Vous êtes sur la page 1sur 330

EDITORIAL

Greve e levante dos caminhoneiros: amanhã será maior! 3


Giuseppe Cocco

UNIVERSIDADE NÔMADE

Junho de 2013: insistência de uma percepção 8


Alexandre Mendes
Junho de 2013: sinais do futuro que já começou 14
Frederico Lyra de Carvalho
O trabalho das linhas 23
Giuseppe Cocco e Bruno Cava

DOSSIÊ JEITOS

Apresentação: Jeitos 33
José Antônio R. Magalhães
Renan Porto
Notas introdutórias a um jeito de pensar 41
José Antônio R. Magalhães
Como ensinar a filosofar com a vulnerabilidade do jeito do corpo 66
Fernanda Carlos Borges
Deus e o Diabo na Terra do improviso 89
Luca Szaniecki
O Lazer e as classes populares: controle, cultura popular e 104
resistência
Ana Carolina Mattoso Lopes
Navegação social: gestos, jeitos e sentidos em dois romances de 122
Jorge Amado
Pedro Mollica da Costa Ribeiro
As mídias digitais e o uso das redes sociais no produção de novos 135
formatos de discurso e a atuação nas favelas cariocas
Thamyra Thamara
Mães pentecostais contra o Estado: notícias de uma pesquisa 146
Fellipe dos Anjos Pereira
Judith Butler: filósofa da vulnerabilidade 175

1
Felipe Dutra Demetri
O espaço do (não) dizer e a criminalização da arte 188
Livia de Meira Lima Paiva
Contágio, improvisação e escrita do corpo 206
Daniela Carvalho de Avellar
Pixação, uma escrita enigma, um desvelar em recuo 217
Gustavo Coelho
Manual iniciante para tocar um corpo-buceta 238
Julia Vitá
Bricoleurs do fim do mundo: pensamento bricoleurs e práticas de 243
criação de sentido
Renan Porto
Artimanhas: Coletividades emergentes e processos de 258
individuação
Erin Manning/ Trad. André Fogliano e José Antonio R. Magalhães

NAVEGAÇÕES

A maior greve de todas 282


Gabrieli Alberti/ Trad. Carolina Salomão
A cidade enquanto sistema logístico 299
Niccolò Cuppini/ Trad. Bruno Cava
Freed from desire: por uma primavera de greve social 306
Plateforme d‘Enquêtes Militantes
Memória e poder: os nomes que as coisas levam 311
Murilo Duarte Costa Corrêa

RESENHA

Limites e possibilidades de uma economia do conhecimento 322


Resenha do Livro Trabalho e Valor no capitalismo contemporâneo
(Pablo Miguez)
Carolina Salomão
Redimensionar a potência dos pobres por três personagens 325
Resenha do Livro Pobres, Resistência e Criação (Monique Borba
Cerqueira)
Pedro Mollica da Costa Ribeiro

2
EDITORIAL

Greve e levante dos caminhoneiros: amanhã será maior!

Giuseppe Cocco1

O que a luta dos caminhoneiros nos disse? Que os que vivem de seu trabalho não
querem pagar as contas de Temer e da Dilma e que o ―fora Temer‖ do PT e seus
puxadinhos é de mentirinha. Mais uma vez, a quase totalidade da esquerda se apavora
diante dos movimentos de luta real e só não tem medo de roubar ou defender quem
roubou.
Os caminhoneiros decretaram o fim do que sobrava do pacto de sustentação de
Temer. O ―pacto do pato da Fiesp‖ era esse: o governo Temer faz as reformas
neoliberais e tem espaço livre para acabar com a Lava Jato, a esquerda fica desejando o
golpe e os pobres e os trabalhadores pagam o pato! Em outros termos, a classe política
salva a pele dela vendendo a nossa. Mesmo que a greve não tenha se consolidado como
o levante que suas bases autônomas procuraram, esse pacto acabou. Da ponte para o
futuro sequer sobrou a pinguela da qual falava o FHC, apenas um abismo.
Os grevistas afirmam que a economia não é contabilidade, mas economia
política. Dizem também que a política não é pura racionalidade, mas criação de valores.
Contra a greve, governo, forças políticas e imprensa mobilizaram duas grandes
argumentações: se trata de um locaute que torna os brasileiros reféns dos grevistas e há
infiltrados oportunistas que querem dar à greve uma dimensão política.
A popularidade da greve, sua continuidade depois das amplas concessões que o
governo fez mostra o contrário: foi um movimento autônomo e uma crítica política da
economia. É preciso ter uma dimensão real do estopim da crise. Esse não foi (apenas) o
aumento do preço do diesel, mas a impossibilidade dos caminhoneiros repassa-lo ao
frete. Isso porque a terceira dimensão do ―pacto do pato‖, não aconteceu: não houve e
não há retomada da economia e assim o management empresarial rigoroso (da Petrobras

1
Giuseppe Cocco, pesquisador da UniNômade, é graduado em Ciência Política pela Université de Paris
VIII e pela Università degli Studi di Padova, mestre em Ciência, Tecnologia e Sociedade pelo
Conservatoire National des Arts et Métiers e em História Social pela Université de Paris I
(PanthéonSorbonne), doutor em História Social pela Université de Paris I (Panthéon-Sorbonne), Professor
titular da Universidade Federal do Rio de Janeiro – UFRJ, editor das revistas Global Brasil, Lugar
Comum e Multitudes e coordenador da coleção A Política no Império (Civilização Brasileira).

3
por exemplo) não tem como se sustentar socialmente. A economia é política não porque
esse é o nome de uma disciplina, mas porque é uma mobilização social que acontece a
cada instante e é com base nisso que se constitui a chamada ―confiança‖. A "confiança"
não é apenas algo que releva dos mercados, mas também e sobretudo da sociedade,
inclusive dos trabalhadores, por exemplos dos milhares de autônomos que depois nove
dias de luta (29 de maio de 2018) se recusavam a voltar ao trabalho.
Os caminhoneiros nos mostraram que sem essa mobilização diária, nada
funciona. Essa mobilização não é nem contabilidade financeira, nem uma servidão
perene. Ao contrário, se trata de algo que todos os dias é renovado e para isso precisa de
alguns níveis de liberdade, democracia, confiança, paz. É na ausência desses níveis que
está a falta de produtividade e o chamado de "custo Brasil": como pode o Brasil ser um
"custo" se é ele que todos os dias precisamos mobilizar? Quem é um custo é o sistema
de comando e opressão que todos os dias suga o sangue dos pobres.
A greve foi então uma mobilização social de grande porte que associou as
demandas econômicas à luta contra a corrupção (e a violência) que constitui o contexto
imediato onde os caminhoneiros trabalham, entre estradas, pedágios, portos e carteis,
furtos e assaltos: como não lembrar que a última operação judiciária contra Temer e cia
envolve o decreto sobre portos?! Para os caminhoneiros, a queda do governo corrupto
de Temer é uma condição para construir uma outra confiança, uma outra mobilização.
Curiosamente, é esse potencial desdobramento que permitiria de reduzir a dimensão
corporativa que está presente no acordo que o governo assinou na única lógica de se
salvar. A virada política do movimento tem que ser saudada como extremamente
positiva, justamente porque ela visava colocar no terreno a questão da confiança e só
pode haver confiança por meio de uma radicalização da democracia. Mais do que isso,
só pode ter retomada do crescimento se alguma dinâmica de confiança for
reestabelecida.
Mas, é claro que é aqui que se encontrou (e se encontra) o verdadeiro impasse: a
demanda política de mudança se consolidou no pedido por ―intervenção militar‖. E esse
pedido é muito mais amplo: os caminhoneiros apenas colocaram abertamente essa
bandeira popular como lema de suas mobilizações.
Aqui temos pelo menos três questões: (1) Do que a demanda por "intervenção
militar" é o nome? (2) de onde vêm essas demandas? (3) como dialogar e/ou enfrentar
esse posicionamento?

4
Do que a demanda por "intervenção militar" é o nome? A demanda popular
por "intervenção militar" vem de longe e é o produto da insegurança civil que os pobres
vivenciam por causa da guerra generalizada que os oprime: o sistema constitucional de
segurança (polícias, magistratura e outros corpos estatais) funciona como um conjunto
de dispositivos (milícias, máfias, lobbies, partidos, câmaras de vereadores etc.) que
todos os dias e em todos os lugares oprimem e espoliam os pobres com taxas, pedágios,
roubos, passagens etc. A demanda por mudança é mesmo demanda por uma
"intervenção" e quem poderia, nesse quadro onde todos os aparelhos estatais funcionam
como partes dos dispositivos de opressão, ser o ator de "intervenção"? A única
instituição que tem força e ao mesmo tempo parece estar fora desse jogo: as Forças
Armadas. A "popularidade" da intervenção no Rio de Janeiro é talvez emblemática
dessa primeira dimensão. Se trata de uma demanda constituinte. Claro, uma demanda
"paradoxal", pois nada que seja "demanda" é constituinte e o Exercito que está sendo
legitimado por essa difusa demanda popular será o mesmo que reprimirá os
caminhoneiros se isso vir a ser necessário para o reestabelecimento da "ordem". Mas as
lutas não são nem coerentes nem lógicas. O que importa é apreendermos por onde
passam as linhas dos paradoxos e das contradições.
2) De onde vem essa demanda? Com certeza, ela é veiculada e propagada por
forças de uma nova direita que são a expressão e um reflexo de um movimento global:
desde Salvini até Trump, passando por Farange (Brexit) e Marine Le Pen. Mas, seu
sucesso brasileiro tem uma origem mais especifica e diz respeito aos desdobramentos
políticos, sociais e culturais do levante de junho de 2013. Em junho de 2013, o que
parecia impossível se tornou prática multitudinária: crítica do sistema de transportes que
trata os trabalhadores pobres como gado e ocupação dos templos da corrupção:
Congresso, Assembleias Legislativas, Câmaras, Residência do Cabral no Rio etc. A
reação do PT e da esquerda mais em geral foi reacionária: semear o medo para impedir
a transição do levante do momento destituinte a processo constituinte. Se isso não
evitou o desmoronamento do esquema de poder, conseguiu paralisar e esvaziar a
esquerda. O "voto crítico" foi a base e o resultado desse sucesso nefasto do oportunismo
corrupto do PT: é ele a fonte de multiplicação de narrativas falsas, como por exemplo
essa do "golpe": mistificação que justamente a luta dos caminhoneiros torna evidente,
pois nenhuma força de esquerda quis se aliar a um movimento que poderia realmente
derrubar Temer. Só a direita autoritária apoia essas demandas destituintes, ao passo que
essas se dão num terreno radicalmente democrático de horizontalidade. A esquerda não

5
é contra a ―intervenção militar‖, mas apenas contra a intervenção contra ela: não é por
acaso que todos os partidos de esquerda (e os movimentos sociais organizados) se
manifestaram em favor do militarismo chavista, apesar da catástrofe social e econômica
que é.
3) Como enfrentar essa demanda fica evidente com base no que dissemos
acima: é somente dentro das lutas que o paradoxo pode ser "resolvido", só as lutas
ensinam e transformam os homens e os valores. O paradoxo de uma demanda
destituinte autoritária (intervenção militar) no meio de uma prática radicalmente
democrática não deve ser ridicularizando (como a esquerda intelectual faz), mas
valorizado em termos positivos, justamente reforçando as lutas como terreno de novas
mobilizações: se a contabilidade nos oferece um sem numero de números das perdas
geradas pela greve, a greve mostra uma produtividade incomensurável.
É nas lutas que os caminhoneiros podem descobrir que a "intervenção militar"
que vai haver será contra a luta deles e que, na realidade, por trás dela não vem
nenhuma luta contra a corrupção, mas o fim dos elementos de independência que
permitiram a alguns promotores e a alguns juízes romper o pacto mafioso e passar a
prender os "donos do poder".

6
UNIVERSIDADE NÔMADE

7
Junho de 2013: a insistência de uma percepção2

Alexandre Mendes3

Introdução

Nos últimos dias do ano de 2013, um jornalista do programa Roda Viva indagou
ao sociólogo Francisco de Oliveira o que teria marcado aquele turbulento ano: as
manifestações de rua, a prisão de alguns acusados do Mensalão, ou algum outro assunto
que ele achasse relevante. Oliveira respondeu que 2013 seria lembrado pela morte do
líder político sul-africano Nelson Mandela, justificando: ―é o que fica de uma vida
exemplar, enquanto os outros assuntos tendem a ser comidos pelo tempo e, um pouco,
pela banalidade do mal, como dizia Hannah Arendt‖4.
A resposta não só é inesperada, como revela duas características que podem
servir como o nosso ponto de partida: a) de um lado, ela aponta para um ceticismo, uma
desconfiança que acompanhou as análises de Junho de 2013, desde o início, e que tem a
ver com a possibilidade de pensarmos um novo possível; b) de outro, mesmo no caso de
reconhecimento da força de Junho, ela nos indica que o tempo exercerá o seu papel
inexorável de restauração, condenando-o à irrelevância dos assuntos episódicos e sem
maior importância.
No livro Mil Platôs (1980), referindo-se a Maio de 1968, Deleuze e Guattari
constataram que é comum que pessoas muito velhas ou muito limitadas percebam o
acontecimento melhor que os mais avançados e experientes especialistas da política. É
que elas enxergariam com mais rapidez e sensibilidade as mutações sociais, os fluxos
desviantes, as novas exigências coletivas, justamente, por não estarem tão presas aos
segmentos duros da macropolítica, com suas grandes clivagens e racionalidades
ordenadoras5.

2
Este texto reflete integralmente a apresentação de trabalho realizada na ―Jornada de estudos Junho 2013,
o ano que não acabou? Balanço e perspectivas em torno dos cinco anos da Jornada de Junhos no Brasil‖,
organizada pela Associação dos Pesquisadores e Estudantes Brasileiros na França (APEB-FR). O evento
ocorreu nos dias 1o e 02 de junho de 2018, na Maison des Initiatives Étudiantes, Paris, França. Aproveito
a oportunidade para agradecer aos organizadores e a todos que contribuíram com questões e
apontamentos sobre o texto.
3
Professor Adjunto da Faculdade de Direito da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ).
4
Para o programa completo, cf. https://www.youtube.com/watch?v=fF-hGyhr0-8 Acesso em 25 de junho
de 2018.
5
Conferir também: DELEUZE, G; GUATTARI. ―Mai 68 n‘a pas eu lieu‖. In: LAPOUJADE, D.
(Org.). Deux régimes de fous et autres texte Paris: Les Éditions de Minuit, 2003.

8
Em 1968, elas tiveram a capacidade de reagir melhor que muitos políticos,
militantes partidários, sindicalistas e pessoas de esquerda em geral que, ―destituídos da
máquina dual que fazia deles interlocutores válidos‖, continuavam afirmando que as
condições ainda não estavam dadas, que não havia organização e que aquele levante não
fazia qualquer sentido.

Ultrapassar as máquinas duais do pensamento

O propósito desta breve apresentação é, em primeiro lugar, compreender como o


campo de possibilidades aberto por Junho de 2013 acaba desaparecendo em análises
que, conscientemente ou não, retomam máquinas duais, citadas por Deleuze e Guattari,
produzindo, ou (i) uma sobreposição que julga os levantes de acordo com o conflito
entre grandes trincheiras, ou (ii) um corte que impede o mapeamento de intensidades
que ainda circulam. Em segundo lugar, pontuaremos algumas direções movediças
lançadas por Junho de 2013, ainda presentes na atualidade, que desafiam o pensamento
binário em razão do seu caráter ambíguo, múltiplo e flutuante6.
A primeira forma, no campo analítico, de fazer-desaparecer Junho de 2013 é
condená-lo a um embate dualista entre duas grandes coalizões, a rentista e a
produtivista. É a fórmula de André Singer (que poderia ser estendida também a Jessé
Souza). Nessa linha, o movimento de Junho de 2013, apesar de sua heterogeneidade
inicial, teria levado à intensificação das ―forças liberalizantes‖ que culminaram no fim
do pacto inclusivo que estava sendo pavimentado pelo lulismo, seja através do tempo
longo do reformismo fraco (Lula) ou da aceleração do ensaio desenvolvimentista
(Dilma). Os levantes de 2013 são condenados a servirem de cavalo de batalha das forças
do neoliberalismo e das finanças, caindo no lado errado da trincheira, da disputa entre
coalizões no interior do lulismo, culminando no impeachment de 2016 (SINGER, A.
2012; 2013; 2016).
A segunda forma de fazer desaparecer 2013, já numa tradição bem mais crítica
ao lulismo, determina uma nova ruptura, nos anos subsequentes dos levantes, que
apagaria as dimensões de revolta social presentes no momento da irrupção. É o caso de
Ruy Braga, que corretamente percebeu em suas enquetes operárias que no interior da
suposta pacificação lulista proliferavam insatisfações sociais relacionadas à
precarização do trabalho, às novas formas de espoliação urbanas e ambientais e aos

6
Desenvolvo este tema com mais profundidade no livro Vertigens de Junho, atualmente no prelo.

9
grandes projetos ligados a Copa e Olimpíadas. No entanto, embora Junho tenha
determinado uma ruptura com relação às formas de regulação e acumulação do lulismo
(pós-fordismo financeirizado), a passagem para um novo regime de espoliação social
determina uma nova clivagem que separa a rebeldia do precariado, de um lado, e as
classe médias golpistas, de outro. O pós-Junho é marcado, então, pelo signo negativo de
novas espoliações, golpes parlamentares e de novos ―autoritarismos econômicos e
políticos‖ (BRAGA, R. 2012; 2017).
A terceira forma, por fim, na linha de autores que trabalham a centralidade da
subjetivação política, Junho de 2013 não teria logrado constituir um corpo político,
sendo condenado a vagar como uma alma ou um ―assombro‖ a espera de uma
materialização. Junho aparece como ―força bruta de negação‖, como ―uma explosão
bruta da revolta‖ (Safatle), que foi derrotada pelas forças de reação, perdendo-se em
fragmentações, lógicas identitárias e arcaísmos. Para Pelbart, Junho teria sido
desprezado, apagado, esquecido pelo governismo à época e cooptado pela oposição, se
mantendo, hoje, apenas como um ―espectro‖ diante de uma sucessão de golpes sem fim
(SAFATLE, V. 2012; 2014; 2017; PAL PELBART, P. 2018).
Com efeito, seja por sua adesão à trincheira neoliberal, pela derrota frente ao
novo regime de espoliação social, ou por constituir espectro destituído de corpo, Junho
de 2013 é remetido a novos dualismos que impedem um mapeamento que seria do tipo
rizomático: aquele que segue as direções movediças, as sucessões de instabilidades, as
novas conexões heterogêneas e flutuantes que se desdobram do acontecimento[vi].
Seríamos capazes de nos manter em um terreno tão ambíguo e instável? Poderíamos
reabrir o nosso juízo, a nossa avaliação, não para ter mais um ponto de vista sobre
Junho, mas para considerar que Junho de 2013, ele mesmo, lançou uma série de pontos
de vistas e uma visão do intolerável que reclama uma nova sensibilidade?

Direções movediças e agenciamentos flutuantes

Então, quais direções movediças poderiam ser apontadas? Primeiro, que há um


esgotamento definitivo do modelo que opõe desenvolvimentismo e neoliberalismo,
tendo Junho atacado a dupla implicação ad infinitum entre as chamadas coalizões
produtivistas e rentistas (como nos mostra o caso da Petrobrás)7; segundo, que não

7
Uma forte antecipação desta crítica se encontra em: COCCO, Giuseppe. Korpobraz: por uma política
dos corpos. Rio de Janeiro: Mauad, 2014.

10
houve qualquer ruptura em 2016 no regime de acumulação, e sim uma tentativa
fracassada de gerir a crise através do aprofundamento de vetores que já estavam
estabelecidos anteriormente (reformas, ajustes, alianças políticas indiscriminadas etc.)8;
terceiro, que do ponto de vista dos levantes, a corrupção não é um assunto secundário
ou moralizante, mas expõe o modo de organização das novas relações entre público e
privado (nos moldes analisados por Francisco de Oliveira desde o Ornitorrinco 9) e os
seus terríveis impactos nos espaços de decisão (daí a relação incontornável, embora com
desdobramentos limitados e imprevisíveis, entre Junho de 2013 e a Lava Jato10); quarto,
que o consórcio oligárquico público-privado, reorganizado nos últimos anos, continua
impondo à população a conta de um modo de governo baseado no saque generalizado e,
por isso ressoa, de 2013 a 2018, o grito: ―nós não pagaremos essa conta‖ ; quinto, que a
nova visão do que nos é intolerável se recusa a ser controlada pelas velhas polarizações
forjadas no sistema político (PT x PSDB), e também pelas novas, aquelas que se
apresentam no pós-Junho de forma ainda mais mistificada, na forma de guerras culturais
e de narrativas; sexto, que no ato de recusa das armadilhas dualistas que desejam
restaurar Junho, foi criado um terreno político difuso e heterogêneo, altamente
mobilizado, multi-organizado e com inteligência coletiva própria, que busca
materializar a nova distribuição do sensível produzida por Junho de 2013.

8
Para este propósito, conferir o último dossiê temático da Revista Lugar Comum, intitulado ―O golpe
entre aspas‖, disponível em: http://uninomade.net/lugarcomum/51/ Acesso em 25 de junho de 2018.
9
É importante reconhecer que Francisco de Oliveira foi um dos primeiros que enxergou, no vácuo da
crise das tradicionais classes sociais e já no momento de constituição do governo petista, a formação de
uma ―nova classe no capitalismo globalizado de periferia‖, constituída por sindicalistas e membros
partidários que ascenderam ao controle de exuberantes fundos públicos, como aqueles de previdência, de
poupança obrigatória ou de vinculação legal. A partir desses fundos, os próprios modelos de restruturação
produtiva (privatização, fusões, aquisições, venda de participações etc.) são financiados criando o
paradoxo de uma desconstrução do mundo do trabalho arquitetada por um conselho dirigidos por
sindicalistas preocupados com taxas de rentabilidade sendo que, depois viemos a saber, também em fazer
caixa para as campanhas eleitorais. Para Oliveira, se o PT executa o programa de PSDB não é por um
simples equívoco ou má compreensão, mas pela proximidade material que se formou em termos de nova
classe social: ―de um lado, técnicos e intelectuais doublés de banqueiros, núcleo duro do PSDB, e, de
outro, operários transformados em operadores de fundos de previdência, núcleo duro do PT‖
(OLIVEIRA, F. 2003). Por sua vez, no post-scriptum do artigo O momento Lênin, elaborado após o
estouro da crise do Mensalão, Francisco de Oliveira afirma que a existência de um circuito de corrupção
no governo petista era algo extremamente previsível tendo em vista a nova conformação periférica entre o
público e o privado e teria uma consequência ―catastrófica‖ para a esquerda em geral. Para uma análise
semelhante no âmbito da América Latina, em especial sobre a formação de ―elites‖ advindas da
burocracia sindical e sua relação com a apropriação de fundos públicos, conferir: MACHADO, D.
ZIBECHI, R. Cambiar el mundo desde arriba: Los límites del progressismo. La Paz: CEDLA, 2016.
10
Sobre este ponto, conferir: COCCO, Giuseppe. ―O levante de junho atacou o hardpower brasileiro‖.
Entrevista concedida ao IHU online, em 27 de setembro de 2017. Disponível
em: http://www.ihu.unisinos.br/159-noticias/entrevistas/572064-o-levante-de-junho-de-2013-atacou-o-
hard-power-brasileiro-entrevista-especial-com-giuseppe-cocco Acesso em 21 de abril de 2018.

11
Encontrar brutalmente o que tínhamos diante dos olhos

Bastou que os levantes se renovassem a partir de condições reais da própria


existência – a emergência da luta dos caminhoneiros por todo o Brasil – para mostrar,
mais uma vez, como os modos de governar a nossa vida se tornaram obsoletos e
incompatíveis com o espaço-tempo já aberto desde Junho de 2013 (e não só a relação
com o sistema político, mas também com a cidade, o transporte, o ar que respiramos, a
nossa alimentação etc.). Na dinâmica viva do acontecimento, também os novos
dualismos que tentaram reorganizar o pós-Junho passaram a soar já antigos e até
irrelevantes (a retroalimentação cultural dos grupos de direita e de esquerda, o falso
jogo entre oposição e situação no sistema político, a divisão entre golpistas e golpeados
– todos incapazes de fazer frente à fratura provocada pelos novos levantes).
É, portanto, o esforço em afirmar uma nova percepção já conquistada (aquilo
que já vimos e não queremos deixar de ver) que marca a insistência do agenciamento
político instável, flutuante e sem coordenadas prévias que emergiu em Junho de 2013. É
ele que, a cada nova investida, recusa as máquinas duais que tentam domar e se
sobrepor ao acontecimento. Seria o caso de pensar se não estaríamos diante da profecia
de Francisco de Oliveira, às avessas: é Junho que parece comer incansavelmente o
tempo, devorando com ele as velhas trincheiras que tornam a ação política impossível.

Referências:

BRAGA, Ruy. A política do precariado: do populismo à hegemonia lulista. São Paulo:


Boitempo, 2012.

________ . Rebeldia do Precariado: trabalho e neoliberalismo no Sul global. São


Paulo: Boitempo, 2017.

CAVA, Bruno. A terra treme. Leituras do Brasil de 2013 a 2018. Rio de Janeiro:
Annablume, 2016.

COCCO, Giuseppe. Korpobraz: por uma política dos corpos. Rio de Janeiro: Mauad,
2014.
________. ―O levante de junho atacou o hardpower brasileiro‖. Entrevista concedida ao
IHU online, em 27 de setembro de 2017. Disponível
em: http://www.ihu.unisinos.br/159-noticias/entrevistas/572064-o-levante-de-junho-de-
2013-atacou-o-hard-power-brasileiro-entrevista-especial-com-giuseppe-cocco Acesso
em 21 de abril de 2018.

12
DELEUZE, G; GUATTARI. ―Mai 68 n‘a pas eu lieu‖. In: LAPOUJADE, D.
(Org.). Deux régimes de fous et autres textes. Paris: Les Éditions de Minuit, 2003. ;
OLIVEIRA, Francisco de. Crítica à razão dualista: o ornitorrinco. São Paulo:
Boitempo, 2003.

________. ―O momento Lenin:. In: Novos estud. – CEBRAP, São Paulo , n. 75, p. 23-
47, julho de 2006.

SAFATLE, V. ―Les limites du modèle brésilien : les nouveaux conflits sociaux et la fin
de l‘ère Lula‖. In: Revue Les Temps Modernes. Brésil 2013: L‟année qui ne s‟achève
pas (Dossier), n. 678, 2014.

________. ―Um problema de imagem‖. In: MARINGONI, Gilberto; MEDEIROS,


Juliano (Orgs.) Cinco mil dias: o Brasil na era do lulismo. São Paulo: Boitempo, 2017.
SINGER, André. Os sentidos do lulismo. Reforma gradual e pacto conservador. São
Paulo: Companhia das letras, 2012.

________. Brasil, junho de 2013: classes e ideologias cruzadas. In: Novos estudos
CEBRAP, n. 97. nov. 2013.

________. ―A (falta de) base política para o ensaio desenvolvimentista‖. In: SINGER,
A; LOUREIRO, I. As contradições do lulismo: a que ponto chegamos? São Paulo:
Boitempo, 2016.

PELBART, Peter Pal. Por que um golpe atrás do outro? In: Revista Peixe Elétrico,
publicação de 06 de fevereiro de 2018. Disponível em:
https://www.peixe-eletrico.com/single-post/2018/02/06/Por-que-um-golpe-
atr%C3%A1s-do-outroAcesso em 17 de abril de 2018.

13
Junho de 2013: sinais do futuro que já começou11

Frederico Lyra de Carvalho12

No seu livro de intervenção The year we dream dangerously, lançado em 2012,


o filósofo esloveno Slavoj Zizek tenta pensar os diversos acontecimentos que haviam
emergido por todo o mundo no ano anterior, 2011, ano este de: Revolução na Tunísia;
Revolução no Egito, tendo as ocupações na praça Tahrir como o símbolo maior;
Ocupação na praça Syntagma e motins por toda a Grécia; o movimento 15M dos
Indignados na Espanha; Occupy Wall Street; motins por todo o Reino Unido; entre
outros acontecimentos. Zizek observa que boa parte da dimensão emancipatória deste
ano em que voltamos a sonhar de forma perigosa na busca de alternativas para sair do
pesadelo do capital ao qual estamos subsumidos, foi imediatamente anulada pela mídia
que, entre outras coisas, passou a disseminar falácias quase que delirantes que
colocavam plataformas como o facebook como os meios responsáveis por tais
insurreições e revoluções. As grandes mídias cumpriram bem uma das suas funções de
existir, a saber, a de serem meios contrarrevolucionários. Exatamente por isso, uma
análise que busca vir pelo lado oposto, aquele da tradição dos oprimidos, não está
autorizada a se comportar como neutra. Essa posição, argumenta Zizek, é
inexoravelmente parcial e engajada, ou seja, para se pensar acontecimentos desta
proporção apenas uma análise que não negue o seu ponto de vista parece ser
consequente.
Ao final do livro, Zizek observa que após um ano, se muito, todas essas
explosões haviam sofrido um refluxo, quando não uma reação violenta. Seria, se
pergunta o filósofo, ―a única escolha que temos aquela entre a nostálgica-narcísica
lembrança dos momentos sublimes de entusiasmo e a cínica-realista explicação do que
dessas tentativas de mudar a situação iriam inevitavelmente falhar‖ (ZIZEK, 2012, p.
127)? Um primeiro sinal – de certa forma confirmado pelo futuro que é o agora – é que
a raiva não acabou e que novas revoltas poderiam explodir. Um outro sinal é que nada
poderia ser como antes e que as elites sabiam bem disso, estando consciente de que já

11
Texto publicado originalmente no site da Universidade Nômade Brasil, em 25 de junho de 2018.
Disponível emhttp://uninomade.net/tenda/junho-2013-sinais-do-futuro-que-ja-comecou/
12
Doutorando em Filosofia da Arte pela Université Lille Nord Paris

14
não tem mais o mesmo controle da situação. Tendo isto em mente, Zizek propõe então
uma inversão da perspectiva historicista corrente que muda o ângulo de percepção
desses acontecimentos, em vez de fazerem parte de uma linha que teria vindo do
passado para o presente, eles deve ser lidos como: sinais do futuro. ―Explosões radicais
emancipatórias não podem ser compreendidas desta maneira: em vez de analisá-las
como parte do contínuo do passado e presente, devemos trazer a perspectiva do futuro,
tomando-as como limitadas, distorcidos (às vezes mesmo pervertidos) fragmentos de
um futuro utópico que se encontra dormente no presente com o seu potencial
escondido‖. Estes acontecimentos são ―elementos que estão aqui, no nosso espaço, mas
cujo tempo é o de um futuro emancipado, o futuro da Ideia Comunista‖ (ZIZEK, p.
128). Contudo, nada pode garantir de maneira nenhuma que este futuro chegará. Não há
teleologia, apenas reconhecimento de uma potencialidade particular. ―Enquanto
aprendemos a assistir tais sinais, nos diz Zizek, devemos estar conscientes que o que
estamos fazendo agora só se tornará legível quando o futuro estiver aqui‖ (ZIZEK, p.
128), e ele continua ―o que é preciso, então, é um delicado equilíbrio entre a leitura dos
sinais do hipotético futuro comunista e a manutenção da abertura radical do futuro‖
(ZIZEK, p. 128-29). A leitura desses sinais requer assumir plenamente uma posição
engajada, seguir fielmente estes sinais para que só assim o futuro que eles anunciam
possa talvez se tornar presente. Todavia, isso não implica que este futuro deva ser
imaginado positivamente, pelo contrário, a abertura para o futuro é negativa e o
empenho deve ser em via da efetivação dessa negação. A palavra de ordem ―não vai ter
copa!‖ foi de certa forma, um sinal de um futuro que não chegou. A copa aconteceu,
mas poderia não ter ocorrido. Os sinais são ambíguos, não são garantias de nada. De
onde nossa hipótese de ler as Jornadas de Junho 2013 da mesma forma com que Zizek
leu os acontecimentos que transcorreram em 2011 como: sinais do futuro. Junho teria
sido uma abertura de possibilidades para um futuro que, no entanto, não chegou. Resta
saber se ele não chegou ainda, ou se aquele futuro já foi extinto. Um outro futuro, que é
o nosso presente, este sim chegou chegando e é a múltipla e totalizante crise na qual
estamos inseridos até o pescoço. De certa forma, assim como as reações contra as
insurreições e revoluções de 2011 continuam em marcha, o contínuo, que vai do levante
dos ―coxinhas‖ ainda nas ruas de Junho até a intervenção do exército contra a greve dos
caminhoneiros, embora desorganizado, caótico e aleatório pode ser visto como um
gênero novo de contrarrevolução preventiva que demonstra que as elites brasileiras
entenderam aquele espírito de junho. Como disse Mario Sérgio Conti, ―a situação que se

15
abriu é revolucionária‖ (apud, ARANTES, p. 424), mas isto não era garantia de que
haveria de fato uma revolução. A hipótese de Paulo Arantes é de que as Jornadas seriam
―um enigma, de cuja solução apenas encaminhada dispomos, desde Junho, de um ensaio
geral. Fica a descoberta atônita de que a insurgência que vem, ou que está chegando,
envolve um momento perturbador de desgoverno, de abalo sísmico do regime
normativo dominante: simplesmente não queremos mais ser governados, ou não mais
assim‖ (ARANTES, p. 424). Que ele completa dizendo que ―quase tudo consiste em
saber decifrar retrospectivamente um tal ‗assim‘. O novo se insinuou por essa brecha‖
(ARANTES, idem). Um outro futuro foi aberto nas ruas, e nenhum esforço para evitá-lo
parece ser em vão e empenho. Se por um lado, na hipótese de Arantes as Jornadas de
Junho teriam sido uma insurreição contra uma outra contrarrevolução que já durava
mais ou menos 30 anos e que é normalmente conhecida como transição democrática,
uma nova etapa de rebaixamento e agravamento deste processo talvez fosse o que ele
tinha em mente quando nos disse que ―Depois de Junho a Paz será Total‖.
Contudo não é do futuro que chegou que nos propomos a falar. Mas de alguns
sinais que parecem ter ficado lá atrás e que fazem parte do futuro que não veio. Decidir
se ele pode vir é uma tarefa política. De forma que poderíamos adaptar, um pouco
facilmente é verdade, a questão feita por Giorgio Agamben em relação a Auschwitz, e
nos perguntar: O que resta de Junho de 2013? Se um por um lado, Agamben busca
identificar o que é latente no presente daquela catástrofe maior que foram os campos de
extermínio nazistas, a nossa questão é muito mais modesta e diz respeito a quais
práticas e a qual dimensão do que aconteceu no Brasil podemos continuar fiéis? E fiéis
no sentido badiousiano da necessidade de ser fiel a um acontecimento para poder de
certa forma continuá-lo. Isso posto, é também verdade que mais recentemente o próprio
Badiou parece ter esquecido esta dimensão da sua filosofia e tem feito uma leitura da
primavera árabe e do que aconteceu na Grécia e Espanha de uma forma bastante
historicista e paternalista. Como se as consequências reativas a tais acontecimentos
revelassem as suas verdades, interditando de fato àqueles que continuam engajados em
tais processos de os continuarem. Pensando os acontecimentos contemporâneos ele não
faz jus as suas análises da Comuna de Paris ou de Maio de 68 entre outros
acontecimentos. A nossa hipótese é que devemos interpretar os sinais do futuro que
anunciou Junho de 2013 através do que deles resta e, sendo fiel a este resto, tentar dar
forma àquele futuro que não veio. Não se pode esquecer que um outro futuro de 2013 é
o presente, é o agora, o futuro já é. Ele já está aí de certa forma. Então como reverter

16
isso? Passo então a sugerir três sinais que creio ainda serem latentes. Sinais que de certa
forma foram atualizados com a greve dos caminhoneiros: a ação direta dos black blocs;
a negatividade que surgiu na rua com o ―eu sou ninguém‖ e a dimensão nacional do
acontecimento.

Ação direta

A atuação dos black blocs em 2013 coloca algumas questões para se pensar o
ressurgimento e se de fato existe uma necessidade crescente para pensar a ação direta.
Mais do que os black blocs em si, é esse problema que me interessa mais. Antes de
chegar no Brasil podemos iniciar com um desvio em torno de alguns fatos recentes aqui
em Paris. A tradicional manifestação do 01 de maio deste ano de 2018, que é
normalmente um inofensivo desfile dos tradicionais partidos e sindicatos franceses, foi
impulsionada pelo cortège de tête dos black blocs e assim passou do estágio de ser
apenas mais um desfile para vir-a-ser de fato uma manifestação. Segundo a grande
mídia havia entre 1200 e 1300 casseurs, a vanguarda combativa da manifestação e mais
ou menos 20 mil no desfile tradicional. No entanto, o que mais chamou atenção foi o
grupo intermediário nomeado pela mídia como ‗cortejo de pessoas radicalizadas‘ e que
segundo dados oficiais contabilizava 14500 pessoas. Pois foi este grupo que mais
assustou o aparelho do Estado francês. Embora numerosos, os casseurs eram esperados
e já se sabe que os sindicatos vêm ano após ano definhando, não se esperava um terceiro
grupo tão significativo. Uma certeza é a de que eles não fazem mais parte da esquerda
mais tradicional, mas, por outro lado, eles também não são black blocs. No entanto, se
quisermos avançar bastante o sinal poderíamos dizer que eles são potencialmente black
blocs. E é essa no fundo a interpretação sugerida, pois estas 14500 pessoas estavam de
certa forma protegendo e eram no mínimo simpatizantes daqueles outros. É este tipo de
aliança que é temida, pois não está claro o que seriam e nem o que poderiam fazer
16000 mil casseurs nas ruas Paris. Um outro exemplo desse tipo de aliança ocorreu na
manifestação do sábado 26 de maio 2018, quando pela primeira vez o cortège de tête foi
ocupado por uma organização de banlieue – La verité pour Adama – que por todo o
trajeto – de Place de République à Place de la Bastille – foi escoltado por algumas
centenas de black blocs. Estes em respeito à Adama, fugiram das suas praticas usuais,
não agiram e desfilaram lado a lado do cortejo do banlieue. Isto é, os casseurs não

17
quebraram nada, agiram contra a sua lógica comum, fugiram do confronto que estava
previsto e ensaiaram constituir uma nova aliança ainda por vir.
Esse longo desvio nos leva de volta ao Rio de Janeiro onde por alguns meses –
entre junho e outubro – se constituiu uma aliança entre os black blocs e os professores
que estavam em greve naquele momento, aliança esta simbolizada pela simbiose
nomeada de: black prof. Se não podemos afirmar que todos os professores do Estado do
Rio de Janeiro se tornaram de uma hora para outra black blocs, com a constituição dos
black profs fica claro que este poderia muito bem ter sido caso. E esta aliança foi
construída na rua. Como bem descrevem Mariana Côrrea dos Santos e Silvio Pedrosa a
ação direta e violenta havia conquistado uma certa legitimidade e demonstrado ser
necessária naquele momento e assim havia ganho a adesão de parte da população que
normalmente não apoiaria tais ações. Além do mais, segundo estes autores, naquele
momento no Rio houve uma transversalidade de classe e raça na composição dos black
blocs que não se encontrava em outros lugares, nem em São Paulo. Haviam mais negros
e pobres do que o usual. Como alguns autores observam, foi esse tipo de convergência
que permitiu às manifestações durarem tanto tempo nessa cidade. Assim, em uma
interessante inversão observada por Rodrigo Nunes, os black blocs, em princípio contra
qualquer tipo de representação, se tornaram os representantes maiores daquilo que
estava acontecendo. Enfim, se é verdade que essa tática mostrou os seus limites, e que
talvez devamos imaginar outras táticas de ação direta dissociadas e para além dos black
blocs, essa aliança temporária com os professores constituindo o black prof demanda
que se pense seriamente as possibilidades abertas pela ampliação e de certa forma
reaparição da ação direta urbana. Por exemplo, e se tivéssemos visto surgir os black
trucks ou caminhoneiros blocs na greve dos caminhoneiros? Ou melhor, e se alguma
nova tática tivesse surgido nesse momento? O sinal do futuro que é a aparição dos black
profs, é a demonstração de que algo desse tipo não é de todo impossível.

Des-identidade

―Anota ai, eu sou ninguém‖. Muito já se discutiu em torno desse enunciado


político que surgiu nas ruas de São Paulo. Guardada as devidas proporções, o que
aconteceu com a aparição deste enunciado na rua é mais ou menos o que Foucault havia
visto nas ruas de Teerã em 1979: uma ideia política nova que nasceu na rua,
completamente imanente ao processo e que têm uma força particular pois surge e se

18
transforma na rua, no encontro com o real. Por um lado, Peter Pal Pelbart sublinha a
potência dessubjetivadora desse enunciado. Por outro lado, Giuseppe Cocco e Márcio
Tascheto insistem na sua inerente multiplicidade. Porém, parece existir um aspecto
prático pelo que no entanto tem sido pouco observado e que tentarei desenvolver
brevemente prolongando a observação feita por Paulo Arantes que diz que a aparição do
―ninguém‖ ―ressalta a luta para tornar comum o que é comum ao contagiar o próprio
nome comum de quem luta‖ (ARANTES, 2014, p. 462). Essa não-identidade surgida
nas ruas não nega necessariamente todas as identidades e nem pode ser facilmente
invertida e se tornar: ―eu sou ninguém, logo sou todo mundo‖. ―Eu sou ninguém‖ não
pode ser invertido em ―eu sou todo mundo‖, como supõe João Marcelo Simões. O
enunciado que surgiu nas ruas parece sobretudo essencialmente negar a identidade mais
tradicional de esquerda, a versão brasileira dos partidos e sindicatos franceses que
aludimos acima. Devido à situação política concreta do Brasil, outras identidades não
parecem ser automaticamente negadas. Ao menos não imediatamente e nem tão pouco
de forma necessária. Por estas identidades serem negativas quando se veem
confrontadas às mais diversas situações, ―eu sou ninguém‖ não dobra a negação, mas
pelo contrário pode vir-a-ser algo como: ―eu sou ninguém‘ que você já não vê‖. Uma
maneira de assumir essa negatividade dando força política para ela.
Desta maneira, a nossa hipótese é de que essa não-identidade surgida na rua
talvez possa ser um operatório capaz de articular a potência desidentificadora da figura
do proletariado com as ditas pautas e luta identitárias especialmente as de gênero, raça e
feministas. Quando a figura do proletariado é desidentificada da classe operária,
passando a ter de volta o seu sentido original de despossessão volta a ser, de certa
forma, capaz de reencarnar esse ninguém que pediu para ter o seu nome anotado. Em
um país onde estas lutas acima referidas são tudo menos abstratas, tudo menos
imaginárias, me parece que a única identidade que não parece ser capaz de se articular
com esse enunciado é a da esquerda mais tradicional, essa está fadada a desaparecer ou
se reificar. Falta saber como articular de fato essas pautas e o enunciado, pois eles em
princípio parecem mutuamente se excluir. Algumas pistas parecem estar na heterogênea
composição dos black blocs no Rio de Janeiro e no fato de que na França este mesmo
grupo é cada vez mais composto por mulheres, além de mais e mais se reclamar de um
feminismo libertário. Talvez o enunciado ―eu sou ninguém‖ se pronunciado por
militantes de gênero, raciais e feministas não deva ser visto como sendo uma negação
dessas lutas, mas como uma forma particular de se assumir plenamente uma

19
contradição, contradição esta que talvez seja capaz de criar uma abertura possível de
reorganizar o campo militante radical a partir dessas lutas concretas. Possivelmente essa
tensão constitutiva também seja simbolizada por Marielle: mulher, negra, lésbica, pobre
e de esquerda. Diversos ―ninguém‖ em um mesmo corpo. Dito de outra forma, quem
sabe o sinal do futuro não esteja contido no paradoxo constituído entre a potência
desidentificadora do enunciado ―eu sou ninguém‖ e estas lutas concretas e urgentes.

Nacional

Por último gostaria de insistir na dimensão nacional de Junho de 2013. Estamos


sempre observando que o Brasil é territorialmente maior do que a Europa, mas não
parece que nos damos conta de que é efetivamente essa a dimensão territorial de junho,
ou seja, é quase como se em um espaço de poucos dias tivéssemos tido manifestações
de massa por toda a Europa. Desta forma, se estamos de fato numa Guerra Civil e a
República acabou, como tem dito Vladimir Safatle, estas duas dimensões são bem
nacionais, abarcam todo o território e não estão restritas a poucas localidades. Paulo
Arantes observa que: as ―mais diversas fontes oscilam entre 10 e 15 milhões de
manifestantes em mais de quinhentas cidades. Enquanto não dispusermos de uma
razoável coleção de relatos de todas as procedências, sobretudo das mais improváveis,
continuará soterrada a memória viva do maior protesto de massa da história brasileira,
com esta peculiaridade igualmente divisora de águas, a de que ele foi rigorosamente
autoconvocado‖ (ARANTES, p. 378). Não por acaso, em um ensaio como o dele, que
se detém nas suas mais de cem páginas essencialmente ao que aconteceu no Rio de
Janeiro e em São Paulo e que em uma nota assume que o seu ponto de vista é mesmo
paulista – e isso não é nenhum problema em si, mas apenas um fato – confessa que o
relato mais improvável de Junho do qual teve notícias até aquele momento não tinha
ocorrido em nenhuma dessas cidades, mas em Fortaleza, quando por ocasião do jogo
Brasil e México, pela copa das confederações, um ―enxame de pivetes que capricharam
num sem-número de manobras táticas, entre elas o sequestro de um ônibus, ato contínuo
desviado na direção de um pelotão de cavalarianos da PM, não sem antes desembarcar
os passageiros e confiscar-lhes os ingressos para o jogo. Mas como a barra da direção
pesou mais do que podiam os braços do novo motorista, este pulou fora, deixando um
saldo devedor atravessado na pista, um bagulho-dispositivo fora do uso oficial‖
(ARANTES, p. 409). Talvez este seja um outro sinal do futuro (e vale observar que até

20
aqui o autor, pernambucano, também só havia falado de RJ e SP). É verdade que o
volume Junho potência das ruas e das redes organizado por Alana Moraes, Jean Tible,
Henrique Parra, Bernardo Gutierrez, Salvador Schavelzon e Hugo Albuquerque pareça
ter sido o esforço que conseguiu ir mais longe nesta direção. No entanto, ele trata mais
de movimentos que ocorreram em paralelo do que o que de fato aconteceu no Brasil
afora. Por exemplo, o capítulo sobre o Ocupe Estelita em Recife, é mais um relato e
análise crítica deste movimento do que sobre o que foram as Jornadas de Junho nesta
cidade. No fundo ninguém ainda parece ter dado conta dessa dimensão e conseguido
efetivamente sair do eixo Rio-São Paulo. Talvez passe por esse gesto um novo
entendimento do que está efetivamente acontecendo neste que é o futuro de junho, o
nosso presente. O sinal do futuro é que as jornadas abarcaram a integralidade do
―gigante‖, e temos que dar conta disso para reabri-lo.

Referências

AGAMBEN, Giorgio. Auschwitz, L‟archive et le Témoin, in Homo Saces.


L‟intégrale. Paris: Seuil, 1998/2017.

ARANTES, Paulo. ―Depois de junho a paz será total‖, in O novo tempo do mundo. E
outros ensaios sobre a era da emergência. São Paulo: Boitempo, 2014.

BADIOU, Alain. Éloge de la politique. Paris: Flammarion, 2017.

CORRÊA dos SANTOS, Mariana; PEDROSA Silvio. ―Corps en mouvement : les Black
Blocs à Rio et les représentations de la résistance‖, in Les Temps Modernes, n. 2 (678),
2014, p. 73-92.

COCCO, Giuseppe; TASCHETO, Márcio. ―Eu (não) sou ninguém: a subjetividade sem
nome‖, in Kalagatos, Fortaleza, v. 14, n. 2, maio-ago, 2017, p. 37-57.

MORAES, Alana; GUTIÉRRES, Bernardo; PARRA, Henrique; ALBUQUERQUE,


Hugo; TIBLE, Jean; SCHAVELZON, Salvador. Junho. Potência das Ruas e das
Redes. São Paulo: Friedrich Ebert Stiftung, 2014.

NUNES, Rodrigo. ―Anônimo, vanguarda, imperceptível‖, In Revista Serrote, 2016. n.


11. Disponível em: https://www.revistaserrote.com.br/2016/11/anonimo-vanguarda-
imperceptivel-por-rodrigo-nunes/

PELBART, Peter Pal. ―Anota ai, eu sou ninguém‖, in Folha de São Paulo, 19.07.2013.
Disponível em: https://www1.folha.uol.com.br/opiniao/2013/07/1313378-peter-pal-
pelbart-anota-ai-eu-sou-ninguem.shtml

21
SAFATLE, Vladimir. ―A nova republica acabou‖, in Carta Capital, 15.03.2015.
Disponível em:
https://www.cartacapital.com.br/revista/841/a-nova-republica-acabou-2242.html
________________. ―Vivemos uma fase cada vez mais explicita de guerra civil‖,
in Carta Capital, 28.03.2018. Disponível
em: https://www.cartacapital.com.br/politica/safatle-201cvivemos-uma-fase-cada-vez-
mais-explicita-de-guerra-civil201d

SIMÕES, João Marcelo. ―Anota aí: Eu sou ninguém‖ As transformações no senso de


coletividade e o uso tático das mídias no Brasil‖. in. Anais Simpósio ABCciber, 2014.
Disponível
em: www.abciber.org.br/simposio2014/anais/GTs/joao_marcelo_lima_simoes_140.pdf

ZIZEK, Slavoj. ―Conclusion: Signs from the future‖, in The year we dream
dangerously. London-New York: Verso, 2012.

22
O trabalho das linhas13

Giuseppe Cocco14
Bruno Cava15
Linhas de mundialização

Este artigo traça algumas linhas de reflexão sobre a mundialização e, ao mesmo


tempo, esboça um projeto mais ambicioso de pesquisa sobre o trabalho das linhas16. Em
sua antropologia comparada da linha, Tim Ingold nos lembra: ―O que há de comum
entre caminhar, costurar, cantar, contar uma história, desenhar e escrever? A resposta é
que todas essas ações se desenrolam segundo diferentes tipos de linhas‖17. As linhas
estão por toda parte, mas diferem umas das outras. Para Delanda, as civilizações se
distinguem umas das outras pelo fato de serem ou não lineares 18. Ingold sugere outro
caminho, outra linha de diferenciação. A questão não é de linearidade ou não-
linearidade, mas quem impõe essas linhas: ―O colonialismo não consiste exatamente na
imposição de uma linearidade sobre uma sociedade de outra forma não-linear, mas em
impor a sua própria linha em detrimento de outro tipo de linha‖19. Então, não somente é
preciso diferenciar os tipos de linhas e quem os produziu, como também como as linhas
foram produzidas e reproduzidas. Isto significa que as linhas têm o poder de fabricar o
mundo como também de mudá-lo. Essa a questão que nos interessa: o trabalho das
linhas.
Carl Schmitt nos deu as teorizações mais robustas sobre o trabalho jurídico-
político das linhas20. Já no livro Terra e mar21, um pequeno ensaio publicado em 1942,

13
Publicado Originalmente na Revista Multitude No70. Disponível também no site da Universidade
Nômade Brasil: http://uninomade.net/tenda/o-trabalho-das-linhas/
14
Giuseppe Cocco, pesquisador da UniNômade. Professor titular da Universidade Federal do Rio de
Janeiro – UFRJ, editor das revistas Global Brasil, Lugar Comum e Multitudes e coordenador da coleção
A Política no Império (Civilização Brasileira).
15
Blogueiro e professor de cursos livres fora da instituição universitária, é coeditor da revista Lugar
Comum, autor com Alexandre F. Mendes de A Constituição do Comum (Renavam, 2017). Participa da
rede Universidade Nômade e Kinodeleuze.
16
Neste ano, os autores publicaram ―The new neoliberalism: anthropophagy, biopower and living
money‖, Londres: Lexington, 2018. ―O trabalho das linhas‖ será o segundo livro da planejada trilogia do
Equizoceno, com previsão de publicação em 2019.
17
Tim Ingold. ―A brief history‖, Routledge, 2007.
18
Manuel DeLanda. ―A thousand years of nonlinear history‖, Sherwe, 1997.
19
Ibid. Itálico nosso.
20 Carl Schmitt, ―Der Nomos der Erde. Im Völkerrecht des Jus Publicum Aeropaeum‖ (1950). Edição
brasileira: ―O nomos da Terra no direito das gentes do jus publicum europaeum‖, Contraponto, 2016. As
citações ao longo do artigo se referem à edição italiana na tradução de Emanuele Castrucci: ―Il nomos
della terra‖, Milano, 1991, utilizada pelos autores.
21
―Land und Meer. Eine welteschichtliche Betrachtung‖, 1942.

23
Schmitt descreve a dominação da terra por uma Inglaterra tão bem adaptada ao mar que
chega a ser equiparada a um peixe monstruoso, um Leviatã. Até meados do século 15,
na construção do poder soberano, a tomada da terra pela própria terra prevalecia. As
civilizações ou eram telúricas ou potâmicas. Mesmo a dominação dos mares interiores
continuava de qualquer jeito subordinada à pátria-mãe, de caráter terrestre. O mar,
quando dominado, se tornava mare nostrum. A desterritorialização somente ocorria
esporadicamente, em ocasiões bastante específicas. Até que os baleeiros passaram a
arremessar-se em alto mar, ao encalço dos maiores monstros marinhos do planeta. O
sulco deixado pela fuga das baleias traçou as primeiras linhas de desterritorialização,
sobre o que deslizaram e deliraram aventureiros e caçadores, na direção de águas
desconhecidas, muito além dos mares interiores da navegação de cabotagem. A partir da
década de 1440, com os lusos de Sagres, o mar aberto pela primeira vez começa a ser
estriado por meio de uma combinação de linhas celestes (o astrolábio, o sextante) e
marinhas (os paralelos e meridianos), destoando da formação de um mar pátrio. O
Atlântico é o primeiro mar verdadeiramente aberto, que precisa ser ocupado em sua
própria abertura e exterioridade, o que se tornará o objeto da ciência régia dos ibéricos.
O Atlântico foi um vazio mental que virou a cabeça de geógrafos e geopolíticos, o ponto
de partida para uma tecnologia de poder que serviria para a tomada dos demais oceanos.
Foi sobre esse novo modo de espacialização, não mais territorializado, que se constituiu
a economia-mundo nos albores do capitalismo. O capitalismo é, pela gênese, atlântico.
Entre a terra firme e o mar livre (o ultramar), um campo de interações e combinações
mútuas vai instituir um jogo complexo de tensões e expansões territoriais e econômicas.
É nesse ponto de viragem, ao redor da virada para o século 16, que Schmitt
aponta o surgimento do primeiro nomos da Terra. Ou seja, de um nomos global, da
Terra como um todo, e não mais de uma única pátria ou civilização com sua própria
ordenação-localização. Com isso, a soberania deixa de se circunscrever num dentro a
ser protegido em relação a um fora, estrangeiro e ameaçador. Agora, o mar a ser tomado
é constitutivamente exterior, não pode ser interiorizado, e é esse fora que deve ser o
tema para um novo modo de controle. Noutras palavras, o fora se torna imanente, e se
converte no ponto chave para a arte de governar, com profundas repercussões na
organização local e global dos poderes. Não é possível explicar a formação da economia
política clássica e do liberalismo político, sem partirmos das linhas de poder implicadas
na conquista do Novo Mundo.

24
Linhas de demarcação

Para compreender o nomos que as linhas produzem, diz Schmitt, é preciso


recuperar a potência da própria palavra. Nomos, ele diz, vem do grego nemein, que
significa pastoreio, a atividade de conduzir rebanhos. Essa é a sua significação
originária: não uma norma abstrata que coubesse ser respeitada, mas a ação concreta de
delimitar e distribuir o espaço. Para Schmitt, o nomos é a medida de todas as medidas, o
vínculo original entre o ato concreto de ordenar (Ordnung) e de localizar (Ortung), quer
dizer, a ligação decisiva que articula espaço e lei. O nomos é a ordo ordinans, o poder
constituinte, o acontecimento fundamental do qual emanam os títulos jurídicos, a posse
e a propriedade. As armas da crítica de Schmitt são dirigidas contra as tentativas de
desligamento das linhas em relação ao gesto concreto do poder e da decisão, o que
desligaria o direito e a violência da tomada, deixando a norma pairar abstrata,
impotente22. De fato, para Schmitt, os juristas positivistas e normativistas de Weimar
acabam se rendendo ―às pretensões hegemônicas das ciências naturais, à reivindicação
do progresso do desenvolvimento técnico-industrial‖23, apagando o elemento
constituinte e decisionista na base do fenômeno jurídico. Antes e durante da guerra, isso
vai servir de justificativa para Schmitt aderir ao nazismo, como um regime que teria
restaurado o sentido forte da palavra nomos, contra as pretensões normativistas de um
direito que teria se ―judaicizado‖.
Depois da guerra e de um período de confinamento num campo de prisioneiros,
Schmitt vai prosseguir a pesquisa sobre o nomos, porém deslocará a investigação do
direito constitucional dos estados para o direito internacional da globalização. O foco do
jurista será a compreensão de um mundo no qual ―são traçadas novas linhas de
fronteiras, novos alinhamentos, além do que despencam as bombas atômicas e de
hidrogênio‖24. Em O nomos da Terra, Schmitt define três tipos de linhas de
mundialização: as Rayas ibéricas, as Amity lines anglo-francesas e as linhas globais
norte-americanas. As Rayas estavam voltadas a dirimir os conflitos entre Espanha e
Portugal, numa partilha sob a égide da autoridade comum e estável do Papa. Em suma,
nessas linhas a questão é pôr-se em acordo na aquisição de territórios dos outros, no

22
Ingold, op. cit. p. 100.
23
Op. cit., p. 67.
24
Op. cit., p. 15.

25
além-mar. As Amity lines, por sua vez, foram estabelecidas durante as guerras de
religião, no século 17, entre as potências católicas e protestantes. O princípio, nesse tipo
de linhas, é que a paz (a amizade) não valha tão somente na Velha Europa, como
também nas colônias do Novo Mundo, pela primeira vez regendo o que antes era
considerado em estado de natureza, de guerra perpétua. Mas essas eram as linhas que
abriam um terreno livre para as incursões predatórias dos corsários ingleses, às custas
das demais potências europeias. Mantém-se de toda sorte a liberdade de acesso aos
novos espaços que começam além da linha. ―Liberdade significa, escreve Schmitt, que
a linha defina um campo, ou afirme o uso inimputável e implacável da violência‖ 25. O
terceiro tipo de linha é a linha global desenhada pelos Estados Unidos, desenvolvida a
partir da talassocracia inglesa, cujo free trade pela primeira vez pretendeu abrir todos os
portos e incluir a inteireza do globo sob o império do comércio. A nova linha americana
não se esgota numa visada territorial, aplicando-se sobre todo do globo. Entre a
ausência formal e a presença de fato, os americanos preferem instituir a linha do
imperialismo, que não assume mais fronteiras fixas26.
Mas as linhas não são somente aquelas traçadas pelo poder soberano. O próprio
jurista alemão — para tentar descrever de maneira negativa o paradigma anglo-
americano — acaba sendo obrigado a reconhecer uma outra dimensão: desta vez
horizontal e constituinte, o que em princípio ele não admitia. E o faz comentando que o
pensamento de Thomas Hobbes não seria inglês: ―O decisionismo, marcadamente
jurídico, que corresponde tão bem ao espírito do legislador francês, está completamente
ausente (na Inglaterra)‖.
Mas nada vai mudar o fato que o maior de todos os decisionistas, Thomas
Hobbes, seja inglês. A Inglaterra realizou o grande salto apesar de sua estrutura estatal:
pois foram os piratas os primeiros a constituir a liberdade não estatal dos mares, contra
os galeões espanhóis em suas rotas fixas entre portos do Velho e do Novo Mundo. A
mobilidade e leveza dos piratas e privateerspropiciaram a vitória da Inglaterra na
batalha do domínio do Atlântico, a começar pela vitória contra a Invencível Armada
(1588). É emblemático que Schmitt os defina como ―os guerrilheiros do mar‖ 27. Eis
então a cena para a tragédia da globalização, segundo Schmitt: a liberdade dos mares e a
liberdade dos comércios marítimos nascem de linhas não-estatais e, dessa maneira, já

25
Ibid. p. 93
26
Ibid. p. 387
27
Ibid. p. 210

26
anunciam o próximo salto. A perda total de ligação com o território da tecnologia
moderna‖28.

Linhas moventes

A partir da obra do helenista E. Larouche, Gilles Deleuze atribui o conceito


de nomos à atividade de pastoreio dos campos sem cercamentos, geralmente nas
encostas fora dos limites da cidade, típicos da transumância29. O nomos é aqui
produzido por linhas aberrantes e moventes e não mais por aquelas fixas de propriedade
e de demarcação. Não mais meço o espaço para dividi-lo em lotes e então os ocupo;
agora os animais se distribuem nele em função das condições locais, resolvendo
problemas contingentes, ocupando para medir, uma medida imanente ao próprio
impulso vital. Os rebanhos se esparramam pelas pastagens abertas segundo ações locais,
sem norma exterior ao próprio movimento, procedendo por um acumulação de
vizinhanças. Tal qual uma mancha de óleo aproveita das melhores condições na medida
em que as vai encontrando. O movimento é renovado perpetuamente, recriando-se
enquanto avança, conforme o impulso interno se depara com diferentes problemas.
Trata-se, para Deleuze, de uma ―distribuição de errâncias‖ num espaço liso, sem medida
fixa, e não de territórios cercados e subdivididos de um espaço estriado, cuja medição se
dá quantitativamente.
Em Mil Platôs, espaços estriados e lisos não formam uma simples oposição ou
uma dicotomia normativa, ou um ou outro, mas uma relação mais intrincada que não
cessa de gerar superposições, correlações dinâmicas, interpenetrações e diferentes
coeficientes de metamorfose de um no outro (errâncias que se sedentarizam, como
também viagens imóveis, ―a grandes passos‖). É assim que, na mesma lógica de longa
duração na qual a marinha inglesa esquadrinhou o Atlântico, podemos identificar as
linhas de fuga pulsando por dentro das próprias linhas de poder. A partir de diferentes
vetores de desterritorialização internos à empresa da conquista do novo Mundo,
fermentaram espaços de resistência e êxodo. Desde o impulso inicial, os nômades, a
resistência, a liberdade já estavam instalados nas fissuras do nomos da Terra: seja com a
potência revolucionária da hidra de mil cabeças (Peter Linebaugh e Marcus Reddiker), a

28
Ibid. p. 215
29
―Différence et Répétition‖, PUF, Paris, 1968.

27
resistência criativa diaspórica do Atlântico negro (Paul Gilroy), os arquipélagos da
pirataria das Zonas Autônomas Temporárias (Hakim Bey), as potências biopolíticas
entrecruzadas de linhas de fuga e mestiçagem (Édouard Glissant). Há algo como
um nomos obscuro que vai perfurar toda sorte de muro ou rigidez, um deserto que se
alastra no seio do nomos predominante, desestabilizando-o desde as suas entranhas.
Em seu trabalho sobre a economia-mundo na longa duração, Giovanni Arrighi
afirma que tanto o início quanto o final de um período de hegemonia mundial é marcado
pela ocorrência de uma grande crise financeira. As linhas do nomos da Terra são ao
mesmo tempo linhas flutuantes de confiança monetária. Essa é a dupla fronteira móvel
que constitui a dinâmica do que os historiadores da Escola dos Annales chamaram de
―economia-mundo‖. Para Arrighi, a hegemonia britânica, que prepara a americana do
século 20, é indissociável de um concerto de estratégias militares e monetárias, as duas
faces articuladas da soberania: a força e o signo. Existe então uma linha contínua de
governança que associa as operações da marinha inglesa com as do banco central. Os
mares se articulam com os de dinheiro, diluindo toda possibilidade de um núcleo
centralizador. Mas Arrighi pára aí e, assim como havia feito Schmitt, adota por
horizonte teórico a recomposição de um nomos sempre pensado como poder soberano
(nomos basileus), ainda que seja um poder soberano capaz de atuar mediante linhas
desterritorializadas. A preocupação de ambos os coloca do lado da recomposição de um
novo poder, diante das dissoluções da globalização capitalista. Seria preciso controlar os
fluxos para evitar a dissolução final da soberania. A sociedade inteiramente subsumida é
a mesma cujas subjetividades se espalham, por todos os lados e em todas as partes,
simultaneamente transbordante e instável. Isso nos leva a conhecer o outro lado da
moeda, ou melhor, o avesso sombrio do poder soberano: a substância biopolítica que,
em primeiro lugar, o anima30.
Os economistas políticos clássicos calcaram o valor dos bens no tempo
mecânico quantificável e na materialidade física da produção. As linhas rígidas da teoria
do valor de David Ricardo são características das teorias econômicas que depositam a
sua fé sobre a terra firme dos valores do trabalho e do bom patrão, da produção da
economia real ou do dinheiro como medida da riqueza mensurável. Nos formidáveis
anos 1870, logo depois do devir-louco de Marx no Fragmento sobre as máquinas, a

30
É tal tarefa a que nos colocamos, como primeira tentativa, em New neoliberalism and theother, op. cit.,
em que foi mobilizada a obra dos marginalistas, de Klossowski, do Anti-Édipo(Deleuze & Guattari) e do
economista francês Jean-Joseph Goux.

28
escola dos economistas marginalistas captou o momento de mutação do capitalismo no
qual o valor não é mais localizável. Não é mais possível medir o valor pelo quantum de
tempo de trabalho, pois o trabalho se difunde socialmente, ao mesmo passo que o ponto
de apropriação do mais-valor não pode mais ser fixado na cadeia produtiva. O valor e o
mais-valor se disseminam, se confundem (valor = mais-valor) e se propagam pela esfera
da circulação e da mobilidade, como o mercúrio [NT. vif-argent, em francês] ao vazar
de um termômetro. É como se, na economia integralmente monetizada do capitalismo,
um espaço liso se destacasse das estrias dos circuitos de valorização e de exploração,
para repor um novo modelo de ordenação-localização (Ordnung-Ortung, o nomos de
Schmitt) que ultrapassa os pontos fixos e as linhas rígidas. Alastrando-se em múltiplas
direções e profundidades, esse modelo econômico imanente inscreve os antigos estados-
nacionais como instâncias locais de sua própria realização. Entre as linhas flexíveis e
rígidas, entre uma nova terra e um novo mar, o nomos se reorganiza sobre a capacidade
dos bancos de criar o dinheiro. Toda medida é ultrapassada, todo cercamento destituído
de suas pretensões territorializantes.
Na atualidade, os high frequency traders são a outra face das nuvens de drones.
O poder das finanças hoje funciona como o fleet in being (frota de dissuasão estática no
porto), que propicia o exercício do poder em qualquer lugar, de qualquer ponto em
qualquer ponto, sem lastro na terra firme do valor-substância. O espaço liso da moeda-
crédito emerge dentro do espaço estriado do capitalismo industrial e termina por devorá-
lo de cabo a rabo. Não só o vira ao avesso, como também faz do avesso o próprio
funcionamento da produção. Nessa virada, se engendrou o metabolismo da globalização
sob a régua pós-fordista, isto é, um novíssimo nomos para a Terra Desterritorializada. O
nome do metabolismo é neoliberalismo: a extinção da lei do valor, a subsunção real da
sociedade pela desmedida das finanças. O que governa, doravante, são os oceanos de
dinheiro apátrida. Quais seriam então as linhas desse novíssimo nomos?

A possibilidade de novas linhas

Entre as numerosas linhas possíveis, podemos rascunhar ao menos duas: a linha


da China e a dos algoritmos. A ascensão incontornável da China constitui uma das
grandes mutações. Niall Ferguson, o teórico da simbiose estratégica entre os Estados
Unidos e a China (a ―Chimerica‖), cita Samuel Hungtington: ―a linha da fratura que
separa as civilizações pode se tornar a linha de frente das batalhas do futuro. Porém,

29
essa guerra não será mais um clash de civilizações, mas o crash da civilização‖31 [16].
A guerra na ―cyberia‖ já começou e é uma guerra entre networks. Para evitar isso, ele
diz, seria necessário um novo congresso de Viena contra as elites do Vale do Silício e a
anarquia coroada das redes32.
Isso nos traz à segunda linha de reflexão. Na economia política das redes, as
novas linhas da globalização se desenvolvem através da entropia organizada dos
algoritmos. O trabalho das linhas não deixa de ser o trabalho dos algoritmos e são eles
que vão desenhar a segunda navegação da conquista digital. Novamente, a valorização
dos mares (de informação: os big data) se coloca em relação de polinização
entrecruzada com o trabalho computacional de autenticação das transações e de criação
de novas moedas. Para navegá-las, os algoritmos mapeiam e esquadrinham
continuamente os oceanos de informações, segundo múltiplos métodos de
autorregulação de bits. Nós vivemos e trabalhamos dentro dos oceanos com os seus
algoritmos, suas matrizes energéticas, sua atmosfera e suas ondas. Mas a engenharia das
redes nos escapa cada vez mais, pois são deliberadamente fechadas: ―A maior parte da
maquinaria computacional permanece fechada a nós‖ e se nos apresenta como um
―terreno de crença coletiva, um espaço de fé‖. Ou seja, o algoritmo é um pequeno
deus33.
As linhas, nos diz Ed Finn, são aquelas desenhadas pelo surfista que pega as
ondas, numa lógica afetiva e mesmo primária. Um eu sinto visceral com o próprio
movimento virtual do oceano que nos pega, como uma dança na qual somos sugados 34.
Por isso, nós caminhamos sobre o estreito passadiço entre o visível (os mares de
dinheiro vivo e das criptomoedas) e o invisível (as montanhas de servidores dedicados a
ajustar os digital assets através do blockchain). Entre astrae mostra, entre o sideral e o
visceral, podemos assim reencontrar o nomos de Atlas, o estivador da abóbada. Mas
Atlas não é nenhum titã (o Deus-algoritmo no altar da tecnofilia). Pois quem acaba
tendo que suportar o peso do mundo nos ombros é o refugiado, o imigrante, o precário,
o pária, o pobre35. Os trabalhadores do norte se tornam precários e pobres e, em
contrapartida, os pobres do sul se tornam trabalhadores precários e… novamente
pobres.
31
―Civilization‖, Penguin, 2011, p. 313.
32
Niall Ferguson, ―The square and the tower‖, Allan Lane, 2017, p. 424.
33
Ed Finn, What Algorithm Wants, MIT, 2007, p. 7.
34
Op. cit., p. 189.
35
Georges Didi-Huberman, Atlas ou le gai savoir inquiet, L´oeil de l´histoire, 3, Minuit, Paris, 2011. p.
168.

30
Como a linha chinesa e a dos pobres podem se miscigenar num grande êxodo?
Por enquanto, as linhas chinesa e americana se estriam entre si, uma dupla articulação
de neoliberalismo e neodesenvolvimentismo: o dispositivo final de proletarização dos
pobres, a face neoextrativista do capitalismo hoje. Mas há um outro tipo de linha
chinesa, que começou na Praça da Paz Celestial (Tian‘anmen), em 1989. A
primeiríssima acampada que, nos últimos anos vimos se propagar e multiplicar na Praça
Tahrir, na Puerta del Sol, em Occupy Wall Street, no Parque Gezi e nas cidades
brasileiras, durante 2013. Essa comunidade que vem sobrevoa os oceanos, pegada do
movimento do mundo, nas vagas de refugiados e imigrantes, nos pulsos de informação
reprocessada. Não é por acaso que devemos a Ai Weiwei, artista e dissidente chinês, as
obras mais impregnadas de linhas de fuga e seus coletes salva-vidas. As lutas no Irã e na
Tunísia, neste começo de 2018, nos mostram a olhos vistos que essa linha de força está
aberta.

31
DOSSIÊ JEITOS

32
Apresentação: Jeitos

José Antonio Rego Magalhães36


Renan Nery Porto37

Para nós, já estava tudo dito – ali, na palavra jeito, e nos seus jeitos de usar. Não
ter jeito... Dar um jeito... Tomar jeito... Ajeitar... Desajeitado... Pegar o jeito... Ir com
jeito... Ficar sem jeito... Jeitinho... Jeitão... Mau jeito... O jeito dele... O jeito dela...
Tudo estava lá, óbvio. É o nosso jeito de falar, é só – Mas nosso de quem? De qualquer
jeito, daí para a frente foi questão mais de explicar, de ir desenrolando esse jeito de
falar, as dobradiças específicas a que ele dá ensejo, na fala da gente, na vida, no
pensamento. É que um jeito de pensar não precisa de muita análise nem fundamentação
para ser o que é, fazer seus efeitos. Não precisa se explicar com a história da filosofia, a
não ser por jogos mais para institucionais, acadêmicos, etc. Digamos que uma gente fale
uma língua que não tem a palavra ser, nem nenhuma equivalente. Uma tribo que só fala
de virar isso, virar aquilo. Precisaria Deleuze, Derrida? Dificilmente. E o quanto um
Deleuze teve que se explicar para poder parar de dizer ser... Precisava? Queremos dizer
que tem um jeito de pensar numa língua que fala de jeitos, e que isso já se faz na fala,
não precisa de explicação. Ainda assim, vamos tentando explicar. Precisa?
Que saibamos, quem resolveu primeiro sair atrás de um jeito de cruzar a
sociologia brasileira do jeitinho, deixando de lado a má fama que a palavra leva em
certas circunstâncias, com um jeito corpado de pensar foi a Fernanda Carlos Borges –
que, aliás, teve a simpatia de contribuir para este dossiê –, no seu livro A Filosofia do
Jeito, mais para o início do milênio. O projeto, que a acompanha ainda, se formula neste
volume como uma ―filosofia corpórea‖ inserida no que Edgar Morin chamou um
―retorno ao fluxo da physis‖. Pensar com as ―teorias evolutivas, da antropologia, das
neurociências, das teorias da complexidade, dos sistemas dinâmicos auto-organizáveis e
da cibernética‖, mas também a partir da fala ordinária da gente, do jeito próprio e vivido
de pensar que ela carrega, e que oferece como uma espécie de tradição.
Pois será que já não temos uma filosofia brasileira – concedido que a sua
característica tenha sido a esperteza suficiente, desde sempre, para não cair na cilada

36
Doutorando em Teoria do Direito, Ética e Construção da Subjetividade pela Pontifícia Universidade
Católica do Rio de Janeiro. Mestre em Sociedade, Direitos Humanos e Arte pela Universidade Federal do
Rio de Janeiro.
37
Ensaísta, poeta e mestrando em Filosofia do Direito no Programa de Pós-Graduação em Direito da
UERJ.

33
desse nome – filosofia? Pode ser seu jeito próprio, esse, de não se deixar intimar a se
explicar diante do tribunal da razão: Passa mais tarde aí. Ela agora não está, mas se você
passar mais tarde eu garanto que ela chega. Uma família bem diversa de pensadores, em
diferentes áreas, talvez não tão apropriados às suas, talvez metodologicamente
reprováveis – mas quem sabe é aí que está o ouro? Ou seria pilantragem, vilania,
charlatania? Ou seria aquele ponto em que, como acabou sendo o destino da filosofia
europeia, a crítica mais rigorosa acaba se tornando indiscernível da mais alta
charlatania? Talvez Searle ou Sokal não estivessem tão longe da verdade, exceto ao não
se darem conta que o que acusavam poderia ser lido como um elogio – pelo menos por
selvagens como nós.
José Ângelo Gaiarsa, por exemplo, pode ser conhecido por alguns como uma
espécie de sexólogo, uma figura curiosa da televisão (há muitos vídeos seus falando de
sexo no Youtube, que são, aliás, excelentes), e contudo, como diz a Fernanda, seu
trabalho em psicologia, motricidade e subjetividade desenvolveu no Brasil, a partir de
uma posição marginal à academia, fundamentos para o que hoje pode ser entendido
como um filosofar em movimento. Ela o cita quando afirma que “uma ideia bem
compreendida – não apenas bem dita ou bem repetida –, é exatamente a consciência de
uma resultante virtual, pura percepção de uma ação possível ou de uma possibilidade
de ação”. O corpo humano, pra esse Zé, é só tensões, tesões, intensões, potências
virtuais dinâmicas, coisa que puxa pra lá puxa pra cá, mas que puxa mais que tudo pro
futuro, e é desse diagrama – essa seria a expressão, vamos dizer – que emerge a
possibilidade de pensamento, linguagem, representação. Isso Gaiarsa escreve nos anos
70, e é de espantar como parece muito coisa do Deleuze-Guattari, que não sabemos se
ele tinha lido (ele fala é do Wilhelm Reich).
No que escreveu aqui para nós, Fernanda experimenta pensar o jeito a partir da
phronesis – veja-se, coisa de gregos! É um tipo de conhecimento – é sabido – que não
fala nem só de regra, nem só de quem se vira na circunstância quando a regra... cadê a
regra? Fala das duas coisas, uma maneira de agir que se faz sem recorrer a princípio
geral, mas que ao mesmo tempo renegocia a relação entre o coitado que está ali se
lascando e a norma, o direito, essas coisas que só estão sempre aí e, ao mesmo tempo,
não estão. Daí, veja-se, que o sujeito não só se recusa a performar como manda o
figurino (lembrando que performance é sempre atravessar uma forma, por mais que
esquisitamente), como pega essa normatividade na mão e brinca com ela, faz dela um

34
tipo de matéria plástica e fica moldando, fazendo arte, o que quer que seja, mas sempre
segundo a necessidade da situação, como manda o coração, lá na hora.
Ou não era isso que os gregos falavam?
De todo modo, Fernanda fala aí de tudo quanto é jeito. A singularidade e o
caráter situado do pensamento, por exemplo, sem ranço nenhum, cruzes, longe de nós,
de qualquer nacionalismo ou romantismo ou saudosismo, não! É apenas o óbvio – que
quem pensa é alguém em algum lugar. E não é?
Depois, questão da regra geral e da exceção específica, que não é só toda a
coisa da phronesis, mas toda a coisa do jeitinho. Caso não se saiba, explicamos: Jeitinho
se dá quando uma pessoa qualquer, enquanto pessoa qualquer, expõe afetivamente sua
situação de vulnerabilidade a fim de obter, por exemplo, de alguma instituição, ou
pessoa exercendo posição, uma suspensão excepcional da regra que, via de regra, se
aplicaria ao caso. É como a questão do jeito é também a questão da justiça, se
pensarmos nesta como a exigência da solução justa para o caso justo, da solução
singular para o caso singular, que, como o Derrida tardio ressalta, nunca se obtém pela
aplicação da regra generalizante. Nenhuma regra geral, escrita na língua dos outros,
pode fazer justiça a mim; ninguém, que não eu, sabe o que eu passei!
É uma ferocidade que racha o sujeito em hordas e multidões devorando o que a
vida lhe dá para fazer passar sua pura insistência em existir. Esses dentes trincando
cantam uma música que não segue um plano dado de antemão. Na limitação das notas
que identifiquem seu som, precisa criar a cada momento um novo timbre. É assim que o
texto de Luca Szaniecki joga uma dança que vai do jagunço ao jazz, de Glauber Rocha a
John Coltrane, colocando Albert Camus para dançar com Corisco uma embolada além
do bem e do mal, lá mesmo por onde passa um jeito de ser no sertão e onde o sertão tem
a cara do mundo.
E daí vamos às gambiarras, a todos os jeitos que a gente dá – a gente é eu, é
nós, é o povo, e é também o povo pobre – quando falta o mínimo. A rigor é quando se
toma certos objetos e se os emprega para outros usos diferentes dos seus habituais, face
à necessidade do momento, à falta do acesso àquela que se diria a maneira própria de
resolver. São vários os textos que recebemos que mostram essa riqueza das gambiarras,
dessa inventividade que parece infinita dos mais vulneráveis, que não enfrenta a
covardia só na valentia – que nem sempre é boa ideia, diga-se –, mas enfrenta ou
desenfrenta é na esperteza.

35
Olhe, por exemplo, a resistência que há no lazer das classes populares (é dizer,
da gente), como mostra a Ana Mattoso Lopes em seu texto. Aí já não se trata só dos
jeitos que se dá pra sobreviver, pra tentar não morrer, não passar fome, mas são jeitos
que se dá pra passar bem, pra fruir a vida, gozar o corpo – afinal nem só de pão vive o
homem – nem a mulher –, e a gente quer diversão, arte e tudo mais. E ademais, no que
se vai entrando nessa questão do lazer, da brincadeira, das atividades recreativas ou sem
finalidade, é toda a questão da ação que se coloca, da relação entre os meios que se usa
e os fins que se procura ou se deixa de procurar. Vontade, ação, potência, gesto, prática
– e jeito, que é isso também. O lazer também é jeito por se jogar nessa esfera dos puros
meios que, como diz Benjamin (grande pensador da brincadeira), rompem com a
dialética entre a violência que põe e a que aplica o direito, liberando um outro jeito de
estar junto no mundo. Daí talvez venha a sua potência política, dessa atividade que,
embora atravessada por todo tipo de dispositivos de disciplina e controle, consegue
ainda assim emancipar-se da sua relação com os fins de direito, com os meios de
governo. Ana ressalta que não basta pensar o lazer só como mecanismo de captura,
como postulam as teorias mais carrancudas do entretenimento, nem como uma atividade
livre a deslocar-se no vácuo – é sempre num corpo-a-corpo com o controle que a gente
acha um jeito de se divertir, de passar bem.
Ou mais que isso – olhe a vida dos meninos de rua do Jorge Amado, como
sugere o Pedro Mollica Ribeiro. Navegação social. Gestos e jeitos. Um jeito de viver
nascerá dessas andanças. De novo o vetor imobilizante da miséria acaba driblado por
uma vida, uma vida vivida como aventura e com gozo. A transgressão – surge aí o
Hélio Oiticica pra lembrar – não só por necessidade de subsistência, de obter o mínimo,
mas como uma ―busca desesperada por felicidade‖. É uma ―atitude hedonística e
aberta‖, para usar as palavras de DaMatta, o jeitinho desses marginais, que vai
consistindo no ―conhecimento de dentro pra fora‖ que se faz ouvir nas vibrações da
expressão oral e que o Jorge tenta captar e plasmar em romances. É toda uma atitude
que se inventa e ganha consistência na experiência da precariedade, na transgressão da
norma, e que se expressa em uma palavra viva indiferente à língua nacional, à sua
gramática normativa. Tudo isso transcorre, como lembra o Pedro Mollica, sobre o pano
de fundo da ascensão do regime totalitário do Estado novo. E, se esse Amado comunista
nos indica uma sempre possível passagem da malandragem à militância, da infância
lúmpen à luta proletária – e se essa transição não é em nada desinteressante, ao apontar

36
o virar políticos dos jeitos marginais –, nos permite sempre também perguntar se essa
passagem é de fato estratégica, de fato interessante.
É que, se dá para pensar um virar classe ou um virar partido dos jeitos que a
gente dá de viver na precariedade, sempre tem outras maneiras de virar coletivo, virar
comum. Pense-se num virar rede, como se lê no texto da Thamyra Thâmara. Primeiro a
violência, atualizada pro nosso tempo na forma da polícia que entra na favela, e que tem
seu ponto máximo na transformação do corpo negro em matável. Dessa enorme
vulnerabilidade ao jeito e à gambiarra, à medida em que uma gente periférica se
apropria das novas tecnologias de comunicação em rede, cria lan houses improvisadas,
aprende a usar ―telefones espertos‖ sem manual de instrução, etc., e produz, no faça-
você-mesmo, coletivos de mídia alternativa como o Papo Reto, grupos de whatsapp
para a resistência, toda uma miscelânea de dispositivos apropriados para a auto-
organização. Do jeito que foge da norma – nisso, negativo – vem vindo uma dimensão
afirmativa, quem sabe constituinte, em que os modos mais variados de representação e
mediação vão sendo produzidos, reproduzidos, comunicados, mas onde já não são bem
a mediação e a representação unitárias/centralizadas das instâncias ditas democráticas.
Não é nada menos que um outro jeito de pensar na democracia que emerge desses jeitos
difusos, vividos, inventados na prática e auto-organizados de fazer representação.
Para quem tem jeito, ou quem sabe pegar o jeito das coisas, não tem o que não
dê jogo, que não possa ser apropriado e, se precisar, virado do avesso a fim de cumprir
com os fins necessários. Nas periferias em que o modelo urbanístico neoliberal e a
militarização casam com o discurso religioso para manter corpos dóceis, às vezes é na
mesma linguagem – da fé – que as vítimas da violência acham os materiais para
expressar eloquentemente suas queixas. É o Felipe dos Anjos Pereira quem nos deixa
vê-lo na luta de mães pentecostais que, perdendo filhos em ações policiais, se apropriam
do vocabulário religioso e o empregam para um fim que já não é pacificador, mas se
insurge. Encontrar jeito às vezes é isso – saber perceber a plasticidade, a
profanabilidade de qualquer discurso, ao ponto em que não faz nem mais tanta diferença
a natureza da linguagem em questão – se é que linguagem tem natureza –, mas o
emprego que se faz dele, o jeito que se dá nele. Esse jeito é dar um jeito de falar, é
cruzar o sopé entre o indizível e o dizível, fazer ouvir um litígio em termos justos, que
sabem fazer luzir sua justiça, e sem ter sempre que inventar uma linguagem nova – pode
ser questão de dar um jeito com o que está à mão.

37
Se em tudo até aqui se viu vulnerabilidade, é importante cooptação que faz para
a nossa causa o Felipe Demetri, quando propõe um certo jeito de chegar em Butler,
fazendo da filósofa da performatividade filósofa da vulnerabilidade. Não é tanto dizer
que tal ou tal outro é o conceito realmente mais fundamental nos escritos de Butler
(como se textos tivessem que ser construídos em cima de conceitos), mas mais de
propor um certo jeito de entender Butler ou jeito de usar Butler. Para nós, é uma
cooptação interessante, pois que nos disponibiliza ferramentas boas. Por exemplo, para
pensar a força na capacidade de sofrer, de ser afetado, que, abrindo o corpo aos
encontros, reconfigurações, conhecimentos, afetações, paixões, etc., bagunça a relação
entre força e fraqueza. Em vez de conceber a resistência como uma quantidade de força
em sentido oposto, a depender de chegar a ser igual ou maior que a força à qual resiste,
já dá então para ver na maior fraqueza, por vezes, a maior força, driblando o paradoxo
de como os oprimidos, enquanto oprimidos, poderiam concentrar mais força ou mais
poder que os seus opressores. Renato Nogueira (que aparece neste número citado pela
Fernanda) já vem mostrando como o drible nasce de uma necessidade de evitar o
conflito corporal direto, na medida em que os juízes, àquela época, marcavam mais
faltas em repreensão aos jogadores negros que aos brancos, obrigando os primeiros a
lançar mão da ginga para contornar o embate frontal. O jeito, como se liga à
vulnerabilidade, coloca uma cena mais complexa e delicada que só um confronto de
forças brutas.
A performance ―La bête", aparecida no texto da Lívia Paiva – o simples
entregar-se de um corpo nu para o toque de outro qualquer – escândalo! Que absurdo! E
ainda os gestos de um corpo infantil, que se interessa e brinca, mas que pode na sua
inocência balançar os alicerces do gênero. No texto da Lívia é questão das
corporalidades divergentes e vulneráveis – corpos estranhos que um corpo social rejeita
(e importa registrar aqui o assassinato recente da artista e ativista Matheus Passareli, que
usava e vivia esse conceito – corpo estranho – e que o viveu até o limite. Morreu talvez
por causa do seu jeito, o mesmo jeito que os amigos lembrarão sempre com carinho),
mas que assumem e suportam em si a possibilidade de outros jeitos de viver e de viver
junto. São corpos, antes do que mais for, que incomodam, e também que resistem –
mesmo na pintura que profana o corpo de Cristo, desmembrado e com seus membros,
mãos, gestos entregues a todo tipo de uso banal, a usos comuns, quaisquer. H. O.
aparece aí para dizer que é sempre a partir da experiência singular e afetiva de um corpo
que a normatividade geral e abstrata é questionada – jeitinho...

38
Ou o corpo da Daniela Avellar, que se inscreve aqui, corpo que dança e escreve,
e reflete o processo. Escrita vinda da bacia – ela escreve –, informada pelo chão de
madeira. É corpo que não separa intenção e gesto, meio e fim... que se expõe então
como jeito, vai se inscrevendo, se repetindo, se transmitindo nas superfícies (é chão, é
papel, e assim vai). Tudo isso se faz num abandono parcial da consciência que mantém
o corpo aberto ao corpo do outro, ao corpo das coisas, e por fim à cidade. A cidade aí é
mais algoz também, expressão concreta da lei, disciplina dos corpos, controle dos
fluxos, mas subversível por corpos que dançam. Pergunta a Daniela com Lepecki:
―Poderiam dança e cidade encontrar-se e renovar-se numa nova política do chão, numa
coreopolítica nova [...]?‖ Resposta afirmativa, é obvio (o que significa dizer – está no
meio da via, talvez obstruindo a via): corpos que se abrem a novas relações – e aqui
seria ensejo de reler ou re-falar essa palavra relação, esquecendo nela as relações
abstratas, relações lógicas, e encontrando na sua fala, na sua embocadura, em uma
língua que rela no céu da boca o verbo relar, o ato de relar. Relação física dos corpos,
corpos que relam uns nos outros, fricção que não constitui só remissão abstrata, mas
produz calor, energia, afetações transformativas da matéria.
Curiosa relação, curiosa proximidade entre esses corpos que inscrevem seus
jeitos na cidade e a piXação (a superfície, a plataforma Word, a palavra reverte aqui a
grafia, devolve-a à norma, sem perguntar – temos que voltar e escrever de novo, insistir
na grafia que foi apagada). Nas superfícies da cidade, no seu corpo, a piXação se
inscreve e, no mesmo gesto, recusa-se a ser interpretada, a ser compreendida, a
transmitir uma mensagem. Não se deixa enquadrar pelas regras gerais que tornam a
língua língua, não segue as regras dos jogos linguísticos que a fundamentariam como
ato performativo. É só na sua mera materialidade, em um lançar-se corporal em que ato
e agente não se distinguem, que a piXação existe. Só como um jeito, uma aparência da
atitude, nunca como uma mensagem. Isso tudo é o Gustavo Coelho quem nos mostra ao
falar da escrita piXadora como escrita sobre-vida, que sobrevive. Se Agamben só fala
da dança e da mímica para referir-se a um gesto que já não se dirige à comunicação,
mas se entrega a um fruir tátil de si mesmo, exibindo-se, exteriormente, como pura
manifestação (é dizer, puro jeito), só pode ser por uma diferença geracional – por não
estar ligado na piXação.
E para dar um jeito de falar desse jogo em que o corpo se inscreve e a escrita se
incorpora para fazer vibrar a linguagem, Júlia Vita traz seu Manual iniciante: para
tocar um Corpo-Buceta, que de manual só tem o toque. O deslize de uma mão sobre

39
uma página que mais parece uma pele, deixando a língua ouriçada e a carne do texto
salgada, uma palavra e outra passando debaixo do sol que sopra o corpo pela cidade.
Para não parar é que ele foi feito. É o que mais queremos compartilhar com esse
número: a energia liberada de corpos se chocando por que não aprenderam outra coisa a
não ser se abrir ao tempo.
Encerramos o dossiê com uma tradição artificiosa do texto Artfulness: Emergent
Collectivities and Processes of Individuation, publicado originalmente pela Erin
Manning como capítulo do livro The Minor Gesture. Decidimos pedir a ela, com
jeitinho, que nos permitisse traduzi-lo de um jeito próprio – fazendo-o falar de jeitos. É
que, ao ler o seu título com tais preocupações em mente, logo pensamos que, mesmo
que à custa de alguma artificiosidade, seria possível traduzí-lo como ―o jeitinho‖, não
sendo este mais que um gesto menor – gestinho. Escolhemos, no livro, esse capítulo em
especial, que fala da questão da arte, na medida em que ele não só desenvolve a noção
de gesto menor (daqui em diante jeitinho), como imprime, a todo tempo e de caso
pensado, conotações filosóficas a palavras como mode, manner e way, todas traduzíveis
para o português como jeito, ainda que com deslocamentos no seu uso. Também a
palavra artfulness, com a qual Erin arranca a questão da arte da relação sujeito-objeto
para lançá-la ao campo dos jeitos, nos deu com o que brincar. Ela aparece às vezes
como artificiosidade, outras como artimanha – jeitos que demos de convidá-las ao nosso
jogo. Nessa artimanha, é mais uma autora de peso do pensamento contemporâneo que
cooptamos, com alegria, para pensar junto.

40
Notas introdutórias a um jeito de pensar

José Antonio Rego Magalhães38

Resumo: Nestas notas, procuro articular, a partir da palavra jeito, das suas derivações –
notadamente a palavra jeitinho e a discussão em torno dela nas interpretações do Brasil
–, e das muitas expressões idiomáticas em que aparece, um jeito singular de pensar e
falar, a partir do qual recolocar uma série de problemas político-filosóficos. Começo
situando o jeitinho e o jeito, a partir de uma conexão entre a sociologia do Brasil e o
debate biopolítico, na articulação entre o público/político e o privado/corporal. Discuto,
em seguida, como um jeito articula a relação entre possível e impossível (não ter jeito,
ficar sem jeito, dar um jeito) e a questão do aprendizado (pegar o jeito). Um jeito vai
aparecendo mais em termos de atitude corporal, isto é, não uma forma do corpo, mas
um diagrama de vetores de tensão muscular como virtualidades de movimento que se
dispõem sobre uma situação. E vai se colocando a questão de como vários jeitos podem
conectar-se e formar um esquema comum, uma atitude política. Por fim, busco
esquematizar algumas consequências do jeito de falar e pensar delineado, mas sobretudo
chamar a atenção para a sua contingência e para a ausência de qualquer prioridade sua
em relação aos demais jeitos.

Palavras-chave: Jeitos; Interpretações do Brasil; Biopolítica; Corpo.

1. Introdução

Digamos que uma expressão idiomática é um jeito de falar. Isto é – um jeito


singular de falar. Uma expressão idiomática só se compreende em um idioma, e o seu
sentido (ou o seu uso – dá no mesmo) não se depreende da soma do sentido das palavras
que a formam. Daí sua dificuldade especial de tradução.
Por exemplo: podemos dizer que vaca em inglês é cow, em francês é vache, em
alemão, Kuh, e assim por diante... Mas como se diz em inglês que a vaca foi pro brejo?
O problema da tradução, aqui, já não é bem o mesmo. Teríamos que encontrar uma

38
Doutorando em Teoria do Direito, Ética e Construção da Subjetividade pela Pontifícia Universidade
Católica do Rio de Janeiro. Mestre em Sociedade, Direitos Humanos e Arte pela Universidade Federal do
Rio de Janeiro.

41
outra expressão, mas nunca seria, rigorosamente, a mesma coisa. Parece haver algo
específico que é impossível de dizer na língua de chegada. Algo de irredutível.
Digamos, something has gone down the drain. Algo deu errado, é certo... Mas é
evidente que não tem vaca nessa fala, e nem brejo. Dizer a vaca foi pro brejo não é só
dizer que algo deu errado. É conjurar um mundo em que tem vaca (e, a rigor, uma só
vaca); em que perto tem brejo; em que a sede pode levar uma vaca a dirigir-se ao brejo;
em que uma vaca atolada pode fazer um problema insolúvel – fome, por exemplo. É
todo um esquema vivencial de que se depende para que essa expressão possa surtir os
efeitos que supõem-se nela, toda uma distribuição de elementos que ela estabelece.
É como se houvesse, então, um complexo de vivências, de jeitos de sentir, de
pensar, etc., ligados a esse jeito de dizer. Não é fácil dizer do que se trata, ao ponto em
que a única maneira de explicá-lo talvez seja repetir a expressão, quem sabe
acompanhá-la de um gesto, de uma certa modulação de voz, ou então contar um caso ou
toda uma história... Em todo caso, tender para dentro, ao máximo da especificidade, em
vez de procurar correspondências. Um jeito de falar é singular ao remeter a uma
distribuição singular de jeitos de sentir, pensar, dizer, etc.. Nesse sentido, um jeito de
falar é como um big bang ou um fiat – faz um mundo.
Mas e o jeito de falar que se assume quando se fala de jeito, quando se usa a
palavra jeito (ela em si difícil de traduzir) e todas as expressões idiomáticas ligadas a ela
– não ter jeito, dar um jeito, ter jeito para a coisa, tomar jeito, pegar o jeito, ajeitar, ficar
sem jeito, jeitinho, jeitão, jeito disso, jeito daquilo, pelo jeito...? Que mundo é esse que
se faz? Que jeitos de sentir/pensar se jogam a cada vez, por cada uma dessas expressões,
e pela junção entre elas? Talvez seja preciso pensar que, se na língua os seus sentidos
não encontram-se propriamente conectados, na fala39 há de ter havido um impulso ou
complexo de impulsos comum a fazer com que essa palavra jeito fosse aparecendo e se
consolidando em cada uma dessas ditas expressões idiomáticas independentes.
Consideremos isso um jeito de falar, que opera primeiramente na fala – só
segundamente na língua. Ou um complexo de jeitos – que, a esta altura, dá no mesmo.

