valores da dominação, com os conflitos sociais e a estrutura econômica da
sociedade é, portanto, um aspecto indispensável para a Teoria Educacional Crítica:

[...] As teorias da reprodução ainda estão largamente associadas a análises


reducionistas baseadas nas classes sociais [...] tipificadas pela assunção de
uma correspondência estrita entre a educação escolar e os imperativos
funcionais definidos pelas relações de produção. [...] Apesar das várias
críticas
para e adjetivações
modelos dirigidas ao a“princípio
de base econômica, de correspondência”
noção geral srcinale
de reprodução cultural
social tem permanecido – apesar das aparências – como uma
pressuposição central de revisões críticas desses modelos, envolvendo
tanto a incorporação dos conceitos de ação e reação, como a diversificação
dos nexos causais de poder, no sentido de incluir formas de dominação e
exclusão não relacionadas à classe (Torres e Morrow, in Torres, 2003, p.34-
35).

No entanto, embora constitua um elemento essencial da teorização crítica em


educação, a noção de reprodução representa apenasum momento da crítica. O fato
de as teorias de reprodução terem limitado-se à identificação do nexo entre
educação e dominação e permanecido restritas à análise sociológica explanatória
transformaram-nas em alvo de muitas críticas. Elas foram consideradas insuficientes
para uma teoria educacional emancipatória, pois não acenavam para as
possibilidades da educação como meio de transformação da sociedade. Uma teoria
crítica em educação, para ser fiel às raízes da tradição crítica, deveria ser
complementada com uma proposta de ação pedagógica emancipatória, que
revelasse as possibilidades de ação no campo educacional e contribuísse com o
ideal de transformação social.
A superação das teorias de reprodução se deu no âmbito mesmo do
pensamento educacional de inspiração marxista. A crítica desses modelos nasceu
da utilização de uma análise marxista mais dialética do que a que foi usada pelos
teóricos da reprodução.
114

A reflexão de Georges Snyders, feita no âmbito estrito da análise marxista, já


apontava (na década de 70) as insuficiências das teorias “reprodutivistas”. Para ele,
um discurso baseado apenas na lógica da reprodução gera pessimismo e imobilismo
entre os educadores críticos, por não reconhecer a luta de classes possível no
campo educacional. Segundo o autor:

A escola é um dos momentos, causa e efeito, do processo social no seu


conjunto. Não quereríamos por preço algum subestimar o que nossos
autores nos ensinaram sobre os troços diferenciados e as desigualdades
escolares. 80 Não quereríamos por preço algum inocentar a nossa escola.
Mas precisamente para revolucionar, importa situar com precisão a
extensão de seu império, avaliar as suas possibilidades positivas a par e
passo com as suas carências: não se dispondo de tais pontos de apoio, a
luta pela transformação da escola torna-se impossível (Snyders, 1981, p.
85. Grifos meus).

A recusa aos limites das teorias educacionais meramente reprodutivistas


tornou-se comum na Teoria Educacional Crítica. É possível, no entanto, que o peso
das críticas feitas por Snyders (1981), Giroux (1986, 1997) e Saviani (1991a) – que
se faziam necessárias no contexto – tenha tido o efeito de gerar, mais recentemente,
um certo esquecimento do nexo existente entre a escolarização e a estrutura
econômica da sociedade identificado por essas teorias. Daí a importância de se
recordar o profundo vínculo da educação com os interesses, os valores e a lógica do
sistema capitalista e o seu papel na reprodução cultural, ética e ideológica da
81
dominação, como nos lembram Torres e Morrow na citação acima. A compreensão
de tal vínculo será importante para as reflexões que apresentarei na Parte III.
Um dos aspectos importantes do papel reprodutivo da escola é que ele não é
unidirecional. Ou seja, não se trata somente de uma imposição de valores, ideologia

e cultura que parte do sistema escolar e de seus agentes e é dirigida aos alunos. A
reprodução realiza-se também nas relações estabelecidas pelos alunos entre si,

80
Snyders refere-se aqui aos teóricos da reprodução Baudelot e Establet, Bourdieu e Passeron e Ivan
Illich, aos quais dirige sua crítica, embora reconheça suas contribuições indispensáveis à análise
crítica da escola.
81
Snyders, Giroux e Saviani sempre tiveram o cuidado de reconhecer os valores das teorias de
reprodução e de destacar a necessidade de se manter, na Teoria Educacional Crítica, os vínculos
estabelecidos por elas entre educação e a infraestrutura da sociedade, mesmo quando teciam suas
críticas e apontavam para a necessidade de se ir além da compreensão desses vínculos. Não foi,
portanto, a crítica desses autores a responsável pelo relativo esquecimento teórico da reprodução no
que diz respeito ao sistema econômico. O problema, ao meu ver, está no fato de a crítica ao
reprodutivismo se ter
uma certa redução datornado
força e um “lugar-comum”
da importância no discurso
da crítica pedagógico, o que pode ter resultado em
reprodutivista.
115

pelos profissionais da educação com os alunos e pelos profissionais consigo


mesmos.
Giroux aponta esse aspecto contraditório e multidirecional da relação entre
“reprodução” e “resistência” ao citar a pesquisa de McRobbie sobre o
comportamento de meninas de uma escola inglesa. Em reação à repressão sexual
da escola tradicionalista, as alunas comportavam-se e vestiam-se de maneira que
transgrediam as regras conservadoras da escola. Contudo, sua maneira de
“transgredir” reforçava a expectativa machista sobre as vestimentas e o
comportamento sexual das mulheres (Giroux, 1981, p. 152, nota 1).

[...] O comportamento de oposição pode não ser simplesmente uma reação


à importância, mas, ao invés disso, pode ser uma expressão de poder que é
alimentada pela dominação e reproduz a sua mais poderosa gramática.
Assim, a resistência pode ser [...] a simples apropriação e demonstração de
poder, e como tal pode se manifestar através dos interesses e discursos dos
piores aspectos da racionalidade capitalista (idem, p. 140).82

Portanto, sendo a reprodução multidirecional, e não apenas uma imposição “de


cima para baixo”, qualquer perspectiva de resistência ou de transformação das
relações fundadas nos valores e ideias do sistema dominante deve também possuir
um caráter de multidimensionalidade. A resistência cultural e a criação de novos
valores dizem respeito às diversas relações que ocorrem no interior de uma escola e
relacionam-se à compreensão dos aspectos sócio-culturais e axiológicos que se
srcinam e se reproduzem fora dos limites de seus muros.
A falta de uma compreensão multidirecional da reprodução gera dois
problemas analíticos e práticos. Primeiro, pode-se cair no maniqueísmo idealista que
vê na educação uma luta simplista que coloca, de um lado, o “sistema” –
compreendido metafisicamente – e, de outro, os alunos e professores progressistas.
O “sistema metafísico” é sempre o inimigo e seus representantes são o Estado (mais
especificamente o ministério e as secretarias de educação) e os professores
“tradicionais”. Os alunos são as vítimas que deverão ser defendidas ou mobilizadas
pelos professores progressistas organizados em sindicatos.

82
Em nota, Giroux acrescenta: “os estudantes podem demonstrar comportamentos que violam as
regras da escola, embora a lógica em que tais comportamentos se baseiam esteja firmemente
enraizada em formas de hegemonia ideológica, tais como racismo e sexismo. Além disso, a fonte de
tal hegemonia ou
companheiros, geralmente se srcina fora (Giroux,
na cultura industrializada” da escola,
1981,particularmente
p. 151, nota 1). na família, no grupo de
116

Os riscos dessa visão unidirecional da reprodução são vários. Ela não percebe,
por exemplo, que o Estado é contraditório e que, eventualmente, pode colocar-se
como aliado das lutas educacionais e contra a reprodução da lógica dominante,
dependendo da conformação política dos governos que se sucedem ou da
capacidade de controle da sociedade civil organizada sobre o Estado. Por outro
lado, a luta sindical docente só tem capacidade de transformar a educação quando
efetivamente a considera em sua totalidade. Quando se limita a questões salariais
ou de condições de trabalho, pode-se colher como resultado algumas melhorias,
mas nenhuma mudança profunda de caráter se efetua na educação como totalidade
e como práxis. Professores progressistas na luta sindical podem ser, ao mesmo
tempo e contraditoriamente, perfeitos reprodutores da lógica do sistema em sua
prática pedagógica e nos valores que sustentam nas suas relações profissionais
cotidianas, quando não efetuam uma autorreflexão sobre suas concepções e sua
prática.
O segundo problema decorrente da concepção unidirecional da reprodução é o
risco de se ter uma visão ingênua e romantizada das atitudes de alunos que, a
princípio, podem parecer manifestações de “resistência”, “rebeldia”, “subversão” ou
“transgressão”, mas que, no fundo, representam um reforço dos piores valores e
elementos da cultura dominante. Muitas vezes o que se mostra imediatamente como
resistência ao sistema educativo, às normas de comportamento da escola ou à
própria “cultura” escolar não é mais do que a repetição de valores ou
comportamentos difundidos na sociedade pelos meios de comunicação – valores e
comportamentos que, via de regra, se adaptam à manutenção da estrutura social ou

são produto da indústria cultural –, ou, ainda, a reprodução da cultura sexista,


nascida e reforçada por meios não escolares.
A Teoria Educacional Crítica procurou superar as teorias de reprodução em um
sentido dialético, ou seja, incorporando suas contribuições a um discurso
emancipatório que valoriza as possibilidades de mudanças na escola e na prática
educativa. Ela surge como uma teoria que, ao mesmo tempo e complementarmente,
identifica os vínculos da educação com a sociedade (compreendida em seus
aspectos econômico-estruturais, éticos, políticos e culturais) e aponta para as
possibilidades de a educação contribuir com a transformação da realidade e das
subjetividades. O processo educativo emancipatório é possível nas escolas mesmo
no presente contexto de dominação.
117

Esse processo deve conter umadiretividade, uma vez que não se trata apenas
de valorizar as expressões dos alunos como se elas fossem purificadas de ideologia,
valores ou cultura dominantes. Aqui devemos recordar a característica da teoria
crítica destacada por Horkheimer de não ser apenas uma “acomodação à situação
psicológica da classe” (cf. Capítulo 2, p. 94), mas uma teoria que busca também
transformar as subjetividades.

Esclarecimento 1.
Antes de abordar de que forma o processo educativo emancipatório pode se
desenvolver na concepção crítica, é preciso desfazer algumas confusões surgidas
recentemente a respeito do primeiro aspecto da Teoria Educacional Crítica e sua
vinculação com as teorias de reprodução. Em virtude do que já se produziu no
campo do pensamento educacional nas últimas décadas, a discussão que farei
imediatamente a seguir, bem como as longas citações às quais recorrerei, poderiam
ser consideradas dispensáveis ou redundantes. Particularmente, assim as considero
e teria me sentido mais à vontade dispensando-as.
Mas a maneira como alguns autores atualmente difundem as teorias da
“agenda pós” no pensamento educacional acadêmico tem sido feita de maneira a
dar impressão, por um lado, de que o pós-modernismo, o pós-estruturalismo ou as
teorias pós-críticas monopolizam qualquer possibilidade de questionamento e
alternativa aos problemas da Teoria Educacional Crítica em sua fase “explanatória”
(as teorias de reprodução) e, por outro lado, de que a teoria educacional de
inspiração marxista se reduz à sua versão reprodutivista inicial. Defendo que um

debate honesto e esclarecedor deve considerar os argumentos contrários, ainda que


não se concorde com eles.
A repetição de temas aparentemente superados para alguns justifica-se diante
de afirmações como as de Burbules e Rice citadas adiante. Esses autores,
comentando as contribuições do pós-modernismo em educação, falam a respeito da
novidade trazida pela rejeição do conceito de classe social como elemento analítico
exclusivo e pela inclusão de questões de gênero, raça e etnia na teoria educacional,
afirmando que isso rompe com antigos modelos de reprodução:
118

Essas ideias tiveram um avanço rápido nos estudos educacionais críticos. 83


Uma das razões dessa popularidade está na rejeição generalizada do
“economicismo”, do “determinismo” ou do “pessimismo” das análises
marxistas da educação, tal como a de Samuel Bowles e Hebert Gintis [...]. A
linguagem do Pós-Modernismo tem contribuído para articular os limites
desses relatos, ao enfatizar os elementos ideológicos, culturais e
discursivos que eles deixam de iluminar. O Pós-Modernismo busca ampliar
o terreno da luta disponível aos pedagogos, numa época em que as lutas
tradicionais da esquerda em relação ao trabalho, aos recursos e ao acesso
político parecem extremamente limitadas (Burbules & Rice, 1993, p. 175).
Ao não adjetivar o que chamam de “análise marxista” (como se existisse uma
unidade plena entre teóricos dessa vertente) e ao exemplificá-la com as elaborações
de Bowles e Gintis (conhecidos teóricos da reprodução), os autores levam os leitores
a acreditar que o pensamento educacional inspirado em Marx se reduz às teorias de
reprodução. Logo a seguir, o texto citado dá a entender que é a “linguagem do pós-
modernismo” que possibilita a percepção dos limites do reprodutivismo e que enseja
um novo campo de luta para os pedagogos.
Essas, porém, são afirmaçõesincorretas, tanto do ponto de vista teórico como
histórico. A crítica às teorias da reprodução partiu inicialmente de autores
identificados – às vezes plenamente, como é o caso de Snyders – com a análise
marxista e com a teoria crítica moderna. 84 A própria Teoria Educacional Crítica,
como teoria emancipatória, só se constrói a partir da identificação dos limites das
teorias de reprodução.
Torres e Morrow dão a entender que esse tipo de confusão é recorrente em
autores da “agenda pós” quando afirmam:

O problema central deste tipo de formulação é que se corre o risco [...] de


unificar dois discursos teóricos distintos no âmbito da pedagogia crítica: o de
um modelo de reprodução cultural , que se fundamenta em uma ciência
social explanatória, como oposto a uma prática pedagógica emancipatória,
que se baseia em um discurso prático e normativo orientado para
possibilidades transformadoras. Na verdade, o projeto srcinal da teoria
social crítica vê estes dois discursos interligados e mutuamente
sustentados, mas seu status metodológico e epistemológico distinto precisa

83
A expressão “estudos educacionais críticos”, na perspectiva dos autores, não significa o mesmo
que estou considerando aqui como Teoria Educacional Crítica. O sentido que eles parecem dar no
artigo é bem mais amplo, englobando os estudos de todos os teóricos que se colocam politicamente
“à esquerda”, independente de seu referencial conceptual, incluindo os pós-modernistas.
84
Burbules e Rice são bastante perspicazes ao identificar as diferentes vertentes do pós-modernismo
e ao insistirem que não se pode considerar o pós-modernismo como um movimento de pensamento
unitário. Fazem, inclusive uma instrutiva diferenciação entre “pós-modernismo e antimodernismo”,
identificando as tendências conservadoras do segundo e o que supõem ser o potencial crítico
inovador do primeiro. Mas, lamentavelmente, a mesma perspicácia não foi utilizada na referência à
análise marxista.
119

ser reconhecido. De fato essa é a base do diálogo interno na teoria crítica, e


uma base para a possibilidade de que revisões no modelo científico-social
possam falsear ou pelo menos exigir revisões no discurso prático-
emancipatório, assim como este pode propor novas questões de pesquisa
para o primeiro (Torres e Morrow, in Torres, 2003, p. 59-60).

