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ISCMPA
2018
© Centro Histórico-Cultural Santa Casa
Revisão: Véra Lucia Maciel Barroso
Organização: Véra Lucia Maciel Barroso, Edna Ribeiro de Ávila e Leonardo Braga Borowski –
Laboratório de História Oral do CHC Santa Casa
Conselho Editorial
Benito Bisso Schmidt
Carla Simone Rodeguero
Claudia Musa Fay
José Edimar de Souza
Lorena Almeida Gill
Dóris Bittencourt Almeida
Luciane Sgarbi Santos Grazziotin
Regina Weber
Véra Lucia Maciel Barroso
ISBN: 978-85-89782-15-9
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Comerciantes italianos na voz das mulheres: perspectivas de análises de pontos de vista 761
Egiselda Brum Charão
Histórias de guerra na visão de um pracinha: relatos sobre a experiência
de um pracinha na II Guerra Mundial
777
Vania Beatriz Merlotti Herédia e Guilherme Griebler
II Guerra Mundial em Pelotas: o quebra-quebra nos hotéis pelotenses 789
Caroline Beskow Quintana
Memória, etnia e identidade: o caso dos árabes em Porto Alegre e 801
as fontes para uma pesquisa histórica (1900-1930)
Júlio Cesar Bittencourt Francisco
O método de análise de narrativas biográficas de Gabriele Rosenthal no 816
contexto da História Oral: comparação metodológica preliminar
Jaqueline da Silva de Oliveira
O papel da memória oral na produção de arranjos documentais de acervos privados 823
Eliana Rela e Cláudio da Costa
Refugiados sírios ortodoxos no Rio de Janeiro: narrativas sobre contexto de integração 837
Raul Felix Barbosa e Maria Cristina Dadalto
Um alfaiate calabrês: a trajetória de Carmine Motta em Porto Alegre (1961-2000) 851
Leonardo de Oliveira Conedera
Uma francesa presidente de uma fábrica de champanhe no Brasil: sua trajetória 864
Ana Maria Greff Buaes e Martha de Leão Lemieszek
Vivências de trabalhadores rurais na região Sudoeste do Paraná
874
Tiago Arcanjo Orben
1
2
LE GOFF, J. História e Memória, Campinas: Ed. da Unicamp, 1996, p. 428.
3
Idem, ibidem, p. 432.
Idem, ibidem, p. 434.
O título desta obra dimensiona o seu significado e a natureza do conteúdo apresentado.
Trata-se, de fato, de uma publicação que promove, efetivamente, um “encontro de memórias”.
Aliás, esta “reunião” enfeixada em livro, pereniza a extensão do Encontro da Regional Sul de
História Oral – Associação Brasileira de História Oral, realizado em Porto Alegre, no Centro
Histórico-Cultural Santa Casa (CHC), em agosto de 2017. Significativos trabalhos então
apresentados, em diversos Simpósios Temáticos, animou o Laboratório de História Oral do CHC a
organizar esta obra.
Esta publicação dimensiona as possibilidades da História Oral – cuja metodologia cada vez
mais conhecida e apropriada vem permitindo a produção de fontes orais – como também
promovendo a inclusão de temáticas e recortes da realidade, até recentemente silenciados nos
escaninhos do tempo presente.
São doze capítulos, com diversos trabalhos que transitam por temáticas do interesse
daqueles que ultrapassaram a porta da “historial oficial”, dando protagonismo a muitos atores e
agentes que promovem a inclusão, combatem a diversidade, animam o respeito aos direitos e
articulam estratégias para a vigência da democracia, apesar dos reveses impostos no cotidiano.
É interessante registrar que os textos desta obra possibilitam, também, mostrar as diferentes
formas e abordagens da prática da História Oral, uma vez que seus autores tem uma representação
espacial não só da região Sul, como também de outros estados do Brasil. Trata-se de uma
oportunidade de entrecruzamento de experiências e fazeres, com certeza frutífera, que aproxima e
promove diálogo e aprendizagem, sempre necessários, para os que se valem das narrativas, cujas
escutas vêm sendo ampliadas e os silenciamentos desocultados.
Que a leitura desta obra, para além de atraente, seja frutífera e instigadora, como também
animadora de próximos encontros em outros “palcos da memória”.
Em parte dos comentários publicados nas páginas das reportagens dos sites de notícias
consultados, notou-se mensagens feitas por internautas envoltas sob a penumbra do ódio.
Disfarçados de liberdade de expressão, tais comentários podem promover discursos xenofóbicos,
racistas e preconceituosos (O Estrangeiro, 2014). Foi possível observar, em alguns casos, que essas
explanações tiveram respaldo também nos discursos midiáticos os quais promoviam uma ideia de
nacionalismo brasileiro, tentando proteger fronteiras contra a “invasão” de migrantes e refugiados,
discurso este empregado especialmente quando migrantes de origem africana eram os protagonistas
das notícias, como explicita o editorial publicado no site O Estrangeiro, em 11 de setembro de 2014:
O jornal O Globo relatou em sua edição do 09 do 09 que, diante do temor de que a
epidemia de ebola chegue ao país, africanos que tentam cruzar a fronteira entre a Bolívia
ou o Peru e o Acre estão sendo recusados por agentes da Polícia Federal. Entre os que
entram, são comuns os relatos de discriminação. [...] Por conta das notícias sobre o surto
na África, quem chega de lá sente na pela a dificuldade de socialização. Em Brasileia,
grupos de africanos se isolam na praça central. São poucos os brasileiros que se
aproximam. Segundo os senegaleses que ontem estavam por ali, o medo do preconceito é
tamanho que eles não saem para pedir comida como fazem os haitianos. (O Estrangeiro,
2014, grifo meu).
Tal visão corrobora para a elaboração de pesquisas como a presente proposta, a qual pode
servir para realçar a importância em analisar a perspectiva midiática, e aqui se detém atenção
especial às fontes jornalísticas digitais, sobre acontecimentos recentes como as migrações
contemporâneas e o possível impacto gerado na opinião pública bem como na própria história,
2
Para mais informações sobre a teoria, consultar a obra de Ulrich Beck “Sociedade de risco: rumo a uma
outra modernidade", lançada inicialmente em 1986. No livro, Beck sustenta a teoria de que a sociedade de risco,
contextualizada em um mundo globalizado e que substitiu a sociedade industrial, daria novos rumos ao
capitalismo, gerando uma nova ordem global, com impactos diretos em aspectos políticos, econômicos e,
sobretudo, sociais (GUIVANT, 2001).
quando do uso de tais fontes para a análise de acontecimentos recentes e que, portanto, ainda não
foram sedimentados na História do Tempo Presente, campo no qual o presente estudo é elaborado.
Porém, além de apenas analisar os discursos jornalíticos sobre a temática, também foi
necessário apresentar o olhar dos próprios migrantes vindos de regiões como a África e o Caribe e
que migraram para o Brasil, entre os anos de 2000 e 2014, e de jornalistas que realizaram coberturas
na área, durante o mesmo período. O foco das entrevistas, obtidas através da História oral, foi como
cada um dos depoentes observa as representações de fluxos migratórios contemporâneos no
jornalismo brasileiro. Até o momento, foram coletados oito depoimentos, dos quais dois deles
foram apresentados neste artigo.
Contudo, antes de refletir acerca dos depoimentos coletados, é necessário discutir os
conceitos que deram base para a pesquisa aqui apresentada: representação, discurso, memória,
pânico moral e História Oral.
A noção em torno da representação social pode tratar sobre uma “[...] relação entre a
significação, a realidade e sua imagem” (CHARAUDEAU, 2014, p. 431). Por meio das
representações, os indivíduos conferem sentido à realidade em seu ambiente social. No entanto,
pressupõem ideais, interesses, ideologias, fundados em discursos oriundos de grupos dominantes
(CHARTIER, 1990, 1991).
As informações presentes no discurso jornalístico, que também encontram guarida em tais
ideais presentificados no discurso dos grupos sociais dominantes, podem ser consideradas como
componentes utilizados na construção da realidade e na formação de uma opinião pública sobre
assuntos diversos. A partir delas, são adotadas representações acerca do que se pensa ou se almeja
moldar do que é e como deve ser visto.
Entende-se que os discursos podem ser materializados de forma escrita ou falada,
associados a imagens estáticas ou audiovisuais, e gerar impressões implícitas ou explícitas acerca
do que e/ou de quem são retratados discursivamente (FOUCAULT, 2013). Para Stuart Hall, os
discursos são formas pelas quais os sujeitos percebem ou tentam compreender assuntos, grupos e
práticas, e a partir delas elaborar conhecimento (HALL, 2016).
O discurso, neste caso, está relacionado às formas de representação elaboradas para
compreender determinada situação e/ou grupo de pessoas, atrelado, ainda, a um determinado
momento histórico. Constitui a forma como determinada linguagem é ressignificada em um
contexto específico, combinada com “[...] a maneira como práticas representacionais operam em
situações históricas concretas.” (HALL, 2016, p. 27).
Desse modo, no jornalismo podem ser representadas realidades baseadas em fatos verídicos
ou moldados de acordo com interesses diversos – seja dos grupos hegemônicos direta ou
indiretamente envolvidos, da própria linha editorial do veículo em questão ou de patrocinadores,
por exemplo. “[...] As representações constroem uma organização do real por meio das próprias
imagens mentais veiculadas por um discurso” (CHARAUDEAU, 2014, p. 433).
Nesse contexto, a representação da História, enquanto uma reconstrução problematizada,
porém incompleta daquilo que não existe mais, é construída com base em restos de memória que
persistem ao longo do tempo, emergindo na História do Tempo Presente. E a seletividade da
memória, que convive com o esquecimento, a impossibilita de registrar todos os acontecimentos
em nossa existência (NORA, 1993). O processo de recordar, de utilizar a memória, conta ainda com
a presença de subjetividades inerentes aos indivíduos, que também se valem dela na elaboração de
lembranças, identidades e vivências (HALBWACHS, 2003).
No que tange ao discurso jornalístico, incluindo as entrevistas publicizadas, Navarro-
Barbosa propõe que tanto o enunciado verbal presente na materialidade discursiva quanto o
enunciado imagético – quando existente – funcionariam como operadores de uma memória social.
Desse modo, a linguagem jornalística pode ser compreendida como “[...] um meio de acesso
essencial à análise da história e dos conjuntos sociais da memória” (NAVARRO-BARBOSA, 2007,
p. 94).
As práticas discursivas estimulam, portanto, o estabelecimento de uma memória que
coaduna com os princípios que emanam do discurso. “Eles o fazem pelo mútuo atravessamento, ao
longo do tempo, de uns discursos em outros discursos, no que se denomina interdiscurso”
(BENETTI, 2009, p. 99). Carregam consigo “significados históricos presentes no imaginário de
quem o elabora. Cada discurso é, assim, uma representação do imaginário no qual seu autor está
inserido” (SILVA; SILVA, 2015, p. 101).
É preciso atentar, nesse ínterim, que os discursos presentes no jornalismo podem promover
pânicos morais, dependendo do acontecimento ou grupo do qual se fala. O conceito de pânico moral
aqui utilizado advém dos estudos do sociólogo britânico Kenneth Thompson (2014), o qual tomou
como referência as pesquisas do sociólogo Stanley Cohen. Thompson diz que as representações
podem desencadear uma percepção equivocada sobre algum comportamento cultural ou grupo de
indivíduos, em especial as minorias (FRAZÃO; ASSIS, 2016).
O conceito de pânico moral foi sedimentado na Sociologia e é relacionado aos estudos que
observam condutas coletivas e de desvio social, presentes ou não nos meios de comunicação.
Dentre as características de um acontecimento ou grupo de indivíduos associados a um pânico
moral estão:
1) algo ou alguém é definido como uma ameaça aos valores e interesses da sociedade; 2)
esta ameaça se representa nos meios massivos de tal modo que sua forma será facilmente
reconhecida; 3) se produz uma rápida construção de uma preocupação pública; 4) as
autoridades e os formadores de opinião devem responder ou dizer algo a respeito; 5) o
pânico passa ou produz mudanças sociais (THOMPSON, 2014, p. 23).
De acordo com Thompson, os termos pânico e moral estão relacionados a uma ameaça ao
que é considerado sagrado ou fundamental para um grupo hegemônico, cujo poder tenha um
respaldo social e político em uma sociedade (FRAZÃO; ASSIS, 2016).
Para que determinados grupos sociais continuem prevalencendo seu poder sobre os demais,
estes exigem por intermédio da opinião pública e do jornalismo uma “maior regulação ou controle,
uma demanda para regressar aos ‘valores’ tradicionais” (THOMPSON, 2014, p. 24). Em estudos
anteriores, Thompson (2014) notou a presença de pânicos morais em momentos associados ou não
a um aumento nos níveis de stress em parte da sociedade. O autor salienta que, para verificar se
determinado acontecimento ou grupo está envolto em um possível pânico moral, é necessário
compreender de que forma os indivíduos em questão foram socialmente representados em um
discurso, além de elencar as razões que desencadearam tal pânico. Por exemplo, “um alto nível de
preocupação pelo comportamento de um determinado grupo ou tipo de pessoas, e um aumento do
nível de hostilidade a aqueles considerados como uma ameaça” (THOMPSON, 2014, p. 24) podem
ser dois dos fatores analisados em um acontecimento.
Ambas as razões foram constatadas ao analisar o caso de suspeita de ebola ocorrido no
Brasil, em outubro de 2014, e que envolveu um refugiado da Guiné. Como exposto no início do
artigo, na ocasião o refugiado com suspeita de ter contraído a doença foi marginalizado
publicamente, a ponto de gerar reflexos sobre a inserção e integração de outros grupos migratórios
envolvendo ou não pessoas em situação de refúgio, especialmente os negros de origem africana ou
de outras nacionalidades.
Adiante, serão discutidos alguns pontos destacados por dois depoentes ouvidos na presente
pesquisa, recorte de tese em andamento, e cujos depoimentos foram coletados por meio da História
Oral. Antes de prosseguir é oportuno, igualmetne, refletir acerca do método de coleta das
entrevistas.
Para Verena Alberti (2000), a História Oral consiste em “[...] uma metodologia de pesquisa
e de constituição de fontes para o estudo da história contemporânea surgida em meados do século
XX, após a invenção do gravador a fita”. E complementa: “[...] consiste na realização de entrevistas
gravadas com atores e testemunhas do passado” (ALBERTI, 2000, p. 1). Ao refletir acerca do
mesmo conceito, Marieta de Morais Ferreira (2012) diz que a História Oral pode ser compreendida
de três formas: como técnica, disciplina e como metodologia.
Se considerarmos a história oral uma técnica, nossa preocupação se concentrará
exclusivamente em temas como organização de acervos e realização de entrevistas (temas
em si relevantes, mas, como esperamos ter demonstrado, muito aquém das possibilidades
da História Oral). Se concebermos a história oral como disciplina, há dois caminhos
possíveis, ambos, a nosso ver, problemáticos: “esquecermos” as questões de caráter
teórico, deixando de abordá-las em nossos trabalhos, ou tentarmos encontrar respostas
para elas apenas no âmbito da história oral. (FERREIRA, 2012, p. 171).
A autora detalha, ainda, que “[...] a história oral inaugurou técnicas específicas de pesquisa,
procedimentos metodológicos singulares e um conjunto próprio de conceitos” (FERREIRA, 2012,
p. 169).
Ainda que eu, enquanto pesquisadora, ocupe dois campos distintos – pela formação tanto
em Jornalismo, na Graduação e Mestrado e, no atual momento, no Doutorado em História – optei
por adotar a História Oral como método para a coleta dos depoimentos, por julgar este caminho
como mais adequado ao que se propõe na pesquisa, empreendida no campo da História do Tempo
Presente.
Para a pesquisa, que está em fase de escrita e análise dos dados e fontes, optou-se por coletar
depoimentos orais de imigrantes que vieram para o Brasil, a partir dos anos 2000 até 2014, e que
ainda estão no país, em especial os de origem africana e caribenha. Aqui foram analisados relatos
tanto de imigrantes quanto de jornalistas. No caso das últimas fontes, considerou-se aqueles(as)
que, direta ou indiretamente, trabalharam em coberturas midiáticas sobre fluxos migratórios
contemporâneos, pela proximidade com o tema.
Uma das entrevistadas foi Julia,3 proveniente da Guiné-Bissau, país africano onde
nasceu, e que desde 2010 vive em Florianópolis, Santa Catarina. Ela foi precedida de seu
companheiro que chegou na cidade brasileira um ano antes, pela mesma via: o Programa de
Estudantes- onvênio de Graduação (PEC-G). Atualmente a estudante, que possui 27 anos
de idade, está vinculada à Universidade Federal de Santa Catarina, onde estuda Serviço
Social, graduação em curso até o momento da entrevista, realizada em maio de 2017.
Na época em que saiu da Guiné-Bissau, Julia estava com 20 anos e precisou fazer
uma difícil decisão: deixar seu filho de quatro anos para vir ao Brasil, em busca da
profissionalização. Ele permaneceu na África aos cuidados da avó paterna até 2014, ano em
que foi possível trazer a criança para perto da mãe. Com oito anos de idade, o menino foi
matriculado em uma escola local para continuar os estudos. E exatamente quando ocorreu o
caso de suspeita de ebola, nem ele tampouco Julia ficaram incólumes aos discursos
midiáticos, tomados como base das conversas que brasileiros mantinham com ambos.
[...] Aqui na universidade tem colegas que quando passa alguma coisa em um país da
África, começam a perguntar: “O que está acontecendo no seu país?”, mesmo que seja um
acontecimento que eu não saiba. E quando alguém me pergunta nesses casos, sempre me
3
A pedido da fonte foi adotado um pseudônimo para proteger sua real identidade.
estranha e interrogo: “Que estranho. No meu país? No meu país não está acontecendo nada
disso”. Quando falam “África”, sem especificar onde, não dá para saber onde é, até porque
pode ser um país bem longe do meu. Eles [os media] confundem as pessoas. (JULIA,
2017, grifo meu).
Quando ocorreu o caso de suspeita de ebola envolvendo o refugiado da Guiné, Julia contou
que seu filho era chamado de “ebola” na escola. Incomodada com a situação, foi até a instituição
de ensino, algumas vezes, na tentativa de evitar que os demais alunos o chamassem daquela forma.
Como iniciativa própria, Julia tentava explicar para as pessoas a diferença entre as Guinés, três
países diferentes no mesmo continente: a Guiné-Bissau, a Guiné e a Guiné Equatorial. A partir de
2013, a Guiné sofria uma grave epidemia do vírus ebola. De acordo com dados da Organização
Mundial da Saúde (OMS), desde o início do surto até dezembro de 2015, aproximadamente 28.700
mil pessoas haviam sido infectadas, sendo a maior incidência nos países de Serra Leoa, Libéria e
Guiné. Neste período, 11.315 pessoas haviam morrido em decorrência da doença. A organização,
no entanto, havia declarado que não havia mais casos confirmados até o final daquele ano (WHO,
2015). No caso do país de origem de Julia, a Guiné-Bissau, embora seja vizinho da Guiné, de acordo
com a World Health Organization (WHO), vinculada à Organização das Nações Unidas (ONU),
naquela época não foram registrados números relevantes da doença na região (WHO, 2015).
Ainda que Julia tenha vindo por um fluxo migratório considerado privilegiado, por destoar
da vinda precária pela qual passam alguns imigrantes que vêm por rotas alternativas e fazem parte
do percurso por terra, não foi poupada dos pânicos morais gerados especialmente a partir do então
considerado primeiro caso de suspeita de ebola. “Muita gente perguntou: “Como é que está sua
família lá? Será que estão bem?” Respondia: “Sim, estão bem, porque o ebola não chegou na Guiné-
Bissau. Mas, sim, na Guiné e em mais outros dois países” (JULIA, 2017).
Para Julia, o fato de os brasileiros com os quais teve contato não souberem diferenciar quais
países estavam com surto de ebola, na época, se dá pela ausência de explicação por parte do
jornalismo. Quando indagada sobre o que achava da cobertura jornalística a respeito do caso de
suspeita de ebola e de outros acontecimentos relacionados à África, para ela seria fundamental que
no discurso jornalístico fossem feitas referências aos aspectos positivos do continente africano e
dos país nele localizados. “[...] quando estão falando da “África”, não mostram que tem coisas boas
em diferentes países. Só falam das coisas ruins mesmo. Acho que falta falar do lado bom das coisas
também” (JULIA, 2017).
Outro entrevistado foi Rogério, cujo sobrenome será preservado a pedido da fonte. Vindo
em 2003 do Moçambique, país africano onde nasceu, Rogério também chegou ao Brasil pelo PEC-
G, para cursar Jornalismo na Universidade de São Paulo, instituição onde se formou em 2007. Fez
Mestrado na mesma instituição e, atualmente, ingressou no doutorado. Hoje, atua como jornalista
no Brasil e já abordou o tema das migrações em alguns dos trabalhos realizados, sobretudo
documentários e reportagens em vídeo. O contato com ele ocorreu, inicialmente, por uma rede
social, quando do meu conhecimento de sua participação em uma roda de conversa sobre um filme
de temática migrante em que ele foi um dos convidados a debater sobre. Coincidentemente, soube
que Rogério veio pela mesma via que Julia. Ou seja, não foi intencional a busca por possíveis
entrevistados que vieram unicamente por esta via, até porque outros imigrantes entrevistados
utilizaram caminhos diferentes.
A análise pessoal que Rogério fez sobre a influência das representações midiáticas acerca
do fluxo migratório contemporâneo, especialmente o que envolve imigrantes negros, deu-se,
portanto, a partir de sua perspectiva enquanto imigrante e jornalista. Ao ser questionado sobre qual
era sua opinião a respeito do discurso jornalístico sobre a migração recente, Rogério destacou o
racismo como um dos principais problemas presentes neste tipo de cobertura:
Acontece que quando a imigração é de pessoas negras, ou seja, vindos do Haiti, por
exemplo, [ou] de africanos, essa cobertura tende a ser problemática. Então, o Brasil está
precisando lidar com um problema quanto ao trato da migração de povos negros. Por uma
questão que, imagino, eu não preciso te explicar. Eu considero o Brasil um país
estruturalmente racista. E isso não tinha, obviamente, como deixar de transparecer na
cobertura jornalística sobre a migração de povos negros especificamente. Então, eu
considero que há uma dualidade de percepção sobre a temática da migração, dependendo de
quem se fala. Eu venho desenvolvendo esse olhar, desde a experiência de estudante no
Brasil. Eu era muito questionado na época, e sou ainda, enquanto estudante na Universidade
de São Paulo, por exemplo. As pessoas queriam saber quem paga meus estudos, como eu
entrei na universidade, como é que eu consegui as bolsas que eu consegui, se o governo
brasileiro pagava, enfim. Um verdadeiro raio X. Mas eu tinha colegas que vinham da
Espanha, que vinham de Portugal, que vinham da Inglaterra e eu não os via tendo que
responder as mesmas perguntas, assim. Então, desde essa época, eu já percebo uma
dualidade, nesse sentido. E a cobertura jornalística também reflete esse problema: a
imigração africana, haitiana e dos países sulamericanos é um “problema” pro Brasil. O
Brasil precisa resolver um “problema” desses povos. Já a imigração europeia, não tanto
assim. As pessoas estão querendo entender porque é que os europeus estão vindo ao Brasil,
o que os interessa no Brasil, o que a gente tem de interessante a ponto de um imigrante
escolher morar ou passar pelo Brasil. (ROGÉRIO, 2017, grifo meu).
4
Como a tese está em sua fase final de escrita, foi necessário neste artigo recortar e limitar o número e trechos
integrais do depoimentos, a fim de manter o ineditismo da pesquisa, quando da futura defesa, prevista para
ocorrer no primeiro semestre de 2018.
Ainda que o estudo não seja conclusivo, já que ainda está em fase de análise dos dados, é
possível inferir com base nos dois depoimentos assinalados que a ausência de informações objetivas
e de explicação sobre determinados fatores, em especial quando a cobertura aborda acontecimentos
que possam ter uma perspectiva negativa, são, na visão dos depoentes, fundamentais para gerar
desinformação e provocar pânicos de ordem moral sobre os migrantes que estão em mobilidade no
Brasil contemporâneo.
A partir do conceito de pânico moral, também foram utilizadas como referência as obras
escritas por Cogo e Souza (2013) e Cogo e Silva (2015), nas quais se discute a relação entre um
discurso semântico que pode promover o pânico para com os migrantes que fazem parte do fluxo
migratório contemporâneo, e as representações presentes nos discursos jornalísticos sobre tais
grupos. Termos comumente utilizados no discurso jornalístico quando da abordagem dos fluxos
migratórios contemporâneos, tais como “invasão”, “ilegais”, “indocumentados”, “clandestinos”,
“chegada em massa”, “leva” possuem conotação negativa (COGO; SOUZA, 2013; COGO; SILVA,
2015). Seu uso, pois, pode influenciar a opinião pública sobre o macrotema, além de promover o
pânico moral sobre migrantes e pessoas em situação de refúgio que integram os fluxos recentes.
Ainda que o discurso jornalístico, por si somente, não promova o pânico, é necessário
refletir acerca dos grupos hegemônicos por trás de tais representações, os quais podem, além de
influenciar quais discursos serão privilegiados em detrimento de outros, a forma como serão
expostos, se por intermédio de uma cobertura jornalística sensacionalista, se com exposição
exacerbada dos indivíduos envolvidos, enfim. Considera-se que é justamente este fator o
responsável por contribuir com a manifestação, por parte da sociedade, de pânicos morais contra
imigrantes e pessoas em situação de refúgio e que, não raro, possam estar em situação de
vulnerabilidade social.
Neste caso, as autoras sugerem que as notícias cujo foco sejam os fluxos migratórios, atuais
ou passados, deve-se “focalizar [a] migração como tema; abordar [a] migração como experiência
sociocultural; potencializar [a] migração como fonte em notícias de interesse geral da sociedade;
buscar fontes de migrantes nacionais e internacionais [e] incluir a perspectiva de gênero como
importante para não reforçar a desigualdade” (COGO; SOUZA, 2013, p. 61, grifo meu). É preciso,
porém, atentar que “embora parte das migrações sejam motivadas por fatores econômicos, é
importante, na cobertura das migrações, não enfatizar apenas aspectos relacionados às situações de
carência e precariedade vividas pelos migrantes” (COGO; SOUZA, 2013, p. 61).
Assim como ressaltado por Julia e Rogério, reportagens focando aspectos positivos como a
cultura, a gastronomia, dentre outros, seriam benéficos para apresentar representações positivas a
respeito não apenas de países do continente africano, como de outros locais a partir dos quais os
fluxos migratórios contemporâneos envolvendo imigrantes e/ou refugiados negros não sejam
estigmatizados, como o ocorrido em 2014 no caso de suspeita de ebola.
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Brasil, 13 out. 2015. Disponível em: <https://goo.gl/Q6ZUOt>. Acesso em: 17 jan. 2016.
ROGÉRIO. depoimento [maio 2017; transcrição aprovada pela fonte em junho 2017]. Entrevistadora:
Samira Moratti Frazão. Florianópolis/São Paulo: 2017. 1 arquivo digital m4a (1 hora e 4 min.).
SILVA, Kalina Vanderlei; SILVA, Maciel Henrique. Dicionário de conceitos históricos. 5. ed. São
Paulo: Contexto, 2015.
WHO - World Health Organization. Ebola Situation Reports. World Health Organization, 30
dezembro 2015. Disponível em: <http://apps.who.int/ebola/ebola-situation-reports>. Acesso em: 1
janeiro 2016.
1
1
Trabalho apresentado no Tercer Congreso AREIA "América Latina-Europa: Silencios, reticencias, ficciones
en las narraciones de las migraciones y de los migrantes " este artigo é uma versão com alterações do artigo
apresentado.
* Doutora em Ciências Sociais, professora associada – Universidade do Estado de Santa Catarina (UDESC),
Professora do Programa de Pós-Graduação em História e Programa de Pós-Graduação em Planejamento
territorial e Desenvolvimento Socioambiental.
Nesses trânsitos, há uma Itália imaginada, produto de histórias de migração e de uma
italianidade construída em relatos oficiais sobre a migração. Tais narrativas são confrontadas com
o presente, pois, quando partem rumo à Europa, vivenciam encontros, algumas vezes traumáticos,
entre a Itália imaginada e a vivenciada na condição de migrante.
Neste artigo, as narrativas de mulheres e homens migrantes que partiram rumo à Itália, no
início de século XXI, são apresentadas reconstruindo suas trajetórias de migração. Embora sejam
apresentados relatos de homens, nos centraremos nas narrativas das mulheres. Por que o foco nas
narrativas de mulheres? Porque, assim como outros fluxos de imigrantes latinos rumo à Europa
(PAGNOTTA, 2014), as mulheres brasileiras se inserem num mercado de trabalho que envolve as
redes internacionais informais de cuidados – trabalhando nos chamados enclaves étnicos de
imigrantes, marcados por gênero e raça trabalhando como cuidadoras de idosos, como babás,
faxineiras ou empregadas domésticas (MOROKVASIC, 1984; ANTHIAS, 2000; FLEISCHER,
2002; ASSIS, 2011), ou no mercado do sexo (PISCITELLI, 2008). Nesse contexto de feminização
dos fluxos migratórios, as mulheres participam das redes de cuidado e de sexo, num mercado de
trabalho segmentado por gênero, classe e raça. No caso das mulheres brasileiras, elas ainda se
inserem no ramo da estética e da beleza, o que também lhes configura um nicho no mercado de
trabalho. Segundo observa Saskia Sassen (2003), a feminização dos fluxos migratórios
transfronteiriços deve ser compreendida no contexto da expansão da economia informal, que
favorece a flexibilização e a desregulamentação da força de trabalho, absorvendo mão de obra
feminina e estrangeira.
Visando reconstruir essas trajetórias migratórias e os processos de reconfigurações de
identidades, o texto procura, inicialmente, discutir a contribuição dos relatos orais para os estudos
das migrações contemporâneas. Num segundo tópico, aborda os processos de reconstrução de
italianidade, a partir dos relatos orais de imigrantes que buscaram a dupla cidadania. No terceiro
tópico é dado destaque à trajetória de D. Maria de Fátima e de outras mulheres migrantes para
compreender melhor como gênero é um princípio que atravessa o processo migratório.
Para reconstruir essas trajetórias foram realizadas cerca de 45 entrevistas,2 em
localidades de imigração italiana na Região Sul do país (Santa Catarina e Rio Grande do Sul),
bem como na Itália. Mas, para esse artigo utilizamos apenas entrevistas realizadas em
Santa Catarina. Os/as entrevistados/as são descendentes de imigrantes italianos de 3ª ou 4ª
geração que emigraram ao longo dos anos 1990 e início dos anos 2000, rumo aos Estados
Unidos e Europa.
2
Os dados que embasam esse artigo foram coletados no âmbito do projeto “Os pequenos pontos de partida: das
colônias de imigração do sul do Brasil rumo à Itália, nesse início de século XXI.” Edital MCT/CNPq/SPM-PR/
MDA nº 20/2010 - Relações de Gênero, Mulheres e Feminismo. Agradeço ao CNPq pelos recursos que
possibilitaram a realização das entrevistas e do trabalho de campo.
Iniciamos os percursos da pesquisa apresentando, brevemente, relatos de dois jovens que
emigraram para a Itália em 2008. Antônio emigrou primeiro, para conseguir a cidadania italiana, e
depois passá-la à namorada, com quem se casou antes de para lá emigrar, para poder retirar a
documentação dela também. Gabriela, sua esposa, emigrou em 2009, depois que o marido já tinha
conseguido a documentação, embora ainda tivesse que aguardar por sua documentação para poder
permanecer na Itália.
Antônio: No começo, eu fui pra lá com a intensão de pegar o documento, primeira coisa.
Depois, eu queria trabalhar na Alemanha, porque a gente é muito conhecido lá. Na época
[2008], tinha seis primos lá. Então, era só da um toque pra eles que eles arranjavam
emprego para nós, não tem? Só que a gente viu que na Itália, o negócio ia dar certo e ali
se vive melhor que na Alemanha. Entendeu? Não se ganha tanto, não se economiza
tanto, financeiramente, mas em qualidade de vida é melhor.3
Gabriela: Eu disse pro Antônio, que eu sozinha não ia. Então, ou eu ia com a Carola [sua
prima], que é uma companhia, que eu também nunca tinha andado de avião nada, morro
de medo... ou não ia. Então eu disse pra ele, ou eu vou agora ou daqui dois meses eu
não vou mais, porque já tive que largar meu emprego tudo pra ir, então...4
3
Antônio. Entrevista a Gláucia de Oliveira Assis, em 18 fev. 2012, em Urussanga, Santa Catarina. Acervo da
pesquisa os "Pequenos Pontos de Partida”, arquivada no Laboratório de Gênero e Família - Labgef. Acesso por
consulta. Todos os nomes constantes nesse artigo são fictícios, por procedimento ético de pesquisa, que garante a
não identificação dos entrevistados.
4
Gabriela. Entrevista a Gláucia de Oliveira Assis, em 18 fev. 2012, em Urussanga, Santa Catarina. Acervo
da pesquisa os "Pequenos Pontos de Partida”, arquivada no Laboratório de Gênero e Família - Labgef. Acesso
por consulta.
vezes omitindo fatos que não correspondem à autoimagem de migrantes bem-sucedidos,
silenciando determinadas situações. Importa, portanto, reconstruir o processo no presente, por
permitir, na confrontação com outras narrativas, vislumbrar como a emigração contemporânea é
vivenciada pelos descendentes e, ao mesmo tempo, como essa experiência reconstrói os sentidos
de italianidade com os quais muitos foram criados em suas cidades.
As memórias, atualmente, circulam num contexto em que imagens, bens e palavras viajam
muito mais rapidamente. Na região sul de Santa Catarina, os relatos de possibilidades de vida na
Itália, os contatos sobre onde ficar, sobre conseguir trabalho e encaminhar a documentação em
geral percorrem caminhos particulares, de amigos, parentes, conhecidos. Assim relata
Palmira:5
Palmira: Eu trabalhava na época. Era o polo da UFSC a distância, é EAD né? Aí tinha um
rapaz que trabalhava ali embaixo. Daí ele disse: “não, tem uma moça da Itália que está
chegando agora e eu vou falar com ela” E ele conseguiu o telefone dela. No outro dia, a moça
veio ali em casa e disse que ela ia pra Itália um pouquinho antes que eu. Aí eu fiquei com a
comunicação dela lá e quando eu fui, ela foi me buscar na estação e ela alugou uma casa pra
mim e pra uma amiga dela que a gente pagava aluguel de quarto.
Conforme destaca Alistair Thomson (2002), os profissionais que trabalham com a História
Oral da migração têm observado que a história do migrante pode ser registrada ou mal
documentada, e que a evidência oral proporcionaria um registro essencial da história oculta da
migração. Os migrantes, através de seus relatos orais, reconstroem, revelam e esclarecem a
experiência de migrar, permanecer e retornar. Suas narrativas são analisadas como reconstruções
desse processo, do qual os emigrantes selecionam aspectos como as histórias de sucesso, a ajuda
mútua, as continuidades e permanências; nem sempre, como no caso de Palmira, relatam tensões,
conflitos e dificuldades. Há muitos silêncios e reticências sobre os aspectos marcados por
dificuldades. Palmira era casada no momento em que emigrou para a Itália e decidiu migrar com a
filha para lhe dar a cidadania italiana: “Queria o documento italiano justamente para os filhos no
futuro poder ir pra Europa, sem tem que dar entrevista para poder entrar no país sem complicação”.
Seu relato, ao tempo em que revela a importância das redes sociais, fala das dificuldades e conflitos
vivenciados na chegada à Itália, das dificuldades com a língua, com a desconfiança dos italianos:
Eu fui pra fazer os documentos. Aí nós chegamos, numa quarta-feira e na quinta já fomos
procurar essa menina, que é de Criciúma, filha de uma tal de Leia, Carina, o nome dela. Daí
ela encaminhou tudo pra mim, só que era pra sair em três meses o meu documento. Demorou
seis meses pra sair o meu documento. [...] Na época, ela trabalhava na posta; daí foi essa
menina que eu nem conhecia, né? que me arrumou a casa, que me pegou na estação. Eu
fui assim sem saber de nada, né? Falava italiano daqui [dialeto falado em Turvo], assim,
né?
5
Palmira. Entrevista concedida a Marlene de Fáveri em 8 abr. 2012. Acervo da pesquisa os "Pequenos
Pontos de Partida" arquivda no Laboratório de Gênero e Família - Labgef. Acesso por consulta.
né? Mas o povo da Itália não faz questão de te entender, sabe? Isso é muito mau. Eu fui numa
loja da Tim que eu comprei uma internet móvel e lá te tratavam mal, não te atendiam, não
faziam questão de te entender e depois que tu faz um esforcinho tu consegue entender. Eu,
como falava alguma coisa de dialeto aqui, mas eles não fazem questão nenhuma, assim. Tu
vai numa loja, eles nem olham. Lá tu procura, compra, tu passa no caixa eles, nem te dá uma
informação. Difícil. Bem difícil, assim, são bem... Não sei se tem medo que a gente vai atrás
de dinheiro, por alguma herança... Não sei porque. Não te recebe bem.
Nos anos de 1980 e 1990, através de convênios com algumas regiões da Itália,6 os
netos e bisnetos dos imigrantes do século XIX partiram para Itália a fim de reencontrar seus
parentes, da mesma forma que italianos vieram conhecer um pedacinho da Itália no
Brasil. A partir desse intercâmbio, as cidades do sul do Estado de Santa Catarina, –
Urussanga, Araranguá, Nova Veneza, Cocal do Sul, Rio Jordão e Criciúma –, passaram por
um processo de reconstrução das tradições italianas, revalorizando os brasões de família, a
língua e as comidas típicas, que se tornam elementos que atraem os italianos para virem
conhecer no Brasil uma Itália que não existe mais – a Itália narrada pelos descendentes que
vivem no Brasil.
A busca da dupla cidadania é acompanhada de processos de reinvenção das
italianidades, através de festas de família, – festas italianas que celebram a gastronomia e
a cultura do vinho e procuram reconstruir os processos de identificação com a Itália –,
como
6
Segundo Savoldi (1998), o sul do Estado vem investindo em festas típicas italianas para criar a sua marca
como região e atrair turistas italianos. A cidade de Urussanga é considerada a capital italiana de Santa Catarina.
como veremos na narrativa de Maria de Fátima, ao nos relatar o quão se sente italiana.
Assim, enquanto a dupla cidadania aponta a busca de um caminho para a Europa para
os jovens migrantes, ela é ao mesmo tempo um processo de reconstrução e reencontro
com a Itália, imaginada e narrada pelos ancestrais. As festas têm um importante lugar nesses
processos de construção de italianidades (SAVOLDI, 1998; ZANINI 2006; ASSIS, 2011;
ASSIS; TOMASI, 2014).
Tomasi (2012) analisa eventos festivos, como a Festa do Vinho, que desde 1984 ocorrem a
cada dois anos, quando a cidade recebe turistas de diversas localidades, mostrando aos seus
visitantes a gastronomia e, principalmente, os diversos vinhos produzidos na região. Da mesma
forma, a festa do Ritorno alle Origini, que ocorre também a cada dois anos, desde 1991, busca
reviver memórias de imigração e a ligação com a Itália.
Maria Catarina Zanini (2006) observa que esse fenômeno de reconstrução das italianidades
está presente em muitas cidades de imigração italiana, em especial no sul do Brasil. Segundo a
autora, esse fenômeno está presente em diversos grupos sociais que expressam a italianidade,
através de festas e jogos de bocha, marcando as diferenças de classe entre os descendentes, uma
vez que os que não pertencem aos grupos sociais economicamente mais estabelecidos
não frequentam as associações italianas.
Esses trabalhadores ítalo-brasileiros, pelo fato de possuírem o passaporte italiano,
podem trabalhar sem problemas na Itália e na Europa. Em um contexto de revalorização da
identidade italiana, nesse encontro de culturas, os emigrantes surpreendem-se quando chegam
à Itália e são reconhecidos como brasileiros/estrangeiros. Este é um primeiro choque, pois
encontram-se com aqueles que julgam ser seus patrícios, mas são distinguidos do grupo, não
sendo reconhecidos como italianos, e sim como extracomunitários. Por isso, os imigrantes
sentem-se objeto de “certo preconceito” como relatado por Palmira.
Uma outra característica desse processo é que pode-se identificar uma seletividade
migratória que tem estimulado a migração de mulheres descendentes. Em Criciúma, na década de
1990, havia anúncios em jornais locais solicitando mulheres descendentes para trabalhar como
enfermeiras (ASSIS, 2011). No final da década de 1990, Bógus e Bassanezi (1998) indicavam o
crescimento da migração feminina na Itália e destacavam as imagens divulgadas na imprensa que
associavam o trânsito de mulheres com a prostituição e a presença de travestis na Itália. As autoras
questionavam essas representações, destacando que nem só de travestis e prostituição se mantém
esse fluxo migratório. Analisando esse movimento, colocam como uma hipótese que a migração
estaria relacionada a uma contracorrente migratória de oriundi, na qual se inserem os ítalo-
brasileiros aqui analisados. É nesse cenário que trajetórias como as de Maria de Fátima e de outras
mulheres descendentes reconstroem sentidos de italianidade, no tempo presente, revelando como
gênero, etnicidade e nacionalidade se cruzam.
Maria de Fátima,7 é branca, descendente de imigrantes italianos que chegaram ao país
no século XIX, pertencente à camada média em sua cidade, Urussanga. A sua trajetória se
integra às primeiras levas de imigrantes para os Estados Unidos (partiu ainda na década de
1970). Um aspecto que revela a invisibilidade das trajetórias de mulheres migrantes é que
essa sua experiência nos Estados Unidos, ocorreu juntamente com outros imigrantes
considerados pioneiros na região, mas como ela foi acompanhando o marido, sua trajetória
não apareceu. Maria de Fatima aprendeu inglês, conseguiu um emprego regular, e logo
conseguiu o green card, mas o casamento não ia bem. Nos Estados Unidos, ao se tornar mais
autônoma financeiramente, conseguir seu trabalho e a cidadania, foi sentindo e percebendo
os limites que o relacionamento colocava-lhe e chegou a ficar doente, quando resolveu se
separar e retornar ao Brasil.
O retorno ao Brasil, no início da década de 1980, foi para se separar do marido e
seguir um caminho próprio de autonomia e independência. Seu relato evidencia como, –
no processo de migrar, retornar e reemigrar –, essa mulher, proveniente de uma região
rural e descendente de italianos, foi reconfigurando suas relações familiares e de gênero, em
busca de autonomia.
Os deslocamentos, os trânsitos vivenciados contribuíram para que se reposicionasse,
pois, ao vivenciar outros modos de vida e de relações de gênero nos Estados Unidos, sua
primeira experiência migratória na década de 1970 a expôs a um padrão de relações afetivas
incompatíveis com as do marido, o que a levou a se separar em busca de relações mais
igualitárias ou que fosse mais reconhecida, como ela mesma dizia.
Eu vim pro Brasil pra separar. Porque, naquela época, – a época do machismo –, os
homens nem tinham culpa porque... Só que as mulheres sofriam muito. Então, eu peguei
forças pra separar quando eu vim pra cá. Mesmo assim, Glaucia, eu fiquei me preparando
psicologicamente pra ter todo mundo contra mim. Sociedade, parentes, amigos e até as filhas.
Só que eu não queria viver mais aquela vida. Me... Gritei independência ou morte (risos). Me
libertei, mas para minha grande surpresa, os meus pais ficaram do meu lado. (Maria de
Fátima).
Ao mesmo tempo em que relata como foi construindo seu projeto de autonomização,
Maria de Fátima revela como foi se aproximando dos processos de identificação com a
italianidade. São processos que ocorrem ao longo das experiências migratórias.
Ao retornar ao Brasil, já separada e independente financeiramente, torna-se porta-voz
dos processos de reinvenção da italianidade, o que lhe confere um lugar de menor
desconfiança em sua cidade natal. Uma mulher separada, com filhos, jovem e independente,
poderia gerar suspeita entre outras mulheres. Assim, buscando encontrar um novo lugar na sua
cidade, começou a se envolver
7
Maria de Fátima. Entrevista concedida a Gláucia de Oliveira Assis, em Urussanga, dez. 2011. Acervo da
Pesquisa os Pequenos Pontos de partida. Labgef. Acesso sob consulta.
cidade, começou a se envolver com os círculos de italianidade e nos processos de
revalorização dos pertencimentos étnicos na região. Gênero e etnicidade se cruzam para dar
outros sentidos às italianidades:
Então, faço questão que elas [minhas filhas] acompanhem o estilo da casa. E de lá, ainda
estamos lá, são 42 anos desde que a gente mudou pra lá (Estados Unidos); minha filha mora
lá. A gente nunca perdeu contato; já fez, inclusive, cidadania americana. Então eu tenho
cidadania brasileira, porque eu nasci aqui; italiana, pelo sangue, e americana, por direito. Hoje
eu posso viajar”. (Maria de Fátima).
Maria de Fátima reconfigura suas identidades, dizendo-se cidadã brasileira, italiana e norte-
americana, mas ressalta seu sangue italiano e a possibilidade de circular pelo mundo. Ao retornar
dos Estados Unidos, fez a dupla cidadania para dar às filhas a possibilidade de circular pelo mundo
e manter a italianidade, conforme relata:
Porque, de repente, a gente que é brasileiro talvez, é... Te dou um exemplo, talvez seja mais
fácil: quando tu vais em locais brasileiros, tu vês como os brasileiros se vestem e como os
italianos se vestem. No período do inverno... de neve... as brasileiras geralmente vão com a
barriga de fora, com uma sandália... com isso que aqui... Jamais se vê esse tipo de coisa e é
normal que chame a atenção das pessoas... feito a posta, ou não... Se uma faz justamente pra
chamar a atenção ou não, eu não sei... Mas é a mesma coisa, é... Tu tem que tentar te adequar,
mas isso... Adequar... De alguma maneira... Eu não falo nas pessoas muçulmanas, que de
repente usam vestidos longos, tudo, porque faz parte de uma cultura dele... Vestir dessa
maneira, e eu acho que tirar esse tipo de cultura é... É uma coisa inútil... Mas, eu falo mais de
nós, de aprender... a tentar se vestir um pouco mais decentemente porquê... A tendência de
muitos brasileiros. E eu tenho visto... agora trabalhando em shoppings daqui pra... Daqui,
é... Em Bassano, em Pádova, em Veneza... de pessoas que, que... se vestem... Com...
Microgona, microssaia, não míni... Porque é uma coisa... Que tu vê de cara, é... Eu vejo de
cara quem são os brasileiros... Na maneira como se vestem, mas não é uma discriminação
minha... (Carla, 2012).
Carla possui cidadania italiana, tem um relacionamento afetivo com um italiano e procura
se afastar do estereótipo das mulheres brasileiras, como outras descendentes entrevistadas, se
veste “mais a europeia”, – o que significa roupas mais discretas e menos coladas ao corpo –,
para driblar o preconceito e a discriminação. As narrativas das emigrantes jovens, buscavam
de certa forma, se distinguir das imagens associadas ao mercado do sexo e à prostituição, ou
da ideia de que as brasileiras eram mulheres fáceis e sempre disponíveis. A palavra, às vezes,
nem era pronunciada nas entrevistas. Quando perguntávamos sobre a imagem da mulher
brasileira, muitas diziam: “aquela, sabe qual é?” No entanto, a despeito dessas representações,
encontramos algumas mulheres envolvidas com italianos que acionavam outros atributos de
gênero relacionados às brasileiras. Nesse caso, os atributos da sexualidade e da simpatia
étnica eram ressignificados e associados à imagem de mulher carinhosa e boa mãe e esposa, o
que é acionado pelas brasileiras que se casaram com italianos para fugir dessas imagens e se
inserir nas famílias italianas.
ANTHIAS, Floya. Metaphors of home: Gendering new migrations in southern Europe”. In:
AHTHIAS, Floya; LAZARIDIS, Gabriela. Gender and Migration in Southern Europe. Oxford. New
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ANTÔNIO. Entrevista concedida a ASSIS, Gláucia de Oliveira. Santa Catarina: Urussanga. 18 fev.
2012.
CARLA. Entrevista concedida a ZANINI, Maria Catarina; ASSIS, Gláucia de Oliveira. Itália: Veneto.
fev. 2012.
FÁTIMA. Entrevista concedida a ASSIS, Gláucia de Oliveira. Santa Catarina: Urussanga. dez. 2011.
GABRIELA. Entrevista concedida a ASSIS, Gláucia de Oliveira. Santa Catarina: Urussanga. 18 fev.
2012.
Este estudo de História Oral tem como objetivo repensar a representatividade dos nikkeis
dentro da sociedade brasileira. Repensar porque até hoje muitos e tem ressaltado acerca da
visibilidade positiva dos imigrantes japoneses e seus descendentes por terem alcançado sucesso
econômico por meio do esforço, da disciplina, mas, principalmente, da educação. Índices altos de
aprovação de nipo-brasileiros nos cursos tradicionais mais concorridos, sobretudo Medicina,
Engenharia e Direito das principais universidades públicas brasileiras, desde a década de 1960,
comprovam a fama dos nikkeis e o bordão: “mate um japonês hoje e garanta a sua vaga na
universidade amanhã”.
Entretanto, há outro lado da história imigrantista, e, nesse sentido, lançamos a provocação:
o que o embaixador Edmundo Sussumu Fujita, a cineasta Tizuka Yamasaki e a apresentadora e
modelo Sabrina Sato têm em comum, além da ascendência japonesa? Eles foram pioneiros em
campos profissionais, onde a representatividade dos asiáticos permaneceu negativa por muito
tempo, e mesmo atualmente ela é considerada discreta. Assim, este projeto de História Oral,
desenvolvido com os alunos de graduação em Letras Japonês da Universidade Federal do Paraná,
tem como interesse investigar o porquê dessa representação com números tão baixos e esclarecer
se a causa dessa situação está ligada à falta de espaço dado pela sociedade brasileira a esse grupo
étnico, nesses campos de atuação, e/ou se a causa está ligada ao desestímulo que os jovens nikkeis
sentem em iniciar uma carreira nessas áreas, por acharem que o campo é restrito a eles. Qual o
pensamento e a opinião desses nipo-brasileiros acerca dessa questão? Como eles analisam a
inserção social deles no mundo de domínio predominantemente branco? Eles sentem que ainda são
estigmatizados por estereótipos?
A “rede” selecionada é composta por: políticos, jornalistas, diplomatas, literatos e artistas.
Historicamente, os nikkeis, por várias razões, mas principalmente econômica, costumavam escolher
carreiras tradicionais. Nas décadas de 1960 e 1970, segundo o consulado japonês, havia somente
no Estado de São Paulo, 560 engenheiros, 1.350 médicos, cinco juízes e 450 advogadosnikkeis
(LESSER, 2008, p. 45). Na atualidade, a situação não é muito diferente, ao observarmos a pesquisa
realizada pelo G1,em 2015, acerca do perfil racial dos candidatos dos dez cursos mais procurados
no vestibular na Universidade de São Paulo:
1
De acordo com o IBGE 2010, a presença de amarelos no Estado de São Paulo é de 1,3%.
E seguindo essa linha de pesquisa, começamos com a história do embaixador Edmundo
Sussumu Fujita, o primeiro nipo-brasileiro a entrar no Itamaraty. Infelizmente, o embaixador
faleceu em abril de 2016, interrompendo, assim, as entrevistas. Ele concedeu sua última entrevista,
um mês antes de seu falecimento. Diante dessa situação, optou-se em dar prosseguimento ao projeto
colhendo relatos da esposa, a embaixatriz Maria Ligaya Fujita, dos amigos de infância e dos colegas
do Ministério das Relações Exteriores.
Entretanto, antes de relatar sobre a vida de Fujita e comentar acerca do projeto, creio ser
importante narrar um pouco sobre a história exclusivista do Itamaraty que, ao longo de sua
existência (criada em 1736), teve em seu corpo diplomático a presença quase que exclusiva da elite
branca carioca. Essa contextualização se faz necessária para se entender a dimensão da façanha
desse nipo-brasileiro que quebrou um velho paradigma no Itamaraty: o preconceito racial.
Foi com esse título que Carlos Conde publicou na revista Política Externa um pequeno
artigo acerca da visão elitista da chancelaria brasileira. Conde comenta a entrada do primeiro
diplomata negro no Brasil em 1978, como um “fenômeno auspicioso na sociedade brasileira e na
do Itamaraty” (CONDE, 1978, p. 15) Para Conde, a justificativa dada pelo Instituto, de problemas
socioeconômicos e não, étnicos, para a ausência de negros na carreira diplomática “não esgota o
assunto”, pois o preconceito racial era uma realidade no velho Itamaraty que excluía não só
candidatos negros, mas também amarelos.
Esse caráter elitista, na verdade, possui uma longa história. Por muito tempo, a nação
brasileira sofreu com a imagem de povo degenerado pela mestiçagem e, por essa razão, a elite
brasileira do final do século XIX e começo do século XX tentou mudar a imagem do Brasil no
Velho Continente, revitalizando a cidade do Rio de Janeiro, então, capital brasileira. Entretanto,
essa modernização de fachada não se limitou à reforma da cidade. A própria elite carioca
representada, sobretudo pelos diplomatas, tentou também projetar uma imagem positiva do povo
brasileiro negando qualquer indício de degeneração racial. (NEEDEL, 1993).
O corpo diplomático brasileiro era formado por homens fisicamente de porte, de grande
estatura e vigorosos. Sem dúvida, os representantes do Itamaraty em nada lembravam um mestiço
degenerado, ao contrário, eles apresentavam um ar refinado, criados e educados em ambiente
sofisticado, mas que, definitivamente, não representavam boa parte da população brasileira.
A aprovação de Fujita no Rio Branco, na década de 1970, certamente foi um marco para a
representação dos nipo-brasileiros em uma carreira restrita até então à elite branca brasileira. Além
do mérito acadêmico de Fujita, acreditamos também que o governo brasileiro tentou dar o primeiro
passo para uma ação afirmativa com o intuito de promover oportunidade a outras etnias e acabar
com a representatividade negativa de negros e amarelos no Itamaraty.
Amigos de infância de Fujita e o papel da educação
Ao levantar a história de vida de Fujita foi possível notar que a sua infância e adolescência,
na década de 1960 na cidade de São Paulo, teve características peculiares a um jovem Nikkei; a
começar pela formação educacional no renomado Colégio Liceu Pasteur, onde Edmundo teve a
oportunidade de participar do coral ministrado pelo maestro Walter Lourenção, de aprender a tocar
piano e flauta e de estudar francês. Ao contrário da realidade de muitos nisseis (segunda geração),
sobretudo daqueles que viviam em zonas rurais no interior de São Paulo; o jovem Fujita parece não
ter tido problemas com o aprendizado do português e ajustamento com os colegas e amigos da
escola brasileira, justamente porque não teve que conviver com dois ambientes distintos: o da escola
japonesa e o da escola brasileira (fato comum que ocorria nas colônias japonesas das zonas rurais).
De acordo com o relato de seu amigo de infância, Augusto Mazzola, Fujita era o único descendente
da classe, com exceção de uma menina mestiça. Foi nesse ambiente, longe da colônia e com total
entrosamento entre os colegas não descendentes, que Fujita teve a sua formação educacional. Seus
melhores amigos, Augusto (descendente de italianos) e Carlos (descendente de alemães) formavam
o que Fujita costumava chamar de “eixo”. Ainda de acordo com a entrevista de Augusto,
eles costumavam se reunir todos os dias na casa de Edmundo para estudar, jogar pingue-pongue
e ouvir os discos dos Beatles. A mãe de Edmundo, sempre solícita, preparava um lanche aos
amigos do filho, conta Augusto.2
Sobre essa integração e socialização dos nisseis, Ruth Cardoso (1959) comenta que:
Como todo imigrante, o japonês pretende uma rápida ascensão, e espera dos filhos sucesso
econômico ou adoção de uma carreira que lhe garanta “status” mais elevado. Esta
expectativa exige um relativo entrosamento dos jovens à sociedade brasileira, levando o issei
a aprovar e admitir um círculo de convivência, fora da família, em que age como brasileiro.
(p. 321).
No caso de Edmundo, seus pais, por viverem na cidade, ao que parece aceitavam essa
integração do filho com os amigos não nikkeis com mais naturalidade, ao contrário do que se
costumava ver em alguns núcleos nipônicos da zona rural, onde os filhos se mantinham mais
ligados à família, à escola japonesa e à comunidade nipônica.
Apesar da educação relativamente “abrasileirada” de Edmundo, seus pais mantinham
algumas diretrizes muito comuns nos imigrantes da época. Eles esperavam que Edmundo, como
filho mais velho, continuasse os negócios da família e dedicasse os estudos em uma área tradicional.
Era muito comum que nisseis, do pós-guerra, até meados da década de 1970, recebessem uma dupla
orientação da família: alcançar ascensão social e econômica dentro da sociedade brasileira por meio
dos estudos e, concomitantemente, manter os valores e o pensamento tradicional japonês. Essa
2
Entrevista de Augusto Mazzola, concedida no dia 24 de abril de 2017.
identidade mista ou “sincrética”3 (CUCHE, 2002, p. 193), na qual o nissei se sente
totalmente brasileiro, mas conserva a educação tradicional dos ascendentes, é muito comum
ainda nos dias de hoje entre a terceira e até quarta gerações. E segundo o próprio
embaixador Edmundo, essa identidade mista foi mais um ganho do que um obstáculo em sua
carreira, pois permitiu que ele transitasse por dois mundos, quase que opostos, com
naturalidade.
Quanto a essa questão da educação dos filhos dos imigrantes japoneses, nesse
período (década de 1960 e 1970), é necessário um adendo acerca do assunto com o
propósito de se compreender o porquê Edmundo, de certa forma, foge dos padrões da época.
Em geral, os isseis (imigrantes japoneses ou primeira geração) tinham a intenção de
tornar seus filhos herdeiros da tradição cultural japonesa. Para muitas famílias que viviam
em regiões agrícolas, o isolamento em núcleos étnicos exclusivos, facilitou a manutenção
dessa tradição. (CARDOSO, 1973, p. 319).
Nesses núcleos era comum a existência de escolas japonesas, onde sentimentos
de patriotismo e civismo em relação ao Japão eram constantemente lembrados e reforçados no
ensino da língua japonesa e nas atividades. Contudo, mesmo dentro desse ambiente
exclusivista, os nisseis dos núcleos coloniais eram pressionados pelos pais a ultrapassarem
esse círculo fechado das escolas japonesas e do seio familiar e se integrarem à sociedade
brasileira mudando-se para a capital a fim de prosseguirem com os estudos. Assim, o
nissei, dessa época, tinha como missão ascender socialmente por meio da escolha de
uma carreira, considerada pelos pais e pela comunidade, como sendo “segura” (Direito,
Engenharia ou Medicina), integrar-se à sociedade brasileira; e, ao mesmo tempo,
tornar membro da comunidade japonesa.
Dessa forma, percebemos que a formação de Fujita seguiu meandros pouco comuns
aos jovens nikkeis de seu tempo, especialmente, no que diz respeito a sua formação
educacional. Seu gosto musical pelos clássicos e eruditos, em vez da música enka (música
japonesa tradicional); sua proficiência em francês e inglês maior que em japonês; seu
interesse por filosofia e artes, em vez de matérias das áreas de exatas; revelam que Fujita teve
uma educação de elite branca brasileira.
No ano de 1975, Edmundo Sussumu Fujita ganhou destaque em uma matéria da Folha
de São Paulo intitulada: “Edmundo Sussumu Fujita: o primeiro nipo-brasileiro a entrar no
Itamaraty”. O jovem Edmundo, então com 25 anos, parece ter ficado surpreso com o artigo
do jornal dando ênfase a sua descendência nipônica, segundo o relato de sua esposa, Maria
Ligaya. E, ao que parece, até aquele momento nunca havia pensado no peso de sua etnicidade
em um campo profissional. Por ter sido pioneiro e permanecido como único asiático no
quase vinte anos, o
3
Segundo Deny Cuche, identidade sincrética é a “[...] adição de duas identidades para uma só pessoa.”
Itamaraty, por quase vinte anos, o embaixador Fujita certamente abriu precedentes e deixou
um legado para as futuras gerações de diplomatas nipo-brasileiros.
Na verdade, foi deste ponto, em um almoço informal com a esposa de Fujita, a
embaixatriz Maria Ligaya, que o projeto teve início em meados de julho de 2016. Eu conheci
a embaixatriz por meio de uma amiga que se casou com o sobrinho do embaixador. Assim,
ao iniciar o projeto de escrever sobre a trajetória de vida e o pensamento do embaixador
Edmundo Fujita, viajei para Brasília, em julho deste ano, e me hospedei por três dias na casa
da embaixatriz. No escritório do casal, Maria Ligaya me mostrou meia dúzia de pastas, nas
quais havia organizado em ordem cronológica todos os documentos, cartas, artigos de
jornais, bilhetes, convites e fotos do marido ao longo de sua carreira na chancelaria. Na
realidade, esse arquivo pessoal havia sido selecionado e guardado pelo embaixador, o que nos
dá uma pista de como ele desejava se constituir; direcionando, de certa forma, o sentido quedeu
à própria vida. Entretanto, essa vida linear construída pelo casal por meio das pastas
organizadas atesta aquilo que Pierre Bourdieu (2006) chamou de “ilusão biográfica”, pois
sabemos que a trajetória de qualquer indivíduo, de destaque social ou “comum”, apresenta
variações ao longo da vida. Segundo Bourdieu:
Produzir uma história de vida, tratar a vida como uma história, isto é, como o relato
coerente de uma sequência de acontecimentos com significado e direção, talvez seja
conformar-se com uma ilusão retórica, uma representação comum da existência que toda uma
tradição literária não deixou e não deixa de reforçar (p. 185).
BOURDIER, Pierre A ilusão biográfica. In: FERREIRA, Marieta de Morais; AMADO, Janaina. Usos
e abusos da História Oral. Rio de Janeiro: Ed. da FGV, 1998. p. 183-191.
CARDOSO, Ruth Corrêa Leite. O papel das associações juvenis na aculturação dos japoneses. In:
SAITO, Hiroshi; MAEYAMA, Takashi. Assimilação e integração dos japoneses no Brasil. São
Paulo: Ed. da USP, 1973. p. 317-345.
CONDE, Carlos. O preconceito no Itamaraty. In: Revista Política Externa, São Paulo: Paz e Terra, 03
de agosto de 1978. p. 15.
CUCHE, Denys. A noção de cultura nas ciências sociais. Bauru: Edusc, 2012.
NEEDELL, Jeffrey D. Belle Époque tropical: sociedade e cultura de elite no Rio de Janeiro na virada
do século. Tradução Celso Nogueira. São Paulo: Companhia das Letras, 1993.
Fabiana Aparecida da Silva
Esse artigo se propõe a discutir sobre filhos de imigrantes que estão em situação de
vulnerabilidade, e têm seus direitos violados pelo simples fato de serem filhos de imigrantes e o
Estado é omisso em protegê-los. Os cenários desse breve estudo serão dois programas sociais de
Educação Musical nas cidades de São Paulo e Amsterdam.1
A pesquisadora trabalha há sete anos no Programa de Educação Musical em São Paulo Guri
Santa Marcelina, onde em quase sua totalidade de público atendido são alunos, filhos de migrantes,
oriundos de diversos estados do Brasil, contando também com alunos que são filhos de imigrantes.
Esse Programa tem como missão a educação musical e a inclusão sociocultural de crianças e
adolescentes da Capital e Grande São Paulo. Simultaneamente, é realizado um trabalho social com
os alunos e suas famílias através do qual se busca criar condições para uma ambiência favorável ao
melhor aproveitamento do aprendizado. Para tanto, é realizado o acompanhamento individualizado
das crianças e adolescentes matriculados, por meio de um monitoramento da frequência e são
realizadas ações socioeducativas com a aplicação da pedagogia de direitos, incidindo no estímulo
à autonomia, ao exercício da cidadania e ao protagonismo infanto-juvenil. Ademais, o trabalho com
as famílias dos alunos busca fortalecê-las e auxiliá-las na sua capacidade e no exercício de sua
função protetiva.
A pesquisadora trabalhou o ano passado (2016) e realizou parte da sua pesquisa de
doutorado esse ano (2017) durante o estágio sanduíche, com os trabalhadores, crianças e
adolescentes, na sua grande maioria filhos de (i)migrantes, que são alunos das escolas públicas nas
regiões periféricas de Amsterdam, participantes do Programa Leerorkest Amsterdam, que atende
crianças e adolescentes das escolas públicas localizadas na periferia de Amsterdam. O objetivo
desse Programa é oferecer música para todos, já que na Holanda o ensino da música é pago e a
* Doutoranda e Bolsista da CAPES pelo Programa Institucional de Bolsa de doutorado Sanduíche no Exterior
(de março a junho de 2017), processo nº 88881.134906/2016-01 no Instituto Superior Miguel Torga –
Portugal, e Mestre em Serviço Social pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (2012).
Graduada em Serviço Social pela Universidade São Francisco (2008). Atualmente é Assistente Social da
Associação de Cultura, Educação e Assistência Social Santa Marcelina, atuando com famílias da região de
Guaianases - São Paulo; e Professora Mestre da Faculdade Tijucussú, no Curso de Graduação de Serviço Social.
1
A pesquisadora estuda imigração em São Paulo, desde a graduação, e pode acompanhar diversas vezes em suas
pesquisas que os filhos de imigrantes, muitas vezes, trabalham para ajudar os pais, ainda no período da infância
que deveria ser para estudar e brincar. Além disso, através dos depoimentos coletados em suas pesquisas, houve
relatos
1 de diversas violações de direitos contra essas crianças e adolescentes.
grande maioria do público atendido não teriam condições de pagar para aprender música. Além
disso, eles disponibilizam uma plataforma on-line para que outros programas possam buscar e
utilizar materiais para ensinar música e uma oficina de conserto de instrumentos, que atendem
outras instituições além do próprio Leerorkest.
Neste trabalho, além da pesquisa bibliográfica, apresenta-se também a pesquisa qualitativa
através da técnica história de vida, porque ela trabalha com as memórias dos sujeitos, interagindo
com o que acontece no encontro do particular com o social, no momento atual. Segundo Lang:
[...] a História Oral busca conhecer a História de fatos passados através do testemunho de
pessoas que dele participaram, está recorrendo à memória do entrevistado. [...] E ainda, que
lembrar é reconstruir o passado com os olhos e os valores de hoje, somando-se ao fato
passado as experiências da vida do narrador. (LANG, 1996, p. 01).
O Brasil sempre recebeu imigrantes, e também sempre houve emigrações brasileiras para
outros países. Köche nos apresenta um parâmetro de como se deu esse processo para o Brasil:
O Brasil faz parte da rota das imigrações internacionais. No contexto de intensificação dos
deslocamentos das populações conforme confirma a autora: “historicamente predominante na
fronteira, ganha novos contornos em sua distribuição no Brasil, com destaque para sua importância
no cotidiano da metrópole paulista.” (BAENINGER, 2012, p. 15).
Muitos imigrantes quando chegam a São Paulo, não tem onde ficar e acabam ficando em
equipamentos públicos ou de ordem religiosa para acolher imigrantes e refugiados. Mas esses
serviços são insuficientes para a demanda de imigrantes que chegam à cidade e muitos são
encaminhados para Centros de Acolhida de População de Rua, o que acaba tendo uma grande
evasão porque os imigrantes não querem permanecer nesses Centros de Acolhida e sim em
um serviço específico para imigrantes.4
E as crianças e adolescentes filhos(as) desses imigrantes acabam vivendo nesse contexto:
sem local para morar, muitas vezes sendo acolhidas em serviços de população de rua. São inseridas
na escola e fazem atividades oferecidas pelo serviço de acolhimento. Porém, se chegam ao
Brasil e não vão para o serviço de acolhimento, ficando em casa de conhecidos, a inserção na
escola e emerviços de proteção é mais demorada. Algumas vezes não ocorre, pois, os pais não
têm uma orientação e têm medo de serem denunciados e até presos.
4
Participando de uma reunião de rede na região da zona leste de São Paulo, a pesquisadora ouviu técnicos de
serviços de acolhimento de população de rua relatando que os imigrantes não queriam permanecer nesses
serviços porque têm dificuldade de se comunicar, dividem os quartos com pessoas usuárias de drogas, álcool,
egressos do sistema prisional, não conseguindo dormir direito devido às brigas que acontecem todas as noites
pelos diversos motivos. Além disso, os técnicos dos serviços de população de rua têm dificuldades com a
comunicação com esses imigrantes (não é requisito, o técnico falar outra língua nesses serviços), o que
dificultava o trabalho, resultando na evasão dos mesmos que vão dormir na porta da Casa do Migrante para ver se
consegue vaga.
Nesses casos, a violação desses direitos começa na própria moradia que, muitas vezes,
é precária, e também no local de trabalho: dormindo no chão, trancados, vulneráveis a
doenças pulmonares, respiratórias e infectocontagiosas; sem alimentação adequada e
trabalhando até mais de vinte horas diárias. A seguir, o depoimento de uma imigrante que veio
para o Brasil, ainda criança, e passou por isso, nessa época:
Pra dormir nos lugar que eu trabalhei é[...] A dona deixava tomar banho só uma vez por
semana, só sábado [...] Que horrível, né? Tomar banho só uma vez por semana. E lençol podia
trocar só uma vez por mês; não podia ficar lavando muito a roupa, lava só uma vez por
semana - Tânia. (SILVA, 2012, p. 86).
Por não estarem sendo acompanhados por algum serviço, seja ele de acolhimento ou não,
pode ocorrer uma violação de direitos dessas crianças e adolescentes: na negação do acesso aos
direitos básicos que é garantido pela Constituição; na humilhação, no desrespeito ao atendimento
dessas crianças e adolescentes, por pessoas que abusam do poder ao invés de garantirem direitos e
não oprimir e reprimir apenas pelo fato de serem filhos de imigrantes: “[...] mesmo assim, ele por
ser filho meu, eles sofria também, né? Porque eu era a mãe. Eu não tinha documento. Eles tinham
documento, mas, eu não [...] Aí eles sofriam junto. Tânia.” (SILVA, 2012, p.106)
O abuso de poder é explícito quando se trata do imigrante ilegal, por funcionários que
deveriam fazer valer a lei e os direitos. “Tinha um menino que a professora não queria que ele
participasse da atividade.” (SILVA, 2016, p. 13). O que deveria ser um atendimento respeitoso,
acabava se tornando um motivo para ameaçar, impor a repressão, assustar os atendidos ou ignorar
a existência desses e deixá-los esperando. “O Conselho Tutelar falou, a moça brasileira falou que
as crianças não estiveram na escola. Eu quase fui para a cadeia por causa das crianças que não
estavam no segmento da escola. Maria”. (SILVA, 2012, p. 102).
Já na Holanda, com a independência das colônias holandesas a partir da década de 1940,
começou a imigração de indonésios e, posteriormente, na década de 1960, o país recebeu turcos,
marroquinos e italianos. Em 1975, o Suriname, que foi uma colônia holandesa, teve sua
independência e sua população começou a imigrar para seu antigo colonizador. Durante o trabalho
em Amsterdam, foi notório o número grande de crianças, filhos de imigrantes do Suriname:
algumas já nasceram na Holanda ou vieram muito pequenas com os pais. “Participamos da aula,
tocando junto. E quando nos apresentamos falando que éramos do Brasil, um aluno abriu o sorriso
e disse que amava o Brasil. Seu nome era Robinho. Perguntei de qual país ele era, e o mesmo
respondeu que era do Suriname.” (SILVA, 2016, p. 05).
Além de crianças do Suriname, foi notado um grande número de crianças vindas da região
da Turquia e de Marrocos. “O prof. B. ajudou as crianças nessa atividade e me auxiliou na tradução,
pois muitas crianças não sabiam inglês. Tive contato, principalmente, com as crianças da Turquia e
Marrocos nas turmas do Prof. B., nessa escola.” (SILVA, 2016, p. 11)
Hoje temos imigrantes do mundo inteiro na Holanda, segundo dados do site
Wikipédia.5 Em 2012, a composição de Amsterdam era de 49,5% de holandeses e 50,5% de
estrangeiros. Dentro desse dado, 34,9% são pessoas de origem não europeia e 52,6% são
menores de idade.
M2. aponta que sente falta das políticas para atendimento das crianças e adolescentes.
Questionou se existia alguém de contato para a escola acionar ou buscar ajuda, saber o que
pode ou não pode? A partir desse questionamento nos foi informado que na quarta
falaríamos com a P. que é diretora de uma escola primária e a pessoa ideal para conversar
sobre isso. (SILVA, 2016, p. 14).
5
Disponível em: <https://goo.gl/D68Lhv> .
6
A pesquisadora teve contato em uma das escolas em Amsterdam, com uma aluna que apenas falava inglês e
foraestava da sala de aula. Então convidou a menina para participar da atividade sociopedagógica que estava
fazendo com os alunos que participam do programa de música, dentro da escola, puxando uma conversa com a
ajuda de um professor que ia traduzindo. A menina contou que tinha 7 anos, que era do Congo e que estava no
novo país há uma semana. Quando a pesquisadora questionou à mesma se gostava mais da Holanda ou do
Congo, sua resposta foi a Holanda. Indignada com a resposta da criança, a pesquisadora perguntou o porquê e a
aluna respondeu porque seu país estava em guerra. Após essa pequena conversa, o professor que estava
traduzindo explicou sobre as escolas oferecerem aulas de holandês para crianças imigrantes, e que em menos de
seis meses ela estaria falando fluentemente a língua, podendo traduzir para os pais.
Na Holanda, a única legislação de proteção para crianças e adolescentes é a Declaração
Universal dos Direitos das Crianças, aprovada em 1959: “P. que nos contou que apenas a Carta dos
Direitos da Criança e Adolescente é a legislação que defende os direitos das crianças e adolescentes
na Holanda. A única figura que defende os direitos é um defensor para o país inteiro que é mais
uma figura que faz fala para a sociedade dos direitos. É uma figura pública.” (SILVA, 2016, p. 18).
Já no Brasil, além da Declaração Universal dos Direitos das Crianças, temos outras
legislações de proteção à criança e ao adolescente, como a Constituição Federal que prevê no seu
artigo 227:
E, em 2013, tivemos mais uma conquista que foi o Estatuto da Juventude que determina os
direitos dos jovens a partir de 15 anos que devem ser garantidos e promovidos pelo Estado
brasileiro. Deve ser assumido como parte da agenda pública, incorporando várias políticas para
enfrentamento das diversas violações de direitos sofridas pelos jovens no país.
Esses filhos(as) de imigrantes têm seus direitos violados de diversas formas. Apenas, pelo
fato de serem filhos(as) de imigrante sofrem discriminação, conforme aponta Silva: “Na maioria
das vezes, a gente é discriminado por ser boliviano [...] Muitas vezes sofremos discriminação na
escola mesmo. Rafael” (SILVA, 2012, p. 105).
As escolas na Holanda são muito regradas, tudo em seu devido lugar, na sua devida hora,
até mesmo a hora do recreio. As crianças podem brincar, porém têm que ser uma por uma, não
foram presenciadas ações coletivas, o que para os educadores de lá é considerado bagunça.
[...] fui ao pátio lá fora ver as crianças brincando. E, desde que chegamos, vi as crianças
pulando corda uma por uma. E eu propus de pularmos em dupla. Elas ficaram receosas e
olharam para as professoras que permitiram acenando a cabeça. Começaram a pular em
dupla, depois trio e chegaram até seis crianças pulando cordas de uma vez. Acredito que
as crianças gostaram pelos sorrisos. Fui embora do pátio exterior e elas continuaram
brincando. Só por isso valeu a pena a visita. (SILVA, 2016, p. 09).
Diferente do Brasil, essas regras são tão seguidas à risca que na hora do recreio as crianças
saem da escola e brincam na praça em frente à escola. Na hora do lanche do meio dia, a criança
pode ir em casa comer e voltar para a escola depois. Os portões são abertos e as escolas possuem
muros baixos de grade vazada.
Na Holanda, essa discriminação é escancarada e não encarada como discriminação. Muito
raro um filho de imigrante estudar nas escolas da região central, onde o ensino é melhor. Estudam
nas escolas da região periférica e dentro de algumas delas tem uma divisão, o que faz com que
aumente a questão da xenofobia.
Fomos recebidos pela coordenadora M. que conversou conosco sobre como funciona essa
escola. São três escolas juntas: islâmica, cristã e sem distinção de religião. Cada um estuda
em uma parte da escola e apenas na hora da música que essas crianças se encontram e se
misturam. (SILVA, 2016, p. 04).
E conforme a criança vai crescendo, vai sendo alienada a esse tipo de discriminação e passa
a fazer isso também:
[...] pude perceber que, quando criança, ela não faz distinção de religião, cultura, cor ou
condição social. Elas brincam e na hora da aula de música elas se misturam e não ligam
para essas separações que são impostas. Porém, quando adolescentes, elas já sentam
separadas em seus grupos, mesmo estando na mesma sala e a própria escola é segregada
fazendo que reforce ainda mais esses grupos. Isso deve refletir no futuro adulto que virá
se tornar e cada vez mais estará “europeu”. (SILVA, 2016, p. 24).
Segundo a Organização Internacional para Migrações (OIM) não houve outro momento
da história da humanidade em que tantas pessoas estiveram em trânsito. Hoje, temos mais
de 232 milhões de pessoas vivendo fora de seu país de origem, ou seja, pouco mais 3,2%
da população mundial. Isso equivale a dizer de 1 em cada 35 habitantes do planeta é
migrante. (SOUZA, 2015, p. 49).
Tanto no Brasil como na Holanda, o trabalho com as crianças e adolescentes que estudam
nos Programas de Educação Musical apresentados, traz um enorme desafio para os trabalhadores
desses programas, que lidam diretamente com todas essas questões de vulnerabilidade, dificuldade
e preconceito que estouram dentro da sala de aula, durante o ensino da música. A arte, através da
música, tem sido um instrumento de socialização, e de construção de vínculos para o enfrentamento
da série de situações vivenciadas pelo público beneficiado pelos Programas.
As histórias desses sujeitos da pesquisa são algumas, entre milhares de histórias de filhos
(as) de imigrantes nessas duas cidades que foram apresentadas. Histórias que, na sua grande
maioria, revelam a tentativa de superação de vida, apontando para a insuficiência da atuação das
7
A pesquisadora teve contato com dois adolescentes brasileiros em Amsterdam que relataram que para
conseguir se manterem e estudarem, trabalham informalmente em bares como atendentes, tocando instrumentos
em espaços públicos e limpam casas (serviço de diarista). Para aguentar a saudade da família e suportar essa
rotina, em outro país, fazem o uso abusivo de álcool, refletindo diretamente no desenvolvimento dos estudos.
instituições e do Estado que é omisso na efetivação da legislação, de políticas e de direitos dessa
população.
Os depoimentos mostraram que o Estado por mais que esteja respaldado em legislações,
como é o caso de São Paulo, ou tenha uma estrutura boa, como é o caso de Amsterdam, ambas têm
a mesma questão: a omissão do Estado em efetivar os direitos dessas crianças e adolescentes que
são os objetos de estudo. Isso reforça um círculo vicioso na sociedade: “a falta de políticas públicas
empurra os jovens pobres para comportamentos socialmente excludentes; quanto mais excluídos,
menos as políticas atuais atingem mudanças de comportamentos necessárias para sua inclusão
social.” (LOSACCO, 2010, p. 73).
As políticas sociais e políticas públicas no município de São Paulo deveriam pensar em
estratégias em atender com qualidade e pautada na legislação vigente de proteção à criança e ao
adolescente, conforme apresenta Silva:
O acesso aos direitos desses imigrantes apresenta limites pela ausência de políticas
públicas e as poucas ações previstas são ineficazes; há limitações, também, na efetivação
de políticas públicas permanentes; nas condições de acesso a programas de geração de
emprego e renda; nos serviços públicos da rede de ensino, como creches e escolas,
proteção social, entre outros; na criação de mecanismos de controle, de participação social
e na superação dos preconceitos e da discriminação. Embora certas conquistas no campo
dos direitos humanos para imigrantes tenham sido obtidas, com o apoio de organizações
sociais e públicas, como o CAMI e a Comissão Municipal de Direitos Humanos, elas ainda
são insuficientes e pontuais. (SILVA, 2012, p. 107-108).
Para o enfrentamento das diversas violações é necessário fazer pressão nas diversas instâncias
para que o Estado saia da posição cômoda e comece a trabalhar na efetivação de direitos.
Ficou nítido como a criança e o adolescente, na Holanda, não tÊm legislação e nem voz
nesse país. Eles são limitados a estarem nos locais e doutrinados a ser futuramente europeus
com costumes e hábitos europeus (de sociabilização), mesmo sendo imigrante e ou filho(a) de
imigrante, anulando costumes e cultura descente. Esse sistema de excluir a criança e ao
adolescente é tão forte nas escolas e na sociedade holandesa, que, quando adolescentes, elas já
sentam separadas em seus grupos, mesmo estando na mesma sala. E a própria escola é
segregada, fazendo que reforce ainda mais esses grupos. Isso deve refletir no futuro adulto que
virá se tornar e cada vez mais estará “europeu”.
Outro ponto que ficou nítido é que os imigrantes ou filhos desses imigrantes são as pessoas
que trabalham na área de serviços: caixa de supermercado, limpeza, jardinagem, atendente; o que
não é diferente com o que acontece no Brasil: eles vão para áreas que os compatriotas não querem
trabalhar.
Há muito para ser feito para possíveis enfrentamentos da violação de direitos desses
sujeitos, dos dois países, pois muitos desafios ainda devem ser vencidos, como a superação da
suposta neutralidade do Estado em relação às desigualdades presentes na sociedade, assumindo
ele um lugar para a construção de políticas que visem à igualdade, ao reconhecimento das
demandas específicas dos imigrantes e à admissão da existência dessa desigualdade,
necessitando de mudanças de paradigmas e conceitos.
Para haver uma articulação entre os diversos órgãos públicos, inúmeras barreiras e desafios
devem ser enfrentados para que realmente se elabore e efetive políticas públicas que atendam esses
imigrantes e suas famílias. Esse artigo chama a atenção para que haja mecanismos de enfrentamento
dessa problemática, conforme preconiza o princípio II da Declaração Universal das Crianças:
BAENINGER, Rosana. Fases e faces da migração em São Paulo. Campinas: Nepo/Unicamp, 2012.
FREDERICO, Celso. A arte no mundo dos homens. São Paulo: Expressão Popular, 2013.
LANG, Alice Beatriz da Silva Gordo. A palavra do outro: uso e ética. Comunicação apresentada no
XX Encontro Anual da ANPOCS. Caxambu, 1996.
LOSACCO, Silvia. O jovem e o contexto familiar. In: ACOSTA, Ana Rojas; VITALE, Maria Amalia
Faller (organizadoras). Família: redes, laços e políticas públicas. 5. ed. São Paulo: Cortez, 2010.
MORAIS, José Luis Bolzan de; SANTORO, Emílio; TEIXEIRA, Anderson Vichinkeski (Org.).
Direito dos migrantes. São Leopoldo: Ed. da UNISINOS, 2015.
SOUZA, Marcia Maria Cabreira Monteiro de. Migrações internacionais contemporâneas: fluxo
migratório intrarregional na América do Sul – caso da migração Brasil-Bolívia. In: CUTTI, Dirceu e et
al. Migração, trabalho e cidadania. São Paulo: EDUC, 2015.
Ieda Gutfreind
Apresento a atividade Painel Compromisso Moral e Lições de Solidariedade que vem sendo
desenvolvida, desde 2008, na rede escolar de ensino do Estado e do município de Porto Alegre,
instituições educacionais de ensino privado, faculdades e universidades. O Instituto Cultural
Judaico Marc Chagall (ICJMC) deu início a esta promoção e convidou a B'nai B'rith (Os Filhos da
Aliança, em Hebraico), também uma associação da comunidade judaica, como parceira.
Recuperando a história do que iniciou como Mesa Redonda e que hoje se intitula Painel
Compromisso Moral e Lições de Solidariedade, remeto ao lançamento do livro de Samuel Schajer,
“O relato de um Sobrevivente”, que ocorreu no ano de 2008. Schajer, solicitara auxílio do Chagall,
quando se encontrava no término da elaboração de suas memórias. Tivemos encontros,
comentários de fotos, foram dadas sugestões e organizamos o lançamento da obra que ocorreu no
auditório da Federação Israelita do Rio Grande do Sul (FIRS) em 20 de agosto de 2008.
Na montagem desta apresentação, da qual já participou Liana Richter, representando a B’nai
B’rith, Loja Barão Hirsch, constou de: uma mesa redonda na qual estavam presentes, além do autor
do livro, que narrou suas experiências durante a Segunda Guerra Mundial, Bernard Kats que
discorreu sobre os sete lares nos quais ele e sua irmã, ficaram escondidos durante este mesmo
período. Eles foram protegidos por famílias protestantes calvinistas, que criaram uma rede de
proteção amparando não apenas para crianças judias, pois a mãe de Bernard ficou escondida em
outra região da Holanda. Johannes Melis, por sua vez, discorreu sobre a participação de seu pai na
resistência holandesa contra os nazistas, tanto em atividades de sabotagem, quanto em abrigar
judeus escondendo-os em sua casa.
Foram narradas três experiências distintas, mas centradas na violência e no desrespeito ao
ser humano. Nesta ocasião proferi a seguinte fala:
[...] O Instituto Cultural Judaico Marc Chagall e a B’nai B’rith/RS – lojas Yehuda Halevi
e Barão Hirsch, instituições da comunidade judaica de Porto Alegre, aproximadas em seus
objetivos, dão continuidade às promoções de manter acesas as lembranças dos crimes
perpetuados durante a II Guerra Mundial que a história gravou como Holocausto.
Figura 3 – Painel Compromisso Moral e Lições de Solidariedade (3): Segunda Guerra Mundial (1939-1945)
Figura 11 – Painel Compromisso Moral e Lições de Solidariedade (11): Redes de solidariedade - organizações
judaicas de auxílio aos sobreviventes do Holocausto
A apresentação do Painel nas escolas é delimitada pelos anos (oitavo ou nono devido à
reforma do Ensino Fundamental), isto é, após os alunos desenvolverem conteúdos sobre história
contemporânea, especificamente, a conjuntura da Segunda Guerra Mundial.
Normalmente, a direção do local, escola ou faculdade ou..., abre a seção, os professores
envolvidos manifestam-se e a coordenadora do Painel apresenta os palestrantes e o Power Point.
Após, cada um deles relata suas experiências, ocorrendo algumas vezes a complementação de um
fato novo ou o esquecimento de outro já apresentado em outros painéis. Terminadas as falas dos
sobreviventes, a coordenadora faz breves conclusões e abre a oportunidade para o diálogo com os
alunos. É um momento muito significativo e já foram apresentadas observações pertinentes. A seção
é fechada pela direção da instituição e vem o momento do contato direto estudante com os
palestrantes. Nesta ocasião, observa-se em muitas situações mudanças significativas nos ouvintes.
Após as apresentações, a coordenação elabora o Relatório que consta de um cabeçalho sobre
informações da Escola/Instituição, acrescido do item Comentários. Neste, destacam-se
receptividade e o comportamento dos alunos, justificativa dos professores em relação ao interesse
do Painel e da Escola. São destacados, da mesma forma, o número de alunos ouvintes, as perguntas
que fizeram aos palestrantes e, através das fotos, o carinho dos alunos aos painelistas, seus pedidos
de fotos, autógrafos, selfies.
Em 2008, foram visitadas poucas escolas, todas em Porto Alegre. Em continuidade foram
aumentando as solicitações de instituições de ensino e temos o seguinte quadro das
instituições visitadas pelo Painel, entre o final de 2008 e 2017.
Tabela 1 – Levantamento das instituições visitadas pelo Painel entre 2008 e 2017 - Porto Alegre
Instituições Nº de escolas
Rede Municipal de Ensino 14
Rede Estadual de Ensino 04
Rede Particular de Ensino 24
Faculdades 06
Universidades 06
Associações 04
Fonte: acervo do Instituto Cultural Judaico Marc Chagall.
Tabela 2 – Levantamento das instituições visitadas pelo Painel entre 2008 e 2017 – Interior do RS
Instituições Nº de escolas
Rede Municipal de Ensino 15
Rede Estadual de Ensino 19
Rede Particular de Ensino 14
Universidades 03
Associações 01
Fonte: acervo do Instituto Cultural Judaico Marc Chagall.
O Painel esteve presente até o momento em 99 Instituições de Ensino mas, em muitas
situações, tanto em Porto Alegre quanto no interior do Estado, reuniam-se no mesmo local várias
escolas que assistiam a mesma apresentação.
Para o ano de 2018, já há escolas inscritas e, pelas condições dos palestrantes, tentaremos
delimitar as apresentações entre uma a duas por semana e as viagens para o interior do Estado, não
excederem em torno de 100Km. O power point conforme dito acima será modificado, mas será
mantida a exigência das apresentações ocorrerem entre alunos que já trabalharam os conteúdos da
Segunda Guerra Mundial.
Por fim, chamo a atenção de vários painéis em escolas que excederam as expectativas dos
próprios palestrantes e coordenadores, cujos alunos realizaram apresentações teatrais, literárias,
musicais, relacionadas com a proposta do Painel, cujo título, Compromisso Moral que é o que faz
os três palestrantes, retornarem com suas falas a este passado terrível que viveram e Lições de
Solidariedade, recebidas por cada um deles neste período tão trágico. O que leva os alunos a
refletirem na capacidade humana de resiliência e de uma educação possível que se oponha a
intolerâncias ideológicas, raciais, religiosas. Uma das propostas é a do jovem tomar consciência do
perigo de atitudes preconceituosas que envolvem indivíduos, grupos, comunidades, nações, etc.,
levando-o a acreditar na possibilidade de uma sociedade mais justa e harmoniosa.
Kelly Cristina Teixeira
* Doutoranda em História, pela Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC), Mestre em Ciência da
Religião pela Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF); Especialista em Aspectos Metodológicos e
Conceituais da Pesquisa Científica pela Universidade Federal de Juiz de Fora, graduada em História, pela
Universidade Federal de Juiz de Fora, Pesquisadora do Laboratório de Estudos de Gênero e História (LEGH/
UFSC). Bolsa de Doutorado da CAPES.
1
POLLAK, Michael. Memória e identidade social. Estudos históricos, n. 10, Teoria e História. Rio de Janeiro:
Fundação Getúlio Varga, 1992, p. 5.
2 BERLATTO, Odir A. construção da identidade social. Revista do Curso de Direito da FSG, a. 3, n. 5, p. 142,
jan/jun 2009.
3 CASTELLS, Manuel. O poder da identidade. São Paulo: Paz e Terra, 2008.
Mineira de Abaeté, Helena Greco nasceu 15 de junho de 1916, em uma família de classe
média. Seu pai, Antônio Greco, foi um comerciante de origem italiana e sua mãe Josefina de
Campos Álvares, brasileira, professora e dona de casa, descendia de família tradicional da cidade
de Abaeté, sendo Helena a mais velha de sete irmãos. Uma curiosidade é que, mais tarde, a família
de Helena é vista como comunista na cidade, pelo fato de um dos irmãos de Helena interessar-se
pelas propostas do Partido Comunista. Entretanto, seu pai deu a um de seus filhos o nome de
Mussolini, por compreender através das notícias que chegavam ao seu ouvido, as benesses que este
havia feito ao seu país. Devido à ampliação dos negócios, seu pai resolveu mudar-se para Belo
Horizonte, em 1924. Sua origem somada à escolaridade no colégio Santa Maria, dirigido por irmãs
dominicanas e considerado de elite de Belo Horizonte, no início do século XX, contribuiu para que
Helena tivesse uma educação refinada e uma formação clássica que incluiu: música e o domínio de
outras línguas como o francês, inglês e o italiano. Nos tempos de colégio interno, segundo relata
em entrevistas, sua leitura era realizada à luz de lanterna às escondidas no dormitório. Estas leituras
proibidas eram incentivadas por um professor de Filosofia conhecido, como Velloso, nos tempos
de internato. Segundo relata, estes livros tiveram forte influência em sua formação, distanciando-a
do padrão tradicional de leituras e comportamentos desejados para as “moças de família”. Afinal,
ainda estava em vigor o Index Librorum Prohibitorum, ou seja, a lista de livros proibidos, que viria
a ser abolida pela Igreja Católica, apenas em 1966. Segundo Helena, em sua entrevista concedida
ao Laboratório de História Oral da Universidade Federal de Minas Gerais, ou o livro era indecente
ou era contra a religião. O professor Velloso, além de passar uma lista de livros, também lhe
emprestava alguns, sendo rara a semana que não lia um livro escondido das irmãs. (GRECO,
Helena, 1995, p. 30-42). Todavia, mesmo com o afastamento da leitura denominada “cor de rosa”,
Helena parecia compreender que havia códigos de conduta a serem interpretados e reproduzidos,
pois, em alguns de seus relatos, esclarece que a questão espiritual nunca foi importante em sua vida.
Contudo, narra que nos tempos venceu todos os concursos ligados à religião, para não levantar
suspeita sobre o que realmente pensava. Há nesta passagem, aproximações e rupturas com os
modelos fixados a uma geração, que abordaremos no decorrer deste trabalho.
Entre 1933 e 1937 cursou Farmácia na Faculdade de Odontologia e Medicina da
Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), mas, seu real desejo, de acordo com sua narrativa,
era cursar Medicina.
Em 25 de dezembro de 1937, Helena e José Bartolomeu, recém-formados, casaram-se; ela
com 21 anos e ele com 26 anos de idade. Sobre este dia sonhado e tão planejado por muitas moças,
Helena narra:
O casamento foi o seguinte. Nós queríamos casar só no civil, mas a minha família era
muito tradicional, então eu peguei e falei: Está bom, eu vou casar, mas vamos casar em casa.
E eu não tinha... Eu era completamente desligada dessas coisas de religião. Mas, como a
minha mãe era muito "carola" e as minhas irmãs também, elas nem perguntaram nada, foram
e me casaram, sem preparo, sem coisa nenhuma. Porque eles não queriam o que eu vesti,
[vestido de noiva] porque minhas irmãs queriam que eu vestisse, eu vesti.
[...] Porque tinha alguns casamentos ricos que faziam isso também. Mas, aí já era com
preparo, com os padres. De modo que não chamou muita atenção não. (GRECO, Heloísa,
1995, p. 15, grifo nosso).
Helena demonstrou o desejo de formalizar sua união apenas perante o Estado. Tal
fato assegurava direitos estabelecidos pelo Código Civil de 1916, que legislava sobre
bens e propriedades, mas, ainda perpetuava antigas relações patriarcais. O marido
permanecia o cabeça do casal e as mulheres casadas permaneciam na condição de
incapazes, na mesma condição de deficientes mentais, mendigos, menores e indígenas. 4
Este fato é evidenciado quando Helena expõe que mulher de médico não abria laboratório,
o que a fez trabalhar com seu esposo e seu cunhado. Segundo Vera Lucia Puga a sociedade
ocidental cristã brasileira preparava homens para que assumissem como maridos a
responsabilidade no provento da família e da mulher – a denominada rainha do lar, –
criada para a administração da casa, dos filhos e no cuidado do marido.5
Até 1981, ano da promulgação da primeira Constituição republicana, todo o controle
sobre a vida civil estava na prática, a cargo da Igreja Católica, controlando nascimentos,
casamentos e morte. 6 Compreende-se que para a mãe e as irmãs, o casamento religioso
seria necessário, garantindo o reconhecimento social dentro de uma moralidade cristã,
uma vez que Helena as nomeia como carolas. Casou de véu e grinalda com as bênçãos de
Deus, mas, em casa, e sem a preparação dos casamentos da alta sociedade, com discrição,
como revela. A religião atravessou a vida de Helena, em especial durante os anos do Colégio
Santa Maria. No período do Colégio seguia um roteiro, conforme mencionou, e ganhou
prêmios de religião com o intuito de agradecer as freiras por toda atenção e conhecimento
adquirido entre 1928 e 1932. Mas, em muitas de suas entrevistas deixa claro que, tanto para
ela quanto para seu esposo, a questão religiosa era secundária. Em entrevista, em 1994,
para a Revista T&D, quando perguntada sobre sua visão sobre religião, particularmente
sobre a Igreja respondeu: “A religião não está entre meus pensamentos prioritários. Fé é uma
coisa muito interessante, ou você tem ou não tem. Eu me caracterizo como uma pessoa
agnóstica, que é uma coisa que nem existe mais. Eduquei minhas duas filhas e meu filho
dentro desse princípio.” (GRECO, 1995) [2016]
José Bartolomeu Greco nasceu em Indaiá, Minas Gerais, era filho do tio de
Helena, o artesão Bartolomeu Greco e Amélia Alexandrina Greco e tinha duas irmãs, Maria e
Zulmira Greco. Conforme citamos, José Bartolomeu formou-se em Medicina em 1937 e
desejava continuar seus
4
PUGA. Vera Lucia. Casar e Separar: dilema social histórico in: Esboços, Revista do Programa de Pós-
Graduação em História da UFS. Florianópolis: n. 17, p. 157-172, 2007.
5
GRIMBERG, Keila. Código Civil e Cidadania. Rio de Janeiro. Jorge Zahar, p.37-42, 2001.
6
No Brasil havia duas legislações em vigor sobre o casamento: civil e eclesiástica. Porém, apenas a eclesiástica
era vista como legítima. Segundo a tradição portuguesa, o Estado delegava à Igreja Católica a tarefa de organizar
as etapas dos habitantes do país, cabendo ao Estado legislar sobre as propriedades e heranças. Para maiores
considerações, consultar: MARQUES, Teresa Cristina de Novais. A mulher casada no Código Civil de 1916. Ou,
mais do mesmo. In: Textos de História, v. 12, n. 1/2, p. 127-144, 2004.
desejava continuar seus estudos fora do país. Após alguns anos, em 1944, conseguiu a bolsa
de estudos para prosseguir especialização nas áreas de alergologia e imunologia nos
Estados Unidos. Helena na ocasião escreveu ao presidente Roosevelt com o intuito de ir
com seu esposo:
Nós estávamos esperando essa bolsa que saiu afinal, para ir para os Estados Unidos.
Porque ele foi fazer pós-graduação lá, em alergia. O meu marido é o pioneiro da alergia
na América do Sul. E eu iria com ele, como de fato eu consegui. Eu escrevi direto para o
Roosevelt [...]. Falando que eu precisava ir com ele porque estava acostumada a ser
secretária dele e seria ruim para ele, se eu não fosse. Então, ele me escreveu de volta,
dizendo que eu podia ir sim, mas com uma condição. Que eu não participaria de nenhum
curso oficial. Agora, eu fiz dois cursos lá. Inglês comercial e... Não lembro qual
foi o outro...7 (GRECO, Helena, 1995, p. 13).
Helena fez os cursos, mas não obteve o diploma pelos mesmos. Em São
Francisco, Califórnia, Helena prestou concurso com candidatos de diversos países para
trabalhar na seguradora Hartford Fire Insurance Company, trabalhando no tempo em
que esteve na cidade.8 (OLIVEIRA, Mais tarde, seu esposo foi para Nova Iorque e
Helena conseguiu transferência para outra filial da empresa. Helena e seu esposo não
encontraram dificuldade de adaptação no período o em que estiveram nos Estados
Unidos, tanto pela língua que falavam, fluentemente, quanto para Helena obter uma
ocupação. Os Estados Unidos, neste período, atravessava a Segunda Guerra Mundial
(1939-1945). Em 1944, ano em que se mudaram, o mercado americano necessitava de
mão de obra; afinal milhares de homens e também mulheres foram enviados para
atuarem contra o Eixo. Assim, imigrantes como Helena, conseguiram postos de trabalho,
sem grandes dificuldades.
José Bartolomeu e Helena ficaram apenas por um ano nos Estados Unidos, e não dois
anos conforme planejado. Helena evitou filhos, com o desejo de realizarem as aspirações
profissionais, em especial do esposo, uma vez que o acompanhava em sua trajetória médica.
Sobre evitar filhos neste período, Helena relata a dificuldade em conseguir os
contraceptivos: “Nós buscávamos remédios fora, porque aqui não tinha. Porque ele era
médico e eu era farmacêutica. Então, nós conseguimos fazer alguma coisa, porque era
difícil.” (GRECO, Helena 1995, p. 14). Joana Maria Pedro, ao resgatar a memória de
mulheres de duas gerações distintas, nascidas nas décadas de 1920 e 1930, e de 1940 e 1950,
classe média, moradoras de Florianópolis, focaliza a experiência dos métodos contraceptivos
no Brasil, a partir de um viés político internacional, como a Guerra Fria que intervinha na
vida privada.9 Pedro esclarece que o comércio da pílula anticoncepcional teve início no
Brasil em 1962. Porém, destaca que foi em instituições estrangeiras que os médicos
brasileiros,
7
Mais adiante, durante a entrevista, Helena lembra-se do curso Public Speaker, traduzido por ela como um curso
de Oratória. Vide Entrevista, fita idem.
8
9
OLIVEIRA. Ana Maria Rodrigues de, op. cit. p. 24.
PEDRO, Joana Maria. A experiência com contraceptivos no Brasil: uma questão de geração. Revista Brasileira
de História, São Paulo, v. 23, n. 45, p. 239-260, 2003.
brasileiros, nos anos 1950, buscavam informações sobre a contracepção, uma vez que até a
década de 1960 tais métodos não eram ensinados nas faculdades de Medicina do Brasil10. Há
que se notar que Helena e José Bartolomeu faziam uso de medicamentos, já no final dos anos
1930. Porém, a profissão de ambos e, possivelmente, o fato de seu marido possuir um
laboratório clínico facilitasse a vinda ou até mesmo a elaboração de algum medicamento para
inibir a gravidez. Após oito anos de casamento e o retorno ao país, para passar o Natal,
Helena sente os primeiros sinais da gravidez no Rio de Janeiro: um desmaio. Ela assim
descreve:
Eu acho que a mulher tem o direito de escolher. Não tinha calculado, nem nada não. Mas,
o que é fato, é que quando nós estivemos aqui na véspera de Natal eu tive o primeiro
sintoma de gravidez [...] O primeiro filho é uma sensação que eu não esqueço [...] Ah! De
me ter completado como mulher, não é? As duas meninas, a Marília foi planejada também,
mas a Heloísa escapuliu. (GRECO, Helena, 1995, p. 14, grifo nosso).
Helena faz parte de um contexto no qual a maternidade era um caminho inevitável para
uma mulher casada. Sua fala nos incita a indagar quantas vezes lhe foi cobrado um filho, um
neto ou um sobrinho? Afinal, estamos transitando em períodos que a maternidade era uma
obrigação, mais do que uma vocação e muito menos que uma opção. O casal optou pela espera
e, possivelmente, sofreu as pressões de uma época; inclusive, podemos crer, o próprio
José Bartolomeu, em sua masculinidade enquanto procriador.
Elisabeth Banditer ao escrever sobre o amor materno esclarece que este amor não é
inerente e que a sociedade, a cultura e o contexto histórico foram grandes contribuintes na
tentativa de atribuí-lo à mulher e, mais tarde, relacionando-o à natureza feminina, que
inscreveu sobre seus corpos o destino materno.11 Helena refere-se a essa coroação do ser
mulher, o encerramento deste ciclo com o advento da maternidade. Essa sensação do primeiro
filho que não esqueço conforme se referiu; o primeiro filho e ainda homem, Dirceu
Bartolomeu Greco nasceu na conjuntura da geração baby boom ou geração pós-guerra.
Helena e seu esposo planejaram para que ele não nascesse nos Estados Unidos segundo
relata; queria que fosse cidadão brasileiro. (GRECO, Helena, 1995, p. 14). Três anos e meio
após veio Marília Greco, segundo Helena também planejada uma vez que estava “querendo
mesmo mais um e o Greco estava na dúvida. [...] Das duas uma: ou você arranja um filho ou
vamos ter que mexer no seu útero, porque ele estava virado. Então, eu fiquei grávida e,
realmente, não precisou fazer a cirurgia. Nasceu a Marília.” (GRECO, Helena, 1995, p. 17).
Uma próxima gravidez viria meses depois do nascimento de Marília. Helena tinha feito uma
viagem e não se sentia tão mal como nas outras gestações, mas, segunda rememora “depois
eu comecei a sentir uma coisa. Falei: eu estou com a menstruação atrasada. Fui fazer os
exames e
10
PEDRO, Joana Maria. A experiência com contraceptivos no Brasil: uma questão de geração. Revista
Brasileira de História, São Paulo, v. 23, n. 45, p. 243, 2003.
11
BADINTER, Elisabeth. Um amor conquistado: o mito do amor materno. Rio de Janeiro, Nova Fronteira, 1985,
p. 17.
exames e estava grávida outra vez. Achei muito bom.” (GRECO, Helena, 1995, p. 17). Pouco
mais de um ano após o nascimento de Marília, nasceu Heloísa Greco. Helena, após o
nascimento de Dirceu, trabalhava sem horário no laboratório de seu esposo. Após o
nascimento das filhas, voltou-se mais para a criação destes, uma vez que a diferença ente os
três era pequena. A imagem abaixo mostra esta composição familiar.
Figura 1 – Helena Greco e José Bartolomeu Greco com o filho Dirceu Greco, e filhas Marília Greco
e Heloisa Greco (ainda bebê). S/d
Helena criou os filhos dentro da religião católica, segundo narra: “Eu peguei e fiz o seguinte:
eu botei os meninos no catecismo, eu batizei, primeira comunhão, crismei e os deixei escolher. As
meninas saíram muito primeiro que o Dirceu...” (GRECO, Helena, 1995, p. 30). A narrativa de
Helena, demonstra a complexidade do ser mulher de uma família católica, estudante de um colégio
de freiras, mas que teve acesso a leituras e culturas que lhe proporcionaram outras visões de mudo.
Transgredir completamente a ordem social, para uma mulher da elite, seria quase impraticável para
a época. Assim, é compreensível que Helena negociasse pequenas transgressões. Ao mesmo tempo
em que não era ligada às questões religiosas no período do colégio, ganhou todos os prêmios de
religião, ao mesmo tempo que não quis casar na Igreja, casou em casa recebendo o sacramento por
um padre e vestida de noiva e, por fim, batizou os filhos, mas permitiu que escolhessem continuar
seguindo a religião católica ou não. Portanto, quando Helena revela que “eu tive uma época de
exaltação espiritual, sabe? [...] eu acho é o seguinte: dentro das minhas... preocupações imediatas,
a questão religiosa não figura não” (GRECO, Helena, 1995, p. 30) possivelmente esta reflexão
sobre o passado possui posicionamentos atuais, como já mencionamos. Indo na mesma perspectiva,
a expressão lugares da memória criada por Pierre Nora nos parece sugestiva. Por lugar de memória
entendemos que são “antes de tudo restos, ou seja, fragmentos do vivido, onde passado e presente
situam-se lado a lado numa dinâmica onde o que está em jogo é a memória ou a disputa
desta.12 Helena ao falar sobre religião possui também seu olhar e posicionamentos do presente
e do vivido em sua trajetória. Portanto, reconhece que em algum momento esta foi
importante, mas, há que se notar que ela não fala uma determinada religião e sim em uma
exaltação espiritual, o que não é equivalente; afinal anteriormente em uma de suas narrativas
já havia distinguido fé e religião.
Os filhos narram a complexidade desta temática; todos estudaram em colégios
católicos. Dirceu conta que após dezessete anos de estudo no Colégio Loyola de padres,
passou no vestibular em Medicina e ao sair do país após formar-se comprou seu primeiro
botton, no qual estava escrito: eu sobrevivi à escola católica. (GRECO, Dirceu, 2016, p. 14).
Marília relembra que a mãe, durante as reuniões de Colégio, passava por algumas situações:
Ela ia nas reuniões e ela não tinha religião e ai ela sentava lá com aquelas madames né?
[...] Nem são madames são senhoras. E aí elas falavam Dona Helena aonde a senhora faz
adoração? [...] Aí... ela falava: eu faço aqui na Igreja São José. Aí a moça: mas lá não tem
adoração e eu ficava muito envergonhada. Pensava cá comigo minha: mãe é muito doida
(risos) porque ela inventava. (GRECO, Marília, 2016, p. 6).
Possivelmente para evitar falatórios, Helena criou esta história para sua interpeladora.
Afinal, sua filha estudava em um colégio confessional católico, o que subentendia que seus pais
professassem a religião da instituição. A trajetória de Heloisa foi um pouco diferente, dentro do
colégio católico, sendo expulsa em determinado momento:
Lá em casa não tinha esse negócio de reza, embora a gente tenha sido educado dentro da
questão do catolicismo. Eu estudei no colégio das Irmãs Salesianas, que é ao lado
praticamente ali de casa, que é Colégio Pio XII. Acabei sendo expulsa desse colégio
(risos), mas estudei lá. A formação muito rígida, um negócio pesado, mas eles nunca
tiveram isso; é muito diferente dos irmãos e das irmãs dela. As irmãs dela tinham esse
negócio de ir à missa, de comungar. Eles não tinham isso, não tinha esse negócio de reza
lá em casa. (GRECO, Helena, 2014, p. 4).
Enfim, Helena faz parte da elite belorizontina e colocar os filhos em bons colégios, nos
indica ser uma prioridade. Bons colégios e de renome estavam ligados à religião, sobretudo católica.
Conta-se, ainda, a boa experiência que Helena teve no colégio Santa Maria. Possivelmente, estes
fatores contribuíram para que Helena e José Bartolomeu optassem por estas instituições
confessionais.
As filhas relembram o quanto a mãe era excelente nos afazeres domésticos, mas, não
gostava. Segundo Heloísa, sua “mãe era uma dona de casa fantástica. Ela sabia fazer de tudo.
12
NORA, Pierre. Entre memória e história: a problemática dos lugares. Projeto História Revista do Programa de
Estudos Pós-Graduados em História. PUC-SP. São Paulo, n. 10, p. 7-28, dez. 1993. P.12-13. Disponível em:
https://revistas.pucsp.br/index.php/revph/article/view/12101/8763. Acesso em: 22/03/2015.
Cozinhava bem, bordava bem, fazia tudo bem, mas não gostava, ela não gostava... (risos) mas fazia
tudo.” (GRECO, Heloisa, 2016, p. 6). Marília reafirma em sua entrevista a fala de Heloísa e
acrescenta que sua mãe dizia: “Não entra aí não. Se você entrar aí você não vai sair” (GRECO,
Marília, 2016, p. 4). (sobre as filhas entrarem na cozinha). Marília ainda lembra que Dirceu era
mais livre que as meninas. “E seria até pedir demais se não o fosse por causa da época.” E continua
exemplificando:
Meu pai foi fazer um pequeno curso na Europa e eles ficaram fora dois meses, mas mamãe
foi junto. Ela deixou eu e Heloisa no colégio interno e meu irmão foi para a casa de minha
tia. Mas, ela desmontou toda a motoca dele; não sei o que isso quer dizer, talvez excesso
de zelo. (GRECO, Marília, 2016, p. 4).
Helena como leitora voraz também incentivava seus filhos à leitura, definindo livros para
cada fase de crescimento. Heloisa resgata esta memória de sua infância e de seus irmãos:
Monteiro Lobato todinho... Então isso não teve, assim, não é um clássico lá... Teve um
outro passando para a adolescência, na minha puberdade, que ela e meu pai colocaram na
minha mão. Foi o Winnetou do Karl May. [...] Machado de Assis, até Thomas Mann. Ela
tinha mania de um livro, de uma obra específica do Thomas Mann que é José e Seus
Irmãos que eu sempre lembro quando eu leio ou releio. E vai por aí afora. (GRECO,
Heloisa, 2016, p. 8).
Além da leitura, Helena era apaixonada por cinema. Chegou a conhecer Walt Disney,
quando esteve nos Estados Unidos, em um evento que contava com a presença de Carmem Miranda
e o Bando da Lua. Na infância de seus filhos, Dirceu, Marília e Heloisa relembram as tardes no
cinema. Heloisa recorda “eu pequenininha, sete ou oito anos, e ela levava a gente pra assistir três
filmes de uma vez, três sessões [...]. Ela sabia tudo de cinema, era capaz de falar o elenco inteiro,
inclusive do pessoal que era elenco de apoio.” (GRECO, Heloisa, 2016, p. 6). Marilia conta que a
mãe assistia todo tipo de filme bom ou ruim. E seu irmão Dirceu, também se recorda das tardes no
cinema o quão era divertido. Para Marília, sua mãe era uma apaixonada pela literatura e cinema e
também todos os filhos se recordam da mãe com o livrinho de palavras cruzadas que José
Bartolomeu importava em inglês, feitas com tranquilidade. Uma vida cercada pela paixão pelos
livros, cinema, palavras cruzadas e pela música. Mas ainda bordava e cozinhava, mas não gostava;
assim Helena é revisitada pelos filhos. Marília nos convida à reflexão ao rememorar que “seu pai
não gostava que ela entrasse na cozinha. Ele achava que ela era muito inteligente para ficar lá.”
(GRECO, Heloisa, 2016, p. 9). Mas, entrou várias vezes até obter ajuda de uma parenta próxima,
que foi uma espécie de governanta da casa por alguns anos. Uma mulher culta que se adequava a
normas sociais, com pequenas transgressões cotidianas. Uma mulher de uma classe social
privilegiada, a mulher de um pioneiro na imunologia-alergia na América Latina, da década de 1940.
