Vous êtes sur la page 1sur 52

Arno Wehling

Maria José C. M. Wehling

FORMAÇÃO DO BRASIL COLONIAL

Prefácio de
J o s é Luiz W erneck da Silva

4 a edição
revista e ampliada
2a impressão

A
EDITORA
NOVA
FRONTEIRA
VII.
Sociedade e quadros mentais

A Sociedade colonial foi um cadinho heterogêneo de populações,


com mobilidade e miscigenação tão ou mais intensas que outras
sociedades contemporâneas, como a da América inglesa e as da
América hispânica. Sob a égide de um Estado que impunha deter­
minado modelo social e religioso às comunidades que viviam nos
seus limites legais, mesclaram-se ou apartaram-se portugueses
transplantados, indígenas e africanos de diferentes culturas, cada
qual trazendo consigo suas instituições e seus quadros mentais.
O resultado foi uma sociedade diferente, com traços das socieda­
des originais e elementos novos, num mosaico cuja diversidade era
acentuada pelas dimensões continentais do país.

As origens. Grupos e etnias. Miscigenação


A geração de Sílvio Romero (1 8 5 1 -1 9 1 4 ) e Capistrano de Abreu
(1 8 5 3 -1 9 2 7 ) foi a primeira a valorizar e estudar sistematicamente
as diferentes etnias da formação colonial e os efeitos de sua misci­
genação. Posteriormente, o tema tornar-se-ia assunto preferencial
da antropologia e da etnografia brasileiras.
Sobre os indígenas, é preciso distinguir as classificações de ca­
ráter histórico, que consideram os diferentes grupos e nações como
eram — ou deviam ter sido — no século XVI e as classificações
adotadas pelos cientistas sobre os grupos existentes nos séculos XIX
1 XX. No primeiro caso, admitem-se quatro grandes unidades cul­
turais ou nações: os tupis, os jês, os nuaruaques e os caraíbas.
U elemento branco na colonização foi predominantemente
português, embora tenha havido presença residual de espanhóis,
f>anceses, holandeses e ciganos. Os imigrantes portugueses vinham
geralmente do Norte de Portugal, entre os rios Minho e Douro, de
I isboa e das ilhas do Atlântico, Madeira e Açores. Do Alem-1e)o,
Trás-os-Montes e Algarve, a imigração foi menor. No século XVIII

227
tentou-se, pela primeira vez, uma imigração mais planejada, com a
transferência de casais açorianos para pontos do litoral catarinense
e rio-grandense.
A presença do elemento negro no Brasil confunde-se com a
história da escravidão e com a estrutura comercial montada para
efetivar o tráfico intercontinental. Sabe-se que várias tribos e rei­
nos africanos praticavam a escravidão dos vencidos na guerra,
mas a presença do homem branco transformou essa prática num
empreendimento econômico que promoveu vasta desorganiza­
ção nas sociedades africanas, cujas comunidades foram assaltadas
com freqüência crescente entre os séculos XVI e XIX, à medida que
se expandia a colonização americana. O que os árabes faziam des­
de a Idade Média com suas caravanas (e continuariam fazendo até
o século XX) os europeus fizeram com seus navios, em dimensões
significativamente maiores.
A despeito das discussões dos especialistas, costuma-se classi­
ficar os dois grandes grupos étnicos africanos no Brasil em Sudane­
ses e bantos. Os primeiros, influenciados pela cultura árabe, eram
muitas vezes islamizados. Mais autenticamente africanos, por
manterem sua originalidade cultural, eram os bantos. Aos Suda­
neses pertenciam as tribos iorubas ou nagôs, jejes, minas, haussas,
tapas e bornus. Aos bantos, os angolas, congos ou cabindas e os
benguelas. Os bantos, que na África povoavam o Sul do continen­
te, predominaram no Rio de Janeiro e em Pernambuco; os Suda­
neses, na Bahia, embora antropólogos e historiadores estejam de
acordo em não minimizar, ali, a influência banto.
Quanto à miscigenação, ela ocorreu desde os primeiros mo­
mentos da conquista. Brancos e índios geraram mamelucos em Per­
nambuco, Bahia, Rio de Janeiro e sobretudo São Vicente, no sécu­
lo XVI. No século XVII o mesmo se verificou no Estado do Ma­
ranhão, bem como nas demais capitanias. Não se tratou, apesar de
sua predominância, apenas do branco português (o que um histo
riador norte-americano chamaria de "libido portuguesa à solta"),
pois os cronistas quinhentistas mencionam não raro mestiços de
descendência francesa no Rio de Janeiro e nas capitanias do Norte.
A mistura de brancos e negros, naturalmente mais intensa
com o incremento do tráfico africano nos séculos XVII e w in, gt
rou descendência mais concentrada em Pernambuco, Bahia, Rh'
de Janeiro e Minas Gerais, no período colonial, embora existiss m
mulatos — como mamelucos — em todas as capitanias. Men >r,

228
mas não irrelevante como pensaram alguns autores, foi a mistura
de negros e indígenas, existente, amiúde nas áreas dos quilombos
(Pernambuco, Minas Gerais) e também, no final do século XVIII,
em Mato Grosso, Goiás, Maranhão e Pará.

As diferentes formas de organização social


O conhecimento sobre a organização social dos indígenas é defi­
ciente. Apenas a “nação” dos tupis é mais bem conhecida, ainda
assim indiretamente, através do testemunho dos colonizadores,
em especial jesuítas, o que limita nosso conhecimento sobretudo
a°s séculos XVI e XVII e a certas regiões do Brasil.
A atividade econômica dos índios era a coleta, a caça, a pesca
® a agricultura, sendo comum o seu deslocamento para outras
areas após a colheita. As tribos reuniam certo número de aldeias
rç^e tinham como características, a dar-lhes unidade cultural, rela-
Çoes de parentesco, cultos religiosos (inclusive ancestrais comuns),
Proximidade geográfica e os mesmos inimigos, tribos rivais per-
tencentes a outros grupos de parentesco.
As aldeias tupis foram descritas minuciosamente pelos cronis-
^as século XVI, como Gabriel Soares de Sousa, Gândavo, Jean
1 Léry c Hans Staden: algumas malocas, terreiro central para co­
memorações e reuniões, e uma paliçada (caiçara). Cada maloca
C° mPortava dezenas de pessoas (às vezes, mais de cem), possuindo
° u não divisões internas, com três aberturas, uma em cada extre-
vi'| 3í^e C outra central. Na maloca desenvolvia-se grande parte da
Ção S° C'a* ^os 'ndÍ8cnas>como as refeições, as conversas, a recep-
aos convidados e as relações sexuais. À noite
tcm fogo para se aquentarem, porque dormem em redes no ar e
Ij®0 têm cobertores nem vestido, mas dormem nus marido e mu-
er na mesma rede, cada um com os pés para a cabeça do outro,
e* Ceto os principais que, com o tem muitas mulheres, dormem
sós n a s s u a s r e d e s e d a li q u a n d o q u e r e m se v ã o d e i t a r c o m a que
p a r e c e , s e m se p e c a r e m q u e o s v e i a m . Q u a n d o é h o r a de
COmer se a j u n t a m o s d o r a n c h o (...) e t o d o s c o m e m e m u m al-
R u id a r o u c a b a ç o (... ) s ã o t ã o fié is u n s a o s o u t r o s q u e n a o ha
q u e m t o m e o u b u l a e m c o i s a a l g u m a s e m l i c e n ç a de seu d o n o .
(frei V i c e n t e d o S a l v a d o r , 1 6 2 7 )

Apesar da informação preconceituosa de alguns cronistas so


re a licenciosidade sexual em algumas tribos, sabe-se que existia

229
uma organização familiar fundamentada em laços de parentesco e
ancestrais comuns, o que limitava o intercurso sexual em alguns
casos de consangüinidade e grupos totêmicos rivais. Predominava
a família extensa, com casamentos preferenciais entre primos cru­
zados e avunculares (tio materno-sobrinha), além de uniões com
membros de outras famílias. A poligamia masculina era admiti­
da, mas de fato viável apenas para os “principais”, morubixabas,
guerreiros mais importantes ou feiticeiros.
Apesar da existência de uns poucos bens pessoais, não havia
propriedade privada nem relações jurídicas de características con­
tratuais, o que causou espanto a vários cronistas, que se pergunta­
vam como era possível a vida comunitária nessas condições.
Admitiam os tupis que apenas o pai era o responsável pela
geração, o que acarretava a igualdade de todos os filhos, mesmo
havidos com diversas mulheres. Isso explica a prática do resguar-
do pós-parto pelo homem. Motivo de admiração pelos cronistas
foi, também, a harmonia nas relações familiares e a educação dada
às crianças, sem as pressões a que estavam submetidas na Europa-

Se não querem [aprender algo] não os constrangem, nem os cas­


tigam por erros e crimes que cometam, por mais enormes que
sejam, (frei Vicente do Salvador, 1627)

A organização social dos negros, no Brasil colonial, sofreu 1


retamente os reflexos da condição escrava, mais ainda do que cm
relação aos indígenas. Estes, quando não eram simplesmente es
cravizados, viviam em aldeias nas quais, a despeito da influência
jesuítica e da proximidade do homem branco, ainda lhes pernu
tiam manter traços de sua organização social. Já a maioria da P°
pulação negra não o conseguiu, pela diversidade de grupos» P
quebra da organização familiar, decorrente do próprio tráfico»
pela deliberada intenção dos colonizadores, sobretudo em M
Gerais, de misturar as diferentes etnias por motivo de seguran<*^
Ocorreram, entretanto, ao longo dos séculos colonial»
constituições que não puderam recuperar a primitiva organizay
Assim aconteceu com o casamento e a família escrava já orga
da em bases cristãs ou com a organização social dos quilo
No de Palmares, houve estruturas familiares (apesar de o cro
Rocha Pita falar em “liberdade de costumes” ), escravos e u^ * ca.
da social estratificada que buscava recuperar as condições
nas, lembradas pela tradição oral.

230
O elemento branco, português, reproduziu na Colônia a socie­
dade estamental de onde provinha, adaptando-a às novas condi­
ções. Trouxe seus valores, sua organização jurídica hierarquizada,
suas regras familiares (casamento, filiação, sucessão), patrimoniais
(posse, administração dos bens) e obrigacionais (contratos, execu­
ção de dívidas, responsabilidade civil), tudo temperado por duas
situações contraditórias: de um lado, a sensação de liberdade do
Novo Mundo, onde as peias sociais seriam mais frouxas, a mobili­
dade mais fácil, a presença do Estado mais tênue, sensação resumi­
da na expressão que afirmava não haver pecado além do equador
(ultra Equinotio non peccatur); de outro, a moralidade repressora
do barroco ibérico, bem no espírito do Concílio de Trento, que foi
representada na Colônia pelos visitadores do Santo Ofício e pelos
lesuítas. Na óptica destes, os colonos viviam permanentemente sob
a tentação demoníaca, apartando-se da religião, enriquecendo de
^odo ilícito e cometendo abusos sexuais. Tais críticas, comuns no
seculo XVI, diminuíram nos séculos seguintes, sintomaticamente,
restringindo-se a casos ou regiões circunscritas, atestando a reor­
ganização da vida social em torno da família.
A adaptação do português à nova terra, no século XVI, foi
atribuída por Gilberto Freire à sua “ bicontinentalidade” entre a
fica e a Europa e à influência muçulmana, que o teriam tornado
mais plástico, e conseqüentemente mais apto à miscigenação, do
(lue os povos do Norte da Europa. Fatores menos subjetivos que a
®xplicam, no século XVI, foram o caráter aventureiro da vida em
^ l remoto e desconhecido — que desestimulava a emigração fa-
p * lar a ambição do enriquecimento imediato para o retorno a
°rtugal e, conseqüência destes, a escassez de mulheres.
O padre Manuel da Nóbrega, já decorrido meio século da des-
°berta, pedia mulheres, mesmo de “vida errada”, para os colonos
instituírem família. A realidade era que muitos portugueses,
e antCndo suas características européias ou até semi-aculturados
re os indígenas, povoavam a terra com seus numerosos filhos
nrais, oriundos de uniões passageiras ou estáveis, mas quase
Pa^1^ 6 m^^*p(as- Os d°is casos mais conhecidos, porque partici-
j ratl1 de acontecimentos politicamente relevantes, mas de forma
^Surtia únicos, foram os de João Ramalho, em São Vicente, e Je-
nno dc Albuquerque, o “Adão pernambucano”,
o Confraponto dessa situação foi a permanente preocupação
governo, da Igreja e de algumas elites locais com a “limpeza de

231
sangue”, isto é, a ausência de ascendentes judeus, mouros, afri­
canos ou indígenas, como fórmula estamental de impedir maior
integração na nobreza (ou nas elites locais) e garantir privilégios e
isenções, além de acesso a cargos públicos e títulos honoríficos.
Até fins do século XVII, costumam-se admitir, no grupo diri­
gente de origem portuguesa, dois tipos básicos na sociedade colo­
nial: o homem do planalto paulista, mameluco, sertanista, ban­
deirante, e o homem da baixada litorânea (carioca, baiano e
pernambucano), sedentário, “patriarca agricultor numa socieda­
de mestiça de negros e índios”, no dizer de Capistrano de Abreu.

Estratificação social, grupos a etnias


Muitos são os critérios disponíveis para classificar os estratos so­
ciais na Colônia. Para Gaioso, cronista do Maranhão, as “classes
da população”, no final do século XVIII, eram cinco, definidas a
partir de um critério que misturava naturalidade com etnia: “fi‘
lhos do reino”, descendentes de filhos do reino, “geração mistura­
da”, negros e índios.
O viajante francês do início do século XVIII, Le Gentil de La
Barbinnais, referindo-se à Bahia, viu apenas dignos de nota
isto é, influentes — os senhores de engenho, os comerciantes e os
marítimos.
Documentos de época mencionam a cor como critério classi'
ficador: portugueses, índios e mestiços em São Vicente nos sécu­
los XVI e XVII; brancos, pardos e negros na Bahia dos séculos XVU
e XVIII. O fenômeno era amplo, pois Montesquieu, referindo-sc
às colônias em geral, comentou em Do espirito das leis que
os que vivem nas índias não têm menos arrogância quando con­
sideram que têm o sublime mérito de serem, como dizem, ho­
mens de casta branca.

O mesmo atestou o padre Loreto Couto, em Desagravos do Bradl-


... todo aquele que é branco na cor entende estar fora da esfera
vulgar.