39
Remeto aqui à distinção entre langue (língua) e parole (fala) na linguística estruturalista de Saussure
(1995). A primeira se refere a um sistema, uma ―instituição linguística‖ abstrata em que significantes e
significados apresentam-se conectados na forma de signos. Ela pressupõe uma operação baseada na
sincronia, isto é, em conceber-se a língua como se pudesse ser apreendida de uma só vez em seu todo,
desconectada do seu devir histórico – como se fosse possível tirar uma fotografia da língua em um dado
momento. Já a segunda, a palavra viva, é o conjunto das práticas enunciativas singulares em sua constante
transformação, consideradas diacronicamente e, assim, inacessíveis ao estudo linguístico científico que a
apreciação sincrônica possibilitaria.

42
Esse jeito de falar só pode ser irredutível aos modos disponibilizados pelos
discursos de modo, às formas pressupostas nos discursos de forma. Só pode tratar-se de
um jeito específico, singular, de pensar e de sentir, e no qual não necessariamente opera
uma separação definida entre pensar e sentir, como tantas outras separações implicadas
por modos de discurso mais tradicionais. Há um frescor em partir-se daí – e aí está a
proposta destas notas: esquematizar um projeto aberto de exploração a partir desse jeito
específico de pensar/sentir/falar que se joga com a palavra jeito. Traçar um mapa desse
território por explorar.
Dizer jeito fala – e neste primeiro aspecto já entramos –,
1. da singularidade e do caráter situado de um ponto de partida no pensamento;
da impossibilidade de pensar senão estando lançado numa situação (etimologicamente,
como será visto mais adiante, dizer jeito é dizer lançado), sem que isso implique na
transformação dessa situação em uma essência;
2. da especificidade de certas questões ditas brasileiras (pensadas assim não a
partir da abstração do Estado-nação, mas de uma vivência situada), sejam as de sempre,
sejam as atuais; de formas culturalmente ou linguisticamente específicas em que essas
questões se colocam; e das possibilidades oferecidas pela transposição entre esse nível
situado e um nível dito global;
3. da questão da regra (geral) e da exceção (específica, singular, contingente):
um jeito, ou, mais especificamente, um jeitinho, sendo o gesto pelo qual excepciona-se
uma regra geral em face de um caso singular (Barbosa, 1992); ou, de um ponto de vista
mais especificamente jurídico,
4. da relação entre o direito como sistema de regras abstratas e a justiça como
dizendo respeito sempre ao singular (a decisão justa para justo este caso) – mas
pensada, aqui, a partir da injustiça, de uma incidência injusta de violência sobre um
corpo. Fala também
5. da inventividade implicada pelo jeito no sentido da gambiarra, entendida em
termos da reapropriação de um meio para um uso diferente do seu uso canônico, que
tem seu ponto de partida na precariedade e na impotência, mas que aponta para o
imenso potencial criativo dos despossuídos;
6. do corpo e dos afetos, pois é sempre com jeito (no trato, no tom de voz, na
forma de portar-se), e a partir da simpatia (―gostei do jeito dela‖) que pede-se para dar
um jeitinho. Fala, então, da negociação da suspensão da regra na corporalidade e na
afetividade, e não na abstração. Essa suspensão diz sempre

43
7. da situação de vulnerabilidade de um corpo, que precisa não apenas achar-se
nessa situação, mas mostrá-la, exibir sua vulnerabilidade como tal, e assim transformar
a vulnerabilidade em potência de afeição. O que, aliás, é falar
8. da relação de poder ou de força de uma maneira não exatamente agonística,
cuja estrutura não precisa dispor-se em termos de um polo diretamente oposto ao outro,
e em que os deslocamentos de equilíbrio e de tensão podem implicar em que a fraqueza
possa ser, às vezes, mais forte que a força – o drible, a capoeira, ―todas as situações
paradoxais nas quais a maior força e a maior fraqueza intercambiam-se estranhamente‖
(Derrida, 2005, p. 20, tradução minha). Falar de jeitos fala, também,
9. da transição entre o impossível e o possível e da questão do acontecimento –
algo não tem jeito (o Brasil não tem jeito, por exemplo, ou não tem jeito de um Zé
Ninguém acessar um espaço tal) até que dê-se um jeito. Coloca-se aí toda a questão da
ação, da prática, do gesto, da potência e da impotência, etc.; e sempre a partir
10. das atitudes e posturas corporais pensadas como jeitos, isto é, esquemas
sensório-motores dinâmicos, de um corpo que não é redutível à soma dos músculos,
ossos, órgãos, etc., mas que constitui-se e reconstitui-se constantemente em termos de
vetores, de configurações contingentes de força, que são um ou outro jeito de portar-se –
um jeito de falar e de pensar não é antes uma abstração mental que uma atitude corporal
(ou corpóreo-mental). Fala, ainda,
11. do aprendizado, seja a um nível individual, seja social, ou mesmo para
além do social, como desenvolvendo-se na corporalidade e evoluindo por um ganho
material de consistência: para ter jeito com alguma coisa, é preciso pegar o jeito, e pegar
jeito é algo que faz-se na prática; conhecimento não-proposicional e impossível de
transmitir abstratamente no discurso, por aquilo que Paulo Freire (2016) chamou de
transferência bancária;
12. da percepção de elementos sutis, que permite obter certas intuições ainda
que não se saiba apontar para os seus fundamentos – nesses casos, diz-se que pelo jeito
o tempo vai abrir; pelo jeito isso ainda vai demorar, etc. Falar de jeitos nos leva, por
fim, a falar
13. da questão da modernidade e da sua relação essencial com a colonialidade
não a partir de uma concepção linear do tempo ou da história – ela mesma um efeito da
modernidade –, em que teríamos o arcaísmo pré-moderno, a modernidade e depois o
que se pudesse chamar pós-moderno, mas de um ponto de vista em que aquilo que tem-

44
se como arcaico pode também projetar-se para além da modernidade e mostrar-se, do
seu jeito singular, mais avançado que ela. É a questão, também,
14. da democracia, pensada não como um conjunto bem-definido de
instituições que tem-se ou deixa-se de ter, que no Brasil nunca teríamos tido, por nunca
termos sido realmente modernos, e nem viríamos a ter – afinal o Brasil não tem jeito –,
mas como democracia por vir (Derrida, 2005) que não se projeta como ideal regulativo
em um futuro linear, mas que inventa-se também a partir das sobras do passado, e que
nunca se alcançou propriamente em parte alguma. Tudo isso tende a disponibilizar um
pensamento
15. da singularidade radical de cada coisa, não havendo separação entre a coisa
e um jeito de pensá-la, de abordá-la, de tender a ela; cada coisa tendo jeito de pensar e
de dizer; podendo cada uma ser pensada a partir de cada outra; não havendo prioridade
epistemológica de um jeito sobre qualquer outro; e produzindo-se, assim, uma atitude
radicalmente pluralista e experimental, em que a democracia é levada a todos os níveis
do pensamento – ao que poderíamos chamar um nível ontológico, ou metafísico, se não
optássemos por um jeito de falar que fala de democracia.
Para passar correndo por tudo isso – que, note-se, não se diz por meio de
diferentes sentidos da palavra jeito, quanto aos quais se pudesse decidir em cada caso,
segundo o contexto. A subdivisão acima é arbitrária, é claro – seria igualmente possível
cortar segundo outras linhas. O que importa, porém, é que todos os aspectos estejam
implicados a cada uso, que um jeito de falar faça-os aparecer sempre de uma vez.
Outras implicações ou outros pontos de vista sempre poderão aparecer em torno do
mesmo complexo de expressões – outros jeitos de abordar outras questões –, afinal o
presente rol não deve exaurir já de início o campo de exploração que se dispõe a abrir.
Nesta introdução, tratou-se de esboçar um esquema geral – mesmo que muitos
dos seus pontos possam ter soado gratuitos – do campo que o presente ensaio procurará
percorrer mais detidamente a seguir. Se for possível desenvolver-se aqui uma
explicação e uma articulação de alguns desses aspectos, e sobretudo um jeito específico
de pensá-los, já terá sido um começo para o projeto (mais uma palavra da mesma raiz de
jeito) que estas notas tentam delinear.

2. Entre o público e o privado, dar um jeito

45
Este projeto pode ser objeto de uma desconfiança inicial, à qual vale a pena
dirigir algumas considerações. Trata-se da crítica segundo a qual a tradição de
pensamento mais canônica na sociologia brasileira – os chamados intérpretes do Brasil
ou tradição da formação brasileira, ou pelo menos uma vertente dessa tradição que às
vezes é chamada culturalista – o fez de uma maneira essencializante ou excepcionalista,
como se o Brasil fosse tão diferente do restante do mundo que seria possível pensá-lo
em apartado; como se, por exemplo, os problemas ligados à modernidade e ao
capitalismo no Brasil pudessem ser separados, sem prejuízo à sua compreensão, das
questões da modernidade como um processo global. Uma referência de destaque, hoje,
nessa posição crítica, é o sociólogo Jessé Souza (2009), que, não por acaso, se refere a
essa tradição (Gilberto Freyre, Sérgio Buarque de Holanda, Raymundo Faoro, Roberto
DaMatta), ao criticá-la, pela expressão ―sociologia do jeitinho‖. Em diversos pontos do
seu elogiado A Ralé Brasileira, e repetitivamente ao longo do restante da sua obra,
Souza acusa essa tradição de tratar o povo brasileiro como se fosse constituído de
―marcianos verdinhos‖, como se as questões consideradas tipicamente brasileiras
(invasão do Estado pelos interesses empresariais, indistinção entre público e privado,
relação complexa entre indivíduo e pessoa, etc.) fossem de todo alheias ao restante do
mundo.
Com efeito, esses sempre foram problemas inerentes ao conceito moderno de
Estado e ao capitalismo enquanto tais, e parecem sê-lo cada vez mais, na medida em
que a invasão do espaço público pelos interesses privados e a indistinção entre
economia e política levam as democracias ocidentais à sua crise. Disso não decorre,
porém, nem que os mesmos problemas não se apresentem, entre nós, de uma maneira
específica/singular (o que, aliás, é apenas obvio), nem que o estudo do nosso caso não
possa provar-se útil ou interessante. Pelo contrário, é justamente porque a condição do
Brasil não difere em termos absolutos daquela do resto do mundo que o estudo dos
nossos mecanismos de governo do social, bem como das estratégias desenvolvidas em
resistência a esses dispositivos, mostra-se interessante em sentidos que ultrapassam o
âmbito do estudo sociológico do Brasil – e sobretudo de um debate ―culturalista‖ –,
alcançando questões (bio)políticas e subjetivas cujas implicações são globais.
Nesse ponto, é interessante pensar, de um lado, em termos de um devir-mundo
do Brasil, à medida que as linhas da globalização nos atravessam em seus aspectos
potentes e negativos, e, de outro, de um devir-Brasil do mundo (Cocco, 2009) à medida
que problemas que poderiam ter aparecido como especificamente brasileiros se mostram

46
como tendências mundiais, e que estratégias de resistência que apareciam como versões
derivativas ou exotismos passam a expor sua potência em contextos inauditos.
Jeitos tem vários de dispor esse campo problemático ao mesmo tempo local e
mundial, arcaico e contemporâneo. Um, que serve aqui, concebe um mecanismo que ao
mesmo tempo vincula e separa poder instituinte e poder instituído, o fundamento da
autoridade e o seu exercício, o seu ser e a sua prática, liberando a gestão puramente
técnica/econômica da vida e desvinculando essa gestão (privada) de qualquer princípio
democrático (público) (Agamben, 2007). Falar dessa articulação complicada (que não é
bem uma indistinção) entre o público e o privado, entre o político e o econômico, como
um mecanismo, não é só uma referência de cultura pop: Agamben (2007) fala de uma
máquina governamental do ocidente, ao passo que Deleuze e Guattari (1980),
resguardadas as devidas diferenças, falam, por exemplo, de máquinas abstratas e
aparelhos de captura. A opção por esse jeito de falar, que fala de máquinas, não é, de
modo algum, gratuita – é uma maneira de pôr tudo em termos, antes de mais nada, de
funcionamento, isto é, de subordinar a questão do ser à do fazer.
Do lado do poder constituinte, isso lembra que constituição, antes de ser uma
entidade estática, é o ato de constituir algo, e que um corpo político não está dado, mas
deve ser organizado na prática para apresentar-se como tal. O problema, aí, é o da
representação e da sua crise, já que é por meio do mecanismo da representação que a
vontade geral pode ser considerada representativa de todas as singularidades sob a sua
égide, ou, em outras palavras, que o vínculo-cisão entre o poder político e a atividade do
povo se institui e mantém40. A representação, nesse sentido, é sempre um mito, um
fetiche, que, embora seja produto de uma atividade real, procura desvincular-se dela e
apresentar-se como soberana. É impostora, na medida em que esconde de onde vem
para mostrar-se como o que não pode ser. Caracteriza-se pela impostura, ademais, no
sentido da atitude corporal: no Estado leviatã, a decisão soberana quer ser uma coisa da
cabeça, como se a cabeça fosse efetivamente soberana em relação ao corpo, como se a
decisão não viesse do corpo. Trata-se de um jeito (uma imagem do corpo) empertigado,
rígido; de um corpo que não se experimenta, que não se conhece, e que, para não ficar

40
Hardt e Negri (2004, p. 241, tradução minha) apontam que ―a representação preenche duas funções
contraditórias: ela liga a multidão ao governo e, ao mesmo tempo, a separa. A representação é uma
síntese disjuntiva no sentido em que simultaneamente conecta e corta, junta e separa.‖ À mesma medida
em que a modernidade estende o conceito de democracia antigo, do governo de muitos, para o governo de
todos, ela ao mesmo tempo encontra a necessidade de defender o poder político contra o perigo dessa
democracia absoluta, e o mecanismo que encontra, para tanto, é o da representação.

47
sem jeito, endurece o gesto e insiste no primado da cabeça, que ergue orgulhosamente
para o alto.
Vivemos, hoje, essa impostura democrática, e temos a sensação clara de todo o
teatro democrático como impostura, dos políticos como impostores, e das aparições do
Estado em nossas vidas como imposições, seja para cobrar impostos que não retornarão
no formato de serviços, seja para impor a ordem pela forma enrijecida da polícia e da
força militar. Impõe-se assim, à revelia do princípio democrático, uma gestão privada e
econômica da vida, abandonando toda a vida social a serviço dessa economia, e apenas
intervindo para mantê-la sob controle – sempre na forma da emergência e pelo recurso a
dispositivos de exceção. Como posto por Benjamin (1987) e desenvolvido por
Agamben (2004), cada vez mais o estado de exceção se torna a regra, no sentido de que
já não é a norma geral (que se suporia democraticamente fundada) que governa, mas o
recurso, em cada situação singular, a uma decisão excepcional. A impostura
representativa, então, do lado do poder constituinte, libera a cada vez, do lado do poder
constituído, o governo por impostura – eis o mecanismo.
Da exposição dessa impostura (fundamento fictício da autoridade; imposição
tautológica da força; desarticulação entre mente e corpo) só pode decorrer, como
conclui Derrida (2005) em sua leitura de Benjamin, que aquilo que temos por
democracia não merece esse nome, e que, portanto, a democracia – o que quer que
venha a ser isso – permanece ainda por vir. Agamben (2011) aponta que a palavra
democracia, hoje, pode referir-se seja a uma forma de poder constituinte, caso em que
estariam em questão os dispositivos jurídico-políticos pelos quais se institui a
autoridade, seja a uma forma de governo, isto é, a um conjunto de técnicas de gestão
pelas quais a vida nas sociedades democráticas é organizada. Em cada um dos casos
recai-se, evidentemente, em um dos aspectos da impostura democrática recém descrita,
razão pela qual o autor sugere que a tarefa por fazer talvez seja a de ―desarticular [esses
dois elementos, essas duas racionalidades] e liberar, assim, esse ‗ingovernável‘ que é ao
mesmo tempo a fonte e o ponto de fuga de toda e qualquer política‖ (Agamben, 2011, p.
4). Não nas instituições democráticas, portanto, nem nas práticas do bom governo
democrático, mas no que escapa sempre a deixar-se governar, é que se deve procurar o
fundamento da democracia – justamente lá onde não se encontrará nada parecido com
um fundamento.
Se a confusão entre o público e o privado, a vida política e a vida biológica, é o
sinal do estado de exceção tornado regra, o jeitinho, nas interpretações do Brasil, pode

48
ser pensado como o seu avesso – aquilo que Benjamin (1987, p. 226) chamou de ―um
verdadeiro [ou efetivo] estado de exceção‖. Não é em um retorno ao império da regra
geral, mas em algo como uma radicalização da exceção que se busca o elemento a partir
do qual subverter o mecanismo. É do que se fala quando se fala em jeitinho: não apenas
o recurso à singularidade do privado a fim de excepcionar a generalidade do público,
mas um recurso afetivo que complica as distinções entre público e privado, abrindo um
outro jeito de estar junto – talvez aquilo a que Benjamin (2011, p. 139) se refere como
um certo ―cultivo do coração‖ que possibilitaria uma comunicação não-mediada, uma
linguagem que não operasse pela representação.
É importante ressaltar que, ao contrário do que é frequentemente sugerido, o
jeitinho não é um produto das raízes patrimonialistas das instituições brasileiras, em
função das quais o público e o privado teriam estado, na formação do Brasil, desde
sempre misturados, a não ser como estratégia subversiva – justamente tornando a vida
possível, para aqueles sem poder ou título algum, diante de instituições autoritárias e da
ausência de mobilidade social. Se o sujeito das democracias liberais é o indivíduo, com
seu espaço de liberdade definido por regras gerais, e o da sociedade
patrimonialista/estamental é a pessoa, definida pela rede de relações pessoais e
patrimoniais que mobiliza em função dos seus interesses (DaMatta, 1997), o jeitinho,
como ressalta Lívia Barbosa (1992), não caracteriza nem o indivíduo, nem a pessoa; não
depende nem das faculdades de um sujeito moderno abstrato, nem de uma posição
social privilegiada. Ele se exerce – como Rancière (2014) diria do poder democrático –
a partir de uma absoluta falta de título. Seu sujeito, se há, é um qualquer.
Essa diferença se expressa na distinção estabelecida, em DaMatta (1997) e
Barbosa (1992), entre o ―você sabe com quem está falando‖, ato de fala que define as
relações de privilégio pessoal, e o jeitinho. Enquanto o primeiro se funda,
necessariamente, em um saber-com-quem (é preciso saber quem é essa pessoa com
quem se fala, quais suas relações, se seu nome é conhecido), um jeitinho depende, ao
contrário, de um não-saber-com-quem. Daí que, para DaMatta (1992), aquele que lança
mão do jeitinho obtenha o que deseja ―ficando […] ‗mais igual‘ do que os outros‖. A
expressão não deve ser lida aqui no sentido irônico, como se o agente se colocasse
acima dos demais em uma escala de importância, mas levando a sério o caráter
paradoxal da expressão ―mais igual‖, isto é, no sentido de uma igualdade que excede
não apenas a desigualdade das pessoas, mas mesmo a igualdade formal/limitada dos
indivíduos. Barbosa (1992, p. 32) informa que, na sua pesquisa, ―todas as pessoas

49
entrevistadas conhecem, praticam ou fazem uso das expressões jeitinho brasileiro ou dar
um jeitinho‖. Segundo ela, ―o jeitinho é pensado como algo utilizado por todos na
sociedade brasileira, ‗do contínuo ao presidente‘, como, figurativamente, disse um dos
entrevistados‖. Isso não significa, porém – como supõe, por exemplo, Jessé Souza –,
que a corrupção do rico seja jeitinho tanto quanto a malandragem do pobre. O jeitinho é
pensado como algo do acesso de todos não porque tudo o que todos fazem se enquadre
igualmente nessa categoria, mas porque o próprio conceito de jeito pressupõe uma
disponibilidade irrestrita, um uso comum, uma igualdade absoluta como pano de fundo.
―Enquanto eu posso pedir um jeito a um desconhecido, o favor‖, como pertencente ao
mundo das pessoas-com-relações, ―não pode ser pedido a qualquer um‖ (Barbosa, 1992,
p. 34) – só a certas pessoas.

2.1. Jeito e gesto

Embora as palavras tenham raízes diferentes, os conceitos de jeito e de gesto se


aproximam muito no português. Jeito vem do latim jactus, particípio passado do verbo
jacere, que significa lançar, jogar. Já gesto vem de gerere – gerir, portar sobre si.
Ambas palavras, ainda assim, podem referir-se tanto à forma corporal por meio da qual
se faz ou se pode fazer alguma coisa quanto à aparência correspondente a essa forma.
Com efeito, gesto pode significar tanto o movimento do corpo a fim de exprimir ideias
ou afetos, quanto à aparência, ao semblante, à fisionomia.
Ambas palavras guardam ainda relação, de um lado, com os dispositivos de
governo e, de outro, com a sua subversão. Do lado do governo, observa-se a relação
próxima entre a palavra gesto e outras como gerir e gestão. Ao mesmo tempo, se abre a
possibilidade de um pensamento do processo (em oposição à situação estática) a partir
do tempo verbal do gerúndio, que confere à gestão a conotação daquilo que está em
processo de fazer-se, mas ainda não acabado. Nesse aspecto aberto/inventivo da noção
de gesto talvez possa inserir-se a sua raiz no verbo sugerir, que, significando
etimologicamente gerir por baixo, sugere uma série de relações possíveis não só com o
campo do convencimento afetivo e não-violento, mas também com as práticas da
malandragem e do contrabando como técnicas subversivas sem confronto direto.
Agamben (2015, p. 58), em suas ―Notas sobre o gesto‖, insere o problema da
definição de gesto na esfera geral da ação, porém o distingue tanto do agir (agere)
quanto do fazer (facere). Para ele, ―o que caracteriza o gesto é que, nele, não se produz

50
nem se age, mas se assume e suporta‖. A partir de Aristóteles, Agamben (2015, p. 59)
explica que ―se o fazer é um meio em vista de um fim e a práxis é um fim sem meios, o
gesto rompe a falsa alternativa entre fins e meios […], e apresenta meios que, como tais,
se subtraem ao âmbito da medialidade, sem se tornarem, por isso, fins‖. Para o autor, se
uma ―finalidade sem meios é tão alienante quanto uma medialidade que só tem sentido
em relação a um fim‖, o gesto ―é a exibição de uma medialidade, o tornar visível um
meio como tal‖.
Nesse gesto, Agamben aproxima o gesto do puro meio que, em Benjamin
(2011), apresenta-se como a forma de ação humana capaz de escapar ao círculo que liga
poder instituinte e poder instituído. Ao subtrair-se à dialética entre o fundamento da
autoridade (esfera dos fins) e a sua administração (esfera dos meios voltados a fins), e,
assim, à da linguagem como representação, o gesto acaba fazendo-se ―gesto de não ter
êxito na linguagem‖ (Agamben, 2015b, p. 60), o que o aproxima da ―improvisação do
ator para suprir um vazio de memória ou uma impossibilidade de falar‖. O gesto como
jeito, o jeito como gesto, partem de uma situação ética singular em que um corpo
vulnerável, como antes e depois da linguagem, se lança no improviso.
Se, em uma situação de jeitinho, a simpatia implicada depende da afetividade
no jeito de quem pede, é essencial que essa afetividade exponha-se não como um meio
para um fim, mas como um meio puro. Se ficar claro que quem pede o jeito está
interpretando um papel, com a finalidade de obter uma vantagem, já não se dará jeito
algum. São os gestos espontâneos de alguém, que se mostram a despeito de qualquer
finalidade, que podem conquistar o afeto do outro, ao expressar a verdade de um
sofrimento, de uma fraqueza, etc.
O jeito, assim, aproxima-se do gesto por pertencer a essa esfera da ação que
não se identifica nem ao fazer (como quando um poeta escreve uma peça ou um
legislador faz a lei), nem ao agir (quando um ator age a peça, ou um agente do Estado
exerce a força da lei). Agamben associa essa terceira esfera, ligada ao verbo gerere, às
ações que não põem nem aplicam nada, mas sim assumem e suportam seu próprio ato,
expondo-o como tal. Esse verbo, para ele, fala de ―uma maneira de comportar-se e de
agir que exprime uma atitude [atteggiamento] especial do agente a respeito da ação‖
(Agamben, 2017, p. 137, tradução minha), a um ponto em que ação e agente se tornam
indistintos. Eu nem propriamente sou (ou tenho) o meu jeito, nem propriamente o
executo (como um ator). Um jeito –uma atitude – se assume e se suporta.

51
Nesse sentido, o jeito é uma atividade sem obra, que não produz nada – não
produz, por exemplo, a manutenção do direito (poder constituído), nem produz um
direito novo que substitua o antigo (poder constituinte). Trata-se, antes, de ―uma
atividade ou uma potência que consiste no desativar e tornar inoperosas as obras
humanas e, assim, abrir a elas um novo uso possível‖ (Agamben, 2017, p. 138, tradução
minha). Aí começa a aparecer mais claramente a relação – da qual, por outro lado,
ninguém duvida – entre o jeito (desativação de uma regra geral em face de uma situação
específica; imagem de uma corporalidade) e a gambiarra (retirada de um objeto do seu
uso tradicional para emprestá-lo a um uso inesperado, face à precariedade). Um jeito,
mesmo na relação entre o corpo e a norma, é sempre gambiarra: retirada dos gestos do
seu uso finalístico; desativação do direito como ordem de meios legítimos e fins
justificados.
Se o poder e o direito, como ordem das relações entre meios e fins, dá
continuamente os limites do possível (isso pode, isso não pode), o jeito, ao tirar o corpo
fora dessas relações, é o acontecer de um acontecimento que projeta-se como gesto. Não
tem jeito, diz-se, até que dá-se um jeito – e aquilo que se dá é rigorosamente um
acontecimento, no sentido de que recoloca as relações entre possível e impossível,
dando-se, enquanto performativo, as suas próprias condições de felicidade.
É toda uma esfera da ação que se abre, e, no que tange à sua relação com o
mecanismo em que se articulam a constituição democrática e o governo democrático,
toda uma esfera da ação política, da ação democrática, irredutível aos fins ditos
democráticos, aos meios ditos democráticos. Um campo de inventividade, de
possibilidades infinitas, disponibiliza-se nesse gesto, e, embora não pertença ao tempo
presente, tampouco se projeta para o futuro, e tampouco está ausente. É uma democracia
que vem, que vem vindo, que já vem vindo, mais que uma democracia por vir. Seu
gesto é assumido e suportado em cada situação em que um corpo libera-se da norma,
seja para evitar um injustiça, seja simplesmente para fruir-se como corpo, e assim dá
ensejo à criatividade.
Essa atividade criativa que vem não é individual, mas comum. Não no sentido
de uma comunidade determinada, em relação a qual se poderia dizer quem entra e quem
não entra, mas a uma comunidade das pessoas comuns – que já não são, justamente,
pessoas, se estas se definem pelas relações especiais que carregam. Uma comunidade da
qual todos participam enquanto carentes de título para participar (e aqueles que têm
título também poderão entrar, desde que não o façam valer).

52
Também não se trata, note-se, de uma solução pronta, como se a desativação
das duas racionalidades que formam o mecanismo (mecanismos de representação e
mecanismos de governo) implicasse imediatamente o fim dos sofrimentos e o paraíso na
terra. O que se abre, antes, é a disponibilidade da experimentação com outras
racionalidades, que, embora não se deixem capturar tão cedo na esfera da representação,
não são indiferentes nem indiferenciadas no próprio desenvolvimento. Outros jeitos de
falar são interessantes nessa esfera – jeitos que não são felizes necessariamente por
realizar o fim da comunicação ou por gerar efeitos ilocucionários (Austin, 1975), mas
que inventam-se e experimentam-se, que aprendem-se e ganham consistência sem
nunca fechar-se em uma gramática normativa. É a fala viva, na medida exata em que a
sua diacronia fica excluída da sincronia da língua (Saussure, 1995).
É interessante (dizer que é preciso seria retornar às atividades voltadas para
fins; dizer que algo é interessante, por outro lado, é valorizá-lo como puro meio)
encontrar maneiras de falar desse plano em que se inventam e reinventam os jeitos. Na
próxima seção, será questão de experimentar alguns caminhos que essa investigação
pode tomar.

3. Ficar sem jeito e pegar o jeito

Fulano está conversando com amigos e, de repente, alguém tira o celular do


bolso e começa a filmá-lo. Ele fica sem jeito. O que isso significa? E por que isso
acontece? Até então, ele vinha falando, gesticulando – ele sabia como portar-se
(assumir-se, suportar-se) naquela situação. Vinha levando uma atitude. Tinha um tom
de voz, uma maneira de falar, um jeito de mover os braços. No momento em que a
câmera é ligada, porém, é como se tudo isso lhe fosse roubado. Já não há um jeito de
falar dado, um lugar dado onde enfiar as mãos – Fulano ficou sem jeito. É que o jeito,
nesse sentido, tem a ver com a situação: na medida em que Fulano sabia com quem
estava falando, falava com um jeito que de alguma forma correspondia a essa situação 41.
A partir do momento em que está sendo filmado, Fulano já não sabe quem o está vendo;
já não é evidente qual o jeito adequado de portar-se. É como se se tornasse necessário
inventar então, do zero, cada gesto, cada maneira de falar, e isso obviamente não é fácil.
Fulano fica sem jeito, enfia as mãos nos bolsos, gagueja, sua, fica vermelho. Se move

41
Gaiarsa (1995, p. 26): Uma atitude humana se torna compreensível ―desde que nos seja dado encontrar
a cena ou a situação adequada‖.

53
de uma maneira peculiar – que é curiosa e engraçada para os outros porque é só dele.
Seu rosto perde a forma, vira uma maçaroca convulsionada por twitches. É como se ele
estivesse nu, e de certo modo ele está, porque estar com jeito é estar vestido de hábitos
socialmente compartilhados, e estar sem jeito é ficar abandonado à exibição do próprio
corpo, nas suas vulnerabilidades idiossincráticas, naquilo que ele tem de singular e que
é a exibição da sua mera vida.
– Olha o jeitinho dele! – alguém talvez diga, achando simpático o jeito tímido
que se mostra nessa situação. De fato, esse jeitinho pessoal que exibe quem está sem
jeito é jeito em um sentido mais estrito que o jeito no sentido do modo canônico de
portar-se. Há sempre o jeito canônico, o jeito certo de fazer algo ou de estar. Os modos,
digamos, ou as boas maneiras (que não é portar-se de qualquer maneira). Em um sentido
político, esse jeito maior pode ser chamado de gestão, ao passo que o jeito menor ou
minoritário, o gesto menor (Manning, 0000), chama-se jeitinho.
Alguém que encontra-se de súbito em uma situação de vulnerabilidade e fica
sem jeito, precisa, por outro lado, dar um jeito. Nesse sentido, falar de jeito é falar de
como se faz a transição entre uma incapacidade e uma capacidade, uma inabilidade e
uma habilidade. Essa transição, porém, não é um acontecimento místico, no sentido em
que Derrida (2005) fala, entre aspas, de um ―fundamento ‗místico‘ da autoridade‖, e em
que o Wittgenstein (1974) do Tractatus fala do místico como aquilo sobre o que não se
pode falar. Esse acontecimento aparece como místico apenas do ponto de vista da
representação, isto é, de um plano transcendente impostor que pretende separar-se e
impor-se normativamente sobre a matéria. Do ponto de vista das situações contingentes
em que os jeitos se dão e se assumem, trata-se muito mais de uma questão de
aprendizado corporal e motor, de um ganho de consistência pela experiência, o que é
diferente de um aprendizado no sentido do acúmulo de saber.
Talvez esse seja um dos aspectos mais urgentes do pensamento sobre o jeito –
a possibilidade de uma inteligência sem recurso às regras gerais ou ao conhecimento
como representação. Esse tipo de inteligência se mostra decisivo nos momentos mais
críticos, justamente quando uma ordem instituída é interrompida por uma força
insurgente e, em seu lugar, ainda não há outra ordem de inteligibilidade que aponte os
caminhos a tomar. Foi esse o trágico, por exemplo, dos acontecimentos de maio de 1968
na França ou de junho de 2013 no Brasil. Abriu-se ali uma clareira na ordem presente, e
em um dado momento pareceu que poderia vir uma grande mudança. Na ausência,
porém, de algum grau de organização das potências transformadoras, o vácuo criado foi

54
preenchido – como a história mostra ser a regra – por uma reação conservadora (por
vezes fascista) ainda mais violenta que a situação anterior.
Daí a necessidade de uma inteligência, de uma possibilidade de aprendizado e
de pedagogia que permita, naquele ponto em que o acontecimento ainda não foi fixado
na representação, uma ação que não seja aleatória, mas estratégica. É o que se observa
no ciclo de ocupações das escolas, por exemplo, em que os estudantes devem aprender a
ocupar ocupando, se virar por conta própria, ou seja, dar um jeito de lidar com essa
situação a partir da qual um futuro se torna possível. Nessas situações sem paradigma
conhecido, uma outra inteligência é decisiva. Parece pertinente, inclusive, substituir a
palavra inteligência, mais ligada ao conhecimento enquanto representação, pela palavra
esperteza, relacionada à prática e ao imediato. Se o inteligente sabe organizar o mundo
através das categorias gerais, o esperto sabe se dar bem em situações singulares e
contingentes. Outras expressões similares – ligadas, ao campo semântico do jeito –
incluem malandragem, ginga e jogo de cintura (Barbosa, 1992).
O jeito e a esperteza, assim, quem sabe permitam pensar uma prática sem
teoria, um discurso sem metadiscurso, uma performance sem forma, um modo sem
essência e – como em Benjamin e Agamben – um meio sem fim. Talvez tornem
possível um pensamento e uma prática, na contingência radical, que escapem à dialética
entre poder instituinte e poder instituído, uma gestão dos movimentos insurgentes fora
da esfera institucional ou representativa, mas que não implica, tampouco, a ausência de
organicidade.
O jeito é, assim, mais inteligente que a regra. Enquanto a aplicação de regras
gerais reduz a complexidade da experiência à simplicidade das categorias, a lida com a
singularidade, criadora das próprias ferramentas, abre a inteligência à riqueza do
desconhecido. Esse é o materialismo radical dos jeitos, avesso aos idealismos que
permitem a manutenção de formas abstratas (impostoras) como se fossem fins em si
mesmas. Essa materialidade se mostra, por exemplo, quando se diz que um mecanismo
material tem um jeito específico de funcionar. Se digo, por exemplo, que para abrir,
com uma dada chave, uma dada fechadura, tem um jeitinho, não se trata de algo que eu
possa transmitir, por representação, ao meu interlocutor. O que estou dando a entender é
simplesmente que, no momento de abrir a porta, será necessário experimentar, tateando
na própria materialidade, com as possibilidades concretas, até encontrar o jeitinho
necessário. Uma vez aprendido ou pego esse jeito, porém, ele pode automatizar-se,

55
tornando-se tarefa fácil – e até mesmo inconsciente – chegar em casa e abrir a porta,
repetindo-se o gesto um sem-número de vezes.
É nesse sentido que o jeito, embora opere a transição entre impossibilidade e
possibilidade, não pode ser relacionado ao místico. Ou melhor: ele é místico apenas do
ponto de vista do conhecimento como representação, mas não do da matéria. Um
exemplo esclarecedor é o do truque de mágica, que opera uma impossibilidade visto da
perspectiva – por assim dizer – performativa, mas que, do ponto de vista concreto,
reduz-se a uma habilidade motora bem desenvolvida – a prestidigitação, movimento
rápido dos dedos. Daí que um acontecimento insurgente possa parecer ininteligível,
místico, aos olhos de pretensos intérpretes, mas que não o seja necessariamente para
aqueles cuja habilidade política está em jogo. Mistificar o acontecimento é perigoso,
nesse sentido, sempre que implicar em um bloqueio dessa inteligência política em
processo.

4. Jeitos de corpo

Um dos aspectos mais interessantes do conceito de jeito está na sua forte ligação
ao domínio do corpo e da corporalidade. Falar do jeito de alguém, como quando se diz
―fulana tem um jeito jovial‖ ou ―fulano tem um jeito meigo‖, é falar da imagem visual
da sua corporalidade – e não só das características estáticas do seu corpo, mas sobretudo
das motoras, isto é, dos gestos do corpo. Também aqui o jeito pode referir-se tanto às
formas reguladas dos gestos (na medida em que não existe acenar, indicar, ou mesmo
caminhar sem que haja uma forma geral socialmente estabelecida para esses gestos)
quanto aos gestos inauditos, como é o caso da dança enquanto arte.
Como já foi discutido, a presença e a expressão corporais, em sua relação com
a circulação de afetos, são elementos essenciais do jeitinho enquanto rito social.
Fernanda Carlos Borges (2006) leva essa dimensão corporal um passo à frente para, a
partir do conceito de jeito, pensar o próprio pensamento, excedendo assim a relação,
colocada em DaMatta e Barbosa, entre sociólogo como sujeito do conhecimento a
instituição/rito como objeto de estudo. Isso se faz necessário, a esta altura, na medida
em que já não parece possível pensar o jeito a partir de um marco estabelecido de
investigação. Talvez seja preciso fundar a própria investigação, a partir de agora, no
paradigma do jeito, a fim de colocar a questão do que o jeito torna possível (dá um jeito
de) pensar.

56
A partir da corporalidade implicada no fato de que, nas situações de jeitinho,
características como ―simpatia, capacidade de comunicação, modo de falar, sinceridade,
humildade e igualdade diante da fragilidade humana são indispensáveis‖, bem como do
aporte teórico de José Angelo Gaiarsa e Wilhelm Reich, Borges (2006, p. 18) procura
trazer a corporalidade para a própria raíz da filosofia, colocando o jeito como paradigma
para o pensamento em geral.
A autora lembra que, ―no território da filosofia, diz-se que o filosofar começa a
partir de um ‗espanto‘ que muda a nossa consciência habitual e nos faz indagar‖
(Borges, 2006, p. 16). A partir disso, sugere que se pense esse espanto como uma
―desestabilização de padrões de equilíbrio biomecânico do corpo humano, […] padrões
de percepção e de ação sistematizados na forma do corpo‖ – como uma ―sacudida‖ no
corpo. Para ela, qualquer organização só é possível quando há interação, entendida
como ―encontro que provoca desordem‖ (Borges, 2006, p. 50). ―Em termos de
motricidade‖, continua, ―é somente quando os ciclos auto-sustentados do equilíbrio são
perturbados que a consciência emerge para acertar o que foi desestabilizado,
reestruturando […] formas e hábitos‖. Para Borges, o jeito pode ser definido como ―a
capacidade que permite a emersão de uma forma absolutamente nova‖, o que, nos
termos da autora, é equivalente a uma ―atualização da habilidade‖.
Como é, porém, que as habilidades se atualizam no corpo? Como se pega um
jeito, se assume uma atitude? Uma corporalidade, nesse sentido, não é um corpo
organizado, mas a relação entre a organização e a desorganização de um corpo segundo
as situações. Ajeitar e desajeitar o corpo. O corpo humano, como argumenta Gaiarsa
(1995), não tem forma própria – o que é dizer que não há algo que possamos
rigorosamente chamar o corpo humano. O corpo não é uma forma; não há a forma do
corpo e depois sua atitude. O corpo é, desde sempre, atitude, desde sempre potência
organizada – ou melhor, esquematizada, já que não se trata só de vetores de
organização, mas também vetores de desorganização e reorganização que compõem
uma atitude dinâmica. É o que Deleuze e Guattari (1980) chamam um diagrama – um
esquema de virtualidades que organiza ou desorganiza as ações disponíveis em um
dispositivo, mas que não é em si mesmo uma organização, uma forma ou uma ordem de
representações.
Uma atitude é, assim, um feixe de atos, ou um esquema de atos em potência,
resultante de ―uma contínua concorrência entre as tensões ativas [no aparelho
muscular]‖ (Gaiarsa, 1995, p. 31), de modo que um movimento nunca é produto de uma

57
contração muscular, mas de uma relação entre essa contração (diferença de tensão) e
todas as demais tensões (potências acumuladas) que formam o sistema implicado. Daí
que um movimento não tenha uma origem determinável – aquele que poderia ser
considerado o início de um movimento já se desloca em um ambiente dinâmico de
tensões que são, em si, constitutivas desse mesmo movimento. O autor ressalta tratar-se
menos de uma descrição da geometria do corpo que da sua dinâmica: ―dadas as tensões
musculares do corpo em determinado momento, transformemo-las em vetores‖, escreve;
―a seguir vamos compor um conjunto de vetores fora do indivíduo, capaz de manter o
primeiro esquema em equilíbrio.‖ Para Gaiarsa, trata-se sempre da análise de intenções
projetadas, e ―intenção quer dizer ‗em tensão‘‖.
Tensão: virtualidade muscular. Virtualidade material. Embora a atitude possa
ser definida como um complexo de atos em virtualidade, isto é, como algo abstrato, isso
não significa que ela não seja material, uma vez que, na concepção de Gaiarsa, essa
atitude materializa-se sempre nas tensões musculares. O que há de teso no corpo (tesão)
forma um diagrama material de vetores que é a atitude do corpo, mas que se projeta
para além do corpo e se distribui sobre as linhas de uma situação. Gaiarsa (1995, p. 26)
vê a atitude como uma correspondência – entre geométrica e dinâmica – entre ―a figura
da pessoa e a figura da situação‖, entre o corpo e a cena. Há uma correspondência visual
e uma proprioceptiva, além de todas as outras correspondências simbólicas que a
psicanálise mais tradicional e a linguística se preocuparam em descrever. A atitude,
assim, é também uma maneira de colocar-se em um contexto. Enquanto esquema, ela
projeta-se sobre objetos externos, fazendo com eles um agenciamento, e transformando-
os em próteses do corpo. É o que ocorre ―quando carregamos uma bandeja, uma criança
ou uma pasta‖ (Gaiarsa, 1995, p. 32), ou ainda quando nos agenciamos com ―objetos
instáveis [...] como uma bicicleta, uma tábua de surfe ou um barco leve‖. Uma
continuidade se desenha, assim, entre a atitude de um corpo, que poderíamos supor
individual, e o seu contexto de ação, que evidentemente pode atravessar outros corpos.
Nesse sentido, chegar em uma situação com uma atitude aberta à interação
afetiva não é tanto chegar já com uma série de ações determinadas, mas chegar de tal
maneira a que possibilidades afetivas que se apresentem tendam a ser aproveitadas.
Questão de disposição. Os efeitos de aproveitamento não dependem apenas da atitude
anterior daquele que chega, mas da conjunção contingente entre essa atitude e os dados
da situação.

58
Dizer que Beltrano tem atitude quer dizer que Beltrano tem uma certa potência
de agir, de ser o elemento agente em uma situação. Alguém que tem atitude pode ser
objeto da admiração e do fascínio dos outros porque pode ser seguido, porque pode ser
um líder. Ou, mesmo que permaneça ocupado em um modo individual de ação, será
provavelmente um elemento importante no campo de jogo. Talvez funcione, mesmo que
não como um líder, como uma espécie de catalisador. Sicrano has an attitude, em inglês,
já tem um sentido diferente: Sicrano tem uma atitude subversiva; responde reativamente
aos estímulos do seu ambiente. Isso o operador do ambiente percebe – corretamente –
como algo de subversivo, já que o ideal, em um ambiente disciplinar, é que os corpos
não tenham uma atitude, não circulem um esquema de potência, ou, em todo caso, uma
atitude reconhecível como tal (a atitude correspondente ao esperado não aparecerá como
uma atitude; não se dirá he has an attitude).
Assim, um corpo não é apenas um sistema de órgãos, mas também um
esquema de jeitos que organiza e desorganiza esses órgãos, e é sobretudo nesse segundo
plano que o corpo pode politizar-se. Por exemplo – o que é fazer corpo mole?
Relaxamento de tensões musculares, sem dúvida. Dir-se-ia tratar-se mais de uma
impotência que de uma potência do corpo. Consideremos, porém, um operário que faz
corpo mole porque sabe que a maquinaria em que está inserido o oprime e que nenhuma
alternativa real está disponível para ele. Nesse caso, a preguiça se torna política, em
primeiro lugar porque o corpo mole libera desde já uma outra experiência tanto do
corpo quanto do trabalho – ele não projeta sua liberação para o futuro, mas a vive no
próprio gesto (pense em alguém que passa o dia todo no trabalho, mas como se
estivesse em casa). Em segundo lugar, ela se torna política na medida em que fazer-se
um corpo mole é entregar-se a uma atitude que pode se alastrar, e que, se um operário
que faz corpo mole é apenas um mau operário, um conjunto de operários fazendo corpo
mole pode ser uma greve geral. Há aí uma dimensão destituinte das atitudes do corpo
que, se começa em um corpo individual, sempre pode fazer-se comum.
De outro lado, há também vetores constituintes no corpo, quando ele se
apruma, toma jeito. Isso importa, uma vez que o que um corpo pode sempre depende de
como ele se organiza, de como se dispõe, embora não haja uma só maneira de lidar com
isso. Em certos casos, uma base sólida pode ser indispensável; em outros, um equilíbrio
dinâmico. Ou até no mesmo caso mais de uma solução sempre pode ser criada. ―O
trabalho interno que se realiza durante qualquer movimento – de enrijecimento,
manutenção da forma e equilíbrio – garante ao conjunto a possibilidade de fazer aquele

59
movimento (Gaiarsa, 1995, p. 59) – o que não significa que o máximo enrijecimento ou
a máxima força sejam sempre o mais interessante. Gaiarsa (1995, p. 59) compara, nesse
sentido, o corpo a um guindaste, ―mas um guindaste cuja carga a ser levantada governa
a potência do motor, assim como a resistência de toda a estrutura‖ – portanto ―o mais
econômico dos guindastes‖. Fazer algo com jeito é também fazê-lo sem utilizar mais
força do que o necessário, ou sem depender de uma superioridade agonística de força
em relação a algo.
Por isso falar de resistência é importante, mas não é o suficiente, quando se
trata da ação política. ―Resistência é aquilo que se opõe ao movimento, à mudança ou à
transformação. Etimologicamente, é um re-estar, um estar de novo outra vez‖ (Gaiarsa,
1995, p. 60). Resistir é sobretudo questão de estado – o que o Estado soberano busca,
sobretudo, é não cair, sendo a queda do Estado todo o problema da política
revolucionária tradicional. Para Gaiarsa (1995), a resistência está ligada sempre ao
medo da queda, de um lado, e à consciência do Eu de outro. ―Um desequilíbrio crítico
do corpo suprime totalmente o Eu‖ (Gaiarsa, 0000, p. 61), ao passo que ―o risco da
queda é – clinicamente – o mais poderoso estímulo à zona reticular do mesencéfalo. É o
que nos chama a nós mesmos‖. É toda uma questão da soberania e do sujeito
consciente, a atitude pensada como resistência. Há, porém, outros jeitos menores, outros
jeitinhos, em que já não se trata tanto de resistir, isto é, de evitar a queda a todo custo,
quanto de saber permanecer em queda, e fazer da queda constante a força do
movimento. É o caso da ginga, do jogo de cintura, ou de um estilo de luta como a
capoeira, que não só disfarça o treino da luta na dança, como transforma um movimento
constante de queda na fonte da uma força que pode, a qualquer momento, virar ataque
estratégico. É preciso saber virar água, como dizia Bruce Lee. Achar um jeito de
permanecer caindo é, em certa medida, sair do domínio do Eu soberano ou mesmo do
humano – ―devido à ativação [durante a queda] dos sistemas motores mais primitivos, a
consciência tende a ser invadida por noções tais como ‗vou regredir‘, ‗virar criança‘,
‗fazer-me um animal‘, ‗perder a dignidade‘, ‗ficar um monstro‘‖ (Gaiarsa, 1995, p. 62).
É na queda – ainda que controlada –, quando se fica sem jeito, bem mais que na
resistência, que se encontram os devires. Ou, para usar uma expressão mais falada, com
ecos lusitanos e cantada pela voz andrógina de Ney Matogrossoo, o vira, ou os viras –
vira isso, vira aquilo.
Menos a resistência, então, que um ganho de consistência na atitude dos corpos.
Um outro corpo político pode ir então se formando, ainda que não seja um corpo

60
humano, ou um corpo com cabeça. A decisão, nesse corpo, não terá a origem no Um ou
no Eu soberano, mas em um esquema dinâmico de vetores, de tensões musculares, em
que a origem de um movimento não pode ser traçada de volta a um ponto único. É essa
a esperteza do corpo, a ser aprendida e transmitida na experiência, com a qual se mexe
ao falar de jeitos. Ela se inventa de novo em cada situação de injustiça, em que um
corpo se subtrai à máquina bipolar de representação e governo, e transmite-se em uma
tradição abundante, extremamente rica, de código aberto e acesso livre. Já estão
disponíveis as ferramentas para vivê-la e pensá-la, se soubermos onde procurar.

5. Jeitos de pensar

Dizer que um jeito é um gesto singular é dizer, de certo modo, que um jeito é
sempre um paradigma (Agamben, 2008). Assim, os jeitos se transmitem por analogia,
do singular ao singular, e nunca pela articulação entre o individual e a generalidade.
Tem inúmeros jeitos de pensar, de falar, de conhecer, que muitas vezes vêm articulados
entre si – um jeito de falar ligado a um jeito de conhecer, por exemplo –, mas é
importante dizer que não há nunca O jeito, assim, com artigo definido, mas sempre um
jeito, e mais outro, e mais outro. Toda pretensão aO jeito é impostora, uma tentativa de
escapar à contingência e fundar uma instância transcendente a partir da qual julgar todas
as outras. Em contraposição a isso, falar de jeitos implica em falar sempre a partir de um
jeito, ainda que uma transferência, por analogia, permita a um jeito de falar e de pensar
iluminar um outro contexto problemático, diferente daquele ao qual ele estaria ligado
em uma situação anterior. Por exemplo, pegar um certo jeito de falar e pensar sobre um
corpo humano individual e transferi-lo para o contexto de um corpo político; ou
transferir um jeito de falar e pensar ligado à sociologia do Brasil a um contexto
filosófico ou biopolítico.
Não raro, grandes acontecimentos da história do pensamento não passam de
transferências analógicas desse tipo, muito mais do que descobertas de novos
fundamentos para o pensamento. Nesse sentido, as diferenças filosóficas tornam-se
indiscerníveis das diferenças culturais, o que é um banho de água fria nas pretensões do
ocidente de ter superado a sua própria contingência cultural via razão. Filosofia
continental e filosofia analítica, por exemplo, não são mais que jeitos de pensar e de
escrever, eminentemente culturais, e suas diferenças não são mais que culturais, ainda
que o sentido de cultural, a essa altura, já se aproxime muito do que poderíamos chamar

61
de metafísica – a diferença é que a metafísica, pensada assim, deixa de dispensar um
lugar privilegiado para o ocidente e para o seu jeito peculiar de pensar e falar.
Disso decorre, evidentemente, que o jeito de falar e pensar que esquematizado
nestas notas não pode pretender-se privilegiado em relação a quaisquer outros, como se
fornecesse respostas especiais a problemas que não poderiam solucionar-se de outros
jeitos. É apenas mais um jeito, com suas características singulares, qualitativamente
diferentes de quaisquer outras, mas, justamente por isso, nem melhores nem piores que
as outras a não ser por relação a algum contexto prático específico. Não é que se tenha
achado finalmente o jeito, o jeito de dar um jeito de vez neste ou naquele problema, o
jeito central, o jeito-mestre ao nível de uma chave mestra para o pensamento. Falar de
tudo como quem fala de jeitos não é mais que falar de paradigmas, de agenciamentos ou
do que quer que seja – é apenas diferente, no sentido de que pode gerar articulações
sutilmente ou explicitamente diferentes dos mesmos campos problemáticos. Neste caso,
é menos uma questão de centralidade, como se disséssemos que na verdade tudo é jeito
e que é no jeito que tudo se articula finalmente, que de capacidade de produção de
ligações. Pelo menos para determinadas questões, que nos interessam aqui, falar sobre
jeitos parece permitir uma certa capacidade hermenêutica, não no sentido da
interpretação como descoberta, mas no sentido do deus Hermes como mensageiro,
agenciador de conexões, um tipo de trickster comunicacional – capacidade de traçar
ligações diretas entre os pontos mais distantes de um diagrama, de operar o máximo de
transferências e analogias de qualquer ponto a qualquer ponto, agindo como uma
espécie de facilitador ou catalisador da inteligência que se produz como efeito
emergente do conjunto.
Nesse sentido, é um jeito de pensar que, transferido (sempre analogicamente)
para esse nível meta-jeitual, desenha um diagrama do pensamento em que cada ponto é
um ponto de partida a partir do qual iluminar todo o restante do conjunto. Isso implica
não só que todo o existente tem um jeito singular de compreender-se e de compreender
aquilo a que se conecta, mas que conta igualmente com infinitos outros jeitos a partir
dos quais pode ser pensado. Não há, assim, prioridade epistemológica (ou ontológica, o
que a essa altura também já dá no mesmo) entre qualquer jeito e qualquer outro. Trata-
se sempre de pensar qualquer coisa a partir de qualquer outra coisa – o que não significa
que dê para pensar as coisas de qualquer jeito.
Há, com efeito, dada uma situação determinada, jeitos que funcionam bem, que
produzem uma riqueza de caminhos, de potências de agir, de virtualidades, e outros que

62
parecem, pelo menos em um dado momento, estéreis, que travam ou que ficam presos
em círculos viciosos. Nesse sentido, um jeito para algo não se encontra por
correspondência, mas por praticidade, habilidade ou funcionalidade, sendo que não se
trata nunca de medir a funcionalidade de um e de outro a partir de uma medida
unidimensional compartilhada – a comparação assume sempre o ponto de partida de
uma prática, só pode se dar negociando os critérios na sua aplicação. Digamos que para
cada coisa tem jeito que dá jogo e jeito que não dá jogo.
Por exemplo, pensemos em um jeito de pensar dramatúrgico usado por
analogia para fins psicológicos – digamos que o inconsciente é um teatro. É um jeito
interessante de pensar, até certo ponto. Permite falar em personagens, em
representações, e isso ilumina um campo problemático. Mas é possível pensar o
inconsciente de outro jeito, isto é, transferindo um paradigma diferente – digamos que o
inconsciente é uma fábrica (Deleuze; Guattari, 1972). São outros problemas, outras
relações, mas sobretudo outros gestos de pensamento que se tornam disponíveis, como
o de pensar o desejo como produção em vez de falta. E parece evidente, na experiência
dessa transferência, que, embora não haja um ponto arquimediano a partir da qual
compará-lo com o jeito dramatúrgico, esse outro jeito é capaz de pôr para circular
elementos que, no primeiro, ficavam travados, de dar visibilidade ao que constituía um
ponto cego, ou simplesmente de produzir efeitos que, em um dado contexto histórico ou
de pensamento, abrem caminhos e movem as coisas. É o que se chamaria de um
acontecimento na história da filosofia ou da psicologia. Mas essa diferença não se
deriva de nenhum esquema racional que a preceda – ela só pode ser encontrada
tateando, experimentando com diferentes ferramentas, e sobretudo na curiosidade, na
inquietude e no gosto de descobrir jeitos novos de viver.
Nesse sentido, o jeito que vai articulando um jeito ao outro é como um método
do gosto – não no sentido do juízo estético, mas da disposição dos curiosos para
aprender a gostar de cada coisa do jeito singular que ela pede para ser gostada, que ela
ensina quando ensina a gostar-se dela. Esse é também o método democrático, em uma
democracia cujo átomo deixa de ser a abstração vazia do indivíduo para tornar-se o
jeito, isto é, a menor unidade de um modo de vida, de percepção e de pensamento
singular, que pode virar comum.

63
Referências bibliográficas:

AGAMBEN, Giorgio. Estado de Exceção. São Paulo: Boitempo, 2004.

_____. Il Regno e la Gloria: Per una genealogia teológica dell‘economia e del governo.
Vicenza: Neri Pozza, 2007.

_____. Introductory note on the concept of democracy. In: Democracy in What State?
New York: Columbia University Press, pp. 1-5, 2011.

_____. Karman: Breve trattato sull‘azione, la colpa e il gesto. Torino: Bollati


Boringheri, 2017.

_____. Meios sem Fim: Notas sobre a política. Belo Horizonte: Autêntica, 2015.

_____. Signatura Rerum: Sul metodo. Torino: Bollati Boringhieri, 2008.

AUSTIN, J. L. How to Do Things with Words. Cambridge: Harvard University Press,


1975.

BARBOSA, Lívia. O Jeitinho Brasileiro: A arte de ser mais igual que os outros. Rio de
Janeiro: Campus, 1992.

BORGES, Fernanda Carlos. A Filosofia do Jeito: Um modo brasileiro de pensar com o


corpo. São Paulo: Summus, 2006.

BENJAMIN, Walter. Escritos sobre Mito e Linguagem. São Paulo: Editora 34, 2011.

_____. Magia, Técnica, Arte e Política: Ensaios sobre literatura e história da cultura.
São Paulo: Editora Brasiliense, 1987.

COCCO, Giuseppe. MundoBraz: O devir-mundo do Brasil e o devir-Brasil do mundo.


Rio de Janeiro: Record, 2009.

DAMATTA, Roberto. Carnavais, Malandros e Heróis: Para uma sociologia do dilema


brasileiro. Rio de Janeiro: Rocco, 1997.

_____. Prefácio. In: BARBOSA, Lívia. O Jeitinho Brasileiro: A arte de ser mais igual
que os outros. Rio de Janeiro: Campus, 1992.

DELEUZE, Gilles; GUATTARI, Félix. L‟anti-Œdipe : Capitalisme et schizophrénie.


Paris : Minuit, 1972.

_____. Mille Plateaux: Capitalisme et schizophrénie II. Paris: Minuit, 1980.

DERRIDA, Jacques. Force de Loi: Le “fondement mystique de l‟autorité”. Paris:


Galilée, 2005.

FREIRE, Paulo. Pedagogia do Oprimido. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2016.

64
GAIARSA, José Ângelo. A Estátua e a Bailarina. São Paulo: Ícone, 1995.

RANCIÈRE, Jacques. O Ódio à Democracia. São Paulo: Boitempo, 2014.

SAUSSURE, Ferdinand de. Cours de Linguistique Générale. Paris: Éditions


Payot et & Rivages, 1995.

SOUZA, Jessé. A Ralé Brasileira: Quem é e como vive. Belo Horizonte: Editora
UFMG, 2009.

WITTGENSTEIN, Ludwig. Tractatus Logico-Philosophicus. New York: Routledge,


1974.

65
Como ensinar a filosofar com a vulnerabilidade do jeito do corpo

Fernanda Carlos Borges42

Resumo

Este artigo trata de um filosofar com o jeito de corpo implicado na phronesis, um


tipo de conhecimento que pondera a relação entre o controle normativo e a circunstância
para a tomada de decisão circunscrita à situação e cujos princípios não podem ser
universalizados. Trata de fundamentos que possibilitam ensinar e aprender a pensar
filosoficamente levando em conta o reencontro da razão com a vulnerabilidade do
corpo. Para isso, é situado no campo da filosofia corpada e considera suas implicações
sobre a filosofia no Brasil. Termina oferecendo exemplos de pensamentos filosóficos
brasileiros em perspectiva corpórea, como a antropofagia cultural, a afroperspectividade
e o filosofar inerente ao jeitinho brasileiro.

Palavras-chave

Jeito; phronesis; filosofia corpada; ensino de filosofia; jeitinho.

Este artigo trata de um filosofar com o jeito, mais especificamente de ensinar e


aprender a filosofar a partir da vulnerabilidade do jeito do corpo. Deste nosso ponto de
vista, tratamos das condições para um filosofar que nasce de problemas situados que
afetam nossas disposições corporais e que remetem à phronesis: uma produção de
conhecimento que não pode ser praticada como episteme, entendida como a ciência do
universal, e nem como techné, entendida como a produção de coisas mediante um
objetivo prático e uma lógica instrumental. A phronesis leva em conta ―o coletivo e o
particular; controle e circunstância; diretivas e deliberação; poder soberano e poder

42
Fernanda Carlos Borges é filósofa pela PUC/RS, mestre em ciências da motricidade humana pela
UNESP-CAPES, doutora em comunicação e semiótica pela PUC/SP-CNPq, desenvolveu um pós
doutorado sobre a performatividade do corpo na arte da performance no Instituto de Artes da UNICAMP-
FAPESP e uma pesquisa no exterior no Centro de migrações e relações internacionais da Universidade
Aberta de Portugal-FAPESP sobre ensino de filosofia. Publicou artigos sobre a Filosofia do jeito no
Brasil e no exterior. É autora do Livro A filosofia do jeito, sobre um modo brasileiro de pensar com o
corpo (Summus), entre outros. Conduz o Laboratório de filosofia em movimento em São Paulo.
Atualmente é professora visitante na Faculdade de Filosofia da UFABC.

66
individual‖ (FLYVBJERG. 2008, pg. 59), implicada no―modo como um ator social e
político elabora seus julgamentos e toma decisões‖ (Idem, pg.2) e que afeta o trabalho
filosófico sobre o conceito.
Neste artigo, aproximamos a phronesis da filosofia do jeito para fundamentá-la
no contexto teórico da filosofia corpórea. Para Aristóteles, classificado na história da
filosofia como o pai da filosofia da imanência e, portanto, da inteligibilidade nos
corpos, a phronesis é um habilidade intelectual cujo conhecimento é radicalizado na
experiência e circunscrito a um contexto. Distinta, portanto, da episteme, enquanto um
conhecimento universalizável, e da techné, enquanto um conhecimento técnico voltado
para um fim específico. Embora, para Aristóteles, o homem sábio que maneja a
phronesis não precisa ser filósofo, o filósofo deve estar comprometido com a phronesis,
que é a sabedoria pratica. Em que medida a sabedoria prática é levada em conta da
produção de pensamento filosófico no Brasil é uma questão que precisamos levar em
conta.
É preciso diferenciar a filosofia prática da phronesis: a filosofia prática trata de
objetos cujos princípios o são geralmente, portanto tende para a universalidade; e a
sabedoria prática trata de objetos cujos princípios podem ser diferentemente, portanto
são singulares. Os princípios singulares da phronesis têm calculadora, como a tecné,
mas de natureza moral e ética. Que cálculo ético e moral é este que caracteriza a
phronesis do ponto de vista da filosofia com o jeito do corpo? Para aproximar esta
questão da filosofia do jeito, é preciso retomar a origem etimológica de jeito na palavra
latina jactus, que significa lançamento, arremesso e também colocar, pôr. Assim, a
palavra jeito carrega um significado ativo. Para nós, o jeito do corpo é a colocação das
disposições no mundo por meio da postura biomecânica. Uma colocação dinâmica que
lança o corpo no mundo de um jeito ou de outro. O jeito é o modo como a postura
sustenta as atitudes. Postanto, não se trata de maneiras ou de maneirismos que são
elementos secundários, mas da radicalidade do modo como no sistema sensório motor
são organizadas formas dinâmicas de ação e de percepção lançadas na relação com o
outro a partir de uma determinada posição. Sendo assim, como filosofar a partir do
jeito?
Quando foi inserida a disciplina de filosofia no currículo do ensino médio
brasileiro, em 2008, foi iniciada uma discussão nacional sobre o que ensinar em
filosofia, implicada nas dificuldades de articulação entre a história da filosofia e um
filosofar situado no Brasil. Problema que envolve os cursos de graduação em filosofia

67
na medida em que persiste uma ―sensação mais ou menos viva de desconforto
experimentada por quem cuida de filosofia no Brasil, um certo sentimento íntimo de
andar meio à deriva, justamente à procura de assunto‖ (ARANTES. 1995, pg.27). Trata-
se das dificuldades de produção de uma filosofia em perspectiva, na medida em que a
implantação da filosofia em solo brasileiro nos anos 30 foi pautada pela especialização
na história da filosofia europeia.

Filosofar e o saber do jeito no mundo

A aproximação entre filosofar e ação como um cálculo ético coloca no campo da


phronesis, conhecimento inteiramente comprometido com o ―melhor a fazer‖ na
circunstância e não geralmente, implicado no trânsito entre o universal e o particular, a
submissão às diretivas e a responsabilidade pela deliberação (FLYVBJERG. 2008). Um
filosofar que nasce nas situações em que o princípio universal e sequer o hábito não são
capazes de responder pela urgência demandada pela novidade e pela singularidade. As
situações que demandam a phronesis implicam na presença do thauma filosófico em
tempo real e prático. Importa, então, verificar se tratar do filosofar a partir de uma
demanda por sabedoria prática poderá apontar um caminho sobre um filosofar situado
na singularidade da vida dos interessados por filosofia.
Tomemos como exemplo Bourdieu (2005) que, em ―Esboço de auto-análise‖,
trata de contextualizar sua produção filosófica para dizer que ela nasceu de um jactare,
de uma disposição, do jeito do corpo em movimento. Tratou de compreender as tensões
disposicionais dentro dos campos sociais nos quais e contra a razão das quais se fez e
que formaram suas disposições intelectuais. Assim, passou a identificar as estabilidades
que permitiriam compreender a reprodução e a exclusão e as instabilidades que
favoreciam a crítica, ―um dos princípios de tantas eleições intelectuais, as quais
permanecem de todo obscuras e por vezes vividas como inexplicáveis, pelo fato de
mobilizarem os dois habitus envolvidos.‖ (BOURDIEU 2005, p.56). Por isso, a lógica
da teoria deve ser aproximada da lógica das práticas, ou: a filosofia, enquanto um
sistema teórico falado ou escrito, deve ser aproximada da sabedoria prática. Em termos
gerais, Bourdieu definiu hábitus como esquemas de ação e de percepção estabilizados
dentro das relações. No entanto, também repara que o hábitus não é determinante, na
medida em que é possível uma margem de instabilidade dentro dos jogos
parametrizados pelos hábitus e que possibilitam as estratégias. As estratégias são

68
soluções inesperadas que implicam no desenvolvimento de novas disposições e,
portanto, novas formas de ação, de percepção e de juizo. As estratégias devem ser
relacionadas à sabedoria prática: a phronesis.
Na introdução de ―Os Meus Demônios‖, Morin (1995) dá continuidade mais
amadurecida ao trabalho que iniciou em Autocritique e em Le Vif du Sejet:

Senti progressivamente a necessidade de saber como e por que acredito no


que acredito, como e por que penso como penso e, no fim das contas, de
reexaminar o que penso nas suas próprias raízes. (…) A minha vida
intelectual é inseparável da minha vida, tal como escrevi em O Método:
não escrevo de um modo que me subtrai à vida, mas sim no âmago de um
turbilhão que me implica na minha vida e na vida. (…). Sei que o olhar do
presente retroage sempre sobre o passado histórico ou biográfico que
examina. (...). Tornou-se um princípio epistemológico primordial: o
observador/conceptualizador deve incluir-se na observação e na concepção.
O conhecimento precisa de autoconhecimento.

A sabedoria prática como cálculo do jeito

A filosofia corpórea com a qual trabalhamos leva em conta o chamado para o


―retorno ao fluxo da physis‖, como expressou Morin no primeiro livro da série O
Método (1977). Em termos gerais, trata de compreender o pensamento e a cognição a
partir das teorias evolutivas, da antropologia, das neurociências, das teorias da
complexidade e dos sistemas dinâmicos auto-organizáveis e da cibernética. Investiga,
portanto, como os sistemas conceituais e a razão emergem do sistema sensório-motor do
corpo humano. Em outras palavras: como as lógicas das teorias estão comprometidas
com as lógicas das práticas. Estamos de acordo com Lakoff e Johnson (1999) quando
partem do princípio de que

O pensamento é comprometido com esquemas de imagens que, por sua


vez, se confundem com esquemas motores; os significados desenvolvidos
pelas estruturas mentais estão interligados com nossa experiência como
corpos e não como relação formal entre símbolos autônomos; a estrutura
dos conceitos inclui protótipos de vários tipos: casos típicos, casos ideais,
estereótipos sociais, pontos de referência cognitiva, pontos graduados de
escalas, casos de sonhos-pesadelos, etc.; a razão é corpada; a razão é
imaginativa, as formas de inferência corporal são mapeadas de modo
abstrato pelas metáforas que emergem do sistema sensório-motor (pg. 77,
tradução nossa).

69
Bourdieu (2004) também entende que para compreender a teorização é preciso
compreender como ―o ritual passa de dança à álgebra, de ginástica simbólica ao cálculo
lógico‖ (pg. 140). Trata-se de superar a aparente dissociação entre os signos gráficos da
linguagem: a produção de significado, e os processos de orientação do corpo: a
produção de sentido. Sentido corresponde à orientação espacial, que diz respeito ao
posicionamento e à tendência do movimento. A relação entre os signos gráficos e o
corpo foi dissociada na medida em que se passou a acreditar que o significado pudesse
ser apreendido exclusivamente por meio da divagação intelectual, da busca pela verdade
abstrata em si. Perdida a relação entre o ethos e a ética, o significado é verticalizado na
direção da transcendência e perde-se as necessidades práticas na linha do horizonte do
sentido. Para Gaiarsa, trata-se de um ―esforço muscular que fazemos a fim de nos
obrigarmos a cumprir nossos compromissos, deveres e princípios, o elemento real a
analogia verbal. (...) esforço que fazemos para obrigar a outros, ou às coisas, a
obedecerem a uma certa norma ou a se conformarem a um certo molde. É preciso muito
esforço físico para conseguir este propósito‖ (GAIARSA. 1988, pg. 101).
Para Bourdieu (2004), a ideia de que a filosofia e a lógica são expressões
puramente verbais pode ser originada das dificuldades de objetivação de um sentido
prático. O enfraquecimento do sentido prático resultou na tradição letrada que
desenvolveu um processo de reinterpretação permanente sobre os textos, sem levar em
conta as transformações dos estados disposicionais em transformação: ou a posição do
interpretante ou, ainda, as necessidades de orientação em novas situações. O que resulta
na interpretação como uma busca de uma essência que se justificaria por si mesma. Para
Bourdieu (2004), isso corresponde à dissociação do mito, como texto, com relação ao
rito, como movimento do corpo: ―a partir do momento em que um rito é narrado, ele
muda de sentido, e passa-se de uma práxis mimética, de uma lógica corporal orientada
para algumas funções, a uma relação filológica: os ritos tornam-se textos a serem
decifrados‖ (pg. 140).
A phronesis é definida por Aristóteles como um conhecimento que envolve um
certo cálculo, na medida em que está a serviço de situações determinadas. Trata-se,
portanto, do calculo estratégico. Mas em termos da filosofia do jeito que cálculo é este?
Na pesquisa sobre Pitágoras, Santos (2000) demonstra que

Se atentarmos para os fatos que constituem nosso mundo, e nesse conceito


devemos incluir todos os corpos e fatos psíquicos, veremos que eles não
constituem, todos, tensões estáticas, paradas inertes, mas constituem

70
tensões dinâmicas que se processam, que passam de um estado para o
outro, que tomam uma direção. O número é, por isso, também processo,
ritmo, vetor, fluxo (SANTOS, 2000, pg. 113).

Ora, em termos do jeito do corpo, sabemos que a postura produz continuamente


ritmo, vetor e fluxo. Os vetores são especialmente interessantes neste caso, pois a
resultante dos esforços musculares da postura, que sustenta as disposições, podem ser
entendidos como vetores projetados no mundo: jogados na direção do outro, formando
um espaço de sentido. O conceito pitagórico de número está relacionado com o tempo,
daí ritmo: ―ritmo é a experiência do fluxo ordenado de um movimento (...) ritmo está
para o tempo assim como a simetria está para o espaço (...) há ritmo quando há geração
e corrupção, onde há aumento e diminuição, onde há alteração, onde há movimento‖
(SANTOS, 2000, pg. 111).
Para a filosofia do jeito, a phronesis implica no conhecimento sobre o fluxo
ordenado do movimento disposicional do sistema sensório-motor do corpo humano. Um
conhecimento imanente comprometido com a propriocepção, que é a sensação muscular
que informa ao cérebro a resultante dos esforços. Implicam nos parâmetros da posição
sustentada na postura e produzem o sentido dentro do espaço relacional. A solução para
os desafios advindos das relações implicam num cálculo biomecânico, disposicional,
que resultará no jeito de resolver a situação.
A postura do corpo humano não tem forma pré definida, mas sim uma abertura
para formar a partir das necessidades e dos interessas nas relações, de onde resultam as
atitudes e as disposições. Para Pitágoras, segundo Santos,

Nenhuma coisa é perfeitamente limitada em sua espécie; mas há sempre


algo que as des-limita, o que escapa ao limite. Por essa razão, a
harmonização é uma combinação da multiplicidade, uma acordância do
discordante, o que realiza uma nova unidade, especificamente superior
(SANTOS, 2000, pg. 162).

Isso é especialmente adequado como verdade para o sistema sensório-motor do


corpo humano que não tem forma predefinida, cujas possibilidades para formar-se e
deslimitar-se são muitas: são muitos as possibilidade de jeitos e suas combinações. A
harmonização é um calculo que leva à resultante de significado e de sentido, no
processo contínuo de uma dialética da multiplicidade. Cada unidade é uma resultante

71
temporária, uma abstração, cujo sentido também pode ser abstraído como um
significado na forma de signo.
Para os pitagóricos, número deve ser entendido como arithmós, derivado de
verbo ―rhein‖ que significa fluir. Esse significado de número ultrapassa o valor
quantitativo para expressar relação e relação de relação: função e, deste modo, número
implica no processo que produz a coerência que sustenta e dá sentido a um todo,
―constituem tensões dinâmicas, que se processam, que passam de um estado para outro,
que tomam uma direção. O número é, por isso, também processo, ritmo, vetor, fluxo‖
(SANTOS, 2000, pg. 112). Nada define melhor os esforços musculares do que tensões
dinâmicas que passam de um estado para o outro tomando uma direção, sem a qual não
há sentido. E o significado?
A origem da palavra teoria vem do grego ―theorien‖, que significa ver. O
significado está implicado nos signos que usamos para abstrair o sentido do que foi
visto, do que está sendo visto e do que pode ser visto na tendência do movimento no
campo do sentido, a partir de uma dada posição dinâmica neste campo. É assim que
devemos levar em conta ―as perspectivas, os pontos de vista que, em função da posição
que ocupam no espaço social objetivo, os agentes têm sobre essa realidade‖
(BOURDIEU, 2004. pg. 156).
Assim,

O habitus é ao mesmo tempo um sistema de esquemas de produção de


práticas e um sistema de esquemas de percepção e apreciação das práticas.
(...) Em conseqüência, o habitus produz práticas e representações que estão
disponíveis para classificação, que são objetivamente diferenciadas; mas
elas só são imediatamente percebidas enquanto tal por agentes que
possuem o código, os esquemas classificatórios necessários para
compreender-lhes o sentido social. Assim, o habitus implica não apenas em
um sense of one‟s place, mas também um sense of other‟s place”
(BOURDIEU, 2004, pg. 158).

Ou seja, ao mesmo tempo em que o habitus implica num modo de fazer a si e de


dizer de si mesmo, também implica no fazer o outro e de dizer quem o outro é.
Gaiarsa (1988, pg. 129), levando em conta a postura, repara num tipo de
consciência que emerge da dissolução dos referenciais conhecidos pelos esquemas de
classificação do hábitus.

Uma consciência que se forma onde os hábitos estabelecidos entram em


colisão uns com os outros, onde há colisão uns com os outros ou onde há

72
discordância com a situação. Uma vez formada (a atitude) sua função é
―re-solver‖ a interferência e restabelecer a ordem, modificando,
dissolvendo e re-estruturando novos hábitos.

E é aqui que entra a sabedoria prática na vulnerabilidade do jeito do corpo.


Para Gaiarsa, ―a abstração consiste em captar o elemento proprioceptivo de uma
dada situação. Explicar a situação significa saber como se distribuíram as forças que a
criaram. O mesmo acontece – e com maior razão – quando falamos em examinar uma
situação a fim de modificá-la‖ (1988, pg. 41), trata-se de uma natureza estética baseada
na percepção e na sensação da composição e da dinâmica das forças formativas em
movimento, de um imaginário configurado por uma geometria intensiva, como
elemento importante da emergência do processo de abstração. Sem a sensação dos
esforços da postura, cuja abstração é o vetor, não poderíamos pensar em sentido. Assim,
as palavras teriam a função de levar a ver ou ―a perceber como transita a força de um
corpo a outro, como ela se divide, reúne, organiza ou se anula, ao fazer os corpos
mudarem de posição, de distância relativa, de forma‖ (pg. 43). É preciso compreender
que este jogo de movimentos e de forças tem um aspecto social.
Para Georg Lakoff e Mark Johnson (1999, pg. 18, tradução nossa), a teoria
também depende dos movimentos do corpo: ―a categorização é uma consequência de
como estamos corpados (...). Nós categorizamos porque nós temos um cérebro e um
corpo que interagem com o mundo‖. As categorias dependem de categorizações pré-
conscientes que não controlamos e que dependem do modo como nosso copo é, sendo
que ―as relações espaciais são o ‗coração‘ do nosso sistema conceitual‖ (LAKOFF;
JOHNSON, 1999, p. 30, tradução nossa). No espaço, a formulação conceitual de
relações causais devem ser compreendidas a partir do trabalho muscular ao aplicar força
dirigida para um certo fim, enquanto o sistema visual provê um mapeamento
topográfico que proporciona uma determinada estrutura para a conceitualização de
orientações espaciais (LAKOFF; JOHNSON, 1999, pg. 19, tradução nossa). Sendo
assim, a concepção de tempo é relativa aos conceitos de movimento, espaço e eventos.
Definem o tempo como metonímia: como resultante de interações sucessivas de eventos
variados formando intervalos entre si: ―o tempo tem uma direção e é irreversível porque
os eventos têm uma direção e são irreversíveis; os eventos não podem se repetir. O
tempo é contínuo porque nossa experiência de eventos é continua. O tempo é
segmentado porque os eventos são periódicos: começam e acabam. O tempo pode ser

73
mensurado, porque a interação os eventos podem ser contadas‖ (LAKOFF; JOHNSON,
1999, pg. 138, tradução nossa).
É assim que, ―filosoficamente, a razão corpada via sistema sensório-motor é de
grande importância, porque propicia ajustar os conceitos à nossa função no mundo‖
(LAKOFF; JOHNSON, 1999, pg. 43, tradução nossa). Para Bourdieu (2004), a
produção teórica por palavras, dissociada dos jogos disposicionais do corpo, leva a uma
reinterpretação verbal sem fim e sem contexto, cuja ―falsa clareza é com freqüência
obra do discurso dominante, o discurso daqueles que acham que tudo é óbvio, porque
tudo está bem como está‖ (BOURDIEU, 2004, pg. 69) e, por isso, ―é preciso inscrever
na teoria o princípio real das estratégias, ou seja, o senso prático, ou, se preferirmos, o
que os esportistas chamam de ‗sentido de jogo‘, como domínio prático da lógica ou da
necessidade imanente de um jogo, que se adquire pela experiência do jogo e que
funciona aquém da consciência e do discurso (à semelhança, por exemplo, das técnicas
corporais‖ (BOURDIEU, 2004, pg.79). A palavra jogar também deriva do latim jactus,
de onde deriva igualmente jeito, como já vimos.

A rasteira da lógica teórica no dualismo intelectualista, a favor do jeito

A teoria intelectualista cartesiana serve como um exemplo da dissociação entre a


mente que teoriza e o corpo. Ryle (1970) faz uma análise lógica da teoria intelectualista
de Descartes para demonstrar a inconsistência teórica do dualismo mente e corpo, que
ele chama a Teoria da Dupla Vida. Esta teoria concebe mente e corpo como substâncias
distintas, reunidas na existência humana. Para esta teoria, os corpos existem no espaço,
estão sujeitos às leis mecânicas, sua realidade é pública e observável; a mente, ao
contrário, não ocupa lugar no espaço e não está sujeita às leis mecânicas, é definida pelo
que ela não é. Ao contrário dos corpos, que podem ser observados, o que acontece na
realidade da mente não pode ser observado. Trata-se de uma realidade essencialmente
privada e acessada somente pelo próprio sujeito através dos dados imediatos da
consciência e pela introspecção. O problema desta teoria é explicar o modo como um
processo mental se traduz em um movimento corporal. Para resolver este problema, o
intelectualismo usou o conceito de vontade para fazer estabelecer uma relação causal
entre mente e corpo. Ryle (1970) mostra como, no intelectualismo, o conceito de
vontade é usado para servir como uma alavanca que transforma idéias em movimentos

74
musculares, ou seja, em fatos. Assim a a vontade funcionaria como um elo entre a
atividade livre da mente e as atividades corporais, dependentes das leis da natureza.
No entanto, Ryle (1970) mostra como a vontade, no intelectualismo, também é
concebida como uma atividade da mente e como tal deve ser interior e oculta. E aqui ele
encontra um erro de princípio lógico, na medida em que Descartes perguntou pelo
princípio causal que regularia o comportamento inteligente. Como causalidade implica
em influência de coisas sobre coisas, ele buscou uma causalidade que preservasse a
independência da mente não corpórea e supôs uma ―coisa‖ causal mental: a vontade. O
erro lógico foi ter colocado na mesma categoria lógica categorias lógicas de espécies
diferentes para conseguir o alinhamento causal: corpo e mente. Descartes entendeu
como ―coisa‖ algo que deveria ser entendido como um processo. Um exemplo, é
colocar o nível de abstração universidade no mesmo nível de abstração de sala de aula.
A mente, para Ryle (1970), não é uma ―coisa‖, mas a resultante de um processo.
Ryle (1970) aplica o método de levar às últimas conseqüências as premissas do
intelectualismo e encontra o absurdo. Em síntese: a tese fundamental do Intelectualismo
é que a realidade da mente é distinta da realidade causal do corpo, portanto a hipótese
da causalidade da substância mente sobre a substância corpo, por meio da vontade, é
contraditória em si mesma. Por exemplo: se a vontade pode ser aplicados nas operações
consideradas mentais (como raciocinar resolutamente), pode-se admitir que alguns
processos mentais podem ser voluntários. Então, se as operações mentais também
podem estar sujeitas à vontade, pode-se questionar se a vontade é um ato voluntário ou
involuntário do espírito. Considerando que a voluntariedade em executar ações
essencialmente mentais é necessária, seria impossível executar qualquer ação mental,
pois cada volição dependeria de uma volição prévia.
Não negando a existência de fenômenos corporais e mentais, mas também não
os entendendo como ―coisas‖ distintas, ele desenvolve o trabalho lógico de encaixar
estes conceitos em categorias lógicas adequadas. A pergunta adequada para solucionar
esta questão entre ações mecânicas e mentais seria: como o comportamento inteligente
se distingue do comportamento não inteligente? O ―como‖ implica em processos e não
em causalidade. Sua intenção é demonstrar um modo diferente de conceber o
comportamento inteligente, independente dos atos invisíveis da mente. Ser inteligente
não é apenas estabelecer critérios e regular nossas ações a partir deles. Fazer
considerações, para ele, é saber executar algo. Assim, uma ação inteligente é distinta
pelo processo e não por seus antecedentes. O ―como‖ se realiza pelo treino: tentativas,

75
críticas e exemplos. O treino crítico é o que distingue o comportamento inteligente do
hábito.
Usando o exame de regras gramaticais que se referem às funções da mente, Ryle
(1970) analisa, entre outros, os verbos ―saber‖, ―aspirar‖, ―correr‖, ―acordar‖. Os verbos
saber e aspirar são distintos dos verbos correr e acordar. Estes últimos tratam de
ocorrências que podem ser determinadas, relatadas ou descritas, são termos de termos
episódicos. Saber e aspirar, no entanto, correspondem a um outro tipo de abstração,
abarcando a totalidade das etapas de um processo. Estes tipos de termos indicam
estados predisposicionais. Seria um erro lógico interpretá-los como termos episódicos.
O erro do dualismo intelectualista foi supor que termos como estes correspondessem a
episódios, ainda que não verificáveis pois supostamente ocorrem no campo invisível da
mente.
Verificando a distinção lógica entre os termos ―saber‖ e ―acreditar‖, Ryle (1970)
observa que saber indica a capacidade para fazer com êxito alguma coisa. Acreditar é
um verbo de tendência, não implicando no êxito de uma ação. O termo saber é da
família dos termos que indicam habilidade e acreditar faz parte da família que indica
motivo. Habilidade (saber) implica em método e inclinações (acreditar) implicam em
origem. Discriminados estes termos, pode-se perceber que as ações com características
mentais não implicam necessariamente num principio causal oculto. Nas nossas ações
apuramos estados de disposição como capacidade para se fazer ou sentir ou perceber
determinadas coisas em determinadas situações.
Ryle (1970) supõe que as considerações tradicionais intelectualistas sobre a
consciência, como característica das atividades do mundo mental, podem ter sido
tentativas para esclarecer o conceito de atenção. Ele demonstra que atenção não implica
em reunir uma investigação teórica anterior a uma ação executiva, numa linearidade
causal, como supõe o intelectualismo. Para ele, quando fazemos alguma coisa com
atenção não estamos fazendo duas coisas – uma mental e outra corporal - mas fazendo-a
de um modo especial. A atenção é uma ―coisa‖ acontecendo em um mundo obscuro,
assim como ―universidade‖ não é uma ―coisa‖ em relação à ―sala de aula‖. Para ele, a
ação atenta implica na observação do processo da execução das etapas que totalizam
uma tarefa.

76
A auto-organização do sistema complexo do jeito do corpo

A teoria dos sistemas dinâmicos que se auto-organizam também vêm trazendo a


razão de volta ao fluxo da physis. Atlan (1992) trata da humanidade inserida em um
mundo onde existe o acaso e auto-organização a partir do aleatório. Neste mundo, a
desordem é assimilada em novos sistemas, desenvolvendo no todo mais complexidade.
Mostra como um impasse vindo da Física com a Biologia abriu portas para esse novo
passo. Na Física, o segundo princípio da termodinâmica remete à entropia: a tendência
dos sistemas físicos, abandonados em si mesmos, para a homogeneidade, quer dizer,
cada vez menos diferenciação e maior desagregação. No entanto, a Biologia mostra o
quanto a evolução da vida seguiu o rumo da especialização da heterogeneidade.
Descobriu-se que a utilização da entropia pelos sistemas abertos e dinâmicos ao invés
de levar à desagregação e à homogeneidade é assimilada pelo sistema gerando maior
diversidade e heterogeneidade. Mesmo o programa genético dos organismos vivos não é
determinante único. O ―programa‖ interage com o ambiente onde se executa e realiza,
podendo ambos transformarem-se nessa relação. O tempo, neste sistema, não é absoluto
como o da mecânica clássica, nem o tempo devorador do segundo princípio da
termodinâmica (entropia), existindo condições para um tempo/espaço criativo, já que a
novidade é possível.

Mesmo que, no curso do desenvolvimento dos organismos, algumas


determinações possam ser encontradas num certo nível de
generalidade e de aproximação, o lugar do aleatório e, portanto, da
possibilidade do novo e do imprevisível, continua a ser grande no
nível do detalhe, e seu papel efetivo aumenta cada vez mais com a
complexidade e a riqueza de interações do sistema considerado
(ATLAN. 1992, pg.116).

A vontade humana, neste contexto, encontra lugar na organização da natureza. A


liberdade e a vontade só podem existir onde existe a novidade e é essa a natureza que
vem aparecendo diante dos olhos desta teoria. Nas palavras de Atlan (1992), ―a
novidade é realmente nova e a consciência de si como lugar de criação e de inovação, e
portanto, de individualidade e originalidade, pode não ser apenas ilusão‖ (pg.117).
Ruído é conceito aplicado por esta teoria ao aleatório e à novidade agindo sobre o
sistema e, como sistema natural, considera também o homem no seu ambiente. O
homem oscila entre a repetição em uma ordem já estabilizada e os abalos dos efeitos da
novidade (ruído), até que este ruído seja assimilado alterando o sistema original e
desenvolvendo mais complexidade no conjunto.

77
Para Atlan (1992), um dos grandes enganos do intelectualismo foi associar a
consciência à vontade, no sentido de uma consciência voluntária como fonte de nossa
determinação e de nossa liberdade. Para ele, a consciência está ligada à memória e
assume o papel de armazenar os recursos de assimilação dos ruídos pelo sistema. A
memória deve ser compreendida em muitas dimensões: no nível cortical, celular, de
respostas imunológicas, etc. Logo, a consciência está voltada para o passado, ao já
vivido. A vontade, ao contrário, é o princípio auto-organizador orientado para o futuro
na medida da ação em interação. Este querer só pode ser inconsciente, na medida em
que age a partir da novidade e do desconhecido. A novidade assimilada modifica os
padrões memorizados na consciência como memória.
A interação entre a consciência e a vontade produz o que Atlan (1992) chama de
fenômenos híbridos ou secundários.

Esse querer inconsciente, não precisa, na maioria das vezes, para se


realizar, desvelar-se, tornar-se consciente e se transformar em desejo.
Ao contrário, uma visualização demasiadamente grande como
memória dos processos auto-organizadores pode bloqueá-los. Às
vezes, para a sobrevivência do sistema, mais vale que ele continue a se
manter inconsciente. O próprio desejo não é da ordem do querer
inconsciente ―puro‖, mas da ordem da sua emergência na consciência,
de sua inscrição como memória e de sua representação. As situações
de conflito entre a consciência voluntária e os desejos não são
conflitos entre o consciente e o inconsciente, mas, antes, entre dois
modos simétricos de interação entre memória e auto-organização, que
são a memória organizadora e a auto-organização memorizada (pg.
121).
A teoria dos sistemas dinâmicos que se auto-organizam abre espaço para um
"saber em andamento". Neste contexto, o problema do dualismo intelectualista pode ser
reformulado: como nos deixamos envolver pelo mundo das palavras ao ponto de
deixarmos de perceber sua conexão com as disposições do corpo e, com isso, perdemos
a habilidade da sabedoria prática, quer dizer, da phronesis?

O corpo que dá um jeito como phronesis

A palavra grega phronesis é, muitas vezes, traduzida por prudência e remete ao


pensamento em tempo real, não submetido ao conhecimento universalizável. Alguns
sinônimos de prudência, em português, são: ponderação, equilíbrio, prumo, temperança.
Para Gaiarsa, ponderar é o movimento de balanço que a postura do corpo faz ao ampliar
suas oscilações auto-organizadoras. Ponderar, neste caso, é balançar. A sabedoria

78
prática exige balanço do sistema sensório-motor. Na ponderação, não seguimos um
caminho guiado pelo conhecimento prévio do passado, já assimilado. Nossa
biomecânica é organizada por contradições que se combinam numa rede de
multiplicidade, em função das quais o movimento é possível. Então aprender a pensar
em ação movida na singularidade é tão importante quanto a capacidade para o
estabelecimento de princípios universais, especialmente do que diz respeito à ética e à
política. Gaiarsa desenvolveu no Brasil, a partir de uma posição marginal à academia,
fundamentos para o que hoje pode ser entendido como um filosofar em movimento,
ocupado com o fato de que ―uma idéia bem compreendida – não apenas bem dita ou
bem repetida – é exatamente a consciência de uma resultante virtual, pura percepção de
uma ação possível ou de uma possibilidade de ação‖ (GAIARSA. 1988, pg 51).
Já vimos o argumento de Ryle de que a ação mental inteligente não depende de
um saber antes de fazer. Vamos comparar com a citação de Gaiarsa (1988, pg. 77):

Se me fosse necessário pensar (no sentido intelectualista) para manter meu


equilíbrio, ao iniciar a primeira consideração eu já estaria no chão; sem
contar que essa tarefa me absorveria totalmente a cada instante e em todos
os instantes. Esses reajustes automáticos, inconscientes quanto à operação,
não são inconscientes quanto à sensação. A propriocepção dos mesmos tem
sobre a consciência um poder regulador absolutamente coercitivo, capaz de
organizá-la toda, de alterá-la em qualquer sentido e, no limite, de suprimi-
la.
Gaiarsa se espanta ao perceber que ―há no aparelho muscular uma contínua
concorrência entre as tensões ativas. Esse fato esclarece um outro, sobremodo
exasperante para mim: nunca sabemos onde começa o movimento em nós. Creio que
esse problema se entrelaça com o problema da iniciativa e da vontade humana‖ (Idem,
142). Isso corresponde à questão colocada por Ryle sobre o erro de procurar
compreender a vontade por meio da linearidade causal, como se propôs o
intelectualismo dualista de substância. Para Atlan, a vontade é colocada na assimilação
do ruído que move o corpo na direção do futuro, como um processo adaptativo e crítico,
na medida em que mobiliza os dados cognitivos intelectuais assimilados como
memória. A variabilidade e redundância que caracterizam o desenvolvimento dos
sistemas complexos é aplicável ao sistema complexo da postura: o reequilíbrio é
constante, o equilíbrio é passivamente perturbado e ativamente mantido numa auto-
regulação constante. Num primeiro momento, a variabilidade pode ser reconhecida na
capacidade do sistema postural de refazer-se em novas disposições; e a redundância nos
limites do equilíbrio, tanto com relação às exigências primárias de respeito ao polígono

79
de sustentação quanto com relação ao impacto que o ruído-desequilíbrio causa sobre os
parâmetros definidos pelas atitudes habituais, sustentadas na postura.
O erro intelectualista foi ter limitado a vontade aos critérios do conhecido.
Partindo do princípio de que há espaço para a novidade, a complexidade situada só pode
realizar-se havendo espaço para uma vontade inconsciente que mobiliza uma nova
ordem, que com o tempo será assimilada pela consciência como memória e
conhecimento prévio, ampliando nossos recursos na vida. Em termos de postura, na
ocorrência de um desequilíbrio por um ruído, o reequilíbrio acontecerá por meio ajustes
inconscientes quanto à deliberação mental, como uma vontade inconsciente e auto-
reguladora. Como se trata de músculos, e muitos músculos podem ser treinados para o
movimento, reencontramos aqui o conceito de treino como operante da inteligência,
como vimos com Ryle acima.
A postura não serve apenas para sustentação mecânica de movimentos
utilitários, ela também sustenta as relações disposicionais na forma das atitudes: a
preparação do corpo de uma certa posição para uma determinada ação. As atitudes
conformam funções e significados existenciais, sociais e culturais. Portanto, éticos e
políticos. Resulta daí que o fenômeno híbrido, entre o querer inconsciente e a vontade
consciente, mobilizam questões para além do drama do indivíduo isolado sobre si
mesmo. A intervenção muito forte da memória na auto-organização pode impedir a
assimilação do ruído na resolução do presente para a produção do futuro. As forças
conservadoras do comportamento humano são tecidas por determinados parâmetros
perspectivos de equilíbrio, justificados por narrativas com pretensões universais:
crenças verbais e crenças motoras. A crença é diferente da inteligência e define uma
tendência (Ryle), a inteligência implica em treino (Ryle) e auto organização (Atlan). A
resistência conservadora é um reficar, pode-se dizer que se trata de um reficar que não
considera a vulnerabilidade do corpo e por isso não dá um jeito.
Mas a ineficiência da memória na auto-organização também pode prejudicar a
assimilação do ruído, dada a ausência de referências. Em termos de postura, a
ineficiência da memória nos processos de auto organização do equilíbrio derrubaria a
pessoa, porque ―pode-se demonstrar que não é possível suprimir toda a atitude; dadas as
suas relações com a postura, anular totalmente a primeira é suprimir toda a segunda, e
isso nos levaria ao chão (GAIARSA. 1988, pg. 53). O desconhecido dialoga com o
conhecido, em vários níveis. O efeito do ruído sobre os parâmetros perspectivos da

80
postura afeta, também, significado do conceito assimilado como memória, aos poucos
reorganizado em novos contextos de sentido.
Para Atlan (1992, pg. 122):

Ante a pergunta: ―o que é que aumenta, o que é que diminui na


aprendizagem?‖ Podemos responder que o que aumenta é a diferenciação,
a especificidade dos padrões aprendidos, e isso implica, portanto, um
aumento da variedade, da heterogeneidade; ao contrário, o que diminui é a
redundância da totalidade do sistema, é o caráter indiferenciado.

Por filosofias do jeito do corpo em perspectivas brasileiras

Com estes fundamentos desenvolvidos até aqui, pode-se dizer que as teorias da
história da filosofia correm o risco de uma função delirante a depender do modo do seu
ensino, quando não consideradas as referências perspectivas para a visão de e a
colocação no contexto original e, principalmente, como os conceitos criados por elas
colaboram com a visão de e a colocação no contexto do presente de quem lê, o que os
transforma uma coisa nova, quando dá um jeito. Assim, somos levados à tradicional
questão sobre a necessidade de uma filosofia brasileira situada e em perspectiva.
Arantes (1995, pg. 33), compreendendo a necessidade de uma filosofia brasileira mas,
também, criticando a posição extrema dos defensores radicais de uma isenção da
influência da filosofia europeia ou dos ―modismos filosóficos‖, traz as seguintes
questões que levamos em conta:

Ficam então desconsideradas as contribuições brasileiras à maré de papers


sobre a Filosofia da Ação, a Pragmática Universal, a Ética cognitivistica?
Não devemos então mudar de Paradigma? Deixar de incorporar o linguistic
turn? O ―passo globalizante‖ que nos pedem a partir da profundidade local
reconstruída, deveria deixar de lado, por exemplo, o rejuvenescimento da
fala filosófica na pia batismal da nova história das mentalidades? Se
renunciássemos a arbitrar a gigantomaquia internacional que envolve o
progressismo da Nova Teoria Alemã e o vanguardismo errático da
Ideologia Francesa, mais uma vez não perderia a Europa outra
oportunidade de curvar-se diante do Brasil?

Os recursos conceituais para ajudar na compreensao dos problemas phronéticos


não estão isolados dos ventos que espalham esporos das ideias no contexto global, como
metaforizou Morin (1977). Assumimos os esporos do pensamento corpóreo como
fundamento teórico para a nossa tese, associando-o ao conhecimento popular que
produziu o conceito de jeito para ensaiarmos uma filosofia em perspectiva nossa.