Uma vida de poucas amigas, um pouco solitária, talvez por sua erudição. A filha caçula diz em sua
entrevista:
Eu acho que essa perspectiva humanista já proporcionava uma certa visão de mundo que
é diferente. Então, ela sempre foi muito intelectualizada [...] uma figura um pouco peculiar
mesmo. [...] Eu me lembro da vida dela. Ela tinha realmente uma turma de mulheres com
as quais ela compartilhava algumas coisas. A minha mãe nunca foi uma pessoa de ter
amigas de visitar, de tomar chá, de fazer compras. Ela não tinha essas histórias, entendeu.
E eu acho que ela se sentia sozinha mesmo. (GRECO, Heloisa, 2016, p. 12).
“Esta solidão talvez fosse preenchida pelas trocas entre o casal, uma companheira muito
próxima de papai se davam muito bem”, narra Dirceu Greco (2016, p. 14). Ou como lembra Marília:
“Eles tinham uma afinidade intelectual muito grande. Era um casal ligado no mundo das ideias.
Nunca brigaram. Tinham um carinho muito grande um com o outro.” (GRECO, Marilia, 2016, p.
9). A filha caçula Heloisa expõe: “Nunca assisti profusão de beijos e abraços entre meus pais. Mas
o companheirismo deles era uma coisa muito concreta; quase podia pegar com a mão. Era um
negócio impressionante! Eu nunca vi os dois brigarem.”(GRECO, Heloisa, 2016, p. 8). Um casal,
sobretudo ligado pelo gosto da leitura, das viagens, da música. Na esperança que a filha caçula se
tornasse pianista, José Bartolomeu encomendou de Hamburgo, na Alemanha, um piano da marca
Steinway, renomada por sua qualidade. Heloisa não se tornou pianista profissional. Seguiu carreira
acadêmica cursando História. Entretanto, no período universitário, o piano também foi um motivo
para levar seus amigos e de seus irmãos para sua casa. Havia um ambiente na casa, uma espécie de
sala de estudos e ali os filhos do casal também recebiam amigos. Helena sempre compartilhava
ideias e opiniões com os jovens universitários dos anos 1970. Heloisa relembra:
Foi reformada [a casa]. Eles fizeram uma, embaixo, que lá é uma casa de um pavimento
só. Tem um mezanino onde tem os quartos. Mas tem embaixo da casa uma sala muito
grande que era a sala de estudos, que era só para eles; para a gente não. O pessoal ia lá
estudar, às vezes pessoas que nem eram colegas mesmo, por exemplo. Eu tinha três
grandes amigos, mais ou menos em 68, 69, 70, sobretudo 69, 70, que eram estudantes de
Medicina, que iam para lá estudar também, entendeu? Eu não fiz Medicina. Meu irmão
fez e já tinha formado. Embora eles não eram amigos do meu irmão; eles eram meus
amigos, então tinha esse vínculo também, entendeu? [Helena] interagia muito com eles.
Eles gostavam muito dos dois. (GRECO, Heloisa, 2016, p. 10).
Lá em casa acabou sendo até um centro de encontro dos próprios familiares, meus tios.
Minha família da minha mãe é numerosa. Então eles iam lá. Minha avó materna, que era
Josefina, morou lá também. Então essa macarronada ao menos já existia. Tinha amigos
que chegavam, amigos dela também, embora meus pais nunca foram essa coisa de sair, de
acontecer, nada disso, mas tinham alguns amigos fiéis. (GRECO, Heloisa, 2016, p. 12).
Helena parecia interagir muito bem com pessoas da geração dos filhos. O segundo
marido de Marília já era amigo de Helena bem antes de Marília o conhecer. Helena e o
jovem rapaz conversavam e trocaram livros de Marcel Proust e James Joyce.13 A vinda dos
amigos de seus filhos para o estudo, as macarronadas, os amigos de outra geração que Helena
foi conquistado através do hábito da leitura, as trocas de experiência, foram dando elementos
para a mulher que buscava algo, além da esfera doméstica. Incentivada em vários aspectos por
seu esposo, pela vivacidade de seus filhos, Helena foi acumulando sonhos, vontades que se
desembocam em um único dia, mas que fazia parte de um longo processo. O fio geracional
que estabelecia uma conexão com seus filhos, amigos destes e amigos mais jovens que
Helena, foi conquistando e girando em torno de interesses comuns, que até certo ponto eram
distantes de sua geração biológica.
Heloisa faz uma observação importante a respeito da mãe:
E eu me lembro uma vez... Acho que foi no processo mesmo, que ela estava já na
menopausa e tudo. Eu me lembro que ela passou por um processo de depressão muito
grande que tem a ver com essa parte fisiológica, mas tem a ver também com a maneira,
essa certa solidão existencial que ela tinha aí.
E a partir desse momento eu não vi mais nenhum tipo de sentimento dela nessa
perspectiva. Então, ela começou a construir uma vida de militância muito consistente e
muito consciente. (GRECO, Heloisa, 2016, p. 12).
A esta solidão existencial, soma-se ao que Marília se referiu como solidão povoada
(GRECO, Marília, 2016, p. 4). E Dirceu apontou como “ela não gostava de gente, mas gostava de
ajudar gente.” (GRECO, Dirceu, 2016, p. 4). Nos indagamos: que tipo de gente ela se afastava?
Possivelmente os de sua geração, sobretudo mulheres que como ela foram educadas para serem
mães, esposas, enfim “rainhas do lar”, abrindo mão de desejos e anseios em prol da família. Toda
13Valentin Louis Georges Eugène Marcel Proust foi um escritor e poeta francês. (1871- ). Considerado um dos
pais do romance moderno. De origem abastada, de 1908 até sua morte, Proust levou uma vida retirada e
escreveu uma série de romances em sete partes intitulada Em busca do tempo perdido. James Joyce
(1882-1941) nasceu em Dublin, na Irlanda, em 1882. Filho de rica família católica recebeu uma rígida
formação com padres jesuítas, contra a qual mais tarde se rebelou. Foi aluno da Universidade de Dublin, onde
estudou inglês, francês e italiano. Participou de grupos de literatura e teatro. Autor de "Ulisses",
considerada a obra que inaugura o romance moderno e uma das mais importantes da literatura ocidental.
esta composição exposta até aqui demonstra a engrenagem que fará Helena se mover em um dia no
qual seu povo como se referiu aos estudantes, se viam cercados na Faculdade de Medicina e ela se
viu inspirada a levantar sua voz e deixar o piano rumo aos palanques.
BADINTER, Elisabeth. Um amor conquistado: o mito do amor materno. Rio de Janeiro: Nova
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Pós-Graduação em História da UFS. Florianópolis: n.17, p. 157-172, 2007.
GRECO, Dirceu. Entrevista concedida a TEIXEIRA, Kelly Cristina. Gravador digital. Belo Horizonte
Minas Gerais. 10/05/2016. Acervo da autora.
_____. Entrevista concedida a TEIXEIRA, Kelly Cristina. Gravador digital. Belo Horizonte Minas
Gerais. 10/08/2016. Acervo da autora.
GRECO, Helena. Entrevista concedida a DELGADO, Lucília de Almeida Neves; LANNA, Anna
Flávia Arruda, 1995, p. 30-42.
_____. Entrevista concedida a TEIXEIRA, Kelly Cristina. Gravador digital. Belo Horizonte Minas
Gerais. 10/03/2016. Acervo da autora.
_____. Entrevista concedida a TEIXEIRA, Kelly Cristina. Gravador digital. Belo Horizonte Minas
Gerais. 11/03/2016. Acervo da autora.
GRECO, Marília. Entrevista concedida a TEIXEIRA, Kelly Cristina. Gravador digital. Belo
Horizonte Minas Gerais. 10/05/2016. Acervo da autora.
_____. Entrevista concedida a TEIXEIRA, Kelly Cristina. Gravador digital. Belo Horizonte Minas
Gerais. 10/08/2016. Acervo da autora.
Clóvis Dias Massa
1
Além de mim e da Prof.ª Dr.ª Camila Bauer Brönstrup, líderes do grupo de pesquisa Teoria do Teatro:
História e Dramaturgia, vinculado ao Diretório de Grupos de Pesquisa do CNPq, colaboraram os bolsistas
Caroline Vetori, Jéssica Barbosa e Thiago Silva, como autores no processo de escritura.
O banheiro branco. Os azulejos brilham e emanam cheiro de alvejante. Uma pequena lasca
de mofo no canto do espelho prende minha atenção por um instante. A matéria pura e sua
natureza real e imediata. Uma lagartixa corre pelo vidro do box. Por um momento, esqueço
da seringa. Por um momento, abandono a agulha e sua ponta. Por um momento, não
percebo o frasco sobre a pia. […] Apanho a seringa que já está pronta. Seguro a barra da
camisa. Aproximo ela da minha pele. Meus pelos arrepiam. Será este o lugar certo para
aplicar? Eu não sei. Não consigo lembrar. E se eu fizer errado? Se eu fizer errado e tiver
alguma complicação? Se tiver alguma complicação eles irão descobrir. Tudo deve ser
muito preciso. Não tenho espaço para erro. Qualquer tremor da minha mão e vai tudo por
água abaixo. Se eu aplicar no lugar errado e eu tiver alguma complicação, meu pai terá
que me levar ao médico. O médico informará a ele que eu apliquei em meu próprio corpo
uma dose de penicilina. Ele irá querer saber o motivo […] Meu pai vai querer saber de
onde eu tirei isso. Ele que nem imagina que eu já tenha beijado alguém. Ele que nem
imagina que eu já tenha me tocado e tocado alguém. Ele que sequer cogita a ideia de eu já
ter tido alguma experiência sexual. Ele, submerso em seus afazeres e no cumprimento de
seu papel de pai e de homem da casa. E se ele quiser saber quem foi? E se ele me colocar
contra a parede e me obrigar a dizer. E se eu precisar dizer que este alguém não é a minha
colega que vem aqui em casa estudar matemática toda quarta-feira. E se ele me obrigar a
dizer o nome. O nome vem junto com o sexo. O nome carrega a identidade. Mas o nome
carrega também o sexo. O nome me denunciará. […] Saberá. Saberá algo de mim que eu
ainda não entendo. (In: Jéssica Barbosa, No banheiro).
Noutra narrativa, a violência física sofrida na rua, provocada pela homofobia, um dos
integrantes foi espancado por três homens que o seguiram quando desceu do ônibus; o
comportamento machista e abusivo do ex-namorado de outra participante, em seu primeiro
relacionamento amoroso. As proposições de escritura, em exercícios em primeira e terceira pessoa,
tiveram como objetivo lidar com as técnicas mais empregadas na dramaturgia atual, que se alternam
entre elementos dramáticos e épicos, acentuando o caráter rapsódico de determinados trechos, como
forma de se distanciar de situações tão próximas.
Naquele dia, ele optou por pegar um ônibus. Restavam só umas moedinhas no bolso. Ele
as contou e as entregou para o cobrador. Sentou no banco que dava para o corredor, fechou
os olhos para descansar a visão já cansada de tantas leituras. O preto do olho fechado
sugeria em sua mente uma imagem fixa de um animal. Um cão. Pedro fechava o olho e o
fitava. Com seus olhos grandes de cachorro. Uma senhora esbarrou em seu ombro e ele
acordou de súbito. Já era seu ponto. Desceu, com pressa de chegar em casa. O apartamento
ficava a duas quadras da avenida. Caminhando apressadamente na rua escura, percebeu
que não estava sozinho. Cada vez mais perto dele, três pessoas. Eram três homens.
Certamente, mais um assalto. Não tinha dinheiro, mas um velho celular. Os homens não
o queriam. Queriam a ele. Ou melhor, queriam a sua humilhação. Uma sequência de
golpes no rosto, nos ombros, no abdômen. Queriam seu nariz sangrando, sua face
desfigurada, seus músculos contraturados, queriam vê-lo implorar por clemência.
Queriam vê-lo ser cuspido e silenciado. Queriam jorrar em seu cérebro palavras de ódio.
“Esse viadinho tem que morrer”, diziam eles. “ Esse tipo de gente, essa anomalia, esse
lixo humano não merece viver.” “Tem que acabar com essa raça podre.” "Mata. Mata.
Mata ele. Ah é, viadinho, tá doendo? Não pensou na dor antes de dar o cú, né.” “Lixo.”
Atirado na sarjeta. Em silêncio, enquanto as pessoas jorravam comentários nele. “Ah,
coitado.” “Será que vai aguentar?” "Mas também, né?!” O barulho da sirene o embalou,
uma espécie de desmaio seguido de calmantes e remédios para a dor. A luz branca entrava
pelas frestas dos olhos e a pulsação aumentava absurdamente. “Será que eu estou
desfigurado?” Ele não podia ver a si mesmo. A ideia da imagem do seu rosto deformado
o paralisava em um estado de absoluta imobilidade física e mental. De olhos fechados, via
seu rosto rasgado a se metamorfosear naquela fera que o assolou em pensamento, ainda
no ônibus. Uma besta desconhecida que, finalmente, se apresentava a ele com toda a sua
fúria e ódio. Uma besta domesticada, alimentada por algo mais monstruoso que ela
própria. Domada por homens de terno e gravata, por mantos, por respeitáveis famílias.
Uma fúria e ódio legitimados pelas sagradas escrituras. Uma fúria e ódio senhores das leis.
Ele não encontrou forma de denunciar, apesar de insistir. Aconselhado a prestar BO como
assalto, pois somente assim havia alguma, mesmo pequena, possibilidade de os encontrar,
foi à delegacia. Descreveu seus agressores. Desenhou oralmente com minúcia cada linha
daqueles olhos tão nítidos em sua memória. Os desenhos ficaram empoeirados nas estantes
do Departamento de Polícia. A camada de pó também foi se instalando em sua memória
até borrá-los completamente. Uma fera desfocada que o espreita em suas caminhadas
noturnas. Grandes olhos a segui-lo, fazendo-o vulnerável. Olhos de todas as cores que se
multiplicam mais rápido que as horas. (Caroline Vetori e Jéssica Barbosa, Violência na
rua).
Um dos textos criados, tendo como fonte o relato desse professor, foi intitulado "Sor João",
no qual se inverteu a posição de quem fala, ao se reconstituir a voz do aluno:
Sor João, eu não tenho com quem conversar. Me sinto sozinho. Muito sozinho. Percebi
que desde os sete anos eu não tenho nenhum dia da minha vida em que eu fique sem
chorar. Sempre cai alguma lágrima do meu olho. Nem que seja uma só. Todo santo dia.
Às vezes eu enterro a lágrima, pra ver se brota alguma florzinha. Mas nunca brota. É
sempre uma lágrima enterrada na terra seca e só. Mas eu sempre sorrio também. Só que
nem todo dia. É normal eu não sorrir. […] Eu sou anormal, sor. É isso que o Seu Inácio
fala pra mim. Que eu sou anormal. Um dia ele me chamou de "aberração". Depois eu fui
procurar no dicionário e fiquei muito, muito assustado. Fiquei com medo de fazerem
alguma coisa comigo ou de que as pessoas tivessem medo ou nojo de mim. Eu acho que
eu escolhi o senhor pra ser meu novo pai, porque o senhor não tem nojo de mim. Você
gosta de brincar também e é o único adulto que eu conheço que ainda brinca. E o senhor
não se importa que eu use os figurinos das meninas. Será que é pecado isso, Sor João? Eu
posso parar de te chamar de Sor João e te chamar de pai? Você ainda não me disse se
aceita ou não ser meu pai. Tá dando agora uma tristeza daquelas, pai. Desculpa, Sor João.
Tá dando uma tristeza forte agora. Parece que o meu olho é um oceano inteiro pronto pra
transbordar. Tem uns caras que aparecem na televisão que andam de submarino dentro do
mar. Eu sempre fico pensando, se eu tivesse um mini submarino que pudesse entrar e
navegar dentro desse meu oceano que mora no meu olho. Quanta porcaria ele ia achar lá
dentro. Acho que meu oceano do olho é todo poluído. Era pro oceano de uma criança ser
cheio de corais e peixinhos dourados. Mas o meu só tem porcaria. Talvez latinhas de Coca-
Cola, petróleo, talvez sangue até. Mas eu não posso saber exatamente o que é, porque eu
não tenho um mini submarino. Quando a minha mãe foi morar com o Seu Inácio, eu
achava que eu era um menino bom. Mas depois eu entendi que eu sempre fiz coisas
erradas. E eu penso coisas que são pecado. Engraçado, que com o senhor eu esqueço que
todo esse meu jeito esquisito é pecado e eu me sinto livre. Sabe a minha bicicleta? Eu
inventei um nome pra ela. Andorinha. Esse é o nome dela agora. Porque eu ando nela e
me sinto um passarinho. A minha irmã disse que eu sou um retardado e que eu sou veado.
O Seu Inácio também diz que eu sou viado. Sor João, será que eu sou mesmo veado? É
pecado ser veado, Sor João? (In: Jéssica Barbosa, Sor João, 2017).
Por ter sido uma dos primeiras propostas, percebe-se a ênfase por manter a forma dramática
por meio do monólogo dramático endereçado a um interlocutor. Essa forma do discurso teatral não
mantém uma relação direta com os usos específicos da língua comum, visto que, costumeiramente,
é o diálogo que se estabelece como modelo de comunicação. Mas, no teatro, o monólogo é
considerado uma forma ambígua, até mesmo híbrida, visto que se desvia da função fundamental da
comunicação própria da linguagem e propõe um simulacro de diálogo, ao incorporar o outro.
Enquanto que o diálogo permite mensurar as diferenças que o monólogo coloca em perigo, o
monólogo mata a alteridade e a especificidade do eu. Como diz Dubor, “somente persiste nele o
silêncio. O monólogo é então o espaço perigoso de uma experimentação radical, pela qual poderia
cessar toda palavra: ele está permanentemente na beira deste silêncio definitivo.” (DUBOR, 2011,
p. 38. Tradução nossa.). Além disso, a escolha vem ao encontro da equivalência da linguagem dos
relatos orais, da mesma forma como, numa entrevista de História Oral, a retirada da fala do
interlocutor culmina na transformação da realidade do diálogo em um monólogo imaginário. Deve-
se salientar, também que, apesar da construção poética de alguns trechos, percebe-se ainda a escolha
pela manutenção da verossimilhança da situação descrita.
Diferentemente da História Oral, o lugar de fala e a legitimidade em falar sobre o outro, não
sendo o artista do mesmo gênero, raça ou classe social, é o principal desafio da representação na
atualidade. Os teatros do real, como são chamadas as manifestações que afirmam a existência real
dos seres, objetos e ações que são diretamente presentificadas e não apenas representadas em cena,
acabam por questionar as costumeiras formas e princípios éticos da representação teatral. Apesar
da crença de que o papel do artista é o de se colocar no lugar do outro, de que o relevante é a
identificação e não a identidade (HALL, 2006, p. 18), questões sobre a legitimidade em representar
personagens mulheres, transexuais ou negras estiveram presentes durante todo o processo,
ocasionadas por situações vividas por artistas que tiveram seu lugar de fala questionado por líderes
de comunidades, descontentes com o fato do homem escrever sobre a mulher, o branco sobre o
negro, o heterossexual sobre o gay, o rico sobre o pobre. O princípio de descolonização de si, que
buscou descolonizar o corpo representado nos textos, promoveu o questionamento intermitente de
parâmetros na constituição dos discursos.
Uma das mulheres transgêneras entrevistadas, a travesti Cleo, contou a nós de sua infância,
quando ainda vivia numa cidade do interior do Estado, quando não havia preocupações com gênero,
sendo bem acolhida pela família até o momento em que começou a perceber que era diferente das
meninas com quem brincava de casinha. O estranhamento fica mais acentuado quando ela se muda
para Sapiranga.
Oito, dez anos por aí, quando eu começo a perceber que algo não se enquadrava, sabe...
que havia uma maneira de existir ali… Aqui em Sapiranga era muito mais cruel. Deveria
ser mais tranquilo, porque é uma cidade, né. As pessoas deveriam ter a mente mais aberta,
mais evoluída. São pessoas mais cultas e inteligentes, veem televisão e têm acesso à
informação, né. Era para ser, só que não... Eu descobri que aqui eu teria que interpretar um
personagem. Aqui eu fingi ser um homem. Aqui eu comecei a me vestir de guri pra poder
sobreviver, e foram os dez, onze anos mais tortuosos e tormentosos da minha vida... De
eu me olhar, sabe, nos espelhos, na vitrine das lojas por onde eu passava e não me
reconhecer, sabe? Aquilo que o espelho me mostrava não era o que o interior tava sentindo
e dizendo... Era cruel... Foi horrível essa fase. Eu vivi assim, creio que deve ter dado uns
doze anos de mentira na minha vida, uns dez ou doze anos por aí, interpretando um
personagem... Que foi o tempo que eu fiz o Estadual, estudei no Instituto Estadual,
trabalhei nas fábricas de calçado, tentei seguir uma carreira na indústria corporativa, né.
(Cleo, 2017).
Uma das formas de fomentar a escritura e lidar com a construção de personagem passou a
ser a constituição de uma linguagem, baseada na própria linguagem utilizada pelos depoentes.
Nesse caso, seu relato deu origem a um dos textos mais fluentes e representativos em termos de
vocabulário e prosódia, intitulado "As Faces de Cleo”, no qual ainda se manteve o discurso em
primeira pessoa.
Sabe, teve um dia em que eu percebi que era diferente. Eu só podia ser diferente. Porque
toda aquela humilhação, toda aquela recusa, não podia ser normal. Eu não me faço de
coitadinha, entende? Até porque muitas, muitas de nós passam por isso. Mas hoje eu
entendo um pouco melhor tudo aquilo. Não que apague alguma coisa, mas, pelo menos,
eu sei que a errada não era eu. Eu vou falar assim, no feminino, porque eu sou mulher, tá?
Tá bem. Eu sei que tu sabe disso, mas, sei lá, eu tô tão acostumada a ficar me afirmando,
ficar explicando essas coisas que já é assim, automático. […] Ah, não, eu não tenho
paciência. Sabe guri, a gente tem que se unir. Mas se unir mesmo, de verdade, se não a
coisa não anda. Nós somos muito discriminadas, o tempo todo. Outro dia eu tava saindo
lá do prédio e o porteiro nem olhou na minha cara. Daí eu virei pra ele e disse: “Vem cá
hein, o senhor tem alguma coisa contra mim? Não, porque não é a primeira vez que eu
passo aqui e o senhor me vira a cara ou me dá as costas!” Desaforo, mas credo! Mas
também não me faço de coitadinha, não. Isso não. Não me faço de coitadinha, mas também
não quero que me olhem torto... Meu Deus, guri, eu falo tanto que o café já esfriou. Tá,
mas voltando um pouco no que eu estava dizendo. Teve um dia que eu percebi que era
diferente. A gente sabe desde muito cedo, mas é aquela coisa: só entende mesmo isso
quando a coisa pega fogo. E assim, né meu filho, a escola não ajuda em nada. Bom, tu
deve saber, né? A escola é uma porcaria porque não tem o que fazer. Hoje ainda se discute
mais – se bem que agora nem isso querem deixar, tá louco – mas, na minha época, era
horrível. Nós sofremos muito. Muitas de nós sofreram, todas nós sofremos pra dizer bem
a verdade. Ao menos todas as que eu conheço odiavam a escola. Eu até que gostava. Mas
quando eu fui, digamos assim, percebendo que minha fruta era outra, começou o inferno.
Porque não tinha como esconder, simplesmente não tinha como. E ninguém me ajudava.
Se eu tivesse chorando, gritando, sangrando... Ninguém se importava. Um dia, teve uma
professora que olhou bem pra mim e disse que se eu fosse mais normal, eu não iria ser tão
excluída. Dá para acreditar nisso? Ela queria que eu fosse um machinho como todos os
outros, isso sim. Um dia ainda quero encontrar aquela vaca e dizer umas boas verdades na
cara dela. Tu já pensou, se todas nós pudéssemos falar umas verdades na cara desses
merdas? Aí, que delícia, a gente ia lavar a alma! Bom, se bem que nem ia adiantar nada,
né. A gente já passou por aquilo tudo mesmo. Já foi. Mas aquela vaca bem que eu queria
encontrar. Sei lá, só pra ver a cara dela quando me visse assim, mulher. Porque nós somos
mulheres e ela precisa engolir isso, mas credo. Ai, meu Deus, não consigo mais beber esse
café, isso aqui tá frio, tá um nojo. Vou pedir outro. (In: Thiago Silva, As Faces de Cleo).
Entendendo que a questão da legitimidade do lugar de fala, no âmbito da criação
dramatúrgica, vem acompanhada da recusa dos padrões de heteronormatividade, da resistência em
dar protagonismo aos personagens masculinos, não apenas a escolha por dar escuta à mulher
transgênera, mas à cisgênera, foi uma das maneiras de lidar com esse critério. Em outro relato, o
tema da opressão foi abordada pelo silenciar da fala ou da expressão de uma jovem que nunca teve,
nos anos de convívio com os pais, a oportunidade de se expressar.
Ela envolve toda a minha vida e a minha constituição. Na minha casa, lá no início, quando
eu ainda era criança, eu me construí num padrão de família, onde não se era permitido ter
voz. Então, não era permitido a voz, a opinião, e em muitos momentos não era permitido
nem a fala. […] As cenas que eu me lembro e que me marcaram muito é de muitas, muitas
vezes, o meu pai trabalhava muito, ele estava muito fora. E quando ele estava em casa, ele
era uma pessoa dos gestos, das ações; ele não era uma pessoa da fala propriamente dita.
Então, ele ia trabalhar. Teve uma época em que ele trabalhava numa fazenda. Ele ficava a
semana inteira fora e no final de semana ele vinha pra casa. Ele vinha e trazia pêssegos pra
mim, que ele sabia que eu gostava muito. Então, o ritual era: ele trazia uma caixa de
pêssego e sentava, descascava o pêssego e ficava me dando os pedaços, mas ele nunca
trouxe palavras. E eu demorei inclusive para entender e perceber como é que isso
acontecia. Ainda hoje eu me pego, me dando conta de algumas coisas. Não era uma
situação em que ele chegava em casa e ia dizer “Oi, como é que foi a tua semana? O que
que aconteceu contigo? Como é que foi a tua escola? Me conta um pouco de ti”. Isso não
existia. […] Existia a ação, mas não existia o conforto da fala. E como não existia esse
conforto da fala, não existia emoção, não existia espaço para existir expressão. […] Existia
o preto e o branco, não existia as escalas de cinza. (E. M.)
Comparado ao universo constituído pelo pai, de falta de emoção, o papel da mãe era o de
subserviência e, ao mesmo tempo, de falta de atenção à menina, pois quando a mãe não estava
fazendo tarefas de casa, estava falando dela mesma, inclusive, da vida sexual do casal, para a filha
de seis ou sete anos de idade, queixando-se de como o convívio entre eles era ruim. Segundo a
depoente, das poucas vezes em que procurou se rebelar contra isso, quando ainda era adolescente,
na tentativa de deixar de ser apenas o repositório das queixas da mãe, esses momentos foram
completamente rechaçados pela mãe, no intuito de que fosse mantido o silêncio. Entre os textos
gerados a partir dessa narrativa, um dos mais contundentes, pela força das imagens que descrevem
a relação entre mãe e filha, com interesse em desconstruir os limites entre o real e o ficcional através
da irrealidade temporal e da condensação cronológica, é o texto intitulado “Estetoscópio”:
Meu sonho sempre foi ter um estetoscópio. Eu queria ter podido saber mais cedo que
eu tinha mesmo um coração. Tem alguém aí? Eu penso, mas já não falo. […] Percebi
que se eu chorar vocês vêm me ver. Eu já tenho três meses. Vocês acham que eu sou
doente por causa do choro constante. Me olha? Ouvi o médico dizendo que não é
nada e ele, já no carro com pressa, falou que é manhã. Eu ouvi essa palavra durante
um bom tempo, quando eu tentava. Depois eu parei de tentar. Mas demorou. Não
sei nem dizer quando isso aconteceu. Não foi um grande evento. Grande só
vivemos
vivemos o silêncio. Como um elefante denso que toma conta da casa, afunda o
assoalho velho e se instala para sempre no nosso cerne. De repente, eu deixo o sol
bater no meu rosto e não fujo do ardor. Me enrolo no edredom e sinto algo que eu
nunca senti. Parece um abraço. Começo a dormir com mais uma almofada. Uma para
a cabeça e outra para eu abraçar. E toda manhã abro a janela quando o despertador de
vocês toca e volto correndo para a cama para deixar que o sol me beije o rosto. Eu
pisco como quem busca ver melhor. Eu vejo vocês, mas e eu? Pisco novamente e
já tenho 5 anos. Onde estão meus dentes que caíram? Meu colega mostrou que a mãe
dele fez uma coleção e que a cada um ele ganhava uma moeda grande. Eu te vejo
pouco, passando correndo pelos corredores e fazendo ranger a velha casa de madeira.
Eu te vejo muito, mas tu não me vê, né? Eu te sigo em tudo que tu faz em casa, uma
mãozinha invisível que alcança as coisas e tem seus ouvidos como reféns. Eu achei que se
eu te escutasse em algum momento, tu faria isso comigo também. Tu sabe como é a minha
voz? Eu sei como é a minha voz? […] Eu sinto como se eu pudesse ficar escondida para
sempre e ninguém ia notar a minha falta, que eu posso me camuflar no sofá e virar sofá
também. Tu me fala dele. Reclama, reclama e reclama e eu não entendo os assuntos que
despeja em mim. Vou virando um recipiente fundo, um poço e quase me afogo em meio
a isso. Eu não quero saber disso. Eu juro que falo, mas nunca tenho certeza porque tu não
me respondes? Às vezes, eu queria que tu morresses. Ou ele. Mas é só às vezes. Dizem
que quando as pessoas morrem, a gente consegue conversar com elas. […] Tudo parece
tão ruim em ser adulto. Mas eu quero crescer. Sim. Gente grande tem o direito de falar, ou
ficar calado, se quiser. Vocês me ensinaram isso com os silêncios todos que me deram.
Nos domingos, sobretudo, aprendi muito. Já tenho 12 anos e descobri que tenho um
coração. Foi quando eu dei o meu primeiro beijo. Senti algo bater tão rápido que me
assustei e saí correndo do quiosque onde eu estava. Vocês nunca souberam. O beijo foi
horrível, mas saber que eu tinha coração foi incrível. Boletins e folhas de calendário vão
me mostrando que algo passa. Começo a entender algumas coisas, mas não consigo expor
elas. Tu continuas falando, falando, falando e querendo que eu seja a solução dos teus
problemas. Eu sei tudo sobre a vida de vocês, inclusive a sexual. Eu não gostaria. Começo
a ter nojo de sexo. Eu já tenho 15 anos e queria que tu soubesse que eu menstruei. Ele
percebeu e trouxe de cabeça baixa uma embalagem de absorvente. Acho que ele te contou
depois, mas ninguém falou sobre isso. Tenho vergonha dos meus pensamentos; não deixo
eles seguirem. Tenho vergonha do meu corpo e não sei se isso é normal, mas aprendi
contigo. Sabia que consegui meu primeiro emprego anteontem? Que entrei na faculdade
hoje? Que amanhã eu me formo e me mudo do país? Que depois de amanhã eu terei um
relacionamento com uma pessoa que eu amo muito? E que no mês que vem eu abortarei?
Que após 5 anos eu terei a minha casa? E que eu existo? (In: Caroline Vetori,
Estetoscópio).
Para promover a diluição da relação entre o real e o ficcional em termos formais, passou-
se, a seguir, a empregar a noção de monólogo polifônico, com vozes de diferentes naturezas. Essa
afirmação da condição, na qual o responsável pelo discurso é não exatamente um personagem, mas
um ator-performer que articula as distintas vozes, apresentando discursos orais e escritos,
estatísticas, falas em primeira e terceira pessoa, diz respeito à dimensão performativa do teatro,
bastante acentuada nos dias de hoje, e de certa forma solucionou a questão ética da apropriação e
da representação do outro, dando legitimidade ao lugar de fala, tão reivindicado e discutido em
nossos dias, quando a representação cede lugar ao real.
DERRIDA, Jacques. Mal de Arquivo: uma impressão freudiana. Trad. Claudia de Moraes Rego. Rio
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HALL, Stuart. Identidade cultural na pós-modernidade. Tradução Tomaz Tadeu da Silva, Guacira
Lopes Louro. 11. ed. Rio de Janeiro: DP&A, 2006.
Aos quatro dias de novembro no ano de 1952, na localidade de Lajeado/RS foi levada à
pia batismal Maria.1 A primeira vista mais um registro de filho natural tão
estudado pelos historiadores, sobretudo, do passado colonial brasileiro (FREITAS, 2017). No
entanto, este registro possuía uma história mais complexa e multifacetada que ultrapassa a
discussão sobre a questão da legitimidade.
Em primeiro lugar, tal como toda fonte, este registro também tem suas peculiaridades e não
deve ser tomado como tal. Para começar, a mãe registrada no batismo é, na realidade, sua avó
biológica. E, mais ainda, o pai incógnito era um protagonista importante para entendermos os
conflitos raciais, o abandono e os conflitos de gênero nesta história.
Trata-se da problematização da história de vida de uma mulher mestiça, filha de uma
ascendente direta de imigrantes alemães moradores de Santa Clara, localizada no Vale do Taquari
com um curandeiro negro que percorria esta região. O envolvimento e o nascimento fruto desta
união desigual, aos olhos da sociedade e da família da moça, na década de cinquenta do século XX,
teve consequências contundentes no desenrolar da trajetória de Maria. Neste estudo, pretendemos
analisar o impacto e as consequências do abandono como produto dos conflitos raciais e de gênero
presentes nesta sociedade. Num primeiro momento, vamos trazer dados fundamentais da trajetória
de nossa personagem, bem como, suas próprias impressões e ressignificações, através da entrevista
oral cedida no dia 14 de maio de 2017. Posteriormente, partiremos para a análise de como podemos
evidenciar os conflitos e as marcas dos mesmos, na trajetória da vida desta protagonista e o próprio
revelar desta história após 50 anos.
Desta forma, dentre os principais objetivos desses apontamentos é, primeiramente, trazer
uma apresentação geral do contexto desta trajetória de vida. Em seguida, problematizar as marcas
dos conflitos raciais e de gênero que marcaram a vida desta mulher e de sua família. E, por fim,
realizar um apanhado breve das marcas deixadas, inicialmente, a partir dos nuances da memória.
Vale salientar ao leitor, que este trabalho de pesquisa está em processo inicial de
levantamento de fontes e análise dos dados. Portanto, trata-se de apresentar, nesse texto, as inúmeras
possibilidades de pesquisa e, sobretudo, os inúmeros questionamentos e problemáticas surgidos
durante esse primeiro passo do processo investigativo; trata-se dessa forma, de uma carta de
“Ela não queria dar, mas ela era obrigada a dar [a criança]”.
“Você sabe, né? Ela acabou de ‘se perder’ com um homem que não era namorado, nem nada”.
4
Munanga (1999) identifica o quão forte e eficaz é o inconsciente coletivo de submissão ao branco. Trata-se de
sempre partir das condições culturais e do modo de vida do branco e, isto, efetivamente coloca as culturas
africanas ou afrodescentes como submissas ou secundárias ao padrão social pautado no modelo eurocêntrico
branco. Costa (1983, p. 3), já evidenciava que tal situação gradativamente busca “destruir a identidade do sujeito
negro” .
5
Neste período, a moralidade familiar e a sua aparência para a sociedade estavam todas colocadas sobre
"os ombros da mulher". A responsabilidade de prover a casa poderia e deveria ser masculina, porém o encargo
da organização e administração do lar, bem como, a educação e bem estar familiar eram atributos designados ao
mundo feminino, tal como destaca Stearns (2010, p. 206).
Noutro momento podemos verificar a violência sofrida por esta mãe. Na fala, a seguir,
verificamos que a negação imposta pela criação e aceitação desta filha natural e mestiça foi tão bem
cultivada e enraizada durante a sua vida, que ela questiona, mesmo assim, se durante o encontro
tratava-se de sua filha. E, mais ainda, reforça a necessidade de manter em segredo, mesmo passados
mais de cinquenta anos. Nesta fala podemos verificar os resquícios atemporais da violência paterna
na determinação de apagar a identidade e a existência deste acontecimento.
“Ela me abraçou e disse: ‘Tá, então fica entre nós?’... Mas é filha, é?”
“ ...eu dei pra gente de bem!” – a culpa.
Aqui podemos perceber a importância da resignificação da memória. Trata-se da fala da
mãe através do relato em entrevista da filha. É como se mais uma vez, pela terceira vez, houvesse
uma negação. É um reforço constante da condição de inferioridade perante a família materna e, ao
mesmo tempo, a valorização da ascendência de imigrantes alemães que agora aceitam esta filha
mestiça. Deste modo, percebermos como a memória destes fatos trazem aspectos contraditórios,
envolvendo a aceitação familiar e, também, um constante reforço dos problemas raciais e de gênero
ainda não resolvidos.
COSTA, Jurandir Freire. In: Tornar-se negro: as vicissitudes da identidade do negro brasileiro em
ascensão social. Rio de Janeiro: Graal, 1983.
FREITAS, Denize Terezinha Leal. Para além do matrimônio: formas de união, relações
familiares e sociais na Freguesia Madre de Deus de Porto Alegre (1772-1822). Tese (Doutorado
em História) – Programa de Pós-Graduação em História, Universidade Federal do Rio Grande do
Sul, Porto Alegre, 2013.
LAGE, Lana; NADER, Maria Beatriz. Da legitimação à condenação social. In: PINSKY, Carla
Bazzanesi; PEDRO, Joana Maria. Nova História das Mulheres no Brasil. São Paulo, Contexto:
2012, p. 286-312.
TRAMONTINI, Marcos Justo. A organização social dos imigrantes: a Colônia de São Leopoldo
na fase pioneira (1824-1850). São Leopoldo: Ed. da UNISINOS, 2000.
1
Nas últimas décadas do século XX, essa ideia foi retomada pelos adeptos da virada
linguística, a Linguistic Turn. Além de reforçar as características retóricas da escrita histórica, de
definir a história como um gênero específico da ficção narrativa, de avaliar as pesquisas segundo
os critérios da crítica literária, historiadores sustentaram que a narração histórica é apenas uma
projeção do pesquisador. Parte-se do princípio de que o historiador está sempre "posicionado" e,
como afirmou Keith Jenkins, cada ato de compreensão é sempre uma construção, uma
autorreferência (JENKINS, 2011). Nesse ponto da discussão, Loriga conclui que "o historiador não
é nada além do produto de suas inscrições sociais: classe social, área cultural, gênero, etc."
(LORIGA, 2012, p. 253).
Loriga aponta em sua análise uma reflexão que Smith (2003) já destacara: o gênero como
um elemento influenciador da prática histórica. Apesar de ter citado pelo menos três elementos que
subjazem o trabalho histórico (classe social, cultura e gênero), Loriga não aprofunda essa última
categoria, pois incursiona suas discussões para um possível equilíbrio entre objetividade e
subjetividade do historiador. Aliás, com exceção da obra de Smith, não se tem análises sobre as
possíveis articulações entre o historiador, a historiadora, suas obras e alguns dos registros que
atravessam suas vidas, como gênero e classe.
As análises feitas acerca da identidade do historiador, as quais partem do campo dos estudos
historiográficos e da teoria da História (CERTEAU, 2011; RÜSEN, 2002; JEKINS, 2011), tendem
a analisar os historiadores e suas obras dentro de um contexto acadêmico institucional e de espaços
sociais produtores do conhecimento histórico, como se esses lugares fossem neutros e não
atravessados pelas variantes mencionadas. Até mesmo Bourdieu (2013), que define a academia
como um campo longe de ser neutro, limita-se a identificar nesse espaço apenas as posições sociais
e os capitais culturais pertencentes aos agentes.
Trouxemos essa discussão por uma razão: como se mostrou, a noção da suposta
neutralidade do historiador é antiga e conclui-se que ela é difícil de ser alcançada não só porque
esse profissional está sujeito ao seu tempo, mas porque ele traz sua própria autorreferência ao fazer
história. Apesar desse tipo de reflexão não causar tantas objeções hoje em dia, é muito raro encontrar
análises que articulem algumas das dimensões citadas com a profissionalização, a prática histórica
e o resultado final desse trabalho, a obra. De fato, dimensões como raça, gênero, classe e geração
não são problematizadas nos estudos voltados ao campo acadêmico e às trajetórias dos sujeitos
historiadores.
É a partir dessa ideia – a dos marcadores sociais, sobretudo o de gênero – que pretendemos
verificar de que modo nossos entrevistados e as entrevistadas os percebem em suas trajetórias
profissionais. Após a formulação de tantas perguntas sobre as origens familiares, a educação na
infância e juventude, a formação acadêmica, o início da profissionalização, a conciliação entre a
vida profissional e a familiar, chegamos às últimas perguntas que geraram, sem sombra de dúvidas,
as mais complexas e diversas respostas por parte dos nossos entrevistados e das entrevistadas.
"Historiadores e historiadoras fazem História de modos diferentes"? "A ocupação das mulheres na
historiografia brasileira mudou, de alguma forma, a produção historiográfica"? "Percebem o gênero
como um dos princípios norteadores de suas vidas profissionais"?
Antes de qualquer resposta, primeiro deparei-me com um breve silêncio, acompanhado por
um sentimento de dúvida e inquietação perante estas duas perguntas. Mas, conforme os
pensamentos se organizavam e as explicações apareciam, muitas reflexões foram compartilhadas.
Cabe salientar que este momento da entrevista implicou numa mudança discursiva, uma vez que as
falas dos entrevistados se afastaram da narrativa sobre acontecimentos passados para situar-se em
um novo lugar de fala, referente a uma percepção individual e subjetiva acerca do gênero em suas
vidas profissionais.
De maneira geral, podemos distinguir duas percepções na forma como esses profissionais
pensam o gênero: temos aqueles que negam o gênero como um marcador que atravessa o "modo
de fazer história" do historiador e da historiadora; e outro grupo que, apesar das diferenças percebem
o gênero articulado à profissionalização.
Conforme alguns dos depoimentos transcritos abaixo, em relação ao "modo de fazer
história", as pessoas entrevistadas não concordam sobre haver diferenças na maneira como homens
e mulheres produzem o conhecimento histórico. Isto é, elas partem da ideia de se compreender a
pesquisa histórica em termos de "competência", e assim, tanto as mulheres quanto os homens
possuiriam a mesma capacidade. Nessa perspectiva, do ponto de vista profissional (análise de
fontes, aplicação metodológica, reflexão teórica e escrita), os relatos consideram que o gênero não
seria um registro que diferenciaria a prática histórica. A diferença começa a aparecer em suas
reflexões quando se trata da escolha dos temas e objetos de pesquisa, apontando que foram as
mulheres que trouxeram os estudos de gênero, a história das mulheres e das crianças, bem como o
mundo doméstico, aplicando em muitos casos uma mirada feminista sobre estes temas.
[...] por isso que eu te falei, esse ambiente já era feminino só que não existia uma leitura
feminista do gênero, algo que cresceu aos poucos. Hoje em dia os estudos feministas
tentam buscar esse... chegam até falar em epistemologia feminista. Para dizer a verdade,
eu não acredito nisso, mas acho que existe com certeza um recorte de gênero nas escolhas.
Há um recorte hoje pela própria conquista da mulher, dos papéis e dos lugares que
elas estão. Então, o recorte de gênero hoje é muito forte. (Ícaro).2
Eu acho, acredito que mudou muito, mudou muita coisa. As historiadoras trazem a
condição feminina. Claro que não são todas, mas eu tenho impressão que a matéria passa
a ser vista com mais simpatia. No [ ] correu tudo muito naturalmente porque eram
pesquisas sérias, eu acho que por isso. Se não fosse a pesquisa séria, a gente estava danada.
E tem mais. Tem textos de pessoas como a [ ] que entrou no campo também. A [ ] tem
um peso político enorme dentro da categoria, dentro dos movimentos associativos, dentro
da ANPUH. Uma posição política, uma posição política. O caso da [ ] também, por
exemplo, é emblemático. Décadas atrás as coisas não eram assim. As conquistas vieram
com o tempo e foram grandes. Temos que incluir a História da Vida Privada, as várias
coletâneas que a História da Vida Privada nas quais as questões de gênero aparecem. Com
2
Nesta pesquisa foram utilizados pseudônimos em substituição aos verdadeiros nomes dos
historiadores e historiadoras entrevistadas.
o tempo foi se abrindo um espaço para uma produção que olha esse mundo escondido, o
mundo do doméstico. (Cibele).
A gente até poderia dizer que a gente conhece menos historiadores. Por exemplo, na área
de gênero, eu acho que há menos historiadores. É uma área que a pesquisa foi
predominantemente feminina. (Juno).
Enquanto mulheres sim, quer dizer, eu acho que sim, enquanto mulheres na medida em
que as mulheres são diferentes dos homens. Então, nesse sentido, eu acho que elas têm
preocupações diferentes, quer dizer, uma mulher historiadora é mãe e o homem historiador
é pai, começa por aí. Não é verdade? (Jasão).
Olha, o que eu posso dizer... Assim como na literatura, os autores sempre falam de si
mesmo. O historiador também. Ele presta atenção em coisas pelas quais ele teve
experiências. Numa sociedade como a nossa que tem estipulação de gêneros, faz
diferenciação de espaços que são percorridos por homens e mulheres, isso sempre salta
aos olhos. Mesmo com a igualdade que a gente tem alcançado com a derrubada dos muros
entre público e privado, podemos falar que ele ainda não está completamente derrubado,
certo? Esse muro faz com que meninas e rapazes tenham experiências diferentes. E essa
experiência acaba impactando a maneira de lidar com as coisas. Tenho esperança que isso
desapareça cada vez mais, mas ainda persiste. (Clio).
Na fala de Jasão não é possível ter certeza se a diferença que ele estabelece entre homens e
mulheres se dá em função das experiências sociais/históricas que cada um vive ou em função da
natureza biológica, o que demarcaria uma perspectiva essencialista. Mesmo assim, Jasão e Clio
consideram, guardadas as devidas diferenças, que as mulheres têm uma experiência histórica e
cultural diferenciada da masculina. São essas experiências, relacionadas às histórias de vida, que
tornam possível uma diferenciação no olhar e nas preocupações de cada um. Desse modo, a
existência de uma “escrita de si” nas escolhas de temas e pesquisas históricas borram as fronteiras
entre a vida do pesquisador e a suposta “neutralidade” conferida ao seu ofício. Soma-se a essa
percepção o depoimento de Maria Odila. Para ela, o historiador dirige às suas fontes seus próprios
interesses, os quais dizem respeito à maneira como ele se insere no mundo. Os fenômenos que
ocorrem na vida de cada um acabam influenciando as maneiras como são construídas as
problematizações e questionamentos às fontes.
Outras análises percebem as mesmas diferenças no que diz respeito à escolha dos temas e
objetos de estudos, mas as situam dentro de um "processo natural" de cada sexo, tendendo às
explicações de natureza biológica que tendem a um certo essencialismo. Ou seja, existe nessas falas
uma associação entre o mundo dos sentimentos e da sensibilidade com a feminilidade, e o da razão,
objetividade e "frieza" com a masculinidade. Nessa direção, Eneias apresenta uma observação
muito interessante para esta discussão. Em um primeiro momento, ele não percebe diferença porque
todos os historiadores e as historiadoras devem seguir o "método" e atentar-se à "seriedade da
pesquisa". Assim como Clio e Jasão, a diferença para Eneias começa a residir nas experiências
inerentes à vida de cada um, de modo que as mulheres podem ter preocupações diferentes às dos
homens. Mas, no final de sua análise, a diferença é apontada conforme a natureza dos sexos: as
mulheres são mais sensíveis enquanto os homens são mais frios. Concórdia também percebe que
muitos dos temas introduzidos pelas mulheres se deu por uma questão de sentimentos, próprio do
universo feminino.
Eu acho que sim. Acho que, inclusive, muitos temas foram introduzidos, que os homens
não pensavam e que agora também estão sendo obrigados a pensar. Mas é uma questão
dos sentimentos, uma questão das suas habilidades, da mulher enquanto não só como
cidadã, mas enquanto ser humano. (Concórdia).
Sim e não. Não porque elas são historiadoras. Então existe um patamar de qualidade
metodológica, de seriedade e de pesquisa que todos devem seguir igualmente. Eu diria que
não há diferença nessa parte. Sim, diferente ... eu acho que a vida nos ensina a ser
diferentes, você percebe? Então, as mulheres hoje têm grandes preocupações que as
atingem. Até porque as mulheres ficaram fora da História. Então, eu diria que ninguém
melhor que a mulher para destacar essa História. Agora, não dá para dizer que as mulheres
não tenham mais sensibilidade que os homens. Na minha concepção elas têm. E é bom
que seja assim, até porque, veja, o historiador não deixa de ser um homem e a historiadora
não deixa de ser uma mulher. [...] Então, eu digo, existe a parte toda da escolha dos objetos,
dos problemas, a forma de enxergar da mulher, a mulher tem uma visão muito ampla das
coisas e percebe mais rapidamente, muitas vezes, que os homens. Os homens são mais
frios, estou te falando pelas orientações que eu fiz, são mais frios, são mais racionais e
mais objetivos. As mulheres têm uma outra sensibilidade. Eu nunca tive um orientando
que chorou, mas eu tive muitas mulheres que choraram. Então, são experiências diferentes
de vida que por mais que você tenha aquela base que eu comentei igual, que não é
diferente, de metodologia, de pesquisa, de trabalho, de competência e de capacidade,
existe o contrário que eu acho fantástico que isso exista. (Eneias).
Eu acho que sim, eu acho que sim, apesar de que não saberia avaliar precisamente isso,
nesse momento. Existe um processo natural em que as mulheres podem ter trazido
questões novas. Mas, por exemplo, quando você vê livros escritos por homens que tratam
a História do Amor, a História da pobreza... tem uns que são tão femininos. E são escritos
por homens. Por isso, eu tenho horror a essa visão sexista de que “isso é coisa de homem
ou coisa de mulher”. Eu conheço homens que têm uma enorme sensibilidade feminina
para várias questões. Esse negócio de dizer que homem não chora, isso tudo é besteira, né.
E, por outro lado, conheço mulheres que são duras. Não é toda mulher que está pronta para
ser mãe. Eu acho que a sensibilidade masculina e feminina todos nós as temos, né?!
(Terpsícore).
Não, não vejo. Você sabe que tem até uma linha de História de Gênero voltada para a
masculinidade. Eu acho super interessante. Creio que não tem diferença de olhar. O que
tem é que você se depara no seu departamento com algumas figuras muito machistas.
(Euterpe).
Eu não sei se tem aí uma diferença. Eu acho que não tem. Eu acho que tem bons e maus
professores, bons e maus pesquisadores, independentemente de ser homem ou mulher.
(Belona).
Eu não vejo assim uma diferença muito marcante, sabe!? Eu acredito que tem ótimas
historiadoras hoje no Brasil, como também tem homens. O que tem na grande maioria dos
historiadores é que eles raramente vão para o arquivo, então fica num ‘achismo’ danado,
sabe. Isso que eu acho um problema, mas também tem os historiadores que vão para
arquivo, né? (Urânia).
DIAS, Maria Odila Leite da Silva. Entrevista. In: MORAES, José Geraldo; REGO, José Marcio.
Conversa com historiadores. São Paulo: Ed. 34, 2002.
FICO, Carlo; POLITO, Ronald. A história no Brasil (1980-1989): elementos para uma avaliação
historiográfica. Ouro Preto: UFOP, 1992.
PERROT, Michelle. Práticas da Memória Feminina. In: Revista Brasileira de História, São Paulo:
Anpuh/Marco Zero, v. 9, n. 18, 1989.
RAGO, Margareth. Epistemologia feminista, gênero e história. In: PEDRO, Joana; GROSSI,
Miriam (Org.). Masculino, feminino, plural. Florianópolis: Mulheres, 1998.
RÜSEN, Jörn. Razão histórica: teoria da história: fundamentos da ciência histórica. Brasília:
Ed. Universidade de Brasília, 2010.
Elisiane Medeiros Chaves
O estudo que está sendo realizado se refere a uma pesquisa que aborda a
violência contra a mulher, tema bastante presente na contemporaneidade. O trabalho é
realizado no Mestrado em História,1 junto à Universidade Federal de Pelotas e nele
são analisadas situações de violência praticadas, na maioria das vezes, pelos companheiros
das vítimas que são réus em ações penais que tramitam no Juizado da Violência
Doméstica, na comarca de Pelotas.
No devir histórico, aos homens foram conferidos privilégios em
detrimento das mulheres,2 tendo sido construída no meio social uma cultura de
superioridade masculina que permitia, muitas vezes, que mulheres fossem tratadas com
violência para serem mantidas no espaço que a elas cabia, ou seja, o interior das casas. Aos
homens era permitido o exterior, ou naquele espaço da rua. Nessa linha de entendimento
Saffioti (1987, p. 47) assegura que:
Calcula-se que o homem haja estabelecido seu domínio sobre a mulher há cerca de seis
milênios. São múltiplos os planos da existência cotidiana em que se observa
esta dominação. Um nível extremamente significativo deste fenômeno diz respeito ao
poder político. Em termos muito simples, isto quer dizer que os homens tomam as
grandes decisões que afetam a vida de um povo.
3
No mapa da Violência 2015, Homicídios de Mulheres no Brasil consta que: “Entre 2003 e 2013, o número de
vítimas do sexo feminino passou de 3.937 para 4.762, incremento de 21,0% na década. Essas 4.762 mortes em
2013, representam 13 homicídios femininos diários”. Disponível em: <https://goo.gl/fAOxrU>. Acesso em
setembro 2016.
4
Ver, entre outras RODRIGUES, Adriana. Quotidiano de mulheres que vivenciam a violência domésticas :
contribuições para um cuidar sensível na enfermagem e saúde. Tese de Doutorado Universidade Federal da
Bahia. 2015. Disponível em: <https://goo.gl/PHT7gy>. Acesso em agosto de 2016; MOTA, Rosana. História
Oral de adolescentes grávidas em situação de violência doméstica. Dissertação de Mestrado. Universidade
Federal da Bahia”, 2012. Disponível em: <https://goo.gl/rwPt1h>. Acesso em março de 2016; RAMOS, Maria
Eduarda. Histórias de “mulheres”: a violência vivenciada singularmente e a lei 11.340 como possível recurso
jurídico. Dissertação de Mestrado. Universidade Federal de Santa Catarina, 2010. Disponível em: < https://
goo.gl/2fXqeE>. Acesso em agosto de 2016 e CORTÊS, Gisele. Violência doméstica contra mulheres: Centro de
Referência da Mulher – Araraquara. Tese de Doutorado. Universidade Estadual Paulista, 2008. Disponível em:
<https://goo.gl/tV86f9>. Acesso em agosto de 2016.
as culturas da dominação masculina e da virilidade ainda influenciam comportamentos masculinos,
e, nessa perspectiva, para Saffioti (1987), em dias atuais, existem homens que se consideram
superiores às mulheres, pois mantêm ideias impregnadas de resquícios de uma ideologia patriarcal
e machista.
A admissibilidade da violência, para manter as mulheres submissas às vontades masculinas,
já foi uma situação aceitável em diversas sociedades, porém, atualmente, essa é uma atitude que
não é mais tolerada. Em relação a não admissibilidade de se agredir mulheres, cabe comentar que,
conforme Binicheski (2010), existem países, como, por exemplo, Afeganistão, Arábia Saudita, Irã,
Marrocos – todos de tradição islâmica –, nos quais são válidas as práticas violentas contra mulheres.
Elas têm que ser submissas a seus pais e maridos seguindo padrões de uma cultura de dominação
masculina que não aceita que elas desrespeitem as regras, podendo ser punidas fisicamente, o que
não é considerado violência, mesmo que leve à morte. Ainda segundo a mesma autora, na
Indonésia, Malásia, Paquistão, Índia, além de alguns países africanos, há práticas de mutilação
genital em jovens e mulheres adultas, sendo essa mais uma forma de violência contra mulheres,
ainda vigente.
Há décadas vem acontecendo a promoção e o reconhecimento dos direitos das mulheres,
principalmente devido ao engajamento dos movimentos feministas, visando uma real equidade de
gêneros. E tendo em vista o reconhecimento da vulnerabilidade que as cerca dentro do contexto
social, foram promulgadas leis para protegê-las e punir os agressores. Mas é forçoso reconhecer
que a violência contra a mulher ainda permanece.
A violência doméstica é aquela que ocorre dentro do lar, nas famílias, podendo envolver
todos os seus membros, como pais, filhos, avós, tios e primos. A pesquisa se propõe, no entanto,
mais especificamente, a investigar a violência de gênero, que também ocorre no espaço doméstico
e que, segundo Minayo (s/d, p. 36):
O conceito de gênero passou a ser desenvolvido pelas teóricas feministas a partir dos anos
1960, a fim de compreender e responder as desigualdades sociais entre os sexos biológicos. As
relações de gênero refletem o que internalizaram mulheres e homens e se pode argumentar que a
desigualdade está presente nos processos de socialização das meninas e dos meninos, refletindo-se
nos comportamentos de ambos, na própria infância, na adolescência e quando adultos.
Gênero, conforme o entendimento de Scott (1995, p. 13) organiza socialmente a diferença
sexual: “O que não significa que gênero reflita ou implemente diferenças físicas fixas e
naturais entre homens e mulheres, mas sim que gênero é o saber que estabelece
significados para as diferenças corporais”. A respeito desses significados (SCOTT, 1995,
p.13) esclarece que eles: “variam de acordo com as culturas, os grupos sociais e no tempo, já
que nada no corpo, incluídos aí os órgãos reprodutivos femininos, determina univocamente
como a divisão social será definida”. Levando essas diferenças de comportamentos
estabelecidos socialmente, se pode compreender a desigualdade que favorece homens e
que pode levá-los a ter atitudes violentas em relação ao sexo feminino. Cabe referir que,
em 2006, foi criada a Lei nº 11.340, conhecida popularmente como Lei Maria da Penha,51
visando proteger as mulheres e punir seus agressores. Em Pelotas, as ações penais referentes à
violência doméstica, desde a implantação da referida lei, eram julgadas na 3ª Vara Criminal, o
que ocorreu até março de 2015 quando passou a funcionar, na cidade, o Juizado da Violência
Doméstica e Familiar contra a Mulher que passou a ser o órgão julgador das ações relativas
à violência doméstica que já tramitavam na vara 3ª Vara Criminal e de todas as novas ações
penais propostas a partir da data de funcionamento do Juizado, sendo, portanto, órgão que julga,
exclusivamente, todos os crimes de violência doméstica da comarca, conforme prevê a norma
legal.
O estudo que está sendo realizado tem como enfoque homens que agridem mulheres ou
que foram acusados de terem cometido agressões e que estão sendo julgados no Juizado da
Violência Doméstica, na comarca de Pelotas. A intenção é conhecer a versão que eles
apresentam para seus atos violentos.
Como através das entrevistas foram produzidas fontes orais, foi utilizado o recurso
da História Oral, a qual, segundo Selau (s/d, p. 221) é uma metodologia: “capaz de contribuir
para esta atividade de análise das memórias por intermédio das entrevistas realizadas com
pessoas de um determinado grupo, envolvido com temas de interesse para a pesquisa em
desenvolvimento”. O autor (s/d, p. 226) também reflete que “[...] a História Oral contribui
para o desenvolvimento de uma série de técnicas e procedimentos metodológicos que auxiliam
a produção do conhecimento em História”.
Foi utilizada a História Oral Temática, tendo em vista que os agressores que
participaram das entrevistas são sujeitos capazes de fornecer narrativas em relação ao tema da
pesquisa, tendo por base um roteiro de questionamentos que foi previamente elaborado para
esse fim. E, nesse sentido, foram feitas aos réus perguntas não só a respeito das situações de
violência nas quais se envolveram, mas também sobre a infância que tiveram, a vida familiar, a
convivência com amigos, enfim, sobre valores aprendidos nos seus grupos sociais, com a
finalidade de tentar compreender o que eles pensam sobre como são, ou como deveriam ser, as
relações entre mulheres e homens.
5
A Lei nº 11.340/2006 chama-se Lei Maria da Penha em homenagem à biofarmacêutica, Maria da Penha
Maia Fernandes, que tornou-se símbolo contra a violência doméstica, por ter lutado durante 20 anos para ver a
condenação de seu marido/agressor.
Esse tipo de História Oral, segundo Meihy e Holanda (2011), é sempre de caráter social e
tem como foco no projeto ser uma metodologia que busca informações sobre um determinado tema
que deve ficar bem explícito e cujas perguntas durante a entrevista devem ser orientadas para seu
esclarecimento por parte do narrador.
Pode-se afirmar que a História Oral é uma metodologia multidisciplinar, visto que atende a
vários campos de pesquisas que a utilizam, como a História, o Direito, a Sociologia, a Psicologia,
entre outros.
Um estudo utiliza a História Oral pura quando sua única fonte de pesquisa são as entrevistas.
No presente caso, é utlizada a História Oral híbrida, uma vez que as fontes da pesquisa são as
entrevistas e os processos judiciais, a fim de se contrapor as narrativas dos entrevistados com o
conteúdo que for encontrado nos autos processuais, especialmente no que tange aos depoimentos
das vítimas e das testemunhas neles anexados.
Em relação ao recorte temporal, o estudo é relacionado à História do Tempo Presente, já
que são analisados processos contemporâneos à realização da pesquisa e, também, por conta da
convivência da pesquisadora, no mesmo período histórico, com os autores das falas produzidas nas
entrevistas. Delgado e Ferreira (2013) entendem que o tempo presente refere-se a um passado atual
ou em permanente processo de atualização, que está inscrito nas experiências analisadas e que inclui
diferentes dimensões, tais como, um processo histórico marcado por experiências ainda vivas, com
tensões e repercussões de curto prazo.
Para que a pesquisa pudesse ser implementada, no final de 2015 foi realizada uma conversa
com o juiz responsável pelo Juizado da Violência Doméstica, Dr. Christian da Conceição Karam, o
qual autorizou a realização de entrevistas com os réus que se dispuserem a participar do estudo e o
acesso aos seus respectivos processos judiciais. Essa conversa foi previamente agendada com a
assessora do juiz, Laura Leal. A autorização do juiz era necessária porque essas ações penais
tramitam em segredo de justiça (sigilo processual), razão pela qual, por uma questão ética, será
mantido o anonimato das pessoas entrevistadas, as quais são identificadas através de nomes
aleatórios.
A pesquisa é realizada com réus atendidos pela Defensoria Pública do Estado,6 uma
vez que as defensoras (são todas mulheres), após tomarem ciência do conteúdo da
pesquisa, concordaram que os clientes atendidos por elas, participassem, sendo necessária tal
concordância, pois poderiam se opor a que eles falassem sobre os crimes sobre os quais estão
sendo julgados. Já os réus não foram consultados previamente pelas defensoras, porque a
grande maioria deles somente teve contato com elas diretamente no fórum, no horário das
audiências. Por essa razão, os réus participantes só ficaram sabendo do estudo, exatamente
alguns
6
A Defensoria Pública do Estado do Rio Grande do Sul é instituição permanente e essencial à função
jurisdicional do Estado, incumbindo-lhe a orientação jurídica, a promoção dos direitos humanos e a defesa, em
todos os graus, judicial e extrajudicialmente, dos direitos individuais e coletivos, de forma integral e gratuita, aos
necessitados, sendo consideradas vulneráveis todas as pessoas que comprovarem renda familiar mensal, igual ou
inferior a três salários mínimos nacionais, considerando-se os ganhos totais brutos da sua entidade familiar.
Disponível em: <http://www.defensoria.rs.def.br/conteudo/18836/apresentacao>. Acesso em julho 2016.
alguns momentos antes das suas audiências, através da própria pesquisadora, que ao
abordá-los, explicou sobre a pesquisa e os convidou a participar voluntariamente da mesma,
o que foi por eles aceito de boa vontade, uma vez que poderiam ter se negado a participar.
Não se conversou com réus que tinham advogados particulares, tendo em vista que
seria necessário abordar estes, primeiramente, antes de cada audiência, a fim de explicar a
pesquisa e solicitar autorização para que seus clientes pudessem participar, o que se considera
que poderia ser um fator complicador uma vez que só naquele momento conheceriam o
projeto e, além disso, poderiam temer que seus clientes falassem algo comprometedor para
seus processos judiciais, mesmo sendo informados sobre o uso do anonimato no trabalho.
Por outro lado, muito embora o perfil socioeconômico dos participantes da pesquisa
seja específico em vista de serem pessoas atendidas pela Defensoria Pública do Estado, cabe
mencionar que a violência contra mulheres ocorre em todas as camadas sociais, ou seja, ela
ocorre de forma difusa na sociedade, não sendo um fenômeno restrito aos mais
vulneráveis. Por vulnerável se compreende uma pessoa com trabalho precário e com poucos
apoios relacionais, conforme Castel (1997).
O procedimento utilizado para a execução da pesquisa no que diz respeito aos réus
que foram entrevistados, consistiu em um pouco antes do horário da realização das
audiências, conversar com aqueles que esperavam no corredor do Fórum, explicando a
respeito do estudo e convidando-os a voluntariamente participar da mesma. Foram assistidas
as audiências dos réus que concordaram em participar e as narrativas foram construídas em
uma sala reservada do Fórum, tendo as mesmas sido gravadas, mediante o uso de dois
gravadores. Utilizou-se um roteiro básico de perguntas, como é próprio da História Oral
Temática. Todos os participantes assinaram um Termo de Cessão.
A receptividade dos réus foi expressiva, pois de 20 abordados, 18 foram
entrevistados, sendo que dois se negaram a participar alegando não ter tempo para ficar depois
de suas respectivas audiências. Em relação aos que se dispuseram a ser entrevistados, é
possível comentar que eles responderam todas as perguntas e pareciam estar à vontade
durante a conversa. A impressão é de que foi um momento em que refletiram sobre fatos de
suas vidas, como, por exemplo, quando falaram sobre as dificuldades da infância (alguns
choraram ou era visível que seguravam as lágrimas durante essa parte de suas narrativas),
ou sobre o que pensavam sobre relacionamentos, já que disseram nunca ter refletido muito
sobre esses assuntos anteriormente.
Esse estranhamento dos réus, ao serem inquiridos a respeito de fatos pessoais,
pode ser compreensível através de Pollak (1992, p. 213), que assim escreve:
O primeiro critério, ao meu ver, é reconhecer que contar a própria vida nada tem de natural.
Se você não estiver numa situação social de justificação ou de construção de você próprio,
como é o caso de um artista ou de um político, é estranho. Uma pessoa a quem nunca
ninguém perguntou quem ela é, de repente ser solicitada a relatar como foi a sua vida, tem
muita dificuldade para entender esse súbito interesse. Já é difícil fazê-la falar, quanto mais
falar de si.
O respeito pelo valor e pela importância de cada indivíduo é, portanto, uma das primeiras
lições de ética sobre a experiência com o trabalho de campo na História Oral. Não são
exclusivamente os santos, os heróis, os tiranos – ou as vítimas, os transgressores, os artistas
– que produzem impacto. Cada pessoa é um amálgama de grande número de histórias em
potencial, de possibilidades imaginadas e não escolhidas, de perigos iminentes,
contornados e por pouco evitados. Como historiadores orais, nossa arte de ouvir baseia-se
na consciência de que praticamente todas as pessoas com quem conversamos enriquecem
nossa experiência.
A fase da realização das entrevistas já foi concluída e se está na etapa de análise dos
processos judiciais. Mas, se pode comentar, a partir das entrevistas, que os réus têm idade
entre 20 a 49 anos. A maioria não tem ensino médio completo e a renda familiar varia entre um
e três salários mínimos. Os crimes, sob julgamento em relação aos réus entrevistados, variam
entre lesões corporais,7ameaças8 e crimes contra a liberdade pessoal.9
Alguns réus possuem antecedentes criminais, já tendo sido presos por furtos,
arrombamentos e tráfico de drogas. Outros foram presos por terem agredidos suas
companheiras, exclusivamente.
A maior parte dos réus relatou que aprendeu que o homem deve tomar a frente das
decisões de um casal, pois sempre foi assim. Acreditam que tal fato foi aprendido, tanto com
os pais, quanto na convivência em sociedade, o que demonstra a existência de um campo
social mais amplo, no qual são aprendidas e reforçadas essas visões.
Estas narrativas podem ser pensadas através de Bourdieu (2005), quando escreve
que a dominação e a opressão de homens sobre mulheres, resultam de uma visão legitimada
por práticas incorporadas e reproduzidas pela sociedade, que conferem aos homens a melhor
parte.
Tais práticas reproduzidas pela sociedade, que ao longo de muitos séculos
reforçaram a cultura de hegemonia masculina, perpassam as construções mentais de homens
de tal forma que alguns, ou muitos, ainda se identificam com as mesmas, durante a definição
de suas identidades, inclusive enquanto um elemento organizador de suas memórias, pois
segundo Pollak (1992, p. 204):
7 Os crimes sobre os quais estão sendo julgados, os participantes da pesquisa estão elencados no Código Penal
brasileiro (Decreto-Lei nº 2.848/1940, disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto-lei/
Del2848compilado.htm>. Acesso em agosto de 2016. O crime de lesão corporal é tipificado no artigo 129,
parágrafo nono do Código Penal: Art. 129. Ofender a integridade corporal ou a saúde de outrem: Pena -
detenção, de três meses a um ano. § 9o Se a lesão for praticada contra ascendente, descendente, irmão, cônjuge
ou companheiro, ou com quem conviva ou tenha convivido, ou, ainda, prevalecendo-se o agente das relações
domésticas, de coabitação ou de hospitalidade. Pena - detenção,..de..3..(três)..meses..a..3..(três)..anos..
(Redação..dada..pela..Lei..nº..11..340,..de..2006).
8 O crime de ameaça é tipificado no artigo 147 do Código Penal: Art. 147 - Ameaçar alguém, por palavra,
escrito ou gesto, ou qualquer outro meio simbólico, de causar-lhe mal injusto e grave. Pena - detenção, de um a
seis meses, ou multa. Combina-se o referido artigo, com o artigo 61, inciso II, letra f, do mesmo diploma legal:
Art. 61 - São circunstâncias que sempre agravam a pena, quando não constituem ou qualificam o crime: II - ter o
agente cometido o crime: f) com abuso de autoridade ou prevalecendo-se de relações domésticas, de coabitação
ou de hospitalidade, ou com violência contra a mulher na forma da lei específica; (Redação dada pela Lei
nº11.340, 2006).
9 O crime contra liberdade pessoal é tipificado no artigo 148, parágrafo primeiro, inciso I, do Código Penal: Art.
148 - Privarm alguém de sua liberdade, mediante sequestro ou cárcere privado: Pena - reclusão, de um a três
anos. § 1º - A pena é de reclusão, de dois a cinco anos: I – se a vítima é ascendente, descendente, cônjuge ou
companheiro do agente ou maior de 60 (sessenta) anos.
A fim de ilustrar a ideia acima abordada, o réu identificado como Pedro, quando
perguntado sobre como era a relação dos seus pais, relatou a existência de conflitos familiares,
desde a infância:
(Pedro – 42 anos) Tinha brigas por causa que o meu pai era alcoólatra, bebia, ele tinha
problema com bebida. [...] Então, eu sofri um pouquinho com isso [...]. Ele brigava,
empurrava, discutia muito com a mãe. [...] Ela deixava, não fazia queixa. [...] Eu via, eu
tinha na base de cinco a seis anos. [...] Tenho uma filha de nove anos [...] a mais
prejudicada era ela.
[...] a memória e a identidade pessoal devem sempre compor com a memória familiar,
que é uma memória forte, exercendo seu poder para além de laços aparentemente
distendidos. Solidariedades invisíveis e imaginação vinculam sempre um indivíduo a seus
ascendentes: a memória familiar é nossa "terra” [...] é uma herança da qual não podemos
nos desfazer e que faz com que, como diz Rimbaud, percorramos lugares desconhecidos
sobre os traços de nossos pais.
Podem ser apontados como elementos que fizeram parte dos contextos de violência
que foram produzidos pelos réus e que geraram as ações penais que tramitam contra eles,
depressão, ciúmes, traição, não aceitação da separação, uso de álcool ou drogas, bem como
o revide como forma de defesa por parte de alguns réus que alegam que são as mulheres
que batem, o que, inclusive, foi admitido por algumas delas nas audiências.
Pedro, já mencionado anteriormente, considera que fica agressivo porque tem
depressão. Tendo em vista esse quadro, afirma que fica nervoso e não consegue se controlar.
Em razão de sua alegada falta de controle emocional, esteve internado em uma clínica
psiquiátrica para tratar a depressão e toma remédios que o deixam mais calmo. Já foi preso
por ter agredido sua companheira e, atualmente, aguarda em liberdade o julgamento final da
ação penal que tramita contra ele. Nesse sentido relata que:
(Pedro) Eu fui preso já, eu cheguei a agredir ela. [...] Eu tô fazendo tratamento, já fiquei
internado numa clínica, tava com depressão e motivo de nervosismo [...]. Às vezes, a
esposa falava uma coisa que não me agradava, aí parece que eu me perdia assim, sistema
nervoso, ficava agitado, aí me perdia e aí discutia e discutia, eu dava um empurrão nela.
[...]. Cheguei a machucar ela, mais de uma vez. Foi mais empurrão, tapa, chinelada.
Renato também contou que tem depressão, bem como relatou que sua companheira
costumava agredi-lo, o que o tirava do sério já que se descontrola facilmente:
(Renato – 33 anos) Imagina, eu tô trabalhando três meses fora de casa, louco de saudade,
e mandando dinheiro, sempre mandando dinheiro. Aí eu chego em casa, um dia, dopado
do remédio que eu tomo (depressão) e ela tá no telefone com outro cara falando de mim;
aí eu não aceitei [...]. E ela começou a me agredir, com prato, tudo que é louça me jogou,
prato com comida dentro, caneca de vidro, tudo. [...]. No início, foi uma companheira
muito boa, no primeiro ano, antes de eu pegar caminhão. Depois que eu comecei a viajar,
ela começou a se sentir sozinha, liberta. E eu chegava de viagem e ela só queria brigar,
queria discutir e sempre me agrediu, me deu uma facada aqui na testa, tentou furar meu
olho, me deu uma na barriga.
Ciúme seria a motivação de Artur para agredir. Ele admitiu que tinha ciúme da ex-namorada
e que não aceitava a separação, razão pela qual a ameaçou de morte, o que resultou na ação penal
que tramita contra ele. O relato que segue é a respeito de outra situação de violência na qual ele
esteve envolvido, quando ainda era menor de idade, por imaginar ter sido traído e, com ciúme, teria
usado droga e bebido, a ponto de agredir fisicamente a ex-namorada:
(Artur – 29 anos) Quando eu era menor, eu tinha uma namorada. Ela me traiu e eu quebrei
ela a pau. Tive dois processos em cima de mim. Ah, tá louco, eu era doente por aquela
guria [...] Ela foi pra um baile pra fora, ela e uma amiga dela. Aí eu me chapei, fiquei
louco, fui pra lancheria comecei a tomar. [...] No momento que ela chegou, deu, quebrei a
pau, ali eu quebrei ela a pau, chutei, arroxei os dois olhos. Ali eu perdi a razão. Ah, eu
gostava tanto dela; não era pra ter feito aquilo comigo.
Através das narrativas dos agressores, se percebe que alguns ainda vivenciam o que
Bourdieu (2005) chama de dominação masculina, ou seja, em uma supremacia da vontade do
homem sobre a da mulher, no que diz respeito às escolhas feitas pelo casal. Eles acreditam que,
justamente, por serem homens, devem ter o controle da relação e usar da violência, em situações
que julgam pertinentes. Bourdieu (2005) também escreve que a violência que sempre atingiu as
mulheres foi legitimada pela sociedade, tendo os homens sido autorizados a dominá-las, de tal
forma que a maioria delas se submete, praticamente como se essa dominação fosse algo natural e,
às vezes, nem percebem que se trata de uma forma de violência que fica no campo do simbólico,
das ideias circulantes no meio social no qual convivem, mas que as limitam, oprimem, tratam de
forma desigual em direitos e oportunidades.
Vários réus conviveram com um pai violento e podem pensar que é natural reproduzir
relações que experimentaram. Nessa perspectiva, agressores admitiram que gostariam que as
mulheres continuassem sendo submissas, ao relembrarem que viveram dessa forma em suas
famílias de origem, bem como porque aprenderam que assim era antigamente, portanto, tinham
intenção que tudo continuasse da mesma forma.
De outro lado, um requisito da virilidade, que pode ser ou não posto em prática pelos
homens, é ser violento. Segundo Virgili (2013, p. 83), com a Revolução Francesa, os homens
adquiriram uma masculinidade ofensiva, onde ser homem era: “combater, adotar comportamentos
desafiadores e fazer a demonstração da sua força ao preço da violência”. Violência essa que se
estendia inclusive às mulheres, para evitar que seus comportamentos perturbassem a ordem social,
sendo, portanto, autorizado aos homens conterem-nas com o uso da força, para que respeitassem
suas reputações de marido e sua honra de macho.
Ainda segundo Virgili (2013, p. 84), “no início do século XX, o novo modelo masculino
que se impôs, passo a passo, foi aquele de uma relação contida e racional com a violência”.
Contudo, o autor adverte que essa mudança não fez desaparecer o hábito da violência masculina, e
que a percepção e a legitimidade desse fenômeno varia entre os indivíduos.
Segundo Bauberót (2013), quando o movimento feminista de emancipação da mulher, a
partir dos anos 1970, passou a questionar o ideal de homem viril e os modelos sociais que fundaram
a dominação masculina, as prerrogativas reservadas aos homens foram abaladas. Esse
questionamento por parte das mulheres foi levando a uma desintegração do controle masculino
sobre elas, o que Santos (2010, p. 63) chama de crise da masculinidade. E sobre o assunto ela
escreve que:
O modo natural de submissão feminina, que a fazia inclinar-se, abaixar-se, curvar-se e
submeter-se ao homem, cedeu lugar às mudanças de papéis que valorizam o campo
feminino. Os séculos XIX e XX protagonizaram uma mulher ativa, independente,
escolarizada e reivindicadora dos direitos civis e políticos, diferentemente daquela mulher
doce, passiva e frágil, construída em oposição e negação ao masculino.
Mas é nesse momento que se gesta uma nova subjetividade masculina, possibilitando uma
reflexão do homem sobre si mesmo, implicando, assim, em um processo de
estranhamento, pois o homem poucas vezes precisou fazer perguntas sobre si mesmo e o
seu papel na sociedade. O homem idealizado como ser viril, agressivo, aquele que precisa
conquistar várias mulheres e não importar-se com os sentimentos, é desmistificado.
Porém, apesar das mulheres terem adquirido novos espaços e conseguido sair do
confinamento da esfera privada, levando os homens a repensarem seus conceitos de virilidade,
ainda assim não aconteceu um rompimento com a tradicional estrutura da dominação masculina.
Os privilégios masculinos ainda existem e estão sendo repassados na contemporaneidade às
meninas e aos meninos e vivenciados por mulheres e por homens. A manutenção dessa situação
pode ter uma relação de causalidade com inúmeros casos de agressões às mulheres.
Por mais que tenham acontecido mudanças no papel masculino, ainda hoje meninos são
ensinados que devem ser fortes, corajosos, agressivos, comandantes, ou seja, que devem continuar
reproduzindo comportamentos com os quais se identificam, ou deveriam se identificar, no sentido
de que devem ser superiores e isso se dá tanto em relação a eles próprios, quanto em relação às
mulheres. E uma vez que há uma hierarquização na relação homem-mulher, sustentada até hoje por
uma parcela da própria sociedade, podem existir homens que agridem suas companheiras
justamente por acreditarem que, historicamente (até porque muitos foram ensinados assim), têm
esse direito, já que desde épocas remotas era normal agredir mulheres.
Em outra perspectiva, pode se pensar que como há homens (alguns réus) que gostariam que
seus privilégios fossem mantidos, a mudança ocorrida na vida das mulheres no sentido de terem
mais liberdade e decidir sobre suas vidas, pode ser um problema para eles, e, inclusive, ser também
uma das causas geradoras de casos de violência.
Desta forma, como há homens que assumem, expressamente, que ainda tentam vivenciar
em suas relações os pressupostos da hegemonia masculina, tal como foi construída socialmente há
séculos atrás, e que aprenderam essa visão no meio social, se pode concluir que, estrategicamente,
a fim de se tentar diminuir os casos de violência contra mulheres, deveria haver por parte do poder
público mais investimentos em educação, principalmente desde a infância, no sentido de se
descontruir os estereótipos de gênero ainda vigentes, visando, assim, a construção de novos
relacionamentos baseados na solidariedade.
Outro procedimento que pode ser usado para enfrentar a violência é fazer com que os réus
participem de programas de tratamento na tentativa de modificarem seus modos de pensar e de agir.
Na realidade, essa política de tratamento já existe e é prevista em lei, mas não é largamente utilizada,
permitindo que o problema da violência de gênero não seja encarado de frente como uma política
pública que deva ser implementada urgentemente.
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Claudia Musa Fay
Geneci Guimarães de Oliveira
Nenhuma pessoa do sexo feminino pode exercer qualquer função a bordo de aeronave em
voo a partir do momento em que seja constatada a sua gravidez, exceto quando exercendo
as prerrogativas de um CMA de 4ª classe e respeitados os requisitos da seção 67.213.
(RBAC 67, Parágrafo 67.13 (j)).
No item que trata dos requisitos obstétricos do Regulamento Brasileiro de Aviação Civil nº
67 (RBAC nº 67), a legislação da ANAC deixa claro que a aeronauta deve ser julgada não apta,
assim que for constatada a gravidez. Seu comunicado ao examinador ou à ANAC da ocorrência da
gravidez, como requer o parágrafo 67.15 (c) do RBAC 67, tem por objetivo providenciar a
suspensão do seu CMA. Enquanto isso não for feito, ela deve deixar imediatamente de cumprir as
atribuições de sua licença aeronáutica.
Bila Sorj, na pesquisa “Gênero família e trabalho no Brasil” (ARAÚJO; SCALON, 2005,
p. 80-88) aborda a temática – Percepções sobre esferas separadas de gênero – na qual enfoca a
participação da mulher no mercado de trabalho, considerando que o nível de educação e a geração
têm influência na participação feminina nas diferentes profissões em relação à igualdade de gênero.
Alessandro Portelli reforça a importância das fontes orais, em especial "a história da
memória, a história da imaginação, a história da subjetividade (tanto dos indivíduos como das
instituições)” (PORTELLI, 2004, p. 12). Para esta pesquisa se torna relevante os depoimentos das
aeronautas, principalmente, àquelas que resolvem se tornar mães e pilotar aviões, pois conforme o
Regulamento Brasileiro de Aviação Civil nº 67, nenhum profissional do sexo feminino pode exercer
qualquer função a bordo de aeronave em voo a partir do momento em que seja constatada a sua
gravidez.
Joan Scott destaca a conexão entre a história das mulheres e a política caracterizada por ser
ao mesmo tempo óbvia e complexa, e que na década de 1980 conseguiu seu próprio espaço, sendo
que “a emergência da história das mulheres como um campo de estudo envolve, nesta interpretação,
uma evolução do feminismo para as mulheres e daí para o gênero; ou seja, da política para a história
especializada e daí para a análise.” (SCOTT, 1992, p. 65).
Na pesquisa de Márcia Siqueira de Andrade encontramos que a discriminação inicia no
contexto familiar, evidenciando as dificuldades que as filhas têm em estudar e progredir
profissionalmente:
[...] essas dificuldades parecem ser mais acentuadas quando existe um ou mais irmãos do
sexo masculino. Nestes casos, a família investe mais no futuro do menino, instalando,
desde cedo, e no próprio seio familiar, a desigualdade de oportunidades. (ANDRADE,
2004, p. 24).
A maior parte dos pilotos homens acreditava que a mulher não tinha nada que fazer no
céu. Elas eram temperamentais, propensas ao pânico e não tinham força física para
emergência. Voar era perigoso e mulheres não tinham o direito de arriscar a sua vida e a
dos outros. Por isso, muitos homens eram relutantes em dar treinamentos às mulheres e
em vender aviões a elas. (WOHL, 1994, p. 279-280).
2 http://www.thefreelibrary.com/ABSA+Cargo+Airline+Celebrates+First+Female+WideBody+Aircraft+Captain
Claudine Melnik, conforme a reportagem do jornal Estado de São Paulo, (GUIMARÃES,
24 mar. 1996, p. 21) era graduada em desenho industrial. Iniciou como comissária de bordo na TAM
em 1992, e como refere: "entrei pela porta dos fundos". Com o brevê tirado em 1995, foi admitida
para testes e cursos neste mesmo ano, realizando ainda seu primeiro voo. Claudine fala sobre a
carreira: "por mais bonita que possa ser, é também bastante sacrificada. Acabam os amigos, a
família, os aniversários, e datas como Natal, Ano Novo, Carnaval...". Passados cinco anos tornou-
se copiloto do maior equipamento da frota brasileira a incluir uma mulher como tripulante técnico,
o Airbus A330-200.
Na matéria jornalística publicada pelo Correio Braziliense, 3 em 26 de julho de
2001, intitulada "Mulheres no Céu", no preâmbulo da redação constam frases de impacto
sobre as mulheres que optam pela aviação, tais como: "Elas não têm medo de altura. Vivem a
maior parte do tempo no ar e não se importam de abrir mão da rotina", e "elas vivem no ar,
mas têm os pés no chão. Determinadas e corajosas, elas passaram a ocupar, há pouco mais
de 20 anos, assentos garantidamente masculinos".
A notícia faz referência às mulheres comandantes ou copilotos, responsáveis pela condução
dos aviões comerciais de grandes companhias aéreas como Varig, Vasp, TAM, Gol e Rio Sul. Elas
deixam de lado a rotina diária em prol de uma vida com muitas viagens, sem horário definido, e
poucas conseguem frequentar uma faculdade ou manter relacionamentos estáveis.
O jornal traz uma reportagem com o depoimento da copiloto Cristina Vieira Marques, cuja
carreira começou na aviação executiva, voando em jatos de pequeno porte. Em agosto de 1998, foi
para a Vasp trabalhar no Boeing 737-300, onde fez a ponte aérea e, dois anos, depois ingressou na
GOL. Cristina declara que a escolha profissional provocou alterações no seu dia-a-dia: "Namoro,
nem pensar, resolvi abrir mão disso por enquanto, mas penso em casar e ter filhos mais tarde.”
Na primeira década do século XXI nos deparamos com pesquisas que trazem dados que, de
certa forma, aliviam a pressão sobre estas mulheres que deixam a maternidade e até mesmo o
casamento para mais tarde.
A revista Veja (JIMENEZ, 29 maio 2013, p. 115) publicou uma reportagem sobre o recente
Censo do IBGE, no qual revela que o percentual das mulheres que estão para cruzar a fronteira dos
50 anos, ou seja, no fim do ciclo reprodutivo, que chegam neste período sem filhos teve um aumento
de 20% em relação à última década.
Percebe-se que na esteira destes acontecimentos tem aumentado de forma significativa o
ingresso de mulheres, também na aviação, como revela a reportagem: “a libertação da mulher, em
resumo, significou a capacidade de fazer escolhas – até mesmo sobre ter ou não ter filhos.”
As mudanças, embora lentas, estão ocorrendo e os dados da Agência Nacional de Aviação
Civil (Anac) mostram o crescimento do número de mulheres que procuram o mercado aéreo. Em
2009, foram expedidas 44 licenças para pilotos do sexo feminino: 35 conseguiram licença de piloto
Ele afirmou que faria uma reclamação para companhia, para informar quando fosse uma
mulher comandante, para ele ter a opção de não embarcar, contou a piloto Betânia Porto
Pinto, com quase 20 anos de carreira e mais de nove mil horas de voo. Ela explicou que
ordenou a retirada do passageiro da aeronave “Se acontece qualquer coisa, uma rajada, se
acontece uma turbulência, que ele sinta desconfortável e entra em pânico, ele pode
colocar um avião com 100 pessoas inteiro em pânico dentro da aeronave.4
Ao longo das últimas décadas a História tem revelado que as mudanças ocorridas
na condição feminina foram muito mais significativas que aquelas dos séculos anteriores.
Os avanços alcançados começam a retirar do silêncio as vozes que por milênios a sociedade
calou. Todavia, elas se insurgem, ainda que muito lentamente, contra o obscurantismo que
lhes havia sido imposto e a "história das mulheres" começa a ser escrita.
4..
Globo.com<http://fantastico.globo.com/Jornalismo/FANT/0,,MUL1680595-15605,00.MULHER+PILOTO+
DIZ+QUE+EXPULSOUU+PASSAGEIRO+DE+VOO+POR+SEGURANCA.html >
Proliferam as discussões a respeito da emancipação feminina, das manifestações
reivindicando sua inserção no espaço público, numa nova relação mulher-trabalho e, que vão
delineando os diferentes olhares sobre as questões de gênero. Assim, as histórias de vida trazem
à tona o quanto as mulheres tiveram e têm que lutar para legitimar seus espaços em todo o mundo.
A ideia que coloca a mulher no espaço privado, e sob a sua “custódia” a família e o lar, é uma
prática de longa duração que contribui para a perpetuação da desigualdade e impede o processo
de desenvolvimento das mudanças de comportamento.
A formação de piloto exige grandes investimentos que começam pelos elevados custos
da preparação teórica, que nos dias de hoje passa pela universidade ou outros centros de formação
devidamente autorizados. Nas aulas práticas, além dos simuladores é exigido um número mínimo
de horas de voo que são bastante dispendiosas. O fato de não ser "bem visto" como uma profissão
feminina; meninas não receberem incentivo familiar e, tampouco serem estimuladas a lidar com
as máquinas e com a tecnologia avançada que somados aos componentes de natureza econômica,
torna ainda mais difícil o acesso das mulheres à profissão de piloto.
O preconceito e os obstáculos sociais e culturais que geram barreiras à entrada da mulher
nas relações concretas de poder impedem de forma intensiva que elas desenvolvam suas
potencialidades plenas, e que se construam efetivamente novas relações mais igualitárias entre
os sexos, favorecendo o desenvolvimento de estruturas sociais equilibradas, ao incorporar de
forma equânime as diferenças e a diversidade de gênero, cultural, social e econômica existentes
em todas as sociedades.
No período compreendido entre a Segunda Guerra Mundial e a década de 1970, quando
as empresas passam a contratar pilotos como profissionais, percebe-se uma ausência das
mulheres neste mercado de trabalho. No Brasil o seu ingresso ocorre somente no final da década
de 1980.
Observa-se ainda que as novas gerações estão conseguindo ingressar e ascender com menos
restrições nas empresas aéreas. Entretanto, cabe questionar até que ponto estas políticas adotadas
no apoio das novas “entrantes”, contribuem para a imagem das empresas ou se é realmente para
uma eficaz inserção feminina nas profissões tecnológicas. Outros fatores, não menos relevantes,
são as mudanças de comportamento em relação à maternidade, ao casamento. Percebe-se que,
atualmente, algumas mulheres estão constituindo família e filhos e adaptam as escalas de trabalho.
No entanto, a pouca representatividade das mulheres como pilotos de aeronaves nos altos cargos
das empresas aéreas, que ainda são destinados aos homens, põe à mostra barreiras invisíveis que
elas necessitam ultrapassar. O “teto de vidro” não se rompeu totalmente.
ANDRADE, Márcia Siqueira de. Mulheres do século XX: a aprendizagem do feminino. São
Paulo: Memnon Edições Científicas, 2004.
ARAÚJO, Clara; SCALON, Celi (Org.). Gênero, família e trabalho no Brasil. Rio de Janeiro:
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BOURDIEU, Pierre. A dominação masculina. Tradução de: Maria Helena Kühner. Rio de
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BURKE, Peter (Org.). A escrita da história: novas perspectivas. Tradução de: Magda Lopes. São
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p.114-122, 29 de maio de 2013.
1
.Considerar..também:..Diegues..(2001)..e..Calegare;..HiguchI;..Bruno..(2014).
2
.BRANDÂO, Carlos Rodrigues. A comunidade tradicional. In: Cerrado, Gerais, Sertão: comunidades
tradicionais dos sertões roseanos. Montes Claros: 2010 (Relatório de Pesquisa). Presente também em:
RODRIGUES, Leila Ribeiro; GUIMARÃES, Felipe Flávio Fonseca; COSTA, João Batista de Almeida.
Comunidades tradicionais: sujeitos de direito entre o desenvolvimento e a sustentabilidade. Anais do I Circuito
de debates. CODE; IPEIA, 2011. .
3 Relativo a uma região já profundamente interpretada por Guimarães Rosa em suas obras.
reconhecimento de si como uma comunidade presente, herdeira de nomes, tradições,
lugares socializados, direitos de posse e proveito de um território ancestral; e) a
atualização pela memória da historicidade de lutas e de resistências no passado e no
presente para permanecerem no território ancestral; f) a experiência da vida em um
território cercado e/ou ameaçado; g) estratégias atuais de acesso a direitos, a mercados
de bens menos periféricos e à conservação ambiental. (BRANDÃO, 2010, p. 37;
RODRIGUES; GUIMARÃES; COSTA, 2011).
5
Comissão Nacional de Desenvolvimento Sustentável das Comunidades Tradicionais (Decreto nº 10408
de 27/12/2004)
sociais da América Latina. Entre os elementos congruentes6 a essa proposição são as
declarações de direitos internacionais, especialmente a declaração dos direitos humanos, a
declaração dos direitos linguísticos, a declaração da diversidade cultural,7 a declaração de
Tlaxcala8 (1982), a Convenção da Proteção do Patrimônio Mundial, Cultural e Natural9 e os
dispositivos 168 da OIT (Organização Internacional do Trabalho).
No Brasil,10 a luta organizada ganhou forma e contornos mais claros no ínterim
2004-2005, tempo em que aconteceu o I Encontro Nacional de Comunidades Tradicionais,
quando foram estabelecidas metas de ação, entre elas as de que a Comissão Nacional de
Povos e Comunidades Tradicionais, constituída de Sociedade Civil e Estado, estabeleceu-se a
política pública de “Povos e Comunidades Tradicionais”, o que ocorreu em 2006; ano em que
foi publicada a Política do Plano Nacional de Povos e Comunidades Tradicionais. A Política
Nacional de Povos e Comunidades Tradicionais foi instituída por meio do Decreto 6.040, em
07 de fevereiro de 2007. A partir de 2013 iniciou-se um processo visando ampliar a
abrangência e as competências, gerando o II Encontro Nacional de Povos e Comunidades
Tradicionais em 2014, que criou o GT de Transição, donde se materializou a proposta de
criação do Conselho Nacional de Povos e Comunidades Tradicionais, que foi criado
oficialmente em 2016.
Portanto, a definição oficial, se estabeleceu a partir do Decreto 6040/2007.
Nesse documento estão expressas três dimensões constitutivas, a saber:
Povos e Comunidades Tradicionais – grupos culturalmente diferenciados e que se
reconhecem como tais, que possuem formas próprias de organização social, que
ocupam e usam territórios e recursos naturais como condição para sua reprodução
cultural, social, religiosa, ancestral e econômica, utilizando conhecimentos, inovações
e práticas gerados e transmitidos pela tradição.
Territórios Tradicionais – os espaços necessários à reprodução cultural, social e
econômica dos povos e comunidades tradicionais, sejam eles utilizados de forma
6
Esses dados foram em parte narrados ao autor pelos membros da CNPCT, e em parte vivenciado pelo
mesmo no processo de participação da luta de PCTs.
7 Convenção para a Salvaguarda do Patrimônio Cultural Imaterial, promulgada pelo Decreto nº 5.753, de
12/4/2006. 67 Declaração de Tlaxcala (1982), produzida no Simpósio Norte-Americanosobre a Conservação do
Patrimônio Edificado dedicado ao tema da “Revitalização dos Pequenos Povoados”, organizado pelo Comité
Nacional Mexicano do ICOMOS, reunido em La Trinidad, Tlaxcala, entre 25 e 28 de outubro de 1982.
8 Decreto nº 4.339/2002, que institui a Política Nacional da Biodiversidade, baseada em princípios que
prevêem a compatibilização de direitos, como afirmado no artigo 2º, XII: 'a manutenção da diversidade cultural
nacional é importante para a pluralidade de valores na sociedade em relação à biodiversidade, sendo que os
povos indígenas, os quilombolas e as outras comunidades locais desempenham um papel importante na
conservação e na utilização sustentável da biodiversidade brasileira'. .
9 O governo federal havia criado, em 1992, o Conselho Nacional de Populações Tradicionais (CNPT), no
âmbito do IBAMA. Para saber mais, ver: Portaria/IBAMA. N. 22-N, de 10 de fevereiro de 1992 que cria o
Centro Nacional de Desenvolvimento Sustentado das Populações Tradicionais – CNPT.
10 Em julho de 2000, por meio da Lei 9.985 que cria o Sistema Nacional de Unidades de Conservação, são
reconhecidos os direitos das comunidades tradicionais em suas interfaces com as unidades de conservação.
permanente ou temporária, observado, no que diz respeito aos povos indígenas e
quilombolas, respectivamente, o que dispõem os arts. 231 da Constituição e 68 do Ato
das Disposições Constitucionais Transitórias e demais regulamentações.
Desenvolvimento Sustentável – o uso equilibrado dos recursos naturais, voltado para
a melhoria da qualidade de vida da presente geração, garantindo às mesmas
possibilidades para as gerações futuras. (Decreto 6040/2007. Inciso I do Art. 3).
11
.PORTARIA Nº 258, de 12 de julho de 2017. Designa a composição do Conselho Nacional dos Povos e
Comunidades Tradicionais - CNPCT os membros de Governo e os membros eleitos da Sociedade Civil.
Disponível em: <https://goo.gl/B1tWJX>.
12
No âmbito da ABHO, inauguramos a discussão através do GT 24 - Povos, Comunidades Tradicionais e
Grupos Populares: oralidades, memórias e imagens, 2016. Coordenado por Prof. Dr. Carmo Thum e Prof. Dr.
José Walter Nunes.
Entre conceitos abordados, espaços investigados e modos de registro da oralidade,
recortamos passagens dos diferentes textos apresentados, que evidenciam um arcabouço temático
sobre o tema de Povos e Comunidades Tradicionais:
As fontes orais da pesquisa se constituíram de moradores que migraram do quilombo.
Alunos, professores e outros sujeitos da comunidade.
Privilegiar aspectos da experiência coletiva que leva ao saber compartilhado, passando
de geração em geração.
Como a memória é reconstruída de modo próprio.
Com moradores de diferentes lugares.
Saberes e práticas discursivas e identidade linguística.
Narrativas orais de sujeitos membros de povos e comunidades tradicionais do Pampa.
História Oral; memória da Casa-Escola; assentamento e educação.
A memória como uma ferramenta potente na produção da história.
A oralidade como modo de transmissão dos conhecimentos e das experiências.
Referenciais definidos pelos sujeitos da cultura local.
Imagens da paisagem cultural e geográfica do espaço.
Respeito a sua afirmação enquanto identidade própria e diferenciada.
Sociedades que recorrem à oralidade para a transmissão às gerações vindouras de
aspectos culturais ligados à tradição, à crenças, o mitos e a sua historicidade.
A permanência na terra, territórios, territorialidades, memórias, oralidades, ofícios e
modos de vida.
I Encontro de Povos e Comunidades Tradicionais do Pampa.
Como instrumento de defesa dos direitos de identidades socioculturais.
Registro dos modos de ser de benzedeiras e benzedores, comunidades quilombolas,
pecuaristas familiares, pescadoras e pescadores artesanais, povo cigano, povos indígenas, povo
pomerano, povo de terreiro, ribeirinhos, pantaneiros.
Sociodiversidades presente no bioma Pampa – Povos Amazônicos.
A fala das crianças é resultado da sua relação com a comunidade.
Narram os acontecimentos dando origem à história da Casa-Escola.
Guardadoras e reveladoras do silêncio no construtor das memórias e da história.
Nos conceitos teóricos da Pedagogia da Terra, espaços escolares.
Os Conflitos e as Lutas.
Entre os temas tratados, a questão dos “Modos de Viver e de Narrar” são preponderantes,
estando presentes na maioria dos trabalhos, assim como a discussão da História e da Memória.
A temática da oralidade perpassa todos os trabalhos e se concretiza nas fontes. A narrativa
dos povos são as fontes primárias. Mas, para além disso, é preciso compreender que a oralidade é
mais que uma fonte. Ela é instrumento de transmissão de saberes dos povos tradicionais. Nesse
sentido, a oralidade é elemento constitutivo do modo de ser. As narrativas advindas a partir dos
sujeitos das comunidades apresentam um conteúdo que fala do mundo da vida, das formas de viver,
das lutas por visibilidade, defesa de direitos e emancipação cultural.
O acervo de fontes orais é formado por narrativas, memórias e tradições. O conjunto dos
dados apresenta discussões acerca da vida comunitária, da forma de ser na infância, das histórias
de vida, das formas de resistência cultural, de patrimônio cultural: material e imaterial, oralidade,
infância, tradições, narrativas, memórias e vestígios.
Estão presentes, também, a dimensão educativa, as experiências onde o mundo escolar se
debruça sobre a cultura local e a partir dessa relação de pesquisa-conhecimento-
autoreconhecimento se problematiza o currículo da Educação Básica e se propõe ao processo
formativo uma relação profunda com a realidade das culturas locais. Nesse movimento, a memória
se coloca como instrumento de reinvenção de identidades e territorialidades; uma reescritura da
história a partir da ação educativa.
Outra vertente temática presente no conjunto dos textos, é a narrativa do movimento de luta
por reconhecimento da identidade, onde estão os aspectos que atentam para o processo de
visibilidade e de defesa de direitos, na forma de luta organizada e na defesa do direito de existir e
permanecer. Nesse sentido, território e territorialidades e luta política se entrelaçam a um processo
de narrativa do mundo da vida, produzida com e pelos sujeitos membros das comunidades.
O campo da História Oral tem uma relevância central na temática de Povos e Comunidades
Tradicionais. Para compreender a história desses grupos, a metodologia da História Oral se coloca
como um caminho necessário. A oralidade é o instrumento de narrativa da história dos sujeitos.
Narrativa, memória e tradição são temas entrelaçados e configuram um campo.
A academia encontra-se desafiada a compreender esse tema emergente. A História Oral é
uma metodologia que se coloca como potente para essa tarefa. No âmbito da ABHO, a iniciativa
de propor um Simpósio Temático (24), já em 2016, no Encontro Nacional, visou colocar no cenário
da pesquisa histórica as questões que emergem de pesquisas com esses grupos.
A temática dialoga com os clássicos da História e interpela nossas metodologias e modos
de compreensão. Tensiona o mundo acadêmico a compreender em maior profundidade o tema,
tarefa que em 2017 o ST 03, em parte, desenvolveu.
CALEGARE, Marcelo Gustavo Aguilar; HIGUCHI, Maria Inês Gasparetto; BRUNO, Ana Carla
dos Santos. Povos e Comunidades Tradicionais: das áreas protegidas à visibilidade política de
grupos sociais portadores de identidade étnica e coletiva. In. Ambiente & Sociedade n São Paulo
v. XVII, n. 3 n p. 115-134 n jul.set. 2014. Disponível em:
<http://www.scielo.br/pdf/asoc/v17n3/v17n3a08.pdf.> Acesso em: 20 de março de 2017.
OSOWSKI, Cecília Irene. Cultura do Silêncio. In: STRECK, Danilo R.; REDIN, Euclides;
ZITKOSKI, Jaime José (Org.) Dicionário Paulo Freire. Belo Horizonte: Autêntica, 2008.
ROCHA, Marcelo Cardona; FAVILLA, Kátia Cristina. Doze anos de inserção dos Povos e
Comunidades Tradicionais no cenário político do Estado brasileiro e na garantia de direitos
individuais e coletivos. In: CERQUEIRA, Edmilton; SOUZA, Luiz Fernando M. de; MELO,
Patrícia; SANTOS, Quêner C. dos; PIRES, Tauá Lourenço (Org.). Os povos e comunidades
tradicionais e o ano internacional da agricultura familiar. Brasília: Ministério do
Desenvolvimento Agrário, 2015.
RODRIGUES, Leila Ribeiro; GUIMARÃES, Felipe Flávio Fonseca; COSTA, João Batista de
Almeida. Comunidades tradicionais: sujeitos de direito entre o desenvolvimento e a
sustentabilidade. Anais do I Circuito de debates. CODE 2011, IPEIA, 2011.
STOER Stephen R.; MAGALHÃES António M.; RODRIGUES, David. Os lugares da exclusão
social: um dispositivo de diferenciação pedagógica. São Paulo: Cortez, 2004.
SHIRAISHI NETO, Joaquim (Org.). Direito dos povos e das comunidades tradicionais no Brasil:
declarações, convenções internacionais e dispositivos jurídicos definidores de uma política
nacional. Manaus: UEA, 2007.
THUM, Carmo. Educação, História e Memória: silêncios e reinvenções pomeranas na Serra dos
Tapes. Programa de Pós-Graduação em Educação, Unisinos, São Leopoldo, 2009. Tese de
Doutorado.
Isto posto, se percebe que os direitos das comunidades remanescentes quilombolas estão
associados aos direitos de terra e da sua preservação cultural, tendo o Poder
Público responsabilidades legais para as comunidades que conseguem a titulação. 1 Os
aportes legais garantidos pela Constituição Brasileira só se efetivam após a titulação dos
territórios quilombolas.
1 O Decreto 4.887, de 2003, atribuiu ao Incra a responsabilidade de identificar, reconhecer, delimitar, demarcar
e titular as terras ocupadas pelos Kalungas. Assim, o órgão passou a ser o responsável por retirar ocupantes não-
quilombolas da área. Diante das contradições sobre esta construção legalmente impossível da PCH, na área, que é
de interesse coletivo e inalienável, ele pediu, após o conflito anunciado, a suspensão do processo de
licenciamento da hidrelétrica, alegando a existência do processo de regularização do território quilombola
Kalunga. (ALMEIDA, 2010).
No entanto, menos de 1% das comunidades remanescentes quilombolas do Brasil é titulada, das
quais, segundo atualização de fevereiro de 2015 realizada pela Fundação Palmares, 326
comunidades estão com processos abertos para a titulação das terras e aguardam a emissão da
certidão.
Com a obrigatoriedade da lei 10639/2003, acerca do ensino nas escolas da História e Cultura
Africana e Afrodescendente, assuntos como as comunidades quilombolas, suas definições,
singularidades e particularidades iniciam um processo de reconhecimento na formação cultural do
país, levantando suas questões econômicas, sociais, culturais, entre outras.
A família, nos séculos XVIII e XIX, na Europa, passa por profundas transformações, e os
filhos recebem atenção cada vez maior, em virtude da preocupação de prepará-los para a
nova sociedade. É o período de consolidação da sociedade capitalista, quando os debates
e a implantação de medidas relacionadas com a formação do cidadão e com a formação
de mão-de-obra promovem algumas dessas mudanças. Este processo envolveu algumas
áreas diretamente relacionadas com a infância, tais como: o combate à mortalidade
infantil, através de ações da assistência social e da saúde em conjunto com a pediatria e a
puericultura; a formação moral, trabalhada intensamente nas escolas; e o controle direto
de crianças e adolescentes em conflito com a lei, os direitos da chamada menoridade.
(MORELLI, 2011).
E entendendo que,
[...] as ações de qualquer membro tornam-se relevantes apenas na medida em que são
interações com o próprio ego ou seu intermédio. O critério de associatividade não inclui a
interação com outros membros do quase-grupo em geral. As interações nessa categoria de
quase-grupos ocorrem em um conjunto-de-ação, ou, de preferência, em uma série de
conjuntos-de-ação. (MAYER, 1987, p. 127).
As crianças estão em todos os ambientes da comunidade, dentro das casas, nas reuniões de
comunidade, reuniões da associação, nos centros de turismo, na escola, entre outros. No entanto, a
sua presença é em alguns casos ignorada ou não percebida, e decisões são tomadas sem a
consulta de suas opiniões. O seu ambiente ainda é o escolar; fora dele a voz não é percebida.2
A compreensão desse novo espaço de pesquisa, tendo como atores principais as
crianças, sua voz e seus olhares, é relevante pois possibilita maior interpretação do tema
na fonte e no contexto em que está inserido. No Brasil, temos um longo caminho a percorrer,
no que se refere às pesquisas sobre as crianças, suas experiências e culturas. O campo da
sociologia da infância tem nos ensinado que as crianças são atores sociais que interagem com
as pessoas, com as instituições. Elas reagem frente aos adultos e desenvolvem estratégias de
luta para participar no mundo social. Mesmo assim, ainda necessitamos construir
referenciais de análise que nos permitam conhecer estes atores sociais que nos colocam
inúmeros desafios, seja na vida privada ou na vida pública.
ALMEIDA, Maria Geralda de; CHAVEIRO, Eguimar Felício. Territórios de quilombolas: pelos
vãos e serras dos Kalunga de Goiás - patrimônio e biodiversidade de sujeitos do Cerrado. Ateliê
Geográfico–Edição especial. Goiânia/GO v. 4, n. 1, fev/2010, p.36-63.
ARIÉS, Philippe. História Social da criança e da família. Rio de Janeiro: Zahar, 1981.
BARTH, F. Grupos étnicos e suas fronteiras. In: POUTIGNAT, Ph.; STREFF- FENART, J.
Teorias da etnicidade. São Paulo: Ed. da UNESP, 1998.
2
Os relatos que já foram captados para a pesquisa de doutorado estão em fase de processamento, e necessita
de aprovação da comunidade para serem publicados.
D’ALÉSSIO. Marcia Mansor. Memória: leituras de M. Halbwachs e P. Nora. Revista Brasileira
de História, v. 13, n. 25-26, São Paulo, 1992.
DEL PRIORE, Mary (Org.). História das crianças no Brasil. São Paulo: Contexto, 1999.
FREITAS, Marcos Cezar (Org.). História Social da infância no Brasil. São Paulo: Cortez, 1997.
GARRIDO. Loan del Alcazar i. As fontes orais na pesquisa histórica: uma contribuição ao debate.
Revista Brasileira de História, São Paulo, v. 13, n. 25/26, set192-ago/93, p. 33.
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crianças? In: CARVALHO, Carlos Henrique; MOURA, Esmeralda Blanco B. de; ARAUJO, José
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perspectiva dos estudos culturais. 11 ed. Petrópolis, RJ: Vozes, p. 7-72, 2012.
1
1
...O estudo insere-se no Projeto de Pesquisa “Identidades étnicas em espaços territoriais da Bacia
Hidrográfica do Taquari-Antas/RS: história, movimentações e desdobramentos socioambientais” e no Projeto de
Extensão “História e Cultura Kaingang em territórios da Bacia Hidrográfica do Taquari-Antas” e conta com
auxílio financeiro da Universidade do Vale do Taquari - UNIVATES.
* Universidade do Vale do Taquari – Univates, Doutor em História. Professor do PPG em Ambiente e
Desenvolvimento.
** Universidade do Vale do Taquari – Univates, Graduação em História, Mestrando no PPG em Ambiente
e Desenvolvimento, Bolsa PROSUP-CAPES.
em virtude da duplicação da rodovia BR 386, atingidas direta ou indiretamente pelas obras.
A Pó Mág surgiu então, em uma área de terra nos arredores do município de Tabaí, onde se
fixaram Kaingang oriundos da Terra Indígena Foxá, localizada na cidade de Lajeado, sendo a
primeira um desdobramento desta.
O objetivo da pesquisa é identificar as demandas desta comunidade em meio ao
processo de reterritorialidade Kaingang. A base metodológica é qualitativa com análise de
conteúdo e o uso dos procedimentos ligados à História Oral, além da revisão bibliográfica,
pesquisa documental e pesquisa de campo. A História Oral é relevante para a execução do
trabalho, uma vez que os Kaingang somente passam a fazer uso da escrita após o
início do processo de conquista empreendido a partir do século XV.
Conforme aponta Paes (2003), em um estudo realizado junto aos indígenas Terena de
Mato Grosso do Sul, o uso da História Oral entre as populações indígenas pode
contribuir para revitalização da cultura, da autoestima e das tradições próprias dessas
populações. Desse modo, a utilização desta metodologia vem ao encontro da transmissão
das tradições entre as populações indígenas realizadas a partir da oralidade.
A utilização de entrevistas fornece a possibilidade de uma reconstituição histórica a
partir do ponto de vista daqueles sujeitos que no caso não são as fontes oficiais, ou seja, os
indígenas relegados a condições de marginalidade social e que em demasia sofrem com
o processo de invisibilização. As entrevistas foram pensadas de maneira
semiestruturada e realizadas considerando a dinâmica da comunidade Kaingang da Terra
Indígena Pó Mág, localizada em contexto urbano na região do Vale do Taquari. Foram
entrevistados, dessa maneira, liderança Kaingang e agentes públicos ligados às áreas de
saúde e à educação, totalizando quatro entrevistas. As entrevistas foram realizadas tendo o
aceite da comunidade Kaingang, expresso por meio do Termo de Anuência Prévia (TAP) da
liderança indígena e do Termo de Consentimento Livre e Esclarecido (TCLE) dos
entrevistados.
O estudo também contou com a revisão bibliográfica e o levantamento documental
junto ao Ministério Público Federal de procedimentos que abordem questões de conflito
entre os indígenas e não indígenas no município de Tabaí. Também realizou-se um
levantamento etnográfico a partir da presença na terra indígena, documentada através da
elaboração de diários de campo e da realização de registros fotográficos. Os dados obtidos na
pesquisa são analisados com base teórica de autores como Clastres (1979), bem como Paes
(2003), Vansina (2010) e Lappe e Laroque (2013).
O nome Pó Mág tem origem na língua Kaingang e significa “Pedra Grande”, uma referência
às inúmeras formações rochosas presentes no local. A Pó Mág fora inicialmente pensada como um
acampamento provisório, para abastecer a Terra Indígena Foxá com matérias primas para a
produção de artesanato. No entanto, acabou por se transformar em um acampamento fixo (Diário
de Campo, 08/01/2014). A sustentabilidade da comunidade também depende da venda do
artesanato, realizado nos municípios próximos de Lajeado e Montenegro.