Não posso, todavia, deixar de apontar o porquê de minha categórica afirmação


sobre a incorreção de afirmações como as de Burbules e Rice – o rigor acadêmico
não permite que uma afirmação desse teor fique sem justificação. Farei isso
apresentando algumas citações de teóricos críticos de inspiração marxista, nas
quais é feita a crítica ao reprodutivismo.
Comentando o que chamou de “teorias crítico-reprodutivistas” e defendendo
uma teoria crítica para a educação, Saviani assinala:

Se tais estudos tiveram o mérito de pôr em evidência o comprometimento


da educação com os interesses dominantes também é certo que
contribuíram para disseminar entre os educadores um clima de pessimismo
e desânimo que, evidentemente só poderia tornar ainda mais remota a
possibilidade de articular os sistemas de ensino com os esforços de
superação do problema da marginalidade [...]. O papel de uma teoria crítica
da educação é dar substância concreta [à bandeira de luta contra a
marginalidade através da escola], de modo a evitar que ela seja apropriada
e articulada com os interesses dominantes (Saviani, 1991, p. 39-40 e 42).

Gaudêncio Frigotto, comentando também a análise de autores reprodutivistas,


afirma:

Este tipo de enfoque não vislumbra que as relações capitalistas de


produção não determinam, necessariamente, um total domínio sobre o
homem e que este não é deterministicamente passivo. Certamente, nas
relações escolares, familiares e de trabalho, não se reproduzem linearmente
as relações capitalistas. Aceitar a análise dos autores, tal qual é
apresentada, é cair no imobilismo e na crença da impossibilidade de
organizar, no interior da escola, família, fábrica, e na sociedade civil em seu
conjunto,
não os aos
permite interesses
autoresdos dominados.
perceberem queOa caráter reducionista
reprodução, da família,
via escola, análise
etc., que efetivamente ocorre, não se dá de forma tão linear, mas por
mediações de diferentes naturezas. Da mesma forma, não percebem que o
trabalho escolar pode, igualmente por mediação, desenvolver um tipo de
relação que favorece a ótica dos dominados. O problema básico da linha de
análise dos citados autores reside na não apreensão das categorias
fundamentais da análise do método histórico dialético (Frigotto, 2001, p. 48-
49).

Para finalizar, ao refletir sobre os problemas da teoria educacional radical


(como é mais comumente chamada nos EUA), Giroux escreve:

Apesar de suas profundas análises teóricas e políticas da escolarização, a


teoria educacional radical sofre de algumas deficiências graves, a mais séria
das quais é seu
dominação. Isto fracasso em ir além da
é, os educadores linguagem
radicais da análise
continuam crítica
presos a euma
da
120

linguagem que liga as escolas principalmente às ideologias e práticas da


dominação, ou aos parâmetros estreitos do discurso da economia política.
Nesta visão, as escolas são vistas quase que exclusivamente como
agências de reprodução social, produzindo trabalhadores obedientes para o
capital industrial; o conhecimento escolar geralmente é desconsiderado
como uma forma de ideologia burguesa; e os professores são com
frequência retratados como estando presos em um aparelho de dominação
que funciona com toda a precisão de um relógio suíço. A tragédia desta
posição é que ela impede que os educadores de esquerda desenvolvam
uma linguagem programática para reformas pedagógicas ou escolares.
Neste tipo de análise, existe pouca compreensão das contradições,
distâncias e tensões que caracterizam a escolarização. Há poucas
possibilidades de se desenvolver uma linguagem programática para uma
pedagogia crítica ou para uma luta institucional e comunitária. Os
educadores radicais concentram-se de tal forma na linguagem da
dominação que não resta qualquer esperança viável de se desenvolver uma
estratégia educacional política progressista (Giroux, 1997, p.27).

Nenhum desses autores é representante do pós-modernismo e todos eles se


valem da análise marxista para teorizar sobre a educação.85 Isso demonstra tanto
que a Teoria Educacional Crítica ou a análise marxista da educação jamais podem
ser reduzidas ao “economicismo”, “determinismo” ou “pessimismo” (usando as
palavras de Burbules e Rice) das teorias de reprodução, quanto o fato de que a
crítica a elas já foi insistentemente feita dentro da teoria crítica modernista – não
sendo, portanto, a “linguagem do pós-modernismo” que apontou primeiramente para
os limites do relato reprodutivista ou “ampliou o terreno de luta dos pedagogos”.

3.2. OS 3 NÍVEIS FUNDAMENTAIS DA TEORIA EDUCACIONAL CRÍTICA

Esclarecido esse aspecto inicial, podemos passar à reflexão sobre como a


educação é pensada pela Teoria Educacional Crítica. Como é de se supor, os
princípios da teorização crítica expostos no Capítulo 2 estão na base do pensamento
educacional crítico e, embora seja dispensável repeti-los aqui, devem estar no
horizonte de compreensão do que segue.
Amparada em um marxismo renovado, principalmente o de Gramsci e o da
Escola de Frankfurt, ou pensando a partir do movimento teórico-emancipatório
situado na periferia geopolítica do mundo, a teoria crítica em educação passou a
apontar para as possibilidades de crítica à ideologia e de ação transformadora,
adquirindo, assim, um caráter propositivo além do analítico-explanatório. Esse não

85
Na fase atual, Giroux fala em “pós-moderno de resistência” (ver Giroux, 1993) e incorpora
elementos da “agenda
citado, porém, pós”naemperspectiva
ele elabora suas elaborações,
estrita damas nãoEducacional
Teoria sem apontarCrítica
para os seus riscos. No texto
moderna.
121

foi um movimento localizado e nem de única fonte teórica de inspiração, mas pode
ser identificado nas elaborações (com diferenças internas) de autores como Paulo
Freire, Michael Apple, Peter McLaren, Henry Giroux, George Snyders, Dermeval
Saviani, Gaudêncio Frigotto, Carlos Alberto Torres e muitos outros.
Segundo McLaren,

A pedagogia crítica examina as escolas nos seus contextos históricos e


também como parte do tecido social e político existente que caracteriza a
sociedade dominante. A pedagogia crítica apresenta uma variedade de
contralógicas importantes à análise positivista, não-histórica e despolitizada
utilizada por críticos liberais e conservadores da escolarização [...] Os
teóricos críticos estão unidos em seus objetivos : fortalecer aqueles sem
poder e transformar desigualdades e injustiças sociais existentes (McLaren,
1997, p. 191, 192).

Esse aspecto de posicionamento ético-social da teoria crítica já foi abordado no


capítulo anterior. A despeito das diferenças nas elaborações, é ele que unifica os
teóricos educacionais críticos: a educação deve estar a serviço datransformação
social. Isso tem inúmeras implicações, mas destaco a principal que será a
justificativa para a reflexão da Parte II: o objetivo de emancipação, para não ser
apenas desejo subjetivo, deve estar vinculado a um projeto estratégico de
transformação social. Portanto, supõe-se (ou espera-se) que por trás de cada
elaboração teórica crítica no campo educacional subjaza umaconcepção do
processo real de transformação social.
As consequências dessa implicação no mundo contemporâneo (após a década
de 1990) serão analisadas nos capítulos de 5 a 9. O que é necessário destacar aqui
é a essencialidade do vínculo entre a teorização crítica em educação eo processo
real de luta pela emancipação. Na perspectiva crítica, o educador e o teórico em
educação devem envolver-se, intelectual e ativamente, em um processo real de
transformação da sociedade para adequadamente entender, elaborar e colocar em
prática uma proposta de educação emancipatória. Svi Shapiro, citando Geoff Whitty,
expõe essa questão da seguinte forma:

[...] uma mudança educacional do tipo buscado pela sociologia radical da


educação é inconcebível sem uma relação entre a prática profissional ou a
sociologia radical com as políticas mais amplas de oposição: “os sociólogos
que desejam que seus trabalhos tenham efeitos radicais precisarão, por
esse motivo, ser mais ativamente envolvidos nos movimentos políticos
coletivos em todos os níveis. Para os sociólogos do currículo de esquerda,
assim como para outros professores socialistas, isso significa que eles
precisam tornar seu projeto uma parte de um programa mais amplo de
reconstrução política à esquerda. Isso envolve o abandono de velhas
concepções de profissionalismo e o desenvolvimento de novas maneiras de
122

se trabalhar com o que é eventualmente chamado de bases populares – o


movimento dos trabalhadores, os movimentos de mulheres e os
movimentos negros” (Whitty, Geoff. Sociology and school knowledge.
London: Methuen, 1985) (Shapiro, 1988).86

Tal relação necessária justifica toda a reflexão que farei na Parte II a respeito
das mudanças no mundo e das novas estratégias de emancipação. Para se manter
coerente com seus próprios princípios, a Teoria Educacional Crítica precisa estar em
sintonia com as transformações em curso no mundo e isso faz com que a teorização
em educação esteja sempre vinculada a estudos sobre a sociedade. O educador
não deve ser apenas um profissional da educação, mas um cidadão ativo e
participante das lutas sociais; ao mesmo tempo, sua participação na sociedade é um
elemento que se incorpora à sua atividade de educador.
O que representa para o pensamento pedagógico posicionar-se a favor de uma
mudança na sociedade? Como esse posicionamento afeta a teoria educacional? No
capítulo anterior (p. 94), vimos que a teoria crítica, ao propor uma mudança na

subjetividade da classe trabalhadora, possui um caráter educativo e diretivo


intrínseco. Ela pretende ser uma forma de superação dialética do conhecimento
comum presente nas classes dominadas, elevando-o a um conhecimento crítico-
transformador. A pergunta sobre o que é esse conhecimento dialeticamente
superado e sobre as maneiras de se alcançá-lo são questões complexas – e é nesse
ponto que a Teoria Educacional Crítica se diferencia em distintos autores e se lança
a discussões de maior profundidade.
Tendo como objetivo contribuir com a superação das injustiças sociais, das
desigualdades econômicas e das opressões culturais através da formação de
subjetividades ativamente transformadoras, as pretensões da teoria críticacomo
pedagogia são explícitas e bem direcionadas. Uma concepção pedagógica fundada
nos pressupostos teóricos críticos exige, inicialmente, a aceitação de algumas
possibilidades basais: (1) a possibilidade de conhecimento do mundo; (2) a
possibilidade da emancipação como obra dos próprios oprimidos; (3) a possibilidade
da existência de critérios a partir dos quais os conhecimentos e valores possam ser
julgados mais adequados ao mundo vivido (mais verdadeiros ou mais corretos na
ótica dos agentes da emancipação) e que desmonte os discursos baseados nos
interesses de dominação ou por eles influenciados. Como pedagogia, deve ainda

86
Original em inglês.
123

pressupor que (4) esses conhecimentos e valores podem ser aprendidos e


ensinados, sustentando um processo educacional, e que o seu aprendizado é
elemento fundamental da emancipação – que, contudo, só se concretiza na práxis
social.
O conjunto dessas possibilidades, que possuem implicações éticas, políticas,
sociológicas e epistemológicas, é o que podemos chamar de “nível zero” da Teoria
Educacional Crítica. Este não é ainda o nível especificamente “educacional” e é
compartilhado por outras áreas do conhecimento crítico, o que torna a pedagogia
crítica uma área particular de um campo maior de pensamento e ação social .
Negando-se essas pressuposições basais, todo o edifício da teorização educacional
crítica desmorona.
A aceitação das possibilidades do nível zero exige, de outra parte, a construção
ou adoção de seus correlatos teóricos, a saber: (C 1) uma teoria do conhecimento;

(C2) um projeto utópico viável de transformação radical da sociedade; (C 3) uma

teoria da racionalidade que forneça critérios de verdade e fundamentos para a crítica


dos valores dominantes e dos conhecimentos vinculados aos interesses dos grupos
hegemônicos; e (C4) uma proposta pedagógica capaz de ser desenvolvida como
práxis educativa nas escolas e em outros locais onde se pratica a educação e que
seja compreendida comomediação para a emancipação do ser humano.
Podemos chamar esse conjunto, compreendido como totalidade, de “nível 1”
da Teoria Educacional Crítica. Ele já exige um trabalho específico de elaboração
teórico-pedagógica. Aquilo que pode ser considerado conhecimento específico em
educação (o conhecimento mais diretamente relacionado ao ato de educar, objeto

de áreas como teoria do currículo, didática, psicologia da educação, etc.) vincula-se,


na base, a questões de ordens filosófica, política, sociológica e de práxis social.
É nesse sentido que se deve esperar da formação de educadores críticos uma
constante e profunda reflexão sobre filosofia e sociedade, pois o papel que é
atribuído à educação não suporta a superficialidade do senso comum, os improvisos
ou o tecnicismo de concepções educacionais positivistas. Mas, tampouco se
vislumbra o cumprimento desse papel quando a base teórica se fundamenta no
absoluto relativismo e fragmentação de algumas vertentes do pensamento filosófico
e sociológico contemporâneo. Shapiro argumenta nessa direção. Para ele, a
pedagogia crítica se preocupa com
124

[...] uma emancipação que começa por tornar possível que as vozes
silenciadas dos estudantes comecem a explicar e a nomear o mundo no
qual vivem. Uma tal hermenêutica implica uma transformação radical
daquilo que ocorre numa sala de aula. [...]. Uma pedagogia crítica exige
uma dialética entre a hermenêutica da vida dos indivíduos e a narrativa
explicativa de um quadro de referência teórico crítico. Isso significa dizer
que o que se exige não é simplesmente o que tem sido chamado de
“conhecimento fraco” da compreensão, mas também o “conhecimento forte”
da explicação . [...]. Trata-se de um processo no qual a pedagogia crítica
conecta a autorreflexão e compreensão com um conhecimento que torne
possível a transformação das condições sociais em que vivemos. Esse
conhecimento pode na verdade dizer-nos algo sobre a realidade [...]
(Shapiro, 1993, p. 115-116. Grifos meus).