81
Mencionaremos brevemente a proposta de Antropofagia Cultural como um
exemplo do desenvolvimento de uma práxis filosófica em perspectiva brasileira na
situação das relações internacionais. Para o pensamento antropofágico, ―o espírito
recusa-se a conceber o espírito sem corpo‖ (ANDRADE, 1995, pg. 48). Nunes (1995)
repara que Oswald de Andrade, criador da filosofia da antropofagia cultural, entende a
humanidade como ―animal em contínuo processo de adaptação biopsíquica, reagindo
contra o meio e criando seu ambiente, o homem tem sua inteligência limitada a
coordenadas espaciais que passam pelo lugar em que habita, e que o ligam, para sempre,
a uma região determinada.‖ (NUNES, 1995, pg. 22). A espacialidade é, portanto,
fundamental para a filosofia antropofágica como o é para a filosofia do jeito e para o
filosofar com base na phronesis. No Manifesto da Poesia Pau-Brasil, Oswald de
Andrade (1995) já propunha um pensar situado ―contra o gabinetismo a prática culta da
vida. Engenheiros ao invés de jurisconsultos, perdidos como chineses na genealogia da
ideias‖ (pg. 42).
Oswald de Andrade entendeu o xenofobismo como um Tabu da contaminação
pelo contato, já que na história do Brasil o estrangeiro de fato trouxe a violência. No
entanto, essa recusa de contato com o estrangeiro reforça o que nele, enquanto Tabu, é
poder. O pensamento filosófico antropofágico propõe, então, a transformação do Tabu
em Totem: do adverso ao favorável. Trata-se da ―transfiguração do Tabu em Totem.
Antropofagia‖ (ANDRADE, 1995, pg. 50). A transformação do Tabu do estrangeiro em
Totem tecnológico a favor da disposição primitiva. A transformação do Tabu do
Progresso, como resistência à submissão ao modelo de desenvolvimento estadunidense,
em Totem Tecnológico em benefício de uma sociedade diferente daquela que produziu
essa mesma tecnologia, baseada na disposição primitiva.
Oswald de Andrade pretendia o cultivo de uma perspectiva adequada às
condições sócio-históricas nas quais o Brasil esteve envolvido desde a primeira metade
do século XX, afirmando uma disposição oriunda do amálgama das culturas primitivas
(SILVA. 2009), especialmente a disposição do guerreiro Tupinambá para comer o poder
do inimigo. Para Oswald de Andrade, o poder do inimigo moderno é a tecnologia, que
deve ser devorada favor da disposição nativa. A disposição da vida primitiva propiciaria
não somente uma alternativa de futuro ao Brasil, como também teria inspirado as
utopias da própria modernidade européia. A descoberta do Novo Mundo pelos europeus
teve o efeito de inspirar um outro modo de vida para eles mesmos: ―as Utopias são,
portanto, uma conseqüência da descoberta do Novo Mundo e sobretudo da descoberta

82
do novo homem, do homem diferente encontrado nas terras da América‖ (ANDRADE,
1995, pg. 163).
A concepção de homem que rege o antropófago cultural é diferente do homem-
indivíduo dos ideais modernos. O indivíduo é herdeiro das ilusões salvacionistas,
firmemente ligada ao movimento protestante (PIERUCCI, 2003). O indivíduo acredita
na preservação da imparcialidade e, ao garantir a estabilidade exterior, preserva, de um
lado, o isolamento subjetivo e, de outro lado, uma convivência baseada em uma ideia de
igualdade massificante e objetivada. Oswald de Andrade chamou a atenção para uma
concepção de homem alternativa ao indivíduo moderno. Uma concepção de homem que
não tende para o isolamento subjetivo e a persuasão, mas para a participação e a
alteridade, ―poder-se chamar de alteridade o sentimento do outro, isto é, de ver-se o
outro em si, de constatar-se em si o desastre, a mortificação e a alegria do outro‖
(ANDRADE. 1995 pg.157).
Embora militante comunista, Oswald de Andrade percorreu um caminho teórico
diferente do materialismo dialético que deu suporte às revoluções socialistas. Tratou da
inevitabilidade do sentimento órfico como antídoto contra a homogeneidade e a
universalidade que caracterizaram a segunda etapa totalitária das revoluções socialistas
assim como o pensamento instrumental totalitário do capitalismo. Para ele, o sentimento
órfico, irredutível, implica na experiência do extraordinário da qual emerge de
consciência participativa e a percepção da alteridade. É assim que a antropofagia ritual
órfica é colocada como uma alternativa à verdade sem lugar de gabinete.
Como na vanguarda européia, os modernistas antropófagos brasileiros também
pretendiam romper com o passado, influenciados pelas perspectivas utópicas de um
novo mundo favorecido pelas máquinas. Oswald de Andrade foi leitor da revista
dadaísta Canibale, fundada por Picabia, acompanhou a evolução do modernismo
europeu e imaginou que as utopias modernistas seriam realizadas nas terras brasileiras,
como destino da história com o retorno do primitivo tecnizado: ―já tínhamos o
comunismo. Já tínhamos a língua surrealista. A Idade do Ouro‖ (trecho do Manifesto
Antropófago, na coletânea A Utopia Antropofágica, 1995).

O primitivismo correspondeu ao sobressalto étnico que atingiu o


século XX, encurvando a sensibilidade moderna (...) no rumo
(...) do ―pensamento selvagem‖ – o pensamento mito-poético,
que participava da lógica do imaginário e que é selvagem por
oposição ao pensar cultivado, utilitário e domesticado (NUNES,
1995, pg. 9).

83
A postura do corpo humano transforma continuamente o Tabu em Totem,
assimilando as forças que podem derrubá-lo, o Tabu, e transformando-as a favor do
movimento por meio da atitude. A atitude pode ser convertida em um Totem Vivo,
devorador e auto-organizador, capaz de dar um jeito ―contra todas as catequeses‖
persuasivas, apoiada em princípios autoritários. Esta competência advém da percepção
da vulnerabilidade do corpo transformada em poder do jeito em movimento.
Cabe ainda mencionar, como outro exemplo, o trabalho de Renato Noguera para
o desenvolvimento de uma filosofia afroperspectiva, que consideramos próxima da
proposta da filosofia do jeito do corpo. Antes de tudo, ele coloca em crítica a história de
filosofia que a situa como criação exclusiva dos gregos. Entendendo que o modo de
pensar filosófico é uma competência congênita da condição humana. Mostra como
exemplo o pensamento filosófico se desenvolveu na África, Egito, dando como exemplo
o sábio Ptah Hotep, entre outros. Denuncia um racismo epistêmico ocidental,
consolidado com o positivismo e o empirismo da segunda metade do século XIX e
propõe o afroperspecivosmo para fomentar perspectivas policêntricas e multiracionais.
Ele entende, como nós que propomos a filosofia do jeito, que a área acadêmica da
filosofia, no Brasil, é mais tímida e acuada do que as outras áreas das humanidades.
Propõe colocarmos a atenção sobre uma geopolítica da filosofia, ou seja, levar em conta
um pensar situado a partir de uma posição, relacional e dinâmica, e para isso há de se
pensar no eurocentrismo e na colonialidade, pois "a aparente neutralidade do discurso
filosófico ocidental esconde categorias próprias da lógica colonial, do império, das
raízes da modernidade (...) que podem ser subsumidas pela ideia de subalternização
epistêmica baseada em critérios de raça‖ (NOGUERA, 2011a, p.27).
Os problemas básicos colocados pela filosofia afroperspectivista no artigo
Denegrindo a filosofia: o pensamento como coreografia de conceitos
afroperspectivistas (NOGUERA, 2011b) são: por que o Ocidente é o berço da filosofia?
O que uma filosofia incorporada e dançarina tem a dizer para uma proposta de educação
que se orienta a partir de uma desvalorização do corpo? Como conceber o ―direito‖ de
uma filosofia afroperspectivista, se os cânones seriam estrangeiros? A questão racial é
colocada não no contexto do essencialismo, mas naquele da perspectiva fora do centro
de poder, como acontece com o pensamento feminista, por exemplo. Assim, a filosofia
afroperspectivista é apresentada em três teses básicas: "pensar é movimentação, todo
pensamento é um movimento que ao invés de buscar a Verdade e se opor ao falso,
busca a manutenção do movimento; o pensamento é sempre uma incorporação, só é

84
possível pensar através do corpo; a coreografia e o drible são os ingredientes que tornam
possível alcançar o alvo do pensamento: manter a si mesmo em movimento"
(NOGUERA, 2011b, pg. 6), cujo dissenso é efeito da imanência para propiciar a alforria
da diferença. Do ponto de vista da phronesis, pode ser identificada na "modalidade dos
arranjos, cujos "desafios são definidos a partir das possibilidades de coreografias,
dribles e cadências das movimentações resolução" que entende "o aprendizado como
resultado da insuborninação diante da imobilidade" (NOGUERA, 2011b, pg. 7) cujo
processo de filosofar acontece como dança ou jogo.
Enquanto uma filosofia da imanência, a aproperspectividade tem como matriz a
terra e a ancestralidade rizomática africana como antídoto contra a cisão entre natureza
e cultura, acionando "potências negras e forças pretas que primam pela diversidade, elas
são xenófilas, cultivam o dissenso, percebem e inventam a vida em conexões
imanentes" (NOGUERA, 2011b, pg. 10), cujo pensar não prioriza a transparência, mas
fazê-lo retinto, colorindo a vida, enegrecendo. Tem na galiha d‘angola o animal
símbolo, conectada com a terra ao ciscar, deslocando conceitos, "se a coruja observa e
contempla numa visada de 360º ou como disse Hegel no prefácio da Filosofia do
Direito, a coruja só alça vôo no crepúsculo; a galinha d‘ angola cisca no terreiro, se
mantém na terra, atada à imanência, ciscando no alvorecer ou no crepúsculo" (Idem,
pg.11).
A proximidade da filosofia do jeito com a filosofia afroperspectiva é ainda mais
evidenciada quando Noguera repara que "em kimbundo – língua do tronco
etnolinguístico banto – jongo significa arremesso, flecha ou tiro; é preciso arremessar as
palavras no mesmo ritmo do corpo" (Idem, pg. 13) portanto carrega o significado de
jeito oriundo do latim jactus (lançar, pôr, jogar), como vimos no início deste capítulo, o
que remete à ginga com seus traços dinâmicos e relacionais.
Para finalizar, lembramos a nossa tese do que consideramos uma perspectiva
filosofica popular imanente e inerente às situações de jeitinho brasileiro. Considerando a
diferenciação proposta por Lívia Barbosa (1992) entre o jeitinho brasileiro e outras
práticas como ―levar vantagem‖, ―sabe com quem está falando‖, "dívida de favor" e
"corrupção", ela mostra que a expressão "jeitinho brasileiro" foi criada para designar a
ato de exceção à regra por uma pessoa que cede para outra que solicita esta concessão,
dentro das instituições modernas que vieram para o Brasil no início do século XX. A
decisão depende da apreciação de quem concede sobre a vulnerabilidade de quem

85
solicita, levando em conta os imprevistos e não corresponde a nenhum benefício para
quem concede, é gratuito.
Trabalhamos com a hipótese de que jeitinho aponta para o valor cultural dado
pelo povo brasileiro para a comunicação que nasce da vulnerabilidade do corpo
(BORGES, 2006), embora caiba a ressalva de que nas relações de classe permaneça o
mau jeito dos que se identificam com as disposições invulneráveias da Casa Grande.
Entendemos que o pensamento e a deliberação que prima pela observação da
vulnerabilidade possibilita dobras no espaço absoluto que correponde à dominação
colonial da subjetividade e das práticas. Isso acontece especialmente no denominado
jeitinho brasileiro, que articula o espaço absoluto no tempo: ao conceder o jeitinho, o
espaço impessoal e universal das instituições modernas é dobrado na relação
perspectiva entre quem pede e de quem concede um jeitinho. É um feito extraordinário,
não ordinário. A concepção de homem anglo-saxônica de indivíduo, de quem herdamos
das instituições modernas, implica em uma disposição que cria uma espacialidade rígida
dentro da qual o critério de justiça é pautado sobre a impessoalidade e a imparcialidade:
lugar nenhum. Na prática do jeitinho, valoriza-se um espaço articulado na parcialidade,
cuja ética se pauta sobre a percepção da singularidade da situação diante da
vulnerabilidade do corpo (BORGES, 2006). Não se concede o jeitinho para quem não
convence sobre a sua própria vulnerabilidade diante das imprevisibilidades da vida, cujo
processo de comunicação deve ser capaz de mostrar humildade e despertar simpatia e
compaixão diante de uma verdadeira necessidade (BARBOSA, 1992). O jeitinho, por
isso, ocorre no fluxo do modo como os corpos afetam uns aos outros e corresponde a
um filosofar, porque implica em juizo ético, não verbal e em tempo real, dentro do
campo de produção de sentido imanente ao jogo das forças do contexto, sob critérios
que não podem ser colocados em princípios universais, dependentes dos problemas
colocados na situação. Portanto, pode-se dizer que o que rege o jeitinho é uma produção
de conhecimento do tipo phronesis, que considera o trânsito entre diretivas e
deliberação, entre o poder soberano e o poder individual, para a elaboração de
julgamentos e a tomada de decisões sobre conceder ou não conceder um jeitinho. O
jeitinho implica, sobretudo, em uma ética phronetica. Uma ginga filosófica, cujos
fundamentos não são expostos na fala, mas cujo juizo que dermina a decisão é
ponderado na experiência não verbal.
Importa reparar que para ensinarmos e aprendermos um filosofar situado é
preciso, antes de tudo, o reconhecimento da vulnerabilidade dos corpos nas relações

86
humanas e especialmente nas relações de dominação. A palavra vulnerável, em
português, deriva da palavra latina ―vulnerabile‖, que significa "que pode ser ferido".
Assim, a consciência de que é possível ser ferido nas relações de dominação alerta para
a necessidade de resistência num caminho singularizante que nem sempre é reto, às
vezes repeleto de curvas e viezes e cruzamentos, mediante um pensamento em
movimento que é capaz dar um jeito.

Bibliografia de apoio:

ANDRADE, Oswald. A Utopia Antropofágica. São Paulo: Editora Globo/Secretaria do


Estado da Cultura, 1995.

ARANTES, P. et al. Filosofia e seu ensino. São Paulo: EDUC; Petrópolis: Vozes, 1995.

ATLAN, Henry. Entre o Cristal e a Fumaça. Rio de Janeiro: Editora Jorge Zahar, 1992.

BARBOSA, Lívia. O Jeitinho brasileiro, a arte de ser mais igual que os outros. Rio de
Janeiro: Campus, 1992.

BORGES, Fernanda. A Filosofia do Jeito, sobre um modo brasileiro de pensar com o


corpo. São Paulo: Editora Summus, 2006.

BOURDIEU, Pierre. Esboço de auto-análise. São Paulo: Companhia das letras, 2005.

________________. A Reprodução. elementos para uma teoria do sistema de ensino,


Lisboa: 2004.

BRAGA, B.F; VELASCO, P.D.N. Pressupostos teóricos do PIBID-Filosofia da


UFABC: o ensino de filosofia como um problema filosófico. Anais do Simpósio do
PIBID/UFABC, v. 01, 2012

FLYVBJERG, Bent. Aristotle, Foucault and Progressive Phronesis: Outline of an


Applied Ethics of Sustainable Development. Critical Essays in Planning Theory, v. 2, p.
65-83, 2008.

GAIARSA, J. A. A Estátua e a Bailarina. São Paulo: Editora Ícone, 1988.

LAKOFF, George. E JOHNSON, Mark. Philosophy in the Flesh. The embodied mind
and its challenge to western thought. New York: Basic Books, 1999.

MORIN, Edgar. O Método: a natureza da natureza. Portugal: Publicações Europa-


América, 1977.

NOGUERA, Renato. O ensino de Filosofia e a Lei 10.639 . Rio de Janeiro: CEAP,


2011a.

87
_________________. Denegrindo a filosofia: o pensamento como coreografia de
conceitos afroperspectivistas. Griot – Revista de Filosofia, Amargosa, Bahia – Brasil,
v.4, n.2, dezembro/2011b.

NUNES, Benedito. Prefácio. In. ANDRADE, Oswald. A Utopia Antropofágica. São


Paulo: Editora Globo/Secretaria do Estado da Cultura, 1995.

PIERUCCI, Antônio F. O Desencantamento do Mundo. 34, São Paulo: Editora 2003.

RYLE, G. “O conceito de espírito”. Lisboa, Portugal: Moraes, 1970.

SANTOS, Mário Ferreira dos. Pitágoras e o tema do número. São Paulo: IBRASA,
2000.

SILVA, Anderson P. Mário e Oswald – uma história privada do Modernismo. Rio de


janeiro: 7 Letras, 2009.

88
Deus e o Diabo na Terra do Improviso

Luca Szaniecki43

RESUMO: Esse texto propõe uma reflexão sobre o ato de improvisar. Primeiro, a partir da
análise do filme Deus e o Diabo na Terra do Sol (1964), pensado junto com uma leitura do livro
O Homem Revoltado (1951) de Albert Camus, focando nas questões da revolta e do improviso
de vida do personagem principal do filme. No segundo momento, é desenvolvida a questão do
improviso na cena musical desde os tempos da escravidão até os movimentos socioculturais
mais recentes que levam a defini-lo como resistência aos processos de dominação.

Palavras chaves: Revolta; Resistência; Improviso; Cinema novo.

Introdução

Deus e o Diabo na Terra do Sol foi dirigido em 1964 por Glauber Rocha, um dos
fundadores do Cinema Novo, um grande pensador da questão da potência dos pobres, defensor
da Estética da Fome e também de outra, uma estética anti-dialética e do improviso, como
tentarei demonstrar aqui. Este filme possui uma mensagem extremamente pertinente, não
apenas para sua época (precursora dos movimentos de 1968) mas também para hoje, em tempos
de extremismos e divisões (materiais e intelectuais). Tempos supostamente dialéticos de
antagonismos, para ser mais preciso.
Com efeito, o filme apresenta uma estética de dualidades e lido à luz d‘O Homem
Revoltado, de Albert Camus, o homem faminto de Glauber Rocha é um homem complexo e que
depende dos improvisos que cria para escapar aos poderes contra os quais se confronta. Esses
improvisos estão presentes nas cenas e na música desse filme realizado por um cineasta que
definia sua prática como ―uma câmera na mão e uma ideia na cabeça‖.

Sobre as dualidades e complexidades da Estética da Fome

43
Luca Szaniecki Cocco é autor independente.

89
Em uma primeira análise do filme, mais ampla, percebemos que ele é inteiramente
baseado e trabalhado ao redor de dualidades e oposições, tal como a sociedade brasileira.
Primeiramente, o título faz diretamente referência à certa dualidade religiosa: Deus e o Diabo se
encontram no sertão. O segundo fator mais explicito é o próprio fato do filme ser realizado em
preto e branco (por razões econômicas também, imagino). Além desses dois fatores mais
explícitos e fáceis de captar, há uma longa série de imagens que jogam com essa ideia: Manoel
segura a faca com uma mão e o Cristo com outra em uma determinada cena, Corisco divide sua
face em duas com seu punhal (conferir a icônica imagem do cartaz), Antônio das Mortes e João,
o cego, são separados por uma viga de madeira, entre muitas outras imagens.
Analisando mais profundamente, podemos ver que os personagens também são
claramente divididos em suas personalidades e no que eles representam e acreditam. Agora
veremos alguns exemplos.
Manoel, o protagonista, evolui de trabalhador para assassino, depois de beato fanático
para cangaceiro e no final ele é um homem que busca um recomeço e que foge dos tiros de
Antônio das Mortes, a ponto de largar sua esposa caída pelo caminho. É importante marcar que
Manoel e Rosa são típicos personagens da Estética da Fome que Glauber defende no Cinema
Novo. Manoel e Rosa, como outros personagens do Cinema Novo, sentem a fome, matam para
comer, fogem para comer. Assim como Glauber explica em seu manifesto: “a originalidade (do
Cinema Novo) é nossa fome e nossa maior miséria é que esta fome, sendo sentida, não é
compreendida” (ROCHA, 1965). Não é à toa que a primeira imagem do filme é a carcaça de
uma vaca pois esta carcaça representa a fome e a seca do Nordeste. Poucos minutos depois,
Glauber filma uma cena relativamente longa onde Manoel e Rosa estão moendo mandioca para
comer. Nesta cena, o som, como elemento cinematográfico, se torna importante pois, como
Glauber não pode fazer o espectador sentir a fome que as personagens sentem, o som da
máquina que mói a mandioca é utilizado para deixá-lo um pouco desconfortável e assim fazer
com que a fome seja, de alguma maneira, ―sentida‖.
Passemos agora para São Sebastião. Trata-se de um fanático religioso, à imagem de
Antônio Conselheiro, que busca os céus (ou a Ilha) realizando milagres e redimindo pecadores
com o ―sangue dos inocentes‖ (literalmente). Ele representa as pessoas geradas pela miséria e
religiosidade do Nordeste, que se criam a partir de uma oposição à Igreja oficial (representada
pelo padre do filme) e que acabam virando sua própria encarnação. Assim como Antônio das
Mortes explica: “Padre pode achar que Sebastião tem parte com o Diabo, mas eu acho que ele
tem parte com Deus também”. Sebastião, quando mata o bebê, segue a mesma lógica do Padre
que lê a sentença deste primeiro: “Somente depois que você cometer um crime maior poderá ser
perdoado pelos crimes que cometeu”. Embora Sebastião seja parecido e às vezes comparado
com Antônio Conselheiro, estes dois homens são bastante diferentes. Conselheiro era o
verdadeiro líder de Canudos e o reconhecimento da comunidade era tal que foram necessárias

90
quatro expedições republicanas para destruí-la. É interessante notar, por exemplo, a evolução da
percepção de Euclydes da Cunha em seu livro Os Sertões. De fato, mesmo permanecendo com
uma visão bastante preconceituosa do nordestino, ele desenvolve um tipo de admiração pelos
guerreiros de Canudos, deixando de considerá-los apenas como bárbaros e ladrões. O
assassinato de Sebastião por Rosa mostra que ele não era um líder tão aceito e amado quanto
Conselheiro.
Antônio das Mortes, o ―matador de cangaceiro‖, é um mercenário, um homem da ―lei
da selva‖ que mata cangaceiros em nome de sua justiça. Embora aja por conta própria, ele é
muitas vezes mero instrumento do governo ou de alguma outra autoridade local. Neste caso, ele
aceita a tarefa de matar Sebastião e seus seguidores pelo dinheiro oferecido pelo Coronel e pelo
Padre e pelo medo de que ele se torne um novo Conselheiro. Seus assassinatos são cometidos
sem remorso, o que não o distancia tanto dos cangaceiros que ele mesmo mata.
Enfim, Corisco é um personagem extremamente importante e também é dividido por
várias forças. Este é um dos poucos homens que sobraram da turma de Lampião e Maria Bonita,
e tanto ele como Dadá (sua companheira) são inspirados em pessoas reais. Corisco, era
conhecido como Diabo Louro e sequestrou Dadá quando tinha apenas treze anos de idade. O
Diabo Louro e seus cangaceiros representam o outro lado da miséria, que não é o religioso, e
sim o da luta, da resistência e da violência. Sua missão é defender o povo de onde eles vieram,
mas, muitas vezes, acabam movidos por vinganças pessoais e não têm medo de matar, estuprar e
torturar seus supostos inimigos. Eles acreditam que encarnam São Jorge, o santo do povo,
lutando contra o Dragão da Miséria.
No manifesto Eztétyka da Fome, no ano seguinte ao filme, Glauber procurou explicar
algumas das suas opções estéticas. Nele, ele explica, por exemplo, que a “mais nobre
manifestação cultural da fome é a violência” (ROCHA, 1965). O que se expressa por Corisco,
mas também por Antônio das Mortes, Sebastião, e até mesmo Manoel. Porém, ele ressalta que
essa violência não é primitivista e questiona: “Fabiano é primitivo? Corisco é primitivo?”
(ROCHA, 1965). Ele responde então que a violência da fome não é primitiva, mas, sim,
“revolucionária”, pois é como o colonizador compreende a existência do colonizado: “foi
preciso um primeiro policial morto para que o francês percebesse um argelino” (ROCHA,
1965). Essa citação foi escrita no contexto da Guerra de Independência da Argélia, mas pode
muito bem se aplicar ao Brasil de hoje. Coincidentemente, Argélia é o pais onde Camus nasceu,
autor de quem falaremos mais tarde.
O filme de Glauber é, portanto, uma longa sequência dessas imagens cheias de
contrastes e complexidades, sendo assim muito mais do que um simples filme de dualidades.
Essa dualidade gera uma ambiguidade. Todavia, ambiguidade não é algo raro no cinema se
considerarmos a obra de outros cineastas. Podemos usar como exemplo a ambiguidade ácida (e
temperada de humor negro) de Kubrick (Full Metal Jacket, Lolita, Dr. Strangelove, etc.) ou até

91
a estranha familiaridade de David Lynch (Twin Peaks, Mulholand Drive, Rabbits, entre outros)
embora seja possível ver algumas semelhanças entre o humor ácido de Kubrick e de Glauber.
Isto pode ser visto, por exemplo, tanto nas cenas finais de Deus e o Diabo na Terra do Sol
quanto nas de Full Metal Jacket.

Uma teoria-prática anti-diáletica: o homem faminto de Glauber


Rocha, o homem revoltado de Albert Camus

A complexa dualidade de Deus e o Diabo na Terra do Sol também é interessante pelo


fato de supor um terceiro aspecto que é explicitamente anti-dialético. Antes de mais nada, é
preciso entender que esse ―terceiro aspecto‖ não é nada parecido com uma ―terceira via‖, nada
disso. Com efeito, esse terceiro aspecto, sem nome, é o simples fato que essa dualidade, na
verdade, pressupõe uma multiplicidade dentro do próprio indivíduo. Se tomarmos por exemplo
todas essas imagens ambíguas e divididas citadas anteriormente, o que há em comum em todas
elas? O que existe entre o Bem e o Mal, entre Deus e o Diabo? Há o Homem. O homem é o
encontro desses lados. Mas não se trata de um ser dividido em dois, mas sim do encontro de
uma multidão de faces. Alguns podem argumentar que no filme não há o coletivo, como ele
ocorre em Pasolini, por exemplo. Sim, de fato não há, mas não porque Glauber ache o coletivo
desinteressante e sim porque, no filme, ele não precisa dele. Ele não precisa de uma
representação clássica de um coletivo de homens porque cada indivíduo apresentado,
protagonista ou figurante, é um coletivo. Um coletivo de experiências, experiências de
violência, de miséria, mas também de felicidade e amor.
Por essa razão, vários rostos são mostrados em uma das primeiras cenas com Sebastião.
Os rostos parecem-se muito com uma descrição de uma mulher por Euclides da Cunha, quando
os primeiros vencidos evacuavam Canudos: “A miséria escavara-lhe a face [...] Uma beleza
olímpica ressurgia na moldura firme [...] perturbados embora os traços impecáveis pela
angulosidade dos ossos apontando duramente no rosto emagrecido e pálido, aclarado de olhos
grandes e negros, cheios de tristeza soberana e profunda” (DA CUNHA, 1997).
E assim chegamos ao segundo ponto interessante dessa dualidade ―glauberiana‖ que é
uma teoria-prática anti-diáletica. Pois, o filme mostra que tese, antítese e síntese não são
entidades separadas na história, e sim que as três se encontram, ao mesmo tempo, no homem.
Nesse sentido preciso, o homem não é um ser histórico como afirmou Hegel e depois Marx e
Nietzsche. E é esse ponto, anti-dialético e anti-histórico, que nos permite aproximar a revolta
presente no filme Deus e o Diabo na Terra do Sol de Glauber Rocha de 1964 da concepção de
revolta de Albert Camus em O Homem Revoltado, livro publicado em 1951 e, infelizmente,
muitas vezes esquecido e até criticado pelos extremistas do espectro político.

92
Essa concepção de revolta é explicitamente anti-dialética e uma das maiores críticas do
hegelianismo e seus afluentes (Marx, principalmente), assim como do niilismo. Colocando em
poucas palavras, o livro explica como a dialética de Hegel, na verdade, cria uma utopia que
substitui Deus pelo futuro (CAMUS, 2013). De fato, a lógica dialética da tese e da antítese cria
uma narrativa profética à espera de um futuro. Desse modo, a dialética impede a ação e cria um
fatalismo perigoso. Como Camus explica, o futuro é a única coisa que o mestre está disposto a
dar para seu escravo pois a promessa, a profecia de um futuro melhor é o próprio fatalismo da
condição do escravo que deve esperar para que a história se realize. Além disso, ao longo dos
anos, a profecia pode abrir caminho para que autoritarismos (que sequer deveriam existir como
hipóteses) se tornem concretos e efetivos.
Essa analise não é, portanto, pura teoria. Quando Camus ataca Marx e Nietzsche, é
preciso ter bastante cuidado. Tanto Marx quanto Nietzsche criticaram Hegel de certa maneira:
Marx quanto ao problema do idealismo e Nietzsche na questão moral. Porém, como Camus
explica, seus pensamentos, infelizmente, prosseguiram com uma lógica similar à de Hegel e
acabaram por inspirar autoritarismos no século XX. Marx inspirou Lênin e a Revolução Russa
que, por sua vez, se exauriu no stalinismo. Nietzsche inspirou o niilismo anarquista e um
conceito racial que, de certa forma, inspirou o nazismo. O caso de Nietzsche é um pouco mais
complicado pois seu conceito de ―super-homem‖ se referia a uma capacidade filosófica que
acabou sendo interpretada por Hitler como um conceito racial. Ao final do Homem Revoltado,
quando Camus expõe o que ele define como ―Pensamento do Meio-Dia‖ (Pensée du Midi), ele
deixa claro que é um pensamento além do “fantasma [...], do profeta [...], da múmia deificada
em seu caixão de vidro” (CAMUS, 1951), isto é, além de Nietzsche, Marx e Lênin
respectivamente.
No caso de Nietzsche, talvez seja preciso fazer algumas nuances. Primeiro, quando
Camus afirma que Nietzsche inspirou o conceito de super-homem racista (o homem ariano de
Hitler), é preciso contextualizar. De fato, O Homem Revoltado foi publicado em 1951 e Camus
morre em 1960: ele não conheceu então o ―renascimento‖ de Nietzsche durante os anos 60 por
novos filósofos como Deleuze e Foucault. Até là, Nietzsche era um autor proibido, do
―inimigo‖. Foi mostrado então durante os anos 60 que Nietzsche não era racista por si e o que o
nazismo construiu foi uma interpretação equivocada e que não corresponde a mensagem de
―super-homem‖ do filósofo. Por outro lado, o resto da crítica de Camus não é tão superficial e
ele vê um problema histórico, complexo, da filosofia de Nietzsche. Aliás ele dedica uma parte
inteira do capítulo ―Revolta Metafísica‖ a análise da filosofia de Nietzsche pois é mais
complexo. Camus também atribui a Nietzsche uma filosofia da revolta, ou mais sobre a revolta,
que começa com a famosa afirmação ―Deus está morto‖. Porém, para resumir, Camus explica
que a lógica de Nietzsche, assim como a dialética, passa pela visão de um futuro, o fim da
história hegeliano ou o fatalismo de Nietzsche. Como Hegel e Marx, ele sempre pensou em

93
função de um tipo de ―apocalipse futuro‖, mas, ao contrário destes primeiros, ele nunca o
exaltou. Embora não seja sua pretensão, para Camus, o novo ―homem-deus‖ de Nietzsche é
constituído de um indivíduo que se “inclina diante da eternidade da espécie e do grande ciclo
do tempo” (CAMUS, 1951). Para fechar essa parêntese, a crítica de Camus à filosofia
nietzschiana não é então completamente sem fundamento nem fruto de uma imagem negativa de
Nietzsche, embora podemos fazer algumas nuances. De qualquer modo, Camus estava ciente de
que Nietzsche foi utilizado como justificação de pensamentos para os quais ele era contrário (ele
era crítico do que chamava de ―deformidade antissemita‖, por exemplo) mas talvez alguns
elementos já estavam postos em sua filosofia sem ele perceber, do mesmo modo que Camus
crítica Marx. Para acabar com esse parêntese, uma longa citação de Camus lamentando o
destino de Nietzsche:

―Na história da inteligência, exceção feita por Marx, a aventura de


Nietzsche não tem equivalente; jamais terminaremos de consertar a
injustiça lhe feita [...] até Nietzsche e o nacional-socialismo, não existiam
exemplos de pensamentos inteiros esclarecidos pela nobreza e pelos rasgos
(déchirements) de uma alma excepcional que fossem ilustrados aos olhos
do mundo por um desfile de mentiras e pelo medonho monte de cadáveres
concentracionistas‖ (CAMUS, 1951).
Também é preciso marcar a importância dessa mensagem de Camus no mundo
do pós-segunda Guerra Mundial que procurou expressar em todas as formas das artes o
auge do horror e do absurdo (outro elemento chave para entender a filosofia de Camus)
do mundo ocidental (e oriental, como nas animações japonesas) e do começo da Guerra
Fria. Camus desenvolve sua própria definição de revolta que é contrária ao infinito
―devir histórico‖ da revolução marxista e do anarquismo russo. Sua ideia de revolta se
define pela “rejeição de ser tratado como coisa e ser reduzido à simples história”
(CAMUS, 1951). A revolta, ao contrário da revolução que demanda uma “redução ao
estado de força histórica”, é uma verdadeira afirmação do “ser dividido que nós
somos” (CAMUS, 1951). A História e o Homem não são simples nem dialéticos. Deus
e o Diabo na Terra do Sol é a pura encarnação desse conceito pelo fato que, ao afirmar
as várias facetas do Homem e dos seus rostos, ele nega o simplismo dialético e seus
antagonismos pois a realidade brasileira não pode ser dividida entre o Bem e o Mal.
O Homem Revoltado é um homem que diz não (CAMUS, 1951). Mas essa
negação não é completa pois o homem revoltado de Camus não é desmedido, não é o

94
homem niilista da revolução, onde tudo é permitido2. De fato, o homem revoltado
afirma e nega ao mesmo tempo. Na relação dialética entre Mestre e Escravo, o Escravo
deve se revoltar como antítese para ocupar e conquistar o lugar do Mestre. Para Camus,
a dialética demanda totalidade e não unidade, como a revolta, o que a leva à conquista
―planetária‖ e surgimento de impérios3. A crítica à dialética por parte de Camus lembra
quando Deleuze diz que não existe governo de esquerda, pois, quando a esquerda toma
o poder, ela cessa de ser esquerda. Na relação Mestre e Escravo de Camus, o escravo
diz ―não‖ para seu Mestre quando ele percebe que algo foi ultrapassado. Porém, nessa
negação surge uma afirmação, a afirmação de um valor, comum a ambos, que o escravo
considera ―valer a pena‖. E é a partir desse valor, comum, que se cria um ―limite‖ no
qual os homens são unidos por esse valor. E é nesse limite, e não na conquista, nessa
nova tensão contínua que surgem novas ideias e horizontes. Camus ataca diretamente os
movimentos de revolta onde tudo é permitido que são encarnações do que ele chama de
Desmedida. Como ele explica: “Em 1950, a desmedida é um conforto, sempre, e uma
careira, às vezes. A mesura, ao contrário, é pura tensão” (CAMUS, 1951). Pois, como
explicado anteriormente, a dialética serve de conforto e dispositivo para a manutenção
do escravo, mas a tensão é uma verdadeira luta. O valor pelo qual o escravo se revolta
não diz respeito apenas a ele, mas a todos, inclusive ao Mestre. Mais uma vez a lógica
revoltada de Camus é contrária à criação de antagonismos: “Eu me revolto então nós
somos” (CAMUS, 1951).
A revolução de Hegel e de Marx é onde tudo é permitido e onde tudo é
necessário (CAMUS, 1951). A revolta de Camus é onde ―tudo é possível‖, mas com a
existência de um limite, de uma fronteira, onde se encontra a tensão criadora. “A revolta
toma partido de um limite onde se estabelece a comunidade dos homens” (CAMUS,
1951), talvez essa comunidade seja a mesma que a de Glauber: “negar a violência em

2
Para Camus, o niilismo histórico da dialética é uma justificativa de um tipo de violência sem limites: é a
negação suprema. Para cumprir o seu dever histórico, universal, autoritário, tudo deve ser permitido,
inclusive o assassinato e terrorismo. A revolta de Camus, ao contrário desse niilismo violento, é a luta
pela vida. A revolução niilista necessita o sacrifício para ser cumprida. Mas ―o revoltado demonstra no
sacrifício que sua verdadeira liberdade não diz respeito ao assassinato, e sim quanto à sua própria morte‖
(CAMUS, 1951). Ou seja, o sacrifico não é algo determinado pelo dever histórico, e sim pelo próprio
individuo.
3
Assim como na relação dialética, o escravo precisa tomar posse, a antítese precisa conquistar a tese. A
logica dialética é então colonizadora, porque demanda uma totalidade que, segundo Camus, precisa ser
planetária para sobreviver. Ao escrever em 1951, Camus já prevê o que se tornaria a Guerra Fria e o
Imperialismo soviético. Camus define essa busca como Potência, que deve se acumular até a criação do
―Império Ideológico‖: ―a vontade de potência, a luta niilista pela dominação e pelo poder, fizeram mais
do que se livrar da utopia marxista‖ (CAMUS, 1951).

95
nome de uma comunidade fundada pelo sentido do amor ilimitado entre os homens”
(ROCHA, 1971).
Voltando ao filme, Manoel, quando mata seu patrão, é um Homem Revoltado.
Ele se revolta quando percebe a injustiça com a qual está sendo tratado. Manoel
considera que seu patrão fora longe demais. Ao matá-lo, Manoel não quer se tornar ele
mesmo um Mestre, e então foge para obter perdão. Pois a lógica da revolta camusiana sempre
segue a preservação da vida. A revolta metafísica, segundo Camus, é a revolta do Homem
contra sua condição de mortal: a revolta é, por princípio, contra a morte. Ao contrário dela, a
lógica dialética é suicída4. E agora vemos então como a história de Manoel oferece uma
alternativa interessante e parecida com a lógica revoltada de Camus. Pois, Sebastião e Corisco
representam duas alternativas para a miséria: uma pelo fanatismo religioso e a outra pela luta
armada desmesurada. Manoel representa uma alternativa que se aproxima do improviso, em
oposição à lógica dialética e do materialismo histórico de Marx (que Camus chama de
―determinismo histórico‖).

Os improvisos dos homens revoltados: de Manoel e muitos outros

É fato que o improviso parece seguir Manoel ao longo do filme: ele mata seu
patrão, procura Sebastião para buscar perdão, se torna um cangaceiro com Corisco, e
foge mais outra vez, pronto para recomeçar. Agora veremos como a questão do
improviso é importante para o oprimido, principalmente nos antigos territórios
colonizados, mas também hoje em dia, pois como Glauber explica: “A América Latina,
inegavelmente, permanece colônia, e o que diferencia o colonialismo de ontem do atual
é apenas a forma aprimorada do colonizador” (ROCHA, 1965).
Para melhor explicar o conceito de improviso farei um parêntese sobre música,
pois, é no improviso musical que conseguimos apreender a importância do improviso na
História.
Tanto nas tribos indígenas originárias das Américas quanto nas populações que
vieram da África em tempos de escravidão, o som, a música tinha enorme importância
pois era sinal de vitalidade. Como David Hendy explica em seu livro Noise: A Human
History of Sound & Listening, para muitos nativos americanos o som, em si, era vivo
(HENDY, 2014). Por essa razão, para algumas tribos como os Iroquois, quando sob

4
Se o processo não conduzir à conquista e à negação total, ele esta destinado à morte por si mesma. E
junto com o desmoronamento do Império, muitos morrerão, assim como Stalin levou grande parte de sua
população ao tumulo ―essa simplificação deve ter costado caro aos koulaks que continuavam mais de
cinco milhões de exceções históricas‖.

96
tortura, era importante cantar sua própria ―canção da morte‖ (death song) enquanto
pudesse resistir. Junto com os africanos aqui escravizados, criaram uma verdadeira
resistência à colonização a partir da música e do improviso.
Com efeito, o improviso em si foi e ainda é algo extremamente importante para
todo tipo de cultura afro-americana, seja na música (jazz, blues e samba entre outros
ritmos) seja em comemorações tais como o Carnaval (a festa da carne). Para David
Toop, músico experimental, “humanos precisam aprender a improvisar para lidar com
eventos aleatórios, fracasso, caos” (TOOP, 2016). Em oposição a essa ideia de
improviso existe a dialética, a profecia, a burocracia, o colonialismo, ou como explica
Toop: “como uma antítese a essa necessidade de improvisação, encontramos uma
traiçoeira cultura da gestão estratégica, pensamento, planejamento e objetivos
estruturados militaristas expandindo em todas instituições sociais” (TOOP, 2016).
Quando Pasolini escreve em uma de suas visitas aos Estados-Unidos que “temos
de jogar nosso corpo na luta” (PASOLINI, 2012), ele não se referia apenas ao
movimento negro crescente dos anos 60, as vésperas do ―Black Civil Rights‖, mas
também à resistência cultural afro-americana. Mesmo nos tempos da escravidão, sempre
houve resistência. O que começou com ―gritos do campo‖ (field hollers), canções do
trabalho (work songs) e reuniões ocasionais, se tornou uma verdadeira cultura poderosa
e de revolta por princípio. Pois a própria existência de algum tipo de resistência era um
ato de revolta, a vida, pelo som, que não é mais do que o exercício da alma pelo corpo,
se tornou um ato criador.
O improviso sempre ocupou uma parte importante nessa cultura pois ele era o
maior nível de expressão que alguém poderia chegar. Quando Pasolini escreve que o
corpo é jogado na luta, ele esquece o papel da espiritualidade do povo negro na sua luta
(parafraseando W.E.B Dubois). No improviso, no jazz, no blues, no soul, na dança, no
ritual gospel, sempre foi a alma passando pelo corpo, pelo instrumento e pela voz. Uma
alma azul, triste, ―blue‖, mas também repleta de potência criadora. É então que
podemos entender a outra citação de Pasolini: ―Uma vida como protesto vivido, como
luto, suicídio, greve ou martírio‖. A canção de Nina Simone “Ain‟t got No/I Got Life”
ilustra totalmente a condição do negro americano: ele não possui bens nem família
(“Ain‟t got no home[...] Ain‟t got no mother”), mas ele possui seu corpo e sua vida: “I
got my arms, got my hands, got my fingers, got my legs [...] I‟ve got life”. Além disso,
ele não possui apenas uma vida, mas várias (“I‟ve got lives”), assim como os rostos
coletivos de Deus e o Diabo na Terra do Sol.

97
O melhor exemplo dessa noção de improviso como resistência é talvez o próprio
John Coltrane. A musica ―Alabama‖, escrita logo após o assassinato de jovens negros
naquele estado americano, é música de resistência, improviso e espiritualidade. Aliás,
foi justamente quando Coltrane começou a improvisar, com seu distinto estilo
―spiritual‖ (ele começou a tocar o saxofone na igreja) e o nascente ―free jazz‖ (com
artistas como Ornette Coleman e Pharoah Sanders), que sua popularidade começou a
cair. Seu improviso, sua alma tocada com a ajuda de seu corpo e instrumento,
provocava e assustava, assim como o final de Deus e o Diabo na Terra do Sol também
pode perturbar certos espectadores. Essa cena final é justamente a encarnação do
conceito de improviso aplicado a outros setores além da música e da cultura. Não é um
final típico, pois não explora soluções diretas, mas sim alternativas que possam parecer
estranhas já que não estamos acostumados a elas. E é por isso o melhor final que uma
obra como Deus e o Diabo na Terra do Sol pode ter. Já que não sabemos direito onde
estão nossos amigos ou inimigos, já que não há verdadeiros antagonismos dialéticos
dentro do homem, que tipo de final há de ter? Um improviso na vida.
Arte e Revolta, segundo Camus, não são separados como Arte e Revolução. A
Arte, assim como a revolta, é um movimento que exalta e nega ao mesmo tempo
(CAMUS, 1951). Ainda mais, a arte também é criadora e possui características próprias
que realizam a reconciliação do singular e do universal que Hegel sonhava (CAMUS,
1951). A arte então, por principio é anti-dialética. Ela é pura tensão entre negação e
consentimento, singularidade e universal, indivíduo e história (CAMUS, 1951). Embora
Camus se concentre principalmente no romance, ele poderia muito bem ter escolhido
como exemplo a música afro-americana e seus improvisos. De fato, o improviso
também é a obra de uma pura tensão pois o bom solista toca em sua individualidade,
com sua alma e corpo, mas também precisa escutar o que os outros estão tocando. No
contexto da escravidão, da segregação ou do racismo disfarçado, essa forma de arte é
criadora e potente. E como diria Camus: “Toda criação nega o mundo do mestre e do
escravo” (CAMUS, 1951). A resistência cultural do escravo era a revolta em si, pois era
a negação de sua condição e a afirmação de algo em comum, não apenas com seus
companheiros, mas também com o homem branco. A exigência da revolta implica
também uma ―exigência estética‖. Ou seja, o improviso é uma política de corpos sociais
e individuais – corpos de homens e mulheres escravizados outrora ou postos a trabalhar
em condições de subordinação mais recentemente – que tenciona formas de controle.

98
Esse improviso não é, porém, apenas simbólico. Ele teve um papel fundamental
na luta e na resistência dos povos colonizados em geral, inclusive nas relações
neocoloniais que persistem até hoje em dia. O improviso em si, já é uma manifestação
de vida que nega o determinismo histórico ou material. O improviso, para o oprimido, é
uma saída para sua própria condição, pois ele é a afirmação de outra forma de existência
que não é pré-determinada. No capítulo ―Escravidão e Rebelião‖, por exemplo, Hendy
explica a importância do som, do improviso musical na época colonial: “Os escravos
africanos que trabalhavam nas terras de arroz do rio Stono em 1730 tinham poucas
liberdades. Mas uma que eles tinham era a liberdade de adaptar os sons que seus
donos oprimiam em novas formas que tinham vida por elas mesmas” (HENDY,2014).
Foi dessa liberdade que surgiu o improviso, o jazz, o blues, o gospel, entre outros. Pois,
“entre os escravos afro-americanos [...], a luta para fazer barulho e para serem
ouvidos era crucial para seu próprio sentido de ser” (HENDY, 2014).

Improviso na música, improviso no cinema: a trilha sonora do filme


solar

Falaremos agora um pouco sobre a música no filme de Glauber Rocha. Grande


parte da trilha sonora de Deus e o Diabo na Terra do Sol foi escrita pelo próprio
Glauber e tocada por Sergio Ricardo, com algumas exceções como algumas
composições de Villa-Lobos. A música é um elemento chave para o desenrolar da
história pois ela segue o espectador como um narrador. Ela também possui letras muito
importantes para entender a obra, como nas cenas finais quando Sérgio Ricardo canta
“que a terra é do Homem, não é de Deus nem do Diabo”. Além da letra em si, a música
é essencial para a imersão do espectador no ambiente: a linda melodia da música reflete
muito bem o Nordeste, mas também um pouco o blues norte-americano. Ao trabalhar na
música, Glauber diz que se inspirou de um cantor nordestino chamado Zé o Cego e seu
primo Pedro das Ovelhas, além de outras cantigas que ele havia escutado no Nordeste.
No mesmo texto onde explica o processo de criação da música, Glauber também fala da
relação entre cinema e música brasileiros: “Acho que o cinema brasileiro tem, nas
origens de sua linguagem, um grande compromisso com a música –o nosso triste povo
canta alegre, uma terrível alegria de tristeza” (ROCHA, 1964). E continua: “o samba
de morro e a bossa-nova, o romanceiro do Nordeste e o samba de roda da Bahia,
cantiga de pescador e Villa-Lobos– tudo vive desta tristeza larga, deste balanço e

99
avanço que vem do coração antes da razão” (ROCHA, 1964). Tudo vem dessa tristeza,
dessa alma ―blue‖, que surge como uma forma de ―tensão‖ camusiana, o balanço e o
avanço. A voz do cantor é de suma importância para Glauber que a define assim como
Camus define sua revolta: “Na voz do cantador está o “não” e o “sim” (ROCHA,
1964).
Podemos muito bem falar do improviso no cinema igualmente. Assim como na
música, na dança, e outras formas de arte, o cinema possui uma vasta gama de
movimentos e diretores que podem mais ou menos se conformar com a ideia do
improviso. Hitchcock, por exemplo, era conhecido como um ―roteirista de ferro‖ que
repetia: ―o filme já está pronto, só falta rodar”. Outros abraçam totalmente o improviso
para criar um cinema mais experimental, como Rosselini, pioneiro do Neorrealismo
italiano, que chegava ao set sem o roteiro completo. Há também os intermediários como
Tarantino, Scorsese ou Kubrick, que possuem roteiros fortes e importantes, mas que
veem o potencial do improviso em seus filmes. Aliás, algumas das cenas mais icônicas
desses diretores foram criadas a partir de improvisos. Leonardo DiCaprio quebrou um
copo e cortou sua mão enquanto mostrava um crânio de um antigo escravo em sua
incrível atuação como Calvin Candie em Django Livre de Tarantino. A cena onde
Travis se olha no espelho e ostenta sua pistola em Taxi Driver deveria ser muda, porém
Robert De Niro incluiu algumas falas que tornaram a cena antológica: “Are you talkin‟
to me?” Outro grande exemplo é a frase dita por Jack Nicholson, tirada de um programa
de TV, ao quebrar a porta do banheiro do Iluminado: “Here‟s Johnny!”
Enfim, o Cinema Novo também possui uma estética cinematográfica bastante
interessante e experimental. O movimento reunia cineastas que ao sair dos estúdios para
ir à ruas, procuraram ir ao encontro do povo brasileiro, seja ele pescador ou operário,
camponês ou morador de favela. A ideia de sair do estúdio para ir filmar com sua
própria câmera é que é interessante. Aliás, é uma prática que hoje já se popularizou
bastante, por exemplo com o recente filme de Agnès Varda e JR, Visages, Villages.
Ainda mais, o maior exemplo de improviso no Cinema Novo é a própria cena final de
Deus e o Diabo na Terra do Sol que estamos usando para explicar esse conceito. Ao
correr com Manuel, Rosa (interpretada pela atriz Yoná Magalhães) tropeça e cai.
Tropeço e queda não estavam previstos, porém, Glauber mandou a ação ir adiante e
deixou a cena no corte final do filme.
Gustavo Souza em seu artigo Estética do improviso no cinema de periferia para
a revista Famecos define sua estética do improviso como o ―encontro horizontal entre

100
(1) contexto, (2) as condições materiais e metodológicas de cada núcleo de realização e
a (3) temática escolhida‖ (SOUZA, 2012). Embora tenha usado o cinema nascente das
periferias e tomado como exemplo o documentário Super gato contra o apagão que
trata da crise energética durante o governo de FHC, essa mesma definição de estética do
improviso pode muito bem se aplicar ao Cinema Novo. Além de que, tanto o Cinema
Novo com sua estética da fome e da violência, quanto o cinema de periferia, tem um
claro projeto social. Nas palavras de Mikhail Bakhtin: “o estético [...] é apenas uma
variedade do social” (BAKHTIN apud SOUZA, 2012).
Para resumir, o conceito de improviso, ao longo da história colonial (e
neocolonial) se tornou algo de suma importância para o oprimido. Pois o improviso, que
seja na música, na dança, ou na vida em geral, é a afirmação da vida, da liberdade e da
resistência. Ele se tornou uma peça chave para o corpo e para a alma do escravo, do
indígena e do trabalhador pois o improviso, por principio, não é dialético nem
determinista. Corisco e Sebastião representam dois tipos de escapatórias do poder (do
Estado ou da Igreja). Manoel encarna uma terceira opção que seria a do improviso.
Assim como as performances mais extremas de improviso, o final de Deus e o Diabo na
Terra do Sol pode ser desconfortável para alguns tipos de espectadores que esperam que
lhes sejam ditos quem são os inimigos e quem são os amigos. Infelizmente (ou
felizmente), na nossa sociedade brasileira, tanto nos anos 60 quanto hoje em dia, a
situação é mais complicada. Porém, é preciso entender que a afirmação dessa
complexidade, dessa diversidade, não é conformismo nem prejudica a própria ideia de
resistência. Pelo contrário, é a forma menos autoritária de lutar pois ela se baseia na
realidade e não em uma utopia distante e dialética. O improviso encarna da forma mais
pura essa realidade diversa, assim como o solista precisa entender e se comunicar com
os outros instrumentalistas para criar algo novo e incrível. Do mesmo modo que a
revolta de Camus nasce de uma tensão constante: “o homem revoltado não tem
repouso” (CAMUS, 1951). A lógica dialética, materialista, é que corresponde a um
conformismo: o conformismo do opressor.
Assim, a lógica revoltada de Camus, que se encontra no filme de Glauber, é o
que necessitamos hoje em dia, em um mundo de antagonismos. Pois, como o filme
demonstra, o ser humano é um ser composto por várias facetas (assim como explica
Camus, a polícia política do século XX demonstrou a ―física da alma‖) que não podem
ser resumidas nem a seres históricos dialéticos nem a nenhum espectro político ou
moral. Em oposição, o ―devir histórico‖ de Hegel e dos totalitarismos do século XX faz

101
com que o Homem precise se resumir ao eu social e racional, objeto de cálculo
(CAMUS, 1951). Como o próprio Furio Jesi uma vez disse: “A palavra revolução
designa corretamente todo o complexo de ações [...] considerando constantemente no
tempo histórico as relações de causa e efeito[...]. Toda revolta pode, ao contrário, ser
descrita como uma suspensão do tempo histórico” (JESI, 1996).
Além disso, o filme possui uma estética do improviso bastante particular que
pode causar desconforto a alguns tipos de espectadores. O improviso, como encarnação
da pura espontaneidade e diversidade, muitas vezes soa estranho. Porém, como o filme e
a história colonial mostraram, o improviso é uma via certa contra o poder, seja ele o
Governo, a Igreja, ou até mesmo Sebastião, Corisco e Antônio das Mortes. O improviso
se encaixa perfeitamente na última frase do Homem Revoltado de Camus onde ―no
cume da mais alta tensão irá sair o impulso de uma flecha reta do traço mais duro e o
mais livre‖ (CAMUS, 1951). O improviso, assim como a Revolta e a Arte, cria da
tensão uma reconciliação entre o indivíduo e o universal. É dessa tensão, por exemplo,
que surgem os rostos coletivos de Deus e o Diabo na Terra do Sol.
Com a guerra e violência generalizada no Brasil (a ponto de intervenção militar
no Rio de Janeiro), devemos nos perguntar se antagonismos tão propícios a nos dividir
não se tornam perigosos, pois o momento demanda ousadia para a criação de
alternativas melhores e não ―menos piores‖. O ser humano é um ser complexo e não
simplista, sendo o simplismo a mais perfeita base para o autoritarismo. Para Camus é
necessária a afirmação do ser dividido que nós somos (CAMUS, 1951). Não um ser
dividido apenas em dois (Deus e o Diabo) ou três (tese, antítese e síntese), mas sim em
um coletivo de faces. Se me permitem usar um pouco de profecia, se continuarmos em
caminhos dialéticos, antagonistas, proféticos, as probabilidades (já altas) de nossas
supostas democracias se tornarem totalitarismos aumentarão à medida da nossa divisão.
Deus e o Diabo na Terra do Sol, afirmando a complexidade junto com a capacidade do
ser humano de fazer tanto o bem quanto o mal, e improvisar, representa visualmente
uma alternativa possível.

Referências bibliográficas

CAMUS, Albert. L‟homme revolté. Paris: Gallimard, 1951.

DA CUNHA, Euclides. Os Sertões. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1997.

102
HENDY, David. Noise: A Human History of sound & listening. London: Profile Books,
2014.

JESI, Furio. Lettura del «Bateau ivre» di Rimbaud. Macerata: Quodlibet, 1996.

PASOLINI, Píer Paolo. Empirismo Eretico. Milão: Garzanti, 2012.

ROCHA, Glauber. Uma Estética da Fome. In: Revista Civilização Brasileira, n.3, julho,
1965.

ROCHA, Glauber. Deus e o Diabo na Terra do Sol - Texto de Glauber Rocha,


publicado no encarte do disco da trilha sonora do filme, 1964.

SOUZA, Gustavo. ―Estética do improviso no cinema de periferia” in Revista Famecos,


v.19, n.2, 2012.

TOOP, David. Into the Maelstrom: Music, Improvisation and the dream of freedom
before 1970. New York: Bloomsburry, 2016.

103
O lazer e as classes populares: controle, cultura popular e resistência

Ana Carolina Mattoso Lopes44

RESUMO: O presente artigo tem como tema o lazer como resistência na vivência das
classes populares. Busca-se refletir, a partir dos conceitos fornecidos pela corrente
teórica Estudos do Lazer, sobre como se configuram a resistência e a agência das
classes populares no lazer apesar das barreiras no acesso a ele e dos diferentes fatores de
controle que se colocam sobre ele, tanto por parte do capital, com a mercantilização do
lazer representada pela indústria do entretenimento, quanto por parte do Estado em sua
visão funcionalista do lazer que em muitos momentos o utiliza como forma de controle
principalmente da pobreza. Por meio da relação entre cultura de massa e cultura
popular, o artigo aborda como na rotina das classes populares se pode perceber a
contradição existente no lazer, que é a convivência entre a assimilação de instrumentos
de controle e massificação e a agência que, a partir daqueles, pode fissurar essas
estruturas e criar algo novo, permitindo a vivência do lazer antes negado.

PALAVRAS-CHAVE: lazer; resistência; cultura popular

1. Introdução

Este artigo trata do lazer vivenciado pelas classes populares e da resistência que
essa vivência a despeito da escassez configura. O lazer, embora seja um tema para o
qual historicamente se dá pouca importância, tem um papel fundamental na vida de
todos os indivíduos. É uma necessidade presente na vida de todas as pessoas, de ter
momentos de ócio, evasão, de diversão, de exercício da criatividade e da liberdade de
forma desobrigada. E é sobre ele que se projetam fatores como o capital com sua
indústria do entretenimento, a indústria cultural, o biopoder, o controle e a violência
simbólica por parte do Estado e de outras instituições. Por isso, considero que é grande
a importância de se entender o lazer para se entender a sociedade, pois ela não está
separada dele, embora seja a tentativa em muitas instâncias.
Diante da configuração de um lazer que ao longo dos tempos foi se
condicionando à possibilidade de consumo e ao poder aquisitivo, o que configurou
profundas desigualdades de acesso às experiências de lazer, da tentativa de captura e

44
Doutoranda e Mestre em Teoria do Estado e Direito Constitucional pela Pontifícia Universidade
Católica do Rio de Janeiro. Graduada em Direito pela Universidade Federal do Rio de Janeiro. Autora da
dissertação de mestrado O Direito Social ao Lazer em Perspectiva Crítica: Desigualdades e
Democratização do Acesso (2017).

104
molda dessa experiência a diversos interesses, seja do capital ou de controle e
disciplinarização por parte do Estado, as classes populares não deixam de vivencia-lo,
criando experiências que se apropriam do controle e vão além da sua lógica a partir da
escassez.
Tomo como chave de análise da vivência do lazer a experiência das classes
populares porque essa vivência a partir da escassez é que será capaz de produzir novas
lógicas, originando diferentes compreensões da realidade, diferentes práticas e formas
de vivenciar o lazer. E falo de classes populares não no sentido puramente econômico,
mas histórico, social. Um sentido ligado às experiências, às relações que se travam na
prática e como elas se dão. Tem a ver com a condição financeira, o trabalho exercido, o
nível educacional e também com o local onde moram e a forma com que se relacionam
com ele, as experiências e interesses comuns entre as pessoas.
Então, ao citar classes populares, falo preferencialmente daqueles que moram
em regiões periféricas, fruto de estilo de urbanização desigual e excludente, que assim
compartilham minimamente um modo de vida determinado por diferentes formas de
escassez.
O elemento raça também se faz presente e é um dos componentes da composição
das chamadas classes populares e de sua vivência, visto que a maioria da população
brasileira é negra – 54% segundo o IBGE – e esse contingente populacional, em sua
maioria, vive na condição da pobreza. Trato disso entendendo que a questão racial gera
vivências, demandas e conflitos específicos e por isso vai além da questão de classe, não
estando nela contempladas todas as questões relacionadas à raça45.
O povo aqui tem sentido diverso do trazido pelo ideal republicano, no qual o
povo é o sujeito do poder, o corpo de cidadãos representados e participantes do pacto
social, mas sim o sentido que se deu, nesse mesmo pensamento à plebe, a multidão
dominada pelas paixões, sediciosa, irracional (CHAUÍ, 1985). No discurso republicano,
do qual um grande exemplo são os Artigos Federalistas, de Hamilton, Madison e Jay, o
povo era algo que se precisava domesticar, pois não controlavam as suas paixões e
tendiam à violência, não dominavam a racionalidade e eram portanto incapazes de

45
Segundo Ana Luiza Flauzina: “Dentro dos limites estabelecidos pela democracia racial, a categoria
classe exerce a função de homogeneizar as distorções que as diferenças raciais exercem na definição da
pobreza. A pobreza branca está associada fundamentalmente às mazelas provocadas pela forma de
estruturação econômica, assumida desde a modernidade, agravando-se com o advento da globalização.
(...) Já a pobreza negra não pode ser explicada exclusivamente pelas dinâmicas do capital. Para esse
segmento a pobreza foi construída enquanto possibilidade e utilizada como instrumento para a redução
das condições de vida ao longo de todo o percurso histórico”. (FLAUZINA, 2005 p.102/103).

105
produzir algum discurso político sem representação (MADISON; HAMILTON; JAY,
1993).
Posso dizer que esse sentido permaneceu atribuído às classes populares, que são
apontadas nos discursos como o populacho, o ―povão‖, a ralé irracional, inculta, sem
―bom gosto‖. O povo para quem se dirige a cultura de massa, aqueles que são pensados
como receptores, não como produtores do discurso dos meios de comunicação
massivos. São esses que, aqui, demonstram que contrariam essa lógica, possuindo
agência, capacidade de criação e re-criação em seus momentos de lazer.
Vale ressaltar que os pobres, que chamo de classes populares, não são um todo
homogêneo e essencializado. Há uma pluralidade, com variadas práticas, modos de vida
e gostos. O que se aplica a um grupo pode não se aplicar a outro. Trato de classes
populares reconhecendo essas diferenças, mas vendo também a necessidade de se
abordar indivíduos que vivem em condições semelhantes de vida, em contraposição a
uma elite econômica. Essa é a classe social da qual participa a maior parte do
contingente de negros, mestiços, descendentes de índios, mulheres, grupos sociais que
são historicamente inferiorizados e que em suas práticas carregam outras linguagens,
outras leituras da vida, outros modos de fazer decorrentes dessa condição, que se
refletem fortemente na vivência do lazer.
Este trabalho busca então mostrar como se configuram a resistência e a agência
das classes populares no lazer. Como, apesar da assimilação de muitos dos elementos de
controle, se criam a partir deles novas alternativas e como se resiste às imposições e
violências do capitalismo e à hierarquização das práticas de lazer. Os jeitos que dá o
corpo vulnerabilizado para se liberar por meio do lazer.

2. Indústria cultural/indústria do entretenimento, visão funcionalista e


barreiras ao lazer das classes populares

O conceito de lazer que utilizo neste trabalho é o fornecido pela corrente teórica
chamada Estudos do Lazer, que buscou no passado dar conta do conceito de lazer tal
qual configurado na sociedade moderna, principalmente a partir da revolução industrial,
de suas propriedades e importância na sociedade. Hoje, além das constantes
modificações na realidade do lazer, a corrente discute temas como os aspectos do lazer
contemporâneo, a sua observância como direito social, as desigualdades no acesso e as
políticas públicas que buscam concretizá-lo.

106
Com base no conceito clássico cunhado por Joffre Dumazedier
(DUMAZEDIER, 1976), defino o lazer como o conjunto de atividades com o elemento
subjetivo da busca pelo prazer, nas quais se verifica um grau maior de liberdade na
escolha entre diferentes opções, com as funções de livrar da fadiga, distrair, dar
satisfação, proporcionar o exercício da criatividade e auxiliar no desenvolvimento da
personalidade e da interação entre as pessoas, vividas em um tempo em que há um grau
menor de subordinação às obrigações do cotidiano. É, grosso modo, um conjunto de
atividades desempenhadas no tempo livre, a fim de proporcionar bem-estar para as
pessoas, seja pelo repouso, diversão ou desenvolvimento da personalidade.
Esse conceito é mais amplo do que a ideia de lazer que se costuma ter no senso
comum, geralmente limitada a atividades de recreação ao ar livre e secundário a outros
elementos que na verdade estão dentro de seu conceito. Ele compreende um espectro
amplo de atividades, que atentem a diferentes interesses: esportes e atividades físicas,
atividades manuais, informação desinteressada, encontros sociais, atividades turísticas e
atividades artísticas, culturais. Para aquilo que nos interessa neste trabalho, é importante
ressaltar que a cultura está compreendida no conceito de lazer e que o lazer é um direito
social consagrado na Constituição Federal de 1988.
Existem diferentes forças que vão incidir sobre o lazer para tentar captura-lo,
modifica-lo ou exercer algum tipo de controle sobre as pessoas por meio dele.
O primeiro é a sua mercantilização, sua captura pelo capital, expressa na figura
da indústria cultural/indústria do entretenimento. A indústria cultural, conceito criado
por Adorno e Horkheimer, é o modus operandi arquitetado pelo mercado da produção
da cultura, que atua no plano simbólico, criando uma lógica para esses produtos,
manipulando necessidades, homogeneizando hábitos e gostos, intentando tolher a
capacidade crítica e criativa de seus destinatários (ADORNO; HORKHEIMER, 1986).
Assim, ela dita os produtos que serão consumidos no tempo de lazer das pessoas e a
forma como esse lazer será vivido, configurando a chamada cultura de massa, da qual
falarei mais adiante.
A indústria do entretenimento é a forma mais abrangente que a indústria cultural
assume, principalmente com a globalização, que trouxe a intensificação da
mercantilização do lazer, a expansão e fortalecimento desse ramo do mercado sob
valores repaginados, como: a padronização do lazer segundo os hábitos das classes mais
abastadas, a homogeneização e massificação dos conteúdos, a hierarquização dos
gostos, a obsolescência programada, a tendência de concentração do mercado do

107
entretenimento em grandes grupos empresariais, a estreita relação criada entre o lazer e
o consumo de outros produtos, na chamada ―compra divertida‖, a busca pelo êxtase, um
prazer exacerbado e rápido, dentre outros (MASCARENHAS, 2005). É o ramo do
mercado que transforma em produto lazeres de todas as classificações.
Essa mercantilização do lazer coloca uma barreira à vivência dele, uma vez que
condiciona o lazer à capacidade de consumo, ao poder aquisitivo. Só poderão desfrutar
de todos os prazeres da indústria do entretenimento aqueles que possuem recursos para
tal. O mercado cria a necessidade, cria o padrão ideal de lazer, mas só têm acesso
satisfatório a ele aqueles que são mais abastados. A ideia de qualidade de vida é cada
vez mais condicionada a um padrão passível de ser comprado, reforçando-se as
desigualdades sociais. O lazer se torna privilégio daqueles que possuem maior poder
não só econômico como social, cultural, que são os que produzem o discurso e ditam
um padrão a ser seguido do que verdadeiramente é lazer, do que é mais prazeroso.
Trata-se de um controle exercido pelo capital sobre a forma de viver o lazer, na tentativa
de condicioná-lo às experiências e produtos que ele oferece.
A outra força que incide sobre o lazer é a sua visão funcionalista, que o
transforma em um instrumento de controle social, principalmente da pobreza, por parte
do Estado.
A visão funcionalista do lazer traz uma perspectiva altamente conservadora, que
dá ao lazer um fim externo a ele, instrumentalizando-o para a manutenção da ordem, a
obtenção da paz social, a obediência, a difusão dos valores comportamentais da
sociedade capitalista. Isso se faria pela ocupação do tempo livre com atividades
consideradas adequadas, equilibradas, socialmente aceitas e moralmente corretas
(MARCELLINO, 1987. p.38). Assim, em muitos momentos o lazer foi promovido e
incentivado pelo Estado dentro de determinados padrões morais com uma visão de
higienização social.
Além da domesticação do trabalhador, que teria o lazer como uma compensação
pelas jornadas desgastantes de trabalho e assim evitaria a manifestação da violência e
das insatisfações políticas, o lazer era utilizado como instrumento para a prevenção da
delinquência, principalmente entre jovens e adolescentes, principalmente entre jovens e
adolescentes negros e pobres. Nessa função, ele seria uma forma de tentar imprimir
bons valores a esses sujeitos pela imposição de atividades consideradas adequadas, ao
passo que outros lazeres – principalmente os originados na cultura e na práxis dos
negros – eram duramente reprimidos. Havia, e pode-se dizer que ainda há, ainda que

108
com feições mais brandas, um desejo de controle, de vigilância do lazer que, ainda que
não explícito, se mostra no oferecimento e estímulo de determinadas atividades e
conteúdos com o intuito de induzir o indivíduo a utilizar seu tempo livre de determinada
maneira.

3. A contradição do lazer: cultura popular, cultura de massa,


assimilação e resistência

O lazer é uma realidade complexa. Como expressão humana, agência


criativa das pessoas em busca do prazer, é um espaço onde idealmente podem atuar a
sua potência, liberdade e criatividade. Embora os diferentes tipos de controle - o projeto
ideológico de dominação do lazer pelo Estado na visão funcionalista e de dominação do
lazer pelo capital na sua mercantilização – atuem sobre a produção e fruição do lazer,
para fazer dele um meio de realização de um padrão de cidadão que se deseja ter,
nenhum desses é capaz de cooptá-lo completamente.
Aí reside a dinâmica contraditória do lazer, no fato de nele conviverem
diferentes lógicas que não se anulam, mas também não eliminam as possibilidades de
que ele seja algo que escape a esses controles. Lílian do Valle ressalta a importância de
que essa dinâmica seja colocada em foco para que os estudos sobre o lazer tenham a
consistência necessária:

É esse duplo aspecto revelado pelo lazer, atividade instrumentalizada


e instrumentalizável pelo trabalho, alienação e empobrecimento e, por
outro lado, necessidade radical capaz de conduzir a um dado momento
a classe trabalhadora a transcender os limites socialmente impostos à
sua liberdade, é essa complexa ambivalência que o torna
imprescindível para a análise da sociedade atual (VALLE, 1988.
p.46).

Vimos que, de um ponto de vista tanto econômico, quanto territorial, social,


cultural e de poder, aos pobres se colocam inúmeros obstáculos para a vivência de um
lazer em condições dignas e plenas. Entretanto, ainda diante de todos esses obstáculos,
eles não deixam de desfrutar de momentos de lazer, criando alternativas a isso. É aí que
se percebe que a necessidade do lazer é uma necessidade de todos os indivíduos. Luiz
Octávio de Lima Camargo deu como exemplo em sua obra o fato de que nas favelas
brasileiras havia mais televisores, para entretenimento, do que geladeiras, que na época

109
tinham o mesmo preço, para afirmar que não existe hierarquia de necessidades, sendo o
lazer uma demanda tão importante quanto as outras na vida das famílias. ―As aspirações
de subsistência mudaram. Não é apenas o pão de cada dia que a população reclama‖
(CAMARGO, 1992. p.100).
A pobreza não seria uma situação em que, em nome da sobrevivência mínima, as
pessoas deixariam de lado o lazer por não precisarem dele, como costuma ser a postura
do poder público em sua burocracia quanto a isso, excluindo e precarizando as políticas
de lazer quando falta orçamento para as demais coisas. As pessoas vão muitas vezes
sacrificar seu orçamento para que possam satisfazer também essa necessidade. Elas
criam suas metas, suas aspirações e grande parte delas são relacionadas ao lazer, seja
uma TV nova, um equipamento de som, uma viagem com a família; ainda burlam as
barreiras simbólicas e concretas para frequentar certos espaços – como os shoppings e
as praias, lugares onde muitas vezes, pessoas pobres não são desejadas.
Há aspirações, desejos quanto ao lazer que não são satisfeitos, não pela opção
por outra forma de lazer, mas pela falta de condições para isso. Mas há ainda os casos
em que as pessoas usam o seu orçamento limitado – ou ainda se endividam por meio de
empréstimos, parcelamentos e cartões de crédito – para investir em práticas e
equipamentos domésticos de lazer, na compra de artigos ou construção de espaços em
suas casas para receber os amigos, dar festas, muitas vezes reproduzindo os hábitos das
classes abastadas.
Lilian do Valle, ao descrever o lazer das classes trabalhadoras no Brasil,
ressaltou:

(...) por um lado, as péssimas condições de transportes e sobretudo a


extrema limitação de recursos financeiros a se chocar, por outro lado, com
as aspirações correntes da população estudada por ―passeios". Ora, não se
esgota aí a realidade: para além deste conflito muito justamente
explicitado, resta a "solução" encontrada por muitos grupos de
trabalhadores das periferias, que se reúnem para alugar ônibus que os
levarão a excursões pelas praias e localidades vizinhas. (...) se é importante
assinalar que as aspirações de lazer são frustradas pelas condições
concretas de vida, como regularmente se faz ao tratar o assunto, parece-me
importante também aprimorar a observação que nos permitirá entender de
que forma, hoje, os interessados tentam resolver seus problemas, e
perceber o tipo de "soluções" encontradas: é aí, entre outras coisas, que se
localiza o espaço não só da tomada de consciência, mas também das
iniciativas espontâneas, de criatividade, e sobretudo de resistência
(VALLE, 1984. p.59).

110
A resistência está, pois, nas soluções dadas à escassez, nas brechas pelas quais
vão acabar atuando as classes populares, nos jeitos dados. No lazer que se realiza apesar
da falta de dinheiro, na criação que se faz apesar da dita ―falta de capital cultural‖, a
produção de um capital cultural que contraria o imposto pelos grupos dominantes. E no
resultado dessas soluções, que será diferente dos produtos da massificação que lhes são
impostos, embora incorporem alguns dos seus elementos.
Para Marilena Chauí, essa resistência pode ser tanto difusa, presente na
irreverência do humor, nas pequenas práticas populares, como pode se dar em ações
coletivas. A resistência apontada pela autora no lazer das classes populares reside na
lógica de certas práticas que em seu conteúdo contrariam uma limitação que foi
imposta, transformando-se assim em atos de resistência, ainda que sem conotação
política expressa (CHAUÍ, 1985. p.46).
É uma resistência, para além das possibilidades de resistência específica por
meio de atividades de lazer, mais suave, que se dá no cotidiano, no ritmo das atividades,
preocupações e demandas do dia a dia. Sem caráter premeditado, apenas como resposta
imediata às vontades e alternativa construída às barreiras que se colocam entre o
indivíduo e essas vontades.
Para entender melhor a configuração do lazer das classes populares e a
contradição que o permeia, é necessário refletir sobre a relação entre cultura popular e
cultura de massa.
A ideia de massa por trás da cultura de massa é fruto do pensamento liberal
(CHAUÍ, 1985. p.25-27), que, buscando afastar a noção de luta de classes e contradição
social, afirmou como centro de sua democracia a existência de um todo social
harmônico, onde as diferenças se tornariam meras divergências de interesses a serem
postas de lado para a construção de um discurso uno, contendo aquilo que todos teriam
em comum. Sendo assim, a ideia da cultura de massa era apresentar e também dar forma
a um pensamento homogêneo.
A cultura de massa foi apresentada com a ideia de uma democracia cultural
proporcionada pelos meios de comunicação, que chegaria a todos sem distinção, tendo
como destino e produto uma massa una, à qual as pessoas se sentiriam pertencentes. Foi
essa a ideia que Adorno e Horkheimer criticaram ao denunciar a ação da indústria
cultural.
A cultura de massa é, assim, aquela na qual atua a lógica da indústria cultural,
com o objetivo de homogeneizar e limitar o pensamento e a criatividade de seus

111
receptores, materializada nos meios de comunicação de massa. Segundo Marilena
Chauí, embora se costume trata-las como sinônimas, não se pode pensar que a cultura
de massa e a cultura popular são a mesma coisa. Um dos motivos é o fato de aquela se
fazer por meios de comunicação que são subordinados ao Estado e a grandes empresas
privadas (Ibid. p.28). A ideia de cultura de massa carrega uma visão que as elites
dominantes têm acerca da massa e querem afirmar a ela, como ignorante e incapaz,
prestando-se a realizar uma domesticação ideológica através da manipulação exercida
pelos meios, afirmando uma assimetria de competência entre o emissor e o receptor.
Já a cultura popular tem como base a produção do povo, da plebe, o seu conjunto
disperso de práticas, representações e formas de ver dotado de uma lógica própria (Ibid.
p.25). Ao contrário do que crê a visão romântica, não é uma cultura pura, totalmente
autêntica, permeada somente pelo elemento popular, mas também não é, como na visão
ilustrada, um resíduo morto, apagado pelo processo de modernização. Ela se mostra
alterada pela modernização, mas conserva discursos e práticas resultantes da
experiência das classes populares. A cultura popular é um espaço onde se podem
perceber essas contradições, como o dominado absorve a influência do dominante e ao
mesmo tempo se mantém, numa realidade dinâmica.
O conceito de hegemonia de Gramsci foi utilizado tanto por Marilena Chauí
quanto por Jésus Martín-Barbero para entender a dinâmica da cultura popular. A
hegemonia se constitui como uma subordinação interiorizada e imperceptível, um corpo
de práticas e expectativas sobre a sociedade, um processo que não permanece estático,
mas se modifica e é recriado à medida que sofre oposição, sendo capaz de responder às
alternativas que lhe são dadas (Ibid. p.22). Para Barbero, pode-se pensar em hegemonia
como um processo no qual uma classe dominante hegemoniza práticas e concepções,
colocando não só uma dominação exterior e estática, mas incorporando também alguns
interesses das classes subalternas (BARBERO, 2015. p.112).
Há uma apropriação pelo poder do sentido dado a algumas práticas e interesses
pelas classes populares, ao mesmo tempo em que são impostos interesses das classes
dominantes, numa dominação cultural que é internalizada pelas pessoas. A hegemonia
comporta o conceito de contra-hegemonia, que é a oposição, a resistência a ela,
considerando esses esforços e até mesmo incluindo-os (CHAUÍ, 1985. p.22). A cultura
popular é de alguma forma degradada pela dominação, mas ainda assim encontra
espaços para se expressar, para emergir.

112
A cultura popular e a cultura de massa se relacionam constantemente, pois a
cultura de massa se apropria de valores, ideias e representações presentes na cultura
popular, e esta interfere na forma como a cultura de massa será lida, interpretada por
aqueles que a consomem. Assim, não há uma livre da outra.
A teoria da recepção, que tem Jésus Martín-Barbero como um dos expoentes,
busca resgatar a criatividade dos sujeitos e o caráter interativo da relação dos usuários
com os meios de comunicação de massa. Quer estudar não apenas os efeitos dos meios,
mas a relação das pessoas com eles, o espaço de crenças, costumes e signos da cultura
cotidiana que existe entre o estímulo dos meios e a resposta dos receptores, que vão
influir na leitura que as pessoas farão, na forma como usarão, naquilo que esperarão dos
diferentes meios e também das diferentes atividades de lazer. A TV, por exemplo, pode
ter um impacto diferente na vida das pessoas de acordo com a relação que estas têm
com ela, que tem a ver com o capital cultural, as condições de vida, entre outros fatores.
Segundo Barbero, o valor do popular está na sua representatividade cultural:

(...) em sua capacidade de materializar e de expressar o modo de viver e


pensar das classes subalternas, as formas como sobrevivem e as estratégias
através das quais filtram, reorganizam o que vem da cultura hegemônica, e
o integram, e fundem com o que vem de sua memória histórica
(BARBERO, 2015. p.113).

Segundo essa teoria, há uma reorganização pelas classes populares daquilo que é
recebido por meio da cultura de massa. A indústria cultural adentra a experiência das
pessoas, captura suas aspirações legítimas como a de liberdade para retirar-lhes a
rebeldia e transformá-las em desejo de consumo, mas a ela também são contrapostos
mecanismos de enfrentamento inconsciente do massivo (Ibid. p.116), uma forma de
leitura que é capaz de não absorver completamente aquilo que é posto, de entrar em
contato com o massivo, mas não se deixar ser completamente eliminado por ele.
A ação da indústria cultural não é uma dominação sem agência do dominado.
Existe uma criatividade dispersa na cotidianidade, outros modos de fazer diferentes do
dominante, decorrentes de uma realidade de escassez, a partir da qual não se tem outra
opção a não ser criar novas formas, uma criatividade que se manifesta apesar da
tentativa de eliminação dela, seja pelas excessivas horas de trabalho impostas, pela
sedução dos produtos simplificados da cultura de massa, ou pela tentativa de
aniquilação de sua cultura e identidade, como é o caso dos negros.

113
A cultura popular mostra esse conjunto de saberes e práticas marginalizados pelo
pensamento hegemônico com sua ideia de desenvolvimento, que se tornam espaços de
criação silenciosa e coletiva, mostram um estilo diferente de viver, de trocas sociais
(Ibid. p.142). Não se pode pensar nas classes populares como receptores passivos de um
discurso hegemônico sem considerar o seu sistema existente de decodificação, suas
possíveis formas diferentes de representação. Não se pode deixar de pensar o popular
como sujeito, como criador. A resistência e criatividade das classes populares sustenta a
dinâmica contraditória, mina a alienação, ainda que não a elimine.
Além disso, na própria cultura de massa coexistem produtos heterogêneos, como
afirma Barbero, alguns que afirmam a cultura dominante e outros que são respostas às
demandas dos grupos dominados (Ibid. p.132), como sinalizado na ideia de hegemonia.
Isso quer dizer que a cultura de massa pode possuir elementos que serão benéficos às
classes populares, respondendo a necessidades legítimas suas, como a de ter o seu
imaginário alimentado, que os filmes e novelas desempenham bem.
Ao mesmo tempo, não se pode ter uma visão cristalizada para o outro extremo, a
ponto de pensar a capacidade de resistência dos populares como ilimitada, romantizando
suas práticas. Não se deve pensar que tudo na cultura subalterna é resistência e que não
há penetração do massivo, do hegemônico. Barbero afirma que ―nem toda assimilação
do hegemônico pelo subalterno é signo de submissão, assim como a mera recusa não o é
de resistência‖ (Ibid. p.114).
Entretanto, é importante demonstrar a criatividade e resistência presentes na
cultura popular para evitar reduções do lazer das classes populares e combater visões
que o diminuem e até mesmo o desconsideram como lazer de forma preconceituosa e
hierarquizadora.
Há aqueles que reconhecem como cultura e lazer somente aquilo que se
aproxima de uma certa visão, ligada, quase sempre, aos valores da classe dominante.
Lilian Valle criticou alguns trabalhos sobre o lazer dos anos 1970, acusando-os de trazer
uma concepção elitista do que era cultura, apontando para um ―dever ser‖ do lazer que
se assemelhava mais às práticas das classes dominantes (VALLE, 1984).
O lazer das classes populares era considerado por esses autores inexistente,
deficiente, massivo, vazio e o que se colocava era uma missão de transformá-lo, de
―elevar o nível‖ da cultura popular. Muitos dedicaram seu tempo a desmerecer a cultura
popular, mostrando como ela não fazia parte do verdadeiro lazer, cujo conceito de
baseava em padrões afastados da realidade, principalmente da dos países da América

114
Latina. Tal postura prejudica o entendimento sobre o lazer, pois retira de seu conceito
certas práticas consideradas nocivas e alienantes, não se estudando de forma apropriada
atividades que concretamente são as mais importantes para as pessoas.
Há uma prática já convencionada nos estudos do lazer e em muitos trabalhos
sobre isso de considerar o padrão de qualidade aquele produzido pelos mais ricos e o
deficiente, o alienante, o incapaz de trazer a diversão esperada, aquele produzido
diariamente pelos pobres, superando-se em suas condições. E convencionou-se entender
como justiça social o ideal de levar os mais pobres ao padrão dos mais ricos. No
entanto, nesse ideal já se faz uma distinção cruel, que por muitas vezes desvaloriza e
desconsidera a produção das classes populares, a sua realidade, sua forma de viver, que
deve ser preservada e valorizada.
Em outros tempos, já foram criticadas as inclinações das classes populares ao
divertimento, à evasão, até mesmo como algo amoral, uma expressão da sua falta de
conteúdo e vontade política. Enxergar o lazer das classes populares apenas como
empobrecido é uma visão muito simplista, que esconde um etnocentrismo de classe,
uma hierarquia de gostos que pode se manifestar até mesmo nas iniciativas melhor
intencionadas em prol do lazer.
Quando denuncio a vivência de um lazer inapropriado e deficiente por muitos
brasileiros, principalmente das classes populares, não faço essa crítica com base no
conteúdo da prática, mas em suas condições. O que busco avaliar ao denunciar as
desigualdades no acesso ao lazer é se as pessoas têm opções variadas de atividades a
serem desempenhadas, se podem escolher o conteúdo do seu lazer, tendo a possibilidade
de acesso ao que tiverem vontade dentro de condições mínimas de dignidade, se há
equipamentos apropriados, uma estrutura que proporcione a diversão e se as
oportunidades de lazer são democráticas, disponíveis de forma igualitária a todos, além
da oportunidade de protagonizar essas atividades, produzir seu discurso.
É preciso reconhecer que a condição social, o gênero, a raça, a origem
geográfica, até mesmo a religião e muitos outros fatores vão interferir nos gostos e nas
preferências ligadas ao lazer. O gosto musical, as atividades físicas, jogos, brincadeiras,
formas de festejar e modos de se comportar nos ambientes, serão diferentes entre os
grupos sociais. Promover o lazer não significa impor apenas um modo de fazer,
eliminando a pluralidade e subalternizando produções que destoam desse parâmetro
imposto.

115
Muitos, ao criticar a atuação da indústria cultural, o avanço da indústria do
entretenimento, acabam por reduzir o lazer resultante desses fenômenos a um
antilazer46, o não lazer, ignorando sua existência real como parte do tempo livre de
muitas pessoas, o que leva até mesmo a se planejar intervenções divorciadas da
realidade e dos gostos daqueles a quem elas se dirigem. Deve-se ter cuidado ao afirmar
que umas atividades de lazer são melhores que outras para o desenvolvimento do
indivíduo. Deve-se questionar os parâmetros, considerar todas as atividades como
opções, para que se realize um estudo sério sobre o lazer.
Pode-se perceber, por trás de ações bem-intencionadas em prol do lazer, a
persistência de visões higienistas que enfatizam a necessidade de se realizar trabalhos
voltados para o lazer com determinados públicos a fim de livrar a sociedade dos males
que se pensa serem potencialmente causados por eles. Tal atitude não valoriza o
indivíduo nem a experiência de lazer, nem enxerga a legitimidade da criação de outras
práticas. É o exemplo da postura que ainda hoje muitos setores da sociedade civil têm
em relação às favelas, que os leva a fomentar atividades de lazer nesses lugares com o
intuito de livrar da opção pelo crime os jovens que ali habitam, em sua maioria negros e
pobres, tidos como potenciais marginais.
Fabíola Camilo explica que o jovem morador de favela se tornou um público
priorizado em políticas e principalmente projetos e ações sociais ligados a ONGs na
área do lazer, por conta de uma preocupação da população com sua situação de
vulnerabilidade social e exposição à criminalidade, e aponta que :

(...) boa parte dos projetos sociais e políticas públicas promovidas pelo
governo, principalmente ligadas às áreas de cultura e lazer, este último
muitas vezes entendido como atividades esportivas, são criadas seguindo a
orientação destes padrões predominantes. (...) O intuito destas ações na
maioria das vezes é alcançar uma mudança de comportamento e
disciplinarização da vida, principalmente dos jovens moradores de favelas
que passaram a ser considerados ‗problemas‘ (...). (CAMILO, 2011. p.9).

Essa ação tem como base uma visão essencializada da favela, dos seus
habitantes e das suas práticas de lazer, que são tidas como bestiais, amorais e alienantes,
resultando em ações com base numa visão funcionalista, de caráter moralizador,

46
O antilazer, para Nelson Marcellino, é a negação do lazer em seus valores essenciais, a sua redução a
atividades a serem consumidas alimentando a alienação, servindo ao propósito de manter as pessoas
integradas à lógica da cultura de massas, da sociedade capitalista industrial urbana (MARCELLINO,
1987. p.42).

116
pretendendo-se salvadoras daqueles indivíduos, vistos como um perigo para a
sociedade.
A cultura de massa hoje é uma cultura globalizada, grande instrumento para o
sucesso e difusão dos elementos da globalização. Fernando Mascarenhas (2005) afirma
que a partir dos anos 1990, com o boom da indústria do entretenimento, as visões
funcionalistas do lazer foram perdendo a força e houve uma refuncionalização do lazer,
com a perda dos valores de descanso, diversão, desenvolvimento da personalidade e
liberdade ressaltados pelas teorias anteriores em razão da sua subordinação aos
interesses econômicos de uma crescente indústria do lazer, como se a subordinação aos
interesses econômicos não existisse desde o início.
Era como se tudo tivesse se perdido com esse crescimento, todos os valores que
se poderia atribuir ao lazer foram ressignificados segundo outra perspectiva, não
havendo mais espaço para a criatividade popular. Entendo que tal visão não considera
adequadamente a capacidade de agência e resistência das classes populares, que restaura
a possibilidade de uma vivência do lazer com seus valores.
Milton Santos (SANTOS, 2004), falando sobre o mesmo período, traz uma
perspectiva diferente. Para ele, a total homogeneização em razão da expansão da
indústria do entretenimento não é possível porque a globalização é criadora de escassez.
Mesmo que a cultura de massa chegue a vários níveis da vida com grande facilidade, os
indivíduos não são igualmente atingidos por ela em razão dos obstáculos que se
colocam no acesso ao mercado, que refletem o aumento da pobreza e das desigualdades
sociais. E essa escassez daqueles que se veem impossibilitados de fruir completamente
o consumo é o que pode gerar a renovação, as soluções, os improvisos, que se tornam
alternativas.
Santos reconhece a poderosa ação da cultura de massa com seu empenho vertical
unificador, indiferente aos símbolos históricos e à realidade de cada local e as suas
investidas no sentido de incorporar ao mercado as resistências produzidas pelo povo,
cooptando-as e esvaziando-as de seu conteúdo original, mas acredita na possibilidade de
revanche da cultura popular.

Mas há também – e felizmente – a possibilidade, cada vez mais frequente, de


uma revanche da cultura popular sobre a cultura de massa, quando, por
exemplo, ela se difunde mediante o uso dos instrumentos que na origem são
próprios da cultura de massas. Neste caso, a cultura popular exerce sua
qualidade de discurso dos ‗de baixo‘, pondo em relevo o cotidiano dos
pobres, das minorias, dos excluídos, por meio da exaltação da vida de todos

117
os dias. Se aqui os instrumentos da cultura de massa são reutilizados, o
conteúdo não é, todavia, ‗global‘, nem a incitação primeira é o chamado
mercado global, já que sua base se encontra no território e na cultura local e
herdada (Ibid. p.143).

Fala-se aqui da capacidade que as classes populares têm de se apropriar dos


elementos da cultura de massa e a partir deles criar os seus discursos que, ainda que
afetados por essa lógica, conservam um elemento original, regional, contraposto ao
conteúdo homogeneizador global. A tecnologia, pode se tornar um meio para essa
resistência na medida em que é usada pelas classes populares de outra forma.
Posso dar como exemplos os casos de moradores de favelas e bairros periféricos
que criam rádios comunitárias, se unem para produzir vídeos que retratam a realidade
local, projetam seus hábitos e estimulam a criação de formas de comunicação ligadas
àquela realidade, utilizando equipamentos tecnológicos produzidos pelo mercado. A
internet, grande veículo da globalização tem sido também uma plataforma mais livre
para a criação e projeção de conteúdos produzidos pelas classes populares, que não têm
a oportunidade de produzir na grande mídia e não estão necessariamente submetidos à
lógica da cultura de massa.
Há grupos negros que criam a sua própria plataforma para criação e divulgação
de conteúdo artístico criado, produzido e protagonizado por negros como alternativa a
uma indústria cultural em que têm pouco ou nenhum protagonismo e são representados
por meio de estereótipos negativos. Um exemplo disso é o AFROFLIX, uma plataforma
colaborativa na internet, criada por pessoas negras, que disponibiliza conteúdos
audiovisuais como filmes, séries, web séries, programas, vlogs e clipes produzidos,
escritos, dirigidos ou protagonizados por pessoas negras47.
Milton Santos afirma que essa cultura popular criada paralelamente, que se
baseia no território, em um cotidiano específico, tem força para fissurar o impacto da
cultura de massas. Também enxerga a produção de cultura territorializada como o
primeiro passo para a emancipação de seu discurso, que pode ser seguida da produção
de um discurso político territorializado, uma esperança de ruptura.
Assim, por mais que a indústria do entretenimento tenha um grande impacto na
mercantilização do lazer e em sua constante deformação, é possível ainda que por meio
dos instrumentos que ela fornece se elaborem resistências que partam da escassez. A

47
O Afroflix se localiza neste endereço virtual: http://www.afroflix.com.br/ (acesso em 27/02/2018).

118
cultura popular persiste, o lazer se mostra como uma necessidade importante para todos
os indivíduos e acontece independente das barreiras e da dominação que lhe é imposta.

4. Conclusão

Assim, concluo que o lazer possui uma dinâmica contraditória que é essencial
para a sua compreensão. Ele é, ao mesmo tempo, uma atividade atravessada pelas
dominações do mercado e do Estado e uma necessidade capaz de levar as pessoas, a fim
de satisfazê-la, a ultrapassar as barreiras e dominações impostas, manifestando sua
criatividade e resistência.
O lazer pode ser, em muitos momentos, um instrumento de resistência, de
manifestação de uma cultura popular que fissura – embora seja ao mesmo tempo
fortemente afetado por ela – a influência da cultura de massa e dos valores
mercadológicos.
Há uma capacidade pelas classes populares de reorganização segundo suas
experiências daquilo que é recebido pela cultura de massa, fazendo com que seu
divertimento não seja completamente cooptado por ela. Não se pode pensar nas classes
populares como receptores passivos de um discurso hegemônico sem considerar a
possibilidade de que haja formas diferentes de representação. Não se pode deixar de
pensar o popular como sujeito, como criador e como possibilidade de renovação.
É importante ressaltar a criatividade e resistência presentes na cultura popular
para evitar reduções do lazer das classes populares e combater visões que o diminuem, o
empobrecem e até mesmo o desconsideram como parte da ideia de lazer de forma
preconceituosa e hierarquizadora.
É certo que, não é porque há resistência que não se deva lutar por melhores
condições de lazer para essa parcela da sociedade, proporcionando-lhes melhores
condições e outras possibilidades de vivenciar o lazer. Entretanto, a realização de um
lazer democrático não é, como pode-se pensar, levar os pobres ao padrão dos ricos, mas
sim valorizar e considerar sua produção de acordo com sua realidade e forma de viver,
fomentando as manifestações fundadas na cultura popular. Promover o lazer não
significa impor apenas um modo de fazer, eliminando a pluralidade e subalternizando
produções que destoam desse parâmetro imposto, mas sim possibilitar a produção de
outros discursos e práticas.

119
Há uma capacidade de apropriação dos meios fornecidos pela indústria do
entretenimento para a emergência de expressões e discursos populares, sob outra lógica,
capaz de fissurar a cultura de massas, com potencial emancipatório. Essa realidade não
pode deixar de ser considerada nas ações voltadas para o lazer sob pena de esvaziar o
seu conteúdo.

Referências Bibliográficas

ADORNO, Theodor W.; HORKHEIMER, Max. Dialética do Esclarecimento:


fragmentos filosóficos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar 2ª ed., 1986.

BARBERO, Jesus Martin. Dos meios às mediações: comunicação, cultura e


hegemonia. 7ªed. Rio de Janeiro, Editora UFRJ, 2015.

CAMARGO, Luiz Octavio de Lima. O que é Lazer. Editora Brasiliense, 3ª ed. São
Paulo, 1992.

CAMILO, Fabíola Nascimento. As práticas de lazer em uma favela carioca: da


essencialização ao compartilhamento de práticas sociais sob a perspectiva da distinção
social e espacial entre jovens na cidade. In: XI Congresso Luso Afro Brasileiro de
Ciências Sociais. Salvador-BA, 2011.

CHAUÍ, Marilena. Conformismo e Resistência. Ed. Brasiliense. São Paulo, 1985.

DUMAZEDIER, Joffre. Lazer e Cultura Popular. Editora Perspectiva. São Paulo, 1976.

FLAUZINA, Ana Luiza Pinheiro. Corpo Negro Caído no Chão: O Sistema Penal e o
Projeto Genocida do Estado Brasileiro. Dissertação. (Mestrado em Direito).
Universidade de Brasília, 2006.

LOPES, Ana Carolina Mattoso. O Direito Social ao Lazer em Perspectiva Crítica:


Desigualdades e Democratização do Acesso. Rio de Janeiro, 2017. 197p. (Dissertação
de Mestrado) – Departamento de Direito, Pontifícia Universidade Católica do Rio de
Janeiro.

MADISON, James, HAMILTON, Alexander, JAY, Jonh. O Federalista. Rio: Nova


Fronteira, 1993.

MARCELLINO, Nelson Carvalho. Lazer e Educação. Papirus. Campinas SP, 1987.

MASCARENHAS, Fernando. Entre o ócio e o negócio: teses acerca da anatomia do


Lazer. 2005. 308 f. Tese (Doutorado em Educação Física) - Faculdade de Educação
Física, Universidade Estadual de Campinas, Campinas, 2005.

