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v. 1
Vitória
2009
MAURICIO ABDALLA GUERRIERI
v. 1
Vitória
2009
Para Robson Loureiro e Sandra Della Fonte
AGRADECIMENTOS
É provável que seja menos difícil redigir uma tese do que lembrar de todos
quantos contribuíram para que ela fosse feita, para prestar-lhes os devidos
agradecimentos. Os aportes indiretos não são menos importantes do que os diretos,
mas sua diluição no processo de formação das ideias que precedem a elaboração
da tese torna quase impossível a referência nominal àqueles que prestaram sua
valiosa contribuição. Considerando que nossas ideias, por mais que carreguem o
toque de srcinalidade típico de cada pessoa, são sempre formadas a partir das
ideias de outros, os agradecimentos escritos padecerão eternamente do defeito
incorrigível da ingratidão.
É possível, no entanto, demonstrar a consideração com aqueles que, de uma
maneira ou de outra, estão diretamente envolvidos no processo de redação, que
nada mais é do que o resultado de um acúmulo teórico para o qual muitos
contribuíram.
Em primeiro lugar, agradeço à minha orientadora Janete Magalhães Carvalho
pela tolerância com minha indisciplina e teimosia e pela liberdade que concedeu a
este professor que não foi, nem de longe, um modelo de aluno. Não fosse essa
atitude – não sei se contaria com a mesma tolerância em outros orientadores –
dificilmente esta tese seria concluída. Suspeito que a profª. Janete tivesse alguma
confiança de que o resultado poderia ser positivo e espero não tê-la decepcionado,
mesmo nas partes em que nossas concepções não confluem para as mesmas
ideias. Não quero responsabilizá-la por meus erros, mas, se acertos houver no
trabalho que segue, jamais os haveria se não pudesse ter contado com a liberdade e
confiança com as quais ela me presenteou. Sem contar que seus questionamentos
às partes em que discordamos forçou-me ou a rever algumas ou a incrementar a
argumentação, de forma que as coisas ficassem mais bem esclarecidas.
Sou grato também a Regina Helena Simões, Luiza Mitiko Yshiguro Camacho,
Gaudêncio Frigotto e Romualdo Dias por terem aceitado fazer parte de minha banca
examinadora.
6
This thesis aims to defend the pertinence of Critical Education Theory in face of
the changes the world and the emancipatory thought passed in the late twentieth and
early twenty-first, by reviewing their theoretical and philosophical grounds and by
proposing adaptations to new and current emancipatory possibilities.
To achieve this purpose, four fields of analysis are developed, namely the
justification of the theoretical and philosophical context in which one holds the Critical
Education Theory; the analysis of the foundations of Critical Theory e its educational
version; the research on changes in the world and in emancipatory thought which
requires revisions and new proposals; and, finally, the possible propositions for a
Critical Education Theory according to the new possibilities for emancipation which
come out of the previous analyses.
The main hypothesis is that the emancipating dimension of Critical Education
Theory should orientate itself by the emerging possibilities of social change arisen
from the practice of cooperation of Solidarity Economy and the newZeitgeist of
cooperation present in theoretical production in many fields of philosophy and
science. The Solidarity Economy appears as a material ground possible to a new
civilizing process that must be accompanied by the creation of a new rationality
based on cooperation. This proposition ascribes to education a strategic role in
establishing the rationality of cooperation.
In this sense, an education in conformity to a Critical Theory should have the
principle of cooperation as the main point of its grounds in order to adapt to the new
emancipatory possibilities. This has implications for educational thought and practice,
which are analyzed in the final chapters of the thesis.
SUMÁRIO
VOLUME 1
INTRODUÇÃO...................... .............................. ................ ................ ............... ................ .. 12
Objetivo ................ ................ .............................. ................ ................ ............... ................ .. 12
Primeiro passo........................ ................ ................ .............................. ................ ............... 16
I. Sobre a especificidade das teorias sociais em relação às ciências naturais.................... 17
II. Sobre a característica peculiar das teorias educacionais no âmbito das teorias sociais. 37
III. Sobre a dualidade característica da elaboração teórica na modernidade...................... 43
IV. Sobre a dualidade da teoria educacional...................................................................... 56
VOLUME 2
PARTE II – OS NOVOS CAMINHOS DA EMANCIPAÇÃO........................................4
4) A DIALÉTICA DA EMANCIPAÇÃO....................... ................ .............................. ............... 5
5) CARACTERÍSTICAS SÓCIO-ECONÔMICAS E POLÍTICAS DO MUNDO ATUAL.......... 11
5.1. Capitalismo financeiro...................... ................ .............................. ................ ............... 19
5.2. Recomposição do sistema produtivo global .................................................................. 23
5.3. Deslocamento do eixo do poder.................................................................................... 27
5.4. Redefinição do papel do Estado ................ ............... ................ ................ .................... 32
5.5. Liberalismo hiperbólico .............................. ............... ................ ................ .................... 35
6) CONJUNTURA E EMANCIPAÇÃO I: LIMITES.......................... .............................. ........ 39
7) CONJUNTURA E EMANCIPAÇÃO II: POSSIBILIDADES ................ ................ ............... 52
OBJETIVO
O objetivo desta tese é defender a pertinência de uma Teoria Educacional
Crítica diante das transformações pelas quais passaram a sociedade e o
pensamento emancipatório nos finais do século XX. Argumentarei a favor da
urgência de uma Teoria Educacional Crítica renovada, que mantenha intactos seus
aspectos mais fundamentais e adapte suas proposições às demandas apresentadas
pelo presente histórico.
A consecução deste objetivo implica o seguimento dos quatro passos
fundamentais que constituem o corpo teórico da tese. Tais passos são decorrências
necessárias do objetivo proposto e podem ser deduzidos de sua própria proposição,
conforme veremos a seguir.
1) O primeiro passo é justificar o porquê dadefesa de uma Teoria Educacional
Crítica como objetivo da tese. Nenhuma escolha é aleatória, pois revela, na verdade,
uma opção pessoal do investigador. No entanto, tal opção deve ser justificada com
argumentos que legitimem sua pertinência para a pesquisa acadêmica, sua
relevância para o incremento da produção teórica no campo educacional e seus
impactos sociais. Esta é a tarefa da qual me ocuparei ainda nesta introdução.
Embora exija incursões em algumas outras áreas de pensamento e uma exposição
que aparenta desviar-se do foco central, esse primeiro passo é imprescindível para
esclarecimentos metodológicos e conceituais, sem os quais não se pode
compreender o conteúdo da presente tese e seu caráter conscientemente
posicionado no debate teórico e filosófico atual.
2) O segundo passo é a definição do objeto em estudo. O que se pretende
dizer com a expressão Teoria Educacional Crítica? Como ela se desenvolveu no
pensamento educacional e quais são seus fundamentos teórico-filosóficos? A parte I
(que compreende os capítulos 1, 2 e 3) é dedicada à resposta a estas perguntas. O
momento definidor é particularmente difícil, em virtude das inúmeras formulações
que se podem enquadrar no conceito de teoria crítica em educação. No entanto,
13
deve-se esclarecer que esta não é uma pesquisa emhistória da educação, o que faz
com que a delimitação dos traços comuns que caracterizaram a Teoria Educacional
Crítica no pensamento de seus principais representantes seja suficiente para os
propósitos aqui definidos. As imprecisões são inevitáveis quando se quer tratar um
rico campo de reflexão nos limites de uma definição sintética. Sempre haverá
estudiosos (autores ou seguidores) dispostos a não se enquadrar na totalidade da
definição. Isso é absolutamente legítimo, pois a exposição sintética jamais consegue
abarcar todas as nuances teóricas de qualquer movimento de pensamento.
Para superar os entraves decorrentes da definição, a parte I foi elaborada em
íntima relação com as posteriores. Ou seja, trata-se de uma definição que prepara
as reflexões subsequentes e que, por isso, está delimitada por elas. Deve-se,
portanto, acompanhar os capítulos sem a expectativa de se encontrar um compêndio
histórico do pensamento educacional crítico, senão que tão somente uma
delimitação das questões que serão analisadas no restante da tese ou que estarão
em sua fundamentação. Sem dúvida, é preciso justificar, na exposição, que todas as
questões levantadas são relativas à Teoria Educacional Crítica, exigência que, ao
ser cumprida, nos leva a um esboço de sua história e à referência a, pelo menos,
seus expoentes paradigmáticos.
Ainda a respeito do tema da parte I, cumpre tecer uma observação adicional de
grande importância. O capítulo 3 trabalha com algumas ideias que estão abordadas
em inúmeras outras obras e que (ao menos se supõe) já são do conhecimento de
todos os que têm razoável formação teórico-pedagógica. A princípio, tais ideias
poderiam ser dispensadas da exposição e a simples indicação da literatura que
delas trata seria suficiente para os propósitos desta tese. Entretanto, ao ler alguns
autores que pretendem “superar” a Teoria Educacional Crítica por julgá-la
“ultrapassada”, percebi que a forma como muitas vezes a teoria é apresentada não
corresponde àquilo que ela realmente propõe. A maioria das críticas dirige-se a uma
compreensão equivocada da teoria crítica em educação e, por isso, só tem eficácia
em relação à ideia distorcida que dela se construiu. Em virtude disso, para desfazer
os equívocos, foi preciso revisitar “velhas” afirmações e fazer uma contraposição ao
que alguns autores apresentam, de maneira distorcida, como proposições da teoria
crítica em educação. Isso me forçou a estender o capítulo para além do que julguei
inicialmente necessário. Porém, em nome da clareza e precisão, não poderia deixar
14
de esclarecer cada ponto que julgo equivocado, nem me furtar a fornecer razões
para meu julgamento.
3) O terceiro passo, que é tema da parte II (capítulos 4 a 9), é dar respostas a
perguntas quase inevitáveis quando se propõe a defesa de algo: por que é preciso
uma defesa? Que problemas justificam a necessidade de reafirmação da pertinência
de uma teoria? Diante de quais questionamentos se encontra a teoria em defesa?
Conforme foi visto acima, a proposição do objetivo da tese está formulada da
seguinte forma: a defesa da Teoria Educacional Críticadiante das transformações
pelas quais passaram a sociedade e o pensamento emancipatório nos finais do
século XX. A formulação já indica a srcem dos desafios que justificam a defesa:as
transformações na sociedade e no pensamento emancipatório .
Algumas correntes de pensamento afirmam que as referidas transformações
fizeram a teoria crítica perder sua capacidade analítica e propositiva. Tais correntes
utilizam como fundamento uma interpretação inflacionada das consequências das
mudanças pelas quais o mundo tem passado, que supostamente teriam minado a
capacidade de crítica e de proposição das teorias fundadas nos “paradigmas da
modernidade”. Minha tese é, portanto, não apenas uma tentativa de releitura da
teoria crítica à luz das exigências da realidade contemporânea, mas também a
afirmação de que mesmo diante dos alegados impactos devastadores de um tempo
chamado – inapropriadamente, em minha opinião – de “pós-moderno”, a teoria
crítica não só mantém sua capacidade de interpretação e orientação para a práxis,
como também se torna aindamais necessária que em tempos anteriores. Isso nos
leva, necessariamente, à análise de quais são essas transformações e como elas
1
Giroux diz, por exemplo, que vivemos em “um mundo que tem pouca semelhança com aquele que
inspirou as grandes narrativas de Marx e Freud” e que a crítica pós-moderna nos situa no interior
desse mundo (1993, p. 42). Que o mundo tenha passado por mudanças profundas desde o tempo de
Marx, isso é algo que não se pode questionar e é um pressuposto também desta tese. Dizer, no
entanto, que o mundo atual guarda “pouca semelhança” com aquele me parece uma hipérbole. Ainda
vivemos sob a hegemonia do sistema capitalista e a sua fase atual mantém, objetiva e
subjetivamente, os eixos básicos desse sistema tão bem analisados por Marx e pela tradição
marxista. As enormes diferenças da fase atual em comparação com seu início guardam uma íntima
relação com o desenvolvimento das potencialidades do capitalismo, e seus efeitos de divisão de
classe ainda são perfeitamente visíveis no terceiro mundo. Além disso, a própria tradição teórica
marxista modificou-se
mundo diferente daquelee no
adaptou-se
qual Marxàs mudanças do mundo, e busca também situar-se em um
viveu.
16
PRIMEIRO PASSO
Esta seção introdutória ocupa-se do primeiro passo (1) descrito acima: justificar
a escolha da Teoria Educacional Crítica como objeto de estudo e o porquê da
assunção prévia da tarefa de argumentar a seu favor. Pode-se objetar que uma
2
A ciência normal, para Kuhn, é o trabalho cotidiano da ciência e seu ensino regidos por um
paradigma, ou, como ele passou a preferir, uma “base hermenêutica”. É o período consensual a
respeito da aceitação de determinadas teorias científicas basais. Embora, para Kuhn, a compreensão
das concepções de natureza presentes em diversas fases da ciência e na visão de distintas
civilizações só possa ser alcançada por um procedimento hermenêutico, a atividade científica dentro
dessas concepções (ou seja, a prática da ciência normal) não é hermenêutica. Em suas palavras: “[...]
Aquilo que seus praticantes [das ciências naturais] fazem a maior parte do tempo, dado um
paradigma ou base hermenêutica, não é ordinariamente hermenêutico. Ao contrário, eles utilizam o
paradigma recebido de seus professores num esforço que denominei ciência normal, um
empreendimento que teoria
correspondência entre procura resolver quebra-cabeças,
e experiência [...].” (Kuhn, 2006,como os de aperfeiçoar e estender a
p.271-272).
18
alterada. Por isso, a previsibilidade e a criação tecnológica são possíveis, como nos
mostra de forma convincente o mundo moderno e seus inúmeros aparatos que
exigem um conhecimento refinado das leis naturais.3
Tal característica das ciências naturais permite que se dispense,no ato da
pesquisa em períodos de ciência normal, a interrogação acerca dos
posicionamentos sociais e políticos do cientista. Essa afirmação, no entanto, só é
válida quando se pensa no aspecto teórico da ciência, ou naquilo que se chama de
“ciência pura” em contraste com a “ciência aplicada” – com relação a esta última,
uma vez que é impossível desvinculá-la dos imperativos bélicos, industriais e
mercadológicos que a direcionam, torna-se indispensável ao pesquisador
questionar-se sobre o destino dos resultados de sua pesquisa e a quais interesses
seu trabalho pode estar servindo.
Dizer que interrogações de ordem social e política são dispensáveis no ato da
pesquisa em períodos de ciência normal das ciências naturais, em seus aspectos
teóricos, não significa afirmar que a história da ciência não deva ser interpretada à
luz das concepções hegemônicas de sociedade, a fim de compreendê-la como
manifestação, no campo do conhecimento natural, de uma determinada
racionalidade localizada histórica e geograficamente. Ao contrário, as teorias
científicas também refletem o modelo de racionalidade predominante em diferentes
épocas e os cientistas não gozam de imunidade no que diz respeito às disputas
políticas na sociedade. Mas a necessidade de coerência interna e de adequação a
um objeto passível de controle intersubjetivo e com comportamento regular permite
que as teorias em ciências naturais sejam compartilhadas para além das ideias
4
Para um exemplo da contraditória relação de marxistas com o darwinismo ver Viana (2009).