A exigência do “conhecimento forte” da explicação (segundo Shapiro) e os


pressupostos de níveis zero e 1 (expostos acima) criam uma contradição de
princípios entre a Teoria Educacional Crítica e o que tem sido chamado por alguns
autores de estudos “pós-críticos” em educação, que se fundamentam em uma
compreensão “fraca” de conhecimento e verdade.
Na tentativa de construir o que chamou de “mapa” dos estudos pós-críticos no

Brasil e de registrar suas contribuições para o pensamento educacional, Marlucy


Paraíso faz diversas afirmações donde se depreende a compreensão “fraca” de
conhecimento:87

As pesquisas pós-críticas em educação no Brasil têm questionado o


conhecimento (e seus efeitos de verdade e de poder), o sujeito [...], os
textos educacionais [...]. Tais pesquisas têm problematizado as promessas
modernas de liberdade, conscientização, justiça, cidadania e democracia,
tão difundidas pelas pedagogias críticas brasileiras [...] Têm aberto mão da
função de prescrever, de dizer aos outros como devem ser, fazer e agir. [...]
Uma outra linha perseguida [...] constitui-se no questionamento e na
problematização de todas as “verdades” educacionais, inclusive daquelas
que nos acostumamos a considerar “boas” porque caracterizadas como
“democráticas”, “libertadoras”, “transformadoras”, “cidadãs” etc . [...]. Os
estudos destacam o caráter artificial de verdades curriculares, de saberes
educacionais, de conhecimentos considerados legítimos. Trata-se de
pesquisas que explicitam os processos pelos quais as verdades são
produzidas, os saberes inventados, os conhecimentos construídos. [...]
Pergunta-se: por que esses conhecimentos em vez de outros?; por que
essas formas em vez de outras?; por que esses saberes em vez de outros?;
por que essas práticas em vez de outras? Persegue-se o seu processo de

87
O objetivo da reflexão seguinte é avançar no esclarecimento a respeito da Teoria Educacional
Crítica e não desenvolver uma reflexão detalhada do que tem sido chamado de estudos pós-críticos.
Pode-se alegar que Paraíso não representa a totalidade dos autores que se referenciam nessa
perspectiva, mas isso não impede que se reflita sobre seus argumentos, pois o que importa é o texto
que se está analisando. A autora reivindica situar-se no campo dos estudos pós-críticos e faz
afirmações genéricas a respeito da caracterização desse campo. Os autores ou estudiosos que não
se vêem representados em sua descrição devem estabelecer o debate interno e contestá-la. Isso,
porém, não inviabiliza a crítica “externa” à autora, como a que é feita nesta tese, pois são afirmações
publicadas
Associação em revistas
Nacional especializadas
de Pesquisa do campo
em Educação da educação e apresentadas em reuniões da
(ANPED).
125

produção, o funcionamento, o “como” tais conhecimentos, formas e saberes


tornaram-se verdadeiros. [...] Os estudos questionam os motivos que nos
levam a considerar certos tipos de conhecimento mais desejáveis que
outros, certos tipos de sujeitos melhores do que outros e alguns valores e
saberes preferíveis a outros (Paraiso, 2004, p. 287, 293. Grifos meus).

Alguns questionamentos expostos na citação acima pertencem também às


proposições da Teoria Educacional Crítica, como, por exemplo, a identificação e
crítica dos interesses que subjazem à produção das “verdades educacionais” e às
decisões sobre conteúdos curriculares – e isso, talvez, pode criar uma ilusão de
conciliabilidade entre as duas perspectivas. Por isso, comentar a citação nos ajudará
na tarefa de esclarecer com maior precisão as características da tradição crítica em
educação.
Considerados em seu conjunto, os questionamentos que Paraíso chama de
pós-críticos dirigem-se à totalidade das pretensões de verdade, inclusive as das
“pedagogias críticas brasileiras”. Seu alvo são “todas as verdades educacionais”.
Além disso, a renúncia da “função de prescrever” desonera tais estudos de qualquer
compromisso com a diretividade da educação ou com as respostas aos
questionamentos que levantam – uma vez que tais respostas, quando aplicadas ao
quefazer da educação, sãonecessariamente prescritivas.
A dimensão “hipercrítica” dessas elaborações – que é, ao mesmo tempo, razão
da sua sedução sobre as subjetividades rebeldes, motivo de confusão com os
propósitos da teoria crítica e fonte da ilusão de conciliabilidade com a perspectiva
crítica – nutre-se de uma abordagem indistinta e não posicionada dos interesses em
disputa na sociedade. Ou seja, no mesmo plano de “problematização” são colocadas
as “verdades construídas” pelos grupos e classes dominantes e aquelas que se
vinculam aos interesses “de liberdade, conscientização, justiça, cidadania e
democracia”, ou as que procuram caracterizar-se como “democráticas, libertadoras,
transformadoras, cidadãs”. Na ausência de um ponto de apoio pressuposto para o
estabelecimento de critérios para a aceitação de verdades e valores (como exige o
correlato C3 do nível 1 da Teoria Educacional Crítica), é inevitável, então, perguntar-
se: “por que esses conhecimentos em vez de outros?; por que essas formas em vez
de outras?; por que esses saberes em vez de outros?; por que essas práticas em
vez de outras?”, ou por que “certos tipos de conhecimento [são] mais desejáveis que
outros, certos tipos de sujeitos melhores do que outros e alguns valores e saberes

preferíveis a outros?”.
126

Para a Teoria Educacional Crítica, em contraste, são asrespostas a essas


perguntas (e não elas mesmas) que constituem o passo fundamental para o trabalho
com os conteúdos educacionais e para as ações desenvolvidas na escola. Elas
estão relacionadas ao terceiro processo de socialização do teórico em educação
(conforme exposto na Seção IV da Introdução). Para Paraíso, no entanto, os
próprios questionamentos, por si mesmos, adquirem relevância nos estudos pós-
críticos, sem que haja a necessidade de assinalar qual importância e quais
consequências a elaboração de respostas teria.88
Os assim chamados estudos pós-críticos representam a concepção “fraca” do
conhecimento, pautada apenas na “compreensão” e não na “explicação”. Mas o
hipercriticismo e a ausência de um ponto de apoio pressuposto que permita justificar
o critério da crítica acabam por tornar o próprio fundamento dos estudos pós-críticos
um alvo de suspeitas. As perguntas propostas valeriam também para eles e poder-
se-ia, com razão, perguntar “por que os questionamentos pós-críticos e não
outros?”; ou tentar examinar quais interesses de poder subjazem às suas
elaborações, ao invés de aceitá-las como discurso significativo ao qual podemos
aderir; ou, simplesmente, poder-se-ia ignorar completamente esses estudos, uma
vez que todas as elaborações (inclusive as que se reivindicam pós-críticas)
veiculariam verdades artificiais e construídas a partir de um sistema particular de
poder ou “regime de verdade”.
Eles ficam, portanto, em débito com os participantes do debate teórico
educacional com respeito à justificação para a significatividade, credibilidade e
aceitabilidade de suas próprias proposições, neutralizando, assim, todo o seu

esforço teórico ou criando um círculo vicioso de questionamentos autossustentados


e inconsequentes. Porém, os educadores, em sua prática real, precisam
constantemente lidar com repostas em seu trabalho cotidiano – e respostas que
terão inúmeras e graves consequências para a vida dos educandos.
Há, portanto, não apenas diferenças entre a Teoria Educacional Crítica e os
estudos pós-críticos, senão que contradições basais irreconciliáveis. 89 O que

88
Tomaz Tadeu da Silva (2001) levanta essas mesmas questões sem apontar para possíveis
respostas.
89
Isso não significa, porém, que o intercâmbio de experiências educacionais orientadas pelas duas
perspectivas seja impossível
diferentes concepções em umou que os
diálogo educadores
sempre não possam instruir-se mutuamente a partir de
construtivo.
127

chamei de “nível 1” do pensamento crítico em educação (particularmente o correlato


C3) exige algumas convicções fortes que acompanhem o trabalho cotidiano dos
educadores. Beyer e Liston destacam que a concepção fraca de conhecimento da
“agenda pós” não permite o desenvolvimento de “visões morais que possam levar à
crítica e à ação social transformativa” e, acrescentam eles, embora possam ser
“estimulantes para acadêmicos no interior daquele ‘bastião protetor que é a
universidade’ [citação de Palmer], elas não são adequadas para o tipo de trabalho
que os educadores são obrigados a fazer” (Beyer & Liston, 1993, p. 96). As decisões
que os educadores são obrigados a tomar na realização de seu trabalho concreto
exigem não apenas a identificação dos interesses subjacentes às supostas verdades
e valores virtuosos que compõem o currículo e circulam na escola e nos materiais
didáticos, mas também a afirmação deoutros tipos de verdades e valores, sem os
quais a educação não se realiza. Afinal, o que fazem concretamente os pedagogos e
professores no dia-a-dia da escola, com suas disciplinas, planejamentos, projetos e
atividades educacionais?
Na perspectiva crítica, as decisões necessárias para o trabalho educacional
devem ser tomadas à luz de um comprometimento ético, político e cultural com uma
coletividade definida nos conflitos sociais. Esse comprometimento fará os
educadores decidirem-se, com elevado grau de convicção – embora jamais com
certezas absolutas –, por um conjunto de verdades e valores para conduzir sua
prática educativa: a escolha ou elaboração de material didático, o trabalho com os
conteúdos escolares, as decisões sobre currículo, as atividades de grupo, os
processos avaliativos, as atividades extracurriculares, etc. Isso leva as questões

educacionais “para muito além da porta da sala de aula” (Beyer & Liston, 1993, p.
96).
As decisões concretas dos educadores – que devem ser tomadas após o
exame crítico dos interesses em disputa na sociedade – advêm justamente da
resposta não ingênua aos questionamentos que, segundo Paraíso, os estudos pós-
críticos procuram lançar a “todas as verdades educacionais” e transformar em
perguntas perenes, que contêm em si mesmas a sua própria razão de ser. A
diferença entre as duas perspectivas fica bem explícita nesse excerto de Beyer e
Liston:

Na deliberação curricular, por exemplo, a questão definidora é: qual


conhecimento é mais válido e quais formas de experiência achamos valer
128

mais a pena? [...] Em qualquer currículo há compromissos com respeito ao


tipo de pessoas que queremos que os estudantes sejam e se tornem; como
eles agirão com outros, formarão suas identidades, assumirão
responsabilidades sociais e exercerão suas próprias escolhas. Questões de
deliberação curricular são inevitavelmente normativas por natureza,
impondo escolhas políticas que exigem nossas análises mais iluminadoras,
nossos compromissos mais profundos com relações sociais que sejam
benéficas , assim como nossas mais inspiradas e sinceras imaginações
morais (Beyer & Liston, 1993, p. 97. Grifos meus).90

O pensamento crítico em educação, fazendo jus aos pressupostos da tradição


teórica que adota, deve preocupar-se com apráxis educacional e teorizar orientado
por seus desafios cotidianos. A complexidade, profundidade e rigor conceitual que
se exige da teoria não é decorrente de um simples “problematizar” questões
filosóficas a partir do “bastião protetor das universidades”, mas a tentativa de se
construir respostas aos problemas vividos pelos sujeitos da educação, relacionando-
os aos problemas mais gerais da sociedade da qual a escola é parte.
Isso não quer dizer, entretanto, que todos os esforços teóricos realizados
dentro de uma perspectiva crítica consigam estabelecer esse vínculo com a prática
educacional. O academicismo também contamina uma parte das elaborações
críticas em educação, o que permitiu Antônio Flávio B. Moreira afirmar que

Os avanços teóricos [na teorização crítica sobre o currículo] afetam pouco a


prática docente: embora conferindo maior prestígio ao campo no meio
acadêmico, as discussões travadas dificilmente chegam à escola, deixando
de contribuir, como se desejaria, para sua maior renovação. [...]. A teoria
curricular crítica [...] é vista como [...] padecendo de um grave problema: “o
distanciamento entre a produção ‘teórica’ e a realidade vivida no cotidiano
das escolas” [citação de R.F. Souza] (Moreira, 1999, p. 13 e 19).

Moreira constata esse aspecto amparado em entrevistas com “especialistas em


currículo”, segundo afirma. Não se trata, portanto, de um problema que decorra de
aspectos teóricos intrínsecos à Teoria Educacional Crítica e nem significa algum tipo
de fracasso constatado em sua dimensão pragmática ou na sua relação com o
cotidiano, mas tão somente do risco de distanciamento do mundo vivido da
educação a que todos estamos submetidos no meio acadêmico (independente da
perspectiva que adotemos) e a respeito do qual devemos estar constantemente
vigilantes – como já constatei no capítulo 2, Item 2.3, ao insistir no aspecto prático e
vivencial da filosofia dialética de Marx.

90
Comparem-se essas afirmações de Beyer e Liston, feitas a partir de uma perspectiva educacional
crítica,
descritoepor
as perguntas
Paraíso. perenes e a “renúncia da função prescritiva” dos estudos pós-críticos conforme
129

Do ponto de vista teórico-metodológico, a teoria crítica considera


dialeticamente a relação entre a abordagem teórico-sistemática e a análise do
cotidiano e da ação. Sua complexidade teórica não é um abstracionismo sem lastro,
ao mesmo tempo em que sua noção de cotidiano não absolutiza o mundo vivido:

A consequência
social nas teoriasmetodológica de ligar
críticas tem sido as atenção
dupla: análises para
sistêmica e da ação-
a dialética ação
estrutura na análise dos processos de reprodução social e cultural; e uma
guinada para investigações historicamente específicas [...] e etnográficas,
capazes de análises integradoras, generalizadoras e de estudo de casos –
às vezes bastante distintas da oposição neofoucaultiana entre o universal e
o local, como se a análise regional pudesse dispensar a teoria social
generalizadora (embora não no sentido de leis a-históricas invariantes)
(Torres & Morrow, in Torres, 2003, p. 116).