SANTOS, Milton. Por uma outra globalização: do pensamento único à consciência


universal. 11ª ed. – Rio de Janeiro: Record, 2004.

120
VALLE, Lilian A. B. do. O lazer como resistência. Fórum Educacional, Rio de Janeiro,
v. 12, n. 4, 1988.

___________________. O Lazer no Mundo Operário: Sua “Representação” na


Sociologia Brasileira. Revista Síntese v.11 Nº 31 (1984) – pág. 47-70.

121
Navegação social: gestos, jeitos e sentidos em dois romances de Jorge
Amado
Pedro Mollica da Costa Ribeiro48

Resumo
Este artigo procura explorar um conjunto de atos praticados por distintos personagens
que atravessam as narrativas de dois romances do escritor Jorge Amado. O significado
e, sobretudo, o feitio dos recursos lançados pelas mais desprovidas figuras são objeto de
discussão no texto. As características do enredo de Capitães da Areia e da trama de
Jubiabá são articuladas às implicações decorrentes do contexto social do lançamento da
primeira edição dos dois livros. Na primeira obra, examina-se o sentido das práticas
daqueles que estão à margem do eixo principal da sociedade. Na segunda, analisa-se o
movimento dos anônimos para superar a imobilidade da miséria em que vivem. Ao
final, o paradigma do ―jeitinho‖ é discutido a partir de um exemplo extraído das
relações de afeto do escritor como forma de navegação social no Brasil.

Palavras-chave
Sentido; Gestos; Adversidade; Jorge Amado.

1. Introdução

Indagado sobre quais os conhecimentos adquiridos o animavam para a criação


de seus personagens, Jorge Amado respondia a uma de suas leitoras:

Só o conhecimento vivido, o conhecimento de dentro pra fora, aquele que


não é aprendido nos livros nem na fria observação do fino repórter de faro
infalível, só aquele conhecimento que se viveu dia a dia, minuto a minuto,
no erro e no acerto, na alegria e na tristeza, no desespero e na esperança, na
luta e na dor, na gargalhada e no choro, na hora de descer e na hora de
morrer – só esse conhecimento possibilita a criação (AMADO, 1972, p.24).

A dimensão concreta do saber cultivado no dia-a-dia tinha mais a dizer sobre a


criatividade da escrita de Amado. Também a oralidade, que se expressa por uma
elaboração linguística sem vergonha, foi atribuída por Glauber Rocha como o
48
Mestrando em Teoria e Filosofia do Direito pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ),
com experiência docente na Faculdade Nacional de Direito da UFRJ e na Cândido Mendes.

122
componente de maior vitalidade nos romances do escritor (AMADO, 1971, p.37).
Para redigir Capitães da Areia (1937), Jorge Amado revela em A ronda das
Américas, diário de viagem publicado entre 1938 e 1939, uma aproximação com a vida
diária dos grupos de menores:

Vagabundagem lírica, durante seis meses, pelas pequenas cidades dos estados da
Bahia e de Sergipe. As crianças abandonadas, que nas cidades do Salvador e
Aracaju vivem do furto e de assaltos, iguais a homens, me comoveram e me
tentaram como material para um romance. Andei atrás deles, até que me encontrei
suficientemente apto a escrever o romance (AMADO, 2001, p.15).

As vibrações da expressão oral e as notas sem formalidades, forjadas pelo


convívio com os mais humildes, serviriam de inspiração para a composição do texto do
autor baiano. No contexto social específico do ano de 1937, os elementos da produção
literária do escritor se deparavam, entretanto, com a ascensão do regime totalitário do
Estado Novo.
O romance da malta de jovens abandonados das areias do cais completou 80
anos, desde sua primeira edição publicada pela Livraria José Olímpio (TAVARES,
1983, p.69). Seu lançamento foi logo acompanhado pela proibição de sua distribuição,
com apreensões em série nas livrarias do Rio de Janeiro.49 Em uma praça pública de
Salvador, uma pira com mais de 800 exemplares do livro foi erguida por ordem da
Sexta Região Militar no dia 19 de novembro de 1937.50 No mesmo ritual de cremação
literária, 267 volumes de Jubiabá (1935), outro romance de autoria de Amado, também
foram reduzidos às cinzas na capital baiana.51
A cremação assumia não apenas o caráter de censura, mas de purificação das
ideias do intitulado credo vermelho até sua completa extinção pelo fogo. Sua mostra
pública acompanhava uma insidiosa necessidade de exibição do ideário condenado, a
servir de exemplo para a sociedade baiana da época.52
O perfil incendiário de Capitães traz da marginalização para o centro da
narrativa a evolução do bando de personagens abandonados. Aqueles que poderiam ser

49
TÓXICOS do Espírito. O Globo. 08 de Dezembro de 1937. Rio de Janeiro, edição matutina, p.4.
50
INCINERADOS vários livros considerados propagandistas do credo vermelho. Os livros de Jorge
Amado e José Lins do Rego foram os mais atingidos. Jornal do Estado da Bahia. Salvador, 17 dez. de
1937, p.3.
51
Ibidem, p.3.
52
INCINERADOS na Bahia vários livros considerados propagandistas do credo vermelho. Os livros de
Jorge Amado e José Lins do Rego foram os mais atingidos. O Combate. Maranhão, 22 dez.1937, p.4.

123
tidos como menores desvalidos pela sorte, a praticar furtos, ganham densidade,
desprendimento e disposição no interior do grupo em formação.

2. Capitães da Areia: um espaço de desafio à lógica do sistema

Em meio à desgraça e à orfandade social, do conjunto de moleques que surgem


regras de convivência mantidas pela liderança de Pedro Bala. Além disso, apenas seus
integrantes recebem codinomes no enredo amadiano. Trata-se de ―uma lógica de
denominação identificada pela diferença‖ (ANDRADE, 2004, p.91). A construção das
características dos membros do grupo segue o ritmo daquilo que difere. Antônio
Cândido assinala a composição dessa diferença nas figuras na prosa de ficção em
oposição à integração:

A integração é o conjunto de fatores que tendem a acentuar no indivíduo ou no


grupo a participação nos valores comuns da sociedade. A diferenciação, ao
contrário, é o conjunto dos que tendem a acentuar as peculiaridades, as diferenças
existentes em uns e outros (CÂNDIDO, 2011, p. 33).

Um jeito de viver nascerá da dispersão pela distinção nas andanças citadinas de


cada personagem, assim como do recolhimento de todos no mesmo local, um trapiche
abandonado. ―Ali estavam mais ou menos cinquenta crianças, sem pai, nem mãe, sem
mestre. Tinham de si apenas a liberdade de correr as ruas.‖ (AMADO, 2008, p.46). Esta
liberdade e aprendizagem tirada de si, da prática de golpes do grupo, afirma uma
estratégia de sobrevivência para a superação cotidiana da precariedade. O risco
assumido parece se inscrever na busca dos menores para transcender a condição
miserável em que vivem (GOMES, 1998, p.54).
O campo de ação estratégico dos excluídos vai incorporar uma atuação conjunta
que se distingue dos demais grupos sociais. Os diversos quadros do romance são
antecedidos por um prólogo que abre matérias de jornais de repulsa aos capitães. A
reação pública nessas reportagens mostrará um pouco da formação de um pequeno
grupo que concorre com o aparelho do Estado centralizador. No plano de percepção de
Gilles Deleuze e Félix Guattari, as maltas e os bandos também apresentariam uma
configuração rizomática que, por sua vez, seria distinta da formação e dos alicerces sob
os quais se erguem as sociedades centralizadas:
As maltas, os bandos são grupos do tipo rizoma, por oposição ao tipo
arborescente que se concentra em órgãos de poder. É por isso que os bandos
em geral, mesmo de bandidagem, ou de mundanidade, são metamorfoses de
uma máquina de guerra, que difere formalmente de qualquer aparelho de

124
Estado, ou equivalente, o qual, ao contrário, estrutura as sociedades
centralizadas (DELEUZE; GUATTARI, 1997, p.16).

A trama da formação rizomática do grupo de menores seria publicada em


setembro de 1937 (TAVARES, 1983, p.32), pouco antes da instauração do Estado Novo
em 10 de novembro de 1937. Haverá uma tensão entre o confinamento e a liberdade. O
contraste entre o reformatório e a formação paralela da gangue oferece narrativas da
dissociação entre duas estruturas.
As práticas dos menores no enredo se expressavam por linhas de ruptura, vetores
de desorganização em pleno regime varguista. O sentido traçado por essas linhas de
fuga não se desenvolve, entretanto, apenas no sentido escapatório, como se nota no
alerta de Deleuze: ―Fugir não é renunciar as ações, nada mais ativo que uma fuga. É o
contrário do imaginário. É também fazer fugir, não necessariamente os outros, mas
fazer alguma coisa fugir, fazer um sistema vazar como se fura um cano” (DELEUZE;
PARNET, 1998, p.30).
Os golpes, furtos e artimanhas do segmento de menores, à margem do Estado, se
não ofereciam outra lógica ou ruptura do sistema, pareciam apresentar a procura da
transição das contingências. Nas revoltas da marginalidade dos menores, porém, estava
a busca pela felicidade.

3. O sentido mais elevado das práticas da margem

Outros artistas, assim como o escritor, já quiseram homenagear essa busca por
traz do comportamento de revolta do indivíduo marginal, como revela textualmente
Hélio Oiticica:

Eu quis homenagear o que penso que seja a revolta individual social: a dos
chamados marginais. Tal ideia é muito perigosa, mas algo necessário para
mim: existe um contraste, um aspecto ambivalente no comportamento do
homem marginalizado: ao lado de uma grande sensibilidade está um
comportamento violento e muitas vezes, em geral, o crime é uma busca
desesperada por felicidade (OITICICA, 1968 apud SCHOLLHAMMER,
2008, p.60).

A série de trabalhos artísticos de Oiticica, empreendidos ao longo da década de


sessenta (OITICICA, 1986, pp.19-83), deram origem ao movimento cultural conhecido
como Marginália, sintetizado pela frase estandarte ―seja marginal, seja herói‖53. O
artista plástico também escrevera sobre o sentido da revolta visceral dos anti-heróis do

53
Disponível em: < http://tropicalia.com.br/ruidos-pulsativos/marginalia > Acesso em: 15 jan.2018.

125
anonimato.54 Símbolo da opressão social dos anos de chumbo, seu trabalho artístico
intitulado ―Homenagem a Cara de Cavalo‖ destacava a estética de uma sociedade que
perseguia notórios marginais, tanto quanto marginalizava aqueles que não eram
lembrados.55 No caso, entretanto, do romance daqueles que dormiam no trapiche
abandonado uma ambivalente e suposta delinquência chegará a promover a libertação
de um objeto, dos mais sagrados.
No capítulo Aventura de Ogum, uma batida policial apreende a imagem do orixá
do altar de um templo de candomblé, para a angústia da yalorixá Don‘Aninha. Seu
clamor ardia de indignação, assim como queimaram páginas daquela trama em
Salvador:

Não deixam os pobres viver... Não deixam nem o deus dos pobres em paz.
Pobre não pode dançar, não pode cantar para seu deus, não pode pedir uma
graça a seu deus – sua voz era amarga, uma voz que não parecia da mãe de
santo Don‘Aninha. – Não se contentam de matar os pobres de fome. Agora
tiram os santos dos pobres... – e alçava os punhos (AMADO, 2008, p.97).

O lamento da mãe de santo destaca, sobretudo, aquilo que Jorge Amado


descreverá como ―imprecações contra os ricos e a polícia‖ (AMADO, 2008, p.97). Mas
a cena do confisco da imagem receberá uma reviravolta pela engenhosidade em meio à
clandestinidade. Um ilustre professor da faculdade de medicina, procurado pela
personagem, pretendia recuperar o objeto de culto apenas para sua coleção de ídolos
negros e não para restituí-lo ao altar religioso de onde havia sido retirado (AMADO,
2008). Porém, apenas o líder dos delinquentes, Pedro Bala, consegue reaver a imagem
sagrada.
A façanha só é possível porque o próprio personagem, propositalmente, se deixa
ser detido por um policial. Após encontrar a representação de Ogum próxima à sala dos
detentos, em meio a outros itens, provenientes da prática dos mais diversos crimes, o
líder dos capitães da areia realiza uma proeza audaciosa. Furtivamente, Pedro Bala
consegue ocultar a pequena imagem do Orixá em um paletó para sua retirada da sede
policial. Posto em liberdade, à margem de tudo, apenas assim a restituição do objeto
sagrado torna-se possível ao povo de santo.

54
OITICICA, Hélio. Heróis e Anti-Heróis. Diário de Notícias. Segunda Seção. Rio de Janeiro, 10
abr.1968, p.3.
55
Disponível em:
<http://54.232.114.233/extranet/enciclopedia/ho/index.cfm?fuseaction=documentos&cod=145&tipo=2>
Acesso em: 21 jan. 2018.

126
Subsiste, assim, algo mais elevado do que o simples furto no risco assumido
pelos personagens da trama (DUARTE, 1996, p.115). O jeito para lidar com carência de
recursos e de acesso à formação básica será a transgressão e a clandestinidade. Professor
tungará e surrupiará livros para recontar suas histórias aos companheiros de orfandade:

João José, o Professor, desde o dia em que furta um livro de histórias numa
estante de uma casa na Barra, se tornara perito nestes furtos. Nunca, porém,
vendia os livros, que ia empilhando num canto no trapiche, sob tijolos, para
que os ratos não os roessem. Lia-os todos numa ânsia que era quase febre (...)
no entanto, só estivera na escola ano e meio. Mas o treino diário da leitura
despertara completamente sua imaginação e talvez fosse o único que tivesse
uma certa consciência do heroico das suas vidas (AMADO, 2008, p. 32).

4. Jubiabá: raízes das narrativas para a superação da precariedade

Capitães da Areia terá pontos de contato acentuados com um romance


antecedente do escritor. Publicado um ano antes de Raízes do Brasil, Jubiabá (1935)
abre a temática do grupo de moleques de rua, liderados por sua vez pelo protagonista,
Antônio Balduíno.
Trata-se de um dos primeiros enredos da literatura brasileira a projetar um afro-
brasileiro como personagem principal. Baldo age muitas vezes emanado por puro
instinto, tangido pelo ímpeto das vibrações do coração desde o início do texto, ao atuar
como boxeador. Traços da cordialidade apontada por Sérgio Buarque, no sentido da
orientação pelo coração, já transbordavam na ativa postura da figura principal do texto,
pelas sete fases de sua travessia contada.
Como esclareceu o escritor de Raízes do Brasil em carta a Cassiano Ricardo, a
raiz etimológica da cordialidade56, traço da formação social brasileira, se expressa pelos
dois extremos do coração. ―A inimizade bem pode ser tão cordial como a amizade, visto
que uma e outra nascem do coração, procedem, assim, da esfera do íntimo, do familiar,
do privado‖ (HOLANDA, 2007, p. 205).
A disposição que habita no peito do protagonista desata um jeito autodidata para
comprar um sapato novo que encontrara na feira da Água de Meninos. Nos caminhos da
malandragem inventaria canções extraídas do seu íntimo, contando apenas com seu
chapéu de palha como percussão: ―Muitas vezes, quando andava pelas ruas da cidade
nos seus passeios malandros, ele começava a bater num chapéu de palha uma música

56
Do latim cor, cordis: cordialidade (TORRINHA, 1945, p.322).

127
que inventava e ia cantando uma letra, tudo tirado de sua cabeça” (AMADO, 2016,
p.80).
Uma dupla dessas músicas seria vendida no silêncio da informalidade a um
poeta que já contava com certa notoriedade nas rádios. Sem acesso aos meios de
comunicação da época, Antônio Balduíno nem desconfiaria da grande recepção de seus
sambas nas mais escutadas estações. Os créditos e a autoria dessas composições,
entretanto, seriam atribuídos integralmente a quem os comprou57 quase pelo preço do
par de pisantes da histórica feira de Salvador (AMADO, 2006, p.80-81).
Já o ingresso do principal personagem do romance nos picadeiros decorreria
apenas de contrato verbal que prometia “casa, comida e dinheiro quando houvesse
dinheiro” (AMADO, 2006, p.194). O Grande Circo Internacional estava na lona, sem
recursos. Quando se deparou com a escassez da companhia circense, conhecendo um
dos sócios, Baldo seria indagado por uma das integrantes acerca do motivo pelo qual
teria se metido na empreitada, apesar da ausência de recursos:
- (...) Mas porque veio se meter aqui? Aqui não tem dinheiro...
- Vim para servir a um amigo... – bateu no ombro de Luigi - um amigo certo...
- Ah, só se for assim (AMADO, 2006, p.196).

A opção paralela, do vínculo sem compromisso, era sustentada na escassez pelo


“poder livre e desimpedido dos laços de amizade e compadrio” (DAMATTA, 1997,
p.149). A incerteza, a falta de estrutura, a ausência de condições de vida, todas essas
incidências marcavam a dura realidade. Porém, o desafio da superação das
circunstâncias ganhava certo alento a partir do lado positivo do companheirismo.
Seria necessário contornar a difícil situação financeira do circo. Uma luta na
arena central do picadeiro com a participação do grande lutador Balduíno, o gigante
negro, seria anunciada. A promessa incorporava o pagamento de cinco contos de reis, na
arena central do picadeiro, a quem desafiasse e vencesse a nova atração da companhia.
Indagado com insistência sobre três meses de salários atrasados devidos à
trapezista, o dirigente do circo apelava ao argumentar para a integrante se equilibrar por
amor a arte ou pelo valor das palmas:

- Também você só sabe pedir dinheiro... E a arte não vale de nada? No meu tempo
a gente ganhava pelas palmas, pelos aplausos, pelas flores. Flores, está ouvindo?
Flores... Eram as moças que jogavam flores. Lenços bordados... Eu podia ter uma
coleção se quisesse... Mas eu não ligo para essas coisas. Naquele tempo se pensava
em arte. Um trapezista era um trapezista... (AMADO, 2006, p. 197).

57
Nas ladeiras do morro, a venda das modinhas e sambas dos malandros aos sambistas célebres também é
contada em Capitães da Areia (AMADO, 2008, p. 167).

128
Assim, o protagonista de Jubiabá prescinde de qualquer formalidade, mesmo
sem contar com o prometido vintém, até a dissolução da companhia circense. A
amizade o movia a permanecer no primeiro momento. Ao fim, seu desprendimento
atravessaria igualmente os impulsos do coração. A busca pela felicidade acompanhava o
olhar da bailarina Rosedá:

Rosenda Rosedá olhava lá de trás o negro Antônio Balduíno. Não havia


cinco contos, não havia nem salário, mas havia o corpo quente de Rosedá,
a incomparável. E Balduíno se sentiu feliz. Se conseguisse ser o chefe da
euterpe estaria completamente feliz (AMADO, 2006, p. 213).

Num ritmo alternativo, o protagonista se lança e se adapta sem ritos. Com o


mesmo ímpeto, experimenta uma figuração no circo e subirá aos ringues, apenas com a
“rebeldia como meio e a procura como fim” (DUARTE, p.78, 1996). Apesar de não
personificar propriamente o arquétipo do malandro, Balduíno, que já vivera nas ruas,
atravessará a carência e a miserabilidade inspirado por forte senso de desapego. Assim
como a figura folclórica de Pedro Malasartes, transformará “a imobilidade da miséria
numa venturosa vida de viajante sem pouso nem casa” (DAMATTA, 1983, p.70).

5. O sentido dos gestos do protagonista como expressão do movimento


dos anônimos

Tão logo lançado em 1935, o romance do órfão, boxeador e poeta de A.B.C.58


já era enaltecido por aquilo que parecia sintetizar o movimento corporal por conta
própria das figuras do enredo, sem qualquer manipulação: ―Um grande sopro poético
atravessa o livro dando-lhe extraordinária beleza. As figuras são vivas. Movem-se por
conta própria, se movimentam, sem que ninguém puxe seus cordéis”59.
O deslocamento age como recurso à má sorte que tange o personagem central
desde sua infância vivenciada no morro do Capa Negro. A imagem da mola, como
elemento que dá flexibilidade e caracteriza a narrativa, já foi atrelada à própria ação de
Baldo, que precisará se esquivar dos golpes das adversidades:
A rapidez com que o personagem se desvia de um golpe para desfechar outro
logo em seguida se insere na dimensão de intensa mobilidade que o caracteriza
em toda a narrativa. A imagem da mola é significativa não apenas do gesto
decisivo para a definição do combate inicial, mas aponta para o procedimento
básico de condicionar os constantes deslocamentos a vitória nas lutas maiores

58
As canções em formato A.B.C. compostas pelo personagem eram formadas por quadras que se
iniciavam por uma letra do alfabeto (AMADO, 1972, p.48).
59
JUBIABÁ o novo romance de Jorge Amado. A Manhã. Rio de Janeiro, 08 nov. 1935. p. 16.

129
que irão se seguir. Metáfora privilegiada, a mola representa a positividade
impulsionadora que move Jubiabá e aponta para de percurso ascensional
entranhada na própria estrutura do romance. Quanto a Balduíno, a agilidade
não está só no corpo do personagem ou nos vários papeis que desempenha
(DUARTE, 1996, p.78).

Albert Camus em 1939 também receberia com entusiasmo o livro de Amado de


1935. Dentre outras, sua crítica ao texto destaca uma combinação de gestos e um
movimento que por si só dispensa qualquer comentário:

Que ninguém se engane. Não se pode falar em ideologia num romance


onde toda a importância é dada à vida, isto é, a um conjunto de gestos e
gritos, a uma harmonia entre impulsos e desejos, a um equilíbrio do sim e
do não e a um movimento apaixonado que dispensa qualquer comentário
(CAMUS, 1939 apud RAILLARD, 1990, p.120).

A história social lida principalmente com o sujeito que dá movimento à própria


história e ao coletivo (FRAGA FILHO, 2004, p. 92). O indivíduo não é encarado como
passageiro dos acontecimentos no contexto em que vive. O historiador social começará,
sobretudo, a buscar a riqueza das fontes de pesquisa dos chamados atores anônimos:

Os olhares começam a se voltar para atores anônimos, que efetivamente


fizeram sua história, mas não deixam registros convencionais, ou neles
aparecem como objetos de discursos de forças hegemônicas. Assim,
camponeses, operários, mulheres, crianças, velhos, loucos, enfermos,
prostitutas, vadios, marginais, revolucionários e desordeiros ingressam nas
narrativas históricas (SILVA, 2015, p.45).

A perspectiva dos excluídos, marcados pelas contingências historicamente


constituídas, das margens do sistema social assume um sentido no centro das narrativas
amadianas. A negativa das condições materiais de vida que atravessam as figuras dos
dois romances abordados não os impede, entretanto, de assumir um sentido afirmativo.
A prosa de ficção de Amado adquire, assim, pontos de contato com a proposta de
vanguarda da historiografia, ao enxergar o movimento dos mais humildes de forma
ativa.
Esse movimento assumirá o viés da paixão matizada por um conjunto de gestos
que desliza pelas páginas de Jubiabá. O feitio da luta dos personagens, com
maleabilidade e a transgressão das convenções sociais, será narrado. A lógica de uma
formação paralela às verticalizações do sistema e as estratégias para superação da
precariedade serão traçadas. Este leque de ações que se abre na leitura dos dois
romances traz a lume novos significados do sentido do jeito incorporado pelos
vulneráveis. A representação literária dessa dinâmica, contudo, não foi forjada sem a
observação dos exemplos do dia-a-dia.

130
6. Um exemplo extraliterário do escritor sobre o paradigma do
“jeitinho”

Em entrevista concedida a Folha de São Paulo, Jorge Amado acentuou a


importância da presença do paradigma do ―jeitinho‖ na vivência brasileira, a partir de
um exemplo de afeto nutrido por seu filho60:

– "O jeitinho" sempre foi criticado. A mudança, o "não-jeitinho", não


estaria levando a nada melhor. É isto?
– A nada, nada, nada. A pequena transgressão da lei é sempre necessária. A
lei às vezes é ruim. Eu sempre desobedeci à lei.
– Exemplos, por favor.
– Quando meu filho João nasceu, eu e Zélia não éramos casados. Ela
separada e eu desquitado. Não havia divórcio. Não podíamos nos casar. O
filho desse casamento era adulterino. Eu fui ao cartório, registrei João
como filho legítimo e estava cometendo um crime. Pouco me importava. O
que importava era o menino.
Esta amostra retirada da realidade das relações de afeto questiona a adesão
irrefletida a uma legislação impregnada por contradições. Não se trata de apologia à
transgressão em todos os momentos. Há, entretanto, uma proposta para contornar
determinadas situações de proibição. Como já assinalou Roberto DaMatta, Jorge
Amado expressa por conta própria ou por meio de seus personagens uma atitude
hedonística e aberta diante dos fatos da vida e da sociedade (DAMATTA, 1983, p.18).
Uma das facetas do vocábulo ―jeitinho‖ já foi identificada no modo de realizar a
superação de uma série de ambiguidades na aplicação de uma legislação específica a
determinado caso, com implicações nas instâncias pessoais e impessoais:

O ―jeito‖ é um modo e um estilo de realizar. Mas que modo é este? É


lógico que ele indica algo importante. É, sobretudo, um modo simpático,
desesperado ou humano de relacionar o impessoal com o pessoal; nos
casos – ou no caso – de permitir juntar um problema pessoal (atraso, falta
de dinheiro, ignorância das leis por falta de divulgação, confusão legal,
ambiguidade do texto da lei, má vontade do agente da norma ou do
usuário, injustiça da própria lei, feita para uma dada situação, mas aplicada
universalmente etc.) com um problema impessoal. Em geral, o jeito é um
modo pacífico e até mesmo legítimo de resolver tais problemas,
provocando uma junção inteiramente casuística da lei com a pessoal que a
está utilizando. O processo é simples e até mesmo tocante (DAMATTA,
1986, p.66).

60
AMADO, Jorge. "Fim do jeitinho só piora o país". Folha de São Paulo, 24 abr.1994. Entrevista
concedida a Bob Fernandes.
Disponível em: < http://www1.folha.uol.com.br/fsp/1994/4/24/revista_da_folha/8.html >. Acesso em: 16
jan. 2018.

131
Como estilo de navegação social (DAMATTA, 1986, p.63) os exemplos da
expressão do ―jeitinho‖ indicam que não há uma fórmula síntese, positiva ou
depreciativa, para expressar um processo que advém da consistência prática do dia-a-
dia. As narrativas literárias de Jorge Amado, inspiradas nas situações do cotidiano,
refiguram os sentidos que acompanham as diversas acepções dos jeitos que marcam as
potencialidades do real.

7. Considerações finais.

As etapas da vida dos protagonistas dos dois romances abordados já foram


interpretadas na chave da tomada de consciência da luta de classes e da formação do
processo histórico. O sentido da trajetória das duas figuras só se revelaria no desenlace
dos capítulos finais dos dois livros. O papel de liderança assumido por cada qual nos
dias de greve seria o ponto de chegada dos dois romances (GOMES, 1981, p.119).
Balduíno e Pedro Bala teriam em comum, assim, o paralelo da aprendizagem que os
levaria da malandragem à militância, da infância lúmpen à luta proletária (DUARTE,
1996, p.112-113).
Todavia, o foco das narrativas suscitadas ao longo deste artigo procurou lançar
novos significados da vivência dos dois personagens bem antes das seções finais das
duas obras. O sentido dos gestos, dentre as distintas expressões dos recursos da
subjetividade dos mais vulneráveis, procurou ser descortinado na tessitura dos diálogos
selecionados. As peregrinações pelas ruas, longe de uma busca peripatética ou alienada
do valor social dos diversos tipos criados por Jorge Amado, expressa a resiliência
nômade na superação da imobilidade da miséria.
A reflexão sobre o significado dos atos das mais desprovidas figuras
também foi realizada no texto por dois ângulos. Sob a perspectiva da revolta dos anti-
heróis do anonimato caracterizada por Oiticica61, assim como sob o prisma do
movimento dos chamados atores anônimos investigados pela historiografia social
(SILVA, 2015, p.45).
O paradigma da cordialidade, traço da formação social brasileira relacionado ao
coração (HOLANDA, 2007, p. 205), foi articulado aos impulsos do afeto e desafeto,

61
OITICICA, Hélio. Heróis e Anti-Heróis. Diário de Notícias. Segunda Seção. Rio de Janeiro,
10 abr.1968, p.3.

132
matizado pela esquiva das convenções sociais protagonizadas por Balduíno. O exemplo
formulado por Amado, como amostra das múltiplas formas de expressão do ―jeitinho‖,
revela uma faceta dessa espécie de navegação social (DAMATTA, 1983, p.63) que
procura contornar os impasses derivados de situações específicas de proibição.
A lógica da formação paralela às verticalizações do sistema, evidenciada no
interior do grupo dos capitães, sugere a incorporação de um campo de contrapoder às
estruturas centralizadas do Estado. Pelas beiradas do sistema, um jeito de levar a vida se
expressa pela edificação criativa dos expedientes encontrados nas duas histórias
contadas por Amado.
No silêncio da informalidade, quem pouco tem seguirá seu ritmo para tapear o
rigor de uma sociedade que marginaliza as diferenças. Para lidar com a má sorte, será
preciso descobrir o truque que permite a dobra dos rigores de cada situação de proibição
social específica. No campo minado pela falta, há de existir uma fissura para aqueles
que procuram contornar as adversidades.

Referências:

AMADO, Jorge. Cidades do Brasil. A Manhã, Rio de Janeiro, 15 set. 1935, p. 3.

AMADO, Jorge. Jorge Amado Povo e terra: 40 anos de literatura. São Paulo: Martins,
1972.

AMADO, Jorge. "Fim do jeitinho só piora o país". Folha de São Paulo, 24 abr.1994. Entrevista
concedida a Bob Fernandes.
Disponível em: < http://www1.folha.uol.com.br/fsp/1994/4/24/revista_da_folha/8.html >. Acesso em: 16
jan. 2018.

ANDRADE, Celeste M. P. de. Capitães da Areia: o texto literário entre a história e a ficção. In.
RAMOS, Ana Rosa N. et al. Capitães da Areia II curso Jorge Amado Salvador: Fundação Casa Jorge
Amado, 2004, p. 83-93.

RAILARD, Alice. Conversando com Jorge Amado. Rio de Janeiro: Record, 1990.

CÂNDIDO, Antônio. Literatura e sociedade: estudos de teoria e história literária. 12 ed. Rio de Janeiro:
Outro Sobre Azul, 2011.

GOMES, Álvaro C. Jorge Amado. Coleção Literatura Comentada. São Paulo: Abril Educação, 1981.

DAMATTA, Roberto. Carnavais, malandros e heróis: para uma sociologia do dilema


brasileiro. 6 ed. Rio de Janeiro: Rocco, 1997.

DAMATTA, Roberto. Dona flor e seus dois maridos: um romance relacional. Revista
Tempo Brasileiro. Jul.- Set; Rio de Janeiro: 1983, p.3-31.

133
DAMATTA, Roberto. O que faz do Brasil, Brasil? Rio de Janeiro: Rocco, 1986.

DELEUZE, Gilles; PARNET, Claire. Diálogos. Tradução de Eloisa Araujo Ribeiro. São
Paulo: Escuta, 1998.

DUARTE, Eduardo de Assis. Jorge Amado: romance em tempo de utopia. Rio de janeiro: Record, 1996.

FRAGA FILHO, Walter. Meninos vadios, moleques e peraltas na Bahia oitocentista. In. RAMOS, Ana
R. N. et al. Capitães da Areia II curso Jorge Amado Salvador: Fundação Casa Jorge Amado, 2004, p. 61-
82.

HOLANDA, Sérgio Buarque de. Raízes do Brasil. 26 ed. São Paulo: Companhia das Letras, 2007.

INCINERADOS na Bahia vários livros considerados propagandistas do credo vermelho. Os livros de


Jorge Amado e José Lins do Rego foram os mais atingidos. O Combate. Maranhão, 22 dez.1937.

INCINERADOS vários livros considerados propagandistas do credo vermelho. Os


livros de Jorge Amado e José Lins do Rego foram os mais atingidos. Jornal do Estado
da Bahia. Salvador, 17 dez. de 1937.

JUBIABÁ o novo romance de Jorge Amado. A Manhã. Rio de Janeiro, 08 nov. 1935. p. 16.

OITICICA, Hélio. Aspiro ao grande labirinto. Rio de Janeiro: Rocco, 1986.

OITICICA, Hélio. Heróis e Anti-Heróis. Diário de Notícias. Segunda Seção. Rio de


Janeiro, 10 abr.1968, p.3.

SILVA, Paulo Santos. O romancista como historiador: Jorge Amado e a história. In.
FRAGA, Myriam; FONSECA, Aleilton; HOISEL, Evelina [organizadores]. Jorge
Amado: política e literatura. Salvador: Casa de Palavras, 2015, p. 35-50.

SCHOLLHAMMER, Karl Erik. Breve mapeamento das relações entre violência e


cultura no Brasil contemporâneo. In: DALCASTAGNÈ, Regina [organizadora]. Ver e
imaginar o outro: alteridade, desigualdade, violência na literatura brasileira
contemporânea. Vinhedo: Horizonte, 2008.

TORRINHA, Francisco. Dicionário português-latino. 2 ed. Porto: Editorial Domingos


Barreira, 1945.

TÓXICOS do Espírito. O Globo. Rio de Janeiro, 08 de dez. 1937, edição matutina, p.4.

134
As Mídias Digitais e o Uso das Redes Sociais na Produção de Novos
Formatos de Discurso e Atuação nas Favelas Cariocas
Thamyra Thâmara de Araújo62

RESUMO

Nos últimos anos, o barateamento de dispositivos eletrônicos junto com a sua


popularização fez com que grande parte dos jovens de origem popular começasse a
acessar internet de seus próprios celulares com conexão e computadores pessoais. O uso
da internet e das novas tecnologias significa não apenas apropriação por parte dessa
juventude favelada como também a possibilidade de ressignificar seu território,
fortalecendo e dando visibilidade às suas práticas culturais. Uma vez que a comunicação
não é neutra, ela reflete escolhas, visão de mundo e denota comportamentos culturais.
Além do acesso à internet dentro da favela, as novas mídias têm apontado outros
formatos da reivindicação de direitos, da comunicação e da atuação nas favela. Eles, os
moradores destes locais periféricos, estão narrando suas próprias histórias e do seu
território; se denominam como ativistas, comunicadores populares e independentes e se
sentem participando e atuando nas decisões da cidade. Quando se sentem injustiçados, a
indignação vai para o Facebook; quando ficam horas na fila para serem atendidos no
hospital, a reclamação se transforma num post no Twitter para o prefeito. O tapa na cara
dado por um policial agora está gravado e é postado no Youtube. Dessa forma, entender
como as mídias digitais têm alterado as maneiras de comunicar e produzir dentro dos
territórios é fundamental. Além de entender como essa comunicação, no ambiente
virtual, são significadas dentro e fora dele.

Palavras Chaves: Favela; Mídias Digitais; Redes Sociais; Discurso; Poder;


Multiterritorialidade.

Introdução

62
Thamyra Thâmara é jornalista, co-fundadora do GatoMÍDIA e mestra em cultura e territorialidade pela
Universidade Federal Fluminense. Faz parte da equipe do AWA, workshop de Comunicação Criativa
Classe C e D. E acredita que "quem desde cedo aprende a fazer com o que não tem, quando tem
multiplica". Seus temas de estudo e interesse são: processos criativos, gambiologia, a arte de se virar e
comunicação criativa.

135
Em 2013, no mestrado em Cultura e Territorialidade pela Universidade Federal
Fluminense, eu dava início a uma pesquisa no Complexo do Alemão sobre os coletivos
de fotografia que utilizavam a fotografia para se autorrepresentarem. A pesquisa
analisava a produção fotográfica do coletivo Foto Clube Alemão e tinha o objetivo de
entender o significado dessas representações dentro da comunidade, uma vez que eles
buscavam criar outras representações sobre o território que valorizassem a autoestima e
as relações sociais. No doutorado, o desejo é continuar a pesquisa no Complexo do
Alemão, mas a partir da perspectiva dos coletivos de comunicação, em específico o
Coletivo Papo Reto. A partir daí entender como essa comunicação produzida por eles
nas redes sociais tem significado dentro e fora da favela, criando conexões com outras
favelas e cidades do mundo. Além do trabalho como jornalista sou co-fundadora do
GatoMÍDIA, espaço de aprendizado em mídia e tecnologia para jovens negros e de
espaços populares. Tendo como tema de interesse mídias sociais, processos criativos,
gambiologia, a arte de se virar e comunicação criativa.
Na última década vem crescendo o número de comunicadores populares nas
favelas do Rio de Janeiro: favelados que se denominam como tal, e que falam do seu
lugar de moradia, do seu jeito, do seu olhar, e na sua linguagem, seja através de jornal e
rádio comunitária ou através de um perfil numa rede social. Segundo a Pesquisa de
hábitos e práticas culturais de jovens residentes em cinco favelas cariocas, organizada
pelo projeto Solos Culturais63, vinculado a ONG Observatório de Favelas, realizada em
2012, em cinco favelas do Rio de Janeiro (Rocinha, Cidade de Deus, Complexo do
Alemão, Complexo da Penha e Manguinhos), 90% dos moradores entre 15 a 28 anos
têm acesso à internet. Entre as redes mais usadas estão Facebook e Youtube. A internet
é usada por esses jovens tanto para baixar filmes e músicas como para veicular seus
próprios vídeos, incentivando o compartilhamento de ideias e a produção cultural. De
acordo com a pesquisa Lan House na favela: Cultura e práticas sociais em Acari e no
Santa Marta, desenvolvida pela historiadora Pamella Passos, em 2007 as Lan Houses
foram apontadas como responsáveis por 49% dos acessos à internet no país. Equipadas
com computadores conectados à internet e cobrando por suas horas de uso, esses
estabelecimentos espalharam-se rapidamente nas favelas assumindo importante papel no
debate sobre inclusão digital nestes territórios. Nos últimos anos, o barateamento de

63
Solos Culturais / organizadores: Jorge Luiz Barbosa e Caio Gonçalves Dias; ilustrações de
Paula Santos – Rio de Janeiro: Observatório de Favelas, 2013.

136
dispositivos eletrônicos junto com a sua popularização fez com que grande parte dos
moradores de favela começasse a acessar internet de seus próprios celulares com
conexão e computadores pessoais, fazendo com que as Lan Houses perdessem espaço
ainda que continuem a representar um importante lugar de sociabilidade de adolescentes
e jovens nas favelas cariocas, uma vez que a Lan House além de ser uma espaço de
acesso ao computador e conexão à internet, também é um lugar de jogos, troca e
encontros.
Em 2013, pesquisa no Ibope/YouPix64 mostrou que 92% dos jovens do Brasil
que acessam a internet usam as redes sociais. Twitter, Facebook e YouTube estão entre
as plataformas mais utilizadas, onde o uso brasileiro só perde para o dos Estados
Unidos. Segundo a mesma pesquisa, o Facebook tem 73,5% da audiência das redes
sociais, totalizando 76 milhões de usuários no Brasil. O uso da internet e das novas
tecnologias significa não apenas apropriação e consumo por parte dessa juventude
favelada como também a possibilidade de ressignificar seu lugar de moradia,
fortalecendo e dando visibilidade às suas práticas culturais. Uma vez que a comunicação
não é neutra, ela reflete escolhas, visão de mundo e denota comportamentos culturais.
As possíveis narrativas postadas no perfil de uma rede social, tanto como um vídeo
produzido e carregado no Youtube, carregam consigo uma parcela importante na
elaboração de subjetividades e materialização de experiências.
Hoje um jovem de favela não apenas faz download (baixar arquivo da internet)
quando acessa a internet como constantemente tem feito upload (subir arquivos para
internet) das suas produções seja por meio de um vídeo, fotografia, música, ou outros,
possibilitando uma abertura no acesso aos novos meios de produção, de informação e de
produção de conhecimento a várias camadas da sociedade. Além do acesso à internet
dentro da favela, as novas mídias tem apontado outros formatos de se comunicar,
reivindicar direitos e se conectar com jovens de outras favelas do Brasil e do mundo.
As manifestações em junho de 2013 evidenciaram como as redes sociais, em
especial o Facebook, podem constituir uma arena de debate, reivindicação de direitos,
compartilhamento de informações e, principalmente, trazer visibilidade às denúncias
dentro das favelas e periferias. Como foi o caso do desaparecimento do Amarildo,
morador da favela da Rocinha:

64
http://www.ibope.com.br/pt-br/noticias/paginas/ibope-media-e-conecta-apresentam-perfil-do-jovem-
brasileiro-no-youpix-festival-2013.aspx

137
Entre os dias 13 e 14 de julho de 2013, uma operação batizada de Paz
Armada65 mobilizou 300 policiais na Rocinha e prendeu suspeitos sem
passagem pela polícia, logo depois de um arrastão ocorrido nas
proximidades da favela. Na época, 30 pessoas foram presas, entre elas
Amarildo66.

Amarildo Dias de Souza, ajudante de pedreiro morava com a sua mulher e mais
seis filhos num barraco de um cômodo só no alto da favela da Rocinha. Ele havia
acabado de voltar de uma pescaria e foi detido e conduzido por policiais militares da
Unidade de Polícia Pacificadora (UPP) e desde então nunca mais sua família o viu. O
desaparecimento do morador da Rocinha, Amarildo, junto com a pressão dos familiares
para solucionar o caso, articulado com as manifestações de rua que estavam em curso
no Rio de Janeiro e no Brasil, acabou culminando na Campanha Cadê o Amarildo?67.
Por meio das redes sociais, um caso, não isolado, de desaparecimento numa
favela do Rio de Janeiro, muitas vezes invisibilizada, tomou proporção maior. Pessoas
do Brasil e de outros países começaram a colocar em seus perfis pessoais fotos com
cartazes com a seguinte frase „Cadê o Amarildo?‟. Essas imagens veiculadas nas redes
sociais incentivaram cada vez mais outras pessoas a fazerem o mesmo, tornando
possível o compartilhamento da ideia em grande escala. A hashtag #CadeoAmarildo,
como uma forma de pergunta ao estado e polícia sobre o desaparecimento dele,
apareceu entre os temas mais falados e comentados no Twitter em julho de 2013 e se
materializou em cartazes e faixas pelas ruas da metrópole e até nas ruas do mundo. Com
a pressão popular e a visibilidade que o caso teve na mídia internacional, acabou
tornando possível a prisão dos policiais envolvidos na morte de Amarildo. Porém, o
corpo até hoje não foi encontrado.

O Caso Amarildo e seus desdobramentos evidenciam como o uso das redes


sociais tem trazido para o debate nacional e internacional, demandas locais como a do
Amarildo e de outros moradores de favelas. O que é uma consequência direta do próprio
avanço tecnológico e a possibilidade de se conectar e compartilhar informações com
pessoas de qualquer lugar do mundo. Assim também como a multiterritorialidade, um
fenômeno dos dias atuais, evidencia a possibilidade de um jovem favelado se sentir
identificado e representado por um jovem de outra favela do Brasil e do mundo. Porque

66
https://pt.wikipedia.org/wiki/Caso_Amarildo
67
https://pt.globalvoices.org/2013/07/26/campanha-onde-esta-o-amarildo-contra-a-violencia-
policial-nas-favelas/

138
o território que à primeira vista é apenas imerso em relações de dominação e/ou de
apropriação sociedade-espaço, “desdobra-se ao longo de um continuum que vai da
dominação político-econômica mais „concreta‟ e „funcional‟ à apropriação mais
subjetiva e/ou „cultural-simbólica‟” (Haesbaert, 2004, p. 95-96).

O problema do discurso

Durante muito tempo, aqueles que vivem nas favelas cariocas não tiveram poder
sobre uma certa imagem produzida por determinados atores autorizados (como o estado,
a mídia, elite, etc), frequentemente associada ao marginal, ligada à guerra do tráfico de
drogas ou à falta de estrutura básica. Mesmo que a disputa sobre essa única narrativa
sempre existiu (por meios da música, funk, samba, rap, das crônicas e poesias
produzidas por artistas e moradores locais), nesta década, por meio do avanço
tecnológico e do seu maior acesso pelas camadas populares, abriu-se a possibilidade de
maior visibilidade de outras imagens e discursos sobre as favelas.
Principalmente nas redes sociais, onde cada dia vem chegando outros produtores
de discursos, moradores e coletivos de favela que buscam falar da favela através do seu
próprio olhar e de quem vive nela. Para Resende (2003), o campo do discurso é
fundamental para se pensar a questão da representação já que é nele que se instala a
disputa e correlação de forças. Fazendo referência a Foucault (1996), podemos dizer
que proferir um discurso implica o que o autor chama de ―vontade de verdade‖, ou seja,
o ―discurso verdadeiro‖ é antes desejo e poder (1996, p.20). Quem fala por quem?
Quem está autorizado a falar sobre a favela e a periferia?
O sociólogo Manuel Castells (1996), no livro A Sociedade em Rede, constrói seu
raciocínio partindo da história do forte desenvolvimento das tecnologias a partir da
década de 1970 e seus impactos nos diversos campos das relações humanas. Ele mapeia
um cenário mediado pelas novas tecnologias de informação e comunicação – TICs –
partindo da hipótese que estas novas tecnologias interferem nas estruturas sociais e
criam novos formatos de participação e luta. Segundo o autor, os movimentos existem
tanto no espaço público do ciberespaço, como no espaço público urbano:

Porque a internet é uma rede de redes, local-global, plenamente interativa e


difícil de controlar, ainda que seja vigiada. A "cultura da virtualidade real"
- lembrando que as culturas consistem processos de comunicação e que,
uma vez sendo a comunicação baseada em sinais, não há separação entre
"realidade" e representação simbólica. Isso é importante para destacar que

139
as relações humanas, cada vez mais, se darão em um ambiente multimídia,
cujos impactos ainda estão por serem estudados, destaca (CASTELLS,
1996, p. 40).

Pensando numa contribuição bakhtiniana para esse debate, é possível pontuar


que o discurso é utilizado como objeto e lugar de disputa na arena da cultura. A luta
pelo discurso é, portanto, central na constituição do grupo, de sua entrada em cena, de
sua possibilidade de participar mais claramente do poder político e cultural,
consolidando sentidos e posições públicas. Sendo portanto essa luta não apenas
confronto, mas também mediação entre mundos. Para Bakhtin (1992), a linguagem
popular vai desempenhar esse jogo de poder criativo e potência destrutiva, sem, porém,
perder de vista seu caráter ambivalente e circular. “A linguagem da cultura popular é
poder criativo porque propõe novas fórmulas, desafia o já dado com releituras, mas
também com inovações, e é capaz de gerar uma âncora identitária, fornecendo a carta
de conduta, o mapa social, para aqueles a quem permitirá o pertencimento, ao mesmo
tempo interditando o lugar dos outros”, leitura de Bakhtin que faz Carlo Ginzburg
(1987). Dentro dessa discussão, Foucault pontua que o discurso não é simplesmente
aquilo que traduz as lutas ou os sistemas de dominação, mas aquilo porque, pelo que se
luta, “o poder do qual nos queremos apoderar” (Foucault, 1986). A disputa por saber é
reveladora de uma disputa por poder, pelo controle da informação, pela construção de
uma versão que se sobreponha às demais e receba o estatuto de verdade, o que implica
em uma disputa pela própria posição social ocupada pelos agentes nas arenas culturais.
“A verdade não existe fora do poder ou sem poder” (Foucault, 1986).
Segundo Fredrik Barth (2000), as estruturas mais significantes da cultura - ou
seja, aquelas que mais consequências sistemáticas tem para os atos e relações das
pessoas – talvez não estejam em suas formas, mas sim em sua distribuição e padrões de
compartilhamento e não compartilhamento. Considerar o significado como uma relação
faz com que prestemos mais atenção ao contexto da práxis. Nesse caso, entender a
prática da cultura no ciberespaço das redes sociais se torna importante para entender
também a prática da cultura fora do ambiente digital – “só se pode estar razoavelmente
seguro de ter entendido corretamente um significado quando se presta muita atenção às
pistas relativas ao contexto à práxis, à intenção comunicativa e à interpretação só isso
nos permite entrar experimentalmente no mundo que eles constroem” (BATH, 2000).
Milton Santos (2006), por sua vez, pontua que a apropriação das tecnologias de
comunicação pelas classes populares, ferramentas que antes pertenciam às classes

140
dominantes e que no contexto da globalização, pela própria necessidade do capital,
estão sendo democratizadas, não tem a ver apenas com inclusão ou entretenimento. É
produção de significado também e disputa de narrativa sobre si, sobre o outro e sobre o
lugar em que se mora. Já para Reyes (2013), grande parte desta outra geografia,
denominado como territórios ‗transfronteiriços‘, em grande parte se dá pelo uso das
novas mídias que se apresenta como uma ferramenta para compartilhar obras,
ideologias, vincular a própria produção, articular encontros e intervenções na rua.
Eliminando assim, a dependência de outros meios intermediados por terceiros. Do outro
lado, Haesbaert (2004), nos propõe a repensar a ideia de território rompendo com a
dicotomia entre fixidez e mobilidade, pensando a partir da constituição de
―multiterritorialidade‖ e ―território rede‖, mais envolvidos pela fluidez e a mobilidade.

Estamos pensando a rede não apenas enquanto mais uma forma (abstrata)
de composição do espaço, no sentido de um ‗conjunto de pontos e linhas‘,
mas como o componente territorial indispensável que enfatiza a dimensão
temporal-móvel do território e que, conjugada com a ‗superfície‘ territorial,
ressalta seu dinamismo, seu movimento, suas perspectivas de conexão e
‗profundidade‘, relativizando a condição estática e dicotômica (em relação
ao tempo) que muitos concedem ao território enquanto território-zona num
sentido mais tradicional (HAESBAERT, 2004, p. 286-87).

Do outro lado, Hall (2006) reflete que é na tal ―crise da identidade‖ na sociedade
moderna que o favelado não se sente, como um todo, representado pela mídia
hegemônica. Ele busca novas alternativas de representação, recriando sua própria
identidade seja por meio de um texto nas redes sociais ou um vídeo no Youtube. E é na
busca de uma "nova" identidade da favela ou do favelado que acontece a disputa na
arena do discurso.

O discurso dos favelados se forma a partir da atuação nas diversas esferas


de seu local de moradia: associações de moradores, praças, bares,
associações, agremiações recreativas- culturais-esportivas, entre outros.
(...) a homogeneidade das múltiplas práticas e vivência cotidiana num
mesmo local cria e renova os seus símbolos de identidade. As situações em
que são colocados na categoria de subalternos, bem como as estratégias de
resistência a estas situações forjam laços que não são fixos, nem
definitivos, mas estão constantemente sendo renovados e reinterpretados.
Estes laços dão o significado de sua identidade (ZALUAR, 1985).

O uso de mídias pelo Coletivo Papo Reto no Complexo do Alemão

141
O Complexo do Alemão, localizado na Zona Norte do Rio de Janeiro, é formado
por 13 favelas: Pedra do Sapo, Morro da Esperança, Alemão, Baiana, Grota, Itararé/
Alvorada, Morro do Adeus, Reservatório de Ramos, Nova Brasília, Fazendinha,
Palmeiras, Matinha, Morro dos Mineiros, Relicário – esse número é baseado no número
de favelas organizadas por meio de uma associação de moradores. Segundo dados do
IBGE, o conjunto de favelas do Alemão possui uma população de cerca de 60 mil
habitantes. Em 2010 o Complexo do Alemão é ocupado pelo exército e em 2011 é
instalado a primeira Unidade de Polícia Pacificadora (UPP) no território, dois
momentos em que os olhos da mídia corporativa e da sociedade estavam voltados para o
Complexo. No primeiro momento por causa da narrativa da ―guerra‖ e depois com a
narrativa da ―paz‖ com a chegada da UPP.
E é justamente no contexto de pós-ocupação das favelas pelo Exército e entrada
da Unidade de Polícia Pacificadora (UPP) como política pública no Complexo do
Alemão que surge o coletivo PAPO RETO, formado por jovens moradores do
Complexo do Alemão e da Penha, embalado pelos protestos no Complexo, em junho de
2013. O coletivo tem como principais bandeiras questionar a política de pacificação na
favela, a política de guerra às drogas e a atuação militar no Complexo do Alemão. Em
sua página no Facebook (Coletivo Papo Reto), com mais de 40 mil seguidores, o grupo
se denomina como um coletivo de comunicação independente que tem como foco
propagar notícias dentro e fora da favela sobre a realidade do território. O coletivo tem
como principais ferramentas o wi-fi, celular e o uso de aplicativos como Facebook,
Twitter, Instagram, Youtube, Twitcasting e Whatsapp. E em sua página denominam a
prática como estando “se apropriando de redes já existentes e ferramentas
alternativas”. Muito do que acontece no território passa pelas lentes deste Coletivo, que
buscam fazer uma cobertura diferente da mídia corporativa, que denominam como
“favelado para a própria favela”, “Nóis por Nóis”.
No artigo Da metáfora da guerra ao projeto de pacificação: favelas e políticas
de segurança pública no Rio de Janeiro, a socióloga Márcia Pereira Leite (2012)
examina a construção social das favelas como o território da violência na cidade do Rio
de Janeiro em dois contextos: o primeiro entre os anos 1990 e década de 2000, que
caracteriza-se pela promoção, por parte do Estado, de uma guerra aos traficantes de
drogas ali sediados. Guerra que termina por ser praticada também contra os moradores
(vistos como quase bandidos e, assim, inimigos a combater), demarcando o limite das
políticas públicas nessas localidades. O segundo contexto, se abre a partir de 2008, pelo

142
projeto estadual de pacificação das favelas, por meio da implantação de Unidades de
Polícia Pacificadora (seguido pelo programa municipal UPP Social) em algumas dessas
localidades, com o objetivo de retomar o controle armado desses territórios e, assim,
―civilizar‖ seus moradores como condição para a integração desses territórios à cidade.
Segundo a autora, a construção social das favelas como território da violência na cidade
– constitui o principal dispositivo de produção das favelas (e de seus moradores) como
―margens do Estado‖. Leite (2012) afirma que o que há de unidade entre os dois
contextos mencionados, guardadas suas especificidades, é a produção de modalidades
de identificação – favela e favelado – que embasam e, simultaneamente, justificam uma
forma específica de gestão estatal desses territórios e populações por meio de
dispositivos que delimitam as possibilidades de acesso de seus moradores aos
equipamentos urbanos e serviços públicos (inclusive à segurança) e reproduzem
dinâmicas segregadoras em curso na cidade.
É possível perceber que o Coletivo Papo Reto em suas postagens no Facebook
se apropria de modalidades de identificação (favela e favelado) como parte da
identidade de seus integrantes na cidade e como forma de atuação na própria favela. Ali
ser favelado não está diretamente relacionado a algo pejorativo ou a somente ser
moradora do Complexo do Alemão, tem mais a ver com uma postura própria de ser,
estar na cidade e relacionar-se com o mundo. Aqui me parece que o discurso do
periférico/favelado, a margem de determinados acessos e serviços públicos, se conecta
com outros jovens de outras favelas do Brasil e do mundo que se sentem identificados
pelo discurso ampliando a ideia de território.
Além disso, o Coletivo defende nas redes sociais que a guerra que está em curso
nas favelas não é uma guerra aos traficantes de drogas e sim uma guerra aos pobres.
Uma guerra do estado contra o pobre, preto e favelado. Apesar de defenderem uma
outra narrativa sobre a política de segurança pública nas favelas eles continuam
utilizando a linguagem da guerra para denunciar a falsa guerra às drogas. Dessa forma,
além de ser importante saber o que o discurso diz, é necessário investigar o que ele faz.
Qual impacto o discurso do Coletivo na internet tem na vida dos moradores do
Complexo do Alemão? Fica então a pergunta: em que medida a narrativa construída
sobre o que é a favela e o favelado, se conecta com outras periferias do Mundo a partir
da internet e das redes sociais?
―Durante muito tempo o que sabiam sobre a favela era só o que aparecia na TV,
nós vivíamos a realidade daqui, eles só sabiam do que passava na telinha. Agora é nossa

143
vez de fazer nois por nois‖, conta Raul Santiago, mídia ativista e integrante do Coletivo
Papo Reto. Do outro lado, Carlos Coutinho, também integrante do coletivo, fala que sua
câmera fotográfica é sua arma. Todos os integrantes do coletivo possuem celular com
sistema android ou IOS, a maioria tem máquina fotográfica profissional, tablet e
possuem conta no Facebook, Instagram, Twitter, Youtube e blog. Eles estão narrando
suas próprias histórias e do seu território, fazendo cobertura colaborativa, transmissão
ao vivo das operações policiais e produzindo narrativas sobre o Complexo do Alemão
utilizando as ferramentas de mídia e tecnologia como vitrine para o mundo. O
megaphone na rua se transformou em um dispositivo bem mais elaborado. As lutas
continuam se dando nas vielas, mas é nas redes sociais que o jovem favelado as
significa. É no teclado que ele fala o que sente e pensa, é produzindo um vídeo que ele
encontra uma forma de denunciar a má conduta do policial. É justamente no fluxo das
redes e nas ruas que a favela reinventa sua forma de participar atuar nos processos
políticos da cidade.

Referências Biográficas

BAKHTIN, M. Os gêneros do discurso. In: ______. Estética da criação verbal. São


Paulo: Martins Fontes, 1992.

BARTH, Fredrik. O Guru, o Iniciador e Outras Variações Antropológicas. Rio de


Janeiro, 2000.

CASTELLS, Manuel. A Sociedade em Rede. São Paulo: Paz e terra, 1996, vol. 1.

ENNE, A. L. e LACERDA, A. Gírias, hibridizações, negociações, negações: o


discurso como objeto e lugar de disputas na arena da cultura. Artigo apresentado no
ENECULT, Salvador/BA, 2011.

FACINA, A. “Vou te dar um papo reto”: linguagem e questões metodológicas para


uma etnografia do funk carioca. Artigo publicado na Revista Candelária n. 10, 2009.
FONSECA, J. J. S. Metodologia da pesquisa científica. Fortaleza: UEC, 2002. Apostila.

FOUCAULT, Michel. A ordem do discurso. São Paulo: Loyola, 1996.

GERHARDT, T. E. e SILVEIRA, D. T. Métodos de Pesquisa. Coordenado pela


Universidade Aberta do Brasil – UAB/UFRGS e pelo Curso de Graduação Tecnológica
– Planejamento e Gestão para o Desenvolvimento Rural da SEAD/UFRGS. Porto
Alegre: Editora da UFRGS, 2009.

GOFFMAN, Erving. Interaction Ritual: Essays in Face-to-Face Behavior. Garden City:


Doubleday, 1967.
144
HALL, Stuart. A Identidade Cultural na Pós-Modernidade. Ed.DPeA. Rio de Janeiro,
2006, Ed 11º.

HAESBAERT, Rogério. O Mito da Desterritorialização. Rio de Janeiro: Ed Bertrand


Brasil. 2004.

LACLAU, E. & MOUFFE, C. Hegemony and socialist strategy : towards a radical


democratic politics. London: Verso, 1985.

LEITE, Marcia Pereira. Da “metáfora da guerra” ao projeto de “pacificação”: favelas


e políticas de segurança pública no Rio de Janeiro. São Paulo: Rev. bras. segur.
pública. São Paulo v. 6, n. 2, 374-389 Ago/Set 2012.

MOUILLAUD, Maurice. O Jornal: da forma ao sentido. Brasília: Paralelo 15, 1997.

PASSOS, Pâmella S. Lan House na favela: Cultura e práticas sociais em Acari e no


Santa Marta. Tese de doutorado em História – Universidade Federal Fluminense,
Instituto de Ciências Humanas e Filosofia, Departamento de História, 2013.

POLIVANOV, Beatriz. Etnografia virtual, netnografia ou apenas etnografia?


Implicações dos conceitos. Revista Esferas, Brasília, UCB, n. 3, 2013.

RESENDE, Fernando. O discurso jornalístico contemporâneo: entre o velamento e a


produção das diferenças. Revista Galáxia, São Paulo, n. 14, 2007.

REYES, Alejandro. Vozes dos Porões. Rio de Janeiro: Aeroplano, 2013.

SANTOS, Milton. Por uma outra globalização. Rio de Janeiro: Record, 2000.

SAVAZONI, Rodrigo; COHN, Sergio. (Orgs). Cultura Digital.br. Rio de Janeiro: Beco
do Azougue Editorial Ltda, 2009.

VELHO, Gilberto. Observando o Familiar. In: NUNES, Edson de Oliveira – A


Aventura Sociológica. Rio de Janeiro: Zahar, 1978.

VERGARA, Sylvia Constant. Método de Pesquisa em Administração. São Paulo: Atlas,


2005, p. 25-36.

ZALUR, Alba; ALVITO, Marcus. Um século de favela. Rio de Janeiro: Editora FGV,
1999, Ed. 1.

145
Mães Pentecostais contra o Estado
notícias de uma pesquisa

Fellipe dos Anjos Pereira68

―À semelhança de outros tempos, o mundo contemporâneo é modelado e


condicionado profundamente por estas formas de ancestrais da vida cultural,
jurídica e política, que são a da clausura, da cerca, do muro, do campo, do cerco
e, no final das contas, da fronteira. Por outro lado, são recuperados processos de
diferenciação, de classificação e de hierarquização para fins de exclusão e de
erradicação. (...) Novas vozes se levantam para proclamar que o universal
humano ou não existe ou limita-se ao que é comum, não a todos os homens, mas
apenas a alguns deles. Outros afirmam que a necessidade individual de se
santuarizar a sua própria lei e a sua morada ou habitação, consagrando, de uma
ou de outra maneira, as suas próprias origens e a sua própria memória ao divino,
afastando-as assim de qualquer interrogação de natureza histórica e fixando-as
definitivamente num campo inteiramente teológico‖.

Achille Mbembe
Crítica da Razão Negra

―Ó homem de preto, qual é sua missão?


Entrar na favela e deixar corpo no chão‖

Cântico do Batalhão de Operações Especiais da PMERJ

RESUMO

O presente artigo apresenta notas e notícias de pesquisa em andamento do programa de


Pós-graduação em Ciências da Religião da Universidade Metodista de São Paulo,
visando estabelecer diálogos críticos e criativos com os leitores da revista Lugar
Comum e contribuir com as reflexões sobre as contra-condutas, resistências e
subversões políticas operantes no cotidiano das periferias do país. A pesquisa em tela
pretende (1) Investigar as formas de vida religiosa das mães pentecostais vítimas da

68
Mestrando em Ciências da Religião na Universidade Metodista de São Paulo - UMESP. Possui
graduação em Teologia pela Universidade Metodista de São Paulo (2011). Especialização (Lato Sensu)
em Teologia Bíblica Sistemático-Pastoral pela FABAT - Seminário Teológico Batista do Sul do Brasil-
RJ. Dedica-se às pesquisas em Teologia Política e em Religião, Sociedade e Cultura, atuando
principalmente nos seguintes temas: Violência, Biopolítica, Religião e Estado. Bolsista CAPES.
Orientador: Professor Dr. Jung Mo Sung.

146
violência na cidade do Rio de Janeiro, em suas relações de resistência, contestação e
rebelião contra os dispositivos sacrificiais operados pelo Estado; Busca-se, enquanto
objetivos específicos, (1a) Analisar os mecanismos mítico-teológicos de produção de
violência no contexto do Rio de Janeiro governado sob o paradigma neoliberal de
cidade; (1b) Apresentar as linguagens e práticas religiosas das mães pentecostais como
constituintes de uma forma-de-vida de resistência, contestação, superação e rebelião;
(1c) Explorar as entrevistas e aprofundar considerações teóricas sobre Religião e
Violência a partir da forma de vida religiosa praticada pelas Mães Pentecostais contra o
Estado.

PALAVRAS-CHAVE:

Pentecostalismos; Violência; Neoliberalismo; Militarização; Mães; Sofrimento Social;

Introdução

Interesso-me pela presença dos pentecostalismos populares na sociedade


brasileira desde minha primeira ―aventura acadêmica‖, com o TCC do bacharelado em
teologia. Conclui em 2010 e naquela época tanto as pesquisas teológicas quanto as
dedicadas à sociologia da religião no Brasil tinham uma forte atração por casos e temas
do que convencionou-se chamar de neopentecostalismo (MARIANO, 2009). Um breve
mapeamento das pesquisas produzidas a partir dos anos 2000 nos departamentos de
teologia, ciências da religião e até dos núcleos de ciências humanas e sociais mais
abertos ao campo religioso brasileiro vai demonstrar a tendência desta época. O
crescimento demográfico dos evangélicos deste perfil e sua forte atuação no cenário
macropolítico brasileiro são alguns dos fatores que explicam tamanho interesse. Neste
fluxo, no final de 2009, fiz um mergulho inicial nas pesquisas sociológicas sobre o
neopentecostalismo questionando-me sobre a relação da linguagem da teologia da
prosperidade com a diversificação do mercado religioso brasileiro, nos termos do Peter
Berger, a partir da emergência de novos atores religiosos no campo via popularização da
internet. Linguagem, mídia, neopentecostalismo e mercado eram os meus interesses à
época.
Uma inquietação que já me acompanhava àquela altura era com a repetitividade
dos problemas levantados pelos projetos de pesquisa, que em sua maioria giravam ou

147
em torno das questões institucionais das megaigrejas neopentecostais ou das
articulações eleitorais tramadas pelos seus líderes carismáticos. As que se desviavam
um pouco disso, se dedicavam a compreender as lógicas de mercado operadas no
interior destas institucionalidades.
Até que no final de 2010 tomo conhecimento da existência da ―Tropa de Louvor
do BOPE”, banda de música formada por alguns membros do destacamento evangélico
do Batalhão de Operações Especiais da Polícia Militar do Rio de Janeiro, que atende
pela alcunha de ―Caveiras de Cristo‖, e em 2011 participo presencialmente de um
grande evento evangélico onde eles foram convidados a “dar testemunhos do que Deus
estava fazendo na missão da pacificação do Rio de Janeiro por meio da vida e da fé
deles”. Nesta segunda ocasião, contemporânea aos primeiros anos de implantação das
Unidades de Polícia Pacificadora, baseados em testemunhos pessoais sobre situações
vividas, segundo eles, em contextos de “guerra às drogas” e de “guerra para defender
a população do Rio de Janeiro do poder dos traficantes”, os policiais faziam inúmeros
acessos aos textos bíblicos e às narrativas de batalha espiritual usadas em ambientes
neopentecostais para justificar a letalidade e a violência empregadas nas operações de
pacificação. Citação como: “se a bíblia diz que o salário do pecado é a morte
(referência ao texto bíblico de Romanos 6. 23), o meu fuzil só está adiantando o
pagamento a estes pecadores”. Esses eventos atraem minha atenção à relação entre os
discursos teológicos evangélicos – em especial aqueles construído na linha da guerra
espiritual – e as lógicas de segurança pública que marcaram os processos de pacificação
das favelas cariocas. No início da jornada, esta era a intuição, o interesse e a
problematização que guiaram as primeiras pesquisas teóricas e imersões em contexto.
Meus primeiros contatos com a produção acadêmica sobre a relação dos
evangélicos com as políticas de segurança pública executadas pela UPP se deram por
meio das pesquisas das antropólogas Patrícia Birman, Carly Machado e Christina Vital
da Cunha, às quais sou imensamente grato pelos excelentes artigos, provocações e
aprendizados. Reconheço-as aqui como pessoas de importância inestimável nesta
brevíssima jornada investigativa.

1. Violência e biopolítica neopentecostal

É inegável a adesão dos empobrecidos brasileiros aos diversos formatos de


pentecostalismos e neopentecostalismos, especialmente em territórios de exceção, de

148
lutas sociais deflagradas e de precarização da vida. Para entender as complexidades das
periferias brasileiras, no caso, as favelas do Rio de Janeiro, torna-se imprescindível
discernir como os evangélicos, em sua maioria neopentecostais, se inserem e significam
esses espaços e relações.
Em se tratando das aproximações deste enorme contingente neopentecostal com
a questão da violência nas favelas do Rio de Janeiro, a linguagem mística e teológica do
movimento nos ajudam a entender algumas questões iniciais. Para a pesquisadora e
professora Christina Vital da Cunha (CUNHA, 2009. p.26), as ideias de “combate à
presença do Mal” e das cotidianas “batalhas espirituais” que exigiriam vigilância
constante em “oração” por parte dos fiéis, assumem grande relevância e expõe a
afinidade entre o ethos69 pentecostal e o ethos da guerra.

Em outras palavras, a perspectiva teológica e doutrinária dos evangélicos


pentecostais que compreende o ―mundo‖ (categoria que expressa a
oposição entre o ―Bem‖ e o ―Mal‖, entre o ―Céu‖ e a ―Terra‖, entre o
―mundo‖ da morte do espírito e a ―vida plena na Igreja com o Senhor‖)
como o lugar da guerra, que fala do inimigo, do chamamento ao ―exército
do Senhor‖, que ritualmente lança mão de arroubos emocionais e de um
linguajar bélico, se comunica muito com o próprio ethos dos moradores, de
forma geral, e com os ―bandidos‖ (CUNHA, 2009. p.26)

A linguagem militarizada das religiosidades neopentecostais, colada às


experiências de militarização do cotidiano que os moradores das favelas cariocas
enfrentam diariamente, facilitaria, potencializaria a inculturação dos
neopentecostalismos nos territórios marcados pela dinâmica e pelo discurso da guerra.
Compreender essa mixagem ideológica é um trabalho indispensável. Outros fatores,
também, operam conjuntamente para a realização do alinhamento neopentecostalismo –
favela, tais como: a) a proximidade entre lideranças evangélicas e a realidade cotidiana
da favela, b) a descentralização institucional/religiosa que facilita a fundação de novas
denominações, c) a disponibilidade aos serviços religiosos durante vários horários e dias
da semana, d) a influência que as famílias, principalmente as mães, exercem na adesão
religiosa de parentes, e) o acolhimento promovido pelas igrejas a todos que as procuram
e, f) a rede de solidariedade e proteção forjada ou realimentadas a partir das
comunidades religiosas locais. O volume e a diversificação de atividades religiosas

69
Toma-se ethos nesse pré-projeto como Geertz (2008) que o explica em termos de uma forma de pensar
e agir na realidade. Ou seja, o ethos seria uma perspectiva, uma forma de compreender o mundo, de estar
no mundo, uma cosmovisão que orienta a ação e o pensamento dos indivíduos.

149
favorecem a formação de redes afetivas e a fixação do membro na igreja, uma vez que
as demandas altas geram círculos de atendimentos. (CUNHA, 2009).
Para Christina Vital da Cunha,

Num espaço social como o das favelas, no qual a insegurança é tão


presente no cotidiano, onde o sentimento de desrespeito e de baixa
confiança em si mesmo e nas instituições é muito intenso, a rede dos
evangélicos e os laços de afeto e confiança gerados (e/ou fortalecidos) a
partir de tal pertencimento religioso têm uma dimensão fundamental na
rotina, não só dos que se filiam a esta religião e participam de suas
atividades litúrgicas, mas também para os que vivem próximos a esta
realidade e percebem neste meio uma possibilidade de buscar
―acolhimento‖ em momentos de necessidade. (CUNHA, 2009. p.27)

Apesar da existência dos mais variados tipos de experimentações religiosas


neopentecostais, uma variedade de denominações, afirma Almeida (ALMEIDA, 2006),
o vínculo religioso/identitário forte ainda é uma realidade nas “comunidades
evangélicas” presentes em favelas e periferias urbanas, localidades onde o
pertencimento a redes evangélicas é um diferencial considerável no enfrentamento da
sensação de insegurança e das situações de vulnerabilidade vividas por seus
moradores. Elas são importantes tanto para a reprodução econômica, quanto para a
identificação moral positiva dos moradores de áreas estigmatizadas como as de favelas
onde a criminalização é extensiva, no imaginário social, a todos os que nelas residem.
Nas palavras de Almeida: ―Pode‑se afirmar que as redes evangélicas trabalham em
favor da valorização da pessoa e das relações pessoais gerando ajuda mútua com o
estabelecimento de laços de confiança, além do aumento da autoestima e do impulso
empreendedor‖ (ALMEIDA, 2006). As redes de acolhimento, reciprocidade, confiança
e segurança promovida por comunidades neopentecostais fortaleceram a identidade
evangélica, que passou a ocupar um lugar religioso, político e social privilegiado no
contexto das favelas cariocas.
Percebendo a notoriedade e a autoridade política que a identidade evangélica
gozava nas favelas no final dos 2000, o Estado recorre à gramática e ao imaginário
religioso neopentecostal para promover uma nova forma de ocupação militarizada a
partir do dispositivo da UPP. Se por um lado a presença, a partir das apropriações e
reelaborações feitas pelo próprio sujeito religioso, as linguagens e as éticas pentecostais
colaboraram para a valorização da vida dos favelados, a partir desta capturação que o

150
Estado faz dos motes pentecostais, o mesmo imaginário será acionado para justificar a
opressão política e a violência sobre esta população.
Ainda na década de 90 o governo do Estado já havia utilizado técnica
semelhante, à época usando as linguagens religiosas do Candomblé e de Umbanda, que
eram as expressões religiosas hegemônicas nas favelas cariocas. Nos muros e nas vielas
da favela do Acari, por exemplo, eram comuns as pinturas de santos católicos e
divindades ligadas às religiosidades afro-brasileiras. São Jorge/Ogum – santo que tem
sua mitologia linkada à guerra – esteve sempre associado aos que estão na ―guerra do
crime‖ (seja a favor ou contra): ―bandidos‖, traficantes, bicheiros e policiais eram, e
ainda são, costumeiramente vistos portando anéis e medalhas do ―santo guerreiro‖. A
medida que as religiosidades afro-brasileiras vão sendo substituídas (ou subsumidas)
pelos pentecostalismos e neopentecostalismos, que os salmos militares viram, sem
sombra de dúvida, os textos bíblicos mais presentes nos muros e outdoors da favela e o
som do atabaque vai sendo substituído pela música gospel e pelas orações efusivas, os
dispositivos de guerra e pacificação vão ajustando suas armas ideológicas à
religiosidade neopentecostal (CUNHA, 2009). Nesse contexto específico, as inovações
biopolíticas implementadas pela UPP convergiram com um período de singular
crescimento do neopentecostalismo de favela no Rio de Janeiro. Ocorre então, uma
mudança no discurso religioso que operará as subjetividades e os processos de
subjetivação nos campos onde a vida segue produzida como matável.

2. Neopentecostalismo pacificador

Os fenômenos neopentecostais estão profundamente implicados nas relações


sociais e políticas construídas nas favelas cariosas. Analisá-los é um imperativo para
compreender as novas configurações da violência na sociedade brasileira e as formas
pelas quais se exerce o governo das populações marginalizadas. A incidência e a
mixagem dessas experiências religiosas nas relações de poder, nas tensões de gênero e
raça, nas produções econômicas alternativas ao capitalismo hegemônico, nas inovações
políticas à partir das margens, nas lutas por justiça e igualdade contra os racismos
epistemológicos e ambientais, que marcam a relação da cidade com a favela,
demonstram a relevância e a atualidade desta pesquisa. Pensar os neopentecostalismos
hoje e toda criatividade presente no corpo complexo deste movimento, possibilita uma
revisão de categorias fundamentais às ciências humanas e sociais, também para as

151
ciências da religião. Como o fenômeno religioso define relações e disputas em contexto
de escalada da violência, inclusive e principalmente da violência institucional em
territórios marginais? Como as ciências das religiões pensam suas categorias
epistemológicas a partir de fenômenos gerados no interior de estruturas racistas e em
relação a formas violentas de governo?
As lógicas clássicas aplicadas na sociologia das religiões a partir da noção de
secularização como diferenciação e racionalização do social já não dão mais conta de
apreender a presença de novas formas e experiências religiosas na cena pública
brasileira. Práticas neopentecostais como as que observamos nas favelas cariocas
reconfiguram, ou ao menos tencionam, as diferenciações consagradas na modernidade
no que diz respeito à religião e política: esfumaça e confunde os limiares, as tradicionais
separações entre religião e política, igreja e estado, religioso e secular, público e
privado. Estas categorias pairam num estado de indistinção. O crescimento vertiginoso
dos neopentecostalismos no Brasil, suas políticas de ocupação dos espaços/imaginários
públicos em profunda relação com o poder e suas disciplinas, dificultam ainda mais a
utilização destes limites.
A antropóloga Patrícia Birman (BIRMAN, 2012), especialista nos estudos sobre
religião, espaço público e formas de segregação no espaço urbano, analisando práticas
religiosas presentes na questão da violência no Rio de Janeiro, defende que a
emergência de alta intensidade e a consolidação pentecostal na esfera pública foram
movimentos políticos que modificaram singularmente as disputas em tela entre religioso
e secular. Historicamente, os modos violentos e segregacionistas de governar as
populações da cidade do Rio, em muitas ocasiões decisivas, contaram com o
protagonismo de atores religiosos; Porém, a presença neopentecostal constitui um novo
tipo de negociação. Como demonstrado, as práticas religiosas sempre se mobilizaram
e/ou foram acionadas em torno de agendas sobre a violência no Rio. Casos simbólicos
marcam essa relação cada mais vez mais sofisticada, complexa e ambivalente. Uma, em
especial, do início da década de 90, acontecia em paralelo às mudanças comentadas
acima sobre a ―conversão gradual da favela‖ ao pentecostalismo: a chacina da
Candelária. Nas articulações pacifistas lideradas por Betinho, pelo IBASE e pelo
VivaRio, a participação das religiões no campo da violência se deu de forma mais
pluralista. A manifestação o Abraço na Candelária marcou esse modelo de atuação.
Ritualizavam-se os atos públicos, tendo líderes e atores religiosos como grandes
parceiros na operacionalização de uma linguagem de espiritualidade atrelada à demanda

152
pela paz. Praticavam rituais diversificados visando a construção de uma disposição
subjetiva contrária à violência e favorável à criação de cooperação entre os diferentes
grupos da cidade, pela cidade. A religião, portanto, produzia os discursos que
relacionavam paz, espiritualidade e bem-estar social, mas não se envolvia
profundamente na modelagem e na implementação de políticas públicas. Dentro de uma
perspectiva secularista, ainda que generosa, das organizações que lideravam as
manifestações, as religiões cumpriam um papel ritual delimitado, enquanto os atores
técnicos empreendiam as políticas públicas. A secularização demandava a participação
religiosa como forma de articular discursos carismáticos pela paz na cidade. A fé – ou
as diversas expressões de fé – atuava como forma de conter a escalada da violência, em
nível discursivo, apenas. A presença neopentecostal no âmbito deste debate aumenta a
pluralidade e esfumaça essas delimitações.
A construção do consenso de exceção criado em nome da ideia de pacificação
converge com o surgimento de atores religiosos neopentecostais interessados na disputa
por novos espaços de poder e por novos territórios para ações proselitistas. Com as
novas políticas de segurança apontadas preferencialmente aos territórios marginalizados
e às pessoas criminalizadas, pobres indesejáveis, o Estado precisava de um novo
discurso religioso e de um novo modelo de participação que legitimasse sua aberta
brutalidade contra os “incivilizados”.
Retornando à professora Birman, é ela quem analisa a ―conjunção performativa
de interesses‖ (BIRMAN, 2012) entre atores religiosos e atores do Estado. Observa que
a relação das religiosidades neopentecostais com o projeto de pacificação assumiu uma
forma de gestão social com protagonistas religiosos/seculares indissociáveis entre si.
Um é fantasma do outro. E, o outro, o corpo do um. Os discursos, as místicas e as
teologias políticas neopentecostais foram, portanto, agenciadas pelo dispositivo do
Estado e seu projeto de gestão da dor e do sofrimento dos empobrecidos.
Na opinião de Birman, o imaginário da favela como um território isolado da
cidade e dos favelados como estas personas perigosas à segurança do cidadão de bem,
num contexto de ―consenso social‖ sobre a urgência de reconquista militar da paz, fez
surgir uma personagem política com poder de comandar e autoridade moral/espiritual
para pacificar as almas e os corpos ingovernáveis dos pobres – o arquétipo pastoral de
Michel Foucault: uma outra UPP – Unidade de Polícia Pastoral; ou uma pastoral
policial. Para ilustrar, ela cita notícia icônica do Jornal Extra:

153
'Polícia Militar vai levar trabalho religioso às UPPs'.

Em nome da pacificação, a partir de 12 de julho, a PM começa nas


Unidades de Polícia Pacificadora um trabalho espiritual entre policiais e
moradores. Os padres e pastores do Serviço de Assistência Religiosa da
PM farão a ligação entre as lideranças religiosas das comunidades
ocupadas e os objetivos do governo do Estado nas favelas. O objetivo da
PM é apoiar espiritualmente os policiais das UPPs, além de acelerar a
aproximação entre eles e os moradores. O projeto, que será tocado pelo
capelão da Polícia Militar, coronel capelão Edson Távora, começará pelo
Morro Santa Marta, em julho, e, até novembro deste ano, visitará todas as
pacificadoras. Teólogo de formação, Távora acredita que o contato
espiritual possa servir de instrumento de ligação entre os policiais e os
moradores. Inicialmente, explica, os comandantes das UPPs farão um café
da manhã entre os padres e pastores da Capelania e representantes
religiosos locais... A segunda etapa do trabalho religioso terá uma
celebração católica e outra evangélica, tendo entre os fiéis tanto os policiais
quanto os moradores... Após o primeiro encontro, na UPP do Santa Marta,
os religiosos irão, nessa ordem, às favelas do Batan, Chapéu Mangueira e
Babilônia, Cidade de Deus, Pavãozinho e Cantagalo, Tabajaras e Cabritos,
Providência, Borel, Formiga e Andaraí.70

Outra articulação importante entre o programa de pacificação e as religiosidades


neopentecostais não deixou de abranger um aspecto cultural importante deste campo
religioso, a música gospel:

'Banda gospel do Bope leva paz às comunidades'

Tropa de Louvor é o grupo formado por membros do Batalhão de


Operações Especiais, que realiza shows-cultos e se apresenta com a arma
na cintura e a Bíblia na mão direita. Por Christina Nascimento.

Rio – ‗Se queres a paz, prepara-te para guerra‘. A frase estampada em


latim na parte de trás da camisa preta é o aviso que os integrantes da Tropa
de Louvor deixam por onde passam. A banda gospel é formada por
membros dos Caveiras de Cristo, policiais evangélicos que integram o
Batalhão de Operações Especiais (Bope). A Tropa realiza cultos-shows nas
comunidades pacificadas e cria uma nova vertente de comportamento, por
vezes contraditório, na unidade em que seus homens são treinados para
matar... ―Deus está neste lugar‖, diz o sargento do Bope e pastor da Igreja
Assembleia de Deus Carlos Mello, para um grupo de 200 pessoas, entre
eles pastores e padres, no culto-show do Borel, no sábado à tarde. Com a
tradicional farda do Bope, o emblema da caveira no braço esquerdo e a
Bíblia na mão direita, ele conta seus testemunhos de conversão e convida
os moradores para uma tarde de louvor: ―Estamos aqui trazendo a palavra
do Senhor‖. O público, tímido no início, não demora a se acostumar com a
cena do palco: um coral de homens de preto, com coldres e armas na
cintura, cantando e orando. A quadra da Escola de Samba Unidos da Tijuca
se transforma então numa espécie de templo evangélico dos Caveiras de
Cristo... ―Isso aqui traz esperança‖, diz o padre da Paróquia São Camilo, na
Tijuca, José Patrício de Souza, 63 anos. Para o bispo da Igreja Evangélica

70
Jornal Extra, 11.12.10

154
Pentecostal Salvação por Cristo, Antônio Ferreira, 75 anos, o culto não é
para falar de religião: ―Estamos aqui para unir pessoas‖.71

Para Birman, neste novo tipo de articulação político-religiosa que trata agentes
neopentecostais como protagonistas de projetos de salvação religiosa, moral e social, a
gestão da população à margem acontece, nesse exemplo citado, por intermédio de uma
modalidade específica de casamento entre as práticas seculares e religiosas, dedicadas
ao controle da violência. Assinalemos que, nesse caso, ao menos, emprega-se símbolos
que efetivam um cruzamento dos referenciais religiosos e seculares nos corpos dos
soldados que são ao mesmo tempo autoridades militares e religiosas. O pastor fardado
reclama assim um poder físico-moral inseparável do uso da Bíblia e do seu uniforme.
Esses militares-pastores passam, assim, a incorporar um modo de ação que torna
indissociável os dois poderes – poder pastoral e poder policial. A conexão que assim se
faz participa, podemos sugerir, dos muitos circuitos e negociações que atravessam a
vida social ali e fora dali.
A professora Carly Machado (MACHADO, 2013) aprofunda a mixagem de
projetos religiosos, políticos, sociais e midiáticos acionados pelo dispositivo de
pacificação nas periferias do Rio de Janeiro ao analisar o contexto do show do
Ministério de Louvor Diante do Trono, realizado no Campo do Sargento dentro do
Complexo do Alemão, três meses depois da sua ocupação em novembro de 2010 pelo
Exército. A organização do evento, dentro do escopo da política de pacificação, parte do
programa Rio Contra a Dengue, era uma parceria da TV Globo com o Governo do
Estado e o grupo cultural AfroReggae. Para a autora, a ocupação dos territórios
empobrecidos do Rio de Janeiro não se deu exclusivamente pela repressão violenta e
real da polícia e do exército, mas, também, pela ocupação simbólica de diversos atores
articulados em torna da estratégia de “não deixar espaços vazios”. A cultura evangélica
– já presente e ganhando cada vez mais força ideológica no contexto – foi determinante
nesta ocupação simbólica, não menos violenta. Vários shows de músicas evangélicas
foram promovidos por agentes sociais – como o AfroReggae – e financiados pelo
Estado.
Machado trabalha a ocupação sonora e cultural como uma forma de disputar
identidades e imaginários a partir do conceito de política de presença de Oosterbaan,
que discute a importância da música e da arte na compreensão da dinâmica relacional de

71
Jornal O Dia, 03.06.2011

155
diferentes atores numa determinada territorialidade. Assim, os shows de músicas
evangélicas promovidas pelas forças militares em atos de ocupação territoriais
agenciariam outra dimensão desta política da presença como parte importante da
supremacia política de uma religião sobre o tráfico.

A música gospel do show do ministério Diante do Trono, no Alemão,


apresentada como principal atração de um projeto de saúde promovido
pelo governo fluminense, se traduz enquanto ocupação sonora do
Complexo pelo Estado. E o som da pacificação é a música evangélica.
(MACHADO, 2013).

Ela demonstra que esta atividade religiosa apresentada como parte de um


programa de higienização funcionou dentro de um conjunto potente de higiene moral
que procurava ocupar e purificar a alma da população do Alemão com a mensagem
evangélica pacificadora, sem deixar espaço vazio para ocupação do diabo, sinônimo de
crime e tráfico. Machado pensa como os evangélicos – e suas linguagens e estéticas
excecionistas – se posicionam de forma privilegiada dentro de um programa de
subjetivação informado pelo Estado, sua polícia e suas políticas de governamentalidade.
Os evangélicos neopentecostais seriam agenciamentos produtivos para a formação de
subjetividades favoráveis ao Estado no programa de pacificação em curso.
Tomando a ideia de mediação de Bruno Latour, o conceito de Antropologia das
Margens de Das e Poole72 e, ainda, dialogando com as abordagens foucaultianas sobre a
relação entre religião e política em Segurança, Território e População, Machado
compreende as religiosidades neopentecostais como ―mediadores-chaves ou
privilegiados para entender as ações do Estado em territórios-alvos das políticas dos
projetos de pacificação no Rio de Janeiro” (MACHADO, 2013). Para ela, pensar e
problematizar a partir dos conceitos usados de missões, missões de paz, redenção,
libertação, pacificação, liberdade e salvação, ajuda-nos a refletir sobre os modos de
mobilização e operação subjetivas na vida social. Em torno na ideia de missão, por
exemplo – e o que dela pode se derivar no discurso evangélico – é possível pensar
religião e política de uma perspectiva privilegiada. Ao mobilizar a conversão subjetiva
das populações ao projeto de ―paz‖ do Estado, a mixagem entre projetos de intervenção
da segurança pública com projetos morais/religiosos, viram campo privilegiado de
pesquisa político-religiosa/antropológica. Pensar religião e política no escopo dos

72
um modo de pensar o estado não a partir da ideia de ausência, mas da perspectiva de sua presença em
vários agentes e no próprio processo de exclusão de políticas/suspensão de direitos, como diria Agamben:
inclui excluindo.

156
dispositivos de pacificação dos territórios pobres do Rio de Janeiro significa pensar em
como a governamentalidade carioca seculariza um projeto religioso de ―paz cristã‖,
ideia central à pacificação. O conceito de “redenção”, por exemplo, defende Machado,
permite discutir um projeto de cunho político e religioso do Estado do Rio de Janeiro
que visa, no escopo do projeto de pacificação, associar a intervenção política e policial
da libertação de territórios das forças do tráfico à concepção teológica cristã de
libertação subjetiva do mal e do inimigo.
No âmbito das UPP‘s, teologia política é mecanismo de Estado e seu programa
de pacificação:
A ocupação militar é assim ―ungida em Cristo‖ e a paz que ela promove é a
paz cristã que leva à liberdade. Procura-se assim afastar-se moralmente de
qualquer possibilidade interpretativa que associe a presença do estado com
uma prática ostensiva e violenta de militarização da vida cotidiana, visando
controle e dominação. O soldado não é portanto aquele que faz o mal, mas
o que leva o bem, a sentinela que guarda a cidade já que ―se o Senhor não
guardar a cidade, em vão vigia a sentinela‖. (Salmos 127:1). (MACHADO,
2013)

O novo paradigma de governamentalidade em operação no Rio de Janeiro


demandava uma performance teológico-política que não desautorizasse moral e
espiritualmente a suspensão dos direitos humanos e sociais e o consequente extermínio
da população favelada, uma política do sagrado que legitimasse a violência
institucional para eliminação do mal marginal. A construção ideológica da favela como
lócus carente moral e espiritualmente – ligação das carências sociais à faltas
morais/espirituais – facilitou a adesão neopentecostal ao dispositivo da pacificação.
Considero principalmente a adesão feita pelos pastores, pelas lideranças religiosas das
denominações mais tradicionais e pelas personalidades midiáticas e políticas que atuam
para este campo religioso. Neste específico, as políticas de pacificação “secularizam”
uma lógica religiosa de salvação/civilização dos inimigos da paz e da ordem pública.
Uma das minhas hipóteses à esta altura é que, possivelmente, mais do que secularizar
lógicas religiosas, leitura que pode ser feita através de Carl Schmitt, as políticas de
pacificação sacraliza, purifica, encanta seus mecanismos, converte seus dispositivos
jurídicos em dispositivos sacrificiais, tendo em vista justificar as violências e violações
produzidas pelo Estado. A partir desta lógica, a UPP atualizaria a violência sagrada73 e
suas dinâmicas sacrificiais sobre as vidas precarizadas nas favelas do Rio de Janeiro.

73
Tenho trabalhado atualmente para construir e aprofundar esta hipótese a partir de um diálogo teórico
entre René Girard, Franz Hinkelammert, Achille Mbembe e Pierre Clastres.

157
Ao demonstrar a presença dos discursos e práticas neopentecostais no âmbito
das políticas de pacificação, as pesquisas citadas me provocaram a imergir no contexto
dos neopentecostalismos de favela para investigar as relações entre religião e violência.
As análises antropológicas e sociológicas sobre religião e violência no Rio de Janeiro,
ao mapear as linguagens usadas, as estéticas em profusão, as negociações institucionais
e as mixagens simbólicas entre a violência do Estado e as lógicas religiosas, abriram
oportunidades para que as ciências das religiões analisem as especificidades religiosas e
teológicas implicadas nestes processos. Se, por um lado, os efeitos sociais e políticos do
neopentecostalismo foram descritos por tais investigações, abria-se agora a
possibilidade de se perguntar como tais teologias políticas pentecostais e
neopentecostais seriam produzidas e mobilizadas no interior e no cotidiano destas
comunidades religiosas. Se as ciências humanas e sociais foram capazes de sinalizar as
funcionalidades políticas do neopentecostalismo em legitimar os modelos violentos da
pacificação, as ciências da religião teriam envergadura epistemológica para mergulhar
neste contexto em busca de questões mais próprias do religioso? Pretendia concentrar
minha atenção não tanto nas sistemáticas institucionais da religião e não nos objetos
sociais que ela produziria, mas naquelas racionalidades mítico-teológicas que animavam
as formas-de-vida religiosas presentes no ambiente de militarização da vida. Queria
captar as subjetividades teológico-políticas que faziam do neopentecostalismo uma
matéria maleável, aderente ou resistente à violência. Ou, por outra perspectiva, me
questionava como as experiências religiosas neopentecostais gestavam economias de
subjetividades capazes de estabelecer novos modos de interagir e significar as relações
com as violências cotidianas. Por fim, eu pretendia encontrar outra forma de apreender a
experiência humana e social do religioso que me ajudasse a inserir novas reflexões neste
cenário crítico da violência sacralizada do Estado no percurso de implantação das
Unidades de Polícia Pacificadora. Se a professora Carly Machado evidenciou a
produtividade social e a posição estratégica da linguagem teológica da redenção, por
exemplo, na relação do pastor evangélico com as ações policiais, por minha vez,
questionava como essas noções teológico-políticas eram articuladas, assimiladas e até
subvertidas no interior/cotidiano das comunidades religiosas em face do tema da
violência.
Não estava apenas buscando explicar a sujeição dos neopentecostalismos às
políticas de exceção gerenciadas pelo Estado. A opção pelo cotidiano e pelos usos
populares das linguagens neopentecostais visava identificar, principalmente, as formas

158
de resistências e subversões geradas no interior da experiência religiosa contra as
violências institucionais de Estado. Eu questionava da seguinte forma naquele
momento: neste contexto das violações sistemáticas promovidas pelo Estado, de
criminalização de populações e territórios empobrecidos, dentro de um modelo de
política de segurança pública que governa o extermínio da juventude negra na cidade do
Rio, surge a oportunidade de pensar como as diversas religiosidades neopentecostais,
que por muitas ocasiões atuaram como redes de solidariedade, cooperação e proteção
social nas comunidades empobrecidas, se relacionaram discursiva e moralmente com o
projeto de ―pacificação‖ nas favelas cariocas. Em que medida os neopentecostalismos
aderiram objetiva e subjetivamente a militarização da vida e em que intensidade
inventaram resistências e contestações. Pretende-se analisar a ambivalência do
cotidiano: modalidades de sujeição – práticas de resistências do fenômeno
neopentecostal em relação ao dispositivo biopolítico da UPP. Busca-se identificar
subjetividades, linguagens e éticas neopentecostais que fomentaram e articularam
resistências e rebeliões contra a máquina biopolítica do Estado.
E foi a atenção ao cotidiano, às práticas religiosas menores, às bordas das
institucionalidades confessionais, que me apresentou às experiências religiosas nas
quais trabalho hoje: as formas de vida religiosa das mães vítimas da violência na cidade
do Rio de Janeiro, em suas relações de resistência, contestação e rebelião contra os
dispositivos sacrificiais operados pelo Estado.

3. A militarização da vida e a rebelião pentecostal

No escopo das discussões sobre segurança pública no Brasil, a socialização e a


midiatização de metáforas bélicas como ―guerra as drogas‖, ―ocupação das favelas‖,
―combate ao crime organizado‖, publicitam o nível de militarização do imaginário
político sobre a segurança, sobre os territórios pobres e as populações empobrecidas das
cidades. O olhar conjuntural sobre essa realidade é atravessado por uma lógica militar.
Adota-se o conceito de militarização a partir da definição de Cerqueira como ―um
processo de adoção e emprego de modelos, métodos, conceitos, doutrina,
procedimentos e pessoal militares em atividades de natureza policial, dando assim uma
feição militar às questões de segurança pública‖. (CERQUEIRA, 1998.)

Para a pesquisadora Julia Leite Valente,

159
A ideia central por trás das Unidades de Polícia Pacificadora, a retomada,
re-conquista de território é um reflexo de uma concepção militarizada de
segurança pública que adota o modelo de guerra para o combate ao crime,
sendo o criminoso percebido como inimigo a ser eliminado, os policiais
vistos como combatentes e a favela como território a ser ocupado. Na
primeira parte do seu artigo UPP‟s: observações sobre a gestão
militarizada de territórios desiguais (2014), ela demonstra como o projeto
das UPPs se coaduna com dois elementos que marcam as políticas de
segurança pública no Brasil: a militarização da segurança pública e uma
visão maniqueísta de sociedade que contrapõe civilização e barbárie, esta
geograficamente localizada nas favelas. Na segunda parte, trata do
componente territorial do projeto, a partir da geografia de Milton Santos,
indicando como o projeto pretende uma reestruturação urbana em um
projeto empresarial de cidade. (VALENTE, 2014)

A militarização é, portanto, o itinerário ideológico e institucional através do qual


as lógicas militares são transferidas para o âmbito das políticas de segurança pública.
Diz respeito a maneira como as políticas de segurança pública assimilam e operam
lógicas, estratégias, táticas e discursos próprios do universo da guerra. Num contexto
jurídico onde a segurança pública deveria ser percebida e praticada como exercício
cidadão, ela permanece regida por estatutos e moralidades militares. O núcleo da
militarização consiste na construção ideológica do outro como inimigo a ser eliminado.
Antes essa imagem era projetada contra um ente externo à ordem nacional, agora contra
criminosos concidadãos. A guerra era pensada como política externa, agora transforma-
se em controle social nativo. Este núcleo militarizado que rege as políticas de segurança
pública e as práticas policiais no Brasil, conforme lógica bélica de combate e eliminação
de inimigos, foi potencializado no período da ditadura militar. A militarização da vida e
das relações sociais na cidade do Rio de Janeiro pode ser compreendida como um
resquício estratégico da ditadura militar, ou da exceção que marca história do Brasil. A
construção ideológica do inimigo – à época da ditadura, os comunistas, hoje, os
traficantes/favelados – provoca alterações institucionais, políticas e sociais, consolida a
militarização como estratégia de controle social e amplia a violência estatal. Tudo de
forma bem arquitetada e justificada ideologicamente, teologicamente.