A própria ordem jurídica da sociedade estamental classif»c®^


os indivíduos conforme pertencessem ao clero, nobreza ou i
No Brasil colonial, a despeito de existir apenas uma n° ^ cza [)S
fato, representada pelos senhores de engenho ou os ho ^
bons” das câmaras municipais nas diferentes capitanias,

232
freqüentes as disputas entre os membros das três ordens em torno
de honrarias ou poder, conseqüentes à estratificação. A pressão de
comerciantes para participar das câmaras municipais constitui um
exemplo, bem como a intervenção governamental para forçar cer­
tas irmandades a aceitar a entrada de “oficiais mecânicos”, isto é,
os artífices.
Outros critérios têm sido aventados. A dicotomia proprietá-
rios-não-proprietários revela-se eficaz numa economia agrária,
quando a riqueza patrimonial é basicamente representada pela ter-
ta. Na Colônia, ela traduz bem as relações sociais nas áreas cana­
vieira e pecuarista, com os senhores de engenho e fazendeiros no
topo e o restante da população na base social, com um mínimo
setor intermediário. Mas, mesmo aí, ela não enquadra satisfatoria­
mente o comerciante, vinculado aos circuitos capitalistas interna­
cionais. Também aplica-se precariamente à pobreza vicentina, on­
de a terra era um fator de produção que gerava baixa renda, à área
extrativista do Estado do Maranhão e aos “magnatas” da região
mineradora do século XV III. Nestes quatro casos, a riqueza não
estava associada obrigatoriamente à posse latifundiária de terras.
A clássica antinomia senhor-escravo, considerando-se a im­
portância e a extensão da escravidão na Colônia, é outro critério
Parcialmente eficaz. São abundantes os testemunhos e as queixas
sobre a excessiva dependência ao trabalho escravo:

Aquele cuja muita pobreza não lhe permite ter quem o sirva se
sujeira, antes, a andar muitos anos pelo sertão em busca de
quem o sirva do que a servir a outrem um só dia. (Pais de Sande,
governador de São Vicente, 1692)

Cerca de um século depois, já sob a influência iluminista e das


^°vas condições materiais trazidas pela Revolução Industrial, ho-
ens tão diferentes como o marquês do Lavradio, vice-rei do Bra-
, ° Comerciante inglês John Luccock e José Bonifácio de Andra-
a e Silva insistiam no tema, lastimando tal dependência,
ra ,Mlirctanto» a dicotomia senhor-escravo, mesmo não se ígno-
! 0 ° a extensa escravidão indígena em São Vicente e no Mara-
()| a° ’ na° classifica satisfatoriamente as relações sociais, uma vez
áre *^n° ra 0u m>nimiza o trabalho livre, assalariado ou não, nas
Por*S a^ucare'rai pecuarista e mineradora, bem como nas cidades
to j Uarias- Na verdade, vigorava na sociedade colonial um conjun-
e Segmentos bem mais complexo do que simples bipolandades.

233
No segmento superior da sociedade, quer pela origem, pela
riqueza ou pelas funções que exerciam — o que combina aspectos
da sociedade de ordens com a sociedade de classe — , estavam os
elementos que a dominavam: proprietários rurais, grandes comer­
ciantes do litoral, mineradores enriquecidos e a alta burocracia.
Os proprietários rurais — senhores de engenho, proprietários
de fazendas canavieiras, pecuaristas nordestinos e gaúchos —
eram latifundiários que se autoproclamavam (sobretudo os pri­
meiros) a “nobreza da terra”, cujo símbolo, embora se aplique
preferencialmente ao senhor de engenho, foi a casa-grande. Vi­
viam da agricultura de exportação ou da pecuária, cujos couros
também se destinavam ao mercado externo.
A família, patriarcal, baseava-se de fato e de direito (as Orde­
nações o confirmavam) na autoridade suprema do seu chefe e no
direito de primogenitura. A independência e o orgulho dos senho­
res de engenho foram impiedosamente satirizados por Gregório de
Matos Guerra, no final do século XVII, que lhes lembrava a origem
pobre:
Alarve sem razão, bruto sem fé
Sem mais lei que a do gosto, e quando erra
De Fauno se tornou em Abaeté
Não sei como acabou, nem cm que guerra;
Só sei que deste Adão de Massapé
Uns fidalgos procedem desta terra.

Os grandes comerciantes do litoral, embora sem constituir


uma burguesia nativa, pois quase sempre eram “meros corniS'
sários” (como os chamou o marquês do Lavradio), ou represei*
tantes comerciais da metrópole, formavam um grupo com nquC
za mobiliária geralmente adquirida no comércio atacadista e na
intermediação das vendas dos produtos rurais. Discriminados Pe
la aristocracia da terra, pela legislação e pela administração, Que
os olhavam como atravessadores e novos-ricos, eram quase sen*
pre impedidos de exercer cargos públicos, inclusive nas cama
municipais.
Apesar de bem-sucedidos na Guerra dos Mascates, no M
do século XVIII, foi somente com as medida» modernizadoras ^
governo pombalino que os comerciantes adquiriram, em Por£U8
com o no Brasil, um status nobilitante. A empáfia do comerei3
português na Bahia e sobretudo sua rápida ascensão econon*
não passaram sem registro por Gregório de Matos Guerra:

234
E sentando no meu cais
Descalço, roto e despido
Sem trazer mais cabedal
Que piolho e assobios.

No século XVIII surgiu novo grupo social, os abastados mine-


radores de ouro e diamantes, em parte responsáveis pela edifica­
ção das cidades barrocas do interior mineiro. Dedicados exclusi­
vamente à mineração nas primeiras décadas, diversificaram seus
investimentos ao longo do século XVIII, com o declínio de sua ati­
vidade principal, estendendo-os à agricultura e à pecuária.
A alta burocracia colonial completava o quadro das elites lo-
cais. Era composta de administradores — governadores, secre­
tários, juízes, ouvidores, desembargadores, militares graduados,
técnicos fazendários e autoridades eclesiásticas, como bispos e ar­
cebispos — que freqüentemente exerciam cargos, ao longo de sua
vida profissional, em vários locais do Império português, além da
Própria metrópole. Ser nascido em Portugal era uma característica
comum nos séculos XVI e XVII, mas de modo algum obrigatória.
Assim, no século XVIII e mesmo antes, diversos membros dessa cú-
Pola administrativa, que chegaram inclusive a exercer cargos na ad­
ministração metropolitana, eram nascidos no Brasil. Mais do que a
naturalidade portuguesa, exigia-se do administrador a “limpeza de
*angue”, comprovada até certo número de gerações, e estudos em
ortugal, geralmente o curso jurídico da Universidade de Coimbra.
Os setores intermediários da sociedade não constituíam pro-
Pttamente uma classe média, como ocorreu nos países de econo­
mia industrial, mas um conjunto heterogêneo de indivíduos que
Cscapavam ao enquadramento nos seus dois pólos. Na região açu-
Careira, estavam representados pelos lavradores de cana livre me-
' ’ abastados, alguns de cana cativa e os assalariados do engenho.
as regiões pecuaristas, eram os antigos vaqueiros que haviam
mealhado gado suficiente para “montar fazenda” e iniciar sua
r°pria criação. Em São Vicente, antes das minas, era o pequeno
r°prietário que, em meio à pobreza local, possuía alguns recursos
ia^CnCtrava, as vczcs» na própria aristocracia, frequentando a ígre-
C°m lugar marcado e a câmara municipal. Por todo o litoral
rtenciam a esta camada artesãos de várias especialidades e pe-
4 en°s comcrCiantcs.
\a ^P°ca das minas o setor ampliou-se, com a abertura de no-
s °P°rtunidades. Multiplicaram-se os ofícios, o pequeno comer­

235
cio c as atividades dos tropeiros, de modo que, pelo final do sécu­
lo, seu papel já era importante em cidades como Recife, Salvador,
Rio de Janeiro, Vila Rica, Mariana e São Paulo.
Na base social estavam os homens livres pobres (brancos,
mamelucos, mulatos, libertos), os indígenas (tribos afastadas da
sociedade ou aldeias agregadas às vilas) e os escravos (negros e
índios).
Os homens livres pobres, brancos ou mestiços, trabalhavam
como vaqueiros nas áreas pecuaristas do São Francisco, do Nor­
deste e do Sul; praticavam a pequena (e incerta) lavoura de sub­
sistência ao longo do litoral; exerciam atividades artesanais como
ferreiros, latoeiros, marceneiros, carpinteiros, calafates; ou ainda
participavam das atividades extrativas, como os droguistas do ser­
tão, na Amazônia, os pescadores e os caçadores de baleias nas ar­
mações do litoral. Poderiam, ainda, localizar-se numa área de se-
milegalidade, conforme a região e as circunstâncias: prostitutas,
vadios, capangas, além dos marginais propriamente ditos.
O governo colonial procurou ocupar esta mão-de-obra fre­
quentemente ociosa, canalizando-a para as tropas auxiliares (os
“ regimentos de pardos” ), o emprego em obras públicas (como
ocorreu no século XVIII no Rio de Janeiro e Salvador) e o estabelc'
cimento de povoações.
Os libertos eram basicamente ex-escravos que conseguiam 3
liberdade de forma legal, fosse através da alforria dada pelo pr0'
prietário (em caso de testamentos, por exemplo), fosse pela con>'
pra da própria liberdade. Esta última operação ocorreu com m3lS
frequência na região mineradora, na segunda metade do secu
lo XVIII. Consistia na manumissão de escravos que, por si Pr0
prios ou com o apoio de uma irmandade, conseguiam indenizar
senhor. Vindos da África ou nascidos no Brasil, em geral conse
guiam sua liberdade em torno dos quarenta anos, casando-se poS
teriormente.
da
Os escravos, indígenas ou negros, formavam a larga base
if
pirâmide social. A repetida afirmação do jesuíta Antonil, de <1
eram os pés e mãos dos senhores de engenho, poderia ser esten
da às demais atividades profissionais do Brasil c à própn3 c \
brasileira, onde sempre existiu a escravidão doméstica. Ale«11
significado econômico, o escravo tinha importância social:
cedo o prestígio dos senhores foi medido pelo número de esct3
possuídos, o que levou os críticos iluministas a lastimar que

23f.
quando os estrangeiros pobres venham estabelecer-se no país,
em pouco tempo, como mostra a experiência, deixam de traba­
lhar na terra com seus próprios braços e logo que podem ter dois
ou três escravos, entregam-se à vadiação e desleixo, pelos capri­
chos de um falso pundonor. (José Bonifácio, 1825)

O desprestígio do trabalho manual e a visão do escravo como


um objeto foram conseqüências da escravidão em geral, que se re­
petiram na Colônia. Mesmo do ponto de vista legal o escravo era
considerado objeto, e não sujeito, de direito. Não possuía direitos
individuais e era incapaz de contrair dívidas. Para os efeitos pe-
n*is, entretanto, a legislação e a jurisprudência admitiam que, cri­
minoso ou vítima, poderia atuar como sujeito de direito, apesar de
extstirem várias restrições processuais à sua presença em juízo.
A atitude ambígua da lei com relação ao escravo decorria, em
grande parte, das restrições à escravidão, manifestadas pela Igreja
e Pelo direito canônico, que determinavam, no caso de dúvida, a
Prevalência do favor da liberdade, pois a escravidão era considera-
sempre circunstancial e não natural. Da mesma forma, determi-
n3va-se que o filho de senhor com escrava deveria ser livre, por ser
contrário ao direito natural ter o pai o próprio filho como escravo.
e 0 primeiro aspecto não teve maiores conseqüências sociais, o
Segundo foi corrente na Colônia.

Mobilidade social, morgadios e formaçSo das elites.


Os setores marginalizados
^ mobilidade social na Colônia, pelas próprias características do
^ sistema econômico, era mais fácil do que em Portugal, onde a
^ciedade cra estratificada há centenas de anos. Aliás, este foi um
l s a t i v o s da aventura colonial, não só para portugueses como
ra os demais povos europeus.
nir ^ 3S re8 '° cs pobres como São Vicente ou o Estado do Mara-
pa a° ’ nas <Juais a riqueza não chegou a propiciar uma estratiti-
Q^a° ma*s acentuada, as fronteiras entre os diferentes segmentos

D *a*S nao cram rígidas — exceto para o escravo. Em Pernam-
i p^° c ^ahia, porém, a ascensão social era mais restrita, pois as
ra rtun'dades econômicas já estavam monopolizadas pelos se-
o ° res cngenho e demais proprietários rurais. Uma ascensao
S(., | a de João Fernandes Vieira — mulato pobre que chegou a
1 de engenho — foi excepcional, embora tenham existido ca

237
sos menos espetaculares de imigrantes portugueses que, estabeleci­
dos inicialmente como mercadores, compraram terras e montaram
engenhos. Na área pecuarista, entretanto, a conjugação de inte­
resses dos primitivos sesmeiros em aumentar seus arrendamentos
com os do Estado, desejoso de consolidar a expansão territorial,
permitiu o estabelecimento de antigos vaqueiros como arrendatá­
rios e, depois, proprietários.
No litoral, a ascensão do mascate estava associada às condi­
ções conjunturais do comércio, além da sua própria habilidade, o
mesmo podendo ser dito do tropeiro do Sul no século XVIII. Am­
bos representaram formas alternativas de mobilidade social, nos
quadros de uma sociedade agrícola.
Foi, entretanto, na região das minas que ocorreu no sécu­
lo XVIII a mobilidade mais intensa, tanto pela atividade minera-
dora do ouro e do diamante em si, como pelos demais empreendi­
mentos econômicos indiretamente estimulados em torno e nas ci­
dades de Vila Rica, Mariana, São João d’El Rei, Vila Boa, Vila
Bela, Serro e Tijuco. Aí, como nas cidades portuárias, é difícil pre"
cisar quando um artesão bem-sucedido deixava de ser “hom«11
livre pobre” para tornar-se elemento do setor intermediário, com
direito a uma propriedade urbana (ou mesmo uma chácara) c 3
guns escravos, de uso doméstico ou destinados a auxiliá-lo cm sua
profissão. Ou ainda quando, em conjuntura desfavorável, ou p°r
motivos pessoais, pelo contrário, perdia seu patrimônio e voltava
à condição anterior.
Instituição tipicamente estamental para garantir a estratu»-^
ção social foi o “morgadio”, de origem portuguesa, aplicado^
Brasil sobretudo nas propriedades dos senhores de engenho.
in>
seava-se no direito da primogenitura, pelo qual apenas o PriIT1
filho herdaria o patrimônio paterno, forma de garantir a indivl
lidade da propriedade. Essa instituição, ao lado da impenhor< ^
lidade dos bens dos senhores de engenho, várias vezes rca^ '^ * ca
pelo governo português, garantiu a estabilidade social e econ ^
dos senhores de engenho. Determinou, também, o destino ^
mais filhos: as mulheres recebiam o dote, o segundo filho 0 ^
bacharelava-se em leis em Coimbra, habilitando-se à atividau
rocrática no Estado, e o terceiro ingressava numa ordem rc ^
com ou sem vocação. A solução garantia amparo econômico ^
tus de nobreza, pois os doutores eram “capazes de entrar n
gos nobres” (Vilas Boas, 1727), enquanto o religioso

238
entra em uma Religião das menos austeras, veste, come, canta,
conversa, não o penhoram pela décima, nem o prendem para a
fronteira (...) enfim é um religioso de muito boa vida. (padre An­
tônio Vieira, Sermão de S. Pedro Nolasco)

Aliás, além da propriedade rural, o serviço público num cargo


elevado e uma dignidade eclesiástica eram os principais elementos
de nobilitação a que se podia aspirar na Colônia, sendo ou não
descendente de senhor de engenho.
O morgadio foi modificado em 1770 pelo marquês de Pom­
bal, que aboliu aqueles inferiores a duzentos mil-réis, por consi­
derá-los contrários à justiça e ao crescimento da população. Mas,
ao mesmo tempo que restringia sua generalização, Pombal permi­
tiu que os comerciantes também os instituíssem, terminando com
a secular discriminação aos negociantes portugueses e procurando
favorecer o surgimento de mais uma aristocracia, além das de san­
gue e de serviço ao Estado, sendo esta nova de origem plutocrá-
tlca» provinda da riqueza mobiliária.
Os setores dirigentes da sociedade — proprietários, alta buro-
Cracia, comerciantes, alto clero — não eram, como às vezes se in­
terpreta, estanques. Além da presença, na burocracia e no clero
c°l°niais, em especial no século XVI11, de descendentes de proprie-
terios rurais, houve uma bem-consolidada rede de interesses, quase
ternprc sedimentada no parentesco através de casamentos e com-
Padrios, ligando proprietários rurais à alta burocracia portuguesa
c°lonial. A tendência para a prática de uniões endogâmicas entre
as famílias de proprietários rurais do Nordeste colonial era bastan­
te conhecida, de modo que, no século XVI11, um grande número
eias, nas diversas capitanias, era aparentada. Estudos recentes
^ stram, porém, que isto se verificou também entre proprietários
ur°cratas, como ocorreu com juízes, ouvidores e desembarga-
Cm csPccial no Tribunal da Relação da Bahia, no período de
u ® a 1750, ou com a permissão para que comerciantes baianos
gtessassem na Misericórdia (século XVW).
Assim, a idéia do clã rural e da família patriarcal do senhor de
c|'8cnho, que relegavam a um plano secundário e isolado comer-
sécMCS C burocratas, deve ser restrita cronologicamente, de fins o
ul° XVI a princípios do XVIII. Se essas características não desa-
teijTnram dc todo no sécul° xvm» clas scm dúvida foram mml*
3 as Pda entrada em cena dos novos agentes sociais.
° s grupos marginalizados no Brasil colonial, que variavam de

