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Universidade do Estado do Rio de Janeiro

Centro de Educação e Humanidades

Instituto de Letras

Beatriz de Matos Ferreira

Alberto Caeiro e João Cabral de Melo Neto: a poesia como acesso

Rio de Janeiro

2018
Beatriz de Matos Ferreira

Alberto Caeiro e João Cabral de Melo Neto: a poesia como acesso

Dissertação apresentada, como requisito


parcial para obtenção do título de Mestre, ao
Programa de Pós-graduação em Letras, da
Universidade do Estado do Rio de Janeiro.
Área de concentração: Literatura Portuguesa.

Orientador: Prof. Dr. Marcus Alexandre Motta

Rio de Janeiro

2018
CATALOGAÇÃO NA FONTE
UERJ/REDE SIRIUS/BIBLIOTECA CEH/B

F383 Ferreira, Beatriz de Matos.


Alberto Caeiro e João Cabral de Melo Neto: a poesia como acesso /
Beatriz de Matos Ferreira. - 2018.
84 f.

Orientador: Marcus Alexandre Motta.


Dissertação (mestrado) – Universidade do Estado do Rio de
Janeiro, Instituto de Letras.

1. Poesia portuguesa – História e crítica – Teses 2. Poesia brasileira –


História e crítica – Teses. 3. Pessoa, Fernando, 1888-1935 – Crítica e
interpretação – Teses. 4. Pessoa, Fernando, 1888-1935. O guardador de
rebanhos – Teses. 5. Melo Neto, João Cabral de, 1920-1999 – Crítica e
interpretação – Teses. 6. Melo Neto, João Cabral de, 1920-1999. Morte e
vida Severina – Teses. 7. Análise do discurso narrativo – Teses. I. Motta,
Marcus Alexandre. II. Universidade do Estado do Rio de Janeiro. Instituto
de Letras. III. Título.

CDU 869.0-1(091):869.0(81)-1(091)

Bibliotecária: Eliane de Almeida Prata. CRB7 4578/94

Autorizo, apenas para fins acadêmicos e científicos, a reprodução total ou parcial desta
dissertação, desde que citada a fonte.

________________________________________ _________________
Assinatura Data
Beatriz de Matos Ferreira

Alberto Caeiro e João Cabral de Melo Neto: a poesia como acesso

Dissertação apresentada, como requisito parcial para


obtenção do título de Mestre, ao Programa de Pós-
Graduação em Letras da Universidade do Estado do
Rio de Janeiro. Área de concentração: Literatura
Portuguesa.

Aprovada em 28 de março de 2018.

Banca examinadora:

_________________________________________
Prof. Dr. Marcus Alexandre Motta (Orientador)
Instituto Letras - UERJ

_________________________________________
Profa. Dra. Claudia Maria de Souza Amorim
Instituto Letras - UERJ

_________________________________________
Profa. Dra. Ceila Maria Ferreira Batista
Universidade Federal Fluminense

Rio de Janeiro

2018
AGRADECIMENTOS

O interesse em ingressar no curso de Mestrado de Literatura Portuguesa é proveniente


da inquietação causada pelos questionamentos trazidos em O guardador de rebanhos por
Alberto Caeiro durante as aulas que assisti, como ouvinte, do professor Marcus Alexandre
Motta. Nesse caminho, o cruzamento com a poesia árida de João Cabral de Melo Neto
reforçou a ideia do poema como um acesso ao desconhecido, que em momento algum é
solucionado pela arte.
Agradeço pela orientação, apoio e dedicação do professor Marcus Alexandre Motta,
com quem compartilho a realização desse projeto.
Nesse período em que cursei o mestrado, a UERJ enfrentou- e ainda enfrenta- um
período turbulento de crise causada pelo descuido de nossas autoridades do Estado;
entretanto, a resistência de nossa universidade nos mostra sua importância para a construção
de uma sociedade pensante e justa. Agradeço aos professores e funcionários pelo empenho em
manter a UERJ viva.
Enfim, agradeço, pela conquista de toda esta etapa, a toda minha família e amigos.
RESUMO

FERREIRA, Beatriz de Matos. Alberto Caeiro e João Cabral de Melo Neto: a poesia como
acesso. 2018. 84 f. Dissertação (Mestrado em Literatura Portuguesa) - Instituto de Letras,
Universidade do Estado do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2018.

Esta dissertação parte da leitura minuciosa dos poemas O guardador de rebanhos e


Morte e vida Severina, que tem como objetivo dar a ver a poesia como algo orgânico e
movente, ou seja, a essência poética como praticante da ação, dando direção à narrativa. O
primeiro poema é escrito por Alberto Caeiro (1889-1915)- o “mestre proclamado e
incontestado dos seus irmãos-em-Pessoa”, como diz a professora Cleonice Berardinelli- e traz
uma série de questionamentos poéticos acerca da filosofia, a qual organiza e nomeia o
sentimento, como um gesto de apreendê-los, e da experiência adquirida pela vida. Durante o
caminho, o leitor é guiado pelo guardador de rebanhos que percorre um solo um pouco úmido
e movediço. A pesar de ter o seu cajado como direcionamento, os olhos possuem autonomia
para voltar ao verso e questioná-lo, como ocorre em alguns momentos da dissertação. O
segundo poema, escrito por João Cabral de Melo Neto (1920-1999), viaja por um solo árido e
cheio de privação; entretanto, a poesia brota, como um gesto de resistência, e lança o leitor à
vida e à morte o tempo todo. Além disso, outros autores foram lidos como base teórica:
Walter Benjamin, Theodor Adorno, Friedrich Von Schlegel e Jacques Derrida, por exemplo.
Diante disso, a partir do pensamento da poesia como um ser questionador e vivo, que se
expõe ao perigo e põe o outro em perigo, a narrativa foi o meio escolhido para desenvolver
esta dissertação.

Palavras-chave: Poesia. Caminho. Resistência. Literatura.


ABSTRACTS

FERREIRA, Beatriz de Matos. Alberto Caeiro e João Cabral de Melo Neto: the poetry as a
way. 2018. 84 f. Dissertação (Mestrado em Literatura Portuguesa) - Instituto de Letras,
Universidade do Estado do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2018.

This paper initiates from closing reading of the poems O guardador de rebanhos e
Morte e vida Severina, in order to show the poetry as something organic, in another words,
poetic essence as practitioner of action, giving direction to the narrative. The first poem is
written by Alberto Caeiro (1889-1915)- the “proclaimed and uncontested master of his
brothers-in-Pessoa” as teacher Cleonice Berardinelli says- and brings a series of questions
about philosophy that organizes and names the feeling- in a gesture of apprehending them-
and of the experience acquired by life. Along the way, the reader led by the herdsman, who
runs along a slightly damp and unstable soil. Although he have his staff as a guide, our eyes
have the autonomy to go back to the verse and question it, as it happens in some moments of
the dissertation. The second poem, written by João Cabral de Melo Neto (1920-1999), travels
through an arid soil full of deprivation; however, poetry springs forth, as a gesture of
resistance, and throws us to life and death all the time. In addition, other authors were read as
theoretical basis: Walter Benjamin, Theodor Adorno, Friedrich Von Schlegel and Jacques
Derrida, for example. Therefore, from the thought of poetry as a questioning and living being
(which exposes itself to danger and puts the other in danger) the narrative was the chosen
medium to develop this dissertation.

Keywords: Poetry. Way. Resistance. Literature.


SUMÁRIO

INTRODUÇÃO ......................................................................................................... 7

1 O PRIMEIRO CONTATO ...................................................................................... 10

2 UM INSTANTE EM SEU QUARTO ...................................................................... 20

3 O PENSAR SOBRE A VIAGEM ............................................................................ 28

4 O CAMINHO SEVERINO DAS COISAS DE NÃO ............................................... 40

5 O APAGAMENTO E A REINVENÇÃO DE SI...................................................... 45

6 O EGOÍSMO DA ALMA POÉTICA ...................................................................... 60

7 O ARTISTA CARPINTEIRO ................................................................................. 75

CONCLUSÃO......................................................................................................... 82

REFERÊNCIAS...................................................................................................... 84
7

INTRODUÇÃO

Fome. Sede. Sentir. Poesia. Esses termos ecoam em minha cabeça quando leio os
poemas “O guardador de rebanhos”, um elogio à ignorância escrito pelo mestre Alberto
Caeiro, e “Morte e vida severina”, narrativa em versos de João Cabral de Melo Neto. Para que
esses termos escrevessem a poesia que estava no papel e em meu pensamento, foi preciso
parar em cada linha das estrofes para sentir a densidade das palavras carregadas de lacunas.
Ao andar pelo verso e sentir o cheiro, o gosto e a sua aridez, percebi que estávamos em
contato com o outro ou com aquele que passamos a ser no instante em que nos debruçamos
sobre a folha. Essa percepção foi absorvida no contato e na vivência da leitura desses dois
poemas que serviram como norteadores para este trabalho. Neles, a primeira pergunta que
surge, e que não foi respondida, é: como a poesia se desmembra num lugar sem filosofia,
árido e severino (comum e de ausências)?
Diante desse impasse, a escolha para o desenvolvimento de uma narrativa se deu com
a finalidade de dar voz à poesia e colocá-la como o pastor que vê e sente as coisas. A escrita
pedia a narração à medida que os poemas foram traçando seus caminhos tortos. Apesar de a
caminhada acontecer por finalidades distintas- afinal, o guardador de rebanhos andava para
não pensar, enquanto que o retirante se deslocava para sobreviver, estender mais um pouco
sua vida- elas possuíam um ponto em comum: o apagamento deles no trajeto.

Dessa forma, a indefinição da personagem principal se deu como um gesto de


anulação do outro, ou seja, uma impossibilidade de distinção daquele que está ali no poema
vivenciando tudo. Ela não pôde ser nomeada, mas, ao mesmo tempo, assumiu no texto todos
os nomes (árvore, mulher, fruto, defunto etc.). É nesse meio que o seu espírito é evocado,
assim como o espírito das obras de arte, segundo o filósofo alemão Theodor Adorno em
Teoria da estética: “O que aparece nas obras artísticas, inseparável da aparição, mas também
a ela não idêntico, isto é, o não-fáctico na sua facticidade, é o seu espírito.” (1970, p.137).

Esse ser que está em cada verso pode ser visto como um ouriço, tal como a poesia, que
fora vista dessa forma pelo filósofo francês Jacques Derrida em Che cos’ è la poesia. O
ouriço, na estrada, põe-se em bola e fica exposto ao risco; todavia, enquanto está indefeso, o
animal também representa uma ameaça para os outros. Essa condição da poesia foi importante
8

para entender que o ser indefeso e o algoz são indissociáveis não só na arte, mas também na
natureza de modo geral.

Foi nesse abismo que a narrativa poética se constituiu e fora organizada em seis
momentos. O primeiro contato é a inquietação para o que está diante de nós, ou seja, um
recorte do mundo, uma visão parcial que não nomeia cientificamente nem busca entendimento
filosófico do que está vendo. O segundo momento, Um instante em seu quarto, carrega
diversas manifestações sensoriais consequentes da leitura intensa dos versos que ali surgem.

Em O pensar sobre a viagem, os poemas nos fazem pensar nesse caminho que se
reinventa a todo instante. A experiência é dolorida e solitária, o que nos faz ter mais
intimidade com a estrada, tornando-nos parte dela. O caminho severino das coisas de não é
a parte da narrativa em que a aridez do solo e do pensamento livre de conhecimento se faz
mais presente. Como consequência disso, a poesia também enrijece, mas segue seu caminho
que é traçado como as contas de um rosário.

Em O apagamento e a reinvenção de si, os poemas dialogam com a poesia de


Fernando Pessoa, intitulada “Ausência”, em que diz sobre o gesto de se apagar ao olhar para o
outro. Além disso, o questionamento que o guardador de rebanhos nos coloca sobre a
existência de um Deus e sobre a realidade daquilo que sentimos permeia esse momento da
narrativa, que acumula, como um corpo, marcas das leituras dos versos.

O capítulo intitulado O egoísmo da alma poética traz uma característica da


poesia a qual eu não havia notado até então: sua condição de egoísta. Nessa parte do texto, o
pensamento de Adorno- o qual discorre sobre a arte mostrando que ela está naquilo que ela
nega- reforça a visão da poesia como um universo complexo por suas ausências e anulações;
logo, a narrativa nos mostra que não é possível ocupar-se olhando para os problemas que o
homem cria, muito menos tentar entender sua filosofia que não ultrapassa o seu pensamento.

Por fim, em O poeta carpinteiro, a personagem lê o poema do guardador de rebanhos


e vivencia a indignação e a tristeza das obras realizadas por “artistas carpinteiros”, os quais
utilizam métodos e constroem muros em vez de arte. A reflexão de Adorno compõe esse
momento da narrativa a partir da discussão acerca da inutilidade e do enigma da arte, vividos
intensamente no trajeto de Severino. Portanto, é possível notar que as pontuações que os
poemas nos fazem são inesgotáveis e possíveis de serem revisitadas e repensadas. Andar, ler,
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reler e sentir. Assim a poesia nos ensina a vivê-la, pois para falar dela precisamos nos
apropriar dela e narrar o nosso próprio caminho.
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1. O PRIMEIRO CONTATO

Era uma manhã como outra qualquer. A chuva ainda vinha um pouco tímida descendo
pelo vidro, mas ela insistiu em abrir a janela. Como aquelas gotas, levadas pelo vento,
beijavam-na de modo que seus olhos se fechavam como uma forma de agradecer pela
experiência matinal.
Ao lado da janela, uma mesa com um livro ainda por ler. Olhou como quem encara um
objeto convidativo e relembrou o que lera na noite anterior. As primeiras páginas
apresentavam um homem comum que habitava um local cuja aridez o obrigou a sair do lar.
Severino começou se apresentando e foi aí que a poesia armou uma questão para ela. Os
versos magros do poema expunham um ser. Mas quem era aquele? Ela se perdia na tentativa
inconsistente de definição do poema.
Ao falar, costurava as sílabas e formava o texto; entretanto, o que estava sendo traçado
era algo sem definição, um homem falho e feito de areia. Quem era aquele homem? Quem era
aquele verso que dizia ser Severino? Ela via uma imagem que oscilava entre aquele o qual
estava se constituído e o seu próprio rosto. Em cada respiração realizada entre uma sílaba e
outra, aquele eu dúbio resurgia firmando a incerteza poética.
Enquanto o poema dizia ser o Severino, filho do finado Zacarias, uma ansiedade
tomou conta do seu corpo. Impaciente, ela olhava pela janela a chuva que apertava e repetia
os versos como se quisesse expor os ossos de um animal morto. Dizia as palavras como se
abrisse, com a boca, a carne e buscasse o horror e a aridez do que precisava ser dito, mesmo
não conseguindo se definir:
Somos muitos Severinos
Iguais em tudo na vida:
Na mesma cabeça grande
Que a custo é que se equilibra,
No mesmo ventre crescido
Sobre as mesmas pernas finas,
E iguais também porque o sangue
Que usamos tem pouca tinta.
(MELO NETO, 2012, p.92)

Era como se, ao tentar se definir, Severino afirmasse a sua indefinição. E isso a
deixava confusa, porque serra ossuda e magra anulava Severino, deixando-o escapar. Então,
continuou acompanhando o poema, que, assim como um pastor, guiava seu rebanho e ia (des)
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construindo seu caminho. O livro se fechou como um por do sol visto do alto da serra, onde
ela morava. Entretanto, a tarde ainda iluminava o quarto pequeno, aquecendo a cadeira para
os passeios noturnos pela poesia de Alberto Caeiro.

Enquanto isso, ela resolveu sair de casa e descer a serra de carro para comprar o que
ainda faltava para o jantar; porém, o caminho a fez dos versos de do guardador de rebanhos,
livro o qual revisitava constantemente e que fazia companhia a João Cabral na mesa de cor
azul, ao lado da janela. O pensamento sobre qualquer coisa é apenas um reflexo, uma tristeza.

Os versos martelavam em sua cabeça: “Eu nunca guardei rebanhos,/ Mas é como se os
guardasse.”. O poema escapava de sua visão como um bicho indefeso. Sentia que sua visão
era inútil por isso, mas continuava receptiva às palavras. O caminho feito pelo olhar atento,
logo nessa primeira parte de “O guardador de rebanhos”, a deixou pensando em que tipo de
terreno a poesia se manifestava se ela diz de forma direta que nunca guardou rebanhos.

Parecia que a poesia havia se instalado por todos os cantos do centro da cidade: na flor
um pouco murcha que comprara do vendedor, nos pães e tomates frescos, no jornal repetitivo
e triste que lia apenas por hábito, no homem que a olhava como um quadro, na mão que
levava o café à boca e nas meninas, que de dentro da sala de dança, pareciam as bailarinas de
Edgar Degas. Do mesmo modo que a poesia se fazia presente nos cantos agradáveis e
cotidianos, ela também se instalava no beco, numa relação mútua de troca. Era possível vê-la,
por exemplo, nas mãos vazias do mendigo que fedia, na carne crua jogada na rua para o
cachorro magro, no menino sujo que roubava o relógio de uma barraca e saía, em disparada,
esbarrando nas pessoas e pisando nas poças de água.

Esses elementos, fragmentos de uma tarde, formavam um poema composto por


colagens de um olhar que fotografava apenas o essencial para aquela alma ordinária. Essa
alma trazia questões de poemas que se fundavam em terrenos movediços. Por um lado, o
poema pastor, que nunca guardou rebanhos, manifestando-se em um solo pouco úmido; por
outro, um poema Severino acontecendo num terreno de impossibilidades.

À noite, após o jantar solitário na mesa de quatro lugares, foi até o quarto, onde a
cadeira estava à sua espera o dia inteiro. Um fato curioso de ser dito é que ela pegava os dois
livros para a leitura. Um ritual sagrado, pois esses poemas se complementavam à medida que
iam tecendo seus pensamentos. Esse processo de evocação emanava por seus poros, a fim de
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transcender o corpo que abriga a voz e os movimentos dos gestos. Falava “cadeira”, “flor” e
direcionava o olhar para o espelho: assim acontecia a fusão artística do instante. 1

Na primeira estrofe do poema de Caeiro, o sentimento de tristeza com a chegada da


noite- que entra como uma borboleta pela janela- se instalou como algo necessário, um
sossego, o que nos coloca a ideia de que a poesia se faz diante de um sentimento inevitável:

Mas minha tristeza é sossego

Porque é natural e justa

E é o que deve estar na alma

Quando já pensa que existe

E as mãos colhem flores sem ela

Se dar por isso.

(CAEIRO, 2012, p.79)

O sentimento de tristeza invadia o seu peito pulsante. Seca tristeza circulava


organicamente quando lia aquelas linhas. Tão natural quanto o gesto do poema de colher
flores é do balançar de sua cadeira nesses momentos de descontentamento, em que tudo que
se vê da janela é a névoa iluminada pelo poste. “Mas, por serem inconscientes, essas ações
podem ser chamadas de manifestações poéticas?”, ela pensou. Todavia, tão natural quanto
anoitecer é a morte severina, que ocorre numa terra tão castigada:

...que é morte de que se morre

De velhice antes dos trinta,

De emboscada antes dos vinte,

De fome um pouco por dia

De fraqueza e de doença

É que a morte Severina

Ataca em qualquer idade,


E até gente não nascida.

(MELO NETO, 2011, p.92)

1
Benjamin, W. 1993, p. 72: “Da relação produtiva e receptiva com a arte Schlegel fala: ‘A essência do
sentimento poético talvez esteja no fato de se [...] poder afetar apenas a partir de si mesmo.’ Ou Seja: o ponto de
indiferença da reflexão, no qual esta surge do nada, é o sentimento poético.”
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A morte da qual a poesia falava parecia ser um pouco sentida quando da janela o vento
gelado passeava pelo quarto e tocava a sua pele. Dava um arrepio que a fez fechar os olhos,
um gesto tão natural e triste. Diante desse fragmento de morte e vida, ela viu no poema uma
questão referente à morte como consequência inevitável de um lugar extremamente seco. Ela
dizia para si, fixando o chão:

- Eu olho para esse poema como algo animal, vivente. Ele se move num ritmo
diferente do pastor. Seria ele um ser estranho capaz de viver nesses lugares magros e vagos. A
poesia o alimenta, porém, sua fome parece cada vez maior à medida que sigo os versos. Fome
e náusea compõem meu corpo ao ler as estrofes. Não sinto vontade de me saciar. Se devoro
estes versos e raspo cada migalha, é porque quero abrir ainda mais esse buraco que, em mim,
é a miséria, a ausência que me completa.

Sentindo o sono crescer em sua alma, pousou os livros sobre o colo e “Morte e vida
severina” lhe propôs um outro questionamento a ela. O próprio título coloca morte e vida lado
a lado, de modo a não eliminar essas duas condições. Ela dizia repetidas vezes: “Morte E
vida!”. Dessa forma, ela colocava morte e vida como questão poética, ou seja, como o teor do
poema, o centro daquele acontecimento.

Esse também não seria o teor da sua leitura noturna? “Vida e morte severina” e “O
guardador de rebanhos” abertos e lidos juntos; a mão sobre as folhas de um poema e os olhos
captando as imagens do outro, colocando-as num papel em branco que está na sua cabeça. A
composição das suas noites seria o de fundir esses objetos artísticos numa espécie de simbiose
natural. Ela captava cada palavra para a constelação de seu céu particular esses elelmentos se
misturavam formando uma única galáxia. Seu rebanho precisava disso para viver. Era o
alimento vital.