O geógrafo inglês Stephen Graham explicita como o novo urbanismo militar


constitui a vida urbana hoje em todo o mundo (GRAHAM, 2011). Graham sinaliza para
a militarização da sociedade civil, que ele entende como a extensão de ideias militares
para os espaços e circulações cotidianos, fazendo da guerra e da preparação para a
guerra fatos normalizados. Trata-se de uma “militarização da questão urbana”

160
(SOUZA, 2008), que se manifesta no difundido uso da guerra como a metáfora
dominante nas narrativas sobre as sociedades urbanas: guerra contra as drogas, contra o
crime, contra o terrorismo, contra os sobrantes do mercado etc. Na obra citada, Graham
propõe que o processo de militarização da vida cotidiana nas cidades tornou-se um
paradigma de governo do neoliberalismo em todo mundo. Descreve processos de
militarização muito semelhantes aos ocorridos aqui no contexto dos megaeventos e das
implantações das UPP‘s:

Encarceramento preventivo, banimentos e criminalização em massa


começam a puncionar normas legais já precárias do devido processo
legal, habeas corpus, direito ao protesto, direito internacional
humanitário e direitos humanos de cidadania. Cada vez mais as sempre
frágeis noções de cidadania nacional homogênea se desgastam e
desintegram na medida em que diferentes grupos e etnias são
preventivamente perfilados, rastreados e tratados diferentemente. (...) A
lei é empregada para suspender a lei, abrindo a porta para ―estados de
exceção‖ e emergência mais ou menos permanentes (GRAHAM, 2011,
p. 94).

A militarização da vida urbana não seria ―privilégio‖ ou acontecimento isolado


da cidade do Rio de Janeiro. Trata-se de um mote global do neoliberalismo como
biopolítica. Uma variedade considerável de pesquisas apontam para esse fato como um
padrão nas políticas urbanas implementadas pelo neoliberalismo e seu modelo de
cidade-mercado. Um dos pesquisadores mais argutos e profundos em trabalhar esta
relação é o sociológico Loic Wacquant. Em busca das referências originais de seu
pensamento, encontra-se o já clássico artigo "Militarização da marginalização urbana".
A partir deste texto, nota-se o seguinte raciocínio sobre o papel do Estado na gestão do
referido urbanismo militar no interior das cidades-mercado:

O projeto penal do neoliberalismo encerra um paradoxo: pretende


incrementar ―mais Estado‖ nas áreas policiais, de tribunais criminais e de
prisões para solucionar o aumento generalizado da insegurança objetiva e
subjetiva que é, ela mesma, causada por ―menos Estado‖ no front
econômico e social nos países avançados do Primeiro Mundo. Isto reafirma
a onipotência do Leviatã no domínio restrito da manutenção da ordem
pública, simbolizado pela batalha em curso contra a delinqüência de rua e a
migração clandestina que surgiu em todos os lados, precisamente quando o
Estado declara e demonstra ser incapaz de impedir a decomposição do
trabalho assalariado e de conter a hipermobilidade do capital que converge
para desestabilizar todo o sistema social ao esmagá-lo em um brutal e
tentacular movimento de ataque. E, como já mostrei em outros lugares, isso
não é uma mera coincidência: é precisamente devido ao fato de que as
elites estatais, convertidas à nova ideologia dominante do mercado todo-
poderoso irradiada dos Estados Unidos, reduzem ou abandonam as

161
prerrogativas do Estado nos assuntos socioeconômicos que elas devem, de
todas as formas, aumentar e reforçar sua missão nos assuntos de
―segurança‖ – após terem-na reduzido abruptamente à sua única dimensão
criminal – e, além disso, fazer a assepsia do crime da classe baixa nas ruas
em vez de enquadrar as infrações da classe alta nas grandes corporações.
Isso porque expandir o Estado penal lhes permite, em primeiro lugar,
abafar e conter as desordens urbanas geradas nas camadas inferiores da
estrutura social pela simultânea desregulamentação do mercado de trabalho
e decomposição da rede de segurança social. Também permite que os
eleitos para cargos majoritários contenham seu déficit de legitimidade
política com a confirmação da autoridade estatal nessa limitada área de
ação, em um momento no qual têm pouco mais a oferecer a seus eleitores
(WACQUANT, 2007, p. 203).

Para Wacquant, o neoliberalismo encerra um projeto penal para as cidades, em


especial contra os pobres das cidades e em cenários urbanos onde desigualdades sociais
e mecanismos de exclusão são mais gritantes. Parte deste projeto depende da
reconfiguração do Estado no que tange a gestão das políticas sociais e urbanas. Ou,
melhor, da redefinição das funções do Estado em relação à sociedade e ao mercado.
Restaria ao Estado a manutenção da ordem pública engendrada, para não dizer desejada,
pelo mercado. Manutenção da ordem por meio da militarização. As disputas
fundamentais são: por um lado, redução e abandono das funções sociais,
principalmente daquelas que regulam ou impõe limites ao mercado; por outro lado,
aumento e reforço das iniciativas securitárias e criminais. Pratica-se a conformação do
Leviatã Policial, uso da máquina de guerra do Estado contra os sobrantes do mercado.

Nas palavras do próprio Wacquant,

(...) a articulação da extrema desigualdade, da violência das ruas e da


punição em massa nas cidades brasileiras sob o duplo consenso de
Washington na economia de mercado e no controle do crime estimula a
efetiva reductio ad absurdum do Estado a seu aparelho repressivo e à fusão
de suas forças militares e civis para a manutenção da ordem. Isso
transforma a segurança pública em um empreendimento marcial e o
combate ao crime em um campo de prova para uma liderança política
vigorosa voltada para os ―resultados‖ imediatos e tangíveis. E faz com que
a imposição da lei nos e ao redor dos infames bairros de classe baixa se
transforme, literalmente, em uma guerra com seus moradores, com batalhas
armadas e manobras, espionagem e execuções blindadas, controle de
fronteiras e contagem de corpos, extensos ―efeitos colaterais‖ e a vil
demonização do ―inimigo‖ pela mídia e as autoridades, incluindo o visível
―repúdio a qualquer referência aos direitos dos criminosos‖
(WACQUANT, 2007: 215-216).

162
Constata-se que a criminalização da marginalização nas cidades neoliberais ou
as políticas do urbanismo militar consistem na resposta que o neoliberalismo oferece às
crises societárias que ele mesmo cria ao destruir a seguridade social das populações
mais pobres. Nota-se que, num ambiente de alta concorrência e consumo, inflado de
rivalidades criadas entre os sujeitos desejantes de formas-de-vida cada vez mais
individualistas, os conflitos surgirão. E a única resposta possível planejada pelo
neoliberalismo é a repressão, a militarização como forma de governamentalidade, de
biopolítica.
Segundo Negri e Hardt, as democracias neoliberais contemporâneas instalaram
um permanente estado de guerra dentro dos limites da sua jurisdição e tendo seus
compatriotas indisciplinares como inimigos privilegiados. A inovação biopolítica deste
novo contexto global de guerra é que elas não são mais travadas entre combatentes
soberanos, mas entre o soberanos e os indisciplinados do seu próprio território e
nacionalidade. ―Uma guerra empreendida pelo Estado contra os sobrantes de um
modelo excludente de cidadania” (HARDT; NEGRI, 2005). Para estes autores, essa
guerra civil – conceito que usa para descrever as investidas militares do soberano contra
os não-soberanos dentro de um mesmo território – ganhou escalas globais. Eles
defendem que a estrutura do direito internacional no que diz respeito à guerra foi
solapada por esta nova complexidade policialesca do capitalismo global. Desta
perspectiva, a maioria dos atuais conflitos armados do planeta, sejam frios ou quentes –
na Colômbia, em Serra Leoa ou Aceh, entre israelitas e palestinos, entre indianos e
paquistaneses, no Afeganistão e no Iraque – podem ser consideradas como guerras civis
imperiais, mesmo e principalmente quando se identifica o Estado como um dos atores
deste conflito, gerado na maioria das vezes pelo status deste capitalismo
contemporâneo: excludente e genocida. Conclui a ideia defendendo que “não se trata
aqui de guerras isoladas, portanto, mas de um generalizado estado de guerra global
que de tal maneira torna menos distinta a diferença entre guerra e paz que já não
somos capazes de imaginar uma paz verdadeira ou ter esperança nela‖. (Ibidem, 2005.)
Em curso, a militarização, a pacificação e a criminalização dos pobres e da
pobreza operadas pelo Estado neoliberal fez muitas vítimas fatais no Rio de Janeiro –
recorta-se mais precisamente o período histórico marcado pelas implantações das

163
Unidades de Polícias Pacificadoras. Ao instalar um regime biopolítico de exceção74
sobre as favelas da cidade, o dispositivo mítico-teológico do neoliberalismo e sua
biopolítica do sacrifício legitimou e purificou a exclusão, a violência e a morte,
transformando o cotidiano das pessoas numa experiência grave de sofrimento social. As
favelas foram gerenciadas como extensão ideológica e prática dos territórios de exceção
clássicos, como o campo de concentração, nómos da terra na modernidade, sobre o qual
se autoriza a aniquilação da vida indigna de ser vivida, sobre o qual se configura o
homem matável e o abandonado à morte (AGAMBEN, 2002). Pesquisas apontam o
alvo preferencial do dispositivo. Por exemplo, segundo relatório da Anistia
Internacional – Você matou meu filho: Homicídios cometidos pela Polícia Militar na
cidade do Rio de Janeiro, 2015 – que apresentou investigação exclusiva sobre
execuções extrajudiciais, homicídios e outras violações de direitos humanos praticados
pela Polícia Militar na cidade do Rio de Janeiro, o Brasil é o país com o maior número
de homicídios no mundo: 56 mil pessoas foram mortas em 2012, por exemplo. Os
estereótipos negativos associados à juventude, notadamente aos jovens negros que
vivem em favelas e outras áreas marginalizadas, contribuem para a sacralização da
violência. Em 2012, mais de 50% de todas as vítimas de homicídios tinham entre 15 e
29 anos e, destes, 77% eram negros. Como se disse, as políticas de segurança pública no
Brasil são marcadas por operações policiais repressivas nas favelas e áreas
marginalizadas, às vezes sob o uso do conceito fantasmal da ―guerra às drogas‖. Essas
operações militarizadas de larga escala têm resultado em um alto índice de mortes nas
mãos da polícia. Das 1.275 vítimas de homicídio decorrente de intervenção policial
entre 2010 e 2013 na cidade do Rio de Janeiro, 99,5% eram homens, 79% eram negros e
75% tinham entre 15 e 29 anos de idade. Configurado o corte preferencial das mortes
nesta colônia penal chamada Rio de Janeiro: jovens negros e pobres. Em um período de
dez anos (2005-2014), foram registrados 8.466 casos de homicídio decorrente de
intervenção policial no estado do Rio de Janeiro; 5.132 casos apenas na capital. Apesar
da tendência de queda observada a partir de 2011, um aumento de quase 39,4% foi
verificado entre 2013 e 2014. O número de pessoas mortas pela Polícia representa

74
Em Agamben se encontra sólida e rica reflexão sobre o estado de exceção, que, ao instituir o
excepcional com regra, se apresenta como ―a forma legal daquilo que não pode ter forma legal‖, ―essa
terra de ninguém, entre o direito público e o fato político e entre a ordem jurídica e a vida‖ (Agamben,
2004. p.12) Este ―estado de emergência permanente‖, mesmo que não declarado, fundamenta e autoriza o
recurso permanente a medidas excepcionais, deslocando o que antes era ―uma medida provisória e
excepcional para uma técnica de governo‖. (Agamben, 2004. p.13)

164
parcela significativa do total de homicídios. Em 2014, por exemplo, os homicídios
praticados por policiais em serviço corresponderam a 15,6% do número total de
homicídios na cidade do Rio de Janeiro.
A militarização da vida cotidiana nas periferias da cidade do Rio de Janeiro
produz configurações e intensidades novas de violências contra os que não se adequam
ao modelo de cidadania neoliberal. E, neste contexto de guerra urbana, ao eleger as
vidas dos pobres e a juventude negra como vidas sacrificáveis, ao utilizar a violência
institucional do Estado como forma de executar as mortes necessárias à estabilização do
próprio sistema-mercado, a soberania neoliberal e suas biopolíticas do sacrifício geram
também novas formas de sofrimento social.
Pretende-se investigar essas figuras específicas de subjetividades e sofrimentos a
partir da noção de sofrimento social tal como elaborada por Veena Das e Arthur
Kleinman. Questiona-se como certas subjetividades e sofrimentos estão diretamente
implicados na forma como a cidade neoliberal impõe suas violências e tecnologias de
sujeição social. São pesquisas que giram em torno da relação das práticas do poder com
a produção de subjetividades em sofrimentos e traumas. Das e Kleinman definem
sofrimento social numa estética muito semelhante ao funcionamento de um dispositivo
biopolítico. Para eles, sofrimento social seria,

"O ensamblaje de problemas humanos que tem suas origens e


consequências nas feridas devastadoras que as forças sociais infligem à
experiência humana. (...) Deste modo, o sofrimento social se refere à
diversas dimensões da experiência humana, incluída a saúde, a moral, a
religião, a legalidade e o bem-estar, e resulta do que os poderes políticos,
econômicos e institucionais fazem às pessoas, e, reciprocamente, de como
estas formas de poder influem nas respostas aos problemas sociais. Assim,
a descrição de uma experiência de sofrimento - pensemos nos massacres,
nos sequestros prolongados, na tortura e na desaparição - necessariamente
constituem uma apropriação do sofrimentos para usos políticos, usos
determinados por discussões locais e globais. (DAS, 2008, p.25)

Surge aqui a discussão sobre aqueles eventos que podem ser reconhecidos como
traumáticos, socialmente traumáticos. Trauma social, então, designaria a dimensão
coletiva de vivências particularmente ameaçadoras, intensas e desconcertantes feitas no
interior de uma comunidade ou sociedade. Quais são os critérios mínimos que
identificam uma experiência de trauma social? Em 1976, o sociólogo Kai Erikson
propôs o conceito de trauma social para definir o ethos - ou cultura grupal - que é
diferente da soma das feridas pessoais que as constituem, é mais do que estas. Os efeitos

165
traumáticos produzidos pelas socializações, institucionalizações do sofrimento por meio
do poder de fazer sofrer. Neste contexto, Ortega questiona como o conceito de
sofrimento social pode transtornar as redes simbólicas da lei, das comunidades e das
espiritualidades, e as redes imaginárias, da autoridade, da nação e da religião, que dão
sustento à vida social.
Abordar as políticas do sofrimento na cidade neoliberal a partir da teoria crítica
do sofrimento social de Das e Kleinman constitui-se um esforço transdisciplinar entre
filosofia, sociologia, antropologia, psicologia social e ciências da religião com o
objetivo de captar as complexidades de se analisar o neoliberalismo como uma forma
ampla de governo sobre toda a vida humana. As configurações atuais das violências
produzidas pelo neoliberalismo demandam análises mais amplas e articuladas entre as
muitas vertentes da Teoria Crítica. O ponto de partida é que o sociológico, o
psicopatológico, o político, o econômico, o religioso e os programas de pesquisas
antropológicas dedicados ao sofrimento social estão questionando claramente os limites
disciplinares clássicos, levantando questões que não podem ser abordadas por teorias
sociológicas, psicológicas, antropológicas, econômicas ou religiosas isoladamente. Dito
com outras palavras, a questão do sofrimento social mostra que as ciências humanas, às
vezes, não conseguem dizer com clareza sobre o que se experimenta na sociedade, nas
experiências cotidianas.

4. Mães pentecostais contra o estado

As mães dos jovens mortos pelo Estado no âmbito da militarização da vida na


cidade do Rio de Janeiro estão diante de uma complexa e ampla rede de operações
mítico-teológicas. Todas as violências que lhes fazem sofrer foram sacralizadas e
normalizadas no interior das relações sociais na cidade neoliberal. Há uma espécie de
consenso religioso sobre a utilidade de se eliminar os indesejáveis, aqueles que não
podem financiar a vida no empresariamento urbano. A exceção foi autorizada pela
soberania do mercado, a militarização foi implementada como forma de governo das
populações marginalizadas, as políticas neoliberais do sofrimento foram instaladas: o
homo sacer foi consagrado, nomeado, visado, marcado, policiado e morto. O poder e
todos os seus agenciamentos informaram e conformaram a cidade – a opinião
hegemônica – sobre aquela forma de vida indigna de ser vivida, exposta à morte
sacrificial para recuperação da ordem. A biopolítica do sacrifício, desta forma, nomeou

166
os matáveis e rapidamente agenciou a violência legitima/purificada do Estado para
executar suas demandas. O Estado aqui reduz-se à função sacerdotal da racionalidade
mítico-teológica do neoliberalismo. O mercado neoliberal, visível nesta lógica a partir
de suas políticas de urbanismo militar, exerceu a sua soberania e eliminou os
indesejáveis, os sobrantes. Na forma de soberania, o mercado total instrumentalizou a
existência humana e social na cidade e, de igual forma, negociou a destruição subjetiva,
física, social e política daqueles corpos que não lhe satisfazia. Tornam-se
reconfigurados pelo mercado neoliberal qualquer limite entre política, violência e
sacrifício. Tais operações da biopolítica sacrificial não foram sequer vistas como
violência, dadas as alegações de que eram processos necessários para se construir a
ordem pública na cidade-mercado.
Tomando as categorias analíticas de Girard e Hinkelammert como estratégicas
para se investigar as dinâmicas míticos-religiosas operantes no interior das políticas do
sofrimento na cidade neoliberal, supõem-se que a violência institucional gerada pela
militarização da questão urbana foi purificada por dispositivos teológicos, pelas práticas
e linguagens religiosas agenciadas pela pacificação. Percebe-se que violência
institucional gerada no contexto do Rio de Janeiro foi lançada sob o véu do sacrifício,
do sagrado, da religião como dissimulação das violências próprias da razão neoliberal.
Tal governamentalidade não operaria com razoável êxito – ao menos em primeiro
momento – sem purificar ou sacralizar suas violências em justificativas transcendentais,
mítico-teológicas. Neste sentido, o agenciamento das religiosidades populares, em
especial as pentecostais, para legitimação da criminalização, da pacificação e da
militarização tornou-se parte imprescindível do processo, do enredamento do
dispositivo.
A religião fez parte deste dispositivo sacrificial do urbanismo neoliberal desde
seu primeiro movimento de radicação nos processos em tela. Se faz sentido afirmar que
existe uma exceção em curso a partir das lógicas neoliberais implementadas na cidade
do Rio de Janeiro, faz-se necessário, também, mapear a existência e os movimento
teológicos da soberania que lhe corresponde. Não mais a soberania do Estado, mas uma
soberania deslocada ao mercado. E se existe soberania, há biopolítica, há a consagração
do homo sacer, há a criação política da vida indigna de ser vivida, da vida matável. Há,
portanto, religião como forma de controle ou gestão da violência. Logo, seria oportuno
questionar quais noções de transcendência sustentam e justificam o dispositivo

167
neoliberal, sua biopolítica sacrificial e todas as violências institucionais mobilizadas na
cidade do Rio de Janeiro no percurso da militarização da vida.
É preciso analisar como a cidade do Rio de Janeiro recebeu e produziu
modalidades específicas de governamentalidade em torno das noções de criminalização,
pacificação e militarização de territórios e populações empobrecidas e marginalizadas.
E, mais especificamente, como o urbanismo militar empreendido no contexto da
“cidade para o mercado” demandou justificativas e legitimações religiosas, mítico-
teológicas, para se estabelecer como normalidade e purificar suas violências orgânicas.
Para tanto é necessário tensionar uma leitura crítica da cidade do Rio de Janeiro que
leve em consideração a criminalização, pacificação, militarização da pobreza/da vida
do pobre como pontos nodais de um mesmo dispositivo neoliberal, componentes
indissociáveis de uma biopolítica do sacrifício que produziu figuras próprias de
subjetividades e modos específicos de sofrimento social.
Em face destas operações – como sobreviventes e testemunhas do sofrimento
social produzido pelas biopolíticas do sacrifício – emergem as mães pentecostais de
jovens mortos pelo Estado como uma figura de contestação, resistência e rebelião contra
a militarização da vida e seus dispositivos de sacralização da violência. Essas mulheres
pentecostais representam um ponto-de-fuga singular e potente em relação às lógicas
sacrificiais que operam a morte de seus filhos nas favelas da cidade neoliberal. Elas
implicam a fé pentecostal, como afeto e como linguagem, o pentecostalismo como
forma de viver o cotidiano, na luta contra o Estado e suas políticas neoliberais. A
mística pentecostal é constitutiva e determinante na militância política e existencial
dessas mães contra as máquinas sacrificiais do Estado neoliberal. É o fio que sustenta
o luto, a luta, a depressão e a força contra a repressão do Estado para que elas possam
reivindicar a memória a identidade e, muitas vezes, o corpo dos filhos. Se as mães estão
disputando sentidos e narrativas contra o Estado, elas tensionam, também, as
apropriações que o dispositivo da militarização faz da linguagem e das práticas
religiosas pentecostais. Elas colocam a mística em movimento contra um Estado que
agenciou sentidos, programas e atores pentecostais nas favelas como forma de
legitimação e justificação teológica da política de exceção. Logo, as mães-vítimas
disputam, ainda, seu lugar existencial de fé. “Não foi Deus quem matou meu filho, como
eles (os policiais-pastores) dizem. Foi o Estado”. As linguagens sobre Deus, a partir de
campo semântico pentecostal, estão em disputa nas favelas cariocas.

168
Se por um lado o Estado operava discursos religiosos em busca de justificação
transcendental das medidas de extermínio, por outro, a potência subjetiva e afetuosa da
fé pentecostal das mães-vítimas mobilizava atos e linguagens de contestação e rebeldia
contra o Estado. As mães-vítimas levantam protestos animados pela espiritualidade e
articulados pela linguagem religiosa contra os mecanismos de gestão biopolítica.
Subvertem a dor e o sofrimento e lutam contra a invenção ideológica e jurídica de uma
figura sobre a qual se possa autorizar a morte, contra a nomeação institucional de uma
vida que não merece ser vivida. É a força da mística pentecostal produzindo resistências
e desobediências subjetivas e práticas contra as lógicas de um Estado especializado na
fabricação do sujeito bandido, inimigo da ordem e do direito, portanto, matável. Se a
exceção depende de uma lógica religiosa colada ao processo, depende de um rito de
passagem, de um ato de consagração e de uma linguagem teológica de manutenção da
sacralização do sofrimento, para justificar a morte seriada, como num sacrifício
programado, as mães representam o contra-rito, a contra-conduta, a emergência e a
rebelião do sujeito pentecostal contra os dispositivos que capturam a vida e produzem
mortes.
As rebeliões produzidas pela ―mães-vítimas‖ começam no âmbito subjetivo e
comunitário da experiência de fé e se estendem até as disputas narrativas e jurídicas
contra o Estado. Num primeiro momento, as mães rompem com suas próprias
―identidades‖ e formações religiosas, a partir das referências que encontram em suas
próprias experiências espirituais. Percebem-se estranhas às próprias comunidades
crentes, por não conseguirem mais articular suas espiritualidades num âmbito discursivo
que, em última instância, sacraliza e justifica as políticas de morte que acometeram seus
filhos.
Há um conflito aberto entre o crer subjetivo – agora desafiado pela experiência
do sofrimento social gerado pela militarização – e as formas institucionais do crer
veiculadas pelas suas comunidades de fé, discursos e práticas insistentemente
agenciados como forma de purificação ideológica da pacificação. Eu diria que a religião
pentecostal em seu caráter ―potência‖ (a economia de subjetividade dos sujeitos, p.ex., a
fé das mães-vítimas) debate-se contra a religião em sua forma-poder religioso (as
formas sociais da religião, as crenças formais e normalizantes das igrejas e das
lideranças). A experiência religiosa pentecostal guarda esta margem de desconstrução
subjetiva contra os próprios sistemas religiosos por meio de brechas fenomenológicas e
epistemológicas, conhecidas no cotidiano das experiências religiosas, onde se disputam

169
as políticas da interpretação do religioso e dos sentidos de sua ―atuação‖ na sociedade.
Um exemplo disso é a noção de “revelação”, ou do ―falar por revelação”. Trata-se de
uma performance extático-corporal que instala outra temporalidade, outra afetividade,
outra estética, outra linguagem e outra política no interior de uma comunidade religiosa
em seu momento litúrgico. É uma operação do sujeito, que se diz possuído pelo
Espírito, por meio da qual certa fala ou testemunho ganha uma autoridade de novo tipo,
ocupa o espaço litúrgico e desafia as autoridades institucionais, suas hermenêuticas de
textos bíblicos, suas exposições das doutrinas teológicas. Quando se diz que ―deus está
revelando algo‖, na prática o que está acontecendo é que uma linguagem espontânea,
informal, não-programada, imprevista, está entrando em circulação no espaço litúrgico
e, em muitos casos, o que está sendo ―revelado‖ desautoriza, desestabiliza o discurso
institucional em curso. Como se a “revelação” fosse a narração extático-corporal dos
menores, dos fracos, dos esfarrapados da religião-poder. Essa lógica da “revelação” foi
um caminho potente de contestação na experiência de uma das mães-vítimas que, no
momento da perda de seu filho, integrava uma igreja neopentecostal liderada por um
pastor que, ao mesmo tempo, era comandante do BOPE na comunidade. Em reuniões
onde o líder religioso acionava os textos bíblicos para justificar as políticas de morte da
pacificação, a mãe-vítima, de dentro do êxtase espiritual da “revelação” e a partir da
sua experiência de sofrimento, se rebelava contra a justificação teológica dada à morte
de seu filho. Desta forma, o ambiente espiritual pentecostal, com todas as suas brechas e
margens performativas, fornece variadas linhas de fuga para ―crentes cheios do
Espírito‖ que querem contestar as lógicas do mundo ao redor. Quero dizer que as
experiências extático-corporais típicas do pentecostalismo popular podem exercer mais
poder libertador que certos discursos institucionais, em disputas de significado no
interior das comunidades de fé. O êxtase, o corpo, a lágrima, a experiência da dor, o
relato da perda, portanto, são elementos que empoderam o “testemunho destruidor” que
as mães-vítimas proferem contra as lógicas (religiosas) de segurança pública em curso
na pacificação.
As mães-vítimas são impulsionadas a contestar a forma como o discurso
hegemônico entre os evangélicos pentecostais, dada a carga de moralismos
individualizantes e legalismos farisaicos, vinculam teologicamente ilegalidade,
criminalidade, violência e pecado. Na teologia política majoritária entre os evangélicos,
desobedecer ao Estado, cometer ato criminoso, viver às margens da legalidade
confunde-se com “estar em pecado diante de deus”. Portanto, ter filho ―bandido‖,

170
―aparentemente bandido‖ (sob critérios estético-raciais de quem?), ―envolvido‖,
―criminoso‖, ou apenas trajando o estigma de criminoso: jovem, negro, pobre e
favelado, já significa viver às sombras do pecado e sob a ameaça da justiça punitiva do
deus, que sempre se manifestaria por meio do Estado. Neste contexto religioso, a
obediência à norma, ao direito, ao Estado e “às autoridades constituídas por deus” é
vinculada à noção da santidade cristã.
Outro aspecto deste discurso moralista tem relação com uma lógica binário-
maniqueísta que marca drasticamente a forma como esses religiosos compreendem o
mundo. Não há muito espaço para ambuiguidades, complexidades, negociações e
interpenetrações entre as polaridades morais. O bem e o mal estariam em guerra
espiritual. E todas aquelas figuras que aparentam o diabólico – segundo critérios
biopolíticos marcados pelo racismo, pela pobreza e pela demonização do crime – devem
ser compreendidas e nomeadas inimigas do bem, da paz e, em último grau, inimigos de
deus. Em certa medida, quando uma parcela significativa dos evangélicos ouve os
discursos do Estado sobre “guerra ao crime” e “guerra às drogas”, é na codificação da
“guerra espiritual” contra a ação diabólica no mundo que eles interpretam tais
movimentos e, por isso, tendem a aderir. E, no caso do Rio de Janeiro, o Estado
mobilizou conscientemente esse universo simbólico da guerra espiritual como forma de
envolver suas violências nas auras apocalípticas da salvação do mundo favelado.
Além de reforçar o espaço mítico-transcendental que a Lei ocupa no imaginário
evangélico majoritário, tal postura sacralizou e justificou as violências cometidas pelos
agentes de segurança pública e as mortes de muitos jovens marcados pela insígnia do
sacrifício. Não há por que se questionar a ação dos agentes públicos de segurança, não
há por que questionar a irracionalidade bruta do Estado, já que todas as mortes
concretas que estavam acontecendo ali decorreriam “naturalmente” da desobediência
espiritual de cada um deles. Ou seja, os que morreram nas favelas, morreram
espiritualmente antes. Não foram mortos pelo Estado, mas sacrificados na guerra
espiritual. Morreram porque já estavam mortos na dimensão espiritual. Ambientar a
pacificação no cenário da guerra espiritual foi a forma como o Estado criou um espaço
sagrado dentro do qual suas ações violentas não seriam percebidas e julgadas desta
forma, já que no espaço sagrado não há discussão política ou moral que caiba. O espaço
sagrado é anômico por definição. Conseguir que uma política pública operasse no
interior desta “indeterminação política absoluta”, no espaço do sagrado, por meio do
uso estratégico do universo simbólico pentecostal da guerra espiritual, foi um dos êxitos

171
estratégicos do início da pacificação, pelo menos entre os religiosos e religiosas que
transitam esses espaços de sentido.
As mães recusam esta narrativa. Desvinculam Deus e as noções de pecado da
morte de seus filhos. Elas são capazes de perceber o jogo de linguagens políticas que
estão sendo manejadas aqui para envolver as ações do Estado nos feitiços do sagrado. E,
por isso, são capazes de atribuir responsabilidade aos produtores reais do sofrimento
social acumulado pela pacificação. Em certo sentido, elas invadem os espaços sagrados
ocupados pelos agentes públicos, o espaço inquestionável, profanam tais rituais e
retiram os agentes públicos de lá, para que finalmente possam ser, ao menos
politicamente, julgados pela violência que produziram voluntariamente, não por algum
encargo diabólico-divino.
Em seus protestos públicos, em audiências, vigílias, círculos de oração,
manifestações políticas, as mães pentecostais vítimas da violência do Estado começam
por questionar a pretensa soberania do Estado e o acesso que algumas narrativas
teológicas permitem aos agentes de segurança para que ocupem o lugar sagrado de
autorização da exceção e do sacrifício. Em síntese e em linguagem teológica, as mães
não permitem que os agentes públicos ocupem o lugar do sacerdócio, criado pelo
discurso teológico legitimador da violência sacrificial da UPP. E elas vão utilizar as
linguagens teológicas pentecostais para disputar os sentidos teológico-políticos em
circulação na pacificação.
“Juiz, nem vossa excelência, nem nenhum policial e nem o governador desse
Estado tem autoridade para condenar nossos filhos à morte”. “Deus é soberano sobre
a vida e a morte, e vocês vão prestar contas a Ele pelo que estão fazendo no Rio de
Janeiro”. “Deus vai fazer justiça contra vocês que assassinaram nossos filhos”. As
referências constantes à uma outra transcendência, que seria última julgadora das
instâncias do Estado, que, na realidade, julga a si próprio como a última transcendência
da sociedade, relativiza, enfraquece e esvazia a sacralidade do Estado.
Experiencialmente, sabem que a soberania é uma construção virtual. Sendo assim,
radicalizam a virtualização e expõem à uma crítica máxima aquelas instituições do
Estado que se arrogam incriticáveis, inatingíveis, intocáveis, sagradas. E tal crítica
ganha ainda mais força porque feita em linguagem e performance religiosa, dentro de
espaços públicos como o Tribunal de Justiça do Rio, por exemplo. Espaços que se
autoproclamam secularizados, racionalizados. Mas, na realidade, são espaços altamente
religiosos, ritualizados e magicizados. E essa contradição faz com que as críticas

172
teológicas das mães-vítimas ecoem com força constrangedora nesses espaços. São
críticas feitas por ímpeto religioso. Mas, o que e como fazem, considerando o contexto
de sofrimento social em que se encontram e as escandalosas sacralizações que
sustentam a violência do Estado, confere força política e histórica exemplar e
pedagógica.

Referências bibliográficas

AGAMBEN, Giorgio. A comunidade que vem. Lisboa: Editorial Presença, 1993.

______. Altíssima pobreza: regras monásticas e formas de vida. Tradução e


apresentação Selvino J. Assmann. São Paulo: Boitempo, 2014.

______. Estado de Exceção. São Paulo: Boitempo, 2007.

_____. Homo Sacer: o poder soberano e a vida nua I. Belo Horizonte: Editora da
UFMG, 2002.

ALMEIDA, Ronaldo. “A expansão pentecostal: circulação e flexibilidade‖. In:


TEIXEIRA, Faustino; MENEZES, Renata (orgs.). As religiões no Brasil: continuidades
e rupturas. Petrópolis: Vozes, 2006.

BIRMAN, Patrícia. Cruzadas pela Paz: Práticas Religiosas e Projetos Seculares


Relacionados à Questão da Violência no Rio de Janeiro. Religião e Sociedade, v. 32, nº.
1: 209-226. 2012

______ e MACHADO, Carly. A violência dos justos: evangélicos, mídia e periferias da


metrópole‖. Revista Brasileira de Ciências Sociais, v. 27, nº 80: 55-69. 2012.

BUTLER, Judith. Precarious Life: the powers of mourning and violence. London/NY:
Verso, 2004.

DAS, Veena e POOLE, Deborah (Org.). Anthropology in the Margins of the State.
Santa Fe: School of American Research Press, 2004.

DAS, Veena. Sujetos del dolor, agentes de dignidad / ed. Francisco A. Ortega. –Bogotá:
Universidad Nacional de Colombia, Facultad de Ciencias Humanas e Pontificia
Universidad Javeriana, Instituto Pensar. 2008, 568 p. – (Lecturas CES)

MACHADO, Carly. "É muita mistura": projetos religiosos, políticos, sociais,


midiáticos, de saúde e segurança pública nas periferias do Rio de Janeiro. Religião e
Sociedade. 2013, vol.33, n.2, pp.13-36.

CERQUEIRA, Carlos Magno Nazareth. Questões preliminares para a discussão de


uma proposta de diretrizes constitucionais sobre a segurança pública. Revista
Brasileira de Ciências Criminais, ano 6, nº. 22, p. 139-182, 1998.

173
GIRARD, René. A Violência e o Sagrado. São Paulo: Paz e Terra, 1990.

GRAHAM, Stephen. Cidades Sitiadas: o novo urbanismo militar. São Paulo: Boitempo,
2016. 504 p.

HARDT, Michael e NEGRI, Antonio. Multidão: Guerra e democracia na era do


Império. Tradução de Clóvis Marques e Revisão Técnica de Giuseppe Cocco. Rio de
Janeiro: Record, 2005.
MARIANO, Ricardo. Neopentecostais: sociologia do novo pentecostalismo no Brasil.
São Paulo: Loyola, 2000.

SOUZA, Marcelo Lopes. A militarização da questão urbana. Lutas Sociais, São Paulo,
n.29, p.117-129, jul./dez. 2012.

VALENTE, Juliana. UPPS: observações sobre a gestão militarizada de territórios


desiguais. Rio de Janeiro: Revista Direito e Práxis, vol. 5, n. 9, 2014, pp. 207-225.

VITAL DA CUNHA, Christina. Evangélicos em ação nas favelas cariocas: um estudo


sócio‐antropológico sobre redes de proteção, tráfico de drogas e religião no Complexo
de Acari. Tese de doutoramento. Rio de Janeiro: PPCIS/UERJ, 2009.

VITAL DA CUNHA, Christina. “Traficantes evangélicos”: Novas formas de


experimentação do sagrado em favelas cariocas. In: Plural – Revista do Programa de
Pós‐graduação em Sociologia da USP, São Paulo, vol. 15, 2008.

WACQUANT, Loïc. Rumo à militarização da marginalização urbana. Discursos


Sediciosos, 15 – 16, 203-220p. 2007.

174
Judith Butler: Filósofa da vulnerabilidade

Felipe Dutra Demetri75

RESUMO: Pretendemos neste artigo apresentar Judith Butler como uma filósofa da
vulnerabilidade. Nesse sentido, encontramos nas obras iniciais da filósofa elementos
para repensar a categoria do sujeito. A maioria das leituras de Butler salienta o conceito
de performatividade, e embora essa categoria seja central, ela não é a única que Butler
lança mão para reconsiderar o sujeito. A vulnerabilidade apareceria aí como elemento
chave na formação subjetiva. Nas obras pós 11 de setembro, vulnerabilidade reaparece,
mas para salientar a precariedade constitutiva da vida. Nesse momento de sua obra,
Butler tematiza questões como ética, luto e enquadramentos normativos. Procuramos
sistematizar a noção de vulnerabilidade para a filósofa norte-americana passando por
quatro possíveis dimensões extraídas de sua obra.

PALAVRAS-CHAVE: Judith Butler, vulnerabilidade, precariedade, resistência, ética.

Introdução

Sabe-se que a vulnerabilidade enquanto conceito parece ser acompanhada do


qualificador ―social‖, estando tal ideia intimamente associada à dinâmica dos riscos
(MONTEIRO, 2011). Uma sociedade complexa, como se costuma dizer, atravessada
por um lado, por dinâmicas macroeconômicas que expõem populações à pobreza e ao
risco e, por outro, desastres naturais cada vez mais frequentes (BECK, 1992). O risco
aparece nessa gramática como um fator inevitável ou, na melhor das hipóteses,
mitigável. As profundas transformações que a humanidade exerce, condição indelével
para o progresso e desenvolvimento na modernidade, tem como subproduto inevitável
um fator de imprevisibilidade e de resultados inesperados, como ocorre em todo sistema
que se preze. Nesse sentido, o léxico das organizações multilaterais, como Banco
Mundial (2012, 2018), assume um tom cínico, porém não menos preciso: a

75 Mestre em Psicologia Social pelo Programa de Pós-graduação em Psicologia da Universidade Federal


de Santa Catarina. Doutorando no Programa de Pós-graduação Interdisciplinar em Ciências Humanas pela
mesma instituição.

175
vulnerabilidade é algo que precisa ser gerido. A ―gestão‖ da vulnerabilidade, nesse
contexto, expõe uma operação explicitamente biopolítica. Os eufemismos que esses
documentos lançam mão pouco conseguem esconder um quadro futuro já antevisto: as
transformações futuras do capitalismo, da democracia liberal e do meio ambiente
levarão a maior desigualdade social e mais exposição aos desastres naturais.
A vulnerabilidade pode assumir um sentido ainda mais sinistro: como condição
inevitável de determinadas populações, mulheres, negros, índios, lésbicas, gays,
população trans, pessoas com deficiência. Ora, os pesquisadores, ao insistirem nessas
articulações, não estariam eles próprios reiterando essa posição? Isso não é negar que
não haja uma maior vulnerabilidade, mas daí não deve se seguir que a vulnerabilidade é
característica indelével de determinadas populações. E pior: muitas vezes acompanha tal
discurso um enunciado implícito de tutela, esvaziando a agência política desses atores.
Nesse sentido, todo e qualquer conceito, especialmente aqueles usados à exaustão e sem
rigor teórico de uso e definição, pode nos lançar em armadilhas e becos sem saída. O
quadro é ainda menos animador quando o campo progressista adere a tal receituário,
como parece ser o caso com a vulnerabilidade.
Nesse sentido, a filósofa norte-americana Judith Butler vem desenvolvendo
pesquisas que recolocam o problema da vulnerabilidade em termos filosoficamente mais
precisos e inovadores. A autora, que vem sendo recepcionada no Brasil pelo viés dos
estudos de gênero e sexualidade, explorou nos últimos anos temas da política em
contextos globais, como em Precarious Life (2004), Frames of War (2009) e Notes
Toward a Performative Theory of Assembly (2015). Butler admitidamente não
abandonou os estudos de gênero e sexualidade; entretanto, propomos neste artigo um
outro uso possível de Butler, elegendo, como eixo articulador de uma parte significativa
de sua obra a noção de vulnerabilidade. Nesse sentido, vamos passar em revista as
principais obras da filósofa, com o esforço de demonstrar que vulnerabilidade, assim
como a noção mais consagrada de performatividade, é um conceito chave para acessar
seu pensamento. Não temos como objetivo sugerir que a teorização da filósofa
componha um panorama coerente do início até o presente momento; acreditamos que o
pensamento se dá e se concretiza (provisoriamente) através de rupturas. Ao mesmo
tempo, não devemos renunciar tão facilmente o esforço de encontrar determinadas
regularidades, preocupações reiteradas, problemas que se atualizam. Para demonstrar a
importância da vulnerabilidade, precisamos consultar algumas obras em que tal ideia

176
não aparece explicitamente. Tal recurso, porém, será útil para situar o pensamento de
Butler em face de uma preocupação constante: o corpo e sua relação com o poder.

Poder e performatividade: idiossincrasias do sujeito linguístico

Judith Butler tem como marco inaugural de suas grandes obras o livro Gender
Trouble (1990). Contudo, já tinha intensa atividade intelectual antes da publicação deste
livro, o segundo de sua bibliografia. Antes disso, havia trabalhado e expandido sua tese
de doutoramento, que culminou em Subjects of Desire (1987), uma revisão da recepção
francesa – Foucault, Lacan, Kristeva, Deleuze – da filosofia hegeliana sob o ângulo do
desejo. O desejo, sabemos pela leitura kojèviana de Hegel, é um conceito decisivo na
metanarrativa do senhor e do escravo; o anseio pelo reconhecimento que possibilita e
configura a tenacidade do indivíduo na sua existência social.
A década de 1980, período de maturação intelectual de Butler e a escrita dessas
duas obras acima mencionadas, foi um momento pródigo na discussão política e
intelectual norte-americana. Destacamos, primeiro, os intensos debates sobre o sujeito
do feminismo, que tem sua produção mais destacada, talvez, nas críticas do feminismo
negro ao feminismo branco, como em Angela Davis e bell hooks. Por outro lado, era
época do início e da rápida expansão da epidemia de AIDS nos Estados Unidos e em
diversas outras partes do mundo. Viu-se surgir essa figura do aidético, esse doente
frágil, exposto, vulnerável (MISKOLCI, 2015). Os movimentos sociais que tomaram
para si a tarefa de disputar o valor daquelas vidas, organizando vigílias públicas que
chamavam atenção para aquelas mortes, foram influências decisivas no pensamento de
Butler. O luto como uma categoria política; a vida como objeto do poder. Ainda, o ball
culture nova-iorquino e as expressões performáticas de drag queens também causaram
forte impressão na filósofa, exemplificando a urgência de questionar a estabilidade da
categoria de identidade, tão cara a determinados movimentos.
Em 1988, Butler publica um artigo em que ensaia sua consagrada noção de
performatividade: Performative acts and gender constitution: an essay in
phenomenology and feminist theory (BUTLER, 1988). Nesse período, influenciada pelo
pensamento existencialista (Beauvoir) e fenomenológico (Merleau-Ponty), Butler
contesta a noção de uma essência do gênero; para a autora, os códigos e as sanções
morais seriam um script pré-dado cuja realização depende de sua reiteração continuada.
Nesse sentido, o gênero, longe de possuir uma essência, encontra-se na própria
177
realização superficial de seus atos; isto é, ele não ―se expressa‖ como um locus
imanente da agência pressuposta e generificada, sendo melhor entendido como
resultante de atos corpóreos estilizados que instituem uma ilusão exterior de identidade.
Outro artigo desse mesmo período, Foucault and the Paradox of Bodily
Inscriptions (BUTLER, 1989), Butler lança uma ideia importante que será fundamental
mais adiante. A autora percorre uma tensão interna encontrada no texto foucaultiano,
realizando o gesto desconstrutivo de opor o autor aos seus próprios pressupostos. A
filósofa encontra dois posicionamentos conflitantes de Foucault a respeito do corpo: um
Foucault ―oficial‖, em que o corpo não pode ser pensado fora dos dispositivos de poder;
um Foucault ―subterrâneo‖, em que o corpo apareceria como mera superfície de
significados históricos. Butler renega veementemente qualquer posição que coloque o
corpo como mera ―superfície de inscrição‖, como receptáculo passivo de significados
históricos; para a autora, o corpo tem responsividade, reações, resistências. É preciso,
vamos dizê-lo assim, fazer uma opção, com suspeição crítica, pelo Foucault ―oficial‖.
Em Gender Trouble, Butler (BUTLER, 1990) se lança definitivamente no
projeto de uma ―genealogia do gênero‖. A psicanálise é questionada como mais uma
modalidade de produção cultural generificada e heterossexista. Para a filósofa, há
pressupostos problemáticos e não-questionados que perduram na psicanálise. Mas
Butler não entende a psicanálise como um monólito. Há tensões internas, contradições,
derivas importantes e subversivas que podem nos conferir caminhos importantes, como
a noção de mascarada de Joan Rivière. Ainda, outro alvo de Butler é o estruturalismo de
Lévi-Strauss e o apelo à distinção fundamental entre natureza e cultura. Tal
diferenciação serve aos propósitos de uma reiteração cultural do sexo como apoio fático
e biológico. Há que se questionar esse aparato, denunciando o recurso ao sexo e à
natureza como mais um estratagema cultural envolvido na produção do binarismo de
gênero e da compulsoriedade da heterossexualidade. Nesse sentido, a autora defende a
ideia de performatividade, recusando conceber o gênero como uma essência do
indivíduo. Para Butler, o gênero é encontrado na repetição estilizada e sancionada de
atos corporais; esses atos dissimulam uma essência interna, uma verdade do indivíduo.
Tal intento leva Butler a questionar a política identitária, sempre envolvida na produção
de exclusões constitutivas, isto é, a rejeição fundamental de um Outro ao qual me
oponho (mas que permanece incluído pela exclusão). Butler aposta numa política da
paródia (BUTLER, 1990, p. 146), em que a citacionalidade – a repetição continuada –
do gênero é posta em relevo, e que traz para o centro da ação política a subversão do

178
gênero como possibilidade de garantir formas mais democráticas de conviver com
outras modalidades de expressão corpórea.
Butler recebe um forte influxo de críticas depois de Gender Trouble e Bodies
that matter (BUTLER, 1993) é como que uma resposta a esse momento. Para alguns
autores, Butler teria ―desconsiderado‖ o corpo. Acusam-na, ironicamente, de praticar o
gesto que renegou, isto é, o corpo como mera malha passiva de significados. Mas Butler
insiste na sua posição: tentar rastrear o corpo parece sempre levá-la para fora do corpo,
e talvez, diz a filósofa, essa seja uma das características principais do corpo (BUTLER,
1993, IX). O apelo à materialidade (corpórea) é tema antigo, que remonta à filosofia
grega clássica: em Platão, segundo Butler, o feminino estaria identificado com uma
―forma‖ que confere ao masculino sua plena materialidade. Mas é inócuo, adverte
Butler, meramente inverter essa fórmula, gesto que Luce Irigaray pratica em sua teoria.
Isto é, apostar numa materialidade feminina. Esse caminho, embora tentador, insiste na
exclusão constitutiva de outras modalidades de materialidade (BUTLER, 1993, p. 43). É
preciso uma modalidade de crítica teórica e prática que se comprometa mesmo com as
materialidades renegadas e excluídas. Ainda, nesse livro Butler expande a noção de
performatividade para abarcar os atos de fala que conformam o campo discursivo no
qual algo como um corpo pode ser concebido; em um modelo análogo ao de Foucault
em Vigiar e punir (1987), Butler identifica os discursos responsáveis por conformar
uma zona de possibilidades do gênero como uma dimensão possível da
performatividade.
É em Psychic Life of Power (1997a) e Excitable Speech (1997b) que Butler
introduz, de forma mais ou menos sistemática, o que entende por vulnerabilidade,
lançando-se numa empreitada de reconsiderar o sujeito foucaultiano à luz de
contribuições da psicanálise. O caminho percorrido até aqui fora importante para situar
o lugar dessa opção teórica na obra da filósofa. Em Psychic Life of Power, Butler quer
fazer convergir esses dois campos teóricos que pouco dialogam: a teoria normativa do
sujeito de Michel Foucault (1987) e a teoria psicanalítica freudo-lacaniana. Com efeito,
para Butler esse diálogo é importante para dar um passo além em um paradoxo reiterado
do sujeito: se se admite que o poder como elemento decisivo da cena da formação
subjetiva (a subjetivação) do sujeito, seria o sujeito totalmente assujeitado ao poder?
Qual o nível desse assujeitamento? Há espaço para a agência? Renegar o poder não
parece ser opção. Tal intento poderia levar a uma espécie de humanismo em que poder e
sujeito estão dissociados e em polos opostos. Ainda, Butler considera importante

179
reabilitar, mesmo que de forma crítica, as potencialidades da categoria de sujeito. O
poder que age no sujeito não se transmite inalterado: o poder é vulnerável às
renegociações, produzidas nas reiterações do sujeito desse poder. Portanto, o paradoxo
do sujeito, em Butler, assume o sentido de uma profunda ambivalência: o poder que age
no sujeito é que justamente possibilita sua agência, ou melhor, uma forma condicionada
de agência. A vulnerabilidade, nesse sentido, é uma categoria chave para entender a
formação do sujeito: se não podemos pensar o sujeito sem o poder, há então uma
vulnerabilidade fundamental do sujeito a um poder que não é seu e que lhe precede.
Butler conclui afirmando: ―Essa vulnerabilidade qualifica o sujeito como um tipo de ser
explorável‖ (BUTLER, 1997a, p. 20). Explorável, e não explorado. O poder pode
subordinar, mas, paradoxalmente, toda e qualquer possibilidade de agência e de
resistência precisam passar pelo poder. A vulnerabilidade, logo, não se distancia da
resistência.
No livro Excitable Speech (1997b) há uma espécie de complemento a essa
teorização. Butler explora a vulnerabilidade linguística do sujeito para pensar a de
liberdade de expressão. Para a autora, nomear e insultar tem uma relação íntima, que a
autora sublinha na expressão em língua inglesa to call a name: receber um nome ou um
insulto é estar sujeito a algo que não se desejou, que não era propriamente ―meu‖, e que
me introduz numa determinada economia de significados. A nomeação, portanto,
comporta esse aspecto de injúria e de dano primário (BUTLER, 1997b, p. 4). Mas é ao
mesmo tempo a possibilidade de ter algo ―meu‖: ter um nome é condição mínima de
sociabilidade e de existência social. Em sentido similar, Butler insiste que é inócuo
insistir na fixidez de certas palavras, isto é, reiterar o lugar ―sagrado‖ de determinados
epítetos como sempre e automaticamente injuriosos. Ser vulnerável a eles não significa
que se será sempre vulnerável. A própria palavra queer, que dá nome à teoria queer,
representa essa subversão de determinadas noções: é preciso apostar no deslocamento
de significados, na quebra dos contextos, no poder da citacionalidade, na
vulnerabilidade própria do poder, sua permeabilidade e abertura à subversão.
Butler encontra em Antígona a representação literária do gesto de apropriação e
subversão das normas, posição explicitada no livro Antigone‟s Claim (2000). Com
efeito, a obra artística foi sujeita a intensa leitura teórica, e Butler problematiza alguma
das interpretações consagradas sobre a peça. Para Hegel, citado por Butler, Antígona
encarnava a oposição das leis divinas em relação às leis da polis. Antígona estaria
situada fora da polis, em posição de exterioridade às leis dos homens (BUTLER, 2000,

180
p. 17). Em Lacan, também citado na obra acima mencionada, Antígona teria escolhido a
opção da morte por desafiar os comandos do parentesco. Sua posição aberrante só
poderia levar a tal resultado (BUTLER, 2000, p. 54). Quanto a Hegel, Butler argumenta
que embora seja verdade que Antígona desafia as leis da polis, ela ainda assim se vale
de um linguajar jurídico para demandar o enterro adequado do seu irmão. Nesse sentido,
ela estaria, no mínimo, em uma posição ambivalente. Já sobre Lacan, Butler critica a
noção subjacente de simbólico, conceito que teria sido reduzido a um conjunto de
posições estanques que fixam os termos do parentesco. Em ambas interpretações há um
núcleo de poder não questionado que situa Antígona na posição de abjeção, de radical
exterioridade e de impossibilidade lógica. Para Butler, porém, tal descrição não passa de
mera opção. Antígona não está fora nem do simbólico nem da polis; vulnerável a ação
dos poderes instituídos, ela ainda assim encena um ato de resistência possível com as
condições materiais e discursivas que dispõe para resistir ao comando injusto. O apelo
ao simbólico como categoria transcendente – que infelizmente é reiterado por alguns
psicanalistas lacanianos – está dentro da órbita de uma estratégia que visa rejeitar e
reiterar a posição de aberrante e de abjeção a determinadas populações (BUTLER,
2000, p. 69).

Corpos precários, vidas que importam

Em termos de marcos temporais, chegamos nos anos 2000. Sabemos que o


acontecimento inaugural dessa década foi o atentado terrorista de 11 de setembro,
vitimando milhares de pessoas em Nova York. Esse evento interpela Judith Butler em
sua teoria e seus posicionamentos políticos. A própria filósofa documenta um certo
clima de censura voluntária que se seguiu ao evento, em que se demandava um apoio
cego e acrítico aos Estados Unidos e sua resposta bélica (BUTLER, 2004). Butler não
tinha intenções de se juntar a esse coro. Cerca de seis meses após o atentado, Butler
denuncia, em artigo de opinião, a detenção indefinida que os Estados Unidos aplicavam
nos presos de Guantánamo, destituídos de garantias, fora dos marcos da legalidade
(BUTLER, 2002). Há, nesse ponto da obra butleriana, uma sensível influência do autor
italiano Giorgio Agamben (2002; 2008), filósofo que teorizou sobre o Estado de
exceção como paradigma de governo e a vida nua como potencial situação de abertura e
exposição à morte pelo poder soberano. Mas, como veremos, Butler futuramente toma
uma posição mais crítica em relação a Agamben.
181
Talvez o primeiro ponto de afastamento pode ser encontrado em Precarious Life
(BUTLER, 2004), explicitamente pela questão da vulnerabilidade. Butler sugere que há
meios de distribuir a vulnerabilidade, a exposição ao risco e ao perigo, de forma
desigual. É preciso ter em mente esse aspecto do poder responsável por proteger e
vilipendiar vidas de forma discriminada. Há aí um primeiro ponto de ruptura com a
noção mais genérica de vida nua de Agamben, que parece ser um diagnóstico
generalista, ou, pelo menos, uma situação em potencial. Butler exemplifica tal questão
através do luto. Para Butler, o trabalho de enlutamento nos ajuda a iluminar uma
distribuição desigual de valores sobre a vida. O fato que choramos uma morte e não
outra, especialmente no contexto do conflito norte-americano contra o terrorismo, nos
informa que existem mecanismos normativos responsáveis por regular o fluxo de
distribuição de valores sobre as vidas (BUTLER, 2004, XII).
A vulnerabilidade parece começar a informar também a teorização de Butler
sobre ética. Primeiro, há um elemento corpóreo indelével nas demandas que a ausência
do corpo do outro provocam no trabalho de luto: a falta de um corpo que abre a
possibilidade para uma crítica da violência. Segundo, Butler recupera de Emmanuel
Levinas a primazia da vulnerabilidade do Outro no sistema de obrigações éticas. Para
Levinas, a extrema precariedade constitutiva do Outro cria demandas de proteção – se
reconheço que minha possibilidade de existência é atravessada pelo Outro, isso nos
convoca a admitir um liame mais claro que nos vincula uns aos outros, e que nos
possibilita pensar em uma prática política não-violenta (BUTLER, 2004, p. 131).
Terceiro, em Giving an account of oneself (BUTLER, 2005), a partir da influência de
Adriana Cavarero, filósofa arendtiana, o reconhecimento do diagnóstico da condição
humana enquanto precária deve nos levar a recolocar o sentido da indagação ética
―quem sou eu?‖ para um ―quem és tu‖, abrindo-se para o Outro, para a alteridade
(BUTLER, 2005, p. 46). Butler tematiza, nesse sentido, a falibilidade do relato: quando
articulo uma narrativa ―minha‖, essa discursividade depende de uma despossessão do
discurso em que o sujeito aparece como objeto da própria narrativa. É que para Butler a
condição da ―falabilidade‖ é ser atravessada pelo Outro.
O reconhecimento dessa precariedade constitutiva, porém, não é sinônimo de
inação, de passividade, de exclusão da polis. Butler tematiza tal ponto em Who sings the
nation state? (2007), em que se expõe os limites da vida nua de Agamben. Para o
italiano, a instituição de um poder soberano implica na inclusão (mediante exclusão) de
uma esfera da vida, a vida nua, que permaneceria numa região de indeterminação, de

182
limbo. A face oposta ao poder soberano é a esfera da vida nua, uma vida à mercê do
poder (AGAMBEN, 2002). Para Butler, porém, tal noção pode nos levar a conceber
uma vida em que o poder se situa numa posição de exterioridade. Nada mais
equivocado. A posição de Agamben repete um diagnóstico em que a vida está à merce
do poder; a vida nua, para Butler, insiste na posição de exclusão da polis. Adverte a
filósofa, nesse sentido, que os dispositivos encarregados de criar essa ―exclusão‖ – de
pessoas trans, de lésbicas e gays, de negras e negros, de refugiados – não são ausentes
de poder, mas sim saturados e regidos pelo poder. Não se trata de pensar mais em
termos de exclusão, mas de uma inclusão em um outro ―estado‖. É por isso que, como
provoca a filósofa, é difícil pensar no ―apátrida‖ (stateless) como alguém que está ―sem-
estado‖. Ainda, é preciso que, mesmo teorizando essa ―exclusão‖, encontre-se meios de
conceber, teoricamente, modalidades de subversão e resistência. Butler se inspira na
Hannah Arendt de O declínio dos direitos do homem e o fim do Estado-nação
(ARENDT, 1989, p. 300) para enunciar uma modalidade performativa de resistência ao
poder. Assim como Arendt concebia uma espécie de ―direito a ter direitos‖, Butler
argumenta que a própria enunciação de Arendt é performativa, e que mesmo esses
sujeitos frequentemente vistos como sem qualquer agência política ainda são capazes de
opor resistências performativdas aos poderes instituídos. Para Butler, a vida nua de
Agamben não é capaz de tematizar essa modalidade de resistência (BUTLER, 2007, p.
62).
É em Frames of War (2009) que Butler expande seu projeto de denunciar os
esquemas normativos que delimitam o campo das vidas possíveis das vidas impossíveis,
denominando tal operação como enquadramento. Assim como o processo de uma
fotografia, há uma escolha de delimitar o espaço de percepção. Essa escolha, quando
pensamos em termos mais amplos da esfera pública, é regida pelo poder. A
desestabilização dos esquemas normativos responsáveis por regular o fluxo de
inteligibilidade – isto é, os dispositivos que governam o que pode ser entendido como
uma vida possível – nos permitiria conceber outras modalidades de vida (BUTLER,
2009. p. 12). Mas isso também passa por uma discussão de Butler sobre o que há em
nós que nos une aos outros. Ou seja, para além da denúncia dos processos de
enquadramentos – de exclusão ou de regulação da esfera pública –, Butler vai além e
reivindica uma posição que reconsidera o corpo no seu aspecto de relacionalidade. Mais
uma vez é preciso rejeitar o corpo como mera superfície de inscrição. O corpo tem
responsividade, é vulnerável, é confrontando com palavras, ações e pessoas que não

183
conhecemos; o corpo como sempre exposto ao mundo exterior (BUTLER, 2009, p. 33-
34). Para a filósofa, é preciso pensar em termos de uma nova ontologia social do corpo,
que pressupõe e põe em relevo a relacionalidade corpórea. Longe de ser uma unidade
discreta, o corpo é precário no sentido que ele sempre será fundamentalmente
dependente dos outros. É nesse sentido que se abre uma possibilidade de reconsiderar o
lugar de uma ética não-violenta da co-dependência.
Em Notes toward a performative theory of assembly (2015), livro que marca o
limite temporal dessa pesquisa, Butler destaca três dimensões possíveis da
vulnerabilidade – há uma quarta, que falaremos adiante – que esquematizamos nesse
momento, cotejando com o trabalho e as teorizações anteriores da filósofa, numa
espécie de síntese transitória:
(I) Vulnerabilidade enquanto resistência. O sujeito vulnerável entregue às
normas não se confunde com um sujeito passivo, sem agência. É nos códigos desse
poder assumido que o sujeito pode ensaiar uma esfera possível de liberdade e subversão
do poder. Ainda, a vulnerabilidade tem um aspecto mais delineado de resistência
quando os corpos se colocam na rua, em manifestação. Para Butler, já há aí encenado,
performativamente, uma recusa e uma transgressão ao poder (BUTLER 2015, p. 9-10).
Mesmo esses agentes cuja capacidade política é frequentemente renegada, as
populações precárias, ao se colocarem no espaço público, produzem uma tensão na
esfera de representação; esses corpos, mesmo sem ―dizer nada‖, já produzem uma
resistência;
(II) Vulnerabilidade e ética. Para Butler, a abertura do sujeito às normas e aos
discursos dos Outros o colocam numa posição de opacidade em relação à própria
narrativa. Nesse sentido, quando se articula um relato pessoal, há um elemento de
despossessão do Eu, enunciado em terceira pessoa. Uma ética que passa pela
despossessão desestabiliza os sujeitos como unidades discretas e coloca o problema da
comunicabilidade e da relacionalidade em outros termos. É preciso salientar esse
aspecto de relacionalidade que nos une, que passa pela nossa condição de extrema
precariedade, de uma vulnerabilidade constitutiva. Em face dessa dependência com os
outros, Butler reflete sobre uma ética da coabitação, em que agir forçosamente para
retirar determinados indivíduos de um espaço de convivência constituiria uma
modalidade de violência ética (BUTLER, 2015, p. 104);
(III) Vulnerabilidade como relacionalidade. A vulnerabilidade é a resposta que
Butler dá para a figura filosófica do corpo como mera superfície de inscrição. No tropo

184
da formação subjetiva, o Eu sempre está aberto e entregue aos outros. Nisso concordam
mesmo as doutrinas psicanalíticas e normativas. O sujeito é um ser em que sua agência
reside no perigo e no paradoxo de ser sujeito à exploração. Mas Butler vai ainda além: é
preciso, além de pensar a categoria do sujeito, questionar o estatuto do corpo
ontologicamente considerado. Para a autora, o corpo precisa ser concebido em conjunto
com as infraestruturas, de todos os níveis e modalidades, que permitem e possibilitam as
condições seguras de existência de um corpo (BUTLER, 2015, p, 130). Inspirada pelos
estudos sobre deficiência e os debates sobre feminismo e raça, não se pode
desconsiderar de um corpo as tecnologias encarregadas de sustentá-lo (e de, por vezes,
negá-lo).

Conclusão

Para George Shulman, a teoria política começa com a instauração de um


sentimento de perigo iminente, que encontra em Thomas Hobbes sua mais célebre
formulação (SHULMAN, 2011, p. 227). No discurso oficial da teoria política canônica,
a vulnerabilidade e a exposição ao perigo devem ser totalmente rejeitadas; em nome da
defesa social, a máxima segurança possível. Contudo, podemos sugerir que na elisão de
uma esfera da vulnerabilidade – pois mesmo a melhor segurança não é infalível –
podemos encontrar pistas para compreender a violência desproporcional que atinge as
próprias populações frequentemente ditas como vulneráveis. Temos em mente o célebre
argumento de Walter Benjamin (2011) em Para uma crítica da violência, em que no ato
fundador do direito, zona de violência primordial, há a eliminação de todas as outras
violências, permanecendo uma violência própria ao Estado. É preciso lembrar, contudo,
da íntima relação entre o poder e a vida, e que se há a inclusão (mediante a exclusão) de
uma modalidade de poder, há igualmente a captura de uma esfera da vida – isto é, o
argumento de Agamben (2002) em Homo sacer I. Em Butler, a vulnerabilidade aparece,
além das outras três dimensões que destacamos, como uma crítica da violência
(BUTLER, 2009, p. 51).
A autora, que recorre à vulnerabilidade para explorar a abertura do sujeito ao
poder, imprime no conceito significados mais amplos que coincidem com um
deslocamento sutil no seu trabalho, em que se coloca em maior destaque a precariedade
da vida. Qualquer crítica à violência e aos poderes instituídos precisa confrontar e
problematizar os agenciamentos encarregados de distribuir valores desiguais sobre as

185
vidas. Mas identificar populações mais susceptíveis ao poder, ao perigo e à morte não
deve nos levar a naturalizar essas posições, postura que somente reitera os dispositivos
de ―exclusão‖. Talvez assim seja possível sair dos enunciados cínicos da ―gestão da
vulnerabilidade‖, por um lado, e das ―populações vulneráveis‖, por outro.

Referências bibliográficas
AGAMBEN, Giorgio. Homo sacer: o poder soberano e a vida nua 1. Belo Horizonte:
Editora UFMG, 2002. Tradução de Henrique Búrigo.

_______. Estado de exceção (Homo Sacer II, 1). São Paulo: Boitempo, 2008. Tradução
de Iraci D. Poleti.

ARENDT, Hannah. Origens do totalitarismo. Tradução de Roberto Raposo. São Paulo:


Companhia das Letras, 1989.

BECK, Ulrich. Risk Society: Towards a new modernity. Tradução de Mark Ritter. Sage
Publications: Londres, 1992.

BENJAMIN, Walter. Escritos sobre mito e linguagem (1915-1921) Organização,


apresentação e notas de Jeanne-Marie Gagnebin; tradução de Susana Kampff Lages e
Ernani Chaves. São Paulo: Editora 34; Duas Cidades, 2011.

BUTLER, Judith. Subjects of desire: hegelian reflections in twentieth-century France.


New York: Columbia University Press, 1987.

_______. Performative Acts and Gender Constitution: An Essay in Phenomenology and


Feminist Theory. Theatre Journal, vol. 40, no. 4, 1988, pp. 519–531. Disoponível em:
www.jstor.org/stable/3207893.

_______. Foucault and the Paradox of Bodily Inscriptions. The Journal of Philosophy,
vol. 86, no. 11, 1989, pp. 601–607. Disponível em: www.jstor.org/stable/2027036.

_______. Gender trouble: feminism and the subversion of identity. New York:
Routledge, 1990.

_______. Bodies that matter: on the discursive limits of sex. New York: Routledge,
1993.

_______. The psychic life of power: theories in subjection. Stanford: Stanford


University Press, 1997a.

_______. Excitable speech: a politics of the performative. New York: Routledge,


1997n.
_______. Antigone's Claim: kinship between life & death. New York: Columbia
University Press, 2000.

186
_______. Guantánamo Limbo. Publicado em 14 de março de 2002. Disponível em:
<https://www.thenation.com/article/guantanamo-limbo/>. Acesso em: 04/07/2017.
_______. Precarious life. London: Verso, 2004.

_______. Giving an account of oneself. New York: Fordham University Press, 2005

_______. Frames of war: when is life girevable? London/Newyork: Verso, 2009.

_______. Notes toward a performative theory of assembly. Cambridge:


Harvard University Press, 2015.

FOUCAULT, Michel. Vigiar e punir: nascimento da prisão. Tradução de Raquel


Ramalhete. Petrópolis: Vozes, 1987.

MISKOLCI, Richard. Teoria Queer: um aprendizado pelas diferenças. Belo Horizonte:


Editoria Autêntica, 2012.

MONTEIRO, Simone Rocha da Rocha Pires. O marco conceitual da vulnerabilidade


social. Sociedade em Debate, v. 17, n. 2, p. 30-40, 2011.

SHULMAN, George. On Vulnerability as Judith Butler's Language of Politics: From


―Excitable Speech‖ to ―Precarious Life‖. Women's Studies Quarterly, vol. 39, no. 1/2, p.
227–235. New York: The Feminist Press at the City University of New York, 2011.
Disponível em: www.jstor.org/stable/41290295

WORLD BANK. Global Economic Prospects, Volume 4, Jaunary 2012: Uncertainties


and Vulnerabilites. Washtngton, 2012. Disponível em:
https://openknowledge.worldbank.org/handle/10986/12105

_______. The state of social safety nets 2018.Washington, 2018. Disponível em:
https://openknowledge.worldbank.org/handle/10986/29115

187
O espaço do (não) dizer e a criminalização da arte

Lívia de Meira Lima Paiva76

pensar é sempre experimentar, não


interpretar, mas experimentar, e a
experimentação é sempre o atual, o
nascente, o novo, o que está prestes a
se fazer

DELEUZE, 1990

Resumo: Esse estudo pretende refletir sobre o backlash conservador que atacou
segmentos artísticos provocando o fechamento de exposições e o silenciamento
determinadas expressividades. Parte-se da premissa de que a arte, enquanto exercício
experimental de expressões, gestos e vida não-hegemônica, tem os seus significados
determinados por um discurso conservador que arbitrariamente tenta lhe atribuir um
sentido, sempre a partir de um ponto de vista colonizador e criminalizante. Inicialmente,
será realizada uma breve contextualização das ações de censura para, em seguida,
apresentar algumas percepções sobre a produção de uma narrativa de criminalização
devota da manutenção de uma determinada forma de vida, que exclui qualquer
expressividade desviante ou crítica. Temos como orientadores desta breve reflexão o
pensamento de Lygia Clark, Helio Oiticica e Mario Pedrosa acerca da arte enquanto
experiência aberta ao imponderável.

Palavras-chave: Censura; Expressões Queer; Criminalização de expressões artísticas;


Lygia Clark; Helio Oiticica; Queermuseu

Abstract: This study aims to reflect on the conservative backlash that attacked
segments of the arts causing the closure of some exhibitions and silencing certain types
of artistic manifestations. It starts from the premise that art, as an experimental exercise
of expressions, gestures and non-hegemonic life, has its meanings determined by a
conservative discourse that arbitrarily tries to give it a meaning, always from a
colonizing and criminalizing point of view. At first, a brief contextualization of the
actions of censorship will be carried out to then present some perceptions about the

76
Atriz. Doutoranda em Direito pela Universidade Federal do Rio de Janeiro. Professora do Instituto
Federal do Rio de Janeiro (IFRJ).

188
production of a narrative of criminalization devoted to the maintenance of a certain way
of life, which excludes any deviant or critical expressiveness. We have as guide of this
brief reflection the thought of Lygia Clark, Helio Oiticica and Mario Pedrosa about art
as an experience open to the imponderable.

Keywords: Censorship; queer expressions; Criminalization of artistic expressions;


Lygia Clark; Helio Oiticica; Queermuseu

Introdução

―A arte é o exercício experimental da liberdade‖. Com esta frase-manifesto de


Mario Pedrosa estampada em um lençol branco nas grades do Castelinho do Flamengo,
os artistas-ocupantes expressavam seu repúdio ao fechamento da exposição LGBTQIA
Curto Circuito no dia de sua estreia. Pedrosa, uma das figuras mais importantes da
história da crítica de arte no Brasil, cunhou a expressão em um momento onde a
produção industrial e a mercantilização do fazer artístico passou a opor os que se
adequavam a cultura de massa dos que apostavam em uma outra forma de fazer
cultural.
A adesão a este modo outro modo, alternativo e crítico, uniu Pedrosa a artistas
como Lygia Clark e Hélio Oiticica. A dimensão da experiência na obras destes autores é
valorizada em detrimento de uma mensagem emitida de forma coerente e recebida de
forma passiva pelo espectador. Mas, sobre a relevância da obra dos três, existe extensa
bibliografia. A ideia não é propor uma interpretação desses autores, mas compreender o
contexto político que ―reuniu‖ novamente os três autores no final de 2017.
Um dia antes do cancelamento da exposição Curto Circuito o prefeito da cidade
do Rio de Janeiro, o atual prefeito do Rio de Janeiro, Marcelo Crivella, tornou pública
uma mensagem gravada em vídeo na qual dizia que a exposição QueerMuseu cancelada
de forma prematura pelo grupo Santander Cultural em Porto Alegre somente viria para
o MAR (Museu de Arte Moderna) se fosse para o ―fundo do mar‖ – um lamentável e
autoritátio trocadilho. 77 Entre as obras acusadas de incentivar a pedofilia, ―O Eu e o Tu:
Série Roupa-Corpo-Roupa‖ (1967) de Lygia.

77
Disponível em http://www1.folha.uol.com.br/ilustrada/2017/10/1923483-so-se-for-para-o-fundo-do-
mar-diz-crivella-sobre-queermuseu-no-rio.shtml Acesso em 10 jan. 2018.

189
Algumas semanas antes, a performance ―La bête‖ de Wagner Schwartz,
inspirada na obra ―Bicho‖, de Lygia Clark, foi suspensa no Museu de Arte Moderna em
São Paulo. A apresentação era uma das atrações do 35º Panorama da Arte Brasileira,
tradicional exposição bienal, que traz uma leitura do estado atual da arte do país. Com o
título Brasil por Multiplicação, a curadoria assinada por Luiz Camillo Osorio teve como
inspiração o texto seminal Esquema Geral da Nova Objetividade (1967), de Hélio
Oiticica,.
Esses são somente três eventos de uma onda censora que tomou conta do país
especialmente na segunda metade do ano de 2017. Em comum nas manifestações
silenciadas, uma corporalidade marginal, que confronta uma determinada moral ou
normatividade hegemônica, quase todas envolvendo de alguma forma a temática
LGBTQIA.
As denúncias, calcadas em suposta imoralidade e ilicitude nas obras, surgem
como estratégia de grupos que, através de exposições fragmentárias e
descontextualizadas, criam narrativas fundadas em certos valores conservadores que
encontram eco na sociedade e nas instituições estatais. Em alguns casos, quando o
conflito é judicializado, por exemplo, o Direito passa a ser o instrumento de ―leitura‖
destes eventos. As narrativas jurídicas revelam em seu discurso visões conservadoras
eivadas de conteúdo moralizante, que procuram imediatamente o que o autor quis dizer
com determinada obra. Mais do que isso. Interpretam de plano o que determinada obra
significa ou quis dizer. O resultado da análise mais frequente é traduzido em discursos
criminalizantes que mobilizam categorias penais previstas de forma expressa ou não,
tais como ―pedofilia‖, ―zoofilia‖, ―vilipêndio de objeto religioso‖, entre muitas outras.
A análise jurídica dos casos escamoteada por uma pretensão puramente
dogmática ou técnica chancela por meio de instituições e aparatos estatais um conjunto
de valores que historicamente se revela hegemônico. A falsa universalidade do Direito
já foi apontada por diversos autores, que se esforçaram por demonstrar que por detrás
do paradigma liberal clássico do Direito está a universalização de uma moral ocidental,
masculina, branca, cristã, burguesa e cisheteronormativa78.
Após as acusações, os desagravos das exposições e performances censuradas
tentavam dar conta de uma leitura menos descontextualizada. O filho da artista, Álvaro

78
Entre muitos outros, conferir: HINKELAMMERT, F. La inversión de los derechos humanos: el caso de
John Locke. En: El vuelo de Anteo. Derechos Humanos y Crítica de la razón Liberal. Joaquín Herrera
Flores, editor. Bilbao: Desclée de Brouwer, 2000; SMART, Carol: La teoria feminista y el discurso
juridico. In: El derecho en el genero y el genero en el derecho. Cedael. Editorial Biblos. Buenos Aires,
Argentina. Septiembre, 2000; OLSEN, Frances. El sexo del derecho. The Politics of Law (Nueva York,
Pantheon, 1990), pp. 452-467. Traducción de Mariela Santoro y Christian Courtis.

190
Clark, se posicionou publicamente e em diversas ocasiões acerca do ―universo‖ da obra
de Lygia Clark, que não se relacionava necessariamente com a sexualidade tal como foi
denunciada. Os curadores da Queermuseu, Gaudêncio Fidelis e do MAM-SP, Luiz
Camillo Osório foram intimados a comparecer em sessões da CPI dos maus tratos no
Senado para prestar depoimento sobre o conteúdo das obras.
Diante deste quadro, propomos com esse estudo algumas categorias de análise
para reflexão do backlash conservador que atacou segmentos artísticos provocando o
fechamento e silenciamento de expressividades. Para a realização deste artigo partimos
do entendimento do discurso como mecanismo de poder e de representação do outro.
Longe de ser uma manifestação passiva da linguagem, o discurso enquanto prática
social define certos grupos sociais como outros e outras a partir de lugares de poder e
dominação.79 O resultado deste tipo de argumentação é a censura de expressividades
historicamente silenciadas pelos valores morais que as censuram.
Todavia, essa construção do discurso não pode ser entendida em uma dimensão
―puramente‖ abstrata, pois ela se dá na corporalidade. Compartilhamos do
entendimento de Butler, ao afirmar que o discurso habita o corpo, é parte do seu sangue
vital: ―a afirmação de que o corpo é ―formado‖ por um discurso não é simples, e logo de
início devemos esclarecer que esta ―formação‖ não equivale a ―causa‖ ou
―determinação‖, e menos ainda significa que os corpos estejam de algum modo feitos de
discurso puro e simples‖ (BUTLER, 2001, p. 96). Portanto, trabalhamos com a ideia de
que tanto as dimensões de censura quanto as possibilidades de ressignificação e
interrupção de normativas hegemônicas se dão no e através dos corpos. Primeiramente,
mapearemos os principais eventos de censura ocorridos no país no segundo semestre de
2017. Em seguida, refletiremos sobre os espaços de crítica, resistência e não-saber
produzidos ou fissurados por essas expressividades pela (e na) arte a partir de
experiências periféricas (no caso, as de gênero). Trabalhamos com a ideia de que a arte,
enquanto exercício experimental de expressões e vida não-hegemônica, tem os seus
significados apropriados pelo discurso conservador que tenta lhe atribuir um sentido,
sempre a partir de um ponto de vista colonizador e criminalizante. O espaço da
subjetividade e do não-saber experimentado pelo artista é apropriado por quem coloca
uma legenda em cada obra: ―leia-se...‖.

79
CURIEL, Ochy. La nación heterossexual: Análisis del discurso jurídico y el régimen heterosexual
desde la antropología de la dominación. Bogotá:Brecha Lésbica y en la frontera, 2013, p. 28

191
Mario, estampado nas grades do Castelinho. Lygia, censurada em Porto Alegre e
enviada ao fundo do mar pelo prefeito da cidade do Rio de Janeiro. Ambos lidos à
revelia; interpretados como se houvesse um o que a se interpretar.
Neste artigo tentaremos, com o pensamento desses artistas, buscar ferramentas
para compreennsão do processo de censura e negação do espaço da experimentação.
Tentaremos fazê-lo não pela busca do que quiseram ou não dizer, mas a partir do que
quiseram não dizer.

1. Breve cronologia dos boicotes e censuras

A interdição policial da performance do paranaense Maikon K em julho deste


ano foi o prenúncio da tsunami conservadora e criminalizante que se espalhou pelo país.
Durante a apresentação de ―DNA de DAN‖ na programação oficial do circuito cultural
―Palco Giratório‖ do Sesc, o artista foi abordado pela Polícia Militar do Distrito Federal
e encaminhado à delegacia de polícia onde assinou um termo circunstanciado por ―ato
obsceno‖.80 Em seguida, outra interdição, desta vez judicial, do espetáculo ―O
Evangelho segundo Jesus Rainha do Céu‖ impediu que o espetáculo se apresentasse no
Sesc Jundiaí. O resultado positivo da interdição fez com que em algumas cidades por
onde o espetáculo passou fossem propostas demandas judiciais com objetivo de impedir
a apresentação, que foi censurada também em Salvador. Quase na sequência, o
fechamento precoce da exposição Queermuseum – cartografias da diferença em Porto
Alegre sob as acusações de ―vilipêndio de objeto religioso‖ 81, ―incitação ao crime‖ e
―apologia ao crime‖82, ―pedofilia‖ 83 e ―zoofilia‖ 84 em alguns trabalhos expostos.

80 O tipo penal está descrito no artigo 233 da seguinte forma: “Praticar ato obsceno em lugar
público, ou aberto ou exposto ao público: Pena - detenção, de três meses a um ano, ou multa‖.
81
O ―Ultraje a culto e impedimento ou perturbação de ato a ele relativo‖ está descrito no Art. 208 do
Código Penal da seguinte forma: Escarnecer de alguém publicamente, por motivo de crença ou função
religiosa; impedir ou perturbar cerimônia ou prática de culto religioso; vilipendiar publicamente ato ou
objeto de culto religioso: Pena - detenção, de um mês a um ano, ou multa. Parágrafo único - Se há
emprego de violência, a pena é aumentada de um terço, sem prejuízo da correspondente à violência.
82
Os artigos 286 e 287 trazem a descrição dos tipos penais de ―Incitação ao crime‖ e ―Apologia ao
crime‖, respectivamente entendidos como: ―Art. 286 - Incitar, publicamente, a prática de crime: Pena -
detenção, de três a seis meses, ou multa‖ e ―Art. 287 - Fazer, publicamente, apologia de fato criminoso ou
de autor de crime: Pena - detenção, de três a seis meses, ou multa‖.
83
Embora não haja previsão legal do tipo penal de ―pedofilia‖, as condutas relacionadas a esse tipo de
prática estão previstas, entre outros, nos artigos 240 a 241-E do ECA (Estatuto da Criança e do
Adolescente) e 217-A, 218 e 218-A do Código Penal. Neste caso, o suposto crime envolveria as
práticas descritas no artigo 240: Produzir, reproduzir, dirigir, fotografar, filmar ou registrar, por qualquer
meio, cena de sexo explícito ou pornográfica, envolvendo criança ou adolescente: Pena – reclusão, de 4
(quatro) a 8 (oito) anos, e multa‖.

192
Após o fechamento da exposição em Porto Alegre, houve uma tentativa de levá-
la ao Museu de Arte do Rio (MAR) no Rio de Janeiro, que foi vetada pelo prefeito
Marcelo Crivella.
Quatro dias após a polêmica em torno da Queermuseu, a obra intitulada
―Pedofilia” da artista Alessandra Cunha foi retirada do Marco (Museu de Arte
Contemporânea de Mato Grosso do Sul) pela Polícia Civil, acusada de incitar um crime
que sobre o qual pretende refletir O quadro foi apreendido e devolvido ao curador no
dia seguinte, mas não voltou a ser exposto85.
Algumas semanas depois, no final de setembro de 2017, a performance ―La
bête‖ foi suspensa no Museu de Arte Moderna em São Paulo. O coreógrafo e performer
Wagner Schwartz realizou a performance inspirada na obra ―Bicho‖, de Lygia Clark, na
mostra ―Brasil em Multiplicação‖ onde seu corpo poderia ser tocado pelo público. Após
a divulgação de um vídeo onde uma mãe e sua filha menor de idade interagem com o
artista nu, a obra passou a sofrer acusações de incentivo à pedofilia86.
No início de outubro a exposição LGBTQ Curto Circuito foi suspensa dois dias
antes de sua inauguração no Castelinho do Flamengo. A retirada seletiva e sem qualquer
comunicação de algumas obras do Coletivo FLSH sobre nus que expressam a
diversidade entre os corpos, fez com que alguns artistas ocupassem o espaço cultural87.
Em uma das faixas expostas nas grades do Castelinho do Flamengo lia-se a
expressão de Pedrosa, que também foi utilizada como abertura do manifesto dos
ocupantes: “A arte é o exercício experimental da liberdade”.

84
De forma semelhante, não há previsão legal do tipo penal de zoofilia. Neste caso, argumentou-se que
algumas obras faziam apologia ao crime de maus-tratos de animais, previsto no artigo 32 da Lei 9.605/98
(Lei de Crimes Ambientais): Praticar ato de abuso, maus-tratos, ferir ou mutilar animais silvestres,
domésticos ou domesticados, nativos ou exóticos: §1º Incorre nas mesmas penas quem realiza experiência
dolorosa ou cruel em animal vivo, ainda que para fins didáticos ou científicos, quando existirem recursos
alternativo‖.
85
Disponível em https://www.campograndenews.com.br/lado-b/artes-23-08-2011-08/artista-tentou-
combater-o-machismo-e-a-pedofilia-mas-foi-julgada-no-cadafalso Acesso em 12 jan. 2018.
86
O dispositivo penal mobilizado neste caso foi o previsto no artigo 241-D: ―Art. 241-D. Aliciar,
assediar, instigar ou constranger, por qualquer meio de comunicação, criança, com o fim de com ela
praticar ato libidinoso. Pena – reclusão, de 1 (um) a 3 (três) anos, e multa. Parágrafo único. Nas mesmas
penas incorre quem: I – facilita ou induz o acesso à criança de material contendo cena de sexo explícito
ou pornográfica com o fim de com ela praticar ato libidinoso; II – pratica as condutas descritas
no caput deste artigo com o fim de induzir criança a se exibir de forma pornográfica ou sexualmente
explícita‖.
87
Disponível em: https://revistacult.uol.com.br/home/artistas-denunciam-sumico-de-obras-sobre-
violencia-e-diversidade-sexual-no-rj/ Acesso em 12 jan. 2018.

193
Não por coincidência, esta súbita interdição de um espaço público da
maior importância para a cultura carioca, ocorre na mesma semana
em que o Prefeito Marcelo Crivella publicou um vídeo atacando a
exposição QueerMuseu e expressando, de forma inequívoca, que
coloca suas convicções religiosas acima do interesse público da
população do Rio de Janeiro.
Este movimento, que hoje ocupou o Castelinho e que pretende
manifestar-se em outros espaços da cidade, reafirma que não aceita a
censura às artes que tem ocorrido de forma sistemática no país,
afetando a cultura livre e divulgando uma série de mentiras e
absurdos para criar preconceitos e disseminar o ódio.
Neste sentido, após cinco horas de ocupação pacífica, democrática e
organizada da área externa do Castelinho, saímos do local, mas
expressamos a nossa pauta de lutas, que nos manterá mobilizados de
forma crescente88.

Um manifesto redigido coletivamente exigia, entre outras de mandas que


Secretaria Municipal de Cultura: ―2. Divulgue imediatamente onde estão as obras da
exposição Curto-Circuito” e “3. Informe oficialmente qual foi a classificação para
retirada de algumas obras”89.
Em novembro os curadores Gaudêncio Fidelis da QueerMuseu e Luiz Camillo
Osório da exposição 35º Panorama da Arte Brasileira - Brasil por Multiplicação
realizada no MAM-SP foram intimados a comparecer na 15ª reunião da CPI dos maus
tratos, presidida pelo senador Magno Malta. Além deles, o performer Wagner Schwartz

88
Trecho do manifesto dos ocupantes do Castelinho do Flamengo. Disponível em:
http://teatroemcena.com.br/home/artistas-ocupam-castelinho-do-flamengo-em-protesto-contra-censura/
Acesso em 30 jan.2018
89
A íntegra do manifesto pode ser encontrada em: http://teatroemcena.com.br/home/artistas-ocupam-
castelinho-do-flamengo-em-protesto-contra-censura/ acesso em 12 jan. 2018.

194
também convocado, se ausentou e teve um pedido de condução coercitiva determinado
pelo referido senador e caçado pelo STF em seguida90.
O Requerimento 105/2017 que convocou Osório e Schwartz tem como propósito
―explicar os objetivos de artistas nus, envolvendo crianças, inclusive com toques, em
performances artísticas em museus‖.91 Já o Requerimento 100/2017 direcionado a
Fidelis se justificou por ―algumas obras e imagens que as crianças tiveram acesso‖, que
―na avaliação de muitos, podem ser até classificadas como criminosas a exemplo das
que retratavam a prática da zoofilia e da pedofilia‖ (grifos meus).
Esses eventos narrados acima são somente alguns dos acontecimentos mais
recentes que envolvem a censura de expressões LGBTQIA.92 Todos os eventos narrados
acima têm em comum a tentativa de apagamento de identidades desviantes, ou seja,
não-cisgeneras e não-heterossexuais, não conformadas com expressões hegemônicas de
sexualidade. Mais do que isto, em todos os casos utiliza-se como estratégia de
silenciamento um discurso criminalizante que mobiliza categoriais penais como ―ato
obsceno‖, ―vilipêndio de objeto religioso‖, incentivo a ―pedofilia‖ e ―zoofilia‖.
Em alguns casos houve uma resposta institucional por parte do Poder Judiciário,
do Legislativo e do Ministério Público, que se manifestaram sobre a existência de
crimes ou práticas que justificassem a interdição do evento. A resposta de artistas veio
através de atos de resistência pontuais, na frente de museus ou em locais públicos,
(como o ocorrido na abertura do Festival de Cinema do Rio)93 e a partir de um
movimento horizontal em resposta à onda de interdições, os protestos se passaram a
adotar o lema ―Censura nunca mais‖.

2. A disputa do (não)significado

Em 1966, Lygia Clark escreve ―Nós Recusamos...‖, uma espécie de mini-


manifesto a respeito da ―incomunicabilidade‖ da arte moderna e sua elitização. Diante
da crise, a artista apresenta três grupos: os que buscam uma saída nas expressões

90
HC 0013663-34.2017.1.00.0000. Julgamento: 13 de novembro de 2017. Relator: Min. Alexandre de
Moraes.
91
Todos os requerimentos podem ser encontrados neste link:
https://legis.senado.leg.br/comissoes/audiencias?codcol=2102 Acesso em 02 fev. 2018.
92
Ainda em outubro, a exposição ―Faça Você Mesmo sua Capela Sistina‖ do artista Pedro Moraleida no
Palácio das Artes em Belo Horizonte foi invadida por um grupo que tentou impedir pessoas de visitarem a
exposição. No entanto, a exposição não foi fechada ao público.
93
Disponível em: https://oglobo.globo.com/cultura/filmes/festival-do-rio-2017-protestos-contra-censura-
se-intensificam-no-segundo-dia-de-premiere-brasil-21922916 Acesso em 15 jan. 2018.

195
populares, os que negam a arte ―mas nada encontram para expressar essa negação além
das obras de arte‖ e um terceiro, no qual se inclui, que propõe o ―precário como novo
conceito de existência‖.
Ao estabelecer a recusa do artista que ―pretenda transmitir através de seu objeto
uma comunicação integral de sua mensagem, sem a participação do espectador‖
evidencia-se a incompletude da obra, que deve ser experenciada/experimentada pelo
interlocutor. Millet define a obra Bichos como uma ―estrutura que solicita o gesto
porque não é na permanência que se realiza, mas na mutação. Desejo de vir a ser,
fundado no que é‖ (MILLIET, 1992, p.65).

Como querem alguns buscar uma expressão para o espaço absoluto


através de uma esquematização racional? Como querem saber o que é
tempo se o esquema deles já é deturpado na base do tempo mecânico?
Há outra linguagem, há outra realidade e não é a lógica que nos levará
a ela mas somente a vivência. Há o espírito. É a tragédia do homem.
Ele vive de uma maneira e tem que aprender a se deslocar desta
realidade em busca de uma expressão que ultrapasse toda esta mesma
realidade (CLARK, 1997, p. 144).

O significado é dado pela experiência singular do espectador em contato com a


obra. O inacabado abre espaço para a participação do interloctor que estabelece um
sentido a partir de uma vivência subjetiva. Não se trata de ter contato com o que a obra
representa ou quer dizer, mas como se experimenta outra possibilidade de vida.

Lygia não quer apenas abrir o acesso ao informe (o negativo da forma,


sua ausência), nem à capacidade de mudar de forma (metamorfose),
propostas bastante comuns na geração de artistas à qual pertence,
geralmente tomadas como um valor em si. O que ela quer é criar
condições para conquistar ou reconquistar na subjetividade um certo
estado no qual seja possível suportar a contingência das formas,
desgrudar de um dentro absolutizado vivido como identidade, navegar
nas águas instáveis do corpo aformal e adquirir a liberdade de fazer
outras dobras, toda vez que um novo feixe de sensações no bicho
assim o exigir. É como resposta a esta exigência que mudar de forma
ganha sentido e valor, impondo-se como necessário para a aventura
vital. (ROLNIK, 1998, p.460)

Pedrosa, ao analisar os Bichos de Clark, classifica-os como ―uma experiência


artística revolucionária‖ e ressalta seu caráter transcendente, ao convidar o espectador
não somente a participar da criação, mas ―no desaborchar e no viver da obra de arte‖.
(PEDROSA, 180, p. 21)

196
Pelo brevemente exposto, nos interessa a dimensão do espaço do não-saber que
propõe novas experiências e possibilidades de vida. A significação mais do que nunca
tem uma conotação personalíssima. Por isso, não se trata do que a obra diz ou o que o
autor quis dizer, mas o que se vive ou o que a obra quis não dizer.
Oiticica em Experimentar o experimental estabelece uma diferenciação entre ―o
experimental‖ e a ―arte experimental‖. Favaretto retoma o escrito de Oiticica opondo a
―arte experimental‖ ao que ―manifesta como puro ‗experimental‘‖ (FAVARETTO,
2000. p. 16). Neste sentido, o ‗puro experimental‘ não se conecta com uma finalidade
específica que a produção artística deve alcançar. Ao contrário, o comprometimento –
se houver – do ‗puro experimental‘ está relacionado com a produção de espaços,
fissuras, de novos sentidos, de mudança.
Ainda de acordo com Favaretto, o neoconcretismo ao abolir um projeto a priori,
que determina a prática, investe na experimentação que privilegia a experiência, a troca
e a pesquisa. Ao retomar Merlau-Ponty e a ―intenção de significar‖ fundada em uma
falsa percepção de coerência entre significante e significado, Favaretto aponta para a
mudança proposta pelo ―Manifesto Neoconcreto‖ em relação à percepção da obra.

A expressão é, assim, consciência da transcendência do signo; um ato que


ultrapassa o sentido lingüístico (da palavra, do signo plástico), e se realiza
na junção de significante e significado. Este ato implica o sujeito, isto é,
revela ―intencionalidade corporal‖, pois, diz Merleau-Ponty ―toda
percepção, toda ação que a supõe, todo uso do corpo, em suma é já
expressão primordial‖. A palavra, o gesto, o corpo, são ―potências
significantes‖, mediadores da relação do sujeito com o objeto. Mas a ação
da linguagem é sempre à distância, pois o processo de significação só surge
na intersecção de significantes, num intervalo: todo signo é relacional,
diacrítico. A linguagem, assim, exprime ―tanto pelo que fica entre os
vocábulos quanto por eles mesmos; pelo que não diz quanto pelo que diz‖.
O escritor e o pinto operam nesse intervalo, o da expressão. Por isso, o
efeito de uma palavra, de um traço de cor, de uma mancha é, de certa
maneira, imponderável. Todo significado surge, então, como incorporação
so signo em situações determinadas. (FAVARETTO, 2000, p. 43-44).

O imponderável do ―puro experimental‖, expresso pelo dizer, mas também pelo


não dizer é, na verdade, característica da comunicação de maneira geral. No entanto, se
antes era indesejado, no movimento neoconcretista o impoderável passa a ser desejado:
―os fios soltos do experimental são energias q brotam para um número aberto de
possibilidades‖ (OITICICA, 2011, p. 346).
De volta aos casos de censura, todo esse processo é abreviado por um discurso
mais ou menos superficial difundido de forma viral que atribui significados estáticos às

197
obras criticadas. A dimensão da experiência é abandonada: na maior parte dos discursos
criminalizantes, os emissores não tiveram contato direto com a obra, apenas com
notícias ou fotos das exposições/performances. A cada episódio de censura exposto,
uma nova disputa acerca do ―verdadeiro‖ significado das obras, capaz de justificar legal
ou eticamente sua interrupção.
Retomando a análise das características em comum das obras censuradas,
percebemos em todas uma crítica a um conjunto de valores tido como hegemônico, em
especial, valores ligados à sexualidade/gênero.
Ao tratar da temática, Butler sugere que as configurações e possibilidades de
gênero na cultura tem ―limites de uma experiência discursivamente condicionada‖
(BUTLER, 2016, p. 30). Esses limites, estabelecidos por valores culturais hegemônicos
de acordo com a autora tem duas características: são (1) estruturas binárias e se
apresentam como (2) ―a linguagem da racionalidade universal‖. Além dessas duas,
adicionamos uma terceira característica importante para a compreensão destes eventos
de censura e que é desenvolvida pela autora ao longo de Problemas de gênero: a ideia
de que existe uma (3) essência ou uma substância, a partir da qual o gênero é
constituído culturalmente. À ideia de essência a autora apresenta a noção de gênero
como efeito performativamete produzido no interior do discurso das práticas
reguladoras da coerência de gênero. Temos, então, uma cultura hegemônica cujas
matrizes de inteligibilidade funcionam essencializando uma estrutura binária
(masculino/feminino ou heterossexual/homossexual ou cisgênero/transgênero) em um
padrão universal.
A confirmação e estabilização dessa matriz binária hegemônica se dá pela
repetição performativa.94 Os gestos, para Butler, funcionam como ―citações‖ corporais
ou ―recitações‖, sinalizando tanto a repetição de poder quanto a possibilidade de que um

94
A noção de performatividade para Butler pode ser descrita como: ―(...) atos, gestos e desejo produzem o
efeito de um núcleo ou substância interna, mas o produzem na superfície do corpo, por meio do jogo de
ausências significantes, que sugerem, mas nunca revelam, o princípio organizador da identidade como
causa. Esses atos, gestos e atuações, entendidos em termos gerais, são performativos, no sentido de que a
essência ou identidade que por outro lado pretendem expressar são fabricações manufaturadas e
sustentadas por signos corpóreos e outros meios discursivos. O fato de o corpo gênero ser marcado pelo
performativo sugere que ele não tem status ontológico separado dos vários atos que constituem sua
realidade‖. (BUTLER, 2016, p. 235). A performatividade deve ser entendida não como um ato ―singular‖
e deliberado, senão antes como a prática reiterativa e referencial mediante a qual o discurso produz (nos
corpos) os efeitos que nomeia: ―not as a singular or deliberate act, but, rather, as the reiterative and
citational practice by which discourse produces the effects that it names‖ (BUTLER, 1993:2).