5
Há, no entanto, vertentes da crítica pós-modernista à ciência que postulam ser as próprias
equações da física um reflexo de uma sociedade patriarcal e machista. Sem querer adentrar a
discussão, afirmo somente que considero tais críticas um exagero decorrente da concepção que
reduz toda por
referências, atividade dea Luce
exemplo, conhecimento
Irigaray ema Sokal
uma emera construção
Bricmont (1999, p. discursiva
109-124). arbitrária. Ver as
20
6
Essa discussão só pode ser compreendida à luz dos debates atuais em filosofia das ciências e os
desafios a ela apresentados. A reivindicação de exclusividade da sociologia cognitiva para tratar o
empreendimento científico não resolve os problemas da epistemologia contemporânea e não basta
que alguns autores sentenciem a dissolução da racionalidade da ciência no mundo das relações
políticas e sociais para que as ciências naturais se tornem sociais: “Entre o extremo que concebe a
ciência como um sistema formal, justificável por meio de padrões lógico-matemáticos de consistência,
e o que a encara como um processo de produção de ideias tão socialmente determinado como
qualquer outro, transitam os esforços que não se recusam [...] a enfrentar os problemas sempre
desafiadores que se manifestam no âmbito da dimensão semântica da linguagem científica. É vão
propor substituir a Lógica da Ciência, obcecada em especificar requisitos de demonstração lógica e
de
pelacomprovação empírica,” por
natureza do processo enfoques
(Oliva, 2005, p.sociológicos
299). que supõem poder explicar o valor do produto
21
tendência cientificista de análise das ciências sociais, pois acredita que a influência
do comprometimento político do pesquisador social poderia tornar sua teoria uma
mera ideologia. Por isso, ele busca um apoio epistemológico que justifique as teorias
sociais como ciência objetiva. Na base desta tendência está a diferença entre
“ideologia” e “verdade” – a primeira, fruto de crenças não testáveis e a segunda,
resultado do escrutínio científico da testabilidade empírica:
cientificista na qual caiu o próprio Popper – que criticou o positivismo e deu uma
grande contribuição para a crítica do conceito de verdade, mas não quis abrir mão
de uma lógica da pesquisa científica que garantisse a objetividade e a tornasse
possível através de procedimentos empíricos.
Popper argumentou convincentemente a favor da indemonstrabilidade das
teorias científicas. Sua reflexão foi suficientemente forte para influenciar toda a
epistemologia contemporânea.7 Mas, tal como observa Lakatos (1979), um golpe
dessa magnitude não deixa de trazer consequências sérias para a teoria do
conhecimento. Se todas as teorias são indemonstráveis (mesmo nas ciências
naturais), não poderíamos então alegar a inexistência da verdade (ceticismo) e,
sendo assim, toda teoria não passaria de ideologia?
Realmente, vários filósofos e cientistas sociais chegaram rapidamente a essa
conclusão, principalmente porque Thomas Kuhn (1979; 1989) e Paul Feyerabend
(1979; 1993) fizeram críticas convincentes à saída falsificacionista de Popper. Se
somarmos a isso a crítica à possibilidade de um critério não discursivo de fundação
da verdade feita por Wittgenstein, pelo neopragmatismo, por algumas tendências da
filosofia analítica, pela hermenêutica gadameriana e pela filosofia heideggeriana,
temos o ambiente intelectual perfeitamente adequado para a recusa dequalquer
pretensão de verdade e objetividade, principalmente nas ciências sociais (cf.
Habermas, 2004, p. 25-30).
No entanto, antes de cedermos à tentação do ceticismo ou do Programa Forte
do construtivismo social, devemos nos perguntar se reconhecer a presença
inevitável do sujeito na pesquisa social, com tudo aquilo que tal presença acarreia,
significa decretar o fim de qualquer teoria que pretenda dizer algo sobre o mundo
que seja justificado como verdade. Pois, se assim for, não teria sido dado um golpe
mortal à pesquisa e à elaboração de teorias que sejam defensáveis? A filosofia e a
ciência não seriam, então, apenas uma forma de literatura ou um exercício teórico
arbitrário que seguem apenas as inclinações do sujeito?8
7
“O velho ideal científico da epistéme – do conhecimento absolutamente certo, demonstrável –
provou ser um ídolo. A exigência da objetividade científica torna inevitável que todo enunciado
científico permaneça provisório para sempre. Pode-se de fato corroborá-lo, mas toda corroboração é
relativa aos outros enunciados que, novamente, são provisórios. Somente podemos estar
‘absolutamente certos’ de nossas experiências subjetivas de convicção, de nossa fé subjetiva”
(Popper, 1980, p. 123).
8 Rorty (1996, p. 24) afirma que os antirrepresentacionalistas, entre os quais se coloca, "não vêem
sentido em que a física seja mais independente de nossas peculiaridades humanas que a a strologia
25
Minha resposta é que tais conclusões não são necessárias, ainda que se
concorde com os pressupostos que lhes servem de base. Embora a análise do
problema exija mais argumentação do que é possível fazer nesta parte da
discussão, é necessário salientar que o binômioverdade-ideologia foi o fator que
conduziu tanto às tentativas de se estabelecer métodos que garantissem a
objetividade das ciências (Popper, Lakatos e a argumentação de Ryan em ciências
sociais) quanto às alegações de que é impossível um conhecimento com bases
seguras e que, portanto, toda elaboração teórica é absolutamente arbitrária e reflete
nada mais do que os compromissos ideológicos dos pesquisadores.
Se “ideologia”, a despeito de seus diferentes usos, significa, neste caso, o
contrário de “verdade” (no sentido de uma verdadedefinitiva e absolutamente
objetiva), uma vez que este último conceito tenha passado por profundas
reformulações que o deflacionaram, era de se esperar que seu oposto também
perdesse a força. Se, há muito tempo, a verdade incondicional das teorias foi
questionada e a filosofia caminhou para a superação da busca daverdade absoluta,9
isso não deveria significar a vitória da ideologia (sempre compreendida, neste caso,
como o oposto da verdade), mas a derrota (ou enfraquecimento profundo) do próprio
binômio que opõe uma à outra. Sugiro, portanto, que o conceito de ideologianessa
acepção – ou seja, como caracterização geral de qualquer teoria que não seja
objetiva e empiricamente testável e neutra – seja definitivamente descartado, para
que se avance na direção a uma nova definição de critérios para a validade e
pertinência das teorias.10
O que teríamos, então, como critério para justificar a pesquisa e a elaboração
de teorias sobre fenômenos sociais, uma vez que não podemos considerá-las nem
como busca da verdade absolutamente objetiva e neutra, nem como apenas um
exercício discursivo arbitrário ou manifestação de uma ideologia particular?
ou a crítica literária"; e considera “a crítica literária e a física como produzindo verdade, e referência,
exatamente do mesmo tipo” (Rorty & Ghiraldelli Jr, 2006, p. 116).
9
Conforme assinala Habermas (2002, p. 294-295, nota de rodapé 74), isso não foi, como muitas
vezes se supõe, obra de críticos da racionalidade moderna, como Heidegger, Adorno e Derrida. O
abandono dos conceitos “fortes” de teoria, verdade e sistema já pertencem ao passado há mais de
150 anos. Com isso, ele minimiza a importância de uma crítica à razão concebida sob tais conceitos.
10
Note-se
uma que aqui
determinada não me
classe, comrefiro
todasaoas
uso
implicações do termo que
sociológicoconceituais ideologia, como
isso tem conjuntomarxista.
na tradição de ideias de
26
experimentado.
No entanto, ao passarem da linguagem simbólica da matemática e suas
operações para uma interpretação do comportamento do mundo naturalalém da
teoria, os cientistas já estavam abandonando o estrito campo da ciência formal e
experimental e tentando construir uma metafísica da natureza que acomodasse os
estranhos fenômenos constatados experimentalmente. As discordâncias nessas
11
Isso criou o clima no qual explodiu a última “guerra entre as duas culturas” na década de 90, a
partir da crítica do físico Alan Sokal registrada no seu livro Imposturas intelectuais, em parceria com
Jean Bricmont (Sokal & Bricmont, 1999). Ainda que se possam tecer inúmeras críticas aos dois
autores, é fato que suas alegações não foram desmotivadas, senão que alimentadas pelas
extrapolações das análises
ciência, que animam feitas
e amparam por muitos
o debate filósofos e teóricos sociais sobre as mudanças na
pós-modernista.
27
interpretações metafísicas – das quais a mais famosa foi a polêmica entre Einstein e
Bohr 12 –, não inviabilizou o trabalho esotérico da ciência, o que mostra que não se
pode considerá-las como resultados da ciência e, sim, como especulações dos
cientistas. Dito de outra maneira, as novas teorias científicas não “provaram”
nenhuma das interpretações metafísicas que tanto empolgaram alguns teóricos das
humanidades. Tais interpretações continuam sendo livres especulações de cientistas
que tentam adequar os novos fenômenos conhecidos a uma metafísica naturalista
diferente da que sustentou a física clássica.
Confundindo a física com a metafísica (ou a nova ciência com as
interpretações metafísicas dos cientistas), muitos autores proclamaram a dissolução
dos limites entre ciências naturais e ciências sociais. As ciências naturais seriam,
para eles, tão indeterminadas e subjetivas quanto as sociais, sem nenhuma
diferença de grau. Tal conclusão foi influenciada pelametafísica de alguns cientistas
e não, como se supõe, pelo estudo aprofundado do que se passa no
desenvolvimento interno da ciência.
Boaventura de Sousa Santos, um autor de reconhecida importância para o
pensamento emancipatório atual – e com o qual dialogarei em mais de uma ocasião
nesta tese –, em obra de bastante influência e projeção nos meios acadêmicos das
humanidades e nas pós-graduações em educação,13 afirma que as mudanças nas
ciências naturais romperam limites paradigmáticos e que essa ruptura teve impactos
na totalidade de nossa compreensão de mundo (natural ou social). Segundo o autor,
“começa a deixar de fazer sentido a distinção entre ciências naturais e ciências
sociais” (Sousa Santos, 2004a, p.20), afirmação em franca contradição com o que
defendi acima.
No entanto, ao fundamentar sua afirmação, Sousa Santos recorre a uma
argumentação que só aparentemente conduziria a tal conclusão, pois a reflexão que
ele apresenta nos finais da década de 80 já estava em grande parte presente nos
12
Apesar do debate se ter travado no nível estrito da linguagem formal da física, a motivação principal
da discordância de Einstein com Bohr tinha suas srcens em uma concepção metafísica, da parte de
Einstein, de um universo racional regido por leis deterministas e jamais probabilísticas. Tal concepção
ficou expressa na sua célebre afirmação de que “Deus não joga dados com o universo”. Cf. Bohr
(1995, p. 41-83).
13
Um discurso sobre as ciências (Sousa Santos, 2004a), publicado em 1987, mas retomado
integralmente em obra posterior (Sousa Santos, 2005a). As referências ao sociólogo português
Boaventura de geógrafo
referências ao Sousa Santos seráMilton
brasileiro feita com base em seus dois sobrenomes para diferenciá-las das
Santos.
28
14
Cf. Bachelard (1978; 1996) e Koyré (1991).
15
Cf. Popper (1980) e Kuhn (1997).
16
Como se pode ver nas citações de Kuhn acima, mesmo em artigos escritos quase trinta anos após
sua Estrutura das revoluções científicas. Pode-se alegar que as teses kuhnianas abriram caminho
para os argumentos socioconstrutivistas, mas estes não são, de maneira alguma, as únicas
conclusões possíveis; na verdade, são mais propriament e uma hipérbole do relativismo fraco da Nova
Filosofia da Ciência que tem em Kuhn um de seus pioneiros.
17
Os teóricos da Escola de Frankfurt, em um contexto no qual a concepção positivista de ciência
ainda predominava, combateram a idéia de dualismo entre as ciências naturais e sociais,
argumentando a favor de uma complementaridade e do compartilhamento de elementos comuns. No
entanto, a recusa ao dualismo não significa a rejeição das diferenças e peculiaridades de cada uma
das ciências e tampouco a identificação entre elas. Até para combater o dualismo é preciso
reconhecer as diferenças, pois não faz sequer sentido falar de dualismo ou complementaridade entre
coisas iguais.
29
18
Chama-se ciência “clássica”, em oposição à ciência quântica, relativística ou da complexidade, a
ciência queeresultou
de Newton da RevoluçãodeCientífica
o eletromagnetismo Maxwell.do século XVII e que teve suas bases fixadas pela física
30
19
Original em inglês. A tradução de todas as citações em língua estrangeira nesta tese é de minha
responsabilidade. Doravante indicarei apenas o idioma da fonte que tive em mãos, ficando
esclarecido que as partes citadas foram traduzidas especificamente para este trabalho.
20 A partir daí,de várias interpretações metafísicas e Física
epistemológicas são possíveis, tanto que a
interpretação Heisenberg foi publicada com o título e filosofia (Heisenberg, 1995).
31
Não se pode negar que houve uma mudança de paradigma na física que
afetou diversas ciências naturais. Nem que as novas abordagens das ciências
naturais possam contribuir, fazendo todas as ressalvas necessárias e adaptações às
peculiaridades do objeto, para uma nova interpretação dos fenômenos sociais. Pelo
contrário, há demonstrações de que novas perspectivas teóricas e metodológicas
revelaram ser bastante frutíferas ao tomarem emprestado algumas abordagens das
ciências naturais, principalmente a ideia da complexidade. Isso, porém, não indica,
21
Para um quadro das tendências na interpretação da física quântica, ver Ortoli & Pharabod (1986).
32
respostas a um “espírito temporal” que paira sobre as mentes exigindo, apenas pelo
seu próprio gosto, modificações na forma de se pensar. Tampouco são resultados
“naturais” do fluxo de idéias que se esperaria entre as indistintas ciências naturais e
sociais.
22
Estou enfatizando as teorias sociais em função do foco desta tese, que é a educação, portanto, um
fenômeno social. Mas as reflexões que faço servem também para a psicologia e outras ciências
humanas.
23
Para sermos fiéis à terminologia kuhniana, um paradigma só existe quando conquista hegemonia
na comunidade científica e é ensinado, sem conflitos, nas universidades e instituições de ensino.
Nada semelhante ocorre com as teorias sociais. Embora se possa falar da “predominância” de uma
ou outra teoria em comunidades isoladas (como o marxismo em alguns locais ou a análise weberiana
em
outraoutros)
teoria jamais se pode geral
na comunidade atribuir
doshegemonia ou consenso metodológico prévio relativo a uma ou
teóricos sociais.
33
comprometimento de classe, utopias, etc. que subjazem às teorias sociais deve ser
um elemento metodológico buscado pelo próprio teórico no ato de elaboração.Só é
possível teorizar sobre fenômenos sociais se a própria subjetividade do teórico e os
vínculos que ela estabelece com concepções em disputa e com sua atividade social
24
A ideia de controlabilidade está relacionada ao aspecto empírico das ciências naturais. Às
proposições e previsões das teorias devem corresponder algum tipo de comportamento do objeto
natural submetido a um processo de experimentação capaz de ser reproduzido intersubjetivamente e
que dará às teorias um apoio fático ou, com o tempo e com resistências, acabará forçando a
mudança ou o abandono de determinadas previsões, ou mesmo de toda a teoria. Ainda que a relação
da experiência com as teorias científicas tenha sido relativizada pela nova epistemologia, ela não
deixou, de maneira alguma, de existir em nenhuma das principais filosofias das ciências. Apenas
quando a vertente sociológica socioconstrutivista arvorou a tarefa de substituir a filosofia das ciências
pela
contrasociologia cognitivadode
toda a evidência matiz
fazer realpós-modernista (cf. Oliva,como
da ciência, a experiência 2005)elemento
é que se passou a desprezar,
importante.
35
suas concepções”. Dado que o acesso pleno a uma realidade em si, não
enquadrada em uma subjetividade prévia, é algo impossível ao ser humano, o
binômio verdade-ideologia torna-se apenas a expressão de um julgamento baseado
em posicionamentos prévios. “Verdadeiras” (ou “científicas”, como se pode preferir)
seriam as teorias que se aproximam do que já está previamente definido pela minha
inserção e participação na sociedade (ou pelo que foi formado pelo meu processo
educativo) e “ideológicas” (comprometida com interesses de classe, românticas,
utópicas ou idealistas) seriam todas as que contradizem os meus pressupostos
subjetivos (mesmo que eles sejam inconscientes). No fim das contas, o binômio
verdade-ideologia acaba sendo um instrumento para ocultar os posicionamentos
sócio-políticos sob uma suposta objetividade ou realismo em ciências sociais.
