Vidas que desafiam corpos e e observações. Analisou 29 processos judiciais destinados à autorização para a realização da sonhos: uma etnografia do cirurgia de transgenitalização no Brasil, construir-se outro no gênero e na enfatizando os discursos médicos e jurídicos. O sexualidade. acesso a esse material se deu pelo Programa de Transgenitalização, coordenado pela TEIXEIRA, Flavia do Bonsucesso. Promotoria de Justiça Criminal de Defesa dos Usuários dos Serviços de Saúde (Pró-Vida), do Ministério Público do Distrito Federal e Territórios, 2009. 243 f. Tese (Doutorado em Ciências criado em 1999 e suspenso em 2004. Sociais) – Programa de Pós-Graduação Dezesseis pessoas (transexuais) definiram o em Ciências Sociais, Universidade universo empírico do estudo, sendo oito inscritas/ os no Programa, sete do movimento social e Estadual de Campinas – Unicamp, uma mulher (transexual) que, anterior ao Pró- Campinas, 2009. Vida, havia se submetido à cirurgia no exterior. O trabalho de campo não se restringiu às entrevistas. Visitas a residências, hospital, locais de trabalho e lazer e a participação em Contextualizar as dimensões históricas, espaços de discussão política compuseram o sociais, políticas e culturais da construção do processo. gênero e das sexualidades constitui o trajeto Subsidiada pela teoria foucaultiana, o trilhado por essa antropóloga. Professora adjunta processo de análise das entrevistas é da Faculdade de Medicina da Universidade compreendido pela autora como um momento Federal de Uberlândia – UFU, Flávia do de autoavaliação vivenciado pelos sujeitos em Bonsucesso Teixeira é graduada em Terapia que se podem aflorar tensões e autocríticas, Ocupacional (1991) e especialista em ultrapassando as fronteiras do “dito”. Sociologia e Educação e Movimento Humano A compreensão e a articulação dos (1994). saberes médicos legais com relação à No mestrado em Educação, pela UFU transexualidade foram o tema do primeiro (2000), investigou a constituição de papéis capítulo: “O natural também é uma pose”. A masculinos e femininos e a conotação de valores autora utilizou como fonte principal documentos construídos em torno deles na educação infantil. do Conselho Federal de Medicina e pareceres No doutorado em Ciências Sociais, pela e sentenças judiciais, uma vez que seus discursos Unicamp (2009), enfocou sujeitos que buscavam compunham o Programa Pró-Vida. As possíveis a cirurgia de transgenitalização. Vinculada a esta origens biológicas da homossexualidade mesma instituição, investigou no pós-doutorado defendidas por pesquisas do século XX, como (2010) o processo de migração de travestis enfatiza Teixeira, “emprestaram suas (in)certezas brasileiras para a Itália, ressaltando prostituição para compor um léxico explicativo para a e conjugalidades. transexualidade” (p. 32). Sustentando o argumento de que a forma O segundo capítulo é dedicado à análise como as instituições médico-jurídicas dos processos das pessoas (transexuais) que reconhecem as pessoas (transexuais) coloca em recorreram ao Pró-Vida em busca da autorização risco suas possibilidades de sobrevivência e sua para a realização da cirurgia de transgenitalização. efetivação como seres humanos, Flávia Teixeira Evidenciou-se a disputa entre o saber-poder teve como objetivo no doutorado médico e jurídico, que, ao mesmo tempo que “compreender as possibilidades e estratégias da define a legitimidade do/a “verdadeiro/a atuação dos sujeitos que buscavam a cirurgia transexual”, exerce uma “violência institucional” ao de transgenitalização” (p. 19). impedir “o outro de dizer quem é”. Sob uma abordagem etnográfica e Ressalta-se também a necessidade de ancorada nos estudos queer, a autora se utilizou “ressocialização” das pessoas (transexuais) de fontes bibliográficas, documentais, entrevistas argumentada pelo discurso médico e jurídico por
meio da cirurgia que, na verdade, se fundamenta do gênero”, assim como desencadeia muito mais nos aspectos biológicos do que nos mecanismos que ampliam a fragilidade dos aspectos sociais que constituem o cotidiano movimentos sociais em suas lutas. desses sujeitos. O título deste capítulo, “Não basta Ao seguir as pistas deixadas por Berenice abrir a janela...”, expressa coerentemente as Bento,1 que primeiramente se preocupou com contextualizações apresentadas. a problematização e a (des)construção do O terceiro capítulo, “Histórias que não têm conceito de transexualidade fundamentado era uma vez...”, problematiza os saberes e as como processo patológico, a autora entrelaça normas determinantes da fixidez da essa problemática aos contextos de suas transexualidade como patologia em oposição vivências cotidianas. A família, a escola, o às “diversas possibilidades de vidas e a fluidez de trabalho, o lazer, a afetividade, o movimento suas experiências” (p. 33). Através de fragmentos social, correlacionados a essa possibilidade de das entrevistas e das observações realizadas no construção do gênero, passam a tecer um período de 2004 a 2008, a autora tenta capturar sujeito integral, complexo, múltiplo, dono