198
corpo bem disciplinado possa materializar, encenar ou realizar relações alternativas 95. O
conceito de performatividade nos auxilia na compreensão de um corpo-discurso. À
noção do corpo como ―ser‖, Butler opõe a ideia do corpo como ―uma fronteira variável,
uma superfície cuja permeabilidade é politicamente regulada, uma prática significante
dentro de um campo cultural de hierarquia de gênero e heterossexualidade compulsória‖
(BUTLER, 2016, p. 246). Experimenta-se a possibilidade de subverter as continuidades
estabelecidas (―inteligíveis‖), pretensamente coerentes e naturais, entre sexo, gênero,
prática sexual e desejo, sem o recurso a leis institucionalizadas.
Fronteira. Prática significante. Duas possibilidades de compreensão do corpo e
da expressividade corporal como produtora de fissuras e novos sentidos: não apenas
como matéria, ―mas uma materialização contínua e incessante de possibilidades‖
(Tradução nossa. Grifo no original). (BUTLER. 1988, p. 521). A constituição do corpo
e do gênero é colocada através de sua domensão política e histórica, do ―fazer‖ ou
―re/produzir‖.
As experiências queer produzem uma alternativa à estrutura binária e portanto,
impossíveis de serem lidas a partir de seus pressupostos. A tentativa de produzir
experiências alternativas ou críticas à essa estrutura é característica de todas as obras
que sofreram com a censura social, policial ou jurídica. Quando interpretadas dentro e
pelos alicerces dessa matriz hegemônica são criminalizadas como manifestações
subversivas, que incentivam a pedofilia, zoofia e agressoras das religiões dominantes.
Tentaremos mostrar como, através de algumas obras, a estabilidade desta matriz é
questionada e fissurada.
Algumas obras fazem menção direta ao conjunto de valores cristãos, com
releituras profanas de figuras sagradas como o quadro "Cruzando Jesus Cristo com o
deus Shiva", de Fernando Baril (de 1996) exposto na Queermuseu ou o espetáculo ―O
Evangelho Segundo Jesus Rainha do Céu‖.

95
Em Performance acts and gender constitution Butler tem como tarefa ―examinar de que maneira o
gênero é construído por meio de atos corpóreos específicos e quais possibilidades existem para a
transformação cultural do gênero por meio desses atos‖ (1988, p. 521), tradução nossa.

199
Em outros casos, como na performance La bête no MAM-SP a moral religiosa
cristã é mobilizada: é através desta matriz de valores que a nudez é inteligível. Para o
filósofo italiano Giorgio Agamben, a nudez é marcada em nossa cultura por uma forte
tradição teológica. Não podemos, portanto, falar de nudez sem pensar em sua mediação
com a noção do pecado. Adão e Eva, nus no paraíso, não se davam conta de sua própria
nudez, pois viviam em estado de graça. A nudez original era aquela de não haver nada
escondido para o outro: ―E ambos estavam nus, o homem e a sua mulher; e não se
envergonhavam‖96. Porém, ao pecarem, a primeira coisa que percebem é que estavam
nus. Sentem, pela primeira vez, vergonha: ―Então os olhos dos dois se abriram, e
perceberam que estavam nus; em seguida entrelaçaram folhas de figueira e fizeram

96 Gênesis 2:25

200
cintas para cobrir-se‖97. O pecado original inaugura uma nova visão da interdição dos
corpos, da vergonha do corpo nu.
Esta mediação com a interdição nos dá pistas valiosas acerca da criminalização
da nudez. Só existe, para a cultura cristã, o nu derivado do pecado. Qualquer
possibilidade de exposição parte desta matriz de inteligibilidade. Para Agamben, a
nudez ―é sempre desnudamento e pôr a nu, ou seja, nunca forma e posse estável. Em
todo caso, difícil de ser apreendida, impossível de ser contida‖98.
O artista nu (também no sentido não literal, do artista que desvela através de sua
arte) ou a obra nua não expõe somente a si. Expõe principalmente quem vê e é obrigado
a reagir com seu repertório, com sua caixa de ferramentas morais. A exposição fortuita
do espectador por vezes vem seguida de reações animalescas: tal como Adão e Eva
agarram rapidamente folhas para taparem sua intimidade, também o espectador exposto,
posto nu, responde instintivamente ao ato. A nudez da obra expõe a limitação daqueles
que só entendem os corpos mediados pelo pecado original. Não há outro nu possível
para este: o nu não obsceno, não pornográfico não existe99.
Outras obras que foram alvo de protestos e censuras expressam identidades não
conformadas com o padrão cisheternormativo e corpos não-normatizados, como o
quadro Travesti de lambada e deusa das águas, de Bia Leite exposto na QueerMuseu ou
as fotos do coletivo FLHS censuradas pela Secretaria Municipal de Cultura do Rio de
Janeiro.

97
Gênesis 3:7.
98
AGAMBEN, Giorgio. Nudez. Tradução de Davi Pessoa. Belo Horizonte: Autêntica, 2015.
99
Cf. https://revistacult.uol.com.br/home/ivana-bentes-o-corpo-nao-pornografico-existe/ Acesso em 20
jan. 2018.

201
A experimentação de representações de identidades fora de uma matriz binária,
que não seja referente ao feminino ou masculino é uma característica comum de
algumas obras censuradas. Inspirada em um blog Criança viada: born to arrazar,
hospedado no site Tumblr, Bia Leite criou em 2013 ―Travesti da lambada e deusa das
águas‖ e ―Adriano bafônica e Luiz França She-há‖, acusadas de incitar a pedofilia. As
fotografias eram enviadas pelos próprios leitores ao site – e que posteriormente foram
representadas pela artista – brincam com o fato de, desde cedo, questionarem um padrão
imposto de sexualidade masculina. Aqui, os gestos performativos de feminilidade em
meninos, são exaltados e o que sempre foi motivo de vergonha passa a ser sinônimo de
orgulho100.
A interpretação das obras baseadas na matriz binária de compreensão de gênero
onde os signos masculinos e femininos têm sujeitos certos e pré-concebidos inscreve a
criança viada na subversidade. A articulação desses valores em narrativas mobilizam
um conjunto de expressões LGBTQIA historicamente reprimidas e legadas ao silêncio,
à patologização ou à criminalização. A afirmação dessas identidades sempre teve na arte
um espaço luta e questionamento da moral vigente.
A resposta ao questionamento do padrão hegemônico é a sua devolução imediata
para o status de invisibilidade (pela censura) ou de subversividade (pela
criminalização). O backlash articula operações interpretativas que (1)

100
Disponível em: www.criancaviada.tumblr.com. Acesso em 28 fev. 2018

202
contraditoriamente atribuem à obra o que nela está sendo questionadoou (2) inserem na
obra um pré-discurso, como se houvesse ―uma mensagem anterior‖ à própria
experiência do espectador ou (3) mobilizam discursos discriminatórios (lgbtfóbicos)
para conseguir maior aderência social ou ainda (4) mobilizam categorias penais para
deslegitimá-las.
O corpo de Cristo relido. O corpo da criança viada representado. O corpo de
uma atriz travesti que representa Cristo. A nudez do corpo do performer nu tocado por
uma criança, de pessoas transgêneras ou publicizada na praça dos três poderes em
Brasília.
Esses corpos-fronteira que questionam a normativa hegemônica e hierarquizada
do gênero. A performatividade que cria acontecimentos nos espaços de não-dizer e o
não-saber. Esse ―não‖, apenas como negação do pré-concebido, capaz de inagurar
experiências alternativas, subversivas da regra vigente. O gesto enquanto prática
significante inserido nesta dimensão materializa possibilidades de existências
initeligíveis a partir da matriz binária e hierárquica de gênero. Talvez por isso o
backlash punitivista que insiste em atribuir significantes próprios, pré-concebidos, a
esses acontecimentos somente consegue compreendê-los pela criminalização, como
uma tentativa de retorno à estabilidade rompida.

Considerações em trânsito

O fazer artístico historicamente constituiu-se como um dos principais espaços de


luta por direitos e resistência através de formas alternativas de agir, pensar os valores e
construir narrações plurais, dissonantes e críticas.
A narrativa da imoralidade ou ilicitude é construída de forma fragmentária com
ataques individualizados e sistemáticos que retiram do contexto determinadas obras para
construir uma narrativa que esteja de acordo com o conjunto de valores que se pretende
exaltar. A estratégia de produção de uma narrativa de criminalização serve para a
manutenção de uma determinada forma de vida, que exclui qualquer expressividade
desviante. O Direito com sua inerente imperatividade surge como uma poderosa
estratégia de alguns grupos para, amparados na construção de determinadas
narrativas, impedir que expressões “outras” possam existir publicamente, em espaços
de arte. A arte, enquanto exercício experimental da liberdade, passa a ser controlada e
patrulhada por grupos conservadores que encontram respaldo nas instituições – no

203
caso o Poder Judiciário – para interpretá-la à luz de um dever ser moral e legal. O
resultado da estratégia censora é reservado ao acaso.
As experiências queer/LGBTQIA produzem uma alternativa/crítica à estrutura
binária e cisheteronormativa da sociedade. Trata-se da inauguração de novos espaços e
experiências que têm seus significados apropriados e arbitrariamente determinados. A
tentativa de produzir experiências alternativas ou críticas a essa estrutura é
característica de todas as obras que sofreram com a censura social, policial ou jurídica.
Quando interpretadas dentro e pelos alicerces dessa matriz hegemônica são
criminalizadas como manifestações subversivas, que incentivam a pedofilia, zoofia, e
agressoras das religiões dominantes.
O espaço da subjetividade e do não-saber, que possibilitam vidas e expressões
outras e fora da matriz de identificação binária de sexo/gênero/desejo não são
considerados em sua dimensão aberta ao imponderável, à ausência de um sentido
lógico. O ―precário como novo conceito de existência‖ proposto por Clark, o ―exercício
da liberdade‖ de Pedrosa ou ainda os ―fios soltos‖ de Oiticica são silenciados não
somente enquanto expressão estética, mas em sua dimensão insurgente de produção de
experiências/vidas alternativas às dinâmicas de poder.

Bibliografia

AGAMBEN, Giorgio. Nudez. Tradução de Davi Pessoa. Belo Horizonte: Autêntica,


2015.

BUTLER. Judith. Bodies that matter on the discursive limits of “sex”. New York &
London: Routledge, 1993.

________. Mecanismos Psíquicos del Poder. Teorías sobre la sujeción. Tradución de


Jaqueline Cruz. Madri: Ediciones Cátedra, Universitat de Valencia, 2001.

________. Performative Acts and Gender Constitution: An Essay in Phenomenology


and Feminist Theory. In: Theatre Journal. Baltimore: The Johns Hopkins University
Press, Vol. 40, No. 4., Dec., pp. 519-531, 1988.

________. Problemas de Gênero - Feminismo e Subversão da Identidade - Col. Sujeito &


História. Trad. Renato Aguiar. 8a. ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2015.

CLARK, Lygia. Lygia Clark. Textos de Lygia Clark, Ferreira Gullar e Mario Pedrosa.
Rio de Janeiro: FUNARTE, 1980

__________. Lygia Clark. Barcelona: Fundació Tàpies, 1997

204
CURIEL, Ochy. La nación heterossexual: Análisis del discurso jurídico y el régimen
heterosexual desde la antropología de la dominación. Bogotá: Brecha Lésbica y en la
frontera, 2013.

CLARK, Lygia; OITICICA, Helio; FIGUEIREDO, Luciano (Org.). Lygia Clark – Helio
Oiticica: Cartas, 1964-74. Rio de Janeiro: Editora UFRJ, 1996.

DELEUZE, Gilles. Pourparlers. Paris: Les éditions minuits, 1990.

FAVARETTO, Celso. A invenção de Helio Oiticica. 2ª ed. São Paulo: Editora da


Universidade de São Paulo, 2000.

HINKELAMMERT, F. La inversión de los derechos humanos: el caso de John Locke.


En: El vuelo de Anteo. Derechos Humanos y Crítica de la razón Liberal. Joaquín
Herrera Flores, editor. Bilbao: Desclée de Brouwer, 2000;

MILLIET, Maria Alice. Lygia Clark: obra trajeto. São Paulo: Editora da Universidade
de São Paulo, 1992.

OITICICA, Helio. Experimentar o experimental. In: Fios soltos: a arte de Helio


Oiticica (org. Paula Braga). São Paulo: Perspectiva, 2011.

OLSEN, Frances. El sexo del derecho. The Politics of Law (Nueva York, Pantheon,
1990), pp. 452-467. Traducción de Mariela Santoro y Christian Courtis.

SMART, Carol: La teoria feminista y el discurso juridico. In: El derecho en el genero y


el genero en el derecho. Cedael. Editorial Biblos. Buenos Aires, Argentina. Septiembre,
2000.

ROLNIK, Suely. Por um estado de arte a atualidade de Lygia Clark Suely. In: TRANS.
arts. cultures. Media, Vol. 1, no. 2, 1966. Passim, inc., New York; pp. 73-82. In: Núcleo
Histórico: Antropofagia e Histórias de Canibalismos, São Paulo: Fundação Bienal de
São Paulo, 1998; pp. 456-467.

205
Contágio improvisação e escrita do corpo

Daniela Carvalho de Avellar101

Resumo
Neste artigo, busco, a partir de minha experiência como aluna em uma oficina de dança
contemporânea que propunha atravessamentos entre o corpo e a palavra, pensar como o
encontro entre movimento e escrita pode afetar ambas as práticas. O olhar dessa escrita
volta-se para a cidade do Rio de Janeiro, cujo processo de gentrificação encontra-se em
um momento de intenso aprofundamento gerando questões espaciais e afetivas que
incidem na forma como nos movimentamos por suas ruas. Para tal elaboração, recorro a
autores como José Gil e André Lepecki e suas contribuições em torno de cruzamentos
entre filosofia e dança, assim como os apontamentos de Otília Arantes e Raquel Rolnik
sobre urbanismo, entre outros. Dessa forma, procuro pensar como o contágio entre
movimento e escrita pode colaborar na construção de um corpo mais aberto e vital
diante do contexto de adversidades em que a cidade se encontra.

Palavras-chave: Dança; Gentrificação; Escrita.

1. Introdução

Em outubro deste ano, na cidade do Rio de Janeiro, comecei a frequentar um


curso livre e gratuito oferecido pelo Sesc Copacabana intitulado ―LAB oficina Corpo-
Palavra-Corpo‖, ministrado pela professora Aline Bernardi. O laboratório, que acontecia
as terças e quintas feiras, se propunha a investigar as relações entre corpo e palavra, a
prática do movimento e da escrita e a forma como ambos podem se afetar mutuamente.
A experiência durou alguns meses do segundo semestre de 2017. A turma era composta
por um grupo de aproximadamente vinte pessoas assíduas. Cada encontro tinha duas
horas de duração. A professora pedia que levássemos material de escrita toda semana e
nos convocava a ―fincar nossas bacias‖ no LAB em ―fluxo contínuo‖ através dos
processos vivenciados a cada aula.
A ideia de fluxo contínuo nos fora apresentada pela professora. O convite feito
era sobre entrar neste ritmo que consiste em um abandono parcial da consciência e da

101
Formada em Psicologia pela Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro. Mestranda em
Estudos Contemporâneos das Artes pela Universidade Federal Fluminense.

206
atenção hipervigil. É um deixar-se levar mas ao mesmo tempo estabelecendo contato
consciente do seu corpo em deslocamento no espaço que comporta outros corpos. O
fluxo contínuo também é um estado que faz com que o movimento seja ininterrupto,
algo entre a consciência e a inconsciência e que se mantém aberto ao encontro com o
corpo do outro.
As aulas envolviam exercícios de consciência corporal, contato improvisação e
jogos de composição. Era comum começarmos com aquecimentos e exercícios de
movimento e em sequência, os cadernos e canetas passavam a fazer parte dos
deslocamentos pelo espaço. A proposta era escrevermos enquanto dançávamos. Algo
que, de certa forma, remete a chamada ―escrita automática‖ do surrealismo. Em ―Arte e
Psicanálise‖ (2002), Tania Rivera descreve essa prática de artistas surrealistas como um
procedimento que consistia simplesmente em escrever, sem entraves, tudo o que lhes
passasse pela cabeça, à maneira da associação livre, regra fundamental que guia a fala
em análise (RIVERA, 2002, p. 11). O movimento artístico negava os padrões vigentes
na época e propunha uma arte que viesse do material do inconsciente. Eles se diziam
inspirados por conceitos freudianos e vale ressaltar que, como apontado por Rivera, o
surrealismo se utilizou dessas ideias mas acabou criando quase uma distorção ficcional
da psicanálise, pois nas práticas surrealistas havia uma intenção de totalizar e sintetizar,
enquanto, como coloca o psicanalista e escritor Jean-Bertrand Pontalis, citado pela
autora, isso nunca deixará de se chocar com a visão essencialmente analítica de Freud,
fundada em pares sempre inconciliáveis (RIVERA, 2002, p. 22).
No LAB, contudo, não tratava-se de uma escrita totalmente livre como a
tentativa surrealista. Estimulava-se uma escrita que pudesse ser o mais corpo possível,
em fluxo contínuo, vinda da bacia e informada pelos rolamentos feitos naquele chão de
madeira. Portanto, não tratava-se somente de evocar um inconsciente dotado de
elementos ―puros‖ e desordenados. Sempre nos era pedido que prescindíssemos do uso
da razão e do juízo na hora de colocar palavras no papel. No entanto, o estado de fluxo
contínuo presume uma parcial atenção ao espaço, aos movimentos alheios e consciência
de ocupar um corpo em deslocamento. Os resultados costumavam consistir em escritas
sem narrativa linear, agrupamentos circunstanciais de palavras e proposições que a
mente e o corpo pareciam querer fazer vir à tona a partir de suas afetações e contágios
vindos a partir do processo do mover.
Ao longo dos meses fomos construindo além de textos, poéticas, conjuntos
aparentemente desordenados de palavras, uma escrita coletiva e advinda do corpo

207
individual de cada aluno mas também do corpo coletivo da turma. No final da
experiência, no mês de dezembro, construímos em conjunto um caderno contendo
passagens escritas, pedaços de ideias, fragmentos, uma espécie de patchwork com
criações feitas a partir dos encontros. Suas ―páginas‖ eram compostas de restos de
papel, sucatas, pedaços de superfícies várias encontradas e coletadas por nós.
Por vezes a escrita era não só afetada pelo movimento do corpo como também
pelo encontro com o corpo do outro, visto que o curso se utilizava do contato
improvisação como base. A dança contato envolve a aderência de outros corpos, é
comum haver acoplamento de dois ou mais indivíduos que se encontram pelo espaço e
resolvem dançar de forma conjunta. Diferente de uma dança a dois tradicional como
uma valsa, ou um tango, a prática convoca uma outra forma de estar junto em
movimento, algo que contempla mais a questão do peso, da consciência e aderência do
corpo alheio e sua textura.

2. Ruas em movimento

Falar sobre experiências contemporâneas em dança nos coloca diante dos


problemas em torno da crise do movimento. Procuro falar, neste artigo, sobre a questão
do mover-se na cidade partindo do pressuposto de que o espaço público não é ―neutro‖,
uma vez que uma axiomática de forças de poder encontra-se aí imbricada. O movimento
de corpos nas ruas não é algo que ocorra de forma ―livre‖, autônoma e espontânea
stricto sensu. Há um projeto moderno-colonial que opera em termos de forma e procura
moldar como se dá o movimento em espaços cuja memória afetiva e histórica segue
sendo afetada por processos de apagamento, silenciamento e expropriação. Além do
fato de que a cidade é um lugar que pouco acolhe a diferença. Penso que repensar
política hoje envolve a necessidade de reformular as relações entre movimento e
urbanidade. Faz-se urgente a busca por tentativas de ativação de corpos que consigam
acessar outras camadas sem que isso se faça no plano da representação.
Paola Berenstein Jacques escreve no artigo Cenografias e corpografias
urbanas: Espetáculo e experiência na cidade contemporânea (2009) sobre a relação
contemporânea entre corpo e cidade estar espetacular e desencarnada (JACQUES, 2009,
p.56). Recuperando a experiência do Movimento Situacionista, a autora fala sobre a
existência de uma relação inversamente proporcional entre participação e espetáculo.

208
As idéias situacionistas sobre a cidade dos anos 1950 e 1960, por exemplo,
principalmente aquelas contra a transformação dos espaços urbanos em
cenários para espetáculos turísticos, levam a uma hipótese clara: a
existência de uma relação inversamente proporcional entre espetáculo e
participação. Essa participação está diretamente relacionada à questão da
experiência e também do cotidiano. Além dos situacionistas, poderíamos
citar aqui diversos autores que trataram dessa questão, como Walter
Benjamin, Giorgio Agamben, Henri Lefebvre e Michel de Certeau. Quais
seriam então algumas alternativas ou desvios possíveis ao espetáculo
urbano? Todas as pistas levam à questão da experiência ou prática dos
espaços urbanos. Essas alternativas passariam necessariamente pela própria
experiência corporal da cidade. A redução da ação urbana, ou seja, o
empobrecimento da experiência urbana pelo espetáculo, leva a uma perda
da corporeidade, os espaços urbanos se tornam simples cenários, sem
corpo, espaços desencarnados. Os novos espaços públicos contemporâneos,
cada vez mais privatizados ou não apropriados, nos levam a repensar as
relações entre urbanismo e corpo, entre o corpo urbano e o corpo do
cidadão. A cidade não só deixa de ser cenário, mas, mais do que isso, ela
ganha corpo a partir do momento em que é apropriada, vivenciada,
praticada; ela se torna ‗outro‘ corpo. (JACQUES, 2009, p. 51).

Quando o olhar deste artigo descola-se para o Rio de Janeiro, lugar onde
aconteceram as aulas do LAB oficina Corpo-Palavra-Corpo, me percebo em uma cidade
subordinada à lógica do capital, cujo atual gerenciamento é quase assumidamente
empresarial, com episódios graves de remoção de população e moradia, além de
apagamentos sistemáticos de memória e afetividade. O cenário de gentrificação,
intensificado principalmente pela incessante promoção do projeto ―revitalizador‖ da
Zona Portuária, chamado ―Porto Maravilha‖ e seus feitos culturais (deflagrando o
chamado ―culturalismo de mercado‖), acaba por interferir na forma como circulamos
pelas ruas cariocas, já que a cidade-empresa colabora para a existência de modos pré-
determinados de circulação individual e coletiva.
Raquel Rolnik em Guerra dos lugares – A colonização da terra e da moradia
na era das finanças (2015), quando escreve sobre a preparação da cidade do Rio de
Janeiro para sediar os megaeventos que nela aconteceram, enfatiza o protagonismo das
chamadas parcerias público-privadas. Quando o governo institucionaliza a lei das
parcerias público-privadas, transfere-se poder para as empreiteiras em relação a
planejamento de projetos e gestão de espaços, priorizando relações contratuais privadas.
Neste período, grandes áreas públicas foram transferidas para empresas, que as
ocuparam e assumiram sua gestão através de um complexo imobiliário-financeiro

209
visando extração de renda e promoção de consumo. Esses espaços são, assim,
descolados da vida na cidade e do planejamento "público", configurando, então, lugares
paralelos. A ―guerra dos lugares‖ seria, para Rolnik, o conflito entre esse lugar
relacionado ao capital financeiro e sua remuneração e um outro lugar caracterizado por
sua vitalidade, espaço passível de experimentações várias.
Me parece razoável depreender uma articulação entre o caráter espetacular dos
espaços exposto por Berenstein e o lado da guerra descrita por Rolnik que envolve o a
gestão empresarial de espaços, tornando-os atraentes ao capital. Da mesma forma que
relacionam-se a cidade como um lugar de criatividade que deve ser experimentado e
vivenciado e este ―outro‖ corpo que se agencia, apontado por Paola. Como ficam os
corpos que por esses espaços em conflito se movem? E os corpos coagidos a se retirar?
Como são os corpos que escapam? De que maneira isso ressoa na cidade?
Vale frisar que, como aponta Otília Arantes em A cidade do pensamento único
- desmanchando consensos (2000), os processos de gentrificação são estrategicamente
uma revanche contra a pobreza, que passa a ser criminalizada, assim como moradores
de rua e sem-teto são expulsos de sua área de moradia e circulação através de um novo
senso comum penal e um novo conceito de ―civilidade‖.

Não é difícil perceber, todavia, que o revanchismo que anima sem disfarce
as gentrificações estratégicas é expressão de uma escalada mais extensa e
profunda na guerra social contemporânea, cristalizada, entre outras
patologias da atual hegemonia global, numa espécie de novo senso comum
penal – criminalização da pobreza e normalização do trabalho precário -,
cuja manifestação urbana também pode ser identificada numa sorte de
princípio da inviolabilidade do espaço público, por isso mesmo submetido
a uma estrita vigilância privada (ARANTES, 2000, p. 37).

3. Abrindo o corpo e rachando o chão

De que forma a prática vivenciada no LAB oficina Corpo-Palavra-Corpo pode


operar na direção de criar possiblidades mais interessantes e principalmente ativações
de corpo, diante da crise do movimento e do espaço? Visto que tratava-se de uma
proposta interessada em um mover que se deixa afetar pela palavra, será a escrita
desprovida de uma razão consciente capaz de fazer o movimento menos repetitivo e
espetacular? Apropriar-se da escrita de forma que ela vire também corpo, vivenciá-la e

210
tornar o movimento ativado pelas palavras que surgem em um exercício pode ativar
coisas novas e inesperadas?
André Lepecki, em Coreopolítica e Coreopolícia (2012), nos atenta para a
necessidade de uma ―política do chão‖ quando são pensadas as articulações entre
movimento e política. No referido texto o autor parte da ideia de Jacques Rancière sobre
a arte e a política serem quase constitutivas uma da outra, a medida em que ambas criam
novas partições do sensível ativando outros modos de vida através do dissenso e sua
capacidade de quebra com hábitos e comportamentos arraigados. Teria a dança,
capacidade de teorizar de forma mais imanente e menos metafórica sobre o contexto
social em que se insere, sendo ela, a própria via capaz de atualizar em suas composições
as linhas de força que compõem tal contexto. E para isso, seria necessária uma atividade
do dançar que esteja atenta a sua relação com o chão, com o que lhe sustenta e todos os
elementos da situação que a envolvem.

Coconstitutivas uma da outra, poderiam dança (ou ação política imaterial)


e cidade (fazer legislativo-arquitetônico material) encontrar-se e renovar-se
numa nova política do chão, numa coreopolítica nova em que se possa agir
algo mais do que o espetáculo fútil de uma frenética e eterna agitação
urbana, espetáculo esse que não é mais do que uma cansativa performance
sem fim de uma espécie de passividade hiperativa, poluente e violenta que
faz o urbano se representar ao mundo como avatar do contemporâneo?
Podem a dança e a cidade refazer o espaço de circulação numa corepolítica
que afirme um movimento para uma outra vida, mais alegre, potente,
humanizada e menos reprodutora de uma cinética insuportavelmente
cansativa, se bem que agitada e com certeza espetacular? (LEPECKI, 2012,
p. 49).

Me parece razoável supor que o referido LAB tem potência de criar algo que
de certa maneira desafia as normas vigentes em relação à movimentação no espaço. No
chão de madeira do subsolo do Sesc Copacabana, criávamos rachaduras imaginárias que
de forma subversiva fissuram o estado das coisas. Não existe chão sem marcas ou
acidentes e é justamente aí que, segundo Lepecki, todo chão sempre já é, que o sujeito
político surge porque nele escolhe o tropeço (LEPECKI, 2012, p. 56). São essas marcas,
cicatrizes de historicidade. De certa forma, naquele período, senti a cidade como espaço
possível de atualizações de potencias políticas e não só um conjunto de leis e
edificações voltadas ao controle. Isso se dá a partir do momento que o movimento
ativado pela escrita e a narrativa ativada pela dança são atividades que se deixam afetar

211
e assim criam em sua relação com o lugar, uma dialética constante e uma atenção
voltada a sua história, ao contexto em que se insere. Nossa relação com os lugares, a
forma como movemos nossos pés pelo solo, deve poder conter espaço para a discórdia,
o circunstancial, os questionamentos que são próprios do desejo. Os modos pré-
determinados e agitados de movimento, característicos da cidade enquanto espetáculo e
constitutivos de seu funcionamento como tal, criam uma relação entre política e chão
praticamente imutável.
Podemos pensar a escrita-corpo do LAB sendo composta por palavras do
inconsciente que vêm à tona, chegam a consciência. E aqui prefiro pensar em uma ideia
ampliada de inconsciente, diferente do apresentado na Psicanálise freudiana, que não o
reduz apenas ao material recalcado mas o coloca como uma instância criadora, que
produz. Afinal, o que é da ordem do oculto pode-se identificar como conteúdo
inconsciente. Principalmente o que culturalmente deseja-se restringir a zona do que é
ocultado. É possível dizer que certas potências do corpo permanecem adormecidas e
fala-se pouco nelas, quando esses aspectos são habilidades do inconsciente. Sua
concepção ampliada se faz tão clínica quanto a do recalcado, ao passo de que acessar
esse conteúdo permite elaborações para que o sujeito lide melhor com seus afetos. Vale
ressaltar que os movimentos de elementos inconscientes que chegam a consciência não
se dão exatamente através de um movimento do interior para o exterior, não trata-se de
uma operação dotada de tanta simplicidade. Aqui parte-se de uma ideia que essas
instancias coexistem e se ultrapassam, não necessariamente configurando espaços tão
bem marcados e contornados.
A ideia de consciência do corpo de José Gil é elaborada em ―Abrir o corpo‖
(2004). A perspectiva cartesiana separou a consciência do corpo mas Gil considera
ambas as instâncias como atravessadas por uma mesma tessitura. O autor se afasta da
consciência da fenomenologia e coloca essa instância como um devir, algo que graças
ao uso do corpo, pode receber as forças do mundo. Essa consciência se deixa então,
impregnar pelos movimentos do corpo a partir do contágio afetivo. Sendo assim, nossa
percepção de mundo é sempre influenciada pelos afetos e sua capacidade de contagiar.
As práticas vivenciadas na oficina operam em uma abertura desse corpo-
consciência que se deixou afetar pela escrita-movimento do inconsciente enquanto
conceito ampliado. Abrimos no sentido de tornar, não só os tradicionais órgãos da
visão, mas toda a pele que envolve o corpo capaz de perceber e viver o mundo. Abrir o
corpo envolve a construção de um espaço paradoxal não empírico ao redor do próprio

212
corpo através da sucessão de micro-acontecimentos que transformam o sentido do
movimento (o que caracteriza o dançar). Essa zona criada consiste em um
prolongamento ou uma dilatação dos movimentos corporais que em contato e contágio
improvisado com o mundo, coloca-se disponível a outros corpos que também se abrem,
formando cadeias infinitas. Assim acontecia nos encontros da oficina.
Dançar com o outro ombro a ombro, nos deixando entrelaçar bacia com bacia
pelo espaço é sentir de forma prática a abertura do corpo a outros corpos também
abertos. Um novo sentido é dado ao deslocamento a partir do momento que a decisão de
para onde ir ou mesmo ficar depende de uma deliberação silenciosa do outro e que será
informada pelo seu mover. Definitivamente, nada naquela simbiose se assemelhava a
qualquer outra prática de dança em conjunto. Mesmo o conceito de simbiose parece não
servir, visto que a tensão de duas subjetividades em deslocamento conjunto não acabam
por anular uma a outra, mas por agenciar alguma outra coisa, uma modulação de
energias em fricção.
O espaço paradoxal criado a partir do prolongamento dos movimentos é lugar
de agenciamentos do corpo com o mundo e seu estrato são os afetos de vitalidade. Nele,
o corpo do movimento repetitivo e espetacular, por vezes melancólico, se dissolve em
contato com outros corpos. Abrir-se ao corpo do outro e ao mundo envolve a abertura
do corpo fechado através da pele.

Eis o que permite essencialmente a abertura do corpo no corpo-


consciência. A consciência abrindo o corpo inteiro ao mundo: nessa
percepção em que todo o corpo vê, não é a consciência pura (intencional)
que visa as coisas mas, literalmente, não metaforicamente, o corpo fechado
que se abre através da pele. O corpo transforma-se num único órgão
perceptivo, como dissemos: não à maneira de um órgão sensorial, mas
como corpo hipersensível às variações de forças, ao seu tipo, à sua
intensidade, às suas mais finas texturas. Corpo particularmente sensível às
vibrações e aos ritmos dos outros corpos. (GIL, 2004, p.10).

4. Conclusão

No presente artigo me utilizei da ideia trazida por André Lepecki sobre Jacques
Rancière, em torno dos encontros entre arte e política pelo dissenso e também sobre a
necessidade de criar uma ―política do chão‖ quando pensamos nas relações entre dança
e política. Explorei o conceito de ―Consciência do corpo‖ em José Gil e suas

213
contribuições sobre o que seria abrir o corpo através da dança, assim como comentários
de Paola Berenstein Jacques a respeito da relação entre corpo e cidade hoje e os
apontamentos valiosos de Raquel Rolnik e Otília Arantes sobre os problemas da
gentrificação na cidade do Rio de Janeiro.
A partir das ideias levantadas e comentadas por esses autores me parece
razoável supor que a experiência do LAB oficina Corpo-Palavra-Corpo cria, de forma
literalmente laboratorial, (e aqui não depreende-se um demérito, mas sim o sentido de
um lugar de exercício, experimentação e prática) desvio possível diante do contexto
espetacular. Os movimentos que ela faz aparecer, são atentos as rachaduras do chão em
que se inserem. Essas cicatrizes, históricas e simbólicas, quando atualizadas de forma
não metafórica através do dançar, operam no real e o perfuram, indicando novos modos
de funcionamento possíveis e que podem ser vivenciados corporalmente. Elas já são o
próprio lugar vital apontado por Raquel Rolnik, a cidade da experimentação, da
criatividade e que carece da ativação de corpos para tal, em contraste com o espaço
tornado atraente ao capital financeiro. Nessas rachaduras outros modos de subjetivação
e aberturas de corpo aparecem e o chão emerge como possibilidade de tudo que há.
A prática faz ativar corpo ávido por contato com intensidades de outros corpos
no sentido do prolongamento da ação de minha pele no espaço, que opera como um
gesto capaz de produzir possibilidade de movimentos mais dotados de vitalidade, de
agenciar a partir do desejo outros corpos se movendo pelo espaço, mesmo diante de
condições adversas, modos impostos de movimento e uma cidade gentrificada que
acabam por influenciar o contato com o mover.
Quase engendrei um outro corpo de meu próprio já situado. Um outro
vivenciado na escrita individual e coletiva, menos automática e surrealista e mais escrita
que se faz e se atualiza com o corpo, por contágio improvisado e em relação atenta com
seu chão e sua história, deixando-se afetar pelo em torno. Criamos palavras que
tomavam forma através da tinta da caneta nas páginas do caderno, da sucata, da atenção
e do trabalho conjunto que é construir um caderno de todos. Apelidamos o objeto de
―Manifesto Colméia‖.
Oficinas que propõem práticas artísticas coletivas voltadas ao dissenso, para a
ativação de camadas inconscientes e ideias ampliadas de consciência, que não resumem
nossas percepções e afetividades a uma perspectiva puramente cognitiva ou organicista
se mostram cada vez mais importantes e urgentes. Elas colaboram com uma visão de
corpo diferente da privilegiada na medicina ou qualquer enquadre institucional. Manter

214
potencias do corpo silenciadas em zonas ocultas só colabora para que não consigamos
aproveitar melhor as tantas coisas que pode um corpo.
Saliento aqui a particularidade do meu corpo em relação a outros corpos que de
fato sofrem ameaças expressas de remoção. Sendo seguramente uma mulher de classe
média e moradora da Zona Sul do Rio de Janeiro, me coloco em perspectiva e sei que
possuo privilégios diante de outros sujeitos que possam ter seus movimentos e vivencias
submetidos e cerceados à políticas de apagamento sistemático de maneira mais violenta
a que ocorre comigo.
Ao tornar-me corpo-escrita, transfiro traços do meu corpo que dança ás
palavras, que ganham novos contornos mais potentes e interessantes através do contágio
improvisado com os afetos do movimento. Ao mesmo tempo faço com que a narrativa
escrita transmita elementos ao movimento, que encontra nas palavras novas modulações
de afetividade e vitalidade, agenciando novas aberturas ao mover. Meu corpo ganha
textura de palavra junto a minha pele aberta que tudo vê. Minha escrita é modulada a
partir da intensidade do meu rolar no chão de madeira. Dessa forma, é criada uma
indiscernibilidade entre o objeto que percebo e o meu corpo, virando ele próprio um
devir escrita e a minha escrita, contagiada, um devir corpo.

encontrei uma folha corpo.

escrever dançando é um desapossamento de juízo que diferente do seu contraponto


imaginado não me leva ao desvario. encontro um ponto terceiro, uma dobra, desafio a
por vezes tirana honrada semântica. algo entre o abandono total de peso e estar
consciente de ser corpo palavra.

do que me adianta ser estranho? nos últimos dias mal tenho dormido, tampouco
conseguido acordar sem sentir como se não fosse escorrer pelo ralo. porque tanta
dificuldade em me deixar levar na aderência des outres corpes? o medo é a palavra
absurdo da minha vida. escrever é colapsar mundos, faz curar o verbo. a cidade é mix e
acho que já soube a pergunta mas agora meu desejo é o deslizar perene da sua língua,
cair no texto, na praia. sempre a praia. absoluta circularidade, a palavra, pequeno ponto
de contato entre eu e o mundo. azul vazio é metonímia. terra vermelha e ameríndio. as
coisas e as palavras são. medo em seu peso sentido substantivo. ou devo eu me

215
conformar com fatos concretos do dia? a sombra da sala e a verticalidade dos prédios, a
maçaneta, meus dentes, essas coisas.

Referências bibliográficas

ARANTES, Otília. VAINER, Carlos. MARICATO, Ermínia. A cidade do pensamento


único: desmanchando consensos. Petrópolis, RJ: Vozes, 2000.

GIL, José. Abrir o corpo. In: Corpo, Arte e Clínica, p. 1-12. Porto Alegre: Ed.UFRGS,
2004.

JACQUES, Paola. Cenografias e Corpografias Urbanas: Espetáculo e experiência na


cidade contemporânea. In: 5ª edição da Revista do Observatório. p. 47-58. 7 dez. 2009.

LEPECKI, André. Coreopolítica coreopolícia. In: ILHA v. 13, n. 1, p. 41-60, jan/jun.


(2011) 2012.

RIVERA, Tania. Arte e Psicanálise. Rio de janeiro: Jorge Zahar Ed., 2002.

ROLNIK, Raquel. Guerra dos lugares – A colonização da terra e da moradia na era


das finanças. São Paulo, SP: Boitempo Editorial, 2015.

216
Pixação: uma escrita enigma, um desvelar em recuo

Gustavo Coelho102

Resumo

Derrida, em seu texto ―Força e Significação‖, chamou de ―defunto‖ o escrito estático


em sua forma de ―signo-sinal‖, uma vez que este, usando os termos do autor, ―diz então
o que é‖ sendo ―puro funcionamento‖. Já a dimensão da poética, ou da própria vida,
estaria, por outro lado, determinada por um espaço criativo de indeterminação, sendo
mais movimento do que estabilidade, mais inscrição do que escritura, mais ato que
estrutura, Diferença portanto. Como empreender, então, uma escrita que não esteja, em
sua superfície, absolutamente refém da missão de ―mostrar‖ um significado, que
portanto não se ―abra‖ em legibilidade, que opere então por uma paradoxal mostra do
recuo, por uma forma disforme, mas que não seja somente traço, pintura, que ainda
assim seja letra, seja palavra, seja escrita? Sugiro, então, o Xarpi (como é conhecida a
cultura da pixação de rua no Rio de Janeiro), como escrita popular geralmente
negligenciada, criminalizada, mas que aqui, costurada com Derrida, Blanchot, Barthes,
Deleuze e Heidegger, oferece surpreendente força linguística e filosófica.

Palavras-chave: Escrita; Poética; Pixação; Diferença; Estética.

102
Doutor em Educação. Professor Adjunto da Faculdade de Educação da UERJ, área de Educação
Estética. Professor do Programa de Pós-Graduação em Educação, Comunicação e Cultura em Periferias
Urbanas - FEBF/UERJ. Documentarista, diretor do filme "Luz, Câmera, PICHAÇÃO" (Prêmio Manuel
Diegues Jr. 2011 - Centro Nacional de Folclore e Cultura Popular-CNFCP). coelhoguga@gmail.com

217
Figura 1 piXações em muro de pedra em Laranjeiras - Rio de Janeiro / RJ

Se pensarmos no movimento primordial da linguagem, o da nomeação – esse


mecanismo dinâmico que funda nossa relação inteligível com o mundo –, pautado,
resumidamente, entre a operação de significação designativa e a potência de imanência
da coisa significante nunca plenamente capturável, embora sequer acessível senão por
essa captura que nem tudo capta, é notório como esse ajuste sempre guardado de uma
impossibilidade, recebe destacado interesse da filosofia e obviamente da linguística.
Blanchot, em capítulo de seu ―A Conversa Infinita‖, dedicado a Heráclito, filósofo pré-
socrático conhecido como ―obscuro‖, atribui essa obscuridade ao fato do filósofo
reconhecer, nesse limiar entre o movimento de expressão pela palavra e a reserva de
indefinição inerente a todo nomeado, um estado de ―diferença‖ que garante, pela
dimensão indizível que essa materialidade do mundo resguarda, um devir vacilante,
princípio de movimento que por fim é paradoxalmente causa de tudo o que se diz.

No fundo, para Heráclito, o que é linguagem, o que fala essencialmente nas


coisas e nas palavras e na passagem, contrariada ou harmoniosa, de umas

218
às outras, enfim, em tudo que se mostra e em tudo que se esconde, é a
própria Diferença, misteriosa porque sempre diferente daquilo que a
exprime, e tal que não há nada que não a diga e não remeta a ela ao dizer,
mas tal ainda que, mantendo-se indizível, tudo fale por sua causa.
(BLANCHOT 2007, p. 19)

É nessa ―separação‖, então, que para Blanchot ―não detém nem separa, mas, ao
contrário, reúne‖ (2007, p. 19), que para ele é o lugar do logos, ―fazendo sinal em
direção àquilo que de outro modo não aparece‖ (2007, p. 19). É nesse sentido, então,
que vamos iniciar uma espécie de ensaio de inclinação linguística e filosófica sobre a
piXação103 como escrita do indizível, como enigma que não se deixa captar. Para tanto,
seguimos em Blanchot e sua concepção de logos, que nesse seu texto, trata-se de um
substantivo que dá nome a uma, podemos dizer, condição enigmática do que movimenta
o expresso:

Linguagem que fala em virtude do enigma, enigmática Diferença, mas sem


comprazer-se nela sem apaziguá-la; ao contrário: fazendo-a falar e, ainda
antes de ela ser palavra, denunciando-a já como logos, esse substantivo
altamente singular no qual se retém a origem não falante daquilo que incita
à fala e que, em seu nível mais alto, ali onde tudo é silêncio, ―não fala, não
esconde, mas faz sinal‖. (BLANCHOT 2007, p. 21)

Tomo tal trecho aqui, então, como definição do que quero trabalhar como a
potencialidade da escrita piXação. Escrita então que, utilizando os mesmos termos de
Blanchot, ―fala em virtude do enigma‖ mas sem ―apaziguá-lo‖, portanto mantendo-o
enquanto tal. Que traços, que contornos, mesmo que nunca definitivos, sempre
incompletos, sempre apequenados diante da imensidão fundante, é possível dar a esse
caos primordial que origina toda escrita/fala mas que encontra justamente nisso a que
serve de origem, na forma legível da ―palavra‖ e mais ainda do ―conceito‖, o obstáculo
último ao seu devir-ilimitado? Como empreender uma escrita que não esteja, em sua
superfície, absolutamente refém da missão de ―mostrar‖ um significado, que opere

103
Sempre, no percurso textual, a palavra piXação e suas derivadas virão com ―X‖ maiúsculo em simpatia
à mesma utilização de Canevacci em Culturas eXtremas (2005). Fazendo também uma analogia entre o
enigma enquanto conceito importante nesse trabalho e a letra-símbolo ―X‖ que em diversos contextos
representa a presença da incógnita.

219
então por uma paradoxal mostra do recuo, por uma forma disforme, mas que não seja
somente traço, pintura, que ainda assim seja letra, seja palavra, seja escrita? Parece-me,
e tomo aqui como uma aposta conceitual, que o Xarpi104 é um fenômeno escriturístico
popular que exibe esteticamente essas questões, e tem nelas um material fértil para
entendermos os choques epistemológicos que ele dispara em nossa sociedade, herdeira
dos regimes de verdade, portanto de leitura, da ocidentalidade burguesa, tendo, no nosso
caso, a linguagem como campo de estudos para essa apreciação.

Figura 2 piXações no Rio de Janeiro

Derrida, em seu texto ―Força e Significação‖, chamou de ―defunto‖ o escrito


estático em sua forma de ―signo-sinal‖, uma vez que este ―diz então o que é‖ sendo
―puro funcionamento‖. As garantias da poética, portanto, estariam largamente
dependentes do ato, da ação da escritura, em suas palavras, ―da inscrição‖: ―Ora,
paradoxalmente, só a inscrição – embora esteja longe de o fazer sempre – tem poder de
poesia, isto é, de invocar a palavra arrancando-a ao seu sono de signo‖ (2009, p. 16).
Em outros termos, a dimensão poética da expressão, ou da própria vida, seria

104
Se piXação é o nome dado nacionalmente a esse fenômeno, ―xarpi‖ é sua expressão carioca. No Rio de
Janeiro, há uma espécie de língua secreta falada entre alguns jovens que tem na rua uma zona de
socialidade intensa. Chama-se língua do TTK e funciona invertendo as posições silábicas das palavras,
pondo a última na primeira posição e assim por diante. O nome TTK dizem que é por ter nascido nas ruas
do Catete, bairro da Zona Sul do Rio. Assim sendo, nessa língua, ―pixar‖ tornou-se ―xarpi‖ e logo deixou
de ser apenas verbo para tornar-se substantivo, sendo hoje sinônimo carioca para piXação.

220
determinada por um espaço criativo de indeterminação, sendo mais movimento do que
estabilidade, mais inscrição do que escritura, mais ato que estrutura, tendo portanto
divergência com as configurações de linguagem e do Ser demasiadamente enrijecidas
pelo ―é‖, pelo ―isto é‖, o que nos leva a outro trecho de Derrida no texto ―Edmond Jabés
e a Questão do Livro‖, ao falar do rompimento da ―unidade do Ser – no frágil elo do ‗é‘
– acolhendo o outro e a diferença na origem do sentido‖ (2009, p. 103). Portanto, a
poética tendo que ver com o indizível seria como uma espécie de atividade de
Diferença, de refugo às demandas gramaticais de alocação fixantes da existência, anti-
fascista em seu devir portanto. Pensando o fascismo e a escritura nesses termos, a meu
ver, ele seria resultado do engano hipnótico que acaba tratando essa fragilidade do ―é‖
determinante, como fortaleza absoluta e indestrutível, ou seja, que vai entender a vida
igualando, como equação ideal e definitiva, o "Ser" e o "é" que o define, assim como a
obra produzida e seu conceito. Em todo caso, essa associação "ideal" entre o "Ser" e o
que a ele é anexado pelo "é", caso de fato fosse consolidável, seria o próprio fim da
linguagem, a própria quebra de uma condição prévia à linguagem - a Diferença, o algo
de inadaptável entre o nome e o nomeado, o vão entre devir e estrutura, a
"indeterminação" do sujeito, se formos em Freud e Lacan105. Sem isso, nome e nomeado
seriam coisa só, não sendo mais possível sequer as condições de nomeá-lo, não sendo
possível a centelha da poética. Portanto, o fascismo seria a histeria produzida pela
crença na possibilidade de reduzir a vida ao "dizível" dela, sem desconfiar de que sem a
dimensão do indizível, do comum em estado radical, não haveria condições para
dizermos nada. Nesse cenário neurótico, então, o fascista é fascista por aproximar-se
velozmente, dada essa atrofia dos limites do Ser ao "elo do é", de um terrível mundo
mudo, no qual as letras se ergueriam feito grandes estruturas sem espaço à dúvidas de
sentido, e só essa linguagem seria possível, língua do regime.
Voltando, então, ao Xarpi, o traço da sua escrita, como vemos pelas imagens,
não opera por sucessão, letra após letra, cuja linearidade teria a chamada ―letra de
fôrma‖ como expressão por excelência da dinastia da transparência do sentido único,
não por acaso tipografia utilizada quando se pretende fazer inscrições com intuitos
políticos tradicionais, onde a forma da letra precisa ser absolutamente posta a serviço da
informação clara, evitando equívocos e duplo sentidos, limpando suas bordas, aparando
suas arestas. Nesses casos, portanto, não a toa ela se dá por abertura, vai se esticando em

105
―Trata-se sempre é do sujeito enquanto que indeterminado‖ (LACAN, 1979, p. 31)

221
sucessão, ―desembolando‖, mantendo espaços ―sem tinta‖ entre cada letra, o que auxilia
na dureza necessária ao alicerçamento de um único sentido, base defendida para a
segurança de sua ―identidade‖, ou de sua imediata ―identificação‖. Quando, então, o que
está em jogo é um desejo de persuasão, quando é o convencimento que pauta nossa
escrita, objetivo este que de forma protagonista parece movimentar a enunciação do
homem com vontade de verdade hipertrofiada, é a ânsia de clareza que conduz a mão do
escritor, deixando pelo caminho assim tipografias outras, iluminuras, e o que quer que
por capricho, por luxo, não sucumba às ordens do esclarecimento. Sendo assim, junto
com Barthes, como veremos, pode parecer estranho às concepções reduzidas da escrita,
mas ―ser clara‖ não é um valor fundante do acontecimento da linguagem, sendo, quando
muito, apenas uma de suas ferramentas de contenção de si mesma, de controle da
centelha poética, de segurança contra o germe de polissemia que incessantemente nutre
toda palavra. Indo em Barthes (2004, p. 50):

Na realidade, a clareza é um atributo puramente retórico, não é uma


qualidade geral da linguagem, possível em todos os tempos e lugares, mas
apenas o apêndice ideal de determinado discurso, aquele mesmo que está
submetido a uma intenção permanente de persuasão. É porque a pré-
burguesia dos tempos monárquicos e a burguesia dos tempos pós-
revolucionários, utilizando uma mesma escrita, desenvolveram uma
mitologia essencialista do homem, que a escrita clássica, una e universal,
abandonou todo tremor em benefício de um contínuo do qual cada parcela
era uma escolha, quer dizer, eliminação radical de qualquer possível da
linguagem. A autoridade política, o dogmatismo do Espírito e a unidade da
linguagem clássica são portanto as figuras de um mesmo movimento
histórico.

O Xarpi, ao contrário, parece empreender re-volta, re-―embolando‖ em direção a


uma espécie de talhe primordial ancestral da letra, ainda que, no caso, já tendo passado
por letra, tampouco a descarte, mas a deforma, retorce, lança uma sobre a outra,
modificando-as até a impossibilidade da leitura linear, reagindo assim então, por
justaposição enigmática, à sucessão reveladora, mas ainda assim mantendo-se todos
eles, letras.

222
Figura 3 piXações no Rio de Janeiro

Podemos pensar, então, numa operação de desintegração de posse do sentido


daquela que seria sua obra por excelência, ou melhor, dessa obra humana que o tornou
finamente expresso – a palavra. Entregue aos traços, desarmadurada do sentido único, o
que emerge no seu manuseio é o devir movente que a precedia, do qual Blanchot e
Heráclito falavam juntos anteriormente. Libertas, então, protegem-se de nova
reintegração de posse do sentido, e pela retorção da forma, garantem a condição
necessária a esse entrincheiramento – a condição de ilegível, indizível, porém ainda
expresso, dito, feito presença. O enigma ganha forma pela afirmação em presença
traçada da negação à subserviência ao sentido único que, como vimos, tratou-se de uma
das propriedades mais bem consolidadas durante a modernidade, e que tanto fundou
nossa compreensão de indivíduo, assegurando a ele traços normativos, emblemas de
sentido como gênero, profissão, partido, coerência, consciência, quanto fez do expresso
por esse homem, algo de seu pleno domínio, portanto tão mais bem expresso quanto
mais claro, sendo a clareza aqui, a transparência mesma do sentido único sempre
persuasivo. Podemos propor então aqui uma analogia entre a condição ilegível do
Xarpi, sabendo que para algo ser ilegível é preciso, contudo, que esse algo ―seja‖, e que
além se ―ser‖, seja objeto de uma tentativa de leitura aportada por determinada
gramática, por alguma máquina de aprisionamento, e o ―sujeito enquanto que
indeterminado‖ da psicanálise. Sendo letra, então, o Xarpi se expõe à leitura, mas as
embolando, ao mesmo tempo se furta à mesma, esquiva-se. Põe-se no jogo, mas seu
golpe é o da negação, escapa sem fugir, escorre sem desaparecer. Apresenta-se com as
ferramentas da tradução, expõe-se à superfície das coisas da sociedade a serem

223
traduzidas, mas resguarda as garantias de intradutibilidade nessa dobra do não-sentido.
Outra vez indo em Derrida (2004, p. 33-34), dessa vez no seu texto ―Sobreviver‖, ele
afirma que ―um texto apenas vive se ele sobre-vive e ele só sobrevive se é
simultaneamente tradutível e intraduzível‖, e na sequência sugere: ―O mesmo se dirá do
que chamo de escritura, marca, rastro, traço etc. Isso não vive nem morre, sobrevive‖106.
O Xarpi, então, mostra-se numa estrutura, acontece substancialmente escrito nos muros,
é coisa ―estável‖ tão logo a tinta seque, mas protege da captura gramatical, nessa
esquiva que é a própria Diferença, o dinamismo do seu impulso.

Se é preciso dizer, com Schelling, que ―tudo é apenas Dioniso‖, é preciso


saber – e é escrever – que, como a força pura, Dioniso é trabalhado pela
diferença. Vê e deixa-se ver. E arranca (-se) os olhos. Desde sempre,
mantém relação com o seu exterior, com a forma visível, a estrutura, como
com a sua morte. – É assim que aparece a si mesmo. (DERRIDA 2009, p.
39)

Vê, deixa-se ver, portanto compõe o mundo, mas arranca os olhos tanto de si
quanto dos que o observam, o determinam, garantindo a permanência da força
indefinida, do dinamismo vital, característica também de outras figuras mitológicas que
possuem o mesmo, digamos, parentesco simbólico, como nosso Exu, para não ficarmos
refém do repertório grego. Sendo assim, estabelecemos uma relação entre o legível, o
determinado, as bordas, o dizível, a clareza, como fatores que estruturam mundos,
erigem gramáticas e regimes sólidos, assim como relacionamos o ilegível, o indizível, o
indeterminado, como espécie de reserva contingente que, a um só tempo, impulsiona o
vir a ser das obras, da vida, das estruturas, dos sujeitos, mas que garante uma polissemia
de base, uma sobre-vida, um dinamismo aceito, uma Diferença que impede a fixidez
ideal, a qual seria o tal defunto citado anteriormente. Indo novamente em Derrida para
também aproximarmos esse nosso ilegível dinâmico ao seu conceito de sobre-vida:

Alegria, reafirmação, triunfo (do) sobre: sobre a vida e da vida, sobre-vida,


ao mesmo tempo entre vida e morte na cripta, mais-que-vida, mais-de-vida,

106
Grifos do autor.

224
adiamento e hipervitalidade, suplemento de vida que vale mais que a vida e
que a morte, triunfo da vida e da morte. (2004, p. 48).107

Aproveitando, então, essa relação entre sobre-vida, mais-que-vida e mais-de-


vida, parece-me fértil aproximar esses termos, essa sobras, do conceito de mais-de-
gozar de Lacan que segundo o psicanalista Lacadée (2011, p. 112), ―designa a
incidência do significante sobre o corpo. A linguagem implica uma perda de gozo, mas
esta busca uma compensação, que Lacan chamou de mais-de-gozar. Há ‗necessidade do
mais-de-gozar para que a máquina funcione‘‖, como que reconhecendo nesse ―luxo‖,
nesse além do ―necessário‖, nessa inutilidade indizível, uma material fértil e do qual
depende inclusive o funcionamento da máquina, do reinado do dito.
Cabe destacar ainda que, mesmo que cada piXador desenvolva um sinal/nome108
singular, a lógica da escrita só pôde constituir-se enquanto tal e tornar-se cultura popular
jovem, o que é evidente tanto pelo histórico ininterrupto de cerca de 40 anos de
existência, quanto pelo lastro geográfico que ocupa não só em todo o Rio de Janeiro,
mas com algumas variações, em todas as capitais do país e mesmo nas cidades não tão
grandes assim, graças ao bom nível de reverberação das irradiações coletivas que um
corpo, não mais subalternizado aos regimes da racionalidade objetiva e à dinastia da
autoria, como o do piXador, possui. É, inclusive, dessa mesma capacidade de
reverberação às irradiações coletivas, ou seja, do protagonismo da estética na
composição da ética comum, que se alimenta e se expande qualquer cultura popular, o
que acaba fazendo delas depositários férteis de uma sabedoria sem autoria, dispersa
porém eloquente, que ficaria retida caso só de individualidade fosse realmente composto
o homem. Como sinalizou Castoriadis (2009, p. 24):

Mesmo que ela não seja feita explicitamente para durar, ela dura de
fato, de um jeito ou de outro. Sua durabilidade é incorporada em seu
modo de ser, em seu modo de transmissão, no modo de transmissão
das ―capacidades subjetivas‖ que a sustenta, no modo de ser da
própria coletividade.

107
Grifos do autor.
108
Eles chamam de ―nome‖. ―Vamos tacar um nome‖ é como frequentemente convocam um amigo para
piXar juntos.

225
Em resumo, o homem moderno por excelência, se de fato fosse possível
materializar-se e universalizar-se, interromperia em definitivo o vitalismo necessário à
continuidade da cultura popular, haja vista que teria conseguido tornar qualquer
fragilização da sua consciência, qualquer ilegível, uma impossibilidade definitiva. É
justamente, então, dessa mesma concepção de vida que, para Barthes, nasce e consolida-
se uma escrita com afã pela unidade, pela dureza de uma forma assegurada de qualquer
dilaceração. Em suas palavras: ―Ver-se-á, por exemplo, que a unidade ideológica da
burguesia produziu uma escrita única e que, nos tempos burgueses (isto é, clássicos e
românticos), a forma não podia ser dilacerada visto que a consciência não o era‖
(BARTHES, 2004, p. 4). Nesse sentido então, esse jogo da humanidade composta de
sujeitos esclarecidos, desses que vivem como se não houvesse sombra não esclarecível,
parece-me que a lógica privilegiada de funcionamento da linguagem e suas proposições,
foi aquela que Deleuze chamou de designativa:

A designação opera pela associação das próprias palavras com


imagens particulares que devem ―representar‖ o estado de coisas:
entre todas aquelas que são associadas à palavra, tal ou tal palavra à
proposição, é preciso escolher, selecionar as que correspondem ao
complexo dado. A intuição designadora exprime-se então sob a forma:
―é isto‖, ―não é isto‖. (DELEUZE, 2011, p. 13)

Pelo domínio dessa forma de proposição, então, o ―devir-ilimitado‖ do


―acontecimento‖, para seguirmos usando os mesmos termos de Deleuze, acachapado
pela força da designação exclusiva, é lançado ao avesso, às profundezas, as quais, se
nossa leitura estiver toda ela compreendida na estreiteza apenas do que fora designado,
sequer ameaçará nossa percepção. Assim, leremos velozmente, apanágio da escrita
―meramente‖ informativa, anseio da neutralidade e clareza jornalísticas. Em todo caso...

[...] é próprio da linguagem, simultaneamente, estabelecer limites e


ultrapassar os limites estabelecidos: por isso compreende termos que não
param de deslocar sua extensão e de tornar possível uma reversão da
ligação em uma série considerada (assim, demasiado e insuficiente, muito e
pouco). (DELEUZE, 2011, p. 9)

226
Desse modo, então, a linguagem, para Deleuze, sempre oferece resistência,
guardando meios de impedir que o ―devir‖ isole-se pelas forças da designação em uma
profundidade inacessível, oferecendo-nos para isso a figura do paradoxo como
possibilidade de uma espécie de nó na racionalidade cognitiva. Não por acaso, trata-se
de figura frequente na artesania poética, assim como determinante ao pensamento
trágico que precisa de meios para afirmar o duplo contraditório ao mesmo tempo,
afirmando a negação, sim e não, todo e unidade. Assim, então, ―o paradoxo aparece
como destituição da profundidade, exibição dos acontecimentos na superfície,
desdobramento da linguagem ao longo deste limite‖ (DELEUZE, 2011, p.9), lançando
na superfície, a determinação indeterminada necessária à aparição enigmática do ―devir-
louco, [do] devir-ilimitado [que] não é mais um fundo que murmura, mas sobe à
superfície das coisas e se torna impassível.‖ (DELEUZE, 2011, p. 8). Deleuze, por fim,
chama a imagem do anel, da continuidade de borda entre seu lado direito e seu avesso
para expressar essa elevação do devir ao nível da linguagem:

A continuidade do avesso e do direito substitui todos os níveis de


profundidade; e os efeitos e superfície em um só e mesmo
Acontecimento, que vale para todos os acontecimentos, fazem
elevar-se ao nível da linguagem todo o devir e seus paradoxos.
(DELEUZE 2011, p. 12)

Figura 4 piXações no Rio de Janeiro

227
Dessa reflexão, então, volto à escrita Xarpi para pensá-la em um lugar de
liminaridade paradoxal no qual se dá sua formação – uma escrita da não-escrita, uma
expressão cujo sentido é oferecer formas ao não-sentido, e que, se voltarmos em
Blanchot, justamente quando ele está preocupado em pensar alguma escrita fora da
linguagem, encontraremos momentos de uma intuição que fez ele, por pelo menos duas
vezes, apontar os muros, a noite e o graffiti, como possíveis locais afeitos à sua
aparição:

[...] escrevendo em ruptura com toda linguagem de fala e de escrita e desde


então renunciando tanto ao ideal da Obra bela quanto à riqueza da cultura
transmitida e à validez do saber certo do verdadeiro. E, assim, escrevendo,
mas não escrevendo, pois dessa escrita sempre exterior àquilo que se
escreve, nenhum traço, nenhuma prova se inscreve visivelmente nos livros,
talvez aqui e ali sobre os muros ou sobre a noite... (BLANCHOT, 2007, p.
270)

Tentando, então, se desgarrar de uma escrita ideológica, Blanchot (2007, p. 270-


271) chega à conclusão de que ―não está ainda jamais livre da ideologia, pois ainda não
há escrita sem linguagem‖. Continuando nessa reflexão, ele decide então assumir uma
ideologia, aquela que o lançará numa busca por uma escrita não ideológica, uma
ideologia, portanto, segundo ele, ―humanista‖, não no sentido habitual, nem filosófico,
nem antropológico do termo, mas sim cavando ―aquilo que mais [...] afastará [o
homem] de uma linguagem‖ (BLANCHOT, 2007, p. 271). Algo do homem, então,
próprio dele, mas que ainda estivesse o máximo possível recuado à linguagem, que
guardasse um arcaísmo de devir primevo às palavras, ali então estaria o ―humanismo
por excelência‖, segundo ele. Blanchot chega, então, ao grito, ao murmúrio. É aí, então
que ele ao tentar pensar uma escrita de ―grito‖, sugere novamente os ―grafites nos
muros‖:

O que é então ―o humanismo‖? Por onde defini-lo sem comprometê-lo no


logos de uma definição? Por aquilo que mais o afastará de uma linguagem:
o grito (isto é, o murmúrio), grito da necessidade ou do protesto, grito sem
palavra e sem silêncio, grito ignóbil ou, a rigor, o grito escrito, os grafites
dos muros. (BLANCHOT, 2007, p. 271)

228
Figura 5 piXações no Rio de Janeiro

Parece-me, então, que a escrita Xarpi, pode ser entendida como uma poética que
se serve desse ―grito‖ do divorcio com a linguagem, para mover seus traços
enigmáticos, justamente pois traçam-se ali letras que desenham sua vontade de escapar
das letras que desenham, numa fuga que, no entanto, precisa evitar a completa escapada,
sob o risco de interromper qualquer traço e ver-se aprisionada na outra extremidade, a
do mutismo suicida. Uma escrita, então, que vai da linguagem à coisa, retorcendo seus
traços para fazer, da letra, coisa, sem deixar de no entanto ser ainda letra. Uma
linguagem, então, que figura uma força imanente que, para Merleau-Ponty (2012, p.
30), ―todos veneramos secretamente [por] esse ideal de uma linguagem que, em última
análise, nos livraria dela mesma ao nos entregar às coisas‖.
Podemos também fazer uma analogia com Heidegger em ―A origem da obra de
arte‖, especialmente nas passagens em que desenvolve a relação de afetamento
recíproco entre o desabrochar do ―mundo‖ por via das obras humanas, e o solo que o
abriga mas também o ameaça, em suas palavras: a ―Terra‖. Heidegger, então, chama a
atenção da complexidade do sentido que atribui ao termo ‖Terra‖, a fim de escapar às
noções modernas e reducionistas de ―natureza‖. Para ele,

Do que que a palavra Terra aqui significa deve-se afastar tanto a


representação de uma massa de matéria aglomerada como também,
segundo a astronomia, a ideia de planeta. A Terra é aquilo em que se
reabriga o desabrochar de tudo que, na verdade, como tal, desabrocha.

229
Nisso que desabrocha, a Terra vige como a que abriga. (HEIDEGGER
2010, p. 105)

Em todo caso, é justamente pelo erguimento das obras, portanto do mundo, que
o homem oferece-se a de fato sentir a grandiloquência da Terra em sua imensidão de
potências, com a qual está sempre em relação de composição partilhada. A tempestade
também constrói uma obra arquitetônica, assim como a obra oferece superfície à
tempestade que, portanto, tem sua força finalmente sentida. ―Aí permanecendo, a obra
arquitetônica resiste à tempestade que se abate furiosamente sobre ela e mostra deste
modo a própria tempestade em sua força. [...] O erguer-se seguro torna visível o
invisível espaço do ar‖ (HEIDEGGER, 2010, p. 103). Sendo assim, é somente pelo
―mundo‖ que a ―Terra‖ pode ser sentida em seu dinamismo construtivo e ameaçador,
muito embora, esta mantenha com aquele sempre um estado de reserva. Se então, aquele
oferece à Terra superfícies de contato que desvelem sua aparição, esta será sempre
resguardada pela condição paradoxalmente velada da Terra e suas potencias. Uma obra
arquitetônica, portanto, pode, pelos efeitos de sua presença, nos ofertar com as
sensações da força da tempestade, mas nunca poderá dar em nossas mãos a própria
tempestade, o que, se fosse realmente possível, cessaria por completo todo o vir a ser
das obras humanas, e com isso, do mundo e por fim da Terra. Em resumo, tomar posse
da Terra, se possível fosse, seria o mesmo que interromper a vida, que lidar com o
defunto de Derrida. Portanto, seguindo em Heidegger, a Terra ―recua diante de qualquer
tentativa de apreensão‖:

Tentemos conceber isso de outro modo, colocando a pedra sobre a balança,


então só trazemos o peso ao cálculo de quanto pesa. Talvez esta
determinação bem exata da pedra permaneça um número, mas o peso como
tal nos escapou. A cor brilha e só quer brilhar. Quando nós a decompomos
em frequências vibratórias através de medidas racionais, ela se vai. Ela
apenas se mostra quando permanece desvelada e sem esclarecimento.
Assim, a Terra faz despedaçar-se contra ela mesma toda intromissão nela.
Ela deixa toda impertinência apenas calculante transformar-se numa
destruição. Mesmo que essa traga a aparência de domínio e progresso, na
forma da objetivação técnico-científica da natureza, este domínio
permanece, contudo, uma impotência da vontade. Aberta em sua claridade,
a Terra somente se mostra como ela mesma ali onde a preservam e
guardam como a que é essencialmente indecifrável e que recua diante de

230
qualquer tentativa de apreensão, isto é, mantém-se constantemente fechada.
(HEIDEGGER, 2010, p. 115-117)

Parece-me evidente aqui a crítica de Heidegger à racionalidade moderna e ao


cientificismo de concepção cartesiana que, como já apontamos outras vezes, tomou a
plena e definitiva apreensão da Terra, como algo desejável e possível mediante rigoroso
uso das capacidades cognitivas do homem. Para Heidegger, então, tal concepção de vida
encontra no próprio dinamismo da Terra sua impossibilidade, seu limite conceitual,
muito embora já sugira nas entrelinhas que o aprisionamento desse devir pela técnica
tem um custo ao técnico e à comunidade técnica – o de justamente não perceber que de
suas mãos tecnicamente habilidosas, escapara sem que ele desse conta, a maior parte
daquilo que ele analisa – o íntimo vínculo vital entre o impensado e a vida. Voltando
então à linguagem, para depois retomarmos a escrita Xarpi, Blanchot chama atenção de
uma ―tentação do eterno‖, dessa ―recusa da morte‖, como uma ―necessidade
verdadeiramente capital‖ que move o ato nomeador e que afasta do homem o contato
com uma ―escrita exterior à linguagem‖, uma escrita da Terra, eu diria analogamente,
diante da qual seria impossível sustentarmos nossas duras aparências, as quais garantem
certa segurança diante do fantasma da completa dissolução que, ao mesmo tempo, assim
como a Terra, a tudo ameaça para tudo erguer.

[...] pois é a morte, quer dizer, a recusa da morte, a tentação do eterno, tudo
que conduz os homens a preparar um espaço de permanência onde possa
ressuscitar a verdade, mesmo se ela perece. O conceito (toda linguagem
pois) é o instrumento neste empreendimento para instaurar o reino seguro.
Incansavelmente, edificamos o mundo, a fim de que a secreta dissolução, a
universal corrupção que rege o que ―é‖, seja esquecida em favor desta
coerência de noções e de objetos, de relações e de formas, clara, definitiva,
obra do homem tranquilo, onde o nada não poderia infiltrar-se e onde belos
nomes – todos os nomes são belos – bastem para nos tornar felizes.
(BLANCHOT, 2010, p. 73)

Entendendo então que toda linguagem pode ser compreendida nesse dinamismo
entre o inapreensível nomeado (significante) e a vontade de acabamento do nomeante
(significado), parece-me que somente o iluminismo e seus desdobramentos cientificistas

231
puderam optar pelo monopólio de apenas um lado dessa balança. Pela primeira vez na
história humana, tomou-se como projeto de mundo, o seu encerramento acabado no ato
nomeador, portanto, no ―belo‖, se seguirmos em Blanchot. Voltando em Heidegger, a
Terra, então decifrada, finalmente se igualaria ao mundo, e a força tempestade estaria
em definitivo domada em nossas mãos pelo nome. Dessa obra de durabilidade eterna, se
elevaria o reino da humanidade esclarecida. Em todo caso, essa sabedoria de progresso
não atentou para uma sabedoria milenar e bem disseminada em nossos berços
populares, aquela que ―sabe‖ a força nutritiva da aceitação da dimensão enigmática na
manutenção de um dinamismo vital ao erguimento de todas as coisas, mesmo dos
nomes. Em outros termos, a própria premissa que norteou o projeto de reino, estaria
fadada a encontrar sua própria dissolução caso atingisse sucesso pleno em seu
empreendimento, uma vez que, exorcizado o fantasma de sua dissolução pela segurança
acabada do nome, como vimos, terminariam por testemunhar uma gradativa atrofia da
linguagem, já que esta, pelo que diz Blanchot, precisa estar como que em ameaça de
dilaceramento pelo nomeado para continuar nomeando. Resumidamente, no reino da
humanidade esclarecida, dinastia do enunciado acabado, onde sendo tudo desvelado não
se sabe mais o sentido da palavra ―velado‖, dentro de pouco tempo, não haveria mais
qualquer enunciado.
É nesses termos, então, que sugiro aqui compreendermos a escrita Xarpi como
aquela que faz um caminho imprevisto aos planos de progresso dessa escrita designativa
que deu páginas fundantes ao reino esclarecido. Se esta pretendeu libertar-se do mundo,
das coisas, da presença, estabelecendo o sentido como obra última e definitiva, o Xarpi
parece ser escrita da saturação desse processo, pois, sem deixar de ser escrita, dá forma
escritural a essa vontade de escapar da dinastia do sentido, na qual tentou-se conter toda
potência poética do mundo. Como podemos perceber pelas seis fotos abaixo, três com
Xarpis dos anos 80 e outras três Xarpis já dos anos 2000, trata-se inclusive de uma
passagem gradativa, a meu ver. Nas fotos nota-se como, pela separação mais notada das
letras, aqueles nomes mais antigos, que já eram enigmas por estarem ―soltos‖ nos muros
sem propósito persuasivo aparente, podiam ainda assim, mesmo com alguma possível
dificuldade, ser ―lidos‖ a partir de um conhecimento alfabetizado na oficialidade da
língua, o que não acontece nas três fotos seguintes, quando por aglutinação, frequente
nos Xarpis atuais, a escrita radicaliza-se, furta-se a uma leitura pautada pela
alfabetização escolar, fazendo da gramática oficial da cidade uma analfabeta, sendo para
esta, portanto, algo ―sem sentido‖ mas não permitindo que se diga ser ―sem presença‖.

232
Figura 6 HAIR

Figura 7 FYT

233
Figura 8 NADO'S e FASO'S

Figura 9 RUNK

Figura 10 TOKAYA

Figura 11 VUTO

234
Em resumo então, se é apenas por desvelamento que a linguagem resultante de
um movimento histórico-social-epistemológico de consagração da clareza, permite
desdobrar-se, a escrita piXadora, em especial essa carioca da qual trato aqui, recupera o
velamento como modo de operação de seu traço, convocando o velado para ―aparecer‖
na clareira da presença escrita, sendo ―desvelamento‖, ―velamento‖ e ―clareira‖, termos
usados por Heidegger para pensar o ―sendo‖ de toda obra. Segundo ele, tudo o que
―vem a ser‖, todos os ―sendos‖, quando se ―mostram‖, só podem fazê-lo usando do
―velamento‖ para se ―desvelar‖. Em outras palavras, tudo aquilo que se define, ao
mesmo tempo, ao fazê-lo, vela a maior parte dos agenciamentos que o atravessam. Toda
definição, sendo assim, mostra escondendo e a escrita Xarpi parece aceitar isso ao
propor-se como escrita que dilacera a escrita. Nas palavras de Heidegger (2010, p. 133):

Todo sendo, que vem ao encontro e nos acompanha, submete-se a este


estranho antagonismo da presença, na medida em que, ao mesmo tempo,
sempre se mantém retraído num velamento. A clareira na qual o sendo se
desvela é, em-si e ao mesmo tempo, velamento.

De tal forma, para Heidegger, a ―verdade‖ não se opõe ao que seria ―falso‖, ou
seja, não é um desvelamento ―que se livrou de todo velado‖, como é a concepção de
verdade moderna alcançável pelo discurso, pelo conceito. Para ele, o desvelamento é
todo ―vir a ser‖ do ―sendo‖ que, como vimos, se dá justamente por um processo de
―velamento‖ e a verdade é exatamente a presença dessa ambiguidade em todo
desvelamento, não sendo portanto ―nem uma propriedade das coisas, no sentido do
sendo, [ou seja, que não está sob controle da coisa que se torna presente nesse

235
desvelamento,] nem uma propriedade das proposições [ou seja, nem é possível ser dita
definitivamente pelo discurso sobre a coisa]‖ (HEIDEGGER, 2010, p. 137). A verdade
para Heidegger, tem muito mais a ver com a presença, justamente por essa guardar em
si a polissemia do velado, do que no sentido atribuído pelo discurso, especialmente
quando este opera pela designação.
Para finalizarmos, então, sugiro que toda a revolta mais ou menos disseminada
da sociedade contra a piXação, repousa não somente nas justificativas mais repetidas,
ou seja, naquelas da depredação do patrimônio público e particular ou dos danos
ambientais, onde criminalmente a legislação a enquadra, mas especialmente nesse
choque epistemológico que a subjetividade da sua escrita nos impõe – a perda da
propriedade do sentido, faculdade que fora necessário primeiro constituir-se como base
das relações do homem moderno com o mundo, para a partir dela, empreender toda sua
cruzada de acúmulos. Portanto, a propriedade privada, em defesa da qual brada-se e
levanta-se ferramentas de penalização, tortura e extermínio de jovens piXadores, assim
como a concepção de espaço público e meio-ambiente, como espaços vigiados onde
qualquer intervenção é, a princípio, um dano, são mais efeitos dessa propriedade
anterior, a do sentido, do que causas primeiras da animosidade contra a piXação. Tal
raciocínio, a meu ver, fica mais evidente quando percebemos que não há qualquer
campanha de repressão contra as inscrições, tão ilegais quanto, que, movidas por uma
vontade persuasiva, pretendem enunciar sentidos precisos, como por exemplo os ―SÓ
JESUS EXPULSA O DÊMONIO DAS PESSOAS‖, ―LEIA A BÍBLIA‖, ―COMPRO
SEU CARRO BATIDO‖, ―JOGA-SE BÚZIOS‖, ―TRAGO A PESSOA AMADA‖, que
também povoam as superfícies de nossa cidade sem, por isso, convocarem seus desejos
de extermínio. Objetarão que estes não escrevem sobre os muros das casas das pessoas,
nem nas janelas dos apartamentos, apenas em muros das linhas dos trens, viadutos,
postes, tapumes. Tudo bem, em todo caso, parece-me um tanto pouco crível que um
policial possa retirar as roupas, pichar109 o rosto, violentar alguém que esteja escrevendo
―LEIA A BÍBLIA‖, não importa onde. Ou seja, suspeito que as justificativas materiais
sejam dissimulações discursivas que mantém veladas as razões epistemológicas mais
decisivas que tratei ao longo deste artigo.

109
Aqui, propositalmente escrevi com ―ch‖, justamente por ser um ato de pichar reativo, torturador, em
nada assemelhado com a piXação que me interessa.

236
Referências bibliográficas

BARTHES, Roland. O grau zero da escrita: seguido de novos ensaios críticos. São
Paulo: Martins Fontes, 2004.

BLANCHOT, Maurice. 2010. A conversa infinita: a palavra plural. São Paulo: Escuta,
2010.

______. A conversa infinita 2: a experiência limite. São Paulo: Escuta, 2007.

CANEVACCI, Massimo. Culturas eXtremas: mutações juvenis nos corpos da


metrópole. Rio de Janeiro: DP&A, 2005.

CASTORIADIS, Cornelius. Janela sobre o caos. São Paulo: Ideias e Letras, 2009.

DELEUZE, Gilles. A lógica do sentido. São Paulo: Perspectiva, 2011.

DERRIDA, Jacques. A escritura e a diferença. 4. Ed. São Paulo: Perspectiva, 2009.

DERRIDA, Jacques. Sobreviver. In: FERREIRA, Elida Paulina. Jacques Derrida e o


récit da tradução: o Sobreviver/Diário de Borda e seus transbordamentos. Tese
(doutorado) – Instituto de Estudos da Linguagem – Universidade Estadual de Campinas.
Defendida em 9 de janeiro de 2004. Campinas.

HEIDEGGER, Martin. A origem da obra de arte. São Paulo: Edições 70, 2010.

LACADÉE, Philippe. O despertar e o exílio: ensinamentos psicanalíticos da mais


delicada das transições, a adolescência. Rio de Janeiro: ContraCapa Livraria, 2011.

LACAN, Jacques. 1979. O Seminário de Jacques Lacan – Livro 11: os quatro conceitos
fundamentais da psicanálise. Rio de Janeiro: Zahar Editores, 1979.

MERLEAU-PONTY, Maurice. A prosa do mundo. São Paulo: Cosac Naify, 2012.

237
manual iniciante: para tocar um corpo-buceta

Júlia Vita110

um corpo-buceta é um múltiplo corpo: pode começar no braço, perna, olho. antes de


qualquer esforço é necessário que se pense a disciplina do entendimento como pouco
útil, sendo seu começo mais que ambíguo. a imagem árvore que a terra inicia no
começo do fim da terra. essa luz guarda a sombra que guarda a omnitemporalidade por
debaixo, como a maior araucária do mundo no sul do Brasil. além de seu fardo qual
nomeação Pinheiro Grosso, seu início vário por debaixo percorre o espaço de um corpo-
buceta: pode começar no braço, perna, olho. um corpo-olho caso não seja um corpo
vário também não é útil pelo fato da visão codificada esbarrar na terra plana (o início do
começo da terra).

está na memória navegada a era madeireira, a servitude funcional tanto como os


eletrodos te confirmam. um corpo-buceta são 8 mil raízes sensíveis e isto costuma
ocorrer que este corpo, por debaixo, reconhece a pressa e o objetivo extrativista. neste
caso a tensão se instala para preservar o chão à vista parca e a umidez não ocorre.
umidez é rega, reza – a que se proponham bons semeios, caso não, devastado. um mal-
trato a um corpo-buceta é um mal-feito a 8 mil variações de corpo e isto multiplicado
não se conta. está na memória navegada a era.

para tocar um corpo-buceta deve-se ter mãos-sem-dedos, que à mesma maneira do


corpo-olho é medidora das distâncias pela gravidade intencionada. este tipo são as mãos
que sabem a reza fazendo córrego seu próprio tempo – mãos-sem-dedos não cultivam
bênção, confissões e tempos pontuais. são substituídas as oportunidades de apertar
botões para alargar lagos: este tipo desliza, dos matos aos fartos rios. para tocar um
corpo-buceta que pode começar no braço, perna, olho, é preciso ser um corpo que
deslize enquanto braço-perna-olho – com o toque de acordar as dormideiras que
fisgaram o objetivo. pensa-se o toque e o torna toque-olho-buceta.

110
Júlia Vita (1995) é artista e poeta nascida em Niterói, onde também concluiu a graduação em Artes
pela Universidade Federal Fluminense. No ano de 2017 deu início aos projetos Trabalho Doméstico,
exposto no Centro Municipal de Artes Helio Oiticica, e pesca.nºEu. Em 2018 lançará seu primeiro livro
de poemas, Alga Viva, e participará da Anthology of Brazilian Poetry pela ateniense Vakxikon
Publications.

238
esse corpo é um quase-útero e isso deve ser lembrado quanto à intenção: quando um
útero é do tamanho de uma porta um orgasmo são 8 mil possíveis – batidas, arrancadas,
abertas, atualizadas, vistas. numa entrada atualizada com a língua necessita ser revista
cada linguagem de idioma codificado. faz-se então a aragem, a atualização agrária no
corpo-buceta. um corpo-língua funciona em conversa de modo semelhante ao mãos-
sem-dedos. então em algum momento furtivo ocorrerá um afinamento e a ele deve-se
dar valor deixando que haja o tempo que se quiser haver – e depois que não, outra
aragem, outro afinamento, tempo, outra aragem, outro afinamento, tempo (a umidez
rega).

um corpo-buceta não tem lado e um corpo que desliza é capaz de conhecê-lo virado, de
costas, de pé, ao contrário. isto também é um pedaço da antes mencionada
responsabilidade política do corpo-língua e aprofundadamente agora poética: uma
construção pretende embaralhamento dos signos e os desejos do ritmo. um ritmo-buceta
que são 8 mil interminações compreende um ritmo-esquizo que não é previsto pelo
costume do durante-hábito. tal organização tampouco se resolve randômica, há uma
atenção ao intento do que quer ser permanecido – o afinamento é possível também entre
os milhares de corpos de um corpo-buceta.

quando isto ocorre, a potência-conversa reconfigura as prisões do discurso e um corpo-


buceta além de uso toma formas. estas formas podem ser vistas por todos os corpos
mencionados no manual acima com o auxílio de um delírio-pupila – que começa no
corpo-buceta, que não começa – e pode começar no braço. um delírio-pupila é
pensamento agindo. há possibilidade de colocar todos esses corpos em delírio ao invés
de recortá-los em contáveis corpos-dildos.

manual intermédio para caverna Utroba

a capital teve floresta tropical, cerrado e mini-pantanal. era uma onça-pintada com
mico-leão-dourado por vezes agindo tucano-de-bico-verde. foram tocados sem variação,
o tempo sumiu. voltou em onça, mico e tucano em trio. leão-dourado-pintada-de-bico-
verde virou caverna e este bicho é o corpo-buceta.

a caverna que inicia no começo do fim da era à imagem pede trégua: caverna para
dentro se chama nascer. praticar este ato é produzir-se vivíparo. quando isto ocorre uma

239
ordem se estabelece – incluso para ser possível uma arquitetônica hexagonal. diz-se, a
conjectura do favo. fez a vida construir uma abelha engenheira de sua arquitetura favial
com cera subabdominal. diz-se, a conjectura do falo informa um corpo-técnico agindo
sobre campos de cultivo – um corpo-técnico genitado pela informação do falo
pressupondo campos inativos. um corpo-buceta é um corpo nativo e produz agindo com
as luzes-cavernas. em sepulcros inscreve sobre Fatos Ajo.

no campo de leão-dourado-pintada-de-bico-verde não há desordem senão a qual estão


desassociados onça mico e tucano em trio exato. há a ordem do ferrão no caos-
hexágono. no movimento infinito no espaço bem utilizado, no tempo fresco da
tecnologia elástica – um corpo-buceta produz deslocamento-ferroviário. tal tecnologia
ordena um corpo que pensa como pensa uma perna e como pensa uma perna dentro da
caverna. o que tão bem não ocorre quando informacionada uma palavra-de-ordem.

para descobrir os buracos das capitais é preciso esvaziar um corpo-cavernoso em um


processo invertido desejando bicos. isto requer uma mudança de vista: ver como ave
não apenas vendo de cima como ver escorpião não só abaixando ao rastejo. há que se ter
anos sem lanternas explorando, pois um corpo-cavernoso tumula quando tratado como
corpo-delito. tal como tumulam corpos-buceta pelo mesmo motivo.

8 mil variações de corpo existem verde-bico-de-dourado-leão de dentro, lado, reverso,


enfiado, saindo, passando. não existe corpo-periférico pois funcionam todos agrupados.
um dourado-leão por vezes pode ser um corpo-falo – o que abriga uma caverna pouco
vista dentro de si. para descobrir os buracos é preciso ser um intervalo e vir como
corpo-buceta-dourado.

ut’ra-passando a cavidade profunda

um corpo-cavernoso pouco visto possui um potencial estéril. disto sucede ser preferível
criar fendas a cavidades muito profundas. plantar cavernas na superfície das terras,
cavernas pelo avesso, direito, baixo, mas pouco a fundo: um corpo-buceta é um corpo
fora-dentro-fora contínuo cujo prolongamento se traduz em dinâmica-criança – a que
tenta. tentação é uma produção de feitios operada por uma prática tentacular: um corpo-
vívico de polvo pelos desejos do polvo. há que se cutucar a onça-pintada – cutucando a
textura com a unha curta. sobretudo não escavar como quem tumulta.

240
não se faz necessário recortar números de orifícios pois um corpo-buceta alonga seus
espaços aos vizinhos, e, em caso de baixa demanda ou práticas iniciantes, é possível
apenas algumas cavernas para cada edifício – e assim sucessivamente ao afinamento de
ambos e todas. deste modo não se trata de um corpo-cavernoso-fundo mas tudo um
orifício inteiro, tracejos de orifícios pela superfície que insiste nas fendas: por onde se
vive e morre.

ao habitar um ambiente como este deve-se variar inconstâncias do instinto: abrir


aderências funciona melhor do que resistir tendências. abrir o ritmo-réptil que carrega o
chão na barriga. a dinâmica-criança pode fazer um prato de janta e sair comendo
andando – sua boca comerá o prato e os pés mastigarão o asfalto. estas espécies
mencionadas possuem cerca de 10 mil inconstâncias de corpo. desejando bicos e
acertando as dicas pode-se funcionar um corpo-buceta ante aquático, réptil e ainda
voador sonoro. assim é iniciado o resgate do bico-de-lacre-comum.

um bico-de-lacre comum é um corpo-passeriforme: um corpo-buceta em mistura com


este é capaz de ver como ave e iniciar nas patas, porém o bico-de-lacre não deve ser
objetivo de conquista aplaudida pois disto viria um corpo-que-não-pia e não reconfigura
discursos nem usos.

vivo isto é cada vez mais curiosíssimo

ao tocar um corpo-buceta parte intermédia é preciso e precioso o máximo grau de


passividade e o máximo grau de atividade com o movimento das mãos no estado em
que não se possui estas. o toque se faz como todo momento de criação seguindo
pegadas caminhando pelo ouvido. nessa tentação o mesmo estímulo não conduzirá ao
mesmo efeito e o corpo-buceta responderá não ao toque mas à vibração do ar. é preciso
além de tudo não questionar mãos pensantes por não possuírem caroço de cérebro e
notar corpos que se alimentam sem aparelhos digestivos.

quando se resiste através dos interstícios não há destruições quebradiças. reino dos
bichos e dos animais o nome e o nada abrigado pelos furos, algo vivo nadando seus
ductos. se algam, o pensamento deita a linha sobre as águas que inundam as bolsas da
memória – esses corpos escrevem e pescam o que não é palavra e não é som, têm

241
ouvidos que ouvem sem orelhas e por eles tudo é obra que ainda não mexeu. têm-se os
hormônios harmônicos, o estômago – abrigo do sol.

242
Bricoleurs do fim do mundo – Pensamento bricoleur e práticas de
criação de sentido

Renan Nery Porto111

“[...] em meu corpo,


há uma parte que insiste,
feito um caju que apodrece
mas a castanha resiste,
eu tenho os olhos na espreita
e os bolsos cheios de pedras,
eu sou quem não se conforma
com a sentença ou desfeita,
eu sou quem bagunça a norma,
eu sou quem morre e não deita.”

Salgado Maranhão – Sentença

Resumo

Imaginando com o cinema de ficção científica um cenário de expansão da precarização


da vida humana e o esgotamento das expectativas de transformação desta condição, a
bricolagem se apresenta em diversas discussões recentes enquanto uma prática de
criação de novas possibilidades a partir de situações limites. Este ensaio busca traçar
uma imagem do pensamento bricoleur, mostrando o seu modo criativo de racionalidade
e interação com o mundo. Faço aqui uma genealogia do conceito de bricolagem a partir
da arte, passando por uma leitura de textos do Lévi-Strauss e confrontando esta leitura
com textos de Eduardo Viveiros de Castro e Isabelle Stengers. O que busco propor aqui
é um conceito de bricolagem enquanto prática de pensamento relacional com um mundo
em constante variação e um universo de afecção mútua entre seus componentes.

Palavras-chave: Bricolagem; Criação; Precariedade; Distopia; Agenciamento.

111
Ensaísta, poeta e mestrando em Filosofia do Direito no Programa de Pós-Graduação em Direito da
UERJ.

243
1. Atopia do bricoleur na distopia do mundo

Este instante que nos é comum e chamamos de nosso nos correlaciona numa
atmosfera quando circulam um conjunto de memórias e afetos partilhados. Ele nos
espreme numa tensão entre memórias e expectativas. Nesse final de década, a linha do
tempo parece se contorcer ao ponto das nossas imagens do passado irem se tornando
cada vez mais similares às imagens do futuro. Esperávamos a contínua abertura do ser
aos novos acoplamentos das partículas que o formam, fazendo jorrar a diferença e o
novo. Mas um círculo parece nos envolver num ciclo de repetições. As memórias de
guerras, nacionalismos, racismos, colonização, escravidão, exploração das energias dos
nossos corpos na produção de riqueza, cenários de terras devastadas, dentre tantos
outros suplícios infligidos ao corpo humano, parecem atualizar-se em novas expressões
high-tech. Por causa dessa dobra na linha do tempo ficamos desnorteados quanto aonde
estamos indo.
Há várias apostas sobre o futuro em jogo. O cinema de ficção científica se
tornou um espaço interessantíssimo de especulação de diferentes mundos possíveis. A
tendência mais comum que podemos assinalar é uma aposta de que o futuro não é nada
amistoso. Os cenários que se têm são de catástrofes climáticas como em O Dia Depois
de Amanhã (2004), cidades sórdidas e violentas como as de Blade Runner (1982), robôs
policiais e drones vigiando e disciplinando nossos corpos como em RoboCop (2014),
extinção da espécie humana como na trilogia Matrix, guerras entre ciborgues e humanos
como em Eu, Robô (2004), exposição da vida privada como na série Black Mirror, etc.
Outros até acreditam que esta invasão cibernética não será tão mal-humorada quanto a
skynet de James Cameron (Terminator, 1985), e apostam numa harmonia entre os
humanos e seus novos suportes e extensões técnicas. A tecnologia nos elevando a um
patamar mais avançado de qualidade de vida e saúde. Um clone perfeito da Scarlett
Johansson nos convida e sorri, mas sempre à beira de um curto circuito que o
transforma numa máquina mortífera.
Neste segundo cenário, nos é quase imediata a questão de que aqueles que terão
acesso aos novos gadgets tecnológicos serão os que podem pagar por eles. É como no
filme Elysium (2013), dirigido por Neill Blomkamp, em que nos encontramos no ano de
2154 e os mais ricos migraram para uma estação espacial onde usufruem do mais alto
luxo, conforto e saúde enquanto o resto da população humana tenta sobreviver numa
terra devastada. Assim, seja no primeiro cenário em que a devastação vem sem escolher

244
a quem ou no segundo em que o paraíso é exclusividade dos ricos, todos nós ou uma
boa parcela de nós terá que aprender a se virar com o que nos estiver disponível e criar
alternativas de sobrevivência através disso. Seja na hipótese de nos restar os
instrumentos menos elaborados tecnicamente, seja na hipótese de se apropriar como
autodidatas de tecnologias que nos são totalmente estranhas. Nem todos somos
engenheiros e não temos a preparação técnica e científica para elaborar projetos.
Teríamos que usar materiais fragmentários e variados para compor nossos instrumentos.
Aprenderíamos a ser bricoleurs.
Mas não precisamos ir tão longe quando nossas periferias urbanas estão cheias
de bricolage. Desde os gatos nas instalações de internet e rede elétrica às construções
das suas próprias casas, criando alternativas para sobreviver às pesadas condições
impostas pelos consórcios entre interesses privados e aparelhos estatais no capitalismo
contemporâneo. Antes dos hackers já existiam camelôs, mototaxistas, dentre outros
prestadores e criadores de bens e serviços. Ou podemos citar também experiências de
bancos comunitários e moedas alternativas como o Banco Palmas na periferia de
Fortaleza. Outros exemplos são a recuperação da fábrica Flaskô pelos próprios
empregados no estado de São Paulo e o Movimento das Comunidades Populares no Rio
de Janeiro, que criou um Grupo de Investimento Coletivo, “que, há uma década, reúne
400 investidores da comunidade e mais de vinte membros, que administram um fundo
de 700 mil reais. Estes recursos são usados para conceder empréstimos – a maior parte
deles, para reformar casas ou gerar rendas familiares ou coletivas”112. Além disto,
seria interessante observar também a presença dessa prática de invenção criativa,
autônoma e autodidata na música brasileira. É o caso de como jovens artistas
exploraram as tecnologias de informação como a internet, os smartphones e notebooks,
criando uma rede descentralizada de criação e distribuição de produção audiovisual. O
rap e o funk são exemplos disso. Esses bricoleurs vão assim criando os meios de acesso
aos seus próprios direitos e uma rede de geração e circulação de riquezas. Embora
determinados setores do mercado tenham aprendido a vampirizar a riqueza produzida
por estas redes, os sujeitos que nelas produzem estão sempre a disputar e criar rotas de
fugas para impulsionar suas atividades.
Com isto, quero assinalar que a figura do bricoleur não está reservada a um
passado primitivo ou a comunidades indígenas, mas nos é contemporânea e – no pior

112
ZIBECHI, Raul. Poder popular nas favelas cariocas. Disponível em: http://www.ihu.unisinos.br/78-
noticias/551052-poder-popular-nas-favelas-cariocas

245
dos casos – talvez nos seja exemplar de formas de reinvenção da vida diante das
ameaças que rondam nosso futuro. Como diz Eduardo Viveiros de Castro, teremos que
aprender com os índios que conseguiram sobreviver após o fim do (seu) mundo
transformado por um invasor113. Acrescento que além dos índios também temos o que
aprender com outros piratas urbanos, como makers, microempreendedores,
armengueiros, hackers, etc. Certamente a prática da gambiarra e do armengue é sempre
um risco dentro de uma situação limite, mas para seus praticantes muitas vezes é mais
um risco para superar outros riscos e dar continuidade a uma forma de vida que não é
organizada pela segurança, mas pela negociação entre muitos riscos. E não é só uma
questão de sobrevivência. É também a criação impulsionada pelo desejo de ter acesso ao
que lhe foi negado pelo mesmo sistema que lhe impõe essa condição de insegurança. A
gambiarra pode também ser forma de dispêndio e prazer.
Vamos agora investigar algumas formas epistemológicas que nos permitem
perceber a racionalidade da bricolagem. Considerando que nestas práticas o
conhecimento é formado nas mesma medida em que se age sobre os objetos.
Assumindo assim uma posição não só ativa, mas também passiva em relação aos
objetos, que (re)agem sobre os sujeitos transformando suas perspectivas – que não estão
dadas a priori nas experiências – e lhe permitindo outras possibilidades de correlacionar
os objetos disponíveis e de se relacionar com eles.