A necessidade de colocá-los de volta à mesa se deu porque o caos instalado na sua


mente a sugava de tal forma que seria preciso repousar o corpo e a mente. Aqueles versos
ainda estavam presentes, gritavam nas paredes que ela fitava. A poesia habitava seu corpo de
forma tão densa que o corpo se rendeu ao descanso. Nesse momento em que deitou, sentiu em
suas costas um movimento de ondulação. Era como se estivesse em alto mar, e aquelas
palavras agora tocassem em sua pele com a ponta dos dedos.
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Na manhã seguinte, ao despertar, ela pegou “O guardador de rebanhos” e foi à frente


da casa, onde avistava apenas montanhas e o centro da cidade lá embaixo, um pequeno
formigueiro. Abriu na página que deixara marcada e releu a estrofe em que o poema dizia que
ser poeta não era uma ambição, mas, uma forma de estar sozinho no mundo. Ao ler
novamente esses versos, uma outra questão se armou: “Eu, quando leio, também estou só.
Não me sinto acompanhada e confortável com Severino ou com o guardador de rebanhos.
Pelo contrário. Sinto-me ainda mais perdida.”, disse ela em voz alta. Quando lia seu corpo
recebia uma dose poética que saciava apenas por um momento. Era como se estivesse
esvaziando um copo pondo o líquido no outro. A experiência evocada naquele momento fazia
com que sentisse o calor do sol da manhã mais forte em seu rosto e um pouco de alegria
também.

O guardador de rebanhos sentia a escrita ao pôr do sol nas mãos frias dela.
Desmembrou a sombra no espaço em branco de linhas. Com os olhos semicerrados, pesados,
ela se pôs diante da folha. Via nas linhas o processo de escrita como um gesto solitário, no
qual pode sentir a nuvem que passava por cima da luz e o silêncio que passava pela erva. Com
o livro ainda apoiado no colo, levantou seu rosto e pensou por que a poesia proporcionava
essas imagens tão capazes de serem sentidas. Talvez, o papel em branco teria alguma
influência para o poeta e para o leitor sobre esse estar sozinho.

Procuro despir-me do que aprendi,

Procuro esquecer-me do modo de lembrar que me ensinaram,

E raspar a tinta com que me pintaram os sentidos,

Desencaixotar as minhas emoções verdadeiras,

Desembrulhar-me e ser eu, não Alberto Caeiro,

Mas um animal humano que a natureza produziu.

(CAEIRO, 1997, p. 43)

Não havia nada mais perturbador do que aquelas linhas, estradas insistentes que não
esclarecem coisa alguma. Ela resolveu levar o livro para dentro da casa, seu rosto estava
quente e o suor, devido ao calor, incomodava-a. De repente, uma gota deslizou pelo seu rosto
e caiu em uma das palavras do poema, gerando um limbo entre passado e futuro naquela flor
15

que acabara de desabrochar 2 . Era como se o tempo girasse apenas naquele presente da
mancha. Enquanto isso, seus olhos fitavam a página, a fim de acompanhar o movimento de
cada pétala. Admirada, ela dizia:

-Essa flor manchada sobre a palavra “mãos” já estava aí. Antes de ela externar sua
existência em meus olhos. O que vejo é o que ela deixou de ser. Já não está mais aí, como
penso que vejo. Esse sombreado em tons de cinza é o que a palavra “mãos” deixou de ser.
Meus olhos ardem um pouco, e minha memória vai apagando a rosa em mim.

Mas, não fazia calor. O vento gelado ainda passeava pela serra, não deixando a luz do
sol aquecer o dia. Sentira o incômodo da luz, porque a poesia, feito lâmina, entrava seu
pensamento. De volta ao quarto, ela pegou o poema e leu:

Quando me sento a escrever versos

Ou, passeando pelos caminhos ou pelos atalhos,

Escrevo versos num papel que está no meu pensamento,

Sinto um cajado nas mãos

E vejo um recorte de mim

No cimo dum outeiro,

Olhando para o meu rebanho e vendo as minhas ideias,

Ou olhando para as minhas ideias e vendo o meu rebanho,

E sorrindo vagamente como quem não compreende o que se diz

E quer fingir que compreende.

(CAEIRO, 2012, p.80)

Os três primeiros versos fizeram-na entender o olhar como algo capaz de projetar a
poesia em seu pensamento. Cada palavra entrava em sua mente e manifestava seu significado
poético nesse fluxo contínuo. Parecia que agora elas moravam lá, entretanto, ao ecoarem lá
dentro, desfaziam-se repentinamente. Isso a deixava um pouco frustrada, como uma criança
que quisesse segurar o ar com as mãos. Ela sentia aquela escrita como um caminho cheio de
curvas pelo qual o gesto solitário se firmava.

2
Ibidem, 2013, p.84: “...essa magia temporal aparece sobretudo na mancha, no sentido em que a resistência do
presente entre o passado e o futuro é eliminada, irrompendo passado e futuro numa conexão mágica sobre o
pecador.
16

“Sinto um cajado nas mãos”, diz o poema representando a imagem da caneta- ou o


cajado- na mão que faz do poeta um fingidor do que deveras sente ao tentar ordenar suas
ideias ou o seu rebanho, de modo a olhar o rebanho e ver suas ideias ou ver suas ideias e olhar
seu rebanho; relação que não opõe. E ela voltou a mirar aquela mancha, que agora fazia parte
do poema. Do outro lado da página, o sinal era mais fraco, porém, se fazia presente como uma
resistência ao agora.

Um fingidor que sorri sem compreender o que se diz. O poema a lança num abismo
constante dos seus versos. Ela sorriu de volta, mas aguardou esperando, apreensiva, o que
viria. As mãos suaram um pouco entre o sorriso e a espera. Ela folheou algumas páginas
pensando: “Onde pisar se vida e morte se fundam um caminho escrito à sombra de uma
nuvem que paira sobre o papel?”. O sorriso que não compreende era uma tentativa falsa de se
acalmar, de dizer que , talvez, o entendimento virá. Ele não veio, sequer existe.

Suas articulações ficaram mais rígidas, tornando cada movimento dos braços e dos
joelhos mais difíceis. Ela levantou-se. Seus passos estalavam e denunciavam seu gesto por
vir. Mas, o sorriso de quem não compreende é angustiante e necessário à sua leitura. O novo
se exibe e graceja incompreensivelmente para ela. “Provocador! Me sinto perdida em seu
redemoinho!”, ela disse. Caminhando pelo quarto, a sombra nos versos turvava um pouco sua
visão, enquanto isso, a mão pressionava um pouco mais o livro. Não conseguia largar e parar
de ler. Ela era tomada por aqueles recortes de experiências que se externavam quando uma
palavra era pronunciada. O som, a respiração, o tempo que levava da primeira à última sílaba,
tudo era um infinito. E já não sabia o que viria após soltar o ar, mas isso fazia com que seu
sangue pulsasse com mais calor e mais avidez. 3 Um sangue que parecia jorrar toda vez que
um verso era evocado. Sangue de pouca tinta e severino, mas que tomava conta de seu corpo e
manchava o poema com a teimosia de alguém que quer ter voz.

Ela amarrou os cabelos como se estivesse querendo uma maior concentração para
enfrentar essa série de experiências proporcionadas pelo cajado do poeta. Todavia, ligar as
luzes do quarto- a luz da tarde não iluminava mais com tanta intensidade- prender os cabelos,
fechar a porta e sentar-se de frente para a janela não era uma maneira de absorver a poesia
desses livros. O que ela recebia daquele cenário já era outra forma poética que se colocava
agora em primeiro plano em sua mente. Uma cena que, ao ser vista e pensada, já se

3
ADORNO, Theodor W,1951, p.229: “O novo, um ponto cego da consciência, esperado como que de olhos
fechados, parece ser a fórmula pela qual do horror e do desespero se obtém valor de estímulo.”
17

modificava e não estava mais ali. Era como se agora ela manuseasse o cajado, assumindo
outra direção de escrita.

Entretanto, os livros sugeriam caminhos para que ela se perdesse na experiência


extraordinária da poesia. Ao longo dos poemas, passou a observar o sol se pôr sem tristeza,
pois essa era a condição natural e inevitável desse tempo cíclico. Ao sentir frio no fim de
tarde, a sensação era de alívio, pois o frio era necessário para que a noite chegasse. Ela passou
a mão no braço e percebeu que também era um elemento cíclico, que também era parte da
natureza. Seus ossos tremiam devido ao ar gelado que entrava pela janela. Aquilo lhe causava
dor e uma vontade de gritar. Os dentes batiam um no outro num ritmo descoordenado; apesar
disso, ela não se moveu para fechar a janela, pois aquele ar gélido interrompia, junto com a
poesia, a calmaria do dormitório.

Resolveu andar pelo quarto a fim de que pensar sobre olhar pra si. A luz acesa não
ajudava, logo, resolveu deixar apenas o abajur ligado. Pensando acerca do poeta, ela lembrou-
se do impasse deixado pela última estrofe lida, então falou: “Se o que o poeta vê é um recorte
de si mesmo, logo, esse fragmento de identidade refletido na poesia das palavras seria algo
manifestado apenas pela condição de estar só quando escreve?”.

“Ser poeta é estar só, carregando na mente um papel sempre disposto ao acaso da
poesia”, pensou. Em silêncio, ela lia aqueles versos que começavam a ser escritos em seu
papel em branco; apesar de já estarem lá, ela só os notou quando a poesia foi evocada. Cada
verso estampava uma mancha nela, parecendo uma tatuagem causada pela experiência de
estar só.

Outra colocação que o poema apresentou para ela foi o desejo de ser qualquer coisa
natural quando o leitor pousa os olhos nos seus versos. Essa vontade seria a de que sua
experiência não caia num pensamento contaminado pelo que está ao redor. Nesse instante, o
telefone tocou na sala, um despertar para a sua casa, para a vida que ainda escorria fora
daquele processo de imersão. Foi até a sala com passos decididos a desligá-lo da tomada.

Chegando lá, o toque do telefone já havia cessado, mas o barulho do vento insistia em
entrar pela fresta da janela. Fitou por alguns segundos aquela cortina branca esvoaçante como
uma dançarina em uma única e efêmera apresentação. Após o espetáculo, ela caminhou para o
corredor. Seus passos eram calmos, apesar da dor que sentia no estômago. Uma dor pela qual
18

foi pega de surpresa. A sensação de aperto e paz que mesclava em seu rosto e pulsava em sua
cabeça até o momento em que chegou ao quarto.

No cômodo, o livro e seu rebanho de versos estavam lá, para que ela se confrontasse
novamente com a experiência poética. Nesse momento, a poesia deu a imagem de uma
cadeira ao pé de uma janela aberta, desejando que o leitor obtivesse esse cenário para, então,
lê-lo. Nesse momento a dor no estômago ainda causava incômodo, porém esse imprevisto fora
inserido nessa experiência que brotava em seu quarto:

Saúdo todos os que me lerem,

Tirando-lhes o chapéu largo

Quando me veem à minha porta

Mal a diligência levanta no cimo do outeiro.

Saúdo-os e desejo-lhes sol,

E chuva, quando a chuva é precisa,

E que as suas casas tenham

Ao pé duma janela aberta

Uma cadeira predileta

Onde se sentem, lendo os meus versos.

E ao lerem os meus versos pensem

Que sou qualquer cousa natural-

Por exemplo, a árvore antiga

À sombra da qual quando crianças

Se sentavam com um baque, cansados de brincar,

E limpavam o suor da testa quente

Com a manga do bibe riscado.

(CAEIRO, 2012, p.80-81)

Fechou o livro, deixando-o ao lado da poesia severina, na mesa azul, para abrir um
pouco a janela. As gotículas de chuva foram entrando para beijarem a face. Nesse momento
ela se lembrou da passagem que dizia: “Pensar incomoda como andar à chuva/ Quando o
vento cresce e parece que chove mais”. Resolveu não vivenciar aquela noite apenas da janela,
19

como um mero espectador 4. As gotas a convidavam para ir à frente da casa, olhar a cidade e
perceber como as luzes piscavam como vagalumes vistos de cima.

Ela foi e, ao pôr os pés do lado de fora, sentiu a essência da poesia por um momento.
Abriu as mãos para receber a chuva, mas fechou os olhos para que a alma registrasse a chuva
por vir. Cada gota era uma surpresa, pequenos estalos em seu corpo como estrelas
adormecidas. Ela não pensava em nada, pois, naquele instante, estava totalmente envolvida
aos movimentos inconscientes que a chuva provocava. Levantava os braços enquanto sua
respiração se dava de modo mais profundo. O fluxo sanguíneo parecia circular de modo mais
calmo.

O que estava diante dela era o necessário para a sua existência. Seu peito se enchia de
ar gelado e sua alma alcançava um estado sublime de paz. Os versos ainda estavam lá, cada
gota trazia uma palavra, sussurrava um verso que saía de sua boca.

O tempo era medido entre um pingo e outro. A medida do espaço era até onde sua
vista pudesse alcançar. Às vezes, olhava a casa, a luz acesa e a cadeira fora do lugar davam-
lhe a sensação de que seu dormitório estava à espera de seu retorno, mas ela não conseguia se
mover de onde estava.

Agachou-se e passou a mão na grama. Sentia cócegas ao acariciar a planta molhada.


Após esse movimento, sentou-se no chão e continuou observando as pequenas plantas e
refletindo sobre a densidade daquele instante. Aquilo era o que o poema havia dado a ela: a
simplicidade do imperceptível de seu cotidiano só fora notado naquela noite, diante daquele
gesto.

“Saúdo-os e desejo-lhes sol,/ E chuva, quando a chuva é precisa” (CAEIRO,2012,


p.81). A brisa desses versos preenchia-lhe naquela noite de vagalumes urbanos. Eles piscavam
e ela, hipnotizada por aquelas luzes, sorria. Por quanto tempo ficara ali sentada? Já estava
muito tarde? Só sabia que a sua vida se resumia àquele momento em que sentia o gramado
verde e molhado em sua mão.

4
Ibidem, p.233: “A propensão para o ocultismo é um sintoma da regressão da consciência. Esta perdeu a força
para pensar o incondicionado e ultrapassar o condicionado. Em vez de determinar ambos, mediante o trabalho do
conceito, segundo a unidade e a diferença, mistura-os sem distinção.”.
20

2. UM INSTANTE EM SEU QUARTO

A manhã chegou para abrir seus olhos novamente. Porém, ela não se espantou com a
claridade que iluminava a mesa do quarto; já estava com os olhos abertos, perturbados com o
redemoinho causado pelos poemas.

Saiu de casa, pegou o carro e tomou a serra a fim de respirar o ar movimentado da


cidade. No caminho, cada detalhe era abraçado pelo olhar. As palavras do guardador de
rebanhos vieram com a brisa matutina:

O meu olhar é nítido como um girassol

Tenho o costume de andar pelas estradas

Olhando para a direita e para a esquerda,

E de vez em quando olhando para trás...

E o que vejo a cada momento

É aquilo que nunca antes tinha visto...

(CAEIRO, 2012, p.81)

Como eram bonitas as folhas das árvores chuviscadas pelas gotículas de orvalho! E o
homem que caminhava pela estrada carregando madeiras nos ombros parecia carregar a
tristeza de uma vida de nãos. Seus ombros curvados davam a ela a sensação de que a vida o
havia moldado daquela forma. E ela continuou a contemplar o cenário como um girassol que
vive a captar o sol. Um olhar fixo naquela paisagem viva e adormecida na qual cada luz
surgia e desaparecia numa fração de segundos. Ela permanecia com os olhos fixos no agora.

A sensação de olhar aquilo tudo não era de naturalidade, haja vista que naturalizar
aquelas cenas (ou qualquer outra) seria uma forma de dominá-las, e não era essa sua intenção.
Como ficava feliz ao fitar as roupas no varal em frente a uma casa. Elas balançavam e aquilo
a deixava feliz como uma criança que olha pela primeira vez algo singelo. A eterna novidade
do mundo era o que aqueles olhos captavam; um renascimento constante de quem não pensa
no mundo, apenas o vê, “porque pensar é não compreender.”.

Resolveu parar um pouco, porque do lado esquerdo avistara uma cachoeira. Sentou-se
perto da água para sentir o frescor e o respingar das gotas. Esqueceu-se dos compromissos no
momento em que a poesia tocou-lhe o braço. Esqueceu-se porque as coisas do mundo não são
21

para serem pensadas, mas sentidas. O tempo da água seguindo o curso e da sua mão o
interrompendo não fora feito pra ser pensado. Refletir acerca disso seria estar doente. E,
enquanto via a paisagem, a sua consciência surpreendia aquilo que já estava ali, era uma
sucessão de imagens poéticas as quais penetrava seu interior, que recebia tudo com a
intensidade do olhar novo.

“Em qual tempo a poesia se manifesta se essa água que escorre entre meus dedos não é
a mesma? Em qual tempo a poesia se manifesta se a folha caiu da árvore num instante em que
coloquei meus olhos nela”, ela sussurrou. Seus olhos continuam fixos na água a qual corre e
leva uma folha cor de terra. Sua força de queda gera um pasmo essencial em quem a
contempla.

Ela então percebeu que não é cabível ter filosofia alguma diante da experiência
poética. O pastor, ao contemplar a natureza, diz que, quando fala da poesia, não é porque
saiba o que ela é, mas porque a ama. Enquanto ela se perguntava sobre o tempo, ele se
manifestava pra ela entre o desprendimento da folha e o seu contato com o chão. Logo viu
que não podia falar do tempo nem contá-lo em segundos, haja vista a impotência do tempo
convencional diante da natureza.

Esse tempo era a arte se expondo pra ela, mas se deixando oculto também. Ele se
mostra, e ela percebe que esse tempo faz parte dela, pois ela, do mesmo modo, é natureza.
Esse reflexo, entretanto, mantinha uma obscuridade a qual não sabia dimensionar. Esse gesto
simples bastou para que ela não pensasse no tipo de árvore que originou aquela folha marrom.
Por um momento, surgiu uma questão em sua mente: o amor seria uma condição fundamental
para a manifestação poética? O poema deixado em casa naquela manhã ecoava em sua pele:

Eu não tenho filosofia: tenho sentidos...

Se falo na natureza não é porque saiba o que ela é,

Mas porque a amo, e amo-a por isso,

Porque quem ama nunca sabe o que ama

Nem sabe por que ama, nem o que é amar...

Amar é a eterna inocência,

E a única inocência não pensar...

(CAEIRO, 2012, p.81-82)


22

Resolveu voltar à casa para ler mais um pouco dos versos que viviam em seu quarto.
Ao entrar na sala, quis fechar as janelas para que pudesse se concentrar na sua própria solidão.
Foi ao quarto a fim de pegar o livro de João Cabral para lê-lo no sofá, sob a luz da tarde. Ao
abrir o livro, viu que o irmão das almas passava carregando na rede “um defunto de nada”, um
Severino lavrador. O primeiro cruzamento com a morte a deixava de olhos atentos, mas sem
medo algum, pois entendia ser o curso da vida, como a água que passara entre seus finos
dedos. Mas, e o curso da poesia? Seus olhos levantavam a fim de que pudessem refletir
melhor.

A morte se apresentou no poema para ela com um corpo comum vindo da Caatinga
mais seca, cuja terra não dá nem “planta brava”. Ela lia, o olhar atento estava em Severino,
que seguiu com as perguntas ao irmão das almas. Ele era o pastor que tomou o cajado para
conduzir o olhar. Nesse momento, Severino e o guardador de rebanhos estavam nela,
compondo o seu corpo e o seu olhar; porém, essa fusão não os fazia perder a unicidade
artística. Eles se manifestavam nela organicamente durante os dias, à medida que olhava a
cortina esvoaçante no quarto ou a cidade lá embaixo que tinha uma vida.

A morte, sobre a qual falara Severino, foi de bala desocupada que, perfurando o
homem, mudou a rota do seu destino. Ao ler esses versos, ela pensou na poesia como algo
feito de emboscadas, afinal, sua escrita é interrompida ao término de casa verso. A
interrupção seria uma espécie de fôlego para a retomada do trajeto? As mãos procuraram a
xícara de café numa pausa repentina. Mirar o entardecer não era mais tão confortável como
antigamente. O céu enganava sua mente ao se apresentar de forma alaranjada. Ele possuía
uma cor que ela desconhecia, uma mistura que era como se o fogo estivesse queimando seus
olhos e apagando, aos poucos aquele dia. Tudo morria lentamente na ponta verso.

De repente, uma súbita vontade de retomar a leitura invadiu seu olhar. A ave-bala teria
perfurado sua pele, causando uma ardência e queimação por dentro. O café ficara um pouco
frio, logo, foi deixado de lado. A bala que achou Severino lavrador entrou em seu corpo sem
alguma forma de pensamento, no plano da experiência mais intensa, e não na filosofia. Ela
apertava os olhos na tentativa de suportar aquele incômodo e fechava as mãos
constantemente; quanta aflição numa partícula infinita de tempo, esse grão profundo e
invisível a olho nu.

E o olhar retomava o verso:


23

- E agora o que passará,

Irmão das almas,

O que é que acontecerá

Contra a espingarda?

-Mais campo tem para soltar,

Irmão das almas,

Tem mais onde fazer voar

As filhas-bala.

(MELO NETO: 2011, p. 96)

Ela via nessas balas a propagação da poesia num terreno indefinido e ilimitado.
Pensou em como a bala alojada em seu corpo se incorporou nele como um órgão
transplantado. Então, ela colocou a mão no peito a fim de sentir a forma do projétil que
atingira Severino. Os dedos captaram em seu seio a pequena ondulação do objeto intruso. Ela
foi tomada por uma sensação estranha de prazer e irritação, sentimento obscuro que a deixava
sem palavras para se expressar.

Lá fora, um céu alaranjado se escondia aos poucos para que a noite gélida finalmente
entrasse com a sua tristeza pela fresta insistente da janela. A tristeza bem-vinda, natural,
deixava o seu quarto mais propício à leitura. Os passos calmos no corredor, em direção ao
quarto, pareciam carregar um objeto inconveniente, insistente em se lembrar de sua
existência. A poesia estaria ali se manifestando novamente? “Vou eu, que a viagem é longa,/
irmão das almas,/ é muito longa a viagem/ e a serra é alta”.

Deixando o dia de lado, a noite acontecia como uma exteriorização do vazio que a
deixava só. Sentada na cama, olhando a janela, encarava “O guardador de rebanhos” no meio
da mesa azul com “Morte e vida” em seu colo. Não havia uma possibilidade de escolha. As
mãos insistiram em abrir aquele caminho. O enterro ainda não acontecera. O corpo ainda
estava no caminho do verso.