Uma vez estabelecidos os pressupostos de níveis zero e 1 da teorização crítica


em educação, o trabalho que cabe aos teóricos e educadores é o de pensar e
experimentar maneiras de como esses níveis podem concretizar-se em umapráxis
educativa. Aqui estamos no que poderíamos chamar de “nível 2” da Teoria
Educacional Crítica: sua dimensão pragmática ou praxiológica. Nesse nível, há uma
grande diversidade de propostas entre os teóricos e incontáveis experiências nas
práticas dos educadores. O nível 2 é um campo aberto para inúmeras possibilidades
e inovações. Não é o propósito desta tese analisar essa diversidade, mas sim focar-
se nas questões pertencentes ao nível 1, que se encontram nos fundamentos dos
capítulos seguintes.

3.3. O CARÁTER PROPOSITIVO DA TEORIA EDUCACIONAL CRÍTICA

George Snyders defendeu que a escola é capaz de cumprir um papel na


transformação social, desde que os educadores se compreendam também como
agentes dessa transformação. Ele aponta para mudanças na prática escolar, sem,
no entanto, fazer referências a mudanças profundas no método da educação
(compreendida aqui como ato de educar). Embora comente algumas formas
diferentes de práticas em sala, que valorizem a solidariedade e o espírito de união
entre os alunos das classes dominadas, não chega a apresentar, de forma
sistemática, uma mudançana forma de transmissão dos conteúdos.
Em Escola, classe e luta de classes (Snyders, 1981) a proposta que
transparece é a da apropriação da escola pela classe trabalhadora em luta pela
transformação social. Isso implica o acesso dos alunos oriundos da classe operária
130

ao conhecimento universal acumulado, que devem ser transmitidos de maneira


crítica, à luz dos interesses da classe dominada, a fim de que a luta dos
trabalhadores seja fortalecida. A escola poderia ser, dependendo da prática dos
educadores, uma ferramenta importante na luta de classes e não apenas uma
instituição exclusivamente voltada para a manutenção da hegemonia burguesa.
Com inúmeras inovações e acréscimos, é nessa linha também que se situa
Dermeval Saviani. Sua proposta de uma “pedagogia histórico-crítica” também
concede à escola um papel fundamental na formação de sujeitos críticos e
preparados para a luta social, sem menosprezar a importância do conhecimento
universal acumulado na formação dos alunos das classes dominadas – ao contrário,
a apropriação desses conhecimentos é, para Saviani, condição para sua
emancipação.
A ênfase de Saviani na aquisição do conhecimento universal acumulado como
instrumento de luta dos trabalhadores rendeu-lhe acusações de “conteudista” e de
não se preocupar com questões de método. Tais acusações são analisadas por ele
mesmo a partir de uma compreensão dialética das relações “forma-conteúdo”,
“socialização-produção do saber”, “saber-consciência”, “saber acabado-saber em
processo” e “saber erudito-saber popular” (Saviani, 1991b, p. 78-85). Muitas
confusões seriam desfeitas na análise de supostas dicotomias nessas relações se
fossem levadas em consideração as observações de Saviani na obra citada. Suas
ponderações e o constante apelo (nessa e em outras obras) à dialeticidade do
pensamento são uma importante contribuição para evitar o reducionismo e os
extremismos no campo da pedagogia crítica.

A centralidade que Saviani atribui aos conteúdos educacionais amplia a tarefa


da educação crítica, pois lhe coloca o desafio de pensar as ciências e o
conhecimento historicamente acumulado como algo que não pode ser apenas
caracterizado e rejeitado como “conhecimento burguês”, senão que deve ser
apropriado pelas classes dominadas e analisado a partir de suas vinculações com os
interesses das classes hegemônicas.91
Henry Giroux procurou superar o fatalismo das teorias de reprodução
defendendo a possibilidade da educação ser trabalhada como resistência e impulso

91
A reflexão sobre os conteúdos científicos que são ensinados nas escolas será de grande
importância para a análise que farei no Capítulo 11, Item 11.3, sobre o ensino de ciências e a sua
vinculação com a racionalidade hegemônica.
131

de emancipação. Mesmo que reconheça o caráter de reprodutibilidade da escola, ele


a compreende também como um espaço privilegiado para o fortalecimento da luta
pela transformação da sociedade. Os escritos iniciais de Giroux trabalhavam com a
noção de crítica à ideologia, concebendo este conceito de uma maneira dialética, ou
seja, como composto de elementos contraditórios e não como um conjunto formado
exclusivamente pelas ideias da classe dominante que tem a função de perpetuar a
dominação e torná-la implacável. Para ele, na subjetividade da classe trabalhadora
há elementos que, de fato, reproduzem ideias ligadas aos interesses de dominação,
transmitidos pelos meios sociais de formação da consciência, incluindo aqui a
educação, mas também há elementos de resistência e emancipação gerados pela
experiência de vida de sujeitos ativos e não meramente receptores da ideologia
dominante.
O caráter existencial da subjetividade das classes e grupos dominados faz com
que a formação da consciência não seja um processo meramente passivo, em que
as ideias dominantes são perfeitamente “plantadas” nas mentes dominadas. Assim,
As implicações dessa forma de crítica da ideologia para a teoria e prática
educacionais estão centralizadas primordialmente em torno do
desenvolvimento de uma psicologia profunda que possa desvelar a maneira
pela qual experiência e tradições historicamente específicas são traduzidas
e resistidas ao nível da vida escolar cotidiana (Giroux, 1986, p. 197. Grifos
meus).

Portanto, a tarefa da educação crítica não é simplesmente a de ensinar verdades,


mas a de

[...] fornecer as condições para mudar a subjetividade, como ela é


construída nas necessidades, impulsos, paixões e inteligência do indivíduo
[...]. Um aspecto
estudantes essencial
questionarem da pedagogia
criticamente suas radical
históriasé eaexperiências
necessidadeíntimas.
dos
É crucial para eles serem capazes de entender como suas próprias
experiências são reforçadas, contraditas e suprimidas como resultado de
ideologias mediadas através das práticas materiais e intelectuais que
caracterizam a vida diária da sala de aula (Giroux, 1986, p. 198.199).

Um dos aspectos importantes dessa forma de se conceber a educação é o de


que os educandos são tambémsujeitos de seu processo educativo e da formação
de sua consciência crítica. Ou seja, não se trata de um trabalho de “redenção” de
“subjetividades alienadas” que parte do professor e se dirige aos alunos, mas da
compreensão de que a formação da consciência crítica envolveuma coletividade
132

interagente composta por professores e alunos, ainda que aos primeiros, dada a
92
dinâmica real da educação, caiba a função precípua de dirigir o processo.
A esse propósito, o fato de a educação escolar possuir essa dinâmica em que
ao professor cabe a tarefa de ser o condutor do processo – e até hoje não se
conheceu ou pensou dinâmica diferente – faz com que a ação do educador seja
sempre diretiva, mesmo quando ele renuncia à sua função condutora, pois, quando
faz essa opção, está simplesmenteavalizando o conhecimento dos alunos da forma
como é. Visto que a consciência dos alunos não é uma tábula rasa e nem formada
por conhecimentos conquistados apenas autonomamente, e sim constituída
socialmente pela cultura, família, ambiente social, meios de comunicação, etc., à
medida que o professor, renunciando à sua função diretiva, avaliza o conhecimento
dado, ele, ao mesmo tempo,direciona a educação para os conhecimentos e valores
dominantes na sociedade. A renúncia da diretividade ou da tarefa prescritiva da
educação acaba servindo como reforço dos valores capitalistas (individualismo,
consumismo, competição, submissão, lucratividade, etc.) e dos elementos
segregadores da cultura ocidental (sexismo, homofobia, racismo, etnocentrismo,
etc.).
O aspecto das elaborações iniciais de Giroux que mais interessa para os
objetivos desta tese é o destaque que ele deu às relações que se estabelecem no
cotidiano da escola além do estrito atoinstrucional. Não são apenas os conteúdos
ou o currículo declarado que reproduzem a ideologia dominante, mas também as
rotinas diárias da escola. Por isso, uma teoria crítica em educação

[...] aponta para a necessidade de identificar as mensagens tácitas


incorporadas nas rotinas diárias
interesses emancipatórios da experiência
ou repressivos escolar
a que essase de descobrir
rotinas servemos
(Giroux, 1986, p. 197).

Giroux se apropria de um conceito já existente na literatura educacional, a


noção de “currículo oculto”, e lhe concede uma dimensão crítica. Tal conceito refere-
se às “normas, valores e crenças não declaradas que são transmitidas aos
estudantes através da estrutura subjacente do significado e no conteúdo formal das
relações sociais da escola e da vida na sala de aula” (Giroux, 1997, p. 57).

92
Essa observação,
contestação que farei,mais evidente nas2,elaborações
no Esclarecimento de Paulo
a algumas críticas Freire,
dirigidas será Educacional
à Teoria importante para
Crítica.a
133

A noção de currículo oculto nos ajuda a perceber o caráter educativo não


apenas do ensino propriamente dito, mas também de “todas as instâncias
ideológicas do processo de escolarização que ‘silenciosamente’ estruturam e
reproduzem os pressupostos e práticas hegemônicas” (Giroux, 1986, p. 100). Se
ampliarmos suficientemente a abrangência do conceito (como faz Sacristán, 2003), a
criticidade da teoria educacional deve voltar-se para todos os aspectos da vida
escolar, incluindo atividades recreativas, relações entre colegas, jogos, gincanas,
datas comemorativas, etc. e até o simples ato de consumir alimentos,
aparentemente esvaziado de conteúdo educacional significativo. Essa noção
ampliada do currículo será trabalhada no Capítulo 11.
Conforme mencionei na introdução, a Teoria Educacional Crítica possui vários
representantes e suas elaborações tornam o campo teórico vasto o bastante para
não se enquadrar em pequenas sínteses e nem se resumir às ideias de um só autor.
Contudo, o teórico mais importante no campo da fundamentação filosófico-
pedagógica para a Teoria Educacional Crítica foi Paulo Freire. Nenhuma abordagem
teórica sobre a educação crítica está completa se não fizer referência a esse
pensador. Como já destaquei mais de uma vez, o presente capítulo não tem
propósito compendiador e aqui interessam somente as ideias mais fundamentais
que servirão de base para os capítulos seguintes. Portanto, a reflexão sobre as
ideias de Freire está também submetida a essa orientação.
A proposta pedagógica de Paulo Freire é um dos raros casos em que uma
teoria crítico-emancipatória legitimamente latino-americana ultrapassou seu lócus
geopolítico e, sem perder sua vinculação essencial com ele, influenciou o

pensamento mundial. As ideias de Freire tornaram-se um fundamento indispensável


para os propósitos da Teoria Educacional Crítica e foram incorporadas
imediatamente por educadores críticos de diversos países. Pode-se dizer que o
pensamento freireano passou a configurar a própria base da Teoria Educacional
Crítica moderna, e, por isso, ela não é simplesmente a aplicação do pensamento
crítico europeu à educação. Isso significa que uma correta compreensão da Teoria
Educacional Crítica (para aceitação ou recusa) não pode nutrir-se apenas da
interpretação da teoria crítica europeia ou do marxismo tradicional, uma vez que, no
campo do pensamento educacional, Freire não é apenas um “representante” da
teoria crítica, mas um dos principais elaboradores de seus fundamentos (senão o
principal).
134

Atualmente, mesmo aqueles que apresentam reservas ao pensamento de


Freire o fazem a partir de um ambiente teórico marcado pelo impacto de suas
proposições. Ou seja, seu pensamento criou as próprias condições teóricas que
amparam os críticos para a sua contestação. Conforme diz Torres, “na confusão do
mundo atual, os educadores podem estar com Freire ou contra Freire, mas não sem
Freire” (Torres, 2003, p. 226).93 Como toda elaboração teórica, seu pensamento, em
sua evolução, também é datado e nem todas as suas proposições precisam ser
consensuais. Mas é indubitável que a perspectiva propositiva e emancipatória que
Freire deu à teoria educacional está na base de qualquer teoria crítica em educação
na atualidade.
Sua grande contribuição para a Teoria Educacional Crítica foi a de ter proposto
a necessidade de mudanças profundas no próprio ato de educar para que a
educação realmente concretize os propósitos emancipatórios dos educadores que
se colocam na perspectiva da transformação social. Ou seja, uma educação
emancipatória não é aquela que apenas trabalha os conteúdos na ótica dos
dominados, ou que questiona a ideologia dominante presente na educação e nos
conhecimentos, nem mesmo a que estimula a mobilização dos alunos das classes
dominadas para que se unam na luta pela transformação social; mas aquela que,
justamente por querer tudo isso, se funda em uma teoria do conhecimento adaptada
às exigências de emancipação, modifica profundamente a relação do educador com
o educando e se transforma em uma práxis educativa substancialmente diferente da
que é tradicionalmente adotada.
Em outras palavras, dado o interesse de emancipação – que na teoria de Freire

assume o caráter de “libertação”, na linha das teorias emancipatórias latino-


americanas – a prática educativa deve ser refundamentada sobre princípios
antropológicos, epistemológicos e axiológicos diferentes. “O que distingue a
liderança revolucionária da elite dominadora não são apenas seus objetivos, mas o
seu modo de atuar distinto. Se atuam igualmente, os objetivos se identificam”
(Freire, 1975, p. 195-196).