A Terra Indígena Pó Mág, localizada em Tabaí, vem enfrentando desde sua criação,
resistência por parte da sociedade envolvente, no que diz respeito às suas demandas por acesso à
educação e também à saúde, sofrendo, assim, um descaso e um desrespeito em relação aos seus
direitos constitucionais. A Constituição Federal de 1988 representa um marco, pois é um grande
avanço em relação aos direitos indígenas. Conforme Matte (2009) é a primeira vez no Brasil que se
tem uma regulamentação jurídica nas relações entre o Estado e as populações indígenas
contemporâneas.
Não há abastecimento de água na Terra Indígena Pó Mág, de modo que os antigos
proprietários da área se utilizavam de um poço artesiano para obtê-la. No entanto, no momento da
instalação da comunidade Kaingang no local, este poço já estava inutilizado, sem os instrumentos
mecânicos necessários para a obtenção da água. A liderança da época, o cacique Francisco Rockã,
informa ter tentado resolver a questão a partir da obtenção de uma nova bomba d’água, porém sem
auxílio dos órgãos competentes como a Secretária de Saúde Indígena (SESAI), não obteve sucesso
(Diário de Campo, 11/09/2014).
Em relação à educação, desde o estabelecimento da comunidade em fins do ano de 2013,
que o então cacique Francisco Rockã vinha buscando matricular as crianças indígenas no sistema
escolar local gerenciado pela Secretária de Educação do município, porém não obteve sucesso
(Diário de Campo, 08/01/2014). As sucessivas negativas da matrícula escolar das crianças levaram
a comunidade Kaingang a acionar o Ministério Público Federal (MPF) por meio do Termo de
Declarações PR-RS – 00014694/2014, que se encontra presente no Procedimento Preparatório nº
1.29.000.002074/2014-11 (BRASIL, 2014).
Nesse mesmo documento, a comunidade solicita a contratação de um professor indígena,
no sentido de resolver a questão sem maiores conflitos. Além disso, também há o relato da
comunidade acerca de “diversas formas de preconceito por parte do Poder Público Municipal,
principalmente no que diz respeito à questão da educação”, uma vez que a prefeitura local alegou
não poder matricular os alunos indígenas devido à disparidade em relação à faixa etária dos
mesmos. Essa informação é confirmada pelo entrevistado E1 (2015), que atua junto à 3ª CRE,
conforme segue:
Eles tiveram resistência em Tabaí. Tabaí se explicou quando eles estiveram em 2014. No
segundo semestre eles foram ao Ministério Público e Tabaí negou vaga. Realmente eles
confirmaram que fizeram isso diante do Ministério Púbico por que... pelo seguinte. Eles
falaram que não tinha como colocar uma criança de quinze, catorze com crianças de oito.
Mas, na verdade, tinha outras crianças com a mesma idade né, pequenos. Então foi uma
justificativa que deixou a desejar, pelo menos os pequenos podiam ser incluídos e aí eles
falaram que transporte, que é demanda do município. Como é que o transporte ia entrar lá
em cima, não tinha como da BR, porque eles moram em um local de difícil acesso, bem
irregular assim. Então eles alegaram isso né, que não teria como o transporte ir buscar lá
dentro e também colocar um aluno grande com um aluno pequeno. Eles alegaram que não
negaram a vaga, mas como justificativa colocaram isso (E1 – 23/10/2015, p. 4-5).
Porque a escola fora da aldeia ela influencia a educação dos nossos filhos fora. Ela muda
a educação já que lá é diferente, é uma maneira. Lá é assim, assim, assim, aqui é a cultura
indígena né. Aí é muito importante que a escola seje (sic) drento (sic). Aí a criança não vai
ter todo o processo de ir para fora para poder estudar (E2 – 28/08/2015, p. 12).
[...] Na verdade, o estado deveria ter já dado uma urgência para esse caso, porém houve,
bem na época, a troca de governo. Quando eles foram no Ministério Público a segunda
vez; a segunda vez foi esse ano. Mas quando eles foram em 2014, já estava sendo feito
encaminhamento. Foi feito encaminhamento aqui na CRE, tava [sic] sendo feito o
encaminhamento para que fosse aprovado pelo estado a criação. A primeira coisa que é
feito é a criação e denominação da escola, depois o processo de credenciamento e
autorização. Daí como foi exigido aqui da CRE, a CRE fez isso. A CRE encaminhou. Só
que daí até o final do ano esse encaminhamento não obteve resposta entenderam. Foi feito
o oficio, mais de um oficio, inclusive, feito pra que fosse feito [alarme de carro tocando]
criada a denominação da escola. Então, só em março desse ano o governo Sartori assinou
(E1 – 23/10/2015, p. 6).
Um novo professor chegou à Terra Indígena Pó Mág em meados do ano de 2015, convidado
pelas lideranças locais. Também oriundo da Terra Indígena de Guarita, o professor iniciou de
maneira voluntária as aulas, aguardando sua contratação e regularização pelo estado. Como a
situação persistiu, a alternativa encontrada pela comunidade indígena foi a de ministrar as aulas na
garagem de uma das moradias da Terra Indígena Pó Mág, que pertencia aos antigos moradores da
área (Diário de Campo, 28/05/2015).
De qualquer modo, o imbróglio pela instalação da escola na Terra Indígena Pó Mág
prosseguiu, mesmo tendo seu funcionamento praticamente acertado juridicamente. Na primeira
semana do mês de julho de 2015, a SEDUC abriu edital para a contratação de professores indígenas,
buscando regularizar a situação das escolas indígenas, não só na região do Vale do Taquari, mas
também em outras partes do estado. A comunidade aguardava havia muito a abertura de tal edital
por parte da SEDUC, pois se pretendia regularizar a situação do professor indígena que já estava
estabelecido no local (Diário de Campo, 18/09/2015).
Sobre isto, apresenta-se o seguinte relato:
Tabaí é assim. Nós mandamos, ontem, né. Foi levado o processo daqui da coordenadoria
de várias páginas pra Porto Alegre e esse processo foi pra SEDUC e pro Conselho Estadual
de Educação, sendo que neste processo consta uma ata do Ministério Público onde dois
anos as crianças ficaram sem escola né e as crianças precisam estudar. Isto está na lei, é
obrigatório e está sendo uma falha né essas crianças estarem fora da escola. Então, foi em
agosto desse ano que eles foram no Ministério Público dizer isso, que eles não queriam
mais que as crianças ficassem sem escola. A comunidade indígena exigiu que essas
crianças frequentassem uma escola ou que as crianças fossem... Eles queriam uma escola
na área indígena né, porque ali naquela área da pra se construída. Aí aconteceu em março
desse ano, [alarme de carro tocando] treze de março de 2015 que o governo do estado
assinou o decreto de criação e denominação da escola. Esse ano ele criou e assinou esse
decreto no diário né. Aí essas crianças, são doze crianças que estão fora da escola desde
dezembro, desde o segundo semestre de 2013, quando eles se mudaram pra lá. Então, na
verdade, há dois anos eles estão fora da escola. (E1 – 23/10/2015, p. 3-4).
A burocracia é um dos grandes entraves para a não consolidação da escola indígena na Terra
Indígena Pó Mág, que há dois anos vem nesta caminhada para a implantação deste direito
constitucional. As várias instâncias pelas quais este tipo de demanda deve transitar foram
responsáveis por postergar a implantação da escola para o ano letivo de 2016. Desse modo temos:
Então agora a gente conseguiu instaura esse processo, enviando pra SEDUC e pro
Conselho Estadual de Educação, e aí eles analisam esse processo e algumas coisas que
tem que ser, como vou dizer assim, algumas coisas que eles percebam que não está
adequado, retorna pra nós. Por exemplo, as fotos. Fotos não pode ter pessoas, tem que ser
só as instalações. Nós tiramos fotos, assim, com alguns indígenas, daí não pode né. Então,
a gente vai refazer as fotos e a gente vai estar enviando esse processo para que eles tenham
escola. E tem um professor já em vista que é um professor lá do norte também, parente da
liderança da aldeia Pó Mág de Tabaí. Esse professor é bem jovem, Mizael Carvalho.
Então, ele se formou em estudo bilíngue na escola de São Valério, na mesma escola que
o outro professor. Ele se formou na escola bilíngue e então ele vai lecionar o Kaingang e,
também, o currículo por atividades ali naquela escola. Só que nós só chamaremos ele em
um momento posterior. Agora tem que esperar esse processo porque tem toda uma
burocracia para aguardarmos, porque a gente gostaria que ele assumisse ontem (E1 –
23/10/2015, p. 4).
Tal fato pode ser exemplificado pelo falecido cacique Francisco Rockã, que teve seu
tratamento garantido pela saúde local em relação a uma tuberculose e, posteriormente, um câncer
no pulmão. No entanto, devido à gravidade do seu quadro de saúde, Francisco precisou ser
transferido para Porto Alegre, aonde veio a falecer (Diário de Campo, 28/05/2015; 25/06/2015).
Quando perguntada sobre qual tipo de atendimento era mais comum entre a comunidade, o
entrevistado E3 (2015) apontou o caso do falecido cacique Francisco como excepcional, uma vez
que a comunidade dificilmente procura o atendimento. Sobre isto, temos:
[...] eles não procuram muito não. É só quando realmente eles têm necessidade. Eles não têm
como vir assim periodicamente fazer exames, esse tipo de coisa.
Acompanhamento, só que seja realmente necessário. Se é um caso especifico, como o
cacique deles lá3 que teve um caso de tuberculose e nos procurou, foi atendido, medicado e
então ele vinha todo mês. Que até ele veio a falecer faz uns três meses já, por motivo, mas daí
de câncer, ele morreu de câncer de pulmão (E3 – 30/10/2015, p. 1-2).
Outra conquista empreendida pela terra indígena e sua liderança foi a contratação de
maneira emergencial, por parte da SESAI, de um membro da comunidade como agente de saúde
indígena, visando suprir as necessidades médicas da comunidade, recebendo do órgão treinamento
e aperfeiçoamento para cumprir esta função. A referida agente, denominada aqui de entrevistado
E4 comenta que: “Aqui é coisa de todo dia que eu acompanho. Todo dia que eu estou assim nas
casas, mas só que assim, eu anoto só uma vez por semana” (E4 – 23/10/2015, p.1).
Mesmo hoje, com a escassez de produtos naturais, a comunidade ainda busca se utilizar de
remédios do mato a partir dos conhecimentos dos mais velhos, mesmo que em menor quantidade
que nos tempos de outrora, conforme segue: “Assim, minha mãe, por exemplo, quando a gente fica
doente, ela procura os remédios, assim, no mato. Mas daí eu não sei te dizer bem o nome porque só
ela que sabe” (E4 – 23/10/2015, p. 1).
Como visto, apesar dos percalços iniciais, as demandas da comunidade Kaingang da Terra
Indígena Pó Mág vêm aos poucos sendo alcançadas. E conquistas importantes já aconteceram como
o acesso indiscriminado da comunidade ao sistema de saúde local: a contratação de uma agente de
saúde indígena e a criação e denominação de uma escola indígena a ser construída dentro daquela
área, entre outras. Percebe-se, dessa maneira, que a luta e o protagonismo dessa população pela
obtenção e pela garantia de seus direitos vêm sendo construída pouco a pouco, com esforço e
dedicação.
CLAUDINO, Zaqueu. Educação escolar indígena: um sonho possível? In. BENVENUTI, Juçara;
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Territórios da Bacia Hidrográfica Taquari-Antas. Lajeado: Univates.
E3 – Entrevistado 3: depoimento [23 de out. 2015, 2 p.]. Agente de saúde indígena, Terra
Indígena Pó Mág, Tabaí/RS. Entrevistadores: Emeli Lappe e Jonathan Busolli. Tabaí/RS: s. e.,
2015. Gravação em máquina digital. Entrevista concedida ao Projeto de Extensão História e
Cultura Kaingang em Territórios da Bacia Hidrográfica Taquari-Antas. Lajeado: Univates.
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Carmo Thum
Jeruza da Rosa da Rocha
Atentar às imagens e ao que elas representam exige preocupação com o contexto, e com as
relações sociais e culturais que ali se estabelecem. Ao fotografar, elegemos compreender o que é
visível aos olhos, em um primeiro momento, porém, invisível quando entendemos que essa
representação anuncia a produção de significados tecidos em um determinado contexto; neste caso,
o que as imagens e as narrativas das crianças produziram sobre seus territórios.
A estudiosa, Gobbato (2011), salienta que, no processo de geração de dados em suas
pesquisas, lançou mão da câmera fotográfica e de registros escritos para compreender os
significados do espaço e do tempo escolar das crianças pequenas a partir de seus contextos e
interações. As imagens lhe possibilitaram “desvelar o já observado, uma vez que permitiram rever
o fotografado e perceber aquilo que foi impossível de ser percebido durante o desencadeamento do
episódio” (p. 69). Nesta perspectiva, em um primeiro momento, as imagens trazem um olhar inicial,
o qual aliado às narrativas das crianças em processo de diálogo e de interpretação reforçam
processos de ressignificação cotidiana da cultura que vivenciam entre si e com outros grupos
geracionais.
Ao estarmos imersos na “teia de significados” é relevante compreendermos o que as
crianças têm a dizer sobre o que fazem e pensam, ou melhor, quais significados constituem suas
ações e suas produções culturais, o que neste estudo pautou-se em fotografar seus territórios. Para
isso, entendemos a cultura não “como uma ciência experimental em busca de leis, mas como uma
ciência interpretativa, à procura do significado” (GEERTZ, 2008, p.4). A pesquisadora Barbosa
(2008) aponta como relevante ouvir as crianças, por isso cabe ao pesquisador, “nessa teia de
significados”, procurar “configurações de sentidos que estão para além do que se observa
empiricamente” (p. 03). Ouvir e entender o que as crianças trazem em suas falas é um desafio, o
qual necessita ser construído como um processo atencioso ao que elas dizem e significam; ao
mesmo tempo, o pesquisador precisa observar e interpretar essa mediação que só ocorrerá por meio
de sua inserção participativa, ou seja, envolver-se com as crianças no processo investigativo.
Exposto os interlocutores teóricos que embasam o desenho metodológico, cabe descrever a
compilação do material, o já referido fotolivro. Este material é constituído por vinte e quatro
páginas, das quais contam com vinte e sete fotografias de autoria das crianças seguidas de suas
narrativas descritivas/analíticas a respeito dos territórios da vida campesina. Ele sinaliza a vida e o
trabalho no campo e o contexto escolar, como cenários de atuação e interpretação da cultura local
pelas crianças. Com o título de “Territórios Infantis: produção de imagens e narrativas das crianças
da Escola Carlos Soares da Silveira”, o fotolivro busca transcender a mera ilustração de um
determinado cotidiano. O intento é salientar a construção de ferramentas metodológicas com a
participação das crianças; a descentralização do papel do investigador como gestor central do
processo investigativo e a busca por diálogos epistemológicos e metodológicos que se ocupem das
produções de culturas infantis e de seus territórios. Para isso, segue na última seção alguns anúncios
e apostas deste material bibliográfico como contribuição para os estudos das infâncias e para o
protagonismo das crianças em contextos investigativos.
GOBBATO, C. “Os bebês estão por todos os espaços!”: um estudo sobre a educação de bebês
nos diferentes contextos de vida coletiva na escola infantil. 2011. Dissertação (Mestrado em
Educação) – Programa de Pós-Graduação em Educação, Universidade Federal do Rio Grande do
Sul.
HALBWACHS, Maurice. A memória coletiva. São Paulo: Vértice; Revista dos Tribunais, 1990.
THUM, Carmo. Educação, História e Memória: silêncios e reinvenções pomeranas na Serra dos
Tapes. Tese de Doutorado. São Leopoldo; Unisinos, 2009. Disponível em:
<https://goo.gl/g4Cizw>
Eneusa Mariza Pinto Xavier*
Renata dos Santos Alves**
* Professora na Escola Municipal de Ensino Fundamental Brasilino Patella. Graduada em Pedagogia pela
Universidade Federal do Rio Grande (FURG). .
** Mestranda em Educação pela Universidade Federal de Pelotas (UFPel). Graduada em Pedagogia pela
Universidade Federal de Rio Grande (FURG).
no meio rural, problemas enfrentados no desenvolvimento de sua prática com os
alunos, as estratégias que utilizam para superar esses problemas, e se consideram
importante um trabalho diferenciado na escola do meio rural. Complementando as
entrevistas, realizou-se um questionário fechado com o motorista do ônibus escolar sobre as
dificuldades que ele observa no seu trabalho junto com as crianças e como entende que
poderia ser modificado.
O objetivo das entrevistas era problematizar a identidade que alunos,
professores e comunidade desenvolvem com a escola e com o meio rural, as dificuldades
que enfrentam, as estratégias que utilizam para superar e também relacionar suas falas com a
possibilidade de buscar uma metodologia diferenciada para atender os alunos da escola.
É pertinente salientar que utilizar a observação de uma das autoras, como fonte de
pesquisa, fundamenta-se na certeza de que nossas experiências são produzidas por
vivências que relacionamos como produtoras de aprendizagens significativas, e que de
alguma maneira constituem nosso processo de formação e de percurso de vida. Isto
implica na necessidade de realizar um trabalho de reflexões sobre o que foi vivenciado e
nomear aquilo que foi aprendido (tomadas de consciência).
A análise dos dados obtidos através da pesquisa, nos levou a entender o modelo de
educação atual aplicado no meio rural, tendo argumentos críticos para problematizar não
estando baseada só na experiência empírica e na memória individual, verificando assim a
realidade local e tendo fundamentação para questionar e sugerir reformas e
aperfeiçoamento nas práticas pedagógicas aplicadas no meio rural.
Este estudo faz uso da História Oral, de forma a buscar uma aproximação com a memória
de sujeitos que fizeram parte da história das instituições escolares em análise. Assim, a memória
apresenta-se como fonte histórica, enquanto, a História Oral representa a principal referência
metodológica para produção, sistematização e análise de fontes orais. Assim, vale dizer que a
História Oral é um conjunto de procedimentos que se iniciam com a elaboração de um projeto,
desdobrando-se em entrevistas e cuidados com o estabelecimento de textos/documentos que podem
ser analisados e/ou arquivados para uso público, mas que tenham um sentido social.
A entrevista é um fazer central da História Oral, momento em que o historiador constrói sua
fonte. É um espaço de encontro entre entrevistado e entrevistador, em que ambos interagem em um
processo dialógico em que a lembrança do passado de um é motivada pelas questões apresentadas
pelo outro. Contudo, o fazer metodológico da História Oral não tem início no encontro com o sujeito
a ser entrevistado. Mas, antes disso, na seleção dos depoentes, na elaboração de um roteiro de
entrevista a partir das temáticas e problemáticas da pesquisa.
Para Alberti (2005), a entrevista é uma fonte de pesquisa e não a história propriamente dita,
ou seja, ela assim como as outras fontes necessita de interpretação e análise. Amado (1995)
corrobora com a reflexão ao falar sobre fontes oriundas de entrevistas:
Penso que entrevistas podem e devem ser utilizadas por historiadores como fontes de
informação. Tratadas como qualquer documento histórico, submetidas a contraprovas e
análises, fornecem pistas e informações preciosas, muitas inéditas, impossíveis de serem
obtidas de outro modo. Pesquisas baseadas em fontes orais, publicadas nos últimos anos,
têm demonstrado a importância das fontes orais para a reconstituição de acontecimentos
do passado recente. (p.134-135).
Compreendemos as narrativas como fontes históricas, como fontes orais, uma vez que são
produzidas a partir de memórias de sujeitos, memórias que dão conta de descrever e contextualizar
histórias individuais e coletivas. Ressalto a necessidade de transformação das entrevistas em
documento (processo de transcrição) para que tal produção possa caracterizar-se como fonte de
pesquisa. A História Oral produz narrativas orais, que são narrativas de memória. Essas, por sua
vez, são narrativas de identidade na medida em que o entrevistado não apenas mostra como ele vê
a si mesmo e ao mundo, mas também como ele é visto por outro sujeito ou por uma coletividade.
A memória é construída socialmente (HALBWACHS, 1990), mas, contudo, também é
ressignificada a partir das relações estabelecidas com o meio social. As lembranças evocadas são
aquelas que o narrador vivencia no meio social, ou seja, nas relações com o seu grupo. Concordo
com Ecléia Bosi (1994) quando esta afirma que “A memória do indivíduo depende do seu
relacionamento com a família, com a classe social, com a escola, com a igreja, enfim com os grupos
de convívio e os grupos de referência a este indivíduo.” (p. 17).
O relato oral é uma representação da realidade narrada. É preciso considerar que o processo
de rememorar é um processo seletivo em que os atos de lembrar e esquecer atuam de forma
concomitante. Logo, é preciso considerar que ao narrar o sujeito não está reproduzindo o relato dos
fatos tais como aconteceram, mas reinterpretando-os. Compreender tais reinterpretações implica
compreender que os processos de memória não são lineares. A memória é construída por
entrelaçamentos de tempos, vivências e significados. Nesse sentido, define relevância a tudo que
evoca o que passou, garantindo sua permanência reatualizada, ou mesmo ressignificada a partir das
experiências do presente. Nessa dinâmica, memórias individuais e memórias coletivas encontram-
se, fundem-se e constituem-se como possíveis fontes para a produção do conhecimento histórico.
Cabe ao historiador problematizar a memória narrada tendo em perspectiva os objetivos e
categorias de análise de sua pesquisa.
Quanto as diferenças entre memória e história, coloca Nora (1993):
Memória, história: longe de serem sinônimos, tomamos consciência que tudo opõe uma à
outra. A memória é a vida, sempre carregada por grupos vivos e, nesse sentido, ela está
em permanente evolução, aberta à dialética da lembrança e do esquecimento, inconsciente
de suas deformações sucessivas, vulnerável a todos os usos e manipulações, susceptível
de longas latências e de repentinas revitalizações. A história é a reconstrução sempre
problemática e incompleta do que não existe mais. A memória é um fenômeno sempre
atual, um elo vivido no eterno presente; a história uma representação do passado. (p . 09).
Estudos, como os realizados por Arroyo (2007) e Munarim (2006), indicam que o campo
historicamente foi visto como lugar do atraso a ser superado. Tal perspectiva impulsionou em
diferentes épocas políticas sociais e educativas centradas no modelo urbano de ser, produzir e viver.
Estas privilegiam as demandas das cidades e têm este espaço como local da civilização, da
sociabilidade e da expressão política, cultural e educativa. Em suma, um exemplo a ser seguido.
Em contrapartida, reforça-se neste contexto o campo como lugar do atraso, do tradicionalismo
cultural, como uma realidade que precisa ser superada.
Pensamos que uma das alternativas para mudar este ponto de vista seria justamente repensar
a Educação e o ‘Rural’ a partir das características da comunidade, valorizando seus contextos e
reconhecendo a realidade como objeto do currículo diferenciado, com projetos que sejam
desenvolvidos em todas as escolas, destacando a importância do meio rural e desenvolvendo
políticas públicas adequadas para as escolas do interior.
Apesar da valorização do ensino, nossos entrevistados não manifestam a vontade de retornar
ao interior depois de formados, justificando o difícil acesso da Granja do Salso e a falta de mercado
de trabalho dentro de sua área de formação, assim como a inexistência de curso de pós-graduação
específicos para seu campo no município de Santa Vitória do Palmar.
Também foi utilizado como instrumento de pesquisa a coleta de dados, aliada ao processo
de reflexão sobre os próprios fazeres enquanto docente do espaço do campo. Nesse sentido, as
narrativas, colhidas nas entrevistas realizadas e observações da didática que orienta no momento as
práticas educativas da escola, constituem-se enquanto unidade fundadora do diálogo. Trata-se de
diálogo iniciado em momentos de introspecção, a partir da reflexão da própria ação pedagógica,
configurado desta forma como diálogo do sujeito consigo com a finalidade de produzir novos
conhecimentos a partir da significação e da reinvenção de conhecimentos já adquiridos via ‘saber
de experiência feito’. Freire (1993) corrobora com nossos intuitos ao esclarecer que:
[...] partir do saber que os educandos tenham não significa ficar girando em torno deste
saber. Partir significa pôr-se a caminho, ir-se, deslocar-se de um ponto a outro e não ficar,
permanecer. Jamais disse como às vezes sugerem ou dizem que eu disse que deveríamos
girar embevecidos, em torno do saber dos educandos, como mariposas em volta da luz.
Partir do “saber de experiência feito” para superá-lo não é ficar nele. (FREIRE, 1993, p.
70).
Analisando o contexto rural em que a escola está localizada, associando com as leituras,
reflexões, observações, entrevistas, fotos e questionários, percebemos que este meio é constituído
por pessoas de diferentes culturas, que enfrentam dificuldades e preconceitos, estabelecendo
estratégias de superação para estudar e trabalhar.
O estudo realizado nos levou a refletir e problematizar as condições da educação dos
espaços camponeses dos campos neutrais de Santa Vitória do Palmar. Trata-se de uma educação
escolar, fortemente orientada para uma pedagogia urbana, para um currículo pré-definido, para um
calendário inadequado ao tempo da comunidade, atividades e projetos que não associam
conhecimento sistematizado a realidade local. Práticas essas que por fim, consideram todos os
indivíduos iguais independente de seu meio e suas especificidades.
Consideramos que através da Educação de Campo associada com a metodologia Pedagogia
da Alternância haja uma possibilidade de avanço gestionário e metodológico, pois se referencia em
uma visão cultural da comunidade envolvida, apresenta possibilidades de promover ações
educativas de acordo com a necessidade que é diagnosticada, estabelece articulação com as famílias
e problematiza a realidade do campo, tornando essas questões, objeto do currículo escolar.
Percebemos que os alunos e a comunidade têm a escola como referência da localidade. A
mesma estabelece um vínculo forte com esta comunidade, e se constituí como um espaço
aglutinador da vida comunitária.
Este é o questionamento que nos colocamos como pesquisadoras do meio rural e quais
princípios e estratégias que a educação escolar deveria vivenciar em nosso meio.
Pensando em uma vida profissional com qualidade e que o profissional necessita vivenciar
uma ação docente que valorize os saberes, encontrando modos de garantir conhecimento a partir da
escola aos sujeitos em formação, consideramos essencial que sejam compreendidos os limites da
ação educativa a partir da escola e modos de como alcançar uma ação de formação escolar que
impacte na vida dos sujeitos educandos.
Nos estudos que realizamos, compreendemos que para isso acontecer é necessária uma
pedagogia adequada à realidade rural da escola, que associe as dificuldades, buscando novas
possibilidades. É necessário que se vivencie uma prática de ensino alicerçada nos contextos locais,
que o conteúdo formativo dê condições para significar a vida e que os conhecimentos apreendidos
na escola possibilitem a argumentação e o pensamento crítico.
Observamos que muitas pessoas usam certos estereótipos que consideram os moradores do
interior como atrasados, ignorantes e pobres, desvalorizando o meio rural. Mudar esta concepção
também é uma tarefa da escola. Porém, ela somente será alcançada desenvolvendo uma pedagogia
que valorize a identidade local, com profissionais comprometidos e que tenham pleno
conhecimento da comunidade onde atuam.
Pensamos que ao refletir, pesquisar e elaborar estratégias para conseguir sucesso em
qualquer ação educativa é necessário atender realmente às necessidades dos educandos. Assim,
analisando a atual situação dos alunos do interior de Santa Vitória do Palmar, observamos que a
educação deste meio precisa ser reconstruída e reformulada.
Percebemos, principalmente, a falta de políticas públicas apropriadas que atenda
objetivamente a necessidade dos alunos e professores, com material didático apropriado associando
a realidade e o investimento em formação e educação continuada para qualificar educadores
específicos para o espaço em questão, proporcionando assim um ensino articulado e com qualidade,
onde a cultura da comunidade seja valorizada e associada nas práticas pedagógicas.
Analisando as características deste espaço geográfico, destacamos ser imperativo que a
escola que atende esta localidade tenha características diferenciadas, associando em seu Projeto
Político Pedagógico a realidade de sua comunidade, argumentando sobre a possibilidade de
trabalhar com uma pedagogia diferenciada, específica para seus educandos para que realmente
sejam atendidas suas reais necessidades.
Dentro desta perspectiva vemos na Educação de Campo e na Pedagogia da Alternância uma
aproximação com esta realidade, já que estas metodologias de ensino preveem propostas educativas
onde é levada em consideração a realidade dos alunos, estabelecendo uma articulação com as
famílias, valorizando o meio, a identidade local e proporcionando aos professores conhecimento da
comunidade escolar para que associem os saberes aos conhecimentos sistematizados.
As características próprias dos moradores dos campos neutrais, sua cultura, identidade,
dificuldades e superações são argumentos para que seja desenvolvida uma pedagogia adequada e
diferenciada da urbana. Esta proposição de educar a partir da realidade preconiza um entendimento
da relação de mútua dependência entre rural e urbano. Ambos são importantes e um depende do
outro, porém, para que a educação alcance seus objetivos é necessário trazer a especificidade de
cada localidade dentro do processo.
A Pedagogia da Alternância aparece como grande contribuição para os alunos do processo
de nucleação, pois prevê atividades para serem realizadas no tempo-comunidade, possibilitando
que os alunos estejam atualizados com os conteúdos, trazendo a visão de sua comunidade com
reflexões, pesquisas e sugestões para serem debatidas, problematizadas e articuladas com os
conteúdos programáticos. Desta forma, também acontece uma socialização de saberes,
promovendo interações, aprendizagens coletivas e trocas de culturas. O tempo-comunidade amplia
a relação do aluno com o conhecimento, pois permite que ele compreenda mais profundamente a
aplicação dos conceitos sistematizados.
Também é notório que essa mudança na proposta pedagógica leva certo tempo para ser
compreendida. Ela não acontece repentinamente, pois necessita ser apresentada para todos
envolvidos, problematizada, debatida, argumentada. Os profissionais necessitam desenvolver um
vínculo forte com a comunidade, conhecendo, sendo orientados e capacitados para trabalharem
dentro dessa nova metodologia. É necessário produzir uma consciência da necessidade de uma nova
postura.
Avaliamos que através da Educação de Campo associada com a Pedagogia da Alternância,
a escola poderá trabalhar com uma visão de toda sua comunidade, tendo possibilidades de promover
atividades de acordo com a necessidade que é diagnosticada, estabelecendo uma articulação com
as famílias e trazendo a realidade do campo para dentro do espaço escolar, desenvolvendo desta
forma uma educação com significado e maior qualidade para todos.
A pesquisa também proporcionou que nossos conceitos sobre educação fossem repensados,
aprofundados e ressignificados. O que vivenciamos no processo de pesquisa oportunizou uma nova
visão para a educação obtida através de observação, análises e estudos da Educação de Campo e
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Carlos Roberto da Silveira
Maria Clelia Pereira da Costa
Com o propósito de observar de forma mais especifica as questões da pesquisa sobre “Os
vestígios da Casa-Escola do Valentin”, buscamos nos embasar nos conceitos dos teóricos da
pedagogia da terra para desenvolver as discussões a partir do olhar de Caldart, (2004) que trata a
educação do campo de forma peculiar considerando essa universalidade de saberes, Arroyo (2001)
o qual tem na educação do campo uma forma propícia de desenvolver as culturas e fortalecer a luta
em prol da escolarização, e das práticas pedagógicas orientadas pelas estratégias de ensino
aprendidas ainda muito sedo por meio da historia cultural e social. São pensadores que fazem
emergir os conflitos e as lutas pelas escolas, nos movimentos de assentamentos de terra em distintas
épocas e reconhecem a pedagogia da terra como elementos necessários para o desenvolvimento e
formação do sujeito do assentamento, considerando suas experiências e lutas pela escola do campo.
Viñao Frago (2001), pensador que transita pela educação, e sinaliza os espaços escolares, a
arquitetura, a história da instituição como elementos essenciais no desenvolvimento do sujeito da
escola. Nas técnicas da história oral procuramos nos assegurar da importância das narrativas,
segundo Meihy e Holanda (2007), pois são guardadoras e reveladoras do silêncio no construto das
memórias, da história das coisas e dos seres humanos. O corpus da pesquisa são fontes orais
apresentadas a partir de entrevistas semiestruturadas, aplicadas a três sujeitos que narraram os
acontecimentos que originou a história da Casa-Escola do Valentin. O objetivo do artigo é mostrar
a trajetória da Casa-Escola a partir das narrativas dos migrantes participantes dessa história;
conhecer a luta dos assentados pela permanência do professor na Casa-Escola; apresentar aspectos
históricos sobre as memórias e história da “Casa-Escola do Valentin”.
Portanto, se justifica a escolha do tema pela ausência de escritos sobre o processo histórico
e a história da Educação dentro do Projeto de Assentamento Dirigido – Coronel Salustiano e Anauá.
Há ausência de registros da luta dos migrantes pela implantação da escolarização no assentamento.
A Casa-Escola foi localizada às margens da BR 174 em áreas do Projeto de Assentamento Dirigido
* Docente do Programa de Pós-Graduação Stricto Sensu na Universidade São Francisco-USF/ São Paulo.
Pós-Doutor em Educação pela Universidade São Francisco-USF-SP. Doutor em Filosofia pela Pontifícia
Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP). Mestre em Filosofia (PUC-CAMP). Apoio - Governo do
Estado de Roraima e Prefeitura Municipal de Rorainópolis-RR.
** Mestre em Educação-Universidade São Francisco-USF/São Paulo. Professora da Educação Básica da rede
pública de Ensino do Estado de Roraima. Coordenadora Pedagógica da Secretária Municipal de Educação de
Rorainópolis-RR. Doutoranda do Programa de Pós-Graduação Stricto Sensu em Educação- USF-Campus Itatiba-
São Paulo.
Anauá (PAD/ANAUÁ) na Amazônia Roraimense. Diante da temática abordada, eis o problema de
pesquisa: Quando surgiu a Casa-Escola desse lugar? Quem teve a iniciativa de instalação e que
material utilizaram? Quando foi instalada de fato? Quem foi seu primeiro professor? Qual era sua
formação?
Como a vida é curta! É uma caixinha de surpresas! Eu que naquele tempo fui quase
obrigado, pela minha madrinha Amália, esposa do Valentin e Tomaizão, a trabalhar como
professor. [...] Hoje daria qualquer coisa para estar no trabalho que aprendi a fazer:
“ensinar a leitura, a escrita, o cálculo, direitos e deveres” os menos favorecidos; os sem
saberes formais, àqueles que lutaram pela terra, pela educação, excluídos da sociedade e
do mundo letrado, subjugados pelo poder dos políticos. Mas, como seres humanos, não
sabemos como reagir diante do conflito, e das tragédias da vida que segue seu curso. Quer
você queira ou não, elas são inevitáveis. Mais cedo ou mais tarde ela bate à tua porta; ela
é intrusa, democrática entra sem nossa permissão. [...] E quando o partilhar das lágrimas é
necessário o desperta do sonho que a vida nos apresenta. Essa vida nos permite buscar
forças para vencer e transformar o desvelo da vida imposto ao homem pelo ato de lutar,
educar, ensinar, aprender, conviver e, acima de tudo, amar os excluídos da sociedade em
tempos diferentes... (Zé Professor - Boa Vista, 5/7/2015).
Ao ler a poesia do senhor José Raimundo dos Santos (Zé Professor1) e sem a pretensão
de um discurso linguístico a respeito de suas considerações, àqueles a quem ele define
como desprovidos de saber formais dentro do movimento dos sem-terra do sul do Estado de
Roraima, procurei observar seus dizeres e compreender o processo da educação rural do
assentamento. Nosso narrador centra seu olhar sobre a escola de modo geral, e deixa claro
sua preocupação com a educação formal dos migrantes que lutaram em busca da escola,
moradia e de trabalho que pudessem manter a família daqueles que viviam às margens da
miséria, enfrentando os conflitos cotidianos, como as doenças, a falta de segurança pública,
marginalizados, esquecidos e excluídos da sociedade. Tais fatores certamente implicaram
pela ausência de políticas públicas, pelo poder político e pela indiferença às minorias
(pobres, migrantes, os sem-terra).
Os ditos de Zé Professor conferem essa angústia, quanto ao acesso a uma vida
digna, à escola e ao ensino de qualidade, pois se trata de um dever do poder público, para com
o humano independente de sua classe social. Suas palavras trazem questões importantes
sobre a educação brasileira, a cultura, os domínios sobre as terras o acesso e permanência dos
alunos e professores na escola pública do assentamento Anauá vivido num período crítico da
história da educação de Rorainópolis. .
1 Utilizamos este termo de tratamento pessoal, por ser assim conhecido em Roraima, pelo fato de ser o
primeiro educador do Projeto de Assentamento Dirigido Anauá.
O pensamento de Zé Professor expressa uma questão muito debatida por pesquisadores da
atualidade sobre a história da educação brasileira e sua realidade histórica. Com a grande
diversidade de escolas em toda a extensão territorial brasileira passa por lutas e conflitos por
melhorias, acessibilidade, qualidade na infraestrutura, no ensino, transporte e outros direitos
essenciais provenientes da educação formal. No fundo, Rorainópolis não foi e não é diferente dos
demais municípios brasileiros, que também trazem em suas raízes o contexto histórico pautado por
lutas, conflitos e pelo desejo da instrução pública para todos. Muito embora essa busca pela
educação esteja ligada ao contexto histórico relacionado à Igreja Católica, que tentou disseminar
em todo o país uma educação com práticas e métodos disciplinares voltados para algumas classes
sociais e não para todos que almejavam.
Desse modo, a pesquisa de doutorado de Sebastião Monteiro Oliveira (2016, p. 57), buscou
identificar historicamente os primórdios da educação roraimense e sua trajetória, por meio dos
vestígios documentais e deu visibilidade interessante a esse respeito. Segundo o autor, “a educação
roraimense surgiu a partir da Ordem dos beneditinos entre 1909 e 1948, e com a ausência dos
missionários, uma nova ordem religiosa surgiu, a da Nossa Senhora da “Consolata”, onde tanto
moças, jovens e meninos desenvolveram trabalhos artesanais, atividades domésticas, leitura e
escrita junto às freiras e padres”.
Ao longo da leitura da tese percebe-se que, entre 1910 e 1920, todo o sistema educacional
de Roraima era administrado pelo Amazonas que ditava as normas sobre a Educação de Roraima,
na época. Em Roraima existiam duas escolas, uma para moças e outra para rapazes. As escolas eram
pensadas nos modelos do ideário da educação católica, com o formato de instrução não somente da
educação formal, mas para atividades domésticas, onde as alunas eram preparadas especialmente
para a vida familiar.
Estas escolas também não ofereciam oportunidades de vaga para todos que procuravam.
Além de ser em número pequeno e distante, a população pobre possivelmente não acreditava no
acesso à escola em função de vários fatores (distância, registro de nascimento, condições sociais,
econômicas e culturais). As duas escolas acabaram fechadas por falta de “pagamento dos
professores” e somente a partir de 1945 o sistema educacional do ex-território do Rio Branco foi
instituído, resolvendo em parte a situação das escolas em outras localidades do ex-território
(OLIVEIRA, 2016, p. 34-35).
Desse modo, o processo educacional de Roraima foi marcado pela igreja católica, assim
como no restante do país, em que a educação surgiu a partir da chegada dos jesuítas em 1549,
quando implantaram o sistema educacional em algumas cidades do Brasil Colônia. Priorizaram a
catequização dos indígenas para torná-los civilizados com práticas pedagógicas alternativas,
transformaram o cotidiano dos nativos, reorganizaram o espaço de vivência dos indígenas com
objetivo de domesticá-los, e torná-los assim corpos dóceis, obedientes e submissos aos ditames
políticos daquele período.
O modelo de ensino dos jesuítas reinou com exclusividade por séculos no país. Mesmo
depois de expulsos, ainda causavam conflitos no sistema educacional brasileiro, tendo em vista uma
educação direcionada para a elite do Brasil Colônia, (aqueles que dominavam a economia, os
comerciantes, os cafeeiros e açucareiros). O ensino era oferecido às classes dominantes,
identificadas como uma educação classificatória que excluía negros, pobres, escravos, colonos
órfãos e outras classes sociais da época. “A educação do jesuíta era naturalmente a formação do
homem cristão dentro das doutrinas da Igreja católica” (LUZURIAGA, 2001, p.120).
Sem dúvida, os métodos eram os de uma educação clássica, religiosa, voltada para a
transformação do ser humano em favor das mudanças dos seus costumes, dos hábitos,
comportamento, moral, do saber, da ética. Isso possibilitou a transformação dos nativos em sujeitos
civilizados, obedientes às doutrinas e ao pensamento cristão. Nesse aspecto, a herança dos saberes
da educação do Brasil Colônia, não priorizava toda a sociedade e, por mais de um século, se buscou
o desejo de ampliá-la a todos os cidadãos para que pudessem usufruir dos conhecimentos formais
oferecidos pela escolarização. Essa clientela incluía os habitantes do campo, já que o acesso se
mostrava mais restrito ainda a esta classe, considerada minoria.
Os jesuítas não se limitaram somente à alfabetização, mas expandiram cursos de Letras e
Filosofia em caráter secundário, Teologia e Ciências Sagradas em nível superior, para formação de
sacerdotes. Legaram ao povo brasileiro um ensino de caráter verbalista, retórico, livresco,
memorístico e repetitivo que estimulava a competição através de prêmios e castigos. Um ensino
discriminatório, exclusivista e preconceituoso. “Os jesuítas dedicaram-se à formação das elites
coloniais e difundiram nas classes populares a religião da subserviência, da dependência e do
paternalismo, características marcantes de nossa cultura ainda hoje” (GADOTTI, 2003, p. 231).
Não é fácil compreender essa educação como um processo social, transformador direcionado à
mudança de alguns seres humanos da época.
O fato é que, em pleno século XXI, de acordo com a Lei de Diretrizes e Base (LDB,
9394/96), quando a “educação é a alvorada para a transformação da sociedade e um direito de
todos”, ainda continua a luta do acesso à escola para todos, incluindo a escola do campo em
diferentes regiões do país. A referida lei, no artigo 28, define as características da educação básica
e seus respectivos processos focados no direito do cidadão quanto: à oferta de educação básica para
a população rural, com orientações e adaptações dos conteúdos curriculares; à condição do aluno;
à metodologia; à organização escolar; ao calendário de produção em função de atender às
particularidades da vivência do campo (período de colheita, plantio, enchentes...) de acordo com as
necessidades de cada região; ao atendimento à demanda escolar e preparações dos sujeitos para o
trabalho; ao acesso e permanência na escola do campo, onde supostamente seu trabalho foi
necessário.
Diante desta realidade histórica, a proposta deste texto é compreender a luta pela instalação
da escola de ensino primário dentro do Projeto de Assentamento Dirigido Coronel Salustiano de
Faria Vinagre e Anauá (PAD/CSFV/ANAUÁ), entre 1977 e 1982. A escola foi denominada pelos
assentados de “Casa-Escola do Valentin” e aqui se busca construir um histórico de suas ações e
apresentar suas memórias a partir das narrativas dos sujeitos partícipes desse movimento.
Como técnica, o uso das fontes orais confere sentido acadêmico à aplicação das entrevistas
que passaram a ser válidas como recursos de separação da história oral, produzida na
universidade em oposição às soluções que se valiam do uso mais ‘inocentemente’ ou “livre”
das entrevistas (MEIHY; HOLANDA, 2007, p. 71).
A interpretação das narrativas a partir da oralidade deixa claro que as vozes dos sujeitos
participantes não se esgotam. E desse modo vamos conhecer alguns fragmentos das memórias da
escola revelada pelo senhor Valentin Bauduíno Gonçalves, natural de Itainópolis - PI que chegou à
Roraima em abril de 1976, com a esposa e sua enteada. O migrante veio em busca de terras,
emprego, garimpo e escolas. No período da entrevista, ainda residia em seu lote de terra onde foi
assentado há quarenta e um anos atrás. Em seus dizeres relembra como chegou a Roraima,
Meu enteado já morava aqui, no povoado de Martins Pereira e dizia que esta era a terra
para o “pobre morar” e convidou a gente a vir embora e fugir da “seca” que maltratava o
povo piauiense. Quando cheguemos encontramos somente a “flor de casa” (muita terra) e
dava medo a escuridão, isolamento e a falta de comunicação com o mundo lá fora. E as
doenças! Parece que a gente estava vivendo em outro planeta. Os barracos muito distantes,
transporte, somente os caminhões do 6º BEC. As onças esturravam muito perto de casa, o
porcão passava de bando ao redor do meu barraco; parecia que a gente não ia sobreviver.
Foram tempos difíceis, mas não troco hoje minha paz por dinheiro nenhum. No ano que
cheguemos aqui não existia farinha, nem o arroz. Passamos quase seis meses comendo
batata-doce, esperando a primeira safra de arroz e mandioca. O jeito, minha senhora, era
comer mingau de araruta com carne de tatu. Eu particularmente comi tanto que enjoei
(06/07/2015).
Quero te dizer professora! Aqui não existia escola quando chegamos, muito menos igreja,
nem povoado. Tudo era uma mata bruta cheia de pragas, cipós, cobras e muita pobreza.
Mesmo assim, todos queriam as terras, emprego, escola para os filhos que já passava do
tempo de estudar! [...]. Aqui teve início a primeira escola desse trecho e a primeira igreja
católica, as primeiras festas […]. Construímos a escola – um salão de 6 x7m, cercada de
taipa, coberta de cavaco, fechadura de tramela, piso de chão batido aguado todos os dias
para não levantar a poeira. O salão servia também para muitos fins: as festas da BR 174,
reuniões dos colonos, a missa e casa do(a) professor(a) (06/07/2015).
A decisão dos migrantes era priorizar a escola a fim de atender não somente suas
necessidades de instrução pública, mas para a formação dos futuros profissionais daquele lugar.
Não que esta instituição tivesse tal pretensão, no entanto, seria o ponto de partida para a
continuidade dos estudos na capital Boa Vista. Desse ponto de vista, o trabalho social e coletivo
tem suas vantagens. Arroyo, (1999, p. 9) entende que […] “os movimentos sociais são em si
mesmos educativos em seu modo de se expressar, pois o fazem mais do que por palavras, utilizando
gestos, mobilizações, realizando ações, a partir das causas sociais geradoras de processos
participativos e mobilizadores”.
O senhor Valentin, líder interessado no funcionamento regular da escola, foi à capital Boa
Vista, em janeiro de 1977, em busca de solução para o conflito vivido em função do não
funcionamento da instituição. Desde 1976, com sua chegada, tratou de organizar um espaço para
funcionamento de uma sala de aula no acampamento dos sem-terra, mas faltava o principal, “o
professor”.
Ao chegar à Boa Vista, o senhor Valentim disse, ter informado a situação ao chefe da
Coordenação e Administração de Educação do Interior de Roraima (CAEIRR), o professor Paulo
Lopes da Silva, que se mostrou sensibilizado e garantiu que logo resolveria o problema. O senhor
Paulo acrescentou - “[...] Estarei enviando o professor para a localidade, mas duvido que tenha
gente interessada em trabalhar e morar naquele lugar isolado, cheio de mato, animais selvagens e
mosquito”. Ao interpretar o dito acima, entende-se que na visão do Coordenador, o lugar não se
mostrava propício para o funcionamento de uma escola, devido às condições do ambiente, à
distância e à falta de transporte, fatores estes que comprometiam a permanência do professor (a),
tornando-se um obstáculo para a Secretaria de Educação do ex-território de Roraima, para os
estudantes e suas famílias. Então, o acesso à educação escolar se tornou um desafio duradouro.
Na verdade, a professora chegou aqui somente em meados de 1977, e não concluiu o ano
letivo; as crianças continuaram sem estudar. Isso causou uma grande revolta aos
moradores da BR 174, e logo nos reunimos outra vez para buscar resolver o problema.
Dessa vez, não tivemos sucesso; não teve ninguém interessado em trabalhar na Casa-
Escola do Valentin. E como um leão preso, eu fiquei lutando para o funcionamento da
escola. Quando vi que não adiantava fui para o garimpo. Quando voltei no final do ano,
comecei tudo de novo. (Valentin, 06/07/2015).
A partir dos dizeres do senhor Valentin, imaginamos um trabalho árduo, um lugar perigoso,
desordeiro, cheio de animais selvagens, impossível de se viver. Acredita-se que dentre os motivos
para a desistência dos professores, estavam as precárias condições de trabalho oferecidas pelo poder
público e pelos colonos. As instalações da Casa-Escola, o salário e a falta de alojamento, não
garantiam a permanência do professor no lugar, e se constituíam empecilhos que possivelmente
resultaram na constante rotatividade de professores nas escolas do PAD/CSFV. Nesse aspecto, os
“rastros”, tanto das fontes orais como documentais, indicaram, de fato, um novo professor em 1979,
responsável pela Casa-Escola do Valentin. Observamos a partir dos documentos assinados por
José Raimundo dos Santos “Zé Professor”2, que durante quatro anos ele trabalhou na Casa-
Escola e fez a diferença no ensino aprendizagem dos alunos.
2
..Para melhores informações, acessar Revista Linha Mestra – a. X. n. 30 (set./dez.2016). ISSN:
1980-9026. Acesso ao artigo completo sobre a vida e experiência pedagógica de Zé Professor.
3 Espécie de telha tirada da madeira para cobrir casas na Amazônia roraimense.
Construir o ambiente educativo de escola é conseguir combinar num mesmo movimento
pedagógico as diversas práticas sociais que já sabemos ser educativas, exatamente porque
cultiva a vida como um todo: a luta, o trabalho, a organização coletiva, o estudo, as
atividades culturais, o cultivo de terra, da memória e dos afetos. (CALDART, 2004, p.
122).
Esses lugares, estas memórias, as imagens do vivido a que nos remete o autor, podem ser
também observados em mudanças presentes na escola do Valentin, onde a ordem social estava
sendo construída em pleno regime da ditadura militar, o que poderia estar relacionado com o medo,
a revolta, a discórdia. No entanto, as famílias se preocupavam com o fortalecimento da educação
do assentamento, no sentido de promover a educação que se traduziu na voz dos entrevistados como
o “lugar de saberes”, de aprendizagem. O fragmento abaixo são as memórias do senhor Francisco
Mathias que abraçou a Casa-Escola e descreve sua situação física, organização do calendário,
funcionamento, relação social e forma de atendimento,
A escola atendia os alunos da redondeza, e desde sempre funcionou pela manhã. Os meus
filhos iniciaram seus estudos ali; era uma tranquilidade. Mesmo as crianças problemáticas
(filho epilético) eram recebidas com cuidado e aprendiam a leitura rápida. Sem professor
formado, mais isso não foi um problema para os colonos aprenderem. Hoje, os alunos
passam anos na escola e não sabem ler, escrever e matemática, pior ainda. [...] Na escola
do Valentin, os alunos chegavam cedo porque precisavam sair mais cedo de sala de aula,
pela distância; andavam até seis quilômetros para chegar à escola. Pai não buscava filho
na escola; a gente tinha que trabalhar. E no tempo de colher o arroz; toda molecada ficava
de férias. Não tinha nenhum transporte, bicicleta, cavalo, um burro, um jegue, nada para
levá-los tão distante. Hoje, o ônibus pega o sujeito na porta de casa, e ele não é aprovado
no final do ano. […] Mesmo tudo misturado, aluno surdo, deficiente físico, doente mental
e com outros problemas, Zé professor deu conta de trabalhar com os nossos filhos. Pode
ser considerado um herói. Hoje não se vê mais este tipo de professor por aqui, dedicado e
respeitoso com a família, e interessado no ensino dos alunos (06/07/2015).
Nos dizeres desse migrante, a escola estava a uma distância considerada da Vila do Incra,
povoado sede do assentamento, cerca de sete quilômetros. Assim, cheia de defeitos, discriminada,
sem muitos espaços, se manteve de forma produtiva no local durante sete anos, embora seu
reconhecimento nas terras do Valentin, tenha se dado a partir de 1979. As narrativas dos sujeitos
representam o que o silêncio não mostrou. “A memória individual, apesar de se explicar no contexto
social, é aferida por meio de entrevistas, nas quais o colaborador tenha ampla liberdade para narrar.
Cuidados devem ser tomados em relação às interferências ou estímulos presentes nas entrevistas.”
(MEIHY; HOLANDA, 2007, p. 56).
Estam memórias conferem que, mesmo que o prédio escolar não tivesse uma arquitetura
exuberante, ainda assim se fazia notar significativamente pela localização e, o espaço arejado
propício para as brincadeiras dos alunos, em meio às árvores o que tornava um ambiente acolhedor
produtor de culturas diversas. Ainda hoje, quem trafega pela rodovia BR 174, observa o espaço
onde foi construída a primeira Casa-Escola do Assentamento CSFV. É ponto de parada obrigatória
para os caminheiros que apreciam, o restaurante do senhor Valentin, um lugar histórico que mantém
as estruturas da escola, embora sirva a outros propósitos. Estrategicamente,
Na verdade, é de conhecimento geral que a escola tem sua finalidade; não importa o lugar
e o ambiente físico. A escola estudada não teve biblioteca, sino, muro, aulas de informática, quadra
de esportes, cerca ou grades. A vigilância se fazia pelas próprias famílias que atuavam
diligentemente a partir de rodízio no cuidado do espaço, na limpeza, no puxar água do poço,
provisão do carvão e lenha para o preparo da merenda escolar. E quando instalada às margens de
duas estradas de tráfego intenso (BR 174 e estrada vicinal 06) próximo às terras do senhor Francisco
Mathias em 1983, a “Casa-Escola do Valentin” ou a do Major Terêncio (nome dado à Casa-Escola,
anos depois), os alunos desfrutavam da liberdade de brincar livremente. Nos momentos da
alimentação, embora não houvesse um refeitório ou mesas para refeições, as crianças sentavam nas
pedras, ou nas carteiras. Mesmo para realizar as necessidades fisiológicas, tanto os alunos como os
demais ocupantes do espaço, quando entrevistados, não lamentaram a situação de fazer uso da
latrina por mais de vinte anos.
Compreende-se que,
Os espaços educativos, como lugares que abrigam a liturgia acadêmica, estão dotados de
significados e transmite uma importante quantidade de estímulos, conteúdos e valores do
chamado currículo oculto, ao mesmo tempo em que impõem suas leis como disciplinares
(FRAGO; ESCOLANO, 2001, p. 27).
Já em 1981, a ata indica dezoito alunos: seis, de 1ª série; dois, de 2ª série; cinco, de 3ª série,
e cinco, de 4ª série; todos foram aprovados. A ata foi assinada por José Raimundo dos Santos “Zé
Professor”. Verificou-se que, em 1982, a turma contava com onze alunos, sendo: seis, da 1ª série,
um, de 2ª série, dois, da 3ª série, e dois, da 4ª série. Não consta assinatura da ata por nenhum
responsável pela escola. No entanto, os participantes afirmaram a presença de Zé Professor e
confere com assinatura dos boletins dos filhos do senhor Francisco Mathias.
As atas analisadas, entre 1975-1981 evidenciaram quais de fato foram as(os)
primeiras(os) professoras(es) a trabalharem na Casa-Escola.5 As pistas, não indicaram
maiores informações sobre as duas primeiras professoras mencionadas (formação, origem,
contrato, tempo de serviço, etc.) e história de vida profissional. Zé Professor narrou suas
memórias e julgou necessário lembrar as múltiplas tarefas do professor da Casa-Escola e sua
própria formação:
4
É possível a existência do restante das atas? Talvez. .
5Ao indagar sobre a matrícula inicial das referidas escolas, um funcionário do RH da Secretaria de Educação do
Estado de Roraima, em julho de 2015, disse ser impossível encontrar nos arquivos o nome das pessoas, cadastro,
ficha de matrícula e relatórios (Boa Vista, julho, 2015).
Naquele tempo, nas escolas isoladas do Território, o professor além de não ser formado,
fazia todo o trabalho de Secretaria, limpeza, merenda e dava aulas nas classes
multisseriado. A gente perdia muito tempo lavando, cozinhando e limpando. As aulas
eram pela metade, de tanta coisa que o professor tinha que fazer em seu horário de aula.
Nessa escola, a marca registrada foi sempre a participação das mães. Assim, meu trabalho
podia render mais, e não precisava deixar os alunos fazendo as tarefas para preparar a
merenda que era importante para as crianças que moravam mais distante e a maioria
chegava sem o café da manhã. As aulas precisavam ser bem aproveitadas, pois era tudo
muito complicado com quatro séries na sala. O desafio era um gigante e não havia uma
receita pronta para resolver a situação. A falta de treinamento para aprender como
trabalhar com tantos alunos, numa sala com séries e tempos de aprendizagem diferente,
era um grande desafio dos tantos que tive que vencer (05/07/2015).
Dificilmente se encontrava um professor com Ensino Médio; mais difícil ainda formado em
magistério. Os poucos treinamentos não contribuíam para aquisição de metodologias eficazes de
ensino, com ênfase em metodologias que viabilizassem estratégias de aprendizagem nas classes
multisseriadas. O currículo desse período estudado consta em todas as séries: Língua Portuguesa,
Matemática, Estudos Sociais e Ciências, sem menção à Educação Física ou Religião. Os arquivos
examinados não indicam a idade, nem a origens dos estudantes.
No que se refere à situação da escola, a tabela abaixo apresenta a linearidade do
funcionamento, desde seu surgimento em 1977, e também indica o surgimento em 1975, da escola
denominada oficialmente de Major Terêncio de Lima que, posteriormente, em 1983 substituiu a
Casa-Escola do Valentin.
Muitos não dispunham de registros de nascimento, por isso, o nome dos alunos não
aparece na ata, nem na ficha de matrícula, mais assim mesmo eles frequentavam como
ouvintes. Para conseguir o registro de nascimento levava muito tempo, enquanto isso os
alunos estuavam normalmente. Também, os alunos não usavam uniformes, mas se
cantava o hino nacional, diariamente, e hasteava-se a bandeira. [...] Não havia alunos
indígenas, e sim deficientes físicos e mentais. Todos tinham o livro didático, e a gente
fazia leitura todos os dias, a partir da realidade dos alunos vivenciada no trabalho da roça.
[...] A gente construía textos incríveis, um material muito rico ao nosso redor: a paisagem,
os animais, pássaros. E o mais interessante: a correção era feita pelos próprios colegas de
classe. Isso, eu chamei de “caderno de produção de texto” (28/12/2015).
Essa metodologia, segundo Francisco Mathias, parecia mágica, pois os alunos aprendiam
com mais interesse. Esclarecemos, também, que, a ausência de assinatura nos documentos deixou
dúvida sobre quem de fato atuou em 1983, na nova Escola da BR 174, a Major Terêncio de Lima.
Ela foi construída na estrada vicinal 06, e continuou atuante até entre 1983 e 2010, quando foi
desativada por falta de alunos.
Ao analisar as narrativas dos idealizadores da Casa-Escola e seus desdobramentos, pode-se
considerar a luta e a dedicação dos mentores pela permanência do professor, nesse meio amazônico.
Acredita-se que esses fatores surgiram em respostas ao movimento que se constituiu ao longo da
história dessa instituição escolar com o poder-saber dos assentados. Esse espaço vivo e atuante, não
abstrato, mas real, foi dirigido por pessoas que não se curvaram à opressão, mas se comprometeram
com o direito de poder aprender, fazendo a diferença desse lugar isolado e excluído do restante do
país.
Ao escrever esse artigo, a intenção foi apresentar as lutas e as ações dos migrantes a partir
de suas narrativas. Muito embora não sejam sociólogos, professores ou filósofos, eles souberam,
como nenhum outro sujeito dessa história, contar suas lutas, a pobreza, os desafios e mostrar seus
conflitos e suas buscas pelos seus ideais quanto à instalação e construção da escola, em área de
assentamento de terra, na Amazônia roraimense. Estas memórias se manifestam em tom de certeza
da militância dos sujeitos que exerceram seus direitos nos lugares que circularam, sobretudo, a
persistência pela permanência do professor no ambiente escolar.
Essas lutas pela educação dos filhos permeiam o desejo dos migrantes dos PAD/
CSFV/ANAUÁ, como lutas embrionárias, marcadas pelo descaso do direito à escola no campo. E,
de acordo com a investigação, ela é a primeira instituição de ensino do assentamento, – um espaço
social –, onde a classe trabalhadora da terra esteve empenhada pela força de vontade, na defesa da
implantação da escola e defenderam seus interesses e expandiram os saberes escolares dos filhos.
Ao longo da pesquisa, percebe-se que não houve preocupação dos pesquisadores,
memorialistas, biógrafos e historiadores de Roraima em organizar o sistema de ensino do
PAD/CSFV/Anauá e trazer para o debate o contexto histórico desse movimento. As narrativas
constroem pedaços dessa história silenciada e, nesse compasso, abrem caminhos para iniciar novos
processos investigativos sobre a escolarização do PAD/CSFV/Anauá. Esperamos que esta discussão
tenha esclarecido detalhes significativos sobre o surgimento da Casa-Escola do Valentin, que nos
faz acreditar que a escola, independente de sua arquitetura e de sua clientela, sem dúvida, tanto o
professor quanto os alunos, foram sujeitos singulares, marcados pela trajetória e experiências na
busca do conhecimento sistematizado.
ARROYO, Miguel Gonzalez; CALDART, Roseli Salete; MOLINA, Mônica Castagna. Por uma
educação do campo. Petrópolis, RJ: Vozes, 2004.
CALDART, Roseli Salete. Pedagogia do Movimento Sem Terra: escola é mais do que escola. São
Paulo: Expressão Popular, 2000.
_____. Roseli Salete. Pedagogia do Movimento Sem Terra. São Paulo: Expressão Popular, 2004.
LE, Goff, Jacques. História e memória. Documento Monumento. Tradução Bernardo Leitão et al.
Campinas/SP: Ed. da UNICAMP, p. 535-549, 1990.
MEIHY, José Carlos Sebe Bom, HOLANDA, Fabíola, História oral: como fazer, como pensar.
São Paulo: Contexto, 2007.
SNYDERS, Georges. Alunos felizes: reflexão sobre a alegria na escola a partir de textos literários.
Tradução Cátia Aida Pereira da Silva. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1993.
Francisco Mathias de Sousa (Chico Leão) é natural de Mocotó, Rio Grande do Norte. Nascido
aos 13 dias do mês de fevereiro de 1944; profissão agricultor. Foi entrevistado em sua
residência às margens da BR 174, km 472, estrada vicinal 06, km 01, Rorainópolis/RR. A
entrevista aconteceu no horário das 18h às 19h do dia 06/07/ 2015.
José Raimundo dos Santos (Zé Professor) nasceu 23/01/1953 é brasileiro, casado, natural
de Fortuna Maranhão, e sua profissão é a de professor do Quadro da União. Reside à Rua
Manoel Vicente de Sousa nº 429, Bairro Asa Branca, Boa Vista/RR. A entrevista foi
realizada em sua residência, nos dias 05 de julho de 2015 e 28 de dezembro de 2015.
Recordar:
Do latim re-cordis tornar a passar pelo coração.
(Eduardo Galeano. Livro dos Abraços, 2002, p. 9).
* Universidade Federal da Bahia (UFBA). Doutoranda Multidisciplinar em Cultura e Sociedade, apoio CAPES.
militante, altamente politizada sobre a questão do racismo ou com as comunidades
remanescentes dos quilombos. (MUNANGA, 2012, p, 11).
1
O kimbundu é a terceira língua nacional mais falada em Angola, com incidência particular na zona centro-
norte, no eixo Luanda-Malange e no Kwanza-Sul. Possui grande relevância, por ser a língua da capital e do
antigo reino dos N'gola. Foi esta língua que deu muitos vocábulos àlíngua portuguesa e vice-versa.
2
Os Nkisis são divindades para os povos Bantu.
Localizado no bairro da Mata Escura é o maior terreiro em extensão territorial da capital e
um dos mais antigos da cidade de Salvador. O bairro da Mata Escura é considerado uma das zonas
periféricas de Salvador, e, de acordo com os dados do IBGE, no Censo 2010, possui 33.454
habitantes, com renda média da população no valor de R$830,00, na sua grande maioria.
Como em muitas localidades do país, com predomínio de moradores negros, a baixa oferta
de educação pública de qualidade e a falta de saneamento básico nessas áreas afetam diretamente a
população que, de acordo com muitos dados estatísticos que estão aí, também, concentram os
maiores índices de violência e homicídios de jovens negros. Imerso nessa realidade situacional, o
Terreiro Bate Folha, conforme imagem abaixo, circundado pelo crescimento desordenado e
irregular das áreas urbanas, aponta para os grandes desafios da região e chama a atenção para a
melhoria das condições fundamentais de vida. Ademais, percebe a necessidade da realização de
ações pontuais e efetivas no que se refere à valorização da cultura negra, fortalecendo a autoestima
e o autorreconhecimento dos moradores do próprio bairro e membros da comunidade.
Figura 2 – Vista aérea do bairro Mata Escura
ALBERTI, Verena. Fontes orais: histórias dentro da História. In: Fontes Históricas. PINSKY,
Carla Bassanezi. São Paulo: Contexto, 2006. p. 155-171.
ALBUQUERQUE, Wlamyra R. de; FRAGA FILHO, Walter. Uma história do negro no Brasil.
Salvador: Centro de Estudos Afro-Orientais da Universidade Federal da Bahia e da Fundação
Cultural Palmares, 2006.
BOSI, Ecléa Bosi. O tempo vivo da memória: ensaios de psicologia. São Paulo: Ateliê
Editorial, 2004.
ELIADE, Mircea. O sagrado e o profano. Tradução de Rogério Fernandes. São Paulo: Martins
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GOMES, Nilma Lino. Alguns termos e conceitos presentes no debate sobre relações raciais no
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PRANDI, Reginaldo. As religiões negras no Brasil: para uma sociologia dos cultos afro-
brasileiros. Revista USP, São Paulo, n. 28, dez/fev., 1996.
Gérson Wasen Fraga
E o aquiagatamia, ele foi criado, o espaço foi criado por estudantes que eram do mestrado
de Sociologia, no caso que eu conheci um, um colega da Filosofia; eu, da História. Então
eram pessoas que por algum motivo tinham alguma relação. Então eram pessoas assim,
bem distintas do que temos hoje. E acho que, talvez, junto com o Serginho, eu sou um dos
mais antigos, provavelmente. Mas não fui o fundador do grupo, porque eles já estavam
jogando antes […]. Por exemplo: temos o Marcelinho, lá, que tá em Brasília, que seria um
dos fundadores. Mas, ele, por conta da distância, eventualmente ele joga. (VIANA, 2017).
Seja como for, o fato é que este encontro esporádico de alguns colegas acabou por originar
um espaço/tempo de lazer que perdura há 25 anos. Como todo grupo informal, também este
organiza-se de forma aberta, integrando novos membros por afinidade e possuindo certa
rotatividade, muito embora seja possível identificar um “núcleo duro”, com participação efetiva e
regular que já remonta há duas décadas. Questionado sobre os motivos da perenidade do grupo,
outro entrevistado explicita a forma “anárquica” de organização do grupo, muito embora aponte em
sua fala para outras características do mesmo:
Ele persiste porque é um grupo anárquico. A nossa postura sempre foi, o Aquiagatamia
sempre foi um grupo de amigos que estava lá para jogar bola. Que tinha identidade
ideológica, que tinha um certo… mais isso está em um terceiro plano. Nosso negócio no
Aquiagatamia era nos divertirmos, e nos divertirmos de forma anárquica, sem regra, sem
muita bitola. Eu entendo tranquilamente que esse grupo só existe pela postura anárquica
que, desde o começo, assumiu. Onde cada um dá pitaco, onde cada um é respeitado, onde
cada um decide, onde cada um tem influência e é considerado pelos outros, e se tem um
descontente a gente pára para conversar e para pensar. E isso não foi uma combinação.
Isso é uma questão de respeitar a humanidade, o ser humano, no sentido de ter respeito
pelo ser humano. Sobretudo porque o resultado disso sempre foi muito prazeroso. Nosso
resultado é jogar bola, é ter amigos, é ter uma inserção. Ninguém de nós, das ciências
humanas desconhece o mundo em que vivemos, a dificuldade de ter isso, e a hipocrisia.
Então, eu penso que esse grupo, ele se propôs a não ser hipócrita, e a aceitar o que viesse.
(CUNHA, 2017).
Este excerto nos parece revelador por nos apontar para alguns elementos que conformam a
identidade do grupo para além do ato de reunir-se para jogar futebol. Com efeito, a “identidade
ideológica” apontada inicialmente, bem como “resultado prazeroso” da atividade apontam
elementos subjacentes à mera prática informal do esporte. Há, portanto, elementos que denotam
uma identidade coletiva, que formam um amálgama a unir indivíduos que, de outra forma, não
teriam motivos para sair de suas casas em um dia de semana e se encontrarem para jogar futebol. É
hora pois de darmos uma rápida olhada neste “prazer” resultante da sociabilidade. É hora, pois, de
olharmos para um conceito que a nós é fundamental: o de lazer.
Uma vez identificado o grupo com o qual desejamos trabalhar, é hora de partirmos para
uma primeira tentativa de estabelecer pilares conceituais com os quais devemos trabalhar.
Embora tenha uma trajetória de duas décadas e meia, a prática pura e simples do
Aquiagatamia em nada difere da de outros grupos de homens que encontram-se semanalmente para
jogar futebol. Qualquer pessoa que já tenha vivido esta experiência sabe que tais grupos são diversos
e que, com frequência, é possível transitar em vários ao longo de uma semana. As justificativas
apontadas para a participação em tais grupos costumam variar de questões que envolvem, desde a
relação com o corpo (“suar um pouquinho”, “dar uma corrida atrás da bola”, “perder a barriga”) até
questões de ordem “emocional” ou “afetiva” (“espairecer”, “descarregar a energia”, “encontrar os
amigos”). Seja como for, esta é uma prática alocada fora do tempo de trabalho, naquela
temporalidade destinada aos interesses pessoais, à família e a tudo que não envolva as imposições
do trabalho cotidiano. Em outras palavras, trata-se, antes de mais nada, de uma prática de lazer.
Segundo Luiz Lima Camargo, não é possível falar em uma única definição de lazer, posto
que diversas são as possibilidades neste campo: individuais ou coletivas, envolvendo esforço físico
ou tendo como finalidade um mero deleite estético-cultural, de âmbito doméstico ou tendo “a rua”
como seu locus. Todavia, seria possível encontrar algumas características básicas que nos permitam
analisar a prática do lazer.
Embora o estabelecimento de uma definição precisa de lazer seja uma tarefa complexa,
dadas as múltiplas possibilidades pressupostas pela prática, tem-se que o lazer é resultante da
organização urbana e industrial do trabalho, onde o foco das atividades não está na produção
material, nem na satisfação das obrigações domésticas. É um tempo de não produção no sentido
capitalista, mas pode ser um tempo de produção cultural, de estabelecimento de relações pessoais,
enfim, um tempo que tem como fim último a pessoa, e não a produção. Neste sentido, concordamos
com Joffre Dumazedier, quando este coloca que:
Acreditamos ser a um só tempo mais válido e mais operatório destinar o vocábulo lazer
ao único conteúdo do tempo orientado para a realização da pessoa com fim último. Este
tempo é outorgado ao indivíduo pela sociedade quando este se desempenhou, segundo as
normas sociais do momento, de suas obrigações profissionais, familiais, socioespirituais e
sociopolíticas. É um tempo que a redução da duração do trabalho e das obrigações
familiais, a regressão das obrigações socioespirituais e a liberação das obrigações
sociopolíticas tornam disponível; o indivíduo se libera a seu gosto da fadiga descansando,
do tédio divertindo-se, da especialização funcional desenvolvendo de maneira interessada
as capacidades de seu corpo ou de seu espírito. Este tempo disponível não é o resultado de
uma decisão de um indivíduo; é primeiramente, o resultado de uma evolução da economia
e da sociedade. Como já dissemos mais acima, é um novo valor social da pessoa que se
traduz por um novo direito social, o direito dela dispor de um tempo cuja finalidade é,
antes, a auto-satisfação (DUMAZEDIER, 2008, p. 91-2).
Se nosso objeto é um espaço e tempo de lazer, importa também termos claro que tipo de
lazer é este. Comecemos pelo mais elementar.
O futebol é produto da sociedade urbana e industrial criada do século XIX. Segundo Hilário
Franco Junior, tal criação reflete não somente o surgimento de uma cultura associada a esta nova
realidade, mas expressa as novas relações com o tempo e com o trabalho. No primeiro caso, a
associação com o relógio é um tanto lógica. Afinal, tanto a duração do dia de trabalho quanto a
duração do jogo estão submetidas ao passar inexorável do tempo medido pelo cronômetro (em
oposição à realidade do trabalho rural, marcado pela luz do sol e outros elementos dados pela
natureza). Já a nova relação com o trabalho transparece na associação feita entre a especialização
de funções na linha de montagem e a especialização dentro de campo, onde cada jogador
desempenha sua função específica no conjunto da equipe (FRANCO JUNIOR, 2007).
Tal qual o futebol que lhe deu origem, o futebol de salão é fruto de uma sociedade
eminentemente urbana, algo perceptível na sua natureza de esporte indoor, seja pela característica
de sua maior operacionalidade (é mais fácil juntar 10 pessoas para uma partida de futebol de salão
do que as 22 necessárias para o futebol de campo, sem falar da obtenção do espaço necessário).
Embora tecnicamente seja outro esporte, tanto as semelhanças quanto a forte presença do futebol,
como elemento constituinte da cultura brasileira, faz com que a prática informal do futebol de salão
e todas as outras derivações do futebol (“futebol 7” ou society, “futebol suíço”, etc...) sejam, por
vezes, tratadas genericamente por “futebol”. Muito embora seja possível perceber um crescimento
do futebol feminino no país nos últimos anos, trata-se ainda, ao menos no que se refere à prática,
de um universo marcadamente masculino.
É sobre tal prática, fortemente masculina, derivada do futebol de campo (verdadeira
bricolagem que ganhou autonomia e status de esporte à parte), que gira o encontro dos integrantes
do Aquiagatamia. E é tal prática que é entendida coletivamente como momento de lazer.
Voltemos agora à concepção de lazer enquanto “tempo conquistado”. Esta característica é
marcada nas entrevistas feitas até o momento, muito embora seja possível encontrar matizes
diversos nos mesmos. Assim, o lazer poder ser inicialmente concebido como uma necessidade que
abarca o conceito de prazer.
Eu considero a atividade física um lazer, por exemplo. Jogar bola é um lazer. Então assim,
eu assim, como eu precocemente sempre fiz atividade física, depois fui atleta, eu sinto uma
necessidade fisiológica até do lazer. Eu me sinto mal se eu não corro. Agora não estou
correndo na Redenção […]. Um momento de lazer, ele significa não estar ligado em uma
coisa que é laboral, que é do trabalho. E isso inclusive te faz ser mais criativo no trabalho.
A criatividade no trabalho… a falta de criatividade no trabalho se dá pela saturação do…
pela saturação (24:00) da coisa cotidiana, contínua, que às vezes faz parte, até pelo tempo
que tu fica no trabalho. Mas, se tu não tiver, inclusive ter lazer no trabalho, ou pelo destoar
daquela coisa rígida que o trabalho exige, por vezes, que não deixa de ser um lazer no
trabalho, tu fica… acho que tu enrigesse, tu enrigesse, fica duro, literalmente. Então é
muito importante. (ARAÚJO, 2017).
Desde modo, a participação no grupo, muito mais do que um mero encontro para jogar
futebol, toma outros sentidos, para além da própria noção de lazer. O encontro com os amigos no
fim da sexta para a prática esportiva assume uma dimensão de resistência ao capital, posto que é
um espaço de tempo subtraído à possibilidade do utilitarismo com fins de ganho financeiro. Esta
dimensão de “resistência” e a dimensão de “humanização” andam juntas, segundo a perspectiva
apontada pelos dois entrevistados acima citados, demandando, portanto, a compreensão de que há
um caráter desumanizador do capital quando este incide sobre as relações pessoais. O lazer, desta
forma, assume a sua máxima função: promover práticas e relações que levem à valorização da
dimensão humana dos integrantes.
BEAUD, Michel. História do capitalismo: de 1500 aos nossos dias. São Paulo: Brasiliense, 1989.
FRANCO JUNIOR, Hilário. A dança dos deuses: futebol, sociedade, cultura. São Paulo:
Companhia das Letras, 2007.
Entrevista com José Cláudio dos Santos Araújo, realizada em 13 de junho de 2017.
Thiago Silva de Souza
Com o presente trabalho, problematizamos uma, de três entrevistas realizadas com surfistas
profissionais brasileiros, participantes de etapas do circuito mundial, no início da década de 1990 e
meados da primeira década do século XXI. A entrevista foi produzida com o ex-surfista profissional
Flávio “Teco” Padaratz, realizada em Florianópolis/SC, no final do verão de 2016. Sua oralidade o
localizou enquanto um dos surfistas brasileiros a desbravar o circuito mundial de surfe. A ênfase
da entrevista girou em torno das preparações físicas dos surfistas para as (itinerantes) etapas do
mundial, sendo disparador para essa pesquisa, um fragmento em que Teco nos fala das condições
preparatórias para um surfista tornar-se profissional, como, por exemplo: saber conceder uma boa
entrevista. Esse destaque a performance frente a uma entrevista nos fez dedicar atenção às próprias
questões que direcionávamos ao entrevistado. Aos poucos, identificamos o quanto o jogo de força
em torno de uma pergunta pode tornar-se produtivo para a produção das fontes orais. Nestas, ao
que tange alguns fragmentos, vemos emergir resistências a maltratados direcionamentos
empenhados pela opinião pública aos surfistas profissionais no início da década de 1980. Esse
resistir traz à tona uma afirmação da vida em sintonia a imagens religiosas que marcam a
experiência do surfista.
A entrevista que constitui esse trabalho foi produzida no apartamento do entrevistado. Uma
moradia nova, com poucas mobílias, mas com prazo de poucos dias para a entrada de Teco e sua
família. Fomos recebidos pelo próprio Teco, sorriso aberto, ele logo nos convidou para entrar e,
entre outras conversas, nos falava do prazer em cozinhar para os amigos. Essa tarefa, ao tocante do
lugar em que nos recebia estava marcada pela conjugação da cozinha com a sala. Dizia ele que,
com aquela arquitetura, evitava dos amigos ficarem aglomerados na porta da cozinha, enquanto
preparava a comida, bem como acontecia na casa que em breve substituiria pelo apartamento que
estávamos.
Essa ênfase dada às entrevistas pelo nosso entrevistado produziu efeitos ao próprio processo
que nos envolvíamos, já que seus ditos ativavam uma atenção para as posições de sujeito que
ocupávamos diante da entrevista. Isso porque, o saber conceder uma boa entrevista, quesito
preparatório para a profissionalização de um surfista profissional, nos fez pensar no próprio ato de
entrevistar ou, se desejarmos, nos modos como direcionamos as perguntas a nossos entrevistados:
O que perguntar? Como perguntar? Em que momento da entrevista dirigir essa ou aquela pergunta?
Como conectar as perguntas com os nossos temas de pesquisa?
Essa última questão, em especial, inquietou nossa tarefa de fazer entrevista, antes ainda do
encontro com o Teco, visto que inúmeras foram as estratégias utilizadas para formular essas
questões, como, por exemplo, buscas a conteúdos nas mídias especializadas em surfe nas quais se
falavam dos (ou falavam os próprios) entrevistados. Essas buscas foram realizadas no sentido de
irmos ao encontro de Meihy e Holanda (2013), quando nos diz que “tudo que é gravado e
preservado se constitui em documento oral” (p. 13). O autor está a questionar, nessa esteira, o
reducionismo de considerar como História Oral somente o produto oriundo de uma entrevista
gravada.
Para ampliar esse espectro para além das entrevistas, ao mesmo tempo em que não as nega,
Meihy e Holanda (2013) nos falam da noção de “fonte oral”, isto é “o registro de qualquer recurso
que guarda vestígios de manifestações da oralidade humana” (p. 13). E, nessa esteira, foi uma
produção audiovisual (nos dedicaremos a ela na próxima seção) que possibilitou a
problematização de umas das questões que compuseram o roteiro da entrevista com o Teco.
O caráter problemático desses delineamentos foi que ao mesmo tempo em que
reconhecíamos
reconhecíamos a potencialidade da História Oral, vista para além de “uma forma” que poderia
vir a expressá-la, utilizávamos o recurso audiovisual como fonte para “uma entrevista”. Ao
mesmo tempo em que questionamos a fácil caracterização da História Oral, como a
realização de entrevistas, mobilizávamos diferentes fontes, justamente para conceber uma
entrevista.
Vimo-nos nessa esteira problematizando o próprio fazer metodológico colocado em
jogo: Qual a produtividade de perguntar por aquilo que já foi dito? Nossa preparação
(enquanto aqueles que produzimos as perguntas) para uma entrevista não acaba tão
somente por legitimar (como científico) aquilo que (por já ter sido dito) já sabemos sobre
determinado tema?
E, talvez, o mais interessante ao nos defrontarmos com essa trama seja a pergunta:
como escapar do que já foi dito sem negar o tocante do que produz nossas posições de sujeito,
no caso de uma entrevista, a própria experiência de entrevistar? Isso porque, só nos
deparamos com essas questões através da efetivação do próprio ato de realizar uma
entrevista. Sem querermos propor uma solução, dedicamo-nos a pensar o próprio processo
em que nos enveredamos com a realização daquela entrevista do dia 26 de fevereiro de 2016.
E, para a próxima seção selecionamos um pequeno fragmento da
entrevista, especificamente, quando nosso entrevistado fala do processo de
profissionalização do surfe brasileiro, iniciado lá no final da década de 1980 e início da
década de 1990.
Cara, a memória que eu tenho mais marcante é que a gente tinha dois adversários;
um deles era o cara que entrava na bateria com você, pra competir e o outro era a opinião pública
sobre a tua profissão. Nem sobre se você ia bem nela, isso nem se discutia, era o fato de ser
surfista; isso para alguns era sentido de pejoração. A gente sentia vergonha, era maltratado,
era tirado muitosarro da gente. Só que o surfe é tão irado que eu nem dava bola. Eu pensava
em Jesus Cristo, naquela época, aquela frase “Deus perdoa eles! Eles não sabem o que estão
falando”. Eles não sabem o que tão fazendo, eles não conhecem o surfe. Se a pessoa
conhecesse o surfe [...] se
conhecesse o surfe [...] se um general conhecesse o surfe é capaz dele não entrar em
guerra, tá ligado? Essa é a diferença (TECO PADARATZ, 2016).
5
Dias, Fortes e Melo (2012) quando falam da história do surfe é ao trabalho de Douglas Booth que
recorrem para introduzir seus argumentos e quando discorrem sobre a juventude e suas resistências utilizam-se
do trabalho de Passerini (1996); Torpe (2006) e Roszak (1972).
6
Trata-se, segundo Meihy e Ribeiro (2011), de um gênero narrativo em História Oral que também implica
“entrevista com uma ou mais pessoas vivas, ela remete às questões do passado longínquo que se manifestam
pelo que chamamos folclore e pela transmissão geracional, de pais para filhos ou de indivíduos para
indivíduos” (p. 92).
voltadas aos “atos divinos de salvação situados no passado” e a respectiva formação do
“conteúdo da fé e o objeto do culto”, mas também porque o livro sagrado, por um lado, a
tradição histórica, por outro, insistem, em alguns aspectos essenciais, na necessidade da
lembrança como tarefa religiosa fundamental (LE GOFF, 2003, p. 438).
Frente a essa necessidade da lembrança, o aspecto que “nos” toca frente a
materialidade empírica que produzimos esta em volta a questão de que a memória nesse
contexto “pode resultar em escatologia, negar a experiência temporal e a história” e, isso,
como pontua Le Goff (2003) “será uma das vias da memória cristã” (p. 439). Mas atenção,
nosso entrevistado ao mesmo tempo em que expõe os padecimentos que marcam a
emergência do surfe profissional brasileiro, nos mostra muito mais próximo da paixão que
falávamos junto a Larrosa (2002), especificamente, quando esse filósofo, como vimos, nos
alerta que esse padecer: “não tem nada que ver com a mera passividade” (p. 26).
Essa não passividade diante a memória cristã de negação de si pode ser apreendida
com um Cut Back,7 na escrita, manobra com a qual pretendemos um micro retorno ao
momento de potencialização da vida do nosso entrevistado: “o surfe é tão irado que eu
nem dava bola” (PADARATZ, 2016). Assim, nosso entrevistado se apresenta bem mais
próximo do que Portelli (1997), ao preferir evitar o termo “memória coletiva”, chama de
memória individual.
Para Portelli (1997) a memória é sempre individual e solicita prudência frente a
coletividade da memória: “embora estejamos trabalhando com o intuito de registrar
lembranças que possam ser coletivamente compartilhadas e aproveitadas, devemos ser
cautelosos ao situar fora do indivíduo” (p. 16). Para esse autor, portanto, não são grupos e
sim pessoas que lembram, “a memória é um processo individual, que ocorre em um
meio social dinâmico, valendo-se de instrumento socialmente criados e
compartilhados” (p. 16).
Ao contexto que viemos problematizando, a produtividade de considerarmos
essa individualidade da memória circunda a possibilidade de ampliar entendimentos que
escapam do enquadramento maltratado e insensível capaz de produzir ou difundir somente
padecimentos.
7
No Dicionário do surf, cujo subtítulo é a língua das ondas, Silva (2004) apresenta o Cut Back, como
uma “manobra em que o surfista depois de descer a onda e realizar a cavada em sua base, vai na direção
contrária, batendo ou não em sua crista e depois retornando na direção inicial, formando um “S” (p. 48). A
inspiração de utilizarmos esse termo para retornarmos a um momento anterior, o fragmento exposto no inicio
dessa seção acontece pela própria ênfase dada pelo nosso entrevistado a essa manobra – marca registrada do seu
surfe e que, segundo ele, virou título do seu filme Cut Back, produzido pelo diretor Alex Miranda. Disponível em
https://www.youtube.com/watch?v=GVycFqimUzI. Acesso em 31/08/2016.
o surfe. Não exatamente ao conteúdo que sobre esse esporte vem sendo discutido e sim aos
instrumentos socialmente criados e compartilhados, quando o intuito é produzir memórias.
Com o que nesse trabalho problematizamos, podemos nos referir a esses instrumentos,
enquanto, por exemplo, a entrevista com um surfista e o documentário em que esse surfista também
constitui. O que tentamos demostrar, é que foi menos o conteúdo de uma entrevista ou de um
documentário que se tornou relevante para o nosso trabalho em História Oral e mais o processo que
nos fazem aproximar desses instrumentos. Processos sempre inacabados, mas que, pelo rigor, as
demandas que os constituem tendem provisoriamente a anunciar um ponto final.
ALBERTI, Verena. De “versão” à “narrativa” no Manual de História Oral. História Oral. v. 15, n.
2, p. 159-166, jul-dez 2012.
BOM MEIHY, José; HOLANDA, Fabíola. História Oral: como fazer, como pensar. São Paulo:
Contexto, 2013.
BOM MEIHY, José Carlos Sebe; RIBEIRO, Suzana L. Salgado. Guia Prático de História Oral:
para empresas, universidades, comunidades, famílias. São Paulo: Contexto, 2011.
DIAS, Cleber; FORTES, Rafael; MELO, Vitor. Sobre as ondas: surfe, juventude e cultura no
Rio de Janeiro dos anos 1960. Revista Estudos Históricos, v. 25, n. 49, 2012.
PORTELLI, Alessandro. Tentando aprender um pouquinho. Rev. Projeto História, São Paulo, v.
15, abr., 1997.
SILVA, Fernando Alexandre Guimarães da. Dicionário do surf: a língua das ondas. Ilustrações de
Andreia Ramos. Florianópolis: Cobra Coralina, 2004.
Luiza Aguiar dos Anjos
Suélen de Souza Andres
* Instituto Federal do Rio de Janeiro – Campus Engenheiro Paulo de Frontin; Doutoranda em Ciências
do Movimento Humano/UFRGS. .
** Universidade Federal do Rio Grande do Sul/ Doutoranda em Ciências do Movimento Humano/UFRGS. 1 Para
dados dessa participação, ver Ribeiro et al. (2013).
do Sul.2 Foram elas: Eliana Cecília dos Santos, presidente da Federação de Ginástica
Artística, Rítmica, Trampolim, Aeróbica e Acrobática do Rio Grande do Sul; Laura Dias
Pantoja, presidente da Federação Gaúcha de Patinagem; Simone Philippi, vice-presidente da
Federação Gaúcha de Arco e Flecha; Tatiana Capra de Castro, vice-presidente da
Federação Gaúcha de Esportes Equestres; Andréa Benitez Fermino Ilha, presidente da
Associação Rio-grandense de Jet-ski; Vera Lúcia Mastracusa, presidente da Federação
Gaúcha de Badminton.
Tais depoimentos foram produto de entrevistas semiestruturadas, cujos roteiros
foram elaborados focando no envolvimento dessas mulheres com os esportes, sua atuação
na gestão esportiva e, mais especificamente, nas federações.
Utilizamos como eixo teórico-metodológico, a História Oral, adotando uma postura
com relação à história e às configurações socioculturais que privilegia a recuperação do vivido,
conforme concebido por quem viveu (ALBERTI, 2005, p. 23).
Para sistematizar o material empírico, analisamos as transcrições das
entrevistas e organizamos as informações encontradas em duas unidades de análise, sendo
elas: a trajetória dessas mulheres no campo esportivo, até sua atuação nas federações que
presidem; questões de gênero na gestão esportiva, na qual procuramos analisar como as
relações de gênero perpassaram a trajetória de nossas entrevistadas nesse campo de atuação.
Complementarmente, fizemos uma busca bibliográfica sobre o tema “gestão
esportiva”, focando em “mulheres gestoras no esporte”, com o intuito de melhor
compreender o cenário no qual suas experiências se concretizavam.
2
Essas entrevistas fazem parte do acervo do Projeto Garimpando Memórias, do Centro de Memória do
Esporte (CEME/UFRGS), aprovado pelo Comitê de Ética da UFRGS sob o número 2007710.
Tradução livre do inglês) demonstra a importância dada à questão por tal fórum e a
provável dificuldade em modificar o cenário de prevalência masculina.
Apesar dessa orientação, o próprio COI não alcançou tal meta, tendo em vista que
entre seus membros há 18% de mulheres (Comitê Olímpico Internacional, 2017). Essa
situação de disparidade evidencia-se também nas entidades nacionais de diferentes países. Na
Alemanha, 3,4% das Federações são presididas por mulheres (PFISTER; RADKE, 2007). Em
Portugal, duas das 28 Federações ligadas ao COI (7,1%) têm uma mulher no comando
(JAEGER et al., 2010), nas quais as mulheres representam apenas 15,9% dos membros
(PINTO, 2009). Na Espanha, elas compõem 9,98% das integrantes de Federações e órgãos
diretivos da administração esportiva do país (FERNÁNDEZ; VENTURA, 2007). No
Brasil, por sua vez, as mulheres ocupam 7,7% dos cargos nos principais órgãos diretivos de
âmbito nacional (GOMES, 2008), conforme exposto na tabela 1:
Em trabalho de revisão acerca do perfil de gestores esportivos, Karnas (2010) verificou que,
de seis pesquisas, cinco identificaram exclusividade ou amplo predomínio (80% ou mais) de
homens. A exceção se dá em um trabalho que analisava gestores públicos, entre os quais 68,5%
eram concursados, cujo ingresso no posto não demanda a superação de eventuais discriminações
de gênero (AZEVEDO; BARROS, 2004).
Analisando um outro campo de atuação do gestor esportivo, os clubes socioculturais e
esportivos, Bastos et al. (2006) identificaram que todos os administradores das sete instituições
paulistas que participaram da pesquisa são homens. Já Santana et al. (2012), focando nos gestores
de academias fitness, verificaram que 68,7% são homens.
Percebemos, antão, que a sub-representação atravessa diferentes campos do esporte. Isso
não significa que todas as gestoras enfrentam situações similares. Nesse sentido, passamos, agora,
à análise das experiências das gestoras entrevistadas.
3A Federação possui 12 cargos, mas 4 estão vagos. Consideramos apenas os 8 atualmente ocupados.
Possivelmente contribui para isso, o fato de nenhuma dessas modalidades possuírem uma
representação associada à masculinidade. Nesse sentido, a circulação de mulheres na prática cerca-
se de menos obstáculos, o que pode desdobrar-se também na gestão. Essa tese é defendida por
Tatiana de Castro (2007, p. 4): “O hipismo é o único esporte onde homens e mulheres competem
em igualdade de condições. Sendo assim, a cultura de que não há diferença entre os sexos começa
dentro das pistas e se expande para os cargos administrativos e gestores.”
No caso da ginástica, em que, por sua vez, algumas modalidades são associadas à
feminilidade verifica-se uma presença maior de mulheres também nos postos de comando. Além
de ter sido a modalidade cuja federação gaúcha tem o maior percentual de mulheres entre as
entidades que pesquisamos, segundo o trabalho de Gomes e Mourão (2006), suas federações
nacionais possuem 90% dos cargos diretivos ocupados por mulheres (GOMES; MOURÃO, 2006).
Apesar disso, todas as entrevistadas afirmam que as mulheres ainda são minoria na gestão
de suas modalidades esportivas, ainda que percebam um aumento desse número. Para Vera
Mastracusa, a sub-representação relaciona-se com a demanda do cargo, incompatível com a
dedicação que se espera que uma mulher dê a sua família: “a gente tem muitas atividades, tem que
estar viajando muito, tem que estar muito fora da nossa casa, do nosso lugar de origem. Então, eu
acho que isso dificulta um pouco para quem tem família, para quem tem filho” (2017, p. 3). De
fato, a conciliação da vida profissional e pessoal é comumente apontada como um obstáculo para
as mulheres que desejam ocupar cargos técnicos e diretivos no esporte (JAEGER et al., 2010;
FERREIRA et al., 2013; GOMES, 2008).
Em consonância, Laura Pantoja destacou que a compreensão do marido quanto a seu
envolvimento e seu apoio na realização das tarefas domésticas foi fundamental para possibilitar sua
atuação na Federação, que se soma às suas atividades profissionais. Ela relata que no momento que
o marido se aposentou, ele assumiu as tarefas domésticas, possibilitando seu maior envolvimento
na entidade. E, mesmo anteriormente, o envolvimento compartilhado com a filha na vivência da
modalidade parece indicar que o esporte fez parte das relações familiares, ao invés de competir com
elas. Situação essa, similar à de Tatiana de Castro, cujo pai e irmão também cavalgam, sendo que o
pai chegou a exercer três mandatos como presidente da Federação, antes dela assumir a vice-
presidência.
Apesar de perceberem-se como minoria, as gestoras acreditam não serem tratadas de modo
desigual em relação aos homens. A única a mencionar ter experenciado situações de preconceito
foi Eliana dos Santos. Todavia, ainda que ela conte que as mulheres de sua geração encontraram
dificuldades em serem aceitas como gestoras, ela entende que atualmente ser mulher não lhe impõe
dificuldades. Por outro lado, ela cita situações que considera constrangedoras, como a seguinte: “Já
aconteceu de eu chegar com meu companheiro em um almoço e não ter lugar para ele sentar, ou
então, quando mandam convite mandavam só para mim... Quando normalmente mandam para um
gestor homem mandam para o casal...” (2007, p. 9).
Verificamos que as experiências das entrevistadas com relação à gestão esportiva se deram
a partir de experiências distintas no que tange ao modo e momento de envolvimento com o esporte,
tempo de dedicação à federação e motivações para tal.
O sucesso que alcançam na gestão parece relacionar-se com a habilidade e condição de
conciliarem sua vida profissional e familiar, com a atuação na federação, o que é apontado como
possível diante de compreensão e apoio por parte de seus familiares.
O percentual de mulheres nas federações presididas pelas entrevistadas é maior que a média
nacional na Federações pesquisadas, mais, ainda assim, elas são e se percebem como minoria, ainda
que não identifiquem um tratamento desigual por seus pares pelo fato de serem mulheres.
Cabe registrar que as modalidades nas quais atuam não são tradicionalmente associadas à
masculinidade, o que pode ter contribuído com sua inserção e ascensão nas federações. Além disso,
com exceção da ginástica, não se tratam de modalidades com grande reconhecimento e prestígio
no cenário esportivo nacional. Nossas fontes não permitem afirmar que isso também exerceu
influencia em suas trajetórias na entidade, mas é um elemento que merece ser considerado em
pesquisas futuras.
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Figura 1 – Ex-mineiros depoentes do Projeto Memória Mineira confraternizando após as entrevistas (2002)
Walter Benjamin (1985) afirmou que a arte de narrar estava em vias de extinção, devido a
sua constatação acerca da pobreza da experiência comunicável. Para ele, nem mesmo as
experiências vividas em uma grande guerra tornavam rica a comunicação. As percepções de
Benjamin nos auxiliam a compreender sobre a figura do narrador, na medida em que o autor percebe
no escritor russo Nikolai Leskov um primoroso exemplo.
Enfim, se através de Benjamin observamos um tipo ideal de narrador, por outro se deve
insistir na possibilidade de um tipo ideal de ouvinte, e que juntos caminhem rumo a uma experiência
comunicável profícua. Fala e escuta são duas faces de um procedimento disciplinar que descortina
cenários de maneira a apresentar um olhar muitas vezes oculto nas páginas da história. Trata-se da
História Oral, que para alguns exerce o papel de técnica, a outros de uma disciplina e a outros,
ainda, de uma metodologia.
Em 1872, com a autorização concedida pelo governo imperial para o funcionamento da
empresa formada pelo inglês James Johnson e por Ignacio José Ferreira de Moura – a The Imperial
Brazilian Collieries C. Limited – teve início o processo de formação da indústria carbonífera
nacional, na localidade de Arroio dos Ratos. A partir daí, esta atividade alastrou-se para os
municípios vizinhos de Butiá, Charqueadas e Minas do Leão, outrora pequenos distritos
pertencentes ao distrito Sede (São Jerônimo), que juntamente com Arroio dos Ratos formaram em
torno da indústria carbonífera uma espécie de microcivilização mineira e católica. (ECKERT,
2012). As narrativas sobre o período áureo da mineração de carvão nesta localidade (década de
1940) perpassam gerações, e tratam-se de representações deste universo que marcou os pequenos
distritos mineradores.
Conforme Sulzbach (1989), a mineração de carvão no subsolo situa-se dentro dos seguintes
processos sucessivos: a abertura de galerias, extração do mineral, seu transporte até a saída do poço
e seu traslado para a superfície. Estes são aspectos de um cotidiano de trabalho extinto na região
aqui estudada. Porém, a identidade da categoria dos trabalhadores mineiros ainda assenta-se,
sobretudo, nas memórias daqueles que enfrentaram os perigos da profissão, quando esta se
encontrava em sua forma mais rudimentar. Conforme Amado (1995, p. 40) esta condição é
característica da memória, ou seja, “[...] sua capacidade de associar vivências individuais e grupais
com vivências não experimentadas diretamente pelos indivíduos ou grupos: são vivências dos
outros, das quais nos apropriamos, tornando-as nossas também, por meio de conversas, leituras,
filmes [...].”
Entre os trabalhos de destaque sobre a temática da mineração de carvão está a dissertação
de Mestrado de Cornelia Eckert (1985). Na terceira parte de sua pesquisa, que tem como título “A
esfera do trabalho”, a autora analisa a representação feita por mineiros no município de
Charqueadas sobre sua unidade produtiva, a natureza, organização do trabalho e o processo de
disciplinamento da força de trabalho. (ECKERT, 1985). Destaca-se, ainda, nesta análise, que ela
não teve como ponto de partida a lógica do capital, mas sim o que os mineiros falavam sobre sua
própria práxis.
Esse cotidiano de trabalho com cheiro de morte, muito comum na exploração carbonífera
de subsolo, aparece muitas vezes descrito através de entrevistas feitas com os próprios
trabalhadores. Lembrando que a pesquisa de Eckert (1985) situa-se nos anos 1980, assim alguns
detalhes citados em sua dissertação diferenciam-se do cotidiano de anos anteriores, onde, por
exemplo, ao invés do uso de lanternas pelos mineiros, o objeto que servia de iluminação era o
lampião a carbureto. Em entrevista ao projeto Memória Mineira, no ano de 2002, J.A.L. falou sobre
o uso do lampião e da lanterna:
Abaixo dois depoimentos também cedidos ao projeto Memória Mineira, que revelam a
organização dos turnos de trabalho e o cotidiano de extração entre as décadas de 1940 e 1950:
O turno de trabalho era de oito horas. Por exemplo: das sete horas às três, das três da tarde
às onze da noite, das onze às sete da manhã. Esses quatro turnos que eu estou falando foi
no período de seis horas de trabalho, que anteriormente eram oito horas, em vinte e quatro
horas eram três turnos. O trabalho era perigosíssimo. O serviço mais perigoso que existe
no mundo. Eu trabalhava nas galerias, muitas vezes caiam pedras e matavam operários,
pois não havia segurança de maneira que chegasse às frentes que estavam extraindo
carvão. Não podiam escorar na mesma hora e às vezes caiam pedras. (R.M.A., 2002).
Eu vou explicar como são as galerias. O carvão é por piso. Eu acho que eles tiraram o
segundo piso e começaram a dinamitar a mina, sem regra. Se era para a galeria durar dez
dias, ela durava dez dias, porque o senhor fura com três metros de largura, dois e oitenta
por um metro e oitenta de altura, dois metros e depois a mina volta com dez metros de
largura por cinco, seis de altura, porque tira o carvão da frente e depois vem tirando da
coberta, porque o carvão é todo em camadas dentro da mina. É vinte de pedra, o carvão
da briga, que é um carvãozinho muito especial, uns dez, quinze centímetros; depois uma
pedra de quarenta por quarenta centímetros; um metro e cinquenta de carvão, que é a
“coberta”, e é tudo separadinho, é a mesma coisa que o senhor olhar isso aqui, essa parede
aí, pintada. A mina é uma coisa muito importante, como é que a natureza pode acalmar
aquilo tudo, não é? Pedra, carvão, pedra, carvão, pedra. Tudo separadinho, tudo separado
e... compacto. Então é uma coisa, tem que dinamitar para poder tirar. (P.J.G., 2002).
Figura 2 – Madeireiros no subsolo de uma mina de carvão no Rio Grande do Sul (aproximadamente década de 1950)
Assim, mesmo em meio à dura rotina de trabalho nas minas de carvão, são nas várzeas
cobertas pelos rejeitos do carvão mineral que os operários e patrões da indústria carbonífera local
constituíram seus clubes de futebol, que por sua vez também integravam a dinâmica social de uma
comunidade erguida em torno das minas.
[...] aconteceram alguns fatos pitorescos relativos aos embates entre “Guarani” e
“Brasil”. João Tissot – hoje falecido – que veio de Rio Grande, onde era proprietário
de uma colônia, para trabalhar aqui nas oficinas (ao lado dos estaleiros) no setor de
calderaria contou-me que ele, durante uma partida, arrancou com uma dentada um
pedaço da orelha de um alemão, que jogava no “Guarani”, chamado Gianequinha.
Foi condenado a dois anos na penitenciária. Algum tempo depois, ele me relatou que
errou a bocada, não era para ser na orelha, e sim na carótida. Em uma outra ocasião,
o seu João reclamou que estava com dor de dente. Sugeri, então, que fosse a um
dentista, que ficava perto de onde nós estávamos. Respondeu a mim que não iria
arrumá-los, pois por conta de estarem bons, terminou passando uma temporada na
penitenciária. Se colocasse uma dentadura, corria o risco de passar o resto da vida
numa cadeia! (J. A. L., 2002).
Entretanto, a vida do homem trabalhador era mais variada do que a da mulher casada,
visto que sua maior parte era passada nos centros de lazer do ambiente de trabalho,
sobretudo no pub e nos jogos de futebol, ambientes tipicamente masculinos.
(HOBSBAWN, 2000, p. 273).
1
Empresa que controlou a exploração do carvão mineral na região de 1936 a 1964.
[...] eu era a lavadeira do Brasil, eu lavava aqui na valeta da água quente [ E quanto a
senhora cobrava?] Não! Eu não cobrava! Ora, se eu ia cobrar, se eles não tinham dinheiro
nem pra eles, nem pra comprar uniforme! Assim ó: eu tinha os meus filhos pequenos e
era assim ó, aí vê a extensão do que a gente faz por amor: eles jogavam domingo e
segunda-feira eu tinha que estar ali na sanga para secar para terça-feira, as meias que
custavam a secar. Eram passadas a ferro para terça-feira eles treinarem e lavava para
quinta-feira eles treinarem e lavava para domingo eles jogarem... por que eles não tinham
o luxo de ter dois ou três uniformes [E alguém lhe ajudava ou era a senhora sozinha?]:
Eu! E assim, também nunca se explorou se alguém queria fazer. Não... e ele veio e me
pediu e eu topei. (C. A. M., 2017).
2
Estes também contavam com o investimento ou outras formas de apoio das companhias mineradoras, tal
como o caso da Sociedade Bailante “Filhos da Lua”, que em manuscrito de seu presidente, Sabino Antônio de
Moraes, endereçado ao Engenheiro Chefe da Carbonífera Rio Grandense (Butiá), Augusto Baptista Pereira,
solicitava o apoio da administração da empresa.
Além de se constituírem em espaços de entretenimento e sociabilidade, os clubes de futebol
são locais onde a complexidade das relações se expressa. Podem representar, assim, espaços de
dominação, resistência, construção de identidade, mas, ao mesmo tempo, revelar as contradições
da sociedade.
O foco inicial da investigação que vem sendo realizada são doze clubes de futebol criados
entre as décadas de 1910 e 1950, na região carbonífera do Rio Grande do Sul, filiados à Federação
Gaúcha de Futebol. Estas agremiações tiveram atuações significativas entre as décadas de 1940 e
1960. A partir da década de 1960, em convergência com o período de decadência da indústria do
carvão, nesta localidade, estes clubes começaram a se deparar com dificuldades financeiras e de
organização. Esta situação os levou ao fechamento, ou mesmo à extinção das equipes principais,
mantendo apenas, em situação de extrema precariedade, suas sedes e, em alguns casos, as equipes
de veteranos.
Este texto tratou, no entanto, de apresentar alguns aspectos a serem considerados sobre o
desenvolvimento destas equipes de futebol através dos relatos orais de alguns de seus integrantes,
outrora concedidos ao Projeto Memória Mineira e, também, pelas entrevistas que vêm sendo
realizadas durante a pesquisa. Pretendeu-se, assim, levantar indícios de como as relações entre os
sujeitos envolvidos nestas agremiações (majoritariamente formadas por operários e patrões da
indústria carbonífera e suas redes) podem vir a revelar, formas de resistência, tensões, conflitos,
arranjos, dominação, contradições, isto seja através, da intervenção da companhia mineradora, em
relação ao papel das mulheres nos clubes, da questão dos jogadores operários ou mesmo dos
projetos políticos diversos presentes nestes espaços.
BENJAMIN, Walter. Obras Escolhidas: magia e técnica, arte e política. São Paulo: Brasiliense,
1985.
_____. Os homens da mina: um estudo das condições de vida e representações dos mineiros de
carvão em Charqueadas – Rio Grande do Sul. 1985. Dissertação (Mestrado em Antropologia
Social) – Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Porto Alegre, 1985.
HOBSBAWN, Eric. Mundos do trabalho: novos estudos sobre história operária. Rio de Janeiro:
Paz e Terra, 2000.
SULZBACH, Ervino Lothar. Perfil de um minerador. Arroio dos Ratos, RS: PBS, 1989.
Cristian Giacomoni*
2
Segundo Carneiro (2001), a denominação de Ensino de 2º Grau é determinada pela Lei nº 5.692, de
1971, com duração de 3 a 4 anos, porém ultrapassava os 3 anos, caso o aluno optasse em realizar um Curso
Profissionalizante. A titulação de Ensino Médio é referida pela Lei nº 9.394, de 1996, que passa a ter uma
duração de 3 anos de estudos.
registros pessoais e também de todas as práticas vividas, pois estas possuem uma validação
relativa e histórica, porque se constituem perante o ambiente social. Segundo Nunes (2003,
p. 11), “a sociedade determina em boa medida como devemos desempenhar nossas
funções e com que categorias vamos pensá-las, o que vale tanto para o indivíduo quanto para
a coletividade”.
O objetivo deste artigo é analisar nas memórias da professora Jaqueline Gedoz
Vita, representações das práticas desenvolvidas em suas aulas de Educação Física nas séries
primárias do Grupo Escolar Giuseppe Garibaldi. Além disto, identificar possíveis culturas
materiais, práticas, didáticas e formas de organização das suas aulas de Educação Física.
Para que o artigo fosse concretizado, realizei uma entrevista piloto3 com a professora
Jaqueline Gedoz Vita, no dia 31 de março de 2017, em sua residência. A entrevista foi
semiestruturada, inicialmente com 10 perguntas, tendo duração aproximada de uma hora,
pois sempre que surgiam dúvidas, curiosidades ou necessidade de aprofundamento ao
tema, o autor intervia com novas perguntas.
Para Nunes (2003), as memórias quando usadas como fonte de pesquisa
permitem possibilidades de articulação do pesquisador e seu objeto de pesquisa. Essa
capacidade dos seres humanos de comunicar e interagir através do discurso é que torna nossas
memórias vivenciadas em outros momentos mais concretas, pois constituem-se a partir das
“[...] memórias do que sentimos e experimentamos ao vivermos, [...]” (NUNES, 2003, p. 14).
As memórias pessoais, profissionais e sociais, construídas no cotidiano escolar
da professora Jaqueline, serão analisadas sob os aportes teóricos da História Cultural e,
também, da História da Educação. A História Cultural possibilita uma nova forma em relação
à utilização de fontes de pesquisa em História. Como afirma Castanho (2006, p. 139), a
História Cultural “ocupa-se, de um lado, com as bases materiais e sociais da existência
humana, e, de outro, com as ideias mediante as quais os homens representam essa existência”.
A História Cultural está situada no
[...] conceito de cultura como objeto de investigação, no estudo das representações sociais,
das práticas culturais e do processo de apropriação. As representações construídas sobre o
mundo não só se colocariam no lugar do mundo, como fariam com que os homens
percebessem a realidade e a partir delas pautassem sua existência. Seriam elas as geradoras
de condutas e práticas culturais e sociais (VIEIRA, 2015, p. 371).
3
Essa entrevista piloto compõe o projeto de dissertação de Mestrado em Educação de Cristian Giacomoni, pela
Universidade de Caxias do Sul (UCS), pré-intitulado Escola Giuseppe Garibaldi e o ensino da Educação Física
(Caxias do Sul/1976-1989).
[...] da compreensão e ancorado na ideia de que os estudos em História da Educação
surgem da necessidade de uma renovação teórico-metodológica, temos por base que estes
trabalhos pretendam dar voz aos esquecidos, aos atores envolvidos nos processos
educativos, ao cotidiano escolar, aos aspectos da cultura escolar, bem como enfatizar uma
visão mais profunda dos espaços sociais, materiais, culturais e políticos [...]. (BICA, 2012,
p. 1).
O instrumento utilizado para narrar esta história, ancorada na metodologia da História Oral,
e analisada sob a teoria da História Cultural e da Educação, foi a entrevista semiestruturada,
fundamentada nos conceitos de Triviños (1987), com atenção à elaboração de perguntas básicas
que direcionem o pesquisador para o tema a ser investigado. A entrevista estrutura-se nas perguntas
fundamentais que estão relacionadas e apoiadas em teorias e hipóteses que realizam conexões ao
objeto deste artigo. Triviños (1987, p. 152) afirma que a entrevista semiestruturada “[...] favorece
não só a descrição dos fenômenos sociais, mas também sua explicação e a compreensão de sua
totalidade [...]”. Complementa Ribeiro (2008 p. 141), que a entrevista se constitui como:
A técnica mais pertinente quando o pesquisador quer obter informações a respeito do seu
objeto, que permitam conhecer sobre atitudes, sentimentos e valores subjacentes ao
comportamento, o que significa que se pode ir além das descrições das ações,
incorporando novas fontes para a interpretação dos resultados pelos próprios
entrevistadores.
Os aportes teóricos e metodológicos para este artigo tiveram sua base nos pressupostos de
Ferreira e Amado (2005), em que a História Oral ordena e estabelece procedimentos de trabalho,
nas diversas formas de transcrever as entrevistas, nas formas de interação entre entrevistador e
entrevistado, realizando, desta maneira, uma conexão entre a teoria e a prática. A memória é o
componente fundamental para que utilize desta metodologia, pois
A História Oral valoriza as memórias dos sujeitos entrevistados, ou seja, de quem vivenciou
o acontecimento que hoje é o objeto de pesquisa, produzidas a partir das inquietações e
questionamentos do pesquisador. Para Thompson (1998), a memória está ligada na construção desta
história, pois:
Toda fonte histórica derivada da percepção humana é subjetiva, mas apenas a fonte oral
permite-nos desafiar essa subjetividade: descolar as camadas de memória, cavar fundo em
suas sombras, na expectativa de atingir a verdade oculta (THOMPSON, 1998, p. 197).
A análise dos conceitos expostos das dimensões da memória foram tratados como explica
Grazziotin (2008, p. 62), em que o esquecimento pode ser observado em sociedades “submetidas a
regimes totalitários [...] que tudo fez para provocar a amnésia forçada de uma sociedade, levada a
esquecer o que não é desejado num determinado tempo, implantando outra memória, condicionada
a um regime de verdade intencionalmente criado”.