E se pensava no repentino diálogo de Severino com o irmão das almas é porque o


acaso lhe chamara atenção. O homem com um defunto, o qual foi vítima do voo da bala,
obteve seu caminho interrompido por um retirante que buscava vida. Para ela, olhar esses
diferentes destinos que se cruzavam na sua frente era algo que só aquelas palavras poderiam
24

proporcionar. Essa dualidade refletia no espelho dos versos mutuamente e ela colocava o dedo
em cada letra, como quem reza o terço.

O olhar lançado em direção à janela a distanciou por alguns instantes da página um


pouco amarelada, resquícios do tempo. À esquerda, a luz do abajur iluminava uma parte do
chão perto da cama assim como um refletor de um teatro pequeno. Se o ator abandonara o
espetáculo e o silêncio assumia aquele lugar melancólico, talvez seja porque a plateia
precisasse desse momento de quebra de expectativa.

O irmão das almas resolve seguir seu curso:

- Mais sorte tem o defunto,

Irmão das almas,

Pois já não fará na volta

A caminhada.

- Toritama não cai longe,

Irmão das almas,

Seremos no campo santo

De madrugada.

- Partamos enquanto é noite,

Irmão das almas,

Que é o melhor lençol dos mortos

Noite fechada.

(MELO NETO, 2011, p.97)

A noite que acolhe aquele corpo- ela refletia- abriga o sentimento de estar ali
carregando aquele que já não é. Ela disse para o silêncio do cômodo: “Como a escuridão
aguça a inocência da descoberta! Como ela não dá espaço à criação de um pensamento para
aquelas imagens tão singelas que eu vi! Eu olho aquele corpo sendo carregado e cruzo meu
olhar com o de Severino, pobre homem que raspa o último resquício de vida!”.

A noite seria a experiência mais ínfima da poesia? Seus cabelos agora aqueciam sua
nuca. Ela mordia os lábios como um animal apreensivo à espera de mais um ataque; porém,
esse golpe não viria de fora pra dentro, pois era algo sedutor e enigmático como a noite. Isso
25

vinha dos tecidos de sua pele, uma espécie de agressão mais perspicaz. Os olhos do animal
felino a fitavam entre um verso e outro. 5

Ela olhava para o quarto, que parecia uma colagem de fragmentos do acaso. Enquanto
dizia alguns versos, sua voz parecia um pouco rouca por causa do frio que toda noite entrava
pelo quarto. Ela declamava palavras como uma atriz em seu último ato. A única luz era a do
abajur. À direita, um álbum de fotos se encontrava em cima da cômoda um pouco
empoeirado. As fotografias funcionam como uma tentativa de perpetuar as vivências da vida.
Eram fotos de um verão em que acampara com seus amigos, de uma planta que enfeitava o
canto da sala de sua antiga casa e outras, que estavam desfocadas, de momentos dos quais ela
não se lembrava. “Tentativas tolas!”, ela dizia com a voz mais alterada, afinal, a lembrança
dos momentos nunca trará as vivências perdidas de volta.

Então, ela jogou o álbum numa lixeira, jogou fora as memórias, o que chamava de
passado presente. Observou que aquele objeto era uma espécie de defunto ainda por enterrar.
Mais tarde, sussurrou novamente as palavras de “O guardador de rebanhos”: “Eu não tenho
filosofia: tenho sentidos...” (CAEIRO, 2012, p. 81). Se esse trecho retornou aos seus olhos, e o
motivo seria esse corpo que seguia embalado no lençol dos mortos, pois não havia como
refletir sobre esse caminho cruzado com a morte.

Suavemente, sentia a aspereza do chão de madeira que rangia ao ser tocado. Chão
desnivelado pelo tempo, aquecido pela luz amarela, guardava um pouco de poeira entre um
taco e outro. Aquele acúmulo era uma forma de resistência dos resquícios que não quiseram
ser retirados do ambiente ao qual eles pertenciam. Ninguém notava aquela poeira ali, pois,
quando limpavam o quarto, se preocupavam apenas com o que estava ao alcance dos olhos.

Passavam os olhos, mas não olhavam e sentiam o que estava ali, instalado entre uma
madeira e outra. Ela pensou, enquanto olhava para o chão, que a poesia seria esse acúmulo de
experiências que resiste às possíveis tentativas de limpeza, de ordem. Fitou ainda por mais
algum tempo, mas não se moveu para retirar a poeira instalada ali. Seus pés acariciavam o
chão como se estivesse pisando nele pela primeira vez; entretanto, o toque é sempre uma nova
experiência, de vida, e de morte também.

5
ADORNO, Theodor, 1970, p.156-157: “Deve também ser sempre pensada: ela própria pensa [...] A obra de
arte é ao mesmo tempo processo e instante. [...] Quanto mais o trabalho social contido na obra de arte se
objectiva e plenamente se organiza, tanto mais ela soa a oco e se torna estranha a si mesma.”
26

Ela viu o solo seco por onde Severino caminhava como uma espécie de subversão
necessária à arte poética. “O que o faz caminhar insistentemente por esse chão? Não sabemos.
Aliás, sabemos que ele caminha para sobreviver, para estender seus anos de vida emendando
um fio a outro”, ela disse. O pé sujo pelo pó da estrada carregava palavras ditas e por dizer,
assim como a folha de papel que estava em suas mãos:

-E de onde que o estais trazendo,

Irmãos das almas,

Onde foi que começou

Vossa jornada?

-Onde a Caatinga é mais seca,

Irmão das almas,

Onde uma terra que não dá

Nem planta brava.

(MELO NETO, 2011, p.94)

Voltando ao cenário do quarto, aquele chão ainda a despertava um sentimento de um


desconforto prazeroso. Os pés resolveram caminhar em direção à janela, a fim de ver a aurora
nascer naquelas montanhas. Um azul claro, ainda frio, vinha esvaziando o vazio que lá fora
estava instalado. “Amar é a eterna inocência,/ E a única inocência não pensar...”, leu
novamente esses versos que ficaram em sua mente e, cada vez que os evocava, redescobria o
significado do amor.

Entretanto, quando pronunciava os versos, não se referia à forma idealizada, aquela


que a TV e o rádio propagavam sobre o seria o amor. Não. Era o sentimento na sua
experiência mais viva e pura, capaz de proporcionar o pequeno sopro o qual varre qualquer
indício de filosofia presente. Ela sentia o amor, porque via aquele azul se abrindo em sua
janela; ela sentia o amor, porque o cheiro indescritível da manhã se espalhava em seu quarto;
ela, então, sabia o que era o amor.

Ali dentro do quarto, a sensação de que nunca mais iria repousar a cabeça no
travesseiro era certa, devido à intensidade do trajeto da poesia retirante. Quando achava que
estava prestes a dormir, as imagens e palavras divagavam nela, provocando uma inquietação
que lhe doía a cabeça. Virava-se de um lado para outro. Sentia um aperto no peito que lhe
dava vontade de fazer algo para cessar aquela dor, porém, decidiu apenas murmurar e deixar
27

aquelas ideias e sentimentos brincarem em sua mente. Não podia lutar contra algo que vinha
de dentro, por isso entregou-se até sentir o último resquício de inquietação. Em seguida
adormeceu profundamente sem notar o amanhecer surgindo em sua janela. O dia já estava
chamando. Era quinta-feira.
28

3. O PENSAR SOBRE A VIAGEM

Como a casa era fria de manhã! Parece que a noite ainda se despedia. Observando
aquela calmaria, ela resolveu caminhar em direção ao sul. A terra, ainda molhada pelo sereno,
tinha um cheiro de frescor, diferente do solo do poema no qual nada brotava. Seus olhos
ardiam um pouco, efeito da intensa noite em que passara acordada. Ela sentia um cheiro que
não poderia ser comparado a outro e que, em sua mente, possuída até uma cor também
inexistente, então o denominou como o cheiro da manhã.

Ela olhou para a sua direita e viu uma criança sentada no chão colocando um pouco de
terra do canteiro num balde vermelho. A mãozinha em concha acolhia os pequenos grãos
úmidos; mas, logo em seguida, a voz de uma senhora se espalhava pelo lugar. Essa mulher
advertia o menino por estar brincando ali. Observando a cena, essa repreensão era um gesto
que impedia a descoberta daquele ser desprovido de moral. Uma atitude lamentável que fazia
seu pensamento pensar na filosofia que poda. Ela lembrou que podar significava retirar os
ramos ou braços inúteis de uma planta:

- Como julgar um ramo como algo inútil? E uma palavra? Eu a alimento com meu
rebanho e alimento o meu rebanho com suas letras. O que vejo nelas é um mar de
possibilidades no qual eu mergulho me afundo. Pego cada elemento que constitui esses
poemas e manuseio, buscando sentir a textura. São macias e duras...como pode?

Aquela terra tomava a forma da palma da mão do menino, mas, quando ele jogava no
chão, aquela areia se espalhava e se unia à terra que ali já estava para formar outra imagem.
Apesar da advertência, o menino repetiu o gesto de pegar e lançar a terra ao solo. Essa
experiência formava e deformava desenhos diante de seus olhos. Ela só acompanhava os
pequenos instantes poéticos que, naquele momento, eram comparados aos versos lançados em
sua mente. Quando ela parava para refletir sobre aquilo, um vento soprava as palavras,
espalhando-as de modo a embaralha-las. 6

6
Ibidem, p.158: “Só o amorfo capacita a obra de arte para a sua integração. Mediante o acabamento, o
afastamento da natureza informada, retorna o momento natural, o ainda-não-formado, o não articulado. [...] O
processo, solidificado em cada obra de arte em algo de objectal, resiste à sua fixação num isso aí (Dies da), e
dissolve-se novamente no lugar de onde proveio. A exigência de objectivação das obras de arte nelas próprias se
arruína.”
29

Retomou o caminho para que o ar a renovasse. Levava consigo três livros numa bolsa
média. Os dois livros eram os que a acompanhavam ao longo desses dias. A companhia deles,
paradoxalmente, instalava nela uma sensação de solidão permanente. Aqueles passos na
estrada eram ouvidos apenas por ela, que sabia que precisava esmiuçar o caminho, andando e
lendo as estrofes, para saber e si. Entretanto, quando se dispôs a isso, não estava se referindo à
vontade de mapear sua personalidade, seus sonhos e medos para dizer aos outros quem era.
Quando disse que queria saber de si, ela estava propondo um encontro com o seu lado
desconhecido para, apenas, encará-lo, dissecá-lo, estendê-lo na estrada e seguir.

Após alguns minutos, decidiu sentar-se em um banco no meio da estrada. Nada havia
ali, somente os poemas dispostos a serem declamados. O sol deixava a temperatura amena, o
que a permitia ficar ali. De vez em quando, uns carros descendo e subindo a serra passavam
por ela. Um despertar daquela monotonia.

Abriu “O guardador de rebanhos” para continuar o desdobramento daqueles versos.


Nos quatro primeiros versos que leu, a poesia trouxe aos olhos o poeta que sentia a cidade a
partir da sensibilidade do artista:

Ao entardecer, debruçado pela janela,

E sabendo de soslaio que há campos em frente,

Leio até me arderem os olhos

O livro de Cesário Verde.

(CAEIRO, 2012, p. 82)

Sentira nesse momento um peso em seus dedos que acompanhavam devagar aquelas
palavras. O som de uma buzina invadiu a leitura. O automóvel parou e um sujeito de dentro
do carro perguntou, com um tom intrigado, por que ela estava ali e se havia um posto próximo
pela estrada. Ela olhou para o sul, mas não disse uma palavra. A partir de seu gesto, o
homem, irritado pela ausência de empatia, enxugou o suor em um lenço e acelerou, deixando
um cheiro forte de fumaça preta que demorou a dissolver-se. Mas, o sentimento de um vazio
ainda habitava seu corpo. Ela olhava para a estrada com o espírito livre e inocente.

O mundo e os mistérios de seus cantos. Ela pensava que felizes eram os que partiam
para o novo, e pensava nisso com uma ponta de inveja e curiosidade. Aquela via percorria
tantos caminhos distantes aos seus olhos que os imaginava em seu papel em branco. Porém,
30

ela estava ali em cada lugar no momento em que pronunciava aquelas palavras, pois aquilo
tomava o corpo dela, proporcionando uma experiência de estar.

Embora estivesse sol, ela via a baixa neblina numa tarde que chegara num inverno
ensolarado. Preferira ficar mais um pouco sentada no banco de concreto que a estrada
abrigava. Às vezes, um carro passava. Às vezes, um cachorro faminto caminhava procurando
um afago; mas, essas presenças repentinas e temporárias existiam para dialogar com a poesia
intensa. Era como se essas figuras quisessem fazer parte da poesia, desse não lugar. Decidiu
pular algumas páginas do livro de modo aleatório quando cruzou com esses versos:

Sou um guardador de rebanhos.

O rebanho é os meus pensamentos

E os meus pensamentos são todos sensações.

Penso com os olhos e com os ouvidos

E com as mãos e os pés

E com o nariz e a boca.

Pensar uma flor é vê-la e cheirá-la

E comer um fruto é saber-lhe o sentido.

(CAEIRO, 1997, p.27)

Ela parou e fitou a estrada. Naquele instante, pensava a estrada ao pisar em seu solo,
sentir a poeira espalhada pelo vento e o cheiro daquele lugar. Enquanto lia, sua respiração se
dava com mais dificuldade devido ao odor insuportável. A náusea e o suor frio perturbaram a
sua leitura. Sentia-se num navio ao pé de uma tempestade e precisava seguir em frente, afinal,
não poderia parar e se render às ondas. Tinha de manter seu olhar firme, mesmo sentindo as
pálpebras tremerem.

O guardador de rebanhos, ela lembrava, sentia pena de Cesário Verde, pois dizia que
ele era um camponês que andava em liberdade; entretanto, seu olhar era vivo e percorria pelas
ruas lendo as casas, os morcegos nas vigas, o magote etc. Tudo que ali estava e se apresentava
a ela como uma necessidade e vereda:

Mas o modo como olhava para as casa,

E o modo como reparava nas ruas,


31

E a maneira como dava pelas cousas,

É o de quem olha para as árvores,

E de quem desce os olhos pela estrada por onde vai andando

E anda a reparar nas flores que há pelos campos...

(CAEIRO, 2012, p.82)

Assim como quem rezava em silêncio, ela fechou o livrinho e seguiu adiante pela
estrada empoeirada devido à ausência de asfalto. Como poderia percorrer os pequenos
povoados que se ordenavam tal como as contas de um rosário que se formavam nos versos se
Severino se essa ladainha ela não decorou?

Queria saber de cor cada conta do rosário a caminhar, afinal, saber de cor é saber com
o coração. Essa ponte entre o seu trajeto e o pensamento a deixou um pouco quieta. Se sabia
pronunciar cada palavra dos seus poemas, é porque estes estavam emaranhados em sua vida,
de modo que eram evocados não a partir de um pensamento articulado, mas com o coração e
sua sensibilidade promovida pelo afeto.

O ar tinha um cheiro áspero, seco, diferente daquele ao qual estava acostumada nas
montanhas da serra. O vento, de vez em quando, aparecia pelo caminho, mas este possuía um
calor mais inquietante. Se o homem que segurava umas tangerinas para vendê-las na beira da
estrada soubesse do tumulto que se dava em seu interior, não tentaria perguntar sobre as
horas.

Mas, ela não o deixou sem resposta. Olhando em seus olhos, estendia os pulsos a fim
de que ele os visse vazios. Reparou que seus braços estavam meio tortos e marcados como
que se fossem rachar. Ela assustou-se, logo, recolheu-os e fitou o homem com os olhos ainda
assustados e deu um passo para trás. Em seguida, sacou umas moedas do bolso para comprar
duas tangerinas. Estava com fome e não voltaria para casa tão cedo.

Avistou uma pedra à direita cuja forma lembrava um capuz de duende. Ela já sonhara
como duendes umas duas vezes. No sonho, eles riam dela- o que lhe causava irritação-,
escancarando os dentes minúsculos. Porém, aquelas rochas nada faziam além de oferecer um
pouco de descanso e contemplação. Sentou-se ali no chão encostada à pedra, para se alimentar
um pouco. Enquanto comia, seus olhos observavam que o tempo naquele lugar seco passava
arrastado, mas não de modo enfadonho. Seu ritmo vagaroso seguia tal como uma oração, que
precisa ser evocada num outro tempo, pois do contrário nada acontece.
32

Nesse momento, uma senhora passava pela estrada usando um guarda-chuva para se
proteger do sol. Ela segurava umas sacolas que deixavam seus ombros mais curvados. Sua
pele lembrava um pouco o solo percorrido pelo retirante Severino, pois possuía marcas de
expressão que a vida lhe dera desde os trinta anos; apesar do cansaço visível em seu rosto, a
caminhante pronunciava umas palavras de modo compreensível para quem estava distante:

Sei que há muitas vilas grandes,

Cidades que elas são ditas;

Sei que há simples arruados,

Sei que há vilas pequeninas,

Todas formando um rosário

Cujas contas fossem vilas,

Todas formando um rosário

De que a estrada fosse a linha.

(MELO NETO, 2011, p. 97)

Numa espécie de oração, a senhora recitava com o olhar fixo para o seu norte. Naquele
momento, sentada, apreciando a cena, ela via que a poesia Severina seguia sua peregrinação.
Cada conta do rosário precisava ser vivenciada, porque as palavras cruzaram seu caminho,
naquela tarde, durante sua pausa. As palavras não precisavam de permissão, pressa ou espera,
pois, elas se manifestam como o sol da forma mais simples e natural. Enquanto presenciava a
passagem daquela pessoa, que carregava palavras ocas, dizia em voz alta:

-Quem é a senhora cuja presença é um ponto fora da curva neste meu trajeto? Para
onde vai? Por que cantou esses versos que estavam adormecidos em minha mente? A senhora
parece me dizer, até em seu silêncio mais noturno, que eu falo à toa. Eu sei, e entendo que
precisava dessa visita inesperada, a qual tomou o cajado deste caminho que traço e me fez
rever essas palavras que, outrora, foram desfeitas. Mas, por que me invade agora e sai
insistindo nesse dizer- não dizer? Tudo bem...eu agora só tenho aquilo que já não é a senhora,
porém essa mancha da sua presença permanecerá aqui, nessa folha em meu pensamento.
Agora a senhora é apenas essa mancha em mim. 7

No momento, não havia pessoa alguma no local. O vendedor de fruta já estava longe,
fora engolido pelo horizonte. E a estrada, fio de um rosário, estabelecia uma relação efêmera

7
Ibidem, p.159: “A sua finalidade precisa do que não tem finalidade.”.
33

com seus elementos, afinal, todos estavam de passagem, ninguém pertencia àquele local: “A
estrada é um contato que está sempre sendo encerrado. Toda estrada nos proporciona essa
experiência líquida do inacabado.”, pensou ela.

“Vejo agora: não é fácil/seguir essa ladainha;/ entre uma conta e outra conta,/ entre
uma e outra ave-maria,/ há certas paragens brancas,/ de planta e bicho vazias/ vazias até de
donos,/ e onde o pé se descaminha.” (MELO NETO, 2011, 98). Seguia a senhora em sua
prece no meio da poeira que dançava com o vento. Mesmo os olhos incomodados e um pouco
vermelhos, ela acompanhava com o olhar daquela passante que parecia desfazer-se no ar junto
com o pó. O não pertencimento de lugar e tempo se colocava ali, naqueles versos que também
não possuíam um dono, pois podiam ser evocados por qualquer um. Ela, ainda avistando a
senhora, falou em voz alta na esperança de agora ser ouvida:

- A quem pertence o poema então? Percebo que esse vazio de pés que se descaminham
não pertence às mãos que o compuseram. Como ele se desfaz tal qual a areia entre os dedos. E
enquanto digo isso, e a senhora pronuncia essas palavras, tudo se desenlaça no espaço. A
experiência evapora num sopro.

Mas, a poeira já havia levado a mulher embora sem dizer uma palavra. Após o
acontecimento, limpou as mãos que ainda estavam com um cheiro cítrico e pegou “O
guardador de rebanhos”. Na página que deixou marcada, havia algumas linhas que ainda
diziam sobre Cesário. A sua tristeza era percebida pelo guardador de rebanhos. O tom cinza
de suas palavras evocava- ainda em “O sentimento dum ocidental”- o passado glorioso do
qual Camões narrava: “E evoco, então, as crônicas navais/ Mouros, baixéis, heróis, tudo
ressuscitado!/ Luta Camões no Sul, salvando um livro a nado!/ Singram soberbas naus que eu
não verei jamais!”.

“A lembrança do passado é sempre o não pertencimento daquele momento”, disse


baixinho para não incomodar o homem que passava atento à leitura do seu jornal. “Mas por
que o poeta evoca os heróis épicos e o que fora dito?”, essas últimas palavras foram ditas num
tom mais alto, o que acabou despertando a atenção do rapaz de cabelos ruivos.

Ele chegou mais perto com quem fosse perguntar algo, mas apenas disse que ela fazia
bem de estar ali contemplando aquele lugar de passagem, de acesso. Mas, questionou se para
sentir aquele sol ameno das três horas da tarde, ela utilizava ou pensava em algo que a fizesse
34

suportar o calor. Ao ouvi-lo, sorriso singelo e a negação com a cabeça deram a resposta ao
homem curioso e triste. Satisfeito, ele resolveu seguir, mas antes deu a ela uma flor esmagada
por um livro.

Ela viu que já não havia mais flor, apenas um frágil resto do que fora uma flor antes de
ser arrancada de seu lugar. Logo em seguida, pensou: “As palavras fora do poema seriam uma
espécie de flor esmagada por um livro? Uma planta em jarro?”. Ela sentia apenas a ausência
da flor ali. Cheirou e apalpou aquele resto. Entretanto, havia ali uma outra cor, um outro
cheiro; logo, ela sorriu, porque seus olhos captaram a poesia daquilo que restara da flor, a
não-flor. Era uma experiência inusitada, vinda de um lugar de não. Sem perceber, pegou
aqueles resquícios e os colocou em seu bolso.