239
local e de época, compreendiam todos aqueles que, por algum mo­
tivo, não se adaptavam aos quadros da sociedade estamental, a
despeito de sua relativa frouxidão nos trópicos. Sua origem pode­
ria estar vinculada a situações sociais, como era o caso, nas áreas
da grande propriedade rural, daquele que perdia o apoio do pa­
triarca e era excluído de sua clientela, ou ainda, tanto na vila como
no interior, dos filhos naturais. Aos assim excluídos restava o cri­
me, a vadiagem, a mendicância e, para as mulheres, a prostituição.
De outro tipo era a marginalização de judeus e ciganos. For­
malmente proibidos de seguir sua religião e costumes, obrigados a
conversão ao cristianismo, sempre suspeitos de “criptojudaísmo
(prática oculta dos rituais judaicos), os cristãos-novos, até meados
do século XVin, foram hostilizados com relativa freqüência. Além
de indiciados nas duas visitações do Santo Ofício (1591 e 1618),
muitos deles eram acusados, por desafetos, com ou sem motivo, de
práticas judaizantes, ofensas à Igreja católica e até de pactos de­
moníacos, no que um historiador chamou de “diabolização dos
judeus” no período colonial.
Estes fatos estavam ligados não apenas à religiosidade barro­
ca, ao mesmo tempo mística, etnocêntrica e preconceituosa, mas
também a fatores mais concretos, como a forte presença de cris­
tãos-novos no comércio da Bahia e Pernambuco, assinalada antes,
durante e após as invasões holandesas. Apesar de tentativas ante
riores, como a proposta do padre Antônio Vieira, em meados u
século XVII, foi somente com o marquês de Pombal, em 1773, Que
se proibiu a distinção entre cristãos-velhos e cristãos-novos. 1
ano seguinte foi abolida a declaração de infâmia em caso de apoS
tasia (abandono da fé), o que na prática permitia aos judeus e seus
descendentes o acesso a cargos públicos e honrarias.
Quanto aos ciganos, até meados do século XVIII o governo
português ora determinava sua deportação para o Brasil, ora Pr01
bia sua entrada na Colônia, mas sempre demonstrando em rel
a eles uma atitude hostil. Também com o marquês de P o m b a ^
sapareceram as restrições a esta etnia, permitindo-se sua en tra
no Brasil. Consta, dessa época, uma autorização para o assen
mento de ciganos como agricultores na Bahia. r
Observe-se, entretanto, que em todo o período colonial c<^
decarater
tmuaram as restrições aos judeus e ciganos, quer as
ciai, quer as de caráter oficial, pois tais grupos eram t
temidos — como diferentes e ameaçadores, numa comu

240
tremamente etnocêntrica e que não podia conviver facilmente e de
modo tolerante com valores múltiplos e múltiplas verdades. A reli­
gião, os costumes e a língua continuavam os elementos básicos da
identidade cultural. Religiões, costumes e línguas diferentes eram
aceitos com dificuldade tanto pelo homem comum como pelo ad­
ministrador público.

Cl&s e rixas
A existência de famílias extensas — clãs, para Oliveira Viana, fa­
mílias patriarcais para Gilberto Freire — , com dezenas e até cente­
nas de descendentes, colaterais, agregados e escravos, foi uma rea-
•dade social — embora não a única, conforme estudos posteriores
Vem demonstrando — em todo o período colonial. Exercendo um
Poder inconteste nos seus domínios, apenas enfraquecido se e
Quando o Estado conseguia estender sua autoridade até a região, o
que freqüentemente se deu apenas no século XVIII, o chefe do clã
£mha sua força contrabalançada somente pela existência de outros
c as semelhantes. Assim, a luta entre famílias foi uma constante
nos séculos coloniais, pelos mais variados — e às vezes fúteis —
motivos.
Na capitania de São Vicente, entre 1600 e 1675, houve oito
essas pequenas guerras locais, a mais importante delas sendo a
°?. res contra os Camargos, que acabou envolvida em aspectos
P° íticos maiores em 1640, quando ocorreu a Restauração portu­
guesa.
Os conflitos, aliás, por várias vezes extrapolavam o caráter de
f * * Pr>vada rural. Houve arregimentação de forças a partir de
° 1 ariedade e inimizade familiar na composição das alianças
°rridas durante a Guerra dos Mascates, em Pernambuco. O mes-
010 se deu nos diversos choques entre os moradores de São Paulo e
f S taubateanos até o início do século XVIII, o que acabou por favo-
r a vitória dos emboabas, nas minas.
rj 01 1697, um conflito opôs paulistas e santistas. O propneta-
int ^au^'sta Timóteo Correia prendeu um desafeto, acusando-o de
lQCrcePtar a renda da alfândega de Santos. O acusado, porém, era
àa1*1^3^ 6 6 Proteg'do de um rico proprietário e comerciante de
cie t0S’ ^ '° g ° Pimo do Rego, que o soltou da cadeia. Foi o sufi-
'0 h tC ^3ra ^ue ° ofendido senhor paulista marchasse do planalto
re a vila de Santos, à frente de cem brancos e mamelucos e

241
quinhentos índios. O conflito, que acabou numa composição, de­
monstrou não só a força dos interesses privados e a capacidade de
guerrear em torno deles, como a oposição entre sertanistas do pla­
nalto e comerciantes do litoral, antecipando, em escala menor, o
que ocorreria pouco mais tarde no Recife.
Em outras capitanias repetiram-se lutas familiares, até o século
XIX. Montes contra Feitosas, Cunhas contra Patacas, Militões con­
tra Guerreiros, Mouras contra Canguçus demonstravam que, para
além de circunstâncias pessoais e causas específicas, os choques
eram típicos de uma determinada forma de organização social.

Família: casamento e divórcio, concubinato e prostltulçio


A escassez de mulheres brancas na colônia parece ter sido geral até
meados do século XVIII. Os jesuítas, no século XVI, a lastimavam»
pois isto favorecia o concubinato e as uniões múltiplas, chegan­
do Manuel da Nóbrega a pedir o envio subsidiado de mulheres,
“mesmo de mau proceder”. O governo português, nessa época,
patrocinou a vinda para o Brasil de órfãs, com a finalidade de
casá-las na terra. A preocupação dos jesuítas e do governo rendeu
frutos, pois Anchieta se refere, apenas para o ano de 1584, a 45
casamentos realizados na Bahia, o que não significa, evidentemen­
te, que todos tenham sido com mulheres brancas.
Nos séculos XVII e XVIII, pelo menos até 1750, o problem3
continuou èm quase todas as capitanias, sempre motivado pelo 3
to de o imigrante português, em geral, encarar a Colônia cotn°
local da realização de lucros e não de fixação definitiva. Em Mm
Gerais, pelo menos até a década de 1730, a escassez de mulhe
em idade de casar, de origem portuguesa, provocava o surgimen
de filas de pretendentes, que o pai da noiva tinha dificuldade c
selecionar. Na Bahia e em Pernambuco, por sua vez, de finS
século XVII em. diante, o costume de enviar uma ou mais filhas p
ra o convento agravava a situação, sendo freqüentemente cri i
do pelos administradores. _ .yj|
A organização do casamento estava prevista na legislaça0
e eclesiástica portuguesa e, para a colônia, foi reiterada, n° *ni |,
do século XVIII, nas Constituições Primeiras do Arcebispao0 ^
Bahia. De um ponto de vista exclusivamente religioso, o casam
to era encarado como um sacramento no qual os próprios 1,1,1 ^
eram os ministros. A sociedade e o Estado, porém, inter

242
abertamente na relação. Em primeiro lugar, as normas relativas ao
casamento, como todas as outras, variavam de acordo com a or­
dem à qual pertenciam os nubentes. No Brasil, existiam também
adaptações regionais, que o faziam diferente da Metrópole em al­
guns aspectos. Além disso, desde o século XVI — mas sobretudo
com o processo de centralização acentuado no século XVni — , a
Igreja buscava impor a intermediação de sacçrdotes nos casamen­
t o . e o Estado legislava no sentido de aumentar a autoridade do
Pai> em especial da nobreza, procurando evitar o individualismo
dos noivos.
Este, aliás, limitava-se não só no caso de menores de 25 anos,
Çue precisavam autorização paterna para casar, como para o ho-
•nem que servia nas tropas regulares e nas milícias, dependente do
c°nsentimento de seu chefe militar. Como, pelo menos teorica-
•Jtcnte, todos os homens livres nelas serviam, isto na prática ten-
Cu a fortalecer o poder paterno, pois não foram raros os casos de
aPdos de pais interessados em impedir o casamento de seus filhos.
Conflitos entre as duas instituições sobre o casamento não
°tam incomuns: dentro da concepção mercantilista de que um
stado rico e poderoso tem por base uma grande população, as
aut°ridades governamentais, em geral, procuravam incentivar os
Casamentos, visando à procriação. A Igreja local, por seu lado,
j^ha outros interesses, como estimular a expansão do clero e co-
rar em dinheiro sua participação nos casamentos. Foram fre­
mentes as queixas de parte a parte, sobretudo no século XVIII,
Uando se acentuou a política regalista de submissão da Igreja
0s desígnios estatais.
. . Cs impedimentos matrimoniais eram aqueles definidos pelas
n d ^an° n*casi como alguns graus de parentesco por consangui-
sè * f 6 a frn‘dade, err° essencial de pessoa, coação, incapacidade
<o^ a » raPto e ausência de pároco e testemunhas. Os primeiros,
c'ç retudo, foram obstáculos difíceis de superar no meio rural, on-
c'a ?Jam ma*s freqüentes as uniões endogâmicas. O padre Manuel
c °b rega, no século XVI, já defendia maior flexibilidade na con-
cend^ dispensas, como forma de legitimar as uniões e sua des-
Cl l^Cnc*a> procedimento reiterado por vários religiosos ate o se-
d ’ Mas somente em 1790 o papa Pio VI autorizou a
conc6? 31^ * 0 das decisões, ao permitir que os bispos brasileiros
* CSSem as dispensas.
Uanto aos escravos, as leis determinavam que poderiam ca­

243
sar-sc, sem que os senhores pudessem impedi-los. Na prática, entre­
tanto, sobretudo no meio rural, era freqüente que os senhores obs­
tassem esses casamentos. Já nas vilas e cidades, à medida que se
consolidou a colonização, tornaram-se menos raros. Em São Paulo,
na paróquia da Sé, entre 1769 e 1822, foram de escravos quase
30% dos 3.549 casamentos realizados.
A dissolução dos casamentos era admitida pela Igreja em cir­
cunstâncias previstas na legislação eclesiástica: entrada de um dos
cônjuges na vida religiosa, heresia comprovada de um deles, aban­
dono do lar, adultério e maus-tratos. Também em São Paulo, entre
1700 e 1822, tramitaram 248 processos de divórcio, predominan­
do, para as mulheres, os motivos de maus-tratos, abandono e adul­
tério dos maridos.
A doutrina vigente sobre o casamento e a família, como tantos
outros aspectos da vida colonial, deita raízes nas concepções me­
dievais, sendo bastante diferente do retrato da família patriarcal
definido por Gilberto Freire, onde conviviam o matrimônio mono-
gâmico do senhor e o seu concubinato com escravas. Essa doutrina
se fundamentava no direito canônico e nas concepções de São Pau­
lo e Santo Agostinho sobre a mulher e o casamento, reafirmadas
pelo Concílio de Trento no século XVI. Obras como Espelhos de
casados (João de Barros, 1540), Casamento perfeito (Diogo P-
Andrada, 1630) e Carta de guia de casados (Francisco Manuel de
Melo, 1651) refletiam tais concepções: sobriedade e equilíbrio no
falar, vestir, comer, beber e no sexo, este último entendido com°
um “mal menor", restrito à procriação, por causa da inferiorioa ^
da mulher, baseada na definição clássica de Aristóteles na Pohtta*’
A “ordem natural" desejada por Deus (e pelos teóricos do a
solutismo, interessados numa população extensa) era a do cas'
mento. Fora dela, reinavam o pecado e a devassidão. M e s m o
solteiro tardio não era bem-visto:

Se algum homem passa da idade e não casa logo, é mui tachado


e assinalado entre os outros. (João de Barros, 1540)

A família tornou-se altamente protegida pelo Estado.


bre as relações familiares, as sucessões e a atividade comero-
favoreciam. No caso da herança, regulada pelas Ordenações <- -
posteriores, em especial as "leis testam entárias" da P j^
pombalina, era patente a preocupação com a estabilidade rai‘“ !jva
A nobreza permitia-se a instituição do morgado, que imo '1 “

244
parte substancial dos bens como patrimônio indivisível, transmiti­
do por primogenitura.
A lei pombalina de 9 de setembro de 1769 ampliou a possibi­
lidade da instituição de morgados para os servidores do Estado,
como militares e magistrados, e ainda àqueles dedicados ao co­
mércio e agricultura (na prática, os grandes comerciantes e fazen­
deiros), o que ainda assim alargava notavelmente o instituto para
todos aqueles que possuíam bens de importância.
Aos demais segmentos sociais e aos filhos segundos dos seto-
res privilegiados aplicava-se a lei sucessória comum, que determi­
nava a divisão do patrimônio entre todos os herdeiros, na ordem de
escendentes, ascendentes e colaterais. O testador tinha direito a
dispor livremente de apenas 1/3 de seus bens (a “terça”), legando-
0s a quem desejasse.
Existiriam, no Brasil colonial, entretanto, vários tipos de or­
ganização familiar. A família patriarcal ou clânica, mais conheci-
a Pel° s estudos de Gilberto Freire e Oliveira Viana, compreendia,
m do tronco familiar e da parentela, os agregados, numa rede
c°m plexa de parentesco e lealdades pessoais que, no latifúndio,
^nvolvia centenas de pessoas. Não foi, porém, o único modelo de
mflia, especialmente no século xvui. Formas mais simples de
m has nucleares existiram por todo o Brasil, com pai-mãe-filhos
’ 6,11Seral, alguns outros parentes.
t . la b o r a tenham existido diferenças regionais, as atitudes men-
ls não parecem ter variado da família patriarcal às unidades me-
la? r^S: Pátrio poder exacerbado, isolamento das mulheres, ínvio-
, / ‘dade do lar, o que fez um historiador comentar que a família
hih SC rcsum‘a na fórmula: “pai soturno, mulher submissa,
aterrados" (Capistrano de Abreu).
es Padrão nuclear existiu também para a família escrava, que
n'i i ^S. rcccntcs tnostram não ter sido tão escassa como se supu-
cra * indícios dela em áreas rurais, onde a concentração de es-
Cra maior. Nas áreas urbanas mineiras ela era rara, pois
d0m° s Proprietários tinham apenas um ou dois escravos. Ai, pre-
«« 0 / nou a família de ex-escravos (libertos). Em São Paulo, como
*crvou a propósito dos casamentos, ele não era desprezível,
loç. otc foi instituição típica dessa sociedade de estamentos nos
s cm que predominou a influência patriarcal. No século XVII,