36
etc. O terceiro processo de socializaçãoque sugiro decorre da reflexão que fiz acima
acerca da inserção social inevitável do pesquisador. Trata-se, portanto, 3) do
necessário posicionamento do teórico nas concepções e práticas em disputa na
sociedade e do reconhecimento de sua própria subjetividade (concebida
socialmente) como fator que orienta a análise, interpretação e, quando é o caso, as
proposições.
25
Não deve ser por acaso o grande número de trabalhos de pós-graduação em educação que tratam
temas educacionais “a partir de” (o termo de ligação varia: “na perspectiva de”, “segundo”, “no
pensamento de”, etc.) algum filósofo ou teórico social, mesmo que este não tenha feito praticamente
nenhuma reflexão sobre educação ou que a relação de suas ideias com o cotidiano da educação nos
países periféricos
uma outra seja bem longínqua, quando não inexistente. Esse seria um interessante tema para
pesquisa.
37
26
Para citar um exemplo, o best-seller O horror econômico, tão celebrado nos finais da década de
1990, da romancista e crítica literária Viviane Forrester, a despeito de seus méritos e de suas
inúmeras citações em trabalhos acadêmicos, não deixa de ser apenas um “manifesto literário” sobre o
desemprego, sem uma análise mais rigorosa sobre o atual estágio da história econômica mundial e,
principalmente, sem a reflexão sobre alternativas. Ao contrário, para ela, parece não haver
alternativas: “Uma solução? Talvez não haja” (Forrester, 1997, p. 53). “Diante disso, que análises,
que contestações, que críticas, que oposições ou mesmo que alternativa? Nenhuma, a não ser o eco.
Com, no máximo – efeitos de acústica? –, algumas variantes”. (p. 109). “Diante disso, quais
contrapoderes? Nenhum. Sem incidentes, abrem-se os caminhos para as barbáries refinadas, os
saques de luvas brancas” (p. 141). Ao final da leitura pode-se perguntar que consequências o texto
traz além daquelas trazidas pela leitura de um romance dramático. Além disso, a última frase citada,
diante de tantas experiências e lutas existindo nos países periféricos, constitui um exemplo perfeito
do que Sousa Santos chamou adequadamente de “desperdício da experiência” (Sousa Santos,
2005a).
38
27
Segundo Mithen (2002), a linguagem possibilitou a integração de módulos distintos da inteligência
humana (os quais abordarei brevemente no capítulo 11), proporcionando o salto cultural registrado a
partir de 40 mil anos atrás.
28
Para ver esta reflexão a partir de um estudo bioantropológico ver Diamond (1997) e sobre as suas
consequências para a compreensão da essência do ser humano e de suas relações sociais, ver
Abdalla (2002, p. 102-112).
39
agentes humanos aos fenômenos sociais – que são objeto das ciências sociais.
Como a práxis humana é sempre intencional, o processo de transferência
educacional não pode ser analisado mecanicamente. Os conteúdos e valores
transferidos são sempre decorrentes da compreensão ética, social e antropológica
sustentada pelos agentes principais da educação (teóricos, gestores do Estado,
dirigentes e profissionais das escolas) e do projeto de sociedade que se quer para a
atual e as futuras gerações.
29
Utilizo a palavra desenvolvimento sem nenhuma conotação de evolução linear ou “aperfeiçoamento”
eaumento
muito menos em seu sentido
da complexidade economicista, mas tão somente em seu sentido de mudança e
no tempo.
40
e esta sempre depende de uma concepção prévia a seu próprio respeito e a respeito
da sociedade na qual ocorre.30
Sendo assim, o terceiro processo de socialização exigido do cientista social
possui uma força ainda maior quando se trata da elaboração teórica no campo
educacional. Como a educação está sempre relacionada ao tipo de sociedade e de
subjetividades que pretendemos construir ou manter para o futuro (ou seja, como já
mencionei, não é um processo mecânico de transmissão de informações a partir de
um banco de dados universal), torna-se muito mais necessária a socialização do
teórico na intencionalidade subjetiva que define a práxis educacional em seus
conteúdos curriculares, estruturação, métodos, posturas e práticas do educador e
demais aspectos ligados ao cotidiano da educação.
Há uma diferença sutil, porém importante, entre o terceiro processo de
socialização do teórico em educação e o do cientista social. A este último é dado um
fenômeno que não tem sua configuração definida pela teoria, como a violência, a
pobreza, os indicadores econômicos, os conflitos sociais, a cultura de um povo, etc.
Quando digo que sua configuração não é definida pela teoria, quero dizer que sua
existência enquanto fenômeno não depende de uma teorização. A violência no
mundo, a pobreza, os índices da economia, os conflitos sociais, a cultura de um
povo (para ficar nestes exemplos) não se caracterizam pela forma como os
cientistas sociais as interpretam. A interpretação teórica específica é posterior ao
fenômeno. Embora o teórico e o pesquisador aproximem-se do objeto imbuídos e
orientados por uma teoria prévia, ela é aplicada a fenômenos que a ultrapassam e
que mantêm autonomia em relação ao pensamento que os aborda. Para aexistência
30
Objeto “concreto” não pode ser confundido com objeto “empírico”. Empírico é o que é dado aos
sentidos e captado sem a mediação de uma abstração conceitual metódica. Concreto, em uma
perspectiva dialética, é o objeto em sua dimensão real, mediatizado pelos determinantes abstratos
que lhe concedem um sentido para além de seu aparecer imediato. A educação como práxis humana
(e não como fenômeno “dado”) só pode ser objeto de uma teoria se entendida em sua concreticidade,
ou seja, determinada pelas concepções dos sujeitos que a exercem e pelo papel que cumpre na
sociedade.
42
31
A diferença entre a pergunta “como educar?” e a “...de que forma?”, presente na pergunta que fiz
ao final, está no fato de a primeira ser uma pergunta isolada pelo “como” e a segunda estar
indissociavelmente ligada ao “para quê” que a antecede.
43
32
Para maior compreensão da relação da racionalidade burguesa com as relações mercantis, ver
Abdalla (2002, p. 49-95 e 2005b).
33
Isso nãodosignifica
momentos Estado que o processo
feudal foi isento de
para a consecução de seus
contradições. A burguesia
próprios objetivos serviu-se em diversos
de acumulação.
45
34
O conceito de “espaço agregado” foi utilizado pelo historiador da arte Erwin Panofsky para designar
a característica da pintura medieval de representar a cena com os objetos e pessoas justapostos em
um único plano, sem perspectiva ou ilusão de profundidade. Os personagens de um quadro tinham o
tamanho determinado pelo seu status social. Era, portanto, uma arte preocupada em ser uma
representação qualitativa
representação do do real, com
espaço homogêneo base na da
e geometrizado hierarquia dos papéis (Thuillier,
pintura renascentista sociais, 1994,
diferente da
p. 60).
46
burguesia, embora esta fosse a protagonista das mudanças – movida por seus
próprios interesses de riqueza e poder. À “multidão”, que estava sob o jugo das
castas dominantes da velha ordem, interessava qualquer perspectiva de
emancipação e ruptura com o antigo regime.
Se somos capazes de identificar tais efeitos na história, isso significa que a
burguesia conseguiu imprimir sua racionalidade ao mesmo tempo em que fazia ruir a
ordem feudal. Seu êxito deveu-se tanto à crise interna do sistema feudal, quanto ao
crescimento econômico da nova classe e ao progressivo aumento de sua força
política – fatos intimamente relacionados.35 Ou seja, cada vez mais os burgueses se
aproximavam do controle definitivo do poder econômico e político das sociedades
europeias, visto que a alternativa econômica que desenvolviam dentro do feudalismo
era coroada com êxitos sucessivos – e isso significava um crescimento de seu
poderio econômico e atraía mais pessoas para a sua forma de economia baseada
no comércio e na produção para a troca.
Com a passagem do capitalismo predominantemente mercantil para o
capitalismo industrial e com o enriquecimento progressivo da burguesia a expensas
da exploração de um crescente contingente de trabalhadores que migravam dos
feudos para os centros urbanos, a nova classe revolucionária aproximou-se mais do
poder e sua racionalidade conquistava cada vez mais os espíritos da época.
O fato, porém, de seu crescimento ter dependido da subjugação e exploração
de outra classe (os camponeses que perderam o acesso à terra e os trabalhadores
das indústrias, expropriados dos meios de trabalho) subtraiu-lhe o protagonismo de
um movimento de emancipação sem limites. Ao mesmo tempo em que construía
35
A discussão sobre se a crise no sistema feudal foi ocasionada mais pelo seu próprio
desenvolvimento interno ou por fatores externos (como o crescimento do comércio de longa distância,
dos centros urbanos e da classe burguesa) pode ser encontrada, a partir do debate entre diversos
historiadores, em Sweezy, et,al. (2004) e Santiago (2000). Minha opinião é de que ambos os fatores,
conjugados, criaram
discussão mais as condições
pormenorizada para
sobre e direcionaram
esse a transição
tema encontra-se do feudalismo
no Apêndice da ParteaoII capitalismo.
desta tese. Uma
47
Pelo que foi exposto, podemos observar que esse conflito não é apenas um
conflito de ideias. Ele possui uma característicade classe que lhe é essencial. Não
se trata apenas de um “espírito” contraditório que delineia a essência da história, em
uma perspectiva hegeliana, senão que um conflitoque se expressa na práxis social,
conforme bem identificou Marx. Uma nova classe hegemônica buscava uma ordem
que legitimasse sua dominação e permitisse o desenvolvimento controlado da
sociedade, ao passo que às novas classes subjugadas ainda interessava a
emancipação.
Esse conflito marcou definitivamente os movimentos sociais e a produção
teórica na modernidade. Enquanto, por um lado, a filosofia positivista buscava fazer
valer seu lema de “ordem e progresso” e o liberalismo econômico procurava
naturalizar as regras da economia capitalista, por outro, Marx constatava a
perpetuação e a presença ativa do desejo de emancipação e teorizava sobre sua
potencialidade transformadora. OManifesto do Partido Comunista inicia-se com a
célebre frase: “um espectro ronda a Europa”.
Mas há um outro caráter além do classista na dualidade entre ordem e
emancipação na modernidade. Quando a Europa, já na Renascença, começou a
estender o processo civilizatório burguês a outros povos, através da conquista
violenta, exploração e colonização do que viria mais tarde a se chamar Terceiro
Mundo, a dualidade adquiriu também um carátergeopolítico. Esse é um aspecto de
extrema importância para compreendermos a modernidade como um fenômenoda
história mundial e não somente europeu, como comumente é tratado. A reflexão da
modernidade limitada ao desenvolvimento da Europa não é apenas um problema
histórico, senão que também umentrave analítico que dificulta o seu entendimento e
a sua crítica. Tal entrave afeta, principalmente, os teóricos que vivem nos países
periféricos, que acabam analisando a modernidade apenas como expectadores,
como se seu próprio mundo não existisse ou não tivesse importância para a
elaboração teórica.
Enrique Dussel (2005, p. 80-97), em comentário dirigido a Charles Taylor,
aponta as deficiências das análises eurocêntricas da modernidade e nos chama a
atenção para o esquecimento da alteridade representada pela realidade (material e
espiritual) dos países dominados. Segundo ele:
36
Especificamente a afirmação de Habermas (em Discurso filosófico da modernidade) de que o
discurso
europeia. crítico é imanente à modernidade, compreendendo-a apenas como uma construção
50
37
Tal não é, no entanto, a visão de Sousa Santos e de Ellen Wood. Minha divergência com esses
autores, nesse
nesta tese aspecto
e está específico
desenvolvida de suas proposições,
no Apêndice da Parte II. é essencial para a conclusão a que chego
52
Cumpre fazer aqui uma importante observação a respeito da ênfase que dei à
centralidade das relações de produção e ao caráter classista e geopolítico na
discussão sobre a dualidade da modernidade e a emancipação. Tal centralidade
pode ser compreendida, alternativamente, ou como umeixo articulador da vida
social ou como uma estrutura que subsume e explica todos os fenômenos sociais,
em uma relação dereprodução das relações de produção.
A primeira forma de compreensão, que advogo como fundamento do presente
estudo, reconhece que nem tudo é reflexo ou reprodução das relações de produção
e que pode haver (como realmente há) outras formas de dominação não redutíveis à
dominação de classe, bem como outras manifestações psicológicas e culturais que
não devem o seu sentido ao processo econômico de produção da vida humana.
A segunda maneira de se compreender a centralidade dos processos
produtivos (como estrutura) vincula praticamente todas as manifestações sócio-
culturais às relações de produção. Ela esteve presente, por um lado, na visão do
economicismo funcionalista de inspiração marxista, que reduzia a análise da
sociedade a um esquema mecânico de infra e superestrutura e, por outro lado, no
marxismo estruturalista, principalmente em Louis Althusser. Neste último caso, a
relação dos fenômenos sócio-culturais com as relações de produção não se dá no
sentido de um reflexo mecânico, mas de reprodução, no campo subjetivo, do modo
de produção capitalista.
No entanto, diversos estudos nos finais do século XX, mais especificamente os
estudos feministas e os relacionados à dominação de minorias raciais e étnicas,
argumentaram a favor da autonomia de outras formas de dominação relativamente à
38
Sousa Santos chega a propor 6 “espaços estruturais” a partir dos quais uma nova teoria da
emancipação social (que ele chama de “pós-moderna de oposição”) deveria se erguer: são os
espaços doméstico , da produção, de mercado, da comunidade, da cidadania e o mundial . “Em vez de
me basear numa só macro-estrutura, a divisão do trabalho econômico, proponho uma constelação de
seis espaços estruturais, dos quais essa macro-estrutura é apenas um (o espaço mundial). Entre
esses espaços, não há assimetrias, hierarquias ou primados que possam ser estabelecidos em geral
53
[...]” (Sousa Santos, 2005a, p.314). Não desejo discutir a proposta de Sousa Santos pelas razões que
exporei nos parágrafos seguintes.
39
Para evitar as polêmicas acerca das diferenças entre “pós-modernismo”, “pós-estruturalismo”,
teorias “pós-críticas”, “pós-colonialismo”, “estudos culturais”, etc., Sandra Della Fonte, prefere utilizar,
seguindo Célia Moraes e inspirada em Ellen Wood (Wood & Foster, 1999), o termo “agenda pós”
significando um conjunto de teorias que marca o pensamento nas últimas décadas do século XX (ver
Moraes, 2004 e Della Fonte, 2006, cap. II). Optei também por seguir essa terminologia.
40
Sobre essas três vertentes ver Torres e Morrow, in Torres (2003, p. 33-62).
54
41
Não se pode, por exemplo, dizer que Condoleeza Rice, ex-secretária de Estado do segundo
mandato de George W. Bush nos EUA, tendo galgado um dos cargos mais importantes da maior
potência do planeta, sofre ou é excluída por sua condição de mulher e negra, mas tampouco se pode
afirmar que tal fato questiona os pilares que sustentam a dominação capitalista ou que significa a
55
Está além
negros da ser
podem capacidade humana
garantidos tornardireitos
os mesmos o negro num branco.
do branco Mas ser-
, e daí pode aos
lhes oferecida a possibilidade do mesmo ganho, se produzirem a mesma
quantidade (Von Mises, 1987, p. 31. Grifos meus).
conquista da emancipação.
a ordem social Mesmo
global, embora tenhaasignificado
eleição deum
Barack
passoObama à presidência
extraordinário na lutados
porEUA não modificou
igualdade racial.
56
42
Uma excelente reflexão sobre a transição de uma parcela dos intelectuais de esquerda, antes
marxista, parae oWood
Fonte (2006) pós-modernismo e as(1999).