93
A leitura ou releitura nos dias atuais das obras mais antigas de Paulo Freire pode provocar em
alguns a sensação de que muitas coisas ali presentes não represent am novidades ou fazem parte de
um certo “senso comum” pedagógico. Essa impressão se justifica pelo fato de que muitas de suas
ideias foram
perdendo incorporadas
a vinculação definitivamente
explícita com o seuao discurso pedagógico das últimas três décadas, às vezes
proponente.
135

Essa é a base da reflexão da Pedagogia do oprimido. Nessa obra miliária,


Freire critica a forma tradicional de educação e traça os seus contornos baseado na
maneira como ela concebe o ser humano, o conhecimento, a consciência, a função
da educação e a sua aplicação prática. Esse modelo de educação, que ele designa
de “bancário”,94 é adequado aos interesses de dominação e reproduz os seus
propósitos. Por isso, uma educação para a libertação não pode servir-se do mesmo
tipo de ato educativo usado hegemonicamente, apenas mudando a orientação
político-ideológica dos conteúdos ou dos discursos. É necessário criar-se uma outra
forma de educação em seufazer-se concreto com as classes dominadas, pois “[...]
deformados já estando, enquanto oprimidos, não pode a ação de sua libertação usar
o mesmo procedimento empregado para sua deformação” (Freire, 1975, p. 58).
A educação, nesse sentido, não apenas “forma” consciências, seja para a
reprodução do sistema ou para a transformação da sociedade:ela própria é um ato
que pode oprimir ou servir de mediação para um ser humano emancipado. A
educação, em si mesma, não emancipa, dado que para Freire a libertação só se dá
com a transformação das estruturas concretas da sociedade. Mas essa
transformação precisa de subjetividades novas, críticas e ativas, para o quê a
educação cumpre um papel fundamental.
É importante destacar que as proposições de Freire não aspiram ao status de
proposições técnicas ou metódicas passíveis de serem utilizadas por qualquer
educador ou criticadas fora da fundamentação ética, filosófica e política que as
sustentam. Toda mudança no ato de educar está submetida a propósitos específicos
e deve ser compreendida em coerência com esses propósitos. Já fiz referência ao

posicionamento assumido da teoria crítica a favor das classes dominadas e de sua


emancipação (Capítulo 2, Item 2.5, princípio P c) e à importância metodológica do
posicionamento prévio do teórico social e, em especial, em educação (cf. Introdução,
seções I e II). O que fica, no entanto, mais patente no pensamento de Freire é a
importância de um ponto de partidaético para a teorização – e esse aspecto é de
importância capital para que se supere a concepção positivista residual, que ainda
se faz notar no campo acadêmico, a respeito do trabalho de elaboração teórica.

94
Freire chama
“depósito” de “bancária”
nas consciências dosessa forma de
educandos e aeducação
avaliaçãopor elaum
como conceber
“saque”odo
ensino como
que foi um ato de
depositado.
136

Não é preciso que o teórico suspenda seus compromissos éticos no ato de


teorização. Ao contrário, a racionalização do comprometimento ético é fundamental
para uma sociedade fundada no diálogo, na democracia e no respeito ao outro, dado
que, assim, as motivações subjetivas do teórico, além de se tornarem manifestas,
podem ser submetidas ao debate racional. Ademais, já argumentei na Introdução
que a suposta “suspensão” de comprometimentos éticos não é mais do que uma
95
adesão, ainda que inconsciente, aos princípios éticos hegemônicos. Freire fala, por
exemplo, que a sua proposta de uma educação dialógica não é possível se “[...] não
há um profundo amor ao mundo e aos homens. Não é possível apronúncia do
mundo [...] se não há amor que a infunda” (Freire, 1975, p. 93-94).
Para os padrões mais habituais de cientificidade e racionalidade, frases como
essa poderiam ser descartadas em sua capacidade de se constituírem fundamentos
de uma teoria rigorosa e racional. Porém, toda racionalização parte de fundamentos
não racionais. Para o que importa aqui, tomemos, para contraste, uma afirmação
tida como plenamente científica. O zoólogo britânico Richard Dawkins transformou o
egoísmo, ou seja, um sentimento, em um princípio universal “científico”, válido para
pedaços de matéria (os genes) e para a sociedade humana. Suas proposições,
apesar de extremamente questionáveis, foram aceitas sem resistências significativas
no meio científico. Ele chega a afirmar, revelando a sociologia que decorre de suas
idéias científicas (ou, como creio, a sociologia que estápor trás delas) que:

Pessoalmente creio que seria muito desagradável viver numa sociedade


humana baseada simplesmente na lei do egoísmo, implacável e universal,
do gene. Mas, infelizmente, por mais que se lamente algo, esse algo não
deixa, por isso, de ser verdadeiro (Dawkins, 1989, p. 30).

Ora, se é possível e aceitável uma racionalização científica (e aqui estou


trazendo um exemplo das ciências naturais, consideradas mais “objetivas”!) tendo
como base fundamental um sentimento ou um princípio ético (o egoísmo), nada
pode obstar ou reduzir a importância do trabalho de racionalização teórica fundada
96
em sentimentos ou princípios éticos diferentes, como o amor e a cooperação.

95
Daí que – vale a pena repetir – a defesa de princípios como a competição, o ódio, o egoísmo e o
individualismo é aceitável nas ciências que os transformaram em princípios realistas, enquanto os
seus contrários (cooperação, amor, altruísmo e solidariedade), continuam sendo tratados como ideias
românticas (ver sobre isso Abdalla, 2006b). A assunção de uma ética fundada na cooperação estará
na base das proposições da Parte III.
96O que está em questão na presente discussão não é a verdadeira cientificidade das elaborações de
Dawkins – a propósito, completamente questionável (ver Sandín, 2006 e Abdalla 2006a) – mas a sua
137

Assim, a adesão de Freire, em todas as suas obras, às classes subjugadas no


sistema capitalista é explícita e fundada em um compromisso ético de amor aos
seres humanos e ao mundo: “onde quer que estejam estes, oprimidos, o ato de amor
está em comprometer-se com sua causa. A causa de sua libertação” (Freire, 1975,
p. 94).
Uma Teoria Educacional Crítica, como trabalho teórico e orientação para a
práxis, deve, portanto, estar conectada a um “pôr-se” eticamente diante do mundo,
formado pelos outros seres humanos e pela natureza. Fora da compreensão da
eticidade fundante ou sem a sua aceitação como fundamento da racionalização
teórica não é possível o diálogo ou a crítica em torno da educação crítica, pois,
conforme axioma de Aristóteles, c“ ontra negantem principia non est disputandum”.97
Em sua análise da educação tradicional, Freire denuncia a vinculação do ato
educativo com os princípios que mantêm a estrutura social dominante e a maneira
como ele molda a subjetividade dos oprimidos para a passividade e reprodução do
sistema. Mas Freire também pensa a educação como possibilidade de criação de
subjetividades ativas na transformação dessa estrutura. A educação como sistema
oficial só será transformada com a tomada do poder pelas classes subalternas, mas
a práxis educativa pode ser transformada já, por vontade dos agentes da educação:

Se, porém, a prática desta educação implica no poder político e se os


oprimidos não o têm, como então realizar a pedagogia do oprimido antes da
revolução? [...] Poderemos [...] afirmar que um primeiro aspecto desta
indagação se encontra na distinção entre educação sistemática , a que só
pode ser mudada com o poder, e os trabalhos educativos , que devem ser
realizados com os oprimidos, no processo de sua organização (Freire, 1975,
p. 43-44).

Freire pensava uma forma de educação “para a revolução” e uma forma de


educação “após a revolução” – esta última seria a “revolução cultural”. Está bastante
presente em seu pensamento a ideia da tomada de poder pelas classes dominadas
e a transformação do sistema:

A pedagogia do oprimido, como pedagogia humanista e libertadora, terá


dois momentos distintos. O primeiro, em que os oprimidos vão desvelando o
mundo da opressão e vão comprometendo-se na práxis, com a sua
transformação; o segundo, em que, transformada a realidade opressora,

aceitação sem críticas, principalmente pela mídia, coisa que seguramente seria diferente se ao invés
do egoísmo ele estabelecesse o amor como princípio, como faz o também biólogo Humberto
Maturana (1999), para quem os holofotes dos mass media jamais se dirigiram.
97
“Não há debate entre os que divergem em princípios”.
138

esta pedagogia deixa de ser do oprimido e passa a ser pedagogia dos


homens em processo permanente de libertação (Freire, 1975, p. 44).

Portanto, trata-se de uma proposta vinculada a um projeto social, político e


econômico e que se configura, em suas exigências internas práticas e teóricas, de
acordo com a compreensão que se tem desse projeto. Sendo assim, a Teoria

Educacional Crítica possui, como já foi afirmado, um caráterdiretivo. Freire


considera que a educação é, “[...] por sua própria natureza, diretiva e política”
(Freire, 2002, p. 78) e que “qualquer que seja a qualidade da prática educativa,
autoritária ou democrática, ela é sempre diretiva” (idem, p. 79).
A respeito desse aspecto, o pensamento de Paulo Freire traz também uma
contribuição que não pode ser olvidada. A pedagogia do oprimido faz um insistente
apelo ao respeito aos educandos como também sujeitos da educação e à
relativização do poder do educador. No entanto, a proposta de uma integração entre
educador e educando, ambos compreendidos como sujeitos do ato cognoscitivo

realizado pela e na educação, pode sugerir a anulação da diferença 98de papeis e uma
prática não-diretiva ao estilo das proposições escolanovistas. Por isso, é
importante se ter em conta a dialeticidade proposta por Freire nessa relação entre
educador-educando. Primeiro, o educador não se anula enquanto educador:

[...] ao propor-se aos educandos a análise de sua prática anterior [...] o


educador não pode furtar-se [...] de informar. E não pode, na medida
mesma que conhecer não é adivinhar. O fundamental, porém, é que a
informação seja sempre precedida e associada à problematização do objeto
em torno de cujo conhecimento ele dá esta ou aquela informação. Desta
forma, se alcança uma síntese entre o conhecimento do educador, mais
sistematizado, e o conhecimento do educando, menos sistematizado –
síntese que se faz através do diálogo (Freire, 1987, p. 54-55).

Além disso, respeitar os educandos


[...] não significa mentir a eles sobre meus sonhos, dizer-lhes com palavras
ou gestos ou práticas que o espaço da escola é um lugar “sagrado” onde
apenas se estuda e estudar não tem nada que ver com o que se passa no
mundo lá fora; esconder deles minhas opções, como se fosse “pecado”
preferir, optar, romper, decidir, sonhar. Respeitá-los significa, de um lado,
testemunhar a eles minha escolha, defendendo-a; de outro, mostrar-lhes
outras possibilidades de opção [...] (Freire 2002, p. 78).

Portanto, o educador deve decidir-se por um projeto e sua prática deverá estar
orientada para a sua concretização – e isso deve estar claro também para os

98
É assim que a interpreta, equivocadamente, José Carlos Libâneo (cf. nota 101, abaixo).
139

educandos. Sua ação não se resume apenas a uma crítica genérica às “relações de
poder”, à “construção de verdades”, ou a um apelo a qualquer tipo de “transgressão”
e “subversão”. Trata-se, de um lado, de uma ação crítica direcionada, fundada em
uma ética social e balizada por um projeto de transformação e, de outro, de um
apelo a ações de resistênciaconsequentes com a concretização desse projeto. A
questão central é que a diretividade da práxis educativa não pode transformar-se em
uma repetição da prática “bancária” e nem ser imposta de forma autoritária e
antidialógica. Por isso, ela precisa fundar-se em um outro tipo de relação
cognoscitiva concretizada no ato educativo.
Nesse ponto, Freire nos traz uma insistente proposição, que é tema recorrente
em todas as suas obras principais: o processo educativo não é ação do educador
sobre educando, mas processo dialógico em que, cumprindo funções diferentes,
educador e educando se colocam como sujeitos do ato de conhecer. Se isso não for
levado em consideração, perde-se totalmente um dos fundamentos da contribuição
freireana para a Teoria Educacional Crítica.99 Vale a pena citar mais alguns excertos
da Pedagogia do oprimido em que a concepção da relação educador-educando se
faz mais explícita:

Para nós, contudo, a questão não está propriamente em explicar às


massas, mas em dialogar com ela sobre sua ação (Freire, 1975, p. 42).

A educação que se impõe aos que verdadeiramente se comprometem com


a libertação não pode fundar-se numa compreensão dos homens como
seres “vazios” a quem o mundo “encha” de conteúdos; não pode basear-se
numa consciência espacializada, mecanicistamente compartimentada, mas
nos homens como “corpos conscientes” e na consciência como consciência
intencionada ao mundo. Não pode ser a do depósito de conteúdos, mas a
da
77).problematização dos homens em suas relações com o mundo (Idem, p.

Neste sentido, a educação libertadora, problematizadora, já não pode ser o


ato de depositar, ou de narrar, ou de transferir, ou de transmitir
“conhecimentos” e valores aos educandos, meros pacientes [...], mas um
ato cognoscente. Como situação gnosiológica, em que o objeto cognoscível,
em lugar de ser o término do ato cognoscente de um sujeito, é o
mediatizador de sujeitos cognoscentes, educador, de um lado, educandos,
de outro, a educação problematizadora coloca, desde logo, a exigência da
superação da contradição educador-educando (idem, p.78).

99
Veremos adiante, no Esclarecimento 2, que, a despeito da insistência de Freire e da repetição à
exaustão de alguns ou,
escritos freireanos, temas em suasdas
na melhor obras, algunsnão
hipóteses, críticos parecem não ter dado a devida atenção aos
o compreenderam.
140

[Na teoria da ação dialógica] ninguém desvela o mundo ao outro e, ainda


quando um sujeito inicia o esforço de desvelamento aos outros, é preciso
que estes se tornem sujeitos do ato de desvelar (Idem, p. 198).