de uma instantes do cotidiano desses sujeitos, enfocando história particular. Esse fato ressalta uma das suas vivências sociais nos espaços familiares, principais contribuições deste estudo, por se escolares, profissionais, afetivos etc. dedicar aos aspectos da subjetividade das Os desafios enfrentados na luta pelo pessoas (transexuais) e não somente pelas reconhecimento político das pessoas dimensões biológicas da readequação genital. (transexuais) são o foco do quarto capítulo: A relevância da pesquisa abrange tanto o “Diálogos que disfarçam conflitos por explodir”. meio acadêmico como o movimento social. Ao mesmo tempo que se busca uma identidade Oferece à academia uma riqueza de subsídios social da transexualidade fora dos parâmetros teóricos que contemplam as mais diversas áreas patológicos, persistem os impasses nas de conhecimento. Destaco o campo educa- negociações de políticas públicas com o cional, uma vez que as vivências escolares Ministério da Saúde para esse segmento, que, relatadas pelos sujeitos conceberam maior de certa forma, mantém sua legitimidade ainda sentido às afirmativas de Sérgio Carrara e Silvia ancorada num diagnóstico médico-jurídico. Em Ramos, 2 quando destacam que a baixa contrapartida, Teixeira argumenta que incidência de discriminação e preconceito A transexualidade pode ser lida como uma contra travestis e transexuais em instituições de experiência de mobilidade que carrega um ensino deve-se ao fato de que esses sujeitos desejo de finitude. Alcançar a “outra margem pouco frequentam escolas e faculdades. A do rio” e declarar o fim desta passagem. [...] A escola torna-se, na maioria das vezes, um lugar questão maior é que a armadilha desse discurso inabitável para essas pessoas. reside no caminho escolhido para alcançar a Com relação ao movimento social, parte outra margem do rio: a imposição da cirurgia do material empírico foi construído na (p. 193). participação em espaços de encontro, As tensões vivenciadas no movimento discussão e elaboração de pautas políticas político responsáveis pelo distanciamento entre referentes à população de travestis e transexuais. travestis e transexuais, o desejo de parte das O Encontro Nacional de Travestis e Transexuais mulheres (transexuais) em aderir ao movimento na Luta contra a Aids – ENTLAIDS foi um dos feminista e as restrições com relação à adesão principais. Nesse sentido, o estudo potencializa dos homens (transexuais) ao Pró-Vida integram novas reflexões e direcionamentos envolvendo também as contextualizações deste capítulo. questões em pauta pelo segmento, tais como Como resultados, Flávia Teixeira aponta para a patologização da transexualidade, as a problematização da legitimidade social divergências e tensões entre travestis e atribuída à experiência das pessoas (transexuais) transexuais, o nome social, a prostituição etc. precedente e exclusivamente conferida pelo Concluindo, a tese é indicada para o mais discurso médico-jurídico. Ao contrário de variado público, acadêmico ou não, desde implementar novas formas e sentidos ao integrantes dos movimentos sociais até sentimento de “ser diferente”, esses discursos e estudantes de graduação ou pós-graduação práticas reafirmam esses sujeitos como em das mais variadas áreas do conhecimento que “desacordo”, protagonistas de um “engano” ou tenham interesse em compreender um pouco personificadores/as de uma “fraude”. Em do universo da transexualidade. decorrência disso, condiciona-se a transexuali- Por explorar com densidade a multiplici- dade a “uma visão essencialista e dicotômica dade de elementos que compõem a consti-
tuição do gênero e das sexualidades fora dos Referências bibliográficas padrões essencialistas e normativos, a leitura de BENTO Berenice. A reinvenção do corpo: obras como O que é transexualidade, de sexualidade e gênero na experiência Berenice Bento,3 e Um corpo estranho: ensaios transexual. 2003. Tese (Doutorado em sobre sexualidade e teoria queer, de Guacira Sociologia) – Departamento de Sociologia, Lopes Louro,4 fornecem elementos teóricos que Universidade de Brasília, Brasília, 2003. auxiliam numa melhor compreensão do ______. O que é transexualidade? São Paulo: trabalho. Brasiliense, 2008. (Primeiros Passos). Afinal, como afirma Flávia Teixeira, “a expe- CARRARA, Sérgio; RAMOS; Silvia. Política, riência transexual materializa incertezas que se direitos, violência e homossexualidade: fundem com as questões pautadas em outros Pesquisa 9ª. Parada do Orgulho GLBT – Rio espaços” (p. 229), sendo a construção identitária 2004. Rio de Janeiro: Cepecs, 2005. um processo de mutação e a identificação de Disponível em: <www.clam.org.br/>. Acesso gênero, consequentemente, uma aproximação em: 2 nov. 2007. do que ele realmente seja. LOURO, Guacira Lopes. Um corpo estranho: Notas ensaios sobre sexualidade e teoria queer. 1 Berenice BENTO, 2003. Belo Horizonte: América, 2004. 90 p. 2 Sérgio CARRARA e Silvia RAMOS, 2005. 3 BENTO, 2008. Neil Franco 4 Guacira Lopes LOURO, 2004. Universidade Federal de Mato Grosso (Médio Araguaia)