Resolveu levantar e seguir. Após vinte minutos, avistou um bar pequeno e


improvisado. Ela não tinha escolha, afinal, já estava ficando escuro e o vento gelado vindo da
serra o arrepiava. Entrou no recinto, mas ninguém a notou. As pessoas tinham olhares
perdidos e pareciam anestesiadas, pois não notavam que ela estava ali pela primeira vez.
Ninguém perguntou se ela queria sentar-se ou ofereceram uma xícara de chá. Ninguém quis
saber se ela habitava a sexta curva da serra ou o que lia. Todos seguiram com suas
experiências paralelas e cinzas; ela tomou a cadeira que estava no canto, perto da janela- seu
lugar favorito em estabelecimentos e meios de transporte- e notou que uma menina vinha em
sua direção.

A jovem trabalhava ali e quis saber se havia algum pedido a fazer. “Um chá e duas
rosquinhas”, pediu. Para aguardar, retomou a leitura da caminhada de Severino que fora
emaranhada por algo inesperado: a interrupção do rio Capibaribe. O guia que apontava a
direção dos versos encerrou sua caminhada como uma experiência de morte:

Vejo que o Capibaribe,

como os rios lá de cima,

É tão pobre que nem sempre

Pode cumprir sua sina

E no verão também corta,

Com pernas que não caminham.

(MELO NETO, 2011, p. 98)


35

O poema também percorre a linha dos versos com suas pernas que não caminham. O
olho de quem lê acompanha até o fim dessa ondulação, até a escassez cessar o rosário do
poema. Dessa forma, ela fitava umas flores que estavam no jarro em cima da mesa. A vida
como ela conhecia não estava mais, logo, já não eram mais as flores com seus perfumes e a
cor rubra. Uns versos vieram diante dessa imagem:

Por isso ele tinha aquela tristeza

Que ele nunca disse bem que tinha,

Mas andava na cidade como quem anda no campo

E triste como esmagar flores em livros

E pôr plantas em jarros...

(CAEIRO, 2012, p.82)

O chá chegou bem quente, porém, as rosquinhas estavam um pouco duras. Ela voltou
a observar a frieza do local. Na mesa ao lado, dois homens falavam sobre futebol e outras
banalidades necessárias ao convívio social. Um deles aparentava cansaço, mas de vez em
quando esboçava um sorriso para o outro. Ele bebeu a cerveja com uma mão e amassou um
guardanapo com a outra.

Ela, observando aquela pequena crônica sobre o tédio, resolveu tomar mais um gole
do chá e partir para andar até o ponto de ônibus. Decidira descer mais um pouco em direção a
uma cidade vizinha que não conhecia muito. Para isso, caminhou mais três minutos até o
ponto que já estava vazio devido ao horário. Ela sentou numas pedras, pois não via o ônibus
aparecer na linha do horizonte. Como era calma e triste aquela noite! Só ouvia o vento
incomodar as folhas secas de uma árvore que estava perto. Era como se as folhas e o vento
dominassem aquele espaço e lhe dessem um sentido de pertencimento, mesmo que efêmero.

O ônibus se aproximava. Ela entrou e sentou-se perto da janela, pois geralmente é


nesse lugar que as crianças curiosas costumam se sentar. Retirou “Morte e vida Severina” da
bolsa e leu exatamente onde deixara marcado com aquele frágil papel que um dia foi uma flor.
O caminho do verso dizia:

Tenho de saber agora

Qual a verdadeira via

Entre essas que escancaradas


36

Frente a mim se multiplicam.

Mas vejo almas aqui,

Nem almas mortas nem vivas;

Ouço somente à distância

O que parece cantoria.

Será novena de santo,

Será algum mês de Maria;

Quem sabe até se uma festa

Ou uma dança não seria?

(MELO NETO, 2011, p.98-99)

As veias da poesia pelas quais aquele ônibus percorria eram bem silenciosas e
adequadas à experiência de estar só. Ela se perguntava por que o poema apresenta vários
caminhos e se essas possibilidades seriam um convite a releituras posteriores? A sensação de
risco permanente penetrava em seu corpo tal qual uma lâmina cuja ponta afiadíssima compõe
o ardor de viver. Enquanto isso, o filme que passava pela janela do ônibus era executado com
uma agilidade que necessitava de atenção. Vendo aquilo, ela disse: “Pensar? Diante desta
composição de imagens, como extrair uma filosofia? Pensar nisso iria desfazer o olhar
sensível desse breu que me engole.”.

Atenta novamente, ela desenhava no vidro empoeirado com a ponta dos dedos o curso
de um rio. Um percurso interrompido o qual acabou desencadeando uma poesia que se
mistura aos grãos secos e arenosos do solo. Nesse terreno, a voz do poema parece ainda mais
solitária do que já é. De repente, ela pensava ouvir a cantoria Severina que entrara no poema.
“Outras vozes vieram ocupar os versos de um caminho retirante”, ela pensou. O vento que
entrava pela janela detrás parecia reforçar o coro. Diante disso, ela olhava para os lados, mas
ninguém estava inserido naquele encontro que é a poesia.

O homem de jaqueta que estava sentado na última poltrona dormia segurando o jornal.
Uma menina que estava sentada na sua frente olhava uma fotografia a qual estava chuviscada
de lágrimas. Nessa hora, lembrou-se do álbum que estava no quarto e que jogara fora; aquele
registro de algo que não podia ser novamente vivido não a deixava arrependida. A água do rio
seguiu seu curso, não havia volta.
37

“Qual é a verdadeira via que devia seguir? Como esboçar algum contentamento diante
desse impasse poético?”. Parecia que a lâmina se infiltrava ainda mais em seu corpo. Uma
intrusa que impunha a vida da forma mais intensa possível: pela dor. Mas, dor é vida, ela
refletiu: “O corte nos faz lembrar que existe algo além da superfície. Por isso a necessidade da
ferida: o poema não suporta o terreno raso, pois ali a experiência não finca.”.

Disso já sabia. Porém, num solo profundo e seco- severino-, aquela manifestação
artística a surpreendia. Apesar de confusa e insegura, resolveu voltar-se ao poema, que ainda
evocava uma cantoria insistente. Retornou como quem enfia as mãos abertas na areia tentando
alcançar algum fundo possível. O cansaço estava alcançando seu corpo aos poucos. A nuca
curvada doía, mas as mãos quentes tentavam afagá-la. Ela só queria seguir aquele fluxo
descontínuo.

A imersão naquelas palavras, naquelas veias pulsantes dos versos, naquele canto que
soava cada vez mais próximo, não a deixava refletir, apenas sentir. Pensar nisso só seria
possível se ela estivesse doente, ou seja, se quisesse compreender o sentido daqueles
caminhos ou da intenção do som que o poema emitia. Repentinamente, caiu no sono, um
modo de pausar a experiência da vida. A respiração estava profunda, se encolhia um pouco
por causa do frio, mas suas mãos seguravam firme o poema, assim como fez Camões, que
resistia bravamente ao oceano para salvar o passado heroico.

O balançar do ônibus embalava o repouso. Lá fora, nada se ouvia. Uma paz que
pertencia a ninguém. Só de vez em quando surgia um ruído de veículo, mas isso durava
apenas alguns segundos. Contudo, a cantoria voltou aos seus ouvidos, porém dessa vez estava
um pouco mais próxima. Ela foi despertando e tentando achar com o olhar de onde vinha o
ruído. O motorista notou que ela esticava o pescoço de um modo impaciente e perguntou se
ela sabia para onde aquele ônibus estava indo.

Ela respondeu que estava tudo bem e resolveu baixar novamente a cabeça. Ao olhar
para a esquerda, uma angústia lhe tocara no peito. Era a escuridão lá fora que a fez perceber
como ela era apenas um grão, uma gota, uma molécula. Era um ser movente dentre outros
seres de sua espécie. Um ser composto de retalhos da casa da montanha, das águas da
cachoeira, do contato com o centro urbano que costumava frequentar, da estrada... Enfim, de
todos esses gestos poéticos que a contaminam de forma invasiva.
38

“Existiria poesia se essas palavras não fossem contaminadas pela voz, pela respiração,
pelo papel em que são escritas?”, ela se indagava como quem já soubesse da resposta. Suas
mãos brincavam lentamente com um elástico achado na bolsa, um gesto de quem não tinha
pressa de chegar a algum lugar ou de quem não deixou alguém esperando sua chegada. Cada
momento era uma chegada e partida de si.

As mãos frias de fome, a dor no estômago e a cabeça martelando tomavam seu corpo,
preenchendo cada espaço de calma rapidamente. Pensar diante da dor é impossível, afinal, ela
assume uma potência que se apresenta de dentro pra fora, um ataque hábil de um jogador que
conhece o território do inimigo e, por isso, o afronta.

Vivenciar esse momento de agonia e inquietude é como um encontro com seu interior
que se inquieta e quer gritar, debatendo-se nas paredes frágeis de um corpo que padece. É
necessário esse (r)encontro consigo, a fim de enxergar as feridas que estão ali pulsando. Após
alguns minutos, sentia a sua respiração com mais leveza. A dor ainda estava presente, porém,
agora com menos intensidade.

Pegou na bolsa alguns papéis em branco que estavam dobrados. Ela sempre carrega
umas folhas para anotar alguma sensível percepção que possa ocorrer em suas viagens.
Desdobrou uma das folhas e, com um lápis, escreveu algumas palavras que lhe vieram ao
pensamento: poesia, caminho, dor, vivência e sentir.

Isso resumia sua passagem pelos caminhos que não a pertenciam. Sua viagem não
possuía um objetivo ou um destino. Ela dispensava qualquer tipo de mapa e cronograma que
pudesse amarrar suas direções. Nesse momento, as pessoas que encontrou em suas andanças
passavam pela sua mente, mas não eram mais essas pessoas. O que era então se a experiência
deixou de ser?

Voltou a desenhar no vidro empoeirado. O esboço era um caminho ondulado e meio


torto desenhado pelo toque de seus dedos. Ela não pensava em quanto tempo faria essa
viagem ou se sentiria falta de casa, “Pensar é não compreender”, repetia para si.

Avistou um hotel na beira da estrada, resolveu descer do ônibus e ficar um pouco por
ali. Essa parada não seria uma pausa na viagem, mas um outro verso a fim de compor esse
árduo rosário.
39

Ao chegar à frente da hospedaria, deparou-se com um velho ouvindo rádio e fumando.


Ela perguntou se haveria vaga e o preço do quarto para algumas horas. O velho olhou para
ela, mexeu no bigode com a mão direita e, em seguida, retirou a chave de dentro do bolso. Ela
pegou e desviou seus olhos dele. Subiu as escadas e caminhou pelo corredor estreito e um
pouco escuro. Ao entrar no quarto, colocou a mochila no chão e deitou na cama. A
temperatura estava amena, logo, decidiu deixar a janela totalmente aberta.

Seu corpo ainda doía, mas isso ela não cogitava desistir de tudo e ficar deitada na
cama. Parece que essas feridas serviam como impulso para que ela se jogasse nesse abismo do
qual ela estava tão próxima:

-Não sei por que sinto essas dores profundas. Parece que minha audição e visão foram
direcionadas para dentro do meu corpo, pois aqui dentro estou agora. Estranho passar a mão
por cima dos locais de dor, pois, estou mais sensível ao toque, por mais leve que seja. É como
uma autonegação de mim, uma repulsa. Será que o homem lá debaixo tem um pouco de água?
Sinto a garganta mais seca e a saliva amarga.

Assim que o dia clareou, ela pegou seus pertences e saiu do hotel. Agradeceu ao
homem, que ainda estava um pouco sonolento por ter ficado a madrugada inteira acordado.
Na estrada, nenhum carro passava. O único som que escutava era dos seus passos sobre o
chão seco composto por pequenas pedras.
40

4. O CAMINHO SEVERINO DAS COISAS DE NÃO

“Eu não tenho filosofia: tenho sentidos” (CAEIRO, 2012, p.81). Esse verso da poesia
do guardador de rebanhos apareceu em sua mente como um sopro. Não havia pensamento
capaz de abrigar tamanha intensidade que ocorria quando a cantoria ainda a levava:
Finado Severino,

Quando passares em Jordão

E os demônios te atalharem

Perguntando o que é que levas...

Dize que levas cera,

Capuz e cordão

Mais a Virgem da Conceição.

Finado Severino,

Etc...

(MELO NETO, 2011, p.99)

A melodia daquelas palavras evocadas nos versos retirantes parecia caminhar sozinha.
Eram versos memorizados por quem já está acostumado com a morte. Entretanto, havia uma
voz que saltava e se destacava daquele coro. Ela parodiava as excelências para o defunto.

Apesar do seu olhar estar direcionado ao seu trajeto, o que ouvia a perturbava a ponto
de não observar uma ave pousada no galho seco de uma árvore ou o som do vento em seu
ouvido enquanto andava. Era áspero aquele canto insistente. O trecho fixado em seus olhos
dizia: “Dize que levas somente coisas de não: fome, sede, privação.” (MELO NETO, 2011, p.
99). A impossibilidade carregada naquelas palavras deixava o gesto de pronunciá-las um
pouco mais denso. Não havia entendimento fora delas ou filosofia que amarrasse alguma
compreensão confortável para que ela buscasse sempre um porquê:

-A fome, a sede e a privação surgem a partir da experiência mais árdua e afiada.


Penso nessas manifestações a partir da poesia que leio. O poema também seria uma coisa de
não à medida que pode se desenvolver no solo árido? Para mim, parece mais forte, com suas
palavras mais afiadas e prontas a fincarem-se em nós. O “não” que digo é tão forte à medida
que nele uma base de raiva, emoção e persistência se encaixam.
41

Enquanto isso, o sol aquecia o corpo, mas a brisa gelada tocava as mãos abertas. A luz
da manhã ainda era tímida, mas invadia o espaço como água derramada em um lugar seco. A
sensação, ao olhar para o dia, era de uma criança que abria os olhos pela primeira vez para o
mundo.

Ela ainda sentia um desassossego a cada passo que dava. Contudo, seus olhos
fincavam um animal que se rastejava no chão: “Seu corpo um pouco sujo toca o solo e deixa
um rastro ondulado na areia. O animal olha fixamente para o outro lado da estrada e, com
passos lentos, está atravessando a pista.”, ela dizia em seu pensamento ao olhar para a cena.

Apesar do fraco movimento de automóveis, o risco que aquele bicho estava correndo
era existente, porém, ele não refletia sobre isso. Não havia cautela, preocupação com o que
estava por vir. Ela pensou, por um instante, em intervir e retirar o animal do meio da estrada;
resolveu apenas observar como aquele ser traçava aquele caminho. De repente, o medo que
habitava a mente dela nos primeiros segundos sumiu, pois ele era fruto de um pensamento
daquela travessia. Ela parecia, enfim, achar belo e instigante aquilo. Sabia que os versos de
Caeiro e João Cabral de Melo Neto, entrelaçados, eram como esse animal na pista, ela pensou.
Quando lia ou quando eles se manifestavam em sua cabeça, não havia cuidado com o que esse
cruzamento poderia causar:

-Percebo que a poesia se revela no âmbito da experiência do sentir ou no solo árido de


coisas de não; esse lugar também possui uma fome necessária ao andamento desse poema que
leio, uma vez que não vejo hipótese de surgir algum verso num lugar de contentamento. Aqui
sinto a experiência desse contato entre os versos, pois esse cenário é absurdamente inquieto,
apesar do silêncio. Sinto-me frágil aqui e me sinto uma estranha. É preciso um olhar curioso,
uma lâmina entranhada na carne e sede para que a poesia seja desmembrada. Inclusive,
observo que o ritmo dos passos daquele ser que atravessava a estrada não possuía relação
alguma com o tempo que escorria pelos pulsos das poucas pessoas que por aqui passavam há
pouco 8.

Após esse cruzamento com o animal, ela seguiu, pois avistava uma pequena vila. Ao
chegar lá, notou que havia um singelo bar e decidiu entrar. Pediu ao dono um copo de água e
foi sentar-se do lado de fora, porque gostava observar as pessoas e cada detalhe daquele novo
lugar que nunca estivera antes.

8
ADORNO, Theodor W. 1970, p.157: “A obra de arte é ao mesmo tempo processo e instante.”.
42

Algumas pessoas a cumprimentavam, mas uma lhe chamou a atenção. A mulher da


casa da frente comia pão e lia atentamente. Não dava para ler a capa do livro dela, mas foi no
seu olhar que um verso do guardador de rebanhos se fez.

Seus olhos negros estavam banhados em lágrimas. Parecia que uma trovoada ocorrera
em seu peito a ponto de transbordar pelos olhos. Essa chuva, naquela imensidão negra,
relâmpagos apertando o peito, não provocava medo. Percebia o que o pastor dos versos dizia
quando, nessas horas, fazia apenas uma oração:

Quando os relâmpagos sacudiam o ar

E abanavam o espaço

Como uma grande cabeça que diz que não,

Não sei porquê- eu não tinha medo-

Pus-me a rezar a Santa Bárbara

Como se eu fosse a velha tia de alguém...

(CAEIRO, 1997, p.19)

- Essa simplicidade do gesto de orar tem a ver com a forma como a poesia acontece?
Até agora, noto que as vivências mais intensas da minha viagem brotaram do mais singelo e
efêmero momento. Ocorreu entre uma virada de cabeça, uma respiração mais intensa e um
toque em minha pele. Esse silêncio da poesia é calmo e não é. Ele desperta em mim um olhar
um olhar reflexivo dos meus gestos. Entretanto, sinto que esse olhar venha carregado de uma
moral. Eu apenas olho para mim enquanto leio e isso basta.- Ela pensou.

Não havia necessidade de se preocupar com a moça ou tentar intervir para cessar a
chuva que pingava um pouco em seu vestido amarelo. Ela percebeu que rezar diante de uma
tempestade ou de um defunto é demonstrar aceitação diante daquilo que é, do curso natural de
tudo.

Sentia-me familiar e caseiro

E tendo passado a vida

Tranquilamente, como o muro do quintal;

Tendo ideias e sentimentos por os ter

Como uma flor tem perfume e cor...


43

(CAEIRO, 1997, p.19)

Ela observava o último pedaço de pão ser mordido e o livro fechado. A mulher
levantou-se com o livro, deixou aquela experiência evaporar no ar. O rosto ainda estava
úmido, porém, isso parecia não lhe interessar. A jovem foi embora levando a calma e a
tormenta em seu corpo.

Demoraria ali mais um pouco vendo um jovem lavando a calçada de uma casa azul
que estava mais distante. Ele estava tão concentrado que era como se nada ao redor existisse.
Como se tudo agora estivesse concentrado naquela água que jorrava e levava a sujeira para o
ralo. Ela mesma se pegou vidrada naquela cena monótona, porém hipnotizante. Seguiu por
uma rua um pouco estreita a qual possuía um cheiro forte que parecia ser de uma fruta
exótica. Do outro lado, a loja de objetos antigos lhe interessou; resolveu entrar nela.

No local, havia discos de vinil com suas capas coloridas e desbotadas, talheres
desenhados que serviam como ótimas peças de decoração e xícaras que mais pareciam
esculturas. Estar ali dentro despertou um sentimento de curiosidade, pois cada objeto trazia
uma unicidade construída pelo passado que não está mais ali. Na parede, a imagem de santa
Bárbara junto aos outros santos despertou toda simplicidade da oração do guardador de
rebanhos.

A frugalidade da existência só cabe no gesto de existir, do fazer chover, do sentir o sol


e do ouvir a tempestade. O que sabe a natureza de santa Bárbara? A pergunta se dissolveu
quando ela olhou para fora e viu a árvore que sustentava pequenos frutos. Ali dentro estava
uma imagem serena e religiosa, apenas.

Ao ler o poema, ela via que a felicidade se fez menor no pastor diante desse
pensamento. Seus versos ficaram mais sombrios à medida que os evocava. Ela passou a mão
na imagem da santa como um gesto de despedida e se foi. O aperto em seu peito não passava,
mas havia também um sentimento de tranquilidade, porque o que sentia era externado quando
baixou a cabeça em sinal de humildade e fragilidade.

Não me importo com as rimas. Raras vezes

Há duas árvores iguais, uma ao lado da outra.

Penso e escrevo como as flores têm de cor

Mas com menos perfeição no meu modo de exprimir-me


44

Porque me falta a simplicidade divina

De ser todo só o meu exterior.

(CAEIRO, 1997, p.28)

A rua estava um pouco mais movimentada no pequeno povoado, mas as pessoas


pareciam viver mais isoladas, como se estivessem em mundos paralelos que, de vez em
quando, se tocavam. As palavras se cruzavam na poesia severina como a mão toca a terra
seca. É preciso tocar mais de uma vez, pegar um pouco do solo, fecha a mão e abri-la. A
poesia está ali, naquele toque resistente que busca uma terra de fome, de não.

Quando os olhares se cruzam nas ruas ou alguém oberva uma moça lendo um livro e
comendo um pedaço de pão, a poesia começa a se manifestar, assim, ela se sentia mais viva,
uma vez que os laços com o outro, com o que é desconhecido, era refeito. De vez em quando,
pedia uma informação apenas para ver os olhos e ouvir o som da voz daquele que cruza o seu
caminho.

Ela seguiu como os carregadores que levam o corpo do finado Severino, porém, não
possuía um destino. Vai como se deixasse um fragmento do seu corpo pelos caminhos que
passava. Um descuido que a poesia comete, porque transborda na sua intensidade. “Ajunta os
carregadores,/ que corpo quer ir embora.” (MELO NETO, 2011, p. 99).
45

5. O APAGAMENTO E A REINVENÇÃO DE SI

Fazia um pouco de frio. Ela sentia falta da casa da montanha, daquele cheiro da manhã
nublada e, principalmente, de seu quarto. Pequenas reconstruções que se desfaziam na
efemeridade do tempo. Intocáveis e inexistentes, pois já não estavam mais ali. Todavia,
pensar nessas impossibilidades era estar doente.