Os reavivamentos da memória são constituídos num processo inversamente ao processo dos
esquecimentos, pois, nesse, os indivíduos e/ou as comunidades acabam se submetendo “a um
processo de coleta de vestígios, sinais, marcas que ficaram nas recordações das pessoas, nos
registros em papéis, em fotografias, em imagens, em símbolos, em festas e demais marcadores que
são capazes de identificar um tempo passado” (GRAZZIOTIN, 2008, p. 62).
Estes dois fatores das dimensões da memória foram analisados, segundo a História Cultural,
a História da Educação e a História Oral, representando as práticas das aulas de Educação Física a
partir das lembranças da professora Jaqueline Gedoz Vita. Em grande parte, as memórias da
professora suscitaram reavivamentos de fatos marcantes das práticas e culturas dessas aulas de
Ensino Primário.
Os documentos foram interpretados, conforme Luchese (2014, p. 149), partindo do
entendimento em que todos os documentos do passado que chegam ao investigador “são plenos de
relações, de jogos de sentido e significação, construídos e preservados no tempo para as gerações
futuras”. Os documentos, desta forma, precisam ser montados e desmontados, lidos e interpretados,
categorizados e analisados, pois, somente, desta maneira é que poderão ser articulados, a partir dos
indícios que se apresentam, construindo assim uma narrativa histórica plausível, possível e
verossímil (PESAVENTO, 2003).
Além disto, a História Cultural possibilita a articulação destas memórias com os contextos
vividos naquela época, suas relações, suas conexões, suas tensões, suas práticas, suas culturas
particulares, pois “elas estão ancoradas em espaços e lugares nos quais circulamos, em grupos
sociais de diferentes tipos aos quais pertencemos, em objetos que manipulamos.” (NUNES, 2003,
p. 15).
Na sequência, apresento a contextualização do Grupo Escolar Giuseppe Garibaldi, no
município de Caxias do Sul, dentro do período pesquisado e adentro as representações das práticas
das aulas de Educação Física, nas séries primárias do Grupo Escolar Giuseppe Garibaldi, através
das memórias da professora Jaqueline Gedoz Vita.
Nesta seção, o texto estrutura-se de modo que reconstrua, mesmo que de forma
fragmentada, o processo de desenvolvimento da disciplina de Educação Física constituído em
Caxias do Sul-RS, no Bairro Boa Vista4, assim como relacionam-se às memórias da
professora Jaqueline Gedoz Vita sobre os primeiros tempos do Grupo Escolar Giuseppe
Garibaldi e das suas aulas de Educação Física.
O Grupo Escolar Giuseppe Garibaldi foi fundado no ano de 1974 em uma casa simples
construída de madeira. Segundo o livro disponibilizado pela Escola Municipal de Ensino
Fundamental Giuseppe Garibaldi, denominado Caderno de Reuniões com os Professores (1974-
1976), a escola constituiu-se no dia 25 de janeiro de 1974 quando,
[...] a Associação do Bairro Boa Vista realizou uma reunião com a presença do senhor
prefeito municipal Mário Bernardino Ramos e seu secretariado. Entre as reivindicações
para o bairro foi citada a necessidade de uma escola afim de atender ao grande número de
crianças. O senhor prefeito sugeriu que a escola funcionasse no mesmo salão, onde estava
sendo realizada a reunião, ou seja, o prédio pertencente ao senhor João Neves, sito à Rua
Angelina Michelon com frente para a BR-166 (EMEFGG, 1974, p. 1).
A residência em que a instituição começou a funcionar era destinada para moradia familiar,
portanto, necessitou de alguns ajustes para conseguir atender às necessidades básicas dos alunos.
Ernesto Romualdo Rissi, presidente da Associação de Moradores do Bairro Boa Vista, em 1974,
juntamente com a ajuda de outros membros da sociedade, foi quem reformou todo o espaço,
dividindo o mesmo em 3 salas de aula para atender 3 turmas pela manhã e 3 turmas pela tarde. No
primeiro ano, a escola já atendia aproximadamente 90 alunos que possuíam aulas de 1ª à 4ª série
(EMEFGG, 1974).
Natural de Caxias do Sul, a professora Jaqueline Gedoz Vita constituiu sua formação básica
em escolas públicas municipais e estaduais da cidade. De 1977 a 1980 realizou sua formação de 2º
grau no Instituto Estadual de Educação Cristovão de Mendoza, onde teve a oportunidade de realizar
em paralelo o curso de magistério. Esta titulação permitiu que a professora pudesse lecionar para
turmas de 1ª a 4ª séries do Ensino Primário (VITA, 2017).
Em seguida, a professora relata que cursou Faculdade de Estudos Sociais e História, em
que,
[...] existia a curta duração que era 3 anos e depois eu fiz a plena em História, que foi de
1980 a 1985 que foi quando eu me formei. Mas aí, neste meio tempo, que eu estava
estudando, eu dava aula no Giuseppe Garibaldi para os anos iniciais e eu gostei muito de
trabalhar com os pequenos. Então, eu só me formei em História, mas nunca atuei, eu fiquei
sempre com os anos iniciais (VITA, 2017).
4
No ano de 1974, o Bairro Cristo Redentor, como é denominado, atualmente, era popularmente conhecido
como Bairro Boa Vista. Esse nome foi dado pelos moradores ao afirmarem que o bairro possuía uma vista
bonita (CAXIAS DO SUL, 1986).
anos subsequentes alternou entre 1ª a 4ª séries. Nos anos de 2003 a 2005 tornou-se Diretora da
escola e, na sequência de 2006 a 2009, foi empossada Coordenadora Pedagógica do Giuseppe
Garibaldi. Após realizou uma Pós-graduação em Formação para Adultos (EJA), trabalhou por mais
2 anos e se aposentou (VITA, 2017).
A sua relação direta com o ensino no Grupo Escolar Giuseppe Garibaldi começou no ano
de 1982 com seu ingresso para ministrar aulas para 1ª série. Recorda que realizou um curso
intensivo de alfabetização, oportunizado pela Secretaria de Educação, que sempre incentivava os
professores ao aperfeiçoamento de suas formações. Uma ocorrência marcante da narrativa de Vita
(2017), está no fato de ministrar “aula para 1ª série, sempre para 1ª série, durante 10 anos, e, como
te disse, eu gostei tanto dos pequenos e do Giuseppe que eu sempre fiquei lá”.
Quando adentro no campo da disciplina de Educação Física, Jaqueline destaca que a
[...] Educação Física era assim muito “bitolada”, pois só tinha um pedaço do pátio coberto;
não existia o local onde hoje tem um ginásio. E nós tínhamos só bola e corda, mais nada.
Era a professora da turma que dava e outra coisa muito sério e errado foi, que a gente dava
quando podia. Não existia uma fiscalização, não existia alguém que cobrava que dissesse
assim. É importante para os alunos ter Educação Física. Se a gente estava atrasada no
conteúdo, ficávamos dando aula a mais, pois os alunos não tinham esta divisão de períodos
de aula; eles tinham toda a tarde com a mesma “profe”. E, às vezes, assim quando a turma
estava muito agitada, a gente levava lá embaixo para brincar, digamos um recreio
prolongado [...] (VITA, 2017).
Ainda no antigo prédio de madeira, as aulas de Educação Física praticamente não existiam,
ou eram realizadas na rua em frente à escola, por que naquele período existiam poucos automóveis
e, desta forma, as ruas eram usadas para prática das aulas. As práticas ocorriam através de
brincadeiras lúdicas, mas também seguiam um viés desportista com o uso dos métodos ginásticos
e de atletismo. A disciplina encontrava-se sem rumo, pois os educadores não sabiam para qual
propósito ou finalidade deveriam ministrar essas aulas, seja para criar crianças fortes e saudáveis
ou desenvolver princípios sociais e humanos (VITA, 2017).
Apesar de relatar estes fatos na narrativa concedida, o Diário de Classe da 1ª série (1984)
de Jaqueline Gedoz Vita, demonstra que as suas práticas possuíam um propósito e objetivo pré-
determinado. Em grande parte, os planos de aula possuíam, como intuito, o desenvolvimento da
psicomotricidade, motricidade geral (ampla) e específica (fina) e o desenvolvimento motor dos
alunos do Ensino Primário.
A conceito de psicomotricidade desenvolve-se através da evolução da complexidade das
atividades aplicadas, partindo de aspectos amplos para os finos, definidos por Rossi (2012, p. 2),
como todas as atividades que contribuem para que os alunos desenvolvam o conhecimento-
aprendizado e “o domínio de seu próprio corpo. Ela, além de constituir-se como um fator
indispensável ao desenvolvimento global e uniforme da criança [...], se constitui como a base
fundamental para o processo de aprendizagem dos indivíduos”.
A seguir, na Figura 2, fica explícita a intenção do trabalho com a psicomotricidade nas aulas
de Educação Física, dentro das séries primárias, partindo de conceitos de motricidade ampla para
transposição em sala de aula direcionada à motricidade fina. Percebe-se uma preocupação da
professora em realizar sempre um processo pedagógico dos exercícios correlacionados a atividades
de outras disciplinas, mesmo que estas fossem ministradas somente por ela.
Cabe ressaltar que, neste período, o Brasil ainda estava vivendo um período de ditadura
militar. Porém, a professora Jaqueline não menciona, em nenhum momento, em sua entrevista, a
influência de métodos propostos pelo governo que visava uma formação mais desportista, em que
[...] o programa de Educação Física nas escolas seria constituído por um conjunto de
atividades de ginástica, jogos, desportos, danças e recreação, com o objetivo de promover
o desenvolvimento harmonioso do corpo e do espírito de equipe de modo que fosse
alcançado o máximo de resistência orgânica e de eficiência individual (PICCOLI, 2006,
p. 26).
Vita (2017) deixa evidente sua preocupação em realizar aulas de Educação Física, mesmo
não possuindo obrigatoriedade por parte de seus superiores. Sempre aproveitava as oportunidades
na sua grade de horários, determinando objetivos, constituindo pedagogias e didáticas voltadas aos
princípios da psicomotricidade, estes evidenciados através do Diário de Classe da 1ª série (1984).
A professora Jaqueline utilizava a psicomotricidade em suas aulas de Educação Física, direcionado
a promover em seus alunos
[...] a formação de base indispensável em seu desenvolvimento motor, afetivo e
psicológico, dando oportunidade para que por meio de jogos, de atividades lúdicas, se
conscientize sobre seu corpo. Através dessas atividades lúdicas, a criança desenvolve suas
aptidões perceptivas como meio de ajustamento do comportamento psicomotor (ROSSI,
2012, p. 2).
As práticas escolares são as formas de agir e fazer incluídas, dentro das culturas que se
formam na escola, e que, também, se perpetuam para comunidade. Entendo estas práticas ocorridas,
a partir dos conceitos de Vidal e Schwartz (2011), como as ações dos alunos dentro do espaço
escolar, que são interativas, criativas, ativas, interferindo como se posicionam naquele ambiente, se
reconhecem frente a ele, criam percepções e experiências daquele mundo particular. As práticas
escolares acontecem perante os diferentes estados de desenvolvimento de cada aluno, entre estes
alunos, seus professores e no contexto do Grupo Escolar Giuseppe Garibaldi, e também através da
comunidade.
É nas memórias da professora Jaqueline Gedoz Vita, nas suas representações das práticas
das aulas de Educação Física que percebo a criação de culturas particulares, daquele grupo e
daquela comunidade. As práticas e culturas escolares envolvendo a Educação Física envolviam
fundamentalmente os alunos, os pais destes alunos e a comunidade de maneira geral. Ocorriam
através da participação de eventos criados pela escola, como: gincanas e bingos ou pela participação
em eventos esportivos promovidos pelo município e desfiles cívicos (VITA, 2017).
Posso destacar a criação de uma cultura no Grupo Escolar Giuseppe Garibaldi, de respeito
mútuo, de normas de conduta dentro da escola e, também, na sociedade, de aprendizado e respeito
às regras dos jogos, de convivência harmoniosa dentro e fora do ambiente escolar e da fomentação
para inclusão de todos os alunos nas aulas. Fica evidente que a criação de culturas e práticas
relacionadas à disciplina de Educação Física envolve diretamente a relação entre comunidade e
escola, nos primeiros anos em que a professora Jaqueline Gedoz Vita ministrava suas aulas.
Através das narrativas da professora de Ensino Primário Jaqueline Gedoz Vita, sobre os
anos de 1982 a 1989, constatei evidências que as aulas de Educação Física, no Ensino Primário, do
Grupo Escolar Giuseppe Garibaldi eram realizadas sem uma prática pedagógica pré-estabelecida
ou algum planejamento estratégico acerca dos conteúdos trabalhados.
Porém, na prática, a professora acabava realizando didáticas e planejamentos das aulas de
Educação Física, fundamentando-se na psicomotricidade, através de aulas lúdicas, buscando,
muitas vezes, uma conexão dos conteúdos trabalhados na sala de aula com as práticas destas aulas
de Educação Física. Em contraponto, revelou que muitas práticas aconteciam apenas do “fazer para
fazer” ou como forma de retirar os alunos da sala de aula para que pudessem extravasar suas
energias.
Ainda de acordo com os relatos da professora Jaqueline, a escola era muito carente de
materiais para o desenvolvimento das aulas de Educação Física, pois possuía apenas algumas bolas,
bambolês, elásticos, cordas e os demais materiais sempre eram adaptados como: garrafas plásticas,
latas de metal, cabos de vassoura, dentre outros. Referência que não era obrigada pelos seus
superiores, tanto pela escola, como também pela Secretaria de Educação, a lecionar a disciplina de
Educação Física nas séries primárias, mas no seu entendimento considerava importante para o
desenvolvimento dos seus alunos.
Analisando a entrevista, o local e o período da formação em Magistério, e também da sua
formação subsequente, posso afirmar que a professora Jaqueline possuiu influências diretas do
campo da disciplina escolar de Educação Física, tanto do magistério, dos cursos realizados na
Secretaria de Educação, bem como das trocas sociais e didáticas realizadas entre escolas e entre
professores.
No entanto, apesar das dificuldades encontradas pelos professores primários do Grupo
Escolar Giuseppe Garibaldi, os alunos tiveram um aproveitamento satisfatório das aulas de
Educação Física, dentro das possibilidades apresentadas daquele período. Destaco ainda, a intensa
iniciativa do grupo de professores, na busca de metodologias de trabalho para suas aulas de
Educação Física, além da troca de materiais didáticos e pedagógicos para formatação destas aulas,
entre as escolas, e, também, entre estes professores primários.
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trabalho do historiador. IX AMPED SUL. Seminário de Pesquisa em Educação da Região Sul. 2012.
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VITA, Jaqueline Gedoz. Diário de Classe da 1ª série (1984): Professora Jaqueline Gedoz Vita.
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_____. Entrevista oral sobre a organização das aulas de Educação Física no Grupo Escolar
Giuseppe Garibaldi, suas práticas e representações. Entrevista concedida a Cristian Giacomoni.
Caxias do Sul, 31 de mar. de 2017.
Gustavo da Silva Freitas*
Leonardo Costa da Cunha**
Douglas Santos Paladino Costa***
O futebol é um dos esportes mais praticados no mundo, sendo que “no Brasil é a forma mais
popular de lazer entre todas as classes sociais” (GONÇALVES, 2002, p.12). Em que pese a
imutabilidade de determinadas regras e características do jogo, não podemos descartar que o mesmo
adquire contornos diversos, a partir dos locais e/ou dos sentidos em que é praticado.
Quem nos alerta para tal condição é Damo (2002; 2003) que, ao classificar a prática a partir
de quatro diferentes matrizes, propõe que retiremos o termo de uma unicidade e passemos a
trabalhar com a ideia mais plural, portanto, “futebóis”. Entre as matrizes indicadas pelo autor está
o futebol comunitário, recorte desse estudo, tratado também a partir de outros termos como de
várzea, amador e de bairro. Ao assumir mais de um termo, o futebol comunitário carrega a
expressividade geográfica ou cultural de onde é praticado. Na região sul do Rio Grande do Sul,
encontramos pelo menos três maneiras distintas de se referir a esse futebol, já destacado em alguns
estudos: futebol amador (CORREIA; FREITAS; RIGO, 2013); futebol de várzea (RIGO;
JAHNECKA; SILVA, 2010); futebol colonial (RIGO; RODRIGUES; WALLY, 2004).
Na cidade de São José do Norte, foco regional de nosso estudo, é utilizado o termo futebol
amador, mas, independente da nomeação dada, é recorrente o envolvimento de toda uma
comunidade sem distinções em torno dessa prática, já que nela não existe “gente de um só bairro,
classe ou grupo social; e se, tampouco, é de pobres, a modalidade que a todos congrega, é sem
dúvida popular” (MAGNANI; MORGADO, 1996 p.12).
Uma das maneiras de mostrar esse envolvimento se dá a partir da formação e manutenção
de um clube. Assim, neste trabalho, contamos parte da história do Esporte Clube Bujuru, um clube
de futebol amador pertencente à cidade de São José do Norte, localizada no litoral sul do Rio Grande
do Sul, banhada pelo Oceano Atlântico e pela Lagoa dos Patos. O município compreende
uma extensão de 1.118,104 km² de terra, cuja população é de, aproximadamente,
25.503 habitantes,1 distribuída em três distritos: 1º São José do Norte; 2º Estreito; 3º Bojuru.
O E. C. Bujuru encontra-se no 3º distrito, mais especificamente na localidade chamada
Vila de Bojuru, localizada cerca de 72 km ao norte de São José do Norte.
Neste trabalho investimos no uso da História Oral comunitária, pois trabalha com o que se
pode chamar de micro-história, anseios, muitas vezes, menos expressivos em termos de reflexão
historiográfica que atende, em primeiro lugar, à utilidade setorial (MEIHY, 2011). A escolha dos
entrevistados partiu, portanto, dos compromissos dessa comunidade que não estavam ligadas a
questões salariais, lucros e demais proventos, mas sim, o envolvimento afetivo de amor e paixão ao
clube. Em suma, na linha de Meihy (2011), deveriam ser pessoas que destinaram parte de sua vida
a uma entidade e que nela deixaram um rastro de história.
Seguindo o critério previamente estabelecido de abranger sujeitos que assumiram diferentes
posições funcionais junto ao clube ao longo do tempo (dirigentes, jogadores e torcedores), uma rede
(MEIHY, 2011) de depoentes foi formada por escolhas do primeiro autor frente sua identificação
com o local e com o clube em estudo, mesclado a indicações feitas pelos próprios entrevistados.
2 O extrativismo é a atividade de extrair da natureza os recursos que estão à disposição do homem, sejam estes
produtos de origem animal, vegetal ou mineral. O extrativismo vegetal no município é realizado em função do
pinus, que é uma planta muito cultivada na região sul do Estado do RS.
3 Em geral, composta por atletas de maior nível técnico para jogar futebol. .
4 É uma categoria mesclada, formada por aspirantes, veteranos e outros jogadores com menor nível técnico.
No total, chegamos a um número de cinco depoentes,5 sendo eles: a) Orlando
Paladino Costa (Orlandinho), 69 anos, considerado o jogador mais vitorioso na história do
clube, sagrando-se campeão municipal em 1965, 1969 e 1983; b) João Luis Martins da Silva
(João Luis), 64 anos, que atuou como presidente e tesoureiro; c) Januário Salvador Xavier
(Salvador), 70 anos, exerceu diversas funções no clube; d) João Brasil Saraiva, 78 anos, que
foi reconhecido no clube como jogador e, também, como treinador, sagrando-se campeão
municipal em 1965 e 1969; e) Lucir Ladir da Rosa (Mari Veiga), 86 anos, teve seu primeiro
contato com o E. C. Bujuru aos seus 17 anos, quando iniciou na categoria do segundo
quadro enquanto jogador. Além das entrevistas, foram acessados documentos do clube como
atas do conselho e da direção relativos ao período de 1967 a 2005, e o livro de sócios de 1985
a 1997.
De posse do material produzido, foi realizado um cruzamento entre as entrevistas
somadas aos documentos, a fim de diversificar as informações, já que a memória coletiva é
fundamental para constituir a análise em História Oral (MEIHY, 2011). Neste cruzamento,
estabelecemos algumas linhas de análise para compreensão da história do clube, levando em
consideração momentos de maior intensidade narrativa advindas dos depoentes. Estas
intensidades foram a emergência do clube e seus primeiros anos de existência; o auge do
clube em termos de conquista de títulos e reconhecimento da comunidade; e a mudança de
sede e seus efeitos para o clube.
Por volta da década de 1930 até o início de 1940, a comunidade de Bojuru era constituída
por poucas casas que se localizavam ao redor da igreja. Nesta época, existiam muitos terrenos
vazios e poucas opções de divertimento. O futebol não era praticado pelos moradores e a
vida acabava se dividindo entre trabalho, festas católicas e carreiras6 (MARI VEIGA, 2016).
Na comunidade residia um médico conhecido por doutor Bigóes. Este era casado com a
irmã de Bolivar Roig, um fazendeiro de família tradicional e com grande quantia de terras na região.
Certo dia, Dr. Bigóes trouxe uma bola para a comunidade e, dentre os inúmeros terrenos da Vila de
Bojuru, escolheu a frente da igreja para reunir alguns jovens e os apresentar o futebol (MARI
VEIGA, 2016).
[...] e aí um dia ele inventou, agarrou uma bola, eu era guri, mas o Zaldir já era mais velho
que eu quatro anos, acho que já tinha uns quatorze anos, quinze por ai e ai ele inventou de
chamar nós pro meio do campo; aquilo ali era tudo aberto [...] ali não tinha casa, só tinha
a igreja, só tinha a igreja ali, nesse tempo [...]. (MARI VEIGA, 2016).
5 As entrevistas foram realizadas entre 11/05/16 e 8/07/16, registradas através de gravador de voz, posteriormente
transcritas e devolvidas aos entrevistados para assinatura do termo de consentimento livre e esclarecido com
identificação nominal.
6 Carreiras são corridas de cavalos em cancha reta, onde o percurso geralmente varia de 200 a 400 metros.
Doutor Bigóes, então, solicitou que todos os jovens ali presentes tirassem os casacos e
montou o campo em frente à igreja. Usando os casacos como trave, separou duas equipes e explicou
como funcionava o jogo, mas “[...] tinha cara que metia [a bola] pra frente e pra trás (risos) pro lado
que tava mais perto (risos) [...]” (MARI VEIGA, 2016).
Após este dia, os jovens da época começaram a se interessar pelo futebol e, assim, Bolivar
Roig tomou iniciativa e convocou a comunidade para uma reunião. A partir daí constituíram um
conselho entre fazendeiros e pessoas com maior poder aquisitivo, na época, para a então fundação
de um clube de futebol na localidade de Bojuru, o que acabou acontecendo em 12 de abril de 1942,
data tida como oficial do E. C. Bujuru.
Durante o processo de fundação do clube, inúmeros dilemas foram decididos em reuniões
do conselho. Entre eles, a decisão sobre as cores do clube, culminando no vermelho e preto. Nesta
questão há narrativas distintas que explicam a escolha. Uma é relatada por Mari Veiga (2016), em
que o mesmo afirma ouvir, quando criança, de seu pai, que era agricultor, que o vermelho seria em
homenagem aos maragatos, revolucionários, também conhecidos como lenços vermelhos, que
lutavam contra os chimangos, lenços brancos, que representavam as forças do Estado na
Revolução de 1923, ocorrida no Rio Grande do Sul7 (Jornal Extra Classe).
Uma segunda narrativa foi trazida por João Saraiva (2016), em que o mesmo acredita que
as cores do E. C. Bujuru tenham sido copiadas de algum clube de muita tradição e reconhecido em
todo o país, muito provavelmente o Flamengo/RJ, que, assim como o E. C. Bujuru, é rubro-negro.
A inspiração das cores no clube carioca tem a distância geográfica entre ambos como contra
argumento, o que faz pensar que essa influência tenha advindo de um clube de futebol mais
próximo. Essa inferência tem a própria memória do autor principal como referência, uma vez que
o mesmo ouvia de seu pai, filho de um fundador, que a cor rubro-negra característica do E. C.
Bujuru se deu em virtude da admiração de muitos dos fundadores pelo Grêmio Esportivo Brasil da
cidade de Pelotas/RS.
Com a localização do clube definida – frente da Igreja – e suas cores escolhidas começou-
se a montar os primeiros planteis da equipe. Em seus anos iniciais de existência ocorreu uma
exclusão racial e social, ou seja, negros e pobres não podiam jogar. Apenas as famílias mais
tradicionais da época, que eram basicamente constituídas por pessoas com grandes propriedades
rurais e muitas cabeças de gado garantiam acesso ao time. Esta segregação não perdurou por muito
tempo e, três anos após a fundação do clube, mais especificamente em 1945, os negros começaram
a participar, uma vez que houve um interesse da comunidade pela melhora técnica do futebol
jogado.
7
A Revolução de 1923 é pouco lembrada porque foi a menos heroica, menos sangrenta, mais curta e não
teve participação popular. Na verdade, não era uma disputa pelo poder político e sim por razões econômicas e
sociais localizadas no RS. Disponível em: http://www.extraclasse.org.br/edicoes/2013/04/chimangos-x-
maragatos/. Acesso em: 24/08/2016.
Após a abertura das portas do clube, aumentou a quantidade de torcedores e jogadores.
Além disso, sentiu-se a necessidade de disputar jogos com outras equipes e, como ainda não
existiam campeonatos municipais, o clube passou a visitar seus adversários, que retribuíam e
também jogavam na Vila de Bojuru. Os jogos eram aos domingos e quando a localização do clube
a ser visitado era muito distante, as saídas ocorriam pela manhã e ao chegar fazia-se um almoço
perto do campo de futebol. A torcida do clube, que era composta basicamente por familiares de
jogadores, acompanhava o time dividindo espaço nos poucos caminhões de carga que existiam na
época.
As condições da estrada eram péssimas, mas, mesmo assim, os torcedores acompanhavam
seus jogadores. Os clubes que se situavam mais próximos à Vila de Bojuru eram o E. C. Guarani e
o E. C. Divisa e a maior parte das visitas se destinavam a estes locais e, muito raramente, o clube
saía para visitar outras equipes.
[...] numa ocasião nós fomos lá no Beira-Mar8, jogar no Beira-Mar, que eu tava
te falando, descemos aqui, a descida era ruim aqui, fomos pela praia, fomos pela
praia e subimos lá no coisa, lá no Beira-Mar, era o que salvava naquele tempo era a
praia, quando era boa, também por pouco tava cheia também, aí tinha que ir no pau
pela estrada [...] (MARI VEIGA, 2016).
No início dos anos 1950, o E. C. Bujuru passou por uma situação de abandono
total, a ponto de cair as traves do campo de futebol e ninguém mais se interessar em jogar ou
administrar (MARI VEIGA, 2016). Essa desmotivação ocorreu muito provavelmente pela
falta de competição oficial, o que ocasionava jogos repetidos com os clubes da região em
forma de amistoso. Outra pista que ajuda a entender esta queda está localizada na relação
entre o trabalho e o tempo livre. Naquela época, segundo os próprios depoentes, as pessoas
quase não tinham tempo para o lazer “[...] era trabalhar, sempre trabalhar; com sete anos eu
já tava trabalhando na roça [...]” (MARI VEIGA, 2016).
A situação foi revertida a partir da chegada na Vila de Bojuru, em meados da década
de 1950, de Alfredo Lisboa, que era de Tavares, cidade vizinha à localidade. O mesmo alugou
uma casa na Vila com o objetivo de colocar um hotel e ali foi fazendo amizade. Certo dia,
tratou de fazer um treino e comunicou a todos a vontade de levantar o E. C. Bujuru novamente,
“[...] botou o chapéu embaixo do braço, assim, e pegou a pedir na volta, pedir nas casas, pedir
pros moradores; nunca me esqueci [...].” (MARI VEIGA, 2016).
Na mesma semana, Édson Palladino, que foi um dos maiores incentivadores
e patrocinadores do clube e que, mais tarde, ganharia o título de patrono do E. C. Bujuru,
pegou o dinheiro arrecadado por Alfredo Lisboa, levantou mais um montante, foi na cidade
“[...] e trouxe um fardamento novo, trouxe bola, trouxe chuteira, aí criou de novo e tá até hoje
V
8
O Grêmio Esportivo Beira-Mar é um clube de futebol amador fundado em 26 de outubro de 1938 e localizado
na 5ª secção da Barra de São José do Norte. Conquistou títulos municipais nos anos de 1995, 2005, 2006, 2008,
2009 e 2011.
[...]”. (MARI VEIGA, 2016). Após a reativação do clube, Édson Palladino, juntamente
com seu irmão Mari Palladino, fizeram uma diretoria e reorganizaram o clube, levando, num
tempo curto, ao que pode ser considerado o auge do clube.
9 Guarda Esporte era o nome dado ao responsável pelos materiais esportivos do clube: camisas, calções, meias,
toalhas, bolas, entre outros materiais. .
10 Em 1970 era pago mensalmente um cruzeiro novo por mês (NCr$ 1,00). Em 1974, a quantia passou para três
cruzeiros novos mensais (NCr$ 3,00) e, em 1978, para dez cruzeiros novos mensais (NCr$ 10,00). Segundo
Salvador (2016), em 1965, quando atuou como tesoureiro do clube, existia 180 sócios com mensalidades em dia.
O mesmo ainda afirma que, naquela época, “[...] não precisava procurar os sócios para cobrar; os sócios
procuravam o tesoureiro”. Por outro lado, estes 180 podem estar superdimensionados pelo depoente como uma
forma de engrandecimento do clube pelos laços afetivos mantidos com o mesmo. Além disso, os livros de sócios
da década de 60 mostram que o número total de associados girava em torno de 80 pessoas.
[...] depois é que foi inventado esse tal de bingo. Tu vês naquele tempo se faz um bingo dava
dinheiro [...]” (MARI VEIGA, 2016).
Como o valor da mensalidade não era muito alto, a comunidade era convocada a contribuir
financeiramente com o clube. Mesmo que não tivesse muitos gastos, por vezes, os membros da
diretoria saíam nas casas pedindo, faziam uma campanha para manter o patrimônio, uma vez que
as despesas eram basicamente com transporte e fardamentos (JOÃO SARAIVA, 2016). A ajuda da
comunidade não vinha apenas através de dinheiro em espécie, mas também na forma de terneiros
e ovelhas que, posteriormente a diretoria “[...] vendia ou fazia uma rifa [...] e hoje terminou isso aí
[...]” (JOÃO SARAIVA, 2016). As rifas eram bem diferentes do que conhecemos, atualmente, se
configurando numa espécie de leilão e “[...] aquele que desse o maior lance ficava com o prêmio.
Aí só dava eles, os grandões, aí né tchê (risos) [...]” (JOÃO SARAIVA, 2016).
A parte financeira, ainda que importante, não era o maior problema na época. As grandes
dificuldades para disputar os jogos e as competições acabavam sendo o transporte e a comunicação
entre as localidades. O transporte era pelo motivo das estradas de terra ficarem inviáveis, tanto em
dias de chuva quanto em secas de longo período. Já a comunicação, comenta um dos
depoentes, gerava contratempos:“[...] uma vez fomos lá no Oriente11, saímos daqui de manhã
cedo, chegamos no outro dia 9 horas da manhã [...] o campo tava cheio d’água, não deu jogo
[...] não tinha telefone, não tinha nada [...]” (JOÃO SARAIVA, 2016).
Nesses jogos, fora de casa, o time era acompanhado por alguns torcedores. Não saíam em
maior quantidade porque os meios de transporte da época eram limitados e, normalmente, o clube
partia para o jogo em apenas um caminhão (MARI VEIGA, 2016). Os privilegiados acabavam
sendo familiares de jogadores, pais, filhos, esposas, membros da diretoria (MARI VEIGA, 2016)
e, quando sobrava lugar, o restante da torcida acompanhava.
Quanto aos jogadores, nas décadas de 1960 e 1970, já se percebia uma preocupação com a
preparação física no clube, pois, segundo João Saraiva (2016), os treinos aconteciam duas vezes
por semana. Como muitos que integravam a equipe trabalhavam noite e dia, por intermédio da
diretoria acabaram ganhando liberação dos pais para treinarem: “[...] tinha que lavrar até às três
horas pra sair a pé, não podia abandonar o serviço, tinha que sair naquela hora [...]; saia a pé daqui
correndo e vinha correndo (risos) [...].” O treino começava às três e trinta; os jogadores eram todos
da comunidade (JOÃO SARAIVA, 2016). Além disso, existia um certo controle dos jogadores
exercido pela direção e outra parte pela própria comunidade, pois “[...] tinha gente que cuidava nós
quando tinha jogo [...] o treinador se pegasse o nego lá tomando uns tragos de noite cortava e botava
outro [...]”, demonstrando a cobrança e organização do clube (JOÃO SARAIVA, 2016).
11O Oriente é uma localidade que fica, aproximadamente, 70 km de distância da Vila de Bojuru e pertencente
ao 1º Distrito de São José do Norte. Lá está situado o E. C. Oriente, um clube de futebol amador, fundado em
1938 e de muita tradição, que conquistou diversos títulos municipais: 1961, 1964, 1968, 1970, 1971, 1975 e
recentemente, 2015.
Naquele período, somente os moradores da localidade de Bojuru compunham as equipes.
O primeiro quadro – equipe principal – era formado pelos melhores jogadores tecnicamente, o
restante disputava vaga no segundo quadro e, mesmo assim, muitos sobravam. Normalmente, o
jogador que se destacasse no segundo quadro ganhava uma oportunidade no primeiro, “[...] o cara
tinha que se esforçar [...] tinha que ter garra para subir [...]” (JOÃO SARAIVA, 2016). O
responsável por avaliar as condições do jogador ascender do segundo para o primeiro quadro era o
treinador da equipe principal. Foi desse modo que o clube conseguiu constituir com os anos uma
equipe que regularmente disputava as primeiras colocações, sagrando-se campeã municipal, nos
anos de 1965 e 1969, e vice em 1966.
Da metade da década de 1960 até o início de 1970 foram surgindo novos clubes, tanto nas
regiões que ficavam aos arredores quanto na própria Vila, e, assim, a torcida do E. C. Bujuru
começou a se dividir, pois “[...] jogadores de dentro do nosso time que jogavam no nosso segundo
[quadro] foram pra outros times; iam lá e jogavam no primeiro [...]”. Entre esses outros times
fundados está o E. C. Bujuruense, cuja dissidência produziu uma rivalidade constante com o Bujuru.
Enquanto que o segundo foi fundado pela família dos Ferreira e do Costa, pessoas com mais posses
na localidade, a família que fundou o E. C. Bujuruense era de origem mais humilde, tido por muitos
como o time dos pobres (JOÃO SARAIVA, 2016).
Em meados da década de 1970, o E. C. Bujuru passou a se situar em um novo campo, onde
aos poucos foi sendo construído o patrimônio que o clube possui até os dias atuais. As primeiras
obras foram patrocinadas por Édson Costa Palladino “[...] o vestiário e o fechamento do campo
[com tela] [...] aquilo ali foi liderado por ele [...] acredito que em torno de 80% dos recursos dele
mesmo [...]” (JOÃO LUIS, 2016).
12
O livro dos sócios mostra que em 1985 o clube chegou a possuir 84 associados em dia.
localidade a partir do futebol: “[...] eu me lembro perfeitamente, de pessoas de outros clubes que
nos ajudaram na época com caminhão de areia, caminhão de pedra, cimento, pessoas que nem da
localidade eram [...]” (JOÃO LUIS, 2016).
A mudança de localização do clube, segundo os depoentes, proporcionou algumas
vantagens. Primeiro, porque no campo de origem, o espaço era limitado e aberto. Afora isso,
comprar uma chácara com mais de 5 hectares e construir um campo de primeira linha em um local
fechado possibilitaria melhor exploração financeira (ORLANDO, 2016). Fechar o campo e vender
ingressos era uma estratégia que alguns clubes já vinham fazendo no início da década de 1980 no
município. Essa prática permitia uma maior arrecadação financeira e, consequentemente, a
possibilidade de reforçar a equipe, trazendo jogadores mais qualificados. Esse procedimento
começou, primeiramente, nas equipes localizadas dentro da cidade “[...] o Liberal e o Ferrari tinham
jogadores que vinham de times profissionais, como de Pelotas e Rio Grande e eles pagavam
jogadores. Chegou um ponto que outros times começaram a pagar também [...] e começou a
encarecer o futebol [...].” (ORLANDO, 2016).
Quando os clubes da cidade começaram a pagar jogadores, o E. C. Bujuru se viu obrigado
a fazer o mesmo, já que “[...] nós não tínhamos pra medir força com eles; nós fomos buscar em
Tavares, Mostardas [...]” (SALVADOR, 2016). Em 1983, ano que o clube sagrou-se campeão
municipal, o então presidente João Luis Martins trouxe de Tavares, Geraldino, o primeiro jogador
a ser remunerado pelo E. C. Bujuru (JOÃO SARAIVA, 2016). Deste ano em diante, o clube passou
a pagar grande parte de seu elenco, compensando seus atletas tanto em dinheiro quanto em outros
tipos de benefícios, como materiais de construção e eventuais despesas com transporte e
alimentação em dias de jogos.
A partir deste momento, muitos clubes entraram em decadência e acabaram fechando seus
portões. Isso porque os jogadores qualificados passaram a ser mais disputados e se valorizaram.
Com isso, os clubes com maiores recursos acabaram formando as melhores equipes e,
consequentemente, disputando os títulos entre si. O clube pequeno que não tinha condições
financeiras de formar bons times, acabava indo “[...] só pra bonito. Sabe que não vai ser campeão,
não é? A dificuldade é essa aí [...].” (MARI VEIGA, 2016).
Para disputar o campeonato de 1999, que ficou conhecido como o último título de expressão
do clube, o então presidente da época, Edson Afonso da Silva, devido às dificuldades financeiras
para montar uma equipe de futebol, fez um apelo aos torcedores. Solicitou a colaboração de, no
mínimo, vinte e cinco pessoas com a quantia de R$10,00 (dez reais) mensais durante oito meses. A
comunidade o atendeu e a listagem contou com quarenta e dois colaboradores. Coincidência ou
não, a última conquista veio com o último ano de forte apoio da comunidade.
Com a crescente valorização dos jogadores, ficou cada vez mais difícil equilibrar os gastos
na montagem da equipe, apenas com as arrecadações de vendas de ingressos. Até por que os gastos
não eram apenas com jogadores, mas, sim, com arbitragem, transporte e fardamentos. Essa falta de
recursos começou a se agravar no fim dos anos 1990, quando o clube cancelou o programa de sócios
que mantinha devido o baixo número de pagantes, que caiu de 84 em dia, no ano de 1985,
para apenas 8, em 1997.
Essa carência financeira é consequência da soma de uma série de fatores que vem, há
algum tempo, causando a diminuição do número de torcedores do clube. O primeiro motivo
começou já nas décadas de 1960 e 1970, com o surgimento de novas equipes em localidades
próximas à Vila de Bojuru. No início, “[...] o Bujuru convergia, o pessoal de Capão da Areia,
Curral Velho, várias localidades torciam pro Bujuru [...]” (ORLANDO, 2016). Com os
anos, os moradores dessas localidades foram fundando suas próprias equipes,
consequentemente, diminuindo a torcida do clube.
Um segundo motivo que pode ser citado é resultante do envelhecimento e falecimento
dos principais responsáveis pela organização do clube em décadas anteriores. Aqueles que
ainda estão vivos, apenas torcem, mas não se envolvem com a vida diária do clube na parte
organizativa: “[...] eu acho que falta liderança [...] alguém pra empurrar, fazer um
chamamento no pessoal, que retornem de novo [...]” (JOÃO LUIS, 2016). O retorno
dessas pessoas mais experientes para trabalhar junto com os mais jovens é tido pela
comunidade como uma maneira de estancar o declínio dessa falta de envolvimento. Além de
aumentar o número de colaboradores, essas figuras mais experientes dariam a credibilidade
para conquistar apoio dos torcedores e retomar o crescimento estrutural e futebolístico.
Em terceiro lugar, há o diagnóstico de que em 2016, a torcida do clube é “[...] 20, 30
por cento do que era [...] o Bojuru hoje tá com muita igreja evangélica. Então, isso ai tira
muita gente do futebol [...]” (SALVADOR, 2016). Após o fim dos anos 1990 e início de 2000,
começaram a surgir inúmeras igrejas na comunidade de Bojuru, sobretudo as neopentecostais.
Segundo Carmen Rial (2013), para os crentes dessa igreja, esportes e apostas, em geral, são
proibidos, pois alegam que jogos e divertimentos são “coisa do Diabo” (RIAL, 2013). Assim,
muitas pessoas que antes colaboravam com o clube acabaram escolhendo a religião e
deixando de jogar e assistir aos jogos.
Atualmente, o clube disputa os campeonatos municipais, regularmente, não possui
sócios e se mantém com promoções de eventos (bingos) e venda de ingressos para os jogos,
o que traz limites na formação tecnicamente qualificada das equipes. A relação de dependência
entre conquista de títulos e recursos financeiros é consequência de um processo que teve
início décadas atrás, primeiramente, com clubes localizados no centro da cidade, quando
alguns dirigentes resolveram investir no patrimônio dos clubes, fechando campos e
construindo sedes com o intuito de poder obter lucros com a venda de bebidas, alugueis,
promoções de eventos e, principalmente, com a cobrança de ingressos. Com maiores
arrecadações, os clubes começaram a trazer jogadores de fora com o objetivo de reforçar a
condição técnica de seus plantéis. Para Gomes (2013), a necessidade de contratar atletas,
devido à escassez de qualidade dos jogadores da comunidade, é caracterizada como um
processo de semiprofissionalização dos clubes amadores.
O desejo dos clubes em ter os melhores jogadores em seus planteis acabou gerando disputas
que valorizaram os mesmos e encareceram o futebol amador no município: “a definição do
valor
valor da remuneração paga aos jogadores de futebol amador respeita, em escala reduzida, as
chamadas leis de mercado, já que leva em conta: procura, eficiência, competência,
mérito, experiência, comprometimento, qualidade etc.” (GOMES, 2013 p. 127).
O problema é que, com o tempo, ao invés de remunerar dois ou três jogadores, os clubes
passaram a recompensar grande parte do plantel e isso é visto “por alguns mandatários de clubes
como algo negativo, que causa, a médio prazo, uma ‘queda’ do time” (GOMES, 2013 p.126). Essa
queda começa pela precarização do clube, já que ao invés de investir na manutenção e ampliação
do patrimônio, os mesmos se veem obrigados a formar equipes bem remuneradas se quiserem ter
alguma chance de conquistar títulos. Mas, como muitos clubes não arrecadam o suficiente para isso,
acabam optando por não participar da competição.
Ultimamente, além das promoções e venda de ingressos, os clubes detentores dos melhores
planteis são patrocinados por empresários, que não lucram financeiramente com seus
investimentos, apenas apoiam o time para o qual torcem, “pois não se tem qualquer garantia de que
haverá retorno para o investidor.” (GOMES, 2013 p. 127). Sem os investimentos desses
empresários, a equipe consegue contratar apenas parte do elenco, o que pode não ser satisfatório se
o objetivo maior for conquistar o campeonato, e, isso, é exatamente o que vem ocorrendo com o E.
C. Bujuru.
Em síntese, através deste estudo buscamos reunir e produzir registros históricos sobre o E.
C. Bujuru, alcançando elementos que dessem condições de compreender sua emergência, seu
processo de reconhecimento junto à comunidade e os aspectos que sustentaram sua existência por
tantos anos.
Deparamo-nos com um clube surgido a partir do desejo de um grupo de amigos em
proporcionar mais uma forma de lazer para seus familiares, entre as poucas opções de divertimento
existentes em meados do século XX. Seus fundadores pertenciam, no geral, a três famílias da região
caracterizadas por possuírem grandes propriedades rurais. Em seus primeiros anos de existência,
passou por algumas instabilidades diretivas refletindo em restrições sociais e raciais na constituição
das equipes do clube.
Passado este instante, o clube tomou grandes proporções quanto ao número de torcedores e
a quantidade de sócios, atingindo o auge nas décadas de 1960 e 1970 com a formação de uma
diretoria distribuída em funções, culminando com a conquista de títulos. Este modelo de
organização permitiu rotinas no clube que incluía treinos semanais, amistosos de pré-temporada e
compromissos dos jogadores com o clube, algo que durou até os anos 1990.
Chegado este período, os clubes passaram a ser formados por jogadores de cidades vizinhas,
uma vez que foi reduzindo o número de interessados da própria comunidade. Essa prática causou a
precarização dos clubes maiores e decretou a falência daqueles com menores estruturas, já que os
mesmos passaram a sobreviver através de arrecadações e vendas de ingressos, para poder manter
planteis devido à valorização dos jogadores mais qualificados causada pela concorrência entre os
clubes. Fatores como aumento significativo de igrejas nas comunidades, carência de liderança e
falta de qualidade dos jogadores, também contribuíram para agravar a situação de esfriamento do
futebol amador do município de São José do Norte/RS, pelo menos em termos de quantidade de
clubes e interesse da comunidade.
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Estela Denise Schütz Brito
Ela só tinha um remédio para se melhorar: era contar sua história. Eu disse que a escutava,
demorasse o tempo que demorasse. [...]. Então, me contou a sua história (COUTO, 1992,
p. 66).
O ato de contar e ouvir histórias é uma característica da civilização humana, tradição muito
antiga, não se sabendo ao certo sua origem. Entretanto, povos de diferentes lugares e culturas,
tinham os mais velhos como os guardiões de suas histórias e memórias. Esses, com a missão de
preservar e dar continuidade a sua tradição, reuniam-se com os mais novos, geralmente em volta
de uma fogueira, para narrarem suas vivências, experiências e histórias que ouviram em outros
tempos e espaços.
Nesse sentido, o trabalho que por ora apresento, também se utiliza da prática de contar e
ouvir histórias. Para isso, faço uso da História Oral, enquanto metodologia de pesquisa, tomando-a
como uma ponte entre teoria e prática (AMADO; FERREIRA, 1998), e também com a finalidade
de ligar a entrevistada a mim, criando uma “ponte interpessoal” (ERRANTE, 2000, p. 153) na
escuta de suas histórias e memórias.
Diferentemente de uma pesquisa utilizando documentos escritos, ditos “oficiais”, a pesquisa
envolvendo a História Oral traz uma aproximação entre entrevistador e entrevistado. Pessoas que,
em muitos casos, antes nem se conheciam, acabam sendo aproximados por um objetivo em comum:
conservar a narração de uma experiência passada. Nesse sentido, “uma pesquisa é um compromisso
afetivo, um trabalho ombro a ombro com o sujeito da pesquisa” (BOSI, 1987, p. 02).
Costa (2014, p. 51) define o pesquisador que utiliza a História Oral como um “caçador do
invisível”, visto que este sai em busca do que não foi dito e do que não se encontra escrito. Sua
missão é a de se aproximar o máximo possível da voz de quem narra a história. Sabemos que a
memória é composta por lembranças e esquecimentos. Entretanto, cabe salientar que não devemos
1 Trabalho intitulado “Memórias de ex-alunos(as) do internato da Escola Normal Evangélica em São Leopoldo/
RS: práticas cotidianas e Cultura Escolar (1950-1960).
2
O dia do ex-aluno é comemorado todos os anos no Instituto Ivoti, no último domingo do mês de agosto. Esta
festividade é organizada pela AEXEEI (Associação dos Ex-Alunos da Escola Evangélica Ivoti).
As fotografias que me foram apresentadas em nossa entrevista, muito bem guardadas e
organizadas em um álbum, confeccionado pela própria Roswitha, registraram momentos
importantes vivenciados por ela em seu período como aluna interna. Nelas, pude identificar
momentos, espaços e práticas realizadas na Escola Normal, presentes ao longo da sua narrativa. As
fotografias são documentos importantes em um trabalho de pesquisa pois, para além da narrativa,
as “imagens podem testemunhar o que não pode ser colocado em palavras” (BURKE, 2004, p. 38).
A memória, conforme Amado (1995, p.132), tem “a capacidade de transitar livremente entre
os diversos tempos”. Por este motivo, a entrevista com Roswitha foi um momento de rememorar,
não somente seu tempo como aluna da Escola Normal Evangélica, como também diversas
passagens de sua vida que, de certa forma, foram evocadas a partir das memórias como ex-aluna
nesta instituição. Por este motivo, tivemos uma narrativa longa, chegando a quase quatro horas de
gravação. Contudo, não me detive a limitar um tempo para a entrevista, visto que “lembrança puxa
lembrança” (BOSI, 1987, p. 03). Somete, me coloquei à disposição para ouvir o que ela tinha a me
contar, “demorasse o tempo que demorasse”.
Halbwachs (1990, p. 60) explica que “não é na história aprendida, é na história vivida que
se apoia nossa memória”. Desta forma, Roswitha iniciou sua narrativa contando suas vivências,
sendo filha de pastor. Relatou que pastores não permanecem muito tempo em uma mesma
localidade, por este motivo, ela nasceu na cidade de Três de Maio/RS, em 11 de agosto de 1945,
cidade que, na época, era distrito de Santa Rosa/RS. Mas, passou toda sua infância em Lajeado/RS,
devido a transferência de paróquia de seu pai. Nesta cidade cursou o jardim de infância, os primeiros
anos do colegial no colégio Alberto Torres e, foi nesta escola, que ficou conhecendo a Escola
Normal Evangélica.
A ida para o internato foi uma escolha sua. Diferentemente de outras pessoas que são
encaminhadas para o internato, ela conta com muita satisfação sobre a sua opção:
Eu conheci internato como castigo, como punição para quem não é aplicado na escola ou
quem não se coaduna ou obedece em casa, esse era o sistema de internato que eu conhecia
naquele tempo. Mas aí, quando eu vi aquele grupo lá em Lajeado, homens e mulheres
convivendo e tendo uma vida, assim, animada, cantando junto, e dançando junto, fazendo
teatro junto, quando eles saíram do ônibus então, aquela farra né? Aí eu pensei assim:
“não, eu quero isso ‘pra’ mim, eu quero ser professora, eu quero isso aí pra mim”.
(DREHER, 2017, grifo meu).
Roswitha recorda que seu pai foi novamente transferido para a cidade de Porto Alegre/RS,
no ano de 1957, e, por conta disso, toda a família o acompanhou. Ele, além de pastor, era professor
em escolas particulares e, neste ano de mudança para outra cidade, ela encerrou seu ano letivo na
escola em que seu pai estava lecionando. Por ele ser pastor da mesma igreja a qual a Escola Normal
era vinculada, o auxílio de bolsa de estudos para ela estudar nesta instituição ficava mais fácil.
Porém, mesmo com esta facilidade, todos tinham que prestar um exame de admissão no fim do ano
para ingressar na escola: “eu tive que fazer um exame de admissão, uma provinha. Então, eu fui
‘pra’ lá em dezembro de malinha e tudo [...] e fiquei de um dia ‘pro’ outro onde tinha um tipo uma
prova de seleção”. (DREHER, 2017).
Sobre o tempo de Curso Normal, Roswitha explica que eram quatro anos de estudos, mas
recorda-se que ela não tinha idade para ingressar no primeiro ano do normal, pois deveria estar com
treze anos ao iniciar o ano letivo e ela havia completado doze anos em agosto. A procura para
ingressar na escola era muito grande e, assim, relata: “E consegui a vaga, mesmo porque eu não fui
para a primeira série eu fiquei na pré-escola né? Acabei fazendo de novo o quinto ano, vamos dizer,
ou a admissão” (DREHER, 2017).
Essa escolha por realizar novamente a quinta série, foi uma forma que Roswitha encontrou
para garantir sua vaga no Curso Normal para o próximo ano de estudos na escola e, por este motivo,
ela ficou esse um ano a mais como aluna interna, o que avalia ter sido muito bom: “Então esse ano
eu pude assim pegar tudo isso aí. Era ouvinte, já em algumas cadeiras na primeira série, e eu
estudava piano, estudava flauta, estudava harmônio, me destaquei no esporte. Então, eu aproveitei
e desenvolvi mais aquilo” (DREHER, 2017).
A Escola Normal Evangélica recebia alunos de vários lugares do Brasil, rememora
Roswitha. Alunos que se destacavam em escolas do interior, eram indicados por professores ou, até
mesmo, pelos pastores das comunidades locais. Esses, procuravam enviar seus melhores alunos,
com indicação para concorrerem às bolsas de estudos. Roswitha recorda-se de um colega que teve
e que se formou com ela de Teófilo Otoni/MG, muitas colegas de Santa Catarina, inclusive da
colônia de Witmarsum/SC, meninas de São Paulo/SP, Rio de Janeiro/RJ e Brasília/DF. Ela tinha
condições de ir aos finais de semana para casa, pois sua família residia em Porto Alegre/RS. Mas
os colegas distantes, só podiam visitar a família uma ou, no máximo, duas vezes ao ano, nas férias
de inverno e verão; isso devido ao custo e à distância. Por isso, muitas vezes, Roswitha também
levava suas colegas para sua casa, a fim de passarem um final de semana com sua família.
Figura 1 – Grupo de Formandos da ENE (1962)
A História Cultural suscitou o estudo de diferentes temas e objetos e, com isso, se passou a
considerar que os sujeitos, independentemente de sua posição econômica e social, são produtoras e
receptoras de cultura. Com o advento da História Cultural, estudos em torno de conceitos como
práticas e táticas ganharam destaques, em especial nos estudos de Roger Chartier e Michel de
Certeau.
Ao estudar os modos de leitura da população francesa, Roger Chartier entendeu que as
práticas estão interligadas às formas de apropriação e representação que as pessoas realizam de
determinados fatos e objetos. O historiador explica que “a história deve ser entendida como um
estudo dos processos com os quais se constrói um sentido” e que são “as práticas que, pluralmente,
contraditoriamente, dão significado ao mundo” (CHARTIER, 1987, p. 27).
Michel de Certeau dirigiu seus estudos também para as práticas, mas voltando seu olhar
para as práticas cotidianas, os modos de fazer (CERTEAU, 1994). Neste sentido, pesquisou os
modos de fazer com táticas e estratégias desenvolvidas pelos sujeitos em seu dia-a-dia, concluindo
que “a tática é determinada pela ausência de poder, assim como a estratégia é organizada pelo
postulado de um poder” (CERTEAU, 1994, p. 101). Em suma, a tática é a arte do fraco e a estratégia
vem de um lugar de poder.
Escrever sobre uma escola ou instituição de ensino, é pesquisar e escrever sobre a cultura
que ela produz em um determinado tempo e espaço. Nas últimas décadas, a cultura escolar tem
ganhado destaque em estudos e servindo de tema de pesquisa para muitos pesquisadores
contemporâneos. Dentre esses, se destacam trabalhos de André Chervel, com os estudos referente
às disciplinas escolares; de Vinão Frago, dedicando-se nas pesquisas sobre os tempos e os espaços
e Dominique Julia que escreveu sobre as práticas escolares.
O termo cultura escolar é conceituado de forma a se complementar por Frago (1995; 2000)
e Julia (2001). Para Frago (1995, p. 68-69), essa expressão vem a ser um “conjunto de aspectos
institucionalizados que caracterizan a la escuela como organización”. E complementa sua reflexão
reconhecendo que fazem parte desse conjunto: “prácticas y conductas, modos de vida, hábitos y
ritos, [...]”. Dominique Julia (2001), já nos provoca a pensar a escola enquanto uma “caixa preta”,
que precisa ser aberta para entendê-la. Sua definição para o termo, vem ao encontro do proposto
por Frago, especificando que cultura escolar é
[...] um conjunto de normas que definem conhecimentos a ensinar e condutas a inculcar,
e um conjunto de práticas que permitem a transmissão desses conhecimentos e a
incorporação desses comportamentos; normas e práticas coordenadas a finalidades que
podem variar segundo as épocas (finalidades religiosas, sociopolíticas ou simplesmente
de socialização). Normas e práticas não podem ser analisadas sem se levar em conta o
corpo profissional dos agentes que são chamados a obedecer a essas ordens e, portanto, a
utilizar dispositivos pedagógicos encarregados de facilitar sua aplicação, a saber, os
professores primários e os demais professores. (JULIA, 2001, p. 10-11).
Figura 2 – Alunos no ritual de Meditação na Escola Normal
Roswitha não dedicou seu período de estudos somente para a prática de instrumentos
musicais. Rememora que teve destaque, também, na prática esportiva, prática que a escola também
apostava muito em seus alunos. Ela se dedicou ao vôlei, salto em altura, corrida, salto em distância.
Relembrou que gostava tanto de praticar esportes. “Levantava às cinco da manhã pra fazer ‘free
sports’, que era esporte na madrugada, no inverno e no verão. Era uma turma grande! Nós
corríamos na BR [116] ali, quilômetros e voltávamos” (DREHER, 2017).
Figura 3 – Excursões
Por fazer parte da Rede Sinodal, a Escola Normal participava também de Olimpíadas
esportivas. Os alunos que praticavam, então, algum tipo de esporte, eram enviados para competir
com alunos de outras escolas da rede. Roswitha se recorda de ter participado de muitas olimpíadas,
em especial uma que ocorreu na cidade de Panambi/RS. Ela explica que os alunos eram alojados
nas casas de famílias e que, nessa ocasião, ela ficou alojada na mesma casa que um namoradinho
que ela tinha na época: “Eu tinha um namorado no Colégio Sinodal, e nós fomos pra uma Olimpíada
em Panambi e eu fiquei na mesma casa que ele [risos] [...]. A gente não ia se ‘bobiar’, se agarrar
com o cara. Ficava naquilo de mãozinha, indo pra casa e indo ‘pros’ eventos” (DREHER, 2017).
As saídas de campo também trouxeram boas recordações à ex-aluna. Essas saídas,
chamadas por ela de excursões ou piqueniques, ocorriam entre alunos e professores, onde saíam,
para passar um dia ou um final de semana fora da escola, acampando, por exemplo, no Morro do
Chapéu em Sapucaia do Sul/RS, município vizinho de São Leopoldo/RS: “eram piqueniques, a pé!
A pé, levando ‘panelão’ pra fazer comida, levando os mantimentos tudo a pé, e nós passávamos a
noite fora”. Explica, também, que nem todos os alunos podiam participar dessas saídas. Os alunos
que ganhavam a oportunidade de participar eram “sempre por merecimento, não era, assim, tu ir na
excursão. Não era qualquer um que podia passar a noite no piquenique, tinha que ter educação”
(DREHER, 2017).
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Maria Beatriz Vieira Branco Ozorio
O arquivo não se parece nem com os textos, nem com os documentos impressos, nem com
os “relatos”, nem com as correspondências, nem com os diários, e nem mesmo com
autobiografias. É difícil sua materialidade. Porquanto desmesurado, invasivo como as
marés de equinócios, as avalanchas ou as inundações... quem trabalha em arquivos se
surpreende muitas vezes falando dessa viagem em termos de mergulho, de imersão e até
afogamento [...] (FARGE, 2009, p. 11).
O artigo aqui proposto reflete sobre as contribuições da memória e da História Oral para a
História da Educação a partir do acervo do arquivo da Faculdade de Educação FACED – UFRGS.
Na sequência apresenta alguns autores e conceitos que discutem o tema em questão e auxiliam na
compreensão da importância da História Oral e as narrativas de memória. Memórias colhidas
através de entrevistas realizadas com professores da Faculdade de Educação – onde alguns deles
trabalharam, desde sua fundação em 1970.
Memória e História estão sempre presentes na produção de fontes orais, em que sujeitos de
forma individual ou coletiva tecem a História, construindo identidades, dando significado e
ressignificando a vida, as experiências, na construção permanente de laços, de tessituras, de
sentimentos e trajetórias de vidas em que são compostas as nossas memórias.
Este estudo situa-se no campo da História da Educação, em suas interfaces com as
discussões acerca da constituição de arquivos com acervos de narrativas de memórias colhidas
através da oralidade. Propõe teorizar e conferir dinamicidade e legitimidade às investigações que
tenham a História Oral como opção metodológica, entendendo como uma forma de desenvolver
pesquisas que envolvam movimentos realizados em comunidades de memória anteriormente
organizados por outros.
Segundo Halbwachs (2004, p. 32), é movediço o terreno que distingue lembranças "reais"
de lembranças "fictícias”, pois elas se fundem e se complementam, e acontece que, "para algumas
lembranças reais, se junta uma massa compacta de lembranças fictícias". Neste sentido, Amado
(1995) assinala que toda a narrativa compreende certa fabulação, uma invenção da realidade vivida,
ou ainda, possui uma dimensão simbólica que leva a um certo desapego do real em busca do
imaginário, sendo, antes de mais nada, um ponto de vista sobre algo. Às vezes, episódios vividos
no coletivo podem estar no esquecimento nas memórias de alguns, enquanto nas de outros os fatos
constituem-se em lembrança bem presentes.
E assim, ter feito parte de um grupo que vem pesquisando neste Memorial, me proporcionou
participar de ações visando à apropriação da “comunidade” da FACED e suas memórias, seja
através do manuseio dos documentos escritos ou através da prática dos relatos orais de professores,
colhidos através de suas narrativas de memórias. Educadores que tiveram suas vidas entrelaçadas
com a Faculdade de Educação e agora têm a oportunidade de trazer à tona seu olhar, de personagens
comuns, sobre este tempo acadêmico e comunitário. Esta história do tempo presente convive com
testemunhos vivos e oportuniza a diversidade ao ouvir os excluídos, as minorias, as pessoas
comuns, os grupos étnicos e revisitar trajetórias, buscando evitar assim o esquecimento, a
invisibilidade desses sujeitos, anônimos, infames: “todas essas vidas destinadas a passar por baixo
de qualquer discurso e desaparecer sem nunca terem sido faladas só puderam deixar rastros...”
(FOUCAULT, 2003 p. 203-222).
Alberti (2004) sugere que, para além do uso de entrevistas, o pesquisador busque arquivos,
periódicos, livros, fotografias a fim de melhor contextualizar as narrativas dos depoentes,
auxiliando na construção de roteiros de entrevistas. Contemplando esta orientação teórica, o
trabalho que se realiza no arquivo a partir das entrevistas é enriquecido com todo o corpus
documental lá guardado.
Entre outras atividades realizadas no arquivo FACED, também construímos os roteiros das
entrevistas, auxiliados pela familiaridade com toda uma documentação pré-existente dos
professores que lá atuaram. Neste sentido o trabalho de restauro e pesquisa de documentos
proporciona conhecimento de inúmeros projetos realizados por equipes de professores que
desenvolveram pesquisas de extensão junto à comunidade acadêmica e local. As entrevistas
realizadas acrescentam uma dimensão preciosa ao trabalho de pesquisa uma vez que trazem à tona
a partir da memória dos professores, seus diferentes olhares do vivido, para além dos documentos
oficiais.
Neste trabalho, Memória e História Oral se confundem como afirma Errante (2000); existe
uma dependência da história em relação à memória. Segundo a autora, a História Oral acrescenta
uma dimensão não oficial inestimável, uma vez que se distancia da história de caráter oficial. O
cruzamento das histórias individuais, colhidas em entrevistas revela o quanto a experiência pessoal
reflete as experiências coletivas, afirmação que vem ao encontro do trabalho do arquivo atribuindo
importância às narrativas de memória dos professores. Não perdendo de vista a ideia de que a
memória é uma construção do passado e pautada em emoções e vivências; ela é flexível, e os
eventos são lembrados à luz da experiência subsequente e das necessidades do presente
(FERREIRA, 2002).
Errante (2000) nos fala a respeito do cruzamento de histórias individuais validadas a partir
de publicações e documentos de arquivos e de que maneira essas histórias orais são importantes em
grupos marginalizados. Nesta pesquisa, memórias individuais também representam vivências
coletivas, uma vez que compartilharam situações comuns.
Para Nora (1993, p. 9) a "memória é sempre suspeita para a história" para isso, os locais de
memória se fazem tão importantes, uma vez que o sentimento de continuidade torna-se residual aos
locais. São os chamados "lugares de memória" (NORA, 1993), lugares que testemunham outra
época, que trazem em si sentimentos e representações, o simbólico de uma existência que vive
através da memória.
Nesse sentido, as escolas, as instituições de ensino, são "lugares de memória" (NORA,
1993):
São lugares das práticas pedagógicas, onde se estabelecem as relações professor aluno,
aluno-aluno, relações entre a comunidade, dos discursos que constituíram a educação; dos
professores enquanto profissionais, da categoria aluno; dos funcionários, das relações de
poder, (direção-professor; aluno-professor; aluno-aluno; poder público e comunidade
escolar) etc. (OZORIO. 2016. p. 42).
ALBERTI, Verena. Ouvir contar: textos em História Oral. Rio de Janeiro: Ed. da FGV, 2004.
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Este estudo tem como objetivo analisar a trajetória escolar dos descendentes de italianos na
Colônia Maciel. Para isso, serão utilizadas 18 narrativas orais. As entrevistas fazem parte do acervo
do Banco de Imagens e Sons do Museu Etnográfico da Colônia Maciel (MECOM). Esta está
localizada no interior do município de Pelotas (RS), tendo sido fundada pelo governo imperial no
ano de 1885 e constituída, majoritariamente, por imigrantes italianos. Está situada na chamada Serra
dos Tapes, local este que recebeu imigrantes de variadas etnias. A extensão da Serra dos Tapes é
bastante grande e o processo imigratório, no espaço, não pode ser tratado de uma forma única e
homogênea. Cada grupo étnico teve suas particularidades na colonização do território. Assim como
na vida em comunidade e na criação e manutenção de suas instituições, dentro das quais estão
incluídas as escolas e/ou instituições ligadas à instrução.
Este estudo utiliza-se, fundamentalmente, de documentos orais,1 os quais são
analisados sob a metodologia da História Oral. Para isso, concorda-se com Amado e Ferreira
(2006), quando as autoras defendem o uso da História Oral como uma metodologia. Ainda,
o texto utiliza-se de autores que abordam o uso de narrativas constituídas como acervo, tais
como Grazziotin e Almeida (2012). Outrossim, faz-se uso da categoria da memória, pois
entende-se a História Oral como um instrumento da memória e esta, por sua vez, opera-
se como um jogo entre lembranças e esquecimentos.
Para a realização do objetivo, o texto está organizado em dois tópicos fundamentais. O
primeiro trata dos procedimentos metodológicos do estudo, explicitando as narrativas orais
utilizadas. E o segundo, por sua vez, aborda os aspectos analíticos, ou seja, a análise propriamente
dita. Neste momento, se introduz a teoria pertinente para o estudo das fontes.
Voldman (2006) faz uma diferenciação entre arquivo e fonte oral. A autora escreve que o
arquivo oral é produzido por pesquisadores e salvaguardado para investigações futuras. Este é o
objetivo da produção das narrativas: constituir um banco de dados para uso a posteriori. Por sua
vez, a fonte oral é produzida pelo historiador para o seu próprio estudo. Na perspectiva da autora,
pode-se enquadrar as entrevistas do MECOM como arquivos orais, isto é, produzidos para
constituir-se como acervo, para acesso futuro de pesquisadores interessados. Não há, neste acervo,
um item ou uma temática específica nessas narrativas, mas, sim, vários assuntos referentes à
imigração na região.
Desta forma, ao iniciar as pesquisas no acervo oral, verificou-se que, entre os entrevistados,
havia a predominância de descendentes italianos. Assim sendo, este texto busca analisar os aspectos
relativos à escolarização e à instrução desse grupo étnico. É necessária a ressalva de que, além
dessas narrativas, há também memórias dos descendentes de alemães e franceses, as quais foram
analisadas em outro momento. Primeiramente, é oportuno registrar que a localidade onde foram
realizadas as entrevistas, (Colônia Maciel) está situada numa área de imigração italiana. Assim,
explica-se o maior número de entrevistados serem desse grupo étnico, aliado ao objetivo da
constituição do banco de dados, qual seja, registrar memórias relacionadas à imigração italiana
naquele espaço territorial.
A partir do conjunto de dados, foi necessária uma sistematização, conforme o interesse
desse estudo, pois para pouco serve um banco de dados se as informações não estiverem
organizadas. É necessário criar um sistema de classificação de acordo com a problemática de
pesquisa que se pretende investigar. Desta forma, classificar os dados foi a primeira tarefa. Michel
de Certeau (1982, p. 81) afirma que: “em história, tudo começa com o gesto de separar, de reunir,
de transformar em ‘documentos’ certos objetos distribuídos de outra maneira. Esta nova
distribuição cultural é o primeiro trabalho”. A pesquisa se faz com a desmontagem e a reorganização
dos dados numa nova ordem. Kuhlmann e Fernandes (2014), ao explicitar a construção do banco
de dados relativos a periódicos, observam que, para uma compreensão aprofundada, é necessário o
agrupamento e a classificação das informações. Embora os autores se refiram a fontes diferenciadas
destas, no caso dos autores, a publicação de um periódico, e do presente estudo com fontes orais, é
possível entender a necessidade de organização dos dados, neste sentido:
A utilização das técnicas atuais de informação leva o historiador a separar aquilo que,
em seu trabalho, até hoje esteve ligado: a construção de objetos de pesquisa e,
portanto, das unidades de compreensão; a acumulação dos dados [...] e sua arrumação
em lugares onde possam ser classificados e deslocados; a exploração é viabilizada
através das diversas operações de que este material é susceptível (CERTEAU, 1982,
p. 85).
Para Grazziotin e Almeida (2012, p. 42), o acervo oral não se caracteriza por um assunto
em específico, mas, sim, por vários itens e, à vista disso, pode ser examinado por diferentes ângulos.
Neste ínterim, as autoras se questionam: “Como garimpar nessa profusão de memórias aquelas que
interessam? Como o investigador poderá separar e reagrupar as memórias de acordo com os
objetivos da pesquisa a que se propõe?” A partir desses questionamentos, realizou-
se a categorização das narrativas, 2 as quais foram organizadas em oito itens, sendo um
deles a trajetória escolar dos entrevistados. Destarte, compreende-se que essas entrevistas são
instrumentos da memória. Essa é “guardada” em diferentes suportes, há os lugares de
memória (NORA, 1993), as fotos, a materialidade do cotidiano escolar, bem como a que é
suscitada pelas narrativas orais.
Após a organização, foi possível analisar a trajetória escolar dos descendentes de
origem italiana, como já mencionado, utilizando-se a metodologia da História Oral. E essa
nos “remete a uma dimensão técnica e a uma dimensão teórica [...]” (AMADO; FERREIRA,
2006, p. viii). Deste modo, é necessário, por um lado, estar atento aos procedimentos
metodológicos e, por outro, ao referencial teórico, o qual irá fundamentar a investigação,
evitando que as narrativas se tornem um relato descritivo das memórias. A necessidade de
uma história-problema evidencia que os historiadores da Nova História, ao insistirem, com
razão, na multiplicidade de temas e abordagens, não deixaram de se preocupar com a esfera
teórica. É imprescindível reconhecer a existência de sistemas históricos, cuja estrutura e
transformação o historiador tem a incumbência de analisar. Em síntese, não se deve descuidar
dos aspectos teóricos e analíticos da investigação (LE GOFF, 2011).
Sobre o processo de análise, Moraes (2003, p. 194) ressalta que “[...] tudo é
construído. Os textos não carregam em si um significado a ser apenas identificado
[...]”. À vista disso, compreende-se que os dados, ou as fontes, não são a pesquisa
propriamente dita; esta surge da interpretação e problematização daqueles. Verena Alberti
discute o uso da História Oral como documento. Para a autora:
2
Sobre essas categorias, ver a dissertação de Castro (2017).
Sua peculiaridade – e a da história oral como um todo – decorre de toda uma postura
com relação à história e às configurações socioculturais, que privilegia a recuperação
do vivido conforme concebido por quem viveu. (ALBERTI, 2004, p. 16, grifos da
autora).
As fontes orais, assim como as escritas, não representam a totalidade dos acontecimentos
do passado. No entanto, isso não faz a pesquisa ilegítima ou de menor importância. Pelo
contrário, não se busca reconstituir um tempo passado ou uma instituição, mas, através
dos indícios,3 construir uma história dentre as possíveis, bem como analisar a memória
consolidada em determinado sujeito ou grupo social. 4 Neste estudo, analisam-se as
memórias de um grupo específico, os descendentes de imigrantes italianos na localidade da
Colônia Maciel. Para isso, foi construído o seguinte quadro a partir das entrevistas:
Quadro 1 – Relação dos entrevistados que rememoram sua escolarização, suas datas de
nascimento e percurso de instrução
Entrevistado Nascimento5 Percurso de instrução
MECOM 1 Professor Dario. Professor Egídio. Miguel Soares
MECOM 2 1932 Colégio Nossa Senhora Aparecida, Canguçu.
MECOM 56 A: 1937 A: Colégio Pelotense.
N: 1928 A e N: Escola Garibaldi
MECOM 10 1915 Professor alemão que falava em português
MECOM 11 Em casa com o pai em italiano
MECOM 13 1937 Escola Garibaldi
MECOM 14 Escola Garibaldi
MECOM 16 1926 Escola Garibaldi
MECOM 17 1941 Escola Garibaldi
MECOM 20 1924 Em casa
MECOM 22 Não foi à escola
MECOM 24 Colégio particular na entrada da capela São João
MECOM 25 1935 Escola Garibaldi
MECOM 32 1929 Escola étnica alemã no município de Morro Redondo.
Fonte: Quadro elaborado pelas autoras com base nas entrevistas, 2017.
3
Utiliza-se a noção de indícios com base em Ginzburg (1990). .
4
A perspectiva historiográfica usada neste texto é a História Cultural. A partir dela, não se busca uma
reconstrução ipsis litteris do passado e, sim, uma representação deste passado. (CERTEAU, 1982; BURKE,
2005; PESAVENTO, 2004).
5
.Em algumas narrativas não foi possível identificar a data de nascimento do entrevistado. .
6
Essa entrevista aconteceu com duas pessoas ao mesmo tempo, por isso optou-se por colocar os dados dos dois
entrevistados, precedidos das iniciais de seus nomes: A e N.
Percebeu-se que, em quatro das 18 narrativas, não havia como identificar o processo de
instrução dos entrevistados. Assim, a análise centra-se, especificamente, em 14 narrativas. Como
mencionado anteriormente, as entrevistas não foram realizadas para o fim específico desta pesquisa.
Dessa maneira, a História da Educação não foi o eixo norteador das narrativas. Entretanto, é
possível problematizar como esse grupo étnico organizou-se em termos escolares. Neste sentido,
escrevem Lopes e Galvão (2001), que o campo da História da Educação, por vezes, é considerado
pouco nobre pelos historiadores. Assim, pode-se questionar não haver, nas narrativas,
muitos aspectos referentes à escolarização. 7 Além disso, historiar a educação não foi o
objetivo da construção do banco de dados, mas elencar vários aspectos da trajetória do grupo
étnico.
[...] não é vazia de conteúdo cultural (os grupos encontram ‘cabides’ nos quais
pendurá-la), mas ela nunca é também a simples expressão de uma cultura já pronta.
Ela implica sempre um processo de seleção de traços culturais dos quais os atores se
apoderam para transformá-los em critérios de consignação ou de identificação com
um grupo étnico. [...]. (POUTIGNAT; STREIFF-FENART, 2011, p. 129).
A identidade é entendida, nesta pesquisa, como uma construção social, a qual se modifica
com o passar do tempo e, neste contexto, está interligada com o pertencimento étnico da localidade.
Para Hall (2014, p. 109), “é precisamente porque as identidades são construídas dentro e não fora
do discurso que nós precisamos compreendê-las como produzidas em locais históricos e
7
Esta análise refere-se à quantidade de informações relativas à escolarização em comparação com o conjunto de
todas as entrevistas, ou seja, há um pequeno espaço para essas memórias.
8
A Escola Garibaldi, durante os anos de 1928 a 1950, foi objeto de estudo da dissertação de Castro (2017).
9
Essas entrevistas, que são acervos, foram utilizadas da maneira como estavam transcritas. Porém, optou-se por
referir o pesquisador pela letra P e o entrevistado pela letra E.
institucionais específicos”. Há duas visões sobre a identidade, conforme Woodward (2014): a
essencialista e a não essencialista. A primeira não se altera com o tempo; permanece imutável. A
segunda, por sua vez, tem como foco as diferenças, o que é comum entre os grupos. Assim, presta
atenção às formas como a identidade é construída, ou seja, social e historicamente. A esse respeito,
observa-se que, se entende a identidade na sua visão não essencialista.
Após essas considerações, continua-se a analisar as memórias. Um dado interessante refere-
se a uma entrevistada que estudou numa escola étnica alemã, no município de Morro
Redondo (RS).10 Conforme a narrativa, a sua escolarização se dava em português, e os demais
colegas em alemão. Em suas palavras:
E: E daí passou os anos, lembrando, saí muito com meus avós. Aí depois fui para
casa. Me lembro, meus pais me colocaram no colégio; veja bem que colégio. Aí meu
pai se mudou daí de Canguçu; ele se mudou para Morro Redondo. Eu tinha dois anos,
ele saiu da casa dos meus avós, casado, e eu tinha dois anos. Eu e o Luís meu irmão
mais velho, fomos morar no Morro Redondo. E, na época, eu meio parava na vó, na
minha vó que era muito querida, a vó Pegoraro [...]. E depois os meus pais colocaram
no colégio, sabe, colégio do lugar. Naquela época não tinha, lá no Morro Redondo,
era puro alemães , não tinha colégio público. Era colégio de alemães, era o colégio
que eu frequentei, então me ensinaram brasileiro e os outros alemão. E eu fui pegando
o alemão; era fácil no meio dos outros (MECOM 32).
10
Aproximadamente 50 km de distância de Pelotas.
tanto do seu (português) quanto o do grupo étnico do qual é descendente (italiano). Com
isso, percebe-se que havia, sim, algumas especificidades, nesta trajetória escolar dos
entrevistados, especificidades essas tangenciadas pelo contexto local.11 Decerto que esse
estudo é localizado e restrito a essas narrativas. Entretanto, podem-se elencar algumas
considerações, sem, portanto, pretender generalizações.
Notaram-se algumas regularidades no processo escolar dos descendentes de origem
italiana. Uma delas é o fato de alguns alunos, mais especificamente, seis, terem realizado seus
estudos na Escola Garibaldi. À vista disso, é oportuna a reflexão de Luchese (2007). Para a
autora, as escolas públicas, laicas e gratuitas eram solicitadas, com frequência, pelos
imigrantes italianos ao governo. A Escola Garibaldi, como dito, sempre esteve aliada
ao poder público e permanece em funcionamento, sem interrupção, até os dias atuais.
Porém, ela foi precedida por outras instituições, como, por exemplo, uma escola
comunitária (1915), a qual acabou fechando. Assim, pode-se problematizar, de acordo com
Luchese (2007), que este grupo étnico preferia as escolas públicas. Diferentemente, por
exemplo, do que se percebe no processo imigratório dos imigrantes de origem alemã, para os
quais a escolarização estava aliada à religiosidade.12
Outra reflexão refere-se à nacionalização. Para Werle e Metzler (2010), o
governo brasileiro, preocupado com o ensino ministrado em língua estrangeira, tomou
algumas medidas nas áreas de imigração, como, por exemplo, a abertura de escolas públicas.
Neste momento, pode-se pensar que a criação da Escola Garibaldi, por parte do poder público,
também serviu como um meio de nacionalização do grupo imigrante, mesmo esse (1928) não
sendo o período da nacionalização compulsória do ensino. De acordo com Weiduschadt
(2009), antes de 1930 já havia iniciativas para a implantação das políticas nacionalizadoras.
O Brasil, substancialmente no período do Estado Novo, intensificou essas políticas, bem
como os mecanismos de controle, mas algumas medidas nacionalizadoras já existiam antes
do Estado Novo, porém ainda sem uma fiscalização efetiva. Assim, a criação da Escola
Garibaldi em 1928 poderia ser uma estratégia nacionalizadora.
Além dos entrevistados que estudaram na Escola Garibaldi, os demais estudaram
em colégios na cidade vizinha de Canguçu,13 em casa com familiares, ou com irmãos mais
velhos que estudaram na Garibaldi. Exceto a entrevistada, que estudou na escola étnica
alemã, somente um estudou em um colégio particular. Essa entrevistada residia na cidade
vizinha de Canguçu.
Dentre as narrativas dos ítalo-descendentes, foi possível analisar alguns aspectos; um
deles, a relação ente escola e religiosidade. Assim, relembra o entrevistado:
E: Esse aqui ó, esse tal de Egídio [mostra a foto], é parente desse aqui, Miguel
Soares...
P: Professor também?
11 Justino Magalhães (2011), ao escrever sobre o município pedagógico, esclarece que é importante estar
atento ao local pesquisado para entender as generalidades ou especificidades da pesquisa. .
12 Sobre esse assunto, ver: Kreutz (1998, 2000); Dreher (1990).
Nesses dois trechos de entrevistas, é possível perceber o vínculo existente entre a Igreja e a
escola. As aulas eram realizadas no espaço da Igreja, assim como os líderes religiosos ministravam
aulas para os alunos. Nas regiões de imigração italiana, a religiosidade, majoritariamente a católica,
esteve presente na vida comunitária. Conforme Luchese (2007, p. 91), estes indivíduos que
imigraram eram, em sua grande parte, católicos e “trouxeram da Itália uma religiosidade com
práticas e valores diferenciados daqueles aqui vivenciados”. Desta forma, uniam-se num esforço
comunitário para construir capelas nas colônias. Próximo à capela da colônia, eram criadas outras
instituições de igual relevância para os imigrantes, tais como cemitério, escola e salão de festas para
a comunidade. Azevedo (1982) observa que a capela era um elemento de integração social entre
os imigrantes italianos, assim como o padre exercia influência importante. Na presente pesquisa,
percebe-se essa ligação com a instituição religiosa. Por exemplo, os alunos estudantes da Escola
Garibaldi, na década de 1940, rememoram a presença do padre na escola ministrando as aulas de
catequese. Mesmo numa instituição pública, há a presença religiosa no ambiente escolar. Ainda
hoje, é significativa a relação existente entre a escola e a comunidade religiosa local: os prédios
novos da escola foram construídos pela comunidade numa união das três Igrejas da região: Igreja
Católica, Igreja Evangélica de Confissão Luterana no Brasil e Igreja Episcopal. Ainda sobre esse
ponto, o terreno no qual a escola está situada pertence à Igreja Católica, sendo demonstrativo que a
comunidade se fez e se faz presente na construção e organização do espaço escolar. Assim explica
um dos envolvidos na construção:
E: Então, depois, elas foram aos poucos me colocando professores e a gente foi
organizando o horário tudo direitinho para que pudéssemos continuar, dar
continuidade ao trabalho do professor Rodeghiero.
A mão de obra foi um trabalho feito com todos os pais e colocamos pedreiro. Então,
os pais vinham trabalhar. A gente conseguiu uma verbinha e compramos os vidros.
Sabe quem que colocou os vidros nas janelas e terminou de colocar as venezianas.,
foram os próprios alunos com os professores da UMIT14 (grifo nosso).
Torna-se oportuno, neste momento, pensar sobre a memória coletiva. Para Bosi (1994, p.
332), “uma memória coletiva se desenvolve a partir de laços de convivência familiares, escolares,
profissionais. Ela entretém a memória de seus membros, que acrescenta, unifica, diferencia, corrige
e passa a limpo.” Para Halbwachs (2003, p. 30): “jamais estamos sós. Não é preciso que outros
estejam presentes, materialmente distintos de nós, porque sempre levamos conosco e em nós certa
quantidade de pessoas que não se confundem”. É, na maioria das vezes, de forma inconsciente que
as lembranças do grupo são evocadas. Os indivíduos não possuem a clareza das memórias do
coletivo. Ao recordar determinadas situações, o indivíduo não está consciente de que esta memória
tem significado para um grupo mais amplo. Entretanto algumas memórias são tão fortes, que é
possível reconhecer como uma memória grupal (BOSI, 1994).
Ainda nas narrativas dos descendentes italianos, observaram-se as lembranças sobre a
alfabetização em casa:
E: Teve uma época no colégio. Aí o professor me ensinava a ler soletrando. E o meu
pai não podia ver aquilo, não aceitava. Então ele me tirou do colégio e disse que ele
mesmo ia me ensinar. E ele me ensinou...
[Os dois falam juntos]
P: E aí aprendeu o italiano?
E: Aprendi [muito baixo]. Mas tudo o que eu sei aprendi com ele. Mas quase todos
os filhos ele alfabetizou. Só eu me lembro o meu irmão, quer era mais velho do que
eu, que foi no colégio (MECOM 10).
14
Conforme a entrevistada, UMIT (Unidade Móvel de Iniciação ao Trabalho) era um órgão que trabalhava
nas escolas, ajudando na estrutura física, porém a entrevistada não se lembra de mais detalhes.
não aconteceria na escola. Ao entrecruzar as memórias, é possível notar que essa entrevistada é a
mesma que estudou, também, na escola étnica alemã. Possivelmente antes de ir para o município
vizinho de Morro Redondo, foi alfabetizada em casa pelos familiares. Ainda, neste conjunto de
entrevistas, é possível notar que o tempo da escola se faz presente na memória dos depoentes:
P: Quando vocês eram pequenos a senhora lembra?
E: Sim, lembro de quando tinha 13 anos e ia para o colégio, parece que estou indo
(MECOM 24, grifo nosso).
P: E da sua infância, assim, o que que o senhor lembra mais? O que que marcou assim,
da sua infância?
E: Sei lá, colégio... (MECOM 25, grifo nosso).
Para pensar sobre a evocação da memória, busca-se suporte em Candau (2014, p. 33). Para
o autor: “a parte da lembrança que é verbalizada (a evocação) não é a totalidade das lembranças
[...]”, na mesma perspectiva:
[...] na relação que mantém com o passado, a memória humana é sempre conflitiva,
dividida entre um lado sombrio e um lado ensolarado: é feita de adesões e rejeições,
consentimentos e negações, aberturas e fechamentos, aceitações e renúncias, luz e
sombra ou, dito mais simplesmente, de lembranças e esquecimentos (CANDAU,
2014, p. 73, grifo nosso).
O presente texto teve como objetivo analisar a trajetória escolar dos descendentes de
imigrantes italianos. Assim sendo, foi possível realizar algumas considerações. É percebível a
importância concedida à educação e à escolarização pelo grupo. Independentemente do tipo de
escola ou se foram alfabetizados em casa, essas memórias estão carregadas do quanto eram
necessárias, nas comunidades, as iniciativas escolares. Da mesma forma, foi possível notar que a
religiosidade se faz presente neste contexto. Além disso, tem relação com a escolarização: aulas
eram dadas no espaço da igreja, assim como os líderes religiosos participavam do espaço escolar.
Nota-se também a junção dos grupos e das lideranças religiosas, de três orientações, na década de
1970, para a construção dos novos prédios da Escola Garibaldi, o que é demonstrativo da
importância que esses grupos concediam à escolarização e se organizavam para isso. Esta é uma
característica dos grupos de imigrantes: a relação com a religiosidade. Ao emigrarem da Europa
para o Brasil, esses grupos trouxeram consigo valores vivenciados na terra natal, e isso foi
transmitido aos descendentes.
Os conceitos de identidade e identidade étnica foram aqui utilizados na sua visão não
essencialista, ou seja, com o entendimento de que a identidade é construída. Decerto que o meio
geográfico influencia. Entretanto, mais do que isso, as relações sociais estabelecidas e o
compartilhamento de códigos culturais comuns é o que dá consciência a um grupo étnico. Desta
forma, ao pensar na trajetória escolar dos descendentes de imigrantes italianos, é necessário o
esclarecimento de que as rememorações estão imbuídas do sentimento de pertencimento étnico e,
sobretudo, comunitário. Aliado a isso, as lembranças da terra natal de seus antepassados são
perpassadas de uma geração para outra, porém nesse processo há mudanças, adaptações ou, como
diz Hobsbawn e Ranger (2012), há uma invenção das tradições.
Nas memórias evocadas pelos descendentes de italianos, muitos desses estudaram na Escola
Garibaldi, escola pública da região, situada na colônia de italianos. Outra característica comum do
grupo dos italianos, é a preferência por escolas públicas, conforme aponta Luchese (2007).
Para finalizar, é necessário mencionar que, apesar deste estudo ter sido realizado em uma
região do Estado do Rio Grande do Sul, é possível, a partir desse conjunto de narrativas,
compreender como o grupo étnico se organizava em termos de escolarização. Outrossim, é
oportuno registrar a relevância da constituição de narrativas orais e da salvaguarda destas como
acervos, os quais potencializam a realização de diferentes pesquisas por diversas áreas de
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Evelin Stahlhoefer Cotta
Margarete Panerai Araújo
* UNILASALLE. Mestrado em Memória Social e Bens Culturais do UNILASALLE - Canoas. Bibliotecária na Escola de
Administração da UFRGS. .
** UNILASALLE. Pós-doutorado em Administração Pública e de Empresas em Políticas Estratégicas pela FGV EBAPE/RJ.
Professora Pesquisadora no Programa de Pós-Graduação em Memória Social e Bens Culturais do UNILASALLE – Canoas.
dissertação de Mestrado. Segue com a conclusão e as referências.
Os documentos de segunda mão são aqueles que já receberam algum tratamento ou análise,
como relatórios de pesquisa, tabelas estatísticas, etc. O Quadro 2 exemplifica um tipo de documento
de segunda mão utilizado.
A História Oral é uma prática que utiliza depoimentos e testemunhos gravados que, após
serem transcritos e analisados, se tornam documentos que facilitam o conhecimento do campo
estudado. Esta prática requer um conjunto de procedimentos que prevê desde o planejamento das
entrevistas, autorização de uso, até a análise conforme os objetivos da pesquisa. “História Oral é
uma alternativa para estudar a sociedade por meio de uma documentação feita com o uso de
depoimentos gravados em aparelhos eletrônicos e transformados em textos escritos”, conceitua
Meihy (2005, p. 18). Na presente pesquisa, as falas foram gravadas em aparelho de telefone móvel.
O conhecimento social da História Oral acaba por questionar a tradição factual tornando o
processo histórico inacabado e em constante transformação. “É isto que marca a História Oral como
‘história viva’” (MEIHY, 2005, p. 19). Valoriza a participação de cada depoente na construção da
história institucional. A História Oral dá sentido aos atos sociais vivenciados pelos atores a partir da
visão do presente. A história é vivenciada pelos cidadãos comuns a partir de sua forma de agir e
pensar, individual e coletivamente. Neste sentido “[...] o cotidiano e os grandes fatos ganham
equiparação na medida em que se trançam para garantir a lógica da vida coletiva”, afirma Meihy
(2005, p. 25). Por isso que a História Oral tem grande invocação emocional e reconhecimento
popular. A pesquisa desenvolvida se valeu da História Oral temática, isto é, abordou um tema
específico, pois pesquisou a história e memória da Escola de Administração da UFRGS. A partir de
um roteiro de entrevista pré-estabelecido, enviado com antecedência ao entrevistado, a História
Oral trabalhou com as memórias de docentes, técnicos administrativos e discentes da EA da
UFRGS, buscando testemunhos de quem vivenciou os acontecimentos factuais.
Estes atores da História Oral são representativos frente ao tema que se quis estudar e,
portanto, justificam o investimento de recursos. De qualquer forma, é importante ter consciência
que a escolha dos entrevistados requereu alguns requisitos, como: a) a possibilidade de ser
entrevistado; b) os objetivos da pesquisa; c) a abordagem qualitativa e o uso do método da História
Oral; d) o conhecimento por antecipação do objeto a ser estudado (ALBERTI, 1990). A ideia de
entrevistar diferentes atores recaiu na perspectiva de poder analisar e comparar as falas e de poder
captar diferentes visões sobre o objeto estudado.
Assim, o número de entrevistados de uma pesquisa de História Oral deve ser
suficientemente significativo para viabilizar um certo grau de generalização dos resultados
do trabalho, para permitir que se retire, do conjunto de depoimentos realizados, um
instrumental consistente que fundamente sua análise (ALBERTI, 1990, p. 18).
Por isso, foi a partir da realização das entrevistas que o número de entrevistados pôde ser
melhor dimensionado. O número de entrevistas pode ser pensado até “limitar-se ao ponto em que
as experiências narradas se repetem” defende Meihy (2005, p. 85). Isto é, as falas começam a se
repetir e o esforço na execução de novos diálogos não compensa o pouco conteúdo original que
trazem.
A entrevista adotada nesta pesquisa chama-se temática, isto é, “são aquelas que versam
especificamente sobre a participação do entrevistado no tema escolhido como objeto principal”,
define Alberti (1990, p. 19). Este tipo de entrevista requereu um conhecimento prévio da biografia
do entrevistado, justamente para poder conhecer como as experiências e as vivências melhor se
adequavam ao propósito da pesquisa. Neste aspecto, a pesquisadora utilizou de fontes primárias
como documentos e fontes secundárias como boletins informativos da Escola de Administração da
UFRGS, além do currículo Lattes, para conhecer a vida acadêmica e profissional dos atores
entrevistados. Conforme Alberti (1990, p. 56), “[...] o conhecimento prévio da biografia do sujeito,
mesmo que limitado a apenas um dado, constitui condição para iniciar-se uma entrevista de História
Oral”. E, além disso, as informações prévias permitiram à pesquisadora “[...] participar mais
ativamente da construção do [...] depoimento”, conclui Alberti (1990, p. 56).
A História Oral requer equipamentos de gravação dos depoimentos para registro e futura
reprodução e divulgação. De acordo com Meihy (2005, p. 32), “A História Oral, pelo contato com
meios eletrônicos, mostra as vantagens do manejo de artefatos da atualidade, que têm, também,
sentido para a produção, a preservação de documentos e as análises sociais.” Apesar da importância
dos artefatos tecnológicos, o contato pessoal entre entrevistado e entrevistador é a principal
contribuição da História Oral, visto que as feições do rosto e os gestos e movimentos do corpo não
são captados em gravações de voz, método utilizado nesta pesquisa. Para registrar as falas, a
entrevistadora utilizou telefone móvel celular com aplicativo Gravador de Voz. Para ouvir e
transcrever as entrevistas foi utilizado o Windows Media Player, que reproduziu a mídia digital
através do computador.
A partir da lista inicial de entrevistados, iniciou-se a marcação das entrevistas de acordo
com a facilidade e disponibilidade de acesso a eles. Isto é, foram escolhidos os docentes, técnicos
administrativos e discentes que atualmente tem vínculo com a instituição, pois segundo Alberti
(1990, p. 52), “[...] a partir da relação estabelecida, [poderão] mediar novos contatos no interior do
conjunto listado”. Foram os entrevistados iniciais responsáveis, inclusive, pela exclusão de alguns
nomes inicialmente selecionados, mas que, justificadamente, não valiam o investimento da
entrevista.
Os entrevistados foram contatados, primeiramente, por e-mail ou por telefone. Neste
contato foi abordada sobre a pesquisa e a importância da fala do entrevistado. Após o aceite, uma
segunda mensagem foi enviada com informações a respeito do local, horário da entrevista e o
roteiro de entrevista oral para que o entrevistado pudesse se preparar e para que as expectativas não
gerassem desconforto ao depoente. Na entrevista, os assuntos anteriormente mencionados no
primeiro contato por e-mail ou por telefone foram retomados. Esclareceu-se que as falas seriam
gravadas e futuramente utilizadas apenas para fins acadêmicos. Também foi mencionado que, ao
final da entrevista, o depoente assinaria um termo que autoriza a utilização das falas. Este termo
chama-se Termo Livre e Esclarecido. Condição ética importante, a cessão de direitos da entrevista
foi exposta ao entrevistado com as implicações contratuais de suas falas e preferencialmente deve
ser assinada ao fim da entrevista, pois assim “reservamos ao entrevistado o direito de modificar o
teor da carta de cessão, fazendo as restrições que achar necessárias, inclusive embargando trechos
cuja consulta julgue inconveniente” (ALBERTI, 1990, p. 55). Se assinasse no início da fala, estaria
autorizando algo que ainda não tem conhecimento.
As entrevistas foram realizadas na sala de reuniões da Escola de Administração, em salas
de estudo da Biblioteca e no estúdio de TV. A preferência na escolha dos ambientes recaía
primeiramente entre o estúdio de TV e a sala de reuniões da EA por serem locais com baixo ruído,
além de disporem de ampla mesa com cadeiras e ar-condicionado que proporcionou ambiente
agradável. A mesa serviu de suporte para o telefone móvel celular que gravou a entrevista, para o
roteiro de entrevista e para as folhas de anotações. A duração das falas, em média de uma hora e
meia, dependeu da disponibilidade do entrevistado, de suas condições físicas e do encaminhamento
da conversa se favorável ou pouco estimulante. De qualquer forma, Alberti (1990, p. 75) estima
“[...] uma média de duas horas de gravação por sessão de entrevista”.
Além dos mecanismos externos mencionados, o comportamento da entrevistadora foi foco
importante da entrevista. Primeiramente, disponibilizou total atenção ao depoente, procurando não
desviar os olhos do entrevistado enquanto este falava. Visto o empenho e o desgaste intelectual na
busca de acontecimentos passados, o foco no depoente auxiliou em sua fala e mostrou o interesse
do interlocutor. As anotações foram breves, se restringindo a questões ou a encaminhamentos
diferentes que foram seguidos durante o roteiro de entrevista, como perguntas extras que foram
questionadas após a fala presente.
Esta etapa da pesquisa desenvolveu a interpretação e análise dos relatos transcritos a partir
das entrevistas de História Oral que foram confrontados com os pressupostos levantados na fase
inicial. Juntamente com o referencial teórico desenvolvido o pesquisador pode apresentar
conclusões (PRODANOV; FREITAS, 2013, p. 112). Ou, como descreve Bourdieu (2005, p. 49),
leva o pesquisador a uma “conversão do olhar”. O mundo social passa a ser visto diferentemente,
“Trata-se de produzir, senão ‘um homem novo’, pelo menos, ‘um novo olhar’, um olhar
sociológico. E isso não é possível sem uma verdadeira conversão, uma metanoia, uma revolução
mental, uma mudança de toda a visão do mundo social” (BOURDIEU, 2005, p. 49). Este novo
olhar pode ser visto a partir da análise de conteúdo das entrevistas de História Oral, que segundo
Bardin (2011, p. 38) pode ser utilizada a qualquer tipo de texto: “[...] qualquer comunicação, isto é,
qualquer veículo de significados de um emissor para um receptor, [...], deveria poder ser descrito,
decifrado pelas técnicas de análise de conteúdo”. Isto é, através das falas de docentes, técnicos
administrativos e discentes objetivou-se analisar evidências da criação de um novo habitus a partir
da história e da memória institucional da Escola de Administração.
A metodologia de análise de Bardin é composta de três etapas: pré-análise, exploração do
material e interpretação dos dados. Ou seja, categorias temáticas homogêneas entre os textos para
que então se pudessem fazer inferências além do que estava escrito. O trabalho de organização das
falas de entrevista de História Oral possibilitou a criação de um esquema de categorias e
subcategorias a partir das questões do roteiro de entrevista conforme o Quadro 3.
Por fim, a interpretação dos dados conduziu para a compreensão do objeto pesquisado, bem
como para a descoberta de fatos que vieram ao encontro dos objetivos da pesquisa complementados
pelo referencial teórico. Em Bourdieu se encontra uma metodologia que é a própria teoria. Este
autor rechaça a divisão entre ambas: “Penso que se deve recusar completamente esta divisão em
duas instâncias separadas, pois estou convencido de que não se pode reencontrar o concreto
combinando duas abstrações” (BOURDIEU, 2005, p. 24). O primeiro preceito do método proposto
pelo autor diz respeito ao real enquanto relacional. Isto é, não se deve pensar o campo social de
forma realista, mas relacional. Na pesquisa buscou-se entender como se evidencia a criação de um
novo habitus, tendo como referência a história e a memória institucional. Bourdieu (2005) apresenta
outras orientações em sua teoria que embasam os trabalhos científicos, inclusive esta pesquisa:
a) converter problemas de pesquisa muito abstratos em pesquisas científicas práticas;
b) perceber, a partir da produção científica, um conjunto de princípios de visão e de divisão
adquiridos unicamente pela prática;
c) negar ideias empíricas pré-concebidas, do senso comum. Em outras palavras, o que já é
sabido e o generalizado. A construção de objetos de pesquisa supõe uma postura ativa e sistemática,
“[...] trata-se de construir um sistema coerente de relações, que deve ser posto à prova, como tal”
(BOURDIEU, 2005, p. 32).
Seguem as etapas de ação da teoria de Bourdieu:
a) marcação de um segmento do social com características sistêmicas;
b) esquema de relações entre agentes e instituições, isto é, as posições ocupadas pelos
agentes dentro do campo acadêmico:
- Decomposição de ocorrências significativas, característica do sistema de posições
existentes no campo;
- Análise das relações objetivas entre as posições no campo;
- Análise das disposições subjetivas.
c) montagem de uma matriz relacional corrigida a partir da articulação entre as posições;
d) síntese do problema do campo dos últimos 20 anos.
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empresas, universidades, comunidades, famílias. São Paulo: Contexto, 2011.
O tema abordado neste artigo refere-se a um recorte da pesquisa (SOUSA, 2016) realizada
durante o curso de pós-graduação – Mestrado em Educação pela Universidade Metodista de São
Paulo (UMESP), a qual objetivou registrar e documentar, a partir das impressões e vivências, e
ainda das lembranças e memórias evocadas dos moradores do antigo povoado maranhense de Santa
Teresa do Paruá, hoje município de Presidente Médici, a história do Colégio Santa Teresa, buscando
observar atentamente a maneira como esta importante experiência educacional comunitária afetou
a realidade do lugar. Na presente discussão, pretende-se, particularmente, analisar e refletir por meio
das narrativas dos sujeitos envolvidos no processo de pesquisa, e também da revisão bibliográfica,
como esse relevante projeto de educação comunitária pôde influenciar suas vidas e provocar
significativas mudanças sociais, culturais e econômicas à comunidade.
A base inicial para a construção da pesquisa resultou do meu conhecimento obtido mediante
o contato particular de inserção no campo, haja vista que tenho uma relação pessoal com o Colégio
Santa Teresa, pois, foi neste espaço de educação que iniciei a minha vida escolar, na então
denominada pré-escola, e onde permaneci estudando até a conclusão do curso de Magistério. Trato,
portanto, do contexto no qual se deu a fundação do colégio, o funcionamento, as práticas
pedagógicas e a proposta de ensino adotada.
Uma questão levantada e que busco esclarecer está relacionada às causas que levaram a
referida comunidade, a maioria analfabeta, em tempos tão difíceis, se entusiasmar pela Educação
Formal, ao ponto de construírem comunitariamente o Colégio Santa Teresa. Qual a explicação para
o interesse dos moradores em construir um colégio como o Santa Teresa, numa época que viviam
da atividade agrícola familiar e normalmente dependiam da ajuda de seus filhos na lida da roça?
Inicialmente tal situação levou-me a inferir que frequentar a escola poderia representar um
problema, deixando de ser uma solução, uma vez que, os pais teriam que abdicar da ajuda dos filhos
na roça, pois, passariam a dedicar uma parte do tempo ou todo ele, às atividades escolares. No
entanto, os relatos demonstraram que, em momento algum, essa ideia tivesse representado um
obstáculo para que os pais manifestassem a vontade e o interesse em construir uma escola de
qualidade para seus filhos. Ao encontro deste ideal fraterno encontrei também em escritos de Viera
Pinto (2003) e Demartini (1998) um caminho de reflexão e algumas respostas para tal
questionamento.
E foi aí que o missionário comboniano descobriu a divisa por que ainda hoje se rege: Ver,
julgar e agir; depois, celebrar e avaliar. Aí, também, a prioridade foi a escola: Foi uma
escola muito rica. Mais de vinte dos primeiros alunos fizeram depois cursos
universitários. O lema era: ‘Estuda, para depois ajudar teu povo’. (Pe. Dinis,
depoimento).1
A citação acima se refere à fala de Pe. Dinis, concedida em entrevista a Manuel Giraldes,
em março de 2002. Coube à Igreja Católica, mais especificamente ao Pe. comboniano português
Armindo Dinis, a iniciativa de sensibilizar e incentivar a população local a criar os meios
necessários para a melhoria de suas condições de vida. Não há dúvidas, do importante papel que
este missionário exerceu no processo das transformações sociais ocorridas na comunidade de Santa
Teresa do Paruá, a partir de sua chegada em 1977.
De acordo com as informações obtidas a partir do depoimento de moradores, a exemplo, de
Dona Luzia, ao chegar à comunidade, o Pe. Dinis pôs em prática um trabalho de evangelização com
fins sociais, ajudando a população a enfrentar as precárias condições de vida e a melhora do nível
socioeconômico do lugar.
Onde o padre se interessa em trabalhar com a comunidade as coisas vão para frente. [...]
Olha, todos os padres fizeram seu bom trabalho, né... evangelização. Mas, no trabalho
social, só ele desenvolveu trabalho social que nem prefeito nenhum desenvolveu sem
dinheiro, porque os prefeitos faz é com dinheiro. E ele fez foi sem dinheiro. E o trabalho
social que nem o Padre Dinis fez, se todo padre fizesse o trabalho que o Padre Dinis fez,
toda comunidade tinha uma história bonita. Mas eles só vão rezar, cumprir missa só
para rezar a missa. (Dona Luzia, depoimento).2
1.Trecho de entrevista concedida pelo Pe. Dinis a Manuel Giraldes, em março de 2002. .
2 Entrevista de Dona Luzia (antiga moradora do lugar), realizada em Presidente Médici, concedida em 28 de
janeiro de 2016.
Desta aliança resultou a motivação necessária para levar adiante esse trabalho de suma
importância para o desenvolvimento da comunidade, o qual incluiu a construção de um colégio de
referência na região.
Então, quando a gente veio aí, com esse propósito do Paulo Freire, de grande
conscientização, juntando as pessoas para conversar, se reunir, aí, um pulou de lá né, vamo
fazer, não me lembro quem foi: “Dona Eliane: uma palavrinha.”, “Pois não.”, “Nós
queremos uma escola onde nossos filhos possam ser doutores.” Mudou meu plano
todinho. Pensava em algo informal. Uma escola de conscientização, um galpão de
conscientização, assim, debaixo da mangueira; era assim bem nessa linha. Para chegar a
doutor tem que dar um papel para esse povo e no final de determinado nível tem que ter
um papel para eles também darem continuidade. Mas mudou toda a história. Olha o que a
fala de uma pessoa faz! Como é que vamos fazer? Adulto desses daí que estão repetindo
a quarta série, até chegar lá... Eu digo então: é a escola formal mesmo. (Eliane
Rêgo, depoimento).3
O estudo desenvolvido por Demartini (1998) a respeito das populações rurais paulistas,
durante a primeira república, desmitifica essa visão equivocada que consiste em atribuir a essas
camadas certo desinteresse pela Educação Formal. A autora considera que esta versão, tida como
oficial, fora usada tanto pela elite, a quem interessava ver as classes menos favorecidas
despreparadas, sem condições de competir igualmente com ela, quanto pelos órgãos públicos para
se eximir de suas responsabilidades em oferecer a elas o acesso à escola.
3
Entrevista de Eliane Rêgo. Presidente Médici, 03 de janeiro de 2015.
Contrariamente aos que supúnhamos, uma valorização constante do aprendizado da leitura
e da escrita foi constatada entre os habitantes de sítios e fazendas em períodos anteriores à
industrialização; além da valorização, havia procura efetiva de ensino. Isto é, não se tratava
apenas de mera valorização; está se concretizava em comportamentos efetivos, numa
procura educacional que, muitas vezes, providenciava suas próprias soluções para uma
oferta educacional sempre deficitária (DEMARTINI, 1998, p. 60).
A autora destaca várias situações nas quais essas populações buscavam contornar a não
oferta e dificuldade de acesso à Educação Formal, como a criação de escolas ou salas de aulas
particulares. “A existência de uma grande clientela potencial fora das escolas oficiais estimulava a
criação de classes particulares [...] constatou-se também a existência de ensino particular que
tentava sanar as dificuldades do ensino público” (DEMARTINI, 1998, p. 64).
Também foi possível encontrar nos escritos de Vieira Pinto (2003, p. 80) um caminho de
reflexão e de possibilidades de algumas respostas para essa questão. Ao falar sobre a educação de
adultos, o autor esclarece que “o fato das pessoas estarem na situação de analfabetos ou de
semianalfabetos não representa um obstáculo à consciência de seu papel (seu dever) social”. Essa
premissa apresenta elementos que ilustram o pensamento da comunidade que ora estudo, ajudando
a explicar sua iniciativa para construir o Colégio Santa Teresa e do interesse pela Educação Formal.
Logo, parece ingênuo pensar que uma comunidade de maioria analfabeta pudesse ignorar
ou desconhecer o valor da Educação Formal, pois, de acordo com Vieira Pinto (2003, p. 81) “na
medida em que a sociedade se vai desenvolvendo, a necessidade da educação de adultos se torna
mais imperiosa”. É porque “em verdade eles já estão atuando como educados, apenas não em forma
alfabetizada, escolarizada”.
Ainda segundo este mesmo autor, deve-se considerar que o “educando adulto é antes de
tudo um membro atuante da sociedade”, e não apenas por ser um trabalhador, mas sim pelo conjunto
de ações que exerce sobre um círculo de existência. (VIEIRA PINTO, 2003, p. 83).
O Pe. Dinis, ao organizar espaços de reflexão e conscientização, preparando e despertando
na comunidade a vontade em participar, tomar decisões, em pensar e agir coletivamente,
consequentemente o motivou a reivindicar uma educação de melhor qualidade.
A professora Mariazinha destaca a dedicação do Pe. Dinis, motivando, mobilizando e
conscientizando a comunidade acerca da importância de uma escola de qualidade para seus filhos
e o desenvolvimento do lugar.
Fazia muita reunião com o pessoal, motivando o povo que era pra construir, que era pra
ser uma escola para o povo, para os seus filhos, para os seus netos, seus bisnetos. E o
pessoal muito empolgado, inclusive o meu pai, trabalhou muito na escola Santa Teresa.
O Padre Dinis sabia fazer o pessoal se mexer. Ele colocou na cabeça do povo que a gente
tem que ter uma escola boa, de qualidade, pra botar os seus filhos. E assim o pessoal, todo
mundo motivado, todo mundo interessado e todo mundo trabalhava, era homem,
véio e menino. (Professora Mariazinha, depoimento) .4
Torna-se válido ressaltar que o trabalho com a construção da escola envolveu homens,
mulheres, adultos, jovens e crianças. Os adultos conciliavam o trabalho na roça, que começava logo
nas primeiras horas da manhã, findando com o por do sol; os pais se revezavam, trabalhando horas
a fio durante a madrugada; e os filhos e as mulheres atuavam durante o dia.
A construção dessa escola comunitária contou com o apoio incondicional de um recém-
casal de professores (Eliane Rêgo e Aécio Rego) que, no final da década dos anos de 1970, chegou
à então Vila Presidente Médici, trazendo consigo o desejo de alfabetizar, fato este que despertou
nas famílias o anseio em verem seus filhos tornarem-se doutores. Aliás, essa foi uma das frases, que
segundo a Dona Eliane, marcou o momento decisivo para iniciarem a construção do Colégio Santa
Teresa, dita em uma das muitas reuniões que faziam ao anunciar o retorno para São Luís.
A professora Eliane Rêgo conta que após o compromisso firmado com os moradores, ao
propósito de levar o projeto adiante, cuidou de se informar sobre os meios legais para construir uma
escola que correspondesse às expectativas da comunidade. Ou seja, para formar os filhos em
“doutores” precisaria ir além da ideia inicial do casal, que era a de levar para a comunidade a
alfabetização e a conscientização, em um barracão ou debaixo das mangueiras. Era preciso seguir
determinados protocolos, agir dentro dos trâmites legais, expedir um documento que comprovasse
a formação e aprovação nos níveis e etapas do sistema de ensino formal instituído pelos órgãos
vigentes.
Aí eu voltei pra São Luís, fui me informar como é que fazia, fui aprender todo esse
procedimento que eu não sabia [...]. Aí cheguei no Conselho Estadual de Educação. Você
tem que ter um prédio de alvenaria, sala de tantos metros, é tantos litros de água por aluno
não sei o quê, não sei o quê mais. Senhora, lá não tem uma casa de alvenaria. Não tinha
uma casa de alvenaria aqui. Como era que ia se fazer uma escola de alvenaria? Mais tem
que ser desse jeito. Voltei, reúne o povo de novo, eu falava: “Gente tem que ter um prédio
de alvenaria, sala de tantos metros, um tanto de água por pessoa; era uma exigência legal,
formal. Como vocês querem pra ter o papel, pra filho ser doutor, tem que ser.” Mas nós
fazemos Dona Eliane, faz mesmo! Faz [...]. Aí, pronto a comunidade foi trabalhar. Aí
foram atrás de um mestre de obras que soubesse fazer uma escola com aquela estrutura.
Aí acharam o Renato, esse mestre de obras e todo o resto veio. Sábado era o dia todo e à
noite os caboclos ainda iam trabalhar; ali foi aterrado, socado. (Professora Eliane Rêgo,
depoimento).
4
Professora Maria do Carmo da Silva Lima (conhecida como professora Mariazinha) entrevista concedida em
Presidente Médici no dia 27 de janeiro de 2016.
A construção foi iniciada em 1978 e concluída em 1979. E, neste mesmo ano, em 02 de
abril, iniciariam as atividades escolares. Inicialmente o colégio começou a funcionar com quatro
salas, sendo que, neste momento, a prioridade foi a de atender os jovens que há anos estavam sendo
reprovados na quarta série. Em virtude disto, providenciou-se logo a quinta série e nos anos
seguintes foi sendo implantado o primeiro grau completo (o então Ensino Fundamental), incluindo
a Pré-Escola (Educação Infantil dos dias atuais).