A insistência no ato de educar libertador como contrário ao “depósito” de


conteúdos se justifica pelo contexto de hegemonia de uma pedagogia tradicionalista
que Freire procurava questionar e vincular aos interesses de dominação. Além disso,
suas elaborações iniciais dirigiam-se mais ao trabalho educativo nos movimentos
sociais, onde o comprometimento com um currículo formal não é exigência
necessária. A despeito do que possa transparecer, abstraindo-se o contexto, em
algumas partes da Pedagogia do oprimido,100 a concepção freireana de educação
não despreza e nem relega a um plano inferior o trabalho com os conteúdos
curriculares ou com o conhecimento historicamente acumulado .101 Freire deixou isso
claro em um seminário no Instituto Cajamar (São Paulo), realizado em 4 de abril de
1988. Por se tratar de texto inédito, vale a pena citar longamente a transcrição de
sua fala:

De maneira nenhuma se coloca a hipótese da desnecessidade de


conteúdos. Não é possível ensinar a não ser alguma coisa a alguém. Nunca
houve na história da humanidade, desde que o fenômeno educativo
começou a ser percebido, uma educação sem conteúdo. E não seria no final
do século XX que iria aparecer alguma pedagogia sem conteúdo.
A questão que se coloca é de saber quem determina os conteúdos e como
é que se ensina os conteúdos. Conteúdos a favor de quem? A favor de
quê? Para quê? Essa é uma questão da pedagogia que é política. Mas não
saber se tem pedagogia sem conteúdo ou não. Porque é um ato que não
existe. É coisa inviável.
Se tem conteúdo, porque não é possível ensinar a não ser alguma coisa, é
preciso que o educador se capacite. Isso é um ponto central na formação do
educador que tem de ser uma formação permanente. Como se porta o
educador no trato do conteúdo, no trato dos objetos? Como ultrapassa o

100
Por exemplo, na parte em que Freire diz: “Enquanto na prática ‘bancária’ da educação [...] o
educador deposita no educando o conteúdo programático da educação, que ele mesmo elabora ou
elaboram para ele, na prática problematizadora [...] este conteúdo, que jamais é ‘depositado’, se
organiza e se constitui na visão de mundo dos educandos [...]” (p.120).
101
Libâneo (1990, p. 70), por exemplo, afirma que na pedagogia libertadora de Freire “os conteúdos
escolares são extraídos da problematização da prática de vida dos educandos, mas não há nenhuma
preocupação em sistematizá-los, pois é mais importante a vivência da experiência do que a
apropriação de conhecimentos sistematizados. Daí a pedagogia libertadora [...] [acredita] que a
cultura popular é autônoma em si mesma, não havendo necessidade de recorrer à cultura chamada
erudita, mesmo porque a transmissão de conhecimentos se identifica com a ‘educação bancária’ e só
serve à dominação cultural. [...]. As decisões do grupo são soberanas, afastando-se qualquer forma
de direção e controle por parte do professor, adotando, portanto a não diretividade”. Na obra
Pedagogia da esperança (2002), Freire esclarece alguns pontos das críticas a seu pensamento. Mas
nenhuma dessas afirmações de Libâneo corresponde ao pensamento de Freire, mesmo antes dessa
obra
leitura– apressada
como demonstro em minha
e exclusiva argumentação
da Pedagogia – e nem
do oprimido . é possível depreendê-las sequer de uma
141

conteúdo? Como se serve da rigorosidade com que deve ultrapassar o


conteúdo? Precisamente por causa dessa rigorosidade insere a
compreensão crítica desse conteúdo na compreensão histórica da
sociedade em que se vive.
[...]
Eu falava da necessidade da competência em torno dos conteúdos. Mas
não basta. A competência do conteúdo tem de estar iluminada pela
competência política, que esclarece politicamente a razão de ser do
conteúdo. É essa competência política que, somada à competência em
torno do conteúdo, me faz ao ensinar o conteúdo já estar desafiando o
educando para que ele se defina [...] (Freire, 1988).

Na Pedagogia da esperança (Freire, 2002, p. 77-82), Freire esclarece que o


respeito aos educandos, como alteridade, não contradiz a diretividade da educação
a partir de posições assumidas pelo educador. Pelo contrário, sendo impossível a
prática educativa neutra, o respeito se dá justamente na assunção das posições
tomadas.
O desafio que a Teoria Educacional Crítica coloca para si mesma, enquanto
delineadora de uma práxis educativa voltada para a emancipação, pode ser
resumido em alguns pontos expostos por Giroux. Segundo esse autor, inspirado
também em Freire, o papel da educação crítica é o de trabalhar com um
conhecimento que: 1) “instrui os oprimidos a respeito de sua situação como um
grupo, situado dentro de relações específicas de dominação e subordinação”;
2) ilumina “como os oprimidos poderiam desenvolver um discurso livre das
distorções de sua própria herança cultural parcialmente mutilada”; 3)instrui “os
oprimidos sobre como se apropriar das dimensões mais progressistas de suas
próprias culturas, bem como reestruturar e se apropriar dos aspectos mais radicais
da cultura burguesa”; 4)apresenta “uma conexão motivacional à própria ação”; e
5) liga “uma decodificação radical da história com uma visão do futuro” que não
apenas destrói as “reificações da sociedade existente”, mas que também atinge
“aqueles bolsões de desejos e necessidades que abrigam um anseio por uma
sociedade nova e por novas formas de relações sociais” (Giroux, 1986, p.55-56).
Os pontos que Giroux aponta são a base do pensamento crítico e a tarefa
educativa deve ser compreendida a partir deles e dos outros aspectos
sistematizados na exposição deste capítulo. Porém, o papel da educação crítica,
sem perder os vínculos com sua fundamentação, deve ser analisado sempre à luz
dos problemas sociais e filosóficos da contemporaneidade e constantemente

adaptado às exigências do presente.


142

Esclarecimento 2
É preciso, uma vez mais, desfazer alguns equívocos de interpretação que
tornaram a Teoria Educacional Crítica um alvo de contestaçãopor aquilo que ela
não é. Para que se tenha claro os desafios que a teoria deve enfrentar é
fundamental compreendê-la adequadamente, a fim de se evitar as críticas fáceis
que, infelizmente, se têm multiplicado no debate educacional. Só assim poderemos
compreender em que medida a Teoria Educacional Crítica deve ser revisada e
renovar suas proposições para estar em sintonia com nosso tempo.
Há duas formas de se interpretar as proposições de Giroux citadas acima, que
devemos distinguir para entender corretamente a proposta da Teoria Educacional
Crítica: a) a maneira “salvacionista” e b) a maneira “orgânica”. A primeira é típica de
setores da esquerda que têm de si uma autocompreensão vanguardista e de
intelectuais exclusivamente acadêmicos; ambos caracterizados por uma certa visão
recorrente no contexto da classe média. Os intelectuais exclusivamente acadêmicos
podem, por sua vez, interpretar as proposições da teoria crítica de forma
salvacionista seja para tentar aplicá-las na prática educativa ou para criticá-las e
buscar superá-las por novas elaborações teóricas. A segunda forma de se
compreender as exigências do conhecimento crítico (a orgânica) desenvolve-se
entre lideranças populares e entre grupos de intelectuais e educadores que
descobriram a necessidade de conviver com os setores populares e suas
organizações e de compreenderem a si próprios não como uma casta autônoma na
sociedade, mas como sujeitos inseridos nas contradições de classe e nos conflitos
sociais. Isso possibilitou a percepção de que a tarefa educativa não se define por
uma ação unidirecional que parte do educador para o educando, mas pela
construção do saber e transmissão do conhecimento a partir dos próprios contextos,
culturas e experiências dos dominados.
a) A interpretação salvacionista da tarefa de construir um conhecimento crítico
através da educação pressupõe que alguns grupos, por motivos diversos, mas
geralmente relacionados ao acesso à educação e à cultura mais refinada,
ascenderam a um conhecimento livre de distorções e ideologias, conquista a que a
população mais pobre não teria tido acesso. Por esse motivo, caberia aos membros
progressistas dos grupos instruídos incutir o conhecimento crítico na mente dos

dominados através da “propaganda” (no caso de militantes políticos) ou do ensino


143

(no caso de educadores). Essa foi primeiramente uma visão sustentada por
militantes de esquerda convencidos de que, conforme diz Lênin (1972), a
102
consciência de classe é trazida “de fora”, por revolucionários de vanguarda. Tal
postura, ainda que possa ter cumprido uma função na história, já foi bastante
criticada, sob o nome de “vanguardismo”, desde o início da década de 80 pelas
reflexões de teóricos da Educação Popular e, mesmo bem antes, pela incorporação
das ideias de Gramsci e Paulo Freire à Teoria Educacional Crítica desde os seus
inícios.103
A interpretação salvacionista também foi reproduzida por intelectuais de
militância exclusivamente acadêmica – uma parte deles para aplicá-la, outra para
criticá-la. Entre os que buscam aplicá-la, a ideia subjacente é a de que o
compromisso com o pensamento emancipatório e o acesso à análise mais rigorosa
da situação social dão-lhes a tarefa de “ensinar” o pensamento crítico àqueles que
estão imersos na ideologia do sistema e que, por essa razão, são incapazes de sair
de sua condição de subjugação. Por outro lado, os que buscamcriticar a teoria
crítica geralmente fazem sua análise a partir da interpretação “salvacionista” e
acreditam estar inaugurando um novo pensamento sobre o que julgam ser os
escombros da teoria crítica. As limitações que alguns autores creem identificar na
Teoria Educacional Crítica são, na verdade, limitações apenas da maneira
salvacionista de se conceber a tarefa educativa crítica.

102
São palavras de Lênin: “Dissemos que os operários não podiam ter consciência social-democrata.
Esta só poderia ser introduzida de fora. A história de todos os países atesta que a classe operária [...]
só está em condições de elaborar uma consciência trade-unionista, ou seja, a convicção de que é
necessário agrupar-se em sindicatos, lutar contra os patrões, reclamar do governo a promulgação
desta ou daquela lei necessária para os operários, etc. Ao contrário, a doutrina do socialismo surgiu
de teorias filosóficas, históricas e econômicas que foram elaboradas por representantes instruídos
das classes possuidoras, pelos intelectuais” (Lênin, 1972, p. 69) “Para levar aos operários
conhecimentos políticos, os social-democratas devem ir a todas as classes da população, devem
enviar a todas as partes destacamento de seu exército“ (Idem, p. 136 e 137). “Para fornecer aos
operários conhecimentos políticos verdadeiros, vivos, que abarquem todos os aspectos, é necessário
que tenhamos ‘homens nossos’ [...] em todas as partes, em todas as camadas sociais, em todas as
posições que permitam conhecer as molas internas de nosso mecanismo estatal” (idem p. 147).
(Edição em castelhano).
103
A ideia de vanguarda iluminada está tão amplamente criticada que abordá-la seria tema
anacrônico e superado, não fosse, como veremos adiante ao comentar algumas afirmações de
Tomaz Tadeu da Silva, o fato de alguns autores a utilizarem para criticar o que supõem ser as
proposições da Teoria Educacional Crítica. Já em 1969, Karl-Otto Apel, em uma conferência de
defesa da ciência como emancipação, falando do papel do pedagogo afirma: “a sociedade não pode
emancipar-se sem a emancipação de todos os indivíduos; e não pode, de maneira alguma, ser
emancipada pela manipulação
todos” (Apel, 2000b, p.165). de uma elite partidária que administre os ‘interesses objetivos’ de
144

O que os dois campos da intelectualidade exclusivamente acadêmica (os que


buscam por em prática a educação crítica concebida de maneira salvacionista e os
que a criticam) têm em comum é o fato de compartirem uma compreensãodualista
da relação entre intelectuais e setores populares, pois se compreendem como
grupos “de fora”, que estão, de alguma forma, livres dos conflitos que perpassam a
sociedade capitalista e vivem suas vidas em uma espécie de “área livre” das
contradições de classe. Sua opção de aliar-se ou não aos setores dominados
baseia-se em uma ideia de solidariedade e/ou de capacidade de se empreender um
trabalho de redenção: de um lado ficam os que querem solidarizar-se com os
oprimidos e, ao mesmo tempo, acreditam na capacidade redentora de seus
conhecimentos; de outro, os que desacreditam da função salvacionista da
intelectualidade e, por isso, negam a própria possibilidade de uma educação ou
pensamento críticos. Mesmo que uma parte do segundo grupo possa alegar um
sentimento de solidariedade com as classes populares, é muito difícil identificar onde
104
tal sentimento se manifesta concretamente em seu trabalho intelectual.
De qualquer maneira, a ideia da interpretação salvacionista, em qualquer grupo
(esquerda vanguardista ou intelectualidade exclusivamente acadêmica), é sempre a
de “levar” o conhecimento crítico às mentes dos setores dominados. Isso,
obviamente, pressupõe a ideia de um ponto de vista privilegiado, livre de ideologias,
alcançado de maneira puramente mentalista pela vanguarda ou pelos intelectuais e
possível de ser sistematizado e ensinado às classes populares.
b) Chamei a segunda maneira de interpretar as exigências da educação crítica
105
de orgânica em referência ao conceito de “intelectual orgânico” de Gramsci. Se

104
É possível inclusive levantar-se suspeitas sobre o verdadeiro lado que as teorias que negam a
crítica e a emancipação defendem, mesmo que reivindiquem um caráter de “subversão” e
“transgressão”, palavras recorrentes em alguns autores que reivindicam a designação de “pós-
críticos” (cf. Paraíso, 2004). Nancy Hartsock levanta questões bastante pertinentes a esse respeito:
“Por quê, no exato momento em que tantos de nós que têm sido silenciados começam a reivindicar o
direito de nomear a nós mesmos, de agir como sujeitos e não como objetos da história, o conceito de
sujeito torna-se ‘problemático’? Por quê, precisamente quando estamos formando nossas próprias
teorias sobre o mundo, surge a incerteza sobre se o mundo pode ser adequadamente teorizado? Por
quê, precisamente quando estamos falando sobre as mudanças que queremos, as ideias de
progresso e a possibilidade de organizar de forma ‘significativa’ a sociedade humana tornam-se
suspeitas? E por que apenas agora são feitas críticas à vontade de poder inerente ao esforço para
criar teoria?” (Hartsock, apud Giroux, 1993, p.62).
105
Para Gramsci, os intelectuais não constituem um grupo social autônomo e independente. Ao
contrário, cada grupo social possui a sua própria categoria especializada de intelectuais. “Cada grupo
social, nascendo no terreno srcinário de uma função essencial no mundo da produção econômica,
cria para si, ao mesmo tempo, de um modo orgânico, uma ou mais camadas de intelectuais que lhe
dão homogeneidade e consciência da própria função, não apenas no campo econômico, mas
145

considerarmos a Teoria Educacional Crítica de maneira sistêmica, ou seja, em seus


fundamentos e em suas várias elaborações, que se conectam umas às outras e que
se nutrem de uma dimensãoprática indiscutível (na esteira do materialismo de Marx
exposto no Item 2.3 do Capítulo 2), chegaremos à conclusão de que essa é a forma
correta de se compreender as exigências do pensamento crítico mencionadas por
Giroux.
Primeiro devemos observar que Giroux não fala que a tarefa de “instruir” (1 e 3)
“iluminar” (2), “apresentar” (4) e “ligar” (5) édo educador ou do intelectual, mas do
pensamento crítico. Se considerarmos essas tarefas à luz das reflexões de Gramsci
sobre o papel do intelectual orgânico e, principalmente, sob a ótica de Paulo Freire a
respeito da relação entre educador e educando – que jamais pode ser
desconsiderada na análise da Teoria Educacional Crítica –, concluiremos que a
proposta de uma educação crítica não é a de uma educação unidirecional. A tarefa
de construir e compartilhar o pensamento crítico pela educação não é apenasdo
educador ou do intelectual, e sim, um desafio coletivo, não mentalista, de dimensões
socialmente pragmáticas, definido pela vivência concreta dos setores populares em
suas lutas e necessidades e por sua realidade como “ser que padece”, como vimos
em Marx.
Nessa interpretação, que éa base essencial da educação crítica, a relação do
intelectual com os dominados não é de “solidariedade assistencialista” ou de
“redenção”, mas uma relação sistêmica (orgânica, na terminologia gramsciana) em
que o dualismo entre intelectual e classes populares é superado, embora adiferença
que os distingue se mantenha. Os educadores e intelectuais estão também inseridos