Ela comparava o gesto de refletir sobre o que fora vivenciado com a colheita das
folhas caídas no chão e a ação de colocá-las no bolso. “Para quê servem?”, ela indagou;
entretanto, o guardador de rebanhos dizia a ela com uma voz serena e macia de quem não
espera das folhas nada além das suas cores de sombra marrom, “Há metafísica bastante em
não pensar em nada.” (CAEIRO, 1997, p.20).

Caminhar era encaixar-se no vento que penetrava em seu rosto. Mover-se naquele
lugar pouco habitado com referências ainda em construção é ajudar a compor esses retalhos
que se atam à própria pele. Ela estava distante da montanha, mas o cheiro da relva ainda
inundava seu nariz.

Enquanto caminhava pela estrada, que no momento era abraçada por um céu
alaranjado, percebia o pastor em sua mente questionando-se acerca da sua opinião sobre o
mundo, sobre Deus. Essa segunda estrofe saía de sua boca como um desabafo que precisava
ser despejado naquela estrada de chão seco:

Que ideia tenho eu das cousas?


Que opinião tenho sobre as causas e os efeitos?
Que tenho eu meditado sobre Deus e a alma
E sobre a criação do Mundo?
Não sei. Para mim pensar nisso é fechar os olhos
E não pensar. É correr as cortinas
Da minha janela (mas ela não tem cortinas).
(CAEIRO, 1997, p. 20)

Diante disso, ela levantou os olhos e apenas sentiu seu rosto absorvendo essas
palavras. Todavia, ela não buscava uma opinião para o gesto artístico, pois sua mente era
incapaz de formar algum pensamento diante do seu mundo simples e inesgotável. Quando lia
46

o poema, sentia essa cortina a qual colocamos sobre a vida se descosturar. Ela não via
motivos para associar sua leitura a um filósofo ou alguma tese. Quando estava diante de um
acontecimento, a poesia tomava aquele espaço e tomava aquela existência para si.

Diante disso, como tentar expelir um pensar sobre aquilo? O olhar dela é um recorte
que não daria conta da imensidão ali presente, e isso já a deixava bem angustiada. Mas, para
as palavras severinas, essa angústia não seria fundamental? Ela notava que o processo de
escrita, em seu pensamento, não exigia essa vontade de olhar tudo e absorver o máximo. Seus
olhos eram capturados pelas essências marginais cotidianas.

Além disso, o olhar do guardador de rebanhos- transcendental e inquieto- não permitia


que a capa protetora da opinião e da moral viesse contaminá-lo. Seria um desastre para a sua
criação. Ela compreendia que não poderia julgar um curso no qual a morte se manifestava de
modo mais intenso- às vezes até mais festiva- porque esperávamos encontrar a vida.

Naquele momento, ela estava parada com o livro de João Cabral aberto em suas mãos.
O poema pensava em interromper a sua viagem, uma vez que a morte se fazia presente o
tempo todo. Até a vida se dá em sua forma de resistência e persistência diante daquele
cenário:

[...] só morte tem encontrado


Quem pensava encontrar vida,
E o pouco que não foi morte
Foi de vida Severina
(aquela vida que é menos
Vivida que defendida,
E é ainda mais Severina
Para o homem que retira).
(MELO NETO, 2011, p.100)

Ela se sentia como um ouriço indefeso. Passava os dedos em cima desses versos
repetidas vezes, pois é ali que ela estava. Seu corpo- exposto ao sol e a poeira- se defendia do
estranho que estava prestes a chegar. Então, ela se perguntou: “isso que vejo desmembrando-
se também é tão frágil e tão Severino quanto eu? Ele se move em minha direção e já me
47

atinge com seus sons e densidade.” A vivência, na poesia, não era para ela outra condição
senão enfrentamento. 9

Enquanto segurava o livro com a mão direita, os dedos da mão esquerda eram
passados em seus cabelos e ficavam presos nos nós. Ela tentava desembaraça-los, e isso fazia
com que se distraísse um pouco. De repente, uma moto se aproximou dela. O rapaz possuía
um olhar de difícil leitura, mas estava disposto a levá-la à reserva florestal que ficava a
quarenta minutos dali. Ela colocou o livro na bolsa e se acomodou na moto que, embora
estivesse um pouco velha, parecia aguentar mais algum tempo de trajeto.

Os versos retirantes estavam fatigados devido à presença insistente da morte, porém,


ela achava que devia continuar lendo e realizando a travessia de cada verso da página. Remar
com os braços fracos e inseguros era difícil, mas era como se a onda causada pela virada da
folha fortalecesse seus membros. Braços retirantes e sujos que se pareciam com traços mal
desenhados. Ela não pensou mais neles, pois resolveu olhar a estrada. Só ouvia o vento bater
em suas bochechas e a noite silenciosa cair.

Após quinze minutos, o jovem perguntou se ela não tinha medo ou se não se sentia só
em alguns momentos. Ela disse apenas que não e resolveu iniciar uma conversa mais
superficial, menos íntima. O homem ficou ainda mais curioso, mas não quis ser
inconveniente. Os braços dela agora envolviam o rapaz de modo mais tenso. Ela olhava de um
lado para o outro, a fim de que seus olhos captassem algo, um simples relance o qual servisse
de objeto central para o seu olhar poético.

“será que quando chegar/ o rio da nova invernia/ um resto de água do antigo/ sobrará
nos poços ainda?” (MELO NETO, 2011, p.101). A pergunta de Severino passava rapidamente
pela paisagem: pela barraca de argila cujo comerciante se retirava por causa da noite; pelas
luzinhas do povoado distante que viam de longe; pela senhora de cabeça branca que, sentada
em sua cadeira de palha em frente à casinha, ouvia rádio e conversava com um menino e
pelos cavalos amarrados em uma árvore.

9
Ibidem, p.164:”Confrontada com a realidade antagonista, a unidade estética que a ela se opõe, torna-se
aparência de um modo também imanente. A elaboração total das obras de arte desemboca na aparência: a sua
vida identificar-se-ia com a vida dos seus momentos, mas os momentos introduzem nela o heterogêneo e a
aparência transforma-se em falsidade.”
48

O resto de água que havia no poço era o resquício de algo que se foi. Ela queria saber
o que seria desse resíduo quando a água nova chegasse. Via a água antiga, misturada com a
nova, e indagava se não seria a palavra se reinventado num tempo outro.

Ela percebia que não podia identificar essa palavra reutilizada, haja vista sua
contaminação com as outras. Mas isso não era importante, pois essa indefinição faz parte da
transcendência do que o poema lhe diz. Pensar sobre a possível água do poço ou sobre
qualquer outro mistério era perda de tempo. Ela sabia que não era esse o caminho que deveria
seguir.

O rapaz resolveu perguntar o que ela lia quando ele a encontrou. Ela disse o nome do
poema e ele sorriu como quem não quisesse expor seu desconhecimento. Após essa segunda
tentativa de diálogo, ela resolveu virar o rosto para a direita para ler os anúncios dos outdoors.

A velocidade do vento diminuía à medida que a moto desacelerava. Finalmente


chegara à reserva cujo ar era mais úmido e a temperatura mais baixa. Ela desceu da moto,
agradeceu ao homem, que sorriu e seguiu a sua viagem. Assim que se viu sozinha na entrada
daquela floresta, seu corpo se sentiu mais relaxado e um pouco mais dolorido. Ela resolveu
sentar e encostar-se a uma pedra para que pudesse sentir aquele lugar e não realizar som
algum que pudesse perturbar seus habitantes.

Por um instante, quis fechar os olhos para conhecer o local, porém, lembrou-se dos
versos do guardador de rebanhos em que dizia acerca da interferência do pensamento quando
estamos de olhos fechados. Em sua mente, os versos se manifestavam: “Porque a luz do sol
vale mais que os pensamentos/ De todos os filósofos e de todos poetas./ A luz do sol não sabe
o que faz/ E por isso não erra e é comum e boa.” (CAEIRO, 1997, 20).

Ela recitava esses versos de forma orgânica, por isso, não buscava entendê-los ou
associá-los a algum pensamento filosófico. Enquanto pronunciava as palavras, o ar entrava e
saía de sua boca, num fluxo ininterrupto. Esse gesto também era comum, logo, sem erro e
limitações. A partir desse momento de contato da poesia com o corpo (que também é poesia),
os seus poros pareciam mais abertos, buracos que funcionam como um canal de ligação entre
o interno e externo:

Metafísica? Que metafísica têm aquelas árvores?

A de serem verdes e copadas e de terem ramos


49

E a de dar fruto na sua hora, o que não nos faz pensar,

A nós que não sabemos dar por elas.

Mas que melhor metafísica que a delas,

Que é a de não saber para que vivem

Nem saber que o não sabem?

(CAEIRO, 1997, p.20-21)

Ela foi tomada por uma vontade de entrar naquela floresta, e assim o fez. Lá dentro,
era possível enxergar por que a metafísica era criticada pelo poema, afinal, a existência das
árvores bastavam para que elas existissem. Suas folhas, algumas caídas, não sabiam para que
viviam, mas ali estavam e isso bastava. As manchas de algumas folhas lhe chamaram atenção
pelas deformidades. Eram reações daquela matéria ao meio. Desenhos circulares, marrons e
espaçados.

Tudo possuía uma particularidade: os troncos possuíam diferentes tonalidades, e o solo


era composto por restos de animais, folhas e pequenos galhos, por exemplo. Aquelas coisas e
suas existências se organizavam naquele ambiente como uma espécie de dança.

Seus passos eram cuidadosos e suas mãos se apoiavam nos galhos para que não caísse.
Penetrar naquela reserva era como tecer um poema a partir dos sentidos. A “Constituição
íntima das cousas” e “sentido íntimo do Universo” não possuíam fundamento algum diante da
vivência daquele instante. O poema insistia em dizer: “Pensar no sentido íntimo das cousas/ É
acrescentado, como pensar na saúde/ Ou levar um copo à água das fontes.” (CAEIRO, 1997,
21).

Enquanto isso, alguns ruídos foram escutados. Eram cinco horas da manhã, mas ainda
estava escuro, entretanto, seu passeio continuava. Ali dentro, não havia medo, apenas uma
desconfiança de quem estava num território desconhecido. Sua curiosidade não saía dos olhos
um minuto sequer.

“O único sentido íntimo das coisas era elas não terem sentido íntimo”, ela repetiu
umas quatro vezes. Então, ao passar a mão numa planta de nome desconhecido (e saber o
nome tinha importância?) e vê-la, o sentido já se fazia presente, mesmo na sua ausência. Ela
não precisava fechar os olhos ou tentar comparar aquela sensação a alguma outra. Seria em
vão.
50

As estrelas já haviam sumido. O poema questionava a existência de Deus devido à sua


não aparição. Intrigada, ela olhava as flores e as árvores daquela floresta, por exemplo, como
quem ali vê uma presença única e inexplicável em palavras. Esse olhar fixo nos tons de verde
e ondulações da folha da árvore colocavam para ela a experiência poética em si. Como ela
mexia os braços e apalpava as folhas com curiosidade e felicidade. As cores pareciam dizer
muito sobre aquela folha, mas não eram informações científicas, aprendidas em alguma
instituição. Era um pensar sensorial, por isso, único.

Quando o dia está amanhecendo e aquele azul tímido, enfim, se expõe aos olhos, um
novo ciclo começa. Ela passou a mão nos olhos para ver para despertar sua percepção. De
repente, olhou um fruto amarelo no alto de uma árvore. Resolveu pegá-lo para matar a fome
de uma noite cansativa. No instante em que ela cheira a fruto, percebe um cheiro único e que
dispensa a comparação com qualquer outro. Aliás, a tentativa de compará-lo seria uma forma
de anular sua existência e depositá-la em outra fruta. Diante disso, ela dizia para si:

- Seu caldo é amargo, mas a carne é macia. Como sua cor viva embala a minha visão
de modo a me ver envolvido a esse fruto! Engraçado, mas, pra mim, a poesia está aqui neste
instante. O meu gesto de come-la é apenas uma outra experiência inenarrável. Será que
alguém também sentira isso?

Após andar por alguns minutos, seus pés formigavam. Eram tímidas movimentações
que a impediam de ver o que estava ao redor. Por causa disso, interrompeu sua caminhada
para mexer os pés em movimentos circulares. Enquanto fazia isso, um inseto pousou em seu
ombro, mas seu susto o afastou, fazendo com que aquele contato não durasse mais que cinco
segundos.

Resolveu seguir seu trajeto indefinido floresta adentro. O som das aves era baixo,
porém, ecoava como uma presença que fazia questão de ser notada. Enquanto isso, apoiava-se
nas árvores, pois suas raízes irregulares e expostas poderiam derrubar qualquer pessoa
distraída. Ela se sentia abraçada pela natureza e contaminada por ela.

Nesse momento, comparava a cor de seus pés às raízes e, de alguma forma, achava
uma semelhança. Não quisera pegar um dos livros em sua bolsa, mas, em silêncio os versos
ditados pelo cajado do pastor apareciam em sua mente. A voz do poema era tão viva quanto o
canto dos pássaros.
51

Ele evocava para ela a dúvida acerca da existência de Deus. Ela tentou lembrar-se de
alguma imagem ou alguma característica da entidade. Tentou pensar também em algum
depoimento de testemunho de sua presença. Mas, ao mesmo tempo, sua mente colocava em
xeque a autenticidade daquelas lembranças. “Para quê lembrá-los? Como posso forçar a
minha mente a filosofar alguma explicação?”, disse com a voz um pouco irritada.

Todavia, mais adiante, encontrando uma passagem estreita, resolveu entrar. Ali sentia
o ar mais úmido, porém, a ausência de mais luz não a deixava confortável. Após mais alguns
instantes de caminhada, deparou-se com uma árvore de belíssima e muito alta. Sua sombra a
deixou com vontade de parar e observar aquele lugar.

Seu olhar pousava em cada folha, como se fosse um fotógrafo preparado para flagrar
algum momento espontâneo. E, enquanto olhava aquilo tudo, lembrou-se da colocação do
pastor acerca de Deus. Era incompreensível, para ela, como as pessoas buscavam um Deus,
um sentido íntimo ou uma explicação para o que estava ali. Devagar, ela encostou-se no
tronco da árvore exótica como se quisesse ouvir uma respiração do seio daquele ser.

Entretanto, não era a respiração ou algum ruído que ela buscava. O que queria era
sentir, com seu corpo, aquele ser estranho e incorporá-lo em si. Viu, portanto, que ali estava a
entidade que buscam. Era a própria árvore encontrada naquela reserva. Ao levantar a cabeça
para enxergar a última folha, pôde perceber que aquela existência bastava nela mesma.

Ela não se permitiu mais buscar Deus ou seja lá o que for naqueles elementos vivos:
“Não é Deus (ou é) quando abraço essa árvore e sinto minha pele um pouco suja por causa do
contato. Que besteira tentar imaginar algo para além disto que se manifesta diante de mim!”.

Nesse momento, uma borboleta pousou em um dos galhos. Ela era pequena, amarela e
laranja, mas, sua presença espalhava um ar de leveza e vivacidade no olhar da observadora.
As asas batiam e ela ria quando se lembrava da metafísica a qual alguns livros, que já lera,
tentaram explicar. “Como dança aquela vida que, se é Deus, optou por ser chamada de
borboleta! Ela nem é uma borboleta!”.

Após aquele espetáculo poético, ela caminhou mais algum tempo. Sua mochila pesava
um pouco mais devido ao cansaço das pernas e da coluna. Ela se equilibrava como um artista
circense que vai, passo a passo, pela corda bamba. Ela via que o solo macio e desconhecido
guardava alguma experiência por vir, isso deu a ela um ânimo ainda maior para seguir.
52

Intrigada como aquele solo que, ainda desconhecido, era marcado por seus pés,
resolveu parar e tocá-lo. Percebeu que sua textura, seu cheiro úmido e um pouco amadeirado
eram capazes de defini-lo naquele instante de percepção. A partir dali, ao levantar-se, sua
definição era anulada em pensamento. Esse vai e volta causava-lhe incômodo, porque era
como se o chão pisado sumisse no ar para, então, ser reinventado num por vir de tempo.

Ela sentia que os versos do pastor também não precisavam de sentido íntimo. Não
desmembrava as palavras em teorias, mas fazia questão de senti-las como elementos vivos da
natureza: “Esses pássaros que pousam em meus olhos são severinas palavras que enriquecem
o meu corpo. Sinto-as, por isso, não preciso de descascá-las em suas etimologias. Ah, tenha
até algumas preferidas, mas me encanto por todas, pois acredito que elas também são esse
Deus do qual todos falam.”

Ela arranhava um pequeno galho para, assim, tentar imaginar como seria descascar a
pele do poema para encontrar uma verdade implícita, uma luz ou “aquilo que o poema quis
dizer”. Mas, o som emitido por aquela ação despertava outra questão em seus ouvidos. Ela via
a musicalidade ali, mas ao parar de arranhar o galho, o silêncio externo àquela experiência
retornava.

Quando pegou seu livro e passou algumas páginas, seus dedos tocavam aquelas folhas
resistentes ao tempo e à viagem. O cheiro modificara um pouco, uma das marcas da
experiência viajante. Ela notou, enquanto olhava fixamente para ele, que aquele objeto nada
dizia diante dela. Não havia ali resquícios de como foi produzida a folha, a tinta da caneta,
muito menos a capa. Ao observar aquele objeto, sua mente se frustrava como quem quer viver
alguma experiência, mas esta não consegue acontecer.

Por isso, gostava de ler o que a poesia emanava, porque ali o cajado apontava uma
imagem seguida da outra, constantes esvaziamentos do vazio da mente que entravam pelos
seus ouvidos através de sua voz e se enlaçava em suas veias. Para ela, isso era o essencial para
sua vida e permanência no mundo. Como ela ficava eufórica diante de cada pronúncia! Diante
daquele contato com o livro, ela disse:

-Para quê pensar em vestígios do que houve? Não há origem deste objeto quando olho
para atrás. Se digo isso para mim aqui, nesse lugar orgânico, é porque sinto que esses versos
53

fazem parte deste lugar, desta árvore, desta folha laranja, deste solo que eu nunca vi, mas que
me fascina e me indica que a origem desses versos é aqui e agora. 10

Após esse momento de diálogo com a poesia, que era tudo o que via, ela apertou o
livro contra o peito e seguiu seu caminho, porém, agora sentia um pouco de aflição, pois, num
momento de alta sensibilidade, não vira se a direção para qual estava seguindo era a correta
ou se estava voltando. Não havia sinalização e nenhuma forma de comunicação; ela seguiu a
luz do sol, porque era isso que sentia que devia fazer naquele instante.

Ela sorria e olhava para baixo, não parecia preocupada com as horas ou com o dia da
semana. Enquanto andava, lembrava que Severino queria interromper o curso dos versos para
trabalhar. Naquele momento, subitamente, sentiu-se triste e, colocando os cabelos atrás da
orelha, olhou para aquelas palavras que ameaçavam estagnar ali. Ela não entendia aquele
gesto, uma vez que o trabalho impossibilitava a imaginação. A enxada não podia substituir o
cajado que Severino- assim como o guardador de rebanhos- possuía:

-Seus passos em direção à mulher me deixam um pouco aflita. Como tem coragem de
interromper o seu caminho, que também é meu? Por que precisa do trabalho, do juízo e da
razão? Meu coração agora está um pouco acelerado com sua parada, mas, eu persistirei neste
lugar de presença e ausência de mim.

E, enquanto lia atentamente, a musicalidade do poema parecia embalar sua mente,


como uma espécie de dança. Ela ignorava a própria existência naquele solo flutuante e
escasso, naquelas perguntas e respostas que pareciam infinitas. As mãos apertavam o livro
como se estivesse agarrando a única possibilidade de vida. Era ali que ela se apagava e se
tornava apenas o diálogo incessante 11:

-Trabalho aqui nunca falta


a quem sabe trabalhar;
o que fazia o compadre
na sua terra de lá?

10
Ibidem, p.160: “As obras de arte apagavam os vestígios da sua produção.”.
11
PESSOA, Fernando. Análise. Disponível em: <http://arquivopessoa.net/textos/2871. Acesso em 03 de março
de 2018>: “[...] E a ideia do teu ser fica tão rente/Ao meu pensar olhar-te, e ao saber-me/ Sabendo que tu és, que,
só por ter-me/ Consciente de ti, nem a mim sinto./ E assim, neste ignorar-me a ver-te, minto/ A ilusão da
sensação, e sonho, [...]”.
54

-Pois fui sempre lavrador,


lavrador de terra má;
não há espécie de terra
que eu não possa cultivar.
-Isso aqui de nada adianta,
pouco existe o que lavrar;
mas diga-me, retirante,
que mais fazia por lá?
-Também lá na minha terra
de terra mesmo pouco há;
mas até a calva da pedra
sinto-me capaz de arar.
(MELO NETO, 2011, p. 102)

Entretanto, nem na pedra Severino poderia trabalhar. Os impasses colocados pela


moça deixavam a poesia agora engasgada. Ela se viu, durante o diálogo, num terreno de não.
O que faria agora se nada podia ser feito?

-O poema resistirá à pedra, à aridez, às ausências? Essas ausências parecem estar em


mim, corpo severino, partido e integrado à palavra. Eu sou esse caminho de negação, é aqui
que estou e sou. Ponho os olhos em Severino e me vejo ali; sou o que os meus olhos veem,
porque não posso estar em outro lugar ou ser outra coisa senão o que está.

Ela ouviu um barulho de automóvel vindo do leste, então, resolveu caminhar para
aquela direção. Sua pele, ainda úmida, respirava em harmonia com a natureza. Olhando
aquela paisagem na qual o verde, em suas variadas manifestações se colocava, sentiu uma
calma invadir e abraçar seu corpo. Ela se lembrou de santa Bárbara e pensou que aquilo,
talvez, fosse o Deus do qual as pessoas costumavam falar. Mas, não era esse o nome que ela
dava. Ela o chamava de verde, de céu, de árvore e até de terra. Inclusive de terra, afinal, era
assim que ele se apresentava para ela, para Severino, para o guardador de rebanhos.