245
90% das famílias proprietárias na capitania de São Vicente dota­
vam suas filhas com terras, gado e escravos, às vezes em maior
quantidade que a herança dos herdeiros masculinos. Com o dote, a
família da noiva tinha como objetivo não só apoiar materialmente
o novo casal, como mantê-lo perto de si (doação da casa) ou deter­
minar sua atividade econômica (terras e escravos).
Em São Vicente, conforme demonstrado em pesquisas, o dote
consistia nos séculos XV II e XV III em meios de produção colocados
à disposição do casal, sendo secundários os bens de consumo. Já
no século X IX (com início no anterior) definiu-se movimento in­
verso, com predomínio dos bens de consumo. A evolução do dote
retrata bem a decadência do patriarcalismo, o desenvolvimento da
economia mercantil, o individualismo e a transformação da famí'
lia de unidade produtora (e auto-suficiente) em consumidora.
A generalização do concubinato nos séculos coloniais levou o
historiador Charles Boxer a comentar sobre a existência de um
duplo padrão sexual para o homem e a mulher. Embora muitas
vezes criticado no púlpito das igrejas, o adultério dos maridos,
quase institucionalizado nas famílias patriarcais, tinha como con­
trapartida a reclusão muçulmana” das mulheres. A consequência
era uma multidão de filhos naturais, muitas vezes postos à mat*
gem da sociedade como vadios ou bandidos. Mesmo em outras
camadas sociais e entre o clero, o concubinato e os filhos adulte-
rinos — apesar do estigma, inclusive legal, que carregavam — I°l
generalizado. Trata-se, é claro, de uma caracterização geral da Co-
lônia, que não elimina a necessidade de se levarem em conta dite
rentes épocas e regiões.
A frequência do concubinato não deve ser associada apenas a
existência da escravidão e ao caráter muitas vezes aventureiro
vida colonial. Mesmo em áreas mais consolidadas, como nas vil |S
e cidades do século XV III, era frequente o adiamento ou a nao
realização de casamentos por dificuldades econômicas circunst111
ciais (como a crise do final do século); pelos elevados preços ■<’
brados pela Igreja; e pelo encaminhamento das mulheres a ^ i
religiosa, por pais excessivamente preocupados com a salvaç“
das próprias almas ou com o valor do dote.
Outro fator de estímulo ao amancebamento e ao concubin*
foi a oposição de senhores ao casamento de seus escravos
quantidade de religiosos sem vocação. As Constituições Pritnelt^
do Arcebispado da Bahia, no início do século X V III, d é te rm in â t3

246
uma gradação das penalidades impostas aos clérigos amanceba­
dos: admoestação em segredo, corte de 1/3 dos proventos e benefí­
cios, suspensão por um ano, suspensão definitiva de proventos e
benefícios e, finalmente, proibição do exercício do sacerdócio.
A moral social, apesar de sua base católica e tridentina, parece
ter oscilado em função do número de mulheres brancas disponí-
veis para o casamento. Em períodos de escassez, como no sécu-
!° ^VI, houve maior tolerância em relação aos “maus costumes”,
inclusive concubinato. Já em épocas de maior contingente femini-
no>como no século XVIII, a tendência foi para maior rigidez nos
costumes, como verificaram pesquisas sobre o tema em São Paulo.
°bre a prostituição há registros desde o século XVI. Usualmente,
as prostitutas eram negras e mulatas, escravas ou livres, que dispu-
n am de seus corpos quer para si próprias, quer, no caso das pri-
t^ciras, para seus senhores (ou senhoras). Um irado despacho do
re* Pedro II, em 1700, lastimava e proibia a prostituição de escra-
P °r suas senhoras baianas, providência que não deve ter surti-
0 muito efeito, pois o fato voltou a ser constatado alguns anos
" lais tafde pelo viajante francês La Barbinnais. Sessenta anos an-
es>a Câmara da Bahia denunciava:

sta cidade estava mais dissoluta no trajo das escravas com as


m*utas galas que lhes davam os seus amigos, que chegavam a
tanto extremo que por elas muitos casados deixavam suas mu-
cres e a fazenda perecia.

1711 é o comentário muito conhecido de Antonil:


Porras mulatas desinquietas de perdição manifesta; porque o di-
n e,r°> que dão para se livrarem, raras vezes sai de outras minas
l1' dos seus mesmos corpos, com repetidos pecados; e depois de
° rras continuam a ser minas de muitos.

-'*ntf>*VCrSas k*s suntuar*as foram editadas, em várias épocas, vi-


p, ltj ° s°bretudo à ostentação das prostitutas. Mas sua própria re-
n'„ a° ’ a^m do testemunho dos contemporâneos, evidencia que
a situCS°~VCram ° Pr°blema. Na região mineradora do século XVIII
déca(ja^ao n* ° era diferente das áreas portuárias. Nas primeiras
de estraÍ’ ? Uando a soc*edade ainda não chegara a nenhum padrao
a igfc at* *CaÇão mais estável, a prostituição campeava. Sabe-se que
Ja
cotv. e_Nossa Senhora do Rosário, de Vila Rica, foi construída
cabeça'Ja<'? cs de Prostitutas que iam das minas até o pórtico com a
P° vilhada de ouro em pó e a lavavam naquele local. Mes-

247
mo com a sociedade mais organizada, episódios como o de Chica
da Silva, que passou de prostituta a grande senhora, não eram iso­
lados. Existiam, ainda, as casas de prostituição, ou “casas de al-
couce”, em geral freqüentadas por homens livres pobres ou por es­
cravos, tanto nos núcleos mineradores como nos litorâneos. Eram,
aliás, inúteis as queixas contra os “saraus e galhofas” promovidos.
A prostituição colonial ganhou, assim, nítido contorno social;
associando-se nela a pobreza que oprimia a maior parte da popu­
lação livre e a condição escrava, que reduzia o ser humano a obje­
to não apenas de trabalho, mas de prazer.

Sentimentos religiosos e crenças

Os sentimentos religiosos e as crenças foram resultados, no perío­


do colonial, da conjugação de três universos culturais inteiramente
distintos: o branco, preponderantemente português e católico; o
indígena, predominantemente tupi; e o negro, composto por Suda­
neses e bantos. O sincretismo religioso que ocorreu ao longo dos
três séculos coloniais foi a contrapartida espiritual da miscigen3"
ção que ocorreu no plano social.
Entretanto, também no plano religioso havia um padrão do­
minante, o do catolicismo português, imposto tanto por uma moti
vação genuinamente espiritual inerente ao próprio cristianismo "
doutrina messiânica da salvação pela conversão dos infiéis, ac»r
rada no Portugal medieval pela hostilidade a mouros e judeus ^^
como pela necessidade política da uniformização religiosa 1
consciências. Mesmo na Europa ocidental, muito mais homogen^
culturalmente, foi preciso esperar a “crise da consciência europeia
e o Iluminismo para que se admitisse a liberdade religiosa e a to ^
rância à pluralidade. No Brasil colonial não seria diferente: to
sistematicamente reprimidos, com maior ou menor sucesso cont‘,r'
ii ti-
me a época e a região, o sincretismo luso-indígena, como as s
1lou-
dades da Bahia no século XVI e os cultos de origem africana,
ve, além disso, intolerância à presença de protestantes e judeus.
O catolicismo colonial baseou-se teologicamente na do ^
reafirmada pelo Concílio de Trento, aplicada no Brasil sol'rt n.
pelos jesuítas. A Inquisição também esteve eventualmente i“ j ,
te. Reafirmou-se oficialmente a tradição medieval da Igreja» - ^
mais evidenciada no plano das práticas religiosas da populaÇ

248
origem portuguesa. Esta trouxe para o Brasil sua religiosidade
mística, suas devoções e suas superstições que, muitas vezes, fun­
diram-se às práticas assemelhadas das comunidades indígenas e
negras. Havia, aliás, um fosso cultural entre aquela religiosidade
e as sutilezas teológicas e filosóficas dos doutores da Igreja, con­
forme a interpretação do Concílio de Trento, razão pela qual as
determinações, embora sucessivamente reiteradas pelas autori­
dades eclesiásticas, foram muito imperfeitamente aplicadas no
Brasil, em especial pelo clero secular. As críticas a este, aliás, eram
frequentes, reclamando-se de seu desregramento (sacerdotes casa­
dos, investidas sexuais sobre fiéis) e do excesso de interesse mate­
rial (participação em intrigas políticas, manipulação de bens e ser­
viços eclesiásticos).
Foi generalizado na Europa de fins da Idade Média, e muito
explorado pela Reforma, o fenômeno de uma catolicidade popu­
lar, mística, devota e supersticiosa, distinta do sofisticado catoli­
cismo oficial praticado pelo alto clero das dioceses e universida­
des. O mesmo ocorreu no Brasil colonial, aonde acrescentaram-se
os elementos culturais de indígenas e negros. Fator comum às con­
cepções católicas (especialmente nas suas versões populares), indí­
genas e africanas foi a idéia de um universo integrado, no qual os
fenômenos aparentes dependeriam de forças sobrenaturais que os
c'ingiriam. Nada mais oposto, portanto, do que a concepção re­
nascentista, que ainda levaria dois séculos para amadurecer na
própria Europa, de universos físicos, biológicos, religiosos, filosó-
icos, separados e independentes, cada qual compreensível por ins­
trumentos e métodos específicos.
A concepção integrada do universo explica, assim, a presença
do milagre nos textos dos cronistas portugueses, como também ex-
1 Üca a floresta povoada de magia, tal como era vista pelas comuni­
dades indígenas e negras. Os fenômenos, em primeira ou em ulti­
ma analise, sempre podem e devem ser explicados a partir de seus
vínculos sobrenaturais, porque estariam encadeados numa grande
ord iv. cósmica muito imperfeitamente intuída pelos homens.
A semelhança de concepções não vai além, pois o catolicismo
— '•orno o judaísmo, o islamismo e as outras religiões que lhe sao
aparentadas — estabeleceu uma hierarquia de diversos graus que
culminava em Deus, ou seja, numa idéia monoteísta da divindade.
Já no caso das religiões indígenas e africanas, este traço mexiste
o» é secundário em relação às práticas mágicas que estabelecem as

249
relações entre/os homens e as diferentes entidades metafísicas
(“espíritos da floresta”, “espíritos dos antepassados”, “espíritos
das águas”).
As atitudes sincréticas e supersticiosas revelavam-se em mui­
tos aspectos da vida social. A divindade africana das águas, por
exemplo, tinha sua correspondente na “moura encantada” da tra­
dição portuguesa, deusa das águas que, vaidosa, vivia junto as
fontes, penteando-se. A cor vermelha era considerada eficiente
contra os maus espíritos nas três culturas: muitas tribos usavam
tinturas desta cor para espantar os demônios da floresta; os portu­
gueses colocavam fitas desta cor no pescoço dos animais e usavam
preferencialmente telhas vermelhas em suas casas; a tradição afri­
cana também a considerava profilática contra os maus espíritos,
razão pela qual nos maracatus e reisados o rei e a rainha vestiam-
se com trajes vermelhos.
A concepção indígena de que a floresta era povoada por seres
mágicos combinava-se com o imaginário medieval que os portu­
gueses traziam de sua terra, com o imaginário africano e com 0
catolicismo. Assim, em documentos missionários, há frequentes
referências associando os espíritos da floresta com o demônio o
tradição cristã, bem como expedientes híbridos para domina-ios-
bala de cera benta para matar o caipora (se o atinge no umbigo)e
o laço do rosário usado para aprisionar o saci são dois exempl°s-
É possível, assim, figurar a religiosidade colonial como semprC
presente na vida dos homens, fornecendo explicações e s°)uí°f*
para todos os momentos de sua existência. Era, em seu topo 0
ciai”, barroca, mística, muitas vezes soturna e angustiada, dom*
nada pela obsessão com o pecado e o castigo eterno. Na pra
social, porém, era mesclada e sincrética. Além dos princípio*
religião oficial, incorporava elementos mágicos e supersticiosos ^
origem não apenas indígena ou africana, mas também me
portuguesa, como o culto nas encruzilhadas. i;.
A despeito dos esforços da Igreja e do governo, as práticas
giosas indígenas e africanas, ou aquelas sincréticas, foram cXten )f
mente praticadas. A defesa da ortodoxia religiosa aparece, ^
exemplo, numa obra como Compêndio narrativo do pereg
América, reeditada várias vezes a partir de 1728, cujas pre ^
ções moralizantes visavam à orientação da “gente comum, , o)
humilde, nos seus problemas da vida cotidiana” (Afrânio C °u^ esta
e que, para os padrões coloniais, foi extensamente conhecida-

250
obra, o autor, Nuno Marques Pereira, dirigindo-se a um proprietá­
rio baiano, o repreende por tolerar que seus escravos praticassem o
calundu, dança ritual africana entremeada de adivinhações:

Sabei Senhor (lhe disse eu) que, além de teres pecado mortal­
mente no primeiro mandamento da lei de Deus, estais excomun­
gado, e todos os vossos escravos, por convires e consentires em
semelhantes superstições contra o mesmo mandamento.

Na época colonial, a vida religiosa do brasileiro girava em tor-


fio da paróquia, até porque os registros civis faziam-se ali. Na igre-
Ia paroquial o indivíduo era batizado, assistia aos ofícios religio-
s°s, se casava, batizava os filhos e netos; depois, era sepultado no
Ccmitério anexo. Havia, porém, outras vinculações religiosas dos
c°l°nos, muitas vezes a partir de devoções que traziam de Portu-
Assim ocorreu com as ordens religiosas, como os beneditinos,
•Estalados no Rio de Janeiro, Olinda e Salvador desde o final do
século XVI, os franciscanos, no Rio de Janeiro, Recife e São Luís,
as clarissas e ursulinas na Bahia e os carmelitas no Rio de Janeiro,
Cu)a entrada no Brasil deveu-se, entre outros fatores, a pedidos dos
Pfóprios colonos, devotos de São Bento, Santa Clara, São Francis-
Co ou Santo Antônio.
As manifestações religiosas nos séculos coloniais refletiam o
Ue um historiador francês, referindo-se à religiosidade de seu
r^1S> c^amou de “piedade barroca”. Na Colônia, ela se caracte-
" ‘i por intensos sinais exteriores de devoção e pela incorpora-
ja^hIC- C^cmcntos locais, como a representação de anjos, nas igre-
e- a'3nas’ através de imagens de meninos índios. Apesar deste
admite-se num plano geral que o catolicismo, no litoral,
infi' " ma*or influência negra nos séculos XVII e XVIII, enquanto a
•htef nCla 'n<^8cna tcr*a recuado do litoral (no século XVI) para o
0ndr,0r nos séculos seguintes, exceto no Maranhão e no Para,
Sua influência foi mais duradoura.
,lluita ®randiosidade visual do barroco, combinada com o caráter
Ho -S VCZCs aventureiro, individualista e indisciplinado do colo-
&ehos° Cst*mulava uma religiosidade profunda. Visitantes estran-
r°sárS CSpantavam- « de ver homens munidos simultaneamente de
lude ° S C P*st°laS' La Barbinnais, em 1716, chocou-se com a ati-
ho Cn ‘ucc°rosa de noviças e religiosas numa representação teatral
'lnPed,iVCnt0 ^ csterro, em Salvador. Este fato, entretanto, nao
11 à mesma época, morresse no claustro, em odor de

251
liberada quando a irmandade considerava cumpridas as disposi­
ções testamentárias.
O comportamento religioso ultrapassava as fronteiras so­
ciais, revelando-se comum a senhores e escravos no momento da
morte. A preocupação com a celebração de missas para libertar as
almas do purgatório fornece inúmeros exemplos em todas as ca­
madas. Um, entre muitos, é de 1782: a liberta Antônia Rodrigues
Corrêa, mãe de uma freira em Portugal, determinou que se rezas­
sem por sua alma cem missas de 320 réis no Rio de Janeiro e cem
de 120 réis em Portugal, o que custou muito mais caro do que seu
túmulo.

