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Resumo
Apresentamos neste artigo os caminhos teóricos e metodológicos utilizados e m uma pesquisa que
teve como objetivo vislumbrar os modos de subjetivação, presentes nas complexas relações de saber-
poder de um dispositivo jurídico, capazes de fabricar uma categoria específica de indivíduo: o sujeito
infrator. O trabalho utiliza fragmentos dos Relatórios Avaliativos que compunham o dossiê de um
jovem que se encontrava em cumprimento de Medida Socioeducativa de Internação. A partir da
análise deste documento, problematizamos um conjunto de técnicas disciplinares, regulamentares e
práticas de si, e alguns dos saberes que as fundamentam por serem considerados legítimos. O
governo da individualização arregimentado no dispositivo jurídico no qual o jovem é enredado
procura disciplinarizá-lo e normalizá-lo na direção do que seria um sujeito cidadão. Para tanto,
obrigatoriamente atrela ao jovem uma identidade infratora, responsabilizando-o quase que
exclusivamente por seus atos, independentemente de uma perspectiva crítica e histórica do seu
processo de não cidadania.
Palavras-chave: Dispositivo Jurídico; Subjetivação; Medida Socioeducativa; Sujeito Infrator.
Abstract
In this paper we present the theoretical and methodological paths used in a study that aimed to
discern the modes of subjectivity present in the complex relations of knowledge -power of a legal
device, capable of producing a specific category of individual: the infractor. The research uses
fragments of Evaluative Reports that made up the dossier of a young boy who was undergoing
Socio-educational Internment Measures. From the analysis of this document, we discuss a set of
disciplinary techniques, regulations and practices of same, and some of the knowledge that underlies
these techniques because they are considered legitimate. The government of individualization
enlisted in the legal instrument in which the young boy is caught, is looking to discipline him and
normalize him in the direction of what would be a subject citizen. To do so, necessarily binds the
1
Este artigo é fruto da pesquisa de mestrado da autora em Psicologia pela Universidade Federal do Pará (UFPA) e
foi escrito em coautoria com seu orientador. A dissertação intitula-se: “Modos de Subjetivação e Estratégias de
Governamentalidade: a constituição de um ‘sujeito infrator’ nas tramas de um dispositivo jurídico”.
2 Contato: alvarezalyne@hotmail.com
youth with the identify of an offender, blaming him almost exclusively for his a ctions, regardless of a
critical and historical perspective of his non-citizenship.
Keywords: Legal Device; Subjectivity; Socio-Educational Measure; Infringer Subject
Há nesses espaços um jogo de olhar que em que estes se veem quase que obrigados a
que o menor dos detalhes da vida dos ditados pelo aparelho disciplinar. Para o
percebesse errado com relação aos atos interno, as suas confidências aos técnicos
cometidos e, finalmente, se arrependesse; e especializados “em ouvir” complementarão
d) atendimento psicológico para ele e para a o arsenal de informações sobre seu passado
família para que pudessem “se entender” da e seu presente e servirão de fundamento às
melhor maneira e, de certa forma, corrigir a ações técnicas que irão intervir em sua vida
“raiz” do problema, uma vez que é comum para lhe delinear um futuro.
culpabilizar toda a família. Nesse sentido, No embate com as relações de poder
opera-se a produção de uma rede fina de
a disciplina estabelece os procedimentos de visibilidades destes corpos desviantes e seus
adestramento progressivo e de controle atos de contrapoder por meio dos registros
permanente e, enfim, a partir daí, estabelece de especialistas da norma, que se tornaram
a demarcação entre os que serão os ouvintes de sussurros ainda que rápidos
considerados inaptos, incapazes e os outros. e fugazes de vidas errantes que
Ou seja, é a partir daí que se faz a interrogavam com seus atos as práticas de
demarcação entre o normal e o anormal controle social (Lemos, Nascimento &
(Foucault, 2008, p. 75). Scheinvar, 2008, p. 07).
Foucault (2008) esclarece que a disciplina Dessa maneira, sua biografia resulta
estabelece um modelo que é construído em também dos momentos em que o
função de determinados resultados e quem adolescente deve falar de si àqueles que
consegue ser enquadrado ou se enquadrar ocupam um lugar privilegiado do saber
nesse modelo é considerado “normal”, através do poder a eles atribuído de
“cidadão”, “gente do bem” etc. Faz-se, interpretar e desvelar “verdades” acerca da
assim, a separação daqueles que não vida do “infrator”. À medida que se deseja ir
conseguem tal feito e que, portanto, são além dos saberes oriundos dos exames,
considerados “anormais”, “incompetentes”, saberes que se acumulam a partir de um
“antissociais”, “não humanos”, “do mal”. A mecanismo ótico que deve registrar tudo o
constituição do “sujeito infrator” se dá, que se vê e se supõe, os exames passam a
portanto, concomitantemente à produção requerer a confissão do examinado. Uma
do “sujeito disciplinar”. João é constituído vez que certas informações são inatingíveis
nas Unidades como infrator não somente aos olhos dos técnicos examinadores, os
em virtude do ato infracional cometido, mas exames passam a requerer “uma troca de
especialmente pela conduta resistente ao discursos, através de questões que são
processo de assujeitamento imposto pelo rol extorquidas das confissões e confidências
de normas que deve seguir para ser que vão além das interrogações” (Dreyfus &
considerado “normal”. Rabinow, 1995, p. 191).