nos conflitos de classe e os reproduzem no campo das elaborações teóricas e da


prática pedagógica. A vivência com os grupos subjugados – suas manifestações

também no social e político” (Gramsci, 1978, p. 3). “O modo de ser do novo intelectual não pode mais
consistir na eloquência [...], mas num imiscuir-se ativamente na vida prática, como construtor,
organizador, ‘persuasor permanente’, já que não apenas orador puro [...]; da técnica-trabalho, eleva-
se à técnica-ciência e à concepção humanista histórica, sem a qual se permanece ‘especialista’ e não
se chega a ‘dirigente’ (especialista mais político)” (idem, p. 8). Por esta concepção, o intelectual crítico
não é um elemento “de fora”, mas um integrante “orgânico” das camadas populares, constituinte de
um mesmo bloco “intelectual-moral”, e que com elas se envolve praticamente . Aqui se exclui a visão
vanguardista ou salvacionista : o “processo de criação dos intelectuais é longo, difícil, cheio de
contradições, de avanços e de recuos, de cisões e agrupamentos. [...] O processo de
desenvolvimento está ligado a uma dialética intelectuais-massa; o estrato dos intelectuais se
desenvolve [...], mas todo progresso para uma nova ‘amplitude’ e complexidade do estrato dos
intelectuais está ligado a um movimento análogo da massa dos simplórios, que se eleva a níveis
superiores de cultura e amplia simultaneamente o seu círculo de influência [...] no estrato dos
intelectuais” (Gramsci, 1981, p. 21 e 22).
146

culturais, as relações humanas que estabelecem, suas organizações que buscam a


emancipação, etc. – e a inserção de seu pensamento no processo de socialização
comum aos dominados é um elemento de críticatambém das próprias elaborações
teóricas e práticas educativas dos intelectuais. Conforme Carlos Alberto Torres, “os
intelectuais críticos veem o seu trabalho como parte de um processo social, sempre
provisório e limitado. Os intelectuais críticos não podem ser clínicos devotados que
oferecem aconselhamento objetivo” (Torres, 2003, p. 136).
À luz dessa interpretação – única adequada aos fundamentos da Teoria
Educacional Crítica – não se exige nenhum “ponto de vista privilegiado”, ou um
pensamento “não-distorcido e livre de ideologias”. O ponto de vista é
assumidamente posicionado, a partir do qual se podem criar critérios de verdade e
justificação que sustentem a teorização crítica, sem que se pretenda um caráter de
universalidade a priori, capaz de definir, apenas no âmbito da teoria, o que é
verdadeiro, bom ou correto e o que não é.
Portanto, a Teoria Educacional Crítica não pode ser criticada a partir de sua
interpretação salvacionista, como faz Tomaz Tadeu da Silva no extenso excerto que
cito a seguir:

[...] O adjetivo “crítica” que acompanha a expressão “Teoria Educacional


Crítica” ou “Sociologia Crítica” ou “Pedagogia Crítica” pressupõe sempre
aquele ponto de vista privilegiado a partir do qual se pode ver através da
ideologia, de uma consciência não contaminada por uma visão distorcida e
falsa da realidade. [...] Uma Pedagogia Crítica está preocupada em fazer
com que as pessoas, os educandos, pensem criticamente, à maneira da
Ciência Educacional Crítica. Do ponto de vista pós-moderno, como
sabemos, isso não faz sentido, colocando em xeque, pois, a própria noção
de crítica e de tudo aquilo que a palavra adjetiva. Como diz James Donald
[...], existe um evidente paradoxo no propósito educacional de tentar fazer
com que as pessoas
si mesmas porque eupensem
disse por
parasi mesmas. Se elaspor
elas pensarem resolverem pensar
si mesmas, por
parece
claro, então, que elas não estão realmente pensando por si mesmas. [...] Do
ponto de vista pós-moderno, faria mais sentido pensar numa educação que
tenha o propósito de criar condições para um espaço público de discussão,
em que as pessoas possam confrontar seus diferentes pontos de vista. [...]
Esse é um questionamento que desaloja o Sociólogo da Educação Crítico,
assim como o Educador Crítico de suas iluminadas e confortáveis posições
e coloca em questão a própria utilização do termo “crítico” ou pelo menos
nos obriga a repensá-lo. Não creio que haja presentemente alguma
resposta fácil a esse desafio (Silva, 1993, p. 136-137).

Há uma série de imprecisões nesse excerto de Silva que precisam ser


analisadas para avançarmos na compreensão da Teoria Educacional Crítica e
147

evitarmos a confusão que tais afirmações podem provocar em quem a conhecer por
106
meio de relatos indiretos e tendenciosamente distorcidos como esse.
A primeira imprecisão é a afirmação de que a crítica “pressupõe sempre aquele
ponto de vista privilegiado a partir do qual se pode ver através da ideologia, de uma
consciência não contaminada por uma visão distorcida e falsa da realidade”. Com
essa afirmação, Silva se coloca claramente entre os intelectuais que interpretam
equivocadamente a educação crítica de maneira salvacionista que, como argumentei
107
acima, não é a que caracteriza a teoria crítica em educação.
Embora essa seja uma crítica recorrente em autores que se identificam com a
“agenda pós”, faltam-lhes as necessárias citações ou indicações de artigos
especializados e livros em que os defensores da Teoria Educacional Crítica
advogam um tal “ponto de vista privilegiado” ou que tenham de si uma
autocompreensão redentora. Nos artigos dos críticos da teoria crítica aqui
referenciados sequer se encontram citações diretas que, mesmo isoladas do
contexto, poderiam sugerir tal interpretação. Ao contrário, porém, podem-se
encontrar facilmente nos textos de teóricos educacionais críticos as constantes
referências, principalmente em Paulo Freire, à ideia basilar de que a educação
crítica é um pensar com os educandos e não por eles e de que os educadores
críticos devem estar constantemente vigilantes a respeito de suas próprias
concepções e que elas mesmas devem modificar-se no diálogo com os educandos –
por isso Freire fala de “educador-educando” e “educando-educador”.
Essa afirmação está feita tão amiúde nas obras de Paulo Freire que não foge
sequer a uma leitura apressada.108 Pode-se ler, por exemplo, na Pedagogia da

esperança:

106
Considerando que as obras de Silva constam de grande parte das bibliografias dos programas de
graduação e pós-graduação em educação das universidades brasileiras, o debate é não só
importante, mas indispensável.
107
Ele não é, porém, o único. Descrições simplistas e distorcidas como as seguintes são comuns em
autores que se auto intitulam pós-críticos: “Na vertente crítica, a segurança está na possibilidade de
uma educação baseada na tomada de consciência da injustiça do sistema capitalista, desmistificando
suas ideologias, além de promover a mudança social. O instrumento de luta social é o conhecimento,
ao qual as classes subalternas têm acesso via educação libertadora, como forma de minimização
social das injustiças” (Andrade, 2003, p. 5). Nenhum teórico crítico em educação defende a ideia de
que é a educação e o conhecimento que transformam a realidade. O conhecimento é um instrumento
que só tem significação quando inserido em processos reais de luta, travados no campo da práxis
social.
108Em Ação cultural para a liberdade e outros escritos (Freire, 1987) os leitores se deparam tão
repetidamente com essa afirmação que é impossível citá-las todas sem correr o risco de tornar o
148

Criticar a arrogância, o autoritarismo de intelectuais de esquerda ou de


direita, no fundo, da mesma forma reacionários, que se julgam proprietários,
os primeiros, do saber revolucionário, os segundos, do saber conservador;
criticar o comportamento de universitários que pretendem conscientizar
trabalhadores rurais e urbanos sem com eles se conscientizar também;
criticar um indisfarçável ar de messianismo, no fundo ingênuo, de
intelectuais que, em nome da libertação das classes trabalhadoras, impõem
ou buscam impor a ‘superioridade’ de seu saber acadêmico às ‘incultas
massas’, isso sempre fiz. E disto falei quase exaustivamente na Pedagogia
do oprimido. E disto falo agora, com a mesma força, na Pedagogia da
esperança (Freire, 2002, p.80).

Tornou-se quase um provérbio nos meios educacionais a célebre frase da


Pedagogia do oprimido “Já agora ninguém educa ninguém, como tampouco ninguém
se educa a si mesmo: os homens se educam em comunhão, mediatizados pelo
mundo” (p. 79). Freire diz ainda que

A educação libertadora, problematizadora, já não pode ser o ato de


depositar, ou de narrar, ou de transferir, ou de transmitir “conhecimentos” e
valores aos educandos, meros pacientes, à maneira da educação
“bancária”, mas um ato cognoscente. Como situação gnosiológica, em que o
objeto cognoscível, em lugar de ser o término do ato cognoscente de um
sujeito, é o mediatizador de sujeitos cognoscentes, educador, de um lado,
educandos, de outro, a educação problematizadora coloca, desde logo, a
exigência da superação da contradição educador-educandos . Sem esta,
não é possível a relação dialógica, indispensável à cognoscibilidade dos
sujeitos cognoscentes, em torno do mesmo objeto cognoscível (Freire,
1975, p. 78. Grifos meus).

No entanto, apesar dessa insistência, nos deparamos com afirmações como as


seguintes, ainda de Silva:

A Pedagogia Crítica “moderna” sempre esteve preocupada em transformar


a consciência das pessoas, em “conscientizar”. Com a noção de sujeito
descentrado, naturalmente não existe mais sentido nessa transformação.
Não cabe mais “conscientizar”, porque “conscientizador” (=educador?) e
“conscientizando” (=educando?) são ambos produto das múltiplas
determinações de suas múltiplas posições de sujeito e, portanto, não existe
nenhum estado privilegiado de consciência ao qual o “conscientizador”
pudesse conduzir o “conscientizando” (Silva, 1993, p. 131).

A ideia de um “estado privilegiado de consciência” ao qual cabe ao


“conscientizador” (como sujeito) conduzir o “conscientizando” (colocado aqui como
objeto), numa relação unidirecional, é umainvenção de Silva. De maneira alguma é
uma proposição que pertence à pedagogia crítica e nem que se possa depreender

trabalho demasiado maçante. Limitar-me-ei a fazer referências às páginas da oitava edição onde
esse tema aparece de forma mais explícita e inequívoca: 48, 51, 54, 81, 82, 85, 99, 109-
110. Qualquer
constatar umseque
que não sefalando
está der aode
trabalho
nenhumde“ponto
ler, ainda queprivilegiado”.
de vista sejam apenas essas páginas, poderá
149

de suas elaborações fundamentais.109 Da mesma maneira, não existe a ideia de um


“ponto de vista privilegiado” que dá ao educador crítico a capacidade de conhecer
melhor e ensinar a verdade aos educandos.
O que está, na verdade, na base da concepção de educação crítica é o
reconhecimento da desigualdade na produção e no acesso ao conhecimento,
consequência, por um lado, da própria atividade humana diferenciada e, por outro,
das desigualdades materiais da sociedade de classes. Assim como as diversas
formas de conhecimento, sejam das ciências, da filosofia, dos saberes práticos ou
do senso comum, são produzidas a partir de acúmulos desiguais devido à
experiência, estudo, tempo de dedicação ou formas de inserção na vida social, as
pessoas que se socializam a partir de um mesmo processo e que se relacionam com
o mundo a partir de um mesmo lócus social podem trocar conhecimentos a respeito
da sociedade e de suas vidas, em um processo dialógico de constituição de uma
intersubjetividade socialmente localizada. Isso não exige nenhum ponto de vista
privilegiado, a não ser que alguns pretendam defender suas concepções como as
únicas verdadeiras e que não precisam de revisão – atitude frequentemente
condenada por todos os autores da Teoria Educacional Crítica.
Como nos educadores e intelectuais críticos o terceiro processo de
socialização (sobre o qual falei na introdução) se dá na inserçãovivencial no conflito
social ao lado dos que são subjugados econômica e culturalmente, eles se
reconhecem como parte dessa coletividade que produz e intercambia
conhecimentos, contribuindo com uma função que decorre do tempo e da
oportunidade que tiveram para adquirir determinados conhecimentos e certas

habilidades pedagógicas. Tal função deve ser exercida através de um processo


educativo substancialmente diferente do ensino unilateral e não dialógico. Trata-se
de um processo de socialização assumido nos conflitos sociais que, como toda