& Foster (orgs.) consequências dessa transição pode ser encontrada em Della
57
estrutura social queremos?”, mas “que tipo de relações sociais queremos (dentro de
uma estrutura dada)?”.43
É um equívoco, embora tenha sido útil por um certo tempo, caracterizar as
teorias educacionais regulatórias apenas como “tradicionais”, pois se pode ter a falsa
ideia de que tais teorias estão calcadas em uma visão estática de sociedade ou que
podem ser identificadas pela defesa de um moralismo antiquado, pela
hierarquização autoritária ou por sugerirem formas ultrapassadas e monótonas de
ensino. Compreendê-las apenas como “tradicionais” faz com que se nos escape o
fundamento que as torna regulatórias e não emancipatórias. Ao mesmo tempo, cria
a ilusão de que para realizar uma práxis educativa emancipatória basta romper com
o moralismo e com a hierarquização dos agentes (diretores, professores, serventes,
alunos, etc.), fazer críticas genéricas às “relações de poder” (sem, contudo,
identificá-las na sociedade, na economia e na política, limitando-se a tratá-las
simplesmente como “culturais” ou de caráter psicanalítico), valorizar qualquer forma
de suposta “transgressão”, “resistência” ou “subversão” presente nas manifestações
dos alunos (sem se perguntar se isso não pode ser apenas uma reprodução, no
espaço escolar, daquilo que é produto do mercado cultural e transmitido
ostensivamente pelas rádios e TV’s comerciais), ou propor métodos e tecnologias
adaptadas aos tempos modernos (como a telemática e o ensino à distância,
informática, utilização de recursos audiovisuais e de dinâmicas bem-sucedidas na
formação empresarial, etc.).
Como as teorias educacionais regulatórias concebem a educação como
caudatária do progresso e das transformações culturais dentro da ordem capitalista,
43
Coloquei a última oração entre parênteses porque ela pode não estar posta como questão. Mas,
mesmo no caso da sua ausência como questão teórica (e justamente por isso), ela está presente por
não considerar que a sociedade possui uma estrutura construída historicamente e, portanto, mutável.
58
próprios teóricos críticos e isso foi condição para uma teoria educacional
emancipatória (como veremos no Item 3.1 do Capítulo 3). É comum encontrarmos
textos que identificam a teoria marxista (principal fonte da maioria das teorias
45
críticas) com o determinismo econômico do marxismo estruturalista. No entanto,
teóricos críticos da educação com influências manifestas da filosofia marxiana
deixaram mais do que claro que suas proposições estavam desvinculadas do
44
Para uma análise das relações das propostas e teorias educacionais com o sistema capitalista e
sua dinâmica, ver: Frigotto (1995; 2001); Frigotto e Ciavatta (2001); Gentili e Silva (1997) e Saviani;
Lombardi e Sanfelice (2002).
45
Esse tipo de equívoco será devidamente identificado e contestado no capítulo 3.
59
respeito da terminologia de Freire, que inclui palavras como “amor”, “fé”, “vocação”,
“humildade”, etc.46 Mas é bastante curioso constatar que se tem o hábito de
considerar “científicos” o pressuposto hobbesiano doódio na ciência política (homo
homini lupus), a ideia de luta encarniçada pela sobrevivência na sociologia de
Spencer e o seu correlato na biologia darwinista e oanti-humanismo e o pessimismo
de inspiração nietzscheana ou heideggeriana, presentes em elaborações
46
O próprio Freire mostrava-se consciente da possibilidade de reações negativas diante de sua
postura assumidamente utópica. Já na Pedagogia do oprimido, na introdução, ele afirma: “[...] haverá,
talvez, os que não ultrapassarão suas primeiras páginas. Uns por considerarem a nossa posição,
diante do problema da libertação dos homens, como uma posição idealista a mais, quando não um
‘blá-blá-blá’
em diálogo, emreacionário.
esperança,‘Blá-blá-blá’ de quem
em humildade, se ‘perde’ (Freire,
em sim-patia”. falando1975,
em vocação
p. 21). ontológica, em amor,
60
*****
Pelo que foi exposto, torna-se necessário assumir em que esfera de
conhecimento (regulação ou emancipação) pretendi situar esta tese e quais os
pressupostos da terceira socialização do teórico que incidem em sua autoria. A
47
Tive oportunidade de refletir mais detidamente sobre essa questão em Abdalla (2006b).
61
defesa de uma Teoria Educacional Crítica como pressuposto justifica-se por uma
socialização prática e teórica com as necessidades de emancipação dos povos do
mundo periférico, do qual sou parte integrante. O objetivo escolhido de defendê-la
diante das mudanças na sociedade e no pensamento emancipatório decorre do
reconhecimento de que o mundo atual realmente oferece desafios que precisam ser
enfrentados por qualquer elaboração teórica que se pretenda crítica.
Tal objetivo se enquadra bem na explicação de Horkheimer sobre a evolução
da teoria crítica:
48
Essa transição da filosofia no século XX foi chamada de lingustic turn, ou “virada linguística”.
Existem várias traduções da expressão, como “guinada linguística”, “reviravolta linguística” ou “giro
linguístico”, todos corretos do ponto de vista idiomático. Pessoalmente, penso que a palavra “guinada”
expressa melhor o desvio brusco de caminho, mas utilizo “virada” nesta tese por ser a expressão
mais conhecida e utilizada no meio acadêmico. A expressão foi criada por Gustav Bergmann (cf.
Rorty e Ghiraldelli
geral da filosofia doJr., 2006,XX.
século p. 51), mas foi Richard Rorty quem lhe atribuiu a característica de marco
64
Mas, assim, pagou-se o preço de uma nova concepção de verdade que (de
novo) teve de lidar com os problemas do ceticismo e do relativismo forte. Como sair
da linguagem e encontrar um ponto de apoio que garanta a legitimidade dos
discursos? Esse é um dos pontos centrais do debate filosófico contemporâneo.
A transformação da filosofia afeta particularmente as teorias que se pretendem
críticas. Uma interpretação radical da virada linguística conduz ao seguinte
problema: se estamos aprisionados à linguagem, toda referência extralinguística nos
é vedada como ponto de apoio e lastro das teorias; e se toda linguagem é contextual
e sujeita a distorções e arbitrariedades de acordo com interesses localizados, a
crítica seria, na verdade, apenas mais um discurso vinculado a determinado contexto
e que carrega as distorções da linguagem e a arbitrariedade de seus proponentes.
Alguns autores chegaram a afirmar que a materialidade de uma sociedade existente
por si, se existe, não pode afetar objetivamente a construção dos discursos, que
49
perdem assim a sua característica de referência a um mundo externo.
Como, então, defender, do ponto de vista teórico-filosófico, a possibilidade de
um discurso crítico e emancipatório, fincado na existência objetiva de um
determinado modelo de sociedade e de relações humanas, na forma da teoria crítica
(e de sua aplicação à educação), mesmo aceitando as mudanças do pensamento
que culminaram na virada linguística?
Abordar de maneira mais profunda tais questões exigiria um desvio de grandes
proporções para os objetivos desta tese e optei por deixar a análise dos
fundamentos do problema para um trabalho posterior. Mas é possível tomar um
atalho na argumentação que justifique, pelo menos, a insistência em uma
49
Para uma síntese dos argumentos do que se chamou de Programa Forte do Construtivismo Social,
ver Oliva (2005).
50
emSobre as diferenças
Habermas (2002, p.das críticas filosóficas e literária, ver a crítica de Habermas a Derrida e Rorty
261-296).
65
51
A crítica
(Sousa de Sousa
Santos, 2005a).Santos à teoria crítica (moderna) está fundamentada nessa argumentação
67
52
Segundo Jameson (1991, p. 60-61), citando Mandel, a realidade do capitalismo atual, “longe de
resultar inconsequente com a grandiosa análise realizada por Marx no século XIX [...] constitui, ao
contrário, a forma mais pura de capital que já surgiu, uma prodigiosa expansão do capital para zonas
que não haviam sido anteriormente transformadas em mercadorias. Este capitalismo mais puro de
nossos
(Edição dias elimina os entraves de organização pré-capitalista que até o momento havia tolerado [...]”
em castelhano).
68
[...] Assumiremos
defenderemos necessariamente
– a contínua pertinência e– o valor
e, em alguns
analítico momentos,
de uma postura
crítica modernista radicalmente revista na teoria social. O fato de essa
posição ser ou não agraciada com o rótulo de teoria crítica “pós-moderna”
[...] é menos importante que os temas substantivos que estão em jogo
(Torres, 2003, p. 37-38).
omercado
realismo e o monopolista,
e fase modernismo respectivamente.
com relação às Oufases
seja,anteriores – capitalismo
ao contrário de
de um espírito
que marca uma nova era, trata-se apenas de uma expressão espiritual específica de
uma mesma era histórica capitalista.
As características da manifestação cultural pós-modernistas (na literatura,
cinema, arte e arquitetura), analisadas por Jameson (1991) e Harvey (1993), entre
outros, resvalaram para o campo da filosofia e das teorias sociais (cf. Evangelista,
1992; Wood & Foster, 1999), caracterizando um tipo de pensamento que acabou por
se estabelecer no universo acadêmico e teórico social – independente do julgamento
que dele se possa fazer.
69
53
Gilles Lipovetsky (2004), por exemplo, prefere falar em “tempos hipermodernos” e faz uma
autocrítica de sua defesa anterior do pós-modernismo, embora seja difícil identificar as diferenças
entre sua atual elaboração e o estilo e o conteúdo do pós-modernismo.
70
herdeiros.
No entanto, como sua srcem precede e seu alcance ultrapassa as reflexões
dos filósofos da escola de Frankfurt, é mais adequado referir-se à teoria crítica como
uma tradição teórica que, embora compartilhe fundamentos comuns, possui diversas
expressões na atualidade, de acordo com a área a que se dirige e ao contexto social
em que se desenvolve. Conforme afirmam, respectivamente, Torres e Wiggershaus:
Portanto, o uso da expressão “teoria crítica” nesta tese refere-se tanto à crítica
marxista e ao marxismo renovado da Escola de Frankfurt, quanto às outras
elaborações no campo da filosofia marxista (como as de Gramsci e Lukács) e
àquelas que procuram pensar a possibilidade da construção de um referencial
teórico rigoroso capaz de, complementarmente, desvendar os mecanismos da
54
Original em inglês.
72
A exposição estará limitada ao que interessa aos objetivos desta tese e aos
temas que serão retomados posteriormente, opção que a tornará bem mais breve e
incompleta do que exigem a amplitude e complexidade do tema. Uma abordagem
mais ampla só teria sentido se o propósito fosse compendiador, o que, porém, não é
o caso.
ideias puras a priori que dariam forma aos dados da intuição sensível e
possibilitariam o pensamento conceitual daquilo que é recebido pelos sentidos –
donde se distinguem a sensibilidade (a receptividade para as representações do
mundo exterior) e o entendimento (a espontaneidade da razão subjetiva para pensar
as representações em conceitos).
As duas espécies de ideias puras a priori (as formas da sensibilidade e as
categorias do entendimento) são absolutamente desvinculadas de qualquer relação
empírica e não existem no mundo externo, pertencendo, então, exclusivamente à
razão subjetiva. No entanto, ambas são essenciais para a experiência e, como tais,
são condições de possibilidade da ciência e do conhecimento do mundo. A
objetividade do conhecimento, neste caso, passa a ser dada narelação do sujeito
com o objeto e não na simplesrepresentação, no sujeito, de um mundo existenteem
si ou na clareza e distinção das ideias inatas na mente – como pensavam,
respectivamente, o empirismo e o racionalismo.
A importância da transformação que Kant introduz na filosofia não é pequena.
Primeiro, trata-se de um deslocamento das condições de verdadedo objeto para o
sujeito cognoscente em sua relação com o mundo exterior (acoisa em si, que em
Kant é incognoscível fora da relação com o sujeito determinado pelas ideiasa priori).
A crítica efetuada por Kant é dirigida à razão como elemento central do processo do
74
Uma tal ciência [um sistema da razão pura] teria que se denominar não uma
doutrina, mas somente Crítica da razão pura, e sua utilidade seria realmente
apenas negativa com respeito à especulação, servindo não para a
ampliação, mas apenas para a purificação de nossa razão e para mantê-la
livre de erros, o que já significaria um ganho notável (Kant, 1980, p.33).
Ou seja, as condições para um conhecimento correto seriam dadas por uma
autocompreensão do sujeito realizada pela própria razão. A crítica da razão é, na
verdade, uma autocrítica catártica que expõe o sujeito aos condicionamentos
subjetivos de seu processo de conhecer. Para Kant, embora não pudéssemos
prescindir da materialidade de um mundo existente por si mesmo, o conhecimento
não era a simples representação das coisas no intelecto, mas umaação do sujeito
sobre o objeto conhecido, através da receptividade das formas a priori da
sensibilidade e da atividade das categorias a priori do entendimento. Isso significa
que para compreendermos o mundo, nossa atenção deve voltar-se não para a coisa
em si, mas para a sua objetividade disposta ao sujeito como fenômeno. O
conhecimento correto exige que a razão se purifique por meio de um
autoconhecimento que lhe revele as condições subjetivas que conformam o ato de
conhecer. Portanto, não é o sujeito que deve adequar-se passivamente ao objeto,
mas é o objeto que se adapta às determinaçõesa priori do sujeito no processo
cognoscitivo.
Tal ideia, contudo, aponta tanto para a possibilidade da ciência e do
conhecimento, quanto para seus limites: não conhecemos as coisas tais quais elas
são, pois estamos eternamente presos à moldura de nossa subjetividade, por meio
da qual tornamos presentespara nós o mundo que existe em si. A garantia kantiana
para a necessidade e universalidade do conhecimento, condições de sua
veracidade, é dada pelo postulado de uma subjetividade transcendental (comum à
espécie e não variável para cada indivíduo ou para cada época) que pode ser
conhecida por uma filosofia da razão pura.
Assim, a crítica da razão pura e a identificação das pré-condições subjetivas do
conhecimento possibilitariam o descobrimento dos motivos dos erros passados
(mormente da metafísica) e dariam à filosofia a possibilidade de indicar o caminho
seguro do conhecimento:
75
55
Exposta aqui na introdução, seção III.
77
Para chegar-se, contudo, a uma teoria crítica não idealista, com bases
históricas e sociais e com conteúdo mais radical de emancipação, foi necessário
rejeitar o pensamento kantiano em seus aspectos transcendentais idealistas, sem,
no entanto, abrir mão de suas intuições básicas a respeito da subjetividade
construtora do conhecimento e dos condicionamentos subjetivos do ato de conhecer
e agir no mundo. Em outras palavras, foi preciso “destranscendentalizar” a
subjetividade kantiana.
56Essa noção é de extrema importância para a reflexão sobre uma nova racionalidade que farei na
Parte III, capítulo 10.
79
Nessa concepção de unidade entre sujeito e mundo, não há sequer sentido para a
pergunta sobre a possibilidade de representação do mundo no pensamento ou sobre
a correção da referência do pensamento ao mundo (cf. Habermas, 2004, p. 199),
questões que só podem pertencer a concepções dualistas ou paralelistas da
existência de mundo e sujeito.
Sendo, pois, relação mediatizada e historicamente determinada, o
conhecimento do mundo não é conhecimento do “dado”, masconstrução que
persegue a totalidade subjacente ao existir determinado dos objetos. As coisas ou
fenômenos reais não possuem seu fundamento em si mesmos, ou seja, não são, em
última instância, a sua "própria verdade". Tudo o que existe édeterminação do ser
absoluto em diferentes níveis de concretização. "Opuro ser constitui o começo,
porque é tanto pensamento puro como o imediato indeterminado e simples" (Hegel,
1988, p. 138). Como Hegel concebe o ser como “Sujeito” e “Espírito”, a realidade é
um pôr-se a si mesmo do ser através da passagem de sua unicidade à multiplicidade
do mundo real. O próprio mundo real é a realidade do ser absoluto. E é na
passagem do absoluto indeterminado para a diversidade dos entes – ou seja, na
"transformação" do espírito em coisa ou do ser em natureza e mundo – que se situa
o ponto central da dialética hegeliana.