Sodabilidad« • fastas
Como toda sociabilidade, a colonial manifestava-se nas relações
das pessoas entre si e intergrupos, cristalizando-se em momentos
importantes: visitas, batizados, casamentos, enterros, festas reli­
giosas e profanas. Ela era naturalmente marcada pelas condiçocS
de época e lugar: a mentalidade religiosa dominante e o predoffli*
nio das tradições portuguesas, apesar da influente presença indígc"
na e africana, eram traços comuns que os três séculos de coloniza'
ção e as diferenças regionais foram diversificando.
Os primeiros cronistas impressionaram-se com a riqueza e
fausto do grupo social mais rico da Colônia, o dos senhores >■‘
engenho, até pelo menos as primeiras décadas do século XVD- FcS
tas ocorriam durante vários dias, com abundância de comidas ^
bebidas, música, danças e torneios eqüestres, as “cayalhadas .
comentador mais ferino, porém, criticou o exagero dessas festas»
nas quais os senhores se vestiam como se estivessem na corte
Madri, pois o luxo e a ostentação eram exteriores, destinados a
estranhos, contrastando com a pobreza da vida quotidiana. As1
vasões holandesas interromperam essas festas, que seriam reto
das mais tarde, mas já no clima de dificuldades financeiras d°
nhores de engenho, provocado pela crise do açúcar. )f.
Além das comemorações familiares, as reuniões e festaS ^ ^
riam também nas datas dos padroeiros, de São João e prin^F ^
mente no chamado “ciclo de Natal". Nas reuniões, após o la^ (
era uma constante o jogo de canas, com ou sem apostas e^ t(0
nheiro, fato referido pelos cronistas do século XVI ao XlX-
divertimento comum nessas ocasiões eram as adivinhações, clT1

254
ral, segundo os especialistas, de origem portuguesa, entroncadas
cm antigas ramificações européias e árabes. Não obstante, diver­
sos autores coloniais referem-se ao entusiasmo que despertavam
nos escravos e libertos, quando se encontravam no final do dia e
trabalho e aos domingos.
Os ritmos de origem africana, aliás, eram uma constante em
várias regiões coloniais, às vezes provocando registros mal-humo­
rados daqueles menos acostumados, como o do grande escritor
seiscentista D. Francisco Manuel de Melo, exilado na Bahia entre
1655 e 1658, e quê escreveu contra eles um soneto intitulado a
tia idéia estando na América e perturbado no estudo por bailes e
bárbaros”. Ou o de Nuno Marques Pereira (1728):

... não pude dormir toda a noite... (com o) ... estrondo dos ata­
baques, pandeiros, canzás, botijas e castanhetas, com tão hor
rendos alaridos, que se me representou a confusão do inferno.

Dado o caráter da cultura e da sociedade da época, é i íci


distinguir entre festas religiosas e profanas, sendo mais acerta o
Supor que a questão não se colocava na diferença entre am as e
sitn no grau de influencia profana sobre as festas religiosas, s
Jais importantes festas do período colonial eram as do cic o o
^atal”, um conjunto de celebrações, reuniões, representações tea
rais e procissões que se estendiam de meados de dezembro a e
laneiro, dia de Reis, e que, geralmente, eram realizadas nas paro
^Ulas ou nas igrejas das irmandades. Nesse ciclo havia muitas co
C o r a ç õ e s e atividades. Uma delas, as bpinhas, envolviam can-
l0s e louvações diante do presépio de Natal, quando tam m se
az‘*m representações com pastores sobre a chegada dos eis a
?0s a Belém. Há registros de lapinhas nas comemorações natalinas
3*anas desde o século XVI.
Mais ambiciosos eram os pastoris, autos maiores em que a re
ig entaÇão teatral evoluía para a sátira social ou po ítica.
m ! 0 bispo de Olinda, Azeredo Coutinho, protestou contra
ül Unidade
uanidade das pastorinhas durante a representaçau.
representação.
1
lambem ________
parte do
J
ciclo
*
natalino
_______ a c
I rheeatu
eram as cheganças, autos
pulares com música e danças, de origem metropolitana, mas
Dn ° ram proibidas em Portugal pelo rei dom João V, em «
a Scrcm suas danças consideradas muito lascivas: ancas con
na pcn«rando-se, coxas contra coxas”. No Brasil, conslst’ra
cbeganças dos marujos” (também chamadas fandang

255
marujada) c “cheganças de mouros”. Podiam ser episódios isola­
dos ou em série, representando lutas entre cristãos e mouros, via­
gens marítimas, abordagens de navios e batismo de infiéis.
Após a noite de Natal, os preparativos continuavam para a
noite de “ano-bom” e para o dia de Reis, em geral muito anima­
dos, tanto nas cidades e vilas como no interior. Vizinhos e paren­
tes visitavam-se, faziam refeições juntos e trocavam presentes, in­
clusive escravos. O ciclo encerrava-se com as comemorações da
véspera e dia de Reis. Na Bahia, comemorava-se a véspera de Reis
com o bumba-meu-boi, auto tipicamente brasileiro, segundo os
folcloristas, diferente de representações congêneres portuguesas e
africanas. Os autos fundiam cantos dos pastoris, toadas populares
e louvações, destacando aspectos cômicos e satíricos. Seus reis,
príncipes e outros personagens demonstram o sincretismo com a
congada, de origem africana. Os reisados do dia de Reis consis­
tiam em grupos populares que dançavam e cantavam nas ruas,
apresentando características semelhantes àquela.
Congos ou congadas eram autos populares, de origem africa­
na, mas já diferenciados, que ocorriam não apenas no ciclo de Na
tal, mas em outras datas comemorativas, geralmente de devoçoes
religiosas dos negros. Comum a sudaneses e bantos, a congada tt
nha como elementos principais a coroação do rei do Congo, Pres
titos, embaixadas e danças guerreiras. Sabe-se de sua existência na
festa de N.S. do Rosário, no Recife, em 1674, e em outros locais
nos séculos XVII e XVIII. Nos desfiles havia imagens e homenagenS
aos santos protetores dos negros, cuja devoção se concentrava
quatro: N.S. do Rosário, São Benedito, Santa Efigênia e Santo
tônio Preto. Além das representações, as congadas con^ V.
também com bailes e banquetes, com a presença de autorida
portuguesas e dos senhores de escravos, que, aliás, freqüentem
lhes emprestavam jóias e adereços. Em 1748, no Rio de Ja°
celebrou-se com luxo e aparato a coroação de um “rei do Co 8
numa grande congada. Em 1760, nas festas oficiais, em Salv .
por motivo do casamento da futura rainha dona Maria I, f°*a ^
incorporada uma congada. Torna-se, assim, evidente o papei V ^
tico atribuído pelas autoridades governamentais a essa festa»
reunia basicamente escravos e ex-escravos. ainha»
Variantes da congada foram o maracatu, que possuía .s
estandarte, corte, músicos e embaixada, lembrando as ernoa ^
verdadeiras dos reinos e tribos africanas, e o cucutnbi, cu)°

25f.
central era o da luta entre o rei negro e o rei índio. Há registro de
cucumbis na festa baiana de 1760 e nas comemorações natalinas
do século XVIII cm vários locais.
Fora do ciclo natalino eram ainda importantes festas a do Di­
vino e a de. São João. A primeira tinha como base religiosa os mila­
gres atribuídos ao Espírito Santo. Na capitania do Rio de Janeiro,
°s preparativos começavam meses antes, com grupos organizados
nas paróquias e irmandades, que percorriam o interior com estan­
dartes c bandeiras, recolhendo donativos para a festa. Esses gru-
Pos faziam a “folia do Divino” , com cantos e música animada por
Pandeiros, viola, tambores e pratos. Uma das trovas, recolhida por
Melo Morais Filho no século XIX, sem que se possa precisar sua
0rigem, dizia:

O Divino entra contente


Nas casas mais pobrezinhas
Toda a esmola ele recebe:
Frangos, perus e galinhas.
O Divino é muito rico
Tem brasões e tem riqueza
Mas quer fazer sua festa
Com esmolas da pobreza.

Os nove dias que precediam a festa decorriam animados, cul-


^•nando com a missa, os leilões, corridas a cavalo de bandos mas-
Catados pelas ruas e a distribuição aos pobres de alimentos e pre-
entes, Há referências de festas do Divino na segunda metade do
ecul° XVIII, incorporando as cavalhadas e os torneios entre mou-
r° s e cristãos.
A vcspera de São João era festa comemorada tanto no meio
^ ano como nas fazendas, assumindo entretanto caráter menos
t'a l^IOSo <luc a festa do Divino. Ela ocorria à noite, com musica,
n<*as» Pratos típicos, queima de fogos e muitas superstições, que
jjaaSe s^mpre tinham como mote prever o futuro (plantio de alho,
C|a d água ao sereno, copo d‘água com gema e clara de ovo).
fPst Pcsar da escassez de fontes históricas, pode-se afirmar que as
^ as ~~ mesclando influências portuguesas, africanas e indígenas
Co|^°nst‘tu,ram um importante meio de expressão da mentalidade
*Pai " t ’ Cm toc^os os segmentos sociais e não apenas naqueles
tr„. |3 astados e que, por isso mesmo, têm maior número de regis-
s '«erários.

257
Essas festas tinham diversas funções: cristalizavam antigas
atitudes mentais e sentimentos, expressos na música, na dança,
nas trovas e nas representações teatrais; buscavam, no caso das
festas religiosas, estimular a proteção de santos e entidades mági­
cas e de Deus para cada um e sua família, exorcizando os demô­
nios e as influências nefastas; quebravam a rotina de trabalho e o
marasmo da vida colonial, geralmente organizada em comunida­
des semi-isoladas, ligadas umas às outras, no litoral pelos navios e
no interior pelos tropeiros; valorizavam a hierarquia social e o
luxo, com a profusão de “reis”, “rainhas”, “príncipes” e “prince­
sas”, seja de modelo europeu, seja de modelo africano, coadunan­
do-se bem com uma sociedade cujos valores, apesar de toda a fle­
xibilidade colonial, eram estamentais; também irmanavam as
diferentes categorias sociais em momentos lúdicos, acentuando
solidariedades e esmaecendo conflitos; e, finalmente, estas festas
eram claramente utilizadas pelo poder público, pelo menos no sé­
culo XVIII em Salvador, Rio de Janeiro e Vila Rica, como instru­
mento para aquietar escravos e libertos, permitindo não só suas
manifestações, como incorporando-os à simbologia do poder, co­
mo ocorreu com a mencionada presença da congada — entre ou- i
tros exemplos — nas comemorações do casamento da princesa,
em 1760.
Habitação rural e urbana

No campo ou nas cidades, a habitação sofreu os mesmos condic*0


namentos globais da colonização: influência do padrão português,
de origem medieval, adaptação às condições do novo meio e uso
do trabalho escravo. A o longo do tempo, ela também se transf°r
mou: no século XVI, por exemplo, era freqüente o uso de cercas
paliçadas em torno das casas-grandes para prevenir os ataques i[1
dígenas, o que não mais existia no século XVIII.
Os primeiros estabelecimentos construídos nas sesmarias era
rudimentares torres em pedra e cal ou barro sopapado, cercãd^
pelas paliçadas, para garantir a defesa. Mais tarde, ainda no secu
XVI, construíram-se as primeiras casas-grandes pernambucanas
baianas. Nessas, mesclaram-se elementos arquitetônicos portug
ses e árabes, subordinados às condições locais: o calor e as chU’
fortes exigiam varandas de influência alentejana, muxarabis, Ia
las com adufas, de influência granadina, e telhados resistentes.

258
A casa-grande baiana e pernambucana passou em geral por
três fases: no século XVI, era uma construção resistente e ventilada,
contornada por varandas e cercada de paliçadas. No sécu o XVII,
assumiu ares menos rústicos e afidalgou-se, tornando-se um so ar
com escadaria central e pátio interno, de que são exemplos a casa
grande do engenho Megaípe, em Pernambuco, e a célebre asa a
Torre da família de Garcia d’Ávila, na Bahia. Persistiu a preocupa
Ção com a defesa e acentuou-se o caráter hierárquico, o secu o
XVIii, assumiu definitivamente “ares palacianos , como diz um au
tor, com telhados exagerados, grandes janelas e escadarias, portas
lavradas e elementos novos como a mansarda e o alpendre, risto
cratizou-se de vez, perdendo as preocupações com a defesa.
A construção principal, entretanto, era apenas um os e e
mentos do que Gilberto Freire chamou de “complexo da casa-
grande”. Este era um universo social em miniatura, muitas vezes
auto-suficiente, reunindo a família extensa, agregados, assa aria
dos do engenho e escravos (dos canaviais, do engenho e ornes 1
c°s). Além dos elementos principais — casa-grande, senza a, cana
v‘al c engenho — , ele compreendia capela, pomar, horta, o ícinas,
E rrais, açudes, estrebaria e cemitério.
De menores recursos eram as fazendas de gado, com a casa
Principal, os alojamentos de vaqueiros e escravos, as oficinas, o
cais para lavoura de subsistência, currais e estábulos.
Vilas e cidades também reproduziam os modelos metropo ita
n°s, adaptados às circunstâncias locais. Elas cumpriam unçoe
P°líticas e administrativas, como sede das autoridades portug
Sas ou municipais, econômicas, entrepostos comerciais ou so »
servindo de local onde proprietários rurais se reuniam n
na,s de semana para comparecer aos ofícios religiosos e est ^ ^
Viajantes portugueses e estrangeiros narram que as vi a
'-« c s portuárias tinham normalmente caráter de ver a ei
,0r*as, como as que existiam nos domínios da Á rica e
,u)as, depósitos, mercado de escravos, tudo em gera con\
arulho, confusão e sujeira. Já as vilas e cidades que congr
;'(S Populações rurais, fervilhantes nos finais de semana, vivia
nas nos dias comuns. om0
.. No Império português as cidades mais importan ’
Por,o, Luanda, M acau, Rio de Janeiro, Salvador OLnda
ram c°nstruídas em terrenos acidentados, nos quais
8C°grafia delimitou a hierarquia social: nas partes a tas,
cios públicos, igrejas principais e conventos, além de residências
das pessoas abastadas; nas partes baixas, as habitações mais mo­
destas e o comércio, com seus armazéns, trapiches, lojas, oficinas
e mercado.
Nas áreas urbanas, as casas — térreas ou assobradadas com
um ou mais andares — construíam-se em lotes com frente em ge­
ral não superior a dez metros, com grande profundidade, sobre o
alinhamento da rua e ocupando as laterais. Apesar das normas
para a construção, inexistiam concepções de planejamento urba­
no para arruamentos e ventilação ou mesmo técnicas topográfi­
cas, o que provocava um crescimento empírico de vilas e cidades,
de acordo com as necessidades individuais e do momento. O via­
jante La Barbinnais, no início do século XVIII, criticou o indivi­
dualismo nas construções de Salvador, pelos resultados anárqui­
cos que provocava.
Ainda no século XVIII, no entanto, as atitudes racionalizado-
ras do despotismo esclarecido estenderam-se às normas de cons­
trução, que se tornaram mais rígidas, buscando impor característi­
cas tipicamente portuguesas às vilas e cidades. Fixaram-se critérios
para definir a altura dos prédios, o alinhamento, o número e o
tamanho de portas e janelas, além de serem proibidas as Uurupe_
mas” (cercas de taquara) ou outros materiais que vedavam as
construções, prejudicando a estética e a ventilação. No final do
século XVIII o cientista Alexandre Rodrigues Ferreira as criticou
em Belém e, pela mesma época, o marquês do Lavradio mandou
destruí-las no Rio de Janeiro.
A rua não preexistia às construções, mas era uma consequen
cia delas, constituindo um elo entre os prédios. Quase sempre eS
treitas, muitas vezes sem pavimentação e sem calçadas, as rua*
acompanhavam as construções e com elas terminavam, não exlS
tindo arruamento sem prédios laterais — exceto nas estradas-
A pequena extensão dos núcleos urbanos coloniais, com
dos em alguns quarteirões, fazia com que não existissem |af ^
públicos ou casas ajardinadas: as habitações eram tipicamente
banas ou tipicamente rurais. Foi preciso esperar a segunda mcta
do século XVIII para que o Rio de Janeiro, capital da Colônia,^
vesse um jardim público; e só no século XIX surgiram casas u
nas em terrenos ajardinados.
Ainda no século XVIII, em várias capitanias nas áreas i r‘
mas às cidades, desenvolveu-se um outro tipo de habitaçao.