O casal de professores, no período em que permaneceram no colégio, trabalhou
voluntariamente, recebendo algumas doações da comunidade, principalmente alimentos, para o
próprio sustento. Outros serviços, como limpeza e merenda, eram realizados pela própria
comunidade através do trabalho voluntário. Em relação a mensalidades, os pais pagavam uma taxa
simbólica, irrisória, dentro de suas possibilidades.
O Colégio recebeu o nome de Santa Teresa, em homenagem ao primeiro nome do povoado.
A comunidade assumiu o compromisso de cuidar do colégio e ambos estavam ligados numa teia de
reciprocidade, na qual, um precisava do outro para continuar crescendo e se desenvolvendo.
Tanto a professora Eliane Rêgo, quanto seu esposo, o professor Aécio, se tornaram leitores
e adeptos das ideias de Paulo Freire. O contato com as obras freirianas só aconteceu após a
conclusão do curso de Licenciatura em Letras em 1977, quando passou a ter acesso e simpatizar
por estas. No período em que esteve na Universidade, de 1974 a 1977, as obras de Paulo Freire
foram proibidas – o Brasil estava sendo governado por uma junta militar que impôs forte censura
aos meios de comunicação e à expressão livre de opiniões, mantendo as universidades em
vigilância, proibindo leituras de alguns livros, principalmente se o conteúdo estivesse de alguma
forma relacionado às ideias de esquerda.
A proposta pedagógica de Paulo Freire era o que eu tinha lido, me empolgado e só tinha
dois professores, eu e Aécio, eram duas turmas. Do próprio trabalho em mutirão, porque
o que a gente veio fazer aqui né, educação popular né. A gente já começou a ler Paulo
Freire que no curso mesmo a gente nem podia falar do Paulo Freire. Eu comecei a
faculdade em 74 quando era bem ditadura, nem se falava, andar com o livro do Paulo
Freire para quê. Mas quando eu terminei em 77 naquela abertura a gente leu, se empolgou,
então eu achava que a gente ia assim fazer um barracão e conscientizar o povo, educar,
conscientizar. (Professora Eliane Rêgo, depoimento).
Enquanto o Colégio Santa Teresa estava sendo construído, o casal de professores aproveitou
para fazer um diagnóstico sobre a situação de aprendizagem dos alunos para daí elaborarem o plano
de ensino. Ali, eles já começaram a colocar em prática o Método de Alfabetização Paulo Freire,
adotando palavras da realidade concreta dos alunos, geradoras de sentidos e significados. Excertos
da fala de Eliane apresentam este contexto:
Então, Aécio ficava numa sala de alfabetização, onde ele se fundamentou no Paulo Freire.
Fez uma grande cartilha, ele era um grande artista e escreveu lá: A de abano, a letra A
muito bonita e desenhou o abano, B de... era tudo de coisa da região, todo o alfabeto
desenhado para trabalhar e as palavras chave, foi um método do Paulo Freire para
alfabetização. Pegando as palavras chaves a partir do contexto da realidade e a partir dali
foi desenvolvendo. (Professora Eliane Rêgo, depoimento).
Conforme explicitado acima, a cartilha elaborada pelo professor Aécio, teve como base um
aspecto característico do método de alfabetização Paulo Freire, que é o uso das palavras oriundas
da realidade dos alunos, denominadas de palavras geradoras. Segundo Paulo Freire (2014, p. 14),
“estas palavras são chamadas de geradoras porque, através da combinação de seus elementos
básicos, propiciam a formação de outras”. Ele acrescenta que “os temas, em verdade, existem nos
homens, em suas relações com o mundo, referidos a fatos concretos”.
Para Brandão (1981, p. 30), são das “inúmeras frases que recontam a vida do lugar e que
devem recortar todas as suas situações, com todas as categorias de seus sujeitos – saem as palavras
geradoras de que o método faz o seu miolo”.
Preparar os alunos para uma leitura de mundo, sem descuidar da realidade e do contexto no
qual estão inseridos, foi outro princípio presente no método de ensino adotado pelo casal, que
aparece em destaque na pedagogia freiriana.
A professora Eliane relatou ainda que, desde o início, ela e o professor Aécio procuraram
seguir uma filosofia educacional ou princípios pedagógicos que visassem conduzir os alunos à
conquista da emancipação intelectual e pessoal. Para eles, o processo de alfabetização só fazia
sentido se fosse capaz de desenvolver o pensamento reflexivo.
No final do ano de 1982, o casal de professores Eliane Rêgo e Aécio Rêgo, que participaram
desde o início do projeto de ensino, retornou para a cidade de São Luís, deixando como legado um
trabalho de educação voltado para a formação de pessoas comprometidas com a transformação da
realidade na qual viviam. Simultaneamente, concedeu às crianças, adolescentes e jovens a chance
de crescimento pessoal e profissional, permitindo que esses pudessem fazer escolhas, que seus pais
não puderam.
Diante da saída do casal, o Pe. Dinis, preocupado em manter a qualidade do ensino e
mediante informações obtidas sobre o importante trabalho educacional e social realizado pelos
Irmãos Lassalistas, entrou em contato com os mesmos e os convidou a assumirem a direção da
escola.
Como era de costume, os moradores foram reunidos e mobilizados a escreverem carta-
convite dirigida à Congregação Lassalista com o objetivo de explicitar e sensibilizar os irmãos
acerca do esforço da comunidade na construção do colégio e do desejo de poderem contar com o
apoio dos mesmos.
O Pe. Dinis também sabia da intenção dos Irmãos Lassalistas em estender sua atuação
naquela região do país, sendo este, portanto, mais um motivo para que aceitassem a proposta.
Assim, “a ida dos irmãos ao Maranhão integrou a política missionária da Província Lassalista de
Porto Alegre, o seu propósito de assumir novas frentes de trabalho na região amazônica” (THIEL;
WOLLMANN, 2000, p. 93).
Após tomarem conhecimento, os Irmãos decidiram fazer uma visita ao povoado em
setembro de 1981, para averiguação da realidade, isto é, se condizia com a situação descrita pelos
moradores. Desta forma, “[...] o Provincial, irmão Edgar Hengemüle, delegou o então irmão
Raimundo Giasson para realizar uma visita de observação “in loco”, que, por sua vez, [...] enviou
um informe sobre o local e a escola, e sobre os agentes pastorais e educativos aí atuando”. Ao final
da visita, ele emitiu o seguinte parecer: “sendo o plano provincial o atendimento preferencial às
periferias e às missões, acho plenamente válida a tentativa de se iniciar mais uma frente de missão,
sobretudo numa localidade completamente carente de recursos humanos”. (THIEL;
WOLLMANN, 2000, p. 93).
A presença dos Irmãos Lassalistas em Presidente Médici, na década de 1980, assinalou a
criação de um núcleo educacional que alterou significativamente a vida da comunidade local e ainda
das cidades vizinhas. Eles implantaram no Colégio Santa Teresa, a pedagogia lassalista,
fundamentada nos preceitos de La Salle, pautada nos valores cristãos, de solidariedade e
fraternidade. Para Rangel e Weschenfelder (2006, p. 19):
As crianças e jovens recebidos nas escolas de La Salle sentiam sempre mais o espirito de
acolhimento familiar em sua convivência com os mestres. Estes já não eram personagens
alheios, estranhos e desinteressados em relação à vida dos alunos. Graças ao sentido de os
mestres viverem como irmãos entre si e irmãos maiores de seus alunos, a pedagogia
lassalista, em toda sua história, foi marcada profundamente pela característica da
fraternidade. (RANGEL; WESCHENFELDER, 2006, p. 19).
[...] pra minha formação enquanto professora foi uma das melhores coisas que deveria ter
acontecido, porque como eu falei, desde criança os irmãos já estavam aqui em Presidente
Médici e já havia essa forma diferente de ver a realidade. O que eu considerei mais
importante foi o espírito de colaboração, o espírito de cooperação, sempre de auxiliar o
próximo, porque nós conhecíamos toda a história da congregação lassalista, com
o tempo nós fomos conhecendo. (Professora Roberta Ramos, depoimento).5
Diante de uma realidade afetada por inúmeros problemas e dificuldades sociais, o Pe. Dinis
elaborou e estabeleceu um conjunto de ações, a partir das quais, iniciou o processo de mudanças
significativas voltadas para a melhoria das condições de vida da comunidade de Presidente Médici.
5
Entrevista da professora Roberta Kellis Ramos, realizada em Presidente Médici, no dia 08 de fevereiro de 2016.
E, assim, foi gestado o Colégio Santa Teresa, com a missão de preparar as pessoas para a
colaboração num processo de transformação social – mais especificamente educacional.
Sua presença dinâmica, criativa e aguçada encorajou e estimulou os moradores a realizarem
toda a obra, comunitariamente. Valores como cooperação, solidariedade e coletividade estiveram
presentes e ajudaram a construir também as bases de sustentação do Colégio Santa Teresa, tanto no
âmbito de sua estrutura física, quanto do ponto de vista humano.
Contribuíram para esse sucesso: a presença notória do Pe. Dinis; o empenho do casal de
professores Eliane Feitosa Rêgo e Aécio Domingos Rêgo, portadores de uma visão educacional
diferenciada para a época; o cuidado e zelo dos Irmãos Lassalistas na continuação do projeto; e o
envolvimento de toda a comunidade, engajada e atuante, no sentido de garantir e realizar outras
conquistas.
Tanto o casal quanto os Irmãos Lassalistas tinham uma forte ligação com os movimentos
sociais e sindicais, e um engajamento com os movimentos veiculados à Igreja Católica, como as
Comunidades Eclesiais de Base (CEBs). É claro que os valores cristãos, cultivados pelos Irmãos
Lassalistas e impressos nos princípios da Pedagogia Lassalista, estavam presentes na escola, mas,
em ambos os casos, houve sempre o cuidado em respeitar a diversidade religiosa e a preocupação
em manter a equidade.
Outra característica fundamental da escola, e que contribuiu para a bem-sucedida
experiência educacional, que nela se desenvolveu, foi o estabelecimento da relação dialógica e o
encontro com quem estava do lado de fora dela. Os conteúdos estavam associados com a vida da
comunidade, envolto de reflexões sobre os problemas que a envolvia. Os alunos demonstravam
interesse e gosto pela escola, pois sentiam-se parte e responsáveis pela instituição.
Quanto ao movimento educacional, este processo todo proporcionou aos moradores de
Santa Teresa inúmeros benefícios. Os bons resultados obtidos são facilmente identificáveis quando
se ouve depoimentos dos alunos que tiveram a oportunidade de frequentar a escola, de que, aonde
vão, procuram difundir sua prática docente ou em outros segmentos, expõem os valores aprendidos,
como o respeito à dignidade humana, a valorização dos fundamentos éticos, o olhar estético entre
outros aspectos relevantes.
Há destaque ainda para aqueles que não exercendo as funções do magistério, atuam em
atividades diversas engajadas aos movimentos sociais, ocupando cargos nos sindicatos,
associações, cooperativas e ainda em lideranças comunitárias e políticas.
ALBERTI, V. Histórias dentro da história. In: PINSKY, C. B. (Org.). Fontes históricas. 3 ed. São
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NERIS, W. S.; SEIDL, E. Uma Igreja distante de Roma: circulação internacional e gerações de
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PINTO, A. V. Sete lições sobre educação de adultos. 13 ed. São Paulo: Cortez, 2003.
Segundo Silva (2017), a ETC Farroupilha foi uma instituição fundada juntamente
ao Colégio Farroupilha de Porto Alegre,1 tendo oferecido o Curso Técnico Comercial entre os
anos de 1950 e 1983. De acordo com o autor, embora a ideia de criação da escola
apareça na documentação por ele analisada, desde o ano de 1949, é em 1950 que a primeira
turma de alunos ingressa na instituição.
Entendendo a Cultura Escolar como “um conjunto de normas que definem conhecimentos
a ensinar e condutas a inculcar, e um conjunto de práticas que permitem a transmissão desses
conhecimentos e a incorporação desses comportamentos”, Dominique Julia (2001, p.10), destaca
2
Sobre o conceito de representação, ver Chartier (2002) e, sobre suas implicações específicas para a História
Cultural, ver Pesavento (2005).
Os sujeitos entrevistados foram escolhidos a partir de sua atuação na ETC (no caso dos
professores) ou da atuação de seus pais (no caso dos filhos de professores). Todos eles assinaram
“Termo de Consentimento Livre e Esclarecido”, autorizando a divulgação de suas memórias, bem
como de todos os seus dados. Considerando tratar-se de uma pesquisa de caráter histórico, optou-
se em utilizar o nome dos sujeitos na íntegra. De forma resumida, o quadro a seguir apresenta as
principais características de cada sujeito entrevistado, bem como alguns elementos da entrevista
realizada:
Quadro 1 ─ Relação de entrevistados
Nome Relação com a Data da Local da entrevista Tempo da N° de páginas
ETC entrevista entrevista da transcrição
SILLE, Hans Ex-professor da 11/12/2015 Casa do entrevistado. 2h 34min 22s 44
Joachim instituição Porto Alegre/RS –
Walter Rua Pedro Chaves
Barcelos, MontSerrat
– Auxiliadora.
KLEY, Ivam Filho do 28/01/2016 Memorial do Colégio 1h 16min 50s 41
professor Walter Farroupilha.
Kley
SCHULTZ, Filha do 29/01/2016 Casa da Entrevistada. 1h 17min 58s 21
Ingrid professor Sven Porto Alegre/RS –
Schultz Rua Felisbino de
Azevedo, São João.
POISL, Walter Ex-professor da 16/05/2016 Casa do Entrevistado. 1h 31min 54s 21
instituição Porto Alegre/RS -
Rua André Puente.
Fonte: Retirado de Silva (2017).
Como se observa no quadro, foram realizadas quatro entrevistas, sendo duas delas com
professores da ETC e duas com filhos de professores já falecidos. Entre os professores
entrevistados estão Hans Joachim Walter Sille,3 cuja entrevista ocorreu no dia 11 de dezembro
de 2005, em sua própria residência e o professor Walter Poisl, entrevistado dia 16 de maio de
2015, também em sua residência. Dentre os filhos de professores falecidos encontram-se as
entrevistas feitas com Ivam Kley, filho do professor Walter Kley, entrevistado em 28 de
janeiro de 2016, no Memorial do Colégio Farroupilha e a feita com Ingrid Schultz,
filha do professor Sven Robert Schultz, entrevistada em 29 de janeiro de 2016, na sua
residência. De forma geral, as entrevistas produzidas resultaram em um total de 6h 40 min 54s
de duração e 127 páginas, salvaguardados no meu acerco pessoal.
Ele foi funcionário do Banco do Brasil. Todo aluno das séries das aulas dele passava pelo
Banco o Brasil, como, ser caixa, ser isso, ser aquilo; cada um fazia isso. Ele trazia os
formulários do Banco do Brasil. Vocês tavam na área de clientes, tinha que ir lá saber
preencher certo, como e porque que faziam, porque que não faziam, como é que ia [...]
(SILLE, 2015, p. 21).
Embora não mencione o nome da disciplina ministrada pelo professor Poisl, Sille afirma
que o professor era também funcionário do Banco do Brasil, trazendo formulários para serem
preenchidos pelos alunos. Dessa forma, o cruzamento entre diferentes fontes pode
preencher lacunas que surgem nesse momento. O “Relatório de Verificação Mensal da ETC
Farroupilha”4 referente ao mês de março de 1953 revela que as disciplinas eram divididas em
dois grandes grupos, sendo elas as de Cultura Técnica e as de Cultura Geral. As tabelas
que seguem organizam a distribuição das disciplinas.
Tabela 1 ─ Quantidade de períodos semanais das disciplinas de Cultura Técnica por série
Disciplina 1ª Série 2ª Série 3ª Série
Elementos de Economia 3 - -
Contabilidade Geral 3 - -
Mecanografia 3 - -
Prática Jur. Geral e Comercial - 3 3
Contabilidade Comercial - 3 -
Merceologia - 2 -
Org. e Técnica Comercial - 3 -
Elementos de Estatística - - 3
Contabilidade Bancária - - 3
Contabilidade Industrial - - 3
Contabilidade Pública - - 2
Total: (períodos de disciplinas técnicas por ano) 9 11 14
Fonte: Elaborado pelo autor a partir do relatório de verificação mensal de março de 1953.
Tabela 2 ─ Quantidade de períodos semanais das disciplinas de Cultura Geral por série
Disciplina 1ª Série 2ª Série 3ª Série
Inglês 3 3 -
Português 3 2 1
Física e Química 2 - -
Biologia - 2 -
História Adm. e Econ. do Brasil - - 2
Matemática 3 2 -
Geografia Humana Brasileira - - 3
Total: (períodos de disciplinas gerais por ano) 11 9 6
Fonte: Elaborado pelo autor a partir do relatório de verificação mensal de março de 1953.
Eu gostava muito de dar aula, porque era uma forma de expressar e aprender também.
Porque quando eu fui ser professor eu não tinha nada. Eu depois fiz um método todo meu
de ensinar. No fim, nos últimos anos, nós, os alunos, eles incorporavam tanto, que eu fiz
funcionar um banco na escola. Quer dizer, depois de muitos anos, um aluno veio me dizer
assim: “professor, esse dinheiro aqui é seu, que o senhor depositou no banco”. (Risos). [...]
Então, quando já entrava na escola, já estavam montados todas as cadeiras, fichário, caixa,
e tudo estava montado já direitinho. E os alunos depositavam, tiravam, faziam uma
brincadeira de contas. (POISL, 2016, p. 5-6).
Algumas observações podem ser feitas a partir das memórias do professor Walter Poisl.
Inicialmente, o professor destacou que gostava de dar aula, considerando essa prática como uma
forma não apenas de ensinar, mas também de aprender. O fato de gostar de lecionar parece ter
inspirado o professor na elaboração de um método próprio de ensinar. Durante suas aulas de
Contabilidade Bancária, o professor Walter Poisl ‘montava’ uma agência bancária fictícia em sua
sala de aula, na qual os alunos simulavam transações típicas de um banco. De acordo com Poisl,
essa prática teria sido aceita pelos alunos, uma vez que, ao chegar na sala, já encontrava as cadeiras,
fichários e caixas montadas para a simulação das transações. Provavelmente, é neste contexto que
o professor Poisl utilizava os formulários citados por Walter Sille.
O caráter prático das aulas não parece uma especificidade da disciplina de Contabilidade
Bancária. No caso da disciplina de Inglês, ministrada pelo professor Sille, também podem ser
observadas algumas práticas específicas. Conforme anteriormente demonstrado, o professor Sille
destacava: “eu transformei o inglês em comércio... em correspondência comercial” (SILLE, 2015,
p. 4). A análise das memórias do professor referentes às suas aulas pode explicar o significado dessa
expressão.
[...] mas eu transformei o inglês em comércio... em correspondência comercial. E daí as
minhas aulas eram de correspondência comercial com exemplos trazidos de todas as áreas
do mundo, e também, o que eles muito gostaram. Até hoje me dizem quando me
encontram, é com o senhor que aprendi a escrever cartas, em Português. Porque eu
ensinava que uma carta comercial não tem rodeios, é seca, é aquilo que realmente o outro
tem que ler e não pode ter dúvidas. Não por o endereço em cima. Tem uma folha que não
é carimbada, não é, como é que chama? Impressa o endereço. Você tem que bater o seu
endereço, etc. e tal. O endereço tem que ser na folha, não é no envelope, o envelope, o cara
joga fora. (SILLE, 2015, p. 4).
Como pode-se perceber, as memórias do professor mostram que suas aulas de Inglês eram,
na verdade, aulas de correspondência comercial, nas quais o professor ensinava os alunos a
escreverem correspondências, tanto em Inglês quanto em Português. Segundo Sille, as cartas
deveriam ser curtas e diretas, não deixando margem para interpretações errôneas. Assim como
Poisl, Sille afirma que os alunos gostavam de seu método, agradecendo-o sempre por tê-los
ensinado a escrever cartas.
As aulas ministradas por estes professores estão ligadas ao objetivo de um curso comercial,
que, como apresentou-se no início deste trabalho, consistiam basicamente em formar profissionais
para lidarem na área comercial, tanto em âmbito público quanto privado. Enquanto os professores
Walter Poisl e Hans Sille desenvolveram métodos práticos de ensino, que, nas memórias dos
professores, teriam marcado fortemente os alunos, no casso do professor Sven Schultz, parece ter
sido um pouco diferente. As memórias de Ingrid Schultz a respeito de seu pai como professor
destacam:
[...] quando a gente conversava com ele, dava para perceber que ele não tinha assim muita
pedagogia, ele era assim mais do técnico, muito exato. Então, às vezes, eu imagino que
algumas aulas dele tenham sido assim um pouco secas, mas os alunos se adaptavam.
(SCHULTZ, 2016, p. 6).
O Farroupilha tinha [...] professores. Todos eles eram funcionários que eram... exerciam a
profissão que eles lecionavam, a cadeira que eles lecionavam. Um era chefe da... Isso aqui
é praticamente geral; não cabia para mim como professor de Inglês. (SILLE, 2015, p. 4).
As memórias do professor Sille trazem o que é confirmado por Silva (2017), de que os
professores que ministravam as disciplinas de Cultura Técnica, em sua maioria, além de
professores, exerciam profissões relacionadas à matéria que lecionavam. O trabalho do autor citado
demonstra, por exemplo, que o professor Poisl era funcionário do Banco do Brasil (como pode ser
observado, inclusive, nas memórias aqui trabalhadas), que o professor Sven Schulze era dono de
uma empresa de máquina e que o professor Walter Kley possuía um escritório de Contabilidade e
Economia.
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Lucas Costa Grimaldi, 2015.
SILVA, Eduardo Cristiano Hass da. A gênese de um espaço profissional: a Escola Técnica de
Comércio do Colégio Farroupilha de Porto Alegre/RS (1950-1983). Porto Alegre, 2017.
Dissertação (Mestrado) ─ Escola de Humanidades, Programa de Pós-Graduação em História,
PUCRS.
Bruna Silva*
Um dos assuntos recorrentes nos anos 1970 e 1980 era a Proposta de Reformulação
Curricular para os alunos de 1º e 2º graus que estava sendo elaborada pela Coordenadoria de
Estudos e Normas Pedagógicas/CENP - SE/SP, especialmente no que diz respeito às discussões que
os professores de História elaboraram.
A proposta colocava-se na contramão do projeto MEC-Usaid, que apresentou a ideia de
uma escola que priorizava a educação rápida, porém voltada para a formação de mão de obra
especializada, formação de um cidadão consciente para o civismo e com desejo de resolver os
problemas brasileiros. Nesse momento, ocorreu a criação das disciplinas Moral e Cívica e
Organização Social e Política Brasileira, juntamente com o decreto que autorizava o funcionamento
de licenciaturas curtas. Nesse contexto, a partir de 1977, os movimentos sindicais retomaram
articulações de cunho nacional, o que aflorou a noção de que a sala de aula seria um espaço de luta.
Por outro lado, foi durante a ditadura militar que as decisões sobre o que e como ensinar fizeram
com que “[...] os intelectuais, historiadores e professores de história [voltassem] a se encontrar [...].
” (MARTINS, 2000, p. 99).
O ano de 1977 é significativo, pois até então a ANPUH era uma associação exclusiva para
professores universitários de História. Através de documentos da Associação foi possível verificar
que haviam discussões acirradas sobre a relação entre aluno/professor e professor
universitário/professor dos ensinos médios e fundamental que buscavam estreitamento de relações
com a ANPUH, o que só ocorreu no IX Simpósio Nacional realizado em Florianópolis no ano de
1977. Segue a proposta conforme documentação:
Mesmo não tendo se desligado da ANPUH, ao mesmo tempo que Westphalen, Silva
afirmou estar em desacordo com aquela Associação. O não desligamento repentino teria acontecido
por ter apreço pelo professor Eurípedes, presidente da ANPUH em 1977. A professora conclamou,
então, uma nova associação, que deveria ser criada para funcionar distante dos professores
secundários e dos alunos. Neste ponto, uma ressalva foi feita: os professores secundaristas poderiam
ter acesso ao grupo, no entanto, deveriam ser além de professores, historiadores. Ou seja, teriam
que ser dedicados à pesquisa publicada. Isto porque considerou que também a ANPUH
marginalizou uma série de professores, mesmo que universitários e jovens historiadores com suas
pesquisas já publicadas.
Para Martins, a criação da SBPH rendeu confrontos por muitos anos após o Simpósio de
Florianópolis, pelo menos até o ano de 1981, pois ainda rondava o medo de que a ANPUH perdesse
seus status de cientificidade, mas “[...] em 1981, no XI Simpósio nacional de História, ocorrido em
João Pessoa, os estatutos reformulados foram apresentados à Assembleia Geral, a discussão sobre
o papel político da Associação foi objeto de discussão.” (MARTINS, 2000, p. 114). Passados quatro
anos e um Simpósio Nacional, as questões sobre cientificidade ou não, ainda pareciam pujantes no
seio das discussões da Associação. Necessitava-se que a documentação que regulamentava o grupo
estivesse adequada a nova situação para que o grupo aceitasse as novas normas. A ata do Simpósio
em João Pessoa afirmou que:
[...] o artigo 2º foi mantido, tendo sido sugerida a eliminação do artigo 3º: A Associação
não poderá tomar parte em manifestações políticas ou religiosas, nem tratar de qualquer
assunto estranho aos seus objetivos. [...] Em contraposição, pronunciou-se a Professora
Doutora Alice Piffer Canabrava, asseverando que em uma associação científica qualquer
tema pode ser tratado, desde que mantido seu caráter científico. Colocada em votação, foi
aprovada a proposta de eliminação. (MARTINS, 2000).
É certo que a associação exerce grande atrativo para os jovens professores e estudantes,
levados ambos por sadio interesse intelectual e aqueles também estimulados pelas junções
da carreira universitária. Não temos dúvida de que, um de seus aspectos mais positivos
seja o da identificação com a juventude estudiosa que dela participa de modo efetivo e
essencial e seu dinamismo peculiar. (CANABRAVA, 1979. p. 4).
A ANPUH foi descrita por Canabrava como um grande atrativo, não somente para os
professores da disciplina, mas também para os estudantes que ficaram entusiasmados com a
pesquisa e a carreira universitária. Canabrava delegou a eles o futuro da pesquisa histórica. A
abertura para os professores de 1º e 2º graus não significou, neste trecho, a relevância que a
integração entre ensino e pesquisa poderiam ter, mas de um outro aspecto, abrir a Associação para
os jovens estudantes daria ânimo para incentivá-los a dar continuidade à pesquisa histórica no país.
Em entrevista cedida para Ilka Miglio, para Cadernos CEOM, Déa Fenelon apontou mais
uma questão sobre o desmembramento das duas associações, relacionada à entrada dos professores
que lecionavam nos primeiros e segundo graus:
Déa Fenelon designou a ANPUH dos anos 1970, um espaço de produção de conhecimento
científico evidenciando que apresentar trabalhos e discuti-los era uma coisa de historiador, ao
mesmo tempo em que reforçou a diferença entre professor e historiador, quando afirmou que o
professor não era bem aceito por todos, pois estaria em uma fase em que ainda não produzia,
não estando nos moldes de um pesquisador.
Esta discussão foi tema central para os professores que tiveram seus textos publicados
no livro Repensando a história, organizado por Marcos A. da Silva, a partir da aprovação e
patrocínio da ANPUH – Núcleo São Paulo: “A edição deste volume foi concebida a partir
de uma moção encaminhada à seção administrativa do VI Encontro da Associação Nacional
dos Professores de História, ANPUH, realizada em Assis, campo UNESP, de 06 a 10 de
setembro de 1982”. (SILVA, 198-. p. 10). No livro, não consta a data de publicação. No
entanto, é possível balizar a publicação durante a primeira metade da década de 1980, levando
em consideração a moção apresentada no evento ocorrido em 1982.
Já na apresentação, Silva foi contundente em relação às diferenças entre os níveis de
ensino: “Trata-se de diálogo múltiplo e fecundo. Além de questionar certas concepções
ingênuas sobre a universidade como lugar exclusivo de produção de conhecimento e a escola
de 1º e 2º graus como pura repetidora do que já existe.” (SILVA, p. 10-11). O autor rebateu a
noção de que a escola não consistia em um lugar de produção do saber. Nesse contexto, as
discussões apresentadas no livro possuem um fio condutor, sempre questionando a ideologia
no ensino, refletindo as dificuldades para lecionar nas escolas, e ainda discussões sobre uso
de fontes. Já, na segunda parte do livro, professores expuseram suas experiências em sala
de aula, demonstrando suas frustrações e expectativas alcançadas em relação à produção do
conhecimento de forma conjunta entre aluno e professor.
Neste mesmo período, ocorreram também mobilizações sindicais feitas pelos
professores, através de congressos e da Revista da Associação dos Professores do Ensino
Secundário Normal Oficial do Estado de São Paulo – Apeoesp, que possuía o intuito de
construir uma política educacional para trabalhadores. No entanto, vários professores não
viam esta associação como um canal de mobilização e criaram o Movimento de Oposição
Aberto dos Professores – MOAP com projeção política, conseguindo organizar em 1978 a
primeira greve geral da categoria dos professores. É importante mencionar que, no ano
seguinte, o país vivenciou 430 greves, sendo que em todas as categorias do ensino houve greve
por 38 vezes. Apenas no ensino universitário houve 5 greves, em nível nacional, em 1980.
(RICCI, 1999. p. 35-36).
Em 1983 aconteceram debates e a produção de um projeto que culminou na publicação
do livro O ensino de História, que foi fruto de um projeto da Secretaria de Ensino Superior –
SESU do MEC, em 1983, que objetivou fomentar a produção de materiais destinados ao uso
de alunos de 1º e 2º graus. O projeto contou ainda com recursos da Pontifícia Universidade
Católica de São Paulo – PUC-SP. O livro de autoria de Conceição Cabrini, Helenice Ciampi,
M. do Pilar Vieira, M. do Rosário Peixoto e Vavy Pacheco Borges, foi publicado, apenas em
1986.
..........As autoras buscaram, de maneira muito didática, explicar a proposta de ensino,
contando com um relato de experiência ocorrido durante um ano em turmas da 5ª série,
assim: “Foi nossa preocupação, desde o princípio, pensar a pesquisa e o ensino como um
processo global, único, o que destrói pela base a separação entre produção e
transmissão.” (CABRINI, 2000. p. 11).
As autoras mencionaram a existência de uma relação de poder nas universidades, o
que contribuía para a segregação das atividades relacionadas à ciência, no entanto,
apontaram que muitas das críticas foram radicalizadas, assim
O ataque ao saber da universidade (essa ‘torre de marfim!’) feito de uma forma incoerente
e ‘incompetente’ (superficial e sem base) acabou por se radicalizar, ao se tornar mera
bandeira de luta, gerando uma atitude que leva a desprezar e a querer excluir o estudo e a
reflexão. Ora, o estudo e a reflexão são, sob suas mais diferentes formas, a essência do
trabalho ensino/aprendizagem. (CABRINI, p. 20).
[...] é o professor, que sabe mais que o aluno, pois detém o saber dos especialistas e dos
livros didáticos. Ele é um elo dessa cadeia, pois exerce essa dominação, mas também a
sofre, por sua situação de dependência em relação ao ‘saber produzido pela academia’, em
relação às condições de trabalho, em relação à situação estrutural de ensino, em relação à
cobrança do seu papel profissional pelos alunos, pais, diretores e instituição de ensino...
(CABRINI).
A figura do professor foi construída a partir de uma rotina de sofrer a imposição do poder
sobre si e de repercuti-la em sala, fazendo com o aluno o visse de maneira impositiva. Ao contrário
disso, a proposta que configurava o livro tratava-se de que o profissional de história fosse
conhecedor do “[...] processo do conhecimento histórico, que seja alguém que saiba se relacionar
como saber histórico [...] seja alguém capaz de encaminhar seus alunos [...] nesses mesmos
caminhos da produção e da relação crítica do saber.” (CABRINI, p. 23). Nesse intuito, o foco
principal não está em o professor deter todo do conhecimento sobre história, pelo contrário, seria
fundamental que ele dominasse os mecanismos em que a história é produzida, ou seja, através de
fontes e da crítica, que deveria ser estimulada.
Cláudia Sapag Ricci descreveu como os professores buscaram trabalhar em sala de aula, e
quais os questionamentos levantados a partir daquele modelo de ensino de História que estava
sendo executado nas salas de aulas. A autora não deixou de elencar uma importante série de
revistas queoram publicadas, no estado de São Paulo, ou ainda que tiveram um aumento nos
artigos publicados, nos anos 1970 e 1980, pensando a questão do ensino, tais como a Revista
b
de História, do Departamento de História da USP; Revista Projeto História do Programa de
Pós-Graduação em História da PUC-SP; Cadernos Cedes, resultado de um evento sobre o
ensino de História parte do VII Encontro de História do Núcleo Regional de São Paulo da
ANPUH. Na Revista Brasileira de História, o número 7 foi destinado a discutir educação.
Especificamente, a respeito da Revista Brasileira de História, segue uma tabela
com o levantamento dos artigos publicados relacionados à área de ensino de História,
desde o ano de criação do periódico: de 1981 até 2001.
Fenelon se referiu a umas das edições mencionadas na tabela acima, a edição do volume 7,
nº 14 de 1987, denominada Instituições. Nesse dossiê estão o artigo “Sobre a proposta para o ensino
de História do Primeiro Grau”, de sua autoria, e também, os artigos intitulados “A impaciência do
preconceito e o coro dos contentes” de Marcos A. da Silva e “Antiguidade, proposta curricular e
formação de uma cidadania democrática” de Pedro Paulo Abreu Funari, ambos publicados na seção
de resenhas do dossiê.
A esse respeito, Fenelon considerou que as publicações foram fruto de uma proposta que
sugeriu a reformulação do ensino de História de 1ª à 8ª séries, que consistia em distribuir temas de
forma blocada que deveriam ser trabalhados em todos os períodos, “como o tema ‘trabalho’”,
(FONSECA, 1997. p. 84). No entanto, além das dificuldades que alguns professores teriam sentido
em relação à falta de livros didáticos, a proposta foi
[...] bombardeada, nessa essência que trazia o fato de não ser uma proposta fechada, de
não ter uma lista temática, foi um pouco de como tirar a segurança de que eles tinham um
certo conteúdo a cumprir, tinham uma certa temática para desenvolver. Resumindo essa
discussão toda, nós conseguimos publicar o texto na Revista Brasileira de História nº14.
Esse texto contém alguns artigos de jornais e as nossas respostas ao debate que aconteceu.
(FONSECA, p. 84).
A historiadora rememorou que a falta de ter um roteiro a ser seguido para lecionar foi
sentida, pois os materiais a serem trabalhados em sala de aula deveriam ser produzidos pelos
próprios professores. Mas, a publicação do artigo marcou a abertura de espaço para esta proposta e
rendeu uma pequena vitória. A historiadora completou: “Na verdade ele foi ‘estraçalhado’ por uma
crítica muito superficial, muito ideológica também, muito por razões pessoais, até por não estar
participando da proposta.” (FONSECA). Assim, a narrativa de Fenelon foi construída recordando
duras críticas à nova proposta de lecionar História e desavenças pessoais que culminaram na má
aceitação do projeto.
No texto escrito por Fenelon, há duras críticas ao ensino daquele período. Para ela, os
Estudos Sociais e a instituição das licenciaturas curtas representavam um verdadeiro perigo para a
educação. “[...] seria necessário recusar veementemente qualquer tentativa de considerar que o
ensino unificado de Estudos Sociais, em qualquer momento da vida escolar, possa representar uma
opção saudável.” (FENELON, 1987. p. 252).
Além de tecer críticas às estruturas fechadas de ensino, Fenelon acusou os professores
universitários de terem proposto os Estudos Sociais, juntamente com o destaque midiático que a
notícia teve sem que as associações científicas dessem seus pareceres:
A crítica foi contundente em relação à cisão entre os professores dos três níveis de ensino.
Conjuntamente foram tecidas críticas à própria ANPUH, que a seu entender estava indo na
contramão das lutas que vinham construindo.
Marcos A. da Silva criticou a grande repercussão negativa que a imprensa fomentou ao
passar a analisar o ofício do historiador, relacionando-o à proposta do currículo de História. Silva,
na época, ocupava o cargo de Assessor da Equipe Técnica de História da Coordenadoria de Normas
Pedagógicas – CENP, que elaborou a proposta em questão. Nesse contexto afirmou: “Penso que as
falas apontadas não são mera expressão de mero pluralismo de rejeições. Elas se identificam em
profundidade ao declararem os sujeitos legítimos da crítica e seus desprezíveis objetos.” (SILVA,
1987. p. 256) A proposta foi acusada de ser marxista, ter o intuito de acabar com o ensino, de postura
extremamente ideológica, dentre outras acusações. (SILVA, p. 255) Para Silva, as críticas
desnudaram as posturas dos seus locutores, não cabendo apenas dentro da diversidade de opiniões
sobre a proposta.
Pedro Paulo Abreu Funari complementou a opinião de Silva. Para ele, a proposta tem de
recuperar “[...] da Democracia Grega, o sentido profundo do diálogo: a confrontação entre
interlocutores, autônomos, de suas ordenações da experiência (logoi). O cidadão educa-se, numa
sociedade democrática, pela prática de discussão das visões e conflitantes no interior da cidadania
[...].” (FUNARI, 1987. p. 262). Funari via na diversidade o oposto das críticas. A nova proposta
agiria no sentido de construção do saber através do diálogo democrático.
Ao longo de vinte anos de edição do periódico, apenas uma edição, o volume 10, n. 19 de
1989-1990, foi dedicada inteiramente ao assunto “ensino de História”. O número foi intitulado
“História em quadro-negro: escola, ensino e aprendizagem”. Além disso, pouco se falou sobre a
formação do professor nos artigos. O único texto abordando este assunto é de autoria de Zita de
Paula Rosa, publicado em 1985: “A formação do ‘professor’ e o ensino de História”, e trata-se de
uma resenha. Outro texto que chama atenção, na edição “Quadro negro” é “A academia vai ao
ensino de 1º e 2º graus”, de autoria de Claudia Sapag Ricci. Um dos artigos desta edição seria
resultado de um evento realizado na tentativa de aproximar docentes do âmbito universitário e
escolar.
Sobre estas publicações, Helenice Ciampi e Conceição Cabrini escreveram:
[...] docentes do ensino fundamental e médio constituíram um grupo com os seus parceiros
universitários iniciaram uma participação ativa e, debates da ANPUH e nos encontros
acadêmicos, como Iª Perspectiva do Ensino de História, realizado na USP em 1988 [...]
‘Reflexões sobre a prática diária no ensino de História’, publicado na Revista Brasileira
de História. (CIAMPI, 2005. p. 07).
Apesar desta aproximação mencionada, não se pode afirmar, através do periódico, outras
aproximações por meio de eventos, como simpósios que tenham resultados em artigos publicados
na Revista Brasileira de História. Para dar uma dimensão da totalidade de publicações sobre uma
vasta diversidade de assuntos publicados ao longo de vinte anos em detrimento das publicações
sobre ensino de História, segue um gráfico:
Gráfico 1 – Artigos e resenhas sobre o ensino de História na RBH (1981-2001)
5%
Artigos e resenhas
relacionadas ao
ensino de história
Total de artigos
publicados entre
95% 1981 e 2001.
Apenas uma pequena fatia de pesquisadores, mesmo depois do Simpósio que decidiu a
abertura da ANPUH aos professores dos ensinos de 1º e 2º graus, se interessou em problematizar o
ensino através de publicação de artigos na Revista Brasileira de História - RBH. É necessário
ponderar que os artigos passavam pelo crivo de pareceristas e de um Conselho Editorial para que
fosse publicado. Portanto, é possível questionar até que ponto a Associação e a revista estavam
propensas a se relacionar com o ensino de História.
Heloísa Faria da Cruz deixou transparecer indignação em relação à situação em que os
professores encontravam-se:
O conhecimento histórico é produzido na academia. Para nós do 1º e 2º graus cabe a
divulgação como bem prescreve a lei. Na universidade se produz o conhecimento puro,
científico, que nenhum momento discute o próprio caráter ideológico. Por que parece mais
natural propor uma mesa sobre ideologia e ensino de História nos 1º e 2º graus ao invés
da ideologia e ensino de História? Por que nossos espaços de discussão ainda guardam
esta separação? Na verdade, entre nós profissionais de História o mais comum é a
reprodução daquela postura que separa os que produzem o saber, junto com a atividade de
docência – é claro – daqueles que só ensinam. Na verdade, estamos hierarquizando e
assumimos esta hierarquia – ser docente é diferente de ser professor. (CRUZ, p. 28).
Talvez a lei que Cruz se refira, se trata da Lei nº 7.044 de 18 de outubro de 1982, que alterou
dispositivos da Lei nº 5.692, de 11 de agosto de 1971. A referida lei fixou diretrizes e bases para os
ensinos de 1º e 2º graus. Já no artigo 1º abordou os objetivos do Ensino Básico:
A lei sancionada por Emílio G. Médici dimensionou os limites que o ensino escolar deveria
estar restrito. Assim, a formação para o mercado de trabalho e para a formação de um cidadão
exemplar, tornaram-se ápices a ser alcançados. Por outro aspecto, o decreto nº 85.487, de 11 de
dezembro de 1980, versou sobre a carreira do magistério nas instituições federais e compreendeu
que:
Art. 1º Nas universidades e nos estabelecimentos isolados mantidos pela União,
entendem-se por atividades do magistério superior.
I – as pertinentes à pesquisa e ao ensino de graduação ou de nível mais elevado, que visem
à produção, ampliação e transmissão do saber.
II – as que estendem à comunidade, sob forma de cursos e serviços especiais, as atividades
de ensino e os resultados da pesquisa.
III – as inerentes à direção ou assessoramento exercidas por professores na própria
instituição, ou em órgãos do Ministério da Educação e Cultura. (DECRETO Nº 85.487, de
11 de dezembro de 1980).
CABRINI, Conceição. et al. Ensino de História: revisão urgente. São Paulo: EDUC, 2000.
FENELON, Déa Ribeiro. Sobre a proposta para o ensino de História do Primeiro Grau.
Revista Brasileira de História, São Paulo: ANPUH, v. 7, n. 14, 1987.
FONSECA, Selva Guimarães. Ser professor no Brasil: História Oral de vida. Campinas:
Papirus, 1997.
FUNARI, Pedro Paulo Abreu Funari. Antiguidade, proposta curricular e formação de uma
cidadania de uma cidadania democrática. Revista Brasileira de História. v. 7, n. 14. São
Paulo: ANPUH, 1987.
PAULA, Eurípedes, Simões de. Anais do IX Simpósio Nacional da Associação dos Professores
Universitários de História. São Paulo: ANPUH. 1979.
RICCI, Cláudia Sapag. Da intenção ao gesto: quem é quem no ensino de História em São Paulo:
AnaBlume, 1999.
SILVA, Maria Beatriz Nizza da. Carta a Cecília Westphalen. São Paulo, 8 mar. 1978. Coleção
Cecília Westphalen. Arquivo Público do Paraná, caixa 3. MACHADO, Daiane Vaiz. Modo de
ser historiadora: Cecília Westphalen no campo historiográfico brasileiro da segunda metade
do século XX. História da historiografia. n. 22, dezembro de 2016.
MESQUITA, Ilka Miglio. Entrevista com a doutora Déa Ribeiro Fenelon. Cadernos do
CEOM , v. 1, p. 283-308, 2008.
PROJETO MEMÓRIA VIVA PARANÁ. Entrevista com a professora Cecília Westphalen.
Supervisão: Umuarama Comunicação e Arte. Curitiba, 1988.
* Doutor em Educação pela Universidade Metodista de São Paulo, professor de Educação Básica na disciplina
de História e pesquisador na área de História da Educação no Centro de Memória da Educação de Praia Grande-
SP.
imigração japonesa. O autor Tomoo Handa destaca que a grande maioria dos imigrantes que
regressaram a Santos eram provenientes de Okinawa, uma ilha mais afastada ao sul do Japão que
conserva características culturais diferenciadas do restante do arquipélago. Por essa razão optaram
por regressar ao porto de Santos que lembrava a terra natal: ilha portuária onde poderiam
desenvolver, principalmente, a pesca, atividade a qual já estavam bastante familiarizados (1986, p.
314-315). O sucesso dos imigrantes que deixaram as fazendas de café incentivou outros imigrantes
a fazerem o mesmo. Ano após ano, as colônias japonesas espalhadas por todo o Estado de São Paulo
tiveram um aumento populacional considerável. No final da década de quarenta, em Santos e
arredores, havia mais de mil famílias japonesas vivendo, principalmente da pesca de horticultura
(SILVA E SILVA, 2011. p. 70-120).
Famílias japonesas também ocuparam o litoral sul do Estado através da construção da linha
férrea Santos-Juquiá. No início do século XX, o governo do Estado pretendia interligar a economia
do Vale do Ribeira ao restante do Estado. Para isso, iniciou a construção da linha férrea em direção
ao sul em 1914 (CARDOSO, 1972, p. 317-345). Muitos imigrantes japoneses presentes na cidade
de Santos viram na construção uma boa oportunidade de trabalho. Ao término das obras, algumas
famílias arrendaram terras para o plantio do arroz. Segundo consta no livro “A História da Colônia
Japonesa de Itariri” (UECHI, 1975), os primeiros a chegarem em Itariri, que na época ainda
pertencia ao município de Itanhém, foi a família de Genzo Oshiro, que iníciou o plantio de arroz.
O mesmo ocorreu nas regiões adiante, como Pedro de Toledo, Pedro Barros, Miracatu, etc.
Em Registro, Iguape e Sete Barras, no Vale do Ribeira, a imigração japonesa aconteceu de
forma diferenciada do restante do Estado até aquele momento. Através da Lei n°1.299 de 27 de
dezembro de 1911, o governo firmou acordo com o Syndicato de Tokyo, que, posteriormente,
passou a denominar-se Kaigai Kogyo Kabushiki Kaisha, mais conhecida pela sigla KKKK. O
acordo estabelecido entre o governo e a KKKK possibilitou a colonização e a ocupação do território
pelas famílias japonesas, ignorando as populações caiçaras. Diferentemente das demais cidades da
linha Santos-Juquiá, onde os imigrantes japoneses dependiam de suas próprias associações e,
quando possível, da ajuda do Governo Japonês, principalmente para a construção de escolas; a
KKKK possibilitava auxílio financeiro para os colonos, além de ser responsável pela abertura e
manutenção de estradas, construção de escolas, beneficiamento de arroz, etc. Até aquele momento,
era uma experiência inédita com imigrantes japoneses no Brasil, onde os colonos vinham
diretamente como arrendatários de terras, diferentemente da imigração destinada ao abastecimento
de mão de obra nos cafezais (VIEIRA, 1973, p. 247).
Tanto na Baixada Santista, quanto no Vale do Ribeira, as escolas japonesas foram bem
estruturadas no segundo período apresentado por Hiroshi Saito. A partir de então, não só o número
de escolas foi largamente ampliado, como também havia uma melhor estrutura para garantir a
continuidade do ensino de língua japonesa. Em Santos, por exemplo, a Escola Japonesa funcionava
junto à sede da Associação na cidade. Logo, muitas escolas surgiram também no Vale do Ribeira,
ao longo da linha férrea Santos-Juquiá.
Inicialmente, a educação era ofertada de forma improvisada, com poucos livros trazidos
pelos imigrantes em suas bagagens, geralmente na casa do próprio professor. No segundo período
sinalizado pelo autor Hiroshi Saito, porém, há um cuidado muito maior com a questão da educação.
Como o governo brasileiro interrompeu o subsídio para a imigração japonesa em 1924, coube ao
governo japonês fazê-lo a partir daquele momento. Além disso, as instituições nipo-brasileiras
passaram a receber ajuda financeira diretamente, com atenção especial para a educação.
A partir desse momento, muitas escolas japonesas surgiram no Estado de São Paulo. Era
comum a parceria entre as associações e o Consulado Japonês. Através das associações, em geral
os jovens arrecadavam verba através de doações e o montante que restava era cedido ou emprestado
pelo governo japonês. Em Santos, por exemplo, foram realizadas reuniões extraordinárias, cuja
convocação e edital circulou no jornal A Tribuna, para saldar a dívida da aquisição do casarão onde
funcionaria a escola japonesa.
As medidas adotadas pela Nihonjin eram repassadas às suas filiais através de reuniões com
representantes das associações japonesas ou pelas associações de jovens. Tais associações
apresentavam uma estrutura organizacional muito eficiente e tinham como foco principal a
manutenção de escolas, como foi possível perceber nos trechos das entrevistas. A partir da
organização das associações locais, a instituição pôde se organizar a ponto de unificar com bastante
sucesso a sua ação em relação à centralização da educação japonesa. No Vale do Ribeira, ficou
responsável pela instituição o sr. Eiji Matsumura, cujo filho foi entrevistado, contando o seguinte:
Ele começou na época em que ele foi presidente da Associação Japonesa aqui em Registro,
onde meu pai foi escolhido como membro da… Tinha essa Associação mantida pelo
Ministério da Educação do Japão. Em japonês era Kyoiku Fukyu-kai, que é a Difusão da
Educação Japonesa, o nome da associação. Então, tinha o presidente, que tinha o seu
secretário, tudo… Meu pai foi escolhido como diretor educacional dessa associação.
(Entrevistado Masakazu Matsumura).
De trinta e cinco a trinta e nove, aqui em Registro, ninguém está sabendo desta história.
Meu pai era muito reservado, não era de ficar falando que “eu sou aquilo”. Agora aqui em
Registro, dessas fotos e diplomas que meu pai guardou ninguém está sabendo. Essa
Associação de Difusão da Educação Japonesa no Brasil pertenceu, a região que meu pai
era responsável, é de Santos; Santos e linha Juquiá, Registro, Sete Barras e Jipuvura. Sul
do Estado! […] Lá para Santos, até tinha o Consulado em Santos. […] Então, meu pai
tinha muita ligação com o pessoal em Santos, inclusive, tinha uma família em Santos.
(Entrevistado Masakasu Matsumura).
Em 1933, foi enviado à Escola Japonesa de Santos o professor Akio Yanaguisawa, formado
como professor de língua japonesa no Japão. Foi enviado para o Brasil como emigrante pelo
Ministério de Relações Exteriores com bolsa de professor. No Brasil, formou-se como professor
normalista no município de Jundiaí e enviado à Escola Japonesa de Santos para atuar como diretor
da escola. Seu envio para a região não foi por acaso. Pois como mostrou a entrevista do sr.
Matsumura, era de Santos que partiam as diretrizes para o Vale do Ribeira. Na ocasião, foi possível
realizar a entrevista com o filho do professor Akio Yanaguisawa:
Meu pai veio do Japão, embarcou… Ou melhor, chegou aqui no Brasil em 1935. Instalou-
se em São Paulo, como professor normalista, encaminhado pelo Ministério da Educação
do Japão. Então, ele foi diretamente até a Rua São Joaquim, na Escola Piratininga.
Chamava-se Taisho Gako, e lá ao lado da escola tinha um pensionato onde ele ficou esse
período todo e lecionava a língua japonesa e ao mesmo tempo. No ano seguinte, em trinta
e quatro ou trinta e cinco, se não me engano, ele foi morar lá em Jundiaí, para fazer o curso
de complementação, um curso normalista, na cidade de Jundiaí. […] Então, o meu pai,
vindo pra cá para a Escola Japonesa, na Rua Paraná, 129, ele então tornou-se o diretor
responsável pela Escola Japonesa (de Santos). (Entrevistado Sério Yanaguisawa).
Era uma escola bem simples, bem simples mesmo; tinha a carteira. Naquele tempo não
tinha a carteira como hoje tem. Naquele tempo era pena de escrever; era uma espécie de
lápis com uma caneta. Então, a gente colocava a caneta na tinta para escrever. Olha a
dificuldade! Às vezes acontecia aqueles acidentes que virava o tinteiro e todo mundo saia
com tinta. Aquela tinta não saía mais da roupa; ficava toda perdida. Era bem simples.
Ficava uma carteira com dois alunos […]. Eram alunos de todas as séries em uma escola
só. Isso que eu fico pensando hoje o seguinte: Como que é que aquela professora podia
passar a classe para a primeira, segunda, terceira ou quarta série? [...] Era todo mundo
junto na mesma sala (Entrevistada Maria Marcondes).
O relato acima é da Dona Maria Marcondes, ex-aluna, brasileira, da escola de Pedro Barros.
Como a escola foi doada ao Estado, atendia em um turno a educação japonesa e no outro a educação
brasileira. Dona Maria Marcondes frequentou a educação brasileira no período da tarde. Ela relata
que a sala era multisseriada, pois havia somente uma professora, em uma sala mista, com cerca de
quarenta alunos, sendo metade brasileiros e a outra metade japoneses e filhos de japoneses. Era
classe multisseriada, com presença de alunos nipo-brasileiros e brasileiros nativos, fundada pela
colônia japonesa e doada ao Estado. Diante dessas características, têm-se noção o quão complexas
eram as relações culturais nesse ambiente, onde certamente a cultura original japonesa, assim como
a cultura caiçara local, sofreram interferências devido ao desenvolvimento das relações.
Eu nasci em Cabriúva, estado de São Paulo. De lá, meu pai mudou para Santo Amaro. De
Santo Amaro, ele veio para Saltiara e depois mudou para Pedro Barros. Quando mudou
para Pedro Barros, eu tinha doze anos. Foi quando eu comecei a estudar nessa escola. Essa
escola não existia, não me lembro de quanto tempo. O nome da escola era Pedro Barros
mesmo, que era o proprietário do local. O nome dele era Pedro Barros, a estação era Pedro
Barros, a escola era Pedro Barros, tudo era Pedro Barros […]. Então, como eu te falei, a
gente entrava meio dia e saía quatro e meia da tarde. Tinha um recreiosinho para a gente
lanchar. A gente brincava um pouco e entrava novamente para a escola até chegar o horário
de saída. Quatro e meia a gente saia e pegava o caminho para casa [...] Minha casa era
muito humilde, era de um japonês que meu pai trabalhava. E a casa era muito humilde, a
família bem pobre e necessitada. Nós éramos em seis e a dificuldade era muito grande.
Hoje, o pessoal reclama. Mas naquele tempo era muito difícil a situação. Muitas vezes, a
gente passava alimentação fraca. Estamos vivos porque o Criador nos sustentou, mas
passamos por muita dificuldade […]. Única diferença que tinha era na hora do lanche.
Parece que os japoneses, – ainda comento com o Tuzino –, parece que eles tinham
vergonha de comer o lanche junto com a gente e então eles se escondiam para comer o
lanche. Tinha uma pedra grande assim. Então, eles ficavam atrás daquela pedra e lá eles
iam fazer os lanches deles. O lanche bem comum, arroz, mais usado pelos japoneses; era
mais arroz, essas coisas assim. Então eles iam comer lá atrás daquela pedra. Depois, tudo
junto. [...] Todo dia, não tinha condução; não tinha carro escolar para levar de jeito nenhum.
Naquele tempo, não tinha escola rural como hoje tem; tem um “sitiozinho” e já tem escola
rural. Naquele tempo era só escola na vila mesmo, pequena, mas tinha essa escola lá; era
onde a gente estudava, a redondeza toda estudava lá […]. Era uma escola bem simples,
bem simples mesmo. Tinha a carteira. Naquele tempo não tinha a carteira como hoje tem.
Naquele tempo era pena de escrever. Era uma espécie de lápis com uma caneta. Então, a
gente colocava a caneta na tinta para escrever. Olha a dificuldade! Às vezes aconteciam
aqueles acidentes que virava o tinteiro e todo mundo saía com tinta. Aquela tinta não saia
mais; a roupa ficava toda perdida. Era bem simples, ficava uma carteira com dois alunos
[…]. Sempre teve professor e hoje eu acho muito estranho as coisas, porque naquele tempo
tinha o professor fixo e tinha os substitutos. Na falta de um, nunca ficavam sem aula,
porque tinha um para substituir, que não faltava aula. Não tinha essa dos alunos chegarem
lá e perder viagem e voltar para casa sem estudar, porque quando a professora faltava por
algum motivo tinha o substituto que fazia parte. (Entrevistada Maria Marcondes).
A mesma situação se repetia na escola em que o Sr. Máximo, nascido em 1932, estudou no
bairro de Cedro, em Juquiá: escola mista, com classes multisseriadas de ensino brasileiro e japonês:
Uma vez presente, os professores, tanto da língua japonesa, como brasileiro, as crianças
japonesas e nipo-brasileiras passaram a frequentar a escola em jornada dupla de ensino, onde em
um turno estudavam o japonês e em seguida o ensino brasileiro, seguindo o currículo nacional. Ou
seja, as professoras brasileiras, além da gramática brasileira, ensinavam também a Geografia e
História e a Matemática (SOUZA, 2008, p. 28-29). Se por um lado a educação japonesa
representava os valores a inculcar (JULIA, 2001, p. 10) da cultura nipônica através do ensino da
língua, o mesmo acontecia nas aulas brasileiras, principalmente ao longo da década de trinta,
culminando com o período do Estado Novo, onde o currículo brasileiro foi voltado para a formação
de um espírito de patriotismo nacional. A educação de História e Geografia, assim como a Educação
Física, buscava o despertar de uma educação cívica e moral através da linguagem corporal, do
estudo de biografias de heróis nacionais e dos símbolos patrióticos (SOUZA, 2008, p. 67-69). A
autora Ruth Cardoso afirmou que os filhos dos imigrantes japoneses vivenciaram uma situação
complexa em dois ambientes distintos: vivenciavam a cultura brasileira transmitida pelos
professores brasileiros e com o convívio dos colegas nas escolas, vivenciavam a cultura japonesa
no ambiente familiar e no ensino da língua japonesa (CARDOSO, 1973, p. 317-345).
Apesar das escolas japonesas do Vale do Ribeira, em sua grande maioria, terem sido
doadas ao Estado e funcionando também como escola pública não só à comunidade
japonesa, mas às crianças da região como um todo; as aulas japonesas eram destinadas
somente aos filhos de japoneses. Não há relatos de brasileiros que cursaram a escola
japonesa no Vale do Ribeira. Em Santos, como a escola era particular, apesar de oferecer o
Ensino Primário, não possuía alunos brasileiros, salvo duas exceções: Francisco Carlos
Simons e Diva dos Santos.1 Ambos frequentaram a escola no final da década de trinta,
pouco antes do fechamento completo da escola, devido à relação de proximidade com as
professoras brasileiras que atuavam na escola.2
1..
Nesse caso, ambos foram entrevistados juntos, pois assim o preferiram por terem estudado juntos.
2
Vide as imagens 83, 84, 85 e 86, onde estão presentes, junto às suas respectivas turmas, as professoras
brasileiras.
Eu estava no colégio Jardim da Infância na parte da manhã e a Dona Maninha me convidou
para que eu fosse assistir às aulas do colégio japonês na parte da tarde porque era um
horário em que eu ficava sem fazer nada ou fazendo travessuras em casa. E a Dona
Maninha, como era professora do colégio, então me convidou e minha mãe achou ótimo
que eu fosse participar do colégio e assim não ficava brincando na rua (Entrevistada Diva
dos Santos).
O Sr. Francisco Carlos Simons conta que era filho da professora, e por essa razão também
estudou na escola:
Eu sou filho da Dona Maninha, que era professora lá. Talvez pela razão me levou para
estudar durante... Depois que eu já tinha feito o Jardim da Infância no Colégio Progresso
Brasileiro, eu fui para a Escola Japonesa, mas também passei lá praticamente pouco tempo!
Um ano? Talvez! E voltei outra vez para o Progresso Brasileiro. E minha mãe, além de
nos ter ensinado em casa, também nos fez passar... Deu lições para mim e meus
coleguinhas de colégio. De escola japonesa, então fui mais ou menos bem, tanto que
minhas notas nunca passaram de oitenta […]. No curso Primário, eram professoras do
curso Primário, justamente por causa desse contato diário que minha mãe tinha. E ela
aprendeu bastante coisa de japonês, muitas frases. Falava bastante bem japonês, inclusive
era uma surpresa para muita gente, principalmente feirante. Quando ela chegava na feira
e falava japonês, para eles era um espetáculo dificílimo de entender como é que uma
pessoa, uma brasileira.
A década de trinta foi marcada pela polarização de regimes ditatoriais que se espalharam
pelo mundo, sendo os mais emblemáticos o nazismo e o fascismo. Isso porque a crença no
liberalismo foi abalada com a Crise de 29. Aparentemente intocado por ela, o comunismo soviético
passou a ser ameaça aos países em crise onde ideias de extrema esquerda passaram a ganhar força.
Assim, a classe média passou a apoiar os regimes fascistas mundo afora, apontando as possíveis
fraquezas da democracia (HOBSBAWAM, 1995. p. 113-117).
Com a centralização do governo na Era Vargas, o governo investiu fortemente no ensino
público como forma de difundir a moral e cívica pertinente à constituição da nacionalidade
brasileira. O currículo escolar foi remodelado para se adequar às exigências do governo. A Língua
Portuguesa foi intitulada de língua pátria acrescentado a disciplina de Educação Moral e Cívica;
História e Geografia foram direcionadas à valorização dos heróis e eventos importantes para a
formação do Brasil como nação soberana (SOUZA, 2008, p. 58-68). A Educação Física ganhou
peso nesse momento relevante, pois era nas práticas físicas que se incutia o militarismo através da
postura e da disciplina, além de assegurar o bom condicionamento físico das crianças (BETTI, 1991,
p. 85). Deu-se destaque aos feriados nacionais. Naquele momento, o governo reduziu para sete o
número de feriados nacionais, sob a alegação de que era necessário que o povo trabalhasse para a
grandeza do Brasil, sendo que, por outro lado, os sete feriados seriam necessários à representação
do espírito patriótico (SOUZA, 2012, p. 28-29). Contudo, para estes feriados, as escolas passaram
a realizar grandes desfiles cívicos como forma de demonstração de patriotismo. Não por acaso,
essas medidas chegaram às escolas japonesas da região. Se por um lado era desejo do Governo em
incutir o espírito de patriotismo, não era interessante para a colônia japonesa, como foi visto até o
momento, entrar em atrito com as autoridades brasileiras.
Por outro lado, progressivamente o governo federal limitou a ação das colônias estrangeiras
através de decretos, sendo que alguns deles visavam atingir diretamente a educação, em especial,
japonesa. O Decreto-lei n° 383, de 18 de abril de 1938, proibia estrangeiros de exercer ou interferir
em atividades públicas de forma direta ou indireta e também impedia a organização em:
O Decreto permitia a organização de estrangeiros apenas para fins culturais, sem, contudo
receber verba ou qualquer tipo de auxílio do governo estrangeiro. Em seguida, para se cumprir a
nova legislação, foi elaborado o Decreto-lei n° 406, de 4 de maio de 1938, determinando a criação
do Conselho de Imigração e Colonização em substituição ao Departamento Nacional de
Povoamento com o objetivo de intensificar a nacionalização dos estrangeiros. Em seguida veio o
Decreto n° de 18 de novembro de 1938, que estabeleceu:
Caberia a comissão: “Definir a ação a ser exigida pelo Governo Federal e pelos governos
estaduais e municipais para o fim de nacionalizar integralmente o ensino primário de todos os
núcleos de população estrangeira.”
Como tais medidas atingiam diretamente as colônias japonesas, sobretudo no Vale do
Ribeira, coube ao Delegado Damasco Pena informar a situação educacional na região. Por essa
razão, nos Relatórios de Educação constavam dedicação especial à questão da imigração japonesa.
Em diversas passagens afirmou que “os trabalhos de nacionalização estavam progredindo” com a
nacionalização das escolas japonesas da região, mas foi categórico na urgência em construção de
novos prédios escolares como instrumento de maior eficácia para a nacionalização.
Com essas medidas, o governo brasileiro atingia diretamente a educação japonesa nas
regiões do Vale do Ribeira. Contraditoriamente, como foi visto no segundo capitulo, no ano anterior,
o Delegado Damasco Pena traçou severas críticas em relação à definição das escolas do Vale do
Ribeira, pois ainda eram consideradas escolas urbanas, sendo “visceralmente comunidades rurais”.
Contudo, isso não foi argumento para o fechamento das escolas japonesas no Vale do Ribeira, a
contar dezoito estabelecimentos fechados ou nacionalizados sob alegação de estrangeiro em área
rural. Sabia-se que a maioria das escolas estrangeiras em área rural eram japonesas, sendo assim,
sabia de antemão que os decretos atingiriam diretamente as escolas japonesas no Estado de São
Paulo. A Fukyu-kai, por sua vez, em concordância com o Decreto-lei 3010/38, modificou seu
estatuto e passou denominar-se Brasil Bunkyo Fukyu-kai, ou seja, antes Associação de Difusão do
Ensino Japonês no Brasil, passando para Associação Difusora da Cultura Japonesa no Brasil
(SHIBATA, 2012, p. 55-59).
Na década de quarenta, as escolas repentinamente foram encerradas. Na cidade de Santos,
a Escola Japonesa ainda conseguiu se manter em funcionamento por mais tempo, até 1942. Apesar
de poder continuar em funcionamento com o quadro de professores brasileiros e dirigida por uma
professora brasileira, teve que deixar de funcionar devido ao contexto em que se enquadrou durante
os anos da Segunda Guerra Mundial. Em 1941 alterou sua razão social para Sociedade Instrutiva
Vila Mathias (SILVA E SILVA, 2011, p. 196).
CARDOSO, Ruth Corrêa Leite. O papel das Associações Juvenis na Aculturação dos Japoneses.
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Cris Elena Padilha da Silva
Esta reflexão de Alberti conecta com meu trabalho, onde vou entrevistar professores de
Matemática, que trabalharam na segunda metade do século XX, podendo contribuir com a História
da Educação Matemática.
A História Oral só pode ser empregada em temas recentes, que a memória do entrevistado
alcance. Contudo, com o passar do tempo, as entrevistas poderão servir como fontes para novas
pesquisas. Os entrevistados precisam estar em condições (físicas e mentais) de entender a tarefa
que lhe é solicitada.
O pesquisador participa diretamente na produção do documento histórico, podendo ser
interpretado de diversas maneiras pelo historiador. Também avalia o conteúdo do depoimento,
constantemente, durante sua constituição, percebendo quando o entrevistado evita falar sobre
determinado assunto, ou ainda “distorce” o passado em função de sua visão particular, analisando
e interpretando as possíveis causas dessas variações.
Também é permitido recuperar fatos que não encontramos em documentos de outra
natureza, informações inéditas podem ser resgatadas durante uma entrevista de História Oral. Mas
a principal característica quando utilizamos a História Oral está em privilegiar a recuperação do
fato por quem viveu; logo importante pensar no processo de recordação, onde inconscientemente
esquecemos fatos importantes ou não. Cabe destacar a importância do entrevistador em ter
consciência de sua responsabilidade, pois fará parte desse momento único com o entrevistado,
tratando-se de ser um atuante direto na criação do documento de História Oral, onde deve ter um
elevado respeito pelo outro, suas opiniões, atitudes e posições, que são particulares daquele
depoente, constituindo-se um elemento indispensável para a compreensão da história de seu grupo
social. (THOMPSON, 1998).
A História Oral, sendo um método de pesquisa, é um meio de conhecimento, o seu uso se
justifica no contexto de uma investigação científica, articulando-se com um projeto de pesquisa
previamente definido, destacando-se que antes de pensar em História Oral é necessário pensar em
perguntas que justifiquem a investigação (ALBERTI, 2013).
Para a realização desse projeto, destaco algumas das minhas indagações, questões que serão
observadas, e que não farei para o entrevistado, somente. Farão parte do meu roteiro, o que
mencionei no início desse trabalho: “Como um professor se constitui professor? Quais são os
caminhos traçados por ele no decorrer dos anos? Como foi modificando suas práticas, ou não, com
as mudanças que ocorreram no ensino, na sociedade e com os alunos? Todos esses
questionamentos que orientam meu trabalho constituem o desenho de como o professor se constitui
na sua professoralidade e em seu processo de profissionalização.
Depois de pensados os temas de interesse para a realização do trabalho, temos a formação
do grupo de professores que serão entrevistados, dando forma na realização da investigação. No
caso da pesquisa que estou me referindo aqui, esse grupo será formado por professores de
Matemática aposentados, que lecionaram na cidade de Pelotas, e em algum momento de sua
trajetória estiveram atuando no ensino básico.
Na grande maioria dos casos, as pessoas mais velhas, aposentadas já estão afastadas dos
meios acadêmicos, logo ficam mais à vontade para falar sobre o passado, suas experiências,
realizações e frustrações. Fazendo uma retomada da sua própria vida, podendo deixar suas
experiências gravadas e textualizadas para futuros estudos. (ALBERTI, 2013).
Pensando em trabalhar com História Oral, o tipo de entrevista a ser realizada será
caracterizada pela História Oral Temática, onde pretendo analisar as trajetórias dos professores
segundo um tema específico, suas experiências e envolvimento em relação a sua trajetória como
professor de Matemática. Garnica (2003) destaca que a História Oral Temática
ALBERTI, Verena. Manual de História Oral. 3. ed. Rio de Janeiro: Ed. da FGV, 2013.
BOSI, E. Memória e sociedade: lembranças de velhos. 3. ed. São Paulo: Companhia de Letras,
1994.
GARNICA, A.V. M. História Oral e Educação Matemática: o Estado de Arte. Disponível em:
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GARNICA, A.V.M. História Oral e Educação Matemática: de um inventário a uma regulação. In:
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OLIVEIRA, Paulo de Salles. Sobre memória e sociedade. São Paulo: Revista USP. n. 98. p. 87-
94. junho/julho/agosto 2013. Disponível em: <https://goo.gl/uaRphS>
TARDIF, M. Saberes docentes e a formação profissional. 4.ed. Petrópolis/ RJ: Vozes, 2002.
THOMPSON, Paul. A voz do passado. 2. ed. São Paulo: Paz e Terra, 1998.
Elias Kruger Albrecht
O presente trabalho tem como objetivo apresentar uma discussão a partir das narrativas de
alunos alfabetizados em língua alemã (1930-1945). Estes foram escolarizados em
instituições sinodais vinculadas às igrejas luteranas1 que atuavam junto às colônias
de imigrantes alemães/pomeranos2 na região sul do Rio Grande do Sul. Sabemos que entre
esses imigrantes, o ensino era considerado relevante, sendo que escola e igreja foram
constituídas em praticamente todas as comunidades. Logo, a alfabetização em alemão era
algo constitutivo da identidade cultural dessas pessoas, pois vinculavam religião e
aprendizado. Pesquisas anteriores (KREUTZ, 2007; WEIDUSCHADT, 2012) apontaram
que essas escolas ressaltavam a fé e o cotidiano em seus materiais didáticos e mantinham
professores formados pela própria instituição sinodal, que atuava junto a essas comunidades.
Portanto, buscaremos por intermédio das fontes orais realizadas em língua pomerana e
transcritas para a língua portuguesa, compreender o processo de escolarização desses sujeitos.
Foram entrevistados sete sujeitos em que a vida escolar se deu em escolas religiosas, sendo
alfabetizados na língua germânica. Iniciaram sua alfabetização no período de 1930 a 1945, que
tinha como intuito promover o processo de ensino-aprendizagem integrador entre o ensino, a fé
relacionada com as práticas diárias dessas comunidades. Para tanto, as memórias escolares
analisadas e complementadas com as fontes escritas, como o material didático, poderão nos
proporcionar um panorama do que era ensinado e como o aluno se apropriava desse ensino, para
assim se integrar como membro ativo junto à sua comunidade.
[...] um grande número de lembranças reaparecem porque nos são recordadas por outros
homens; conceder-nos-ão mesmo que, quando esses homens não estão materialmente
presentes, se possa falar de memória coletiva quando evocamos um acontecimento que
teve lugar na vida de nosso grupo e que considerávamos; ainda agora, no momento em
que nos lembramos, do ponto de vista desse grupo (HALBAWACHS, 1990, p. 36).
Conforme o autor supracitado, há recordações que são evocadas pelos indivíduos, porém os
acontecimentos lembrados estão além dos vivenciados por eles. Portanto, trata-se de uma memória
coletiva que permanece inconscientemente na comunidade, usada muitas vezes para reafirmar
relações sociais do grupo.
De forma especial, podemos observar na pesquisa, as consequências do processo de
nacionalização do ensino que vinha se dando de forma natural, e que passou a sofrer um
forte acirramento. Em especial no período do governo Vargas, durante o Estado Novo 3 ,
como a proibição da língua e a escolarização em língua alemã. Observam-se nas memórias
escolares dos entrevistados, as mudanças que esse período provocou não só no currículo,
mas também na sua vivência diária. Neste contexto, as políticas de nacionalização do ensino
atingiram, principalmente, a identificação étnicocultural dessas pessoas.
Outros aspectos também foram destacados, como as lembranças da relação professor e
aluno, os tempos de recreios e as mudanças linguísticas impostas durante o Estado Novo. É preciso
ainda caracterizar a existência de uma cultura escolar representativa, ancorada no cunho religioso
que é acentuado nas falas e memórias dos narradores. Todos os sujeitos entrevistados mantêm
ligação com a religião, atualmente, principalmente mantendo práticas de leituras e de cantos de
3
Estado Novo foi o nome dado ao regime político brasileiro de cunho autoritário e centralizador, fundado por
Getúlio Vargas em 1937 e durou até 1945.
cunho religioso. Para melhor identificar o perfil dos narradores, busca-se apresentar um quadro com
a relação dos entrevistados, antes de iniciarmos as análises da pesquisa.
Quadro 1 - Relação dos entrevistados4, da pesquisa com suas respectivas idades, período de escolarização,
instituição religiosa que a escola era ligada e os materiais didáticos usados durante a escolarização
Nome Idade Data de Instituição Materiais didáticos usado
Escolarização Religiosa na escolarização
Adolfina K. 90 1933-1938 Sínodo de Livro, Cartilha, Atlas e
Neitzke Missouri Ardósia
Eurico Wolter 91 1932-1936 Independente Livro, Cartilha e Ardósia.
Ilma B. Reichow 86 1937-1941 Sínodo de Livro, Cartilha e Ardósia
Missouri
Ilsa K. Neuenfeldt 80 1943-1948 Sínodo de Livro e Caderno
Missouri
Martim V. Wille 87 1935-1940 Sínodo de Livro, Cartilha e Ardósia
Missouri
Otto Schellin 81 1942-1944 Independente Livro, Cartilha, Ardósia e
caderno
Renilda U. Schellin 83 1939-1943 Sínodo de Livro, Cartilha, e Ardósia
Missouri
Fonte: Quadro elaborado a partir das entrevistas realizadas.
4
As entrevistas foram realizadas no ano de 2016. Portanto, os dados do quadro correspondem ao ano em que
foram realizadas as entrevistas.
escolarização, o livro didático e a cartilha são apontados como os meios pelos quais foram inseridos
na leitura.
A ardósia,5 como o objeto da prática de escrita, é destacada por seis entrevistados.
É importante observarmos as mudanças do uso da ardósia para o caderno. Conforme o
quadro, os únicos dois que escreveram em cadernos estudaram na década de 1940. Cabe aqui
chamarmos a atenção para essa mudança no suporte de escrita, ocorrida durante a
nacionalização do ensino. Porém, segundo Razzini (2008), a substituição da ardósia pelo
caderno já teve início nos grupos escolares nos grandes centros urbanos no começo do
século XX. Sendo assim, provavelmente o isolamento dessas escolas étnicas rurais tenha
dificultado a introdução do caderno nesses grupos, tornando-se, assim, a nacionalização do
ensino um elemento facilitador para a substituição da ardósia pelo caderno.
As entrevistas tinham como objetivo compreender, no princípio, o uso dos
materiais didáticos. Mas, as narrativas apresentaram particularidades da escolarização que
pretendemos abordar a partir de aspectos das memórias escolares.
Quando falamos de memórias escolares, estamos nos referindo a vestígios da cultura escolar
que envolvem também todas as práticas socioculturais dos grupos que a integraram em um
determinado tempo e espaço. Para Pessanha (2004), a cultura escolar sempre está relacionada com
um espaço destinado/privilegiado para transmissão de conhecimentos e, principalmente, valores em
determinado tempo. Júlia (2001) descreve cultura escolar como:
As memórias escolares do contexto da nossa abordagem se definem muito bem dentro dessa
concepção de cultura escolar flexível e moldada pelo espaço e pelo tempo. Conforme podemos
observar nos relatos de memórias escolares dos entrevistados, lembrando que de acordo com
Candau (2014), a memória ao mesmo tempo em que nos modela, é também por nós modelada.
Assim, a lembrança nada mais é do que uma rememoração construída a partir do fato, sofrendo ao
longo do tempo acréscimos e eliminações.
5
Ardósia: lousa escolar ou quadro-negro usada em atividades de escrever e fazer contas. Para aprofundar o
assunto ver: BARRA (2013).
Por meio das memórias escolares reveladas no processo das entrevistas serão apresentados:
o início da escolarização e os primeiros professores; as práticas escolares e o contexto escolar; as
lembranças do entorno e do prédio escolar; e o processo da mudança no Estado Novo. A maioria
dos entrevistados passou pelo processo da nacionalização do ensino na política estadonovista.
Naquele tempo, nas escolas paroquiais, todos os dias tinha aula de religião; um dia
catecismo no outro de história bíblica. E, assim, como era um pastor sinodal, também
ensinava a parte religiosa e de conhecimentos básicos [...]. Naquela época, onde tinha uma
comunidade religiosa também tinha uma escola.
Quando perguntados sobre a dinâmica das aulas, Martim V. Wille lembra que as aulas eram
em conjunto onde todos estudavam no mesmo espaço, mas em grupos. Segundo ele, “o professor
passava as lições diferentes para cada turma”. E circulava para ver se a turma estava trabalhando
direitinho e daí explicava quando não entendiam. É perceptível, nas narrativas dos entrevistados,
que o processo de ensino e aprendizagem ocorria de forma coletiva dentro da igreja ou num prédio
ao lado. Não havia seriação, o que se tinha era um período estipulado para escolarização que
era concluído com o rito da confirmação.6 Como podemos observar nas falas dos
entrevistados.
[...] naquela época não tinha essa divisão de série. A aula era tudo num salão, só o professor
lecionava a turma que entrava até o quinto ano, como mais ou menos era o período que se
estudava. (MARTIM V. WILLE, 2016).
[...] não tinha muito essa coisa de série; estudávamos todos juntos. Quando chegava a idade
de 13, 14 anos, a gente se confirmava, depois era adulto. (ADOLFINA K. NEITZKE,
2016).
6 Confirmação: um rito de passagem análogo a primeira comunhão dos católicos, mas entre os luteranos é quando
a criança passa da infância para a vida adulta e tem autorização para namorar.
Eu fui para a escola com 8 anos e me confirmei com 12. Naquela época, a gente se
confirmava, quando sai da escola. (ILMA B. REICHOW, 2016).
Dessa forma, o período de escolarização era visto também como um tempo de preparação
para o rito da confirmação (WEIDUSCHADT; TAMBARA, 2014). Assim, o aluno também estaria
apto a se tornar um membro atuante na comunidade. Então, segundo a entrevistada Renilda U.
Schellin (2016), durante esse período “aprendia-se de tudo um pouco: a ler escrever, fazer contas,
rezar, catecismo e canto”. A entrevistada lembra ainda que iniciou a sua escolarização em alemão e
que foi interrompida pelo processo de nacionalização do ensino. Logo, o uso da língua é apontado
pelos entrevistados como um dos fatores que mais dificultou a sua alfabetização. Da mesma forma,
a entrevistada Ilma B. Reichow que sempre falou em pomerano e vinha tendo a sua alfabetização
em língua alemã, lembra que aprender português não foi uma experiência muito boa, mas que aos
poucos foi aprendendo.
Segundo Kreutz (2010), esse efeito pedagógico teve um reflexo negativo na qualidade de
ensino e aprendizagem de toda uma geração, pois fez com que escola se tornasse estranha, tanto na
língua como na escrita para o aluno teuto-brasileiro, que deixou de ser progressiva passando a ser
compulsória. É perceptível nas narrativas expostas, anteriormente, que Renilda U. Schellin e Ilma
B. Reichow tiveram uma mudança no uso da língua durante o período de escolarização; fato que
teria tornado o seu aprendizado mais difícil. Diferente de Eurico Woltter que estudou antes da fase
repressiva da nacionalização. Quando perguntado sobre a língua na qual eram ministradas as aulas,
ele lembra que as aulas eram em alemão, mas também se falava em pomerano e que havia aulas de
português, mas eram poucas. Podemos observar que antes mesmo da proibição, algumas escolas já
vinham tendo a preocupação com o ensino da Língua Portuguesa, a qual estava sendo incluída de
forma gradativa no currículo das escolas.
Ao ter em vista que a cultura escolar vai além dos conteúdos formais passados durante o
período da escolarização, torna-se importante perceber as práticas e os modos de educar, enfatizadas
nas narrativas no papel do professor/pastor. Eles exerciam dupla função: tinham a tarefa de ensinar
e também de ser o guia espiritual. Era uma pessoa respeitada e temida pelos alunos, sendo que,
muitas vezes, ele utilizava castigos físicos para punir o mau comportamento e a falta de atenção do
aluno em aula. Apesar de ser considerado severo em suas ações educativas, ele era admirado e
justificado pelos seus atos. Segundo o entrevistado Eurico Wollter (2016), “tomar uns puxões de
orelha e alguns tapas de vez em quando era necessário porque isso gerava respeito”. Kreutz (2004)
realça que o professor paroquial deveria ser um exemplo para as crianças, mostrar virtudes cristãs,
de retidão no agir, sendo um modelo de austeridade e bons costumes.
Conforme podemos observar, o professor era tido como referência pela comunidade.
Martim V. Wille lembra que, como filho de professor, tinha que ser exemplo para os outros alunos;
era sua obrigação se esforçar. Lembra que, muitas vezes, foi reprendido e castigado em aula junto
com os colegas. Essa fala reforça que as atitudes enérgicas acarretavam em credibilidade e
respeitabilidade, junto aos alunos e os pais. Otto Schellin (2016) lembra que nada passava aos olhos
do professor. “Ele não podia ficar sabendo que tu tinhas passado por alguém sem tirar o chapéu e
cumprimentar a pessoa; isso desmoralizava o trabalho do professor”. Da mesma forma, é notória,
na narrativa, a importância da questão comportamental e moral que era bastante cobrada pelas
escolas de cunho religioso. Nesse sentido, Weiduschadt (2012) afirma que tais preceitos eram
considerados importantes no sentido de preparar as crianças como cidadãos e cristãos educados.
Nos relatos, o professor é descrito não só por suas atitudes determinadas, mas é lembrado
também por suas expressões e vestimentas,
Nós já sabíamos quando ele vinha com o chapeuzinho “marrão”. Ele andava meio aluado
principalmente nas segundas-feiras. Quando vinha com chapéu listrado daí ele estava de
boas. (OTTO SCHELLIN, 2016).
O meu professor era muito bravo [risos], usava suspensório [...]. E nós já sabíamos quando
se incomodava no fim de semana. Daí, na segunda quando a gente entrava na igreja, e ele
estava olhando por cima dos óculos, já sabíamos que não poderíamos incomodá-lo. (ILSA
K. NEUENFELDT, 2016).
Para Ferreira e Amado (1996), os relatos orais sobre o passado englobam explicitamente a
experiência subjetiva. Nesse sentido, as narrativas nos permitem contextualizar o funcionamento
interno das instituições escolares e ajudar a compreender como estes sujeitos se apropriavam dos
recursos didáticos oferecidos.
Conforme podemos observar nas entrevistas, uma das práticas recorrentes era a leitura. Para
Adolfina K. Neitzke (2016) “cada aluno tinha seus livros e o professor chamava um a um para tomar
a leitura e também era preciso recitar a tabuada de forma oral”. Os dispositivos de leitura e a
importância dada a ela pode ser observado também nas falas de Eurico Wollter. Segundo ele, a
prática da leitura não se restringia à sala de aula. Ele lembra que “quando chegava em casa pegava o
seu livro e estudava, para poder saber no outro dia quando o professor tomava a lição”. O livro
didático e seus usos aparecem nos relatos como um dos principais meios de inserção à prática da
leitura.
Eu tinha livros [...] a Fibel 7tinha muitas figuras e o Einmaleins8. Eu sabia toda a
tabuada de cabeça [...] na escola também tinha os livros para ler. (EURICO
WOLTER, 2016).
Cada um tinha seus livros. À noite estudava em casa: “tinha que ler”. O pai sempre me
ajudava, eu escrevia na lousa e lia (ILMA B. REICHOW, 2016).
Tínhamos o primeiro e o segundo livro. Tinha que estudar o primeiro, do princípio ao fim.
Quando passava o conteúdo referente ao primeiro, passava para o segundo (OTTO
SCHELLIN, 2016).
Tinha que decorar a lição praticamente porque não tinha caderno para revisar depois.
(MARTIM V. WILLE, 2016).
A gente fazia muita conta, tinha que saber tudo de cabeça, porque a gente escrevia numa
lousa, tinha que memorizar. (ILMA B. REICHOW, 2016).
Eu escrevia na lousa, decorava e depois apagava. Era brabo porque depois a gente tinha
que explicar para o professor [...]. (ADOLFIBA K. NEITZKE, 2016).
Cada um tinha sua lousa, escrevia, decorava, apagava para escrever de novo [risos].
Fazíamos as contas na lousa; quem era atento aprendia. (EURICO WOLTER, 2016).
7
Fibel für deutsche Schulen in Brasilien (Cartilha para escolas alemãs no Brasil), usada na alfabetização e na
iniciação a leitura.
8
.Einmaleins, (Tabuada). Cartilha usada para o ensino de cálculos matemáticos. .
9 Lousa é o modo como os depoentes se referem à ardósia.
É interessante contemplar nessas memórias, a ênfase no domínio das técnicas básicas de
leitura e escrita e nas habilidades de memorização. Podemos perceber que existia uma organização
racional do sistema escolar, de preparar o aluno a se inserir no contexto. Ou seja, segundo Eurico
Woltter ensinava-se o que era importante saber na época. Essa fala vem ao encontro do que Kreutz
(1994) aponta em sua análise sobre o currículo das escolas sinodais, que “era organizado de forma
que as crianças aprendiam o essencial para o bom entrosamento na vida das comunidades rurais,
tanto sobre aspecto religioso e social quanto do trabalho.” (KREUTZ, 1994, p. 9).
Observamos nas lembranças, as características educacionais propagadas pelos sínodos
luteranos, sendo recorrente no currículo a ênfase da prática da leitura, da escrita e do canto. Estes
eram os fios condutores que possibilitavam uma aproximação entre a igreja e a escolarização e
garantiam a inserção no contexto social.
No recreio quando o professor estava presente tinha que falar em alemão, se não falava
em pomerano [...] Brincávamos de passar anel de roda, de pegador de túnel humano, entre
outros; era muito divertido (ADOLFINA K. NEITZKE, 2016).
De vez em quando o professor organizava uma brincadeira que era a carreira, as gurias e
os guris faziam a brincadeira separados. (OTTO SCHELLIN, 2016).
Na hora do recreio, a gente brincava muito, às vezes se desentendia (risos), mas era tudo
de brincadeira; logo a gente estava de bem de novo. (MARTIM WILLE, 2016).
No recreio, a gente brincava na rua, [pensa] pegador. Sei que a gente brincava e de
esconder também (risos) (ILMA B. REICHOW, 2016),
Em tal caso, fica claro que os momentos de recreação eram aproveitados por alguns
professores, como um instrumento integração e disciplinamento. Outros, apenas, conforme lembra
Ilsa K. Neuenfeldt, observavam seus alunos brincarem. Para outros entrevistados, os recreios são
lembrados pelas brincadeiras que mais costumavam praticar e que costumavam ser bastante
divertidas. Era o momento onde se aproveitava para brincar e conversar com os colegas e amigos.
O espaço e a materialidade da escola também são rememorados. A igreja e a escola eram
geralmente no mesmo prédio, ou no mesmo pátio. Conforme lembra Wille (2011), onde havia uma
igreja também tinha uma escola. Quando não ocupavam o mesmo espaço estavam construídas uma
ao lado da outra. Já as longas distâncias percorridas até chegar à escola apresentam-se nas
lembranças com certo ar desafiador, e também prazeroso de se percorrer.
As aulas sempre eram pela manhã. Daí saía cedo de manhã, tirava o chinelo, escondia no
mato e ia correndo até a escola (risos). Corria na geada, na chuva (risos) (ILMA B.
REICHOW, 2016).
Caminhávamos meia hora a pé até a escola. Mas, tinha dias quando batia a preguiça, daí
levávamos até uma hora para volta [risos]. Aí em casa o pai nos reprendia. (ADOLFINA
K. NEITZKE, 2016).
Gostávamos de manhã cedo quando íamos para a escola no inverno de quebrar o gelo com
as tamancas [risos]. (ILSA K. NEUENFELDT, 2016).
Em virtude dos relatos mencionados, o trajeto de casa até a escola era o momento onde se
permitia quebrar certas regras que não eram permitidas em casa e na escola. Mesmo que, muitas
vezes, isso gerasse consequências, logo o caminho da escola é rememorado com certo ar de
liberdade onde não estavam sob a vigilância dos pais e professores. Este poderia ser o momento em
que eles, em seu imaginário, se sentiam desafiados, a viver certas aventuras que, se descobertas
pelos pais e professores, acarretaria em punições.
O que mais chama a atenção nas narrativas sobre a mudança no currículo no período da
nacionalização é a separação dos conteúdos religiosos, que em algumas escolas passaram a ser em
turnos inversos ou aos sábados. Por outro lado, são introduzidos nos conteúdos no currículo, como
História e Geografia do Brasil e as ciências da natureza, que não foram perceptíveis nas narrativas
dos sujeitos que tiveram a sua escolarização anterior ao período da nacionalização, onde se tem
uma ênfase maior na religião. Fica visível o culto ao patriotismo, por intermédio da prática das aulas
de civismo. E também certa obrigatoriedade em se investir nas disciplinas de História e Geografia
do Brasil. Nesse sentido, Cristofolini (2000) aponta que o nacionalismo foi um instrumento para
legitimar práticas políticas e ideais nacionais, como promover a língua e a cultura luso-brasileira, e
garantir uma unidade e construir uma história; daí a importância da assimilação do simbolismo
patriótico.
Buscamos a partir dos aspectos analisados nas narrativas fazer algumas considerações
sobre a alfabetização em escolas sinodais. Podemos observar que as práticas escolares das escolas
sinodais envolviam a utilização do uso do livro didático para a prática de leitura, com ênfase na
escrita em lousa e a memorização. Nas falas dos narradores fica visível que o ensino não se limitava
à sala de aula, sendo que boa parte dos entrevistados enfatizava o estudo e as leituras feitas em casa.
A partir do que foi exposto, entendemos que o professor/pastor foi a figura que mais marcou
a memória escolar desses sujeitos. Nas lembranças dos entrevistados, o professor/pastor foi descrito
como uma figura emblemática, de personalidade forte e controlador do espaço escolar. Os espaços
escolares são apresentados em toda a sua composição: prédio, recreio, trajeto, entre outros, ao
mesmo tempo, as brincadeiras nos intervalos, são lembradas com muito entusiasmo.
As lembranças reforçaram ainda o processo de nacionalização do ensino. Essa política
exerceu um efeito de mudança sobre essas pessoas que fez com que muitas se isolassem e outras se
sentissem desafiadas a aprender. É notável observar que a mudança do currículo com acréscimo de
conteúdos e retirada ou diminuição de outros, não causou grandes impactos negativos. Afinal, nem
eram totalmente compreendidos os conteúdos ministrados na Língua Portuguesa. Num primeiro
momento, os alunos se comunicavam no dialeto pomerano, e tinham suas aulas ministradas em
alemão. Assim, a proibição do uso da língua dificultou em certa medida o aprendizado.
Desse modo, as sete narrativas apontaram, como significativo, o processo de escolarização,
deixando lembranças e recordações da vida infantil e do universo escolar.
Tendo em vista os aspectos observados, nas narrativas, concluímos como base em
Halbwachs (1990), que nossa memória não se apoia na história aprendida, mas na história vivida.
Sendo assim, a História Oral tem um importante papel nas pesquisas que buscam analisar processos
de escolarização étnicocultural, pois ela permite levantar dados e problematizar a partir das
experiências e representações dos sujeitos envolvidos, permitindo, assim, fazer relações com
história documental e oficial, e chegarmos, portanto, a uma compreensão maior sobre certos
comportamentos tidos com específicos de cada grupo étnico.
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Entrevista concedida para fins desta pesquisa. 2016.
Mônica de Souza Chissini*
Roberta Ângela Tonietto**
O presente estudo objetiva analisar narrativa que integra o corpus empírico de dissertação
alicerçada no campo da História da Educação, em desenvolvimento no Programa de Pós-Graduação
em Educação da Universidade de Caxias do Sul. Dentre os documentos da pesquisa, analisam-se
leis, documentos de Bancos de Memória e relatórios relacionados ao processo de democratização
da Rede Municipal de Ensino de Caxias do Sul/RS, além de empiria construída por meio da História
Oral. Tendo em vista que a referida pesquisa investiga a democratização da rede de ensino entre os
anos 80 e 90, do século XX, atentamos que a fonte oral, utilizada neste trabalho, resulta de entrevista
com o antigo Secretário Municipal de Educação, Odir Miguel Ferronatto, o qual exerceu a referida
função entre 1989 e 1992, e, posteriormente, entre 1993 e 1994, no município de Caxias do Sul/RS.
A entrevista ocorreu em janeiro de 2017 e relaciona-se à temática de gestão democrática.
Inicialmente, contextualizamos o município de Caxias do Sul, que está localizado na região
nordeste do Rio Grande do Sul, 127 km distante da capital do estado, Porto Alegre. De acordo com
dados do IBGE (2016), a população estimada da cidade é de 479.236 habitantes. Com relação à
trajetória da cidade, nas últimas décadas do século XX, referimos que nos anos 1970, a população
urbana de Caxias do Sul aumentou significativamente, movimento o qual esteve acompanhado de
acentuado êxodo rural. Nesse sentido, as atividades econômicas intensificaram-se no centro urbano
e, em face de tal transição, evidenciamos que, desde os anos 80, Caxias do Sul veio a ganhar força
no cenário econômico e ampliar sua participação no polo metalmecânico brasileiro, setor no qual
tem forte atuação na atualidade.
Em vista do êxodo rural intensificado nos anos 70 do século XX, muitas transformações
foram paulatinamente sendo operadas em Caxias do Sul. No que tange ao contexto educativo de
Caxias do Sul, ressaltamos o fechamento de parte das escolas rurais e alta demanda da comunidade
por ampliação de vagas em áreas cada vez mais urbanizadas, como se evidencia no estudo de Dalla
Alicerçamos nossa concepção de práticas nos estudos de Certeau (2014). Nessa perspectiva,
compreendemos práticas tais como modos de fazer que encontram em si a possibilidade de criar
em vista do estabelecido. Logo, persiste em nossa análise o viés do sujeito criativo, que constrói
suas maneiras de fazer. Serão, portanto, destacados indícios de práticas que evidenciem
desdobramentos democráticos na narrativa, os quais estão subjacentes às rememorações do sujeito
entrevistado quanto a eventos e ações da RME no período em que esteve implicado. Nesse sentido,
não atrelaremos essas memórias a ordenamentos legais e outras fontes, em vista de que esses não
estão integrados aos documentos anunciados deste estudo.
Ao tratar de algumas práticas recorrentes em gestões anteriores a sua, no contexto
educacional de Caxias do Sul, Ferronatto rememora a partir do outro, o que fica evidente na
expressão “segundo diziam” no trecho subsequente, no qual ele buscou destacar a transição que se
operou das gestões anteriores para sua gestão na RME:
Naquela época, os Secretários anteriores, eles eram supervisores escolares, eles iam nas
escolas e chegavam a humilhar, segundo diziam, ainda os professores municipais. E
quando eu fui ver a realidade, nós tínhamos professores municipais com muito mais
qualidade, pós-graduados, com formação superior (FERRONATTO, 2017).
A partir dessa consideração, Ferronatto introduz uma questão basilar a respeito do período
inicial de sua gestão como Secretário Municipal de Educação. Em primeiro lugar, ele aponta para
tensões entre mantenedora e docentes municipais. A esse respeito, ressaltamos que a gestão de
Marta Gobbato era constituída quase que exclusivamente por docentes do magistério estadual, o
que se modificaria a partir da gestão de Ferronatto, em 1989. No mesmo excerto da narrativa, ele
também reconhece que compartilhava da percepção de que professores municipais não seriam
suficientemente qualificados, até conhecer pessoalmente o contexto da rede.
Esses são dois elementospodem ser evidenciados como relevantes, pois mobilizaram
rupturas e reconfigurações. Ao aceitar o convite para ser Secretário, no final de 1988,
Ferronattotomou conhecimento de que havia uma reivindicação dos docentes da RME para que a
mantenedora fosse gerida apenas por docentes municipais e acolheu a demanda,
escolhendodocentes municipais para serem as assessoras e integrarema equipe gestora. Com isso,
provocou uma ruptura em relação à configuração estabelecida até aquele período, na qual o
magistério estadual era o poder até então legitimado para gerir a rede. Ainda, o final do excerto
visibiliza que havia representações de desprestígio que circulavam sobre o docente municipal.
Uma vez que este artigo se propõe a verificar em que medida algumas práticas evidenciadas
na narrativa de Ferronatto contribuíram para desdobramentos democráticos, assinalamos parte da
narrativa do antigo Secretário a qual explicita duas práticas que ele adotara a fim de conhecer e se
aproximar da rede por ele então capitaneada.
Pra ti ter uma ideia, antes os diretores das escolas não se conheciam. A Secretária não
recebia ninguém lá; só com hora marcada. E eu abri o gabinete e disse: “Aqui diretor não
tem hora e professor também não tem hora”. Se vem aqui, só que às vezes tem que esperar.
E eu comecei também uma atividade de visitar todas as escolas. Por exemplo, de manhã
visitava duas escolas e a escola fazia um jogo com os alunos (FERRONATTO, 2017).
Ferronatto aponta que buscou fazer-se presente de forma distinta nas escolas, rompendo
com a prática de “supervisionar cadernos”. Assim, ele justifica a visita antes como forma de
conhecer as realidades e necessidades das escolas. Não por acaso, ele em seguida rememora as 29
reivindicações feitas pelos docentes municipais em 1988 e acolhidas em sua gestão a partir de 1989.
A recorrência com que as 29 reivindicações são referidas é significativa. Permite também perceber
o quanto Ferronatto articula-as como elemento importante de sua gestão, com viés democrático. As
reivindicações são lembradas e referidas frequentemente na narrativa como razão explicativa de por
que determinadas escolhas foram feitas no período para a RME de Caxias do Sul, especialmente no
que tange a aspectos como organização da rede e qualificação docente. Ferronatto busca enfatizar
que objetivou atender as demandas e compreendemos que se constitui importante para ele que seja
assinalado seu movimento de acolhimento de tais propostas e de abertura para escuta dos entraves
daquele contexto.
Outro elemento da gestão Ferronatto, que resultara de outra reivindicação dos professores
docentes, foi o aumento salarial. Ferronatto acrescenta entre as ações desenvolvidas em sua gestão
o fator salarial: “Ah, e outra coisa. Nós conseguimos aumento na época para os professores [...] Foi
substancial. Ultrapassamos o salário do Estado e agora tá bem longe. Conseguimos, na época, do
Mansueto também. Era uma das reivindicações deles” (FERRONATTO, 2017, p. 22).
Percebemos nas memórias de Ferronatto, elucidadas em sua narrativa, indícios de práticas
de escuta das necessidades dos docentes da rede, quando relata que:
Democracia verdadeira tem que ouvir, mas tem que decidir. Tu tem que ouvir, mas tem
que decidir, porque não adianta tu ouvir, dez, doze opiniões, que vão aparecer e... mas a
decisão na hora tem que ser. [...]Mas, assim, a decisão final era sempre minha.
(FERRONATO, 2017).
A esse respeito, ponderamos que tensões permeiam o ato de rememorar. Afinal, memórias
aludem a ações, decisões, significados e identidades, muitas vezes, de fato, múltiplos e/ou
contraditórios. Quando nos propomos a ouvir a narrativa do outro, temos que acolher tudo aquilo
que emerge extrapolando o âmbito do evento. Assim como anteriormente referimos Portelli (2016,
p. 12), concordamos que é fundamental estarmos atentos ao lugar e aos acontecimentos nas histórias
dos sujeitos que encontramos, mantendo uma atitude respeitosa diante dos narradores que aceitam
nossos convites e gentilmente compartilham conosco suas memórias. De qualquer modo, em vista
de nossas identidades múltiplas e conflituosas, externam-se histórias e significados concorrentes:
CERTEAU, Michel de. A invenção do cotidiano: artes de fazer. 22. ed. Petrópolis, RJ: Vozes,
2014.
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Departamento de História. PUC/SP: ética e história oral. São Paulo: Educ, n 15, p. 51-89, 1997.
O artigo, ora apresentado, faz parte de uma investigação maior, de uma coleta de dados
e de uma análise do uso de imagens, que tem como objetivo colaborar com as pesquisas em
História da Educação que se dedicam à história da formação docente. Este trabalho está
inserido na linha de pesquisa de Filosofia e História da Educação, do Programa de Pós-
Graduação em Educação, da Universidade Federal de Pelotas, ligado ao grupo de pesquisa do
Centro de Estudos e Investigações em História da Educação – CEIHE.1
O tema deste texto foca em analisar a relevância das imagens guardadas nos
acervos pessoais de ex-normalistas que estudaram na cidade de Pelotas nos anos de 1957 até
1962. Objetivo, através das imagens selecionadas e guardadas pelas professoras e do
cruzamento com as narrativas, ressaltar a relevância da fonte iconográfica como forte
evocadora das memórias discentes.
A delimitação temporal aqui contemplada compreende o final da década de 1950 e
início da década de 1960. Esse foi o período em que as professoras entrevistadas e que
cederam seus acervos estudaram em Escolas Normais da cidade de Pelotas.
Assim, esta escrita apresenta a contribuição das fontes iconográficas e de acervos
guardados pelas normalistas ao recordarem o tempo em que estavam cursando o Curso
Normal, tecendo algumas considerações sobre suas trajetórias discentes.
Outro ponto relevante é o confronto das imagens, principalmente das fotografias
com as lembranças de um tempo vivido. Essas imagens foram preservadas como lugares de
memória e no cruzamento com as narrativas colaboram para a construção da história de
professoras que dedicaram uma vida inteira à educação.
Penso que a pesquisa, sobre trajetórias discentes de mulheres que se tornaram docentes
em épocas passadas eonde uma das fontes são as imagens guardadas em acervos pessoais,
tende a contribuir nos estudos relacionados à formação de professores nos dias de hoje.
Assim, tendo como referenciais epistemológicos os pressupostos da História
Cultural,fundamento este trabalho em autores que auxiliam na compreensão dos
objetivos propostos.
Ressalto que o conceito de imagens evocadoras de memória tem se destacado nas novas
investigações e vem ganhando espaço nas pesquisas que trabalham com a metodologia da História
Oral e nos estudos biográficos. Em Burke (2017), o autor indica que as imagens permitem uma
visita ao passado de “forma mais vívida”.
Isso ocorre com os narradoresnas entrevistas, onde acabam revelando os fatos conforme as
lembranças são evocadas. Neste artigo, busco mostrar a importância do significado das relações
existentes entre a observação de uma imagem e o processo de recordação que ela ocasiona, ou seja,
a contribuição desta prática de rememoração para a pesquisa histórica.
As fontes da pesquisa, sejam elas imagens, narrativas ou documentos escritos, contribuem
sobremaneira na construção do trabalho do investigador, auxiliando no questionamento do processo
de produção da escrita. Como alerta Ragazzini:
A fonte provém do passado, é o passado, mas não está mais no passado quando é
interrogada. A fonte é uma ponte, um veículo, uma testemunha um lugar de verificação,
um elemento capaz de propiciar conhecimentos acertados sobre o passado. As fontes
permitem encontrar e reconhecer: encontrar materialmente e reconhecer culturalmente a
intencionalidade inerente ao seu processo de produção. Para encontrar é necessário
procurar e estar disponível ao encontro: não basta olhar, é necessário ver. Para reconhecer
é necessário atribuir significado, isto é, ler e indicar os signos e os vestígios como sinais
(RAGAZZINI, 2001, p. 14, grifo da autora).
Nesse processo, o uso das imagens é uma importante referência, ao permitir que se reavive
a lembrança individual do entrevistado. Segundo Burke:
[...] deve-se levar em conta que, para analisar a significação da imagem, é importante
reconhecer que esta se encontra permeada por uma série de construções e
intencionalidades, especialmente no que tange a sua produção. Fotografias nascem de
necessidades e de interesses. A sua produção está condicionada a seleções e escolhas. São
grupos sociais ou pessoas determinadas que as requerem. (OLIVEIRA, 2012, p. 38).
No decorrer da realização da pesquisa e durante as visitas nas casas das entrevistadas, tive
contato com imagens do seu tempo de normalistas, do pátio da escola, das salas de aula, dos
trabalhos realizados e de alguns eventos destacados como relevantes pelas professoras. Percebi as
escolhas e as seleções que cada uma faz na produção de seu arquivo pessoal. Algumas fotografias
são arquivadas como verdadeiras relíquias.
Duas das professoras entrevistadas ainda mantinham em seus acervos pessoais um álbum
de fotografias organizado de forma cronológica, desde o início do Curso Normal até o
encerramento, com a cerimônia de formatura.
Nos álbuns, algumas imagens se repetiam de forma constante, como as fotografias das
exposições de trabalhos produzidos pelas alunas durante o Curso Normal, no final da década de
1950. Tais imagens, quando visualizadas pela entrevistada, suscitavam a recordação daquele
momento e ficava evidente a relevância do evento.
A partir da observação da fotografia surgia, então, o depoimento com ar saudosista. A
imagem que apontava para a exposição dos trabalhos escolares demonstrou, através da memória,
que a prática das exposições se tornou um evento importante na trajetória acadêmica das estudantes,
e era valorizada como um dos momentos marcantes de cada fechamento de semestre ou disciplina.
Veja-se o relato da professora Vera Maria Moreira Lima, que se formou em 1960, na Escola
Normal São José:
Porque, sabe o que acontecia? A gente tinha aula de manhã. E de tarde a gente tinha que
fazer um monte de material, álbum seriado, etc. Na época não tinha data show, essas
coisas. Então, a gente ia para aula de manhã e de tarde se reunia das duas às cinco horas
da tarde preparando esses materiais. Depois, tinha até exposição no colégio. Então, lá em
casa mesmo, a gente se reunia, a gente juntava pauzinho de picolé, tampinha para dar
noção de número, tudo isso aí nós produzíamos... (Vera Maria Moreira Lima, 08 set.
2014).
Nos acervos, as fotos nos revelam que, além das exposições, as alunas guardavam imagens
das salas de aula, dos recreios, das aulas de Educação Física e das datas que consideravam mais
significativas.
Na visão de Souza (2001, p. 79), “As fotografias escolares constituem um gênero de
fotografias muito difundido, a partir do início do século XX”, e elas acabam contribuindo no ato de
rememorar um tempo de escola. Diante da imagem da exposição dos trabalhos escolares, ao mostrar
esta fotografia, a aluna recorda com emoção que “esta mesa de centro aqui foi feita por mim e por
uma colega de aula” (Lúcia Helena Brauner Machado, 24/04/2015), ressaltando o valor do trabalho
manual das futuras professoras.
Conforme já foi referido, anteriormente, foram disponibilizados para a pesquisa dois álbuns
de fotografias e de recordações do tempo de estudantes: o álbum de fotografias e recordações da
depoente Lúcia Helena Brauner Machado, que estudou na Escola Normal São José, e o da
professora Heloísa Maksude Mecherefe, que fez o seu curso na Escola Normal Assis Brasil.
Em ambos os álbuns, as professoras fazem uma seleção de imagens, organizadas em uma
ordem cronológica dos acontecimentos, inserem datas nas páginas dos mesmos e, por vezes, são
escritas de próprio punho algumas frases empregando títulos às fotografias expostas. Isso
demonstra a escolha e o destaque de uma determinada imagem em detrimento de outra, o que
denota que as imagens, assim como as memórias, também passam por um processo de seleção.
Para Oliveira (2012), ao usar as imagens fotográficas como fonte de uma pesquisa, é
necessário ficar atento para o que é revelado em seu conteúdo e o que se encontra oculto. Constato
em alguns textos sobre essa temática que é dado destaque ao caráter de montagem e seleção da
fonte iconográfica:
Na imagem, o mundo ganha bordas, limites impostos pela tecnologia da reprodução
fotográfica. Logo, fotografia é reprodução e representação. Reprodução, pois a fotografia
capta uma cena que é reproduzida; representação, porque tal cena é uma escolha e, dessa
forma, relaciona-se a uma série de escolhas que levam ao seu resultado final. (OLIVEIRA,
2012, p. 37).
Além desses álbuns descritos, anteriormente, fotografias avulsas, boletins, emblemas das
escolas, carteiras de estudantes e outros guardados foram também disponibilizadas pelas
entrevistadas. Para Mauad (2015), a imagem nos provoca, tanto que confundimos as ações de ver
e de pensar. Concordo com a autora, pois quando estamos diante de uma fotografia, postal ou até
mesmo de uma obra de arte, que são evocativas de uma forma de ser, nossa percepção fica aguçada,
o que leva a uma contemplação emocional.
Ainda, de acordo com a autora, a imagem não é isolada de seu tempo ou de seu contexto:
Cada imagem revela um contexto. Segundo Kossoy (2003, p. 74), “As fotografias, como
todos os documentos, monumentos, e objetos produzidos pelo homem, têm atrás de si uma
história”, e estas revelações das fontes iconográficas enriquecem a investigação dos fatos e suscitam
as narrativas.
No mesmo caminho, as imagens também serviram de base para a contextualização de
alguns acontecimentos importantes. O uso da fotografia, além de ilustrar, se torna significativo ao
preservar a imagem intacta do acontecido e remontar à sociedade de determinada época e local,
evocando, ainda, a memória e provocando o processo de apropriação do passado.
Na visão de Burke (2017, p. 25),“[...] imagens, assim como textos e testemunhos orais, são
uma forma importante de evidência histórica. Elas registram atos de testemunho ocular”.
A imagem é uma provocadora de lembranças. Para Chaui (1999, p. 33), “olhar é, ao mesmo
tempo, sair de si e trazer o mundo para dentro de si”. Através dos olhos avaliam-se as imagens que
estão diante de si e, por isso, elas são capazes de fazer lembrar, mesmo que nesta memória possam
existir as representações de um tempo passado. Ao apresentar a Caderneta Escolar da época de
estudante, a professora Maria Lúcia Moraes Dias corrobora o que havia sido narrado na entrevista
da professora Vera Maria Moreira Lima. Ambas afirmavam que, no tempo de estudantes, o rigor e
as punições nas escolas eram intensos.
Nas décadas de 1950 e 1960, os sistemas de regras de organização e de punições eram
rigorosos com as jovens estudantes. A entrevistada Maria Lúcia disponibilizou a caderneta escolar
do ano de 1958, onde eram carimbadas a presença das estudantes nos dias de aula e as eventuais
saídas em horários diversos do regular. A caderneta continha os dados do aluno, filiação, data de
nascimento e uma foto junto ao carimbo da Escola Normal Assis Brasil. Além do controle de
assiduidade e pontualidade, também constavam no documento as regras impositivas na qual as
alunas deveriam seguir.
Uma dessas regras, por exemplo, consistia em que não seria permitido aos alunos que não
estivessem devidamente uniformizados assistir às aulas.
As dinâmicas institucionais são expostas através dos acervos particulares e das narrativas
das alunas, evidenciando, assim, uma organização entre as relações que são mantidas dentro dos
educandários e que dão suporte para desvendar a cultura escolar vivenciada no tempo de estudantes.
Em Saturnino (2005), constato que a imagem pode ser uma grande auxiliar no processo de
construção da memória, contribuindo nas pesquisas em História da Educação. No cruzamento com
as narrativas e as escritas de si, as imagens merecem um papel de destaque, visto que aguçam a
memória no momento da tomada dos depoimentos, conforme vislumbro na narrativa da professora
Heloísa Maksude Mecherefe:
Olha aqui, eu peguei meus álbuns que aí a gente vai lembrando. Comecei em 1957 meu
curso do magistério aqui. Nós participávamos muito de todas as atividades cívicas e
culturais. Nesse dia, nós estávamos comemorando o Dia do Pan-Americanismo (Heloisa
Maksude Mecherefe, 27 ago. 2015).
A aluna fazia referência a uma imagem colada no álbum de retratos que revelava a reunião
das normalistas no orfeão da Escola para o ato solene do Dia do Pan-Americanismo. A fotografia
exalta a relevância do evento, sendo que no alto, atrás das alunas, estão as bandeiras representando
cada país da América, enquanto as estudantes uniformizadas traziam na mão pastinhas que
provavelmente continham o rito a que estavam acompanhando naquele momento. A memória da
entrevistada foi certamente evocada através do olhar sobre a imagem.
As autoras Mignot (2001) e Michelon (2008) mencionam o caráter memorialístico das
imagens, esclarecendo que em um contexto de História Oral, a fotografia torna-se um importante
evocador de memória.
Entretanto, ao usar as imagens como evocadores da memória, é importante atentar para o
alerta de Borges (2003). A autora ressalta que apesar do que está oculto na “chamada câmera
lúcida”, ainda assim existe uma aura de encantamento nas fontes fotográficas, fazendo com que as
lembranças fiquem romanceadas.
Cabe referir que em toda a pesquisa é realizada uma seleção de imagens, seja pelo
pesquisador, que investiga os fatos, seja pelo entrevistado, que detém a posse do acervo. Isso não
desqualifica a fonte, que, através do seu cruzamento com as narrativas, revela a cultura e as
vivências de uma época e de determinado grupo social.