Por ser o fundamento de todas as coisas, categoria mais simples e
indeterminada, o ser (concebidoem si mesmo) é absolutamente vazio de conteúdo,
ou seja, não é nenhum isto em particular. Tudo é, mas o ser, em si mesmo, não
pode se resumir a nenhuma coisa que é. O ser é tudo, mas ao mesmo tempo não é
nada (não é nenhum algo). Segue-se daí, no pensamento de Hegel, a identificação
57
contraditória do ser com o nada. Contudo, a contradição, na filosofia hegeliana,
não é algo estático, mas motor da superação em uma síntese dialética. Odevir é,
então, postulado comosíntese superadora da unidade contraditória entre ser e nada.
A unidade entre ser e nada gera o movimento da história (Hegel, 1988, p. 141).
Assim, por um processo subjetivo do ser absoluto, o mundo (como ser determinado,
ou seja, como ser queé algo) aparece como superação (Aufhebung) da contradição
intrínseca ao absoluto:
57
"Ora, imediatamente,
também o puro ser é a épura abstração
o nada , por1988,
” (HEGEL, conseguinte,
p.139). o absolutamente negativo , que, tomado
81
No devir, o ser enquanto uno com o nada, como também o nada, uno com o
ser, são apenas evanescentes; o devir, mediante a sua contradição em si,
coincide com a unidade, em que ambos são removidos; o seu resultado é
assim o ser determinado (Dasein) (Hegel, 1988, p. 143).
delas. É um estado de privação que força o sujeito a procurar remédio. Como tal tem
um caráter positivo” (Marcuse, 1978, p. 73).
Dessa maneira, Hegel postula uma ambiguidade essencial da realidade: as
coisas são, ao mesmo tempo, elas mesmas e o seu contrário (a negação de si ou de
suas potencialidades), e sua essência consiste naquilo que elasvêm-a-ser (e não
simplesmente no que são). Por isso, a realidade, em seus múltiplos aspectos, deve
ser compreendida como oresultado, em um determinado momento, de suas várias
determinações de ordens histórica e lógica, ambas de caráter abstrato e não
aparente. Hegel diz que o conceito éconcreto, porque é unidade resultante de
múltiplas determinações (Hegel, 1988, p. 99).
As mudanças que vemos na história e na consciência são passos na direção
da perfeição do ser e da superação de seus aspectos negativos. A mesma
processualidade que Hegel vê na realidade é atribuída também ao pensamento, pois
ambos constituem uma unidade. Dado que sujeito e objeto são concebidos como
espírito, em Hegel “a processualidade do pensamento é consequência da
processualidade de toda a realidade" (Lukács, 1979, p. 29).
A virada que Hegel realiza no plano do pensamento quando atribui à lógica
(movimento do pensamento) os mesmos princípios da ontologia (movimento da
realidade) é também destacado por Lukács:
82
Assim, a razão, que em Kant era uma estrutura estática portadora de formas
fixas, eternas e pré-existentes em uma subjetividade transcendental, ganha, em
Hegel, movimento e história, coloca-se junto ao mundo e desenvolve-secom ele, na
unidade do espírito.
A dialética hegeliana, enquanto movimento do pensamento, possui um caráter
eminentemente crítico. Ela nem ignora os objetos, nem os têm como dados
acabados, senão que, partindo de seu aparecer imediato, rejeita-os como o
essencial e verdadeiro: o revelar-se dos objetos à consciência é apenas um
momento de sua essência. O momento dialético do pensamento é o quenega o
objeto dado, mas dele se serve como o ato do comer: depende do alimento, mas,
para satisfazer-se, destrói a forma com a qual ele se apresenta (Hegel, 1988, p. 81).
A essência é o ser que aparece – não é, portanto, nem puro ser nem mero aparecer.
A verdade não está "por detrás ou para além do fenômeno" (Hegel, 1988, p. 166),
mas tampouco se esgota nele.
Sendo o mundo uma totalidade e resultado de um processo – e não um dado
em-si, isolado –, só pode ser verdadeiro o conhecimento que o apreenda em sua
gênese e totalidade. O “entendimento” V( erstand) só apreende os entes em sua
imediatidade e individualidade e, por isso, permanece na aparência exterior;
somente a razão (Vernunft) dialética consegue apreender os objetos em sua
É importante que a filosofia tome nota de que o seu conteúdo não é mais
nenhum senão o que srcinariamente se produziu e se produz no domínio
do espírito vivo, conteúdo que se tornou mundo , mundo externo e interno da
consciência – isto é, de que o seu conteúdo é a realidade [efetiva]
(Wirklichkeit ) (Hegel, 1988, p. 73).
O fato de que a dialética sofra nas mãos de Hegel uma mistificação não
impede
amplo eque este filósofo
consciente suas tenha
formassido o primeiro
gerais que soube
de movimento. expor
O que de um
ocorre modo
é que a
dialética aparece nele invertida, posta de cabeça para baixo. É necessário
apenas virá-la, melhor dizendo, colocá-la de pé, e em seguida se descobre
sob a crosta mística o núcleo racional (Marx, 1974, p. XXVI).58
58
Edição em castelhano.
84
tradição teórica crítica em sua versão materialista e como, com ele, a crítica se livrou
tanto de seu aspecto transcendental, como de seu caráter idealista – fato que tanto o
aproxima como o afasta de Hegel.
A destranscendentalização do sujeito iniciada por Hegel foi reconhecida por
Marx da seguinte forma:
que sua filosofia deveria legitimá-la e não considerá-la como algo contingente e
transitório. Hegel, com efeito, via nas conquistas napoleônicas – que, a seu modo,
estendia os ideais da Revolução Francesa para outros países da Europa – como a
realização plena do Espírito racional.59 Por isso, mesmo que reconhecesse o caráter
histórico e transitório das realizações humanas e da própria essência da
subjetividade, ele atribui um caráter de necessidade e absolutidade à ordem
presente ao considerá-la a expressão objetiva e final do Espírito absoluto. Esse
aspecto fez com que Marx considerasse a crítica hegeliana como uma crítica apenas
“aparente”, pois ao invés de utilizar-se da dialética para desvendar a forma pela qual
as estruturas são construídas historicamente (inclusive as burguesas), ela acaba por
justificar e legitimar as do seu tempo, concedendo-lhes caráter de perenidade. Ou
seja, no que diz respeito à modernidade, ao invés de buscara essência além da
aparência, Hegel deu ao aparente o aspecto de essência:
59
O encantamento de Hegel com as conquistas de Napoleão pode ser notado em suas palavras em
uma missiva: “Vi o imperador – essa alma do mundo – sair da cidade para fazer reconhecimento: é
realmente uma
montado num sensação
cavalo, maravilhosa
se estende sobre o ver um e tal
mundo indivíduo
o domina” que, apud
(Hegel, concentrado
Châtelet,aqui
1995,num ponto,
p. 22).
85
sensível, como práxis” (Marx, 1978, p 51). Isso fez com que a dimensãoativa do
sujeito, postulada por Kant, fosse apropriada de maneira puramente abstrata pelo
idealismo. Seu propósito, então, era constituir uma teoria materialista que
considerasse a atividade subjetiva como algo concreto, pertencente à ação humana
na sua relação com o mundo e com os outros. O fundamento da filosofia marxiana é
um materialismo que mantém as conquistas teóricas do idealismo crítico e, ao
mesmo tempo, resgata o aspecto humanista e emancipatório do espírito
renascentista.
Marx reconhece em Feuerbach o mérito de ter fundado o “verdadeiro
materialismo” quando faz da “relação social homem a homem o princípio
fundamental da teoria” (Marx, 1978, p. 34). Mas, mesmo Feuerbach ainda não havia
compreendido o fundamento como práxis, ou seja, como ação humana concreta.
Esse é o mérito específico de Marx, muitas vezes deixado de lado até por
intelectuais marxistas: o conhecimento vincula-se com a vida de forma
indissociável.60 A insistência de Marx na fundamentalidade da práxis revela a sua
contribuição central para a filosofia e o seu caráter de srcinalidade. O criticismo e o
idealismo alemães trouxeram a novidade da construtibilidade subjetiva do
conhecimento, mas compreenderam o sujeito ou como uma estrutura pré-formada
para o ato cognoscente ou como um absoluto estático que põe a realidade. Hegel
historiciza o sujeito, concebendo-o como coetâneo à época em que vive, não por
contingência, mas em essência; porém subsume o sujeito ao desenrolar da história
do Espírito absoluto, em relação ao qual sua ação cumpre uma função demediação
para a objetivação e superação-elevação Aufhebung
( ) desse Espírito. Marx, por sua
vez, traz todo o fundamento para a ação humana enquantopráxis que, em última
instância, fundamenta-se a si mesma. “Toda vida social é essencialmenteprática.
Todos os mistérios, que induzem às doutrinas do misticismo, encontram sua solução
racional na práxis humana e no compreender dessapráxis” (Marx, 1978, p. 52).
60
O erro do saber exclusivamente acadêmico situa-se, muitas vezes, em ter com o mundo uma
relação muito distante, como se a teoria tivesse uma autonomia com relação à vivência concreta e
corpórea da sociedade e dos indivíduos. Uma possível solução para os impasses do pensamento na
atual fase da modernidade, em minha concepção, deve ser buscada exatamente nessa vinculação do
pensamento com a existência humana material, corpórea, com a práxis cotidiana de seres que não
querem apenas elaborar teorias, mas viver uma vida que valha a pena ser vivida. Sendo a
Universidade uma parte desta sociedade (e mantida por ela), sua produção não pode alienar-se do
aspecto vivencial
exclusivos do mundo
de validação, emeles
sejam que de
existimos
caráter para lidar
lógico, apenas
estético oucom discursos avaliados por critérios
retórico.
87
Não devemos relativizar a importância deste aspecto, uma vez que é também
essencial para a reflexão sobre as teorias educacionais. O trabalho intelectual, por
suas próprias dimensões e exigências, só pode ser realizado quando algumas pré-
condições estão dadas: quando se está alimentado, quando se teve acesso aos
meios de formação (educação, livros, etc.), quando se tem saúde, etc. É
compreensível – embora não necessariamente aceitável – que o trabalho teórico se
desvincule das exigências básicas da natureza humana, visto que o próprio ato de
realizá-lo atesta que tais exigências elementares, ao menos para o intelectual, já
foram sanadas e não se colocam como problema imediato. Muitas vezes ocorre uma
ruptura entre o mundo no qual vivemos e o mundo sobre o qual pensamos, o que
deixa o trabalho intelectual livre para conceber-se apenas como um trabalho “ideal”,
puramente teórico, resultado do esforço cerebral espontâneo e não contaminado
com os interesses da vida cotidiana, sejam os do próprio intelectual ou os das
pessoas que povoam o mundo no qual ele vive.61 Por isso, a insistência no caráter
praxiológico do conhecimento, da forma como Marx o concebe, cumpre uma função
importante para evitar a dissociação entre conhecimento e mundo vivido; o que será
também fundamental para a compreensão das proposições da Parte 3 desta tese
(principalmente as do Capítulo 11).
Nos Manuscritos econômico-filosóficos, Marx traz a teoria para a existência
natural do ser humano, proposição que ele designa de “naturalismo realizado”, ou
“humanismo”, diferente tanto do idealismo quanto do materialismo, mas que é, “ao
mesmo tempo, a verdade unificadora de ambos”. Tal naturalismo é o único “capaz
de compreender o ato da história universal” (Marx, 1978, p. 40). Ele se fundamenta
61
Talvez seja por essa razão que muitos não estranham o fato (por si mesmo surpreendente) de que
nas universidades brasileiras o interesse por uma filosofia latino-americana ou por uma teoria
educacional voltada
avidez por uma paraenrediça
exegese a realidade dos países
de textos periféricos
obscuros seja,
de algum muitas
filósofo vezes,oubem
francês menor do que a
alemão.
88
podem ser concebidos como dados. Segue-se daí que o conhecimento é algo
processual, e não se limita às representações imediatas presentes no sujeito. Faz-se
necessário uma superação dialética do pensamento baseado nas intuições e
representações – o que Marx chama nosGrundrisse de “representação caótica do
todo” – em direção ao pensamentoconcreto.
O pensamento possui a tarefa de negar o aparentemente dado para captar a
essência não imediata. Mas isso não ocorre como mera contemplação do real,
senão que como atividade do sujeito sobre o objeto. Para Marx, não há objeto real
sem a sua subjetivação. Por isso, nosGrundrisse, ele afirma que uma estrada de
ferro que não é usada, ou seja, não é consumida por um sujeito, ou uma casa que
não é habitada, ou, ainda, um vestido que ninguém veste, nada disso pode ser
considerado real, mas tão somente “em potência”; é apenas na relação com uma
subjetividade ativa que os objetos adquirem a completude de sua realidade (Marx,
1985, p. 13-14). Por conseguinte,
62
É comum ouvir-se a afirmação de que o marxismo se resume a “explicar tudo pela economia”. Tal
afirmação está tão distante de Marx que talvez nem merecesse ser comentada. Mas apenas para que
se desfaça a confusão na cabeça de leitores intelectualmente honestos, que procuram conhecer uma
teoria antes de rechaçá-la, é preciso assinalar o seguinte: quando se fala da unidade de sentido que a
realidade possui dentro de um todo sintético não se está eliminando a inesgotável fonte de sentido
possível que esta possui e nem se afirmando que basta a compreensão do todo para se entender as
partes . Com relação à primeira afirmação, Marx defende a existência da realidade fora dos limites da
mente humana, com relação à qual guarda uma exterioridade infinita que nunca se esgota no
conhecimento. Contra a segunda afirmação, basta ver na obra total de Marx que seu método procede
por análise e síntese – ou melhor, esses momentos são complementares e indissociáveis – e jamais
nega que o particular guarda uma autonomia relativa com o todo. Nos Grundrisse (Marx, 1985), a
primeira parte reflete sobre a relação do todo com as partes (no caso, da produção em geral com o
intercâmbio, a distribuição e o consumo) e mostra bem essa autonomia em uma análise não-
determinista.
91
*******
Temos aqui, em resumo (em 2.1; 2.2; e 2.3), os traços fundamentais da teoria
crítica em sua srcem europeia. Antes de refletir sobre os aspectos latino-
americanos da tradição crítica (2.4), é necessário ver como Horkheimer (1983)
sistematizou a teoria crítica que caracterizou tanto os estudos da Escola de
Frankfurt, quanto outras elaborações teórico-críticas. Os aspectos fundamentais da
teoria, expostos por Horkheimer emTeoria tradicional e teoria críticae em Filosofia e
teoria crítica, constituem o essencial da tradição crítica e representam o que há de
comum em distintas elaborações – como as dos próprios frankfurtianos, cuja
unidade está mais na base teórica do que em seus diferentes conteúdos.
Os próximos parágrafos constituem uma síntese dos pontos principais dos
referidos artigos. Mais que uma elaboração própria e srcinal de Horkheimer, eles
63
são uma sistematização da tradição teórica que fundamentava seus estudos.