260
mantinha características rurais mas se beneficiava da proximida­
de urbana: a chácara ou sítio, com lotes em torno de um hectare.
Além de permitir maior conforto do que as casas urbanas, a chá-
cara facilitava a instalação de pomares e hortas e a criação de
animais para alimentação, o que, num país voltado para o comér-
c,° exterior e permanentemente às voltas com dificuldades de
abastecimento, foi solução que se prolongaria para além da época
c°lonial.
O material utilizado nas construções variou não só de acordo
c°m a época e o local, mas com as condições econômicas dos cons­
trutores. Nas casas pobres utilizavam-se paredes de pau-a-pique
com cobertura de sape ou telhas de barro. Nas demais utilizavam-
Se barro, pedra e cal, com telhas de barro. Preferiram-se os
c ados de duas águas, com queda para o quintal e a rua. O uso
c calhas para as águas pluviais foi raro.
Problema permanente era o abastecimento de água às casas.
as fazendas utilizavam-se os riachos próximos, o mesmo ocor­
rendo inicialmente em cidades e vilas. O crescimento destas fez
C° m Que se construíssem aquedutos e canalizações que levavam a
P^ua até fontes ou chafarizes, onde era recolhida pela população.
,SScj * r viç°, bem como o de esvaziar os vasos de esgoto, chama-
tigres”, era feito por escravos domésticos e escravos de ga-
°' algumas cidades, pelo menos desde o século XVIII existiu
^Profissão de “aguadeiro”, homem livre ou, mais freqüeritemen-
’ c*^ravo de ganho que carregava os potes de barro até as casas.
„r , ° canipo, a hierarquia social evidenciava-se com as casas-
pie^ CS C Sc^cs fazcnda, de um lado, e as senzalas, casas sim-
mo Palhoças, de outro; nas cidades e vilas, com os sobrados,
a, ra Ia de comerciantes, funcionários ou proprietários rurais, e
t^rrcas> de tcrra batida, habitação das pessoas pobres ou
r Or Ia° as' Residir nos sobrados significava ocupar o andar supe­
r a {jC° m os aPosentos. O andar térreo era destinado ao dormito-
a JS cscravos e à estrebaria. Se o proprietário fosse comercian-
Ia c seu depósito ficavam no andar inferior.
t ', r ara Sc ter uma idéia da proporção aproximada entre casas
vCr,ia- s°brados numa cidade colonial, um levantamento no go-
dc j a ° v'cc‘ tei Luís de Vasconcelos e Sousa (1779-1790) no Rio
si;is unClro m°strou a existência de 5.827 casas nas quatro fregue-
Um anrdanas- Destas, 3.606 eram térreas, 1.921 eram sobra Jos dc
ar e 300 sobrados possuíam dois andares.

26)
Os inventários da época colonial e as descrições de cronistas e
viajantes coincidem em apontar quase sempre a pobreza do interior
das casas, só amenizada no século XVIII. A mobília, de origem por­
tuguesa ou brasileira, consistia em camas, mesas, cadeiras e arcas.
Mas as arcas grandes com gavetões eram sinal de riqueza. Mesmo
as cadeiras na sala de visitas só apareceram com mais freqüência
em fins do século XVII. A rede e a esteira, por sua vez, eam os obje­
tos usadps pela maioria pobre da população — mas nãò apenas por
ela — , tanto no litoral como no sertão, fazendo com que cama e
mesa fossem incorporadas tardiamente ao mobiliário em regiões
como o Pará, o interior nordestino e o planalto paulista.
Em São Vicente sabemos que, durante muito tempo, a família
sentou-se em esteiras, sem mesa, com ausência ou escassez dc ta­
lheres. A louça usada era de barro, estanho ou prata, reservando-
se para ocasiões de maior requinte o uso de peças de porcelana
oriental. Na Bahia, sociedade mais opulenta, a decoração nas pa'
redes muitas vezes se limitava a pratos toscos de madeira ou cobre-
Os viajantes europeus que visitaram o Rio de Janeiro já como ca­
pital do Brasil tinham impressão de despojamento, inclusive em
prédios públicos, como o palácio dos vice-reis.
Em geral, poder-se-ia dizer que, salvo em casos isolados o
riqueza e preocupação estética, o bom mobiliário e a boa decora­
ção eram exceções. A explicação não está apenas no baixo poder
aquisitivo da maioria da população, pois o fenômeno ocorria tam
bém em casas mais opulentas. Além disso, residências quc nfl0
possuíam camas ou arcas tinham serviços de porcelana das Indi
e peças de porcelana chinesa com valor igual às de prata, frutos
um rendoso comércio com o rio da Prata, Peru, Chile e as Pra<*^e
portuguesas do Oriente. Em São Vicente, em 1600, uma duzia
pratos chineses era considerada um bom dote. A razão mais p
sível para o fato é a escassez de profissionais especializados, c
marceneiros, carpinteiros, entalhadores, ferreiros e sçrralheiros>
fraqueza de sua organização corporativa e a ausência de um
cado interno estruturado. ,<t
A concentração das atividades econômicas na agricultura ^^
exportação, sobretudo nos séculos XVI e XVII, tornou inviav
rida u
mercado interno com divisão de trabalho e complementa St"
funções. Esta explicação é reforçada pelas cidades mineiras do
culo XVIII. Lá a demanda de objetos interiores e de decoraça0

262
igrejas, irmandades e residências fez florescer um extenso grupo de
artífices em várias especialidades.

Vestuário e alimentação
O vestuário refletia hábitos e condições econômicas da população,
nos estratos superiores, roupas masculinas e femininas c ga a, pa
ta uso em ocasiões especiais (o “vestido” de igreja, a roupa e
>greja” ), e roupas comuns, despojadas, de uso quotidiano; basica­
mente a camisa e as ceroulas para os homens e a saia sobre a cam*
sola para as mulheres. Era freqüente o registro dos vestidos de gala
cm testamento, com valor equivalente a uma casa urbana simp es
°u um escravo da Guiné. O luxo dessas camadas da sociedade era
complementado pela influência oriental, com o uso de pa anquins,
sedas, chapéus de sol, leques chineses e colchas da índia, numa
demonstração de como eram intensas as relações do Brasi com as
°utras partes do Império português. _
A maioria da população pobre vestia camisolões e ca ças gros
sciras de algodão, tecido aliás pouco estimado em algumas regiões
até pelos escravos. Quanto a estes, viviam com pouquíssimas pe
Ças de roupa, “seminus", na descrição de cronistas e viajantes.
Nas áreas pecuaristas, o couro influenciava não apenas o ves
tuário mas todo o restante do quotidiano, na descrição c assica
( apistrano de Abreu:

De couro era a porta das cabanas, o rude leito aplica o a


duro e mais tarde a cama para os partos; de couro to as
das, a borracha para carregar água, o mocó ou a orje Pa
comida, a maca para guardar roupa, a mochila para
valo, a peia para prendê-lo em viagem... as roupas e
mato.
Quanto aos indígenas, a Igreja — em especial os Íc*
Prc°cupou-se com sua nudez, impondo-lhes o uso e ro
Multados não foram bons, com inadaptação e sujeira.
,es calvinistas franceses no Rio de Janeiro tam em na m
“cni-sucedidos na mesma exigência: à noite os in ígena
r°upas para nadar, nus, nas praias. „„».fntas e
Aspecto à parte diz respeito ao luxo exibido pelas pr
; I T > » > « . * mau proceder", geralmenre
' J*neiro, Bahia e Minas Gerais. Seus vestidos de luxo J

263
micas coloniais — agricultura dc exportação e ausência ou escas­
sez de mercado interno, conforme a época ou a região. Foram re­
flexos dessa situação a instabilidade da agricultura da mandioca,
muitas vezes trocada pelo plantio da cana ou do tabaco ou sim­
plesmente abandonada, e a escassez de carne fresca, ovos, leite,
legumes e frutas. A capitania de São Vicente, pela sua pobre­
za, foi obrigada a dedicar-se à subsistência, sentindo menos os
efeitos da situação. Nas demais, porém, escasseava tudo que não
*osse subproduto do açúcar ou objeto de coleta, caça e pesca.
que disse o padre Antônio Vieira a respeito do Maranhão no
século XVII outras fontes disseram sobre o Pará, Bahia, Pernam-
uco c Rio de Janeiro: não havia “açougue, nem ribeira, nem hor>-
ta>nem tendas onde se vendessem as coisas usuais para o comer
ordinário".
Apenas no século XVIII, no Rio de Janeiro e em outros locais,
surgiram indícios de uma tímida e instável produção local de fei-
la° , arroz, milho e hortaliças.
Havia claramente dois grandes padrões de alimentação no
r.asil colonial, aí compreendidas as diferenças regionais: o do lito-
a c o do sertão. O primeiro, particularmente nas regiões cana-
Clras, caracterizava-se por pratos de digestão mais difícil, gordu-
° Sos»com escassez de fibras e condimentados, além dos produtos
c P°rtados de Portugal, muitas vezes em condições precárias de
^ n*Crva<íao- Aí em geral almoçava-se às 8:00h, jantava-se as
iní ^ C a noite, após a oração do terço, ceava-se. Viajantes do
I cio do século XIX acrescentavam ainda lanches com doces antes
, actCr<í0 c as 23:00h , antes de dormir, o que gerava uma “gordura
a peculiar" aos membros dessa sociedade,
fru a*'mcntação do escravo, na lavoura ou nas minas, era mais
aij^V Ç°nsistindo quase sempre em feijão, farinha e came-seca,
1 uídos em duas ou três refeições diárias. Nos documentos,
n , qCCCm COm freqüência queixas contra a má qualidade e a peque-
uantidade de comida, principalmente na região mineradora.
n,"rit ° SCrtao a alimentação era bem mais simples, porém mais
carnc j 2’ C° m 8 rande influência indígena e presença de vegetais,
do Se CCa<»a c Pc ixes, o que, aliado à maior atividade física, fazia
suit um homem de maior vitalidade e longevidade. Os je-
a ad0tC ?^'avam a sóbria alimentação dos tupis, chegando mesmo
a cm suas reduções como mais adequada ao clima e con-

265
dições da terra. Dando mais uma demonstração de sua plastici­
dade em aspectos não doutrinários, transigiam com o fumo e acei­
tavam — a despeito de considerá-la afrodisíaca — a erva-mate.
Deve-se-lhes também, como a Maurício de Nassau, a aclimatação
de plantas exóticas, como as laranjas da China, os coqueiros das
ilhas do Pacífico, os pêssegos e figos da Ásia e as mangueiras e
jaqueiras da índia.
Outros produtos do sertão foram consumidos pelos coloniza­
dores. A cera e o mel, já usados pelos índios, foram sistematica­
mente explorados pelos portugueses, a ponto de, com o aumento
da procura e a derrubada das matas, serem produtos caros na se­
gunda metade do século XVII. Sérgio Buarque de Holanda de­
monstrou que a produção de mel na capitania de São Vicente, mas
possivelmente também em outros locais, seguiu etapas sucessivas:
coleta sem destruição da colmeia, utilização de troncos já habita­
dos pelas abelhas (ambos procedimentos indígenas) e introdução
de colmeias artificiais (técnica européia). Os bandeirantes foram
grandes consumidores de mel, que utilizavam como alimento ex­
clusivo quando passavam por áreas pobre? em caça, pesca ou pai"
mitos. Usavam-no também como remédio e até em expedientes de­
sesperados, como no episódio de um grupo cercado por índios
num círculo de fogo, que conseguiu escapar à morte untando-se a
mel com folhas e carvão, e passando pelas chamas.
Comia-se no sertão, além disso, quase tudo o que a natureza
oferecia: cobras, sapos, ratos, raízes de guaribá, brotos de samam
baia, içás (formigas muito apreciadas) com carne de macaco,
cho-de-taquara (considerado de sabor semelhante aos miolos
boi), pinhões (no sul, em substituição à mandioca), frutas slV
tres (jabuticabas, pitangas, ananás e araçás), além de carne de c ^
(anta, paca e veado) e pesca. Esta última era praticada com anz
redes e o tingui, planta tóxica usada pelos índios e que, as jc
provocava grande mortandade de peixes, a ponto de a cama
São Paulo ter proibido seu uso em 1591 no rio Tamanduatei- ^ ^
A água no sertão, conforme a região, era mais escassa 9 .
comida. Longe dos rios e riachos, os sertanistas utilizavam st^ ^ n.
pria experiência e as técnicas aprendidas com os índios pata
trar líquido: olhos d'água ocultos embaixo de pedras ou tron ^
árvores e plantas que retinham água. Destas últimas foram
usadas os mandacarus no Nordeste, os bambus no Sul e os c ^
tás. Ainda no início do século XVIII, referindo-se aos ban c,r
o governador Rodrigo César de Meneses dizia que “parasatisfaze-
rem a sede se valiam da raiz de um pau que metiam na a

Higiene, saúde e assistência


As noções de higiene pública e pessoal eram ein geral precárias.
Interesses individuais exacerbados e pouca atenção a comum a
parecem caracterizar a higiene na Colônia, com graves ano* Para
a saúde pública. Em Mojiguaçu, na capitania de São Paulo, n
século XVIII, uma epidemia foi provocada pelo apodrecimento
Peixe, capturado em excesso:
Foi tão grande a quantidade de peixe, que apodrecendo infestou
de tal modo o ar, que foi causa de perecer um grande numero
pessoas. (Luís D ’Alincourt)

N a B a h ia , o professd r régio Luís dos Santos Vil ena critico


severam ente a a d m in istra çã o dos cem itérios, por não impe ir qu
Sepulturas m alfeitas ex alassem m au cheiro, empestean o o a
P rovocand o ep id em ias. ... vr
O u tro s fato res to rn a v a m m uito precária a higiene pu ica;
‘itoral, os m ercad o s de escrav o s, sobretud o nos períodos e tra 1
ma‘s in ten so , eram fo co s de esco rb u to , varíola, saram po, sarn
Peste b u b ô n ica . As arm açõ e s de pesca dc baleias tam em c
®uíam para trazer riscos à saúde p ú blica. Em certas regiões, .
R l° de Ja n e ir o , Salv ad o r e Belém , eram as próprias con ^
ca‘s, co m ch a rco s e b re jo s p olu íd os, que facilitavam os
a r c s ' e a p ro p a g a çã o de d o en ças. ^
L eg alm en te, a su p erv isão da higiene e da saúde pú ‘^a s ,
lesP onsabilid ad e das c â m a ra s m unicipais e, acim a e as,
l °-m o r e c iru rg iã o -m o r d o rein o . Seu co n tro le, porém , era _
i^ ecario, co m interesses e privilégios que impediam um u
a^ e n to c o rr e to . E m 1 7 9 2 , p o r exem p lo , a C âm ara de Bei
a,HCnto u m in u cio sa m en te o assu n to , determ inando que
s veread o res, o “ p ro v e d o r-m o r de saúde , se encarrega1
a a in sp eção sa n itá ria . O critério da ind icação para °
(iu niCnto d o c a rg o , p o ré m , foi estam ental e não teÇ[“ co_ QU
l , a Pcsso a n o m ead a fosse fid algo, e não cirurgião,
b0t>cario .
da ,P*an o ind ivid u al, a p rática de banhos freqüentes de ^
raa iç a o eu ro p éia. E sta inclusive condenava a constan

267
nhos como manifestação voluptuosa, que feria os princípios cris­
tãos. No Brasil, porém, por causa do calor e da influência indíge­
na, existiu uma verdadeira paixão por banhos fluviais e de mar,
relatada pelos cronistas.