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Pelotas, 06/07/2016.
LIMA, Vera Maria Moreira. Entrevista concedida a Maria Cristina dos Santos Louzada.
Pelotas, 08/09/2014.
MACHADO, Lúcia Helena Brauner. Entrevista concedida a Maria Cristina dos Santos
Louzada. Pelotas, 24/04/2015.
Os lugares têm passado e têm muito que dizer. São passados que sofrem interferências,
compostos por grupos, por práticas e por recordações. Locais de comunidades, alimentados pelas
necessidades da época e pelas situações de determinado tempo.
Esses lugares, como as cidades, são profícuos ambientes de investigação histórica. Pensando
nessas possibilidades, podemos inferir que o Banco de Memória do Arquivo Histórico Municipal
João Spadari Adami se constituiu com essa perspectiva: preservar a memória da cidade de Caxias
do Sul.
Mesmo não tendo um projeto escrito e sistematizado, pela entrevista3 feita com
a responsável atual do acervo, Sonia Mary Storchi Fries, torna-se compreensível a maneira
como esse Banco de Memória foi criado. Em 1980, o Banco de Memória foi criado por
Liliane Alberti Henrichs, que era formada em História e trabalhou por algum tempo em
um jornal da cidade, levando, inclusive, esse espírito de jornalista para dentro do arquivo.
Naquele período, a criação do acervo foi considerada relevante por buscar
preservar a memória de descendentes de imigrantes, a fim de compreender como o município
de Caxias do Sul se constituiu, desde os tempos de colonização.
[...] como tinha muitas pessoas idosas que nasceram, que foram os primeiros descendentes
de imigrantes nascidos aqui, deu pra Liliana resgatar a história da imigração. Porque esses
imigrantes deixaram a Itália, como foram esses primeiros momentos, etc. Então, são
depoimentos muitos preciosos de pessoas nascidas em 1890, 1893, e também de pessoas
que tinham uma memória da cidade. Então seriam pessoas, por exemplo, que viram a
inauguração da estrada de ferro, as cerimônias que tinham quando Caxias foi levada à
condição de cidade, como era a cidade naquele período, etc. (Sonia Mary Storchi Fries,
2017).
Esse era um dos projetos ligados à memória oral. [...] A não ser esse projeto ligado à
fotografia, não tinha um projeto específico para as pessoas que a gente entrevistava. A
gente, na época, por influência, pela relação que a Liliana tinha com a imprensa, a gente
conseguiu um espaço no Jornal Pioneiro que se chamava Página Memória. Esse trabalho
foi fantástico porque todos os sábados saía uma matéria, às vezes duas páginas e às vezes
uma página, sobre aspectos da história de Caxias, vários temas. [silêncio] E isso durou
mais de cinco anos. Eram pesquisas semanais e, muitas vezes, a gente não tinha
informação, por isso a gente tinha que buscar na memória. Assim, a gente fez muita
entrevista também pra essas Páginas Memórias. (Sonia Mary Storchi Fries, 2017).
A partir da fala de Sonia, é possível compreender que este acervo não se constituiu por meio
de um único tema ou de um grupo específico. Sendo o propósito do Banco de Memória preservar
as lembranças de Caxias do Sul, as variadas temáticas exploradas permitiram que esse acervo se
constituísse na pluralidade de assuntos, de pessoas e de períodos históricos.
Contudo, pela proposta inicial do lugar e, mesmo depois, pelas entrevistas produzidas ao
longo dos anos, podemos perceber um pertencimento étnico nas entrelinhas das entrevistas. A
predominância de descendentes italianos deixou marcas, inclusive na forma como esse Banco de
Memória se constituiu. Claro está que o acervo em questão não foi originado por um grupo de
imigrantes (ou descendentes de imigrantes) italianos e também não teve como objetivo exclusivo
trabalhar com memórias desses sujeitos. No entanto, temáticas envolvendo a imigração, assim
como lembranças voltadas às crenças e aos costumes italianos, independente do assunto da
entrevista, demonstram esse aproximação com as questões étnicas.
Nesse sentido, “o fundamental é que se entenda o étnico como um processo e não como um
dado resolvido no nascimento. Constrói-se nas práticas sociais em um processo de relação. ”
(KREUTZ, 2003, p. 85). Considerando o trabalho produzido, a escolha dos entrevistados e também
a recordações desses sujeitos, as quais envolveram modos de viver, de aprender e de conviver
vinculados com seus costumes na Itália, inferimos que o Banco de Memória do AHMJSA também
se tornou um espaço de aproximações étnicas, ou seja, carrega consigo pertencimento étnico.
Além dessas questões étnicas levantadas através da análise da constituição do acervo, a
mudança da gestão desse local também trouxe algumas modificações nos processos de
funcionamento. Em 1991, Sonia assumiu o Banco de Memória, sendo responsável até hoje por esse
acervo de História Oral. De acordo com a entrevistada:
Quando eu assumi o Banco, eu vi que tinha, na época, cerca de 160 entrevistas. Daí eu
comecei a estudar, por minha conta, uma metodologia de História Oral. Li muito e, naquilo
que eu li, o que me ajudou muito foi a metodologia usada pela Fundação Getúlio Vargas.
Então, eu segui e adaptei essa metodologia ao nosso Banco de Memória. Daí o Banco de
Memória começou a ter uma metodologia. Peguei desde a primeira fita que tinha sido
gravada e comecei a transcrever tudo. Eu transcrevi tudo. Hoje a gente tem cerca de 1.200
entrevistas. Todas as entrevistas eu li, transcrevi, revisei, fiz sumário, botei na base de
dados, e fui fazendo entrevistas. Praticamente, 95% dessas entrevistas estão transcritas,
processadas e disponíveis para pesquisa. (Sonia Mary Storchi Fries, 2017).
O ato de rememorar está imbuído de ações, tanto do entrevistado (que faz escolhas do que
lembrar e do que esquecer) como do entrevistador, que utiliza estratégias para que esse processo
aconteça. Na situação de um acervo de História Oral, essas práticas também ocorrem, embora quem
utilize esses espaços acabe se concentrado no “produto final”, ou seja, na entrevista transcrita.
Desde a criação do Banco de Memória, alguns processos necessários para que o acervo se
efetivasse foram produzidos e outros acabaram sendo construídos de uma forma mais “espontânea”
(ou “menos programada”). Pensando, por exemplo, na situação da entrevista, o uso de um roteiro e
também de evocadores de memória poderiam ser estratégias pensadas a priori.
No entanto, pela entrevista com a responsável do acervo e pela oportunidade de acompanhar
o trabalho de planejamento e transcrição de entrevistas, percebemos que esses movimentos
emergiram no acervo de forma não planejada. No caso do roteiro, não existem critérios definidos a
serem seguidos em todas as entrevistas. “O roteiro está relacionado com a entrevista que nós vamos
fazer. Então quem produz o roteiro somos nós.” (Sonia Mary Storchi Fries, 2017).
Por mais que não tenha um roteiro “padrão” para o processo de realização de entrevista, pela
leitura de algumas transcrições é possível perceber o uso de questões que se tornaram comuns no
momento de entrevista, como: nome completo, data de nascimento, ascendência e local em que
reside. Reconhecemos que essas informações iniciais no processo de entrevista contribuem para
situar o sujeito entrevistado. Porém, realçamos a pergunta voltada ao aspecto da ascendência para
reforçar nossa percepção em torno de um pertencimento étnico presente nesse acervo, uma vez que
a maioria das respostas se concentra na ascendência italiana.
Mais do que isso, “[...] as lembranças e as imagens dos depoentes estão configuradas de
alguma forma relacionada com o grupo social a que pertencem” (WEIDUSCHADT; FISCHER,
2009, p. 75). Em outras palavras, as lembranças e os esquecimentos dos entrevistados estão
vinculadas às marcas e às influências do grupo de pertencimento, neste caso, italiano.
Além do roteiro, outro movimento possível para quem faz entrevistas se concentra no uso de
evocadores de memória. No caso do Banco de Memória investigado, não são utilizados evocadores
selecionados previamente para as entrevistas. No entanto, as pessoas que são entrevistadas acabam
mostrando fotografias, as quais são aproveitadas pelos entrevistadores. Embora o evocador de
memória não se restrinja ao uso de fotografias, segundo a responsável pelo acervo, esse é o único
recurso que até o momento é aproveitado como “disparador” de lembranças.
Tratando de recursos humanos, verificamos que esse é o processo que tem causado mais
desafios para a manutenção do Banco de Memória do AHMJSA. Encontrar profissionais para
trabalhar nesse espaço e que permaneçam por um período mais longo tem sido uma das maiores
dificuldades de lugar, desde sua constituição. Conforme recordações de Sonia, o período de
permanência de funcionários nesse acervo dura em torno de 2 anos. A rotatividade de pessoas
trabalhando acaba fragmentando o trabalho e, por vezes, atrasando alguns processos, como a
transcrição das entrevistas.
Mesmo com esses percalços, o crescimento do acervo desde 1980 é indiscutível e o número
de entrevistas produzidas revela o potencial desse lugar. Apesar de atualmente trabalhar sozinha no
Banco de Memória, Sonia procura manter as entrevistas atualizadas, sendo que 95% delas já estão
transcritas e disponíveis para os pesquisadores. Tendo dois grandes enfoques: as temáticas variadas
(que dependem do contexto e da situação política, econômica, social e cultural do período) e as
histórias de vida, esse acervo possibilita reminiscências que não poderiam ser encontradas de outro
modo (PRINS, 1992, p. 192).
Até o ano de 2007, as entrevistadas eram gravadas de modo analógico, ou seja, em fitas. A
partir daquele ano, com a entrada do sistema digital, as entrevistas começaram a ser gravadas em
CD, o que também acabou gerando novas configurações para esse acervo e para o processo de
armazenamento das memórias dos sujeitos.
Mesmo com essas mudanças e com a ausência de algumas “formalidades” no acervo, no
sentido de organização, pela quantidade de entrevistas produzidas, reconhecemos o fôlego e o
esforço de quem tem se dedicado a manutenção desse espaço. Mais do que isso, de 1980 a 2007,
período em que o sistema analógico perdurou no Banco de Memória, é notável a mudança de
orientação que esse local adotou, a qual foi acompanhada pelo entendimento e pela vivência da
História Oral como metodologia, refletindo no modo de perceber e de fazer entrevista.
Se no princípio as entrevistas eram feitas de modo aleatório, sem um planejamento mais
sistematizado, com ausência de referências para o modo de entrevistar e transcrever, na década de
1990 essas práticas foram alteradas, tendo como respaldo as discussões que naquele período
emergiram em torno da História Oral. Claro está que outras modificações podem ser feitas nesse
Banco de Memória, como a adoção de um diário de campo, recurso que não é utilizado até o
presente momento.
Todavia, mesmo com essas possibilidades de trabalho, destacamos a potencialidade do
acervo, pelo número de entrevistas, pelas transformações feitas e inspiradas nos estudos acadêmicos
e nas experiências positivas no campo da História Oral, bem como pelo entusiasmo da responsável
pelo Banco de Memória, que traduz seu interesse e profissionalismo ao afirmar que: “Independente
de projeto, o que eu quero mesmo é entrevistar essas pessoas idosas, essas histórias de vida, que
têm muitas coisas legais para falar!” (Sonia Mary Storchi Fries, 2017).
Iniciamos a conclusão desse artigo com a tentativa de reforçar nosso interesse por ser “apenas
o começo” de uma profícua investigação. Afinal, historiar um acervo de História Oral não se
restringe à escrita de um artigo científico. Pelo contrário, possibilita a reflexão sobre os modos de
pensar a História Oral e de se preservar a memória de vozes de outros tempos, resguardadas nesses
locais de pesquisa.
Por meio dessa investigação, reforçamos nossa posição em torno da legitimidade de acervos
de História Oral. Embora as entrevistas feitas em outro momento e já transcritas acabem trazendo
consigo diferentes esquecimentos, no sentido de “perdas” (ausência do contato com o entrevistado,
impossibilidade de retomar a entrevista para novas perguntas, poucos resquícios do momento da
entrevista – os murmúrios, os silêncios, a entonação da voz, os olhares), é inquestionável a
oportunidade que essas entrevistas trazem para os pesquisadores.
Exemplo disso é a possibilidade de escutar pessoas nascidas em 1920, que mesmo já
falecidas, se mantêm vivas pelas memórias deixadas nesses gravadores, fitas K7, CD’s e DVD’s
do acervo. Nesses suportes, as vozes dos sujeitos ecoam para aqueles que desejarem escutá-las e
nos fazem pensar sobre a amplitude do trabalho com História Oral, inclusive como manutenção de
lembranças e de esquecimentos de outros tempos e espaços.
Pensamos nesse acervo – assim como em tantos outros – como um local privilegiado de
História Oral, que pode oferecer muitas possibilidades de investigação. Afinal, trabalhar com
memórias de acervos significa analisar com olhares diferentes, em outras perspectivas, documentos
construídos em outros tempos, ou seja, significa “[...] dar movimento a algo que está em inércia. ”
(GRAZZIOTIN; ALMEIDA, 2012, p. 41).
Não apenas com as entrevistas feitas, mas o próprio Banco de Memória, em si, permite que
novas pesquisas sejam produzidas. O percurso histórico após a digitalização das entrevistas, os
desafios de manter o acervo atualizado e com mão de obra permanente, a frequência e os interesses
das pessoas que utilizam o Banco e tantos outros aspectos são disparadores para novos estudos, a
partir da existência do acervo em questão.
Por esse motivo, essa pesquisa é “apenas o começo” de quem desejar continuar investigando
a História Oral em suas diferentes facetas, assim como fizemos com o Banco de Memória do
AHMJSA. Vida longa aos acervos de História Oral!
AMADO, Janaína; FERREIRA, Marieta de Moraes. Apresentação. In: _____. Usos & abusos da
História Oral. 7.ed. Rio de Janeiro: Ed. da FGV, 1997, p.7-25.
BOSI, Ecléa. Memória e sociedade: lembranças de velhos. São Paulo: T. A. Queiroz, 1979,
reimpressão 1983.
ERRANTE, Antoinette. Mas afinal, a memória é de quem? Histórias Orais e modos de lembrar e
contar. In: História da educação. Pelotas, p.141-174, set. 2000.
PRINS, Gwyn. História Oral. In: BURKE, Peter (Org.). A escrita da História: novas perspectivas.
São Paulo: Ed. da UNESP, 1992, p. 163-198.
WEIDUSCHADT, Patrícia; FISCHER, Beatriz T. Daut. História Oral & Memória: aportes
teórico-metodológicos na investigação de trajetórias docentes. In: FERRERIA, Márcia Ondina
Vieira; FISCHER, Beatriz Terezinha Daudt; PERES, Lúcia Maria Vaz (Org.). Memórias docentes:
abordagens teórico-metodológicas e experiências de investigação. São Leopoldo: Oikos; Brasília:
Liber Livro, 2009, p. 66-84.
Dóris Bittencourt Almeida
Alice Jacques
Lucas Costa Grimaldi
“Pessoas e escolas têm memórias assentes na tradição oral” (MAGALHÃES, 1999, p. 69).
Petronilha, Neusa, Luiza, João Tadeu e Aldo, quando crianças, todos os dias do ano letivo
percorriam a Rua Esperança, e dirigiam-se ao número 187, um casarão cercado de jardins. Neste
lugar, adaptado para o funcionamento de um Grupo Escolar (G.E), eram estudantes do Curso
Primário, entre os anos de 1948 e 1954. Hoje, contam com mais de setenta anos, e em suas
memórias ecoam fortes lembranças daquela instituição educativa.
Este estudo se propõe a investigar memórias de uma escola de outrora, tendo como corpus
empírico privilegiado narrativas de memória de três mulheres e de dois homens, duas delas negras,
antigos alunos do Grupo Escolar Uruguai. O interesse da pesquisa reside naquilo que foi escolhido
para ser lembrado (BOSI, 1979).“O esforço em ouvir o outro para uma ciência mais humana” foi o
Ao observar essas informações, vê-se que João Tadeu, Neusa e Luiza continuaram seus
estudos em instituições privadas. João Tadeu e Aldo tinham a intenção de estudar no Colégio Júlio
de Castilhos. 1 Entretanto, o primeiro não foi aprovado no Exame de Admissão ao
Ginásio, diferente de Aldo que concluiu o Curso Científico nesta instituição. Estamos a falar
de uma época em que o ensino público era altamente valorizado pela sociedade. Interessante,
o fato de Petronilha ter ingressado na primeira turma2 do Colégio de Aplicação 3 da
UFRGS, provavelmente influenciada pela mãe, professora do Instituto de Educação
Flores da Cunha, 4 entusiasta da proposta de ensino diferenciada promovida pelo Colégio de
Aplicação. Luiza fez uma trajetória de escola bastante comum às moças de classe média
daquela época. Estudou no Colégio Bom Conselho,5 uma escola católica de moças, e
depois Cursou a Escola Normal no Instituto de Educação, dando continuidade à sua
formação no Curso de Pedagogia. Entre todos, a única que não prosseguiu seus estudos para
além do Curso Ginasial é Neusa; justificou que o casamento e os filhos a impediram de investir
na sua formação. Os sujeitos do presente estudo foram alunos de um Grupo Escolar, que
estava inserido num cenário em que o rural misturava-se com o urbano.
1 Inaugurado no ano de 1900, nas imediações da Faculdade de Direito do Rio Grande do Sul. Sobre o Colégio
Júlio de Castilhos, ver Lima (1990). .
2 A primeira turma foi composta por trinta alunos, convidados pela diretora Graciema Pacheco, que não haviam
sido aprovados no Exame de Admissão ao Ginásio do Instituto de Educação General Flores da Cunha e do Colégio
Estadual Júlio de Castilhos (LIMA, 2016). .
3 Sobre o Colégio de Aplicação, ver Lima (2016) .
4 Sobre a história do Instituto de Educação Flores da Cunha, ver Louro (1986)
5 Fundado pelas Irmãs Franciscanas da Caridade e Penitência, iniciou suas atividades para um público.
exclusivamente feminino, no ano de 1903. Sobre, ver Bom Conselho (2016). .
6 “A Colônia Africana foi o espaço demarcado pelos libertos do regime da escravidão, na área atualmente
denominada Rio Branco, bairro onde se encontram as ruas Cabral (antes Bela Vista), Casimiro de Abreu, Castro
Alves, Mariante e Esperança (Miguel Tostes). Em seus limites estavam os arraiais de São Miguel e São Manoel,
situados além do Campo da Redenção, longe dos limites da cidade” (BARROSO, 2010, p. 29).
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Essas são algumas evidências da formação do Bairro Rio Branco, antiga Colônia Africana,
onde habitava o Grupo Escolar Uruguai, lugar de moradia dos personagens dessa história, quando
eram crianças. Petronilha e Neusa (2016), talvez por ainda residirem no bairro, conseguem traduzir
lembranças significativas da antiga Colônia Africana. Dizem que além de negros e judeus, o bairro
contava com a presença de “poloneses, russos e gente vinda da Argentina”. Petronilha (2016) ainda
mantém a casa de sua família, originalmente de madeira, construída em 1905, na mesma rua em
que estava a escola. Foi lá que nos recebeu para a entrevista. Recorda do ambiente interiorano no
bairro, em que todos se conheciam.
A pluralidade étnica se refletia no grupo escolar. Pelas narrativas dos entrevistados,
percebemos que se referiram à convivência de judeus e negros naquele mesmo espaço. Segundo
João Tadeu (2016), “nossos amigos lá no grupo escolar, ou eram negros ou eram judeus”. Luiza
(2016) comenta que tinha uma amiguinha negra chamada Olga que tinha cheiro de carvão. Sua mãe
explicou que provavelmente vinha de uma família de lavadeiras que passavam as roupas com ferro
a carvão.
Para entendermos o significado de um grupo escolar, naquele contexto tão diverso
culturalmente, se faz necessário conhecer alguns aspectos referentes às condições de emergência
dos Grupos Escolares. No Brasil, constituem-se como fórmula institucional que sintetizava
demandas de racionalização social e escolar e de modernidade pedagógica. Tem como
características: seriação, classes homogêneas, ensino simultâneo, regulamentação e uniformização
do tempo escolar, enquadramento disciplinar, organização do espaço escolar, etc. (FARIA FILHO,
2014). Para o autor, representaram um momento de ruptura com o passado imperial e com as escolas
isoladas, afirmando a proximidade e identidade de institutos coletivos de instrução com a
modernidade, bem como a institucionalização de uma nova cultura escolar: tempo, espaço e noção
de ordem escolar (FARIA FILHO, 2014).
A criação dos grupos escolares era defendida não apenas para “organizar” o ensino, mas,
principalmente, como uma forma de “reinventar” a escola, objetivando tornar mais efetiva a sua
contribuição aos projetos de homogeneização cultural e política da sociedade. Reinventar a escola
significava, dentre outras coisas, organizar o ensino, suas metodologias e conteúdos; formar,
controlar e fiscalizar a professora; adequar espaços e tempos ao ensino; repensar a relação com as
crianças, famílias e com a própria cidade (FARIA FILHO, 2014, p. 38).
Para Souza (1998), o modelo proposto pelos grupos escolares previa uma série de
modificações na organização didático-pedagógica do ensino, entre elas a adoção de espaços
específicos e de novos métodos de ensino-aprendizagem, assim como o emprego do tempo, da
formação de classes homogêneas, com alunos divididos por idades e por grau de adiantamento,
com um professor para cada classe, sob o controle de um diretor, entre outras modificações
fundamentadas nas concepções de modernidade e de inovação educacional.
Sobre os grupos escolares do Rio Grande do Sul, são importantes os estudos de Eliane Peres
que contextualiza a escola primária nas primeiras décadas do século XX. Segundo a autora, esse
período foi decisivo para a escola rio-grandense, pois marca o momento da institucionalização e
da difusão de um modelo escolar – o das escolas graduadas, denominadas, no Rio Grande do
Sul, de colégios elementares, mais tarde chamados de grupos escolares – e o da expansão
do sistema público estadual de ensino. Esse processo de criação dos colégios elementares se
deu em 1909, e a implantação desse modelo escolar significou um momento estruturante
para o ensino público primário do Estado. Da instalação dos primeiros colégios elementares
em 1910 até os anos de 1930 – quando foram, então, indistintivamente denominados de grupos
escolares – os governos estaduais ocuparam-se com a expansão paulatina dessas escolas no
Estado (PERES, 2010).
Assim, garantir prédios adequados para o funcionamento dos colégios, agrupar os alunos
de forma homogênea, designar professoras para cada classe, escolher a direção, fiscalizar o
trabalho docente, selecionar os livros didáticos, formular programas e regimentos para o
funcionamento desses colégios foram as preocupações iniciais. Muitas dessas preocupações
atravessaram décadas sem uma solução adequada, como foi o caso dos prédios escolares
(PERES, 2010, p. 68).
A partir de 1939, os grupos escolares, foram gradativamente sendo instalados em todas
as cidades do Rio Grande do Sul. Para Peres (2010, p. 74), o ensino primário, sob
responsabilidade do Estado, tinha, então, consolidado um modelo escolar que não seria mais
abandonado. A partir de então, a denominação das classes passa a ser: 1º ano, 2º ano, 3º ano, 4º
ano, 5º ano.
E, justamente, em 1939 constituiu-se o Grupo Escolar Uruguai, produto da fusão do
Grupo Escolar da Rua Mariante e das Aulas Reunidas da Rua Ramiro Barcelos (SCHUCK, 2008).
A escola contava com 12 professores e 260 alunos matriculados (SCHUCK, 2008). Inserido em
um bairro peculiar, localizava-se o prédio habitado pelo Grupo Escolar Uruguai. Infere-se que
se tratava de uma residência rural, alugada pelo Estado, com a intenção de abrigar a escola.
Durante a primeira metade do século XX, conviviam escolas adaptadas em
contraposição aos projetos de construções de grupos escolares segundo modelos que
possuíam plantas-tipo,8 elaborados pela Secretaria de Obras Públicas do Estado.
Na figura 1, temos a imagem da edificação escolar, em fins do século XIX. Por meio
da fotografia, percebemos um palacete que difere das moradias da comunidade negra
constantes no entorno, devido a sua imponência. Nota-se um recuo em relação à rua e a
existência de um grande jardim na frente do terreno. Esses aspectos estruturais foram
mantidos durante o período de ocupação pelo grupo escolar. Na figura 2, observa-se a
fachada da instituição, suas janelas grandes com grades de proteção, escadas em ambos os
lados e uma varanda que possuía a finalidade de recepção e acolhimento dos que adentravam
o ambiente.
8.Estes “projetos-tipos” disseminados pelo Estado indicam “uma prática encontrada também em outras
províncias brasileiras, na qual um único projeto embasa a construção de vários edifícios” (POSSAMAI, 2009, p.
151).
Figura 1 – Residência da chácara na Rua Esperança (Séc. XIX)
A materialidade escolar evoca muitas memórias nos estudantes que por ali habitaram.
Petronilha e Neusa narram sobre a fachada e o momento de entrada na escola,
[...] ao lado direito de quem entra na rua, há ou havia uma escada de mármore que dava
acesso a uma sacada. [...]. À esquerda do prédio havia outra escada, bem mais alta, que
levava a um avarandado onde se encontrava a porta principal, por onde entravam as
professoras, as visitas, os pais quando iam fazer a matrícula dos filhos ou tratar de algum
assunto de seu interesse. (SILVA; PEREIRA, 2011, p. 154).
De acordo com o excerto, os estudantes entravam por outra porta localizada na lateral da
edificação, e que tinha acesso direto ao corredor das salas de aula. A separação das entradas entre
estudantes e professores era comum nos grupos escolares da época. Muitos ainda realizavam uma
segregação por gênero; infere-se que isso não acontecia no G.E Uruguai.
Após a entrada no espaço, tem-se a descrição de Luiza (2016) sobre o seu interior, “No
primeiro andar ficava a secretaria, o 5º ano, sala de professores, banheiro de professores”. Lembra
de banheiros específicos para meninos e meninas, porém ressalta que eles não “eram legais” e, por
isso, preferia usar o dos professores.
Ainda sobre a descrição estrutural, havia salas com pé direito alto, porão e dois andares.
Somente na narrativa de João Tadeu e Aldo (2016), houve a afirmação de que havia salas de aula
em todos os andares, inclusive no porão, o que pode demonstrar a intenção de otimização do espaço
da casa para uma escola. Neste piso localizava-se a cozinha, local onde era servida a merenda. Aldo
(2016) recorda: “eu me lembro muito bem do Grupo Escolar Uruguai. Era um casarão antigo. Tinha
sala de aula embaixo no porão, tinha sala de aula no meio e tinha sala no sótão também. Te lembra?
Lá em cima. Tinha um pátio grande”.
No que diz respeito ao porão da instituição, Neusa e Petronilha (2011, p. 154), descrevem
a existência de “um rebaixamento no teto, como se fosse um porão; não se podia passar por ali, pois
logo a seguir ficava a residência – sala e quartos – da zeladora chefe da escola, dona Célia, que ali
morava com seus filhos”. Elas contam que havia uma grande mesa, rodeada de bancos, em que era
servida a sopa. Mais adiante, ficava a cozinha com um enorme fogão à lenha, suas grandes panelas
e chaleira.
Neste mesmo local, sinalizam a existência de uma abertura na estrutura do prédio que, além
de função estética, possibilitava a vigilância dos estudantes e incutia sensações,
Neusa, muito sapeca, um dia se enfiou pelo referido corredor, visitou a casa da tia Célia.
Ficou intrigada com uma abertura redonda, como vira em desenho de castelos antigos, e
descobriu que através da janela redonda se podia enxergar, sem ser visto, tudo que se
passava no pátio, o que a criançada aprontava. E ninguém entre os alunos, sabia que aquele
lugar existia (SILVA; PEREIRA, 2011, p. 154).
Os espaços educativos não são neutros, são um “constructo cultural que expressa e reflete
para além de sua materialidade, determinados discursos” (ESCOLANO, 2001, p. 26). Esses lugares
também são como forma de controle dos estudantes. Além disso, evoca sensibilidades nas
memórias das entrevistadas.
Mas o que mais a impressionou na visita foi descobrir que embaixo da escola, num espaço
pequeno e espremido, morava uma família. Teve medo e incompreensão; voltou para casa
pensando. E até hoje lembra e sente novamente um aperto, uma tristeza: como podia,
naquela escola enorme, morarem pessoas embaixo, em um porão, num pequeno espaço.
(SILVA; PEREIRA, 2011, p. 154)
Liturgias da escola
De tudo o que escutamos, percebemos uma série de liturgias que indicam determinados
rituais intrínsecos à escolarização que permeavam o cotidiano escolar, e hoje se manifestam como
pregnâncias nas memórias dos antigos alunos. Pode-se pensar que, nas aulas isoladas, esses rituais
fossem mais singelos. Mas à medida que a escola republicana se institucionalizava como espaço
formativo de cidadãos, se fez necessário o investimento em muitos aspectos simbólicos que, pela
recorrência em que aconteciam, marcam as memórias daqueles que passaram pelos grupos
escolares. Boto (2014), ancorada em Elias (1993), faz pensar no processo civilizador como
constituinte do conceito de escola moderna emergente no século XX. Esses rituais instituem
processos de civilidade, com vistas a produzir a autorregulação dos sujeitos discentes.
Assim, procuramos identificar quais indícios de liturgia escolar emergiram nas entrevistas.
Eles lembram que o deslocamento pela escola em direção ao interior do prédio se dava em filas por
turmas, que partiam do pátio, organizadas por altura. Como diz João Tadeu (2016) “e aí tinha que
pôr a mão no ombro do outro pra dar uma distância”. Nas salas de aula, dizem que meninos e
meninas se sentavam misturados. Entretanto, havia divisão dos lugares de acordo com o
entendimento da professora quanto à capacidade de cada criança acompanhar as aulas; se formavam
as filas dos “adiantados, dos médios e dos atrasados” (SILVA; PEREIRA, 2011).
Petronilha conta que costumava estar na fila dos adiantados que ficava mais próxima dos
janelões, sempre abertos. Todavia, uma vez ficou doente e, ao retornar para a escola, não pode
sentar-se no lugar de costume. Em função de estar se recuperando, teve que juntar-se aos
10Fundado pela congregação Marista, no ano de 1904, para um público exclusivamente masculino. A respeito,
ver: Rodrigues (2004).
Jovita, eu vou me comportar. No fim, ela me aceitou de volta. Era uma grande, grande professora!
Compreensiva!” A narrativa de Aldo faz pensar na sensibilidade daquela mulher que ocupava o
lugar da direção do grupo escolar, pois, ao final, aceitou o aluno de volta. Talvez por isso o nome
de Jovita lhe desperte tamanha comoção.
Ao falarem sobre as aulas, nossos entrevistados afirmam que havia a unidocência. Todavia,
contava-se com outras docentes especializadas para as aulas de Desenho, Trabalhos Manuais,
Educação Física e Música. Observa-se uma recorrência positiva das aulas de desenho nas memórias
dos estudantes. Destacam as saídas ao Parque da Redenção, quando a atividade consistia em
observar a paisagem e produzir desenhos. Petronilha (2016) explica que, no quarto ano, as meninas
aprendiam a bordar e fazer crochê, enquanto os meninos faziam seus trabalhos manuais utilizando
madeira, serras e pirógrafo. Em dezembro, uma exposição apresentava à comunidade a produção
dos estudantes. Ela e Neuza destacam os trabalhos com couro, madeira compensada e pirogravura,
além das dobraduras. João Tadeu (2016) diz “eu devia ter trazido um abridor de cartas com
pirogravura, que eu fiz lá”. E Aldo (2016) complementa: “tinha até pouco tempo uma caixinha de
joias que a gente fazia”.
Enquanto Petronilha, Neusa e Luiza conseguiram rememorar aspectos pedagógicos da sala
de aula, como o uso de livros didáticos e cadernos, entre outros, para Aldo e João Tadeu, o que mais
marcou foram essas saídas para o Parque da Redenção, as aulas de trabalhos manuais, além das
atividades de Educação Física. Como entender essas particularidades, sem esbarrar em um
reducionismo de diferenças sexistas? Talvez se possa pensar que, sobretudo, naquelas décadas,
meninos e meninas eram educados de modos muito distintos e isso se dava tanto em casa como na
escola. Por que, nesse estudo, os homens valorizaram as travessuras, os esportes e as atividades ao
ar livre, ao passo que as mulheres falaram dos cadernos que eram passados a limpo, das práticas de
leitura, dos detalhes dos uniformes e das composições?
É assim que as três narradoras afirmam o quanto apreciavam as aulas de Língua Portuguesa.
Petronilha (2016) complementa que a prática das composições era algo frequente na escola, sendo
quase diária. Eram escritas em folhas que, ao final, a professora recolhia. Luiza (2016) também se
refere às composições e explica como aconteciam: “e era assim ó: ou ela contava uma metade de
história ou ela botava uma gravura e pedia para desenvolver o texto”. Lembra também da
composição oral, que, depois, era transformada em escrito, que, segundo a narradora, deixava claro
aos estudantes que o texto deveria ter início, desenvolvimento e fim. As três rememoram que essa
prática escolar sempre comparecia nos exames avaliativos. Normalmente apresentava-se uma
gravura aos estudantes e estes tinham que discorrer sobre a mesma.
Aldo e João Tadeu (2016) também se posicionaram sobre suas preferências quanto às
disciplinas escolares. João Tadeu sempre reforçando o significado dos trabalhos manuais. Hoje,
médico aposentado, se dedica à escultura. Aldo, da mesma forma, destaca os trabalhos manuais,
mas não esquece as aulas de Matemática e de Educação Física. Muitos anos depois, cursou a
Faculdade de Educação Física.
Sobre as avaliações, Petronilha (2016) acrescenta que eram feitas pelo
CPOE , padronizadas e aplicadas por professoras de 2 outras escolas. Completa dizendo que
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Centro de Pesquisas e Orientação Educacional - CPOE, da Secretaria de Educação e Cultura do Rio Grande do
Sul. Atuou de 1942 a 1971. A respeito, ver: Quadros (2006). .
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Escola Estadual de Ensino Fundamental e Médio, localizada no Bairro Santa Cecília, em Porto Alegre.
Para Faria Filho (2014), a biblioteca é o local que se destina às atividades de
leitura e pesquisas escolares. Assim, o espaço assume aproximação com os alunos,
professores e se potencializa com o mundo urbano. Mesmo estando localizada no interior
dos grupos escolares, ela acaba adquirindo outros significados, por haver uma proximidade
entre as moradias e a escola, resultando também na utilização pela comunidade.
Neusa explica que gostava de retirar livros de fadas que sua avó lia para ela.
Lembra, também, que recebia como presentes de Natal outros livros de fadas em que o
príncipe virava sapo, “aquilo tudo mexia com a minha cabeça”. Ela complementa
apontando a circulação de livros. “Também acontecia que quando uma lia, já dizia: ‘bah, tu
tens que pegar aquele livro". Quando questionamos se havia obrigação de retirada de livros
na biblioteca, ambas não entendem dessa forma, Petronilha (2016) argumenta que “era hora
de biblioteca e a gente ia lá e trocava os livros”. E Neusa completa “vinha para casa faceira
com os livros. E a própria dona Beloni incentivava: ó, tu já levou esse, leva outro, esse aqui é
muito bom.”.
Diferente delas, Luiza lembra da quantidade de livros em sua casa e o quanto a leitura
era algo que a movia. Nesse sentido, ressalta o significado de ter sido iniciada na leitura e
escrita no Grupo Escolar Uruguai. Mas, ao ser questionada sobre os usos da biblioteca,
demonstra um outro entendimento distinto do que foi dito pelas duas alunas anteriormente.
O que se pode inferir? Eram meninas com uma situação de vida distinta, se tomarmos como
referência um ponto de vista econômico. É possível que, diferente de Luisa, Petronilha e Neusa não
tivessem a mesma oferta de livros em casa. Por isso, o encantamento das duas meninas negras com
o lugar dos livros no Grupo Escolar Uruguai que lhes permitia transpor o ambiente escolar e viver
outras experiências por meio das práticas de leitura.
Além das práticas educativas já comentadas, destaca-se a emergência dos pelotões de saúde,
produtos das tendências higienistas, identificados aos princípios da medicina atrelados à educação.
Luiza (2016) foi a única entrevistada que conseguiu trazer essas informações, explicando como se
desenvolviam os pelotões no colégio. Diz que era escolhida como uma espécie de monitora, devido
à sua aparência, tendo unhas bem cortadas, orelhas limpas, cabelo lavado. Mas não se esquece do
constrangimento que sentia ao ter que se colocar em uma posição de autoridade em relação a seus
colegas, “eu só brigava na hora da fila que eu queria que fizessem uma fila direita. Mas aí, teve o
desfile e esse pelotão foi todo vestidinho de enfermeira, que, na verdade, era o próprio guarda-pó,
só que com um chapeuzinho de enfermeira”. Em suas relíquias, guarda a foto deste momento:
A saúde do corpo por meio da higiene é uma questão constitutiva dos grupos escolares e
considerada determinante no processo formativo das crianças. Portanto, os prédios escolares
deveriam contar com gabinetes médicos e dentários, que, segundo Vidal e Faria Filho (2005), eram
requisitos das construções escolares, desde os anos de 1910. De acordo com Zen (2006, p. 2332),
esses espaços auxiliares eram constituídos de grupos organizados no interior das instituições
escolares, fossem elas públicas ou particulares, com um propósito comum de integrar o corpo
discente, estimulando uma formação cívica, moral e intelectual por meio do exercício de “atitudes
de sociabilidade, responsabilidade e cooperação”, contribuindo igualmente com o processo de
busca por uma identidade nacional.
Os entrevistados recordam a existência desses espaços inseridos no interior do Grupo
Escolar. Falam que os estudantes eram sistematicamente examinados e muitos eram orientados a
tomarem a sopa da escola, possivelmente por estarem abaixo do peso adequado para a idade. Além
disso, eram oferecidas vacinas, como contra a varíola. O dentista aplicava flúor nos dentes e
tratavam-se as cáries. Petronilha salienta que a filha da diretora Jovita se formou médica e virou
doutora do grupo escolar. Isso faz pensar numa certa intimidade no espaço público de trabalho, em
que mãe e filha desenvolviam suas atividades, embora distintas.
Os clubes agrícolas também eram espaços difundidos nos Grupos Escolares, cuja finalidade
era fomentar, na infância, o gosto pela agricultura em suas mais variadas particularidades.
Buscavam a promoção do sentido de cooperação, pois as atividades seriam desenvolvidas
coletivamente. Petronilha e Neusa (2011, p. 155) explicam que nos fundos do prédio da escola havia
uma horta, cultivada pelos alunos maiores sob a orientação das professoras, e cuidada pelas
zeladoras. Esses espaços cumpriam um papel educativo, além de garantir legumes e verduras
frescas para a sopa distribuída aos alunos.
As aulas de Religião são um tema que emergiu nas narrativas. O Estado republicano, laico,
ainda assim mantinha esse tipo de formação nas escolas públicas, herança de um passado colonial,
marcadamente jesuítico, que ecoa nas memórias dos sujeitos entrevistados. Essas lembranças
apareceram justamente quando falaram da expressiva presença de estudantes judeus na escola.
Luiza criticou a professora, “D. Araci que falava muito em diabo [...] eu não gostava daquilo porque
se tinha uma criança um pouco mais arteira na aula, está com o diabo no corpo. E meus colegas
judeus tinham que ficar assistindo as aulas de Religião”.
A questão que se coloca é: seria essa uma postura isolada dessa docente rememorada por
Luiza? Ou seria comum a segregação na escola às comunidades étnicas? E em relação aos negros?
O que se percebe é que na Colônia Africana houve uma adesão ao catolicismo. É possível que as
religiosidades de matriz africana não tivessem tanta força naquela região; talvez fossem mais
perseguidas ainda pela sociedade branca e católica. A mesma antiga aluna expõe um episódio que
envolve as crianças de origem judaica: “e um dia, quando estava próximo da Páscoa, ela falou que
os judeus tinham matado Jesus e todo mundo se encolheu, né? Eu não gostava dessa professora,
porque eu me sentia tão constrangida de ver meus colegas num ladinho, assim sabe?”
Entretanto, Aldo e João Tadeu dizem não lembrar que tais situações ocorressem na escola.
Mas recordam que na rua era comum fazerem um boneco, “Judas” e o queimarem na Páscoa. Assim
diz João Tadeu: “a gente fazia o boneco e malhava, batia e depois queimava o judeu”. Nesse meio
tempo, Aldo pediu para perguntarmos a João Tadeu qual era seu apelido na escola, João respondeu
“judeu”, em função da fama se ser sovina. Aldo justifica “é que eu me dava muito com os judeus e
tinha a cara muito sardenta também quando pequeno”. Essas são algumas evidências que permitem
entrever o quanto a convivência entre diferentes grupos étnicos não é algo simples de se entender.
A escola pública, pelos indícios apresentados, ainda precisaria avançar muito no respeito às
diversidades culturais.
Quando indagados se havia crianças pobres na escola, houve divergências, Petronilha, por
exemplo, diz que não, e aproveita para trazer as palavras de sua mãe, que sempre afirmava diante
da filha: “nós somos pobres, não somos miseráveis”. Essas lembranças evocaram a prática da Caixa
Escolar, a qual era custeada pelas famílias. A escola promovia atividades que arrecadava fundos
para a Caixa, como a exibição dos filmes aos sábados na parte final da manhã, em que cada
estudante, se pudesse, contribuía com uma pequena quantia. A Caixa, portanto, ajudava na compra
de materiais escolares, uniformes, até mesmo calçados para quem não os tinha. Petronilha explica
seu funcionamento, trazendo a situação de uma família que não tinha condições de comprar os
livros didáticos, “e aí na secretaria eles organizavam as coisas. E a criança nem ficava sabendo.
Perguntava: por que não tem o livro? E a criança dizia: ‘ah, a mãe ainda não deu para comprar’.
Daí a mãe ía ou a criança ía na Caixa Escolar”. Essa é uma situação que permite perceber o quanto
a comunidade escolar se organizava e desenvolvia estratégias para resolver os problemas dos mais
necessitados, sem contar com o suporte do Estado.
De modo geral, os entrevistados evocaram muitas memórias alegres dos tempos vividos no
Grupo Escolar Uruguai. No entanto, ressentimentos foram relatados por Neusa e Petronilha. Neusa
conta que havia sido escolhida para representar a turma em uma apresentação; para tanto, ensaiou
muito. Mas, às vésperas da cerimônia foi dispensada. “Então me dediquei, né? E daí na hora entrou
uma outra menina e eu não fui. E eu queria saber por quê. A minha família deduziu que era o
preconceito velado. Eu fiz tudo... e na hora assim, tu não ir? Ficou muito marcado para mim, com
essa professora, a professora Aline”.
Talvez entusiasmada pelo relato da amiga, Petronilha também narrou uma história triste:
No primeiro ano que era para desfilar, ela disse que eu não sabia marchar direito. Ah,
fiquei para morrer porque não ia desfilar. Aí, não sei se faltaram crianças e ela disse que
eu ia desfilar e que não podia não ir. Daí a minha mãe disse: "não, se tu não podias antes,
agora não pode e tu não vais. Qualquer coisa que aconteça eu vou lá no colégio".
Evidentemente, não aconteceu nada e ninguém perguntou por que eu não fui.
Chama a atenção que foram justamente essas duas mulheres negras, Petronilha e Neusa, as
narradoras de memórias ressentidas. Seria essa uma mera coincidência? Ou mais uma situação de
preconceito na escola, neste caso, preconceito etnicorracial?
As práticas desenvolvidas nos grupos escolares e trazidas pelos narradores constituíram-se
em um instrumento nacionalizador e formador de uma identidade brasileira que se pretendia
reforçar nessas instituições de ensino. É assim que os trabalhos manuais, os passeios, as atividades
de leitura e escrita, os pelotões de saúde, a Caixa Escolar, as aulas de Religião, a horta, entre outras
lembranças afloraram no momento em que conversamos sobre o Grupo Escolar em que estudaram.
Historiar uma instituição educativa é tarefa minuciosa. A História da Educação como campo
temático de investigação lança olhares distintos ao espaço escolar e se debruça sobre a cultura, a
partir de normas e práticas que levam em conta os agentes envolvidos no processo de educar
(JULIA, 2001).
Neste texto, versões do passado pelo olhar de cinco estudantes do Grupo Escolar Uruguai,
foram tecidas e tramadas com o objetivo de compor e problematizar o que foi escolhido para ser
lembrado. Esta pesquisa, entre outras possibilidades, fez uma escolha metodológica que priorizou
como documentos as narrativas de homens e mulheres longevos, valorizando suas percepções
acerca dos meandros das práticas escolares.
Nos encontros em que se partilharam conversas e escutas, eles e elas rememoraram um
tempo de outrora, quando brincavam pelas ruas, andavam de bicicleta e de carrinho de rolimã. Na
escola, tomavam a sopa, jogavam caçador, cuidavam da horta, entre tantas reminiscências.
Evocaram uma outra Porto Alegre dos anos 1940 e 1950, especialmente memórias da Colônia
Africana e de um casarão instalado na região.
Neste sentido, consideramos a força da memória coletiva, é Halbwachs (2004, p. 31), quem
diz “outros homens tiveram essas lembranças em comum comigo”. De certo modo, é como se eles
falassem todos juntos, pois encontramos mais recorrências do que dissonâncias.
A adoção dos grupos escolares significou um momento de ruptura, de recriação da educação
escolar no contexto do ensino primário. E esse período da história da escolarização leva a
compreender como um momento do processo da crescente racionalização e urbanização da
sociedade.
A representação dos grupos escolares fundamentou-se, discursivamente, pelo tripé “moral,
higiene e estética” (NUNES, 2007, p. 385) que legitimou a sustentação pedagógica desse modelo
de escola seriada, que pretendia colocar as escolas isoladas como símbolo do passado. Buscava-se
moldar as práticas, os ritos e os símbolos escolares, produzindo uma nova identidade para os
sujeitos que ocupavam os bancos da escola pública, vinculando-os com o “mundo secular público
e urbano” (FARIA FILHO, 2014).
As narrativas de memórias desta pesquisa evidenciam como reelaboram o tempo vivido
naquele espaço. De modo geral, as principais características dos grupos escolares, envolvendo
liturgias e práticas, compareceram nos relatos dos personagens dessa história. Estudaram em um
prédio adaptado para uma escola, em que havia horta, biblioteca, merenda, gabinetes médico e
dentário, várias professoras, uma diretora, rituais cívicos, exames de avaliação padronizados,
classes seriadas, práticas esportivas, uniformes, horários das aulas.
Algo que merece atenção é o fato de que os negros estavam efetivamente frequentando essa
escola, seja na condição de alunos ou professores. Não podemos esquecer que o Grupo Escolar
estava inserido na Colônia Africana. Entretanto, é Petronilha que chama a atenção para o fato de
muitos negros ingressarem tardiamente na escola e também destaca que havia um alto índice de
evasão entre eles, que partiam em busca de trabalho, antes de concluírem o Curso Primário. Este
nos parece ser um aspecto importante, para não pensarmos que havia uma equidade entre a
população negra e branca na escola pública. Também é importante salientar que estamos falando
de uma instituição de ensino primário. Seria importante saber em que medida a população da
Colônia Africana conseguiu dar continuidade em seus estudos em outros espaços escolares.
Lembranças sobre o tempo vivido na escola são carregadas de representações. Os cinco
estudantes do Grupo Escolar Uruguai, cada um a seu modo, idealizam uma escola “maravilhosa”,
em que há pouco espaço para os ressentimentos. A capacidade de todos nós fabularmos o passado
é própria da condição humana. Eles e elas, pessoas maduras, nos apresentaram memórias afetivas,
memórias de um tempo em que eram crianças e que tiveram sua iniciação escolar em uma
instituição afinada com um novo modelo de formação de um cidadão brasileiro.
Voltando à epígrafe que abre este texto, o poema de Cora Coralina nos remete às memórias
do ensino primário. Os espaços compartilhados do casarão da Rua Esperança, das salas de aula, do
pátio e dos corredores entremeavam-se às lições e aos nomes dos colegas, ao quadro-negro, à caneta
tinteiro, ao caderno borrado. Tudo isso emerge nas memórias dos antigos estudantes, inscrevendo
as experiências escolares da infância entre as marcas do passado e as horas do relógio.
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2016.
Petronilha Beatriz Silva e Neusa Pereira. Entrevista II. [out. 2016]. Entrevistadores: Dóris
Almeida e Lucas Grimaldi. Porto Alegre, 2016.
Isabel Rosa Gritti
Para realizar essa breve discussão utilizei a metodologia da História Oral. A entrevistada é
uma educadora primária rural. Iniciou a ser professora em 1953 e encerrou em 1982. Dos trinta
anos de atuação profissional, 25 deles foram em Escolas Rurais Isoladas, dominantemente em uma,
na Escola Rural Isolada Rio Branco, na comunidade de Rio Branco, pertencente, desde 1964, ao
município de Mariano Moro no estado do Rio Grande do Sul. Antes desta data pertencia ao
município mãe Erechim. Encerrou sua vida profissional na Escola Estadual Mariano Moro, na sede
do município, para onde se transferiu com o intuito de que os filhos pudessem continuar a frequentar
o colégio, além da quinta série. Quando de sua transferência para a escola que oferecia até a oitava
A professora Norma Rosso Gritti iniciou sua vida profissional na década de 1950. Conhecia
a vida cotidiana dos agricultores, suas vivências, seus êxitos e suas dificuldades, embora não fosse
propriamente filha de agricultores. Seu pai era um “empresário”, ousado para o período de 1940,
quando além de um moinho de cereais construiu uma pequena usina hidrelétrica, com
equipamentos importados da Alemanha, e que produzia energia elétrica para a área urbana dos
atuais municípios de Severiano de Almeida e Três Arroios. Iniciou sua vida profissional num
contexto de expansão da industrialização brasileira e, consequentemente, da escola.
A criação da Escola Rural Isolada Rio Branco, bem como o início da vida profissional de
Norma Rosso Gritti, se deu no primeiro período de expansão de ocupação da terra, e da
industrialização brasileira. Vivíamos a chamada "Era Vargas” de 1930 a 1954. O governo Vargas
caracteriza-se pelo estímulo e investimento de capital estatal no processo de industrialização do
Brasil. Concomitantemente, a escolarização expande-se.
A legislação que criou a escola primária rural não explicitava, em seu rol de objetivos, a
formação profissional dos agricultores. Apesar disso, a escola tem-se caracterizado como
uma instituição preparadora de mão-de-obra. É, desta forma, que a escola vai ganhar
relevância e expansão para a zona rural, a partir dos anos 1930, mas principalmente após
o término da II Guerra Mundial (GRIITI, 2008, p. 35).
Assim, a região Norte do Rio Grande do Sul conhecida como Alto Uruguai, tendo como
município mãe e município polo Erechim, expande o processo de escolarização em consonância
com o contexto nacional.
Figura 1 – Mapa do Rio Grande do Sul
Quando iniciou sua vida de professora Norma tinha a quinta série do ensino fundamental.
Nesse sentido não se diferenciava de suas colegas. Todas e todos (dominantemente eram mulheres)
eram professoras leigas e professores leigos. A formação desses profissionais não ia além da quinta
série primária. A professora nos diz: "Não teve preparação. Foi assumir a escola e trabalhar.” E
assumir a escola e trabalhar foi olhar para os alunos, sujeitos do processo e na relação com os demais
colegas e na leitura dos poucos livros e revistas que tinham acesso, e nas reuniões pedagógicas
semanais, em que discutiam as dificuldades, as metodologias, o como ensinar, ou seja, como fazer
com que o aluno aprendesse a ler, a escrever, a fazer cálculos. Assim, garantir o aprendizado da
leitura, escrita e dos cálculos constituía-se a preocupação central da professora. E ser professora:
Se mistura com o que se pensa, sente, com autoimagens, com possibilidades e limites, com
horizontes humanos possíveis como gente e como grupo social e cultural. Se mistura com
a história social destes seres humanos concretos que optam por esse ofício, por essa forma
de trabalho e sobrevivência. Se mistura com a história social e cultural, com as
possibilidades e limites de classe dos setores populares destinatários da escola pública e
popular (ARROYO, 2007, p. 199).
A educação rural foi vista como um instrumento capaz de formar, de modelar um cidadão
adaptado ao seu meio de origem, mas lapidado pelos conhecimentos científicos
endossados pelo meio urbano. Ou seja, a cidade é que apresentava as diretrizes para formar
o homem do campo, partindo daí os ensinamentos capazes de orientá-lo, civilizá-lo a bem
viver nas suas atividades, com conhecimentos de saúde, saneamento, alimentação
adequada, administração do tempo, técnicas agrícolas modernas amparadas na ciência,
entre outros. A escolarização deveria preparar e instrumentalizar o homem rural para
enfrentar as mudanças sociais e econômicas. Dessa forma, o sujeito do campo poderia
participar e compreender as ideias de progresso e modernidade que emergiam no país
(SOUZA; DUARTE, 2016, p. 198).
O uso da oralidade foi, desde os primórdios da humanidade, utilizado pelo homem para
expressar o legado de seus antepassados. Entretanto, a forma dessa transmissão tem variado, bem
como os instrumentos e os meios dessa transmissão. A oralidade possibilita que excluídos da
história oficial tenham voz. Através do depoimento ou da história de vida é possível
compreendermos melhor determinado contexto. Neste caso, como se operacionalizava o “ensinar”
em uma Escola Primária Rural, num período de incipiente Política Pública de formação de
professores.
Elemento significativo de ressaltar foi a forma que encontraram para “fazerem-se
professoras/professores. Mostrou-nos Norma como que se tornaram professoras e professores no
fazer cotidiano do ensinar: na solidariedade desenvolvida pela autonomia que tinham sobre o
processo auto-formativo, formativo, decorrente da inexistência da presença do poder público neste
processo.
ARROIO, Miguel. Ofício de mestre: imagens e auto-imagens. 10. ed. Petrópolis/RJ: Vozes, 2007.
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GRITTI, Silvana Maria. Técnico em Agropecuária: formação para qual agricultura? Pelotas:
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TARDIF, Maurice. Saberes docentes e formação profissional. 9. ed. Petrópolis, RS: Vozes, 2008.
José Edimar de Souza*
* Doutor em Educação com estágio pós-doutoral na Unisinos. Professor e pesquisador do Programa de Pós-
Graduação em Educação da Universidade de Caxias do Sul.
O presente estudo investiga, através das memórias de professores e alunos do meio rural,
práticas que se associam ao modo de ensinar e aprender em escolas isoladas, ou como também são
conhecidas, nas escolas isoladas.
As memórias evocadas aproximaram os sujeitos a partir das relações de contexto que se
estabeleceram com as instituições escolares, nas quais exerceram a docência e/ou aprenderam a ler,
escrever, contar e os valores morais estabelecidos pelo modo de convivência em comunidade.
Como venho argumentando em outros estudos, Souza (2012), ao remexer nas memórias
desses professores, as histórias desses lugares se corporificaram, recriaram cenários e telas como se
o tempo parasse e fosse possível viver de novo o acontecimento vivido. Essa pesquisa reúne
memórias de sujeitos que se constituíram no espaço rural, em outros tempos e no tempo presente,
histórias que traduzem um conhecimento quanto à cultura local, quanto ao ser professor,
principalmente em classes multisseriadas.
As escolas isoladas ainda existem em algumas localidades, sobretudo nos espaços urbanos,
mas, o “interior” parece ter se configurado como lugar privilegiado dessa prática. O argumento da
adversidade às condições físicas espaciais e o reduzido número de alunos das comunidades rurais
colaboram para a continuidade desse tipo de escola.
A função da escola rural confunde-se com o conceito que a acompanha, pois as escolas
rurais, de mestre único, multisseriadas, fazem parte da história da educação brasileira.
Enquanto que as escolas rurais criadas para preparar o homem produtivo que, além dos
conhecimentos básicos dominasse as técnicas de plantio e fosse garantia de melhor
produção, foi sistematizada pelo Decreto-lei 9613, de 20 de agosto de 1946, como Lei
Orgânica do Ensino Agrícola. (MIGUEL, 2007, p. 83).
A questão do que a escola rural poderia ou deveria ensinar permaneceu limitada pelas
condições do meio, incluindo-se aí a questão da formação do professor. Como enfatiza Miguel
(2007), diferenciavam-se as práticas das Escolas Rurais, agregadas ao Ensino Agrícola, das Escolas
Multisseriadas, como primórdios da educação no país.
Em Lomba Grande, os alunos rememoraram que ao chegar à escola aguardavam um tempo
até que a professora chamava os alunos ou usava a sineta para anunciar que já era “hora da aula”.
Nesse sentido, geralmente, utilizava-se o período da manhã para as aulas nas Escolas Isoladas.
Sobre isso, Lucilda (2014) recorda, “dava a sineta. A gente entrava e começa o tema. Ai tinha o
recreio. A gente brincava e aí nos tudo rezava e vinha para casa”. No espaço da sala de aula, cada
um tinha o seu lugar certo, não costumavam pedir ou mudar de lugar.
O caminho até a escola constitui-se para este grupo de sujeitos em espaço não formal para
aquisição de saberes, momento em que se aprendia, sobretudo, no contato entre as diferentes
manifestações indetitárias trazidas da convivência do seio familiar de cada aluno, bem como,
instituía-se momentos em que fora possível reelaborar conceitos, sobre valores, tradições, costumes.
O reconhecimento de pertencer a um determinado grupo e ao mesmo tempo ter a
possibilidade de circular em outro um tanto quanto distinto, evidenciou-se também nas situações
formais de escolarização... no tempo da aula, no espaço escolar. As aulas seguiam um ritual, que,
geralmente, incluía oração, as lições, temas e realização de atividades, como se observa no quadro
01 abaixo. A proposta para um dia de aula como, por exemplo,
A primeira coisa que eu fazia - Posso ser franca! Dava bom dia pros alunos. Rezava um
Pai Nosso e uma Ave-maria – não sei se o senhor é católico –. Pois é, rezava um Pai Nosso
e uma Ave-Maria e aí começava a aula. Cada um sentava na sua classe e eu dava a lição.
Tinha meia hora de recreio. Dava duas horas de aula, porque era quatro horas de aula. Aí
dava o recreio e daí continuava depois! (Maria Lorena, 2014).
Rezar era uma prática utilizada no início e término das aulas, bem como antes da realização
do lanche. As orações escolhidas pelos professores e as lembradas pelos alunos consistia no “Pai
Nosso”, na “Ave-Maria” e no “Santo Anjo do Senhor”. Alguns alunos, como Lúcia (2014), se
recordam de testes de leituras que também traziam os motivos religiosos como temática para
memorização e recitação.
Lúcia (2014), Maria Lorena (2014) e Maria do Carmo (2013) referem que essa prática foi
aprendida na escola, na condição de alunas de Escolas Isoladas. E também no Colégio Auxiliadora,
de Canoas, no caso de Maria do Carmo. Lúcia (2014) reafirma a professora Aracy Paradeda
Schmitt, na Escola Isolada de São João do Deserto, (uma escola do interior de Lomba Grande)
[...] chegava e dizia: - vai começar a aula. Aí a criançada toda entrava. E entrava na sala
de aula. Então, a professora era muito religiosa. A primeira coisa que fazia ela. Pedia ela,
era pra nós se levantar e fazer uma oração pro nosso pai do céu. Acho eu que não fazem
mais isso. Isso que está faltando [ela se mostra inconformada com a falta dessa prática nas
escolas atuais]. (Lucia, 2014).
Para Fischer (2005), muito mais do que transmitir os tradicionais saberes, a professora
primária era um “ser quase divino”, que assumia o compromisso e a missão da transcendência como
propagadora de verdades relacionadas à moral e aos bons costumes, identificadas, muitas vezes,
como o evangelho. O caráter e a moral, que estavam associados a estas professoras, imprimiam
maior valor e responsabilidade pelo ensinar e contribuir para a providência divina.
O tempo do planejamento das aulas e atividades incluíam oração e chamada. Maria Lorena
(2014) explica que preparavam a aula a partir dos livros que haviam estudado, dos livros que havia
na escola, que eram poucos e principalmente pela experiência do seu tempo de aluna. “Eu chegava
em casa e já preparava um pouco, porque eram quatro classes e já preparava as matérias, ou de noite
eu preparava pras quatro classes [...]” (Maria Lorena, 2014).
Ainda sobre o planejamento para as aulas, a professora Lúcia (2014) recorda que construía
seu plano com atividades muito simples, para os alunos do primeiro ano, a partir dos seus livros da
época de aluna, e mostrava para professora Maria do Carmo que orientava se alguma atividade não
estava adequada.
Ela, a Maria do Carmo, com ela que eu aprendi. E depois com os cursos de
aperfeiçoamento a gente aprendeu muito [...] Olha, eu acho que eu mostrava para Maria
do Carmo. Ela era formada. Ela se formou em Canoas. Ela então, dizia, isso tu pode botar.
E aí eu ia fazendo. E depois, com o tempo veio os livros. E a gente fez curso de
aperfeiçoamento. Aí deu para fazer os planos [...] Porque o meu estudo não era muito.
(Lúcia, 2014).
As atividades da aula incluíam a chamada, que era feita pela professora. João (2013) lembra
que a professora Mariquinha já conhecia todo mundo e costumava não fazer a chamada. Clari
(2013) recorda que a professora Maria Hilda sentava e abria um livro grande – livro de frequência,
“[...] e chamava um por um. Quem tava era o presente e senão era o ausente”. O dia de aula seguia
com a realização das lições e atividades. Após a oração, a professora passava lições no quadro-
negro para os três primeiros anos e entregava as lições marcadas nos livros para os demais alunos.
O modo de organizar o espaço escolar da escola isolada correspondia, em alguns casos, a
posicionar os alunos em fileiras, estruturadas por níveis de adiantamento; os alunos do primeiro
ano, do segundo, sucessivamente, até os poucos alunos que realizavam o quinto ano. Maria do
Carmo enfatiza que fazia a divisão entre os que tinham dificuldades e os que não tinham, bem como
o tipo de atividade que era preparada para cada grupo de alunos, considerando que os maiores
costumavam copiar e realizar as atividades que eram separadas dos livros didáticos. Esta prática
parece ter sido comum no contexto das duas instituições estudadas, como recorda Tomaz (2014):
[...] Escrevia coisa no quadro. Como tinha turma diferente ela dividia o quadro. Ah,
separava o quadro por matérias específicas. Isso é para o primeiro, isso para o segundo
ano. Tinha que copiar o que estava no quadro. Depois [...] me lembro muito bem Ditado;
isso era uma coisa que sempre tinha muito. Tabuada, tinha que saber de cor. A do mais,
do menos e a de vezes. [pausa] Me lembro muito bem do recreio. Chegava na aula com a
expectativa do recreio e depois do recreio ficava na expectativa de ir embora [risos].
(Tomaz, 2014).
Escrever no quadro e pedir para os alunos realizarem as atividades propostas, usar o espaço
do quadro para um grupo de alunos, divididos por série, se caracterizam como estratégias dos
professores. Quando havia um quadro-negro apenas, as atividades poderiam ser pensadas para o 1º
e 2º anos e outra para o 3º e 4º anos, enquanto a professora atendia individualmente os alunos do
primeiro ano que apresentavam muita dificuldade para se alfabetizarem. Quando havia alunos do
5º ano, geralmente, utilizava-se de livros para realizarem as tarefas escolares.
As atividades escolares, nas Escolas Isoladas, compreendem, predominantemente, o uso do
caderno, para copiar; escrever, para realizar os temas; montar frases e sublinhar. Os cadernos podem
ser um dos produtos culturais mais significativos das práticas que permitiram a transmissão de
conhecimentos e a imposição de normas, produzidas pelos diferentes sujeitos num determinado
espaço e tempo.
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Gisele Belusso
Deise da Silva Santos
* UCS, doutoranda em Educação, apoio financeiro CAPES. Membro do Grupo de Pesquisa História da
Educação, Imigração e Memória (GRUPHEIM). Orientadora: Profa. Dra. Terciane Ângela Luchese.
** UCS, mestranda em Educação, apoio financeiro CAPES. Membro do Grupo de Pesquisa História da
Educação, Imigração e Memória (GRUPHEIM). Orientador: Prof. Dr. José Edimar de Souza.
representações de uma dada sociedade e também como essas representações são
transmitidas, entendidas, manifestadas e perpetuadas.
Ciente de tais aspectos, Chartier, (1996, p. 70) corrobora acerca do compromisso
do historiador que deve colocar no centro da análise quando se trata de práticas “mediante las
quales los hombres y las mujeres de una época se aproprian, a su manera, de los códigos y dos
lugares que los son impostos, o bien subvertem las reglas comunes para conformar prácticas
inéditas.” 1
Diante de tal compromisso, o corpus empírico é constituído da narrativa de História
Oral, legislações e documentos do acervo pessoal da professora. Os procedimentos
metodológicos são a análise documental e a História Oral. A entrevistada, professora Rita
Celina Lucena Borges, é natural de Porto Alegre, nascida em 1933, atuou como professora
de canto orfeônico na década de 50 do século XX, em duas instituições públicas – a Escola
Coronel Afonso Emilio Massoti e o Grupo Escolar Horácio Maisonette, também em Porto
Alegre, capital do Estado do Rio Grande do Sul. Seu acesso profissional foi por meio de
concurso público.
Enquanto trajetória de formação, a professora Rita iniciou seus estudos na música, a
partir dos nove anos de idade, frequentando aulas particulares de piano, posteriormente
seguindo com os estudos no Instituto de Belas Artes, em Porto Alegre, com especial enfoque
no instrumento. Mais tarde, realizou o curso de capacitação dos docentes do canto
orfeônico, que a tornou apta para realizar o concurso público no Magistério Estadual,
assumindo então a vaga na referente disciplina.
A entrevista foi realizada e transcrita pela pesquisadora Deise Santos, que deslocou-se
até a residência da professora Rita, na cidade de São Francisco de Paula, local em que
ocorreram dois encontros, com um total de uma hora e trinta minutos de gravação. A
utilização da entrevista foi autorizada por meio do Termo de Consentimento Livre e
Esclarecido, com a opção de ser identificada. A transcrição foi revisada pela entrevistada,
a qual concordou com a divulgação da versão escrita, sem alterações.
Durante os encontros, foi possível criar um vínculo com a professora Rita, a qual
dedicou-se a procurar, em seu acervo pessoal, outros materiais didáticos, disponibilizando
o “Plano de Curso” para as aulas de música e um o livro didático “Canto Orfeônico -
Volume II”, os quais constituem fontes documentais para a análise, ora proposta, na
triangulação de diferentes fontes com a História Oral.
A História Oral, enquanto método pode contribuir por meio das entrevistas com a
narrativa de indícios das práticas escolares e das tensões entre normas e práticas. E, ainda,
conforme Jourtard (2000, p. 34):
Através do oral que se pode apreender com mais clareza as verdadeiras razões de uma
decisão; que se descobre o valor de malhas tão eficientes quanto às estruturas oficialmente
1
Mediante das quais os homens e mulheres de uma época se apropriam, a sua maneira, dos códigos e dos lugares
que lhe são impostos, ou bem subvertem as regras comuns para formar práticas inéditas. (Tradução das autoras).
reconhecidas e visíveis; que se penetra no mundo do imaginário e do simbólico, que é
tanto motor e criador da história quanto o universo racional.
Compreende-se, dessa forma, que com a renovação cultural que atingiu a história, a
memória passa a ser uma possibilidade de indício, uma fonte em potencial. Sem desconsiderar que
se faz imprescindível a postura criteriosa do historiador, que permite o distanciamento necessário,
e assim procede uma leitura crítica e reflexiva das memórias. Prins caracteriza, de maneira inicial e
singela, a História Oral como “evidência obtida de uma pessoa viva, em oposição a fontes
inanimadas” (1992, p. 174), partindo de um pressuposto que já dá traços de distinção entre a fonte
escrita e a oral. Ainda, conforme Ferreira e Amado (1998), a História Oral é metodologia porque
não é só técnica, e não é disciplina, pois necessita do aporte teórico.
Assim, o pesquisador que se propõe a trabalhar com a História Oral tem como parceiras
inevitáveis, a escuta sensível e o respeito ao outro e à sua narrativa, tendo em vista que o
entrevistado expõe sua vida, suas vivências e experiências, por mais breves que sejam, quando
aceita ser entrevistado. É um trabalho que pressupõe a imersão, o conhecimento do contexto que
está inserido, além de sensibilidade na condução da escuta, análise e construção dos dados
(GRAZZIOTIN; ALMEIDA, 2012). Diante de tudo isso, a seguir passa-se à análise da narrativa de
História Oral, no intuito de aproximar-se das práticas de canto orfeônico.
A narrativa de História Oral da professora Rita, junto ao plano curricular elaborado por ela,
na época, indica práticas alinhadas à proposta do projeto do Canto Orfeônico, que objetivavam o
ensino da música, sendo que este deveria ser realizado através de práticas de canto coral que
servissem ao exercício do, e para propaganda, do civismo. Lembrando que Villa-Lobos (1934), o
idealizador do projeto a nível nacional, determinava três finalidades para o Canto Orfeônico: a
disciplina, o civismo e a educação artística, esses associados ao potencial de formação intelectual e
moral. Nesse sentido, ao atuar “cada professor é, portanto, conduzido a negociar de maneira
parcialmente dita, parcialmente sabida; e, sua maneira de fazer, a uma margem de jogo que autoriza
uma diversidade regulada e limitada de práticas possíveis.” (CHARTIER, 2000, p.165).
O Canto Orfeônico no período de atuação da professora Rita, foi regido em âmbito nacional
pelo o Decreto-Lei nº 8.529, de 2 de janeiro de 1946, que estabelecia a primeira Lei Orgânica do
Ensino Primário, também conhecida como Reforma Capanema, ordenando o Ensino Primário,
Secundário, Industrial, Comercial, Agrícola e Normal (BRASIL, 1946). De acordo com Ghiraldelli
Júnior (2009, p. 78), esse “ordenamento legal constituiu-se em uma série de decretos-leis que
começaram a ser emitidos durante”, e, também, após o término do período chamado de “Estado
novo”. Esse momento político do nosso país compreendeu os anos entre 1937 e 1945. No
dispositivo legal, os artigos 7º e 8º garantem a presença do Canto Orfeônico, como disciplina nas
duas estruturas do ensino do Curso Elementar e o Curso Complementar.
No entanto, a disciplina foi implantada, anteriormente, na década de 1930, quando o Canto
Orfeônico foi instituído como disciplina obrigatória, através do Decreto nº 19.890, de 18 de abril
de 1931, outorgado pelo presidente Getúlio Vargas, que dispunha sobre a organização do
Secundário no Distrito Federal, ainda no Rio de Janeiro (LOUREIRO, 2003). Souza (2008, p. 311)
argumenta que esse decreto seria, na realidade, uma “reforma educacional empreendida por
Francisco Campos” que instituiu “uma estrutura orgânica ao ensino secundário brasileiro”. No
documento, é estipulado que o Ensino Secundário fosse ofertado no Colégio Pedro II e em
estabelecimentos sob regime de inspeção oficial. A música, através do Canto Orfeônico, é incluída
como disciplina no Curso Fundamental do Secundário (que abrangia ainda o Complementar) sendo
ofertada nas três primeiras séries deste (BRASIL, 1931).
Em 1934, através do Decreto nº 24.794, entre outras providências, estende a abrangência
do Decreto nº 19.890 a todo o território nacional e amplia a obrigatoriedade a todos
os “estabelecimentos de ensino dependentes do Ministério da Educação e Saúde
Pública” 2 (BRASIL, 1934). O texto do dispositivo legal afirma que a disciplina era um “meio
de renovação e de formação moral e intelectual”, além de ser uma das formas mais
competentes de trabalhar o patriotismo no povo (BRASIL, 1934).
A professora Rita, ao narrar sobre as suas práticas, na década de 50 do século XX,
argumenta que versavam sobre o ensino dos hinos nacionais, associadas ao uso de brinquedos e
canções folclóricas brasileiras. Para tanto, utilizava-se dos considerados grandes compositores da
história da música ocidental erudita e também do cenário brasileiro. Monteiro e Souza (2003, p.124)
sinalizam o desejo de Villa-Lobos em “divulgar a cultura musical erudita às camadas populares que
até então não tinham tido essa oportunidade”. Dessa forma, o caráter erudito que algumas peças
possuíam, não era ao acaso, pois o compositor via na disciplina a possibilidade de associar o
objetivo estético ao cívico.
Ao fazer referência aos hinos, a docente afirma que esse conteúdo demandava muito
cuidado. Ela o representa como importante e ainda destaca que os hinos deveriam ser cantados
corretamente: “O Hino Nacional, eu comecei a ensaiar desde o terceiro ano; todos os hinos.
Primeiro aprenderam o Hino Nacional, depois o da Independência, depois o da Bandeira e por
último o da Proclamação da República, todos eles aprenderam, todos sabiam cantar os hinos.”
(BORGES, 2017). O que era consoante ao “Plano de curso”, elaborado pela professora, para atuar
no Grupo Escolar Professor Horácio Maiosonette, nas quartas e quintas séries. Já no primeiro
objetivo específico aponta que é necessário “reconhecer os hinos pátrios, cantá-los corretamente
em atitude de respeito” (Plano de Curso). Os hinos a serem ensinados citados no programa, ainda
2
“Nos estabelecimentos de ensino superior, comercial e outros, que serão previstos em regulamento, o ensino
do Canto Orpheonico será facultativo”. (BRASIL, 1934).
do plano de curso, deveriam contemplar o Hino Nacional Brasileiro, Hino da Independência, Hino
à Bandeira e Hino da Proclamação da República (letra, música). Nota-se que o Hino do Rio Grande
do Sul, não foi citado pela professora, sinalizando talvez um esquecimento ou ainda uma frequência
menor de ensaios desse hino.
O clima de nacionalismo dominante no país, a partir da Revolução de 30, fez com que o
ensino da música, em virtude de seu potencial formador, dentro de um processo de
controle e persuasão social, crescesse em importância nas escolas, passando a ser
considerado um dos principais veículos de exaltação da nacionalidade, o que veio
determinar sua difusão por todo o país. (LOUREIRO, 2003, p. 55).
A minha supervisora de música, [...] Dona Maria [...] ela ia de vez em quando [...], e ela
ficou braba comigo que eu ficava dando aula de vez em quando para a primeira e segunda
série e não pode... E no início eu estava dando; eu tinha folga só na hora do recreio. A
professora de música tem que ter um período de folga, ela disse: ter três períodos de aula,
tá, recreio e um período de folga. Então, aí eu tinha que obedecer. Mas de vez em quando
eu ia dar né, porque eu e as professoras sentiram falta das aulas. (BORGES, 2017).
Embora a professora recorde que lecionava somente a partir do terceiro ano, o decreto nº
8020 de 1939, que substituiu o “programa mínimo do ensino primário no Rio Grande do Sul”,
previa o ensino de música para os cinco anos do Primário, o que indica que o prescrito não era
efetivado na instituição escolar em que a professora atuava; a não ser quando subvertia a regra e
utilizava o tempo de sua aula livre para ministrar aulas de canto orfeônico para a primeira e segunda
série. Assim, Anne Marie Chartier (2000, p.165) ao argumentar sobre a atuação do professor, afirma
que “com efeito, o espaço de ação que cada docente se autoriza é definido exatamente pelos gestos
e palavras que pode (que é suscetível de, capaz de, se acredita autorizado a) produzir no plano de
sua função.”
Ainda é possível perceber em sua narrativa a importância atribuída ao ensino da Teoria
Musical, como sendo necessário “dar um pouco de teoria também para eles [alunos]. Não pode ser
só cantar, cantar cantar...não! Tem que ensinar o que é o pentagrama” (BORGES, 2017), expondo
também, uma representação que remete à apreciação de seu trabalho. Em relação aos objetos
escolares, não havia nenhum material específico disponibilizado aos alunos, cenário em
que a professora contava como companheiro o seu diapasão3, este seu fiel
escudeiro no desenvolvimento das atividades de grupos de coral. Diante dessas
condições, a docente narra apropriações que geram formas criativas de ensinar.
Eu fiz até uma vez um jogo com eles... com as notas musicais. Eles adoraram né? Foi no
pátio. Uns [alunos] eram as notinhas pretas, outros eram as notinhas brancas e eu agora
vou fazer uma música e tal... Eu via as professoras rindo de mim “O que vocês estão rindo
de mim, hein? Eu vi que vocês estavam rindo de mim?”-“ Não porque tu te anima tanto
que dança com as crianças. (BORGES, 2017).
O narrado pela professora da experiência vivida traz aspectos sobre os espaços, a prática
vivida, a participação da própria docente durante a prática e o percebido pelas colegas de trabalho
que observavam a prática. O uso do pátio para realizar o jogo demonstra que não só a sala de aula
era o cenário para as aulas de Canto Orfeônico. Outro aspecto interessante é utilizar a expressão
corporal em que os alunos eram as notas musicais. “Uns eram as notinhas pretas, outros eram as
notinhas brancas” (BORGES, 2017) que se moviam conduzidas pelo entoar das canções,
divertindo-se junto com a professora. Este envolvimento parece ter causado estranheza nas demais
professoras da instituição que “riam” da professora Rita, o que nos faz pensar que não era algo
comum, ou esperado pelas demais professoras. Ainda é possível perceber o uso do pátio como
espaço de suas práticas e, também, a ausência de espaço específico destinado exclusivamente ao
ensino de música.
Eu ensaiava às vezes. Às vezes eu ensaiava fora de aula [...]. Eu falei com a diretora pra
ensaiar numa sala de aula que estivesse vazia [...]. Então, a diretora disponibilizou uma
sala que tava vazia pra eu ensaiar lá com eles quando tinha o coro. E às vezes, dependendo,
3
Instrumento metálico em forma de “U” (ou forquilha), utilizado por músicos, especialmente os que
trabalham com canto. Ao vibrar, o objeto emite a nota “lá”, utilizado como referência para alcançar a afinação
correta.
eu ensaiava até na rua, até no pátio, dependendo da disponibilidade, pra ver também como
é que ficava ao ar livre as vozes, como é que ficavam né, se dava certo, se não dava. Mas
quase tudo era cantado com duas vozes só. E quando era uma voz, ia terceira, quarta e
quinta; aí ensaiava tudo junto. (BORGES, 2017).
E ainda que não tivesse um espaço próprio para suas práticas, o cantar é especialmente
valorizado na sua narrativa, “nem que não participe do coral, nem que cante no banheiro, na
cozinha, que cante em qualquer lugar” (BORGES, 2017), exaltando a importância da música no
cotidiano, indiferente do lugar em que se realizasse a prática. Porém, afirma que ao professor de
Música, caberia além da disciplina e da postura cívica, também estimular uma apreciação musical
mais crítica e consciente por parte dos alunos que “podem até gostar de cantar, porque, a mãe ensina
ou o pai ensina [...]. Mas eles não têm aquela, aquele desejo de ouvir música, de saber, entender a
música [...]. O professor de música tem esse trabalho” (BORGES, 2017).
Para tanto, traz referência ao ensaio de peças teatrais, além de apontar que no ensino
orfeônico também eram preparadas apresentações para datas comemorativas e ocasiões festivas,
Quando havia uma apresentação, dependendo pra quem era apresentado, – se era para os
pais daí eu botava ele (um aluno que cantava de maneira inadequada, segunda a
professora). Mas, pedia pra ele cantar baixinho. Mas, quando era pra alguma autoridade,
por exemplo, eu escolhia os melhores que eu tinha ensaiado; ou ensaiava ainda, se dava
tempo de ensaiar. Os melhores eram os alunos da quarta e quinta séries pra fazer o coral,
o coro fônico. Que não era coral e preparava pra não passar vergonha também. (BORGES,
2017, grifo nosso).
Ao observar que o momento das apresentações era preparado com antecedência, pode-se
afirmar que também divergia conforme o público destinado. Assim, compreendemos ao apontar
que quando a apresentação era para os pais, independente do cantar ou não de maneira considerada
adequada, todos participavam; já quando “alguma autoridade” estava presente, o trabalho docente
ficava sob perspectiva de avaliação e, assim, os melhores é que deveriam cantar para a professora
“não passar vergonha”. Tal aspecto aponta para a valorização de alguns alunos e a exclusão de
outros em momentos solenes.
Com relação aos materiais didáticos utilizados pela professora, observou-se que não havia
materiais didáticos específicos para os alunos. No entanto, para os professores, houve a circulação
de livros, como citado anteriormente. Maura Penna considera, nesse período, que aos alunos “não
cabe pensar a música, mas praticar uma música pré-pensada, pré-concebida, pré-selecionada para
determinados fins” (PENNA, 2013, p. 6). Com essa espécie de pré-seleção subentendida, a criação
de materiais didáticos para a disciplina se torna uma estratégia importante, para que essa “música
oficial” possa chegar até a sala de aula, salientando que, após a criação da SEMA, houve a Comissão
Consultiva, responsável por selecionar hinos e coleções (MONTEIRO; SOUZA, 2003, p. 123).
Neste sentido, estes manuais podem ser vistos como objetos culturais veiculadores de dois
tipos de saberes: conhecimentos musicais e saberes pedagógicos. A forma padronizada
como os autores apresentavam o programa oficial e as finalidades do Canto Orfeônico
demonstram a necessidade de validação/legitimação da disciplina do meio educacional.
Era preciso convencer professores e alunos acerca das virtudes e finalidades formativas da
disciplina. (MONTEIRO; SOUZA, 2003, p. 125).
4
Para maior conhecimento dos livros utilizados é indicado o artigo de Ana Nicolaça Monteiro e Rosa de
Fátima de Souza (SOUZA, 2016) “Educação musical e nacionalismo: a história do canto orfeônico no ensino
secundário brasileiro (1930-1960)”, que trabalha e aponta alguns dos materiais didáticos produzidos como
orientação para a disciplina do Canto Orfeônico.
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GHIRALDELLI JÚNIOR, Paulo. História da Educação Brasileira. 4 ed. São Paulo: Cortez,
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<https://repositorio.ufsc.br/handle/123456789/122105> Acesso em: 07 mai. 2017.
Karla Simone Willemann Schütz
Antes de nos voltarmos especificamente para um pouco das trajetórias destes três
entrevistados, cabe fazer uma pequena reflexão em relação à importância dos estudos voltados aos
percursos individuais de professores para a historiografia voltada à educação. O cotidiano docente,1
trazido à tona através de seus relatos pode revelar novas práticas que, muitas vezes, não condizem
com as condutas mais comuns; essa é a opinião de Dirceu Pacheco (2008, p. 253-254).
Essas histórias devem ser proclamadas, pois urge dizer numa construção metafórica, que,
para além da aparente homogeneidade do oceano, que trata as escolas e seus sujeitos no
singular buscando reduzi-los a uma pretensa igualdade, mergulhando fundo, indo muito
abaixo da superfície, encontramos um mundo infinitamente diverso, rico em experiências
e vivências que ultrapassam os currículos oficiais e planejamentos prévios e que não pode
ser submetido a mecanismos de controle rígidos urdidos, como antecedência, fora do
espaço, tempo das escolas e de suas salas de aula.
Nada. Somente o giz que a gente comprava. Não tínhamos nada. Absolutamente nada.
Nem um quadro. Mas o que mais tarde apareceu foi uma bandeira nacional que se usava,
assim, dia de feriado só. E mapas do Brasil e do estado nessas escolas [...] particulares,
não. Depois nas escolas públicas sim, daí tínhamos tudo ali, tínhamos tudo. E mesmo essas
escolas particulares funcionavam sem programa. Até que, um dia, eu tinha essa escola
particular, eu fui chamado para Florianópolis, fui obrigado a registrar. Registrar a escola
1 Não se restringindo aos relatos orais, conforme Cunha: “Numerosos estudos têm sido feitos especialmente
sobre vidas e escritas de professoras que permitiram conhecer a partir do privado, documentos de vidas
individuais que podem ligar-se à história, emergindo em narrativas sobre aspectos pouco explorados como
o cotidiano de professoras, seus desejos, dificuldades, vistos através de pequenas referências e objetos
ligados ao seu ambiente de trabalho: cadernos, boletins, relatórios escolares e, [...] diários íntimos.” (2008, p.
122).
particular e dando também a matéria, o que eu ensinava; o português, história, geografia,
o que eu ensinava.
Nos últimos dois anos, eu já em São Maurício, introduzi um uniforme, assim para 7 de
setembro, 15 de novembro e no exame final, para vir. Ou quando vinha alguma autoridade
lá, o inspetor. Depois já tinha um Inspetor Estadual, depois Municipal, que de vez em
quando já vinha examinar a escola. Então, a gente era avisado e os alunos vinham bem
prontinhos.
2 .Essa expressão foi usada por Turíbio Schmidt para caracterizar sua formação anterior à conclusão
do Curso de Normal em Florianópolis: “Daí eu me formei normalista, mas trabalhei muito tempo
como professor fundamentalista, somente com esses conhecimentos”.
3
O que não fica muito claro nas entrevistas é o porquê da escolha de Blumenau em detrimento de Florianópolis,
que nessa época já contava com o ensino secundário oferecido no Colégio Catarinense, uma instituição também
ligada à Igreja Católica.
influência, conforme comprovam os relatos, se dava até mesmo no processo de formação
profissional dos professores que nelas atuavam.
Cabe destacar ainda outro tema recorrente nas falas dos entrevistados, a questão da
disciplina dentro e fora do espaço escolar. A disciplina era exigida pelos pais na conduta do
professor para com os alunos, conforme pode ser percebido nesta fala de Schmidt:
Ah, na disciplina? Era rigorosa. Os pais queriam isso. Os alunos eram muito arteiros, eles
brigavam na estrada. E se os alunos brigavam na estrada, assim no caminho pra casa, e se
o professor não desse educação e não repreendesse, não prestava. O senhor decerto se
lembra disso? [...] Tive essa fama de professor muito rigoroso.
O entrevistado parece tentar transmitir uma imagem de si que esteja de acordo com que era
exigido na época e dessa forma justificar as suas atitudes. Nesse sentido, ele tenta definir qual o seu
lugar nessa comunidade e de que forma ele se relacionava com os outros. Pois ao contar nossa
história de vida, segundo Pollak (1989, p. 13), “em geral tentamos estabelecer certa coerência por
meio de laços lógicos entre acontecimentos chaves (que aparecem então de uma forma cada vez
mais solidificada e estereotipada), e de uma continuidade, resultante da ordenação cronológica”. É
esse trabalho que realiza a memória de Schmidt, tomando como baliza a questão da disciplina,
prática comum nessa comunidade, ele se coloca como “rigoroso”.
Por fim, cabe destacar as datas festivas de final de ano, nas quais, conforme os entrevistados,
professores, alunos e famílias se encontravam e realizavam uma confraternização, selando laços de
confiança. Turíbio descreve essas festas de Natal em tom nostálgico: “Aquilo até hoje me deixa
saudades, essas coisas não se faz mais. É tão bonito.” Festa de Natal com distribuição de pequenos
presentes que também é relembrada por José Boeing: “Já era férias. Faziam uma... o professor fez
uma festa de Natal. Distribuía... Mas ele não olhava... quer dizer, ele distribuía para todo mundo.”.
Essas práticas coletivas, pode-se notar, permaneceram na memória dos entrevistados, pois
eram significativas para o grupo, consolidando a união entre comunidade, família e escola. São
fatos de um cotidiano em grupo que ficaram guardados na lembrança e até mesmo eram motivo de
saudade. O espaço da escola, o ofício de professor e a vida na pequena comunidade se entrecruzam
a todo o momento. O que é vivido em conjunto, nesse sentido, é mais simples de ser lembrado,
segundo Halbwachs (2011, p. 67): “os fatos e ideias que mais facilmente recordamos são do terreno
do comum, pelo menos para um ou alguns ambientes”. Foi se apoiando na memória vivida em
grupo que estes senhores puderam relembrar. Desse modo, podemos constatar que a memória é
condicionada aos círculos sociais com os quais o sujeito mantém contato. Embora já idosos e,
portanto, afastados do grupo social o qual rememoram em suas falas, as perguntas de Willeman
parecem despertar a memória a respeito da vivência como professores, remetendo a lembranças
vividas em conjunto; questões também fundamentais para a manutenção de uma identidade étnica
estrangeira em terras brasileiras.
A primeira das considerações a ser feita se refere justamente à possibilidade de ter acesso
às fontes que foram produzidas por Simão Willemann. Sem esta acessibilidade, obviamente, tal
trabalho não poderia ser confeccionado. Ao longo deste intencionou-se mostrar o quanto é
importante para a História Oral enquanto técnica, metodologia ou fonte, ter seus frutos
disponibilizados a outros pesquisadores, não os limitando a sua pesquisa original.
Muitas novas pesquisas podem ser viabilizadas e outros caminhos podem ser traçados.
Assim, iniciativas voltadas para a criação de acervos que abarquem estas produções são
importantes, pois fortalecem a História Oral em todos os seus âmbitos. Foi por meio deste prisma
que se despertou o olhar em relação à utilidade, e até mesmo ao valor destas fontes que foram há
mais de trinta anos atrás produzidas por Willemann. Os caminhos aqui traçados não foram os
mesmos que pretendia Simão esboçar. No entanto, tal escolha não pretendeu mostrar que o
historiador estaria errado na sua opção, mas sim, revelar as inúmeras possibilidades de olhares que
ainda poderiam e podem ser lançados sobre esta mesma fonte.
As entrevistas feitas pelo historiador Simão Willemann, no fim da década de 1970,
mostraram muito mais do que apenas o seu conteúdo: os relatos presentes nos testemunhos de três
senhores do interior de Santa Catarina que vivenciaram o cotidiano escolar específico da região do
Vale do Braço do Norte. Tais entrevistas revelaram a constituição de uma memória coletiva muito
solidificada que atuou de forma contundente na maneira como os sujeitos pensavam sobre si e,
também, sobre as práticas do cotidiano que se mostraram mais recorrentes em seus discursos.
Dessa forma, foi possível perceber que inúmeros são os caminhos pelos quais as fontes
podem nos levar. Estas, “fabricadas” por Willemann puderam nos guiar por uma estrada que voltou-
se para a contribuição dos estudos que relacionam história e memória na elaboração de novas
narrativas que pensam os sujeitos na sua singularidade e também pluralidade. A História Oral se
mostrou, portanto, importante contribuinte desta empreitada.
Materializada nas transcrições das entrevistas aqui utilizadas, a fonte oral foi assim
significante para pensar os sujeitos como atores dentro de uma mesma comunidade. Elas foram o
meio pelo qual se elucidou a existência de uma memória coletiva que abarcava a maneira que, no
momento presente da entrevista, aqueles senhores rememoraram. Com todos seus limites e
possibilidades a fonte oral é de fato uma das fontes mais acessíveis do contemporâneo. Por meio
do cotidiano escolar presente nos testemunhos, problematizou-se as características que mais se
mostraram presentes, centradas na relação estabelecida entre a escola e as famílias, o oficio de
professor, e a configuração de uma identidade étnica. Temas perpassados pela importância atribuída
à religiosidade, a estima conferida à educação e a forte ligação estabelecida entre a comunidade e a
escola. Esta atribuição se mostra tanto nas palavras do entrevistado, quanto nas falas do
entrevistador, que também pertencia a esta comunidade. Neste sentido, a religiosidade, a educação
e a etnicidade podem ser entendidas como fatores determinantes no desenvolvimento de uma
imagem positiva da sociedade a qual pertenciam. Tais características se mostraram muito
consolidadas nos discursos dos três senhores, o que demonstrou a força que teve o social na maneira
como estes construíram e reconstruíram suas memórias.
BOEING, José.: Entrevista concedida a Simão Willemann. Rio Fortuna, 10 de jan. de 1978.
CUNHA, Maria Teresa Santos. De ontem para o hoje: práticas escolares em diários íntimos de
professoras. In: SOUZA, Elizeu C. de; MIGNOT, Ana Chrystina V.; PACHECO, Dirceu C. (Org.)
Histórias de vida e formação de professores. Rio de Janeiro: Quartet; FAPERJ, 2008. p. 119-132.
DIEGOLLI, Rogéria Rebello. Colégio Santo Antônio: conquistando almas para Deus, formando
cidadãos para a pátria (1932-1942). Anais do X Encontro Estadual de História: História:
Trabalho, Cultura e Poder, Florianópolis, 2004. p. 132-135.
PACHECO, Dirceu C. Por outras narrativas das escolas e de seus sujeitos praticantes:
possibilidades dos/nos registros cotidianos. In: SOUZA, Elizeu C. de; MIGNOT, Ana Chrystina
V.; PACHECO, Dirceu C. (Org.) Histórias de vida e formação de professores. Rio de Janeiro:
Quartet; FAPERJ, 2008. p. 250-171.
POLLAK, Michael. Memória, esquecimento, silêncio. Estudos Históricos, Rio de Janeiro, n.3, v.
2, p. 3- 15, 1989.
TENFEN, Roberto João.: Entrevista concedida a Simão Willemann. Rio Fortuna, 24 de jan. de
1978.
Nádia Maria Weber Santos
Marluce Dias Fagundes
* Bolsista de produtividade do CNPq nível 2. Mestre e Doutora em História pela UFRGS, com Pós-doutorado
(Bolsa CAPES) pela Université Laval (Québec/Canadá). Membro pesquisadora do Instituto Histórico e
Geográfico do Rio Grande do Sul e curadora do Acervo Sandra Jatahy Pesavento, nesta instituição.
** UFRGS, Mestranda em História, bolsista CNPq.
1 O projeto está vinculado à BOLSA de Produtividade em Pesquisa (PQ/CNPq), com vigência até 28-02-2019, da
Professora Pesquisadora Nádia Maria Weber Santos.
2 O mesmo contou com financiamento da FAPERGS (PQG gaúcho 2014).
3 Alguns resultados do projeto (as grades formuladas, os passos da coleta de dados - a qual é inovadora em
pesquisa para a emissora, na sua relação com acadêmicos -, análises históricas das imagens das fitas e alguns
recortes temáticos nas mesmas, como por exemplo, o estudo de gênero feminino e os movimentos feministas no
Rio Grande do Sul, nas décadas de 1980 e 1990) foram apresentados pelos bolsistas em Salões de Iniciação
Científica em 2015, nas Universidades de nosso meio acadêmico, e pelas professoras em eventos nas
áreas de Comunicação e História, em 2015 e 2016. Além de artigos acadêmicos publicados em anais de
eventos e revistas acadêmicas, o projeto resultou em um livro, “TVs Públicas: memórias de arquivos
audiovisuais”, que conta com a colaboração de 38 pesquisadores experts na temática de IES brasileiras,
totalizando 22 capítulos, e um DVD (documentário) de imagens da pesquisa (making-off) e do material coletado.
Diante do rico material encontrado no acervo da TVE (qual seja: memória em imagens
da sociedade gaúcha, do Brasil e do mundo em seus diversos momentos históricos), por
exemplo: movimento feminista e suas lutas; depoimentos de Getúlio Vargas, de Leonel
Brizola e de Che Guevara; imagens da Campanha da Legalidade; de movimentos sociais e de
trabalhadores, como CPERS e Diretas Já; e memória de sua própria cultura, veiculada em
uma grade variada de programação, desde entrevistas, shows, lançamentos de peças teatrais
e discos, como por exemplo a última entrevista em vida do escritor Caio Fernando de Abreu,
pobremente indexado para busca, e do visível sucateamento da emissora (sem equipamentos
para visualizar as fitas, situação física do arquivo em situação precária, não utilização de
profissionais concursados, entre outros problemas), houve a necessidade de pensar a
nossa TV pública sob um outro viés: aquele das sensibilidades e da cultura, mais
especificamente relativo às expectativas da sociedade e à forma como a população percebe
seus conteúdos e se relaciona com eles. Assim, o atual projeto avança em relação ao anterior,
também, por trabalhar com outros tipos de fontes históricas, não mais imagéticas, mas que
deem conta deste outro enfoque, através de fontes orais (entrevistas com seus presidentes,
atual e antigos, funcionários servidores e CCs, artistas e telespectadores), fontes
eletrônicas ou digitais (mídias sociais e jornais online) e fontes documentais escritas (da
emissora e de publicações jornalísticas escritas do Estado).
A TVE-RS completou 40 anos em 2014 e foi a primeira emissora de comunicação
pública do Estado do Rio Grande de Sul. Junto com a Rádio FM Cultura (inaugurada em
1989) formam hoje a Fundação Piratini – Rádio e Televisão. Seu percurso histórico é
permeado por lutas políticas, entraves institucionais, incêndios, inúmeras mudanças de
grades de programação, passagem do sinal analógico para digital em 2015/2016 e
presidências que trocam a cada 4 anos com os governos eleitos – e, portanto, está em
constante altos e baixos, conforme os governos, que indicam os presidentes (‘trocas’
políticas, como todos sabem) e os cargos comissionados (CCs); estes nem sempre ligados à
área da comunicação ou à da cultura. Há um Conselho Deliberativo, criado em 1995, formado
por representantes da sociedade civil e entidades (CPERS, cineastas, músicos), mas que nem
sempre consegue ter voz ativa em determinadas deliberações. Foi a partir da criação deste
conselho que a TVE-RS passou a se denominar televisão pública (TORVES, 2006). Há,
também visivelmente, um constante conflito entre os servidores concursados e os
funcionários CCs, pois estes últimos exercem cargos importantes, como direção de
programação, direção de projetos especiais, setor de Marketing, entre outros, e nem sempre
tem o conhecimento do métier.
Em novembro de 2016, ainda no primeiro ano de pesquisa, o governador do estado do
Rio Grande do Sul José Ivo Sartori (PMDB) enviou para votação na Assembleia Legislativa
os projetos (PLs 246, 240 e 301) de extinção de nove Fundações Públicas do RS (ligadas à
cultura, ciência, pesquisa, saúde e tecnologia4), alegando necessidade de enxugamento de
4
Fundação de Ciência e Tecnologia (Cientec); Fundação Cultural Piratini (FPC, que mantém a TVE); Fundação
para o Desenvolvimento de Recursos Humanos (FDRH); Fundação de Economia e Estatística (FEE); Fundação
Estadual de Pesquisa Agropecuária (Fepagro); Fundação Estadual de Produção e Pesquisa em Saúde (Fepps);
Fundação Instituto Gaúcho de Tradição e Folclore (FIGTF); Fundação de Zoobotânica (FZB); Fundação Estadual
de Planejamento Metropolitano e Regional (Metroplan). Ver detalhes em http://g1.globo.com/rs/rio-grande-do-
sul/noticia/2016/11/governo-extinge-nove-fundacoes-e-reduz-numero-de-secretarias-no-rs.html. Acessado em
16/07/2017.
gastos no estado (dentro de uma votação maior, do pacote de ajustes fiscais) – e prevê a
demissão de aproximadamente 1200 funcionários, entre servidores e cargos de comissão. O
PL 246 (que incluía a Fundação Piratini) foi aprovado por 30 a 23 votos na Assembleia
Legislativa. Este processo ocasionou uma grande disputa entre os servidores, a sociedade
e o Estado e seus governantes, culminando em dias de guerra na Praça da Matriz em Porto
Alegre, dias estes que antecederam à noite da votação do pacote na Assembleia
Legislativa, em 21 de dezembro. Desde meados do segundo semestre de 2016, foram criados
movimentos para preservação da Fundação Piratini por parte dos servidores e as redes
sociais (principalmente Facebook) que ficaram repletas de depoimentos, notícias, gritos de
embates – a grande maioria contra a extinção da Fundação Piratini. Alguns atos-shows-
debates foram organizados pelos artistas e intelectuais da capital, principalmente em duas
praças públicas relevantes da cidade (Parque Farroupilha/Redenção e Praça da Matriz,
onde ficam as sedes dos poderes) e mobilizaram milhares de pessoas.
Neste momento, então, a pesquisa ganhou em profundidade, ampliando a coleta de
dados e a busca pelas sensibilidades, pois uma grande virada aconteceria na cena cultural
gaúcha veiculada pela emissora pública. Detalhes destes embates, mostrando a sensibilidade da
população em seus diversos segmentos, a partir de depoimentos em entrevistas de História Oral
e em redes sociais é o que detalha nosso projeto a partir de então. Aqui, apresentaremos uma
pequena parte deste todo, que diz respeito às respostas de alguns entrevistados sobre suas
experiências e sensibilidades em relação à TVE (“Quais experiências/sensibilidades lhe foram
proporcionadas durante o tempo como servidor na TVE-RS?
Quais experiências/sensibilidades sobre televisão pública lhe foram proporcionadas
durante sua gestão? ”), ou ainda, de alguns artistas e telespectadores nas redes sociais.
Uma televisão pública ideal deveria contribuir para o equilíbrio do sistema de comunicação
de uma nação, funcionando como um contrapeso ao sistema privado e fomentando a democracia e
a cidadania através da promoção da cultura, do conhecimento e da informação de forma universal,
ética e independente, com altos padrões de qualidade programática. Segundo Cury (2010, p. 120),
“duas variáveis impactam mais diretamente em todas as práticas de um sistema de comunicação
público – sua gestão e, especialmente, suas fontes de financiamento”. Isso porque tanto um ponto
quanto outro vão determinar a direção, aplicação e o volume dos investimentos, sejam em
conteúdo, tecnologia, serviços, entre outros.
Citando Leal Filho (apud Cury, 2010, p. 122), a autora refere que “o modelo público
consagrado internacionalmente é aquele que se mantém independente do Estado e do
comércio, política e financeiramente”. Sabemos que a BBC de Londres é a maior e melhor
TV pública do mundo e ela se mantém com uma quota que os cidadãos destinam a ela
anualmente.
A TVE-RS tem um papel de protagonismo na veiculação das
diversas manifestações culturais do Estado do Rio Grande do Sul. Ou seja, nos 43
anos de existência, houve um investimento razoável de ordem pública na emissora,
criando e recriando não só tecnologia compatível como (e, talvez, principalmente)
registros da cultura de nosso estado, conteúdos estes definidas como um bem cultural da
sociedade. Porém, como já mencionado, este percurso não foi uma linha reta ascendente,
tendo diversos percalços nas variadas gestões, e dependia do governo ou da vontade de
realização de seus presidentes. Interpretando os conteúdos das entrevistas com alguns ex-
presidentes,5 observamos que cada um, a seu modo, envolveu-se com um aspecto da
televisão, seja na criação de novas grades de programação, seja na sua manutenção
financeira a partir de projetos federais, ou na sua modernização e mesmo na sua missão
pública de comunicação – mas todos, até então, foram unânimes em dizer que tinham ‘carta
branca’ do governo do Estado para gerir a emissora – embora nem sempre isto se
configurasse na realidade e acabavam por deixar o cargo.
Embora seja uma emissora pública, com Conselho Deliberativo e muitos de
seus funcionários sejam concursados, quem investe financeiramente nela é o Estado, o que
implica em receitas não padronizadas nos diversos governos. Diferentemente de outras
emissoras públicas, como é o caso da paradigmática BBC do Reino Unido, a população não
auxilia em sua manutenção e, menos ainda, interfere em sua programação.
No site da Fundação Piratini, no link “quem somos”, escrito em 27 de maio de
2011, portanto no governo petista de Tarso Genro, sob a presidência do pesquisador e
professor universitário Pedro Osório – nosso primeiro entrevistado neste projeto – lê-se os
objetivos da emissora: Pluralidade, Criatividade, Interesse Público e Cidadania. E, mais
abaixo, está explícita sua missão: “promover comunicação democrática e que propicie o
acesso à informação, educação e cultura, estimulando a reflexão crítica da realidade.
Além disso, sua programação tem o compromisso de incentivar a participação social,
refletindo sua diversidade, expressões e seus anseios”. Segundo esta gestão, “o maior
objetivo da Fundação é oferecer à população gaúcha uma comunicação cidadã e de qualidade.
Mediante a produção de conteúdo adequado ao interesse do público, as duas emissoras – TVE-
RS e FM Cultura - contribuem significativamente para a geração de conhecimento,
estabelecendo nexos não aparentes da realidade e oferecendo contrapontos à abordagem das
emissoras de radiodifusão comerciais.”6
5
No item dedicado às fontes orais, indicaremos quantas e quais entrevistas foram feitas até o momento.
6.
Publicado em: <http://www.fundacaopiratini.rs.gov.br/?model=conteudo&menu=81>.Acessado em: 16/07/2017.
Lê-se, ainda, que seus programas, muitos deles com mais de duas décadas de exibição,
“têm como base a integração e a inclusão social, sendo reconhecidos pela pluralidade,
diversidade e valorização das culturas regionais e da identidade nacional.”
É uma constatação, a partir da entrevista com alguns funcionários, que no governo
petista de Tarso Genro, foi um dos períodos de maior crescimento da TVE e de
respeito aos seus funcionários. Porém, como já dissemos cada governo contribuiu com um
aspecto neste processo.
No atual governo estadual (do governador José Ivo Sartori), existiu desde o início uma
‘sombra’ em relação aos instrumentos de cultura de nosso Estado, tendo o atual governador, logo no
começo de seu mandato, em 2015, ameaçado extinguir alguns órgãos de cultura, bem como seus
financiamentos, incluindo a TVE-RS. Além disto, alguns contratos com funcionários deixaram de ser
cumpridos e não estão sendo admitidos profissionais concursados recentemente, etc. Assim, desde
2015, eclodiram vários movimentos dos cidadãos porto-alegrenses em redes sociais e em
manifestações públicas. Há muitas documentações disto em jornais do Estado, bem como em
redes sociais. Como exemplo no Facebook (rede social amplamente utilizada no Brasil para
manifestações de toda ordem, incluindo aquelas que são sérias reivindicações), desde meados de
2015, um grupo aberto em prol da preservação da TVE, chamado “Movimento para preservação da
TVE e FM Cultura”, que mobiliza centenas de servidores, telespectadores, artistas e intelectuais da
cena cultural gaúcha, noticiando ações de desmonte, atos de preservação, etc.7 Note-se, também,
que a TVE tem sua transmissão veiculada para as principais cidades gaúchas, não somente para a
capital (Porto Alegre).
Após a votação da PL 246, em dezembro de 2016, foi instituída uma nova
gestão encarregada de fazer a transição para a extinção da Fundação Piratini. O atual
presidente, Orestes Junior, também foi entrevistado por nós, e o mesmo afirma que está
responsável por implantar uma TV e uma Rádio “sustentável”. Segundo Orestes Júnior
(2017), o Governador Sartori irá manter a TVE e a FM Cultura, porém a Fundação Piratini
será extinta e a instrução que o mesmo segue é que “elas têm que custar menos para o Estado
e para a sociedade. E elas têm que se modificar e se modernizar. Só assim é que elas podem e
devem continuar”. Contudo, o projeto “sustentável” prevê a demissão de um número
considerável de funcionários/as.
7
Os conteúdos podem ser acessados no seguinte link: <https://www.facebook.com/groups/793536650682242/
>.Acessado em 16/07/2017.
programação a partir do olhar dos governos em cada período? Como podemos estudar aspectos da
memória da emissora e, consequentemente, da identidade cultural do Rio Grande do Sul a partir da
documentação pesquisada e dos depoimentos, na emissora e em redes sociais? De que forma a
realização da pesquisa histórica pode interagir com a sociedade e colaborar para a preservação da
emissora pública de TV?
Tendo o cenário cultural se transformado com a possibilidade de sua extinção, tornou-se
mais importante ainda destacar as sensibilidades da sociedade para com a emissora e, relatar, ao
final, a importância da TVE, de sua programação e de seu acervo, como dispositivo cultural da
sociedade gaúcha, colaborando para a discussão da necessidade de sua preservação no cenário
midiático do Estado, enquanto uma televisão pública – que é o objetivo central da pesquisa.
O campo das sensibilidades será introduzido, principalmente na sua relação com as fontes
orais da pesquisa, a fim de percebermos como as imagens produzidas pela TV pública e os
complexos processos que as constituem, nos mais variados âmbitos, têm sua reverberação naqueles
que as produzem e naqueles que são sensíveis a elas (e de que forma são sensíveis), tornando-a
dispositivo para cultura no Estado do Rio Grande do Sul. Para isso, a metodologia da História não
fica restrita aos procedimentos técnicos para a realização de entrevistas. Mas, enxerga a história oral
como um “recurso de transformação” (MEIHY, 2006, p. 194), pois é preciso que a mesma esteja
vinculada com os aportes teóricos na construção dos mecanismos instrumentais.
Sabe-se que a subjetividade e as sensibilidades também formatam o indivíduo em todas as
suas funções, tanto corporais, quanto sociais e culturais. Beatriz Sarlo (2007, p.18) postula uma
“guinada subjetiva”, ao admitir que, na contemporaneidade, existe a “revalorização da primeira
pessoa como ponto de vista, a reivindicação de uma dimensão subjetiva, que hoje se expande sobre
os estudos do passado e os estudos culturais do presente”. Onde, então, incluem-se “novas
exigências e métodos que tendem à escuta sistemática dos ‘discursos de memória’: diários, cartas,
conselhos, orações”. (SARLO, 2007, p.17). Independente da crítica que a autora faz a certos
‘dispositivos’ da memória em nossa atualidade e sua relação com a história, é importante sua
sugestão de que as narrativas testemunhais na primeira pessoa sejam submetidas a uma metodologia
de análise, antes de se tornarem fontes memoriais ou históricas sobre o passado. O que nos remete
à necessidade sempre imperiosa de se contextualizar as marcas de sensibilidade nos traços objetivos
do real. E fazer-se a “crítica da fonte” memorial.
A este respeito, uma passagem do texto de Pesavento (2005),8 sobre o trabalho com
as sensibilidades na História, vem ao encontro do que se pretende dizer, servindo para o
trabalho com a memória: “[...] mesmo as sensibilidades mais finas, as emoções e os
sentimentos, devem ser expressos e materializados em alguma forma de registro passível de
ser resgatado pelo historiador”. Para esse último, assim, a narrativa deve se fundamentar nas
“marcas de historicidade”, deixadas pelas fontes ou pelos registros de algo que aconteceu um
8.Referência na web, sem página. PESAVENTO, Sandra Jatahy. Sensibilidades no tempo, tempo das
sensibilidades, Nuevo Mundo Mundos Nuevos [En línea], Coloquios, Puesto en línea el 04 febrero 2005,
consultado el 14 abril 2013. URL : http://nuevomundo.revues.org/229.
dia “e que, organizados e interpretados, darão prova e legitimidade ao discurso historiográfico”.
Para o pesquisador no campo da memória não é diferente, embora guardadas as
respectivas diferenças metodológicas: postulamos que as sensibilidades podem constituir-
se em vetores memoriais que também deixam suas marcas na objetividade do mundo. Para
Pesavento, ainda, o território do sensível constitui-se em “território do não dito ou mesmo
do não provado, porque pertencem à esfera do sentimento, que tocam, não só na
subjetividade, mas também no coletivo”, onde tais indícios, “traços de sentimento”, se
insinuam em discursos, práticas e ritos. (PESAVENTO, 2001, p. 236).
Em relação às entrevistas, até o momento foram realizadas com dez pessoas:
2 manifestantes/telespectadoras na Praça da Matriz, durante as manifestações de dezembro,
4 ex-presidentes de períodos distintos, 1 atual presidente, 2 servidoras, 1 artista. Na fase de
construção dos roteiros das entrevistas, os mesmos são realizados por categoria (presidentes;
funcionários (as) – servidores e CC’s; artistas; telespectadores). No entanto, eles são
formulados de maneira semiestruturada, pois é o/a entrevistado/a que conduz a entrevista.
E, por muitas vezes, novas questões são adicionadas de acordo com as respostas dadas pelo/a
entrevistado/a.
Nesse texto destacamos dois aspectos relevantes na interpretação de cada entrevistado,
na categoria de “Presidentes” (4 ex-presidentes, 1 atual): o que cada um compreende por
sensibilidade e como sentem suas experiências na TVE ou proporcionadas pela TVE.
É um respeito pelo servidor público, eu acho que são pessoas majoritariamente dedicadas
que nesse ou naquele governo são pessoas que trabalham muito além de suas obrigações.
E eu vi isso na Fundação Piratini, pelo número considerável de servidores a maioria que
são absolutamente dedicados. Então, eu confirmei essa percepção que eu sempre tive
assim – o respeito. E, por outro lado, também trabalhar para desenvolver uma programação
que atendesse o interesse dos servidores, da audiência no que diz respeito à formação de
determinadas sensibilidades mesmo. Na construção de uma narrativa sobre o dia a dia que
fosse sensível as questões culturais, as questões de gênero, as questões ambientais.
(OSÓRIO, 2016, grifo nosso).
Eu vou te dizer, assim, que eu sou movida pelo afeto. Eu digo o afeto não no sentido do
carinho, mas de estar afeta as coisas. Então eu acho assim, no momento que eu passei a
estar afeta àquelas pessoas que faziam a TV, eu passei estar afeta às pessoas que assistiam
a TV e passei a estar afeta às pessoas que ouviam essa rádio. Então, eu acho que a minha
sensibilidade foi nessa minha disposição de estar afeta ao outro, de estar afeta ao projeto
que eu fazia. (MILLANEZ, 2017, grifo nosso).
O que proporciona mesmo é contato com as pessoas, esse é o porquê da coisa. Porque
normalmente são servidores que estão há muitos anos na casa, embora tenha sido concurso
e tudo mais, e eles tem um jeito muito seu de, e primeiro eles acham que são os donos
daquilo ali, e são – porque eles chegaram primeiro. [...] Porque aquilo ali é deles, foi eles
que construíram, já tiveram incêndios, já teve 4 ou 5 governos, alguns bons e outros ruins,
Presidentes bons e Presidentes ruins, chefes bons e chefes ruins, gente que roubou, gente
que não roubou, enfim, eles já viram de tudo. A cada 4 anos muda a orientação. (DUTRA,
2017, grifo nosso).