Trata-se, portanto, do esclarecimento de como os fundamentos refletidos nas seções
acima afetam a elaboração teórica e a pesquisa social – que, obviamente, também
valem para a teoria educacional.
a) A teoria crítica compreende que o trabalho teórico não é independente da
base material da sociedade e está indissociavelmente vinculado ao processo de
produção econômica e ao desenvolvimento de uma dada sociedade . Portanto, a
atividade teórica e a produção de verdades são também elementos determinados
pela história. A teoria que não se atenta para esse vínculo, supondo-se autônoma,
neutra e aistórica, possui caráter de ideologia, pois acaba ocultando a raiz de sua
produção e criando a ilusão de verdades imunes ao questionamento. Assim, o
positivismo é rejeitado como ideológico, à medida que coisifica o conhecimento e
torna a teoria desvinculada dos interesses que se manifestam na sociedade e
63
As referências às páginas das citações seguintes referem-se tanto ao texto Teoria tradicional e
volume.crítica quanto ao Filosofia e teoria crítica , publicados, na edição que utilizei, em um mesmo
teoria
93
disputam entre si. O conhecimento existente e sua aplicação aos fatos “não têm
srcem em elementos puramente lógicos ou metodológicos, mas só podem ser
compreendidos em conexão com os processos sociais reais” (p. 121).
b) O pensamento crítico não lida com “dados puros” a serem explicados por
uma teoria explanatória, mas com fenômenos que devem ser compreendidos pela
razão dialética. “Os fatos que os sentidos nos fornecem são pré-formados de modo
duplo: pelo caráter histórico do objeto percebido e pelo caráter histórico do órgão
perceptivo” (p.125). Portanto, a crítica dirige-se tanto aoobjeto, que aparece
disposto a nós apenas em sua dimensão aparente, quanto aosujeito cognoscente,
cuja espontaneidade produtora do conhecimento também está submetida às
vicissitudes do processo histórico e precisa realizar o movimento de superação
(Aufhebung). Não perceber isso é quedar-se no aparente do objeto ou no
dogmatismo da consciência abstrata. Por isso,o conhecimento crítico deve ser uma
autorreflexão crítica acerca do próprio processo de conhecimento e não
simplesmente um desvelar redentor do sentido oculto do objeto . A forma como os
fenômenos se mostram não revelam sua essência concreta, e esta só é alcançada
de modo teórico a partir de uma crítica dialética.
c) Os indivíduos só reconhecem seu mundo quando compreendem que as
relações que travam em seu cotidiano e os limites impostos à plena realização de
seus desejos como ser humano são relações e limites vinculados a uma totalidade
histórica com bases materiais. Na perspectiva crítica, os indivíduos percebem que
“este mundo não é o deles, mas sim o mundo do capital” (p. 130). Segue-se daí que
“o reconhecimento crítico das categorias dominantes na vida social contém ao
64
A compreensão do tipo de tarefa educativa que possui o teórico crítico e como ela pode ser
concretizada é passível de diversas interpretações e deu margem a muitas polêmicas a respeito da
“capacidade redentora”
Esclarecimento 2). do intelectual-educador, como veremos mais adiante (Capítulo 3, Item 3.3,
95
Ninguém pode colocar-se como sujeito, a não ser como sujeito do instante
histórico. A discussão sobre a constância ou mutabilidade da verdade só
tem valor para as mentalidades polêmicas. Isso contraria a suposição de um
sujeito absoluto e supra-histórico e a substituibilidade dos sujeitos, como se
fosse realmente possível a transposição do momento histórico atual para
qualquer outro momento histórico, passado ou futuro. [...] A teoria crítica é
incompatível com a crença idealista de que ela própria representaria algo
que transcende os homens [...]” (p. 152).
Dessa maneira, a validade e pertinência da teoria não são mais julgadas pelo
tribunal abstrato de uma razão genérica, mas pela sua relação com o objetivo que
ela própria coloca para si e que compartilha com a parte da humanidade que tem a
realização da plenitude de sua vida cerceada pela materialidade da organização
social que a oprime. Por isso, “a teoria crítica não tem [...] nenhuma instância
específica para si, a não ser os interesses ligados à própria teoria crítica de suprimir
a dominação de classe” (p. 154). Portanto, a teoria crítica, por seus fundamentos,
não rejeita a problemática da verdade, distinguindo-se tanto do dogmatismo – para o
qual a verdade não é uma questão problemática –, quanto do ceticismo ou do
relativismo forte – para os quais a questão da verdade é algo insolúvel, que veda
qualquer pretensão à veracidade das teorias. Ao contrário, os critérios de veracidade
são definidos na imanência e historicidade da práxis humana fundadora do mundo e,
se não são critérios absolutos, tampouco são inexistentes. Conforme diz Marx na
segunda tese sobre Feuerbach,
aspecto bastante visível nas elaborações dos teóricos de Frankfurt – que ensejou a
reflexão crítica na educação. A percepção de que a dominação não se resume à
economia, mas afeta diversas instituições e realizações do ser humano, abriu um
campo de possibilidades para a crítica dos modos de educação caracterizados pela
ideologia e pela manutenção da cultura capitalista e,também, para a defesa de seu
potencial emancipatório.
********
Esses são, portanto, os aspectos mais gerais e característicos da tradição
crítica europeia. Os elementos destacados por Horkheimer nos textos aqui
referenciados são consequências de uma evolução intelectual descrita nos três itens
acima (2.1, 2.2 e 2.3). Eles não são criações da Escola de Frankfurt, mas a
sistematização acurada da tradição que se complementa com Marx e se abre para
inúmeras outras aquisições e transformações, conforme a época histórica e a
realidade local na qual se concretiza. Assim, a reflexão a seguir, sobre a produção
teórico-crítica na América Latina, é fundamental para complementar qualquer estudo
sobre a tradição crítica, pois revela a especificidade histórica e local que a teoria
assume em nosso continente, mantendo suas raízes descritas acima e
acrescentando novidades enriquecedoras.
97
formam o chamado terceiro mundo. Aqui nos interessa mais a América Latina por
ser o lócus geopolítico a partir do qual se elabora esta tese, mas as especificidades
geopolíticas relacionam-se também às lutas emancipatórias e suas expressões
teóricas nos países da África e Ásia, que constituem o “Sul” no quadro atual da
divisão de poder no mundo pós-Guerra Fria. A América Latina faz parte desse
quadro que deve ser compreendido de forma sistêmica. A dimensão geopolítica que
a dominação adquire define também um caráter específico dos processos de
emancipação e, consequentemente, das teorias crítico-emancipatórias elaboradas
no contexto dessa realidade.
A criação de uma situação de prosperidade dentro do capitalismo europeu e
anglo-americano, que gerou mudanças no pensamento crítico nos países centrais,
aconteceu a expensas do depauperamento das nações periféricas. Quando o
capitalismo nos países centrais conseguiu atingir altos níveis de bem-estar social e
uma significativa redução na diferença entre as classes sem a necessidade de uma
revolução proletária, uma parte dos teóricos daqueles países passou a desacreditar
da (ou, ao menos, relativizar a) ação emancipatória como ação revolucionária
fundadora de uma nova ordem econômica. Nos países dominados, porém, o
capitalismo recrudesceu o abismo entre as classes e ampliou a dominação no
campo cultural. A emancipação adquiriu, em nosso contexto, uma dimensão de
“libertação”, que envolve muito mais do que um problema de classe – embora esteja
perpassado também por esta dimensão.65
65
Bárbara Freitag, comentando o que ela considera um “afastamento” de Horkheimer da teoria
marxista, alega que um de seus motivos foi o fato de que “Horkheimer admite que o capitalismo
conseguiu produzir um excedente de riquezas que desativou o conflito de classes” (Freitag, 1988, p.
40). Sobre como a “época de ouro” do capitalismo desenvolvido afetou o pensamento da esquerda
das nações centrais, ver Della Fonte (2006). Ainda que se possam tecer inúmeras críticas a respeito
da capacidade analítica de teóricos sociais quando não se atentam para a realidade de outros países
e para a imbricação sistêmica do desenvolvimento econômico de seus países com o processo de
multinacionalização do capitalismo, é possível compreender a mudança de foco na dimensão
emancipatória de suas teorias a partir do eurocentrismo secular que sempre esteve presente na
produção intelectual dos países desenvolvidos. Para compreender, no entanto, como essa mudança
de foco pôde afetar as análises de intelectuais do mundo periférico – que jamais testemunhou
nenhuma “época de ouro” do capitalismo e onde as diferenças de classe chegam ao nível de relações
98
feudais e mesmo escravagistas – seria necessário uma reflexão de maior alcance que foge aos
limites desta tese.
66
Original em castelhano.
99
67
Dussel, Gutiérrez, Boff e Freire, por exemplo, utilizam-se amplamente da análise marxista e de
outros intelectuais críticos europeus, mas não fazem uma simples aplicação dessas análises, senão
que as incorporam em construções teóricas que têm a realidade latino-americana como ponto de
partida.
100
68
Contribuíram também para essa transição de paradigma os estudos dos brasileiros Celso Furtado,
Theotônio dos Santos e Darcy Ribeiro e do peruano Aníbal Quijano, dentre outros.
69
Para Paulo Nogueira Batista Jr., a proposição do paradigma da dependência por Cardoso não era
uma proposição “de esquerda” e nem propunha a emancipação da dependência, mas o ajustamento
das economias nacionais ao papel de “sócios-menores” do capitalismo internacionalizado, uma
espécie de “adesão estratégica” em nome do desenvolvimento nacional (Batista Jr., 1999). A mesma
observação faz Salgado (2006, p. 103-104). No entanto, teóricos de esquerda utilizaram o paradigma
para elaborar social
transformação uma baseadas
nova compreensão da asituação
na ruptura com latino-americana
dependência e mundializado.
do capitalismo pensar estratégias de
101
70
Com relação a isso, embora referindo-se a outro tema, Dussel faz uma espécie de desabafo, em
nota de rodapé: “É aqui que o filósofo da periferia sente tristeza, dor e até raiva. Há vinte anos
publiquei ‘em espanhol’ uma ética em cinco volumes; em outras palavras, ela ainda está ‘inédita’ para
os filósofos do Centro (ingleses, alemães ou franceses)! Muitos mal entendidos se teriam resolvido se
meus colegas tivessem lido esses tomos. Mas, como estão ‘em espanhol’, é como se não tivessem
sido publicados!” (Dussel, 2005, p. 22, nota 63). Constrangedor é constatar que esse “ineditismo” de
uma obra
apenas publicada
pelos “na periferia” é provocado também por próprios intelectuais periféricos e não
do centro.
103
foi radicalmente ampliada pela a noção depovo oprimido que alargava a categoria
71
classe social sem rejeitar o abismo e o conflito entre as classes. Se na Europa a
relativização da categoria classe social ocorreu em função de umaredução das
diferenças entre as classes que a fez perder força na teoria crítica, na América
Latina a categoria relativizou-se em sentido contrário, ou seja, para ganhar força.
Isso se deu por uma ampliação de sua capacidade definidora a fim de incluir
contingentes maiores de pessoas que sofrem a exploração capitalista e que não se
incluem no conceito clássico de proletariado.
71
Para que não se perdesse o horizonte classista das teorias, Gutiérrez diz, por exemplo, que “a
teoria da dependência equivocaria seu caminho e levaria a engano se não situasse sua análise no
marco da luta de classes que se desenrola em nível mundial” (1985, p. 83).
104
72
Para uma comparação dos fundamentos do pensamento de Freire e de Dussel, ver Boufleuer
(1991).
73
Sobre o sentido da inculturação no trabalho pastoral-popular inspirado na Teologia da Libertação,
ver Brandão, et.al. (1986).
74
Ver também sobre isso Dussel (1977b, V. I, p. 93-145).
105
Para se aprender a partir do Sul, devemos, antes de mais, deixar falar o Sul,
pois o que melhor identifica o Sul é o fato de ter sido silenciado. Como o
epistemicídio perpetrado pelo Norte foi quase sempre acompanhado pelo
linguicídio, o Sul foi duplamente excluído do discurso: porque se supunha
que ele não tinha nada a dizer e nada (nenhuma língua) com o que
dissesse. Perante as assimetrias do sistema mundial, a construção da
subjetividade do sul [...] deve desenvolver-se por processos parcialmente
distintos no centro e na periferia do sistema mundial (Sousa Santos, 2005a,
p. 372).
Como se pode depreender da citação, o “deixar falar o Sul” é, pela sua própria
formulação, uma recomendação que parte de um teórico europeu e se dirige a um
público europeu. As teorias de libertação já cumprem há quatro décadas a tarefa de
“falar a partir do Sul”, tendo acumulado um acervo teórico considerável que, no
entanto, ainda tem sido pouco explorado pelos próprios intelectuais do Sul – e, por
isso, talvez a recomendação de Sousa Santos deva estender-se também para a
intelectualidade dos países periféricos.
Para se ter um exemplo da especificidade e da grande contribuição do
pensamento crítico latino-americano para os debates teóricos atuais, basta assinalar
75
Dussel (1977a) usou o termo “pós-moderno” para referir-se ao seu pensamento, mas bem antes
desse termo servir para designar o que hoje entendemos como tal. O que ele queria dizer com isso,
conforme esclarece posteriormente (Dussel, 2005, p. 45-48), era que sua filosofia se situava além da
modernidade eurocentricamente concebida. O termo não tem nenhuma relação com a sua utilização
atual.
que foiHoje, Dussel
pensado pelaprefere o termoeuropeia.
modernidade “transmoderno” para referir-se ao pensamento que vai além do
106
2.5. RECENSÃO
76
O vício maniqueísta que ainda temos em nossa forma habitual de pensar me obriga aqui a fazer
uma observação que muitos poderiam até julgar desnecessária, mas que acho oportuna em nome da
clareza na exposição das ideias. Ao insistir na necessidade de conhecermos a produção teórica
latino-americana e na rejeição da simples reprodução de teorias estrangeiras, não estou, de maneira
alguma , negando a riqueza do pensamento europeu e anglo-americano e a necessidade de se
estudá-lo. A história do nosso pensamento é decorrente da tradição teórica do ocidente como um
todo, visto que somos, queiramos ou não, uma expansão colonial da Europa. Além disso, a produção
intelectual e a sua validade jamais estão restritas a um único lócus, tendo aspectos de universalidade
válidos em qualquer contexto. Refiro-me aqui apenas aos problemas da descontextualização e da
mera
vezes repetição dasmeio
ocorrem no teorias e à cegueira intelectual para as produções do mundo periférico que muitas
acadêmico.
108
77
Algumas implicações podem estar relacionadas a mais de um princípio. Como o propósito é apenas
de esclarecer a categoria e não de criar um rígido esquema definidor, renunciei às minudências da
interconexão dos princípios com as implicações.
109
*******
Tendo, pois, caracterizado as bases da tradição crítica e sistematizado uma
definição da categoria “teoria crítica” – que doravante deverá estar subentendida em
toda reflexão dos capítulos posteriores – estamos em condições de refletir sobre a
sua utilização nas teorias educacionais, que será o tema do próximo capítulo.
3) A TRADIÇÃO CRÍTICA NA EDUCAÇÃO78
78
Quero reafirmar aqui a observação que fiz na introdução a respeito da exposição da temática deste
capítulo: não se trata de uma sistematização compendiadora das ideias dos teóricos críticos em
educação, senão que do esclarecimento sintético do que é essencial e distintivo nessa tradição de
pensamento aplicada à educação e dos temas que estarão na base da reflexão dos capítulos
posteriores. A recorrência a algumas (às vezes longas) citações e a ênfase em alguns aspectos
específicos se justificam pela existência, na literatura pedagógica recente, de interpretações
distorcidas que falseiam os propósitos e os fundamentos da Teoria Educacional Crítica –
interpretações que serão 1referenciadas
chamadas “Esclarecimento e 2”. e debatidas oportunamente nas seções intermediárias
112
79
Análises das ideias centrais das teorias de reprodução, bem como sua crítica, podem ser
encontradas em Giroux (1986, p. 102-134); Snyders (1981) e Saviani (1991a, p. 27-40).
113
e cultura que parte do sistema escolar e de seus agentes e é dirigida aos alunos. A
reprodução realiza-se também nas relações estabelecidas pelos alunos entre si,
80
Snyders refere-se aqui aos teóricos da reprodução Baudelot e Establet, Bourdieu e Passeron e Ivan
Illich, aos quais dirige sua crítica, embora reconheça suas contribuições indispensáveis à análise
crítica da escola.
81
Snyders, Giroux e Saviani sempre tiveram o cuidado de reconhecer os valores das teorias de
reprodução e de destacar a necessidade de se manter, na Teoria Educacional Crítica, os vínculos
estabelecidos por elas entre educação e a infraestrutura da sociedade, mesmo quando teciam suas
críticas e apontavam para a necessidade de se ir além da compreensão desses vínculos. Não foi,
portanto, a crítica desses autores a responsável pelo relativo esquecimento teórico da reprodução no
que diz respeito ao sistema econômico. O problema, ao meu ver, está no fato de a crítica ao
reprodutivismo se ter
uma certa redução datornado
força e um “lugar-comum”
da importância no discurso
da crítica pedagógico, o que pode ter resultado em
reprodutivista.