Ninguém a compreendia quando ela lia do modo como tudo aparecia. Por isso,
afastamento da ciência a deixava cada vem mais próxima daquele local, do animal verde
pousado na folha à sua direita, e cada vez mais distante da filosofia dos que acreditam em um
Deus fora do sol ou da chuva. Ela seguiu andando e ouvindo seus pés pisando nas folhas
secas, porém, seus olhos ainda foram mantidos no rosário no qual Severino percorria. Após
alguns minutos, a moça respondeu ao poema:
55

-Agora se me permite

minha vez de perguntar:

como a senhora, comadre,

pode manter o seu lar?

-Vou explicar rapidamente,

logo compreenderá:

como aqui a morte é tanta,

vivo de a morte ajudar.

(MELO NETO, 2011, p.104)

Ela retirou os olhos dos versos e disse numa voz de sussurro:

-Essa moça também sou eu! No momento em que leio sua fala, vejo-me estampada
naquela voz. Eu ajudo a morte, e estou vivendo para isso, pois até agora sinto que sempre
estive me colocando em risco e, consequentemente, em morte. Meu corpo já não é mais o
mesmo, eu morro a cada passo, eu deixo de existir em cada palavra que pronuncio. Se
caminho por esta floresta sem rumo, é porque eu não sei o que virá; mas, sinto que, se eu
soubesse, não daria um passo.

Ela estava se aproximando de uma estrada de terra quando observou uma fonte de
água perto de uma pedra grande. Então, pegou com a mão um pouco da água e molhou sua
face que estava um pouco avermelhada. Ao molhar os braços, sentiu um arrepio devido à
baixa temperatura da água, mas continuou se molhando. Enquanto isso, olhava a pequena
fonte escorrer por aquele solo úmido e duvidava se era aquilo que realmente via.

Mas, ela pensou, se suas mãos tocavam aquele líquido, se ela escutava o barulho da
fonte que brotava da terra e via a transparência que refletia a solo, por que aquilo não podia
ser real? Novamente, repetiu o gesto e colheu a água para beber. Assim que bebeu, disse:

-Isso é real e não é. Eu vejo, mas meus olhos filtram o que querem e o meu
pensamento se arma em torno do gosto que sinto na boca ao bebê-la. Nada do que eu diga
para mim desta fonte sobre a qual o sol é refletido alcançará a sua realidade. Gostaria de
encontrar alguém para que a pessoa me dissesse o que vê ao olhar para a isto. Mas, não quero
56

que me venham com filosofias doentes que estragam a visão. Quero que me fale o que
enxerga ao tocar na água e ao bebê-la. 12

Seus movimentos, agora, desfaziam o pensamento acerca do que pensara. Ela


continuou a andar, no entanto, se sentia mais revigorada. A imagem da água se desfez em sua
mente, tornando-se pó em seus olhos. As mãos buscavam os troncos para que ela se apoiasse
e não escorregasse naquele chão que tinha um pouco de lama.

O silêncio da estrada, que estava diante dela, era uma imagem real. O cheiro de terra
ainda se fazia presente. Ela via aquele cenário e, como um fotógrafo, tentava registrar cada
relance. Aquilo era a sua verdade no momento, por isso, ela se sentia pertencente ao lugar; era
tudo tão efêmero que, quando a terra marrom claro se fazia presente em sua mente, tal verso
era desmontado num breve segundo.

Quem me dera que a minha vida fosse um carro de bois

Que vem a chiar, manhãzinha cedo, pela estrada,

E que para de onde veio volta depois

Quase à noitinha pela mesma estrada.

Eu não tinha que ter esperanças- tinha só que ter rodas...

A minha velhice não tinha rugas nem cabelo branco...

Quando eu já não servia, tiravam-me as rodas

E eu ficava virado e partido no fundo de um barranco

(CAEIRO, 1997, p.29)

Ela piscava e a estrada se renovava, mas não de modo tão evidente. Era preciso ler
cada detalhe, como o vento que se espalhava e rodopiava. Ali estava um pouco de morte
também, ela pensou. Cada gesto da natureza tinha seu tempo e seu ritmo, como o céu, que
puxava a noite com seus fios de algodão. Ela logo pensou, “Deus está aqui e é o céu que vejo
amadurecendo de cor”, e seu cajado conduzia a sua percepção para o íntimo da noite, aquela
vasta imensidão que ficava negra para ela.

12
ADORNO, Theodor W. 1970,p.162: “Mesmo a mais pura determinação estética, a aparição, é mediatizada
relativamente à realidade enquanto sua negação determinada. [..] A arte é infinitamente difícil porque deve, sem
dúvida, transcender o seu conceito a fim de o realizar, porque, ao assemelhar-se às coisas reais, se adapta no
entanto à reificação, contra a qual protesta: o engagement torna-se hoje, de modo inevitável, uma concessão
estética.”
57

O íntimo da noite não era algo além do que os olhos alcançavam, era o que aquela
entidade queria revelar a ela. Como uma reza, o silêncio se instalava e a rezadeira dizia para
Severino o quanto seu trabalho era singular. Ela, atenta, escutava aquele diálogo cantado que
ainda acontecia. Esse caminhar era calmo e sonolento, mas ela não se queixava, pois era o que
o poema precisava para respirar. Enquanto isso, ouvia o pastor em seu ouvido:

Mas se Deus é as flores e as árvores


E os montes e sol e o luar,
Então acredito nele,
Então acredito nele a toda a hora,
E a minha vida é toda uma oração e uma missa,
E uma comunhão com os olhos e pelos ouvidos.
(CAEIRO, 1997, p.21)

Nesse instante, ela levantou os olhos e sorriu como quem pudesse entender a natureza
dessas palavras. Ela entendia com o suspiro que dava, porque nesse lugar tudo estava em
comunhão e aquelas folhas que levavam as estrofes embalavam a canção do sono o qual
percorria e carregava a morte. Diante disso, sentiu vontade de deitar num canto cujas folhas
deixavam o chão mais macio, mais propício ao sonho e à sua realidade momentânea.

Ela colocava a bolsa no rosto, a fim de que a luz de algum automóvel que passasse
esporadicamente não atrapalhasse seu sono. Antes de dormir, seus dedos desembaraçavam
seus cabelos sujos de terra. Eles estavam um pouco mais claros devido ao sol e os fios um
pouco mais grossos. E, enquanto realizava tal gesto, seus pés se mexiam livremente. Para ela,
aquilo tudo bastava naquele momento, pois sentia uma espécie de oração materializada em
cada folha e grão de terra.

Durante a madrugada, com uma lanterna, olhava os versos e ouvia a mulher contar
sobre como a morte era próspera naquele lugar. Seus dedos acompanhavam e sua boca
pronunciava as palavras apontadas. Além disso, cada verso lido morria quando outra estrofe
era dita, era como se o vento, que vinha com mais força, carregasse aquele punhado de vazio
para lança-lo ao universo:

Imagine que outra gente


De profissão similar,
Farmacêuticos, coveiros,
Doutor de anel no anular,
58

Remando contra a corrente


Da gente que baixa o mar,
Retirantes às avessas,
Sobem do mar para cá.
Só os roçados da morte
Compensam aqui cultivar,
E cultivá-los é fácil:
Simples questão de plantar;
Não se precisa de limpar,
De adubar nem de regar;
As estiagens e as pragas
Fazem-nos mais prosperar;
E dão lucro imediato;
Nem é preciso esperar
Pela colheita: recebe-se
Na hora mesma de semear.

(MELO NETO, 2011, p.106)

Era tão sensível como os seus olhos acompanhavam o diálogo, pois o trabalho da
mulher a deixou boquiaberta. Ainda deitada e lendo, suas mãos tocaram a terra e apertaram
com força. Esse gesto ondulante fora repetido umas quatro vezes, mas ela não sentia, uma vez
que, ali, ela era apenas aquele diálogo referente à morte. E era tão fácil, ela via, como a vida
se fazia naquela folha em branco. Por isso, a morte também estava presente. Vida e morte
persistindo, lado a lado, nos versos.

Ela era esse retirante às avessas, que vivia em sua casa, porém, precisava de sair
para ver a poesia que transbordava pelo chão, árvores, pessoas e céus. Nesse ponto, ela não
entendia por que encontrava enterros e possibilidades. Levantou os olhos, atentando para a
breve pausa que tinha de dar e, contemplando o céu, notou que talvez aquela caminhada
precisasse ir mais devagar para que pudesse sentir aquela paz que morava em seu peito no
momento da leitura.

Ela ficou feliz de saber que Deus se fazia presente ali como a terra que segurava.
Naquele instante, ela franzia a testa como se reprovasse algum pensamento indigesto. Esse
pensar era referente à dúvida da existência de Deus, porque a sua única prova sobre a divina
aparição estava ali, costurada no céu estrelado e firme do papel. Ela gritou quando viu que
ninguém passava ali:
59

-Sinto-me perdida quando saio do mundo no qual estava submersa. Esse mundo que
vejo no céu e nas árvores desaparecem; mas, agora, olhando novamente, ele se reconstitui
com a terra que devolvo ao solo. Não sei se sigo adiante nesse meu caminho severino ou se
espero alguém surgir para que possamos compartilhar essa angústia. Aquelas flores roxas à
esquerda têm um cheiro forte, o cheiro da noite, cheiro do abrigo e da solidão. Eu quero
seguir a minha procissão solitária, para sentir no toque cada manifestação deste ser que sou eu
e não sou. Vou pegar um papel para anotar aquilo que acho que foram as minhas sensações.
Tentar narrá-las será um gesto de traição.

Porque escrevo para eles me lerem sacrifico-me às vezes

À sua estupidez de sentidos...

Não concordo comigo mas absolvo-me,

Porque só sou essa cousa séria, um intérprete da Natureza,

Porque há homens que não percebem a sua linguagem,

Por ela não ser linguagem nenhuma.

(CAEIRO, 1997, p. 36)

Enquanto escrevia, sentia-se irritada com aquela falsa apreensão de si. Sua intimidade
jamais poderia ser colocada num papel de forma fiel. Era um engano que a alma dela pedia
naquele segundo. Aquilo era uma espécie de conversa com seu eu mais profundo. E, assim,
ela mergulhava naquele oceano escuro e prazeroso da noite. Ventava muito e fazia frio, mas
seus dedos apertavam as folhas com a finalidade de conseguir escrever nem que fosse uma
linha, para amarrar com as palavras o que o coração um dia apresentou sob forma de imagem,
som ou cheiro.
60

6. O EGOÍSMO DA ALMA POÉTICA

Andou por mais alguns instantes. Os dedos das mãos estavam um pouco roxos, mas,
mesmo assim, a mão direita segurava o livro. Ao olhar para a esquerda, viu uma placa que
indicava uma cidade. Então, ela decidiu seguir sem pressa de chegar ao destino. O cheiro da
manhã se fazia mais presente agora. Era um cheiro diferente do que sentia na montanha,
porém, ela o chamava assim porque sentia um frescor e um sentimento de renovação em sua
caminhada.

Para ela, essa era a verdade da qual o guardador de rebanhos falava no seguinte verso:
“E me deito ao comprido na erva,/ E fecho os olhos quentes,/ Sinto todo o meu corpo deitado
na realidade,/ Sei a verdade e sou feliz.” (CAEIRO, 1997, p.27). A imagem que estava sendo
construída para ela do carro vermelho passando e fazendo a curva mais adiante era a única
verdade que existia em sua mente. Esse era o seu rebanho.

Nesse momento, a sua pisada era um pouco mais leve e a sua visão já conseguia
enxergar o que havia mais na frente, mas ainda não avistava a cidade. Trazia consigo uma
segurança e um incômodo que, de vez em quando, revirava seu estômago. Os outdoors pelos
quais passava eram coloridos e carregavam frases imperativas, ração para os transeuntes.
Aquelas palavras não faziam sentido para ela, porque não respiravam de forma viva.

A riqueza das palavras brotadas nos versos severinos eram fibras que aquele chão
precisava. E parecia que essas fibras, aos poucos, tornavam a passagem do retirante menos
dura. Isso era perceptível porque os versos decorados surgiam em sua mente:

Quem não sabe se nesta terra

Não plantarei minha sina?

Não tenho medo de terra

(cavei pedra toda a vida),

E para quem lutou a braço

Contra a piçarra da Caatinga

Será fácil amansar

Esta aqui, tão feminina.


61

(MELO NETO, 2011, p.107)

Enquanto, a estrofe era evocada em seu pensamento, ela avistava um ônibus pequeno e
um pouco sujo. Sinalizou para que o veículo parasse e entrou. Havia algumas pessoas que a
olharam e perceberam que a sua presença era uma novidade naquela região. Entretanto, houve
uma moça que lhe chamou atenção pela pele meio azulada e os cabelos que batiam no chão.
Ela resolveu sentar-se ao lado da moça.

Sem dizer uma palavra, a fim de não demonstrar estranheza, seguiu os versos do
rosário: “Essa cova em que estás,/ com palmos medida,/ é a conta menor/ que tiraste em vida./
É de bom tamanho,/ nem largo nem fundo,/ é a parte que te cabe/ deste latifúndio.” (MELO
NETO, 2011, p.108). Ao lembrar dessa parte, ela pensou em seu corpo como o abrigo
necessário da alma em vida.

Essa carcaça seca e magra era a única coisa que possuía, pois nem os livros lhe davam
essa sensação de pertencimento. Eles eram o rebanho o qual ela guarda por um instante.
Pensando nos versos novamente, via aquela cova como o abrigo do resto, da não-vida. Apesar
do solo mais fértil, ela via Severino e a morte mais uma vez frente a frente. Aquilo a
incomodou, porque a insistência da poesia em encarar a morte era cansativa:

- É como se um fragmento do meu corpo se descolasse feito folha seca. Mais uma vez
a morte diante dos meus olhos. Nesta viagem percebo a morte como necessária ao meu
conhecimento, ao meu autoconhecimento. Eu só percebo quem sou quando isso me escapa.
Essa autorreflexão vem naturalmente, não planejo nem imponho isso em mim. Quando vejo já
deixei de ser, como aquelas folhas e pedras deixadas na estrada por onde passei. 13

De repente, a pele da mulher azulada tocou nela e causou um certo espanto devido à
alta temperatura. Era como se estivesse pegando fogo, porém, a mulher transmitia um ar de
tranquilidade enquanto olhava para a paisagem de fora. Ela hesitou em perguntar, mas disse:

- Você está bem? Percebi que está um pouco quente. Passa bem?

A moça olhou-a e soltou uma lágrima de seu rosto enquanto seus dedos se
entrelaçavam. Em voz baixa disse:

13
O filósofo francês Jacques Rancière, em Políticas da escrita, discorre acerca da literatura como um lugar de
guerra da escrita em que se fazem e desfazem as relações entre o discurso. Ela é capaz de desmanchar as relações
estáveis entre nomes e ideias.
62

- Estou bem e não me sinto mais quente do que você. Sinto-me bem aparentemente,
mas por dentro a melancolia da solidão me adoece. Eu estou há dias andando sem rumo,
costurando meu corpo nesses troncos e até no céu. Saí de casa para tentar me entender, mas
me percebo ainda mais incompreensível.

As palavras da mulher lhe causavam desânimo também. Sua aparência azulada, seus
dentes amarelados e seus longos cabelos eram tão desconfortantes que seus olhos estavam
confusos. Mesmo assim, pegou a mão da moça e segurou por alguns instantes, gesto que
julgava ser de conforto. Mas, não conseguiu fazer isso por muito tempo, porque a alta
temperatura a fez soltá-la.

A moça percebeu o afastamento, mas não contestou. Sua vista embaçada pelas
lágrimas fez com que seus olhos fechassem para se acalmar. Diante disso, ela decidiu não
fazer mais perguntas, apenas pediu à mulher que anotasse no final de seu livro o seu endereço
para que pudesse, numa outra ocasião, encontrá-la.

Depois, levantou-se e pediu ao motorista para deixá-la mais adiante, pois já avistava
algumas casas e um movimento urbano. Atravessou a estrada, que achou agitada e caminhou
até uma banca de revista. Chegando lá, pediu algumas informações sobre hospedagem e
restaurantes. O homem era gago e a respondia sem olhá-la, como se estivesse buscando a
informação na pilha de revistas. Enquanto ele falava, ela decidiu pegar uma revista cuja capa
trazia a foto de alguns filósofos e algumas chamadas referentes ao sentido da vida.

Ela soltou um riso de lado e isso deixou o homem sério. Percebendo o mal-entendido,
tentou lhe explicar o motivo do riso, porém o homem disse que estava ocupado para dar
informações. Ela saiu da banca e caminhou por mais alguns instantes enquanto percebia o
cheiro forte da cidade. Em sua mente, Severino acompanhava a cantoria que os amigos do
defunto faziam:

Despido vieste no caixão,

Despido também se enterra o grão.

De tanto te despiu a privação

Que escapou de teu peito a viração.

Tanta coisa despiste em vida

Que fugiu de teu peito a brisa.


63

E agora, se abre o chão e te abriga,

Lençol que não tiveste em vida.

Se abre o chão e te fecha,

Dando-te agora cama e coberta.

Se abre o chão e te envolve,

Como mulher com quem se dorme.

(MELO NETO, 2011, p.111)

Ela sabia de cor esses versos porque, apesar da aridez, a musicalidade lhe tocava. A
fala que evocara despertava nela um sentimento de vazio por constatar o corpo, como um
grão, estava ali dentro da cova. Isso dava à cidade um tom mais cinza e a sensação de que
precisava andar para continuar tecendo seu trajeto. Sua mão ainda segurava o livro que trazia
o guardador de rebanhos. Ela só queria agora se apoiar em algum lugar para ler mais um
pouco.

Encontrou um canto sossegado em que estava um caixote de madeira. O lugar não


cheirava muito bem, mas ela decidiu ficar ali, a fim de observar o movimento da cidade e
explorar a sua percepção em relação aos outros sentidos. As pessoas passavam falando alto e
num ritmo acelerado que tornava difícil a compreensão de uma frase completa. Seu estômago
roncava um pouco. Um menino veio em sua direção pedir algumas moedas para comprar pão,
e ela disse que não possuía moedas.

Ele virou-se e seguiu. Pensou em refletir sobre o que havia feito, pois, na verdade, ela
tinha as moedas, mas o barulho não deixou sua linha de raciocínio fluir. Ela também não
estava disposta a julgar o que fez, uma vez que aquilo seria irrelevante. Viu um vendedor de
bebidas passar e pediu uma água. Ventava, mas não era o suficiente para deixar o clima
fresco. Bebeu um gole e abriu numa página qualquer do livro na qual dizia sobre um homem
das cidades que falava das injustiças com os operários que sofre e a falta de importância que
os ricos davam a esse assunto. Ela soltou um riso tímido, para não ser notada, e lembrou-se da
revista de filosofia:

- Quanta bobagem tenho de ler! Que cansaço me causa essa culpa que me pedem para
ter ou até mesmo essa compreensão das coisas. Querem por um véu do moralismo em meus
olhos. Querem me dizer o que sentir; ou melhor, não querem que eu sinta a vida, apenas que
eu olhe para os trabalhadores e programe meu corpo para demonstrar indignação. Eu não sou
64

um trabalhador, eu não sou a criança que dorme na rua! Vontade de pôr fogo nessas revistas
que vomitam regras e negam a essência da vida. Não preciso de manuais para viver!

Essas palavras explodiam em seu pensamento. Seu dedo apontou para o verso que
dizia: “Sejam como eu- não sofrerão./ Todo o mal do mundo vem de nos importarmos uns
com os outros,/ Quer para fazer bem, quer para fazer mal./ A nossa alma e o céu e a terra
bastam-nos./ Querer mais é perder isto, e ser infeliz.).” (CAEIRO, 1997, p.37). Ali estava
exatamente o ponto que movia seu pensar sobre as coisas. A poesia trazia a força de sua raiva
momentânea. Ela não recitou novamente essa parte, não quis formar pensamento algum sobre
isso.

O cheiro estava insuportável, impedindo-a de seguir com a leitura. Seu nariz captava
um odor semelhante ao de peixe podre e de leite azedo, mas ela não conseguiu encontrar de
onde ele vinha. Resolveu sair do local, atravessar a rua e ir ao centro comercial que possuía
três andares. O fluxo de gente na entrada era intenso; pela movimentação, ela achava que era
segunda-feira, mas não se preocupou em perguntar isso a alguém. O que lhe chamava atenção
é que dentro do prédio as lojas modernas descaracterizavam a sua arquitetura antiga. O tempo
dos homens modificava aquele ambiente. A morbidez das tevês, a impessoalidade das cores
dos botões digitais (o azul frio programado para surgir) e o som de pássaros emitidos por um
gravador transpareciam a artificialidade da vida programada.

Ela enxergou ali um sinal de morte também. A morte inconsciente e conduzida pelo
próprio homem era diferente da que ela via na poesia. Na arte, entendia que a morte severina
era consequência de uma vida imposta ao habitante do lugar de não. Já no poema do pastor, a
morte acontecia a todo momento como um gesto de desfazer e refazer o ser através da
experiência poética. Logo, diante daquele aglomerado de gente, sons e aparelhos, ela via que
a essência orgânica da vivência já havia se perdido. E o pior, ninguém havia notado.

Sentindo-se um pouco cansada, seguiu até o final do corredor porque lá havia uma
passagem para outra rua. Durante o caminho, avisto um canto onde algumas pessoas de
uniformes riam e fumavam. Um dos homens narrava uma história fazendo gestos exagerados
enquanto os outros se comportavam como uma plateia encantada pelo espetáculo. Seus
pulmões pareciam comportar a maior quantidade possível de ar para, em seguida, soltá-lo de
modo apressado. Eles suavam, estavam sujos, mas, pareciam se importar com a situação. O
65

que a impressionou ainda mais foram as baratas que desviam dos pés enormes e
desgovernados.