109
É difícil saber se um equívoco tão evidente e uma crítica sem nenhuma citação direta aos teóricos
contestados (no artigo de Silva nenhuma obra de Freire aparece sequer na bibliografia) é fruto de
problemas na capacidade de compreensão ou um recurso tendencioso de deformar as proposições
que se quer contestar. De qualquer maneira, é um procedimento que cria confusões e dificulta o
debate. Mas não deixa de ser surpreendente o posicionamento de Silva a favor do pós-modernismo
(que depois se tornou uma adesão total e assumida ao discurso da “agenda pós”), dado que apenas
dois anos antes do texto aqui citado esse mesmo autor escrevia: “ é impossível deixar de ver uma
ligação entre o anúncio do triunfo do neoliberalismo e a proclamação do advento do pós-moderno.
Como fica a Sociologia da Educação nessa encruzilhada? É talvez a hora de se reafirmar sua
vocação críticadae,onda
mistificadores por neoliberal
que não, eiluminista, modernista, começando
da onda pós-modernista por p.tentar
” (Silva, 1991, 11). desmanchar os nós
150

atividade humana, gera conhecimentos; e não, como concebe a interpretação


salvacionista, de uma missão redentora a partir da entrega da verdade absoluta aos
dominados.
Além disso, se é verdade que a crítica sempre pressupõe um “ponto de vista
privilegiado”, a partir de qual local privilegiado Silva acredita poder fazer a crítica da
teoria crítica e apontar seus erros? Assim como ele acredita poder analisar
criticamente um fenômeno social (a produção da teoria crítica) e indicar suas falhas
e supostas armadilhas, por que não seria também possível às pessoas inseridas em
um processo de emancipação social (cumprindo a tarefa intelectual, de liderança, de
educador ou educando, ou simplesmente de participante) ou aos educadores em
escolas das classes populares analisar as falhas e armadilhas da sociedade, da
política, da cultura, da ciência e da economia, a partir de uma ótica definida
abertamente, para discuti-las em comum nos processo educacionais?
Portanto, a crítica de Silva só faz sentido quando se analisa a tarefa da criação
do pensamento crítico sob a equivocada ótica salvacionista da intelectualidade
exclusivamente acadêmica.
Agora, porém, se o que se está chamando de “estado privilegiado de
consciência”, ao qual se deve chegar com o processo educativo, se refere a um
“estado B”, de maior coerência entre o conhecimento e o mundo vivido, que substitui
um “estado A” de uma consciência contraditória com os aspectos existenciais e
pragmáticos da vida; e se esse “estado B” pode ser consideradomais verdadeiro (e,
de maneira nenhuma, averdade definitiva) do que o “estado A”, então isso não só é
uma busca da Teoria Educacional Crítica, mas de qualquer empreendimento teórico,

inclusive os “pós-críticos”. Pois, se o texto de Silva (citado acima) quer convencer os


leitores a abandonarem a ideia de “conscientização” como erro “moderno” para
substituí-la por uma visão de “sujeito descentrado” onde a transformação da
consciência “não faz sentido”, não está ele querendo conduzir os leitores a
passarem de um “estado A” (o “erro” da concepção crítica) a um “estado B” (a visão
com “mais sentido” da subjetividade pós-modernista, mais adaptada a nossa
época)?
A segunda imprecisão da primeira citação de Silva acima está no suposto
“paradoxo” identificado por Donald. O que é chamado de “evidente paradoxo” não
passa de um jogo de palavras com aparência lógica, um evidenteparalogismo. Pois,
fazer as pessoas pensarem por si mesmasnão é o mesmo que pensar por elas.
151

Pensar é um ato que pressupõe sempre um conteúdo: pensa-se semprealguma


coisa. Pode-se estimular o ato sem necessariamente definir exatamente os
conteúdos que serão pensados. É possível ensinar a pensar filosoficamente, por
exemplo, sem que se defina que área da filosofia, corrente ou autor o aluno vá
preferir ou adotar. Se alguém ensina o outro a andar com as próprias pernas,
significa que o outro, quando anda e escolhe o seu próprio caminho, não está
andando com as próprias pernas só porque foi ensinado a andar por outrem? Se
alguém ensina a arte de pintar para que o aluno pinte seus próprios quadros, ao
invés de copiá-los, pode-se dizer que os quadros não são dele, uma vez que
aprendeu a pintar sozinho por estímulo de outro? Por que, então, isso não valeria
também para o ato de pensar?
A terceira imprecisão reside no fato de que a proposição da educação como
um espaço público onde todos possam simplesmente “confrontar os seus pontos de
vista” pressupõe, pelo menos, as seguintes condições: a) uma relativa igualdade no
processo de formação e no acesso aos conhecimentos e informações; b) a
democratização dos meios de comunicação social e a variedade e disponibilidade de
diferentes fontes de transmissão de conhecimentos, ideias e informações; c) um
nivelamento aproximado da capacidade de defender as concepções com
argumentos, ou seja, o domínio da linguagem argumentativa e a familiaridade com o
discurso lógico e racional – além de outros requisitos. Nossa sociedade está longe
de apresentar esses pressupostos indispensáveis, justamente por ser uma
sociedade estruturada de forma a negar igualdade de condições a uma grande
parcela da população. A desigualdade econômica não se limita à negação do acesso

aos meios de sobrevivência, senão que também aos meios para a formação
espiritual (discursiva, literária, artística, intelectual, cultural, etc.).
Da mesma forma que a postura salvacionista se inviabiliza por necessitar, de
fato, de um ponto de vista privilegiado que não existe, a proposta de uma educação
apenas como espaço público de confronto de pontos de vista se encontra
inviabilizada porque pressupõe uma situação de igualdade e liberdade também
inexistente no presente. A diferença é que, ao contrário do ponto de vista “puro”
pressuposto pela visão salvacionista, tal situação de igualdade e liberdadepode ser
postulada como possibilidade futura.
Mas se a proposição de Silva for entendida comoum espaço a ser conquistado
no futuro – o que certamente, pelo contexto, não é a sua opinião – precisaríamos de
152

uma teoria que identificasse, no presente, os mecanismos de desigualdade em um


mundo não-livre e que apontasse para a transformação social e para a emancipação
dos que sofrem com a desigualdade atual – a fim de que a situação pressuposta
pela idealização de uma educação “do ponto de vista pós-moderno” pudesse
realizar-se plenamente. Neste caso, está-se justamentedefendendo a pertinência de
uma teoria crítica; caso contrário, restaria apenas a crença na impossibilidade de se
concretizar a proposta “pós-moderna” de uma educação como espaço público de
discussão enquanto o mundo não mudar – e, enquanto isso, nada podem fazer os
educadores a não ser esperar que o mundo mude por causas não-humanas.
A proposta de Silva, portanto, enfrenta um dilema de difícil solução: 1) ou
supõe na sociedade presente a existência de igualdade e liberdade para todos os
educandos – suposição absolutamente contrafactual, que mesmo o mais obtuso
habitante do terceiro mundo não poderia deixar de contestar –; 2) ou reconhece a
inexistência de tal situação e reafirma os fundamentos de justificação da teoria
crítica, que ele quer contestar, já que propõe um ideal que pressupõe a
transformação da sociedade para sua concretização.
A Teoria Educacional Crítica reconhece justamente tantoa existência da
desigualdade produzida entre os seres humanos em um mundo não-livre quantoa
necessidade e possibilidade de superação dessa situação, tendo isso como
pressuposto. Mas tal reconhecimento não é apenas teórico e argumentativo, senão
que fruto de um processo de socialização que faz os teóricos e educadores
reconhecerem a opressão sofrida por pessoas empobrecidas e embrutecidas que
povoam as periferias, os sertões, as florestas, as áreas urbanas e rurais, as fábricas

e ruas, principalmente nos países periféricos; que passam fome, vivem em


ambientes insalubres e não têm condições de estudo; que têm como única fonte de
informação, cultura e entretenimento a TV aberta ou as rádios comerciais; que não
desenvolveram a capacidade argumentativa que o domínio da linguagem e das
ferramentas do discurso propicia; que aprenderam, pela violência ou pela tradição, a
“cultura do silêncio” e da submissão ao patrão, ao “letrado”, às autoridades políticas
e às lideranças do crime. Certamente, não encontraremos essas pessoas nas
universidades ou defendendo livremente suas concepções em um congresso
acadêmico, pois, por lhes ter sido negado, mal possuem o domínio da palavra.
Como poderiam simplesmente ser envolvidas em um processo educativo que
apenas as deixem livres para confrontar suas concepções?
153

É curioso (quase irônico) imaginar que as teorias e concepções que o teórico


ou educador crítico procuram fundamentar no espaço de socialização dos
dominados – ou seja, o espaço que está distante da classe média e de seus locais
de vivência, que está longe das universidades, de acesso difícil e, muitas vezes,
perigoso, que está distante da limpeza e organização de auditórios aclimatados, cujo
acesso por avião não é possível, onde não se fala a língua acadêmica e onde as
disputas, ao invés de envolverem a precisão de um termo em um colóquio, a filiação
a uma corrente de pensamento ou a eleição de uma chefia de departamento,
envolve mortes e derramamento de sangue – seja talvez o que Tadeu da Silva
esteja chamando de “iluminadas e confortáveis posições” dos teóricos críticos.

3.4. RECENSÃO

Pelo que foi exposto, já é possível sistematizar os princípios fundamentais da

Teoria Educacional Crítica (PE) e as suas implicações (IE) para a maneira de se


pensar a educação. Advirto, porém, que a síntese que segue só possui sentido no
quadro de reflexão desenvolvido neste capítulo, que, por sua vez, fundamenta-se na
exposição do Capítulo 2.

PEa) A educação deve ser concebida como um fenômeno em estreita relação


com a totalidade sócio-econômica e cultural na qual está inserida, da qual é parte
constituinte e a partir da qual adquire a concreticidade e completude de seu próprio
sentido (princípio da dialeticidade).
IEa1) A escola possui, primeiramente, uma característica dereprodução dos
valores e ideias hegemônicos na sociedade e, como tal, é co-responsável
pela hegemonia da racionalidade dominante sobre a qual se sustentam, no
campo subjetivo, as relações econômicas objetivas e na qual uma cultura
determinada se cristaliza e se legitima.
IEa2) Os processos educativos podem, no entanto, contradizer os
conhecimentos e valores hegemônicos na sociedade e construir outros. A
consecução de tal objetivo depende das subjetividades envolvidas no
processo educacional, ou seja, das suas capacidades de autorreflexão,
análise e crítica dos processos sociais, bem como de sua habilidade em
converter a base subjetiva crítica empráxis pedagógica.
154

IEa3) O trabalho teórico e prático em educação deve estar vinculado ao


trabalho teórico e prático sobre outros aspectos relacionados à sociedade
como um todo.
IEa4) A dinâmica histórica da sociedade, as forças em conflito, as mudanças
sócio-culturais e comportamentais e as lutas sociais refletem-se, direta e
indiretamente, na dinâmica dos processos educacionais.

PEb) A educação deve ser concebida como uma prática voltada para a
emancipação do ser humano (caráter emancipatório).
IEb1) A emancipação é compreendida como umprojeto social que transcende
os limites da escola e da universidade. Tal projeto vincula-se aos
movimentos sociais e organizações da sociedade que buscam
transformações profundas na estrutura sócio-econômica e mudanças
culturais no mundo. Seu ponto de partida é o reconhecimento da realidade
de injustiça que nega aos seres humanos a liberdade, a satisfação das
necessidades vitais e a sua realização como sujeito de desejos e de direitos
materiais e espirituais.
IEb2) O trabalho educativo não é “redentor”. O sujeito da emancipação é a
sociedade organizada. A educação se insere no processo mais amplo de
luta pela emancipação – do qual o acesso ao conhecimento é um dos
elementos – sem perder sua especificidade e contribuindo com o que lhe é
específico.
IEb3) A educação para a emancipação não visa a mudança apenas como

meta a ser buscada no futuro, mas como desafio para a própriarealização


presente da práxis educativa. Ou seja, o fazer educativo presente deve
também ter uma dimensão emancipatória e construir-se em coerência com
essa dimensão em sua concreticidade localizada espacial e temporalmente.
IEb4) Uma prática educativa emancipatória deve posicionar-se declarada e
intencionalmente contra a reprodução da racionalidade hegemônica e a
favor da construção de outras subjetividades portadoras de valores e
conhecimentos capazes de construir outra racionalidade pautada em ideais
de libertação, justiça e solidariedade.
IEb5) O assumido caráterético e emancipatório da educação e a coletividade
social com a qual se relaciona fornecem critérios não( absolutos) para
155

avaliação da validade, veracidade e coerência do currículo, conteúdos,


materiais didáticos e atividades escolares.
IEb6) Os problemas concretos da educação são encarados como problemas
também sociais. Sua resolução, muitas vezes, demanda transformações de
ordem social, política, econômica e cultural. Mas a própria educação pode
contribuir com a transformação mais geral da sociedade e os educadores
devem questionar-se constantemente a respeito dos impactos de sua
atividade educativa para esse processo de mudança social .
IEb7) Os educadores críticos devem ter envolvimento vivencial com as
organizações sociais, conhecer os projetos de emancipação e ser cidadãos
ativos em suas sociedades. A emancipação não é uma curiosidade teórica
que pode ser abordada apenas por meio do estudo ou da reflexão
acadêmica. No entanto, o papel dos educadores nas lutas emancipatórias
deve ser compreendido na especificidade de sua contribuição, justamente
pelo estudo rigoroso, pela capacidade de abstração, pela compreensão
teórica dos processos sociais e por sua habilidade pedagógica.

PEc) A educação escolar não se limita aoato instrucional, mas está presente
nas atividades mais rotineiras da escola(noção ampliada de currículo).
IEc1) A ação de todos os sujeitos da educação (alunos, professores,
pedagogos e outros profissionais da educação) e todas as atividades
escolares possui dimensão educativa.
IEc2) O caráter crítico da pedagogia não deve limitar-se a transformação dos

conteúdos e métodos educativos ou do discurso educacional, senão que


deve abranger todos os momentos da vida escolar, inclusive os mais
rotineiros e aparentemente sem dimensão educativa.

PEd) A educação não é um ato unidirecional que parte apenas do professor


para o aluno, mas uma ação multidirecional(caráter dialógico).
IEd1) Educar não é simplesmente o ato de exposição-assimilação de
conhecimentos, mas uma prática intersubjetiva na qual os sujeitos
(educadores e educandos), em posições diferenciadas e com acúmulos
desiguais de conhecimentos e experiências, dirigem-se de forma
hermenêutica a objetos e fenômenos de seu mundo e a conteúdos
156

produzidos na história (ciências, humanidades, consciência corporal, artes,


valores, etc.).
IEd2) O diálogo não exige a anulação das diferenças entre educador e
educando. A dialogicidade da educação crítica apenas reconhece naqueles
que, historicamente, não foram tratados como sujeitos (os educandos) o seu
caráter de subjetividade ativa na aprendizagem, interpretação e criação de
conhecimentos.
IEd3) O aspecto hermenêutico intersubjetivo não está desvinculado do
aspecto teórico-explicativo dos conteúdos da educação. A tarefa de
recorrência às teorias (científicas, filosóficas, artísticas e sociais), que cabe
prioritariamente ao educador, é inserida no contexto de uma hermenêutica
socialmente localizada a partir dos sujeitos do diálogo, para que se chegue a
um conhecimento que sejaposicionado e, ao mesmo tempo,rigoroso e com
caráter de universalidade.
IEd4) A nenhum sujeito do diálogo são atribuídos a capacidade de conhecer
“a verdade” ou poderes de clarividência que transformem a educação em
uma atividade dedesvelamento da verdade em si mesma.
IEd5) O posicionamento e a parcialidade dos educadores não é algo que deva
ser omitido no diálogo educacional, mas assumido como reflexo da
característica essencialmente posicionada e parcial da própria verdade (os
conhecimentos que são conteúdos da educação), sem que isso signifique a
sua negação absoluta.

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