115
82
Em nota, Giroux acrescenta: “os estudantes podem demonstrar comportamentos que violam as
regras da escola, embora a lógica em que tais comportamentos se baseiam esteja firmemente
enraizada em formas de hegemonia ideológica, tais como racismo e sexismo. Além disso, a fonte de
tal hegemonia ou
companheiros, geralmente se srcina fora (Giroux,
na cultura industrializada” da escola,
1981,particularmente
p. 151, nota 1). na família, no grupo de
116
Os riscos dessa visão unidirecional da reprodução são vários. Ela não percebe,
por exemplo, que o Estado é contraditório e que, eventualmente, pode colocar-se
como aliado das lutas educacionais e contra a reprodução da lógica dominante,
dependendo da conformação política dos governos que se sucedem ou da
capacidade de controle da sociedade civil organizada sobre o Estado. Por outro
lado, a luta sindical docente só tem capacidade de transformar a educação quando
efetivamente a considera em sua totalidade. Quando se limita a questões salariais
ou de condições de trabalho, pode-se colher como resultado algumas melhorias,
mas nenhuma mudança profunda de caráter se efetua na educação como totalidade
e como práxis. Professores progressistas na luta sindical podem ser, ao mesmo
tempo e contraditoriamente, perfeitos reprodutores da lógica do sistema em sua
prática pedagógica e nos valores que sustentam nas suas relações profissionais
cotidianas, quando não efetuam uma autorreflexão sobre suas concepções e sua
prática.
O segundo problema decorrente da concepção unidirecional da reprodução é o
risco de se ter uma visão ingênua e romantizada das atitudes de alunos que, a
princípio, podem parecer manifestações de “resistência”, “rebeldia”, “subversão” ou
“transgressão”, mas que, no fundo, representam um reforço dos piores valores e
elementos da cultura dominante. Muitas vezes o que se mostra imediatamente como
resistência ao sistema educativo, às normas de comportamento da escola ou à
própria “cultura” escolar não é mais do que a repetição de valores ou
comportamentos difundidos na sociedade pelos meios de comunicação – valores e
comportamentos que, via de regra, se adaptam à manutenção da estrutura social ou
Esse processo deve conter umadiretividade, uma vez que não se trata apenas
de valorizar as expressões dos alunos como se elas fossem purificadas de ideologia,
valores ou cultura dominantes. Aqui devemos recordar a característica da teoria
crítica destacada por Horkheimer de não ser apenas uma “acomodação à situação
psicológica da classe” (cf. Capítulo 2, p. 94), mas uma teoria que busca também
transformar as subjetividades.
Esclarecimento 1.
Antes de abordar de que forma o processo educativo emancipatório pode se
desenvolver na concepção crítica, é preciso desfazer algumas confusões surgidas
recentemente a respeito do primeiro aspecto da Teoria Educacional Crítica e sua
vinculação com as teorias de reprodução. Em virtude do que já se produziu no
campo do pensamento educacional nas últimas décadas, a discussão que farei
imediatamente a seguir, bem como as longas citações às quais recorrerei, poderiam
ser consideradas dispensáveis ou redundantes. Particularmente, assim as considero
e teria me sentido mais à vontade dispensando-as.
Mas a maneira como alguns autores atualmente difundem as teorias da
“agenda pós” no pensamento educacional acadêmico tem sido feita de maneira a
dar impressão, por um lado, de que o pós-modernismo, o pós-estruturalismo ou as
teorias pós-críticas monopolizam qualquer possibilidade de questionamento e
alternativa aos problemas da Teoria Educacional Crítica em sua fase “explanatória”
(as teorias de reprodução) e, por outro lado, de que a teoria educacional de
inspiração marxista se reduz à sua versão reprodutivista inicial. Defendo que um
83
A expressão “estudos educacionais críticos”, na perspectiva dos autores, não significa o mesmo
que estou considerando aqui como Teoria Educacional Crítica. O sentido que eles parecem dar no
artigo é bem mais amplo, englobando os estudos de todos os teóricos que se colocam politicamente
“à esquerda”, independente de seu referencial conceptual, incluindo os pós-modernistas.
84
Burbules e Rice são bastante perspicazes ao identificar as diferentes vertentes do pós-modernismo
e ao insistirem que não se pode considerar o pós-modernismo como um movimento de pensamento
unitário. Fazem, inclusive uma instrutiva diferenciação entre “pós-modernismo e antimodernismo”,
identificando as tendências conservadoras do segundo e o que supõem ser o potencial crítico
inovador do primeiro. Mas, lamentavelmente, a mesma perspicácia não foi utilizada na referência à
análise marxista.
119
85
Na fase atual, Giroux fala em “pós-moderno de resistência” (ver Giroux, 1993) e incorpora
elementos da “agenda
citado, porém, pós”naemperspectiva
ele elabora suas elaborações,
estrita damas nãoEducacional
Teoria sem apontarCrítica
para os seus riscos. No texto
moderna.
121
foi um movimento localizado e nem de única fonte teórica de inspiração, mas pode
ser identificado nas elaborações (com diferenças internas) de autores como Paulo
Freire, Michael Apple, Peter McLaren, Henry Giroux, George Snyders, Dermeval
Saviani, Gaudêncio Frigotto, Carlos Alberto Torres e muitos outros.
Segundo McLaren,
Tal relação necessária justifica toda a reflexão que farei na Parte II a respeito
das mudanças no mundo e das novas estratégias de emancipação. Para se manter
coerente com seus próprios princípios, a Teoria Educacional Crítica precisa estar em
sintonia com as transformações em curso no mundo e isso faz com que a teorização
em educação esteja sempre vinculada a estudos sobre a sociedade. O educador
não deve ser apenas um profissional da educação, mas um cidadão ativo e
participante das lutas sociais; ao mesmo tempo, sua participação na sociedade é um
elemento que se incorpora à sua atividade de educador.
O que representa para o pensamento pedagógico posicionar-se a favor de uma
mudança na sociedade? Como esse posicionamento afeta a teoria educacional? No
capítulo anterior (p. 94), vimos que a teoria crítica, ao propor uma mudança na
86
Original em inglês.
123
[...] uma emancipação que começa por tornar possível que as vozes
silenciadas dos estudantes comecem a explicar e a nomear o mundo no
qual vivem. Uma tal hermenêutica implica uma transformação radical
daquilo que ocorre numa sala de aula. [...]. Uma pedagogia crítica exige
uma dialética entre a hermenêutica da vida dos indivíduos e a narrativa
explicativa de um quadro de referência teórico crítico. Isso significa dizer
que o que se exige não é simplesmente o que tem sido chamado de
“conhecimento fraco” da compreensão, mas também o “conhecimento forte”
da explicação . [...]. Trata-se de um processo no qual a pedagogia crítica
conecta a autorreflexão e compreensão com um conhecimento que torne
possível a transformação das condições sociais em que vivemos. Esse
conhecimento pode na verdade dizer-nos algo sobre a realidade [...]
(Shapiro, 1993, p. 115-116. Grifos meus).
87
O objetivo da reflexão seguinte é avançar no esclarecimento a respeito da Teoria Educacional
Crítica e não desenvolver uma reflexão detalhada do que tem sido chamado de estudos pós-críticos.
Pode-se alegar que Paraíso não representa a totalidade dos autores que se referenciam nessa
perspectiva, mas isso não impede que se reflita sobre seus argumentos, pois o que importa é o texto
que se está analisando. A autora reivindica situar-se no campo dos estudos pós-críticos e faz
afirmações genéricas a respeito da caracterização desse campo. Os autores ou estudiosos que não
se vêem representados em sua descrição devem estabelecer o debate interno e contestá-la. Isso,
porém, não inviabiliza a crítica “externa” à autora, como a que é feita nesta tese, pois são afirmações
publicadas
Associação em revistas
Nacional especializadas
de Pesquisa do campo
em Educação da educação e apresentadas em reuniões da
(ANPED).
125
preferíveis a outros?”.
126
88
Tomaz Tadeu da Silva (2001) levanta essas mesmas questões sem apontar para possíveis
respostas.
89
Isso não significa, porém, que o intercâmbio de experiências educacionais orientadas pelas duas
perspectivas seja impossível
diferentes concepções em umou que os
diálogo educadores
sempre não possam instruir-se mutuamente a partir de
construtivo.
127
educacionais “para muito além da porta da sala de aula” (Beyer & Liston, 1993, p.
96).
As decisões concretas dos educadores – que devem ser tomadas após o
exame crítico dos interesses em disputa na sociedade – advêm justamente da
resposta não ingênua aos questionamentos que, segundo Paraíso, os estudos pós-
críticos procuram lançar a “todas as verdades educacionais” e transformar em
perguntas perenes, que contêm em si mesmas a sua própria razão de ser. A
diferença entre as duas perspectivas fica bem explícita nesse excerto de Beyer e
Liston:
90
Comparem-se essas afirmações de Beyer e Liston, feitas a partir de uma perspectiva educacional
crítica,
descritoepor
as perguntas
Paraíso. perenes e a “renúncia da função prescritiva” dos estudos pós-críticos conforme
129
A consequência
social nas teoriasmetodológica de ligar
críticas tem sido as atenção
dupla: análises para
sistêmica e da ação-
a dialética ação
estrutura na análise dos processos de reprodução social e cultural; e uma
guinada para investigações historicamente específicas [...] e etnográficas,
capazes de análises integradoras, generalizadoras e de estudo de casos –
às vezes bastante distintas da oposição neofoucaultiana entre o universal e
o local, como se a análise regional pudesse dispensar a teoria social
generalizadora (embora não no sentido de leis a-históricas invariantes)
(Torres & Morrow, in Torres, 2003, p. 116).
91
A reflexão sobre os conteúdos científicos que são ensinados nas escolas será de grande
importância para a análise que farei no Capítulo 11, Item 11.3, sobre o ensino de ciências e a sua
vinculação com a racionalidade hegemônica.
131
interagente composta por professores e alunos, ainda que aos primeiros, dada a
92
dinâmica real da educação, caiba a função precípua de dirigir o processo.
A esse propósito, o fato de a educação escolar possuir essa dinâmica em que
ao professor cabe a tarefa de ser o condutor do processo – e até hoje não se
conheceu ou pensou dinâmica diferente – faz com que a ação do educador seja
sempre diretiva, mesmo quando ele renuncia à sua função condutora, pois, quando
faz essa opção, está simplesmenteavalizando o conhecimento dos alunos da forma
como é. Visto que a consciência dos alunos não é uma tábula rasa e nem formada
por conhecimentos conquistados apenas autonomamente, e sim constituída
socialmente pela cultura, família, ambiente social, meios de comunicação, etc., à
medida que o professor, renunciando à sua função diretiva, avaliza o conhecimento
dado, ele, ao mesmo tempo,direciona a educação para os conhecimentos e valores
dominantes na sociedade. A renúncia da diretividade ou da tarefa prescritiva da
educação acaba servindo como reforço dos valores capitalistas (individualismo,
consumismo, competição, submissão, lucratividade, etc.) e dos elementos
segregadores da cultura ocidental (sexismo, homofobia, racismo, etnocentrismo,
etc.).
O aspecto das elaborações iniciais de Giroux que mais interessa para os
objetivos desta tese é o destaque que ele deu às relações que se estabelecem no
cotidiano da escola além do estrito atoinstrucional. Não são apenas os conteúdos
ou o currículo declarado que reproduzem a ideologia dominante, mas também as
rotinas diárias da escola. Por isso, uma teoria crítica em educação
92
Essa observação,
contestação que farei,mais evidente nas2,elaborações
no Esclarecimento de Paulo
a algumas críticas Freire,
dirigidas será Educacional
à Teoria importante para
Crítica.a
133
93
A leitura ou releitura nos dias atuais das obras mais antigas de Paulo Freire pode provocar em
alguns a sensação de que muitas coisas ali presentes não represent am novidades ou fazem parte de
um certo “senso comum” pedagógico. Essa impressão se justifica pelo fato de que muitas de suas
ideias foram
perdendo incorporadas
a vinculação definitivamente
explícita com o seuao discurso pedagógico das últimas três décadas, às vezes
proponente.
135
94
Freire chama
“depósito” de “bancária”
nas consciências dosessa forma de
educandos e aeducação
avaliaçãopor elaum
como conceber
“saque”odo
ensino como
que foi um ato de
depositado.
136
95
Daí que – vale a pena repetir – a defesa de princípios como a competição, o ódio, o egoísmo e o
individualismo é aceitável nas ciências que os transformaram em princípios realistas, enquanto os
seus contrários (cooperação, amor, altruísmo e solidariedade), continuam sendo tratados como ideias
românticas (ver sobre isso Abdalla, 2006b). A assunção de uma ética fundada na cooperação estará
na base das proposições da Parte III.
96O que está em questão na presente discussão não é a verdadeira cientificidade das elaborações de
Dawkins – a propósito, completamente questionável (ver Sandín, 2006 e Abdalla 2006a) – mas a sua
137
aceitação sem críticas, principalmente pela mídia, coisa que seguramente seria diferente se ao invés
do egoísmo ele estabelecesse o amor como princípio, como faz o também biólogo Humberto
Maturana (1999), para quem os holofotes dos mass media jamais se dirigiram.
97
“Não há debate entre os que divergem em princípios”.
138
realizado pela e na educação, pode sugerir a anulação da diferença 98de papeis e uma
prática não-diretiva ao estilo das proposições escolanovistas. Por isso, é
importante se ter em conta a dialeticidade proposta por Freire nessa relação entre
educador-educando. Primeiro, o educador não se anula enquanto educador:
Portanto, o educador deve decidir-se por um projeto e sua prática deverá estar
orientada para a sua concretização – e isso deve estar claro também para os
98
É assim que a interpreta, equivocadamente, José Carlos Libâneo (cf. nota 101, abaixo).
139
educandos. Sua ação não se resume apenas a uma crítica genérica às “relações de
poder”, à “construção de verdades”, ou a um apelo a qualquer tipo de “transgressão”
e “subversão”. Trata-se, de um lado, de uma ação crítica direcionada, fundada em
uma ética social e balizada por um projeto de transformação e, de outro, de um
apelo a ações de resistênciaconsequentes com a concretização desse projeto. A
questão central é que a diretividade da práxis educativa não pode transformar-se em
uma repetição da prática “bancária” e nem ser imposta de forma autoritária e
antidialógica. Por isso, ela precisa fundar-se em um outro tipo de relação
cognoscitiva concretizada no ato educativo.
Nesse ponto, Freire nos traz uma insistente proposição, que é tema recorrente
em todas as suas obras principais: o processo educativo não é ação do educador
sobre educando, mas processo dialógico em que, cumprindo funções diferentes,
educador e educando se colocam como sujeitos do ato de conhecer. Se isso não for
levado em consideração, perde-se totalmente um dos fundamentos da contribuição
freireana para a Teoria Educacional Crítica.99 Vale a pena citar mais alguns excertos
da Pedagogia do oprimido em que a concepção da relação educador-educando se
faz mais explícita:
99
Veremos adiante, no Esclarecimento 2, que, a despeito da insistência de Freire e da repetição à
exaustão de alguns ou,
escritos freireanos, temas em suasdas
na melhor obras, algunsnão
hipóteses, críticos parecem não ter dado a devida atenção aos
o compreenderam.
140
100
Por exemplo, na parte em que Freire diz: “Enquanto na prática ‘bancária’ da educação [...] o
educador deposita no educando o conteúdo programático da educação, que ele mesmo elabora ou
elaboram para ele, na prática problematizadora [...] este conteúdo, que jamais é ‘depositado’, se
organiza e se constitui na visão de mundo dos educandos [...]” (p.120).