Aquela cena que se concentrava no canto de um estabelecimento o qual mantinha certa


organização e pontualidade despertava nela uma alegria frágil, mas resistente. Ela apenas
olhava e pensou até em chegar mais perto do grupo para participar na reunião, porém achou
melhor assisti-los como um filme ou uma peça que retrata ainda um pouco de vida. A
felicidade em encontrar aqueles insetos que dividiam o espaço com os homens se dava porque
era possível ver um rastro de vida indesejável e inconveniente naquele ambiente.

Os homens não estavam produzindo ou pensando sobre suas vidas medíocres. Eles
riam e suavam num lugar com pouca circulação de ar e infestado de baratas. Não pareciam se
preocupar com o horário ou o dinheiro. Estavam raspando o último vestígio de poesia de suas
vidas. Para ela, aquilo também não poderia ser classificado como a vida nem como a morte:
parecia um entre essas duas instâncias. 14

Enquanto um enxugava os olhos demonstrando um cansaço, o outro puxava um


assunto banal como se quisesse estender aquele momento e agarrá-lo com suas unhas sujas.
Aquilo não lhe dava alegria por saber que eles estavam felizes, porque ela não se importava
com o bem-estar ou o sofrimento alheio. Ela tinha dentro de si um sentimento típico da
poesia: o egoísmo.

O que sentira era a surpresa em seus olhos por presenciar uma manifestação
espontânea a qual transgredia o ritmo daquele centro comercial. Aquele lugar aparentemente
limpo abrigava um lado indesejável e que causava certa repulsa para os que tinham pressa e
filosofia.

Ela seguiu até a saída para a outra rua. Ao chegar lá, virou a esquerda a fim de
conhecer mais um pouco e ler os poemas que eram evocados em sua mente. Percebia
enquanto andava que havia alguns fragmentos de jornal pelo chão nos quais algumas imagens
de miséria e violência eram reforçadas por manchetes sensacionalistas. Ela sentia que não só
aqueles pedaços de periódicos clamavam por atenção, mas toda a cidade se comportava dessa

14
ADORNO, Theodor W. 1970, p.14-15: “A definição do que é a arte é sempre dada previamente pelo que ela
foi outrora, mas apenas é legitimada por aquilo em que se tornou, aberta ao que pretende ser e àquilo em que
poderá talvez tornar-se. [...] O conteúdo da arte que, segundo a sua concepção, constitui o seu absoluto, não é
absorvido na dimensão da sua vida e da sua morte. A arte poderia ter o seu conteúdo na sua própria
efemeridade.”
66

forma: os meninos e senhoras enrugadas pediam algo para comer na rua, as conversas que às
vezes flagrava abordavam algum problema social e os operários de uma fábrica de tecidos
eram expostos nas televisões que ela podia ver em algumas vitrines pelas quais passava.

Aqueles gritos de socorro eram mudos para os ouvidos dela, uma vez que não faziam
sentido algum, não a comoviam. Nem o choro da mulher de pele azulada lhe causava piedade,
era um estranhamento que presenciara em seu trajeto apenas. Não perguntara se a moça estava
bem porque queria ajudá-la a resolver seu problema, mas por causa da necessidade de olhar
para pensar aquilo, para se envolver e satisfazer seu eu com a experiência. Nesse momento,
seu rebanho trouxe à sua mente um fragmento do poema que dialogava com seu momento:

(Louvado seja Deus que não sou bom,

E tenho o egoísmo natural das flores

E dos rios que seguem o seu caminho

Preocupados sem o saber

Só com o florir e ir correndo.

É essa a única missão do Mundo,

Essa- existir claramente,

E saber fazê-lo sem pensar nisso.)

(CAEIRO, 1997, p.37)

Essa estrofe já bastava para seu corpo naquela tarde. Ela seguia o fluxo da sua
percepção. Não havia pensamento que comportasse a completude do que era existência para o
pastor, para a poesia. Aquilo fazia perceber e vivenciar aquele mundo a partir de um outro
compasso e de um olhar que lhe era particular. Ninguém a entenderia se resolvesse explicar;
entretanto, ela sabia que isso não era para ser justificado com palavras de revistas filosóficas.
O entendimento do egoísmo da natureza só seria alcançado através do olhar, do sentir e do
ouvir.

Enquanto ela contemplava o céu carregado de nuvens grossas e composto por


variações de cinza, seus braços e pernas pareciam não existir. A sua existência estava
concentrada ali, na densidade daquele aglomerado de gotas de água. Durante essa experiência,
não percebia os olhares que a julgavam. Eram pessoas apressadas que não entendiam a sua
contemplação, pois queriam apenas chegar à casa para finalizar mais um dia mecânico.
67

Sua apreciação transbordava naquele céu. No momento, ela era cinza e úmida, mas
ainda havia uma aspereza inerente ao seu corpo. Suas gotículas pareciam ainda mais
concentradas à medida que caminhava. Seus passos eram as nuvens, e o risco que corria de
esbarrar em alguém ou ser atropelada por algum automóvel faziam parte do que era ser
nuvem.

E se achava graça ao olhar para cima era talvez porque aquele instante como nuvem
proporcionava-lhe uma satisfação e incompletude. Os versos falavam dentro dela: “Acho tão
natural que não se pense/ Que me ponho a rir às vezes, sozinho,/ Não sei bem de quê, mas é
de qualquer cousa/ Quem tem que ver com haver gente que pensa...” (CAEIRO, 1997, p.38).
Seu riso durou alguns segundos, porém o infinito constituía-se ali. Além do seu riso que
também não era seu, havia umas gotas presentes em seu rosto vindas do céu.

As gostas e os risos fundiam-se numa dança inesperada, por isso, fora vista como uma
manifestação poética por ela. Ao fixar o olhar, ela, sem querer, tentou explicar a si mesma
aquela composição. Mas, ao fazer isso, a nuvem se desfez em seu pensamento (seu olhar), e
as gotas e o riso escorreram pelo seu corpo, desmanchando-se sem comoção alguma. Esse
processo foi bem rápido, entretanto, o bastante para que o desespero lhe tomasse a pulsação e
as suas mãos pudessem suar:

-Por que minha mente quis entender as nuvens e o céu? Eu era a nuvem e o céu. Isso já
não bastava? Por que eu quis saciar meu corpo com alguma definição falsa e doente? Não
busquei isso quando olhei para cima nem pensei em olhar para cima! A única verdade era
aquele céu com um cinza escuro, um tom mais claro e o toque das gostas em mim; eles se
diluíram no pensamento doentio. Eu novamente escapei de mim.

Sua pretensão era de viver aquele céu de forma única, porque ele era singular. Ele iria
se transformar em outro céu no mesmo dia com o cair da noite; se reinventava num sopro de
tempo e de modo imprevisível. Para os que passavam e olhavam rapidamente para cima, ele
era o mesmo, só possuía algumas diferenças de cores, mas nada que despertasse uma
contemplação. Isso a deixava indignada, uma vez que as pessoas queriam impor a ela o que
era importante e digno de atenção. A pobreza, a miséria, a desigualdade e a injustiça do outro
estavam sempre em pauta e eram impostas como o que realmente importava na vida.
68

Esses assuntos eram uma forma de mantê-los entretidos com o outro, mas não como
uma experiência: ela sentia nessa preocupação um modo de entretenimento da massa para
fugir de si e da vivência mais incômoda que é a poesia. Essa fuga segrega e setoriza a vida em
caixas limpas, fazendo as singelas partículas do olhar se perderem e se tornarem inexistentes.
Era o que Severino buscava que importava a ela: estender a vida severina (magra e ossuda)
para continuar a enxergar um pouco mais do que via.

O que busquei

Foi defender minha vida

Da tal velhice que chega

Antes de se inteirar trinta;

Se na serra vivi vinte,

Se alcancei lá tal medida,

O que pensei, retirando,

Foi estendê-la um pouco ainda.

(MELO NETO, 2011, p.112)

É o osso, o suor, as baratas e o riso sem motivo que a comove. Buscou no bolso o
contato da mulher de pele azul e rasgou, para que não se preocupasse ou pensasse na nela. Ela
já não existia mais, aliás, tudo que vivenciara até o momento já não podia mais ser lembrado.
O que ela lembrava era o que via na sua frente. Nem a nuvem poderia ser visualizada
novamente, o céu já não era mais aquele, tudo deixou de ser presente.

Enquanto seguia, o poema perturbava sua mente. Questionava o seu ser sobre o modo
como conduzia a vida severina. Ouvindo o barulho do vento que trazia um frescor, o gesto de
retirar-se, mover-se ao imprevisto, era sentido como um “entre” difícil de ser entendido pelos
sentidos. Ela ouvia aquele barulho da mesma forma que os outros ouviam ou aquele vento
nem existia para os demais? Ela indagava se as pessoas à sua volta notavam esse “entre”
durante seus dias. 15

Esse intervalo de vida também era vida, mas era morte no seu gesto mais bruto. Ela
tinha a consciência dentro dela de que isso não lhe ensinava algo sobre o que era ou deixou de
ser, o que esse caminho retirante e, ao mesmo tempo, natural de seu rebanho fazia era colocá-

15
DERRIDA, Jacques. 1930. p.10: “Entre vida e morte, portanto, eis, na realidade, o lugar de uma injunção
sentenciosa que sempre finge falar como o justo.”
69

la na frente de uma espécie de espelho todo rachado como quem diz “É apenas isto!”. O que
buscava era apenas um lugar mais silencioso quando avistou um parque mais adiante. Foi até
o lugar porque sentiu necessidade de ir, não estava buscando descansar ou qualquer outra
coisa. Seus olhos coçavam um pouco, mas julgou se por causa da poeira emitida pelos carros.
Ela não estava acostumada com aquela agitação, onde morava apenas o vento e a chuva
invadiam a sua casa, às vezes um telefone ou barulho de cafeteira, mas nada insistente.

Ao entrar no parque, avistou um lago e decidiu sentar-se à beira. Apesar da dor no


pescoço, ela abriu o livro em leu: “[...] Que pensará isto de aquilo?/ Nada pensa nada./ Terá a
terra consciência das pedras e plantas que tem?/ Se ela a tiver, que a tenha.../ Que importa isso
a mim? [...]” (CAEIRO, 1997, p.38). Isto posto, ela sacou da bolsa um caderno com algumas
folhas em branco e fez alguns traços um pouco trêmulos e de diferentes tamanhos. Aqueles
traços tinham apenas a pretensão de existir sem querer representar algum animal ou coisa do
mundo. Ele era do mundo também, uma vez que estava ali diante dela e seu olhar reconhecia
a existência dos traços. Continuou a desenhar e a escrever algumas palavras entre os traços.

Essas palavras que surgiam não possuíam relação para a lógica de um pensamento
ordenado, elas nem eram palavras reconhecidas pelo idioma dela ou de qualquer outro.
Traziam significados ricos à alma, eram verdadeiras na sua inocência de existir. Isso fez com
que uma lágrima escorresse pelo seu rosto, porque eram suas palavras e seus sentimentos ali.
As pessoas jamais saberiam o que é sentir aqueles traços vivos e ouvir aquelas palavras
impronunciáveis. Emocionava-se como o guardador de rebanhos diante do homem que lhe
falava sobre as mazelas do mundo.

- Como é bom estar só! Essa melancolia que, às vezes, me visita é natural e necessária
para manter-me viva. Engraçado que sinto falta de algo do qual o nome não me recordo. É
que a falta da poesia foge da ponta da língua. Ela só me sacia quando olho para a coisa, mas
logo em seguida parece que outro buraco surge em mim. Então volto a procurar a coisa que já
não é mais aquela. Hoje só tenho essas palavras em mim, mas não evoco isso em alto e bom
som para que elas não fujam de mim. Penso que as tenho comigo, porque a mentira ainda
habita meu ser.

Ela fechou o livro, pois o escuro da noite se instalara no ambiente. Não havia luzes
nesse parque, mas dois postes distantes iluminavam o suficiente para enxergar o que estava
acontecendo. Nesse momento, Severino estava apressado para chegar ao Recife e ela
70

construía os versos em seus olhos a fim de não perder o diálogo dos dois coveiros. Eles
falavam dos outros e de si, enquanto Severino ouvia atentamente. Ouvidos atentos como os
olhos dela na noite querendo captar cada relance, porque à noite ela sentia a sensação de
perigo mais iminente.

Fechou os olhos por um momento. A escuridão dentro dela era imensa, silenciosa e
fria. Não havia uma luz para acalmá-la, mas sentia-se melhor assim, consigo mesma. Ouvia
uns barulhos estranhos e indefiníveis, pareciam monstros balbuciando e socando as paredes
do seu estômago. Que universo é esse que habitava nela? Como pôde ter tanta autonomia para
viver em seu corpo de forma independente? O barulho aumentava, e não adiantava tapar os
ouvidos com as mãos se todo o tumulto vinha dela. Com certa dificuldade para se entender,
ela disse:

- O em mim talvez seja o meu lado mais indefinido. O que faz aqui? Por que você me
queima à noite e me faz viver a poesia quando meu corpo está mais cansado? Tenho rugas,
marcas que este trajeto me deu. Além disso, sinto-me cada vez mais distante dos outros. Não
entendo mais como vivem e para quê cumprem ordens. Quem as criou, inclusive? Sinto que
se não os compreendo, não é porque eles tenham um universo ainda inexplorado e poético; se
me causam repulsa, não é porque eu esteja encarando o extraordinário. É que eles não
pensam, eles querem teoria, ciência. O que vejo transcende isso.

Após esse desabafo, calou-se e continuou a ouvir seu organismo. Seus batimentos
estavam fortes, acelerados e sua pele mais seca. Ela passou as unhas nos braços e o que ouviu
foi um barulho semelhante ao do vento da estrada. O que ela via eram as marcar avermelhadas
e sentia uma ardência devido ao seu gesto. Passou a unha com mais força e depois repetiu.
Não havia mundo externo enquanto ela fazia isso; percebia que o mundo girava em torno
daquela ação quando ela se arranhava. O som, a ardência, o incômodo e o avermelhado no
braço eram o seu instante.

A noite estava viva ainda, mas ela não via a cor do céu nem o que aparecia no parque.
Algum animal poderia estar perto dela ou alguém poderia estar observando-a, porém não
importava. Era o mundo dela que acontecia e se manifestava pra ela. Todas as dores e
tristezas que estava sentindo eram parte dela e ela se sentia completa em poder abraçar as
pernas com os olhos fechados. Além disso, os olhos cerrados despertavam um movimento que
ela só sentia quando evocava os versos severinos e os de seu rebanho.
71

O tempo ali escorria como água tranquila, mas possuía uma profundeza íntima a qual
só ela poderia mergulhar. Impossível comparar às horas, aos minutos e aos segundos: era um
tempo transverso ao tempo que dizem existir, era contrário e ao mesmo tempo não o era.
Deixava-a impaciente, curiosa e imersa à sua escuridão. Já não sabia mais do mundo
inexistente de fora. O tempo marcado em sua pele e em seu interior afogava seus olhos para
que ela não visse o que é o problema inventado pelo homem. 16 Isso ficou ainda mais firme
quando esses versos foram escritos no papel em branco de sua mente:

- Mas o que se vê não é isso:

É sempre nosso serviço

Crescendo mais cada dia;

Morre gente que nem vivia.

- E esse povo lá de riba

De Pernambuco, da Paraíba,

Que vem buscar no Recife

Poder morrer de velhice,

Encontra só, aqui chegando,

Cemitérios esperando.

-Não é viagem o que fazem,

Vindo por essas caatingas, vargens

Aí está o seu enterro:

Vêm é seguindo seu próprio enterro.

(MELO NETO, 2011, p.119)

Nesse abismo em que foi jogada, ela confirmou sua impotência diante do fio desse
rosário. Morte e vida. Vida e morte. As duas pontas do fio que não se opõem. Pelo contrário.
Estão ainda mais unidas no movimento de seu corpo e nas suas sensações. Evitar o inevitável
é o que busca nessa viagem. Cada pisada dada no chão de terra ou de asfalto marcava a sua
morte naquele lugar. Apertava seus olhos como se confirmasse cada palavra daquele
fragmento. Inclusive, a morte não ocorria apenas no âmbito poético, mas na estrutura dos

16
Ibidem, p.12-13: Estamos questionando neste instante, estamos nos interrogando sobre este instante que não é
dócil ao tempo, pelo menos ao que assim chamamos. Furtivo e intempestivo, o aparecimento do espectro não
pertence a este tempo, ele não dá tempo, não este [...].” .
72

poemas, uma vez que ela os repartia e os vivenciava, mastigando-os como se fosse o último
segundo. O que ele tece em seu pensamento é um outro poema vindo desses que saíam da
folha dos livros pequenos que a acompanhavam e do papel escrito pelos seus olhos.

- Não posso ser outra coisa que não seja egoísta. Se sou feita de poesia, se respiro
poesia, se o que vejo é o meu rebanho inventado e real em minha mente é porque sou egoísta.
Não vejo motivação para olhar para o outro e tentar entendê-lo ou acenar com um gesto
simpático. Não. Eu quero ver é o que ele carrega de mim, porque eu também sou feita dos
outros. Cada barulho emitido por meus órgãos me causam estranhamento, surpresa e prazer. É
uma mistura dessas sensações que me levam ao risco, ao meu próprio enterro. O que cavo
com as minhas mãos são os meus ossos esfarelados. Eu quero vê-los, porque preciso passar a
mão e sentir a textura do que realmente eu sou.

De repente foi clareando. Ela via algumas pessoas surgindo e caminhando lentamente.
Foi para o portal do parque a fim de ver o dia acordar naquela cidade. Estava tudo ainda meio
adormecido, mas alguns sons já podiam ser escutados: a buzina dos veículos, o sapato dos
homens e das mulheres rangendo em contato com o chão, o carrinho de feira de ferro
passando pelos ladrilhos, os sacos de mercadoria retirados do caminhão para serem levados ao
estabelecimento e as crianças que choravam.

O choro lhe encantava à medida que seu som despertava os homens de seus
mecanismos tolos. A mulher deixava de olhar o relógio para acalmar a criança; o homem, de
ler a seção de economia para perguntar o que houve. Ela observava todos desesperados com o
gesto inesperado da criança- mas esperado também, uma vez que todos sabem que as crianças
não controlam suas reações- tentando retomar a calmaria da manhã. Ela disse:

- Vejo essa criança como a poesia da qual eles precisam, porque dormem para a vida.
O bebê que chora alerta, chama pra algo que, naquele instante, é urgente. Sinto os poemas
chorarem aos berros constantemente. São crianças egoístas que me querem ver assustada e
atenta. São egoístas e me tornam assim, porque eu já desisti de olhar a hora e de olhar a seção
de economia. Pra falar a verdade, nem tenho mais parafernálias que me aprisionam no tempo.
A morte é o meu único medidor. Quando ela chegar, notarei meu fim.

Ficou encostada no muro do parque de frente para a rua vendo e sentido aquele dia
surgir. Era engraçado o modo como olhavam para ela: miravam seus pés para ver se o sapato
73

estava furado ou se havia um chapéu no chão pedindo dinheiro. Algumas pessoas olhavam
com certa repulsa para sua aparência que não devia estar tão agradável, julgando por que ela
estava parada encostada num muro; outras, possuíam um olhar de piedade como se quisessem
resgatar aquele ser injustiçado e faminto.

Ela estava faminta sim, mas sua fome era outra. Queria agora mergulhar num rio ou
até mesmo tomar um banho de chuveiro, mas não para ficar bem com os outros, ela queria
essa experiência naquele momento. Enquanto fitava a mulher abrindo a loja do outro lado da
rua, um senhor veio perguntar se ela queria ajuda, porque ela parecia perdida. Sem emitir uma
palavra, ela negou com a cabeça e fechou seu semblante. Aborrecido, ele saiu reclamado,
sentindo-se desacatado.

Ao olhar para a amendoeira à sua direita, lembrou-se dos seguintes versos do pastor:

Se às vezes digo que as flores sorriem

E se eu disser que os rios cantam,

Não é porque eu julgue que há sorrisos nas flores

E cantos no correr dos rios...

É porque assim faço mais sentir aos homens falsos

A existência verdadeiramente real das flores e dos rios.

(CAEIRO, 1997, p. 36)

Agora sentia que as suas comparações e metáforas eram um modo de achar em sua
língua uma forma de externar a poesia da vida e da morte, torná-las mais acessíveis ao mundo
e a ela, porque mesmo indo de encontro à correnteza, ainda estava ali respirando e vendo.
Agora indagava em seu pensamento:

- Como posso dizer para mim mesma que as flores sorriem? Como ouvir o cantar dos
rios e não o chamar dessa forma? Como é o verde manchado das folhas da amendoeira? E o
gosto da amêndoa? Tudo bem. Eu vivo cada flor, fruto, rio e folha, logo, sei que conheço
porque presencio o espírito poético ali manifestado; porém, parece-me que caio em
contradição quando uso meu idioma para vivenciar isso. Essa armadilha que armo para mim é
irremediável até este momento, porque penso em seguir usando as palavras “flor”, “sorrir”,
“rio”, etc.
74

Essa questão deixou sua mente incomodada e aflita. Ela cogitou buscar outro modo de
externar a poesia, mas achou inútil pensar nisso, haja vista que, se o poema quisesse, ele se
manifestaria de outra forma. Além disso, outra estrofe veio mostrar que o poeta se absolveu
dessa estupidez de escrever na linguagem dos homens. Ela leu o fragmento como quem
quisesse, também, uma absolvição:

Porque escrevo para eles me lerem sacrifico-me às vezes

À sua estupidez de sentidos...

Não concordo comigo mas absolvo-me,

Porque só sou essa cousa séria, um intérprete da Natureza,

Porque há homens que não percebem a sua linguagem,

Por ela não ser linguagem humana.