Do meu ponto de vista pessoal apesar de todas as dificuldades era um lugar de grande
satisfação. Porque se produz coisas, porque se faz coisas, porque se promove coisas e
coisas bacanas como a área cultural e abre espaço para a cultura local. E mesmo para
debates de coisas que não existem em mais nenhum outro lugar em que se debata coisa
nenhuma em televisão. Digo com vontade e seriedade, nós tentamos fazer algumas coisas
nesse sentido. Então, é um lugar assim apesar de tudo, e tenho um pouco a sensação que
todo mundo que passa por lá fica assim, tu cria um laço afetivo. Isso então é uma coisa
meio inevitável, talvez por todas as dificuldades. (MORAES, 2017, grifo nosso).
A TV tem a cara do Rio Grande do Sul. A gente sente isso andando pelos corredores aqui
desse prédio. Um prédio deteriorado é um prédio lá dos anos 40 que tem uma série de
problemas. Mas é um prédio, que os corredores exalam história aqui da TV. Então as
pessoas também. A gente entra nos estúdios é um ambiente diferente, é um ambiente
quente como eu chamo. Não é um ambiente frio de estúdio, ele tem história aqui dentro.
A gente enxerga e a gente sente isso na pele mesmo. (ANDRADE JÚNIOR, 2017, grifo
nosso).
Os testemunhos até agora coletados transmitem emoções das mais diversas em relação à
TVE. Entre os temas levantados pelos entrevistados o fator humano é o que recebeu maior destaque.
Esse fator está inserido tanto no lado individual de cada pessoa, como no lado coletivo social. Por
isso, destacamos que os cinco presidentes entrevistados (atual, e outros quatro ex-presidentes)
quando narram aspectos relacionados ao sensível, remetem sua fala às relações estabelecidas com
os servidores e funcionários no período de cada gestão. Alguns referem que a TVE é feita por essas
pessoas, independente de quem esteja presidindo-a, sendo os servidores que, em meio às mais
diferentes dificuldades de uma emissora pública e estatal, colocam diariamente a TV no ar.
ANDRADE, Orestes Jr. Porto Alegre. 25/05/2017. Entrevistadora: Nádia Maria Weber Santos;
Marluce Dias Fagundes. Arquivo de áudio: 62 minutos.
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MILLANEZ, Liana. Skype Porto Alegre- São Paulo. 16/06/2017. Entrevistadora: Nádia Maria
Weber Santos; Marluce Dias Fagundes. Arquivo de áudio: 93 minutos.
MORAES, Luiz Fernando. Porto Alegre. 16/06/2017. Entrevistadora: Nádia Maria Weber Santos;
Marluce Dias Fagundes. Arquivo de áudio: 65 minutos.
OSÓRIO, Pedro. Porto Alegre, 15/12/2016. Entrevistadora: Nádia Maria Weber Santos. Arquivo
de áudio: 73 minutos.
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Marcos Luiz Hinterholz
Nas pesquisas que venho realizando desde 2014, tenho procurado entender o ambiente
Casa do Estudante para além do seu caráter de moradia e assistência estudantil, lançando um
olhar que busca pela gama de relações presentes nestes lugares. O conceito de instituição
educativa foi fundamental neste processo de inscrição da temática no campo da História da
Educação, num movimento de complexificação destes espaços de sociabilidade, revelando-
os potentes para as pesquisas sobre movimentos estudantis universitários em um sentido
latu. Um pouco sobre a história de formação da CEUACA lançará mais luz sobre esta
perspectiva de abordagem. Embora as primeiras mobilizações em prol da “Casa do Estudante
Pobre”1 tenham iniciado em 1931, a CEUACA foi fundada em 1934, mesmo ano de criação
da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). Como uma de suas
principais características, temos sua autonomia e autogestão,2 constituindo-se e mantendo-se a
partir da articulação dos próprios estudantes, responsáveis pela captação de seus recursos
financeiros, bem como toda a administração. Sua localização estratégica no centro político,
econômico e cultural da cidade, bem como sua independência em relação à
Universidade, instigam o olhar para outras formas de organização estudantil. Trata-se de
um convite a ultrapassar os muros da Universidade e refletir a operacionalização deste
complexo sistema e suas implicações na formação dos sujeitos habitantes, especialmente pelo
viés das experiências vividas. Como tão bem nos lembra Justino Magalhães (2004), as
instituições educativas são organismos vivos, integrados a uma estrutura mais ampla.
Transmissoras e produtoras de culturas, possuem especificidades que lhes conferem
identidades históricas. Isto complexifica sobremaneira trabalho da História da Educação,
especialmente ao se lançar a lupa sobre uma organização de moradia estudantil, mirando
com atenção as representações dos sujeitos habitantes destes espaços.
A História Cultural nos autoriza este olhar sobre a CEUACA. Mas faz-se
importante lembrar que até o início dos anos 1970, a cultura não tinha, mesmo no campo das
ciências humanas e sociais, uma centralidade ou peso epistemológico que permitisse o
seu reconhecimento na estrutura empírica real. A virada se inicia, mais precisamente, na nova
a
* Mestrando em Educação/UFRGS. .
1 Em 1933, os estudantes do Diretório Acadêmico da Faculdade Livre de Direito de Porto Alegre criaram a
‘Caravana Pró-Casa do Estudante Pobre” que percorreu o interior do estado buscando recursos para a construção
da Casa. No entanto, quando a entidade foi fundada em 1934, não assumiu o adjetivo “pobre”, chamando-se
apenas “Casa do Estudante”.
2
Autogerida porque toda a gestão era feita pelos próprios estudantes. Autônoma porque eram também os
estudantes responsáveis pela captação dos recursos financeiros que mantinham a Casa, por meio da articulação
com o poder público, através de campanhas de arrecadação de fundos ou a realização das famosas reuniões
dançantes das décadas de 1960 e 1970.
relação estabelecida com a linguagem: ela passa a constituir os fatos, não apenas a relatá-
los. As coisas só têm significado quando inseridas dentro de um determinado sistema de
classificação ou jogo da linguagem. Esta ótica faz possível, através da metodologia da
História Oral, buscar e interpretar representações, identidades e discursos que se produzem
no interior das Casas de Estudante.
Chamada para este diálogo, Ecléa Bosi (2003) vem lembrar que, embora o tecnicismo
reinante busque nos convencer da inutilidade da memória e dos sentimentos nostálgicos, eles são
intrínsecos à condição humana. Os seres experimentam de diferentes formas uma mesma época e
as memórias nos fazem perceber o quanto ela vem carregada de sentidos e elaborações. Para a
autora, mais do que experiências individuais, as narrativas de memória podem nos dar a ver a
complexidade do acontecimento, na medida em que toda percepção está impregnada de
lembranças, possuindo a memória uma função decisiva na elaboração das representações. As
narrativas de memória dos atores que viveram e experiência da moradia estudantil na CEUACA e
no seu entorno, podem potencializar as leituras sobre educação no contexto 1963-1981.
Abastecido com estes pressupostos e com as narrativas de memória de oito antigos
moradores, parto para a análise prometida. Os entrevistados são homens que vivenciaram a
CEUACA, nas décadas de 1960 e 1970. O enfoque aqui será a presença feminina nesta Casa do
Estudante, pois, embora oficialmente admitidas somente a partir de 1987, as mulheres, já nas
décadas anteriores circulavam neste espaço, contrariando preceitos e normas escritas nos estatutos
que regiam a instituição. Seja como moradoras clandestinas, frequentadoras dos bailes que lá
ocorriam ou namoradas dos ceuacanos, as suas presenças vêm mostrando-se marcantes.
Neste ponto, contudo, faz-se importante destacar que, embora este estudo tangencie a
temática da ocupação do espaço público pela mulher, entre eles a universidade, esta é uma
abordagem complexa, na qual não será possível um aprofundamento na presente perspectiva de
análise. Os elementos convocados para esta discussão são bastante pontuais, podendo apenas
fornecer uma leitura mínima do contexto da época, especialmente pelo tipo de fontes utilizadas,
circunscritas às representações que emergiram das narrativas de homens que viveram esta
coletividade. O objetivo maior da pesquisa foi o de escrever uma história da CEUACA, como
instituição educativa, e a circulação das mulheres neste espaço foi construída como uma das
categorias de análise para compreender aquela dinâmica institucional.
Pensar o processo de ocupação do espaço público pela mulher requer que nos remetamos à
longa história de organização política e reivindicatória por direitos sociais, sem deixar de considerar
alguns protagonismos individuais e iniciativas pioneiras.
Para a discussão aqui pretendida, parto do diálogo com Manuel Carvalho Prata (2002),
para quem, de modo geral, é a partir do século XIX que os discursos sobre a necessidade de
educação da mulher são impulsionados, sobretudo pelo papel a ela atribuído no seio da
família, a procura pela mão de obra feminina e as demandas das classes médias, que
culminavam com a necessidade de incorporação destas pelo mercado de trabalho. No
entanto, o autor alerta sobre a cautela que se deve ter na análise do fenômeno, sobretudo
ao tentar fixar datas ou quaisquer tipos de marcadores mais precisos sobre a
escolarização do sexo feminino e a ocupação do espaço público pelas mulheres. São
movimentos complexos e multifatoriais, com características específicas em diferentes
países e regiões, além de constituírem-se em processos lentos e cheios de sobressaltos.
Em consonância com a proposta do texto, orientarei a discussão a partir das
concepções de Casas de Estudante e sua relação com o ingresso das mulheres nas universidades,
mais precisamente no contexto gaúcho. Numa visada para fontes como a imprensa diária
porto-alegrense da década de 1930, na busca por representações sobre o movimento dos
estudantes da Faculdade Livre de Direito de Porto Alegre,3 que daria origem à primeira Casa
de Estudantes do Rio Grande do Sul, será possível notar um silêncio revelador sobre este
tipo de assistência à estudante mulher.
O movimento pró-moradia estudantil encontrou espaço nos jornais locais para as
suas demandas, muito provavelmente dentro de uma lógica discursiva preponderante nos
periódicos das primeiras décadas do século XX, desejosa, conforme apontado por Raquel
Discini de Campos (2009), de um projeto de modernização do país,4 o que passava
necessariamente pela educação. Porém, nem aquele movimento em favor de uma Casa de
Estudantes (composto somente por homens), nem a imprensa, levantaram a questão de uma
moradia para as moças. Assim, o Correio do Povo, em edição de 1935, trazia que a finalidade
da Casa do Estudante era a de proporcionar,
[...] ao estudante pobre, o máximo de conforto e assistência, de sorte que o moço destituído
de recursos materiais que se abrigar à sombra protetora do seu teto possa, sem sacrifícios
heroicos, finalizar o curso superior iniciado. [...] Agora, mais do que nunca se impõe a
realização integral deste plano, como medida inadiável, pois, no seio da classe estudantina
existem moços que deixaram de renovar suas matrículas por não disporem dos recursos
financeiros necessários, o que, uma vez transformada a “Casa do Estudante” num instituto
eficiente de assistência completa, desaparecerá definitivamente.” (Correio do Povo,
19/03/1935).
3A partir de 1934 torna-se a Faculdade de Direito da Universidade Federal do Rio Grande do Sul.
4“Reclamava-se ─ ou estimulava-se ─ do avanço feminino sobre espaços públicos no mesmo ritmo em que se
generalizava a crença na resolução científica dos problemas sociais, na democratização das escolas primárias e
profissionalizantes para todos os brasileiros, na necessidade da formação de um grande contingente qualificado
de professores que se dispuseram a lecionar Brasil afora, e em tantas outras necessidades e certezas anunciadas
que podem ser enfeixadas, enfim, sob o signo de um desejo maior que sintetizava todos os outros: o da
modernização do País”. (CAMPOS, 2009, p. 51)
Percebe-se que toda a preocupação gira em torno do “moço destituído de
recursos materiais”. Também em 1935, podia-se ler na Revista do Globo, que “a ideia da
fundação d’esse estabelecimento honra a cultura rio-grandense (...)”5 ou ainda, “Pobre ou
afortunado, a Casa do Estudante recebe, sem distinção, qualquer universitário de
comprovado merecimento.”6 Este curioso excerto, que fala na possibilidade de acesso
também do estudante afortunado àquela moradia, tenta revestir de um sentido democrático a
instituição, ainda que só destinada a um dos sexos.
Há uma significativa lacuna, que impede uma leitura mais clara sobre a situação da
mulher no Ensino Superior brasileiro, na década de 1930. A despeito dos esforços
empenhados, não consegui localizar dados estatísticos que pudessem dar uma ideia da
representação do sexo feminino nesta modalidade de ensino. Os anuários estatísticos do
Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), para aquela década, embora
forneçam dados referentes ao número de matrículas, não fazem a discriminação destas por
sexo. O importante a observar, no entanto, é que, ao menos para o contexto gaúcho, a questão
da moradia estudantil feminina parecia ainda não estar posta nem sequer no plano discursivo.
É somente a partir da década de 1960 que as informações sobre a presença feminina
nos espaços acadêmicos começam a constar de forma mais clara nos censos universitários. É o
caso do trabalho intitulado "Caracterização Socioeconômica do Estudante Universitário”, uma
pesquisa do Centro Brasileiro de Pesquisas Educacionais, realizada ao longo de 1965 (publicada
em 1968), com estudantes dos primeiros anos, abrangendo todas as escolas superiores
sediadas nas capitais dos estados (desde que contassem com mais de 4.000 matriculados).
Considerando os dados da matrícula do ano letivo de 1964, nestas dez cidades se concentrava
90% da população universitária brasileira. Trata-se, portanto, de um levantamento bastante
representativo.
Numa mirada rápida sobre estes dados, tem-se que, para a década de 1960, em Porto
Alegre, 67,55% dos estudantes são do sexo masculino e 32,45% do sexo feminino.7
Mais uma vez é necessário muita cautela ao interpretar dados como este. Raquel
Discini de Campos (2009), nos faz atentar para o fato de que, se por um lado a emergência
de algumas novas profissões contribuiu na busca pela independência econômica e social
das mulheres mem uitos relação destesaos emprhomens, egos epor ram outro, percebidos
como uma extensão pública de papéis sociais historicamente atribuídos às mulheres, “pois
requeriam qualidades supostamente constitutivas do “sexo frágil”, como paciência, docilidade,
sensibilidade e disposição intrínseca à submissão”8 (CAMPOS, 2009, p. 83). Já as profissões
VVV
Revista..do..Globo,..a...7,..n...172,..2ª..quinz...nov/1935,..p...58.
5..
Idem.
6..
7 Fonte: Caracterização Socioeconômica do Estudante Universitário. Pesquisa do Centro Brasileiro de Pesquisas
Educacionais, promovida em 1965.
8 Esta análise de Raquel Discini de Campos refere-se às décadas de 1920 e 1930, quando estuda as representações
sobre a mulher na imprensa do interior paulista do período. Penso que a ideia continua potente para pensar as
décadas posteriores, visto o longo processo de conquista de independência econômica e social das mulheres, que se
faz sentir ainda no tempo presente.
mais rentáveis e socialmente valorizadas, continuavam sendo ocupadas predominantemente
por estudantes do sexo masculino.
A primeira Casa de Estudantes para mulheres no Rio Grande do Sul surgiu
tardiamente, estando relacionada à criação da Escola de Enfermagem de Porto Alegre, em
1950, que já em seu plano trazia prevista uma moradia, visto as alunas fazerem o curso em
regime de internato. A professora Maria de Lourdes Verderese, primeira diretora da Escola,
vinda de São Paulo para criar curso, destacou neste documento o que esta Casa deveria
oferecer. São destacados aspectos como cuidado que se queria ter para com estas moças,
buscando proporcionar-lhes uma vida em família, com “o necessário controle social.”9
Também estão presentes os sentimentos que deveriam fundamentar a residência: “doce
afeição” e “amizade”. Estas ideias corroboram com o debate sobre as lentas conquistas de
independência pelas mulheres, estando sua inserção nos espaços públicos não totalmente
despida da ideia do “sexo frágil”, mobilizando em torno de si toda uma rede de proteção e
um controle vigilante.
Já a segunda moradia estudantil feminina porto-alegrense foi fundada em 1º de agosto
de 1956, agora para abrigar mulheres de todos os cursos. A iniciativa pioneira partiu das
estudantes Maria Rosalina Fim e Gladys Campos (Odontologia), Dirce Caputo e Eloá Dias
(Medicina), Henriqueta Morais, Cecy Schimitz e Nina Rosa Wildner (Filosofia). A Casa da
Estudante Universitária do Rio Grande do Sul (CEURGS), como foi chamada, contou com as
mesmas dificuldades das demais Casas autônomas e autogeridas, com uma estrutura precária e
sucessivos despejos e mudanças de sede.10
Ao nos voltarmos para os registros nos primeiros documentos escritos produzidos por
estas moradoras, no âmbito da CEURGS, já é possível notar um discurso que remete a um
tabu em relação ao sexo masculino. Nos estatutos da Casa, lê-se determinações como a
proibição do “estacionamento das moradoras em frente da CEURGS quando acompanhadas de
pessoas do sexo masculino, mesmo parentes”11. Ao lado deste ítem do regulamento, uma
observação: “a norma refere-se a toda frente do edifício (SILVA, 2004).” Outros registros, em
atas das reuniões da Casa, também dão conta de preocupações neste sentido:
9
Plano de Organização da Escola de Enfermagem, apud SILVA, 2004, p. 42.
10..
Em 1977, após os sucessivos despejos, a Universidade Federal do Rio Grande do Sul intervêm,
cedendo o prédio da Rua São Manuel, 573, encampando a CEURGS e tornando a um órgão da Universidade.
Após longas discussões em assembleias, com o apoio da União Nacional dos Estudantes e as demais Casas, em
1988 passou a admitir também moradores do sexo masculino.
11..
Casa da Estudante Universitária. Regimento, 1959, p. 9. Apud. SILVA, Ângelo Ronaldo Pereira da. (Org.). As
Casas de Estudante da UFRGS. Porto Alegre: UFRGS, 2004.
Percebe-se que esta vigilância não parte somente de uma moral externa, havendo
também um controle interno por parte das estudantes administradoras da Casa neste
sentido, visto serem igualmente perpassadas pelos valores de uma época. Além disso,
como se verá mais adiante, especialmente para as moradias autônomas, havia a
preocupação em manter uma “boa imagem” da Casa para a sociedade, de quem em certa
medida estas jovens mulheres dependiam para a captação de auxílios finaceiros,
mantenedores da instituição.
O apanhado histórico realizado até aqui, buscou compor um cenário sobre a
situação feminina no Ensino Superior, bem como fornecer elementos para a discussão que se
desenrolará a seguir, qual seja, o da circulação das mulheres no espaço destinado à moradia
masculina e suas implicações para a história da instituição CEUACA.
Uma primeira mirada a este instigante excerto deve ter produzido no leitor sensações
parecidas com as que experimentei ao deparar-me com este documento, pois impressionam os
aspectos relativos ao detalhamento e rigidez das penalidades. O emprego da metodologia da
História Oral, no entanto, tem possibilitado a identificação de dissonâncias entre os preceitos as e
formalidades dos estatutos e as práticas que se desenrolavam no espaço da Casa, especialmente no
que diz respeito às relações com o sexo feminino. Uma das primeiras entrevistas que produzi para
a presente pesquisa foi com Nereu Lima. A questão em torno da não aceitação das mulheres como
moradoras surgiu de forma espontânea, elaborada da seguinte forma em sua narrativa:
Claro que ninguém é perfeito, e se existia algum pecado venial lá, era por nós não termos
avançado, na época, em relação ao “Clube do Bolinha”. Havia na CEUACA a vedação
de residência para mulheres. Eu fiquei muito contente quando mais tarde tomei
conhecimento de que elas conquistaram o direito de morar na Casa. (Nereu Lima.
Narrativa de memória produzida em 19/11/2015).
A partir da escuta atenta destas falas, um elemento figurou-se chave para a leitura de algumas
subversões à norma escrita: a autogestão. Ela parece ter permitido certas soluções negociadas para
problemas críticos com os quais os estudantes (e não estudantes também, como se verá a seguir)
deparavam-se. Como no início dos anos 1970, quando Flávio consegue convencer a direção da
CEUACA a admitir como moradora sua companheiraMarisa, não estudante e funcionária de uma
loja no centro de Porto Alegre. Se por um lado a Casa cometia o pecado venial de não abrir-se ao
ingresso das estudantes do sexo feminino, por outro, acabou mostrando-se acolhedora em
determinados episódios.
É assim que a autonomia e autogestão da CEUACA vão perpassando todas as categorias de
análise deste estudo, pois para além de mera característica administrativa, reverberam nas questões
atinentes aos costumes, engendrando um complexo jogo de representações, que a narrativa de Paulo
d’Ávila torna ainda mais evidentes:
E nós fizemos uma reunião com ex-moradores que estavam interessados em contribuir
financeiramente. Mas tinha um problema de costumes dentro da Casa, e nós alertamos os
moradores para que tivessem um certo cuidado. Só que eu acho que um dos moradores
não foi avisado desta reunião e entrou com uma moça dentro da Casa. Nós estávamos lá
na parte de baixo com estes ex-moradores e foi um estrago danado na nossa reunião. Eles
queriam contribuir financeiramente, mas queriam opinar sobre os costumes da Casa. E era
outra realidade, eles eram da década de 1950, nós estávamos na década de 1970. Eles
Eu acho que naquela época houve a revolução sexual. Já que estava sendo vencida a luta
política contra a Ditadura, pensamos: vamos fazer a revolução sexual! Foi também quando
apareceram as camisinhas e os anticoncepcionais. Naquela época era difícil conseguir; era
preciso ir até as farmácias da periferia para comprar. Eu acho que houve uma a revolução
sexual. O Reich (1968), filósofo do sexo era lido. Tem um livro chamado A Política do
Orgasmo[...] Eu li um livro dele que se chama Irrupção da Moral Sexual e Repressiva.
(Edson Canabarro. Entrevista em 08/03/2017).
13
Fala de Paulo d’Áviladurante a cerimônia de comemoração dos 65 anos da CEUACA, em 1999. Disponível
para acesso em:<https://www.youtube.com/watch?v=LaDF3LdGfNs&t=881s>.
“ritos de passagem para a vida adulta”, e atribui ao espaço desta moradia, uma dimensão estratégica
para as liberdades de comportamento.
Quando Pierre Mayol (1997) discorreu sobre o morar no clássico A Invenção do Cotidiano,
pensou o papel do bairro para o controle, por meio de uma vontade coletiva, das práticas sexuais
individuais. Entre as suas considerações está a de que este, enquanto espaço público, “não dispõe
de nenhum poder de regulamentação ou de coerção para subordinar a uma vontade coletiva a prática
sexual efetiva dos seus frequentadores. [...] Ele [o bairro] só tem poder sobre o discurso, sobre
“aquilo que se diz do sexo” (MAYO, 1997, p. 62). Trazendo estas considerações para pensar as
tentativas de controle social representadas pelas regras instituídas, os guardas nas portas das Casas
de Estudante e as formas de subverter estes bloqueios, narrados por Nivaldo, nota-se que este
controle não pode ser total, estando, como qualquer norma, sujeita a toda sorte de transgressões.
Penso que seja mais importante, dentro da proposta do estudo, qual seja, o de construção de
uma história para a instituição CEUACA, nos voltarmos novamente para o seu caráter de autonomia
financeira e administrativa, central para a análise. Uma das consequências desta característica foi a
necessidade de realizar semanalmente as chamadas “reuniões dançantes”. Além de serem sua
principal fonte de arrecadação de recursos financeiros, conforme relatado por todos os
entrevistados, é o momento em que a Casa se abria de forma mais ampla para o mundo exterior,
dando entrada para uma outra rede de sociabilidades sobre a qual buscarei refletir a partir daqui,
iniciando pelo relato de Nivaldo, que conta:
Tratava-se de uma festa popular, um baile, com música mecânica. A boate ficava em cima
do restaurante da Casa do Estudante; era um espaço grande. E as pessoas que
frequentavam ali a gente via que eram empregadas domésticas, funcionárias do comércio.
O valor financeiro para entrar não era alto, porque na época haviam as boates da moda que
eram boates caras que isolavam pelo estrato social. E a festa era sempre lotada, sempre
cheia. (Nivaldo Cunha. Entrevista em 18/04/2017).
Especificamente quanto à circulação das mulheres por este espaço, o que apresentei foram
alguns aspectos, compostos a partir das memórias de oito homens. São matizes que julguei
importantes para o objetivo maior deste estudo. Tal perspectiva não deve, portanto, ser
absolutizada, sob pena de impedir que emerjam novas nuances deste jogo de relações. Sempre
novos sentidos podem ser apreendidos por meio de outras formas de incursão, outros olhares.
Enquanto estudante morador deste espaço plural chamado Casa do Estudante, há múltiplas formas
de colocar-se e perceber as ambivalências nele contidas e suas respectivas formas de significação.
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Cíntia Vieira Souto*
O presente trabalho tem como fontes orais doze entrevistas realizadas com membros do
Ministério Público do Rio Grande do Sul que atuam na área ambiental. As entrevistas foram
realizadas entre setembro e novembro de 2016 e publicadas em forma de livro em 2017. O objetivo
é resgatar a história da intervenção do Ministério Público do Rio Grande do Sul em matéria
ambiental, desde a década de 1970, quando o tema era quase desconhecido, passando pela
Constituição de 1988 e pela necessidade de aparelhamento e capacitação da instituição para a tarefa
e chegando na complexidade dos dias atuais.
O termo meio ambiente é, sem dúvida, um dos mais repetidos na contemporaneidade.
Reportagens, documentários, livros, artigos, Organizações não Governamentais ─ ONGs ─,
museus, etc., são dedicados ao tema. Nas campanhas políticas, no Brasil e no mundo, é uma das
matérias mais cobradas dos candidatos. Tragédias como a recente em Mariana, Minas Gerais, nos
recordam das consequências de negligenciá-lo. Essa ubiquidade nos faz esquecer o quão recente é
a atenção dada às questões ambientais. Foi na década de 1970 que a velocidade de exploração da
natureza e as primeiras grandes catástrofes decorrentes da utilização predatória de
recursos ensejaram preocupação internacional com o tema.1
A partir desse momento, os ordenamentos jurídicos dos diversos países passaram a dar
atenção à matéria. No Brasil, de acordo com Marchesan, Steigleder e Cappelli, o Direito Ambiental
aparece como ramo autônomo somente a partir de edição da Lei da Política Nacional do Meio
Ambiente em 1981. Até essa data, não havia um conceito amplo de meio ambiente, sendo ele
tratado “pelo direito privado, através do direito de vizinhança, ou de providências legais e
administrativas setoriais, tomando os bens ambientais de forma estanque, sem que entre eles
houvesse alguma concatenação” (MARCHESAN; STEIGLEDER; CAPPELLI, 2013, p. 18).
As autoras consideram que o período republicano brasileiro pode ser dividido em três
fases com respeito à tutela ambiental: a) 1889 a 1981: formação do Direito Ambiental; b) 1981-
* Historiadora do Ministério Público do RS, Doutora em Estudos Estratégicos Internacionais, Mestre em Ciência
Política
1 A Conferência de Estocolmo ocorreu na Suécia, entre 5 e 16 de junho de 1972, com a participação de 113
países debatendo problemas ambientais.
1988: consolidação do Direito Ambiental; c) a partir de 1988: fase contemporânea. No
período de formação, o meio ambiente era tratado por intervenção estatal no âmbito do direito
público ou por regras de direito privado. “Não se cogita de um direito difuso sobre um bem
pertencente a todos, mas vigora a ideia de que o meio ambiente é res
nullius” (MARCHESAN; STEIGLEDER; CAPPELLI, 2013, p. 26).
O período de consolidação iniciou com a publicação da Lei nº 6.938 de 31 de agosto
de 1981, Lei da Política Nacional do Meio Ambiente, uma lei marco, nas palavras de
Sílvia Cappelli (SOUTO; JUNG; CARRION, 2017, p. 262). Editada no período da ditadura
militar, a lei contemplava um instrumental inovador e descentralizador, estabelecendo
princípios e objetivos da Política Nacional do Meio Ambiente, o Sistema Nacional do
Meio Ambiente (SISNAMA) e os instrumentos da política ambiental. A lei define no inciso I
do artigo 3º meio ambiente como: “o conjunto de condições, leis, influências e interações
de ordem física, química e biológica, que permite, abriga e rege a vida em todas as suas
formas”, claramente superando a visão utilitarista do meio ambiente que predominava na
fase anterior. Conforme Suely de Araújo, a Lei adotou a ideia do desenvolvimento
sustentável e, de forma ainda mais inovadora, o princípio do poluidor pagador (ARAÚJO,
2008, p. 237). Além disso, previu a responsabilidade civil objetiva por dano ambiental e a
legitimidade do Ministério Público para a tutela do meio ambiente. O SISNAMA era
considerado confuso e, por muito tempo, não efetivado. A esse respeito, Ana Maria
Marchesan declarou que a Lei Complementar nº 40 de 2011:
organizou essa grande bagunça que era o Sistema Nacional de Meio Ambiente,
discriminando bem as competências da União, dos estados, do Distrito Federal e dos
municípios. Embora ainda haja várias ações envolvendo problemas nessa distribuição de
competências em matéria ambiental, a lei, em alguma medida, deu uma organizada
(SOUTO; JUNG; CARRION, 2017, p. 91).
ainda o principal instrumento processual civil utilizado para a tutela ambiental no Brasil e,
dentre cujos méritos, podem-se destacar a ampliação da legitimidade ativa para alcançar
as associações de proteção do meio ambiente, a possibilidade de tutela preventiva através
de liminares e cautelares, a coisa julgada erga omnes, o amplo objeto, consistente na
condenação do réu em obrigações de fazer, não-fazer ou indenizar (MARCHESAN;
STEIGLEDER; CAPPELLI, 2013, p. 29).
Na sequência veio a Constituição de 1988 que conferiu, pela primeira vez, capítulo
próprio ao meio ambiente. Diz o artigo 225:
Art. 225. Todos têm direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado, bem de uso
comum do povo e essencial à sadia qualidade de vida, impondo-se ao Poder Público e à
coletividade o dever de defendê-lo e preservá-lo para as presentes e futuras gerações.
O meio ambiente é considerado bem de uso comum do povo e como bem jurídico
autônomo, ou seja, diversos dos bens que o compõe. Há um enorme avanço em relação à
definição que consta na Lei da Política Nacional do Meio Ambiente. A Constituição estabeleceu
a obrigação do poder público e da comunidade de preservá-lo. O bem tutelado é o meio
ambiente ecologicamente equilibrado. Também foram constitucionalizadas a necessidade de
estudo de impacto ambiental para a instalação de obra ou atividade com potencial de
degradação do meio ambiente e a responsabilização de pessoas físicas e jurídicas nas esferas
civil, penal e administrativa de forma independente.
Os entrevistados foram quase unânimes em atribuir a esse tripé legislativo – Lei de 1981,
Lei da Ação Civil Pública e Constituição de 1988 – a mudança na atuação do Ministério Público
na tutela dos direitos difusos e coletivos em geral e do meio ambiente em particular. Silvia
Cappelli explica:
Antes de 1988, o Ministério Público exercia a autoria da ação cível e, claro, também no
processo penal, sendo dominus litis. Nenhum problema com relação a isso. Mas houve
uma transformação muito importante do Ministério Público, na esfera cível. Até a década
de oitenta, o Ministério Público era custos legis, ele era o fiscal da lei no processo civil e
só atuava nas ações de interesse público, seja pela natureza da lide, seja pela qualidade da
parte. Antes da década de 1980, um pouco antes de 1988, o Ministério Público era só
interveniente no processo civil. Falava depois das partes e falava só quando a Fazenda
Pública estivesse presente, ou um menor, ou em questões de direito de família. Era muito
restrita a atuação do Ministério Público no processo civil e era uma atuação, digamos
assim, subsidiária no processo. Porque ele falava para verificar a legalidade do
procedimento e se havia alguma parte que era considerada hipossuficiente, ele estava ali
para zelar pelos seus interesses, como no caso da curatela, da tutela do menor. Essa foi
uma grande transformação que aconteceu na década de 1980, um pouco antes da
Constituição Federal. Ela começa nessa lei da política nacional do meio ambiente e
continua com a lei da ação civil pública. Aí, Ministério Público se transforma radicalmente
e passa a ser protagonista de uma ação coletiva que é a ação civil pública. Então, ele muda
muito o seu perfil, o seu dia a dia; porque antes, no processo civil, ele recebia um processo
para dar um parecer. E aí ele se transforma enormemente e passa a ser o autor, em nome
de uma coletividade (SOUTO; JUNG; CARRION, 2017, p. 263-264).
Na fase contemporânea, ou seja, pós Constituição, houve uma grande evolução com o
Código de Defesa do Consumidor, Lei nº 8.078 de 1990, que criou o compromisso de
ajustamento de conduta com eficácia de título executivo extrajudicial, hoje denominado de
Termo de Ajustamento de Conduta (TAC). O TAC permite a solução de conflitos antes de sua
judicialização, desonerando o Poder Judiciário e promovendo a efetividade na resolução das
lides. Silvia Cappelli explica que o TAC é muito importante na área ambiental, pois uma ação
civil pública ambiental é complexa e demorada. O TAC é uma proposta de acordo sobre as
condições acessórias do cumprimento de uma obrigação, questões de tempo modo e lugar. “No
momento em que há consenso por parte do investigado, melhor resolver em acordo do que em
demanda. Consegue-se um resultado prático mais célere” (SOUTO; JUNG; CARRION, 2017,
p. 268).
Outra lei importante foi a Lei nº 9.605 de 1998, Lei dos Crimes e Infrações
Administrativas Ambientais. Essa lei sistematizou sanções administrativas e tipificou crimes
ambientais que se encontravam dispersos em outros diplomas legais. Uma novidade importante
é a previsão de responsabilidade penal da pessoa jurídica, único caso na legislação
infraconstitucional (MARCHESAN; STEIGLEDER; CAPPELLI, 2013, p. 30-31). Daniel
Martini ofereceu a primeira denúncia por crime ambiental contra pessoa jurídica no Estado do
RS (SOUTO; JUNG; CARRION, 2017, p. 170).
Infelizmente, não houve somente avanços legislativos. A lei nº 12.651 de 2012, Código
Florestal, é alvo de críticas. Ana Maria Marchesan declarou:
Costumo brincar que é o novo código antiflorestal, porque, se ele fosse florestal, ele se
preocuparia com a preservação das florestas. E, na verdade, ele abre uma série de portinhas
para destruir as florestas. E com o advento desse instrumento, hoje nós já estamos
convivendo com as queimadas de novo, infelizmente (SOUTO; JUNG; CARRION, 2017,
p. 83).
é, na estrutura administrativa do Ministério Público, o órgão que tem por atribuição pensar
a política ambiental na Instituição e também ser um órgão, como o nome diz, de apoio aos
colegas promotores de justiça. [...] Demanda uma constante atualização e permanente
interlocução com os órgãos estaduais e nacionais, sejam os órgãos legislativos, sejam os
administrativos. (SOUTO; JUNG; CARRION, 2017, p. 160).
A promotora acentua que a cada oficina de trabalho era perceptível, no Centro de Apoio, o
ingresso de mais ações, havia mais Termos de Ajustamento, ou seja, essas oficinas estavam
atingindo a sua finalidade.
Vários dos depoentes recordaram a importância das oficinas de trabalho. Paulo da Silva
Cirne recorda: “Para mim foi muito importante ter aquele contato com outros colegas, receber
aquelas informações, o que de certa forma facilitou o meu trabalho. A partir desse momento, percebi
a necessidade do entrosamento entre as instituições que atuam na área ambiental” (SOUTO; JUNG;
CARRION, 2017, p. 218).
Outra iniciativa importante do ano de 2000 foi a criação do Conselho de Defesa do
Meio Ambiente – CONMAN, no âmbito do Ministério Público.3 Formado pelo
coordenador do CAO Ambiental, pelos promotores atuantes nas Coordenadorias das
Promotorias de Defesa Comunitária na área ambiental, por promotores de defesa comunitária
de cidades importantes do Estado, etc., o CONMAN tem por objetivos elaborar enunciados
visando à harmonização da atuação, à realização de reuniões de promotores que atuam na
área, por regiões, e outros estabelecidos no seu regimento interno. A respeito do CONMAN,
Silvia Cappelli recorda:
Nós nos reuníamos uma vez por mês para debater temas comuns, importantes de interesse,
ou de dúvida, no Ministério Público. Por exemplo, iniciava-se uma nova atividade
econômica, ou havia algum problema jurídico que exigia aprofundamento, um estudo, um
debate e, principalmente, se fazia necessária a elaboração de um enunciado sobre aquela
matéria, nós deliberávamos dentro desse conselho, que se reunia mensalmente. [...]. Esses
enunciados nós enviávamos para a Corregedoria. Se a Corregedoria aprovasse, eles seriam
informados, sugeridos, como orientação para todo o Estado, senão, eles ficavam apenas
no âmbito do Conselho (SOUTO; JUNG; CARRION, 2017, p. 261-262).
3
Provimento nº 09/2000.
4
As atas das reuniões, bem como os enunciados, podem ser consultados na página do CAOMA na intranet.
prestam consultorias, para a instrução de inquéritos cíveis e ajuizamento de ações civis públicas.
Mas, nem sempre foi assim. Claudio Bonatto explica como era o assessoramento:
[...] fizemos convênios com o CREA, na questão de engenharia; com o SIMERS, que é o
sindicato dos médicos, na área da saúde; com a CIENTEC, na área da segurança alimentar,
e tantos outros, para que os seus técnicos fizessem as vistorias e os laudos para nós, e,
depois, quando ingressávamos com as ações, pedíamos aos juízes que incluíssem, na
condenação dos réus, o pagamento dos honorários dos técnicos que nos assessoravam. Era
assim que funcionava (SOUTO; JUNG; CARRION, 2017, p. 144).
5
Arquivo do Ministério Público do Rio Grande do Sul. Inquérito Civil nº 003118/90.
6 A Rede Ambiental foi criada pelo Provimento n° 12/2008 de 22 de fevereiro de 2008, revogado pelo
provimento n° 52/2010.
promotor que iria tratar daquilo era o mesmo. Então, nós criamos um modelo, dividimos
o estado e criamos 19 redes ambientais, cada uma com um promotor coordenador e um
coordenador substituto. Cada rede deveria ter, no mínimo, dois inquéritos regionais,
tratando de questões que impactavam na região como um todo. Esse diálogo era feito com
a sociedade (SOUTO; JUNG; CARRION, 2017, p. 64).
Ximena Ferreira explica que “a ideia redes ambientais surgiu para enfrentar o problema
de uma forma regionalizada, pois o meio ambiente não respeita as fronteiras políticas”
(SOUTO; JUNG; CARRION, 2017, p. 282). Os problemas ambientais de uma comarca são os
mesmos da comarca contígua, de forma que o seu enfrentamento precisa ocorrer de forma
regionalizada. Segundo Daniel Martini, Coordenador do CAOMA, a Rede Ambiental foi um
dos principais avanços na organização da instituição na defesa do meio ambiente. Martini
explica que a rede evoluiu para as Promotorias Regionais Ambientais, projeto que ainda está
em fase de implementação (SOUTO; JUNG; CARRION, 2017, p. 163). De acordo com o §2º
do artigo 1º do Provimento nº 45/2016, que disciplina a atuação das Promotorias Regionais do
Meio Ambiente, o seu âmbito territorial é a bacia hidrográfica da região. Martini informou que
até agosto de 2016 havia duas promotorias regionais, a do Rio dos Sinos e do Gravataí. No
segundo semestre do ano foram implantadas mais três: do Caí, do Taquari/Antas e do Ijuí.
Os primeiros inquéritos civis e ações civis públicas ambientais foram instaurados e
ajuizados no final da década de 1980 e início da década de 1990. Em pesquisa no Arquivo do
Ministério Público e no Arquivo Judicial Centralizado foi localizada uma ação com data de 14
de setembro de 1990, a mais antiga de que se tem registro.7 A ação, da comarca de Carazinho
foi ajuizada contra o município de Carazinho, contra o Clube Carazinho de Caça e Pesca e
contra a Associação dos Funcionários da Caixa Econômica Estadual do Rio Grande do Sul pela
então promotora Marcia Leal Zanotto Farina. A base era um inquérito civil instaurado em 23
de novembro de 1988. A ação relata que o município de Carazinho celebrou contrato de
comodato em área do Parque Municipal da cidade, cedendo espaço ao Clube de Tiro e à
Associação dos Funcionários da Caixa. Também houve arrendamento por contrato verbal de
área do parque para exploração agrícola. Essas mudanças foram feitas sem nenhum estudo de
impacto e estariam comprometendo a vegetação do local, bem como uma das nascentes do rio
Várzea, localizada dentro das terras utilizadas pelo clube. Também se chamava a atenção para
a falta de segurança, já que o Clube de Tiro não havia cercado sua circunscrição. A promotora
solicitava que fosse deferida liminarmente a determinação para que o Clube de Tiro e a
Associação dos Funcionários cessassem as suas atividades e que um torneio de tiro que estava
programado fosse proibido, que os contratos de comodato fossem declarados nulos, que as
aéreas fossem devolvidas ao município e que o município fosse condenado a reparar a área. A
liminar foi deferida no sentido da suspensão do torneio de tiro, mas não para a cessação
completa das atividades do Clube. Com respeito à ilegalidade dos contratos, o juiz de primeiro
7
Não é possível saber se essa ação é a mais antiga ou se existe alguma anterior, pois nem todo o material
da época está identificado e registrado no Arquivo Judicial. É a mais antiga registrada. Agradecemos a
inestimável colaboração da Unidade de Gestão Documental do Ministério Público na pessoa do coordenador
Emiliano Medeiros, e do Arquivo Judicial Centralizado, onde contamos com a diligente ajuda da historiógrafa
Celeste de Marco.
grau os considerou legais, mas o Tribunal em agravo de instrumento do Ministério
Público afastou a decisão. Foi realizada prova pericial e inspeção judicial. O
Ministério Público apresentou um amplo e minucioso laudo mostrando as espécies
animais e vegetais existentes na área e de que forma as atividades do Clube as colocavam
em risco. Em 1º de março de 1999, a sentença judicial julgou a ação civil pública
improcedente quanto à ilegalidade dos contratos: “a ação da Prefeitura Municipal ao ceder
em comodato ao réu parcela do bem público descrita na inicial não caracteriza desvio de
finalidade, pois essa destinação especial estava previamente autorizada pelo Legislativo”.
Quanto aos danos ao meio ambiente, a juíza se fixou em todos os trechos que demonstravam
que a atividade do Clube de Tiro era distante da área de circulação de pessoas:
Desta forma, considerando a distância entre a área de tiro e a mata apontada como refúgio
da fauna de 1500 metros, o sentido contrário à mata dos disparos, a perda de intensidade
dos estampidos há 800 metros e, ainda, a perfeita visibilidade do local para o caso de
aparecimento de pessoas ou animais, mister concluir não esteja a atividade do réu
acusando danos ao meio ambiente.
Na verdade, houve uma sensibilização do Poder Judiciário. De modo geral, dá para dizer
que eles também estão se preparando, estão se qualificando. Houve uma especialização
das Varas Judiciais, e isso faz com que os juízes ali classificados acabem começando a
lidar mais com as questões ambientais. Então, eu penso que melhorou muito desde quando
eu entrei (SOUTO; JUNG; CARRION, 2017, p. 131).
No curso das entrevistas, alguns temas relativos à atuação do Ministério Público gaúcho
na área ambiental se destacaram: a destinação dos resíduos sólidos, a proteção do bioma pampa,
o problema dos alagamentos e inundações, a defesa do patrimônio cultural, o uso desenfreado
de agrotóxicos, a mineração de areia no Lago Guaíba, a falta de saneamento urbano e a
contaminação hídrica.
Todos os temas destacados são considerados prementes para os promotores depoentes. Com
respeito a expectativas, alguns, como Alexandre Saltz, são otimistas “[...], pois, com respeito à
proteção ambiental hoje há um nível de consciência que não havia há alguns anos atrás” (SOUTO;
JUNG; CARRION, 2017, p. 75). Outros, como Annelise Steigleder, são pessimistas “Porque vejo
que, mesmo no Ministério Público, dependemos de uma determinação judicial, atuamos sempre
por amostragem, conseguimos identificar grandes temas e tentamos atuar. Mas é claro que não
conseguimos atuar na política” (SOUTO; JUNG; CARRION, 2017, p. 132).
Em termos de desafios para o futuro, muitos dos entrevistados apontaram o desenvolvimento
do já iniciado trabalho em rede. Ximena Cardozo Ferreira considera que é preciso ultrapassar o
âmbito institucional: “trabalhar em rede, mas não só em rede interna, trabalhar em rede externa,
interinstitucional, porque são inúmeros órgãos envolvidos na proteção ambiental” (SOUTO;
JUNG; CARRION, 2017, p. 301). Ana Maria Marchesan vê com otimismo a implantação das
promotorias regionais, mas considera que o cargo de promotor regional deveria ser único e não
cumulativo com outra promotoria: “[deveria se]criar com um cargo de promotor específico,
estrutura de servidores específica para isso, lugar, tudo” (SOUTO; JUNG; CARRION, 2017, p.
101).
ARAÚJO, Suely Mara Vaz Guimarães de. Vinte e Cinco Anos da Lei da Política Nacional do
Meio Ambiente. Plenarium, v. 5, n. 5, p. 236-243, outubro de 2008.
FÉLIX, Loiva Otero. Rememorações para o futuro: histórias de vida do Ministério Público do
Rio Grande do Sul. Procuradoria-Geral de Justiça, Projeto Memória: Porto Alegre: 2001.
SOUTO, Cíntia Vieira; JUNG, Martha; CARRION, Raul (Org.). A atuação do Ministério
Público na área ambiental: histórias de vida do Ministério Público do Rio Grande do Sul. Porto
Alegre: Memorial do Ministério Público, 2017.
SOUTO, Cíntia Vieira; TORRE, Márcia de La; SANSEVERINO, Patrícia (Org.). Olhar
Feminino: histórias de vida do Ministério Público do Rio Grande do Sul. Porto Alegre:
Memorial do Ministério Público, 2004.
Com a metodologia da História Oral foi possível verificar aspectos relevantes para a
pesquisa em Ciência da Informação, visto que com as entrevistas é notável que a Representação da
Informação acontece por diferentes ações nos ecomuseus como: documentação museológica,
exposições, ações culturais, palestras e outras atividades que fazem o público ter acesso às
informações.
Outro resultado bastante significante foi perceber que, até o momento, não houve respostas
negativas quanto ao acesso e recebimento de informações pelo público, o que reafirma as
instituições pesquisadas como Unidades de Informação.
CHAGAS, M. S. Memória e poder: contribuição para a teoria e a prática dos ecomuseus. In.
Encontro Internacional de Ecomuseus, 2., 2000, Rio de janeiro. Encontro Internacional de
Ecomuseus (Preprints). Rio de Janeiro: Núcleo de Orientação e Pesquisa Histórica (NOPH),
2000. v. 1. p. 12-17.
Esse texto resulta de uma prática de História Oral mais ampla. Trata-se de um projeto
desenvolvido como pesquisa em tecnologia social e extensão universitária vinculada à
Incubadora de Empreendimentos Solidários da UEPG (IESol/UEPG).1 O escopo da proposta
desenvolvida visou discutir a produção e a interpretação de narrativas orais com trabalhadores e
trabalhadoras da Associação de Recicladores de Porto Amazonas, localizada no município de
Porto Amazonas, região dos Campos Gerais, no Paraná. Esse coletivo chama a atenção de
estudiosos e agentes políticos ligados à inclusão social, em função da capacidade de se
constituir em grupo, a despeito de contradições inerentes ao processo de organização de sujeitos
provenientes de trajetórias com baixa experiência de participação política ou organizativa.
Localiza-se em um município de apenas 4.514 habitantes e com um índice de ocupação laboral
ativa de 24,1%, ocupando a 244ª posição no estado do Paraná (IBGE, 2015).
Essa organização de trabalhadores existe desde o ano de 2006 e resulta, inicialmente, de
esforços do projeto Rede Solidária: A reciclagem na cidade de Porto Amazonas. Foi elaborado
e desenvolvido pela IESol, utilizando-se de recursos da Fundação Banco do Brasil, com
construção de um barracão de triagem e a realização de um curso de formação em economia
solidária. No início eram apenas seis catadores de recicláveis. A ARPA conta, atualmente, com
um número intermitente de 20 trabalhadores, entre homens e mulheres, incluindo uma parcela
de jovens. A atividade consiste na separação e classificação de resíduos de acordo com a sua
qualidade de aproveitamento para reciclagem, que é comercializado em lotes, visando a sua
melhor valorização. Ainda que inicialmente o grupo tenha sido formado com catadores de rua, a
sua atividade atual é a de triagem, prensagem e pesagem de resíduos para o setor industrial de
transformação de recicláveis. O trabalho é realizado em baias, que se constituem em espaços de
aproximadamente 4mx4m, verdadeiros territórios onde trabalham individualmente ou em
família. Chama a atenção a apresentação estética desses espaços, que vão ganhando
caracterizações todas peculiares dos recicladores e expressam, através de objetos encontrados
em suas lidas diárias, toda uma pertença cultural. Em cada baia se vê peças e utensílios que
Esse trecho de sua narrativa apresenta muitas dimensões que precisam primeiro serem
lidas separadamente, para que depois possam ser relacionadas ao processo da experiência
coletiva que nos interessa nesse texto. A primeira delas parte da constatação, no plano da
consciência, da mudança que a prática da reciclagem imprimiu à sua vida. Enquanto narra, ela
se descobre uma outra, aquela que “[...] não consegue ficar mais em casa.” Ora, esse elemento
é crucial, pois é avaliado na relação social, uma vez que ela destacou esse aspecto a partir do
reconhecimento de uma trajetória comum, no caso de outra trabalhadora, “a loira”, que foi
embora, saído do coletivo, que teria se curado da hipertensão com o trabalho da terapia. Em sua
construção narrativa, ela não apenas fala dela mesma, ela vai se reconhecendo nas outras
pessoas que pertenceram ou pertencem ao mundo daquela sociabilidade.
Mas isso não é tudo. Ao mencionar como teria agido sua companheira de trabalho que
deixou ARPA, recobra o sentido de sua possível volta de Campo Largo, município localizado
na região metropolitana de Curitiba. Ela reconhece na trajetória da companheira “loira”, que já
teria anunciado a volta, um ponto de conexão com a própria experiência migratória. Ao falar
dessa colega que se foi e que voltará, buscou mostrar a sua opção pessoal de não abandonar a
ARPA, uma vez que a situação de itinerância é muito comum entre esses trabalhadores,
sobretudo os mais jovens.
Betinha relembrou da história da companheira de lida que abandonara a ARPA.
Utilizou-se dessa menção para fortalecer o argumento acerca do caráter terapêutico da
reciclagem. Cumpre enfatizar que a ênfase no aspecto terapêutico da reciclagem não emergiu
apenas em seu relato, mas também com outras entrevistadas, no caso mulheres. Na verdade,
esse aspecto não pode ser lido com simplismo, como uma dada realidade que existe em si
mesma. Sua percepção passa pelo reconhecimento de histórias entrecruzadas com outros
sujeitos, na forma da experiência coletiva, quando a partir desse lugar buscou mostrar sua
própria decisão de permanecer. Ao mesmo tempo, também permite uma leitura relacional, de
reconhecimento da atitude do outro como uma baliza de compreensão de sua permanência. O
fato de Betinha querer permanecer nesse trabalho deve ser lido não como uma acomodação, um
sintoma de cansaço, de desistência, mas uma resposta que se tornou possível diante de uma
exclusão que lhe impunha a própria impossibilidade de escolha. Se há um sentido terapêutico
para a reciclagem, a que Betinha reconhece, passa pela construção simbólica de elaborar
marcações distintivas da transformação, a partir de um outro, para e com ela incluída no
processo Não nos cabe valorar ou atestar o caráter terapêutico da reciclagem, porém é preciso
dizer que, na estrutura de sentimentos (WILLIAMS,1979) na qual participa como sujeito ativo
e relacional, a compreensão do papel da associação também recorre à superação de sentidos
comuns nas trajetórias que se encontram na ARPA, entre elas: a tristeza, o desalento, o
isolamento, a violência, o preconceito, a discriminação, a falta de perspectivas, as dores que
carregam no corpo, entre marcas da exclusão, da transitoriedade, da itinerância e, sobretudo, da
invisibilidade.
Separar recicláveis, conhecer e classificá-los em sua materialidade e importância, foi
algo a que a recicladora deu bastante ênfase. Afinal, a separação de recicláveis, ademais a
atenção que precisa ser colocada em sua execução, pressupõe o sentido pensante, o
conhecimento sobre a natureza e valor de mercado de cada um dos resíduos separados. Ora, ao
se mostrar detentora de um saber, de uma metodologia para seu trabalho, Betinha também
redesenha sua trajetória a partir do trabalho associativo. O incremento desse saber, de sua marca
consciente, se mostra no relato como um divisor de águas. Afinal, antes o trabalho era de
faxineira, de doméstica, de trabalhadora volante na colheita de feijão e maçãs na economia
local. Pois bem, o trabalho doméstico, intermitente e desvalorizado, não permite a expressão e
o domínio de si numa realidade. O trabalho sazonal, brutalizado pela rotina árdua no pleno sol
e o emprego de agrotóxicos, centrados na lógica do empresário do campo, lhe tira essa
capacidade de praticar seu conhecimento.
Em outro momento da entrevista, Betinha acrescenta outros elementos substanciais:
E eu agradeço a Deus por eu tá bem, em paz; por eu tá trabalhando num lugar que eu me
sinto bem. Às vezes eu venho trabalhá… às vezes eu digo que eu tô meio cansada de
alguma coisa. Eu falo: não! Tem que levantá a cabeça, tem que seguir em frente. Se eu
não tiver trabalhando, eu fico doente de eu ficar dentro de casa. Porque eu faço, faço o
serviço dentro de casa e não é a mesma coisa. Se eu não tiver lá no trabalho, se eu não
tiver ali, minha cabeça tá trabalhando, tá esquecendo dos problemas, esquecendo disso,
esquecendo daquilo.
É preciso mencionar o fato de que, ainda que buscasse mostrar seu empoderamento,
proveniente de um saber apreendido naquela coletividade, Betinha mostrou sua tomada de
consciência sobre as fronteiras entre o privado e público, sobretudo uma dada ruptura, como
mulher, dos enfadonhos afazeres domésticos com a vida de casa para um lugar onde pode
trabalhar “esquecendo dos problemas, esquecendo disso, esquecendo daquilo”. O relato oral
nos brinda com a possibilidade de perceber não apenas o fenômeno social de empoderamento,
mas conhecer também os sentimentos que ela vivencia nessa passagem. É como se fôssemos
convidados a conhecer a força deles na elaboração de sua consciência política de “levantá a
cabeça” e seguir em frente, já que o que há é “o serviço dentro de casa e não é a mesma coisa”.
Jociane do Rocio Lima, de 45 anos, inscreve significados comuns de experiências
diferentes de Betinha:
Esse reconhecimento que eu tive por causa da reciclagem; eu nunca imaginava. Porque
a primeira vez que eu entrei aqui, eu olhei assim [gesto de sobressalto], me assustei.
Porque o serviço que eu trabalhava lá era casa de família. Então, não era tanta as coisas
que eu vejo agora. Mas, depois eu falei: não é nada que eu não tenha passado. Mas, na
reciclagem que eu tô hoje, eu aprendi a dar mais valor às coisas que eu tô conquistando.
Porque tem muita coisa que eu falei: eu entrar no mercado ou numa loja e gastar tudo!
Tudo! Que nem hoje, eu sei que eu recebo bem… da minha profissão. Eu recebo e eu
não gasto. Eu não gasto o que eu gastava antes. Eu me admiro, porque eu trabalho aqui,
trabalho de segunda a sexta; no sábado também eu faço isso. E eu fico boba de ver. De
eu tá com dinheiro e eu posso comprar. Eu posso entrar numa loja, comprar, mas eu não
compro! Porque eu quero sempre tá comprando uma coisa que seja útil pra mim. É isso
que eu dou valor. É o que eu tô fazendo ali!
Quando o meu pai…Como sempre bastante filho; nós somos… agora nós somos em dez,
mas, na época, quando moramos ali era em sete. Mas aquela vida meio sofrida no Haras.
Haras você sabe como que é? A gente só tem que morar… a gente só sai pra fazer
compra, quase não conhecia a cidade. Mal ia numa loja. Mal a gente ia no mercado,
porque o meu pai não tinha muita condição. Então, a gente tinha que ir no mercado só
quando a gente achava assim... Ah, hoje, o pai falou: hoje posso ir porque dá pra comprar
uma coisa diferente. Então a gente ia. Mas, não conhecia muito a cidade. Mas era só a
vida da fazenda; fazenda era tranquilo! A gente conhecia só a família, alguns amigos, e
nem todos eram próximos. Mas… eu morava na fazenda! Eu não saía da fazenda. Até
os meus 12 anos eu vivi só ali. Patrão a gente via quando eles vinham no final de semana
e mais nada. Os amigos eram aqueles de criação, que moravam perto da gente. Também
isso era, mais nada. Daí depois dos meus 12 anos que eu fui conhecer a cidade.
Eu trabalhava assim... fora. Trabalhava na lavoura, quando tem. Agora tem a época de
maçã, depois vem a colheita. E a gente ia, agora tá aqui. Mas antes quando não trabalhava
aqui ia lá, feijão. Agora batatinha não tem mais. Na colheita da maçã, daí eu falei pra
turma: aqui você tá debaixo da casinha. Você não tá tomando sol, não tá tomando veneno
na cara. Porque lá você tem bastante veneno, fruta tem veneno. Quanta gente tá morrendo
por causa de veneno que tão ponhando na fruta. Falei: lá fora vocês tão tomando veneno,
tão no sol, tão na garoa. Porque tem tempo que a colheita apura, você tem que trabalhá
com chuva. E aqui não, você tá embaixo da tua casinha, você não tá tomando veneno na
cara, não tá no sol, não tá na chuva. Falei pra turma: a gente tem que reconhecê aonde
que a gente tá trabalhando agora. Que não tá sugando aquele veneno que está lá,
trabalhando no sol. Às vezes, tem que trabalhá na chuva. Já trabalhei na chuva, lá fora.
Amanhã depois fica doente, o dinheiro que você ganhou lá, o quarentão que você ganhou
lá você gasta num vidro de remédio. Se é que compra um vidro de remédio hoje. Porque
tá caro, né? Quando tem no posto a gente pega, quando não tem, tem que pegá na
farmácia.
Ah, cada um na sua casinha, às vezes a gente foge e vai lá. Aí o Adalto vem e fala: olha
aí, as reuniões! (risos). Daí eu vou lá falar com a dona Iva, depois com a Ana, que não
veio hoje. Aí você foge da casinha e vai na outra conversá um pouco. (risos). Eu entro
trabalha até o meio dia. Aí falei: como eu trabalho lá na roça, eu trabalho até a tarde,
deixo as crianças sozinhas. Porque eu não trabalho o dia inteiro aqui? Porque lá eu
trabalhava o dia inteiro. Tem que levar a marmita. Quando tem almoço, tem, quando não
tem, você tem que levar a marmita. Então, porque você não faz o dia inteiro aqui? Eu
pensei: mas porque eu não fico fazendo o dia inteiro? Se eu trabalho na roça, eu trabalho
dia inteiro; tem que deixar as crianças sozinhas? Então, vou fazer isso, vou trabalhar o
dia inteiro aqui, dá na mesma coisa. Que na roça você vai, mas não tem carro pra te
trazer. Na hora do almoço não tem, tem que ficar o dia inteiro. Não sabe como as crianças
tão, como foram na escola.
Na ARPA, além da socialização nas baias, possuem o espaço de uma cozinha coletiva,
onde compartilham refeições e dividem as tarefas. A entrevistada, mais uma vez, acentua
a diferença em relação ao que vivia no trabalho na agricultura, que a limitava a ficar o
dia inteiro fora de casa, a ter uma alimentação condicionada à preparação de uma
marmita, “porque lá eu trabalhava o dia inteiro”. Há o registro positivo dessa mudança,
uma vez que além de ter que levar a marmita, “lá na roça, eu trabalho até a tarde, deixo
as crianças sozinhas”. Acompanhar a rotina dos filhos é um incremento à sua vida, algo
que o trabalho na ARPA passou a lhe proporcionar. Mas constatamos também que há
uma tensão gerada pela mudança, ao ponto de pô-la a refletir. Ou seja, ampliou o tempo
para a família, mas reduziu sua produção, no caso a sua renda. A narrativa dá conta da
tentativa de encontrar um lugar de existência nesse coletivo, afinal, “mas porque eu não
fico fazendo o dia inteiro?”, ainda que “não sabe como as crianças tão, como foram na
escola.”
WILLIAMS, Raymond. A cultura é algo comum. In: Recursos da esperança. São Paulo: Ed.
da UNESP, 2015.
LIMA, Jociane do Rocio, Entrevista concedida a Alessandra Izabel de Carvalho, Robson Laverdi
et al. Porto Amazonas, 14 de outubro de 2014.
Este texto vincula-se à pesquisa que está sendo desenvolvida para a elaboração de uma
tese na área de História. A partir dela, visa-se a abordar diversas percepções sobre as
transformações da/na paisagem que abrange o ecótono 1 da Floresta Ombrófila Mista-
FOMcom a Floresta Estacional Semidecidual-FES, na região que compreendia o
munícipio de Cascavel,2 no estado do Paraná, entre as décadas de 1950 e 1990. Essas
transformaçõesinvestigadas ocorreram a partir, principalmente, das ações de indústrias
madeireiras3 e daagricultura.
Neste trabalho dialogamos com duas entrevistas, realizadas com sujeitos que
trabalharam na agricultura e nas madeireiras, no período e espaço estudados. Espera-se,
com essas fontes, considerar algumas das memórias que esses sujeitos construíram
como trabalhadores e as percepções apresentadas sobre as mudanças na paisagem.
A partir do que Simon Schama (1996, p. 17) escreveu em seu livro Paisagem e
Memória é que delimitamos o conceito de paisagem:
Caminhar nessa direção tem significado lembrar sempre que incorporar com legitimidade
a fala daqueles que entrevistamos, e considerá-las devidamente como atos interpretativos
da realidade que estudamos; é lembrar que as entrevistas orais, por sua própria natureza,
não se fazem com técnicas e, sim, com relações humanas em que estamos desejosos de
conhecer melhor como cada pessoa vive e constrói essa luta, ou mesmo se submete. Tem
significado, também, trazer essas narrativas para dentro de nosso texto numa relação de
igualdade (KHOURY, 2006 p. 32).
Mesmo sabendo que essa relação de igualdade não é tarefa fácil, é a partir dessas
considerações que pensamos a análise das entrevistas. Porém, cabe ainda descrever como
estudamos a memória, pois quando trabalhamos com a História Oral, esta também deve ser
considerada.
A partir de Pollak (1992, p. 201-203), entendemos a memória como “um fenômeno coletivo
e social”, que está “submetido a flutuações, transformações, mudanças constantes”, mas, também
como “fenômeno individual”. É ainda entendida como “fenômeno construído”, consciente ou
inconscientemente, fruto de um trabalho de organização e seleção.
Portanto, passamos para análise das entrevistas. A primeira entrevista foi realizada com Sady
José Baldo, em 13 de setembro de 2013, na cidade de Cascavel/PR, na sua residência e comércio,
no período da tarde.
Baldo nasceu no atual município de Erebango/RS, no ano de 1947, e mudou-se em 1963 para
o espaço do estudo. Ele é um ex-empregado da IMAPAR4 (Industrial Madeireira do Paraná),
mas também trabalhou em outras indústrias madeireiras, exercendo diferentes
atividades e, posteriormente, trabalhou como motorista de trator na agricultura. No
momento da entrevista, possuía um pequeno estabelecimento comercial próximo à BR 467.
A entrevista de Sady José Baldo possui certa unidade narrativa, que expressa uma visão
ambígua: positiva e negativa, sobre os seus trabalhos no passado. No início ficamos sabendo que
se mudara, junto a seus pais, para o espaço estudado e que já na adolescência trabalhava na indústria
madeireira.
Na narrativa é o trabalho que molda a paisagem: “[...] Os menores não podiam trabalhar, nem
aguentavam trabalhar com madeira pesada, como eu era. Primeiro era madeira mesmo, pinheiro
grande; então era a base de aproveitamento.” (BALDO, 2013, s/p.). Assim, relata seu cotidiano de
4
Industrial Madeireira do Paraná (IMAPAR), no ano de 1948, passou a atuar em Cascavel, a partir da
compra das serrarias (Central Lupion e São Domingos), pertencentes a Moysés Lupion, (Governador do estado
do Paraná, nos períodos de 1947 a 1951 e 1956 a 1961). Foi a maior empresa madeireira a se estabelecer no
município, tendo três serrarias, uma beneficiadora e operando também na exportação de madeira, com “depósitos
de embarque nos portos de Foz do Iguaçu, Antonina, Paranaguá e Porto Alegre. Diversifica nos anos 1970 suas
atividades, atuando também na agricultura e na pecuária”. Sendo uma destas propriedades agrícolas, a fazenda
Cajati que “era de propriedade da empresa Imapar-Cajati Reflorestamentos e Agricultura Ltda”. Atualmente, esta
terra encontra-se destinada à Reforma Agrária. A IMAPAR tinha sua sede situada anteriormente no município de
Caxias do Sul/RS e, depois em Foz do Iguaçu. Seus proprietários eram Renato Festugato e Florêncio Galafassi;
este permaneceu como sócio até o ano de 1963, depois organizou outra empresa madeireira. Essas informações
estão disponíveis em SPERANÇA, A.; SPERANÇA, C., 1980, p. 91-92 e no site: <http://www.incra.gov.br/
incra-compra-fazenda-cajati-em-cascavelpr>. Acesso: 19/12/2017. Porém, devido às informações disponíveis, a
partir das entrevistas desta pesquisa, é provável que a IMAPAR tenha atuado em mais setores com um número
maior de estabelecimentos.
trabalho o qual consistia no aproveitamento de madeira, produzindo cabinhos de
madeira, 5 serviço considerado menos árduo, já que poderia ser exercido por menores de idade.
Se na narrativa de Baldo (2013, s/p.) é trabalho que molda a paisagem, as mudanças
nesta estão associadas aos seus diferentes trabalhos. Desse modo, descreveu que trabalhou por
mais ou menos dois anos no aproveitamento de madeira e, posteriormente, passou para a
função de “pé de fita”, na qual era serrada a madeira. Depois passou a ser bitoleiro,6 por três
anos e, em seguida, foi trabalhar como serrador de madeira. Acrescentou ainda na sequência:
“[...] larguei mão e fui para o mato, daí fui puxar tora. Fui trabalhar com trator, dai fiquei
lá até terminar a serraria. ‘Acabou’ as madeiras, daí eles mudaram para São Miguel do
Iguaçu-PR”. Após isso, narrou que passou a trabalhar para outra empresa, a IMARIBA: “daí
eu fui trabalhar na roça dele ali na... como é que é? Lavoura, como é que é, era... Santa
Izabel... parece que é o nome da firma dele, [...] na agricultura”.
Assim, constrói sua trajetória, como um sujeito ativo, nos diferentes níveis do trabalho
nas madeireiras, do menor salário até um salário mais alto. Na construção de sua trajetória,
percebemos uma divisão do trabalho, a partir da experiência do trabalhador e da sua idade;
portanto se construía uma “carreira” na sequência profissional dentro da serraria.
Esta trajetória dos trabalhadores das madeireiras se finda com o término do que se
chamou no município de “ciclo da madeira”. Ou seja, quando não havia mais uma vegetação
considerável para exploração, as madeireiras mudavam para outros lugares, e seus
trabalhadores, se não as seguiam, iam trabalhar na agricultura, a qual foi possível a partir das
transformações geradas pelas ações das madeireiras.
No trecho a seguir, podemos analisar a ambiguidade na narrativa de Baldo (2013, s/p.), sobre
o período de seu trabalho nas madeireiras:
[...] a serragem ia tudo para o rio! O que não ia para o rio ficava num monte lá. Volta e
meia queimava aquilo lá, a e maioria foi tudo para o rio. A firma aí que fazia. Fazia na
beira do rio já pra poder levar a serra, aquilo lá matava peixe cara! Madeirama, sei lá, tinha
madeira que ela é venenosa, matava os peixes tudo. Tinha até um cipó que se você batesse
o cipó no meio da água aqui para baixo aí morria tudo [os peixes]. Era muito bom naquele
tempo! Mas era ruim também! Porque era só mato, aqui não adiantava você caçar bicho.
Você não precisava sair caçar com cachorro, se achava onde quer. Eu não era muito de
caça, mas tinha meu pai e os outros caras que gostavam e saíam cedo caçar [...]. Eu, o meu
era jogar bola, gostava de jogar bola, agora, caçar, não.
Nesse trecho que Baldo descreve o destino da chamada serragem (resto de madeira), é
demostrada a sua percepção sobre o período como bom e ruim; ruim porque era só “mato” e bom
5..Estes cabos de madeira são utilizados basicamente para a produção de rodos, vassouras e outros
materiais. .
6 Bitoleiro pode ser caracterizado como o funcionário dentro da serraria, responsável pela definição da
espessura da madeira e por transportar as toras de madeira até serrador.
porque era fácil de caçar. A caça, como o futebol, era vista como o lazer naquele período. Já o mato,
pode representar a ausência, talvez de um centro urbano, portanto mais pessoas, com escolas,
hospitais, pavimentação nas ruas e outros benefícios para a vida humana. Porém, o mato pode ser
ainda a existência, de algo incômodo, algo que se desejava eliminar, mas ambas as conotações são
complementares.
Todavia, é provável, ainda que rememore esses fatos em uma comparação passado/presente.
Deste modo, hoje existem poucos peixes nos rios, talvez por isso, conecte diretamente o trecho
sobre a abundância de peixes com a afirmação “era muito bom naquele tempo”, e logo em seguida,
fale da abundância de “caças”.
Também, podemos estudar a percepção de Baldo sobre a transformação da paisagem, quando,
no final da entrevista, foi questionado sobre a ação das madeireiras para o município de Cascavel.
A visão apresentada, a partir da pergunta, traz a interação entre os tempos: passado, presente e
futuro, em uma ordem linear, cronológica e ascendente. Para ele, foi necessária a ação das
madeireiras e sem elas não seria possível ter a agricultura, elemento descrito como central para a
economia do município: “hoje... o Cascavel hoje é agricultura. Então não adianta... Hoje tem o [Jacy
Miguel] Scanagatta, têm os mais velhos aí que são tudo rico, tudo eles tinham terra com pinheiro
em cima”. Suas queixas são no sentido do uso não racional dos recursos provenientes das florestas:
Eles tinham que desmatar, só que eles não aproveitaram. O certo seria eles cortarem menos
madeira, jogar menos fora; esse que é o problema. Não é só eles não, é em todo o país
nosso. Em todo país nosso, eles jogaram muita madeira fora; eles não pensavam no
amanhã, né? (Sady Baldo, 2013, s/p.)
Apesar de ser crítico ao uso não racional,7 por parte dos madeireiros, observou que
isso seria uma prática corriqueira, feita por todos. E como proprietários da terra, eles tinham o
direito de usufruir de tudo que nela estava. Desse modo, a crítica de Baldo não recai sobre o
desmatamento, mas sobre o não aproveitamento total, dentro de uma lógica do maior lucro
possível.
A segunda entrevista que será analisada é com Jeronimo Rodrigues. A entrevista foi
realizada na casa de sua filha, no mesmo dia e município da anterior, sendo esta no período da
noite.
Rodrigues nasceu no ano de 1949, no município de Canoinhas/SC, e mudou-se em 1968
para a região de Mato Queimado (atual município de Campo Bonito/PR). Seu primeiro
trabalho, no espaço do estudo, foi na agricultura, através do arrendamento de terras. Em
seguida trabalhou cerca de 6 anos, também na IMAPAR, até se casar, quando voltou a atuar
na agricultura. Após um tempo, voltou a trabalhar na indústria madeireira, em diversas
empresas, exercendo diferentes atividades.
7 A ideia de uso racional da natureza também é defendida por movimentos ambientais, como
conservacionista, corrente ideológica que surgiu no fim do século XIX, e defende a preservação da natureza
aliada ao usoracional e “manejo criterioso pela nossa espécie, executando um papel de gestor e parte integrante
do processo”. Tais ideias servem de base para movimentos atuais. Disponível: http://
mundoeducacao.bol.uol.com.br/biologia/preservacao-ambiental.htm. Acesso: 07/06/2017.
No período da realização da entrevista, declarou estar com dificuldades para se aposentar e
trabalhava ainda trabalhador rural.
Rodrigues (2013, s/p.) iniciou a sua narrativa descrevendo os motivos de sua mudança, junto
à sua mãe e irmãos, para o estado do Paraná. Deslocaram-se do estado de Santa Catarina devido às
dificuldades que passavam; no período tinha 18 anos. Ele descreveu sua trajetória de idas e vindas
do trabalho da agricultura para as madeireiras.
O trabalho na madeireira apareceu inicialmente como uma alternativa para quem não possuía
a propriedade da terra, como era o caso de sua família. Rodrigues demostrou que fora feito uma
ação de convencimento de que a empresa madeireira os oferecia melhores condições de trabalho
que como arrendatários de terra.
Em sua narrativa, é exaltada a sua a ação como um bom trabalhador ou como se reconhecia
na época: “operário”, mesmo recebendo um salário considerado por ele como uma “mixaria”, ou
insuficiente, ainda aguentando serviços cansativos. Neste sentido, ainda, argumentou:
[...] Industrial Madeireira. É foi uns dos que começou aí; então foi isso aí. A gente
trabalhou muito, em muito serviço pesado. Ah, hoje eu estou estourado. Não aguento mais
por causa disso, porque, nós pegávamos em dois pranchões de cinco metros e meio
banhado de água pra bater na altura daquilo ali (demonstra com as mãos comparando) [...].
Então, forçava tudo o que você tinha de força. Na realidade, a gente foi se machucando.
Eu mesmo tenho uns acidentes, tenho um par de acidentes. E depois quando voltei para
roça também levei uns acidentes. Daí eu aprendi a trabalhar com colheitadeira, com trator
de pneu, trator de esteira, porque eu ... o que me davam de chance... O cara falava: -“Você
quer trabalhar?” Não, falava. Você sabe, eles falavam. “Você quer?” Eu falava: “Eu
quero”. Entrava lá e dava conta; dei conta do recado. Graças a Deus! E eu, o serviço mais
pior que eu trabalhei em tudo, que eu me lembre que eu sofri muito, era cortar tora com
motosserra. Eu levei, eu escapei de muitos acidentes perigosos. Já era pra tá podre embaixo
da terra, quando eu trabalhei com o Sarolli [Madeiras]. Me pagou direito, me pagou. O
que eu ganhei eles pagaram, mas foi péssimo, péssimo mesmo. (Jerônimo Rodrigues,
2013 s/p).
Nesse trecho, além de reforçar sua imagem como um bom trabalhador, Rodrigues, apresentou
um pouco das condições de trabalho que enfrentou. Em toda a sua narrativa, são relatadas condições
semelhantes a essas, que geraram acidentes de trabalho, não só sofridos por ele, mas também por
seus colegas. Igualmente, relatou o frio, a geada, a comida fria e outras condições de trabalho na
agricultura e nas madeireiras, descritas por ele como sofrimento: “[...] a gente sofreu muito, muito
mesmo. Vou te dizer que não foi fácil [...]”. Junto a esse sentimento, há a constante menção ao seu
esforço para ser sempre um bom trabalhador, como: “[...] eu, toda vida, fui infernal no serviço [...]”.
O que também é observado a seguir:
[...] Todo o meu serviço que eu encarei, não é pra se gabar, mas todo o serviço que eu
encarei, eu encarei com aquela, de coração aberto, para fazer mesmo pra não deixar furo.
E em toda parte que eu fui, que eu trabalhei fui bem recebido, de onde eu saí, as pessoas
não queriam que eu saísse e então sei lá. Hoje estou aí, não recolhi para se aposentar. Eu
estou com 63 anos, 64 anos. Até hoje eu estava comentando com o vizinho aí, eu falei:
“eu vou esperar chegar aos 65 anos, depois eu vou correr atrás”. Porque não adianta agora,
não tem nada ainda porque tem que ser com 65, mas eu tenho certeza que, pelo o que eu
estou vendo hoje na nossa, nosso governador, nossas pessoas que dominam nós, o que a
gente tem visto ai é que acho que a gente trabalhou que nem cavalo e que nem cachorro,
ganhando as mixarias e a gente não vai ter valor, não vai ter valor nenhum! [...]. (Jerônimo
Rodrigues, 2013, s/p).
Rodrigues argumentou ter sido um bom trabalhador, mas se queixa das condições de trabalho
e das dificuldades para conseguir se aposentar. Aqui cabe consideramos o que Khoury (2006, p. 31)
escreveu em texto já citado:
Nas entrevistas estamos no espaço e no tempo de nossos entrevistados. Eles narram a partir
de seu próprio presente, trazendo experiências passadas. Nesse sentido, nosso exercício é
compreender não um passado dado, mas os significados atribuídos a esse passado no
momento presente dessas pessoas.
De tal modo, a narrativa de Rodrigues (2013, s/p.) esclareceu que suas dificuldades para
conseguir a aposentadoria, no momento da entrevista, decorrem do fato de ele ter, ao longo de sua
vida, trabalhado em diferentes empresas, sem terem recolhido os impostos destinados à
aposentadoria, além das mudanças de serviços. Isso ocorria porque acreditava nas propostas que os
proprietários faziam, de que se fosse trabalhar em suas empresas ganharia um salário maior. Porém,
por meio de um caso especifico, explicou que muitas destas promessas não eram cumpridas como
combinado, como se pode observar em sua fala: “me iludia e dava até dinheiro adiantado, eu pegava
e ia para lá e era assim”. Outra questão presente, no trecho acima da entrevista, é a desumanização.
Rodrigues comparou suas condições de trabalho às de animais irracionais.
No final da entrevista, como foi questionado a Baldo, Rodrigues foi interrogado acerca de
sua visão sobre a ação das madeireiras para o município de Cascavel. Ele disse:
Olha, minha filha, se eu te falar a pura verdade, eu não sei se eu estou mentindo ou falando
errado, mas eu acho que se essas madeireiras, esses caras, esses “tubarão”, se essas pessoas
pensar em um pouco mais, nós vamos morrer tudo queimado, nós vamos acabar morrendo
tudo queimado! Porque você está vendo o tipo que está vindo o calor, por que está vindo
esse calor? Porque não temos árvore para suportar, para resfriar o chão, que o calor tá
vindo do chão, você não nota? Você anda descalço aí na [inaudível] te cozinha toda a sola
do pé. Por quê? Porque não tem sombra! Você vê, tem uma árvore aqui mais lá por roda
não tem nada. Daí o que acontece: resseca aquela terra lá e vem ressecando até no pé da
árvore; a árvore chega a morrer. Então, se os “tubarões” não tiver um pouco mais de
piedade e no lugar de [inaudível] plantar umas árvores, eu não sei! Não sei, sei lá se a
gente, às vezes, pode; é que a gente não tem estudo. Então, a gente não pode se aprofundar
muito de querer falar muita coisa, que as vezes está falando coisa errada. Mas eu acho que,
no meu ver, porque no tempo, do tipo que eu entrei naquele tempo aí, chovia na hora certa,
dava mantimento, Nossa Senhora! E foi acabando, acabando e tá no que tá. Então não está
faltando água? Não está faltando água? Naquele tempo tinha água em abundância. Onde
é que você ia, nos matos lá onde nós morávamos, onde é a terra do meu sogro, onde quer
tinha uma mina de água, hoje não tem mais! Desmataram tudo, tiraram tudo, a sombra,
então. [...]. (Jerônimo Rodrigues, 2013, s/p).
Rodrigues, do mesmo modo que um dos entrevistados do artigo produzido por Alfredo R. S.
Lopes e Eunice S. Nodari (2012, p. 66), sobre a percepção da degradação da Lagoa de Sombrio/SC,
construiu seu “relato atentando para a magnificência da natureza em épocas passadas”, destacando
um “passado vivido, um passado perdido, mas não perdido no tempo, [...]. Esse passado está
perdido porque o meio ambiente se transformou, foi degradado”.
Contudo, apesar de ter uma visão crítica sobre as transformações da paisagem, Rodrigues se
sente bastante receoso em falar sobre o assunto. Talvez isso ocorra porque ele, como outros, é um
sujeito que pertence, ao que o autor português Boaventura de Sousa Santos (2009, p. 23) definiu
como “pensamento abissal”.
Esse é o pensamento moderno ocidental, que divide o mundo, entre os visíveis e os invisíveis,
através de uma linha, deste e daquele lado. Assim, um lado desaparece como realidade, tornando-
se inexistente de maneira radical.
O campo do conhecimento é uma das manifestações que melhor representa este pensamento.
Neste campo, a ciência moderna possui o monopólio da distinção entre o verdadeiro e o falso, entre
o científico e o não científico, em detrimento dos demais conhecimentos. Assim, podemos pensar
que Rodrigues tem e mantém o seu conhecimento sobre as transformações da paisagem. No outro
lado, no não científico, no qual “não há conhecimento real,” o que existe são crenças, opiniões,
magia. Neste lado, se encaixam os conhecimentos “populares, leigos, plebeus, camponeses, ou
indígenas”, conhecimentos que, dentro do pensamento abissal, só conseguiram, na “melhor das
hipóteses”, tornarem-se objetos ou matéria-prima para a investigação científica, o que,
conscientemente, fazemos aqui (SANTOS 2009, p. 25).
Assim, foi a partir das mudanças na paisagem que Rodrigues (2013, s/p) definiu o fim de sua
ação nas madeireiras. Primeiro, passou a trabalhar com o trator para “destocar”, retirando o restante
da vegetação que ficou na terra após a exploração das árvores, e argumentou: “outra coisa também
que acabou, o material, acabou o pinheiro. Se vocês pensarem isso aí acabou, tiraram tudo, os
pinheiros, a madeira de lei [...], os caras limparam, tiraram tudo”.
De tal modo, define que as madeireiras foram parando de operar no município, as pessoas
foram ficando desempregadas. Aqueles considerados por Rodrigues como os “com mais sorte”
foram trabalhar com as máquinas na agricultura, como foi seu caso: “veio para esse lado, se obrigou
a vir pra esse lado, obrigou-se, igual os outros falam, se não se explica de aprender ia começar a
passar fome”. Contudo, Rodrigues não vê como um processo tranquilo essas mudanças e refletiu
sobre quando começou a trabalhar com os tratores na agricultura:
[...] começou os tratores, começou a entrar, aí tinha o tal de “boia-fria”, que vocês sabem
muito bem disso aí. Aí, de repente, vem o veneno e acabou com os boias-frias também.
Primeiro eles acabaram com a agricultura, lá em baixo com a agricultura pequena, que era
feijão, milho e arroz, essas coisas. E aí os pinheiros também acabaram e saiu a agricultura
com trator, que é o plantio de soja, trigo essas coisas. E aí o que aconteceu? Aí a turma
começou vim. Aí o cara teve que se explicar, aí teve que pular naquele galho, aí é segurar
firme para não perder o emprego. (Jerônimo Rodrigues, 2013, s/p).
8..Todas estas mudanças contribuíram para tornar o Brasil, “nos dias de hoje, o maior consumidor
mundial de agrotóxicos”, e o município de Cascavel, em primeiro lugar no Estado do Paraná. Fontes:
ALENTEJANO, 2012, p.480. Disponível: https://g1.globo.com/bemestar/noticia/brasil-e-o-pais-que-mais-
consome-agrotoxicos-no-mundo.ghtml. Acesso: 13/12/2017. DUTRA, Lidiane Silva; FERREIRA, Aldo
Pacheco. Associação entre mal formações congênitas e a utilização de agrotóxicos em monoculturas no
Paraná, Brasil. Saúde em Debate[online]. 2017, v. 41, n. spe2, pp. 241-253. Disponível em: <https://
doi.org/10.1590/0103-11042017S220>. ISSN2358-2898. https://doi.org/10.1590/0103-11042017S220. Acesso:
13/12/2017.
como soja e o milho, as quais contribuíram também para a diminuição da agricultura em
propriedade de pequeno porte.
As narrativas de Baldo e Rodrigues são compostas por pontos em comum, a exemplo: de ser
bom trabalhador e do esforço no trabalho pesado. De tal modo, podemos considerar o que escreveu
Pollak (1992, p. 205): “[...] a imagem que uma pessoa adquire, ao longo da vida, referente a ela
própria, a imagem que ela constrói e apresenta aos outros e a si própria, para acreditar na sua própria
representação, mas também para ser percebida da maneira como quer ser percebida pelos outros”.
Assim, a imagem que esses trabalhadores construíram sobre si durante as entrevistas é a imagem
que gostariam que tivéssemos, reelaborando suas memórias, construíram suas identidades.
Entretanto, apesar de existirem pontos comuns nas narrativas, há outros elementos que
são próprios das vivências de cada um dos entrevistados, como pareceu ser as percepções sobre
as transformações da paisagem.
Mas, no entanto, ambos, reelaboram essas percepções a partir da relação do passado com
o presente. Portanto, podemos pensar no que escreveu Thomson (1997, p. 57), em seu artigo
sobre a relação entre a História Oral e as memórias:
ALENTEJANO, Paulo. Modernização da Agricultura. In: CALDART, Roseli Salete et al. (Org.).
Dicionário da Educação do Campo. Rio de Janeiro, São Paulo: Escola Politécnica de Saúde
Joaquim Venâncio; Expressão Popular, 2012. p. 479-483.
KHOURY, Yara A. O historiador, as fontes orais e a escrita da história. In: ALMEIDA, P. R. de;
KHOURY Y. A.; MACIEL, L. A. Outras histórias: memórias e linguagens. São Paulo: Olho d’
Água, 2006.
LOPES, Alfredo Ricardo Silva; NODARI, Eunice Sueli. O que é da natureza não se mexe:
memória e degradação ambiental na Lagoa de Sombrio/SC (1960-2010). História Oral, v. 1, n.
15, p. 55-80, jan-jun. 2012.
POLLAK, Michael. Memória e identidade social. Estudos históricos, Rio de janeiro, v. 5, n. 10,
1992.
SANTOS, Boaventura de Sousa. Para além do pensamento abissal: das linhas globais a uma
ecologia de saberes. In: _____; MENESES, Maria Paula (Org.). Epistemologias do Sul. Coimbra:
Almedina, 2009. p. 23-71.
SCHAMA, Simon. Paisagem e memória. São Paulo: Companhia das Letras, 1996.
THOMSON, Alistair. Recompondo a memória: questões sobre a relação entre a História Oral e as
memórias. Projeto História, São Paulo, 15, p. 51-84, abr., 1997.
Entrevista concedida por Sady José Baldo a Daniele Brocardo. Cascavel/PR, residência e comércio
de Sady José Baldo, em 13 de setembro de 2013.
1 Este artigo é, em grande medida, desdobramento de questões abordadas na pesquisa de doutorado defendida
em 2016, junto ao Programa de Pós-Graduação em História da Universidade Federal do Paraná, sob
orientação do professor Carlos Lima. .
*.Doutora em História.
2 Quando aparecer no texto a expressão Movimento, com a inicial maiúscula, estamos nos referindo ao MST; nos
casos em que estiver com inicial minúscula, trata-se de outros movimentos sociais.
região Sul para os vários estados nordestinos. Em geral, são jovens, filhos de pequenos agricultores
e com educação formal obtida nos organismos da Igreja Católica.
Rapidamente, apresentamos os/as entrevistados/as e a justificativa para cada escolha3:
A primeira militante é Fátima Ribeiro: natural do Espírito Santo (ES) iniciou sua atuação política
nas Pastorais e sindicatos do estado. Com apenas 19 anos de idade assumiu o desafio da migração.
Foi para o Ceará, lá permanecendo por onze anos, seguidos de mais dez anos no estado do Rio
Grande do Norte, onde desenvolveu funções organizativas e dirigiu instâncias do MST. Outro
militante é Carlos Bellé: oriundo do Oeste de Santa Catarina, filho de pequenos camponeses,
ingressou no seminário com a finalidade de estudar. Teve forte atuação no trabalho pastoral da Igreja
Católica, inclusive ocupando funções de direção na Comissão Pastoral da Terra (CPT) e no
assessoramento para o MST. Foi enviado para o estado do Maceió (AL), logo após seu casamento
com Zenaide. O depoimento de Bellé se ocupa em contextualizar as condições de vida e trabalho
dos trabalhadores rurais, estabelecendo quadros comparativos entre o camponês do Sul (seus
hábitos alimentares, sua relação familiar e sua relação com a terra) e os nordestinos do campo; os
elementos da formação teórica dos militantes e as diferentes versões acerca da acusação de
“interferência sulista” no Nordeste, sobretudo aquelas oriundas da Igreja.
A militante Zenaide Busanello, carinhosamente chamada por Zena, é do interior de Santa
Catarina. Ingressou em uma congregação religiosa motivada pela possibilidade de prosseguir seus
estudos. Aos poucos, começou a participar de atividades, as chamadas “vivências”, nas
comunidades rurais, onde foi possível sua aproximação com o MST. À medida que avançava seu
interesse, também estreitava seus vínculos, passando a assumir tarefas de solidariedade e logística
entre os movimentos sociais, sindicatos e Igreja na região do Oeste catarinense. O relato de Zenaide,
muito emotivo, permite-nos perceber o desconhecimento da realidade nordestina, bem como
estabelecer várias relações entre o modo de atuação do Sul e o perfil e as características dos
acampados no Nordeste.
Outro militante de destaque é Jaime Amorim: extremamente gentil e bem vestido, Jaime,
disponibilizou várias horas do seu tempo. Jaime atuou em vários estados e despontou como uma
liderança regional, transformando-se rapidamente num “quadro” nacional, devido às suas
características pessoais e seu carisma. Igualmente importante foi o depoimento de João Daniel.
Natural de São Lourenço do Oeste (SC), filho de pequenos agricultores, ingressou no seminário em
Santa Maria (RS) para dar continuidade aos seus estudos. Permaneceu por dois anos, precisando
abandonar devido às dificuldades financeiras da família. Assim como outros militantes, esteve à
disposição do MST e percorreu vários estados do País.
3 Utilizamos os nomes verdadeiros dos entrevistados por compreender que estamos lidando com pessoas
públicas, sendo comum encontrarmos seus nomes em publicações internas, no Jornal Sem Terra e na
imprensa falada e escrita dos seus respectivos estados. Essa escolha contou com o conhecimento e
consentimento dos entrevistados.
As duas últimas entrevistas foram realizadas com duas mulheres de muita fibra. A primeira
com Dilei Schiochet, em Lagoa Seca, na Paraíba. Natural de Joinville (SC), Dilei, ingressou na vida
religiosa na Congregação das Irmãs Catequistas Franciscanas, onde teve a oportunidade de
participar de algumas atividades com as comunidades rurais. Antes de fixar residência na Paraíba,
em 1997, Dilei atuou dentro de um formato de circularidade pelos estados nordestinos; dessa forma,
esteve presente nas primeiras ocupações de terra em praticamente todos os estados nordestinos. A
outra militante, Maria Izabel Grein, também do Norte catarinense, iniciou sua militância no Rio
Grande do Sul (RS), no convento vinculado à Ordem Franciscana, na cidade de Santa Maria (RS).
Não esteve diretamente no Nordeste. No entanto, ela selecionou, acompanhou, orientou e
viabilizou, em conjunto com a Direção Nacional do MST, a ida de vários militantes para lá. O
depoimento de Izabel auxilia na compreensão dos critérios adotados para a seleção dos militantes
migrantes, na visualização do contexto para a constituição de lideranças e no delineamento do perfil
delas.
Nos primeiros anos, o MST possuía uma linha de atuação particularista; sua plataforma
política abarcava exclusivamente os trabalhadores rurais, em especial, os sem- terra. A partir do
final da década de 1980, período de deslocamentos de militantes sulistas, seu horizonte de atuação
foi alargado. O MST apresenta um projeto de sociedade, o qual visa a superação do modo
de produção capitalista.4 Dialogando com a teoria marxista, o pano de fundo do projeto de
sociedade é baseado na transformação das relações sociais.
Nesse ínterim, estabeleceu uma política de alianças com sindicatos e demais movimentos
populares. Ao mesmo tempo, por meio de marchas e passeatas, buscou maior diálogo com a
sociedade e visibilidade no cenário nacional. Podemos acompanhar a transformação do MST e a
proposta de incorporação de outros setores a partir das palavras de ordem definidas nos seus
Congressos e Encontros Nacionais. Segundo Ariovaldo Oliveira (2001), um dos caminhos para
entendê-la é seguir a trilha desses eventos:
Quando ocorreu a formação do MST, na década de 80, o lema era Terra para quem nela
trabalha (1979-83). Quando começou a enfrentar resistência ao acesso à terra, um novo
lema surgiu: Terra não se ganha, terra se conquista (1984). Ao se fortalecer e avançar,
sobretudo durante o governo Sarney, percebendo que o Primeiro Plano Nacional de
Reforma Agrária não estava sendo implementado, os lemas passaram a ser: Sem Reforma
Agrária não há democracia (1985) e Reforma Agrária já (1985-86). Com o aumento da
violência, que não atingiu apenas os trabalhadores, mas lideranças, advogados, políticos,
4
No plano discursivo, o projeto de sociedade do MST sustenta-se na distribuição de renda, na eliminação das
desigualdades sociais, na hegemonia da classe trabalhadora, cujo eixo teórico é encontrado no socialismo.
religiosos etc., o MST mudou suas palavras de ordem: Ocupação é a única solução (1986),
Enquanto o latifúndio quer guerra, nós queremos terra (1986-87) e, por ocasião da
Constituinte, Reforma Agrária: na lei ou na marra (1988) e Ocupar, Resistir, Produzir
(1989), depois que os assentamentos começaram a ser conquistados. (OLIVEIRA, A.,
2001, p. 196).
Esse quadro demonstra como a linha política do MST foi constantemente reavaliada e
modificada durante o seu processo de constituição. Evidencia, também, suas ambições de
constituir-se nacionalmente e de gozar de maior representatividade política e social.
O I Congresso Nacional do MST serviu para o diagnóstico das realidades e potencialidades
regionais. Em paralelo, articulou uma rede de apoio e solidariedade, composta pelos Sindicatos dos
Trabalhadores Rurais (STRs), Pastorais e demais lideranças sociais, para o recebimento dos
militantes e o fornecimento de suporte (humano, físico e financeiro) para a viabilização das ações
propostas pelos sulistas nos estados nordestinos. No Jornal Sem Terra, durante todo o segundo
semestre do ano de 1985, observamos essa linha argumentativa, seja convocando as entidades para
atividades conjuntas, seja fornecendo-lhes espaço para expressar suas pautas e opiniões acerca da
conjuntura e/ou de um tema específico no seu jornal, ou denunciando as perseguições dos militantes
sindicais e religiosos.
Sobre os objetivos de expansão do MST, encontramos no I Programa de Reforma Agrária
(1984), item 6 dos “Princípios práticos”, uma parte das justificativas e motivações para o
deslocamento de militantes: “[...] ampliar o movimento nos municípios e regiões onde ainda não
está organizado” (STEDILE, 2005, p. 178). Já o Plano Nacional do MST, aprovado no ano de 1989,
traça metas para a expansão até o ano de 1993, incluindo a preparação para o II Congresso Nacional
do MST (1990). De forma elucidativa, apresentamos duas das resoluções presentes no documento.
A primeira determina no item 44: “ampliar a capacidade de organização, mobilização e ação, nos
estados onde predominam os trabalhadores rurais, especialmente no Nordeste”; e, a seguinte
diretiva no tópico 50: “Desenvolver uma política de organização massiva e de ampliação do
Movimento, segundo as regiões prioritárias e de maior concentração de trabalhadores rurais sem-
terra”. Ou seja, o Nordeste a partir da análise e do mapeamento realizado no I Congresso Nacional
apresenta-se como região prioritária e privilegiada para a estruturação do MST.
O fragmento, abaixo, da entrevista com João Daniel fornece-nos pistas sobre o processo de
avaliação interna do MST, as potencialidades da região nordestina e as articulações subsequentes –
as quais buscavam assegurar as condições para a militância do dirigente deslocado.
Para o militante Jaime Amorim, existia apenas um caminho para pavimentar o processo de
nacionalização:
A saída era deslocar gente para ajudar a construir o movimento de massa no Nordeste. Foi
nesse momento, de 86/87 que vários militantes, principalmente de Santa Catarina, onde o
movimento se estruturou mais rápido em função de que havia uma organização de base
mais forte, principalmente das CEBs, eram militantes que estavam na Igreja, nas
Comunidades Eclesiais de Base, e que estavam na Pastoral da Terra, estavam no PT e
estavam no MST também. Então, por isso, também que no início o movimento de Santa
Catarina teve mais facilidade de formar quadros dirigentes, principalmente os advindos
daí das Comunidades Eclesiais de Base que precisavam ir também se constituindo como
dirigentes políticos [...]. E muitos deles foram convidados para vir ajudar a construir o
movimento no Nordeste. (Entrevista concedida por Jaime Amorim, 2013).
Na prática, esse processo de migração impulsionado pelo MST deve ser analisado de
diferentes perspectivas. De acordo com a documentação interna e com as entrevistas realizadas,
percebemos um “desconhecimento” acerca da realidade nordestina, das organizações já instaladas
e de seus dirigentes. Carlos Bellé recorda, em terceira pessoa, os desafios para um militante
migrante, jovem e com um conhecimento circunscrito à sua comunidade, migrar para outras
regiões:
[...] apresentar a um filho de pequeno agricultor, que conhecia apenas os limites do
município, a possibilidade de construir o Movimento em outro lugar. Não tem como! Não
é uma aventura que você vai fazer. É uma prática desde que eu conheço o Movimento.
Ninguém vai para as atividades ou representações sem antes ter o mínimo de preparação.
(Entrevista concedida por Carlos Bellé, 2013).
Teve um momento lá, nós estávamos caminhando, tinha um companheiro de São Paulo
que também estava com a gente ajudando nesse processo; era um momento de romaria. E
tinha uns militantes nossos que não entendiam como eles iam de pau de arara, carregar
pedra na cabeça para ir lá em cima, na imagem de São Francisco. E alguns perguntaram:
vocês são doidos ir de joelhos, com pedra na cabeça. E o romeiro ainda respondeu: vocês
são mais doidos que nós, porque eu não tinha coragem de vir a pé de lá não sei aonde até
Fortaleza caminhando. (Entrevista concedida por Fátima Ribeiro, 2011).
Durante todo o ano, muitos romeiros e peregrinos se dirigem para a Basílica de São
Francisco de Chagas, em Canindé (CE), para realizar e pagar promessas. Observamos no
depoimento a existência de diferentes percepções sobre sacrifício e doação, resultado de uma
formação social, política e religiosa distinta. Abaixo, Carlos Bellé deixa claro que a continuidade,
o crescimento e a aceitação do MST dependiam dessa junção.
5
O militante refere-se ao padre Cícero Romão Batista, o padre Cícero. Possui influência política e religiosa
no Nordeste, com destaque para o Ceará.
Zenaide descreve as diferentes abordagens, os desafios e os choques culturais entre os
camponeses das comunidades nordestinas e os militantes sulistas.
A gente teve muita dificuldade, porque a gente tem um estilo totalmente diferente. O
pessoal do Sul quer mais impor as coisas. Eu acho, pelo menos, muito mais autoritário. E
a forma de a gente fazer as coisas no Sul é muito diferente do Nordeste. É gritante.
(Entrevista concedida por Zenaide Busanello, 2013).
Ocorreram acusações de interferência sulista, de não respeito à cultura local, entre outras.
Muitos depoimentos reconhecem que ocorreram excessos e inabilidades durante a chegada dos
militantes, na marcação e condução de reuniões, na organização das ocupações e demais atividades.
Os militantes deslocados do Sul estavam constituindo-se enquanto lideranças no fazer-se do
Movimento, ou seja, forjando-se enquanto quadros dirigentes, justamente no processo de
estruturação do MST. Por outro lado, recaía sob eles uma expectativa e a pressão por resultados
rápidos.
Em outra parte do depoimento, Zenaide reconhece os equívocos de condução dos militantes
sulistas e os compreende como parte de um processo de aprendizado, com destaque para a liderança
de Jaime.
Teve problemas, mas teve aceitação, e foi se construindo na verdade. O Jaime que eu acho
que o responsável por uma série de coisas boas que aconteceu no Nordeste. E que
entendeu essa questão de método, de como trabalhar isso, de não só impor, porque no
início a gente tinha que impor, tinha que impor mesmo, muito mais imposição para depois
começar a escutar as lideranças e o povo de lá. A gente foi meio que construindo junto
esse caminhar, que é muito diferente do Sul. O Sul é outro país. (Entrevista concedida por
Zenaide Busanello, 2013).
Nesta última seção abordamos fragmentos das entrevistas que demonstram o instrumental
analítico que os sulistas possuíam antes da migração e as mudanças decorrentes do relacionamento,
convivência e integração ao universo sertanejo.
Dilei descreve as transformações coletivas e individuais operadas antes, durante e após a
realização da marcha na Paraíba, no ano de 1997. Seu depoimento demonstra que a ocupação de
postos mais altos na Direção Nacional está diretamente relacionada com a expansão do próprio
MST na Paraíba; evidencia, também, a formação de novos espaços de sociabilidades; e, anuncia
uma nova abordagem na condução da luta pela terra, exemplificada pela alteração do método de
trabalho e na incorporação de distintas formas de luta.
Nós fizemos a marcha, 97, de um canto do estado a outro, de Cajazeiras a João Pessoa. E
essa marcha espalhou o MST no Estado todo. Nós pegamos 150 pessoas e fomos, acho
que 700 km. Foi uma loucura. Mas, foi uma marcha que acontecia em todos os estados do
Brasil. E essa marcha ouvia os problemas do povo, o que o povo queria e atrás ia um grupo
fazendo ocupação. E aí gente fez ocupação no sertão do Cariri. E aí a partir dessa marcha
que o MST começou a tomar o corpo de estado na Paraíba. Fiquei por aqui, fui
coordenando o Movimento, fui assumindo as instâncias, aí assumi a Direção Nacional.
Mas, assim...o MST antes era muito localizado numa região, e nós viemos e fomos
expandindo o Movimento. Essa foi minha tarefa na Paraíba. Foi cumprida. Como foi
cumprida a tarefa no Nordeste e consolidar o Movimento nos estados. Até aqui tarefa
cumprida. (Entrevista concedida por Dilei Schiochet, 2015).
Que também a gente tinha os relatos, não tanto por... eu acho que os relatos que a gente
tinha do semiárido, relatos da mídia que hoje eu desabono todos. Mas tudo bem. Se foram
aqueles relatos que me trouxeram até aqui e me ajudaram a construir um Movimento, e a
gente mudou a concepção hoje. Eu não vejo nenhum problema. Problema seria se você
mantivesse que os nordestinos são pobrezinhos, que, é... o semiárido é ruim. Hoje eu
tenho, a gente tem outra visão. (Entrevista concedida por Dilei Schiochet, 2015).
Dito isso, intuímos que o processo de expansão do MST foi construído por meio de embates,
disputas, críticas e autocríticas; por outro lado, pelo convívio, experimentação, solidariedade e
trocas entre os distintos rurais no Brasil, possibilitando, assim, uma maior coesão e unidade do
Movimento. Percebemos, dessa forma, um alargamento no olhar do MST, em grande medida,
resultante da política de deslocamentos de militantes; alargamento esse, capaz de aliar diversas
experiências (organizativas, produtivas e religiosas) e diferentes percepções, significados e relações
com a terra, em um único instrumento de luta, chamado MST.
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Roberta Barros Meira
Janaína Gonçalves Hasselmann
* Professora Drª. Docente do PPG Mestrado em Patrimônio Cultural e Sociedade da Universidade da Região
de Joinville - UNIVILLE.
** Mestranda no PPG Mestrado em Patrimônio Cultural e Sociedade da Universidade da Região de Joinville
-UNIVILLE.
candomblés de outras nações, em virtude, especialmente, da “mistura” que houve com indígenas e
ritos católicos.
À guisa de consideração, temos como foco de pesquisa as políticas culturais e patrimoniais
que partem do direito ao patrimônio presente nas comunidades de origem africanas. Cabe-nos
lembrar, que nas últimas décadas os espaços que evocam políticas públicas, sejam educacionais,
patrimoniais e/ou de saúde pública tornaram-se mediadores de discussões sobre searas como
multiculturalismo, direitos culturais e políticas de ações afirmativas, com escopo de reabilitação de
grupos sociais discriminados. A pertinência de tal expediente, no âmago das organizações culturais,
refere-se à premente necessidade de otimizar uma articulação entre educação patrimonial, educação
ambiental e a sociedade.
Acreditamos que nosso projeto possa ensejar o avanço das discussões sobre religiosidades
ou cosmovisões de matriz africana. Além disso, busca-se analisar a relação entre o patrimônio
religioso e o patrimônio ambiental. Nesse sentido, o projeto abrange os saberes populares que se
constituem no candomblé, que passa desde a coleta de folhas e raízes, a elaboração da cozinha
sagrada e os tradicionais cortes de bichos, especialmente através da História Oral.
A questão do respeito que as religiões de matriz africana possuem em relação à natureza
torna-se profundamente reveladora de patrimônios não oficiais salvaguardados por grupos
específicos da sociedade. Vejamos sobre isso, a fala do entrevistado Zamenga, para o trabalho de
Valdina O. Pinto:
A religião para um africano é antes de tudo vida, uma vida vivida no cotidiano. A sua
religião, ao menos a crença em um ser supremo, nasce da visão de mundo e reúne leis e
ligações que os vivos estabelecem entre o passado, os mortos, o presente e o futuro. Mas
também leva em conta as interações que se operam perpetuamente ou por intermitência.
Essas são as explicações que os membros duma sociedade dão ou tentam dar a todos os
acontecimentos da vida; são as ligações que os vivos estabelecem entre eles e os elementos
que os cercam. Esses elementos podem ser de natureza visível e invisível. Logo, a
concepção do mundo é feita da percepção do meio ambiente conforme o que se acha diante
do desconhecido ou inacessível. De saída, cada indivíduo ou grupo de indivíduos, leva em
conta o seu ambiente geofísico e cultural, com sua percepção, em consequência, sua visão
de mundo. Assim, os povos respectivos da savana, da floresta, das altas montanhas, das
regiões vulcânicas, das planícies, do litoral etc. têm cosmologia particulares. (PINTO,
2008, p.14).
Consideramos salutar esclarecer que nosso trabalho com o Nzo Inkise Nzazi teve como
proposta de captação de sentidos acerca dos saberes tradicionais, a metodologia da História
Oral. E em função dos terreiros se organizarem politicamente numa esfera hierárquica,
inclusive de produção, manutenção, e transmissão de saberes, nossos principais agentes são
suas lideranças.
Esses sujeitos são aqueles que possuem, por princípios religiosos, a autoridade de saber
e de ensinar, pois são eles, os responsáveis diretos na manipulação de ervas, banhos, chás,
infusões, cortes de animais, entre outros. Se faz mister reconhecer que estamos nos
relacionando com sujeitos que tiveram suas capacidades intelectuais, culturais e religiosas
reificadas por análises realizadas por espaços legitimados como nesse caso, a academia. À vista
disso, de toda historicidade que envolve o candomblé angola e sua posição “subordinada” ao
que se convenciou crer ser representativo de um patrimônio autêntico afro brasileiro, adotamos
como metodologia a História Oral.
Até então restrita à comunidade afetiva, as memórias de minorias geralmente
necessitam de frestas nas relações sociais e uma atmosfera favorável para se revelarem. Pollak
(1989) denominou esse tipo de memória como subterrânea. Em razão de um quadro inoportuno,
onde os discursos vigentes são deletérios a determinados grupos, as memórias são
compartilhadas somente no interior de grupos sociais, sejam eles, família, associações e núcleos
religiosos. Entrementes, essas memórias podem se expressar mediante novos horizontes de
expectativas. Conforme Pollak:
1 Considerados como axé do pó. “O Pó a que se refere o título também chamado de Zorra era preparado com
raízes, folhas, e muitos ingredientes próprios para feitiço. A receita só era conhecida pelos mais velhos; não
ensinavam para ninguém. Muitos babalorixás ficaram famosos por serem Bom no Pó ou Bom de Pó. Disponível
em <https://raizmassanga.blogspot.com.br/2008/06/histria-da-raz.html> Data de acesso 06 ago 2017.
O escopo deste trabalho foi trazer a lume os elementos estruturantes que norteiam um
projeto de pesquisa na efervescência dos debates sobre patrimônio cultural, especialmente
aqueles marginalizados. Consideramos mister conceber que o estado em seus dispositivos
legais reconhece as religiosidades de matriz africana como patrimônio, e outras esferas do poder
público também ratificam seus pareceres. Todavia, pouco se produz sobre o assunto para então
entendermos as demandas desses grupos em relação às políticas culturais e patrimoniais.
Geralmente os estudos avançam mais na questão da violência e depredação, sem buscar
compreender que saberes, quais festejos, celebrações e experiências vividas em roças de
candomblé são formadoras de seus patrimônios.
Exploramos nesse trabalho algumas dimensões que permeiam os saberes que se exercem
dentro de um terreiro de candomblé angola de forma a recolhê-los como valorativos para a
humanidade. Buscamos compreender algumas particularidades desses saberes que compõem o
conjunto de bens patrimoniais do candomblé angola por meio de narrativas de seus agentes.
Entrementes, diligenciamos um trabalho que pudesse aproximar memórias, protagonismos,
saberes, num jogo de alteridade. Concordando com Hall (2003), acreditamos que a cultura é
uma produção dinâmica.
[...] não é uma questão do que as tradições fazem de nós, mas daquilo que nós fazemos
de nossas tradições. Paradoxalmente, nossas identidades culturais, em qualquer forma
acabada, estão à nossa frente. Estamos sempre em processo de formação cultural. A
cultura não é uma questão de ontologia, de ser, mas de se tornar (HALL, 2003, p. 44).
ELIADE, Mircea. Imagens e símbolos: ensaio sobre o simbolismo mágico-religioso. São Paulo:
Martins Fontes, 1991.
HAMPATÉ BÂ, Hamadou. A tradição viva, em História Geral da África I. Metodologia e pré-
história da África. São Paulo: Ática; UNESCO, 1980.
MENESES, Ulpiano Toledo Bezerra de. O campo do patrimônio cultural: uma revisão de
premissas. In: I Fórum Nacional do Patrimônio Cultural, 2009, Ouro Preto. Anais... Brasília: Iphan,
2012. Disponível em: <https://goo.gl/cyta58>. Acesso em: 04 mar 2016.
PINTO, Valdina O. Educação para convivência pacífica entre religiões. Disponível em:
<https://goo.gl/1TXcmJ>. Acesso em 20 mar 2016.
O nosso objeto de análise enquanto elemento que indica o ressignificado de cultura está
nos depoimentos de nossos narradores tendo como referência a construção e a ideia de
Flona. São a partir das "referências dadas", com a memória, história e oralidade que
os moradores da territorialidade da Flona rearticulam sua identidade seringueira.
A Floresta Nacional do Macauã foi criada pelo Decreto Federal de Nº 96.189, de 21
de junho de 1988. A lei estabelece sua administração, conselho gestor e manejo para a área de
173.475 hectares de sua extensão, localizada na Amazônia Ocidental, na regional do Purus,
no município de Sena Madureira, às margens do Rio Macauã. A Flona é composta de
19 famílias, todas nascidas na própria floresta. De acordo com Josué da Silva Santos
(2010), o povoamento do Rio Macauã ocorreu no período áureo da economia da
borracha e seu despovoamento está relacionado à sua estagnação. Durante esse período,
inúmeras famílias fizeram o fluxo migratório dos seringais para as cidades como Sena
Madureira e Rio Branco. E é importante destacar que a manutenção de cinco troncos
familiares foram fundamentais para o repovoamento daquela localidade, os quais são assim
conhecidos: Antônio Lino do Nascimento (Antônio Gordo), Olímpio Cosme de Oliveira
(Seu Bebé), Guiomar Ramalho de Oliveira, (Dona Guiomar), Anália Cirino de Lima (Dona
Mocinha) e Francisca Soares do Nascimento (Dona Moça) (SANTOS, 2010, p. 101).
A criação da Floresta Nacional do Macauã no Rio Macauã instituiu aos seus
moradores uma nova forma de se rearticular com o meio, na qual foram inseridos vários
elementos de controle como representação do Estado, que foram "incorporados" no
cotidiano dos moradores, agora floneiros.1 Apesar de a Flona ter sua criação oficializada em
21 de junho de 1988, pelo decreto federal 96.189, os moradores passaram a ter
conhecimento, de sua existência, somente, a partir do ano de 2002, com as primeiras
visitas de agentes do Estado, os quais, com intensos processos de negociações foram
"convencendo os moradores da realidade posta".
De outra forma podemos conhecer Macauã de acordo com as percepções de uma
antiga moradora, Dona Guiomar. Com seu jeito muito particular de falar, com o tom bem alto
e animado, neste caso com aspectos de saudosismo e indignação política, é possível
descrever Macauã, local de suas lutas e desafios, comparando com a sua atual vida na
cidade de Sena Madureira. A senhora Guiomar Ramalho de Oliveira e seu esposo senhor
Olimpio de Oliveira vivem na cidade em virtude de problemas com doenças enfrentadas
pelo senhor Olimpio, conhecido como seu Bebé. Seringueiro que trabalhou enquanto lhe
foi possível manter a força e saúde, mas quando precisou dos serviços das entidades oficiais
bbb
* Doutorando na Universidade Federal de Santa Maria/UFSM; Mestre pela Universidade Federal do Acre/
UFAC.