101
Libâneo (1990, p. 70), por exemplo, afirma que na pedagogia libertadora de Freire “os conteúdos
escolares são extraídos da problematização da prática de vida dos educandos, mas não há nenhuma
preocupação em sistematizá-los, pois é mais importante a vivência da experiência do que a
apropriação de conhecimentos sistematizados. Daí a pedagogia libertadora [...] [acredita] que a
cultura popular é autônoma em si mesma, não havendo necessidade de recorrer à cultura chamada
erudita, mesmo porque a transmissão de conhecimentos se identifica com a ‘educação bancária’ e só
serve à dominação cultural. [...]. As decisões do grupo são soberanas, afastando-se qualquer forma
de direção e controle por parte do professor, adotando, portanto a não diretividade”. Na obra
Pedagogia da esperança (2002), Freire esclarece alguns pontos das críticas a seu pensamento. Mas
nenhuma dessas afirmações de Libâneo corresponde ao pensamento de Freire, mesmo antes dessa
obra
leitura– apressada
como demonstro em minha
e exclusiva argumentação
da Pedagogia – e nem
do oprimido . é possível depreendê-las sequer de uma
141
Esclarecimento 2
É preciso, uma vez mais, desfazer alguns equívocos de interpretação que
tornaram a Teoria Educacional Crítica um alvo de contestaçãopor aquilo que ela
não é. Para que se tenha claro os desafios que a teoria deve enfrentar é
fundamental compreendê-la adequadamente, a fim de se evitar as críticas fáceis
que, infelizmente, se têm multiplicado no debate educacional. Só assim poderemos
compreender em que medida a Teoria Educacional Crítica deve ser revisada e
renovar suas proposições para estar em sintonia com nosso tempo.
Há duas formas de se interpretar as proposições de Giroux citadas acima, que
devemos distinguir para entender corretamente a proposta da Teoria Educacional
Crítica: a) a maneira “salvacionista” e b) a maneira “orgânica”. A primeira é típica de
setores da esquerda que têm de si uma autocompreensão vanguardista e de
intelectuais exclusivamente acadêmicos; ambos caracterizados por uma certa visão
recorrente no contexto da classe média. Os intelectuais exclusivamente acadêmicos
podem, por sua vez, interpretar as proposições da teoria crítica de forma
salvacionista seja para tentar aplicá-las na prática educativa ou para criticá-las e
buscar superá-las por novas elaborações teóricas. A segunda forma de se
compreender as exigências do conhecimento crítico (a orgânica) desenvolve-se
entre lideranças populares e entre grupos de intelectuais e educadores que
descobriram a necessidade de conviver com os setores populares e suas
organizações e de compreenderem a si próprios não como uma casta autônoma na
sociedade, mas como sujeitos inseridos nas contradições de classe e nos conflitos
sociais. Isso possibilitou a percepção de que a tarefa educativa não se define por
uma ação unidirecional que parte do educador para o educando, mas pela
construção do saber e transmissão do conhecimento a partir dos próprios contextos,
culturas e experiências dos dominados.
a) A interpretação salvacionista da tarefa de construir um conhecimento crítico
através da educação pressupõe que alguns grupos, por motivos diversos, mas
geralmente relacionados ao acesso à educação e à cultura mais refinada,
ascenderam a um conhecimento livre de distorções e ideologias, conquista a que a
população mais pobre não teria tido acesso. Por esse motivo, caberia aos membros
progressistas dos grupos instruídos incutir o conhecimento crítico na mente dos
(no caso de educadores). Essa foi primeiramente uma visão sustentada por
militantes de esquerda convencidos de que, conforme diz Lênin (1972), a
102
consciência de classe é trazida “de fora”, por revolucionários de vanguarda. Tal
postura, ainda que possa ter cumprido uma função na história, já foi bastante
criticada, sob o nome de “vanguardismo”, desde o início da década de 80 pelas
reflexões de teóricos da Educação Popular e, mesmo bem antes, pela incorporação
das ideias de Gramsci e Paulo Freire à Teoria Educacional Crítica desde os seus
inícios.103
A interpretação salvacionista também foi reproduzida por intelectuais de
militância exclusivamente acadêmica – uma parte deles para aplicá-la, outra para
criticá-la. Entre os que buscam aplicá-la, a ideia subjacente é a de que o
compromisso com o pensamento emancipatório e o acesso à análise mais rigorosa
da situação social dão-lhes a tarefa de “ensinar” o pensamento crítico àqueles que
estão imersos na ideologia do sistema e que, por essa razão, são incapazes de sair
de sua condição de subjugação. Por outro lado, os que buscamcriticar a teoria
crítica geralmente fazem sua análise a partir da interpretação “salvacionista” e
acreditam estar inaugurando um novo pensamento sobre o que julgam ser os
escombros da teoria crítica. As limitações que alguns autores creem identificar na
Teoria Educacional Crítica são, na verdade, limitações apenas da maneira
salvacionista de se conceber a tarefa educativa crítica.
102
São palavras de Lênin: “Dissemos que os operários não podiam ter consciência social-democrata.
Esta só poderia ser introduzida de fora. A história de todos os países atesta que a classe operária [...]
só está em condições de elaborar uma consciência trade-unionista, ou seja, a convicção de que é
necessário agrupar-se em sindicatos, lutar contra os patrões, reclamar do governo a promulgação
desta ou daquela lei necessária para os operários, etc. Ao contrário, a doutrina do socialismo surgiu
de teorias filosóficas, históricas e econômicas que foram elaboradas por representantes instruídos
das classes possuidoras, pelos intelectuais” (Lênin, 1972, p. 69) “Para levar aos operários
conhecimentos políticos, os social-democratas devem ir a todas as classes da população, devem
enviar a todas as partes destacamento de seu exército“ (Idem, p. 136 e 137). “Para fornecer aos
operários conhecimentos políticos verdadeiros, vivos, que abarquem todos os aspectos, é necessário
que tenhamos ‘homens nossos’ [...] em todas as partes, em todas as camadas sociais, em todas as
posições que permitam conhecer as molas internas de nosso mecanismo estatal” (idem p. 147).
(Edição em castelhano).
103
A ideia de vanguarda iluminada está tão amplamente criticada que abordá-la seria tema
anacrônico e superado, não fosse, como veremos adiante ao comentar algumas afirmações de
Tomaz Tadeu da Silva, o fato de alguns autores a utilizarem para criticar o que supõem ser as
proposições da Teoria Educacional Crítica. Já em 1969, Karl-Otto Apel, em uma conferência de
defesa da ciência como emancipação, falando do papel do pedagogo afirma: “a sociedade não pode
emancipar-se sem a emancipação de todos os indivíduos; e não pode, de maneira alguma, ser
emancipada pela manipulação
todos” (Apel, 2000b, p.165). de uma elite partidária que administre os ‘interesses objetivos’ de
144
104
É possível inclusive levantar-se suspeitas sobre o verdadeiro lado que as teorias que negam a
crítica e a emancipação defendem, mesmo que reivindiquem um caráter de “subversão” e
“transgressão”, palavras recorrentes em alguns autores que reivindicam a designação de “pós-
críticos” (cf. Paraíso, 2004). Nancy Hartsock levanta questões bastante pertinentes a esse respeito:
“Por quê, no exato momento em que tantos de nós que têm sido silenciados começam a reivindicar o
direito de nomear a nós mesmos, de agir como sujeitos e não como objetos da história, o conceito de
sujeito torna-se ‘problemático’? Por quê, precisamente quando estamos formando nossas próprias
teorias sobre o mundo, surge a incerteza sobre se o mundo pode ser adequadamente teorizado? Por
quê, precisamente quando estamos falando sobre as mudanças que queremos, as ideias de
progresso e a possibilidade de organizar de forma ‘significativa’ a sociedade humana tornam-se
suspeitas? E por que apenas agora são feitas críticas à vontade de poder inerente ao esforço para
criar teoria?” (Hartsock, apud Giroux, 1993, p.62).
105
Para Gramsci, os intelectuais não constituem um grupo social autônomo e independente. Ao
contrário, cada grupo social possui a sua própria categoria especializada de intelectuais. “Cada grupo
social, nascendo no terreno srcinário de uma função essencial no mundo da produção econômica,
cria para si, ao mesmo tempo, de um modo orgânico, uma ou mais camadas de intelectuais que lhe
dão homogeneidade e consciência da própria função, não apenas no campo econômico, mas
145
também no social e político” (Gramsci, 1978, p. 3). “O modo de ser do novo intelectual não pode mais
consistir na eloquência [...], mas num imiscuir-se ativamente na vida prática, como construtor,
organizador, ‘persuasor permanente’, já que não apenas orador puro [...]; da técnica-trabalho, eleva-
se à técnica-ciência e à concepção humanista histórica, sem a qual se permanece ‘especialista’ e não
se chega a ‘dirigente’ (especialista mais político)” (idem, p. 8). Por esta concepção, o intelectual crítico
não é um elemento “de fora”, mas um integrante “orgânico” das camadas populares, constituinte de
um mesmo bloco “intelectual-moral”, e que com elas se envolve praticamente . Aqui se exclui a visão
vanguardista ou salvacionista : o “processo de criação dos intelectuais é longo, difícil, cheio de
contradições, de avanços e de recuos, de cisões e agrupamentos. [...] O processo de
desenvolvimento está ligado a uma dialética intelectuais-massa; o estrato dos intelectuais se
desenvolve [...], mas todo progresso para uma nova ‘amplitude’ e complexidade do estrato dos
intelectuais está ligado a um movimento análogo da massa dos simplórios, que se eleva a níveis
superiores de cultura e amplia simultaneamente o seu círculo de influência [...] no estrato dos
intelectuais” (Gramsci, 1981, p. 21 e 22).
146
evitarmos a confusão que tais afirmações podem provocar em quem a conhecer por
106
meio de relatos indiretos e tendenciosamente distorcidos como esse.
A primeira imprecisão é a afirmação de que a crítica “pressupõe sempre aquele
ponto de vista privilegiado a partir do qual se pode ver através da ideologia, de uma
consciência não contaminada por uma visão distorcida e falsa da realidade”. Com
essa afirmação, Silva se coloca claramente entre os intelectuais que interpretam
equivocadamente a educação crítica de maneira salvacionista que, como argumentei
107
acima, não é a que caracteriza a teoria crítica em educação.
Embora essa seja uma crítica recorrente em autores que se identificam com a
“agenda pós”, faltam-lhes as necessárias citações ou indicações de artigos
especializados e livros em que os defensores da Teoria Educacional Crítica
advogam um tal “ponto de vista privilegiado” ou que tenham de si uma
autocompreensão redentora. Nos artigos dos críticos da teoria crítica aqui
referenciados sequer se encontram citações diretas que, mesmo isoladas do
contexto, poderiam sugerir tal interpretação. Ao contrário, porém, podem-se
encontrar facilmente nos textos de teóricos educacionais críticos as constantes
referências, principalmente em Paulo Freire, à ideia basilar de que a educação
crítica é um pensar com os educandos e não por eles e de que os educadores
críticos devem estar constantemente vigilantes a respeito de suas próprias
concepções e que elas mesmas devem modificar-se no diálogo com os educandos –
por isso Freire fala de “educador-educando” e “educando-educador”.
Essa afirmação está feita tão amiúde nas obras de Paulo Freire que não foge
sequer a uma leitura apressada.108 Pode-se ler, por exemplo, na Pedagogia da
esperança:
106
Considerando que as obras de Silva constam de grande parte das bibliografias dos programas de
graduação e pós-graduação em educação das universidades brasileiras, o debate é não só
importante, mas indispensável.
107
Ele não é, porém, o único. Descrições simplistas e distorcidas como as seguintes são comuns em
autores que se auto intitulam pós-críticos: “Na vertente crítica, a segurança está na possibilidade de
uma educação baseada na tomada de consciência da injustiça do sistema capitalista, desmistificando
suas ideologias, além de promover a mudança social. O instrumento de luta social é o conhecimento,
ao qual as classes subalternas têm acesso via educação libertadora, como forma de minimização
social das injustiças” (Andrade, 2003, p. 5). Nenhum teórico crítico em educação defende a ideia de
que é a educação e o conhecimento que transformam a realidade. O conhecimento é um instrumento
que só tem significação quando inserido em processos reais de luta, travados no campo da práxis
social.
108Em Ação cultural para a liberdade e outros escritos (Freire, 1987) os leitores se deparam tão
repetidamente com essa afirmação que é impossível citá-las todas sem correr o risco de tornar o
148
trabalho demasiado maçante. Limitar-me-ei a fazer referências às páginas da oitava edição onde
esse tema aparece de forma mais explícita e inequívoca: 48, 51, 54, 81, 82, 85, 99, 109-
110. Qualquer
constatar umseque
que não sefalando
está der aode
trabalho
nenhumde“ponto
ler, ainda queprivilegiado”.
de vista sejam apenas essas páginas, poderá
149
109
É difícil saber se um equívoco tão evidente e uma crítica sem nenhuma citação direta aos teóricos
contestados (no artigo de Silva nenhuma obra de Freire aparece sequer na bibliografia) é fruto de
problemas na capacidade de compreensão ou um recurso tendencioso de deformar as proposições
que se quer contestar. De qualquer maneira, é um procedimento que cria confusões e dificulta o
debate. Mas não deixa de ser surpreendente o posicionamento de Silva a favor do pós-modernismo
(que depois se tornou uma adesão total e assumida ao discurso da “agenda pós”), dado que apenas
dois anos antes do texto aqui citado esse mesmo autor escrevia: “ é impossível deixar de ver uma
ligação entre o anúncio do triunfo do neoliberalismo e a proclamação do advento do pós-moderno.
Como fica a Sociologia da Educação nessa encruzilhada? É talvez a hora de se reafirmar sua
vocação críticadae,onda
mistificadores por neoliberal
que não, eiluminista, modernista, começando
da onda pós-modernista por p.tentar
” (Silva, 1991, 11). desmanchar os nós
150
aos meios de sobrevivência, senão que também aos meios para a formação
espiritual (discursiva, literária, artística, intelectual, cultural, etc.).
Da mesma forma que a postura salvacionista se inviabiliza por necessitar, de
fato, de um ponto de vista privilegiado que não existe, a proposta de uma educação
apenas como espaço público de confronto de pontos de vista se encontra
inviabilizada porque pressupõe uma situação de igualdade e liberdade também
inexistente no presente. A diferença é que, ao contrário do ponto de vista “puro”
pressuposto pela visão salvacionista, tal situação de igualdade e liberdadepode ser
postulada como possibilidade futura.
Mas se a proposição de Silva for entendida comoum espaço a ser conquistado
no futuro – o que certamente, pelo contexto, não é a sua opinião – precisaríamos de
152
3.4. RECENSÃO
PEb) A educação deve ser concebida como uma prática voltada para a
emancipação do ser humano (caráter emancipatório).
IEb1) A emancipação é compreendida como umprojeto social que transcende
os limites da escola e da universidade. Tal projeto vincula-se aos
movimentos sociais e organizações da sociedade que buscam
transformações profundas na estrutura sócio-econômica e mudanças
culturais no mundo. Seu ponto de partida é o reconhecimento da realidade
de injustiça que nega aos seres humanos a liberdade, a satisfação das
necessidades vitais e a sua realização como sujeito de desejos e de direitos
materiais e espirituais.
IEb2) O trabalho educativo não é “redentor”. O sujeito da emancipação é a
sociedade organizada. A educação se insere no processo mais amplo de
luta pela emancipação – do qual o acesso ao conhecimento é um dos
elementos – sem perder sua especificidade e contribuindo com o que lhe é
específico.
IEb3) A educação para a emancipação não visa a mudança apenas como
PEc) A educação escolar não se limita aoato instrucional, mas está presente
nas atividades mais rotineiras da escola(noção ampliada de currículo).
IEc1) A ação de todos os sujeitos da educação (alunos, professores,
pedagogos e outros profissionais da educação) e todas as atividades
escolares possui dimensão educativa.
IEc2) O caráter crítico da pedagogia não deve limitar-se a transformação dos