2. Da colagem ao pensamento selvagem

“Belo (...) como o encontro fortuito sobre uma mesa de dissecação, de uma
máquina de costura e um guarda-chuva!”, escreveu Isidore Ducasse, o Conde de
Lautréamont, no sexto canto de Os Cantos de Maldoror. Poeta que faleceu pouco
conhecido e muito jovem, aos 24 anos. Mas, esse trecho reverberará meio século depois
em um dos artistas ligado ao surrealismo e ao dadaísmo. Max Ernst, pintor alemão
precursor do método da colagem, em 1936 escreveu um texto chamado Qual é o
mecanismo da colagem? em que ele diz:

113
VIVEIROS DE CASTRO, Eduardo. Contra-antropologia, contra o Estado: uma entrevista com
Eduardo Viveiros de Castro. Revista Habitus, Rio de Janeiro, IFCS-UFRJ, Vol. 12, n.º 2, 2004.

246
Uma realidade pronta, cuja ingênua destinação parece ter sido fixada de
uma vez por todas (um guarda-chuva), encontrando-se subitamente na
presença de uma outra realidade muito distante e não menos absurda (uma
máquina de costura), num lugar onde ambas devem se sentir deslocadas
(sobre uma mesa de dissecação), escapará por isso mesmo à sua destinação
ingênua e à sua identidade; passará de seu falso absoluto, por uma série de
valores relativos, para um absoluto novo, verdadeiro e poético: guarda-
chuva e máquina de costura farão amor. A transmutação completa seguida
de um ato puro como o do amor se produzirá forçosamente sempre que as
condições se tornarem favoráveis pelos fatos dados: acoplamento de duas
realidades aparentemente inacopláveis sobre um plano que aparentemente
não lhes convém... [...], (ERSNT in CHIPP, 1968, p. 427).

Parece haver alguma ressonância dessa técnica da colagem na prática do


bricoleur que aparecerá no primeiro capítulo do livro O Pensamento Selvagem do
antropólogo Claude Lévi-Strauss. E não é à toa que especulamos isto. Lévi-Strauss
tinha muito interesse pelas artes, que percebemos pelos seus vários escritos sobre o
tema, inclusive neste capítulo supracitado em que ele relaciona a prática da bricolagem
com a criação artística e termina o capítulo refletindo sobre a relação da arte com o
mito. Mas, além disso, ele também conviveu com os artistas surrealistas quando estava
exilado em Nova York a partir de 1941, durante a Segunda Guerra Mundial, como nos
informa o artigo da pesquisadora Dorothea Voegeli Passetti114. Ela diz que durante a
travessia de Marselha até Martinica, Lévi-Strauss conheceu André Breton, poeta
surrealista, e ao chegar a Nova York foi apresentado a Max Ersnt.
Em seu livro, Lévi-Strauss explica que o trabalho do bricoleur se caracteriza por
um universo instrumental fechado em que ele tem sempre que se virar com um conjunto
finito de materiais heterogêneos. Este conjunto não é composto conforme algum projeto
pré-estabelecido, mas é o resultado contingente das oportunidades que lhe foram
disponíveis; e os elementos recolhidos por ele representam um conjunto de relações
concretas ou virtuais entre si, possibilitando operações diversas (Lévi-Strauss, 1989, p.
33). Diferente do engenheiro que trabalha a partir de um projeto prévio e com um
conjunto de matérias-primas específicas, o bricoleur precisa solucionar seus problemas
a partir da combinação do conjunto de elementos limitados que conseguiu de criações e
destruições anteriores (―isso sempre pode servir‖). Portanto, ele precisará criar novas
relações entre os materiais, criando novas possibilidades de seus usos a partir da
reorganização das disposições internas desta rede de objetos. Cada um destes elementos
não estará mais determinado pela sua função de origem e ganhará novos usos e arranjos,

114
PASSETTI, Dorothea Voegeli. Colagem: arte e antropologia. Revista ponto-e-vírgula, PUC-SP, vol.
1, pp. 11-24, 2007.

247
escapando a uma identidade que lhes fixa uma destinação. Aqui, os fins frequentemente
voltam a se tornar meios. Assim como na técnica de colagem de Ernst, ele produzirá um
―acoplamento de duas realidades aparentemente inacopláveis sobre um plano que
aparentemente não lhes convém”.
Lévi-Strauss pensa a bricolagem não apenas no plano técnico, mas também no
plano intelectual, na relação com a reflexão mítica, que "trabalha também por
analogias e aproximações, mesmo que, como no caso do bricolage suas criações se
reduzem a um arranjo novo de elementos cuja natureza só é modificada à medida que
figurem no conjunto instrumental ou na disposição final [...]” (Ibidem, p. 36). No
ensaio A estrutura dos mitos, ele explica que o mito, assim como uma bricolagem, tem
seu sentido constituído não a partir dos elementos isolados que entram em sua
composição, mas da maneira como esses elementos estão combinados (Lévi-Strauss,
2012, p. 299). As unidades constitutivas do mito implicam as mesmas presentes na
estrutura da língua, como os fonemas, morfemas e os semantemas (que são limitadas),
que estão sempre relacionadas entre si em diferentes graus de complexidade (Ibidem, p.
300). Portanto, as verdadeiras unidades constitutivas do mito são os feixes de relações
que se formam entre esses elementos mínimos da língua (Ibidem, p. 301). As diferentes
recombinações internas nesses feixes de relações faz com que o sentido do mito possa
deslocar-se do seu fundamento linguístico inicial (Ibidem, p. 299). Da mesma forma, a
bricolagem só é bricolagem enquanto unidades inter-relacionadas num novo arranjo que
transforma o sentido dos seus usos.
Esta abordagem aqui apresentada nos permite observar que a sensibilidade tem
um papel importante nas criações dessas redes entre objetos. Já que o bricoleur não cria
a partir de um projeto científico, é através da sensibilidade e da percepção no processo
da própria experiência que ele captará e relacionará os signos das matérias que faz uso.
Seu mundo é organizado não apenas por conceitos, como uma ciência positivista quer,
mas também por perceptos, tal como a reflexão mítica (Lévi-Strauss, 1989, p. 33). Seu
modo sensível de classificar os seres e objetos à sua volta pode muitas vezes conseguir
mais especificidade que o das ciências naturais, como nos informa os materiais
etnográficos apresentados por Lévi-Strauss neste primeiro capítulo do livro (Ibidem, pp.
8-13). Estamos diante de uma quebra da linha progressiva que colocava a ciência
moderna num estágio mais avançado e percebemos outras formas de classificação e
ordenação do mundo não menos desenvolvidas, mas diferentes. "Toda classificação é
superior ao caos, e mesmo uma classificação no nível das propriedades sensíveis é uma

248
etapa em direção a uma ordem racional [...]" (Ibidem, p. 30). Sim, diferentes. A forma
como esse caos é ordenado depende dos interesses sobre os seres que constituem
determinado universo. De acordo o interesse se terá mais atenção sobre certos objetos e
não sobre outros.
Sendo a prática de classificar e correlacionar os seres através de signos
linguísticos tão antiga e tão atual quanto a própria humanidade, seria o termo
―selvagem‖ adequado para designar tal forma de pensamento? Apenas na medida em
que tal termo ganha um sentido totalmente diferente, não mais designando algo menos
evoluído, mas um pensamento ainda não domesticado. Neste sentido que citamos a
observação de Eduardo Viveiros de Castro sobre tal questão:

O pensamento selvagem não versa sobre mitos indígenas, mas sobre certas
disposições universais do pensamento humano: ameríndio, europeu,
asiático ou qualquer outro. O ―pensamento selvagem‖ não é o pensamento
dos ―selvagens‖ ou dos ―primitivos‖ (em oposição ao ―pensamento
ocidental‖), mas o pensamento em estado selvagem, isto é, o pensamento
humano em seu livre exercício, um exercício ainda não-domesticado em
vista da obtenção de um rendimento. O pensamento selvagem não se opõe
ao pensamento científico como duas formas ou duas lógicas mutuamente
exclusivas. Sua relação é, antes, uma relação entre gênero (o pensamento
selvagem) e espécie (o pensamento científico). Ambas as formas de
pensamento se utilizam dos mesmos recursos cognitivos; o que as distingue
é, diz Lévi-Strauss, o nível do real ao qual eles se aplicam: o nível das
propriedades sensíveis (caso do pensamento selvagem), e o nível das
propriedades abstratas (caso do pensamento científico). Mas a tendência,
diz o autor, é que o pensamento científico, à medida em que avança, vá-se
aproximando do pensamento selvagem, ao se mostrar capaz de incorporar
as dimensões sensíveis da experiência humana em uma abordagem
unificada, onde física e semântica não estão mais separadas por um abismo
ontológico. Ou seja, o futuro da ciência não é se distanciar do pensamento
selvagem, mas convergir com ele (Viveiros de Castro, 2009)115.

Continuando com Viveiros de Castro e sua leitura d‘O Pensamento Selvagem em


seu livro Metafísicas Canibais, podemos entender que um pensamento livre da obtenção
de rendimento é aquele que não coincide com a faculdade de julgar e que não reduz o
conhecimento ao modelo da proposição (Viveiros de Castro, 2015, p. 73). Com isto, o
autor argumenta a favor de uma forma de conhecer que não se separa da ação e uma
forma de pensar que seja também sensível. O modelo não-proposicional de pensamento
não deve ser visto como primitivo ou não-conceitual. O que ele coloca em jogo é o
próprio conceito de conceito, afastando-o do seu modelo classificatório e abstrativo que
opera através da subsunção do particular pelo universal, buscando um conceito que seja
115
Entrevista com Eduardo Viveiros de Castro (10/05/2009). Com Ciência, Campinas, n. 108. Disponível
em: http://www.comciencia.br/comciencia//handler.php?section=8&tipo=entrevista&edicao=46

249
diverso das noções de categoria ou de representação (Ibidem, p. 75). Viveiros de Castro
critica Lévi-Strauss por ter ―decalcado‖ o pensamento selvagem da forma maximamente
racionalizada da ciência (―existem dois modos de pensamento científico‖) enquanto o
que seria preciso fazer era construir o conceito de um pensamento propriamente
selvagem (Ibidem, p. 238). Para ele,

Não se trata, por conseguinte, de contestar a tese da não-proposicionalidade


intrínseca do pensamento indomesticado, lutando para restabelecer o
direito dos outros a uma ―racionalidade‖ que eles nunca pediram para ser
reconhecida. A profunda ideia lévi-straussiana de um pensamento
selvagem deveria ser tomada como projetando uma outra imagem do
pensamento, muito mais que uma outra imagem do selvagem (Ibidem, p.
74).

Em um remix de citações, podemos dizer que o modelo de conhecimento do


pensamento selvagem não deve ser tomado como

―[...] uma forma da doxa, nem uma figura da lógica, o pensamento nativo
deve ser tomado – se se quer toma-lo a sério – como prática de sentido:
como dispositivo autorreferencial de produção de conceitos, ‗de símbolos
que representam a si mesmos‘‖ (Ibidem, p. 229); ―não é mais um modo de
representar o desconhecido, mas de interagir com ele, isto é, um modo de
criar antes que um modo de contemplar, de refletir ou de comunicar. A
tarefa do conhecimento deixa de ser a de unificar o diverso sob a
representação passando a ser de ―multiplicar o número de agências que
povoam o mundo‖ (Ibidem, p. 111).

Conhecer será mais uma experiência e interação com o objeto do que a


apreensão deste. Podemos encontrar esta relação entre experiência e conhecimento
pensada de modo próximo ao que estamos elaborando aqui na filosofia do pragmatista
americano William James. Não iremos abordar em profundidade o pensamento de
James nesse ensaio. Apenas queremos aproximá-lo rapidamente de nossa discussão para
esclarecer a experiência da relação do sujeito com os objetos e suas implicações para o
conhecimento. Num texto sobre ele, David Lapoujade fala de duas formas de conhecer
que James diferenciou: uma seria a que ele denominou como ―saltatória‖ e em que o
sujeito tem que ir além de sua imanência para alcançar um Absoluto, um campo
transcendental, e relacionar o objeto a um sujeito; James substituiu esta forma por outra
a que ele chamou de ―ambulatória‖ e em que o conhecimento é constituído pela
deambulação das experiência intermediárias. Segundo James, as experiências
intermediárias são tão indispensáveis quanto o espaço intermediário o é para uma
relação de distância (JAMES apud LAPOUJADE, 2000, p. 272). Lapoujade diz que:

250
Deambular não significa que o conhecimento esteja necessariamente
submetido à errância; significa que ele se faz pouco a pouco, por meio de
junções sucessivas, segundo expressões recorrentes em James. Conhecer é
percorrer relações, as relações que atravessam a experiência pura, é seguir
relações e coloca-las em série (Ibidem, p. 273).

Assim o processo de formação do conhecimento se dá gradualmente através da


articulação mnemônica de recortes da experiência. A relação do sujeito com os objetos é
marcada por uma compenetração recíproca entre eles na medida em que se afetam entre
si. Este movimento perpétuo de afecção faz com que nem sujeito nem objeto sejam
dados a priori à experiência, mas se metamorfoseiam no processo de experimentação.
Esta forma de conhecer terá uma relação muito diferente com os objetos. Não será mais
como na epistemologia objetivista da modernidade ocidental, uma objetivação do objeto
em que se distingue o que lhe é intrínseco, dessubjetivando-o das marcas do sujeito
cognoscente o quanto for possível. Inversamente, Viveiros de Castro escreve sobre
como os povos ameríndios conhecem personificando aquilo que deve ser conhecido
(Viveiros de Castro, 2015, p. 50). Por exemplo, no caso do xamanismo, ao invés de
reduzir a “intencionalidade ambiente” a zero a fim de atingir uma representação
absolutamente objetiva do mundo” (Ibidem, p. 51), o xamã faz o inverso e tenta revelar
o máximo de intencionalidade nos outros seres e conhecer “o quem das coisas”, como
diz Guimarães Rosa (Rosa, 1984, p. 108). Seu mundo é carregado por uma
multiplicidade afectual no qual se está sempre sendo afetado por outros, sejam esses
outros de que espécie for, humana ou não humana.
Esse processo de interação com o mundo é sempre marcado por equívocos, mas
o conceito de equívoco também passará por uma variação. A noção de equívoco na
metafísica canibal não é sinônimo de erro ou falsidade, mas um pressuposto da própria
relação com o mundo e com seres diferentes. Sendo diferentes também em suas
linguagens e, portanto, em suas premissas. Os conceitos de erro ou engano são
determinados dentro de uma mesma linguagem com premissas já constituídas, mas o
equívoco é o que se passa no intervalo entre linguagens diferentes com premissas
heterogêneas (Viveiros de Castro, 2015, p. 92). “E se o equívoco não é erro, ilusão ou
mentira, mas a forma mesma da positividade relacional da diferença, seu oposto não é
a verdade, mas o unívoco, enquanto pretensão à existência de um sentido único e
transcendente [...]” (Ibidem, p. 93). Mas, como já dissemos aqui, um pensamento
selvagem tem mais a ver com práticas de sentido do que a objetivação de uma verdade
unívoca, absoluta e estática sobre seres que estão em constante variação e movimento. É

251
mais interessante falar em sentidos porque tal conceito não denota verdade ou falsidade.
O sentido é aquilo que pode ser dito de outro modo, traduzido para outras linguagens.
Entrar em relação com este mundo de semânticas plurais será sempre um ato de
tradução. “[...] Traduzir é instalar-se no espaço do equívoco e habitá-lo [...]” (Ibidem,
p. 90), “[...] é presumir que há desde sempre e para sempre um equívoco [...]” (Ibidem,
p. 91).
Se colocar nesses intervalos entre duas ordens distintas requer uma forma de
simpatia tal como a que Henri Bergson propõe no seu conceito de intuição. Para se
relacionar com os diferentes ritmos e frequências de outras ordens e pensá-las a partir de
seus próprios termos ao invés de avaliá-las por categorias transcendentes a elas,
Bergson nos propõe o método da intuição. Com a intuição podemos nos por em tensão
com os círculos lógicos que nos envolvem, bloqueiam o momento de afeto e agenciam
nosso esquema sensório-motor numa relação de causalidade com os objetos em que
estes são pobres de sentido, mortos em sua agência e inativos na sua capacidade de
afetação. Entrar nesta relação será, então, um ato intensivo, em tensão. A intuição será o
esforço de perceber outras lógicas e relações entre os seres e sentir vibrar o ritmo de
uma outra harmonia. É como o incômodo ao ouvir um estilo musical que nos parece
totalmente irracional. Mas, assim como levamos um tempo para curtir as levadas do
jazz, leva tempo se relacionar com outras formas de linguagem, outros regimes
semióticos, outros ritmos com outras frequências e velocidades. Esse ato de pôr-se na
nuance entre diferentes durações e experimentar esse cromatismo permitirá novas
experiências:

―[...] É que a experiência humana é prisioneira de círculos, todos os


incontáveis círculos que a inteligência impõe ao pensamento fazendo com
que a espécie humana fique girando sobre si mesma. O homem está
literalmente circundado pela sua inteligência. Ora, se há uma coisa que
Bergson não deixou de combater, foram esses círculos, precisamente
porque eles nos colocam na impossibilidade de efetuar os saltos
necessários para mudar de nível de realidade. Pensar, para Bergson, é
sempre pular para fora de um círculo onde se fechou a experiência [...]
(LAPOUJADE, p. 95, 2013)‖.

3. De volta ao fim do mundo com um bricoleur animista


Esta concepção do processo de conhecimento que elaboro aqui quer dar conta de
uma racionalidade que seja criadora e sensível. Esta preocupação com a criação tem
uma iminência política importante em contextos de esgotamento do horizonte de
252
possibilidades. Para criar novos possíveis precisamos partir de uma razão sensível aos
diferentes elementos que compõem os dispositivos em que nós estamos agenciados
enquanto sujeitos – ou enquanto objetos, talvez para outros. Com os conceitos de
dispositivo e agenciamento queremos explicar que o sujeito está sempre imbricado
numa teia de relações com outros objetos, instituições e sujeitos.
O conceito de dispositivo, que foi elaborado por Michel Foucault, é explicado
por Giorgio Agamben – estudioso da obra foucaultiana – como sendo a rede que se
estabelece entre um conjunto heterogêneo, linguístico e não-linguístico, que inclui
virtualmente discursos, instituições, edifícios, leis, medidas de polícia, proposições
filosóficas, etc (AGAMBEN, 2009, p. 29). Sendo esta rede composta por elementos
humanos e não humanos, o sujeito é uma das peças que está agenciada com as outras.
Muito próximo deste conceito está o conceito de agenciamento elaborado por Gilles
Deleuze e Félix Guattari, que podemos entender como aquilo que faz máquinas. E
―máquina‖ aqui não é metáfora. No livro sobre Kafka, por exemplo, eles falam como a
máquina de justiça é montada com suas peças (escritórios, livros, símbolos, topografia,
etc) e seu pessoal (juízes, advogados, oficiais de justiça, etc); tal como uma máquina de
escrever está sempre agenciada com um escritório, um secretário, subchefes, patrões,
etc (DELEUZE; GUATTARI, 2014, p. 148). A filósofa Isabelle Stengers pode nos
explicar de forma muito clara este conceito:

Um agenciamento, para Deleuze e Guattari, é a reunião de componentes


heterogêneos, uma reunião que consiste na primeira e última palavra da
existência. Não se trata de eu existir primeiro e depois adentrar os
agenciamentos. Pelo contrário, minha existência é minha própria
participação nos agenciamentos, pois não sou a mesma pessoa quando
escrevo e quando me pergunto sobre a eficácia de um texto depois de ele
ser escrito. Não sou dotada de agência ou intenção. Em vez disso, a agência
– ou o que Deleuze e Guattari chamam de ―desejo‖ – pertence ao
agenciamento em si, incluindo aqueles agenciamentos muito particulares,
chamados de ―agenciamentos reflexivos‖, que produzem uma experiência
de desapego, o prazer de criticamente colocar à prova experiências
anteriores para identificar o que ―realmente‖ é responsável pelo quê. Outra
palavra para designar esse tipo de agência que não nos pertence é animação
(STENGERS, 2017).

Com estes dois conceitos apresentados queremos reelaborar o conceito de


bricolagem para além da articulação de relações entre objetos. Precisamos de um
bricoleur que seja capaz de desmontar os dispositivos em que está agenciado,
desarranjar suas conexões, puxar seus fios, amarrar outros nós, desenhar outros traços e

253
elaborar outras imagens de mundo; uma intervenção capaz de desarranjar como as
coisas estão montadas, possibilitando que elas se desmontem e se rearranjem de outra
forma. Recriar os espaços de experimentação que possibilitam a rearticulação do
conhecimento. É comum que a experimentação seja acompanhada de estranhamento,
que é o sinal de que um desarranjo de sentido foi produzido. Esse caos libera vias para
outros territórios. O encontro com um pensamento novo ao primeiro momento apenas se
mostra como se fosse outro idioma, até que produz uma nova linguagem e um novo
sistema lógico dotado de sentido. Precisamos de uma imagem de bricolagem que seja
capaz de produzir esta experiência-limite, abrindo a linguagem para o seu ―fora‖, a
partir do qual ela pode ser transformada e levada a dizer mais do que diz agora, os
signos de um mundo por vir, fazendo proliferar outras possibilidades.
Enfatizo a ideia de recriar os campos de experimentação, pois de fato o que se
propõe aqui não deve ser percebido de forma voluntarista, como se a ação por si fosse
capaz de determinar as configurações posteriores das relações. Afinal, sendo esta rede
composta por elementos humanos e não humanos, o sujeito é uma das peças que está
agenciada com as outras, portanto, tanto é arrastado pelas linhas de fuga que
desterritorializam o arranjo quanto pode também provocar este movimento como
qualquer outro dos elementos agenciados num mesmo dispositivo. Claro que isto é
arriscado, mas é tão arriscado quanto permanecer agenciado num dispositivo que
suprime nossas forças e nos ameaça constantemente.
Sendo o que se propõe aqui uma experimentação, um modelo de racionalidade
cartesiano que só consegue lidar com formas mecânicas, estáticas, exatas e contratuais
não dará conta da proposta de se relacionar com o que está em movimento, como
fluxos, ritmos e suas velocidades. Por isso a importância da sensibilidade nunca
separada do pensamento. Afinal, "os nossos sentidos [...] não se destinam a uma cognição
separada, mas à participação, ao compartilhamento da capacidade metamórfica das coisas que
nos seduzem ou que se tornam mais inertes à medida que nossa forma de participação vai
mudando – isso [...] nunca desaparece: nunca saímos do „fluxo de participação‟[...] (Ibidem).
Podemos voltar novamente ao texto de Lévi-Strauss sobre o pensamento
selvagem para mais uma vez fazer uma torção dos seus conceitos com a leitura de
outros textos. Desta vez, com Isabelle Stengers.
Pois bem, Lévi-Strauss reconhece ao pensamento mágico o direito ao
conhecimento tanto quanto à ciência. A magia, que tem também um sistema próprio
bem articulado, seria uma espécie de expressão metafórica da ciência. Magia e ciência

254
são colocadas em paralelo, mas desiguais quanto aos seus resultados teóricos e práticos
e menos diferentes em natureza que nos tipos de fenômenos a que são aplicadas (Lévi-
Strauss, 1989, p. 28). A magia parece antecipar e expressar a virtualidade do que a
ciência tornará atual e especificado. O pensamento mágico busca dar forma a outros
níveis da realidade que ainda não se possuem signos para expressá-lo. Este ―caos‖
informe com que a magia estabelece relação será atualizado e organizado pelo discurso
científico. Lévi-Strauss estabelece essa diferença de atuação da seguinte forma:

"[...] a primeira diferença entre magia e ciência seria, portanto, que


uma postula um determinismo global e integral enquanto a outra opera
distinguindo níveis dos quais apenas alguns admitem formas de
determinismo tidas como inaplicáveis a outros níveis. Mas não se
poderia ir ainda mais longe e considerar o rigor e a precisão que o
pensamento mágico e as práticas rituais testemunham como tradutores
de uma apreensão inconsciente da verdade do determinismo enquanto
modo de existência de fenômenos científicos, de maneira que o
determinismo seria globalmente suposto e simulado, antes de ser
conhecido e respeitado? Os ritos e as crenças mágicas apareceriam
então como tantas outras expressões de um ato de fé numa ciência
ainda por nascer" (Lévi-Strauss, 1989, p. 26).

Isabelle Stengers, por sua vez, proporá a magia como forma de relação com
outros agenciamentos: ―[...] quando se reafirma a magia como arte da participação, ou
da atração de agenciamentos, os agenciamentos, inversamente, tornam-se uma questão
de interesse empírico e pragmático a respeito de efeitos e consequências, e não de
considerações gerais ou dissertações textuais" (Stengers, 2017). Ela coloca a questão
de como ―magia‖ foi uma palavra que ficou restrita ao uso metafórico, mas que usamos
frequentemente para expressar nossas experiências com acontecimentos que nos
arrebatam para outros agenciamentos que não nos pertencem, como a experiência que
temos na música, na literatura, no cinema, no amor, diante de uma paisagem, etc. Mas,
seu uso enquanto metáfora nos protege da ideia de estarmos sendo mistificados e nos
proíbe de ultrapassar o que só estaria disponível para explicações científicas. Stengers
questiona então se reativar a ideia de magia poderia nos levar a considerar novas
conexões transversais com outras ordens – e reativar não como uma volta ao passado,
como se fosse reaver algo, mas “recuperar a partir da própria separação, regenerando
o que a separação em si envenenou” (Ibidem), aprendendo o que é necessário para
reabitar o que foi destruído. Este pensamento mágico que Stengers propõe se dá num
mundo animista, povoado de intencionalidades e agências que não nos pertencem. E
animismo é outra palavra que ela propõe reativar:

255
"Reativar o animismo não significa, então, que tenhamos sido animistas.
Ninguém jamais foi animista, porque nunca se é animista ―no geral‖,
apenas em termos de agenciamentos que geram transformações
metamórficas em nossa capacidade de afetar e sermos afetados – e também
de sentir, pensar e imaginar. O animismo, no entanto, pode ser um nome a
serviço da recuperação desses agenciamentos, uma vez que nos leva a
sentir que a reivindicação de sua eficácia não nos cabe. Contra a insistente
paixão envenenada por desmembrar e desmistificar, o animismo afirma o
que todos os agenciamentos exigem para não nos escravizar: que não
estamos sozinhos no mundo" (Ibidem).

Stengers diz como o animismo é uma arte rizomática. Relembremos mais uma
vez a técnica da colagem de Max Ernst para pensarmos o conceito de rizoma:
―acoplamento de duas realidades aparentemente inacopláveis sobre um plano que
aparentemente não lhes convém”. Num rizoma as conexões podem se dar entre
quaisquer das suas partes e todos somos passíveis de nos conectar uns aos outros,
conectando práticas, preocupações e diferentes modos de construir sentido sobre nossas
vidas. O bricoleur que propomos aqui deve ser aquele que faz colagens também entre os
próprios corpos, sejam humanos, animais ou não-humanos. Estas colagens podem ser
tão improváveis quanto possíveis. Em tempos quando nacionalismo, xenofobia,
racismo, sexismo e fundamentalismo voltam a emergir, torna-se muito importante
conseguir romper com os círculos que nos entrincheiram nas nossas identidades e
perseguir as linhas de um modo de estar comum. Isto implicaria um exercício de
fabulação coletiva que fomentasse a imaginação de novas configurações relacionais
entre os diferentes coletivos que compõem a sociedade. Não através de taxonomias, mas
sim através de trocas e pontes. E, mais que isso, romper também com os círculos que
nos fecham na nossa própria espécie para perceber o quanto nossa própria condição de
existência depende da interação com outras formas de vida não humanas.

Referências bibliográficas

AGAMBEN, Giorgio. O que é um dispositivo? In: O que é contemporâneo? E outro


ensaios. Chapecó: Argos, 2009, pp. 25-51.

CHIPP, Herschel B. Theories of modern art: a source book by artists and critics.
Berkeley: University of California Press, 1968.

DELEUZE, Gilles; GUATTARI, Félix. Kafka: por uma literatura menor. Belo
Horizonte: Editora Autêntica, 2014.

256
LAPOUJADE, David. Potências do tempo. São Paulo: N-1 Edições, 2013.

__________________. Do campo transcendental ao nomadismo operário – William


James. In: ALLIEZ, Éric (org.). Gilles Deleuze: uma vida filosófica. São Paulo: Editora
34, 2000, p. 267-277.

LAUTRÉAMONT, Conde de. Os cantos de Maldoror: poesias, cartas, obra completa.


Trad. Claudio Willer. São Paulo: Iluminuras, 2008, 2. Ed.

LÉVI-STRAUSS, Claude. O pensamento selvagem. Campinas: Papirus, 1989.

_____________________. Antropologia estrutural. São Paulo: Cosac Naify, 2012.

PASSETTI, Dorothea Voegeli. Colagem: arte e antropologia. Revista ponto-e-vírgula,


PUC-SP, vol. 1, pp. 11-24, 2007.

ROSA. Guimarães. No Urubuquaquá no Pinhém. Rio de Janeiro: Editora Nova


Fronteira, 1984.

STENGERS, Isabelle. Reativar o animismo. Cadernos de Leitura nº 62, Edições Chão


de Feira, São Paulo, 2017.

VIVEIROS DE CASTRO, Eduardo. Metafísicas canibais: elementos para uma


antropologia pós-estrutural. São Paulo: Cosac Naify, 2015.

______________________________. Contra-antropologia, contra o Estado: uma


entrevista com Eduardo Viveiros de Castro. Revista Habitus, Rio de Janeiro, IFCS-
UFRJ, Vol. 12, n.º 2, 2004.

______________________________. Entrevista com Eduardo Viveiros de Castro


(10/05/2009). Com Ciência, Campinas, n. 108. Disponível em: <
http://www.comciencia.br/comciencia//handler.php?section=8&tipo=entrevista&edicao
=46 >. Acesso em: 05/10/17.
ZIBECHI, Raul. Poder popular nas favelas cariocas. Instituto Humanitas Unisinos.
Disponível em: http://www.ihu.unisinos.br/78-noticias/551052-poder-popular-nas-
favelas-cariocas.

257
Artimanhas: Coletividades emergentes e processos de individuação

Erin Manning116
Tradução de André Fogliano e José Antonio R. Magalhães

Nota introdutória dos tradutores: Este texto consiste em uma tradução do


segundo capítulo do livro The Minor Gesture, presentemente em processo de ser
traduzido para o português por André Fogliano como O Gesto Menor, e que deve sair
pela editora N-1. A tradução publicada aqui, em parceria com um dos organizadores do
dossiê, não é, contudo, a mesma que virá a formar o livro. Trata-se, antes, de um
experimento que, a partir de uma série de deixas encontradas no texto, procura fazer da
sua tradução um jeito de abordar a temática do jeitinho e dos jeit0s. Uma tradução, por
assim dizer, artificiosa. Uma artimanha para inserir, de contrabando, uma linha de
discussão junto a outra. Isso vem, é claro, ao preço do risco de alguma impropriedade,
mas sempre no intuito de potencializar linhas que já pensamos encontrar no texto
original. É um jogo ambivalente, o de ajeitar essas linhas de diferentes tipos – mas que
se joga na amizade, sem necessitar o consenso: muitas das escolhas vistas aqui diferem
daquelas que aparecerão na tradução do livro.
Em primeiro lugar, o conceito-título do livro, the minor gesture, nos despertou o
interesse de traduzi-lo como jeitinho, já que, para nós, o conceito de jeito e o de gesto
se aproximam, e que o diminutivo, como forma específica do português, pode ser usado
para imprimir a conotação do menor, nesse sentido deleuzo-guattariano. O Minor
Gesture seria um gestinho e, assim, um jeitinho. É sabido que a noção de jeitinho traz
uma carga muito específica na cultura brasileira. Nosso interesse aqui, contudo, é
justamente o de deslocá-lo dessa carga e fazer soar, nele, seus harmônicos relacionados
à corporalidade, à sutileza e ao inumano (pense-se, por exemplo, em quando uma
fechadura tem um jeitinho para abrir, o que denota como que uma micro-agência e um
gesto imperceptível da matéria com a qual é preciso negociar), que nos parecem de
interesse filosófico-político. Isso implica, sem dúvida, um certo deslocamento e uma
certa impureza – notadamente entre questões que seriam consideradas de natureza
local e outras necessariamente não-locais –, mas que nos parecem interessantes. Afinal,

116
Erin Manning tem uma Cátedra de Pesquisa Universitária em Arte Relacional e Filosofia na Faculdade
de Belas Artes da Concordia University (Montreal, Canada). Ela é diretora do SenseLab.

258
um dos interesses explícitos deste dossiê é o de retirar o debate sobre o jeitinho e os
jeitos de um campo folclórico ou essencialista, para levá-lo a outros relevos.
Para além do conceito de minor gesture, o texto de Manning dá relevo filosófico
reiterado às palavras mode, manner e way, brincando com as suas relações entre si e
com o conceito de arte. Como a palavra jeito, em português, faz conviver esses
diferentes sentidos, apareceram aí mais oportunidades para trabalhar o conceito de
jeito relacionado à subjetividade e à arte. Parece-nos que a palavra jeito, nesse sentido,
é interessante por estabelecer uma relação ainda mais tesa entre os elementos
trabalhados no texto.
Finalmente, o conceito-título do capítulo traduzido a seguir, artfulness, coloca
ainda suas próprias questões, também próximas ao campo semântico dos jeitos,
gambiarras e espertezas que procuramos pensar. Nos parece que o conceito, para
Manning, funciona como um artifício para retirar a questão da arte de um sentido
essencial (onde falaríamos, talvez, de artisticidade), para lançá-la em um campo
processual, relacionado à participação (para além do artista como indivíduo, e mesmo
como humano) e a uma inteligência técnica improvisada. Afinal, diz-se artful de uma
pessoa ou ação que é habilidosa não por referência a um cânone técnico, mas de uma
maneira criativa, inscrita na contingência. Pensar a arte, então, a partir da sua
artfulness, é pensá-la como um campo em que todo tipo de artifícios são inventados,
não por um sujeito anterior, mas no seio de uma interação contingente em que o artista
é tão meio para os artifícios quanto estes o são para ele.
Optamos, assim, por traduzir artfulness como artificiosidade, que nos parece a
opção que melhor conserva os harmônicos do original, mas também, em muitos pontos,
como artimanha – tradução mais inventiva –, na medida em que esta conecta a arte
com a manha, isto é, com esse jeito de agir, no seio de uma situação, com astúcia,
destreza, capacidade de improviso, e, sobretudo, delicadeza. Através dessa artimanha,
procuramos pôr o texto de Manning em uma relação delicada com a discussão dos
jeitos, sem produzir sobre ele uma violência excessiva. Procuramos, nesse sentido,
manter as expressões originais entre parênteses nos casos de conceitos decisivos, e
sobretudo quando fugimos à correspondência de 1 a 1 entre as palavras e os conceitos.

259
1. A arte do tempo

A palavra ―arte‖ (die Art) significa, em alemão, maneira ou modo. A bem da


verdade, o termo correto para arte no caso é Knust. Não existiria, no entanto, como
recuperar traços desse sentido primevo nas noções contemporâneas de práticas
artísticas? Não existiria um jeito de trazer de volta o processual que crescentemente é
relegado ao segundo plano nas definições de arte restritas à produção exclusiva de
objetos?
Em línguas românticas, nas quais a palavra arte foi conservada, o modo ou a
maneira são eclipsados por uma definição de arte que enfatiza ―a aplicação e a
expressão das capacidades humanas criativas e imaginativas‖. A arte não fica reduzida
exclusivamente à expressão humana; é também sinônimo, segundo o Oxford English
Dictionary117, de ―forma visual, apreciada principalmente por sua beleza e seu poder
emocional‖.
Estas definições de arte indicam a maneira como o objeto ainda desempenha um
papel chave nas práticas artísticas, restringindo-as a uma configuração passiva-ativa que
segrega o observador do realizador. Àqueles cujas práticas abrem caminhos em direção
à processualidade, o dicionário parecerá desatualizado. Não há dúvidas, contudo, que a
cota do objeto persevera fortemente. Sendo assim, gostaria de propor uma definição
outra de prática artística. Tal definição não começaria do objeto, mas com o que mais
pode a arte. Sugeriria primeiro e sobretudo um engajamento com o jeito (manner) da
prática e não com seu resultado final. O que mais pode a prática artística virar quando o
objeto não é o fim, mas o ativador, o fio condutor para novos modos de existência?
Arte, tomada como um jeito (way) de aprender, age como uma ponte para novos
processos, novas passagens. Falar de um ―jeito (way)‖ é lidar com o processo em si
mesmo, das suas possibilidades de devir. É enfatizar que arte é, acima de tudo, uma
qualidade, uma diferença, um processo operativo que mapeia caminhos rumo a uma
certa afinação entre mundo e expressão.
A arte pensada como jeito. Não se trata ainda de um objeto, de uma forma, de
um conteúdo, mas de processualidades. Desse modo, está aliada profundamente com a
definição bergsoniana de intuição. Para Bergson, intuição é a arte – o jeito (manner) –
na qual as próprias condições da experiência são sentidas. De um lado, a intuição aciona

117
NT: Optamos por manter e verter para o português a definição disponível no OED, conforme o
original, a fim de manter o fio da argumentação da autora.

260
um processo, de outro, agita, no entremear da experiência, a passagem decisiva que
ativa uma abertura produtiva nas dobras duracionais do tempo. A intuição faz brotar o
problema operativo.
Em sua inclinação (feeling-forth) às potencialidades por vir, a intuição toca o
nervo sensível do tempo. Entretanto, intuição não é per se tempo ou duração. ―A
intuição é sobretudo o movimento pelo qual saímos de nossa própria duração, o
movimento pelo qual nos servimos de nossa duração para afirmar e reconhecer
imediatamente a existência de outras durações acima ou abaixo de nós‖ (Deleuze, 2008,
p. 23). A intuição é o movimento relacional pelo qual o presente coexiste com sua
futuridade, com a qualidade ou o jeito do ainda-não (not yet) à espreita nas margens da
experiência. Arte, desejo propor, é isto: o potencial intuitivo que ativa o futuro no
presente atual, que faz com que o entremear da experiência seja sentido ali onde
futuridade e presentidade coincidem, que invoca a memória não do que já foi, mas do
que será. Arte, a memória do futuro.
A duração é vivida somente em suas margens, em sua composição com as
experiências atuais. Na temporalidade acontecimental, o que se dá ao conhecimento não
está fora do acontecimento: é a movência da experiência em si mesma, experiência se
fazendo. Para mensurar o tempo do acontecimento é preciso, de fato, de uma ação em
retrospecto. Tal reconstrução a posteriori tende a diminuir a feitura do tempo-
acontecimental, desativando, assim, o movimento relacional, justamente a força do
acontecimento. Em retrospectiva, a experiência é concebida em seu estado mais pobre:
sem movimento.
Sem movimento é sem ação. Para Whitehead, toda experiência é in-ato118 e as
composições suscitam muitas variáveis entre o ainda-não (not yet) e o que terá sido (will
have been). A experiência é (em) movimento. Tudo aquilo que se fixa – um objeto, uma
forma, um ser – é uma abstração (na noção mais comum do termo) da experiência.
Essas abstrações não são imagens do passado (o passado não pode ser distinguido do in-
ato do futuro-do-presente), mas extratos a-históricos de um campo duracional em
constituição. O tempo é ingovernável, e, em sua movência própria, tudo muda de

118
NT: Está noção contém um jogo de palavras intraduzível para o português. In-act, no original, possui
uma ambivalência: qualificar a ação, a prática em-ato, bem como o inact, inativo, inatividade, a
impessoalidade da ação, do gesto. Essa ambivalência abre um duplo e paradoxal entendimento: por um
lado, entendimento da experiência valorativa inerente do ato, do ato em si mesmo, no acontecimento; por
outro, entendimento de que o processo de atualização e valoração é um ato inativo, um gesto, ou seja, não
intencional, não volitivo, não passa pela ordem da vontade ou da consciência individual, do cogito, mas
da necessidade mesma de sua natureza material constitutiva.

261
natureza. ―Chamaremos objeto, objetivo, não só o que se divide, mas o que não muda de
natureza ao dividir-se‖ (Deleuze, 2008, p. 30).
Este é o paradoxo: para que uma teoria do objeto exista o objeto tem que ser
concebido como exterior ao tempo, colocado para lá da experiência, imutável. Por outro
lado, na experiência, o que chamamos de objeto é sempre, em algum grau, um quase,
em processo, em movimento. No acontecimento, no meio, conhecemos o objeto não em
sua completude, em sua forma última, mas como algo que nos inscreve na experiência.
O que resulta de uma experiência, como argumenta Whitehead, por exemplo, é menos a
cadeira do que a qualidade do sentar. É apenas depois do fato, depois que a cadeira ativa
um primeiro empuxo, depois do movimento para dentro do campo relacional da
sentabilidade, que uma cadeira enquanto tal é definida, percebida em toda sua
intensidade objetal. Mas mesmo aqui, Whitehead propõe, a forma tridimensional da
cadeira não pode ser desconectada de sua formação. A forma é menos o fim do que o
conduíte.
A forma é mantida, em alguma medida, em suspensão. O fato de a cadeira não se
estabelecer ulteriormente e de modo completo na experiência não significa que o que
conhecemos como cadeira está contida em algum céu inatingível. O objeto está em
suspensão – o sentir-forma (a forma menos atualizada que sentida) não pode ser
separado do meio, do campo que co-ativa: neste caso, algo como uma ecologia do
conforto, da sentabilidade, do desejo de sentar. Se o desejo de sentar deriva pelas bordas
da sentabilidade ou se inclina-se às pompas do conforto, a experiência da cadeira não é
uma só, nunca está restrita às dimensões do objeto (ou do sujeito) em si mesmo. O
objeto, como o sujeito, não é nunca em-si-mesmado.
A arte pode fazer sensível o mais-que do objeto, em virtude de sua capacidade de
trazer à expressão o tempo acontecimental. Essa habilidade com a arte do tempo
envolve a ativação da diferenciação de temporalidades. No acontecimento, essa ativação
da dinâmica diferencial cria, entre o que foi e o que será, uma memória do futuro.119
Essa memória do futuro é o fazer-se sentir de uma tendência acionado, no
acontecimento, por um jeitinho (minor gesture). Tais tendências não se assentam em um
objeto quando a arte opera em seu máximo fulgor. Elas se movem através dele, forçando
o presente da experiência para o seu próprio limite. O jeito (manner) da arte é sentido aí,
na abertura irriquieta entre o agora e o agora.

119
Discuto esse conceito em pormenor no capítulo Propositions for the verge, em Always more than one
(2013).

262
Toda atualização é, na verdade, uma diferenciação. O in-ato é a defasagem do
processo pontuado por uma ocasião de experiência. Nessa defasagem, as diferenças de
grau entre o ainda-não (not yet) e o terá sido (will have been) são sentidas nas orlas da
experiência. Elas são sentidas no curso da movência, quando o mais-que da experiência
é ativado.
Sentir na movência, ativar o mais-que que faz coincidir a objetalidade (object
likeness) e a relacionalidade do campo, significa experimentar o tempo não-linear, em
que tudo é quase e tudo age. Não há, aqui, sucessão em seu sentido cronológico. Agir é
ativar tanto quanto atualizar. É tornar sensível a clivagem entre as dobras virtuais da
duração e as aberturas dos atuais presentes como qualidades de passagens –
processualidade.
A ênfase na ontogênese do tempo é crucial: a qualidade do percurso depende da
não aceitação de noções de espaço e de tempo que preexistem à expressão do
acontecimento criada pela arte. Não se trata de negar o passado, mas, antes, de dizer que
o que existe na experiência não é uma linha de tempo contínuo, mas ―uma diversidade
infinita de distensões e contrações‖ (Deleuze, 2008, p. 61). O jeito de existir é como a
experiência se contrai, dilata, expande.
O jeito da experiência é sentido qualitativamente no tempo acontecimental. Essa
qualidade expressiva da experiência em ato não é objetiva. Não há um ponto de partida
estável desde o qual é possível explorá-la. Ademais, seus efeitos são imensuráveis. O
tempo-acontecimental está em movimento, vívido, sensível. A forma como ele se
conecta com aquilo que está por vir é a forma de virar o que se é. Nesse registro, é
intuitiva. O jeito (manner) criado nas práticas de fazer arte é intuitivo sobretudo em seu
jeito (way) de tomar e fazer tempo. A arte do tempo é elasticidade – não objeto, não
gênero, não forma, não conteúdo. Isso não significa afirmar que tais aspectos da prática
artística não se justapõem em parte do processo. Ao invés disso, é propor que a
acontecimentalidade – a arte do tempo – é antes de tudo uma abertura elástica à
diferença qualitativa ativada pela intuição. Por esse motivo, o jeito (manner) do fazer
artístico cria efeitos robustos os quais são capazes de gerar aberturas intuitivas infinitas
ao mais-que da arte.
A arte do tempo é menos sobre definições do que sobre sensações, do que sobre
a força afetiva da tessitura do tempo ali onde ―não somos mais seres, mas sim vibrações,
efeitos de ressonância, tonalidades de diferentes frequências‖ (Lapoujade, 2017, p. 11).
A arte do tempo tampouco trata de economia, de extrair a máxima rentabilidade de uma

263
experiência dada, da utilidade do tempo gasto. ―É preciso saber pensar a mudança sem
que nada mude‖ (Lapoujade, 2017, p. 14). A duração é sentida para além de qualquer
mudança aparente, independentemente de qualquer noção de linearidade ou sucessão.
Intuição não tem nada que ver com o já concebido. Por recear falsos problemas,
a intuição inscreve na experiência uma ruptura com o já conhecido, uma clivagem na
percepção. Ela força a experiência ao extremo, não daquilo que se pode imaginar, mas
do que foi tecnicamente alcançado. A intuição não está, portanto, separada de uma
técnica. É um processo rigoroso cuja consistência reside em levar a técnica ao limite, até
a sua tecnicidade aparecer. Tecnicidade: aquilo que ultrapassa a técnica de tal forma a
tornar sensível o mais-que de toda experiência.120
A memória do futuro é a experiência direta do tempo em diferenciação. ―Trata-se
aqui de alguma coisa que foi presente, que foi sentida mas não foi agida‖ (Lapoujade,
2017, p. 26). A memória não é uma faculdade somente do e para o humano. A memória
já está ativa na própria duração, inseparável do movimento relacional da duração. Ela
está aquém e além do humano porquanto a duração não se encerra estritamente na
humanidade – ―a duração não está presa ao ser – nem aos seres –, ela se confunde, pelo
contrário, com o puro devir‖ (Lapoujade, 2010, p. 29).
A memória do futuro torna sensíveis as mínimas vibrações – humanas e não
humanas – à espreita nos interstícios da experiência. De par com o jeitinho, cuja
participação faz com que esses intervalos alcem à expressão, a memória do futuro intui
essas microvibrações, ativando a força do devir que as verga à rítmica extemporânea do
seu percurso. A intuição é isto: o cativar, no acontecimento, das forças pulsantes que
ativam a experiência da defasagem para o seu mais-que. Uma memória do futuro, tendo
em vista que o mais-que ainda não pode ser propriamente apreendido, não pode
permanecer restrito à presentidade da experiência. A memória do futuro é uma afinação
com certa futuridade, entendida como ritmo e não como sucessão. O futuro pulsa na
experiência em-formação, in-formando (in-formation). A memória do futuro é a
experiência recursiva, no acontecimento, do que está por vir, do que virá. Déjà senti.
Simpatia é como Bergson nomeia o mecanismo pelo qual algo como um sentir-
futuro emerge – simpatia não do ou pelo o humano, mas com a experiência se fazendo.
―Chamamos aqui de intuição a simpatia através da qual nos transportamos ao interior de
um objeto para coincidir com aquilo que ele tem de único e, consequentemente, de

120
Para uma definição aprofundada de técnica e tecnicidade, ver Dancing the virtual, em Always more
than one (2013).

264
inexprimível‖ (Lapoujade, 2017, 61). Tomar a simpatia como motor da escavação
propicia a sensação do movimento, abre a experiência às complexidades do seu próprio
desdobrar.
O que é intuído não é a matéria per se: ―Não existe, portanto, intuição da
matéria, da vida, da sociedade como tais, ou seja, como substantivos‖. (Lapoujade,
2017, p. 64). Intui-se forças, intui-se qualidades que escapam das interrogações que
rebatem o por vir sobre o já ocorrido. A intuição compromete-se única e exclusivamente
com o que está por vir.
Deleuze definiu certas vezes a arte do tempo por essência. Essência não
significa, nesse registro, qualidade do que é estável. Em seu primeiro trabalho sobre
Proust, Deleuze fala da essência como a força do ainda não sentido (as-yet-unfelt) da
experiência. Nesse caso, a definição comumente aceita de essência – verdade, origem –
é o avesso do tratado aqui. Essência é, pelo contrário, a diferença absoluta de natureza.
Vinculada à arte, a essência expressa, para Deleuze, o incomensurável da experiência,
expressa aquilo que excede a equivalência entre signo e sentido. ―No nível mais
profundo, o essencial está nos signos da arte‖ (Deleuze, 2003, p. 13).
Os signos da arte não transmitem quaisquer significados. Eles tornam sensível
sua inexprimibilidade. O essencial, o signo criativo, nada representa. Ele é uma espécie
de temporalidade, uma dobra duracional na experiência. A qualidade do tempo que traz
consigo não pode ser abstraída de seu processo de formação (coming into formation). O
campo criado no processo é análogo à sua temporalidade, um tempo insubmisso à
sucessão, um tempo-cisma ou cisma temporal (time-schism). Tempo, como afirma
Deleuze, le temps, é plural.
A pluralidade de temporalidades no tempo multiplica a experiência do agora.
Para Deleuze, isso é o que pode a arte. Arte menos no sentido da forma que é tomada
pelo objeto do que do jeito como a composição do tempo é criada. Tempo é uma força
de diferenciação. Nesse sentido, produz efeitos em profusão. Ele cria uma matriz
composicional que transversaliza o ato e o in-ato. No tempo, na arte do tempo, o que é
ativado é um campo de expressão através do qual uma diferença de qualidade na
experiência é forjada, e não um sujeito ou um objeto. O que arte pode fazer é ultrapassar
o objeto enquanto tal e fazer sensível a dissonância, a defasagem, a complementaridade
existente por entre as coisas, aquilo que Deleuze chama de meio revelador ou
refrangente (Deleuze, 2003). Ela o faz quando consegue efetivar o seu jeitinho (minor
gesture). A refração não produz um objeto, mas uma qualidade de experiência que

265
atinge as bordas quase formadas da intuição do material. Quando isso ocorre, a matéria
intui seu movimento relacional e ativa sua qualidade interna, ressoando um
acontecimento de modo a fazer sensível o invisível em toda a desconcertante diferença
que carrega. A intuição amplifica a tecnicidade do processo assim como trata o mais-que
como memória do futuro. Por essa razão, ela é capaz de antever o que Deleuze (2003, p.
58) formula como um ―tempo original, que ultrapassa suas séries e suas dimensões; um
tempo complicado … desdobrado e desenvolvido‖, um tempo despido de
preconcepções, um tempo que produz seu próprio por vir.
Voltar-se à arte do tempo envolve a elaboração de técnicas que fendem a arte aos
seus gestos menores. Isso exige uma atenção ao campo em formação. Tal percepção é,
no acontecimento, ecológica e coletiva, ao mesmo tempo em que é relacional,
entendendo relação como a força cuja o sentir revela a forma como o tempo co-compõe
com o fazer da experiência. A relação é constitutiva dos objetos, dos sujeitos. O
isolamento é forjado fora da relação, não o inverso.
David Lapoujade refere-se precisamente a isso quando escreve que ―no fundo do
homem, não existe nada de humano‖ (2017, p. 72). O mundo é constituído pela relação
ativada pela intuição, sentida com simpatia nas orlas da experiência. Aqui, nas orlas, a
vitalidade das tendências do mais-que, do mais-que-humano, se fazendo na experiência
é absoluta. ―É necessário chegar aos limites da experiência humana, ora inferiores, ora
superiores, para atingir os puros planos material, vital, social, pessoal, espiritual através
dos quais o homem se compõe‖ (Lapoujadade, 2017, p. 72). Não é a reconceituação do
sujeito e do objeto o que está em questão no fato da arte requerer a intuição do mais-que
para ser capaz de ativar gestos menores. Trata-se, ao invés, da desfolhação de tudo o que
preexiste a ocasião dentro da qual o acontecimento se afirma. Apenas e tão somente
isso, propõe Lapoujade, faz o irrealizável realizável.
A memória do futuro, a arte do tempo, não têm proporções quantificáveis. Eles
são proposições especulativas, são forças inerentes à confecção conceitual da teia de
experiências sempre alertas para o bote nas bordas do pensável. A arte do tempo propõe
o que a arte pode realizar num mundo em contínua composição. É também a proposição
que abre a arte para o seu fora, para o in-ato, para práticas que engendram coletividades
emergentes. A arte do tempo, antes de virar-se imediatamente à resolução da forma,
indaga como técnicas de relação viram um conduíte para o movimento relacional que
excede a própria tomada de forma a qual a arte frequentemente perturba. Antes de
estagnar-se no objeto, a arte como maneira pode explorar como as forças do ainda não

266
(not-yet) co-compõem com o meio (milieu) no qual elas são modos ainda incipientes. A
arte investiga, nessa co-composição, as forças coletivas emergentes. A arte desenvolve
técnicas para intuir como pode tornar-se a base para a criação de novas maneiras, novos
jeitos de colaborar, humanos e não-humanos, materiais e imateriais. A arte pode tocar a
tecnicidade do mais-que que salta das proposições fundamentadas em objetos artísticos.
Ela pode questionar como a iteração coletiva de um processo se fazendo pensa a si
mesma, bem como a forma em que ativa toda a potencialidade da pesquisa-criação. A
arte pode questionar o que a compele a pensar, a virar. Ela pode questionar as forças que
violentam a feitura do tempo, e pode criar de dentro desse turbilhão fervilhante do
tempo fora dos gonzos (out of joint), intuindo seus limites, limites que tem pouco ou
nada que ver com uma forma. Nessa chave, a arte gera um tempo para o pensar ―que iria
até o fim do que a vida pode, um pensamento que conduziria a vida até o fim do que ela
pode‖ (Deleuze, 1976, p. 48). Arte como técnica, como jeito.
Esse jeito (way) é relacional. Ele é do campo de relações, do meio, do ambiente.
Arte: o processo intuitivo cuja ativação compõe a relacionalidade constituinte do viver a
vida (life-living), criando uma memória do futuro que escapa da e complica a forma. A
arte do tempo: tornar sensível o ritmo do diferencial, a qualidade da relação. Não é um
problema, por assim dizer, de frear o tempo, de acelerá-lo, de retardá-lo, de apressá-lo.
É um problema de mover a experiência além do habitual, de descobrir de que maneira
as pontas da vida vivida mesclam-se com as forças do que ainda não pode ser percebido,
mas mesmo assim produz sentires. A arte do tempo envolve riscos, sem sombra de
dúvida, mas um risco assumido de maneira distinta, não mais no nível da identidade ou
do ser: risco de perder o pé, risco do mundo perder o pé, num terreno movediço e em
contínua movência. Na feituradesses undercommons, onde o movimento é anterior às
formas e as devora (predates form)121, onde a expressão permanece vivaz nos
interstícios do indizível, o campo de relações ele mesmo se torna ―inventor de novas
possibilidades de vida‖ (Cowan, 1996, p. 3), possibilidades de vida que só podemos
intuir na arte do tempo.

121
N.T.: A ambiguidade da palavra predates, que pode significar tanto ―antecede‖ (pré-data) quanto
―preda‖, ―devora‖, não parece intencional no texto original. Não parece, contudo, excessivo dizer que, na
medida em que mostra-se a anterioridade do movimento em relação à forma, o movimento devora a
forma: a forma passa a aparecer como um tipo de movimento, algo de todo alheio à ideia tradicional de
forma. Em uma tradução, em alguma medida, antropofágica (como explicado no início do texto), pareceu
interessante fazer ecoar essa predatoriedade que já soava, ainda que subliminarmente, na palavra. Ela é
como um gesto menor da palavra, um jeitinho da palavra, que se insinua para além de qualquer intenção
humana ou autoral. É a agência sutil de uma palavra.

267
2. A arte da participação

Se a arte do tempo, a arte como jeito (manner), inventa novas possibilidades de


viver a vida, isso decorre do contínuo investimento na questão da prática. A prática
move a técnica em direção à tecnicidade. Ela não pode ser reduzida a um indivíduo. A
prática é transversal ao campo de experiência.
Gilbert Simondon pensa o indivíduo como um ponto de inflexão de um processo
de individuação. Para Simondon, o indivíduo é emergente e não pré-constituído. No seu
vocabulário, existe uma relação intrínseca entre a individuação (o processo), a pré-
individuação (a força da forma) e o individual (o ponto de inflexão que abre o processo
para individuações outras). O indivíduo (a singularidade do processo) não é o ponto de
partida – ele é o que emerge do meio da individuação. O indivíduo é aquilo pelo qual o
acontecimento se expressa, nunca aquilo que o põe em movimento.
O indivíduo emergente do processo não pode ser inteiramente abstraído da força
do pré-individual, do excesso virtual ou do mais-que o qual acompanha todos os
processos da força tomando forma. Se o mais-que de um processo de individuação
percorre todo a dinâmica de formação, isso significa que não há uma fase do processo
que já não esteja, de saída, em excesso relativamente à forma que terá. Um processo é,
portanto, segundo sua própria natureza, coletivo. É uma ecologia de práticas. Em muitas
leituras sobre coletividade, o múltiplo refere-se à soma das individualidades (de tal feita
reduzindo o coletivo aos indivíduos que o integram). No entanto, para Simondon, a
individuação é sempre transindividual. É verdade que indivíduos emergem daí, mas o
processo nunca retornará à soma de suas partes. Mesmo os indivíduos, quando
abstraídos, não deveriam ser simplesmente reduzidos a uma soma, uma vez que
continuam portadores da sua carga pré-individual, uma carga que contém ―potências e
virtualidades‖, o que sugere uma suscetibilidade contínua a estados alterados de
natureza (Simondon, 2005, p. 248).
Simondon usa o conceito de transindividuação para descrever a coletividade
existente no cerne de todas individuações, aquém e além de qualquer especiação numa
individualidade. Ele mobiliza o transindividual para tornar visível que qualquer
mudança no acontecimento é uma mudança na própria ecologia que o compõe. O
transindividual é o conceito que mais sublinha o fato de que todo acontecimento é
colaborativo, participativo.

268
Participação é central à arte do tempo. Na acepção normativa da arte como
objeto, vista no OED, a arte possui duas temporalidades: o tempo da realização e o
tempo do espectador que aprecia o objeto realizado. O realizador e o espectador são os
dois polos limítrofes do processo. Muito embora essa acepção seja complicada na arte
participativa e nos processos artísticos coletivos de todos os tipos, resta uma pergunta:
em que medida a arte retém essa dicotomia original entre o realizador e o
espectador/público/participante mesmo nos casos nos quais os aspectos de participação
são absolutamente centrais para tornar o trabalho operativo? Em que medida o
realizador continua a ver-se como eixo principal (ou em que medida o curador carrega
igualmente essa mesma percepção)? Em que medida permanecemos presos à ideia do
artista como gênio solitário?
Quando um processo está delimitado pela crença de que existe um indivíduo
pré-constituído criando em seu cerne, o coletivo torna-se um problema de segundo
nível. O participativo é deixado para o final, e, pois, um estágio decisivo do
acontecimento é emudecido. Ao segregarmos a participação do trabalho, ao relegarmos
a participação a um segundo momento do processo em curso, o que estamos fazendo é
separarmos aspectos constituintes do processo. O real trabalho é visto como aquilo que
emerge antes do acontecimento estar aberto ao público. A prática, portanto, fica
separada das técnicas de ativação. Em sendo assim, o participativo é posto em uma
desconfortante dicotomia entre o que é interior e exterior ao processo. Disso decorre
uma expectativa que coloca o público em uma embaraçosa posição de julgadores. De
um lado, o público torna-se o juiz do trabalho e, de outro, o artista passa a ser o juiz do
juízo do público. Mesmo no melhor dos casos, será difícil escapar da prescrição de certa
hierarquia. Isso não só refreia a força do que pode a arte como restringe a participação a
uma definição de público preconcebida, situação essa que inevitavelmente orienta a
participação à intervenção humana, reduzindo, assim, a complexa ecologia da
participação. A presença humana opera como um ativador a posteriori, com a tarefa de
trazer esse novo fazer da prática à existência. Se, por um lado, existe a chance de
sucesso no sentido de que pode produzir novos modos de encontro que incipientemente
torna sensível a abertura do trabalho a uma reorientação, por outro, nesse contexto,
frequentemente, as condições que permitiriam a obra ganhar extensão para além de si
mesma não foram criadas. O conceito de transindividuação evidencia as limitações
desse ponto de vista. Da perspectiva da transindividuação, a participação é uma espécie
de a priori, presente desde sempre, ativa como o mais-que no coração da formação do

269
acontecimento. Participação não é o jeito com que o fora complementa um
acontecimento já em curso, mas é a multiplicidade operacional da prática em seu
desdobrar. Participação não é o que o artista desejaria que o público fizesse (eu
certamente sucumbi a isso em minha própria prática), mas a atividade potencial do
trabalho aberta pelo processo.122 Através do mais-que, essa atividade participativa é
realçada na arte, cabendo frisar que todo acontecimento é de cabo a rabo
transindividual, e, por extensão, todo processo artístico é capaz de mobilizar essa fração
transidividual.
Pensar a participação como imanente ao acontecimento gera uma gama de
expectativas completamente distintas. Agora, a prática é considerada imanente à
ecologia de um processo de mudança incessante. Isso altera radicalmente as condições
do trabalho. Agora, o problema não é mais como a participação é capaz de reanimar um
processo, mas como o processo ele mesmo, como prática emergente, pode tornar
sensível a sua própria natureza transindividual ou participativa. A prática deixa de ver o
objeto como fim para explorar maneiras de prolongar a arte do tempo no acontecimento,
de tal feita a engendrar novas formas de colaboração. Quer nos refiramos à feitura de
uma obra de arte ou à colocação, através de uma artimanha em ato (a process artfully
in-act) de práticas ativistas que fazem emergir coletividades, o crucial é menos como o
trabalho se define que a engenhosidade com que cria novos condutos para a expressão e
a experimentação.. A participação assim concebida põe em relação um agenciamento,
uma mobilização, no acontecimento, inclinada a algo que não começa nem termina com
o indivíduo humano.
Simondon escreve: ―não poderíamos conceber a individuação … como algo que
se processa intrinsecamente à formação dos indivíduos, jamais completa, jamais fixa,
jamais estável, mas sempre cumprindo, em sua evolução, uma individuação que os
estrutura sem eliminar a carga pré-individual associada, constituindo o horizonte do Ser
transindividual do qual se destacam? (Simondon, 2005, p. 29). O transindividual, vale
repetir, ―não é o social bruto nem o interindividual; ele supõe uma verdadeira operação
de individuação a partir de uma realidade pré-individual‖. A realidade pré-individual, a
energia do mais-que que acompanha cada processo de individuação, não cria um

122
Em Always more than one (2013), existe um interlúdio intitulado Fiery, luminous, scary no qual
exploro tais questões em relação a um trabalho por mim realizado de nome Slow clothes || Folds to
infinity. Penso que as demandas da arte relacional ou participatória são tais que a criação das condições
para participação devem ser manuseadas com muito mais cuidado do que recebem os próprios objetos (se
os há). Arte é, aqui, arte da relação, precisamente.

270
indivíduo formado para todo o sempre, mas, sim, uma metaestabilidade que expressa
―uma condição quântica, correlativa de uma pluralidade de ordens de grandeza‖
(Simondon, 2005, p. 29). É desde a perspectiva dessa metaestabilidade que a feitura,
dentro de um processo artístico, da arte da participação começa. Tal feitura considera o
acontecimento plenamente participativo, um processo sempre em co-composição por
entre as gradações e as temporalizações do seu próprio fazer.

2.1. Limites da existência

Para explorar a arte participativa, é necessário retornar para algumas questões


chaves levantadas anteriormente concernentes à noção de arte do tempo:

1. O que é ativado por um trabalho artístico não é sua objetalidade (um objeto não
é em si mesmo arte). Arte é o jeito (the way, the manner) de devir que é
intensificado pelo saltar-de-si-mesmo do objeto. É a ultrapassagem (outdoing)
do objeto tanto em relação à forma quanto ao conteúdo.
2. Intuição é a operação que coloca em curso o processo de ultrapassagem.
3. A maneira de devir torna sensível a complexa duração não-linear do tempo. Isso
é a ativação do futuro – a força de fazer-sensível o ainda impensável (nas bordas
dos sentires).
4. A ativação da maneira de tornar-se é outro jeito de falar sobre a tecnicidade de
uma obra, ou seu mais-que. Esse mais-que é uma defasagem (dephasing) do
trabalho em relação à sua proposição inicial (seu material, suas condições de
existência).
5. O campo relacional ativado por esse ultrapassar do trabalho artístico é uma
ecologia de práticas mais-que-humana. O trabalho participa, relacionalmente,
ecologicamente, de uma mundificação que redefine potencialmente os limites da
existência.

Os limites da existência estão sempre em revisão. A arte participativa toma a


noção de modo de existência como ponto de partida, perguntando de que maneira as
condições que a orienta em direção ao mais-que modificam ou modulam como a arte
produz diferença, abrindo os campos de relação existentes a novas formas de percepção,

271
responsividade, experiência, coletividade. Tais aspectos da arte da participação não
podem ser pensadas separadamente do político, muito embora a força política do
trabalho não esteja necessariamente no seu conteúdo. Trata-se de questionar como o
campo de relação ativado pela arte afeta o complexo de ecologias do qual faz parte.

2.2. Simpatia

Simpatia, para Bergson, não é o ato benevolente consequente ao acontecimento,


tampouco o resultado ou resposta a uma ação pré-determinada. Simpatia é o vetor da
intuição sem o qual esta não seria jamais experimentada. Um acontecimento simpático à
força da intuição torna-se capaz de gerar jeitinhos (minor gestures) que abrem o
processo à sua tecnicidade. Simpatia é o que permite ao acontecimento expressar o seu
mais-que. É o que abre o acontecimento para aquilo que a intuição convocou.
―Chamamos aqui de intuição a simpatia através da qual nos transportamos ao interior de
um objeto para coincidir com aquilo que ele tem de único e, consequentemente, de
inexprimível‖ (Lapoujade, 2017, p. 61).
É impossível pensar intuição e simpatia totalmente apartadas uma da outra, mas
não devemos, em razão disso, considerá-las a mesma coisa. A intuição toca no
diferencial do processo. A simpatia mantém juntos os contrastes do diferencial, de tal
maneira que, de par com o jeitinho (minor gesture), o indizível devém expressivo. A
simpatia é, em aliança com o jeitinho, um conduto para a expressão de certos encontros
já contido em estado germinal. Ali onde a intuição é a força de expressão ou de
prearticulação do desdobrar-se do acontecimento, a simpatia, trazendo à baila o jeitinho
(minor gesture), é o jeito (way) dessa articulação.
Simpatia é um nome estranho para esse processo, tão conectado que está com a
linguagem cotidiana no sentido de estabelecer um juízo de valor a um processo
preexistente. Por esse motivo, talvez não guarde a potência conceitual necessária para
tornar sensível a força do que produz ou pode produzir. O uso que faço do termo alia-se
às noções de preocupação (concern) e gozo de si (self-enjoyment) formuladas por
Whitehead, conceitos que nos recobram que ao acontecimento preocupa-se com a sua
própria evolução, e que essa preocupação é central para o ultrapassar-se (outdoing itself)
do acontecimento. Fazer da simpatia condutora da expressão no acontecimento é trazer
a questão do cuidado para dentro dos limites da concrescência do acontecimento,

272
realçando, assim, como a intuição é um ato relacional que se desenvolve numa ecologia
que não pode ser abstraída dela própria. Intuição leva à simpatia – simpatia pelo
desdobrar do acontecimento. Sem simpatia por esse desdobrar, o acontecimento não é
capaz de tornar sensível a complexidade de durações pelo qual é composto. Simpatia
inclina-se à complexidade de uma intuição à espreita na extremidade do pensamento, lá
onde ritmos que povoam o acontecimento ainda não se moveram em direção às suas
potencialidades em constelação.

2.3. O jeito (way) da arte

Se a arte do tempo está inextricavelmente ligada à prática como um jeito (way),


consequentemente, prática e intuição devem sempre ser vistas como co-operativas:
intuição é a dobra na experiência que permite a montagem de um problema que dá
início a um processo particular, ou curva-o para o seu diferencial, criando o germe de
uma prática.
Isso levanta a questão de onde a intuição está situada em relação a uma prática
inerentemente dupla: a participação. A participação é intuitiva? Eu diria que a
participação é a simpatia referente ao processo em que a arte como evento é mobilizada
por meio de uma dinâmica intuitiva na qual ela forja e vetoriza o problema que
continuará a ativá-la por toda a sua vida. Participação é o rendimento (yield) naquilo
que Ruyer chamou de ―rendimento estético‖ (―aesthetic yield‖). Esse rendimento (yield)
dá direção a um processo já em curso e abre o processo ao mais-que de sua forma e de
seu conteúdo – ele cede.
O rendimento estético, como aquilo que a arte rende e aquilo que ela cede,
expande-se para lá de qualquer objeto ocasionado pelo processo para incluir a vista de
expressão gerada pela prática como acontecimento. Isso é artimanha (artfulness). A
manha da arte (artfulness), como rendimento estético, é questão de como um conjunto
de condições coalesce para favorecer a abertura de um processo à sua coletividade
inerente, ao mais-que do seu potencial. A arte da participação é a capacidade, no evento,
de ativar a sua artificiosidade (artfulness), de explorar o seu rendimento. A artimanha
(artfulness) é a força de um devir que é singularmente disposto a uma ecologia em
processo de fazer-se, uma ecologia que nunca pode ser subsumida ao artista ou ao

273
indivíduo participante. Artimanha (artfulness): a captura momentânea de um
rendimento artístico na evolução de uma ecologia.
A complexa ecologia do processo de ultrapassagem (outdoing) que é
operacionalizado pelo jeitinho (minor gesture) é sentido, em sua intensidade, no
artificioso (the artful): ela é palpavelmente transindividual. No contexto da arte como
um jeito (manner), a artificiosidade (artfulness) está, portanto, mais próxima do
diferencial que de qualquer objeto, de um diferencial que foi ativado por meio da
pontualidade do movimento de um jeitinho ao longo do processo. Isso não é sugerir que
a feitura de problemas operacionais através da intuição, a ativação de jeitinhos (minor
gestures) através da simpatia pelo evento, o vir-à-expressão da artificiosidade
(artfulness) possa ser feito rapidamente ou facilmente: ao escrever sobre o papel da
intuição na articulação de um problema, Bergson fala da necessidade de uma longa
camaradagem engendrada por uma relação de confiança que leva a um engajamento
com aquilo que vai além de observações prematuras e fatos neutralizantes
preconcebidos. A intuição é um processo rigoroso que agita-se nos próprios limites de
um encontro com o quase-pensado (as yet unthought). A artimanha (artfulness) é a
expressão simpática deste encontro.
Explorando o diferencial, a arificiosidade (artfulness) abre o mundo para o tipo
de novidade enfatizada por Whitehead – uma novidade não preocupada com o sentido
capitalista da última moda, mas como criação de mistos que produzem novas aberturas,
novas visões, novas feições da experiência se fazendo. Essa novidade é irredutível ao
objeto artístico: apenas a artimanha é verdadeiramente capaz de ativar novas misturas.
A artificiosidade (artfulness) não pertence ao artista, nem à arte como disciplina.
Se ela precisasse ser anexada a algo, poder-se-ia dizer que seria o que o processo de
pesquisa-criação mais operacional busca atualizar. A artimanha é a expressão operativa
de mundos em processo de fazer-se, o rendimento estético que abre a experiência à
qualidade participativa do mais-que.
A artimanha emerge mais ativamente nos interstícios onde o mundo ainda não se
estabeleceu em objetos e sujeitos. Um ambiente vivaz para a artificiosidade (artfulness)
é o campo da percepção direta que defini na introdução (ao livro The Minor Gesture)
como percepção autista. Quando há artificiosidade, é porque condições foram criadas
que possibilitam não apenas a arte do tempo, mas também a arte da participação. A
percepção autista – a participação direta, no evento, das suas ecologias nascentes, é
talvez o registro mais aberto para a experiência do artificioso (of the artful). Porque é

274
apenas quando há simpatia pela complexidade do acontecimento nascente que o mais-
que de uma ecologia emergente pode verdadeiramente ser percebido. Quando isso
ocorre, um senso de mudança é apreendido do movimento imanente – e o jeito (way) no
cerne da arte é sentido. Não é o objeto que se sobressai aqui, nem a árvore, o pôr do sol,
ou a pintura. É a força de movimento imanente que o acontecimento convoca que é
experimentada, uma mobilidade se fazendo que desloca qualquer noção distinta de
subjetividade ou de objeticidade. Isso não significa que o que é aberto não tem um
tempo, um lugar, uma história. Antes, o contrário: o que emerge no coração daquilo que
tem artimanha, no tempo rítmico de uma percepção autista, é sempre singular – este
processo, esta ecologia, este sentimento. É como a constelação de fatores emergentes
co-compõe, como eles são sentidos na sua emergência, que faz desse acontecimento
singular arte (artful), uma artimanha (artfulness) que carregará, então,
retrospectivamente, uma história, um comprometimento com uma causa, mobilizando
uma política em processo de ser feita.
A artimanha (artfulness) é uma direcionalidade imanente, sentida quando um
trabalho se conduz, ou quando um processo ativa a sua dobra mais sensível, onde ele
ainda está repleto de intuição. Essa modalidade está para além do humano. Certamente,
corta através do humano, funde-se com ele, captura-o, dança com ele, mas é também e
sempre mais-que-humana. Tal modalidade está ativa em uma ecologia de ressonâncias
que são mais prontamente percebidas por neurodiversos. O processo tem agora seu
momentum próprio, sua arte do tempo própria, e essa arte do tempo, extraída das
limitações da volição centrada no sujeito, colabora com a criação de seu próprio
caminho (way). A força da arte como um jeito (way) vem precisamente disso, do fato de
ser mais-que-humana.123
O ritmo é central a esse processo de fruição que atravessa variações diferentes de
experiências centradas no humano em busca de ecologias ainda inomináveis. Em toda
vetorização da intuição e da simpatia existem durações ainda por desdobrar, expressões
do tempo ainda por viver, ritmos ainda inexprimíveis. É isso que faz do acontecimento
arte – isso que permanece nas bordas, na periferia de um processo que ainda não se
reconhece, inventando, como faz, seu próprio modo, um jeito de mover-se, de fluir, de
fixar-se, de jogar luz (lighting), de colorir, de participar. A artificiosidade (artfulness) é
vivida assim – como um campo de fluxos, de acelerações e frenagens, mal-estares e

123
Para entender a relação entre animalidade e criatividade, ver Massumi (2017).

275
espanto, distrações e atenções. A artimanha (artfulness) não é algo para se contemplar. É
algo através do que mover-se, com o que dançar nas bordas da percepção onde sentir,
ver e devir são o mesmo.
O que se move não é o ser humano per se, massa força da direção que a intuição
deu ao evento no seu desdobramento inicial, de par com a força de um jeitinho (minor
gesture). Técnicas estão trabalhando, modulando-se para ultrapassar (outdo) suas
fronteiras em direção à tecnicidade em germe. Pensamento, intento, organização,
consideração, hábito, experiência – tudo isso está operando aqui. Com eles, advém o
embrião da intuição fruto de um longo e paciente processo ativado, doravante, por uma
simpatia pela diferença, uma simpatia pelo acontecimento em seu formigante devir.
Tocar a artimanha (artfulness) é tocar o mais-que incomensurável ativo em todo canto
nas ecologias que nos produzem e excedem.
Ajustada (tweaked) em direção à artimanha no processo se fazendo, a arte se faz
um caminho (way) para um ethos coletivo. Da estrutura mais aparentemente estável ao
processo mais móvel e efêmero, a arte com manha (art that is artful) ativa a arte da
participação, fazendo sentir a força transindividual de um tempo acontecimental que
catapulta o humano à diferença. A diferença, o mais-que em nosso âmago, a parte não-
humana que anima cada uma de nossas células, torna-se atenta ao campo relacional que
abre o trabalho para o seu fora intensivo. Esse campo relacional não deve ser entendido
espacialmente. Ele é uma materialização intensiva, uma movência absoluta que habita
duracionalmente o processo. É a arte do tempo se fazendo sensível.
Uma campificação (fielding) da diferença foi ativada, e isso precisa ser cuidado
(tended). A arte participativa envolve criar as condições para esse cuidado ocorrer. Ele é,
primeiro e principalmente, um cuidado com o ambiente frágil da duração gerado pela
operatividade da operação e ativado pelo jeitinho (minor gesture). Um cuidado pelos
ritmos incipientes da obra. A fragilidade decorre, me parece, do tanto por sentir no
processo de um trabalho entrando em ressonância com um mundo em formação.
A simpatia torna sensível como a tendência, o jeito (way), a direção ou a
mobilidade incipiente é em si o sujeito do trabalho. A simpatia implica um cuidado por
esse sujeito, desestabilizando a noção segundo a qual tanto o trabalho quanto o humano
entram na experiência plenamente formados. Simpatia: aquilo que traz a força do mais-
que à superfície. Aquilo que produz a sensação da força da experiência ao exceder,
sempre, o objeto. Aquilo que gera a abertura para o jeitinho (minor gesture) assumir o
trabalho.

276
2.4. Vetores

A arte da participação, como mencionado acima, não encontra seu conduto


apenas no humano. O artístico também realiza seu trabalho sem interferência humana,
ativando campos de relação que são escalas mistas de ambientes ou ecologias que
podem incluir ou não o humano, mas não dependem dele. Como categorizar como
humano ou não-humano a exuberância de um efeito de luz, o jeito (way) que o ar se
move através de um espaço, ou o jeito como uma obra de arte captura outra no
movimento do seu pensamento?
A noção de vetores formulada por Whitehead é útil porque dá um forte sentido à
qualidade mais-que-humana que a experiência da artificiosidade (artfulness) carrega. O
vetor, na obra de Whitehead, é definido como a força do movimento que viaja de uma
ocasião de experiência a outra ou dentro de uma mesma ocasião singular. A
particularidade dessa definição advém da maneira (way) como conecta vetor e sentir.
―Sentires são vetores; por essa razão, eles sentem o que está lá e transformam no que
está aqui (Whitehead, 1978, p. 87). Vale frisar que para Whitehead sentires não se
associam a um sujeito preexistente. Eles são a força do acontecimento se expressando.
Entendido como vetores, sentires possuem a força do momentum, uma intuição para
direção.
A teoria dos sentires de Whitehead vira a noção de participação restrita ao
humano de ponta-cabeça. O que o acontecimento sente é como ele ganha expressão. O
sujeito, o indivíduo, são o rescaldo, o modo como o acontecimento se conhecerá. O
sujeito não está limitado ao humano – ele é a marca de uma defasagem, nos termos de
Simondon, no acontecimento. Uma ocasião de experiência sempre guarda uma marca –
uma vez passado à concreção será sempre o que foi. Whitehead chama isso de
superjecto, ou de sujeito da experiência. Fazer do sujeito o resultado do acontecimento
ao invés de o disparador nos rememora que o sujeito de um acontecimento inclui a
qualidade dos vetores – segundo Massumi, seu pensar-sentir. Não é possível jamais
abstrair ou separar o sujeito da qualidade vetorial, do tom-da-sensação que o compõe.
A artificiosidade (artfulness) é a capacidade do acontecimento de destacar o
tom-da-sensação da ocasião de tal feita a gerar uma tonalidade afetiva que permeia mais
que essa ocasião singular. Para isso acontecer, a ocasião deve ter, de dentro de sua
evolução, uma competência para tornar-se um nexo que continua a ter apetite pelo

277
processo. Isso não significa inferir que a ocasião não perecerá, apenas enfatiza que
nesse perecer pode restar uma qualidade encoberta que persistirá nas ocasiões por vir.
Como tom-da-sensação, afinados com o campo da relação, os vetores
sintonizam-no para o seu mais-que. Sendo assim, ativam a coletividade de um dado
nexo de ocasiões. O que emerge do in-ato é o que Whitehead designa como sociedade, o
devir de um amplo campo relacional que ultrapassa a atomicidade da ocasião iniciando
sua entrada na existência. Esse processo, Whitehead sublinha, é ritmado (e não linear).
Ele ginga entre uma dada ocasião real ensimesmada, na qual o que é moldado não difere
daquilo que se é, para um campo amplo onde a abertura para o moldar permanece
apinhada do potencial não só da ocasião em questão mas da vasta extensão do nexo da
ocasião. A artificiosidade (artfulness) vive nessa intersecção.
Whitehead fala disso em termos de criação de mundos – ―sentir um além que
está determinado e apontar para um além ainda por ser determinado‖ (1978, p. 163). Ser
determinado aqui é resolutamente ser em potência – por consequência, a vetorização de
um tom-da-sensação não pode ser mapeada de antemão, e não se pode prever se pousará
de maneira a ativar uma mundificação. Mas pode ser modulado por meio do trabalho
colaborativo e participativo do jeitinho (minor gesture). A artimanha (artfulness) emerge
dessa mistura.

2.5. Contemplação

Um vetor-sentir contempla sua passagem, frequentando a dança de uma ocasião


que se adentra. A ocasião não pode ser abstraída do seu tom-da-sensação. A
contemplação do devir não pode ser separada do modo como irá vingar.
A artificiosidade (artfulness) jamais tem valor-de-uso – ela não faz nada que
possa ser mapeado por um processo já em curso. Não há finalidade, não há limites
preordenados, nenhum código moral. O processo é, entretanto, condicionante. Tal
afirmação estabelece que as condições permissivas de sua emergência insistem em
favorecer um engajamento com o problema vigente, propiciando a passagem a um
campo de rendimento. A prática realiza o trabalho quando o jeitinho (minor gesture)
torna operativo esse rendimento – já presente em germe no problema inicial que ativa o
processo, na intuição que tateia o modo como a técnica devém tecnicidade. Sem as

278
condições propícias, o estético não rende, e a obra ou o acontecimento não tornar-se-á
em excesso em relação às técnicas que os fizeram existir.
Condições propícias favorecem a contemplação. Contemplação, tomada como o
ato de persistir-com, como cuidado com o processo, é uma forma mínima de produção.
Ela assiste às condições que fazem uma obra operativa. Contemplação é passiva
somente no sentido de que essa assistência provoca uma espera, uma paragem, uma
escuta, uma simpatia-com. Essa simpatia está envolvida no processo, simpática com a
parte indizível da experiência atiçada pelo jeitinho (minor gesture), afinada com a frágil
arte do tempo. Operativa nas margens da percepção, ali onde consciência e não-
consciência coincidem, a contemplação ativa temporalizações de seu próprio fazer, por
vezes vergando o neurotípico à percepção autista. Por essa razão, a contemplação –
assim como a intuição e sua contraparte, a simpatia – ativa o diferencial do
acontecimento. E, sendo assim, passa a responder às sutis nuances da experiência
forjando-se.
A contemplação torna sensível a artificiosidade (artfulness). Ela o faz no
acontecimento, na oscilação inquieta entre semear uma prática e devir-com a prática.
Aqui, no interstício do viver a vida, a artificiosidade nos lembra que a vida não começa
com o ―eu‖, e o ―tu‖ não é o que a transforma em arte. Composta por milhares de
contemplações, a arte do tempo nos relembra que ―não dizemos ‗eu‘ a não ser por estas
mil testemunhas que contemplam em nós; é sempre um terceiro que diz eu‖ (Deleuze,
1988, p. 80). Não é outra a razão pela qual a artimanha é mais rara do que a arte. Pois a
artimanha depende de muitos cuidados, muitas colaborações implícitas entre intuição e
simpatia. E, acima de tudo, depende de que o humano saia da frente (it depends on the
human getting out of the way).
Artimanha: o jeito (way) como a arte do tempo faz-se sensível, como ela pousa,
e como sempre excede o seu pouso.

Referências bibliográficas

COWAN, Marianne. Introducion. In: Nietzsche, Friedrich. Philosophy in the tragic


age of the greeks. Washington: Regnary Publishing, 1996.

DELEUZE, Gilles. Bergsonismo. São Paulo: Ed. 34, 2008.

_______. Diferença e repetição. Rio de Janeiro: Graal, 1988.

279
_______. Nietzsche e a filosofia. Rio de Janeiro: Editora Rio, 1976.

_______. Proust e os signos. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2003.

JAMES, William. Pragmatismo e outros textos.

LAPOUJADE, David. A potência do tempo. São Paulo: n -1 Edicoes, 2017.

MANNIN, Erin. Always more than one: individuation‘s dance. Durham: Duke
University Press, 2013.

MASSUMI, Brian. O que os animais nos ensinam sobre política. São Paulo: n -1
Edições.

SIMONDON, Gilbert. L’individuation à la lumière des notions de forme et d’


information. Grenoble: Editions Jérôme Millon.

WHITEHEAD, Alfred North. Process and reality. New York: Free Press, 1978.

280
NAVEGAÇÕES

281
A maior greve de todas

Gabriella Alberti124
Tradução de Carolina Salomão

Este artigo reflete sobre as diferentes etapas de uma disputa trabalhista de


quase três meses no setor de ensino superior do Reino Unido contra uma proposta de
reforma previdenciária. A disputa começou em virtude de propostas do empregador,
Universities of United Kingdom (UUK) de remover o "benefício definido" garantido no
regime de pensões para os membros do Universities Superannuation Scheme (USS). De
acordo com os acadêmicos e profissionais relacionados ao setor membros do sindicato
―UCU‖, essas mudanças custariam a um membro típico em torno de £ 10.000 por ano
na aposentadoria. As ameaças de corte de pensões e os planos para a financeirização do
esquema levaram a 14 dias de greves sem precedentes, em 65 instituições universitárias
em todo o Reino Unido, que levou a duas ofertas consecutivas: uma mediada pelo órgão
independente de arbitragem intervindo em disputas trabalhistas não resolvidas, chamado
de ―ACAS‖125 (em 12 de março) e a segunda, que representou a primeira oferta de fato
pela contraparte representando a ―UUK‖, em 23 de março. Em 13 de abril de 2018, a
maioria dos membros consultados aceitou a oferta após uma votação eletrônica de
natureza consultiva, que foi decidida pela liderança nacional, apesar das críticas de
serem prematuras pela base. O que se segue é um relato subjetivo de uma das ativistas
do sindicato local baseada em uma universidade em greve no norte da Inglaterra.
Enquanto a greve levou a um 'adiamento' das mudanças de pensão, com a promessa de
manutenção do status quo até abril de 2019 e ao estabelecimento de um painel de
especialistas para reexaminar a avaliação do plano de pensões, há muito solicitado pelos
grevistas. A disputa ainda não está resolvida e na verdade representa um ponto
irrevogável em termos de uma mudança de cultura nos campi britânicos e em relação às
lutas internas que ela abriu, especialmente em termos de reconectar os vários grupos
constituintes que compõem a atual força de trabalho universitária e sua população
estudantil. A greve revelou interesses e valores conflitantes apropriados de maneiras
diferentes pelas instituições universitárias bilionárias mercantilizadas, em um país com
enormes desigualdades, uma riqueza construída com dívidas borbulhantes e fronteiras

124
Professora na Universidade de Leeds na área de Relações de Trabalho e Emprego.
125
The Advisory, Conciliation and Arbitration Service (ACAS).

282
cada vez mais controladas. No artigo, a autora também reflete sobre as tensões e
aberturas radicais que sustentam os processos reprodutivos e afetivos envolvidos na
greve mais longa da história das universidades britânicas. Reconhecer a relevância da
política das emoções na reprodução da greve é um passo necessário para repensar a
estratégia política e a poderosa ação trabalhista. Este artigo é escrito principalmente na
primeira pessoa e quase em forma de diário, incluindo sentimentos, humores e seções
descritivas, também para afirmar um posicionamento contra a linguagem
freqüentemente seca e burocratizada de sindicatos e pesquisa de relações trabalhistas no
mundo anglo-saxão.

A maior greve de todas (na história da educação superior)

A primeira fase da greve mais longa da história do ensino superior no Reino


Unido acabou de terminar: 14 dias espalhados por 4 semanas seguindo uma crescente
estratégia de recusa das propostas de mudança do plano de aposentadoria de acadêmicos
e funcionários da academia, conhecido como USS126. Este programa é um dos poucos
no país que ainda mantém alguns elementos de segurança em termos de acumulação de
benefícios durante a carreira e igualdade de distribuição de contribuições de ambos os
lados. Até o momento, o plano se mostra viável e a hipótese de uma crise ou alegada
insustentabilidade tem sido frequentemente contestada por acadêmicos e especialistas
atuários fora das fileiras sindicais.
As alterações propostas incluíram o fim dos benefícios definidos, ou seja, a
passagem de um sistema com garantias financeiras de provisão para indivíduos após a
aposentadoria, para um modelo baseado em 'contribuições definidas', em que
basicamente o valor de seu pagamento de pensão final é deixado para as flutuações
imprevisíves do mercado de ações.
Foi a primeira vez que a liderança nacional do sindicato UCU127 se aventurou
em uma estratégia tão determinada e conflituosa, planejando duas semanas de ação
grevista. Para muitos trabalhadores do ensino superior e sindicalistas, essa foi uma
decisão da Sede, devido à contínua degradação dos termos e condições no setor, com
cortes reais de 14% quando comparados com as taxas de inflação, intensificação do
trabalho, mão-de-obra informal e precária, além dos diversos aspectos qualitativos da

126
Universities Superannuation Scheme
127
University and College Union

283
degradação do conhecimento e da formação dos alunos como resultado da
mercantilização, aumentando o monitoramento do desempenho e a metrificação da
produção acadêmica através de sistemas como o REF128.
E, de fato, todos esses outros elementos de descontentamento decorrentes da
questão central da segurança financeira na aposentadoria, tornaram a disputa do USS de
2018 não apenas a mais longa, mas também a maior de todos os tempos. A riqueza da
greve brota das muitas dinâmicas sociais inesperadas que surgiram nos campi do Reino
Unido, de Glasgow a Essex, Leeds e Londres. Ela rompeu com a duradoura apatia que
se seguiu à imposição de altos honorários desde 2010 e o vazio de solidariedade tanto
entre professores e alunos, quanto entre acadêmicos e funcionários administrativos, e
até entre colegas que por muito tempo permaneceram ―lamentavelmente isolados‖ (nas
palavras de um colega) e extremamente atomizados por um sistema que cinicamente
exige o impossível: aplicar um modelo de negócio à educação. "Condições dos
palestrantes = Condições dos alunos".

Socialidades transformadoras e novas temporalidades

O período da greve foi um período agitado. Nunca me senti tão produtiva em


minha vida, nunca tive a sensação de produzir tanto valor todos os dias fora da relação
capitalista com meu empregador e do modo mercantilizado de produção de
conhecimento. Tornou-se evidente que era realmente possível exercer pressão
interrompendo seu trabalho, para inventar outra maneira de educar e reproduzir
diferentes relações sociais em seu local de trabalho com as mesmas pessoas com as
quais você normalmente coopera para o capital. O que me impressionou, no entanto, foi
a natureza diferente de tal trabalho. Em primeiro lugar, incluía resistência física: acordar
mais cedo do que para o seu trabalho acadêmico normal – sem contar aqueles que
chegavam ao portão às 6h50 para montar o estande do centro de recursos para os
piquetes; carregar seu cartaz, em pé na neve, chuva e vento por horas; panfletado,
segurando banners, interagindo e criando estratégias.
Então surgem os “teach out”129, alternativa às aulas tradicionais – teach in –,
inviáveis no contexto da greve, pela necessidade de cruzar a linha do piquete (alguns o
fizeram, por exemplo, na Universidade de Warwick). Os “teach outs” se assemelham

128
Research Excellence Framework é um sistema desenvolvido para avaliar a qualidade da pesquisa nas
instituições de ensino superior do Reino Unido.
129
Aulas alternativas realizadas fora do contexto formal das aulas convencionais.

284
ao que costumávamos chamar de seminários alternativos durante as ocupações das
universidades italianas em meados dos anos 2000. São momentos de politização e de
expansão social de uma greve oficialmente focada em problemas econômicos de uma
suposta elite, não só porque você está oferecendo aos alunos precisamente aquilo de que
foram privados, educação gratuita, mas também porque você se reapropria do tempo da
greve não só para expressar sua discordância, mas também para "cuidar de si " e
reivindicar o ―tempo livre‖ do intelecto após a resistência física, expondo-se a
discussões e debates que você normalmente não aprenderia em sua vida profissional,
mesmo como acadêmico. Nesse contexto, você quebra a gaiola da mercantilização, dos
limites disciplinares, você afirma a importância do conhecimento da comunidade fora
da torre de marfim, conhece pessoas de todas as partes, fala com estudantes, colegas e
companheiros de sindicato de uma maneira diferente. Talvez na dinâmica do “teach
out” esteja a verdadeira radicalidade da greve: como você se nutre enquanto luta. Meu
melhor “teach out” foi no Dia Internacional da Mulher: aprendemos sobre o Feminist
Archive North, seu grande arquivo de história feminista em Leeds, mas também, através
de relatos de mulheres idosas sobre suas lutas e invenções sociais dos anos 70. Depois,
uma estudante nos conduziu a um workshop sobre linguagem de cartazes sexistas e a
arte de comunicar política para as novas gerações; e finalmente tivemos uma incrível
discussão autogerida sobre consentimento sexual e os desafios de repensar a política
sexual e a ética no contexto da mistura de identidades e práticas de gênero. Foi a
primeira vez que nos manifestamos no contexto da greve como mulheres trabalhadoras
durante a greve internacional de mulheres que, simultaneamente, havia sido organizada
em muitas cidades na Europa, em todo o mundo e até mesmo em Londres!130

Uma luta contra a mercantilização: pensões entram, taxas saem!

Foi a primeira vez que desenvolvi uma relação política com os estudantes no
campus, a primeira vez desde que comecei a trabalhar na Universidade de Leeds em
2012! Os Estudantes de Leeds em apoio ao sindicato UCU é um grupo de base de
estudantes alinhados politicamente à esquerda solidários à greve; surgiu
independentemente do sindicato estudantil da universidade, por baixo, e entendeu antes
de todos que esta seria uma luta comum. Fiquei impressionada com a seriedade e
delicadeza desses alunos. Em um primeiro momento, eles podem ter sido relativamente

130
https://womenstrike.org.uk/?s=strike

285
tímidos ou cuidadosos em termos de tomar uma posição ao lado de seus professores,
para em seguida se tornar o ator mais extrovertido e estratégico em nossa luta.
Todos os dias os estudantes vinham às escadas de Parkinson, o principal
prédio da universidade, onde nossa manifestação era realizada depois dos piquetes
diários para mostrar sua solidariedade. Eles marcharam conosco, participaram dos teach
outs, lideraram alguns, organizaram reuniões independentes, escreveram petições e se
reuniram com a administração da Universidade em apoio aos seus professores para
pressionar e ajudar a avançar a disputa. Os alunos têm sido extremamente prestativos,
solidários, amorosos e ainda assim cuidadosos ao administrar sua própria autonomia em
relação à luta de seus professores. Estamos ambos conscientes de como a
mercantilização colocou uns contra os outros. Sabemos que cada dia da nossa greve é
um assalto às £ 9.250 com os quais os alunos se endividaram, para pagar seus diplomas.
Mas nós também sabemos que apenas se aproveitando dessa contradição podemos
vencer unificando a luta (a esse respeito, posso acrescentar que, no momento de revisar
o artigo, um grupo de estudantes tem se organizado para apresentar uma reclamação e
se recusar a pagar a terceira parcela de seus pagamentos). [A possibiliade do calote], ao
mesmo tempo em que mostra onde está nossa principal vantagem na nova universidade,
devo admitir que é também sempre deprimente quando os alunos abraçam cegamente
sua identidade de consumidor e revindicam seu ―dinheiro de volta‖ e indicam o
fracasso das gerações anteriores em comunicar a eficiência da ação trabalhista e justiça
social.