(CAEIRO, 1997, p.36)

Ela também era essa coisa intérprete da natureza, pois, como leitora, depositava sua
experiência de mundo naqueles poemas e transformava-os num texto híbrido e estranho. Não
lia para se sentir confortada, para entender como as pessoas refletiam sobre tais assuntos e por
qual motivo o céu formava densas nuvens. Queria ler para aumentar o enjoo de não saber de
si, de não poder alcançar o outro. Apesar da dor de ler e de se ver em cada molécula daquele
elemento, ela não se sentia injustiçada ou ofendida. Talvez uma tristeza, uma melancolia, mas
que isso era natural e bem-vindo:

- Esses braços que eu levanto e movo para um lado e para o outro tocam o ar
lembrando-me de que eu estou envolvida por ele, tonando-me ar inexplicavelmente. Eu
também me absolvo dessa culpa porque tanto o guardador de rebanhos quanto o Severino só
entraram em mim porque os li, e vivi o trajeto que era meu também. Mesmo o retirante me
dizendo que o que avistara era um defunto e o pastor que sentia a chuva, eu não confiava no
significado conhecido daquelas palavras. A chuva só poderia ser sentida para que eu
entendesse o que ele estava falando e que o defunto só era notado porque eu o toquei e senti
seu cheiro desagradável de sua carne em decomposição. Vejo-me isenta de qualquer fardo.
Sou poeta, leitora, portanto, egoísta, como exige o meu andar retirante, o qual é repleto de
ausências, perigo e do não saber.
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7. O ARTISTA CARPINTEIRO

Em seu livro, realizava mais alguns traços e inventava palavras que não conseguia
pronunciar. Chegou até a arrumá-las como se tivessem uma ordem sintática e achou graça,
porque a ausência de sentido brincava em sua mente debochando da língua que reinava nela.
Era um deboche que a fez escrever mais e mais palavras inexistentes, porém, não ousou
arriscar uma pronúncia, isso colocaria esses desenhos no mundo.

Uma criança esbarrou nela e olhou assustada esperando uma reprovação pelo que
havia feito. Mas, ela só olhou e, no momento assustou-se. A criança trazia um ar enigmático e
incomum ao das outras. Fitando ainda a menina, ela deu uma folha de seu caderno, o que a fez
pular segundo firmemente com as mãozinhas o objeto. Mirando aquele espaço em branco, era
como se ali estivesse o mundo, o futuro e a ela própria.

Então, ela começou a amassar a folha e o barulho lhe causava um êxtase jamais visto.
Fez uma bola e depois desamassou, deixando-a mastigada pela diversão. Após o evento,
devolveu o papel e, olhando para ela por alguns instantes, balbuciou algumas palavras que
foram atrapalhadas pela freada do ônibus. Porém, ela não repetiu, saiu correndo como quem
quer agarrar a vida e o tempo pelos cabelos. O objeto amassado não era nada mais que uma
nódoa da experiência máxima.

Sem entender o que havia ocorrido, mas feliz por ter presenciado e participado do
momento, ela ficou segurando aquela folha que já não dizia ser o que era. Sua inutilidade
transformou-a em algo maravilhoso e extraordinário de tal forma que ela guardou como um
objeto novo e raro. Apesar do sentimento de satisfação, os olhos da menina ainda estavam em
sua mente. Tão vivos e negros eram aquelas bolas que ela sentia vontade de correr atrás da
menina, arrancá-las e fitá-las por horas, universos cintilantes na ponta dos dedos. Mas,
entendeu que ela já os possuía.

Resolveu andar mais um pouco até uma lanchonete antiga cuja porta emperrada
desagradava os clientes. Sentou-se, apoiou as mãos no queixo e aguardou alguém atendê-la. O
recinto estava vazio e possuía um aspecto suja devido a alguns farelos no chão e cadeiras fora
do lugar que normalmente deveriam estar. Olhou para o canto direito e avistou alguns quadros
que mais pareciam retratos de tão perfeitos. Era uma rua de um bairro movimentado, com
76

pessoas passando e algumas carroças enfileiradas. A tristeza e decepção dos olhos dela não
acreditavam na imagem, porque a clareza destruía cada cor, cada traço. Esfarelava como os
grãos podres do chão.

Ela ainda tinha o olhar da menina em sua mente, e isso confirmava a ela a pobreza do
que estava estampado na parece do lugar. Era destruidor e patético o que ali se apresentava. O
incômodo não vinha como se estivesse encarando algo rico e profundo, mas como se estivesse
sendo enganado pelo que havia de mais medíocre:

- Quem ousou pintar tamanha mentira? Por que pretendia copiar a realidade, que dita
ser a verdade universal, e congelá-la nessa tela que merecia apenas (como se fosse pouca
coisa) arte? Vocês, que me olham, devem ser os donos desse estabelecimento e devem ser os
que gastaram dinheiro com essa porcaria! Acharam que tinham nas mãos uma obra sublime e
completa; o que possuem é apenas uma mentira pobre que não me diz nada!

Nesse momento, o casal, que aparentava ter uns quarenta anos, ficou imóvel na porta
da cozinha esperando uma oportunidade de se defender. Mas ela não deixava e a espuma que
parecia sair de sua boca os assustava. Seus olhos e pescoço estavam vermelhos e os braços
abertos traziam a imagem de um monstro que habitava nela. Após berrar mais algumas
palavras, baixou os braços e esperou a resposta daqueles dois seres minúsculos.

A mulher foi a única capaz de falar e desculpou-se da forma mais cínica por algo
quem nem ela entendia, mas pensou ser o correto a ser feito. Justificou que era o quadro de
uma tia que faleceu há dois anos e que, apesar de tudo, encontrava algo que lhe agradava
naquela pintura. Disto isso, recolheu nos copos sujos de café que estavam na mesa ao lado e
ousou perguntar se ela queria algo.

Ela fez o pedido na intenção de continuar ali. Olhando para os farelos, lembrou-se do
guardador de rebanhos. As palavras vieram de forma verdadeira, de cor. Só os olhos falavam
e tinham capacidade de pensar:

E há poetas que são artistas

E trabalham nos seus versos

Como um carpinteiro nas tábuas!...


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Que triste não saber florir!

Ter que pôr verso sobre verso, como quem constrói um muro

E ver se está bem, e tirar se não está!...

Quando a única casa artística é a Terra toda

Que varia e está sempre bem e é sempre a mesma.

(CAEIRO, 1997, p.38-39)

Sentiu um arrepio tomar conta de seu corpo, porque a verdade era só aquele fragmento
cru. “Que triste não saber florir!”, disse com um tom de voz que não dava para mensurar.
Suas mãos frias tocavam um guardanapo e seus dedos dos pés empurravam o chão. O café
chegou, mas as palavras não foram embora. Ela entendia que era o curso da vida severina
cada farelo desperdiçado, cada resquício de vida. Apodreceriam ali. Aliás, ali estava a vida
que ela vivenciava: sem beleza, suja, despedaçada e cheirando um pouco mal: 17

- Nunca esperei muita coisa,

É preciso que eu repita.

Sabia que no rosário de cidades e de vilas,

E mesmo aqui no Recife

Ao acabar minha descida,

Não seria diferente

A vida de cada dia [...]

Por isso não via graça na pintura que agradava a todos. Ela não via nada ali
manifestado. Apenas a tinta aguada para acalmar os olhos. E pensou: “Se ao menos lessem a
poesia severina, entenderiam que não podemos esperar coisa alguma da arte: contentamento,
ar fresco em nossas mentes ou luz esclarecedora.”. E ainda reforçou para si mesma: “Se fosse
arte, não suportaríamos olhá-lo, mas olharíamos porque o seu corte elevaria a nossa alma!”.

Precisava de fôlego de ouvir mais um pouco da poesia interior. Deixou o café na mesa
e saiu sem nada dizer. A porta rangeu anunciando a sua saída. Lá fora, o silêncio de um
barulho que anunciava a mecanicidade das coisas: da roda, dos passos, dos gestos e dos
órgãos. Sim, até o organismo devia seguir um manual de boa convivência. A felicidade e a
17
Adorno, Theodor W. 1970, p.187: “ [...] e justamente o olhar vazio e interrogador deve resultar da experiência
e da interpretação das obras, se é que elas não querem extraviar-se; não atender ao abismo oferece medíocre
proteção [...] Perante o <Para quê tudo isso?>, perante a reprovação da sua real inutilidade, as obras de arte
emudecem total e irremediavelmente. “
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tristeza eram controladas até no pensamento. Pobres carpinteiros urbanos. Tão mortos quanto
o animal estendido no solo árido do sertão em que Severino andou. A caveira, embora
estivesse com seus dentes arreganhados, não transparecia alegria.

Tanta escola e normas impecáveis para uma tela em branco que só queria o risco. O
risco borrado da tinta e o risco do erro, do animal na estrada. E dela, que olhava aquilo e ainda
era capaz de traçar palavras inventadas. Estava tudo tão turvo em sua mente que era quase
impossível enxergar um palmo à sua frente. Estranhas conexões eram feitas por ela. Nunca
havia deformado prédios e entortado árvores. Era assustador todos os homens possuírem
quatro braços azulados. Como podiam ter ficado assim de repente?

Os batimentos dela estavam acelerados. O novo era desesperador, por isso,


maravilhoso! Ela quis tocar os outros, queria ficar assim também. Alguns resistiam ao toque;
outros, paralisados, apenas olhavam aguardando aquela invasão cessar. Ela não queria parar,
explorar a pele era algo simples, pois a maciez e a aspereza causavam diferentes reações nela.
Outro estranhamento foi o chão: estava se movendo numa velocidade baixa, mas suficiente
para provocar um desequilibro.

Curioso era que as pessoas pareciam estar acostumadas. Andavam, olhavam para os
lados e coçavam a cabeça como se estivessem num dia ordinário. Ademais, não era só a rua
que se apresentava dessa forma para ela, o céu também exibia sua profundidade. Ele também
se movia, porém seu tom próximo ao lilás exibia uma iluminação a qual causava dor na vista
de quem olhava. Tanta coisa mudara que ela se esqueceu da fúria na lanchonete. Sua agitação
agora era dessa rua que não possuía muros de falsos artistas. Era o mundo como ele era:

A solução é apressar

A morte a que se decida

E pedir a este rio,

Que vem lá de cima,

Que me faça aquele enterro

Que o coveiro descrevia:

Caixão macio de lama,

Mortalha macia e líquida,

Coroas de baronesa
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Junto com flores de aninga,

E aquele acompanhamento

De água que sempre desfila

(que o rio, aqui no Recife,

Não seca, vai toda a vida).

(MELO NETO, 2011, p.120)

O poema parecia vir de cima, embalado por uma voz ácida e entrecortada. Ela ouvia
como uma espécie de anunciação e apressou o passo, mesmo sentindo náusea por aquelas
ondulações da rua. A morte talvez estivesse chegando. A morte que ela conhecia ou talvez a
que feita pra ela. Suava frio e não sabia se chorava, porque, mesmo com as surpresas do dia, a
cidade mantinha seu ritmo tiquetaqueado pelo relógio do prédio central.

Não podia perder tempo, não queria perder tempo ouvindo algum conselho. As boas
intenções eram inaceitáveis para ela. Um horror haver boas intenções com o outro,
desperdiçar seu tempo com o outro ou maquinar algum discurso acolhedor. Ela se questionava
como os homens enxergaram essa forma de ver o mundo. Ela nunca o viu assim. A vida
sempre se mostrou mais palpável, mais inacabada e amarga. Sim, amarga, porque o doce lhe
daria vontade de adormecer num sono profundo por séculos; logo, as coisas se apresentavam
amargas a ela, para que pudesse caminhar como um retirante desesperado pelo enterro numa
mortalha macia e líquida. 18

Entretanto, o céu não lhe deu certeza de uma morte macia ou se seria dentro de alguns
instantes. Sentira apenas a temperatura aumentar. O clima estava tão abafado que via algumas
pessoas caírem e adormecerem no meio do asfalto. Olhava novamente para cima, mas o
mesmo céu lilás não lhe dizia nada. Era como se quisesse provocar certo pânico com seu tom
aparentemente harmonioso.

Devia estar na metade do dia, porém não tinha como ter essa noção, haja vista o som
desgovernado do relógio que irritava o seu semblante. Nesse instante, ela seguia olhando para
frente, sentindo o vapor do ar batendo em seu rosto. A quentura queimava-lhe a carne numa
sensação insuportável e indescritível. Ela sabia que tinha de sentir aquilo para que pudesse
seguir seu trajeto.
18
Ibidem, p.187: “Sem dúvida, essa manifestação do caráter enigmático enquanto perplexidade perante algumas
questões falsas no seu princípio integra-se num estado de coisas mais englobante: igualmente um engano é a
questão do pretenso sentido da vida.”
80

-Severino, retirante,

O meu amigo é bem moço;

Sei que a miséria é mar largo,

Não é como qualquer poço:

Mas sei que para cruzá-la

Vale bem qualquer esforço.

(MELO NETO, 2011, p.121)

Apesar do cansaço, precisava seguir sua sina. A poesia e ela se fundiam a ponto de
deixar em carne viva seu rosto. O pouco que tinha, a carne que ainda estava sob sua posse,
soltava farelos que se perdiam no ar. Ela não entendia o porquê dos versos persistirem nela,
quase um cadáver com apenas uma linha de vida, mas sabia que a verdade estava ali sem
precisar de compreensão: “Neste momento vem-me uma vaga saudade/ E um vago desejo
plácido/ Que aparece e desaparece. [...]” (CAEIRO, 1997, p.39).

Do outro lado, as luzes anunciavam o fim do dia. Estava tudo calmo, mesmo com o
calor. Parece que as pessoas estavam aprendendo a conhecer a natureza, porque olhavam para
o céu, para a árvore e para seus corpos. Não diziam uma única palavra nem abriam livros. Se
abrissem, seriam livros de teorias para confortar suas mentes. Nunca passaram a mão
suavemente na grama do parque ou molharam os pés no lago de água gelada. Em vez disso,
buscam seus nomes científicos e alguma definição.

Embora houvesse a mudança de comportamento, a cidade se mantinha turva, ondulada


e as pessoas um pouco estranhas. Ela seguia com sua carne mais frágil e fina, uma fatia podre
que não distinguia mais o dentro e o fora. Sentia alegria e melancolia ao mesmo tempo
enquanto entrava em um bairro um pouco mais arborizado. Via crianças correndo com seus
pés cortados de tanto andarem descalças; elas estavam contentes, pois sorriam e o som que
emitiam podia ser comparado ao da chuva e da brisa que bate na folha. Era simples e natural
com a pele azulada e a palavra jamais vista.

Diante daquela cena, coçava a cabeça como se quisesse trazer retirar o que não lhe era
natural. As unhas estavam moles, mas conseguiam retirar a poeira de seus cabelos. Ela sentia
seus ossos cada vez mais expostos e rígidos. Ademais, a sua audição estava mais aguçada, o
que gerava nela uma perturbação por conseguir ouvir uma ave que estava a uma distância
larga.
81

Conseguia cantar com os pássaros e se sentia parte do bando, mas ainda caminhava
sobre os pés ossudos. Só queria seguir com o seu rebanho, mas onde estava? Olhava para os
lados e só via algumas árvores pelo caminho. De vez em quando, alguém fazia barulhos ou
falava palavras aleatórias e isso dava a ela a sensação de que o mundo ainda estava ali e seus
ponteiros girando.

Mirando tudo isso, o vazio era preenchido por cada fragmento, cada cor e som. Ela
decidiu parar e olhar tudo que estava ao seu redor. O cheiro da cidade parecia sair dela, o qual
trazia lembranças reais que vinham numa velocidade própria da memória poética. Tudo o que
estava ali se misturava à lembrança da montanha que se reconstruía em seu pensamento. Mas,
não era uma montanha em que vivia, era a montanha do seu rebanho que se fazia e desfazia
nesse oceano inacabado pelo branco da página. Ela, então disse:

- Não sei mais onde estou se o que vejo são as montanhas. Onde estou? Sinto que não
chegarei ao fim dessas palavras, mas ao fim que me cabe hoje. A montanha me dá a ideia de
que meu trajeto não é para frente, mas um constante reencontro. É olhar para frente e se ver,
voltar para trás e estar tudo ao contrário. Meus pés estão entrando nesse chão de terra e
minhas mãos agora parecem tocar os galhos das árvores que são meus braços.

E com as suas inquietações:

- Quem é a árvore e quem sou eu? Sinto-me naquela floresta, mas não me recordo
nitidamente, porque a floresta em meu pensamento não se parece com a que conheci. As
imagens vividas fundem-se neste espaço em que estou (e que sou). Engraçado, mas sinto
meus braços saindo do meu corpo...Vejam!! São rabiscos desenhados. São e não são o que
sou. Estão livres de mim, mas eu os sinto aqui dentro. Já não sinto mais as minhas pernas e
percebo que o que vejo são os meus traços naturais e desenhados pelas pontas de meus dedos.
Se morro na poesia, talvez acorde amanhã...Quem sabe?
82

CONCLUSÃO

Finalizar uma narrativa é fingir silenciar o que no pensamento ainda ecoa. Sua
vivência não é interrompida por causa de um ponto final posto na folha, logo, este texto
apresenta-se inacabado, ainda cheio de lacunas entre uma palavra e outra. . A narrativa
poética ainda vive e brinca no pensamento como forma de resistência de um rebanho
transgressor que finge ser de nossa posse. De forma muito natural, ela fora escrita e tecendo
seus laços entre os poemas e os textos críticos de Theodor Adorno, Jacques Derrida, e Walter
Benjamin, por exemplo.
Apesar da utilização dessas bases teóricas, os poemas “O guardador de rebanhos” e
“Morte e vida severina” foram os condutores desta dissertação, cuja proposta- como foi
apontada na introdução- era dar voz à poesia e colocá-la como o pastor retirante que sente e
vê o mundo. Ler (e reler) os poemas foi importante para constituir uma terceira história e
buscar a verdade natural da arte, ou seja, o seu enigma o qual foi encarado, mas não
compreendido. No primeiro momento de escrita a poesia retirante tenta se apresentar,
demonstrando logo o sua incapacidade de definição.

Diante disso, a escrita se torna mais complexa, uma vez que não há destino e
respostas. Caminhar nesse limbo é correr o risco como um animal, o qual o único predador é
ele próprio. A fim de seguir e conduzir o pensamento poético durante a pesquisa foi preciso
reinventar o objetivo do texto a cada leitura, porque as ideias, nesse caminho proposto pelos
poemas, eram efêmeras e incompletas. Ademais, o lugar onde elas se manifestaram também
norteou o processo da narrativa: em “O guardador de rebanhos” as ideias aconteciam do
terreno úmido do não saber; em “Morte e vida Severina”, no solo árido da fome.

Devido a esses terrenos de impasse, a poesia revelou o seu caráter de não oposição.
Essa questão pôde ser presenciada na leitura do título do poema severino: “morte e vida”. A
conjunção aponta para a não anulação dos opostos, que são vistos dessa forma pelo
pensamento filosófico. Para a poesia, essas duas instâncias caminham juntas, como foi
observado por Severino ao deparar-se apenas com a morte enquanto buscava estender sua
vida, que é mais defendida do que vivida.

Outro ponto a ser observado é que, embora esses poemas sejam muito distintos no
momento das suas primeiras páginas, eles convergem para pensar a poesia como um acesso,
83

um caminho sempre a ser construído. Enquanto o pastor anda a fim de enxergar a flor, ver o
sol e sentir tristeza- que o faz sentir em paz por ser natural e necessária-, Severino se desloca
para sobreviver, ou seja, seu trajeto é de resistência. Quando o guardador de rebanhos se
entristece por falar dos artistas que se preocupam com técnicas em vez de perceberem que a
arte é manifestada da forma mais natural e simples possível, os versos de Severino surgem
com a finalidade de trazerem mostrarem o abismo no qual a poesia nos colocar no momento
em que traçamos um horizonte para a nossa caminha, haja vista seu contato constante com a
morte: “Não é viagem o que fazem,/ vindo por essas caatingas, vargens;/ aí está o seu erro:/
vêm é seguindo seu próprio enterro.” (MELO NETO, 2011, p.119).

Portanto, é a embosca da morte e da vida o elemento de que é feito a poesia e,


consequentemente, esta dissertação narrativa. A leitura completa dos poemas também não
fora realizada e, principalmente, nos capítulos finais os fragmentos surgiram sem a sua ordem.
Um motivo para isso talvez seja a incapacidade e a inutilidade da conclusão de um
pensamento poético. Este trabalho apresentou-se como a primeira visita realizada nesses dois
textos mutuamente, e é finalizado como uma espécie lacuna, a fim de provocar outras leituras
e narrativas.
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REFERÊNCIAS

ADORNO. Theodor W. Minima Moralia. Lisboa: Edições 70, 1951.

_______. Teoria estética. Lisboa: Edições 70, 1970.

BENJAMIN, Walter. Sobre a pintura ou signo e mancha. In: ______. Escritos sobre mito e
linguagem. São Paulo: Editora 34, 2013.

BERARDINELLI, Cleonice (Org.). Fernando Pessoa: antologia poética. 1. ed. Rio de


Janeiro: Casa da palavra, 2012.

CAEIRO, Alberto. O guardador de rebanhos. In: PESSOA, Fernando. Poemas escolhidos.


São Paulo: Editora Klick, 1997.

DERRIDA, Jacques. Che cos’ è La poesia?. Coimbra: Editora Angelus Novus, 2013.

_______. Espectros de Marx o estado da dívida, o trabalho do luto e a nova


Internacional. Rio de Janeiro: Relume- Dumará, 1994.

MELO NETO, João Cabral de. Morte e vida Severina. Morte e vida Severina; e, Outros
poemas. Rio de Janeiro: Objetiva, 2011.p.89-134.

RANCIÈRE, Jacques. Políticas da escrita. Rio de Janeiro: Editora 34, 1995.

SCHLEGEL, Friedrich Von. A gênese do fragmento. In: ______. O dialeto dos fragmentos.
Trad. Márcio Suzuki. São Paulo: Iluminuras, 1997.

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