No início da colonização costumava-se distinguir as doenças


do litoral, vindas da Europa — como o sarampo, a varíola e a
sífilis — , e as doenças do sertão, genericamente chamadas “febres
malignas”, também fatais. As expedições ao interior durante os
séculos XVII e XVIII acabaram por disseminar umas e outras, de
forma que as condições de saúde no período final da Colônia eram
muito precárias. Somente nos últimos anos do século XVIII, com a
introdução da vacina contra a varíola, foi possível enfrentar com
sucesso pelo menos este mal.
Quanto à sífilis, extremamente difundida desde o século XVI,
foi introduzida no Brasil tanto por portugueses como por france­
ses. Aliás, a expansão da doença acompanhou o processo de mim-
dialização do comércio nesse século: os europeus a deixaram p°r
todas as regiões onde estiveram. No Japão, aberto ao Ocidente
pelo comercio português, a doença chamou-se mambakassaM
doença dos portugueses. No Brasil, segundo o testemunho de al­
guns autores, a sífilis era pouco cuidada. As marcas na pele, típicaS
dos vários estágios da doença, eram ostentadas como honrosas
“ feridas de guerra” pelos homens, no dizer de Gilberto Freire.
As verminoses parecem ter sido endêmicas em todas as regi°cS
do Brasil colonial. Documentos descrevem com frequência scuS
sintomas, demonstrando que o “Jeca Tatu” denunciado por Mo*1
teiro Lobato no século XX já existia vários séculos antes.
A malária também grassou no período colonial, sendo imp^s
sível precisar seu itinerário. Na região de Guairá, por exemp ’
segundo mostra Sérgio Buarque de Holanda, ela era desconhecl
à época das missões jesuíticas, no final do século XVI, tornando
fortemente disseminada bem mais tarde.
Eventualmente, havia surtos epidêmicos, cuja dissemin*»
era facilitada pelas más condições higiênicas dos portos e F* * c
norância das formas de contágio. Houve epidemias de varíola
de o século XVI. Uma das mais fortes ocorreu em 1665-1666-
meçando em Pernambuco, desceu a costa até o Rio de Jan
enfraquecendo-se à medida que avançava. Na Bahia, deram-s6

268
sos dc famílias com quarenta a cinqüenta pessoas, nas quais não
havia uma sã que pudesse tratar das demais. A epidemia foi vio­
lenta ali, sem que os médicos pudessem fazer algo para minorar o
sofrimento dos doentes. O alto índice de mortalidade afetou inclu­
sive a economia. No interior, com a morte de muitos escravos,
alguns proprietários

não puderam em suá vida tornar a beneficiar as suas possessões,


ficando em muitas necessidades algumas famílias nobres que
possuíram grandes cabedais. (Rocha Pita)

A desorganização da produção agravou a crise crônica de


a astecimento de Salvador, com alta de preços e fome na cidade
P°r vários anos.
Vinte anos depois ocorreu nova epidemia, desta vez de febre
aiT|arela, ainda mais virulenta. No Recife morreram 2 mil pessoas
^ poucas semanas. Daí, a epidemia difundiu-se para Olinda e
a vador. Sua alta mortalidade fez o cronista comentar que “fo-
^am logo adoecendo e acabando tantas pessoas que se contavam
aS rnortos pelos enfermos” (Rocha Pita). Mal refeita da epidemia
lo t^,10r’ a « P ita i do Brasil enfrentou precariamente o novo flage-
•Morreram milhares de pessoas, inclusive pessoas importantes
g ° Um dcscmhargador da Relação, o arcebispo de Salvador, o
o do governador e três médicos da cidade.
epidemia, segundo informou o cronista Rocha Pita, amai-
Por a^ °S uma Pr°cissão na qual se invocou São Francisco Xavier,
S(. lss° declarado protetor da cidade. O seu arrefecimento deu-
i a f rovavc! mcm c, pelo desenvolvimento de resistência à doença
popuiaç ã ° remanescente, pois o mesmo autor comenta, com
, ;iaUcia’ ^ e a febre amarela continuou matando pessoas que vi-
j an\ c Portugal, do Sul ou dos sertões, poupando os moradores
** cidade.
Táo
(.ils locômodas e destrutivas como as doenças eram as “pra-
\c n ° Pais”. Os mosquitos infernizavam litoral e sertão, como se
C( ns° S _rc^atos dos bandeirantes. Para evitá-los, algumas tribos
uv,varUÍa* choças com entradas excepcionalmente pequenas ou
m0s determinadas tinturas. Eram combatidos com fumaça e
rpf.r^Ü,tc*ros> estes últimos talvez apenas no século XVIII, pois a
^•“iab1013 ma*S anl‘8a data de viajantes que iam de São Paulo a
a Crn 1725. O padre Vieira usou contra eles sua eloquência.

269
O hábito de caminhar descalço provocou o aparecimento de
outra praga, o bicho-do-pé. Muito difundido, era comum ver pes­
soas infectadas recusando-se a tirá-los de entre os dedos — pela
volúpia que a dor lhes provocava — , apesar de, em alguns casos, a
ferida evoluir para a gangrena.
Muitas outras pragas existiam, endêmicas ou cíclicas: nuvens
de gafanhotos que destruíam plantações, grilos, ratos e baratas que
roíam pessoas dormindo e suas roupas, carrapatos combatidos
com bolas de cera passadas pelo corpo ou rezas e gestos propi­
ciatórios — por exemplo, o de atirar um galho de árvore por trás
do ombro.
Tanto os europeus, de tradição medieval, como os indígenas e
os negros tinham uma visão mágica da doença: ela era um male­
fício. Assim, a mesma arma usada contra o mau-olhado (uma re­
za, por exemplo) era eficaz contra uma infecção. Nos documentos
vicentinos, os historiadores colheram um sentido ainda mais gene-
rico, com “doença” significando qualquer coisa que provocasse
dor física: “doente de uma frechada”.
As terapêuticas utilizadas eram um misto de saber empírico
acumulado, mezinhas domésticas e ritos religiosos ou mágicos, fi­
xados pela tradição, entrecruzando-se aí os elementos culturais eu­
ropeus, indígenas e africanos. Dentre os primeiros, a mais imp°r‘
tante foi a medicina jesuítica, pela sua sistematicidade e influência-
No Brasil, os jesuítas não foram somente discípulos estreitos da
biologia aristotélica e da medicina galênica, ambas desacreditada
à época na Europa. Foram sobretudo excelentes observadores
terapêuticas e procedimentos não apenas de tradição européia, maS
indígena e africana. Conheciam ervas medicinais, botânica e alg
ma genética, organizaram uma tarmacopéia eficiente e realizaram
estudos sobre doenças tropicais.
A medicina indígena, por outro lado, beneficiada pelo con
cimento da terra e de seus produtos, foi extremamente rica e sis^
maticamente usada desde o início da colonização. Quando,
século XVII, iniciou-se a conquista da Amazônia, seu uso 8cncr^e
lizou-se ainda mais, pela descoberta de novas espécies vegetais
potencial curativo. A afirmação do botânico Martius, no secu
lo XIX, de que as plantas da flora amazônica faziam milagrcS
era voz corrente no país dois séculos antes. _ j.
O jesuíta e o pajé, mais do que o bacharel de formaçao ^
versitária ou o cirurgião, foram os verdadeiros médicos da CP°C

270
Os documentos coloniais e testemunhos evidenciam essa prática,
quer por religiosas, quer por leigas. Mas não se admitia a presença
feminina no tratamento dos pacientes picados por cobras. Neste
ponto parecem convergir a tradição bíblica, com a má influência da
serpente sobre Eva, e as crenças indígenas, que atribuíam à mulher
influências malignas, especialmente quando menstruadas. Ainda
no início do século XIX, Martius recolheu a informação de ser a
mulher impedida de tratar destes ferimentos por ser ela própria ve­
nenosa até os cinqüenta anos, isto é, até a menopausa.
» »»

A assistência hospitalar na Colônia limitava-se a algumas


poucas unidades. Eram quase sempre hospitais militares, ou liga­
dos às Santas Casas de Misericórdia, irmandade que desempenhou
importante papel na história da Colônia, no plano assistencial e
além dele.
As irmandades em geral eram instituições comunitárias des­
tinadas à defesa de determinados interesses, em especial à assis­
tência material a seus membros. Tiveram características variadas:
algumas organizaram-se com fins filantrópicos, outras como ver­
dadeiras corporações profissionais, e algumas mesclaram elemen­
tos filantrópicos, religiosos e sociais, como finalidade programá­
tica ou pela distorção de seus fins. Existentes em todo o Brasil, elas
foram especialmente pujantes no século XVIII em Minas Gerais,
onde defendiam os interesses de seus associados, promoviam fes­
tas religiosas e, no caso das confrarias formadas por libertos, pro­
videnciavam a alforria dos que ainda eram escravos.
As “ordens terceiras” de algumas ordens religiosas, como os
carmelitas e os franciscanos, foram associações importantes e pa­
trimonialmente poderosas. Apoiadas por subsídios, doações tes-
tamentárias e investimentos de seus próprios recursos, de modo
geral elas se tornaram ricas, despendendo seus rendimentos na ma­
nutenção de hospitais, recolhimentos para viúvas, velhos e órfãos e
outras atividades de filantropia e assistência. Numa sociedade em
que não se atribuíam ao Estado tais obrigações, tomavam-se as
irmandades solução comunitária para os problemas assistenciais
da população. Elas distribuíam seus recursos, visando à proteção
primordial (quando não exclusiva) de seus próprios membros.
Apenas as Misericórdias tinham por obrigação, além da proteção a
seus associados, realizar uma filantropia mais ampla.

272
É impossível exagerar a importância das Misericórdias no
Brasil colonial. Concebidas como filiais da Santa Casa de Mise­
ricórdia de Lisboa, fundada em 1498, tinham como objetivo o
socorro a órfãos, viúvas, prisioneiros e enfermos. No modelo ori­
ginal português, a Misericórdia deveria ser socialmente mista,
c°m metade de seus membros pertencendo à nobreza e metade de
‘mecânicos”, isto é, homens do povo, em geral artesãos, por se
tratar de uma instituição urbana. No Brasil, embora existam di­
ferenças de época e lugar, a tendência foi permitir apenas a entra-
da de “ nobres” ou daqueles que se aproximassem, pela riqueza
° u prestígio social, desta condição. Tal atitude foi uma constante
na Colônia, a ponto de obrigar o governo português e a Miseri-
córdia de Lisboa, em 1738, quando foi criada a Santa Casa de
^'la Rica, a determinar que não houvesse distinções entre nobres
e “mecânicos”.
De qualquer modo, os cargos administrativos das Misericór-
las eram ocupados por pessoas de projeção social, além de serem
^ “ito disputados. Exigia-se para a sua investidura a apuração de
Pureza de sangue”, pela qual eram excluídos aqueles que tives-
Scm ascendentes judeus ou mouros até determinada geração.
Na Colônia, as Misericórdias tiveram influência efetiva e am-
P a- Além de manter diversos hospitais, ficavam responsáveis pelo
erviÇo funerário — sem distinção de condição social — , pela ali­
mentação e vestuário dos presos, pelo sustento ou auxílio a viúvas,
j*ia°s> velhos e indigentes e pelo recebimento de crianças enjeita-
' 3^Cm SUa **roda dc expostos”. Os recursos eram inteiramente pri-
3 0s e sc originavam geralmente de subsídios de sócios ricos e le-
0s testamentários. Esta situação fez com que, para aumentar
v Us rcndimentos e movimentar o capital, as Misericórdias muitas
a Zcs atuassem como entidades financeiras, emprestando dinheiro
c |Ur°s, sobretudo no século XV111. A ausência de bancos no Brasil,
t U) Uu Portugal, e a necessidade de crédito fizeram com que os
^ Préstimos das Misericórdias — embora às vezes proibidos
Crn muito procurados, embora nem sempre bem administrados,
s iò A Santa Casa da Bahia viu-se em dificuldades, em diversas oca-
r o j ’ dlante dessa situação. Em 1729, o excesso de empréstimos, o
^ rCCcb,mcnt° de juros e do capital e a garantia insuficiente em
Çüt Patr*moniais gerou séria crise e um conflito entre a Junta de
enfr: n° r« c 0 vice-rei, conde de Sabugosa. Problemas semelhantes
ntaram também as Misericórdias de Luanda e do Recife. Mais

273
tarde, na década de 1750, houve nova e aguda crise. Instaurada
uma investigação por determinação real, o relator, desembargador
José da Fonseca Lemos, vindo especialmente de Portugal, concluiu
que os problemas da Misericórdia baiana deviam-se a empréstimos
não pagos pelos devedores, garantias inadequadas — as mesmas
dificuldades de antes, agora agravadas por uma crise econômica
— , excesso de pessoas nos recolhimentos, falta de apoio financeiro
do governo (a que a instituição tinha direito) para o hospital e a
roda de expostos e gratificações extravagantes pagas a funcioná­
rios, entre outros motivos.
Quanto ao último aspecto, o próprio vice-rei, conde dos Ar­
cos, tomou a defesa da Misericórdia, ponderando com um argu­
mento que bem expõe a condição social da Colônia: como a Santa
Casa, dizia o vice-rei, era obrigada pelo governo a empregar ape­
nas servidores brancos e no Brasil era difícil que estes aceitassem
funções subalternas, típicas de escravos, era necessário acenar-lhes
com uma boa gratificação.
Com todas as dificuldades, porém, as Misericórdias consegui
ram manter-se, entre altos e baixos, para muito além do temp0
social que as originou. Foram, junto com as câmaras municipalS>
das poucas instituições da sociedade colonial a sobreviverem ate
Brasil contemporâneo.