(Des)conexões pós-coloniais

Houve discordâncias quanto à possibilidade de incitar nossos alunos


(especialmente nossos estudantes internacionais que pagam altas taxas e que vêm aqui
apenas por um ano pagando toneladas de dinheiro por um diploma que é dispensável em
seu país) a exigir seu dinheiro de volta, a escrever para a sua embaixada, para aproveitar
sua condição de clientes valiosos. Aqueles estudantes preocupados e bem conscientes da
armadilha da mercantilização, aqueles que sofrem mais subjetivamente por terem se
transformado em clientes em vez de estudantes, pareciam ter se oposto a essas
propostas: você não pode separar os meios dos objetivos, se você quer uma educação
independente do mercado você não pode abraçar a identidade do cliente para exercer
pressão sobre o proprietário da empresa. Você tem simplesmente que ser solidário,

286
lembrando sempre que ―as melhores condições de trabalho dos seus professores são a
sua educação de qualidade‖. Por um lado, meu instinto político está com esses
estudantes, e talvez não imediatamente ao lado daqueles colegas grevistas que,
cinicamente, incentivaram os estudantes a pedir seu dinheiro de volta.
Independentemente da potencial retaliação legal nos trabalhadores em greve se
os estudantes processassem a Universidade, como uma educadora semi-mercantilizada
ensinando HRM (Human Resource Management) em uma escola de negócios
'recrutando' muitos estudantes da Ásia todos os anos, eu sinto que também temos que
ser realistas ao invés de cínicos e "simplesmente" perceber o nosso aumento de poder na
universidade corporativa. Isso exige uma série de reflexões difíceis em nossa estratégia
de comunicação com esses alunos, onde lembramos a eles como estamos todos juntos e,
ao mesmo tempo, permanecemos no "lado oposto da barricada de serviço". Nós estamos
privando-os do produto que compraram, esta é a triste realidade, mas o fato de que
alguém terá que assumir a responsabilidade pela perda indica em meu otimismo da
vontade que vencer (juntos e separadamente) é realmente possível. Produzimos valor e
somos explorados de diferentes maneiras, suas dívidas são nossa pensão roubada, minha
diferença salarial entre homens e mulheres é seu nível mais baixo de satisfação na
próxima pesquisa, o salário de capital de risco131 é minha raiva e, portanto, é a sua.
Vamos nos reapropriar do valor da aprendizagem que nós co-produzimos.

Cantando na neve: alegria e sacrifício da luta

Piquetes na neve, no vento gelado e na lama escorregadia não são muito


divertidos. Felizmente, Neil trouxe os aquecedores de mão! E também encontramos
muitas maneiras de nos aquecermos. A continuação da luta tornou-se possível e
sustentável por uma série de iniciativas individuais e coletivas de criatividade, de
alcance e escala que muitos realmente não esperavam - especialmente de acadêmicos!
Todos os dias fomos sendo inundados por novas propostas sobre o que fazer nas
manifestações, seja uma música (muitas vezes novas letras baseadas em melodias
populares ou tradicionais), instrumentos, cartazes, folhetos, discursos, poesias, vídeos,
danças. "Strike up your life" (da música das Spice Girls), por exemplo, literalmente se
tornou a trilha sonora da nossa greve. Inicialmente, desconfiei da expectativa de que os

131
Refere-se à venture capital, i.e, dinheiro que é investido ou está disponível para investimento em uma
nova empresa, especialmente aquele que envolve risco.

287
membros aparecessem todos os dias no piquete às 7:30 (tendo aprendido como essa
militância de sacrifício afastou muita gente da política em minhas décadas de ativismo
na Itália, Berlim, Londres e além). E, no entanto, o ritmo de tal militância intercalado
com momentos de besteiras e alegria, no final deu muito certo. Todos os dias nos
preocupávamos com a possibilidade de haver menos gente, mas não, tivemos que ser
surpreendido de novo e de novo. Todos os dias, um tema e um espírito diferentes, muito
desejosos de reapropriar-nos do tempo cinzento do desempenho mercantilizado da
universidade com alguma criatividade poética boba! Nunca pareceu redundante ou uma
perda de tempo, uniu-nos, nos divertindo e movendo corpo e cordas vocais nos uniram
mais, e foi um componente-chave para possibilitar a reprodução da greve132.

Reproduzindo a greve

Mas a greve não é reproduzida apenas nos momentos visíveis da linha de


piquete, ou na cantoria das manifestações. O espaço oculto da reprodução era a hora de
voltar para casa e continuar trabalhando para a greve: escrevendo e-mails, planejando os
próximos passos, mantendo as pessoas informadas, trazendo novas pessoas, garantindo
que as tensões não se tornassem fraturas, mantendo os processos transparentes e
crescendo, coletando solidariedade do exterior, escrevendo o próximo boletim de greve,
ouvindo as críticas das margens ou de fora, pensando em como se proteger do inimigo,
comendo, cozinhando, abraçando, perguntando se todos estão bem. Cuidando. Tantos
momentos de sociabilidade na greve que o retorno ao espaço solitário da sua casa parece
insuportável. Como você reproduz a greve nesses momentos? Você não trabalha para o
capital. Se você fizer isso, você se sentiria uma merda. Por muitos motivos.
Honestamente desta vez eu nem tive a chance de contrariar essa tentação, eu já estava
sendo muito "greve-reprodutiva"133 para fazer qualquer trabalho para eles. Quão
libertador! Mas a linha entre produção e reprodução social já estava cruzada e
interessantemente confusa.

A linha de piquete na sua cabeça: ultrapasse!

132
https://www.youtube.com/attribution_link?a=8quqAnCK1rs&u=%2Fwatch%3Fv%3DyvQsx-
hPDe0%26feature%3Dplayer_embedded
133
A greve de reprodução social, por exemplo, professores retirando seus serviços educacionais como
quando mulheres interrompem seu trabalho reprodutivo.

288
Uma das divergências da greve entre parte dos grevistas e a liderança principal
foi sobre as "fronteiras" da luta. No Reino Unido, há uma forte tradição de não cruzar a
linha do piquete, especialmente desde a violenta repressão da greve dos mineiros na
década de 1980, que se tornou um dogma quase religioso para o "movimento
trabalhista". "Você tem que me arrastar até a morte, nunca vou cruzar um piquete".
Enquanto a ideia de não atravessar o piquete pode ser bastante universal - especialmente
se o propósito é realmente tornar a greve efetiva, ou seja, não permitir que seus colegas
de trabalho atravessem a porta da fábrica e entrem em produção, alguns que não se
sintam assim emocionalmente ligado à sua história (porque nós do Sul da Europa, nós
viemos de outro lugar, porque temos uma imagem da linha de piquete como sendo
realmente um cordão, um espaço mais conflituoso que realmente tenta bloquear a
produção, algo que foi tornado ilegal por Thatcher…) ousaram desafiá-la ou pelo menos
fazer dela uma barreira um pouco mais flexível e estratégica do que nós controlamos
enquanto trabalhadores.
Foi interessante ver que debates muito semelhantes ocorreram em outros
campi e que, nesses outros contextos, foi essencialmente os locais contra os ―de fora‖
que mostraram diferentes visões e emoções sobre o piquete. Em Warwick, alguns
membros do sindicato propuseram usar o sindicato de estudantes no meio do campus
para sediar as aulas externas, por exemplo. Alguns sugeriram como teria sido mais
estratégico e visível realizar os piquetes fora do refeitório, no meio do campus, em vez
disso, muitas vezes preferimos ficar à margem e incorporá-los sem perceber que outra
pessoa nos impôs a fronteira.
O piquete costumava ser a linha imposta pelos trabalhadores para interromper
a produção. Agora é também a fronteira que nos mantém invisíveis. Afinal, aqueles
irredutíveis em suas posições também usaram o argumento de que, se cruzássemos,
seriamos acusados de invasão ilegal. A polícia viria nos arrastar para fora porque os
campi eram agora solo privado. Então vamos invadir! As restrições legais opressivas ao
sindicalismo na sociedade britânica desde Thatcher foram internalizadas a ponto de as
pessoas não verem que o novo piquete pode se tornar uma gaiola. Atravesse a fronteira
na sua cabeça! Ouça o Outro. "Vá onde você está proibido de ir"134.

134
(http://www.folkradio.co.uk/2017/08/commoners-choir-commoners-go-trespassing-song-of-the-day/).

289
Rejeição coletiva: o (im)possível momento da democracia direta

Os limites do salão da Quaker House eram simplesmente impossíveis de


delimitar. Havia tantas pessoas que queriam opinar sobre a proposta do UUK, de 12 de
março135 , que o espaço não comportava todos e por isso estavam intervindo do lado de
fora do prédio. A mulher grevista passando a mensagem da janela de que a proposta era
simplesmente inaceitável porque deixaria as mulheres e os mais vulneráveis em uma
posição muito pior, foi apenas um daqueles momentos marcantes dessa luta histórica.
Nós rejeitamos a proposta por unanimidade, não havia necessidade de pressionar por
mais radicalidade, já estava tudo lá, com diferentes nuances, estava claro para todos o
significado de dignidade. O que dignidade quer dizer.
Fomos pressionados a tomar uma decisão ao longo de 48 horas, não, ainda
menos, na semana anterior, soubemos da proposta da UCU (sobre a qual não tinhamos
opinião) e, após alguns dias, lemos os resultados do acordo. Ficamos sem nossos líderes
e delegados que estão, contudo, debatendo em nosso nome na sede do sindicato em
Londres, mas ainda assim conseguimos construir uma ponte e deliberar
democraticamente. Será uma recusa maciça. Uma universidade após a outra em todo o
país. #Não à capitulação!
Graças à comunicação em tempo real nas mídias sociais, até mesmo os limites
da democracia representativa se tornam fluidas e aniquilam o espaço. Não se trata mais
apenas de delegar e representar, é quase democracia direta, mas é parcial porque não há
tempo para ser mais específico e fazer contrapropostas. O que acontecerá depois da
rejeição? E como será a nova proposta e quem decidirá os limites negociáveis das
nossas demandas? Democracia é sobre evento, mas é também sobre procedimentos
democráticos claros e trasparentes e regras inclusivas que responsabilizam aqueles que
fingem nos representar. Nas gerais ―ruínas da representação‖, como o meu mentor
chamou, nosso sindicato não tem protocolos democráticos, ou pelo menos tem que
melhorá-los um pouco. E esta é uma das principais vitórias da nossa greve, mesmo que
não ganhemos realmente uma pensão decente e segura a longo prazo. Depois de ter
percebido que ―#nósomosauniversidade‖, vem a descoberta da demanda por democracia
por meio do aumento da participação da base. Cabe a nós exigir essa democracia. Nós
somos realmente irrepresentáveis. Porque as coisas estão mudando enquanto falamos.

135
https://www.ucu.org.uk/article/9401/University-strikes-remain-on-as-UCU-rejects-proposals?list=
1676

290
Uma das principais vitórias desta greve, mesmo que não ganhemos tudo, é a constatação
de que não há governança democrática e que o nosso próprio movimento precisa de uma
grande sacudida em suas estruturas chatas e burocratizadas. #RepensaroSindicato

Mídia social e participação

Todo mundo estava no twitter, facebook e whatsapp durante toda a greve.


Essas mídias tornaram possível a reprodução da greve, as mídias sociais foram a linfa, o
fluido nutritivo de nossa luta. Sem elas, não teríamos sentido esse senso de propriedade,
nós moldamos as coisas à distância, comunicamos as decisões em tempo real, tornamos
a democracia possível através delas. Nós também as usamos algumas vezes para evitar
confrontos diretos, para fugir do difícil debate de ideias, ou para expressar nossa raiva
de maneiras diferentes, para desabafar nossa frustração, para estar lá sem estar lá.
As mídias sociais e os grupos de whatsapp em particular também serviram
para preencher um senso de pertencimento, para compensar aquela cultura do
individualismo e aquele sentimento de isolamento que muitos, especialmente o precário,
o trabalhador zero horas, trabalhadores estudantes internacionais e os mais vulneráveis
sentem em nossa hiper competitiva, produtivista e implacável fábrica de salsichas136. A
mídia social ajudou-os e a todos a encontrar um lar, por mais tenso e contraditório que
fosse, havia um compartilhamento contínuo, e eu realmente não sei como voltaríamos à
normalidade das nossas frias, cínicas e mediadas (pelo fluxo interminável de e-mails
impessoais) relações de emprego. A mídia social é uma forma de voz coletiva que ainda
permite que o eu-grevista seja visível e invisível ao mesmo tempo.

Democracia (por) dentro e linhas de divisão: mulheres, trabalhadores


precários e migrantes

As mulheres certamente sofrerão mais com os cortes nas aposentadorias


simplesmente porque seus salários são mais baixos do que os dos homens e elas já têm
uma pensão menor quando se aposentam137. Mas há também outros fatores ligados à
duração e continuidade de carreiras mais curtas, lacunas nas contribuições

136
A autora refere-se à imagem sugerida por Marx, no Capital, quando o autor denuncia a subordinação
da atividade de ensino à logica capitalista a partir da mensuração quantitativa para determinação do valor
acadêmico. Quando a educação é mercantilizada, a produção do conhecimento assemelhasse à produção
de salsichas.
137
(http://www.leedsucu.org.uk/international-womens-day-ucu-women-on-strike/)

291
previdenciárias, menor oportunidade de promoção no retorno da licença-maternidade e
super-representação geral das mulheres em trabalho de meio período remunerado.
Todos esses aspectos fazem da disputa em torno da previdência uma luta pela igualdade
em nossas Universidades. Isso foi algo repetido várias vezes, e especialmente por
mulheres e mulheres de minorias étnicas e migrantes em nosso sindicato, ainda mais
desfavorecidas pela interseção da diferença entre raça e gênero, que são particularmente
altas no universo acadêmico do Reino Unido.
Outra questão importante durante o processo tem sido – sem surpresa – a da
crescente informalidade do setor de educação superior: enquanto muitos e mais
trabalhadores precários divididos em professores e pesquisadores fixos, horistas,
temporários participaram ativamente dos piquetes, assembleias e outras iniciativas
durante a greve, muitos, evidentemente, se perguntaram se a luta das pensões dos
colegas seniors, com maior segurança e melhor remuneração, teria se traduzido em uma
forma de solidariedade direta com eles como trabalhadores precários. As pensões não
são apenas uma questão para categorias protegidas ou para aqueles mais próximos da
aposentadoria, ao contrário, aqueles que têm mais a perder com as atuais reformas
previdenciárias são justamente os que ainda não têm condições de pagar o plano. As
pensões são o passado precisamente porque são sobre o futuro de todos e o direito à
proteção ao atingir a idade avançada, que é a fase mais frágil da vida humana, a
precariedade na forma mais pura. Embora tenhamos visto muitos trabalhadores
precários envolvidos principalmente com base na solidariedade e a greve operando
como uma oportunidade e um trampolim para desenvolver e organizar a voz do
precariado das universidades de várias formas, ainda não foi possível obter apoio
suficiente desses trabalhadores por parte das lideranças dos sindicatos. O fundo de greve
criado em Leeds, no entanto, deu um sinal claro de solidariedade a esses trabalhadores e
reconhecimento material de sua posição de maior vulnerabilidade. Infelizmente,
algumas outras "categorias" ainda se encontram indefesas em relação ao ataque ao seu
direito de participar plenamente da luta, desta vez devido ao seu status legal de
migrantes no Reino Unido.
Com efeito, agora que chegamos ao final desta primeira etapa da disputa, é
fundamental que, precisamente no campo da mobilidade e da migração, surja uma das
principais contradições da greve. Apenas nos últimos dias da greve, funcionários
internacionais com vistos de trabalho de todas as Universidades do Reino Unido
envolvidos na disputa são informados pelos sindicatos ou pelo departamento de RH de

292
suas Universidades de que seu direito de participar de outras ações pode ser dificultado
pelo fato de que a segurança de seu patrocínio e visto dependem de um número máximo
de 'ausências não autorizadas' após o qual o empregador é obrigado a relatar a licença
não remunerada ao Ministério do Interior (a diretriz diz: ―Para funcionários contratados
138
sob um visto Nível 2 , você deve estar ciente de que seu patrocinador é obrigado a
relatar a ausência não autorizada (como a greve), se continuar por mais de 10 dias
consecutivos. Isso não significa que seu visto será revogado, apenas que seu
patrocinador deve informar o departamento governamental apropriado‖). Os relatórios
dos empregadores, portanto, colocam a equipe internacional em risco de deportação por
ter ultrapassado a quantidade permitida de dias de licença não remunerada. No entanto,
a orientação sindical acrescenta,

‗Dar conselhos gerais não é simples, já que o pessoal contemplado com o


visto Nível 2 também não pode se ausentar do trabalho sem remuneração
por mais de quatro semanas (exceto devido à maternidade, paternidade,
licença parental compartilhada ou doença de longa duração) no total em um
ano, de 1 de janeiro a 31 de dezembro. Se você já tiver tirado um período
de licença sem vencimento por outras razões, precisará considerar se sua
participação na greve pode ultrapassar o limite permitido‖.

Ter ganhado abaixo do limite mínimo ligado ao seu visto 'Tiered' também
pode contar como uma barreira adicional para participar da ação grevista: como
explicado por uma das cartas enviadas ao sindicato pela equipe de migrante: ―Se os
nossos salários caírem abaixo do limite mínimo exigido pelos códigos SOC139 (a "taxa
de experiência") por qualquer motivo, o Ministério do Interior exige que a universidade
cancele o patrocínio do visto. No momento, esses limites são de £ 20.800 e £ 30.000
para ocupações específicas do Nível 2. Temos a preocupação de que vários funcionários
em greve já possam ser afetados, sem saber, por isso, após 14 dias de licença das
obrigações contratuais‖.
Embora ainda não tenha sido relatado nenhum caso de tal processo, como de
costume, até mesmo a experiência de estar sob ameaça de deportação e a consciência de
ocupar "as margens" revela muito mais do que uma exceção, ao contrário, elucida o
"elefante na sala‖ de toda esta disputa: a extrema fragilidade do direito de greve no

138
O visto Tier 2 contempla profissionais em empregos qualificados no Reino Unido; pessoas de fora do
Espaço Econômico Europeu (EEA) e da Suíça.
139
Standart Occupacional Classification (SOC) é uma classificação comum de informação ocupacional
para o Reino Unido.

293
Reino Unido. Apesar de não ser oficialmente protegida pela lei ou
"constitucionalizada", é apenas a participação em uma disputa oficial que protege os
trabalhadores da ameaça de demissão (em outras palavras, greves selvagens são
puníveis com demissão). Fazer parte de um sindicato só fornece algum tipo de garantia
a trabalhadores individuais em termos do direito a ser protegido em tribunal em caso de
uma ação disciplinar por parte do empregador por causa da participação em ação
grevista, mas de acordo com a lei britânica parece não haver máxima proteção absoluta
do direito de greve propriamente, que remonta à tradição muito desregulada, mas
também voluntária das relações laborais.
Assim, os caminhos para a vitimização de sindicatos ainda estão amplos e
abertos e, no momento, esta é uma realidade crua para os migrantes: no caso de não-
cidadãos sob controle de imigração, isto é, todos os migrantes de fora da UE – até agora
– dependentes de um visto para residir no Reino Unido, a dependência de seus direitos
coletivos sobre sua dependência econômica da permissão de trabalho e do patrocínio é
evidente. Esta "luta dentro da luta" testemunha de forma brutal o argumento há muito
exposto pelo conceito de "trabalho migrante" como sendo paradigmático do trabalho
precário de forma mais ampla, baseado no princípio da dependência ou circularidade
entre residência e trabalho (e participação sindical). Nesse caso, a ameaça tornou-se
mais tangível em termos de constituir um impedimento para participar do próprio ato
central da recusa dos trabalhadores: a interrupção legal do próprio trabalho.
A "maior greve da educação superior", em outras palavras, trouxe à tona a
violência cínica de uma lei que não tem medo de diferenciar abertamente entre cidadãos
e migrantes em uma questão fundamental como o direito à greve, que até agora parecia
ser protegido, pelo menos no papel, em termos do princípio da igualdade dos direitos
sociais coletivos na União Européia (ver Schiek et al. 2013) ainda protegido pela Carta
dos Direitos Fundamentais da UE. Infelizmente, o sindicato nacional demonstrou não
ter pensado nisso com antecedência e não estava preparado para proteger esses
trabalhadores. Somente nos últimos dias a ação de base começou a fornecer orientação e
compartilhar dicas para aqueles que desejam se envolver em uma nova greve. Eu cuido
disso!140

O local e o nacional: reivindicar o sindicato (e a democracia sindical)

140
Ver https://www.ucu.org.uk/uss-action-faqs#32

294
Ironicamente, as tensões locais em torno da democracia sindical interna
saltaram para o nível nacional, determinando uma nova fase da luta. No dia 28 de
março, os delegados de todas as universidades em greve reuniram-se em Londres para
indicar o que suas filiais queriam fazer à luz da última oferta da UUK141. Embora
inicialmente a proposta tenha aparecido como um avanço, uma vez que prometia a
criação de um novo ―painel de especialistas‖ conjunto que levaria uma nova
recomendação para a avaliação da pensão de novembro de 2017, o gatilho da greve, e
uma suspensão da situação até abril de 2019, logo os trabalhadores perceberam que a
oferta não continha qualquer coisa certa ou substancial em termos de garantias142,
nenhuma garantia sobre o princípio de nenhum prejuízo e nenhuma garantia de que o
resultado final não seria pior do que o presente. Além de nenhuma clareza sobre o
cronograma do comitê com vistas a influenciar o processo de avaliação real, sugerindo
que opções alternativas distantes de benefícios definidos podem ser introduzidas. Em
vez de levar em conta as muitas revisões e reapresentar as reivindicações, a executiva
nacional decidiu ignorar o processo democrático das filiais locais e convocar uma
votação com todos os membros para rejeitar ou aceitar a proposta. Embora a decisão
tenha sido julgada prematura por muitos, que acreditavam que se tratava apenas do
começo de uma negociação mais proveitosa quanto ao conteúdo, a Secretaria Geral da
UCU não esperou muito tempo para expressar sua opinião e recomendar a todos que a
aceitassem. Isso foi percebido por alguns como uma traição à democracia dentro do
sindicato, onde a ação foi denunciada publicamente como tal. Mas os membros não têm
medo de serem completamente desmobilizados, apenas de serem enganados porque
nossa luta é um ponto sem retorno.

Avante / Suspensão

14 de abril de 2018
No dia 13 de abril, a votação da greve foi encerrada. A maioria votou pela
aceitação da oferta da UKK no dia 23 de março, depois de várias solicitações do
secretário geral para acreditar na boa fé dos empregadores, aceitar a oferta e retornar ao
trabalho:

141
A UUK é a organização representativa das universidades do Reino Unido.
142
(https://medium.com/ussbriefs/why-which-way-to-vote-on-the-latest-uuk-proposal-should-be-an-easy-
decision-48e9d3f533cc)

295
Os membros participaram da consulta em números recorde, com uma
maioria clara de votos a favor das propostas. O sindicato percorreu um
longo caminho desde janeiro, quando parecia que as propostas dos
empregadores para uma pensão de contribuição definida seriam impostas.
Agora temos um acordo para avançar em conjunto, olhando novamente
para a avaliação do USS juntamente com um compromisso dos
empregadores para um garantido plano de benefícios definidos. A USS, o
regulador e o governo precisam agora garantir que o UCU e a UUK tenham
o espaço para implementar o acordo de forma eficaz ‖.

O resultado mostrou um grupo relativamente dividido (64% votaram a favor


da oferta da UUK, 36% a recusaram), mas ainda uma maioria disposta a seguir a
indicação de voto de liderança e expressar otimismo em relação ao que já foi
conquistado (em minha opinião não mais do que um adiamento do status quo até abril
de 2019, com uma mera e não melhor fundamentada ―palavra‖ do empregador de não se
afastar dos benefícios definidos de ―garantias de pensões amplamente comparáveis‖143)
O comparecimento às urnas foi de 63,5% e é, mais ou menos, a média, se não
mais; a ―maioria tácita‖ parcialmente se manifestou. Enquanto todas as ações planejadas
de greve estão suspensas, o UCU formalmente mantém o mandato de greve (que expira
em junho de acordo com as novas leis sindicais draconianas do Reino Unido que
exigem novas votações de todos os membros com pelo menos 50% de votos) até que o
plano e os reguladores cheguem a um acordo.
Tanto a greve quanto a ação após a greve foram canceladas, deixando os
membros, especialmente aqueles que permaneceram críticos em relação à oferta, em
estado de suspensão e insegurança sobre as conquistas reais de uma negociação que
parece ter sido gerenciada principalmente por trás de portas fechadas (ou melhor, pelo
telefone!) diretamente pelo Secretário Geral sem seguir um processo democrático claro,
onde os negociadores eram reponsabilizados por todo o processo. Esta crise de
democracia sindical está em contraste com a impressionante mobilização de base vista
nos piquetes.

143
Nas palavras da sede nacional do sindicato: ―Os empregadores também declararam que não pretendem
retornar às suas propostas originais para acabar com a pensão garantida, eles se comprometeram com os
benefícios definidos e concordaram em discutir uma ampla gama de questões apresentadas pelo UCU.
Estas incluirão justiça intergeracional, comparações com o Plano de Pensões dos Professores e o papel do
governo na prestação de apoio ao USS‖. É lamentável que o governo já tenha dito que não tem intenção
de se responsabilizar por nenhum elemento do plano e que essa comparabilidade com o TPS (Plano de
Pensão dos Professores) está longe de ser definida!

296
O que permanece suspenso não é apenas a greve, mas uma série de questões
para o funcionamento interno do sindicato que nestas últimas fases da negociação
revelou/confirmou sua abordagem de parceria para uma solução rápida e amigável para
a disputa e um compromisso fraco em escutar as propostas mais rígidas e as condições
de aceitação apresentadas pelas bases.
Como escrevi no meu post no facebook, este é o fim de uma fase (e realmente
nos atinge emocionalmente quando você sente que está de fato retornando aos padrões
normais de trabalho), mas ainda pode ser uma suspensão no meio de um processo que
irá continuar. E essa reinvenção do conflito no contexto universitário moribundo no
Reino Unido tem várias reverberações, muito além das questões ―ordinárias‖ de onde
começou. Cortes previdenciários, de fato, estão no cerne de processos mais amplos de
financeirização do nosso futuro, e é a outra face da precarização dos nossos termos e
condições. Realmente, as pensões têm a ver com a reprodução social e a transferência
do risco do empregador para o trabalhador através do mercado, é um padrão típico na
terceirização/redução dos ―custos de reprodução social‖ para o trabalhador.
Enquanto isso, e talvez mais importante, os grupos mais marginalizados no
movimento sindical e em nossas universidades se apresentaram: são mulheres
migrantes, pesquisadores/estudantes trabalhadores precários até agora com pouca voz
no sindicato do setor de educação superior. Assim, enquanto nos sentimos ―suspensos‖,
novos conflitos estão à nossa frente: ―a Universidade das Alternativas‖ (alternativa aos
nossos campi neoliberalizados/burocratizados/mercantilizados); a batalha pela livre
circulação e liberdade de greve para o pessoal internacional e migrante; o renovado
desafio à repressiva e enxuta organização universitária, onde muito mais pessoas estão
cientes dos aspectos unilaterais da tomada de decisão e onde a governança democrática
se torna novamente algo a ser recuperado. Esses processos surgiram organicamente e
não serão interrompidos, emergiram do meio de toda a pressão financeira e psicológica
que os grevistas têm sobre os ombros, sem falar das questões permanentes de como se
manifestar quando a greve afeta principalmente aqueles que você ama, aqueles com
quem você quer mudar o mundo. Apesar da gestão das universidades estarem tentando
transformar os alunos em oponentes no acordo contratual, ou meros agentes em uma
transação econômica cínica esvaziada de qualquer paixão pelo conhecimento, e
impulsionada pela avaliação impessoal dos resultados de aprendizagem, e apesar de
alguns terem vindo aqui pagando muito dinheiro ou mesmo endividando-se, para ainda
explorá-los pelo diploma = fábrica de salsicha, ainda queremos mudá-los e a nós

297
mesmos através da nossa experiência de luta e aprendizagem e, para eles, transformar o
mundo (e nossa universidade) em um lugar igual, justo e livre.

―Assim, a greve é cancelada. Por algum tempo. De volta para um tipo


diferente de trabalho. Os olhos atentos à liderança sindical e às nossas
estruturas, como dizem meus companheiros do sindicato de Leeds. E ainda
assim, muitas coisas que foram desencadeadas por essa luta não voltarão ao
normal: uma nova socialidade na Universidade neoliberal; processos de
auto-organização entre os colegas migrantes + precários; todos percebendo
que a greve, de fato tem um efeito; o apoio dos alunos quando não se
esperava /precisava para desafiar a falta de democracia na nossa uni
governança; as pessoas percebendo que não há democracia sem
participação e sem desafiar constantemente os gerentes da nossa
discordância‖. (meu post no facebook quando eu soube sobre o fim ou a
suspensão da greve).

298
A cidade enquanto sistema logístico

Niccolò Cuppini144
Tradução por Bruno Cava

Estamos atravessando um momento histórico que é paradoxal e contraditório de


muitas maneiras. Exemplo disso é que o aumento frenético das conexões planetárias
caminha lado a lado com a incessante multiplicação das fronteiras. Para tentar
compreender, ao lume crítico, as dinâmicas que têm definido esta fase de transição, é
preciso propor novos ângulos e perspectivas analíticas. Sinteticamente, este texto tenta
fazer uma leitura dos processos atuais de globalização on the ground, adotando a cidade
e a logística enquanto lentes, com vistas a indagar sobre um projeto de transformação, o
qual, embora esteja em curso já há algumas décadas, está passando despercebido.
Destino estranho esse, os processos de produção e consumo geralmente são levados ao
centro da reflexão, mas isso raramente é o caso quanto aos processos de circulação. Eles
são, apesar disso, estratégicos e decisivos do sistema capitalista.
É como se os fluxos de mercadorias estivessem se movendo através de
infraestruturas ―invisíveis‖, transportando todo tipo de produto diretamente às casas.
Hoje, isso acontece mais do que nunca, graças a empresas como a Amazon e às
plataformas digitais. Elas estão expandindo, de um modo velocíssimo, uma nova
fronteira a partir da internet (e-commerce), que se manifesta com a velocidade de um
clique até as nossas portas, tudo graças a um contínuo incremento e potencialização dos
sistemas logísticos. O processo está realmente revestido de um tipo de magia,
conduzindo a possibilidades inéditas de distribuição e consumo de mercadorias.
Raramente, é feita a pergunta: como é que elas chegam concretamente às casas? E no
entanto é relativamente simples reconstruir as rotas, os trajetos globais, fluxos e hubs de
transporte, as infraestruturas grandes e pequenas e, sobretudo, a força de trabalho global
que desloca concretamente as mercadorias, carregando e descarregando-as dos
containers, colocando-as sobre esteiras num ciclo contínuo nas lojas da Amazon,
organizando e classificando os produtos, operando os mais variados veículos – até o
surgimento dos ditos riders, que de bicicleta fazem a entrega a domicílio.

144
Niccolò Cuppini é pesquisador ligado à Scuola Universitaria Professionale della Svizzera Italiana
(SUPSI), doutor em Política, Instituições, História, pela Universidade de Bolonha. É redator da revista
Scienza e Politica e do portal de movimento Infoaut.org. Sua área de interesse abrange estudos urbanos,
logísticos e movimentos sociais.

299
Essa lógica logística cada vez mais se torna a tendência do sistema econômico
atual, suplantando aquela outra que, há anos, vem se manifestando (também) como crise
produtiva, devido a uma procura louca por vender sempre mais mercadorias e sempre
mais rápido. E isso traz consigo um impacto profundo sobre a organização urbana. Se,
realmente, já há quase trinta anos, Saskia Sassen trazia à baila a feliz ideia da ―cidade
global‖, como trama interconectada de centros financeiros e de serviços em escala
planetária (em seu livro de 1991, a autora falava em particular sobre Tóquio, Londres e
Nova Iorque), hoje um dos paradigmas emergentes para interpretar as formas atuais do
urbano está indo na direção da dita ―urbanização planetária‖, que indica a progressiva
redescoberta de uma Terra feita de tecidos urbanos, ligando infraestruturalmente os
grandes centros metropolitanos com os lugares de extração de matérias primas, as rotas
de transporte continental e oceânico com a nuvem de poeira de urbanização difusa que,
vista à noite desde os satélites, faz resplandecer de luzes artificiais áreas cada vez
maiores da superfície terrestre. Esses densos conjuntos luminosos são o sinal mais
evidente de uma poderosa infraestruturação urbana, pensada para fluidificar os
transportes de mercadorias sob o signo da intermodalidade – palavra mágica do léxico
logístico, que indica a capacidade de transportar os produtos o mais rápido possível e
sobre as mais diversas espacialidades. O símbolo disso tudo é o contâiner, que hoje
deve poder ser levado de uma parte a outra do globo sem interrupções, devendo ser
transportado just in time and to the point: sobre trens de ferrovias intercontinentais,
navios cargueiros em rotas transoceânicas, infinitas autoestradas, modal aéreo etc. Essa
urbanização planetária representa, noutras palavras, uma imensa trama logística, que
liga a humanidade aos territórios graças a novas e velhas tecnologias (dos cabos de
internet no fundo dos oceanos às ferrovias), e ao sempre mais rápido e amplo
deslocamento de mulheres e homens, mercadorias e capitais. Tais cartografias
emergentes nos levam mesmo a falar do fim da geografia, em prol de uma nova
connectography (Parag Khanna), isto é, um modelo em que estaria definitivamente
destinada a desaparecer a importância das fronteiras estatais em desuso, em prol de um
novo sistema agora baseado, precisamente, sobre as ligações logísticas, essas que,
tendencialmente, cada vez mais, vinculam as megalópoles globais, as novas cidades-
estado. A partir desse movimento de grandes proporções, as Nações Unidas decretaram
que, a partir de 2007, nos encontramos numa nova ―época urbana‖. Claro que a ideia do
―fim do Estado‖ é velha e, além disso, sumamente problemática – ainda mais num

300
momento histórico em que as fronteiras vem se multiplicando. Não cabe aqui entrar
nesse debate. Voltemos à cidade para firmar uma premissa.
Embora o capitalismo se caracterize desde a origem por sua extensão global, não
deixa de ser verdade que, até poucas décadas atrás, a maior parte da população
consumia mercadorias que deviam ser produzidas, distribuídas e consumidas em áreas
que, no máximo, estavam circunscritas em algumas centenas de quilômetros quadrados
(exceção às matérias primas e algumas classes de mercadorias, principalmente as ―de
luxo‖, que chegavam pelos portos, ―lugares globais‖ por excelência). Hoje, os mercados
e os negócios de produtos ―a zero quilômetro‖ são, em vez disso, uma exceção em
relação à maior parte das mercadorias ―made in China, Índia, Bangladesh etc‖,
transportadas globalmente por algumas multinacionais poderosas, como a Maersk, e
adquiridas cada vez mais nos grandes supermercados e pela internet.
A cidade é um fato histórico e existiram dela diferentes gerações, estratégias e
tipologias. Se foi a cidade industrial que deixamos para trás, aquela dividida
funcionalmente em bairros fabris, bairros-dormitório, lugares de lazer etc, o que hoje
está se delineando é um tecido urbano cada vez mais ―logistificado‖, fluido, maleável e
entretecido, cujos ritmos são compassados por meio da inscrição de múltiplas
infraestruturas (virtuais ou ―materiais‖) que servem aos fluxos globais (de mercadorias
ou capitais, de turistas ou formas produtivas cada vez mais ancoradas no ―território‖).
Uma lógica generalizada que atualmente organiza os territórios, qualquer que seja a
escala em que se analise. De fato, para dizê-lo melhor, se olharmos ―com os olhos da
logística‖, a dicotomia local/global perde bastante de sua eficácia explicativa, nos
empurrando para a busca de uma nova imaginação do espaço que vá além da
hierarquização de escalas geográficas, a fim de comrpeender as dinâmicas de
transformação em curso. Nesse sentido, a logística acaba sendo uma lente analítica
particularmente produtiva para a compreensão da ―constituição material‖ dos processos
de globalização.
Ora, se a ―cidade global‖ se acha difusa e articulada de maneira inédita, não se
podendo mais limitá-la somente aos pontos de concentração do poder financeiro, é
necessário assumir uma dinâmica mais complexa para a urbanização planetária, a fim de
compreender como hoje toda cidade está se tornando um grande hub para a circulação e
o consumo de mercadorias, lançando um campo de pesquisa inédito e que vale a pena
ser percorrido. Se, já há três ou quatro décadas, os grandes supermercados e centros
logísticos, assim como os interportos, contribuíram de maneira decisiva para o

301
esgarçamento das antigas fronteiras urbanas, estendendo-lhes o horizonte para bem mais
longe do que os seus perímetros históricos originais, seguindo-se ao fenômeno de
extrapolação territorial que, nos estudos urbanos americanos, recebeu o nome de sprawl
e de criação de suburbia; hoje se deve acrescentar a essa lógica extensiva um
movimento intensivo. A intermodalidade não se refere unicamente às grandes
infraestruturas e hubs logísticos, mas está se impondo também nos lugares urbanos
―centrais‖, que doravante devem estar à altura para poder atrair e gerir melhor os fluxos.
Não por acaso, os arquitetos também começam a discutir como ―aprender com a
logística‖ (veja-se a esse respeito o livro Learning from logistics), para projetar prédios
alinhados com a fluidez.
Mas de onde se origina essa matriz de racionalidade logística? Sobre o assunto,
se podem sugerir alguns traços genealógicos, para mostrar como a logística
contemporânea está emaranhada, num duplo laço, com o urbano. Se, realmente, os
estudos históricos sobre a logística permitem traçar-lhe as linhas de gênese na
modernidade no trato oceânico dos escravos e nas mudanças necessárias para o
provimento dos exércitos das campanhas militares dos primeiros conflitos inter-estatais,
a partir da segunda metade do Oitocento; por outro lado, as técnicas e os saberes para a
mobilidade desenvolvidos em escala oceânica e estatal/continental começaram a ser
testados somente na cidade. O caso icônico disso foram as grandes obras de
transformação de Paris realizadas pelo Prefeito do Senna Von Haussmann. Depois do
ano de 1848, a capital francesa teve de ser radicalmente reconstruída, mediante a
destruição da cidade antiga para dar vida a um plano metropolitano que funcionaria
como modelo para muitíssimas outras cidades pelo mundo, da Europa à América
Latina. O imperativo mor de Haussmann consistiu em desintegrar o emaranhado
intrincado de ruas e prédios embolados dos bairros populares, que haviam servido de
cadinho para as insurreições, a fim de fazer de Paris um plano moderno, composto por
grandes boulevares voltados à circulação de mercadorias, tropas, veículos e pessoas,
sem mais nenhuma barreira. Essa é exatamente uma lógica logística que encontrou um
correspondente no novo plano urbanístico. Mais ou menos por aí, nos mesmos anos,
será aprovado um plano para Barcelona, sob o projeto de Idelfonso Cerdà, um outro
modelo tipológico que depois seria sucessivamente replicado em muitíssimos outros
contextos, organizando a estrutura urbana a partir da lógica da circulação desimpedida,
e deixando a possibilidade de uma expansão indefinida.

302
Mas não somente o que começava a se tornar uma produção industrial do urbano
se desenvolveu por linhas logísticas. Pode-se dizer que essa seja, na verdade, ela própria
uma lógica logística, caracterizada pela sincronização do tempo e por uma organização
do espaço que conduz à estruturação das cadeias de produção, típica dos sistemas
produtivos do Novecento. Estamos falando dos matadouros que, na Chicago movida a
cavalo dos séculos 19 e 20, atingem uma forma industrializada e, exatamente, se
organizam segundo uma cadeia de produção. Max Weber também as observou com
estupor, em sua viagem à América, anotando como Chicago, entre os demais centros,
era o mais insano exemplo de ―explosão‖ de uma metrópole. Em pouquíssimas décadas,
realmente, a cidade estoura de vilarejo para uma metrópole de milhões de habitantes,
graças à interconexão global do sistema de transporte sobre a água, o que permite
transportar os produtos com grande velocidade e amplo alcance, também devido à
conclusão da obra da ferrovia intercontinental (que se deu em Utah, em 1869), e ao
afluxo de enormes massas de imigrantes vindos sobretudo da Europa. Justo em Chicago
é que foram construídos os primeiros arranha-céus e se estrutura a sociologia urbana.
É exatamente a ―abertura‖ logística o que inaugura a metrópole moderna em
diferentes latitudes. A cadeia de produção fordista/taylorista e a grande fábrica serão a
passagem ―sucessiva‖ que inaugura um novo sistema produtivo e uma nova estrutura
urbana. Porém, novamente, é a logística quem realiza a passagem seguinte. Nos anos
1960 e 70, a grande fábrica e a cadeia de produção acabam entrando em crise, em face
de uma profunda insubordinação da força de trabalho, que usa a seu favor o fato da
rigidez do sistema produtivo e a sua dependência por uma grande concentração de mão
de obra. A reestruturação que vem a seguir é definida hoje por vários autores como
logistics revolution. Trata-se do desmantelamento da grande fábrica, que passa a
derramar-se sobre o território em escalas cada vez maiores. A concentração dos vários
departamentos num único ponto é substituída pela interconexão logística do processo
produtivo, agora encadeado com a produção de valores, e que começam a projetar-se
sobre o território em nível global. Como consequência, a cidade ocidental inicia a sua
trajetória de ―grande transformação‖, não apenas em virtude da desindustrialização que
deixa amplas áreas abandonadas, mas também pela proliferação de pequenas empresas e
lojas, os novos interportos e redes viárias, que ampliam indefinidamente o tecido como
um todo. Se a isso somarmos a virada japonesa ao toiotismo, ao redor da ideia do just in
time e dea maximização dos sistemas de distribuição, chegaremos novamente à nossa
situação hoje.

303
Os complexos panoramas territoriais de hoje – em relação aos quais parecem
faltar chaves de leitura adequadas dos mecanismos e trajetórias de desenvolvimento –
podem ser melhor compreendidos numa perspectiva logística, ou seja, em termos
genealógicos ou por meio de uma leitura da morfologia urbana atual. É de particular
relevo refletir sobre o contínuo risco que define uma das maiores incubadoras do
sistema logístico: os choke points¸ os gargalos que podem se formar em todo lugar e
pelos mais diversos motivos (desde carências infraestruturais a perturbações naturais, de
greves e piquetes a conflitos geopolíticos), interrompendo o sonho de mobilidade
incessante dos fluxos. A conectividade sem interrupções para o transporte de
mercadorias pela via terrestre, marítima ou aérea – adequando o território aos padrões
internacionais – de fato sofreu numerosos percalços nos últimos anos, originados
frequentemente por fatores subjetivos e conflitivos. Pense-se, por exemplo, no
significativo ciclo de greves que têm antagonizado o setor logístico na última década
(veja-se a propósito Choke points; logistics workers disrupting the global supply chain,
organizado por Jake Wilson e Immanuel Ness); ou na recente mobilização de riders em
escala europeia; ou então nas lutas extremamente radicais e duradouras contra projetos
logísticos como de um aeroporto e linha ferroviária de alta velocidade, o ZAD francês
ou TAV italiano (vide Zad and no Tav, Kristin Ross, Verso Books). Pense-se, ademais,
em como o movimento Occupy insistiu muito nos Estados Unidos no bloqueio de portos
(em particular, em Oakland e Los Angeles) – o que foi retomado no bloqueio do porto,
durante o G20 em Hamburgo, em 2017; ou em como o objetivo de muitas das
acampadas de praças de 2011-13 foram, no fundo, elementos também de interrupção
dos fluxos metropolitanos, ocupando e bloqueando importantes lugares de passagem da
mobilidade urbana, da Praça Tahrir em Cairo à Puerta del Sol em Madrid, passando por
praça Syntagma em Atenas até chegar na praça Taksim, em Istambul. Nessa
perspectiva, deve ser considerado, além disso, o conflito travado por imigrantes em
numerosas zonas de fronteira, do México com os EUA à fronteira do Mediterrâneo,
onde a resposta dos governos vem se delineando no interior de uma lógica e de uma
linguagem técnica tomadas diretamente do léxico logístico, a seguir voltadas à gestão
das migrações, que deveriam ser governadas através da regulação dos ―fluxos‖.
Essa série de conflitos parece fazer surgir um campo complexo de choques que
se articulam, sobretudo, a partir do terreno da circulação e de ―quem decide‖ a respeito
dos ritmos e da definição do tempo social. Não à toa, uma constelação variada do
pensamento crítico está se batendo com esse tema: pense-se num autor como Joshua

304
Clover (Riot, strike, riot), que convida a pensar em termos de circulation struggles
[lutas da circulação]; nas reflexões sobre a ―contra-logística‖ desenvolvida, por
exemplo, por James Barnes (Logistics, counter-logistics, and the communist prospect),
ou então na plataforma europeia Social Strike [greve social]; na ênfase que ―O poder é
logístico: bloqueemos tudo!‖ (capítulo do livro Aos nossos amigos), do Comitê Invisível
francês; ou na grande atenção orientada à logística por pensadores pertencentes a
tradições teóricas heterogêneas, que vão do operaísmo ao situacionismo e ao
anarquismo, até alcançar finalmente o mundo acadêmico, com inúmeras contribuições
nos últimos anos, que conseguiram sequestrar a logística do domínio exclusivo das
engenharias e dos estudos dos transportes para fazer dela um objeto para as ciências
sociais e humanísticas.
É nessa direção que se pode então situar a logística, como matriz de produção
urbana e de novas espacialidades, como um processo permanentemente em contestação
e disputa, característica que, aliás, é distintiva à gênese da cidade desde a sua origem. É,
portanto, a essa dupla e ambivalente face da logística que se deve hoje olhar, a fim de
questionar as mutações urbanas, o seu desenvolvimento trans-escalar associado à
circulação e ao consumo de mercadorias, tudo isso que faz da cidade um hub; e sem
deixar de enxergar a série de conflitos que vão surgindo ao longo desse processo.

305
Freed from desire: por uma primavera de greve social145
Plataforme d'enquetes militantes146
Traduzido por Uninômade

A primavera de 2018 foi aberta por um novo processo de mobilização social,


potencialmente importante pelo número de setores envolvidos, pela posição ocupada
por alguns deles na esfera da produção, pelas questões continentais suscitadas e por sua
inscrição no contexto das relações de força europeias. No calor das primeiras
manifestações massivas dos.as ferroviários.as, das dinâmicas de resistência sindical, da
entrada de outros setores na luta e da ocupação de várias universidades em todo o país,
gostaríamos de indicar algumas propostas de análise.

Conjuntura atual

Após a derrota do verão de 2016, a vontade de consolidar os nós de auto-


organização em alguns espaços não chegou ao fim, mesmo considerando a insistência
das centrais sindicais em apenas se limitar à estratégia centrada na defesa das garantias e
direitos sociais subsistentes. A mobilização contra os decretos referentes à segunda Lei
Trabalhista revelaram, de um lado, sua incerteza tática (por exemplo, perante as
tentativas de apropriação política por parte de Mélenchon) e, de outro, dificuldades
relacionadas ao conflito de rua experimentadas pela linha de frente das manifestações
(onde a ritualização repetitiva parece ter tomado o lugar da eficácia, principalmente
diante da reconfiguração do dispositivo repressivo).
Por conseguinte, o poder parece ter conquistado uma espécie de ―carta branca‖:
posteriormente aos decretos, as agressões governamentais se multiplicaram sem
qualquer constrangimento, sob a forma de uma verdadeira ofensiva geral. A Lei
Trabalhista 1 (que significa aprofundamento da precarização do mundo do trabalho e
ataques dirigidos contra os sindicatos e contra os salários) e a Lei Trabalhista 2
(desmantelamento dos direitos sociais e ataque contra o salário indireto) preparam o
terreno para operações mais focalizadas que integram o mesmo pacote: diminuição do
subsídio de aluguel (APL), redução drásticas nos contratos de trabalho subsidiados

145
Originalmente publicado em Plataforme d‘Enquêtes Militantes – Disponível em:
http://www.platenqmil.com/blog/2018/04/09/freed-from-desire–pour-un-printemps-de-greve-sociale
146
http://www.platenqmil.com/

306
(onde o empregador recebe um estímulo financeiro que reduz o peso da contratação),
fiscalização dos desempregados para que sejam mais ―ativos‖ na busca de emprego,
revisão administrativa das aposentadorias, reforma do modo de ingresso na universidade
(estimulando a hierarquização e a seleção), nova legislação restritiva sobre o direito de
asilo e amplo projeto de privatização do setor público.
Trata-se de um programa que deriva não apenas das aspirações de Macron com
relação à liderança europeia, mas que responde ao mesmo tempo às expectativas
neoliberais. Como a França está atrasada com relação à maioria de seus vizinhos
europeus em termos de esfacelamento das conquistas sociais, desmontar um dos últimos
resíduos do movimento operário tradicional e, portanto, do Estado Keynesiano,
possibilitaria a Macron: 1) se promover como novo modelo político diante de seus
aliados europeus; 2) acelerar, em seguida, a desestruturação geral, uma vez admitida a
caducidade dos sindicatos nos setores outrora mais protegidos.
O combate iniciado por Macron contra os.as trabalhadores.as do transporte
férreo poderia ser equiparado a um all in, lembrando os conflitos dos anos 1980 entre a
administração Reagan e os pilotos de avião, ou entre Thatcher e os trabalhadores das
minas. A luta referente ao estatuto jurídico dos condutores de trem e ao futuro da
empresa pública que gere o sistema férreo (SNCF), constitui, nesse sentido, um ponto
de virada com relação ao período que nos seguirá: o desfecho, seja ele qual for, levaria a
uma mudança profunda nas relações de força em escala europeia – a derrota sendo
determinante para o sucesso do projeto neoliberal; a vitória podendo abrir um novo
ciclo de mobilizações.

Perspectivas de luta

O clima de efervescência social que perdurou de modo intermitente desde junho


de 2016, contribuiu para a construção das condições materiais e organizacionais do
movimento que há algumas semanas começa a se expressar. Elas, atualmente,
conduzem à articulação de duas dinâmicas complementares: eficácia imediata da
oposição ao governo e trabalho de construção, no médio prazo, de terrenos de
autonomia, isto é, espaços para a experimentação de contra-instituições não soberanas e
anticapitalistas.
A mobilização que se configurou soube enfrentar, nas últimas semanas, dois
obstáculos: os ataques de milícias fascistas contra as ocupações, e os tipos de

307
instrumentalização midiática e administrativa relacionadas à situação. A continuação do
conflito por meio de sua auto-organização permitiu ao movimento superar tais
apropriações, produzindo uma inversão no conjunto de informações que é capaz de
construir uma narrativa potencialmente hegemônica, especialmente através do recurso a
imagens e a intervenções/falas anônimas. Trata-se aqui de uma ruptura salutar com a
formação sistemática de líderes que foi observada nos movimentos precedentes.
A necessidade de agir na direção de uma proliferação e uma conexão dinâmica
entre os diversos focos de luta – mais do que no sentido de uma abstrata ―convergência‖
de todos os conflitos sociais – é atualmente evidente. Mas o desafio que as presentes
manifestações enfrentam continua a ser ampliar cada um desses polos, articulando-os as
suas necessidades específicas e a seus potenciais de proliferação. Elas passaram a
confrontá-lo, ao que parece, pela prática ampliada e informal das pesquisas-intervenção
– uma forma de copesquisa difusa que é encontrada nas recentes e permanentes
conjunções entre estudantes, ferroviários.as, trabalhadores.as dos hospitais e da logística
– e que estão sendo conduzidas, por exemplo, a partir da Comuna de Tolbiac
(campus Sorbonne) ou nas assembleias gerais que se reúnem nas estações de trem.
É que a manifestação dos ferroviários – levando em conta o seu impacto
econômico e suas repercussões gerais – desencadeia uma dinâmica que ultrapassa os
limites corporativos, alimentando outros focos de lutas entre os (as) trabalhadores (as)
ou nas universidades. O tecido que é assim composto nos lembra que as diversas
medidas fazem parte de uma mesma governança, a saber: que não haverá destruição
completa dos direitos sociais sem reforma meritocrática da educação nacional, nem
flexibilização do mundo do trabalho sem uma certa gestão das fronteiras e, por
conseguinte, da força de trabalho migrante. No espaço dos diferentes encontros que
mencionamos, a prática da copesquisa confirma, em especial, uma potencialidade que
deveríamos intensificar: a produção de um saber político apto a fortalecer a organização
das lutas e sua coordenação horizontal. Os ferroviários, por exemplo, conhecem o
funcionamento da rede, e sabem quando, onde e como atingir a malha para melhor
bloquear ou desestabilizar todo o conjunto do transporte férreo. Uma saber prático
poderia então ser forjado com condições de se transformar em uma fonte de iniciativas e
de ações. Quanto às ocupações universitárias, elas já fornecem um apoio material às
diferentes greves e operações de bloqueio, contribuindo assim para romper com a
estratégia de isolamento dos(as) trabalhadores(as) conduzidas pelo governo.

308
Em direção a uma greve social

A combinação das dinâmicas mencionadas desenha para as próximas semanas


um horizonte de socialização da greve: uma greve social que consiste em uma
pluralidade de sujeitos em greve e uma multiplicidade de práticas de luta. Nesse
contexto, a logística (ou seja, o setor de circulação e deslocamento de mercadorias e
pessoas) parece determinante. Os ferroviários são certamente o alvo principal do
governo, e a subjetividade em luta mais forte e mais organizada. Mas a logística não se
limita apenas às linhas ferroviárias: ela se estende nas diversas ramificações das
metrópoles produtivas, através das avenidas, das autoestradas que conectam umas às
outras, os portos e aeroportos, os entrepostos de distribuição etc.
O devir social da greve pode, portanto, se expressar pela generalização da
prática dos bloqueios, da amplificação das assembleias, da interrupção do fluxo do
tráfego de pessoas e de mercadorias: em resumo, como uma greve logística da qual se
trata ainda de encontrar uma vertente positiva, um conjunto de práticas afirmativas e
imediatas de auto-organização que ela poderia aplicar nos moldes das ocupações
universitárias.
Além disso, a crítica do ensino que emerge nas ocupações, bem como a
participação nas lutas do precariado existente na universidade, demostraram que ela não
é um santuário de um pretenso trabalho intelectual separado claramente do trabalho
manual. A universidade já está, na verdade, imersa nas redes logísticas da metrópole –
ainda mais intensamente nos casos dos campus situados nas periferias – e representa o
lugar de formação dos sujeitos precários. As universidade ocupadas e autogeridas, polos
de afirmação de subjetividades em ruptura, estão inclinadas, sob essa perspectiva, a se
constituir como centros de acumulação de forças e pontos de partida de ações de
bloqueio: lugares de concentração difusa da mobilização. A greve social se
transformaria aqui em uma greve positiva, afirmação e autogestão da vida comum. A
sabotagem à aplicação técnica da seleção (via plataforma Parcoursup), discutida nas
assembleias de estudantes e de precários, se refere também à possibilidade concreta de
passagem de uma simples oposição à reforma a uma prática-outra de universidade,
aquela aberta e crítica: uma universidade do comum, para além do público e do privado.
Em suma, se os bloqueios e as ocupações constituem atualmente as fortalezas que estão
sob risco de serem sitiadas, os (as) trabalhadores (as) passam a buscar o apoio dos
ocupantes para melhor defendê-las. Trata-se, portanto, de fazer transbordar bloqueios e

309
ocupações no interior das metrópoles e de suas redes, de sabotar todas as formas de
seleção e estratificação em um mesmo movimento de afirmação.

310
Memória e poder: os nomes que as coisas levam
Murilo Duarte Costa Corrêa147

Introdução. – Este ensaio tem por objeto analisar alguns dos pressupostos
conceituais que dirigem as práticas e os movimentos sociais que reivindicam a
alteração de nomes de monumentos, logradouros públicos, praças, prédios etc. Trata-
se, geralmente, de movimentos de caráter minoritário, organizados em torno de
demandas coletivas que se baseiam em estratégias de reparação simbólica e histórica
de malfeitos passados, e que desempenham uma função política que poderia ser
descrita à primeira vista como setorial e localizada. Seus traços fenomênicos mais
imediatos, no entanto, parecem agenciar-se com demandas de mais largo espectro e
duração (cf. Corrêa, 2014). A fim de investigar que categorias e conceitos
ontológicos, sociais, políticos e simbólicos que são mobilizados por essas
reivindicações, propomos extrair, segundo o método indutivo, as relações entre o
nome, a memória (ou o real)148 e o poder que subjazem à disputa política relacionada
ao nome dado ao bairro. A partir de um estudo de caso deflagrado por uma
intervenção artística no espaço urbano, descrevemos transversalmente, e com as
contribuições de áreas como o direito, a filosofia – especialmente, a de extração pós-
estruturalista –, a teoria da história, a teoria social e a teoria política, as relações,
insuficientemente descritas na literatura, entre os nomes atribuídos às coisas e
lugares, e entre a memória e o poder. Isso permitirá responder a quatro questões que
gravitam em torno do problema ―do nome que as coisa levam‖, e da conveniência
democrática de sua eventual alteração: (1) O que faz com que os nomes das coisas
(bairros, praças, monumentos, logradouros públicos etc.) tornem-se um elemento
central em uma disputa política sobre a memória, ou o real do passado?; (2) Mudar os
nomes muda algo? (3) O que ocorre quando se muda o nome que uma coisa leva? (4)

147
Professor Adjunto de Teoria Política (UEPG). Doutor (USP) e Mestre (UFSC) em Filosofia e Teoria
Geral do Direito. Graduado em Direito (UFPR). Entre 2016 e 2017, realizou estágio de pós-doutorado na
Vrije Universiteit Brussel – Bélgica. É Professor permanente do Programa de Pós-Graduação em Ciências
Sociais Aplicadas (UEPG), junto ao qual coordena o LABTESP – Laboratório de Pesquisa
Interdisciplinar em Teoria Social/Teoria Política e Pós-Estruturalismo. Co-organizou O estado de exceção
e as formas jurídicas (EdUEPG, 2017) e Pensar a Netflix (D‘Plácido, 2018). Publicou, entre outros
livros, Direito e Ruptura: ensaios para uma filosofia do direito na imanência (Juruá, 2013) e Filosofia
Black Bloc (Circuito, 2018).
148
Para compreender a aproximação conceitual entre memória e real, cf. o item 3.

311
O que significa afirmar que a memória é um direito minoritário, ou um direito menor?
Essas quatro questões, uma vez enfeixadas, constituem o problema ao qual se
pretende responder. Para tanto, propomos um diagnóstico que parta de uma avaliação
das sensibilidades sociais tensionadas ao redor do Movimento pela Mudança do nome
do Bairro Costa e Silva, na cidade de Joinville, no Estado de Santa Catarina:

Vocês são ridículos! Eu vou lá retirar todas as cruzes que


colocaram num parquinho de crianças, onde as crianças
brincam... eles não precisam ver esse tipo de "obra" ridícula e
desnecessária! Vou fazer a minha intervenção artística lá e
remover tudo e colocar flores, absurdo!!!

Ok, os ditos "ditadores" já estão todos mortos, não irão


"torturar" mais ninguém! Se vc não foi torturado, perdeu sua
chance, já era, sem indenização... Agora voltando para 2017,
tem uma classe política inteira TORTURANDO o seu
dinheiro, o seu país e o seu futuro, se a página for realmente
apartidária, não quero acusar ngm, tem outras prioridades para
mudar esse mundo horrível em que vivemos, se a página for
tendênciosa, isso o tempo mostrará, eu quero lhes dizer que
estão sendo usados pela atual classe política, e estão
contribuindo para que essa desordem continue!!

O congresso foi quem cassou João Goulart e elegeu Castelo


Branco dias depois tudo após pressão da sociedade, não foi
disparado um tiro quando os militares tomaram posse, que
ditadura é esta que toma o poder sem um único tiro e devolve
a democracia da mesma forma, todos os anistiados estão hoje
aí livre s soltos na política assaltando so cofres do país, era
isto que desejavam na época, este é um movimento dos
doutrinados da esquerda que na falta do que fazer precisarm
dar um sentido para a vida desocupada. Sem mais

Invés de ficar fazendo página no Facebook e pedindo para


pessoas curtiram e seguirem um movimento ridícula desse,
fazerem uma movimento para pedir melhoria na
pavimentação dessa cidade que tá uma porcaria! Estão

312
literalmente procurando pelo, em ovo de galinha.
Somente vagabundos e/ou ignorantes irão apoiar um
movimento esquerdista desses. O regime militar foi o período
em que o país mais cresceu...é só perguntar para uma pessoa
decente que viveu nessa época. Faltam mais homenagens aos
nossos queridos militares. Vão carpir um terreno e deixem
nosso bairro em paz!!! (Página do Movimento para mudar o
nome do bairro Costa e Silva, 2017).

1. Carpindo o terreno

O que acabamos de ler são cinco comentários postados na página do


Movimento Muda Costa e Silva no Facebook. Alguns deles são reações a uma
intervenção simbólica promovida em meado de maio de 2017, na praça da rua
Inambú, por Geruza e Jones Longaray, chamada ―434: Sob o Olhar de Costa e Silva‖.
Outros são juízos de valor sobre a legitimidade e a utilidade dessa demanda. Existem,
também, comentários de outro teor, muito positivos. Concentro-me, no entanto,
nessas reações porque, nelas – pelo avesso –, tudo parece estar dito: está a indignação
moral com a exposição das crianças ao fato bruto das mortes e dos desaparecimentos
forçados – o que deveria nos fazer recordar as sevícias físicas e psicológicas
cometidas contra crianças e adolescentes por agentes da ditadura (CNV, p. 426-432),
e que jamais cessaram de ocorrer em instituições de internamento para jovens; está o
engodo histórico sobre a legitimidade democrática do golpe civil-militar e
empresarial de 1964, ou sobre o caráter inofensivo daquelas torturas e mortes que
parecem ter ficado no passado – mas que mantêm uma relação direta com as 3.345
pessoas mortas por policiais em 2015 (HRW, 2017, p. 139), ou com os 5.431 casos de
tortura denunciados entre janeiro de 2012 e junho de 2014 à Ouvidoria Nacional de
Direitos Humanos (HRW, 2015, p. 116); aqueles comentários expõem, também, a
relação indemonstrável entre a demanda pelo direito à memória e uma alegada
conivência com práticas de corrupção atuais, fazendo supor que a corrupção é uma
prática partidária, localizada e recente – mesmo contra as descobertas mais evidentes
da Lava-Jato – para ficar em um exemplo –, que demonstram não apenas que essas
práticas já se encontravam estruturadas nos espúrios convênios entre Estado e
Mercado durante a ditadura (Campos, 2014), mas que a prática de corrupção é tão

313
sistêmica e difusa quanto a própria economia de mercado; ainda, enunciam que o
movimento pela mudança do nome do bairro Costa e Silva: (1) é ideologicamente
orientado (―doutrinado‖) à esquerda, o que o deslegitima politicamente a priori; (2) é
insensível às demandas realmente importantes (como a pavimentação urbana), o que
o torna inútil; (3) ―contribui para que essa desordem [que veríamos no Brasil hoje]
continue‖. Três argumentos que, lidos em conjunto, fazem eco a uma sensibilidade
social própria a tempos que nos parecem distantes. O primeiro visa a desqualificar
politicamente uma demanda de restauração simbólica e democrática; o segundo
define a importância capital de reivindicar ―ruas bem asfaltadas‖, o que remete a todo
um imaginário econômico desenvolvimentista, vinculado à indústria petroquímica e
automobilística, às empreiteiras, bem como ao culto dos carros de passeio como
modo exclusivo de acesso à cidade; o terceiro dá, finalmente, o nome a todos os
demais argumentos, e parece definir a boa política em função das suas contribuições
para a ordem supostamente desejável. Cada um dos argumentos que li está conectado,
a seu modo, com uma ordem das coisas e com uma ordem das sensibilidades sociais;
reivindica sua manutenção; insurge-se contra a absurda disrupção que o aparecimento
de 434 cruzes e forcas, sob os olhares censores de Costa e Silva, provoca no tecido
sensível que define a imagem bem ordenada que uma sociedade parece fazer de si
mesma. No entanto, os críticos precisam se decidir: ou o Muda Costa e Silva é um
movimento ridículo, iníquo, desimportante e que não muda nada, exceto um nome, ou
então será preciso reconhecer que mudar um nome – como, aliás, recomenda o
Relatório Final da Comissão Nacional da Verdade (2014, p. 974) – ou é o sinal de
que tudo mudou (exceto, talvez, alguns referenciais da sensibilidade coletiva), ou o
sintoma daquilo que se tornou necessário mudar, e cuja conservação se tornou
intolerável. De um modo ou de outro, parece haver um vínculo entre um nome e uma
certa sensibilidade social que precisa ser investigado.

2 Memória e poder

Uma dada formação social pode ser definida em função daquilo que se pode
ver e daquilo que se pode dizer. ―[...] em toda sociedade‖, afirma Foucault (2010, p.
08-09), ―a produção do discurso é ao mesmo tempo controlada, selecionada,
organizada e redistribuída [...]‖; tais processos de organização do que se pode ver e
dizer estão ligados a regras de funcionamento mais profundas. Com isso, o discurso

314
supõe uma ordem que estabelece os limites do visível e do dizível. Ao mesmo tempo,
sua relação com o desejo e o poder é mais complicada do que parece. Isso porque o
discurso não apenas manifesta ou oculta o que viria a ser o conteúdo do nosso desejo,
mas constitui o objeto mesmo do nosso desejo; da mesma forma, o discurso não
apenas traduz as lutas, mas constitui o objeto pelo qual se combate. O discurso, diz
Foucault (2010, p. 10), também é ―o poder do qual querermos nos apoderar‖. Isso
significa que sob qualquer conjunto de enunciados, encontramos as regras de
enunciação que os presidem e, sob estas, os mecanismos de organização do real
(saberes, estratégias, práticas etc.) que as fazem funcionar. Essa rápida visada sobre
um texto de Foucault que se situa precisamente na passagem entre o abandono do
problema do discurso e a formulação de uma analítica do poder talvez torne possível
pensar a memória em função do poder, e perceber que é à estabilidade de um campo
de forças em relação que nos referimos sempre que damos um nome a uma coisa, ou
que demandamos que se dê outro nome a uma coisa. A consequência imediata disso é
reconhecer que todos os enunciados estão sustentados por forças em relação, e
referem-se a um estado dessas forças – em repouso ou em movimento. Por essa razão,
talvez seja mesmo significativo dizer que mudar o nome do bairro Costa e Silva
requer um ―movimento‖; isto é, requer tirar as forças em relação do estado de
repouso, e é precisamente isso que a intervenção ―434: sob o olhar de Costa e Silva‖
é bem sucedida em fazer; as intervenções e os movimentos vêm nos lembrar que o
repouso não passa de um caso especial do movimento. Mas como memória e poder se
encontram em relação? Na medida em que a memória aparecerá definida em função
da restituição simbólica e social da verdade passada, ou do real. Tanto que o direito à
memória é comumente definido como um direito social, cultural e transgeracional ao
restabelecimento da verdade de fatos passados e à inserção de narrativas em
conformidade com tais fatos na trama da vida social, sustentando um imperativo ético
e político de não-repetição dos malfeitos passados149. O esforço da memória é o
esforço de trazer o real à tona, a fim de tornar a atualidade inteligível. Nessa medida,
memória e real são dois conceitos coincidentes. No entanto, o que condiciona a
possibilidade de ver e dizer o que vimos em uma determinada formação social são as
relações de poder que subjazem às regras de funcionamento do discurso. Isto é, no
que diz respeito à memória e ao real do passado, as relações de poder, e as suas

149
Cf., entre outros, Torelly (2012, p. 271), Bloomfield (2005, p. 40), Ciurlizza (2009a, p. 27) e Teitel
(2000, p. 271-218).

315
configurações, são uma condição transcendental (uma condição de possibilidade, ou
de acesso) ao real do passado. Não se chega, e não se pode chegar, mais longe na
memória efetiva dos fatos sem decompor as relações de poder que delimitam a
relação entre o que se pode ver e o que se pode dizer em uma dada sociedade.

3. Os nomes que as coisas levam

Os estudos mais conhecidos sobre a memória geralmente a analisam em


função de referenciais espaciais, técnicos ou narrativos – pertença essa narrativa à
dimensão do mito, da mnemotécnica, da literatura, da oralidade ou da
historiografia150. Pouco, ou quase nada, foi escrito sobre a relação entre a memória e
o nome. Em documentos oficiais, ou em pesquisas acadêmicas, o nome das coisas
jamais é brindado com a dignidade de constituir um problema autônomo; assim, o
nome que as coisas levam é reduzido a efeito periférico de uma tarefa que o
ultrapassa: reconstruir as narrativas e, com elas, o tecido simbólico da vida social. E,
no entanto, os nomes que as coisas levam não cessam de figurar no centro de disputas
políticas que envolvem a memória, ou o real. Seria preciso tomar essa fórmula a
sério, no duplo sentido de ―levar um nome‖; ela significa não apenas ―receber um
nome‖, ou ―ser nomeado‖. Levar um nome é, ao mesmo tempo, ser a unidade
elementar do significado e o elemento conector da produção de sentido. É conservar,
no nome, a memória da nominação (CANDEAU, 2012, p. 69). Em todas as línguas
neolatinas e germânicas (aí incluído o inglês anglo-saxão), os nomes e os
substantivos constituem uma mesma classe de palavras variáveis que designam os
seres em geral. Por isso, falar dos nomes que as coisas levam é, em alguma medida,
falar das coisas que levam os nomes; isto é, falar diretamente da memória ou do real
inscrito nas coisas assim nomeadas. Tudo o que pode ser dito sobre uma coisa, só
pode ser dito graças à pressuposição do nome (AGAMBEN, 1998, p. 95), dessa
classe de palavras que designam os seres em geral. O substantivo constitui a classe de
palavras em que a linguagem faz contato com o ser. O primeiro discurso sobre o ser
supõe, e exige, o ato de nomeá-lo. Os nomes são as palavras que nos colocam em
contato com a mudez essencial e o indizível das coisas (AGAMBEN, 1998, p. 102).
Então, de um lado as coisas levam nomes, mas de algum modo (talvez sob o modo do

150
Como exemplares dessa extensa bibliografia, seria possível citar os trabalhos de Aleida Assmann
(2011), Mary Carruthers (2011), Jacques Le Goff (2012), Pierre Nora (1997), Paul Ricœur (2007) e
Frances Yates (2007).

316
indizível ou da mudez ontológica) também os nomes levam as coisas. Mas o que
torna os nomes das coisas (bairros, praças, monumentos, logradouros públicos etc.)
um elemento central em uma disputa política sobre a memória, ou o real do
passado? O fato de que o nome, e o ato de nomear, formam o elo entre o real e as
relações de poder que regulam a maneira como faremos apelo a esse real no discurso.
As relações de poder que subjazem ao nome e ao ato de nomear regulam, por meio
deles, como o real ingressa e perdura em uma dada sociedade. O nome é, portanto,
como uma fita de dupla face que liga, e ao mesmo tempo distancia, o real nomeado e
a configuração das relações de poder que o nomeiam. Assim, se algo de indizível
permanece nas coisas, como quisera Agamben, talvez não se deva atribuí-lo a uma
falha constitutiva da linguagem, incapaz para verter toda coisa em palavra. Longe de
ser um defeito da linguagem, o indizível é, na verdade, o real que um nome não pode
dizer em uma dada configuração das relações de poder, em uma dada formação
social. O indizível é, portanto, um excesso de real subtraído ao nome pelo poder de
nomear – daí a importância de rememorar o ato de nomeação, de perscrutar a
persistência do real sob o nome. O indizível, como o Esquecido, é uma porção de real
que o poder separou da coisa ao nomeá-la; é uma virtualidade imemorial, inatual,
intempestiva, que retorna para reivindicar a justiça que não pode estar contida em um
nome (AGAMBEN, 1998, p. 62).

4 Memória menor

Nietzsche percebeu com precedência que nomear é um direito reservado aos


homens superiores, tanto que se permitia ―conceber a própria origem da linguagem
como expressão de poder dos senhores‖. E em que consiste essa expressão de poder,
esse direito senhorial que se confunde com a origem da própria linguagem? Supondo
a existência de um mundo povoado por coisas ainda desprovidas de nomes, ―[...] eles
dizem 'isto é isto', marcam cada coisa e acontecimento com um som, como que
apropriando-se assim das coisas‖ (NIETZSCHE, 2008, p. 19). Portanto, nomear, ou
evocar uma coisa mediante seu nome, é referir-se a uma dada configuração das
relações de poder, a um certo estado das forças em relação. Nesse ponto, alguém
pode estar se perguntando: mas mudar os nomes é mudar alguma coisa? Em um nível
microfísico, as coisas são constituídas em sua individualidade pelas próprias forças
em relação. Sob as coisas, os nomes, ou as formações sociais que parecem ser
unidades organizadas, permanentes e estáveis, só encontramos relações de forças

317
contingentes, temporárias e precárias; isto é, constituídas por dinamismos
infinitesimais, por linhas de transformação e de devir que levam as coisas e os nomes.
Sob esse ponto de vista, microfísico, não importam nem as coisas que levam nomes,
nem os nomes que as coisas levam. Tudo o que parece estável (nomes, relações de
poder, sociedades, coisas!) se desmancha no tempo. O que ocorre quando se muda o
nome que uma coisa leva? Duas hipóteses. Sabemos que o nome, e o ato de nomear,
supõem uma dada configuração das relações infinitesimais de poder. Portanto, mudar
um nome pode ser a expressão de que se operou uma transformação mais profunda;
isto é, um novo nome tem a capacidade de exprimir que a configuração das relações
de poder que um dia exerceram o poder de nomear encontram-se atualmente
enfraquecidas ou desativadas. Por outro lado, mudar um nome pode ser a
formalização de um agenciamento de enunciação coletiva através do qual vêm à tona
conjuntos de relações de forças minoritárias em sua multiplicidade e em sua
singularidade constitutiva. Trata-se de comunicar, através de um novo nome, a
contingência essencial de todas as relações de forças que organizam as nossas vidas e
regulam o que se pode ver, dizer e sentir, revelando uma outra ordem de coisas,
nomes e sensibilidades que de outro modo permaneceriam subterrâneas. Mudar um
nome consiste, portanto, em uma dupla operação que restaura as multiplicidades;
renomear é tornar o antigo nome mudo e comunicar que se não é possível suprimir as
relações de força, é possível organizá-las de outras maneiras; comunicar que as
porções de real elididas em um nome não se reduzem a restituir uma suposta verdade
dos fatos, mas, principalmente, comunicar o pressentimento impessoal de que outros
mundos são possíveis, e que sob uma única ordem para o social, insistem ―n‖ outras
ordens potenciais. Não se trata de tornar o possível real (BERGSON, 2006, 119), mas
de tornar o real novamente possível; isto é, concretamente representável nos quadros
sociais da vida em comum (HALBWACHS, 1994, p. 281). A memória é a operação
radicalmente política pela qual uma porção elidida do real (o virtual, o porvir) é
reintegrada à coisa que leva um nome (LAPOUJADE, 2010, p. 19), para além do
nome que a coisa leva151. Dar um nome a uma coisa é inscrever uma configuração de
relações de força que se apossaram dela; renomeá-la é desapossá-la para colocá-la em
contato com forças de uma outra ordem, relativas a outras relações. Eis o que deve

151
Seria preciso compreender o virtual não só como o ser do passado, mas como―[...] réserve ou
puissance, comme un ensemble de potentialités indéterminées, sourdement actives, déjà agissantes
comme une multiplicité de tendances encore impliquées les unes dans les autres.‖ (Lapoujade, 2010, p. 19

318
exigir um outro nome, na medida em que este pode tornar visível, dizível ou sensível
aquilo que é invisível, indizível ou insensível nos termos de uma dada formação
social. É isso o que faz da memória um direito minoritário e subjetivamente
impessoal – ainda que sujeitos concretos possam estar ligados à memória. O que
significa afirmar que a memória é um direito minoritário, ou um direito menor? Em
primeiro lugar, seria preciso dissociar ―minoria‖, ―menor‖, de qualquer referencial
identitário. A memória não constitui um direito, ou uma prática, com um sujeito fixo
e definitivo. Ao contrário, ao reintegrar a uma coisa aquilo que o antigo nome não
pode exprimir, a memória age como um operador de subjetivação e de devir. Embora
a lembrança e a recordação façam parte da memória, a memória coincide com uma
porção de real que não pode ser reduzida à verdade de um fato passado. Ela é isso,
mas é mais do que isso, na medida em que a memória traz à tona uma nova
capacidade de enunciação coletiva, que é ao mesmo tempo política e transformadora
do campo social (DELEUZE e GUATTARI, 2003, p. 41). Deleuze e Guattari
definiram as maiorias, ou o maior, como sistemas de aprisionamento de forças
criativas (BOUANICHE, 2007, p. 203). Maioria, majoritário ou maior se distinguem
de minoria, minoritário ou menor não de um ponto de vista quantitativo, mas
qualitativo; isto é, por natureza, o menor encerra um potencial de criação, de
transformação e de devir que o maior não tem. E o nome é o portador, na linguagem e
no discurso, das relações de poder que subjazem a ele; é o guardião das regras de
enunciação. Ao emudecer o antigo nome e reivindicar um novo, a memória torna
visível a contingência radical das relações de poder e cria condições coletivas e
impessoais para afetá-las. A memória faz passar potenciais criativos inauditos, pois
escava em uma coisa o nome impossível; força a passagem de porções inéditas de um
real que até então não se podia ver, dizer ou enunciar. Por isso, a memória
corresponde a um direito menor e impessoal: descerra conjuntos de novas
potencialidades para que qualquer um se relacione com porções inéditas de um real
em estado virtual. As relações de poder que permitem dar os nomes que as coisas
levam são irredutíveis; é nesse sentido que a memória é intrinsecamente política: ela
pode ser mobilizada como um contrapoder, como máquina de enunciação coletiva e
como um catalisador das transformações reais que as relações de poder sob os nomes
que as coisas levam desejariam inibir. Os nomes são os efeitos e os guardiões de uma
certa configuração das relações de poder – essencialmente variáveis e contingentes.
A persistência de uma certa sensibilidade social que lhe corresponda não deixa,

319
também, de ser um efeito das relações de poder. No entanto, o que a relação entre as
coisas e os nomes vem nos lembrar é que o seu repouso não passa de um caso do seu
movimento; que o estado estacionário das forças em uma dada relação não passa de
um caso de sua mutabilidade essencial, que também envolve a mutabilidade dos
afetos coletivos que a secundam. De um ponto de vista ontológico – que não deixa de
ser imediatamente social e político –, a luta para conservar um nome, ou as relações
de poder que o subjazem, é um combate de antemão perdido para as forças do devir.
O que a relação entre as coisas que levam os nomes e os nomes que as coisas levam
comprova é que mesmo muda, a memória muda.

320
RESENHA

321
Limites e possibilidades de uma economia do conhecimento
Miguez, Pablo. Trabalho e valor no capitalismo contemporâneo. Rio de Janeiro:
Autografia, 2018. (prelo)
Resenha por Carolina Salomão152

Quais os limites e as possibilidades da consolidação de uma economia baseada


no conhecimento? Essa indagação conduz o trabalho de reflexão empreendido por Pablo
Miguez em ―Trabalho e valor no capitalismo contemporâneo”. O autor parte da
constatação de que vivemos uma nova etapa do capitalismo onde o conhecimento
desempenha papel central na geração direta de valor. Na passagem da grande Indústria à
fábrica pós-fordista, a lei do valor fundada no tempo de trabalho demonstra-se incapaz
de dar conta de processos de valorização do capital cada vez mais baseados no
conhecimento e na circulação, isto é, na mobilização de todo o tempo de vida, dos
próprios processos de produção de subjetividade. As inovações técnicas científicas
convergem para emergência de uma lógica de autovalorização do capitalismo
contemporâneo.
Assim, o trabalho de Pablo Miguez se estrutura em torno das contradições e
pertinência do binômio trabalho e valor no contexto do capitalismo contemporâneo.
Trata-se de um trabalho de investigação que se situa na crise do capitalismo industrial
tendo como marco da análise a ruptura da lógica da geração de valor. À simples
superação do capitalismo industrial, Miguez contrapõe o desenvolvimento de uma nova
lógica de valorização que coaduna antigas práticas e inovações tecnológicas e cientifica
nas dinâmicas produtivas. Pablo realiza um minucioso trabalho de recuperação e análise
das transformações do capitalismo, da sua fase mercantil à cognitiva com especial
enfoque no crescente papel do conhecimento nos processos de trabalho e geração de
valor.
Nas primeiras linhas, o autor empreende uma recuperação histórica dos
conceitos e uma interlocução com pensadores marxistas do século XX, no esforço de
reconstruir a questão da forma valor no contexto do capitalismo industrial. Para esse
fim, Pablo se debruça sobre as múltiplas interpretações acerca da teoria da lei valor (e
trabalho) a partir do diálogo com o pensamento de Isaak Rubin, Alfred Shon Rethel,
Moishe Postone, John Halloway e Antônio Negri. Não se trata, entretanto, de uma

152
Doutora em psicologia pela PUC-Rio, graduada em jornalismo pela mesma instituição. Participa da
Rede Universidade Nômade.

322
apresentação exaustiva de conceitos; uma vez que o autor alia à sua análise teórica um
estudo das mudanças dos processos de trabalho concretos. Esquematizada em torno das
transformações tecnológicas e produtivas das últimas décadas, Pablo apresenta um novo
regime de acumulação caracterizado pela superação de diversas distinções que
marcaram o trabalho no capitalismo mercantil e industrial. O autor refere-se às
separações entre tempo e espaço de trabalho/tempo e espaço de vida, assim como à
distinção clássica entre trabalho intelectual e manual.
Nesse novo arranjo, conhecimento e cooperação ganham novo papel e
centralidade. Pablo irá observar como a captura do conhecimento coincide com a
exploração subjetiva do trabalhador, investindo integralmente a vida. A cooperação
silenciosa, mecânica e o saber regulado das fábricas tayloristas dá lugar à cooperação
comunicante e à apropriação e gestão do conhecimento.
Deste modo, a abordagem do autor se contrapõe a leituras e interpretações
apologéticas da centralidade dos componentes cognitivos como agentes de liberdade e
emancipação de uma economia fundada no conhecimento. A leitura a partir da hipótese
do capitalismo cognitivo reafirma a natureza capitalista do processo de transformação e
evidencia a contradição profunda que opõe a lógica do capitalismo cognitivo às
condições de desenvolvimento de uma economia fundada no conhecimento. Isso
porque, como ressalta Pablo nos tópicos dedicados à análise do esgotamento da lei
valor, trata-se de uma economia fundada no conhecimento, mas enquadrada na lei de
valor do capital. Deste modo, ao invés de favorecer o desenvolvimento de uma
economia baseada no conhecimento, bloqueiam-na com o objetivo de poder capturar o
valor e o saber produzidos pelo conhecimento para transformá-los num capital, numa
mercadoria fictícia. A partir dessa conversão, o capital submete a subjetividade, o
conhecimento, os saberes coletivos à sua lei de acumulação.
Nesse contexto, a precarização desponta como estratégia do capital para controle
e intensificação do trabalho num capitalismo onde a lei valor baseado no tempo de
trabalho já não da conta. Assim, o trabalho no capitalismo cognitivo, é marcado por
uma fragmentação social que se expressa na multiplicação dos estatutos do trabalho
formal, na precarização dos contratos e dos vínculos e mais em geral da proteção social,
culminando em uma configuração que, por um lado, reconhece a criatividade, o
conhecimento e a subjetividade como principal recurso produtivo, e que por outro,
restringe e captura esse mesmo potencial criativo. Deste modo, o paradoxo do capital

323
nesse arranjo consiste no fato que ele precisa da força criativa daquilo cujo excesso
ameaça-lhe a própria existência.
Em um cenário de crises e esgotamento de modelos e ciclos, as reflexões
proposta por Pablo apontam para a necessidade de criar uma nova agenda política, um
novo marco de proteção social, que faça justiça à nova composição técnica do trabalho.
De modo específico, trata-se de identificar as lutas necessárias – dentro e contra a
regulação pós-fordista – que invistam nos elementos de mobilidade, de luta em rede,
produção biopolítica, dinâmicas de autovalorização.
Os levantes metropolitanos do último ciclo de lutas, iniciado nas primaveras
árabes, e a as lutas trabalhistas de diferentes categorias ao redor do globo reivindicavam
a infraestrutura física e imaterial para vida social, essa que em última análise alimenta a
economia biopolítica.
Pablo finaliza reconhecendo a tensão entre dois polos de evolução e
desdobramentos do desenvolvimento desse capitalismo: por um lado, vemos uma
ofensiva do capital nas constantes tentativas de privatizar o comum e, por outro, lutas de
resistência, invenções e investimento de atualização e reapropriação das instituições do
comum e por uma continuidade de renda que prescinda da atividade laborativa formal
do contrato de trabalho.
Assim, trata-se mesmo de inventar novos direitos que favorecem outra relação
com a atividade produtiva. No capitalismo cognitivo o antagonismo entre capital e
trabalho adquire cada vez mais a forma de um antagonismo entre as instituições do
comum – educação, a saúde, a segurança social, a investigação científica – e todos os
elementos que permitam a existência dessa intelectualidade difusa sobre a qual se apoia
a economia fundada no conhecimento.

324
Redimensionar a potência dos pobres por três personagens
Cerqueira, Monique Borba. Pobres, resistência e criação: personagens no encontro da
vida com a arte. São Paulo: Cortez, 2010.

Resenha por Pedro Mollica da Costa Ribeiro153

1. Introdução

Os frutos de uma candente reflexão para a ressignificação da vivência sob o


signo da pobreza serão colhidos no interior de um título lançado pela Cortez Editora em
2010. Pobres, resistência e criação: personagens no encontro da arte com a vida, livro
que revelou a tese de Monique Borba Cerqueira (2006), traz um jardim de contrastes,
encontros e descobertas para se existir de outra maneira. Constituída por quatro
capítulos, além de uma seção com impressões finais, a obra acompanha ainda uma
filmografia.
Logo na introdução, o campo semântico da ―chaga social‖, que recai sobre
aqueles que vivem sem recursos materiais, procura ser desconstruído a partir de novos
significados valorativos. A diversidade e singularidade de tantos que vivem sob o
regime da falta são contribuições, das primeiras linhas do texto, no sentido de
questionar o discurso do simples desamparo dos ―vencidos‖ pela pobreza. Apesar do
deserto que habita na realidade da escassez, a autora suscita outra percepção sobre os
contornos da vida sob a marca da carência. A esse propósito, o aporte de pesquisa foi
movido pela inquietude diante da ―linearidade de interpretações correntes sobre os
pobres, ao mesmo tempo em que requer uma visão capaz de destituir seu fundamento‖
(CERQUEIRA, 2010, p. 14). Com alicerce no pensamento nietzscheano, o
confinamento moral que seria reservado a determinadas formas de vida procura ser
revisto pela justaposição de uma ética criadora.
No cenário central, composto por figuras extraídas da prosa literária e do
cinema, três seções são reservadas à análise de personagens que experimentaram a vida
no plano das privações. Será o caso de Carlitos interpretado por Chaplin, Gabriela de
Jorge Amado e Macabéa de Clarice Lispector. O estudo dos três personagens, matizados

153
Mestrando em Teoria e Filosofia do Direito pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ).
Especialista pela Universidade Candido Mendes. Ex-professor da Faculdade Nacional de Direito da
Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ).

325
pela desobediência e resistência criativa, é concebido em três instâncias. Nas primeiras,
estarão as ―potências de ressignificação‖, as segundas serão incorporadas pelo ―desejo‖
e por último ―as potências do imperceptível‖. Ao mundo vagabundo em preto e branco
reserva-se o segundo capítulo, para a prosa amadiana o terceiro e à personagem de A
hora da estrela, a quarta parte do livro.
No capítulo inaugural, ―Uma torrente imensa‖, Monique acentua as perspectivas
teóricas com as quais procura dedicar-se ao seu objeto de pesquisa. Seu ponto de partida
será a adoção de referencial ético e político que se propõe a redimensionar a percepção
social que destitui o potencial afirmativo da vivência dos pobres. Com aproximação da
concepção nietzscheana, composta pela ―vontade de potência‖, a ruptura da genealogia
da moral dá lugar à formação de ―espíritos livres‖ (NIETZSCHE, 2005, p.114) a
restaurar a soberania do sujeito.
Em paralelo à multiplicidade do conjunto de forças anônimas, ergue-se a
vontade, o impulso vital, que habita na intensidade e profusão de cada qual. A
identificação, provocada por formas de domesticação do indivíduo, tende a ser
questionada, enquanto a ―força ativa‖ libera novas formas de se conceber a figuração
existencial. A chave de leitura nietzscheana proposta pela autora se arrisca a
―transvalorar‖ as formas de ―assujeitamento‖ das individualidades que vivem sob o
signo da falta material. Nesta direção, as figuras desse ―sujeito artífice de si mesmo‖
(CERQUEIRA, 2010, p.36) são buscadas primeiramente nas películas de Chaplin e
posteriormente, na prosa de ficção de Amado e Clarice.

2. Criação

A primeira parte do segundo capítulo explora o viés das ―assimetrias da


invenção‖ (CERQUEIRA, 2010, p.44) que atravessa as características de Carlitos. Na
penumbra do acaso, o vagabundo desafia o que seria o apagamento da miséria
iluminada pelos traços da desproporção tangidos pela caricatura. Em meio ao revés da
privação, restará apenas uma indumentária clássica, somada a uma série de trejeitos, a
satirizar o ―tipo aristocrata‖. De acordo com a autora, a composição desses elementos
parece desbancar a elevação dos significados da riqueza. Em Charlot, “abundância e
escassez não são dotadas de um valor em si, mas expressam situações de onde o
vagabundo extrai possibilidades infinitas” (CERQUEIRA, 2010, p.45).
Os adereços exercem seu papel. A função do chapéu coco será a mediação
social, tão própria dos cumprimentos, dos gestos de despedidas e desculpas. Já a

326
bengala de bambu poderá arquear e esticar, apesar de nunca se quebrar. Assim, pela
extensão e flexibilidade desse adereço repousa uma analogia com a ―resistência
criativa‖, com a marca da versatilidade diante da má sorte. Todas essas partes estão
atreladas à caracterização do vagabundo, mas de forma orgânica e visceral a transmitir
um ―acoplamento‖ de significados. São detalhes essenciais para a ambientação do
humor pelo qual se incorpora a reelaboração da realidade.
A variação de disfarces pode acompanhar o deslocamento do Tramp. Porém, a
alternância de simulações não se confunde com ―usurpação‖ do espaço dos demais, mas
revela a intensidade da transformação de si. Aqui, Monique realça a audácia para se
assumir identidades, valendo-se da heteronímia de Fernando Pessoa. Surge um recurso
de linguagem com múltiplas possibilidades da despersonalização. Trata-se do espaço do
“outramento que é a coragem de abandonar o jeito de ser para se recriar,
metamorfoseando-se, conquistando novos modos de experimentar a vida e as relações
com o mundo” (CERQUEIRA, 2010, p.49).
Novos espaços de subjetividade continuam a ser descobertos à medida que a
autora examina uma série de cenas que atravessam a filmografia do principal
personagem de Chaplin. Um segundo processo da trajetória errante de Charlot será a
maneira como a paixão e as intensidades sublimam as dificuldades, a exemplo do que
acontece em filmes como O garoto (1921). Porém, os espaços do afeto muitas vezes
seguem o signo da clandestinidade, de uma relação de cumplicidade que subverte o
campo moral. Um pequeno vagabundo, órfão resgatado por Carlitos, quebra as vidraças
das redondezas para que o vidraceiro de chapéu coco possa consertá-las. São as relações
inesperadas da precariedade que rompem valores, mas permitem a sobrevivência do
essencial pela engenhosidade.
Outro plano de percepção sobre o personagem se retira do elemento subjetivo
para a observação das ações que escapolem da regra. As manobras e artimanhas do
improviso não são por acaso. O pontapé por trás, por exemplo, ―cria atitudes-atalho que
expressam uma grande recusa ao universo da ordem‖ (p.52). Essas atitudes assumem o
viés da ―lateralidade‖ e do disfarce que atribui novos sentidos a objetos inanimados.
Assim, por exemplo, a incomparável ―dança dos pãezinhos‖, do filme Em busca do
ouro (1925), encontra nos talheres à mesa um ato hilariante a partir de significados
diversos daqueles concebidos socialmente aos objetos da cena. Desta forma, através da
pantomima as coisas mais ordinárias e estáticas são reelaboradas.
O ponto essencial será a modificação do registro de significados potencializada

327
pela mímica, pelos espaços do silêncio e pela representação apenas por gestos. Portanto,
a esse conjunto de possibilidades da arte de narrar com o corpo, Monique realça o
potencial para criação de novas formas de existência para além dos sentidos. Em
síntese, “a vida criativamente modificada altera objetos, relações de força e afetos
numa cadeia infinita que joga para longe os signos dominantes e estreitos da pobreza”
(CERQUEIRA, 2010, p.78).

3. Desejo

Na terceira seção do texto, o que seria de se esperar de uma retirante, oriunda do


flagelo da seca, sofre a revolução modificadora que decorre da força desconcertante do
desejo provocado pela contagiante figura de Gabriela. Sua chegada à cidade de Ilhéus
desata múltiplas conexões de atração e fascínio, o que possibilita um plano de ação que
inverte a ideia de invisibilidade dos mais humildes. As sensações provocadas não
decorrem apenas de um novo regime de corporalidade. Esse carrossel de elementos da
paixão movimentado pela personagem decorre do seu ―apurado manejo de si‖ (p. 85).
Como ressalva a autora, a escolha de um jeito de ser da personagem remete à categoria
do ―cuidado de si‖ assinalada por Foucault (2006). No caso de Gabriela, a correlação se
dará por um plano ético de subjetividade, de governo da própria individualidade,
inspirada por uma prática contínua de libertação pessoal.
Ao cenário dos encantos e de sedução da protagonista do romance de Jorge
Amado (2004) haverá a justaposição de seu relacionamento com Nacib, dono do
Vesúvio, famoso bar da localidade. Sem qualquer registro de nascimento, por
insistência do comerciante árabe será celebrado o casamento dos dois. Todavia, os laços
morais de sociabilidade impostos pelo matrimônio vão de encontro à linha de liberdade
traçada pelo estilo de ser da protagonista. Sua disposição interior transcende as regras
do recato delimitadas pela sociedade. Neste sentido, Monique Cerqueira salienta que
“uma flor do agreste jamais nascerá em um vaso” (CERQUEIRA, 2010, p.103). À
infidelidade do enlace, atravessada por um incidente paralelo, sucederá a anulação do
casório.
A sucessão de eventos, entretanto, não impedirá que superado o confinamento, a
mulata cor de canela continue fiel a seus gestos de liberdade, a despertar “as
intensidades múltiplas que não cabem nos códigos institucionais” (CERQUEIRA,
2010, p. 112). Longe dos vínculos da moralidade, haverá inclusive uma reaproximação

328
de Nacib e Gabriela. Ao fim, o desprendimento da protagonista prospera no traçado de
suas linhas de fuga. Assim como o desejo não tem amarras, Monique Cerqueira extrai
das intensidades da dama de Ilhéus um exemplo de vocação para liberdade.

4. Expansão

A última etapa do livro de Monique lançará o desafio de explorar as potências


que estão por traz de Macabéa, uma jovem nordestina ―incodificável‖, que transcende
qualquer lógica representativa, a ponto de irradiar como uma estrela uma constelação de
interpretações sobre seu traçado. A escrita clariceana provoca o leitor a conhecer traços
de uma personalidade infensa a designações.
Entretanto, Maca expressará a intensidade do invisível, do inclassificável, de
alguém inacessível a si próprio. Apesar de suas características serem dispensáveis, em
seu interior habitará o espaço aberto pelas inúmeras possibilidades do imperceptível.
Sendo assim, Monique Cerqueira esclarece que “Macabéa é uma personagem que
provoca perplexidade por ter uma identidade fixa diluída. Ela transita por um regime
de invisibilidade e conjuga forças e devires imperceptíveis” (CERQUEIRA, 2010,
p.126).
Essencialmente, reflexões significativas sobre o insondável espaço de ruptura da
lógica de identificação da personagem são cultivadas pela autora. As inversões de
subjetividade também atravessam a própria construção narrativa, à medida que seu
narrador, Rodrigo S.M. (alter-ego da escritora), faz aflorar sentimentos pela
protagonista, novos dilemas criativos e até proposições metafísicas. O último romance
de Clarice Lispector (1999) completou recentemente 40 anos desde sua primeira
publicação, todavia seus enigmas narrativos ainda são incontáveis.
Em síntese, o livro de Monique Cerqueira explora cada contorno do enredo da
trama de Lispector por suas sutilezas, pela torrente de potencialidades do vazio, no
espaço em que ―não ser‖ da criatura ganhará corpo. Aliadas às variações de tantas cenas
de Chaplin analisadas, sem esquecer a vitalidade das reflexões sobre Gabriela de Jorge
Amado, a leitura desse título apontará quadros de expansão. Será um terreno que avança
criticamente para se repensar o manancial criativo daqueles que vivem sob o signo da
privação, dotados de resiliência, vigor e transcendência, quando projetados no plano de
contato da arte com a vida.

329
Referências

AMADO, Jorge. Gabriela, cravo e canela. Record: Rio de Janeiro, 2004.

CERQUEIRA, Monique Borba. Pobres, nômades e incivilizáveis: potência e criação


dos novos modos de vida. 2006. 167f. Tese (Doutorado em Políticas Sociais e
Movimentos Sociais) – Pontifícia Universidade Católica de São Paulo. São Paulo. 2006.
Disponível em: < https://sapientia.pucsp.br/handle/handle/17816 > Acesso em: 31 mai.
2018.

CERQUEIRA, Monique Borba. Pobres, resistência criação: personagens no encontro


da vida com a arte. São Paulo: Cortez, 2010.

FOUCAULT, Michel. A hermenêutica do sujeito. Tradução de Márcio Alves da


Fonseca. São Paulo: Martins Fontes, 2006.

LISPECTOR, Clarice. A hora da estrela. Rio de Janeiro: Rocco, 1999.

NIETZSCHE, Friedrich W. Humano demasiado humano: um livro para espíritos livres.


Tradução de Paulo Cezar de Souza. São Paulo: Companhia das Letras, 2005.

330

Vous aimerez peut-être aussi