Porém, a vida de João, descrita no De forma geral, as técnicas que
decorrer do cumprimento da medida de organizam vidas infames em formato de
internação, não se constitui apenas nos arquivos tomam-nas objetos a serem
exames e instrumentos disciplinares: conhecidos em cada detalhe de suas
somadas às constantes observações e existências, escrutinando, como o “pastor”,
registros acerca do cotidiano do jovem suas particularidades, segredos, interesses,
Este sujeito para quem se dirigem saberes e Aparentemente, são dois processos
práticas médicas, psicológicas, pedagógicas, de subjetivação e assujeitamento imanentes.
sociais, além de jurídicas, que compõem as Um que pretende subjetivar o indivíduo
medidas socioeducativas e que acabam por como “cidadão” a partir de técnicas
constituí-lo como “delinquente”, é o sujeito empregadas com o objetivo de
“perigoso”. transformação e de instrumentos que
A partir do discurso da “recuperação” ou levariam João a “exercer sua cidadania”
“ressocialização”, a Medida de Internação, quando em liberdade; e o outro,
que tem como prerrogativa ser concomitante a este, que o identifica
“Socioeducativa”, teria a função de tornar biograficamente como um personagem
“cidadão” aquele que nunca o foi, aquele oposto ao cidadão: neste caso, com o
que já nasceu sem direitos, a quem se nega estigma de infrator. Assim, teríamos como
processos que deveriam dar conta da sua resultado do cruzamento de saberes e
vida para lhe aumentar a existência. As poderes que visam normalizá-lo, duas
práticas desenvolvidas pelo dispositivo possibilidades de experiência de si do jovem
jurídico são, assim, práticas que o incluem internado, que ao final devem compor
nas malhas do poder e o fazem existir. apenas um modo de ser, posto que se unem
Porém, o fazem existir como um não em uma racionalidade coerente em que a
cidadão, engendrando-o como o seu outro: “subjetividade infratora” seria condição para
o “infrator”. a necessidade de instalação de uma
As divisões binárias produzidas pela “subjetividade cidadã”.
tecnologia disciplinar têm como corolário a Na posição de “infrator”, como efeito
fabricação dos sujeitos “anormais”, aqueles das práticas de normalização, o jovem deve
que precisam entrar na norma, ser ser capaz de se identificar, se julgar, se
normalizados. Isto é, partindo do que seria narrar como um infrator: alguém que agiu
o “normal”, constitui-se aquele que precisa errado e que precisa se redimir, se sentir
ser transformado e junto com ele todo um culpado, e que é frequentemente avaliado e
aparato de técnicas e saberes de mal julgado em função de todos os outros
“transformação”. Então, ao mesmo tempo “erros” que constitui seu modo de ser
em que vemos surgir um dispositivo para “infrator”; e, na posição de “cidadão”, após
dar conta de algo que começa a ser a aplicação de tecnologias de transformação,
considerado problemático, temos esse readaptação ou recuperação, ele deve se
mesmo dispositivo constituindo o problema mostrar arrependido, narrando-se como
no mesmo instante em que se utilizam de capaz de se conduzir de acordo com o que
técnicas disciplinares e saberes que se espera de um “sujeito cidadão”. Este é o
nomeiam, classificam, criam categorias, regime de pessoalidade que foi apresentado
separam por tipos e compõem teorias acerca a João como possibilidade para ser liberto.
do que seria a “anormalidade”. Ambas as posições ou maneiras de ser
descritas preveem estratégias de manejo e Internação de Adolescentes em Conflito com a Lei. (2a
ed.). Retrieved November, 9, 2006, from
controle dos corpos estabelecidas no http://www.crpsp.org.br/relatorio_oab.pdf
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Campos, F. S. (2005). Adolescentes infratores
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Vemos, assim, como a política atua no (pp.113-124). Rio de Janeiro: EDPUC-Rio, São
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para o qual muito recurso é destinado, que Lisboa: Veja.