Clima a castigo
O crime e a violência, na sociedade colonial, faziam parte: < da vida
cotidiana, num grau frequentemente maior do que em outras '
ciedades contemporâneas. Para repressão ao crime havia duas)
tiças paralelas: a oficial, representada pela máquina indicia^
Jo-
estatal, e a privada, exercida pelos proprietários rurais em seus
mínios, ou mesmo fora deles. A primeira concentrava-se em P
• fcU1
cas cidades e vilas mais importantes das capitanias, cabendo r
sos que protelavam as decisões e às vezes as remetiam para Li
A outra, implacável, sempre irrecorrível, era baseada no P
conteste dos régulos locais e fruto do mandonismo. q{.
A legislação criminal baseava-se no famoso Livro V " ]U,
denações Filipinas, que previa penas em geral muito duras, - ^
as de morte e degredo. Nem sempre, porém, elas eram cXC^ -0 sef
e, quando o eram, como no caso do degredo, poderiam ^
cumpridas integralmente. Houve várias queixas dos governa

274
da Bahia c Rio dc Janeiro, no século XVIII, sobre o retorno anteci­
pado de indivíduos degredados para Angola.
A legislação criminal refletia com fidelidade as concepções vi­
gentes até meados do século XVIII sobre o crime e a pena. O crime
era uma ofensa que deveria ser reparada de forma proporcional,
sem consideração maior pelos motivos de sua ação — exceto no
caso de legítima defesa. Seriam mais graves os crimes que signifi­
cassem “má índole” permanente, como o roubo, o furto e o latro­
cínio, do que aqueles cometidos passionalmente ou em defesa da
honra, a ponto de a lei facultar ao marido matar a esposa infiel e
seu amante, observadas as condições sociais dos envolvidos:
Achando o homem casado sua mulher em adultério, licitamente
Poderá matar assim a ela como ao adúltero, salvo se o marido
for peão e o adúltero Fidalgo, ou nosso Desembargador, ou pes­
soa de maior qualidade. (Ordenações Filipinas, Livro V, Titu­
lo XXXVIII)
A mudança das idéias sobre o crime e a punição chegou a pe-
netrar o pensamento jurídico português no final do século XVIII,
C° m 0 lluminismo, mas não teve nenhuma influência prática sobre
a repressão no Brasil.
No período colonial era aparentemente alto o índice de cri-
^ lnaÜdade, pelos padrões da época, embora conheça-se pouco so-
° assunt<>, limitando-se as informações disponíveis a aspectos
ls°dicos de épocas e locais diversos. Em São Vicente, em 1613,
^ tre l9 o moradores havia 65 homiziados, ou seja, foragidos pela
*tlCa de crimes em outras capitanias ou em Portugal. Em Ser-
„ P no final do século XVIII, ocorreram duzentos homicídios nu-
s° freguesia em curto espaço de tempo, sendo doze numa so
'nana. Salvador, em 1699 e durante o século XVni, era cidade na
'ait n* ° Cra aconsclhável sair a noite, por causa dos riscos de as
ra(j°s c assassinatos. Maragojipe, na Bahia, em 1716, era consi e
a hteralmente um “covil de ladrões” ,
do * In v‘a)ante do século XVIII comentou que o Brasil era o lugar
q l " * ° nde se matava por encomenda a preços mais baratos,
desaf* all* S comum a contratação de escravos para matar rivais e
p0 Na Minas Gerais setecentistas houve, durante certo tem
sadnf^a °*tcnta escravos legalmente executados por ano, acu
corn c C homicídio. Apesar disso, cronistas e viajantes comentam
chisiv(»C<^ ncia s°bre a grande impunidade que existia no pais, m
Dcl° uso freqüente do crime à traição, de emboscada. O his

275
toriador Sérgio Buarquc de Holanda comenta que o uso desse pro­
cedimento devia-se à atitude arredia do sertanejo e ao desprezo
pelo inimigo, ambos motivados pela necessidade de adaptar-se à
floresta e à vida natural, onde os inimigos atacavam à traição, dife­
rentemente do mundo civilizado, no qual o perigo mortal não é
uma constante.
Mas a impunidade ocorria também em casos de crimes notó­
rios. A mais famosa é a do bandeirante Borba Gato, implicado na
morte do tenente-general dom Rodrigo de Castelo Branco, mas
impune por ter sido o descobridor das minas de Sabará. Em outro
caso — o da morte do sertanista Pedro Camargo por outro ban­
deirante — , o assassino recebeu o comando de uma bandeira pou­
co tempo depois, o que causou estranheza até em Lisboa, chegan­
do a manifestar-se o próprio rei dom Pedro II. E Manuel Nunes
Viana, implicado em crimes comuns e políticos, não só foi deixado
em paz pela justiça real como retornou à área mineira com uma
rica prebenda, o cargo de escrivão de Sabará, que lhe garantia uma
das maiores rendas da capitania de Minas Gerais.
Os crimes mais comuns no Brasil colonial foram contrabando,
furto, roubo, concubinato, bigamia, ligações com quilombos, Pr0S"
tituição, falsificação da moeda, deserção dos regimentos militares«
feitiçaria e crimes passionais. Estes últimos merecem registro espe"
ciai, pela sua extensão e consequências.
Salvador, nos séculos XVII e XVIII, era a cidade brasileira re
cordista em crimes passionais, de acordo com o estado atual e
nossos conhecimentos. A própria permissão legal para que o mar*
do vingasse a honra ofendida estimulava a violência e a impum^
de. Viajantes estrangeiros apontavam outro motivo: a escassez
mulheres brancas, seu enclausuramento pelos maridos zelosos
ciumentos e o “dramático assédio” de que eram objeto.
No Rio de Janeiro também existiu um extenso imaginário ero
tico sobre a concupiscência das mulheres enclausuradas pelos m
dos cm casa ou nos conventos e suas supostas escapadas noturní
Verdadeiras ou falsas, essas imputações provocavam assassin®^
em grande número e com requintes de crueldade. Na Bahia, ‘
1713, registraram-se trinta mortes de mulheres por seus m&Ilu ^
O ciumento fidalgo Fernão Barbalho matou com auxílio de .
lho a mulher c três filhas, por mau comportamento. Excepc* ^
mente, talvez pela condição social das vítimas, os criminosos 1°

276
condenados à pena máxima e executados. Em Vila Rica, um abas­
tado proprietário matou sua filha porque a surpreendeu acenando
para um namorado com o lenço, no quintal de sua casa.

Há vários exemplos de crime organizado no período colonial,


Praticado por grupos ou bandos, embora o assunto seja pouco co­
nhecido em todas as suas implicações. Em geral, a existência de
bandoleiros estava ligada ao sistema de propriedade e ao poder
existentes no interior, com o domínio inconteste dos clãs latifun-
tários. A exclusão, pela família extensa, de agregados, desafetos e
ate parentes insatisfeitos ou insubmissos — em alguns casos os do­
cumentos falam de bandidos que eram “nobres de nascimento” —
Provocava o surgimento dos foras-da-lei, indivíduos que viviam
*ja periferia ou na fronteira dos domínios latifundiários, pratican-
0 assaltos, saques e outras incursões.
No Nordeste, esses grupos existiram pelo menos desde o sécu-
n| compostos por homens desenraizados da economia pasto-
° u agrária, mas exímios sertanistas, comparáveis aos bandei-
p3ntes pela sua identificação com a terra. No litoral, na região de
i . S e g u r o , nos primeiros anos do século seguinte, um bando
erado por “gente de boa família” cometeu seguidos roubos, ho-
,0- *°s c estupros, sem que a câmara municipal pudesse domina-
S' ^°* necessária a intervenção do governador-geral. Presos e
Caiecuta^os os chefes — que tiveram suas cabeças expostas nos lo-
Ca*S ° nde cometeram as atrocidades, conforme o costume de epo-
_ °s demais fugiram para o sertão.
nas p scgunda metade do século XVIII tornou-se famosa em Mi-
cra*s a “quadrilha da Mantiqueira” . Inicialmente atacando
v tra andistas e garimpeiros isolados, terminaram mais audacio-
^ru’ atacando magnatas locais e autoridades. Dividiam-se em dois
no ^°S\um assaltando os viajantes no caminho de Goiás e outro
Para Tijuco e Serro. Brancos, ciganos e índios carijós
nha«aVAam 0 bando, liderados por Joaquim Oliveira, o “Monta-
. Caharam presos e sentenciados.
t 'ea|C a mesma época organizou-se outro bando na região de Can-
lüya»’ ' a CaPitania do Rio de Janeiro. Liderados pelo “Mao de
tituí ’ ° mem de origem portuguesa e supostamente nobre, cons-
nào a " Uma comunidade com centenas de membros, que viviam
PCnas de roubos e furtos mas da exploração ilegal de ouro,

277
aliás escasso. O governo tentou legalizar a exploração da área.
Após diversos entendimentos infrutíferos e choques com as autori­
dades, o Mão de Luva resolveu entregar-se às autoridades em Vila
Rica, às quais pediu perdão. Foi, também, preso e sentenciado.

Condição feminina
A condição subalterna da mulher colonial era uma herança de
antigas tradições cristalizadas. Tinha por base a autoridade inte­
lectual de Aristóteles e de outros autores e estava profundamente
enraizada na legislação civil e canônica. Apesar do abrandamento
das restrições no código de Justiniano e no direito canônico me-
dieval, em relação a posições anteriores, as mulheres ficaram nu­
ma condição de inferioridade e de franca dependência face ao
marido, embora não mais, como na Roma clássica, face aos filhos,
quando enviuvavam.
A igualdade relativa ou mesmo absoluta entre os sexos é con­
cepção do Iluminismo e mesmo assim só mais tarde se expandiu
para a população em geral.
No Brasil colonial, tanto a legislação portuguesa como as pra"
ticas sociais acentuaram o caráter subalterno da mulher. Viajantes
europeus comentaram desde o século XVII a existência de urna
“reclusão de serralho” *para as mulheres das classes altas, em
.
tou
o Império e não apenas na América. Elas raramente apareciam
visitas ou iam à rua, e quando o faziam deviam cobrir com veus
rosto e com a barra da saia os pés. A atitude de inferiorizaça0
exclusão da mulher não deve ser atribuída apenas à tradição cur®"
péia, mas à influência árabe na Península Ibérica e sua prática^
isolamento feminino, e à própria cultura indígena, com sua
descendenC*
gem da mulher como ser funesto e a definição da
pela linha paterna. ,r
De acordo com o padrão dominante, a mulher virtuosa a rlj^
só deveria sair de casa em poucas ocasiões: para ser batizada,
qüentar missas, casar e ser enterrada. Isto certamente contn ^
para a imagem negativa da mulher portuguesa nos trópicoS^ j c
cocemente envelhecida, gorda e amatronada, empanturra^
doces e cercada de mucamas, tratada com sadismo e frequ ^
mente compensando-se com intrigas, perversidades e outras P
cas sádicas contra suas escravas. Quanto ao último aspecto, e[ ^
ra se ignore a extensão do fenômeno, chegaram a existir, na

278
reclamações do governador-geral e do arcebispo de Salvador con­
tra maus-tratos infligidos a escravas pelas senhoras. O arcebispo,
aplicando a lei canônica, obrigou uma senhora a vender em 1689
a escrava que maltratava.
Tais atitudes parecem ter sido mais ou menos generalizadas
°o Brasil colonial, apesar de algumas diferenças. No século XVIII,
em Salvador, Mariana e Vila Rica, as mulheres frequentavam a
missa apenas no final da madrugada, para não se expor aos olha­
res masculinos. À rua iam em ocasiões excepcionais, como a pro­
cissão de Corpus Christi, mas jamais desacompanhadas.
A internação em conventos e recolhimentos femininos tornou-
se comum no século XVIII, pelo menos na Bahia, Minas Gerais e
Rio de Janeiro, resolvendo o problema de pais preocupados com o
futuro das filhas ou com os custos do dote. Outros motivos pa-
ra a entrada nos recolhimentos foram a viuvez, o desejo de levar
uma vida religiosa, o comportamento desonroso (quando imposta
a reclusão à mulher pelo pai ou pelo marido) ou a desistência da
Prostituição. Um dos recolhimentos da Bahia, aliás, o de São
aimundo, reconhecido ofícialmente em 1761, destinou-se a aco-
er 12 mulheres arrependidas”.
Têm sido assinaladas algumas peculiaridades desta prática no
rasil. Em Portugal e na América espanhola, conventos e recolhi-
Itlent°s femininos distinguiam-se, respectivamente, por atender a
^ei,giosas e leigas. No caso brasileiro, tal não ocorreu, confundin-
® Se<cm alguns casos, uns e outros. O fato tem sido explicado na
storiografia pela indefinição da política oficial em relação ao
f J Untoi de um lado mostrando-se hostil à reclusão feminina, pela
^ 1,1 de mulheres brancas na Colônia e de outro sendo forçada a
lid an^ar Sua posição pela pressão social, à medida que se conso-
a sociedade colonial, na segunda metade do século XVII.
íoc utra peculiaridade brasileira foi a introdução das relações
Un/aiS Cxternas nos conventos e recolhimentos, tornando-os nao
*hio^ni<^a<k relativamente distinta da sociedade colonial, mas seu
nesta Cos,T10' Foi o caso da permissão para introduzir escravas
sere ' mstituições; inicialmente vinculadas à casa, acabaram por
cljri aProPriadas individualmente, como ocorreu no convento das
as ^ na Bahia, em fins do século XVII, reproduzindo assim
br», ^°es Senhor-escravo aue sc chocavam com os votos de po-
‘ >e
°bediê ncia

279
Conventos e recolhimentos femininos continuaram sendo olha­
dos com desconforto pelas autoridades. Era o antigo temor da es­
cassez de mulheres brancas, que refletiria sobre a população, cujo
crescimento era um dos axiomas mercan ti listas. Além disso, pro­
moveria a expansão da mestiçagem, afetando outro dogma da so­
ciedade estamental, o da pureza étnica, a “limpeza de sangue”. 0
governador de Minas, Lourenço de Almeida, reclamava em 1731:
“Suponho que toda mulher no Brasil será freira."
A reclusão doméstica parece não ter sido tão severa em São
Paulo, pelo menos no final do século XV III. Relatos de viajantes
do início do século X IX consideravam a mulher paulista mais aberta
que as suas compatriotas do Norte, embora com traços comuns:

Seu divertimento favorito é a dança, em que revelam grande va­


riedade e graça. Nos bailes e outras festas públicas aparecem, em
geral, em elegantes vestidos brancos (...) sua educação se restrin­
ge a conhecimentos superficiais; ocupam-se muito pouco com
assuntos domésticos, confiando tudo quanto se refere às depen­
dências inferiores da direção da casa ao negro ou à negra cozi­
nheira, e deixando todos os outros assuntos a cargo dos seus
serviçais. (John Mawe, 1807-1808)
Havia, porém, um momento em que a mulher, por necessidade
sobressaía e comandava a casa: na viuvez. Foram muitos os caso*
em que, enviuvando a mulher com filhos menores, coube-lhe a '■
reção da propriedade rural. Assumia, apesar da condição fernin“13’
o comando da família patriarcal, comportando-se de acordo c°
seu novo papel. Não era um matriarcado que surgia, mas um Pâ
triarcado de saias, pois não se alteravam as relações fundam«11 ^
A mulher pobre, livre ou escrava, era necessariamente m
mais exposta na sociedade. Seu maior número, e o caráter qu ^
diano e quase óbvio de sua existência fizeram com que os
sobre ela fossem escassos, limitando-se a casos excepcionais de1
taque: ascensão social, como a de Chica da Silva, crimes passm •
mancebias escandalosas. Somente pesquisas em história so ciao ^
da embrionárias, que permitam estabelecer séries estatísticas
casamentos, separações ou comportamentos coletivos Pc^IT11V”nC-
revelar o que acontecia com a mulher comum — branca, md
gra, mulata ou mameluca.
1< íll*4-
Conhecemos suas atividades: ela era, livre ou escrava, - ^
ca, roceira, costureira, cozinheira, feiticeira, lavadeira, cartofl1

280
prostituta. Se livre, vivia agregada a uma família, quase sempre ex­
tensa, embora não necessariamente de senhores de engenho, e rece­
bia pagamento ou presentes por pequenas tarefas. Se escrava, tra­
balhava para o senhor, para quem este determinasse ou ainda “ao
ganho”, realizando tarefas cuja remuneração entregava a seu se­
nhor. Geralmente recebia uma percentagem desta remuneração,
com a qual formava seu pecúlio. Várias senhoras foram acusadas
pela Igreja e por autoridades civis de prática de proxenetismo,
Prostituindo suas “escravas ao ganho”.
A sociedade colonial, com seus valores hierárquicos e patriar-
Cais apoiados numa legislação severa e à qual se acrescentava a
eXistência de grande número de escravos — o que por si só reduzia
° ser humano à condição de objeto — destinava assim a mulher,
0rÇosamente, a uma condição inferior. As concepções do direito
toniano e da tradição cristã minimizaram esta situação, mas não a
teraram, produzindo o resultado quase sempre revelado pelas
°ntes: a mulher de status elevado, reclusa; a mulher pobre ou es-
Crava, objeto de trabalho ou de prazer.

Vous aimerez peut-être aussi