1 Pessoas que vivem em territorialidades de Flona com singularidade de identidade típica.
para recuperá-la teve que abandonar "o seu" Macauã. Tal situação os têm deixado muito
abatidos pela vontade de viver no local de suas origens pelo qual revelam grande
apreço e saudade.
Tanta plantação que foi deixada, banana, era banana que era as iraras é quem dava
conta ó, e aqui se o cara quer comer uma palminha de banana é um real, tem deles que
ainda faz um real, mais é dois reais ó, num dô de jeito nenhum...se o cara quer um
quilinho de macaxeira é dois reais...tanta macaxeira menino que a gente tinha,
quando eu me lembro do meu roçado! Hein Al! (Referindo ao seu esposo BeBe)
eu achava tão bom de manhazinha, aquela manhã de manhã fria limpava, limpava
aquela rocinha tinha aquele gosto de botar aquele basculhinho tudo pro fim da
rocinha, e onde tinha aquele caculão2,ah meu deus não gosto nem de falar, dá
saudade do meu canto as vertente, as vertente boa. .
Os meus fios, meus fios, eu tive onze, essa daqui é minha filha (apontando para
Ronilza) Ronilza, essa daqui mora na derradeira, na derradeira colocação, a derradeira
colocação e Monte Rizo, só que no Monte Rizo não tem mais ninguém, quem
morava lá era um cunhado dela, aí andaram se deixando e vieram pra cá, um filho
meu, irmão dela ainda morou lá, mas aí deixou e tá morando pra cá também, lá está
abandonado. E lá, só tem ela, mais abaixo tem uma tia dela, mais abaixo tem um
primo, outro primo, maisze abaixo tem outro primo (SILÊNCIO), olha, mas a vida lá
no Macauã é um canto bom, eu acho mas pra quem é idoso como nós é difícil, sabe
que fica difícil porquê só tem carro no verão e de canoa é cinco dias (GUIOMAR
RAMALHO, 2011).3
Não deixemos que o discurso se prenda ao tempo do passado e com ele se carregue o
elemento de saudosismo. Nossa depoente demonstra que está muito bem-disposta ao trabalho, mas
as impossibilidades postas aos idosos e aos trabalhadores rurais são as mais amplas, como os
serviços de saúde, que não chegam aos moradores das colocações, alternativas de locomoção, em
diferentes fases do ano para viabilizar as plantações, o comércio e a própria vida que os momentos
mais exigem. Interroga-se daqueles que os deixam lá, dos que não oferecem as condições para que
a vida continue tento o mesmo sentido, enquanto lhe corria o sangue da juventude. Como os idosos,
outros também foram abandonados e suas vidas assumem outra conotação. Seria essa a alternativa?
Deslocar os homens do campo para barateá-los na cidade ou transformá-los em trapos do sistema
de misérias?
Na continuidade da fala, observa-se que Dona Guiomar fica indignada com os direitos que
não foram assegurados à sua família, depois de tanto tempo de trabalho e sacrifícios nas florestas
para manter os interesses econômicos do Estado que, naquele momento, se faziam necessários ter
trabalhadores no interior da floresta explorando os seringais para viabilizar a economia local aliada
A minha colocação são oito estradas de seringa. Corto seringa, a gente tira, a gente tira
uma renda muito boa da borracha. Aliás passou até uns tempos assim fracassado, mas aí
conseguiram, até conseguir, subsídio pago pelo governo federal pra ajudar o seringueiro,
que trabalha na seringa nativa. Aí a borracha conseguiu ficar com um preço bem melhor.
Aí muita gente, a maioria do povo se animou pra cortar seringa (Raimundo
Rodrigues do Nascimento, 2011).5
Percebe-se que nosso depoente tem clareza do momento, em que a atividade do “corte da
seringa” retorna com certo grau de importância, com propósitos específicos, do governo federal do
Brasil, em valorizar o seringueiro e o fruto do seu trabalho. Apesar das contradições presentes no
projeto Flona, sua sensibilidade está voltada para as práticas marcantes que caracterizam o seu viver
na floresta. Está atento para as decisões oriundas das instituições e pessoas que valorizam seu ser
seringueiro e o trabalho que faz para a manutenção e preservação das árvores de seringa e seu
ecossistema. “Ajudar o seringueiro” lhe permite dialogar com seu universo florestal sempre
cobiçado pelos recursos disponíveis para atender interesses alienígenas; ao seringueiro importa a
4 Entrevista realizada em setembro de 2011 (Olimpio Cosme de Oliveira). Morador do Rio Macauã, na
colocação São Sebastião, residindo na cidade de Sena Madureira em virtude de problemas de doença.
5 Entrevista realizada em fevereiro de 2011 (Raimundo Rodrigues do Nascimento). Morador do Rio
Macauã, na colocação Poço. É Coordenador religioso da igreja católica e desenvolve atividades comuns aos
moradores das Flonas.
manutenção familiar, sempre numerosa, que exige esforços consideráveis, para atender o particular
alimentar.
Lá em casa a gente vive da caça, da mata mesmo; sempre tem, lá, digamos. Em casa não
falta arroz, o feijão, verdura sempre não falta, mas como a gente nasce aqui na mata é
considerado a alimentação a carne. Às vezes, lá na cidade é bem diferente. É, às vezes
considerado o feijão, arroz como alimentação e a carne é a mistura. Já pro seringueiro não:
a comida é a carne e o arroz e feijão que é a mistura. Aqui, então, eu caço bastante. A caça
é muito boa de carne, os rios são muito bons de peixe. Nessa época de inverno tem muita
espécie de peixe, é bom mesmo. Tem muitos lagos, bons de peixe e igarapé aonde a
gente pesca.6
Nessa fala observamos que o morador deixa claro a certeza de sua identidade de seringueiro
e seu particular com os aspectos da alimentação e cultivo de produtos alimentares, algo diferenciado
de outros momentos marcantes da extração do látex, como um profundo conhecedor dos rios e
lagos onde a alimentação é farta.
6 Entrevista realizada em fevereiro de 2011 (Raimundo Rodrigues do Nascimento). Morador do Rio Macauã, na
colocação Poço.
Nas entrevistas com os moradores foi identificado que a relação com o território envolve
duas situações que podemos considerar conflitantes. A primeira envolve o território enquanto
“poder de apropriação” e a segunda enquanto poder simbólico, “valor de uso que carrega as marcas
do vivido.” (LEFEBVRE, 1986). Estes elementos para o seringueiro que assumem, também, a
identidade de floneiro e para a Flona são determinantes na reconfiguração territorial e nas
identidades que são construídas. Quando o morador se posiciona sobre a criação da Flona é possível
identificar um sentimento de exclusão territorial, e interroga a si mesmo, se vale a pena ser um
protetor da floresta e de sua riqueza e, se na sua permanência, é possível a continuidade do seu
trabalho? De outra forma, também identifico outras interrogações presentes na única linha. Diante
do trabalho de gerações, que foi capaz de manter de certa forma, intocada a natureza e com ela
constituir famílias, com significado do seu ser e em ser do Macauã, haverá razão de continuar e de
estar aqui, mantendo a herança familiar, a luta pela vida e o futuro para outras gerações? E, afinal,
a quem pertence esta terra, seus bichos, suas árvores, suas paisagens, rios, lagos, igarapés e seus
encantos? “Porque se nós protegemos essa terra e não temos direito a nada de que
adianta?” (Gedeão Eduardo da Rocha, 2011).7
Identificamos ainda na fala do nosso narrador, Gedeão, que o conjunto de regras criadas
pelo ICM/BIO, com a “participação” dos moradores para as atividades do trabalho na Flona,
inviabiliza seu sentimento de liberdade e práticas tradicionais de seringueiro, caçador, pescador,
coletor, criador e lavrador da terra. Sua interrogação vai aos anos anteriores em busca dos esforços
de seus antepassados que ali derramaram o suor e, de forma muito direta, colaboraram e foram
responsáveis pela existência das conformidades de preservação ambiental ali encontradas. Assegura
em sua fala que a terra a ele pertence e também reconhece que a sua existência corre grande perigo
sem a garantia dessa relação; sente a ameaça da exclusão latente em seu suor e na vida de seus
filhos.
Na fala de outro morador, o mesmo diz da experiência inicial e das relações que se
estabelecem a partir da criação da Flona. Há um sentimento de frustração, de indignação, de não se
sentir participativo daquilo que sempre o identificou e pertenceu à vida de seus familiares. Sentem-
se como que presos pelas imposições oficiais que originaram a Flona, sem serem consultados ou de
alguma forma informados das pretensões que se tinham sobre suas áreas territoriais, os
desconsideraram como preservacionistas do meio ambiente. Observam as regras como elemento
controlador do território e das atividades por eles desenvolvidas, sem esta necessidade, visto que os
moradores já convivem com essas relações há tempos e que são características de suas vidas.
De início, a gente pensava que ela tinha sido criada, no caso que ela já tinha sido criada.
Bem, muito antes que eles vieram aqui conversar com a gente já tinham cercado a moita,
7Entrevista realizada em fevereiro de 2011 (Gedeão Eduardo da Rocha). Morador da Floresta Nacional do Macauã
na colocação Apuí.
eles falaram nos objetivos que a Flona ia tal, tal, ia criar. Mas a gente pensava que eles iam
criar a coisa, mas no caso eles já tinham criado. Então não teve esse sentimento de como
ia ser, e aí já depois de criado que eles vieram informar as regras de como que a gente
tinha que fazer, várias regras; ainda hoje ainda estão inventando regras. Por um sentido,
ela teve umas modificações mais sérias, mas, não, não tanto porque as pessoas, daqui de
dentro, nunca pessoas, nem eu e nem outro, nunca foram pessoas assim de desobedecer
como as regras de brocar, de queimar, de derrubar, tudo. Não tem o interesse de acabar,
tem o interesse de sobreviver, mais sem acabar com as matas, mas com as regras que eles,
que eles colocaram. A gente já estava quase no jeito por acaso que ninguém não tinha esse
interesse mesmo. Então eles colocaram as regras que não pode utilizar, acabar com tudo
aquilo. Mas o interesse nosso, nunca foi de acabar; se era de acabar já tinha acabado. A
gente já é morador daqui há muitos anos e nós nunca tivemos esse
interesse(Admilson Ramalho de Oliveira, 2011).8
No discurso destes dois narradores, percebe-se que as mudanças estão ocorrendo de forma
sistemática, influenciado comportamentos e favorecendo a reflexão da relação entre o passado,
presente e futuro e onde também podemos destacar a construção da identidade do floneiro.
Por um sentido ela teve umas modificações mais sérias, mas, não, tão réu porque as
pessoas daqui de dentro, as pessoas que nem nunca foram pessoas assim de desobedecer
às regras de brocar, de queimar, de derrubar tudo. Não tem o interesse de acabar; tem o
interesse de sobreviver, mas sem acabar com as matas. (Admilson Ramalho de Oliveira,
2011).11
Em outros termos, trata-se de "inventar" uma "economia da floresta", sem perder de vista
a questão mais ampla que se refere ao desenvolvimento da região não descurando da noção
de que este desenvolvimento deve ser conservacionista e não-excludente
(CAVALCANTI, 2002, p. 58-59).
De outra forma, na reunião do plano de uso14 da unidade que tem como objetivo
“assegurar a auto-sustentabilidade da Floresta Nacional do Macauã e Floresta Nacional
São Francisco, mediante a regulamentação da utilização dos recursos naturais e dos
comportamentos, a serem seguidos pelos moradores” ICM/BIO (2002), os mesmos com
suas sabedorias tentam manter algumas conquistas construídas ao longo da trajetória familiar
e antes da existência da Flona. Nesse espaço encontram alternativas para firmar algumas
lutas dos direitos conquistados e outras que possam ser garantidas no processo da
construção das identidades de seringueiro-floneiro na manutenção da vida.
14 Plano de Uso da Unidade: o Plano de utilização da unidade pelos moradores da Floresta Nacional.
Consideramos, também, que a Flona se constitui local de memória, haja vista que os sujeitos
locais guardam recordações, lembranças e pensamentos que dialogam com o universo singular
florestal.
A ressignificação cultural é um movimento que foi possível identificar com os depoimentos
colhidos junto aos moradores que são a princípio uma forma de enfrentamento com o processo
permanente de Flona. Continuará seu caminho de acordo com a leitura que o mundo proporcionar
aos moradores das colocações.
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Cláudio Roberto Antunes Scherer Jr.
A EJA de Florianópolis, devido à Pesquisa como Princípio Educativo (PPE), apresenta uma
cultura escolar com peculiaridades, ou seja, possui algumas práticas, hábitos e rituais que
modificam a percepção naturalizada daquilo que acontece num ambiente de ensino, principalmente,
em relação à ação docente.
A base do currículo da EJA são as pesquisas. Os estudantes realizam pesquisas sobre
interesses pessoais, sobre aquilo que querem pesquisar. Essa parece ser uma das primeiras e
principais peculiaridades, que acarreta toda uma série de modificações nas normas e práticas
encontradas na EJA de Florianópolis.
A entrevista com o professor Pablo2 apresenta alguns aspectos dessas mudanças e
nos aponta outras significantes diferenças desse trabalho:
Ficamos mais tempo em grupo em cima de uma pesquisa só. [...] Costumamos conversar
bastante sobre as pesquisas, principalmente, durante as aulas em que a gente trabalha
pesquisas e nas orientações individuais com o grupo.
Nós somos oito professores. [...] Outra atividade que fazemos são as oficinas, que é para
ampliar algum conteúdo de uma pesquisa [...] A gente gosta de fazer oficinas de produção
escrita [...] E, além disso, tem o uso do caderno diário, que procuramos pedir para eles
escreverem. (Prof. Pablo, entrevista, 2016, p. 3).
Nesse relato podemos identificar algumas das estratégias, práticas e rituais da lógica da ação
docente na EJA, e, também, perceber que o professor Pablo sempre se refere ao grupo de docentes
na primeira pessoa do plural (nós), nunca no singular (eu), pois, todos juntos, são os responsáveis
por tudo; nada é feito ou decidido sozinho. A pesquisa é central nas atividades e as orientações
podem acontecer com mais de um professor, ao mesmo tempo, o que significa a atenção de dois ou
mais professores a um mesmo grupo, que, no geral, comporta cerca de três alunos. Essas orientações
se constituem em conversas sobre os temas escolhidos e prováveis modos de prosseguir com a
pesquisa.
Além das pesquisas que cada aluno realiza, com a orientação dos professores, outro aspecto
da metodologia do trabalho na EJA, relatado pelo referido professor, diz respeito às oficinas. As
2 O nome do entrevistado foi substituído por pseudônimo escolhido pelo próprio professor.
oficinas servem para aprofundar determinados aspectos de uma pesquisa, uma forma de
aproveitar assuntos extraídos das próprias pesquisas, e, podem resultar numa produção escrita.
Os cadernos de diário constituem-se em uma ferramenta de escrita sobre a vida dos
estudantes. Nele são feitas perguntas, relatos de situações reais ou fictícias, que geram a
resposta de algum professor, que tem a obrigação de estimular essa forma de conversa escrita.
Além do citado, o professor Pablo também comentou sobre a apresentação de filmes, às vezes
nas sextas-feiras, como “uma maneira de levar um conteúdo de uma forma interessante para
eles.” (Prof. Pablo, entrevista, 2016, p. 3).
O professor entrevistado citou um momento fundamental para os trabalhos na
EJA, a realização de formações – centralizadas e descentralizadas. As formações
centralizadas acontecem num encontro em que todos os professores e coordenadores dos
núcleos de EJA3 se reúnem, para uma formação sobre determinados assuntos pertinentes aos
seus trabalhos na escola. As formações descentralizadas, mais conhecidas como reuniões de
planejamento, acontecem entre os professores de um mesmo núcleo de EJA. Essas reuniões
acontecem as segundas e quartas no período da tarde. “Nessa reunião fazemos nossa
programação da semana. Nem sempre dá para fazer da semana inteira, mas a gente procura
fazer até a quarta-feira, que é o dia da próxima reunião.” (Prof. Pablo, entrevista, 2016, p. 2).
Nesses encontros, os professores, junto do coordenador do núcleo, falam do andamento das
pesquisas, sobre os caminhos e prazos para a apresentação final, conversam sobre os
estudantes, sobre algum problema de indisciplina e qualquer outra situação em que caiba
um posicionamento de todos os professores. Nela, também são decididas outras atividades: as
oficinas, os filmes, além de passeios e outras atividades pedagógicas. Todos os professores
participam dessas formações, eles podem opinar e levantar questões.
Existem algumas situações bem específicas, na EJA de Florianópolis, que
merecem destaque e que colaboram para a percepção de uma cultura escolar peculiar. A fala
do professor Pablo é elucidativa:
Na EJA [...] nossa relação com os alunos é muito mais próxima do que a do ‘ensino
regular’. Então, eu consigo trocar essas ideias com eles muito mais das 18h às 19h e
durante o intervalo que a gente janta junto; também às vezes eu procuro ficar no dia da
Educação Física. Gosto de agarrar no futebol com eles. Isso traz uma proximidade muito
maior e eu tenho muito acesso para conversar com eles. (Prof. Pablo, entrevista, 2016, p.
4).
3No ano de 2016, Florianópolis contava com nove Núcleos de EJA. Informação obtida do Departamento
de Educação de Jovens e Adultos (DEJA).
para responder os cadernos diários e não, especificamente, para conversas com os estudantes. Mas,
essas conversas acontecem e são indicadas como sendo situações de destaque na relação com os
discentes.
Uma situação, presente na fala do professor Pablo, que parece ser inerente ao trabalho na
EJA, é o fato de os professores, no intervalo, poderem jantar junto com os estudantes, comendo as
mesmas comidas servidas na escola, nas mesmas mesas. Esses momentos de alimentação
proporcionam uma interação única, uma partilha de um momento simples, porém, muito
significativos na construção e manutenção de vínculos e laços afetivos.
O último destaque nessa fala do professor é com relação ao momento da “Educação Física”,
em que alunos e professores participam das atividades de forma conjunta, fazendo desse momento,
não apenas uma relação de um professor, no caso o de Ed. Física, mas de todos os professores do
Núcleo. Isso porque, os dias reservados para a prática desportiva, contam com a participação de
todos os docentes, que interagem com os estudantes participando diretamente e compartilhando
momentos de pura interação.
Essas interações específicas corroboram para a manutenção de uma situação relacional mais
próxima. Essa proximidade gera um elo de amizade e respeito entre professores e alunos, facilitando
o dia-a-dia nos Núcleos e a manutenção das rotinas com as pesquisas e demais atividades. Lógico,
como nos adverte Viñao Frago:
Cada estabelecimiento docente tiene, más o menos acentuada, su propria cultura, unas
características peculiares. No hay dos escuelas, colegios, institutos, universidades o
facultades exactamente iguales, aunque puedan estabelecerse similitudes entre ellas.
(2006, p. 80).
Isso não é diferente com relação aos núcleos da EJA. Algumas práticas divergem entre os
núcleos, e, muitas vezes, nem mesmo existem. As observações de campo apontam esse fato. Porém,
essa relação de maior proximidade é uma situação que pode ser encontrada em todos os núcleos.
Muitas vezes, as situações que ocasionam essa proximidade podem variar, mas ela sempre acaba
acontecendo, de um modo ou de outro, às vezes mais intensa, às vezes menos.
Seria possível citar outras situações que podem ser apontadas como específicas da EJA de
Florianópolis, no que concerne a sua cultura escolar, como por exemplo: a sala de aula da EJA, a
interação de vários professores em sala ao mesmo tempo, a quase inexistente situação de “dar aula”,
entre outras. Mas, para a construção deste texto, os apontamentos feitos até aqui, servem para
mostrar um pouco dessas especificidades encontradas na EJA e auxiliam na continuação da
compreensão das possibilidades de ação docente inerentes a esse contexto de ensino.
O que é um saber? “Na verdade, ninguém é capaz de produzir uma definição do saber que
satisfaça todo o mundo, pois ninguém sabe cientificamente, nem com toda a certeza o que é um
saber.” (TARDIF, 2010, p. 193). Tardif apresenta alguns direcionamentos para pensar em saberes
docentes: “Pode-se definir o saber docente como um saber plural, formado pelo amálgama, mais
ou menos coerente, de saberes disciplinares, curriculares e experienciais.” (TARDIF, 2010, p. 36).
É nesse amálgama que se situa os saberes dos professores da EJA. Mas, quais seriam os saberes
mais determinantes e específicos presentes no contexto da EJA de Florianópolis? Para poder afirmar
algo mais coerente, convém partir da fala do entrevistado, o professor Pablo:
Na escola do ‘ensino regular’, se um aluno não está querendo te deixar dares aula, tu vais
mandar ele para sala da diretora, vai ter mais gente. Agora, no nosso Núcleo, às vezes,
estamos só entre professores, não tem para onde mandar, tu não podes mandar um aluno
pra a rua se ele é menor de idade. Tu não podes mandar para a sala da coordenadora se
ela, às vezes, está na outra escola do Núcleo. Temos uma professora remanejada que
trabalha na secretaria que está com um atestado bem longo, e, às vezes, estamos só entre
professores nas salas e a gente tem de lidar com essas situações de alunos que não querem
entrar, alunos que entram mas querem bagunçar. (Prof. Pablo, entrevista, 2016, p. 6, grifo
meu).
O que mais tem marcado, para mim, é a importância da relação entre professor e aluno.
Na EJA, se não tiveres um bom relacionamento com os alunos, eles não vão te deixar
dares aula. Então, tu teres uma relação próxima, e até de amizade mesmo com eles, isso é
o mais importante na EJA. Eles não vão deixar dares aula se eles não quiserem que tu dês
aula. (Prof. Pablo, entrevista, 2016, p. 5).
A cultura escolar da EJA, ou seja, todas as nuances das práticas, hábitos e rituais
proporcionados pela PPE, que proporciona um maior contato, uma maior proximidade com os
estudantes, deixa evidente essa situação/condicionante apontada pelo professor entrevistado, isso
quer dizer, a importância da relação professor/aluno. Isso, logicamente, não é nenhuma novidade.
Porém, o diferencial do encontrado na EJA, se refere justamente às possibilidades de ampliar e
intensificar essa relação, pois, o professor além de ser um parceiro nos trabalhos com as pesquisas,
é também um aliado em outras diversas tarefas; chegando ao ponto de o professor entrevistado falar
em amizade.
Mas, poderia isso atrapalhar os processos de ensino-aprendizagem? Ou ser uma forma de ir
contra certa formalidade que se tenta dar a profissão docente? Aparentemente, a resposta é não,
pois, para Tardif (2010, p.118, grifo meu):
Tardif (2010, p. 130) diz ainda que: “Uma boa parte do trabalho docente é de cunho afetivo
e emocional. Baseia-se em emoções, em afetos, na capacidade não somente de pensar nos alunos,
mas, igualmente, de perceber e de sentir suas emoções, seus temores, suas alegrias, seus próprios
bloqueios afetivos.”
Seria impossível alcançar esse nível de percepção, em que é possível sentir as emoções dos
estudantes, sem uma maior proximidade, numa relação tão formal e distante. Os resultados disso
podem ser vistos, não apenas nos estudantes, mas também nos professores, mais especificamente,
na sua prática docente. Esse fator acaba sendo primordial para pensarmos seus aprendizados,
enquanto docente na EJA e também para além da proposta.
Tardif (2010, p. 181) afirma que:
Isso que é conservado de suas formações anteriores pode ser levado para contextos além da
EJA. Talvez, possam marcar sua trajetória profissional e possibilitar o ensejo de novas práticas
docentes, suscitadas pelos saberes adquiridos na sua experiência na EJA de Florianópolis.
A prática profissional não é vista, assim, como simples campo de aplicação de teorias
elaboradas fora dela, por exemplo, nos centros de pesquisa ou nos laboratórios. Ela torna-
se um espaço original e relativamente autônomo de aprendizagem e de formação para os
futuros práticos, bem como um espaço de produção de saberes e de práticas inovadoras
pelos professores experientes. (TARDIF, 2010, p. 286).
Essa afirmação pensada no contexto da EJA vai além do que o imaginado por Tardif. A
empiria docente encontrada na EJA, de Florianópolis, possibilita uma aprendizagem, talvez rara,
em nossos sistemas educativos. Porém, transpor a mera experiência e realmente inculcar um saber
ligado à prática, depende muito da maneira que o próprio docente irá encarar essa prática. É possível
dizer que a possibilidade de aprendizagem e de formação está caracterizada, porém, o modo como
isso será assimilado é mais difícil de ser mensurado.
Neste trabalho, a Pesquisa como Princípio Educativo (PPE) foi apenas uma menção, sem
maiores considerações. A cultura escolar da EJA, de Florianópolis, foi apenas “pincelada”, em
aspectos mais evidentes. E os saberes docentes foram trabalhados apenas sobre os vieses da relação
entre aluno e professor e da aprendizagem pela prática, sem levantar questões sobre currículo da
EJA, sobre a formação anterior dos professores, e nem sobre as demais formas de materialização
de saberes docentes ligados diretamente à ação dos profissionais professores.
Porém, mesmo com essas limitações, as falas do professor Pablo e a bibliografia consultada
auxiliaram em algumas conclusões que parecem pertinentes. Uma delas seria a especificidade da
cultura escolar vivenciada pelos sujeitos da EJA. Parece evidente que a PPE da EJA, de
Florianópolis, apresenta um conjunto de normas, condutas, práticas e espaços peculiares.
É possível afirmar também, que essa cultura escolar específica possibilita diferentes formas
de ação docente em sala de aula, desenvolvendo e mobilizando saberes e conhecimentos práticos e
teóricos também específicos. Essa ação, a partir dessa prática com pesquisas, da autonomia e
improvisação, da relação mais próxima com os estudantes e da relação com todo o grupo de
profissionais envolvidos nos núcleos, possibilita um tipo de formação mediada pela lida cotidiana
com situações e condicionantes impostas em seu ambiente de trabalho. Essa situação, entendida
como de formação, configura e mobiliza saberes específicos ligados a essa prática peculiar, nesse
ambiente de ensino distinto.
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A partir dos estudos de Rosa Hessel Silveira (2007) e de Sandra dos Santos Andrade (2012),
busca-se melhor compreender as entrevistas narrativas na perspectiva pós-estruturalista. De acordo
com Silveira (2007), as entrevistas na pesquisa em educação, desde a virada linguística nas Ciências
Humanas e do entendimento da linguagem como constituidora de verdades, deixaram de ser vista
como “espelho” translúcido de ações culturais anteriores. Para a pesquisadora, a entrevista deve ser
concebida:
Como um evento discursivo complexo, forjado não só pela dupla
entrevistador/entrevistado, mas também pelas imagens, representações,
expectativas que circulam – de parte a parte – no momento e situação de realização
das mesmas e, posteriormente, de sua escuta e análise. (SILVEIRA, 2007, p. 120).
Para facilitar a compreensão das análises e respeitando o que foi previamente combinado
com cada uma das entrevistadas, utilizei pseudônimos para nomeá-las. As entrevistas serão
apresentadas e analisadas por meio de excertos das falas das professoras, que serão dispostas neste
artigo através de caixas de texto. Na análise que segue, destaco alguns discursos e representações
mais recorrentes que atravessaram essas narrativas e que marcaram as posições que pesquisadora e
entrevistadas foram tecendo ao longo das entrevistas.
Antes de iniciar cada entrevista, exibi dois curtas-metragens. O primeiro, intitulado “Cores
e Botas”, com duração de quinze minutos e dirigido por Juliana Vicente. Foi produzido em 2010 e
conta a história de Joana, uma menina negra de uma família de classe média, que sonha em ser
paquita e que participa de um concurso na escola. O filme discute os padrões estéticos estabelecidos
pela mídia e sua influência na formação das identidades infanto-juvenis.
O segundo curta-metragem, intitula-se “Pode me chamar de Nadí”, com duração de vinte
minutos e escrito e dirigido por Déo Cardoso, em 2013, na UNILAB. Apresenta a história de uma
menina moradora da periferia que esconde seus cabelos crespos com um boné. Alguns meninos da
vizinhança pegam seu boné e, na busca para recuperá-lo, a menina conhece Laila, uma modelo
negra, com a qual descobre outros significados sobre seu cabelo e sobre sua própria beleza. Ambas
as narrativas fílmicas foram utilizadas como disparadores do tema da branquitude e de seus efeitos
na construção de subjetividades e identidades.
Conforme argumenta Duarte (2000), em seu estudo “A pedagogia da imagem fílmica:
filmes como objeto de pesquisa em educação”, o discurso fílmico surge de configurações
significantes construídas em linguagem cinematográfica, pela articulação de muitos suportes
sensoriais. A autora argumenta que as imagens fílmicas são responsáveis por muitas de nossas
formas de ver e interagir com a realidade, pois se constituem em importantes fontes de produção de
significados.
Na realização das entrevistas, agrupei as perguntas em eixos temáticos. O primeiro eixo
temático, sobre os curtas-metragens, tratou da diferença racial e da branquitude.
Na primeira entrevista, realizada com Laura, quando perguntada sobre o potencial
pedagógico dos curtas-metragens, ela respondeu tecendo comparações entre os dois curtas:
[...] os dois filmes têm famílias com rendas diferentes né. A primeira tu vê que ela é de
uma periferia, que ela é mais... pobre ah... e no segundo tu vê uma família de classe média
alta, com todos os recursos financeiros e não é isso que tá impedindo de sofrer o
preconceito, não é a questão da renda. Porque são rendas diferentes né, tem um outro
padrão, tem alguma outra coisa que tá impedindo o acesso delas. No caso, o segundo
filme é bem mais claro. O que tá impedindo o acesso da menina ao objetivo dela, que é
ser paquita, não é o dinheiro. O dinheiro dos pais não tá influenciando nisso ou não teria
como influenciar naquele momento. Acho que dá pra ter um debate bem legal, sobre
inclusive meritocracia né? (Grifo meu).
A comparação elaborada por Laura remete a uma construção discursiva que, durante muito
tempo, marcou as discussões sobre a questão racial no Brasil e que argumenta que o problema da
desigualdade racial no país resulta das desigualdades econômicas e sociais da população. A partir
dessa perspectiva, o tema racial é subsumido à categoria de classes sociais, tida como mais
importante do que a categoria de raça na explicação das desigualdades sociais na sociedade
brasileira. Contudo, conforme destaca Lilia Moritz Schwarcz (2012, p. 76), estudos mais recentes
têm demonstrado que somente a análise econômica não explica as desigualdades sociais em nossa
sociedade, que são também raciais. Nesta direção, o sociólogo Antônio Sérgio Guimarães (2002, p.
51) considera que as desigualdades não são apenas de classe e que, no Brasil, a cor pressupõe
desigualdades e discriminações efetivamente raciais.
Observa-se ainda, no excerto que segue, que Laura refere-se também ao desejo de discutir
em sala de aula as representações da meritocracia, quando diz que: “[...] é uma coisa que na nossa
sociedade se discute muito né e se acredita... tem gente que acredita muito na meritocracia cega
sem pensar em outros valores que a gente tem e que influenciam em todas essas ascensões sociais.”
Acredito que tais “valores”, que Laura sugere que atravessam a vida do brasileiro e que
contribuem para ascensão social de sujeitos, podem ser encontrados no que Schucman e Cardoso
(2014) definem como privilégios raciais simbólicos e materiais, ou seja, características que
posicionam alguns indivíduos em lugar elevado na hierarquia racial, com o poder de classificação
sobre outros, e que resulta em exclusões e discriminações. Essas classificações/exclusões, conforme
aponta Cardoso (2010), constituem o privilégio racial branco. O autor exemplifica as diferentes
formas que, sutilmente, constituem o privilégio racial, citando o texto de Peggy McIntosh, uma
norte-americana, feminista e ativista contra o racismo, que listou alguns dos privilégios de pessoas
brancas:
Eu posso estar segura de que meus filhos vão receber matérias curriculares que
testemunhem a existência de sua raça.
Se eu usar cheques, credit cards ou dinheiro, eu posso contar com a cor da minha pele
para não operar contra a aparência e confiança financeira.
Eu não preciso educar os meus filhos para estarem cientes do racismo sistêmico para a sua
própria proteção física diária.
Eu nunca sou pedida para falar por todas as pessoas de meu grupo racial.
Eu tenho bastante certeza de que se eu peço para falar com a ‘pessoa responsável’, eu vou
encontrar uma pessoa de minha raça.
Eu posso voltar para casa da maioria das reuniões das organizações às quais pertenço,
sentir-me mais ou menos conectada, em vez de isolada, fora de lugar, não ouvida, mantido
à distância ou ser temida.
Eu posso me preocupar com racismo sem ser vista como autointeressada ou interesseira.
Eu posso escolher lugares públicos, sem ter medo de que pessoas de minha raça não
possam entrar ou vão ser maltratadas nos lugares que escolhi.
Eu posso ter certeza de que se precisar de assistência jurídica ou médica, minha raça não
irá agir contra mim. (MCINTOSH, 1989, Apud CARDOSO, 2010, p. 56).
Quando questiono se a aparência, a cor da pele e do cabelo podem ser fatores de exclusão
de pessoas da sociedade em geral, e na escola em particular, é consenso entre as entrevistadas que
as características físicas são fatores que levam à exclusão na sociedade. Entretanto, três das cinco
entrevistadas constroem argumentos ambíguos, que demonstram como a ideia de democracia racial
e da meritocracia ainda são marcadores potentes que atravessam a construção de subjetividades e
identidades no Brasil. Ao mesmo tempo, elas afirmam que brancos têm privilégios, e relatam
situações que demonstram a crença na igualdade de oportunidades e na ascensão social mediante o
esforço individual. Amanda, por exemplo, relata a situação de seu sobrinho, que, segundo ela, sofre
preconceito por ser loiro de olhos azuis:
Porque eles dizem, pra ti é tudo mais fácil. Só que ele estuda muito, ele é dedicado, só que
ele sofre preconceito. Eles dizem: “tu é lindo, tu é loiro; pra ti é tudo mais fácil.” Só que
não é, nesse caso não. Pode ser que sim, que abra mais portas pra ele sim, só que ele
também... Se ele é esforçado, só que tem isso né, as pessoas acham isso porque é isso.
No final de seu relato, Amanda afirma que “as pessoas acham isso, porque é isso”,
demonstrando que apesar de defender que o esforço individual pode garantir o sucesso, compreende
que a condição de branco facilita a ascensão social, desmistificando a ideia de meritocracia
apresentada no início de seu relato.
No caso da narrativa de Sara, ela dá destaque à ideia de democracia racial, apontando a
inexistência do preconceito na sua escola, mas reconhecendo que existem preconceitos em outras
escolas ao seu redor:
[...] aqui no nosso contexto não vejo isso, não percebo isso né... Não sei se é porque a
escola... o trabalho que é feito aqui né... não se consegue observar isso. Existe assim uma...
igualdade. Os professores no geral, assim... tratam os alunos nesse sentido assim... no
mesmo patamar né... em relação a cor, ou até a própria... Economicamente né, falando...eu
acho que isso não existe, aqui, pelo menos eu não percebo. Outras escolas que eu trabalhei,
que eu passei, eu já percebi isso, mas aqui não.
Joice: Agora a gente passa então para as questões relacionadas à branquitude e padrão de
beleza e de comportamento. Então, eu já te perguntei, vou repetir. Como tu te autodefine
em termos de cor e como tu acha que os outros te definem?
Sara: Os outros acham que eu sou branca.
Joice: E tu te definiu como parda.
Sara: Isso. Até porque na minha família tem pessoas de cor negra também. Então existe já
uma miscigenação racial aí né. Então, não posso ser identificada como branca, branca pura
né... então.
Edith Piza e Fúlvia Rosemberg (1999) destacaram as dificuldades envolvidas nos processos
de autoatribuição de cor no país, ressaltando que no Brasil os aspectos fenotípicos são
predominantes no processo de construção do pertencimento racial. As pesquisadoras (p. 127)
salientam que em países como o nosso, de população multirracial, a variação do pertencimento
racial no grupo de pardos é ampla e frequentemente marcada pelos significados sociais relacionados
ao discurso da mestiçagem. Portanto, quando Sara refere que “existe já uma miscigenação racial aí,
né” e que entre seus familiares há pessoas negras, o que dificultaria sua identificação como branca,
demostra tanto a potencialidade dos discursos da mestiçagem como da branquitude na construção
de seu pertencimento racial.
Já a professora Elis, no excerto que segue, diz considerar-se branca, porém acha que a
maioria das pessoas pode defini-la como morena clara:
Joice: Como tu te autodefine em termos de cor e como tu acha que os outros te definem?
Elis: Eu me defino como branca...mas acho que a maioria das pessoas vão dizer que sou
morena clara, que é ... As pessoas têm uma tabelinha de cor parece na cabeça delas, então...
você é morena clara.
Quando a professora Elis afirma que “as pessoas têm uma tabelinha de cor na cabeça delas”,
observa-se novamente a presença do discurso da mestiçagem, amplamente disseminado na cultura
brasileira, de que somos um povo miscigenado e de que a cor varia de acordo com múltiplas
variáveis, entre elas, classe social, condição econômica, cargos de prestígio, condição intelectual,
que podem aproximar ou afastar um indivíduo da cor branca ou preta.
Para Sueli Carneiro (2001, p. 64), essas múltiplas cores com as quais os brasileiros se
autodeclaram estão também vinculadas às políticas de branqueamento e à negação da identidade
negra entre aqueles indivíduos miscigenados que não querem se autodeclarar/assumir como negros.
Conforme Carneiro, a miscigenação mostra-se eficaz no embranquecimento da população
brasileira, pois aproxima indivíduos não brancos e, além disso, parece explicar as múltiplas
expressões utilizadas, como “moreno-escuro, moreno-claro, moreno-jambo, marrom-bombom,
mulato, mestiço, caboclo, mameluco, cafuzo, ou seja, confusos, de tal maneira que acabam todos
agregados na categoria oficial do IBGE: pardo!” (CARNEIRO, 2016, p. 67).
Em seguida, ao serem questionadas a respeito do que acham sobre ser branca no Brasil e
sobre as imagens que lhes vêm à cabeça quando pensam acerca do significado dessa classificação,
além das situações cotidianas nas quais ser branca pode ajudar, todas as entrevistadas associaram a
ideia de branquitude a situações positivas e de prestígio social. As expressões que aparecem em
suas narrativas são: vantagem, alívio, melhores oportunidades, poder, limpeza, prioridade, elitizado
e aceitação.
Em seu relato, Laura argumenta que as representações mais recorrentes na mídia e na
sociedade brasileira em geral são brancas. A professora reconhece seus privilégios e vantagens no
cotidiano como pessoa branca, descrevendo situações em que os privilégios atuam em seu favor no
mercado, nas lojas e na sua defesa contra os abusos policiais, conforme se observa a seguir:
Joice: O que tu pensas sobre ser branca? Que imagens vêm na tua cabeça quando tu pensas
o que significa ser branco no Brasil? Tu achas que os brancos têm privilégios na sociedade
brasileira? Em que situações do dia-a-dia ser branca ajuda?
Laura: Muito assim... quando eu penso em ser branco no Brasil, eu penso em ser ...olha
só, maioria. Eu sei que não é, mas eu penso que essa ideia é mais de maioria pelo que a
gente mais vê né, relacionado a tudo, à mídia, aos locais que a gente frequenta, a locais
que eu frequento hoje em dia né. Não na minha infância, porque na minha infância eu fui
criada em vila, em periferia. Então, não era a maioria, mas hoje em dia, sim, porque moro
mais pro centro e... Mas sim o privilégio, ele é constante. Acho que em tudo e eu dou isso
de exemplo pros alunos quando eu to falando sobre cor e questão de racismo. Eu brinco,
mas falando sério. Eu digo assim: “quantas vezes vocês acham que eu fui perseguida
dentro das lojas hein?” [...] (grifo meu).
A narrativa de Laura remete aos questionamentos elaborados por Liv Sovik (2009, p. 36-
37), quando argumenta sobre a hegemonia branca nos meios de comunicação e refere o fato de que
os mais brancos se encontram representados de forma desproporcional na sociedade brasileira,
produzindo um modo de ser que passa a ser lido e tido como “ideal”, sem que isso cause qualquer
constrangimento.
Para explorar possíveis significados e sentidos atribuídos a comportamentos associados ao
branco na sociedade brasileira, as entrevistadas foram questionadas se existiam comportamentos
típicos de brancos. Três das cinco professoras disseram não perceber diferenças no comportamento
dos indivíduos de acordo com a pertença racial. Laura respondeu que achava difícil falar sobre o
comportamento dos brancos, mas que poderia falar sobre atitudes de pessoas negras.
Laura: (silêncio) Bah Joice, não sei se eu consigo responder essa questão, não me vem
nada à cabeça... Se tu... olha só a loucura, se tu perguntasse ao contrário, eu diria que sim,
sem titubear.
Joice: Qual seria o contrário?
Laura: Se tu perguntasse se tem um estilo das pessoas negras? Eu diria que sim e ... olha
só...
Joice: É mais fácil, talvez?
Laura: É, é mais fácil, mas também não sei se é porque a gente não enxerga né?
Schucman, apoiada em Ruth Frankenberg e Edith Piza, argumenta que quando a hegemonia
branca está muito enraizada, os indivíduos brancos não percebem sua identidade racial e tampouco
se enxergam como grupo racializado. Essa situação, por muito tempo, foi explicada pelo termo
invisibilidade, que, posteriormente, foi problematizado por Piza, quando demonstrou que não se
tratava apenas da invisibilidade da cor e dos privilégios dos brancos, mas da intensa marcação das
diferenças raciais naqueles não brancos.
É interessante que Laura, após refletir sobre a questão proposta, declare que: “talvez isso
seja só uma forma da gente como cultura hegemônica olhar o outro como o diferente”, como
“exótico”. Neste sentido, Schucman sublinha que se trata de marcar o outro como diferente,
enquanto a identidade branca permanece como se fosse neutra (SCHUCMAN, 2012, p. 24).
Já a entrevistada Elis respondeu que o principal comportamento dos sujeitos brancos era o
racismo:
Joice: Sim... você acha que existem alguns comportamentos que são próprios de pessoas
brancas?
Elis: Sim, o racismo (risos) ...
Joice: Além desse?
Elis: Próprios de pessoas brancas? ... eu acho que as pessoas brancas, às vezes, ficam um
pouco mais alienadas, assim. Nós que trabalhamos dentro da periferia... nós temos uma
tendência a ser menos alienados, porque a gente vê a pobreza mais de perto. A gente não
sabe o que que é, porque a gente come bem, a gente dorme numa cama, aquela coisa toda,
mas a gente não tem assim... uma alienação. Quando eu falo assim sobre como é pros
meus amigos que não são professores, eles ficam muito espantados com tudo que eu falo.
Então, eu acho que eles vivem assim numa redoma protetora.
O relato da professora Elis parece aproximar-se do que Lourenço Cardoso (2014, p. 2)
chama de branquitude crítica, uma posição que reconhece e desaprova publicamente o racismo na
sociedade brasileira. Além disso, Elis refere que muitos brancos vivem em uma redoma, pois
desconhecem a pobreza. Esses argumentos encontram amparo nas contribuições de Sueli Carneiro
(2011, p. 57-58), quando afirma que em nosso país a pobreza tem cor e que, definitivamente, não é
branca. Para Carneiro, é preciso uma “estratégia global” a fim de modificar positivamente as
condições de vida das populações não brancas, que, além do preconceito e do racismo pautado em
características físicas, vivenciam também as exclusões pautadas pela intersecção entre a raça e a
pobreza, que, para Carneiro, permanecem interligadas.
As narrativas das professoras e nossas próprias posições provocam reflexões acerca dos
mecanismos cotidianos de produção e disseminação de desigualdades no trato das diferenças no
ambiente escolar. As análises realizadas demonstram que nossas narrativas são atravessadas por
discursos e representações que nos constituem enquanto sujeitos e que acionamos cotidianamente
na Educação Básica, contribuindo na constituição das subjetividades e identidades de nossos alunos
(as). Entre esses discursos, os mais recorrentes foram: o discurso do racismo científico, da
democracia racial, da mestiçagem e da branquitude.
Essas análises contribuíram, também, para demonstrar a importância de pensarmos em
intervenções pedagógicas que trabalhem com as diferenças de forma positiva e que contribuam para
desnaturalizar discursos e representações raciais estereotipadas e negativas, que, de tão arraigados
na cultura, são tomados como verdades, e que contribuem para discriminações, exclusões e para a
baixa autoestima de alunos.
Contudo, como afirma Stuart Hall (2016), os sentidos e significados que são compartilhados
na cultura são produzidos por sistemas de representação atrelados às relações de poder, que estão
em permanente disputa e deslocamento e, portanto, são móveis e instáveis. Nesse sentido, parece
possível contestar e desconstruir representações racializadas e estigmatizadas, que continuam
marcando sujeitos considerados fora da norma, de forma a revertê-las e ressignificá-las, fazendo
circular formas alternativas e positivas de representação das diferenças sociais, raciais, de gênero e
sexualidade na escola.
As narrativas aqui analisadas foram produzidas a partir de entrevistas com professoras que,
majoritariamente, se auto definiram como brancas, portanto a produção de significados se deu a
partir desse recorte racial, não sendo possível dimensionar a multiplicidade de outros
atravessamentos que poderiam se apresentar, caso o perfil das entrevistadas fosse mais abrangente.
ANDRADE, Sandra dos Santos. A entrevista narrativa ressignificada nas pesquisas educacionais
pós-estruturalistas. In: MEYER, Dagmar Estermann; PARAÍSO, Marlucy Alves (Org.).
Metodologias de pesquisas pós-críticas em educação. Belo Horizonte: Mazza, 2012.
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In: COSTA, Marisa Vorraber (Org.). Caminhos Investigativos II: outros modos de pensar e fazer
pesquisa em educação, 2 ed., Rio de Janeiro: Lamparina, 2007.
intitulada Memórias da Dança das mulheres negras frequentadoras do Clube Cultural Fica Ahí pra ir Dizendo na
cidade de Pelotas entre as décadas de 1950 e 1980, da autora Lisiê Coelho de Souza.
2 Foram, ao total, onze depoentes. .
3 O clube cultural Fica Ahí pra ir Dizendo, foi tombado em 2012, no âmbito estadual por representar um espaço
de memórias da cultura afro-brasileira no Rio Grande do Sul (Instituto de Patrimônio Histórico e Artístico –
IPHAE).
Segundo Loner e Gill, este espaço era considerado uma entidade negra “mais exigente em
seus estatutos e que contava com uma estrita vigilância por parte da diretoria sobre a moral e o
comportamento de seus membros” (2005, p. 4). Este clube, como as demais associações negras,
tinha um papel fundamental na agregação desta comunidade no município, na socialização das
crianças e jovens dentro dos elementos culturais e sociais significativos para este grupo étnico e no
estabelecimento de estratégias matrimoniais. E, ainda hoje, é uma tradicional entidade social de
Pelotas, composta por parcelas significativas da comunidade negra.
A cidade de Pelotas foi edificada material e culturalmente com forte contribuição dos
negros, mesmo assim, sua invisibilidade ainda é uma realidade na sociedade. Ao mantermos contato
com esta tradicional instituição social, revisitaremos um passado carregado de historicidade, no
qual buscamos encontrar a dança inserida neste espaço de sociabilidade e convivência. Acreditamos
que esta linguagem artística possa ter contribuído para o desenvolvimento da construção identitária
de um grupo étnico, representada nas memórias das mulheres negras frequentadoras do clube
cultural Fica Ahí pra ir dizendo. Queremos recordar este conhecimento construído e inserido na
cultura pelotense.
Ao estudarmos a cultura negra, se torna indispensável salientarmos a importância da
aprovação da Lei 10.639, de 2003, que tornou obrigatório o ensino de História e Cultura africana e
afro-brasileira nas escolas de todo o país (PEREIRA, 2011). Essa Lei possui potencial para propiciar
a elaboração de uma prática docente que questione preconceitos e que seja conduzida pelos
princípios da pluralidade cultural e do respeito às diferenças.
A escola é um lugar de construção, não apenas de conhecimento, como também de
identidade, de valores, de afetos, ou seja, é onde o sujeito deve ser instruído a colaborar com o
desenvolvimento de uma sociedade igualitária (GOMES, 2005, p. 41). Em vista disso, este estudo
pretende, em alguma medida, reverberar na prática docente dos professores de Dança, ofertar
contato com essas experiências e com a História da dança na cidade de Pelotas, agregando
conhecimento aos processos pedagógicos que serão desenvolvidos no âmbito escolar, dialogando
sobre a história africana e cultura afro-brasileira com os alunos.
Através destes desejos surge o problema de pesquisa deste trabalho: “qual o papel da dança
no processo de construção identitária negra das mulheres frequentadoras do clube cultural Fica Ahí
pra ir dizendo, nas décadas compreendidas entre 1950 e 1980 na cidade de Pelotas? ”
Para o desenvolvimento desta investigação, foi utilizada a metodologia de caráter
bibliográfico-documental, quanti-qualitativa, com abordagem da História Oral. Entrevistas
semiestruturadas foram empregadas como instrumento de coleta de dados. A realização do estudo
previu as seguintes etapas metodológicas: coleta, leituras, fichamentos e análise bibliográfica. Em
seguida, foram elaboradas questões referentes às entrevistas, e concomitantemente listamos nomes
de possíveis depoentes. Posteriormente, foi feito o registro e a transcrição dos depoimentos
coletados e os dados foram analisados. Após essa etapa, partimos para coleta e análise das fontes
documentais (estatutos, atas, convites e fotografias). Na sequência, nos debruçamos sobre os
materiais encontrados.
Trabalhando com memórias, lidamos diretamente com nosso objeto de estudo e temos que
ter a sensibilidade necessária para acessar e conhecer experiências trazidas nessas recordações. A
História Oral foi o caminho a ser seguido para revisitar as memórias da dança dessas mulheres
negras frequentadoras do clube cultural Fica Ahí pra ir Dizendo. Em relação à História Oral, a
autora Delgado aponta que:
Ao estudar as memórias das mulheres negras e suas relações com a identidade, a História
Oral nos parece direção apropriada por se tratar de acesso a informações pessoais de sujeitos que
fizeram parte deste contexto.
A História Oral é um conjunto de procedimentos, bem como a soma articulada, planejada
de determinadas atitudes organizadas em conjunto (MEIHY, 2013, p. 15); é um processo transitório,
que segue sempre em movimento. As entrevistas que investigam os meios empregados por um
sujeito para se recordar do passado vivenciado podem ser enriquecedoras para o pesquisador, pois
se configuram como um exercício valioso de saber lidar com histórias de vida, assim como, com
memórias individuais que se tornaram coletivas por se tratarem de um grupo de mulheres que
tiveram experiências em um mesmo espaço social.
Nesse seguimento, a História Oral é um procedimento, um meio, um caminho para a
pesquisa do conhecimento histórico e científico. Segundo a autora Delgado:
Essas histórias de vida atuam como fontes ricas na reconstrução de ambiente, pensamentos
de épocas, modos de vida, hábitos e costumes de distintas naturezas. Então, podem acessar
detalhadamente as marcas do tempo, relacionadas às experiências culturais e sociais.
Nas sociedades tradicionais, a memória social partida de vivências, mantendo-se por seguir
a tradição e os costumes, garante assim, uma ida regular ao passado (NORA, 1993, p. 25). São
lugares de memória encarregados de desempenhar o papel de manutenção dos parâmetros sociais,
buscando fugir do esquecimento. Em vista disso, a memória individual ganha sentido na História
Oral quando se insere em um conjunto de memórias sociais, constituindo identidades próprias e
coletivas através de suas transformações e permanências. Conforme o autor Halbwachs nas
memórias coletivas de um grupo social se destacam:
[...] as lembranças dos eventos e das experiências que dizem respeito à maioria de seus
membros e que resultam nessa de sua própria vida ou de suas relações com os grupos mais
próximos, os que estiveram mais frequentemente em contato com ele (HALBWACHS,
2003, p. 51).
O uso da História Oral, portanto, deve ser aplicado “onde os documentos convencionais
não atuam, revelando segredos, detalhes, ângulos pouco ou nada prezados pelos documentos
formalizados” (MEIHY, 2013, p.197). Sendo assim, é a partir da percepção do narrador, que os
lugares, as memórias e os acontecimentos serão descritos (OLIVEIRA, 2015, p. 21). Na História
Oral, os elementos que são esquecidos ou, até mesmo, ignorados virão à tona, propiciando novos
significados para a memória.
Ao refletirmos, percebemos que as narrativas das histórias de vida contribuem em grande
valia para a constituição da memória e construção identitária. Estudar as questões referentes à
identidade, a partir de interpretações das histórias e experiências de vida, nos permitir colocar em
destaque a pluralidade e a transição destas ao longo da vida. A utilidade da oralidade se disponibiliza
para a apreensão de registros a partir das experiências de pessoas e grupos que aceitam dar
testemunhos, aos que são convidados pelas suas falas, com a finalidade de transformar suas
vivências em produções escritas. Entre os aspectos que interferem na oralidade estão o cotidiano e
a cultura material das pessoas e grupos envolvidos (PORTELLI, 1997, p. 27). Segundo Alberti
(2000, p.11), na “história oral a memória é vista como fato, como algo que pode incidir sobre a
realidade e causar mudanças” A partir da oralidade é possível aprender e identificar conhecimentos
que ainda não foram acessados e preservados em recordações do passado dos sujeitos que o
vivenciaram.
Nesse sentido, as mulheres pesquisadas são portadoras da memória viva deste espaço, pois
suas experiências de vida se entrelaçam com as vivências do clube. Há uma relação familiar que,
em muitos casos, vem desde a infância, passando de geração à geração, ou seja, fazem parte da
história de um patrimônio da sociedade pelotense, pois ao recordarem suas vivências no clube,
revisitam suas experiências pessoais, que remetem a um tempo e espaço, reativando assim o diálogo
do presente com o passado (DELGADO, 2010, p. 17).
As pesquisas que tratam sobre memória, lidam com estudos que abrangem temáticas
envolvendo recordações, emoções e momentos do passado que se relacionam a um assunto e/ou
lugar com foco nos acontecimentos históricos, culturais e sociais. Visitando autores que escrevem
sobre memória, encontramos Delgado (2010), Kiefer (2005), Saballa (2006), Zubaran (2008) e
Soares (2012), que compactuam das mesmas percepções ao se referirem à ela. Discutem sobre a
relação das memórias coletivas e individuais e a questão da reafirmação de identidade dos
protagonistas das memórias.
A memória é uma reconstrução constante atualizada do passado, onde encontramos com as
nossas raízes, nossos ancestrais, acessamos novamente as experiências, lembranças e etapas
vividas. De acordo com Félix (2004, p. 39), ela “liga-se às lembranças das vivências e esta só existe
quando laços afetivos criam o pertencimento ao grupo, e ainda os mantêm no presente”.
Conforme Delgado, a história, o tempo e a memória são termos que estão interligados:
4 O termo “raça”, neste trabalho, será mencionado entre aspas como uma forma de alusão e referência ao
racismo, considerando os vestígios da escravidão e as imagens que construímos sobre “ser negro” e “ser
branco” no Brasil (GOMES, 2005, p. 09). A raça é o termo que expressa melhor a discriminação contra os
negros, transmite o que é o racismo e afeta as pessoas negras da nossa sociedade. Por conseguinte, o
conteúdo da raça é social e político, pois para o biólogo ou o geneticista humano a raça não existe (MUNANGA,
2006, p. 52); encontra-se apenas na cabeça e na prática dos racistas.
ou de uma diferença biológica entre sujeitos negros, brancos ou amarelos. Conforme Munanga, a
identidade negra:
[...] resulta de um longo processo histórico que começa com o descobrimento, no século
XV, do continente africano e de seus habitantes pelos navegadores portugueses,
descobrimento esse que abriu o caminho para as relações mercantilistas com a África, ao
tráfico negreiro, à escravidão e enfim à colonização do continente africano e de seus povos
(MUNANGA, 1988, p. 35).
Sob esta ótica, é importante pensar que é construída a partir de um processo histórico, social,
político e plural, ou seja, em meio a uma série de fatores que se diferencia de uma cultura para outra.
Para Gomes (2006), a identidade negra é um processo que não acontece apenas quando se lança o
olhar sobre si mesmo, pois envolve a interação com o outro, um olhar de fora, com uma perspectiva
diversificada.
Gomes (2006, p. 03) destaca ainda que, para haver a construção da identidade, é necessário
que haja uma interação, essa troca com o outro, que vai além da própria auto-percepção, do “eu”,
visão própria de si, ao se deparar com interpretação do outro. A partir desta troca entre os sujeitos,
pode haver a formação de uma identidade coletiva.
Seguindo nesta linha de pensamento, Gomes (2005, p. 39) aponta que a identidade negra se
constrói gradativamente, em um movimento que envolve diversas variáveis, causas e efeitos.
Implica a relação com o outro: como se é visto pelo outro, a visão de mundo, a cultura e as trajetórias
de vida de cada sujeito que interferem no julgamento da imagem. A identidade não é algo nato;
refere-se a um modo de ser, de se portar perante os outros, em relação à sociedade. Ela está ligada
à cultura de um povo étnico e ao conjunto de suas práticas culturais. São representadas como
referência para grupos sociais (GOMES, 2005, p. 41).
Dessa forma, é de extrema importância que o sujeito encontre um fio condutor que relembre
sua história e contexto, para revisitar seus aspectos culturais e conseguir extrair destas variantes
uma afirmação identitária, do seu lugar no mundo. Em relação à noção de pertencimento do negro
de seu “lugar” no mundo, o autor Munanga (1988) destaca:
Por esse ângulo, percebemos que a identidade está sempre em desenvolvimento, lutando
por uma reconstrução de afirmação negra positiva, buscando superar a discriminação racial que
ainda hoje acontece e muito, com intuito de que a sociedade avance em relação ao reconhecimento
e valorização do negro. Sendo assim, a identidade é um fator que desempenha papel importante na
criação das redes de relações e de referências culturais dos grupos sociais. Aponta ainda aspectos
culturais, no qual se expressam através de festivais, bailes, religiosidade, comportamentos,
gastronomia e tradições populares.
Ao ler Silva (2012), encontramos ideias referentes aos espaços de sociabilidade dos negros,
como por exemplo os clubes, no qual a identidade negra é concebida como uma identidade de base
racial. Reconhecer-se em uma identidade pressupõe corresponder afirmativamente a uma
interpretação e estabelecer uma noção de pertencimento a um determinado grupo social como
referência (MUNANGA, 2006, p. 52); nisso temos o clube cultural Fica Ahí pra ir Dizendo.
O Fica Ahí foi fundado em 27 de janeiro de 1921, na Praça da República, que veio a se
tornar a Praça Coronel Pedro Osório, local em que um grupo de amigos estava reunido. O Cordão
Carnavalesco, como nasceu, desfilava no Carnaval de rua pelotense. Junto aos foliões saía um
conjunto de músicos tocando marchinhas carnavalescas e alegrando os participantes do cordão.
Esta entidade se constituiu como um espaço reservado aos negros. Em 1948, o Cordão
Carnavalesco passou a Clube Carnavalesco.
Ainda em 26 de maio de 1953, o clube passou de carnavalesco para cultural, enriquecendo
assim um dos primeiros objetivos da associação, que era – entre outros – desenvolver manifestações
culturais em seu espaço (LIMA, 2009, p. 02). A partir deste ano, os membros teriam um lugar
próprio para aprimoramento e valorização da cultura negra, através de ações realizadas em
comemoração ao Dia da Consciência Negra e criação de um coletivo de Dança e Teatro
denominado Grupo Jovem, que teve como intuito abordar a temática negra através dessas
linguagens artísticas.
No acesso aos propósitos que o Clube Fica Ahí, tinha, averiguamos o desejo de promover
festas oficiais “para o deleite dos seus associados, tais como: reuniões dançantes, picniks, excursões
e bailes de Carnaval quando, então, é coroada a rainha” (ESTATUTO de 1971, p. 01). Ainda
aconteciam outros eventos além dos bailes do Fica Ahí, como desfiles de moda e penteados,
reuniões dançantes, chás das coroas (chá de senhoras) e bingos. Nele eram praticados alguns
esportes, como pingue-pongue, ginástica e futebol. Também eram organizadas, pela direção do
clube, excursões dos sócios para o Carnaval de Porto Alegre e para o de Rio Grande.
Uma demanda apresentada era em relação às vestimentas nas festividades. Dependendo do
tipo de baile, os trajes deveriam ser sociais: nos Bailes da Primavera, por exemplo, que eram das
debutantes, era obrigado o uso de smooking, para os cavalheiros, e vestidos ou conjunto de tailleur
e saias cumpridas, para as damas. As questões referentes à moral e aos bons costumes, também
eram levadas em consideração para a vinculação à associação.
A função da mulher, em um primeiro momento dentro da associação, era de acompanhante
do marido. Havia as conhecidas como as esposas dos membros da diretoria e do conselho, como os
cargos de presidente, vice-presidente, tesoureiro entre outros. Ou seja, “as primeiras damas” tinham
status e possuíam uma visibilidade dentro do clube. Com o passar dos anos, as mulheres foram
criando atribuições; eram elas que se encarregavam de organizar os eventos festivos. Também
ficavam responsáveis pela parte dos quitutes oferecidos nas festas, que eram feitos por elas. Ainda
realizavam a decoração e providenciavam, junto com a diretoria oficial do clube, a música ao vivo,
com bandas nos bailes de carnaval adultos.
Para as mulheres, comumente, na sociedade, era destinada a função de cuidado do lar e da
família. Mas nas associações negras o trabalho delas era “um dos principais pilares de sustentação
destes clubes” (LONER; GILL, 2012, p. 17). Desempenhavam um papel importante, de modo que
auxiliavam no desenvolvimento da associação, através, por exemplo, de eventos beneficentes que
organizavam no Clube Fica Ahí, com intuito de arrecadarem fundos para melhorias no espaço. Com
o tempo, foi criada uma diretoria de mulheres, com o propósito de auxiliar na administração oficial
do clube, e na organização das festas oficiais e não oficiais. Com esta criação, conquistaram uma
representação nas reuniões da direção e, com árduo trabalho e dedicação, foram construindo seus
espaços dentro do Fica Ahí.
Conforme o Estatuto de 1989 (p. 27), os objetivos dessa gestão de mulheres eram: promover
reuniões artísticas, dançantes, chás e jantares beneficentes, além de momentos com teatro, folclore
e demais atividades referentes ao meio social. E também participar das formações de comissões
constituídas para atividades em benefício do clube, e representá-lo, diante de outros espaços de
sociabilidade, sempre que fosse necessário e oportuno, mediante a gestão oficial.
Ao tratarmos das recordações das senhoras ficaianas sobre o universo constituinte do clube,
estaremos acessando um “mundo social” (BOSI, 1994, p. 82) desconhecido para nós, o qual possui
uma riqueza e diversidade ampla de vivências individuais e compartilhadas, onde podemos ter
contato com esse conhecimento através da memória dos mais velhos. Momentos “perdidos” dessa
vida que podem ser entendidos por quem não os presenciou, enriquecendo, assim, a história que
vai sendo contada e revivida pelos personagens que viveram um contexto.
A memória está compreendida nesta pesquisa enquanto materialidade, preservada por
sujeitos que compõem a história do clube cultural Fica Ahí pra ir Dizendo, que necessitam de
espaço e meio de manifestação sedimentada na oralidade, cujo registro garante e documenta um
conhecimento popular, no qual a “narrativa oral está tomada de detalhes que apenas quem conta
consegue expressar” (OLIVEIRA, 2015, p. 15). Em vista disso, ao reconstruirmos as trajetórias que
as senhoras ficaianas percorreram no clube cultural Fica Ahí pra ir Dizendo, através de suas vozes,
sendo elas protagonistas deste local, queremos acessar suas percepções com o intuito de criar
relações entre as partes envolvidas e a visão do coletivo sobre a presença da dança neste ambiente.
Ao destacarmos as memórias sobre a dança, nesta pesquisa, refletimos que ela possibilita a
compreensão e apresentação das práticas culturais em um espaço de sociabilidade, recreação e lazer.
Assim, promove o encontro dos associados do clube, com as suas histórias, demonstrando dessa
forma o quanto estão ligados, resgatando e atribuindo novos sentidos à sua vida.
Através da dança as pessoas mantinham contato, se relacionavam, formando laços de
amizade, namoros e até possíveis casamentos, pois na dança o homem e a mulher “conversam
corporalmente” e a partir disso, interagem/ se comunicam. Era um modo de se socializar nos clubes
e conhecer pessoas novas. Esta manifestação artística envolvia os associados e promovia interações
sociais, neste espaço de sociabilidade frequentado pelas senhoras ficaianas. A linguagem da dança
dialoga com nuances particulares da cultura negra nesta associação, acionando dimensões
identitárias em seus fazeres culturais, sociais e artísticos vivenciados pelas suas frequentadoras. As
festividades promoveram a valorização da cultura étnica negra contribuindo para o auto-
conhecimento de seus associados, principalmente para as mulheres negras nos momentos em que
dançavam com seus pares nos bailes do Fica Ahí.
Observamos que a dança inserida em um espaço de sociabilidade negra frequentado por um
amplo quadro de sócios, era praticada e refletia um senso identitário coletivo pelos sujeitos que
experimentavam um processo de interação e integração. O clube era o ambiente em que os
frequentadores agregam construções e vivências sociais através do ato de dançar, entre outras
formas, com seus amigos e familiares.
Chama a atenção, pela fala das senhoras, que este momento de organizar os blocos, e definir
e produzir as fantasias, era algo preparado com muita antecedência. Quando chegava o carnaval, os
sócios da instituição estavam em alvoroço, empolgados com as festividades. Os bailes eram
instantes de confraternização e alegria entre os sócios. Através das danças de casais ou indivíduos
formavam uma roda dançando o samba e as marchinhas carnavalescas, principalmente. Notamos
que essa linguagem artística criava laços entre aqueles que estavam reunidos, acolhia estes sujeitos
étnicos que haviam sofrido discriminação racial e que foram impedidos de frequentar os espaços
públicos em que a população branca circulava; transmitiam pela dança, liberdade de expressão. A
dança mobilizava toda uma organização do espaço e dos sujeitos que estavam presentes,
promovendo a partir dessa prática, construções de identidade que se propagavam no
desenvolvimento dos aspectos social, cultural, política e ideológica (GOMES, 2006, p. 20).
Outro acontecimento que gerou repercussão positiva em relação à contribuição para uma
construção de identidade negra no Clube Fica Ahí, foi a criação de um Grupo Jovem, na década de
1980. Com a criação deste grupo, constatamos um interesse maior por parte dos sócios e também
do clube, pela valorização da cultura negra, com a intenção de promover a sua valorização.
Sua formação representou um símbolo identitário para o clube, por ter sido criado dentro
desta associação negra, formada pelo coletivo, por jovens negros que tinham vontade de manifestar
a sua cultura através da dança e do teatro. Para os negros, que em um período não muito distante
não podiam nem ter um espaço próprio para se socializarem, a construção do Grupo Jovem
promoveu a sua valorização. À vista das ações desenvolvidas por ele, podemos destacar que a
dança contribuiu para definições de identidade nesta associação projetadas através das ações
culturais e artísticas do Grupo Jovem.
Ao longo de seus depoimentos, as senhoras ficaianas citam alguns eventos que aconteceram
no clube. Mas dentre os mencionados por elas, percebemos que a comemoração ao Dia da
Consciência Negra era o que mais dava visibilidade à cultura negra, valorizando as origens dos
associados, bem como saudando seus antepassados e aos que muito se dedicaram ao clube. Neste
jantar, o salão era todo decorado com elementos africanos e havia comidas típicas e apresentações
de danças afro. Devido a todos estes fatores, constatamos o quanto era importante esta festa, levando
em consideração que era uma associação negra e que essas atividades propiciavam um reforço
identitário aos sócios que participavam.
No contexto africano, o corpo, a sua ornamentação e a vestimenta enunciam o indivíduo às
identidades grupais. Ressalte-se assim, a importância para eles de celebrar o Dia da Consciência
Negra, evento este em que os elementos citados acima eram representados, bem como as origens
de sua ancestralidade. Além dos sócios jantarem nestas festividades as comidas típicas da cultura
negra, eles apreciavam manifestações artísticas que seguiam a vertente africana. As histórias das
artes corporais representadas a partir da dança do Grupo Jovem revelam um dos mais significativos
indicadores da dinâmica social e da influência cultural negra.
Sobre as memórias das senhoras ficaianas acerca da dança, relacionadas às experiências
sociais que tiveram, na narrativa do sentido de pertencimento etnicorracial e fortalecimento da
identidade estabelecida por elas, no clube, constatamos que as experiências que estas mulheres
tiveram com a dança propiciaram um sentimento de “libertação,” uma vez que essa linguagem
artística respeita as vivências corporais de suas participantes, além de ensinar as mesmas a
aceitarem seu corpo e o corpo do outro; ou seja, entendendo e considerando as suas diferenças
(SILVA, 2013, p. 08). A partir disso, compreendemos que a dança foi um dos fatores que influenciou
nas definições identitárias destas mulheres nos momentos vividos por elas dentro do clube, bem
com as práticas culturais e artísticas oferecidas pelo Grupo Jovem.
Após nos atermos às memórias e às reflexões pessoais das senhoras ficaianas, percebemos
que a dança esteve presente ao longo de suas vivências no clube, fez parte de vários momentos
como: nos Bailes de Debutante, quando algumas delas debutaram; nos Bailes Infantis com as
Duquesinhas; nas comemorações aos Aniversários do Clube; nos Blocos e Bailes Carnavalescos
com as rainhas e suas cortes; no Grupo Jovem, entre outros. Dentro ou fora do clube, a dança em
algum momento de suas histórias de vida apareceu conforme as suas memórias. Percebemos que a
dança contribuiu para suas identidades sociais enquanto cidadãs, identidades de gênero enquanto
mulheres e identidade negra por frequentarem este clube negro que valorizava seus antepassados,
suas origens e a cultura africana através das imagens, dos movimentos e dança.
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3 O Ideb é um indicador de qualidade da educação básica, calculado com base no fluxo escolar e médias de
desempenho nas avaliações nacionais. Por meio de seus resultados, são traçadas metas para serem alcançadas
pelas escolas, com o intuito de melhorar a qualidade da educação do
país. .
4 Compreendemos que governamentalidade diz respeito a questões governamentais referentes ao surgimento do
Estado Moderno, isto é, ao governo político. E, governamento, refere‐se à condução de condutas (VEIGA‐
NETO, 2002).
Saraiva e Veiga-Neto (2009) apresentam algumas mudanças ocorridas na racionalidade
governamental, em razão das transformações ocorridas na sociedade, sobretudo, proporcionadas
pelo neoliberalismo. O SEFE traça estratégias de governamento que possuem características de
uma governamentalidade neoliberal, como estímulo à competição, busca pela eficiência e
qualidade, cumprimento de metas e práticas de meritocracia. Ao mesmo tempo, outras estratégias
de governamento com o caráter disciplinar também são exercidas, como a homogeneização das
condutas dos professores por meio de normas e vigilância. Mas, não se trata de disciplinar o corpo
dos sujeitos, como bem descreveu Foucault em “Vigiar e Punir”, e sim, de disciplinar e controlar a
alma deles, suas subjetividades.
É nessa direção que Saraiva e Veiga-Neto (2009, p. 195) argumentam sobre uma
reorganização do diagrama de poder da sociedade contemporânea, isto é, essa mudança de
configuração do poder cria um novo tipo de poder: o noopoder. O noopoder exerce sua força, não
mais sobre o corpo do sujeito, como acontecia no caso do poder disciplinar, mas sobre a alma,
formando as sociedades de controle. De tal modo, “ainda que o noopoder não faça desaparecer as
outras modalidades de poder, ele parcialmente as recobre e as modifica” (SARAIVA; VEIGA-
NETO, 2009, p. 195).
Saraiva e Veiga Neto (2009, p. 196) apresentam, ainda, o papel que as empresas ocupam
nessa nova configuração de poder, tendo em vista que a governamentalidade se redistribui. Assim
sendo, pode acontecer de o Estado ter um papel menor do que a função das empresas na sociedade
contemporânea. Com isso, entende-se a implementação do SEFE, em algumas escolas da RME de
Florianópolis, como uma forma de noopoder.
Sobre as mudanças ocorridas nas formas de exercer o poder, Menezes (2011, p. 28)
apresenta que, por volta da metade do século XX, ocorreu uma “descontinuidade histórica no
quadro das tecnologias educacionais situadas nas diferentes órbitas das diferentes práticas de poder
características da sociedade disciplinar e daquelas próprias da sociedade de controle”. O autor tem
como objeto de estudo as práticas pedagógicas que possuem o caráter de normatização, por isso,
sua questão central gira “em torno dos dispositivos de normalização, as novas tecnologias e práticas
educacionais pelas quais os indivíduos são constituídos sujeitos”. Portanto, compreende-se o SEFE
como instrumento de normatização, que busca controlar o modo como os professores pensam e
agem, isto é, uma nova tecnologia pedagógica, própria da sociedade contemporânea.
Além dessas categorias, o conceito de estratégia cunhado por Certeau (2008) auxilia a
compreender os modos como os professores são governados pelo SEFE. Ao tratar sobre uma
espécie de jogo, de atritos entre grupos – de um lado os fortes e de outro os fracos –, Certeau (2008,
p. 97-102) diz que a estratégia é a arte dos fortes, dos sujeitos instalados em um lugar de poder e de
querer imprimir ações em outros, ou seja, a um outro que se torna o alvo de intenções. A
metáfora do lugar é utilizada pelo autor como indicativo de instâncias de poder que oferecem um
tipo de saber. Os lugares podem ser tanto físicos quanto centrados nos discursos.
Em termos metodológicos André (1995) forneceu subsídios para se trabalhar com uma perspectiva
etnográfica. A autora destaca que dentre as características da pesquisa etnográfica, está a “interação
constante entre o pesquisador e o objeto pesquisado”. Em outras palavras, “o pesquisador é o
principal instrumento na coleta” das fontes (ANDRÉ, 1995, p. 28). Com isso, realizaram-se três
procedimentos associados à etnografia: observação participante em cursos de formação de
professores do SEFE, entrevista intensiva com oito professores que utilizavam o SEFE e uma com
o secretário municipal de educação e análise de documento.
Autores, como Alberti (2005), Worcman e Pereira (2006), e Portelli (1997), forneceram
subsídios teóricos para o trabalho de realização das entrevistas, ou seja, da produção de fontes orais.
Dessa maneira, elas foram gravadas em forma de áudio e transcritas (procedimento
de transformação do conteúdo oral para a forma escrita).5
O conteúdo está no SEFE. Se eu vou fazer qualquer coisa eu vou andar rumo àquele
conteúdo. Para que eu vou fazer uma coisa diferente? Eu preparo minhas aulas a partir da apostila,
os extras, os projetos, as atividades, tudo isso. Eu não fico inventando outra coisa, até porque nem
dá tempo (Profª. Hortência, Entrevista, 2012).
A fala da professora Hortência demonstra o quanto o SEFE, por meio da coleção
“Caminhos”, traça estratégias para normatizar as práticas pedagógicas dos professores. Entende-se
a coleção “Caminhos” como o carro chefe de tal sistema de ensino. Ela é o instrumento concreto
presente nas escolas para normatizar tanto a conduta dos professores, quanto os conteúdos. Desse
modo, a Empresa considera que facilita o trabalho dos professores na medida em que determina
tudo o que tem de ser ensinado.
O Edital de licitação para a compra do sistema de ensino estabelece que ele precisa ter uma
proposta interdisciplinar (FLORIANÓPOLIS, 2012, p. 15). O parecer que aprova a compra do
SEFE afirma que esse Sistema possui tal proposta metodológica (Parecer nº 01, 2012). No site do
SEU é destacado sobre sua abordagem interdisciplinar. Da mesma forma, nos cursos de capacitação
e em conversas realizadas tanto com representantes da SME, quanto com os professores que usam
o SEFE, a metodologia interdisciplinar da coleção “Caminhos” era sempre uma questão pontuada.
Todavia, na apostila do professor não há o termo “interdisciplinaridade” citado. Apenas na capa da
apostila destinada aos alunos consta: “Projeto interdisciplinar para o Ensino Fundamental”.
Segundo Fazenda (1993, p. 51), “a ‘interação’ seria condição necessária para a
interdisciplinaridade”. A autora argumenta o seguinte:
Delimitando mais rigorosamente o conceito de interdisciplinaridade, conclui-se que esta seria um
passo além dessa integração, ou seja, para que haja interdisciplinaridade deve haver uma ‘sintonia’
5 Com o intuito de preservar a identidade dos entrevistados, neste texto serão utilizados nomes fictícios.
e uma adesão recíproca, uma mudança de atitude frente a um fator a ser conhecido. Enfim, o nível
de interdisciplinaridade exigiria uma ‘transformação’, ao passo que o nível de integrar exigiria
apenas uma ‘acomodação’ (FAZENDA, 1993, p. 51).
Sabendo disso, ao analisar a coleção “Caminhos” percebeu-se que ela não possui uma
interação que possibilite uma transformação no modo de ensinar as áreas de conhecimento, uma
vez que não muda a forma de trabalhar as disciplinas. Elas apenas são organizadas alternativamente
ao longo das apostilas, produzindo um sentido de manual, no qual o professor possui a tarefa de
seguir sua prática de acordo com o estabelecido e na mesma sequência proposta pelo SEFE.
Por isso, essa forma de organização da coleção proporciona a acomodação dos conteúdos e
também da ação docente, uma vez que foi comum os professores nos cursos de capacitação
comentarem que “as apostilas são o próprio planejamento”. Igualmente, os oito professores
entrevistados corroboram com essa opinião. Desse modo, ao utilizar a coleção “Caminhos”, não é
mais necessário que o professor planeje sua prática diária, tendo em vista que a apostila já se
encarrega disso. Ou, de outra maneira, como se observou nos cursos: o planejamento se resume a
planejar em que dia será usada determinada página da apostila.
A fala da professora Margarida contribui para entender como a coleção Caminhos colabora
para a acomodação: o SEFE “facilita a vida do professor meio malandro. Então o professor pega a
apostila vai seguindo, xeroca o começo da apostila e entrega como planejamento” (Profª.
Margarida, Entrevista, 2012). Da mesma forma, a professora Hortência diz que “cômodo é muito.
Agora, eu não sou uma pessoa cômoda. Para comodidade é perfeito!” (Profª. Hortência, Entrevista,
2012). Com isso, pode-se inferir que qualquer pessoa, desprovida de formação específica até, pode
chegar à sala de aula, abrir a apostila na página onde parou na aula do dia anterior e continuar os
conteúdos. Também, nem é preciso se preocupar em como e quando trabalhar as diferentes áreas
de conhecimento, já que estão distribuídas alternativamente na apostila.
Quando questionados sobre as alterações na prática de planejar usando o SEFE, percebeu-
se um discurso homogêneo sobre o planejamento. Seguem alguns fragmentos dos relatos dos
professores:
É que o SEFE direciona teu planejamento. Não dá para abrir muita coisa. Ele tem as
atividades, tem os conteúdos, tu vai antecipar um e ir além. E aí ele direciona teu planejamento
para determinada coisa. Já na outra escola que eu trabalhei que não era, eu tinha que inventar tudo
(Profª. Gérbera, Entrevista, 2012).
Mudou porque agora, praticamente, eu não preciso planejar. Não tem que planejar porque com o
SEFE o planejamento já vem praticamente pronto, os eixos a serem trabalhados, os objetivos. A
gente fica seguindo o livro (Profº. Lírio, Entrevista, 2012).
Como se pode constatar, o SEFE e, mais especificamente, a coleção “Caminhos”,
proporciona mudanças significativas na ação de planejar, uma das ferramentas principais que
caracteriza a profissão docente. Da mesma maneira, o professor fica preso ao material didático,
sendo ele, senão o único, o principal material a ser consultado. Isso, além de propiciar uma
homogeneização das práticas, leva também à fragmentação do conhecimento. A professora Violeta,
ao mostrar as mudanças ocasionadas pelo SEFE em seu planejamento, expressa muito bem tal
questão:
Porque antes eu me sentia mais como pesquisadora. Quando eu pegava o currículo dos
alunos, ‘o que os alunos do terceiro ano precisam?’ A gente pegava, elaborava todos aqueles
conteúdos de todas as disciplinas e, em cima daqueles conteúdos, tu buscavas os textos. Eu acho
que eu me sentia mais pesquisadora; ficava o tempo todo planejando. A partir do momento que veio
essa apostila, eu até planejo, mas já tá tudo aqui dentro ‘na página tal vamos trabalhar esse texto’.
Então está tudo muito pronto, os textos estão vindo prontos, as fábulas já estão aqui, vamos dizer,
o gênero textual receita e já está aqui (Profª. Violeta, Entrevista, 2012).
O que a professora Violeta fala está relacionado com o cerceamento das
liberdades individuais dos professores. Nesse sentido, compreende-se que o governamento
do SEFE tem o objetivo de normatizar as práticas pedagógicas por meio da coleção
“Caminhos”, isto é, os professores renunciam às suas vontades para seguir regradamente a
coleção. Assim, questiona-se como um material que padroniza conteúdos e métodos para vinte
escolas da Rede pode produzir a lógica da interdisciplinaridade que “é a da invenção, da
descoberta, da pesquisa, da produção científica, porém gestada num ato de vontade, num
desejo planejado e construído em liberdade”? (FAZENDA, 2001, p. 19, grifo nosso). A
professora Rosa fala a respeito do controle do tempo, isto é, ter de usar a apostila para dar
conta de terminá-la e assinala para a possibilidade de acarretar prejuízos no ensino, dado que
não sobra tempo para realizar um trabalho diferenciado com o aluno que possui dificuldades.
Tenho quinze anos de magistério, mas é a primeira vez que eu trabalho com material
pronto e eu não gostei. Porque o que tu tem que fazer? Você tem que interferir naquilo que
eles não estão aprendendo, na verdade. Se você está fazendo seu planejamento, você vê que
o aluno não está conseguindo, você vai fazer uma intervenção ali. E com o material todo
pronto, a gente tem que dar conta. Então, você não tem tempo para ficar parando para dar
atenção para aquele déficit, ali no momento. Entendeu? Para aquela dificuldade do aluno.
(Profª. Rosa, Entrevista, 2012).
Desse modo, percebe-se o quanto o controle do tempo articulado ao material didático é
uma estratégia para normatizar e padronizar as práticas pedagógicas e, ao mesmo tempo, os
conteúdos. Isso é entendido como uma forma de exercer o poder, pois o SEFE e a SME não
dizem que não se pode usar outros tipos de materiais, mas criam estratégias que fazem com
que se use somente a coleção “Caminhos”. Vale dizer, o poder perpassa as relações e provoca
a ação. Focault (2011, p. 8) argumenta que,
se o poder fosse somente repressivo, se não fizesse outra coisa a não ser dizer não, você
acredita que seria obedecido? O que faz com que o poder se mantenha e que seja aceito é
simplesmente que ele não pesa só como uma força que diz não, mas que de fato ele
permeia, produz coisas, induz ao prazer, forma saber, produz discurso. Deve-se considerá-
lo como uma rede produtiva que atravessa todo o corpo social muito mais do que uma
instância negativa que tem por função reprimir.
Considerando o que foi exposto, anteriormente, compreende-se que o Sistema define tudo
o que deve ser ensinado por meio da coleção “Caminhos”. Ao professor, basta apenas executar o
que foi previamente determinado. Dessa forma, neste item será apresentada a abordagem da
temática indígena presente na coleção, com o intuito de expor a concepção acerca da história dos
povos indígenas presente no material.
Santomé (2010) é eleito como base para a análise da abordagem da coleção “Caminhos”
acerca dos indígenas. O autor argumenta que a instituição escolar “tem a responsabilidade social de
educar, pode e deve desempenhar um papel muito mais activo como espaço de resistência e
denúncia dos discursos e práticas que [...] continuam a legitimar práticas de marginalização”
(SANTOMÉ, 2010, p. 24). Entretanto, o autor afirma que a escola é um lugar que ainda legitima
práticas de marginalização, sendo o currículo uma de suas ferramentas principais. Sendo assim,
Santomé (2010, p. 25) lista algumas estratégias curriculares consideradas inadequadas ou
incorretas. As estratégias de exclusão e infantilização ajudam a pensar no tema dos indígenas que
estão presentes no material didático do SEFE.
Conforme o autor, a exclusão ocorre quando o currículo omite as diferentes culturas
presentes na sociedade, como se vivesse em uma sociedade monocultural (SANTOMÉ, 2010, p.
37). Sobre a referida questão, pode-se dizer que a coleção “Caminhos” dá a ideia de que os grupos
indígenas não vivem na sociedade atual, tendo em vista que majoritariamente eles são representados
na ocasião do descobrimento do Brasil.
Ademais, o assunto sobre os indígenas é trabalhado por meio de itens tradicionalmente
contemplados na História do Brasil e da América, ou seja, apresentando as populações indígenas
no passado, por intermédio de fatos históricos – os descobrimentos – e, em seguida, o
processo de colonização.6 Dessa forma, são privilegiados as datas e nomes dos personagens
europeus que participaram desses episódios da História, conforme a apostila do 3º ano:
6 Em alguns momentos, ao longo da coleção, é exposto o termo “descobrimento” entre aspas, mas não é
explicado nem para o professor, nem para o aluno o porquê disso. Entende-se que usar tal palavra entre aspas
infere uma visão crítica sobre esse acontecimento histórico; todavia, a coleção apresenta uma visão tradicional.
7 Dos trinta títulos que trabalham com o tema dos indígenas, em quinze é abordada a disciplina de História.
com os portugueses (Figura 1). E reforçam o fato histórico do descobrimento, por meio de uma
visão positivista e eurocêntrica.
Essas imagens, entre outras, vão ao encontro da indicação de Santomé (2010, p. 69, grifo
do autor), no sentido de contribuir para se pensar sobre essa questão quando diz se tratar de uma
estratégia curricular inadequada, pois infantilizadora, que representa “as diferentes culturas, as
minoritárias, recorrendo a desenhos, semelhantes aos que são usados nas séries de televisão de
desenhos animados ou livros cósmicos”. (Grifo meu).
Dessa forma, corrobora-se com o que é exposto pelos Parâmetros Curriculares Nacionais
(PCN) sobre a pluralidade cultural, ao afirmarem que “materiais didáticos desempenharam papel
crucial, tanto por veicularem explicitamente noções erradas quanto de maneira velada e implícita,
por exemplo, em ilustrações que insistiram em passar estereótipos que aprisionavam grupos étnicos
a certos papéis sociais” (BRASIL, 1997, p. 67).
Em relação às políticas públicas curriculares, pode-se compreender que a coleção desconsidera o
que é proposto pelos Parâmetros Curriculares Nacionais (PCNs) e a proposta curricular do
município de Florianópolis em relação ao ensino de tal temática. Igualmente, em nenhum momento,
a coleção “Caminhos” faz referência à Lei nº 11.645/2008, que normatiza sobre os currículos
oficiais escolares para trabalharem, obrigatoriamente, a história da cultura afro-brasileira e
indígena, de forma a se ensinar acerca dessas etnias “na formação da sociedade nacional,
“resgatando” as suas contribuições nas áreas social, econômica e política, pertinentes à história do
Brasil” (BRASIL, 2008). Sendo assim, embora essa temática apareça pontualmente na coleção, a
forma como é abordada não atende às perspectivas atuais atinentes às discussões sobre a diversidade
e relações étnico-raciais.
Além disso, parecem desconhecer estudos e pesquisas sobre o ensino de História numa
perspectiva atual, como apontam Bittencourt (2004), Schmidt e Cainelli (2009), Otto (2012), Rossi
e Zamboni (2005), entre outros, os quais indicam que, muito mais do que ensinar datas, nomes de
grandes personagens, fatos históricos e buscar as “origens” é levar as crianças a compreender como
a história é produzida, por meio da aprendizagem de noções temporais e conceitos (como tempo,
fato, fonte, sujeito). Assim, elas estarão em um processo gradual de desenvolvimento do
pensamento histórico.
Considerando o que foi dito sobre os indígenas, corrobora-se com a opinião de Santomé
(2010, p. 37): “nos manuais escolares que circulam nas instituições educativas, as vozes e as
representações dos ‘outros’ são inexistentes ou, na melhor das hipóteses, uma anedota”. Por isso,
ressalta-se a necessidade de se considerar os saberes dos professores para não se reproduzir projetos
curriculares excludentes e discriminatórios.
Diante disso, entende-se que o professor tem um papel ativo fundamental no sentido de
fazer uma leitura e utilização crítica de todo e qualquer material didático, ou seja, não tomá-lo como
“um presente de grego”, tal como ocorreu com os troianos. Para tanto, os gestores possuem papel
central na valorização e respeito aos saberes docentes, o que pode contribuir para a apropriação
crítica e analítica das políticas curriculares, especialmente dos sistemas de ensino privados.
ADRIÃO, Theresa; GARCIA, Teise; BORGHI, Raquel; ARELARO, Lisete. Uma
modalidade peculiar de privatização da educação pública: a aquisição de “sistemas de ensino”
por municípios paulistas. Revista Educação e Sociedade. Campinas, v. 30, n.108, p. 799-818,
out. 2009. Disponível em: <https://goo.gl/PBp8ew>. Acesso em: 5 out. 2012.
ALBERTI, Verena. Manual de História Oral. 3. ed. Rio de Janeiro: Ed. da FGV, 2005.
ANDRÉ, Marli Elisa Dalmazo Afonso de. Etnografia da prática escolar. Campinas: Papirus,
1995.
_____. Livros didáticos de história: práticas e formação docente. In: DALBEN, Ângela
Imaculada Loureiro de Freitas et al. (Org.). Convergências e tensões no campo da formação
e do trabalho docente: currículo, ensino de Educação Física, ensino de Geografia, ensino
de História, escola, família e comunidade. Belo Horizonte: Autêntica, 2010.
CERTEAU, Michel de. A invenção do cotidiano: artes de fazer. Tradução Ephraim Ferreira
Alves. 15. ed. Petrópolis: Vozes, 2008.
FOUCAULT, Michel. Microfísica do poder. Tradução Roberto Machado. 29. ed. Rio de
Janeiro: Graal, 2011.
_____. Vigiar e punir: nascimento da prisão. Tradução Raquel Ramalhete. 39. ed.
Petrópolis: Vozes, 2011a.
ROSSI, Vera Lúcia Sabongi de; ZAMBONI, Ernesta (Org.). Quanto tempo o tempo tem. 2.
ed., Campinas: Alínea, 2005.
VEIGA-NETO, Alfredo José da. Coisas de governo. In: RAGO, Margareth; ORLANDI, Luiz
B. Lacerda; VEIGA-NETO, Alfredo José da. Imagens de Foucault e Deleuze:
ressonâncias nietzschianas. Rio de Janeiro: D&A, 2002.
Entrevista concedida pelo secretário municipal de educação, Rodolfo Pinto da Luz, a Raquel de
Melo Giacomini. Florianópolis, 4 de dezembro de 2012.
GARBADO, Carmen Lucia et al. Caminhos: fundamentação correspondente aos livros 1º a 5º anos
– livro do professor. Curitiba: Base, 2011.
Este trabalho tem por finalidade o exercício reflexivo do uso de testemunhos como fonte.
Para tal, utilizaremos uma entrevista efetuada pela historiadora Marlene de Fáveri em 19 de julho
de 1999, na elaboração da sua tese de doutoramento intitulada “Memórias de uma (outra)
guerra: cotidiano e medo durante a Segunda Guerra em Santa Catarina”. (Esta entrevista foi-me
gentilmente cedida pela Dr.ª Marlene de Fáveri para a produção deste artigo). A interlocutora é uma
senhora de origem germânica de 77 anos, que chamaremos de Nair. Ela foi professora da Escola
Normal em escolas isoladas na década de 1930, e casou-se aos 27 anos, em 1954. A entrevista
contém 25 perguntas e foi motivada pelo interesse de conhecer os impactos da política nacionalista
do governo Vargas, principalmente no período entre 1942 e 1945, sobre a população de origem
alemã através dos testemunhos. Conhecendo a produção da professora Dr.ª Marlene de Fáveri
(2005), atentar-me-ei sobre a questão da identidade (este tema é abordado no capítulo II de sua
tese), posto que, também, esta questão é a mais evidente em todas as perguntas nesta
entrevista. A desconstrução dessa identidade1 germânica era um dos objetivos da campanha
nacionalista do governo Vargas:
* Universidade do Estado Santa Catarina/UDESC. Mestrando em História pelo PPG em História. Bolsista do
Programa CAPES.
1 Para apontar o conceito de identidade, aqui referido, nos valemos do conceito descrito por Seyfert sobre o
termo Deutschtum, onde se baseia em três formas: Pela herança de sangue, fundamentada na jus sanguinis, que
exclui critérios geográficos; pelo local de nascimento de uma pessoa, baseada no jus solis; ou pela combinação
destas duas coisas. Esta última alternativa levou a uma dualidade de nacionalidades, principalmente entre grupos
de imigrantes estabelecidos fora de seu país de origem, gerada pela confusão em torno do conceito de pátria,
cidadania e nacionalidade. Por exemplo, na ideologia pangermanista divulgada no sul do Brasil, qualquer
descendente de alemães teria direito à nacionalidade alemã, enquanto que a cidadania estava restrita aos
nascidos na Alemanha. Com isso, as noções de cidadania e nacionalidade são diferentes, ou seja,
nacionalidade está vinculada ao direito de sangue, enquanto que a cidadania está vinculada ao Estado. Portanto,
não importando onde tenha nascido o alemão será sempre alemão, pertencendo a uma unidade nacional, sem
se constituírem, necessariamente, em traidores dos Estados dos quais são cidadãos.
Mas, antes de examinarmos a entrevista em si, discutiremos alguns aspectos do uso da fonte
oral na História do Tempo Presente. Porém, desde já, cabe ressaltar que, apesar das vicissitudes, o
uso de testemunhos, como método de pesquisa, tem alçado voos cada vez mais altos, rendendo
excelentes frutos, como coloca Philippe Joutard: “Estamos persuadidos de que a História Oral não
está mais em suas primícias. Chegou já à primavera e é cada vez mais reconhecida e compreendida
nos círculos acadêmicos mais tradicionais. Os que contestam a fonte oral travam combates
ultrapassados”. (ALBERTI; FERNANDES; FERREIRA, 2016).
A História do Tempo Presente2 exige rigor igual ou maior que o do estudo de
outros períodos, pois “enfatizar a disciplina, a higiene intelectual e as exigências de probidade
parece ter conquistado seu espaço adquirindo seu reconhecimento como segmento histórico a
ser estudado, agregando a si tanto rigor teórico-metodológico como outras áreas da história”.
(RÉMOND. 1998). E uma das fontes utilizadas para problematizar e formular operações de
pesquisa e análise, visando interrogar e compreender processos e eventos do século XX e
do início deste século XXI é o testemunho. A oralidade se constitui uma ferramenta
formidável neste campo, principalmente, mas não somente; quando há falta de informação
documental suficiente para cruzamento de dados que possibilitem uma visão mais ampla do
objeto de pesquisa.
Vale relembrar que a História do Tempo Presente não é um fenômeno novo. Na
Antiguidade clássica, a história recente era o ponto central da inquietação dos
historiadores. Heródoto e Tucídides consideravam a história como um repositório de
experiências que deveriam ser preservados, e o trabalho do historiador era expor os fatos
recentes atestados por testemunhos diretos. Não havia, portanto, nenhum impedimento ao
estudo dos fatos recentes, e as testemunhas oculares eram fontes privilegiadas para a pesquisa.
Todavia, foi desqualificado pela historiografia na segunda metade do século XIX, e os
historiadores se afastaram da História do Tempo Presente, criando entraves para justificar tal
afastamento.
A afirmação da concepção da história como uma disciplina que possuía um método de
estudo de textos que lhe era próprio, que tinha uma prática regular de decifrar documentos,
implicou a concepção da objetividade como uma tomada de distância em relação aos
problemas do presente. Assim, só o recuo no tempo poderia garantir uma distância crítica.
Se se acreditava que a competência do historiador devia-se ao fato de que somente ele
podia interpretar os traços materiais do passado, seu trabalho não podia começar
verdadeiramente senão quando não mais existissem testemunhos vivos dos mundos
estudados. Para que os traços pudessem ser interpretados, era necessário que tivessem sido
arquivados. Desde que um evento era produzido, ele pertencia à história. Mas, para que se
tornasse um elemento do conhecimento histórico erudito, era necessário esperar vários
2 Consideramos a História do Tempo Presente um campo de estudos rico e amplo, que sugere
continuamente novas problematizações e induz a operações de pesquisa e análise para interrogar e compreender
processos e eventos do século XX e do início deste século XXI.
anos, para que os traços do passado pudessem ser arquivados e catalogados. (FERREIRA,
2000).
3FRANCO, Marina; LEVÍN, Florencia. (Comp.). Historia reciente: perspectivas y desafíos para un campo en
construcción. Buenos Aires: Editorial Paidós, 2007. p. 5. Acessado em: 29 de novembro de 2016.
Primeiramente, de modo mais ou menos pacífico, a entrevista é um jogo de esconde-
esconde entre o historiador e seu interlocutor. O primeiro, instalado numa posição de
inquisidor, se representa como “aquele que sabe” ou que saberá, porque sua missão é
estabelecer a verdade. O segundo, intimado a fornecer informações que permitirão essa
operação, frequentemente é forçado a ficar na defensiva, de tão evidente que é a suspeita
do entrevistador, enquanto ele próprio sente que possui a força da convicção “daquele que
viveu”. Assim, enquanto método referente aos documentos escritos declarados consiste
em praticar uma dúvida sitemática, da qual somente o cruzamento com outras informações
permite sair. O historiador que ouve a palavra-fonte expressa uma dúvida sobre a dúvida,
pois duas subjetividades imediatas se conjugam, tanto para esclarecer quanto para
confundir as pistas. Em segundo lugar, o historiador tem que navegar na crista de uma
onda sempre prestes a arrebentar, seja na beira da memória reconstituida ou firmemente
construida por motivos diversos (preservação de uma identidade coletiva ou de um mito,
proteção pessoal da vida passa, risco de ter de mudar de modo de representação de sua
própria existência), seja no curso de uma empatia participante que certos sociólogos, por
seu turno, manipulam conscientemente, julgando estar assim ajudando a construir ou
afirmar a identidade das pessoas solicitadas. Até agora negligenciou-se o desconforto, as
dificuldades e os riscos que podem representar para um individuo sua solicitude em
responder às perguntas de um pesquisador. Pois é natural para o historiador ir buscar na
melhor fonte sua melhor informação, para o depoente – muito mais amiúde do que o
historiador – isso custa muito. (FERREIRA; AMADO, 2006, p. 37-38).
O testemunho não deve ser usado como única fonte para confirmar um acontecimento
histórico – apesar se reconhecermos que alguns acontecimentos só possuem o testemunho como
“prova” da sua existência – antes, contudo; o historiador deve fazer uso de fontes materiais, fazer
um cruzamento de dados, e através deste cruzamento “eliminar” as partes incongruentes do objeto
estudado. Há os que questionam de onde viria a melhor compreensão do acontecimento: vem da
experiência (testemunha) ou do afastamento (historiador) dela? Compartilhamos da ideia que venha
dos dois.
A sacralização da memória4 é outro desafio enfrentado pela história do tempo
presente. Isso decorre, em muitos casos, da seleção, eleição e criação de uma memória
coletiva no intuito de atender a demandas sociopolíticas, mesmo que este processo, muitas
vezes, aconteça de forma inconsciente. Cria-se, assim, uma tradição, um passado mítico
ao redor do qual se constroem práticas ritualizadas dirigidas a reforçar estereótipos e
coesão social de uma comunidade, dando legitimidade a certas instituições através do
alvitramento de determinados valores nesta sociedade ou grupo. Some-se, ainda, o fato do
historiador estar vivendo neste mesmo tempo e sofrer em si as pressões e demandas
sociais, partilhar de ideias e suposições do seu tempo. Mas, não
4 François Hartog faz uma análise mais ampla e detalhada deste tema em “Regimes de historicidade:
presentismo e experiências do tempo” (capítulo IV).
necessariamente impede o historiador de realizar um estudo profícuo das questões do presente.
Segundo Henry Rousso,
Fazer a história do tempo presente é, ao contrário, postular que o presente possui espessura,
uma profundidade, que ele não se reduz a uma soma de instantaneidades que
compreenderá repentinamente. Como toda boa história, trata-se de restituir uma
genealogia, de inserir o acontecimento em uma duração, de propor uma ordem de
inteligibilidade que tenta escapar à emoção do instante, ou, para usar um vocábulo
lacaniano, que tenta instituir um pouco de símbolo onde o imaginário invadiu tudo: é uma
das tarefas essenciais da história, e uma das missões mais importantes da história do tempo
presente. [...]. A Contemporaneidade deve ser pensada como a relação com o tempo
quanto com o espaço, com a questão crucial para o historiador de situar o lugar dos mortos,
nesse conjunto, ou ainda o lugar encerrado. Trabalhar com história próxima é tomar
permanentemente a medida da distância, constantemente variável em relação ao objeto
estudado, [...]. O historiador do tempo presente não é um historiador do instante e não tem
a vocação de correr atrás da atualidade. [...]. A História do Tempo Presente, a história de
um passado não encerrado, a história, portanto, contemporânea no sentido mais exato do
adjetivo, não deve ter senão obrigações de calendário e rememorações artificiais, uma vez
que recusa por definição as fronteiras e os fechamentos, [...]. No argumento é a constatação
de que os historiadores de tempo presente são primeiramente historiadores, trabalhando,
portanto, com durações significativas e não querendo estar sujeitos à tirania ou às modas
do imediato e da atualidade. O desafio do historiador do tempo presente consiste em criar
distancia com a proximidade. (ROUSSO, 2016).
Parafraseando Réne Rémond, a História do Tempo Presente exige rigor igual ou maior que
o do estudo de outros períodos. Neste campo, devemos enfatizar a disciplina, a higiene intelectual
e as exigências de probidade, uma vez que o historiador é agente participante do período que está
estudando, e isso, evidentemente, se aplica à utilização de fontes orais. Ou, como nos coloca
François Hartog, “o importante é, inicialmente, – o entre posicionar-se entre história e memória,
não opô-las, nem confundi-las, mas servir-se de uma e de outra –, apelar à memória para renovar e
ampliar o campo da história contemporânea.” (HARTOG, p. 161).
FARGE, Arlette. Do sofrimento. In: _____. Lugares para a história. Belo Horizonte:
Autêntica, 2011.
FÁVERI, Marlene de. Memórias de uma (outra) guerra: cotidiano e medo durante a Segunda
Guerra em Santa Catarina. 2.ed. Florianópolis: Ed. da UFSC; Itajaí: Ed. da Univali, 2005.
FERREIRA, Marieta de Moraes; AMADO, Janaína. Usos & abusos da historia oral. 8. ed. Rio
de Janeiro: Ed. da FGV, 2006.
LINHARES, Maria Yedda Leite; CARDOSO, Ciro Flamarion S. (Org.). História Geral do
Brasil. 9. ed. Rio de Janeiro: Campus, 2000.
[...] a categoria ‘saber docente’ é utilizada por pesquisadores que buscam investigar e
compreender a ação docente, tendo por foco as suas relações com os saberes que dominam
para poder ensinar e aqueles que ensinam, expressos muitas vezes como saberes práticos
e que são considerados fundamentais para a configuração de uma identidade e de
competências profissionais, implicando reconhecimento de subjetividades e apropriações.
Toda ciência, todo o pensamento filosófico, todo o pensamento construtivo do ser eu vou
encontrar no meu caminho pelo mundo. [...] Esse ser professor que está ali diante desses
alunos com essa qualidade de mestre, não tanto de professor, ele vai mostrar para os alunos
aquilo que ele concebeu ou aquilo que ele conseguiu construir no seu processo de vida.
Então, esse professor que vai acompanhar os alunos do 1º até o 8º ano do Ensino
1Para aprofundar o estudo do conceito de saberes docentes, indicamos a leitura de Tardif (2001); Tardif; Gauthier
(1996) e Monteiro (2007).
Fundamental, ele não precisa ser um especialista em nada, a princípio. O que ele precisa?
Ele precisa ser um ser humano que se interessa por todas as áreas do conhecimento, que
tem um grande interesse pelo mundo e que vai em busca de todo esse conhecimento para
transmitir para os seus alunos. Todo ser humano que chegou a uma universidade, ele
passou por um ensino fundamental e um ensino médio e nesse caminho ele aprendeu tudo
o que ele precisava para chegar lá. Então, é esse ‘tudo que eu aprendi’ que eu tenho que
transmitir. [...] É esse interesse por esse ser que está em formação, que cria um professor
de classe, não é a formação.
De acordo com essa profissional Waldorf, parece mais importante o caminho que o ser
humano percorre ao longo da sua vida, as experiências que agrega no seu processo individual, a sua
curiosidade por todas as áreas do conhecimento, do que a formação profissional e institucional.
Embora reconheça que ambas sejam benéficas e válidas para a construção do ser humano, afirma
que para tornar-se um “mestre” e para “transmitir” conhecimento, não é preciso ser um
especialista, mas é preciso viver experiências.2 Segundo essa entrevistada, o professor na
escola Waldorf é muito prestigiado e homenageado, pela relação afetiva que constrói com a
sua turma ao longo de oito anos e pela curiosidade pelo mundo que inspira nos alunos.
Pela memória, o professor recorda o seu passado, reconstrói sua identidade docente e se
constitui diariamente como professor. Cada ser humano é único e percorre um caminho que legitima
a sua trajetória pessoal e profissional. Por esse motivo, consideramos relevante a análise do
envolvimento desses professores com a Pedagogia Waldorf.
Eu quis ser professora depois que eu entendi esse caminho do ser humano. [...] Na verdade,
eu tinha feito o magistério no meu Ensino Fundamental, na minha época, e me decepcionei
com a educação, porque era uma coisa muito chata e não queria. Fiz jornalismo como
profissão, trabalhei nessa área, tive meus filhos e vim para a escola Waldorf, e quando eu
cheguei aqui é que entendi a educação de outra forma. Eu voltei, fui fazer Pedagogia e fui
me preparar para ser professora Waldorf, porque isso respondeu à necessidade do que é
educação de verdade, não aquilo que eu tinha. Então, a escolha foi bem pela pedagogia
Waldorf, mesmo, não pela educação em geral. Eu tenho dois filhos hoje professores
Waldorf, também aqui na escola, trabalhando aqui conosco e percebo que também nos
ajudam. Então, é assim, a família veio junto, eles estudaram aqui, se formaram na escola
e hoje estão dando aula. (Professora do 6º ano. Entrevista, 2015, p. 5).
2 Atualmente, não cabe mais o uso do termo “transmitir conhecimento”, visto que o professor não é o único
detentor de saberes a serem ensinados. Levando em consideração o aluno como sujeito atuante nesse processo de
ensino e aprendizagem, torna-se mais adequado o uso da expressão “construir conhecimento”. Segundo Freire
(2002, p. 12), “Ensinar não é transferir conhecimento, mas criar as possibilidades para a sua própria produção ou
a sua construção”.
encontram a base do trabalho antroposófico: a constituição humana, como o ser humano é formado,
os corpos que constituem o ser e também o ambiente anímico em que vive. Do seu ponto de vista,
uma abordagem mais completa e significativa.
O professor de História do 9º ano relata que não escolheu a profissão docente, mas foi a
docência que o escolheu. Relata que o curso de fundamentação Waldorf foi muito especial e
surpreendente para entender melhor a Antroposofia e o envolvimento dos professores, pois, como
aluno não tinha essa noção. Para ele, a pedagogia Waldorf é muito completa, embora haja outros
modelos pedagógicos que admira. Afirma que se tivesse um filho, ele estudaria em uma escola
Waldorf:
Eu entrei em 2010 e daí me sugeriram [fazer o curso de formação de professor Waldorf],
mas não falaram que era obrigatório. [...] Na época, isso veio mais como um peso para
mim, porque ia ter que pagar, porque eu dava pouca aula aqui. Então, se fosse ver assim,
economicamente falando, nem valia a pena [...]. Só que me falaram bem e eu resolvi tentar.
Na época foi a melhor coisa que eu fiz, porque justamente eu estava em crise com o mundo
acadêmico e eu estava buscando outras coisas e foi muito bom eu ter feito. Apesar de eu
ter estudado em escola Waldorf e achar que eu já sabia muita coisa, foi bem diferente,
porque daí com leitura, [adquiri] outra consciência do que eu já tive quando pequeno.
(Professor do 9º ano. Entrevista, 2015, p. 3).
Eu apareci num momento em que eles estavam precisando de alguém para dar aula de
História. E a professora que estava lecionando também era formada em Ciências Sociais.
E quando eu fiz o curso em 2003, tinha na ementa que quem era formado em Ciências
Sociais poderia dar aula de História, de Geografia, de Sociologia, até de Filosofia. Então,
veio essa herança de que eu poderia dar aula de História. Só que depois eu fui à secretaria
e me informaram diferente, que não podia mais. Se eu fosse continuar como professor de
História do Ensino Médio aqui, em algum momento eu ia precisar fazer uma licenciatura
em História e eu estava até me programando para isso. (Professor do 9º ano. Entrevista,
2015, p. 6).
Essa fala demonstra que a contratação do professor pela Escola Waldorf Anabá tem pré-
requisitos que estão de acordo com as exigências legais. No entanto, são maleáveis, haja vista que
os professores buscam atender essas determinações de acordo com a disponibilidade de horário e
tempo.
Nenhum dos profissionais participantes desta pesquisa é especialista na área de História,
mas todos mobilizam saberes para lecionar essa disciplina. A visão da professora do 6º ano sobre a
disciplina de História para o Ensino Fundamental é a seguinte:
Não somente nas aulas de História, mas também nas entrevistas estão presentes as
concepções de “evolução”, “progresso” e “verdade”. No trecho anterior é possível identificar a
reafirmação da concepção de História proposta por Lanz (2005), de que há uma meta-história
marcada pela noção de evolução, quando coloca que “é preciso caracterizar o que a humanidade
trouxe para o homem hoje” como se o “progresso da humanidade” estivesse legitimado pela
História. Além disso, é possível identificar a referência ao currículo escrito por Richter (2002),
quando a professora reafirma a separação entre mitologia e História, como se à História coubesse a
ideia de “verdade”. Quando aponta que existem os “verdadeiros conceitos históricos”, denota que
existem os não verdadeiros, que no caso seriam as mitologias. A função das mitologias, para a
professora entrevistada, consiste num alimento para a alma da criança:
Como o ser humano chegou à terra? Como estamos vivendo aqui? De que jeito? Aí nós
podemos pegar só o viés científico e falar da evolução; a ciência está trazendo,
bombardeando isso. Mas esse alimento da alma, de preencher ou perceber que o ser
humano sempre teve essa busca, sempre quis saber e ele encontrou histórias ou criou
histórias ou sonhou histórias ou vivenciou histórias para explicar tudo isso, isso é um
alimento fantástico para a criança dessa idade. Então a gente tem essa possibilidade de dar
esse alimento para eles. E a gente trabalha na forma de mitologias; são mitos. E assim
todos os mitos, inclusive o mito judaico-cristão que também é um mito criacionista.
(Professora do 6º ano. Entrevista, 2015, p. 11).
Na época em que eu fiz a minha formação, eu trabalhei a questão das mitologias indígenas
porque isso é uma coisa que eu sempre trago, pois a escola Waldorf dava ênfase às
mitologias europeias e a meu ver faltava um pouco do nosso entorno aqui. Então, eu trouxe
alguma coisa para incluir as mitologias indígenas da América dentro do currículo; foi esse
o meu trabalho... Eu gosto muito de História. Na verdade, não é à toa, que História é a
disciplina que eu tenho uma paixão, apesar de eu também amar a Física, eu amo a
Química... Professor de classe é assim. (Professora do 6º ano. Entrevista, 2015, p. 10).
Portanto, essa é uma iniciativa pessoal, resultante da sua formação e atuação no curso
de formação de professores Waldorf, no qual ministra o curso específico da disciplina de
História sob a perspectiva da Antroposofia. Suas propostas de inclusão dessa temática no
currículo ainda não são formalizadas, mas pudemos constatar na entrevista que não tem
correlação com a Lei 11.645/08 que institui a obrigatoriedade do ensino de História Indígena
nas escolas do Brasil. Ao questioná-la sobre os outros professores, ela afirmou que vai de cada
um incluir, ou não, esse conteúdo que a escola não exige a temática como cumprimento da
Lei. É possível afirmar que cada professor administra os saberes docentes de forma única e
singular.
Caracterizamos a professora do 6º ano como uma professora reflexiva, porque em
diferentes momentos refletiu acerca de seu papel na escola e na sala de aula e, também, sobre si
mesma, dentro do seu processo de constituição como professora de História na Escola
Waldorf Anabá, propondo e praticando novas abordagens. 4
Para ser um professor reflexivo é preciso compreender e contextualizar sua
realidade, dialogar com outras perspectivas e analisar sua prática docente, colocando para
si mesmo as questões do cotidiano como situações novas, ao mesmo tempo em que as
vivencia. Consideramos que as experiências docentes não são homogêneas; cada professor e
cada contexto permite que do 6º ano teceu uma crítica à obra espontaneamente, apontando os
bbbbbb
4 Desde 1990, a expressão “professor reflexivo” tomou conta do cenário educacional, confundindo a
reflexão enquanto adjetivo, como atributo próprio do ser humano, com um movimento teórico de compreensão
do trabalho docente. (PIMENTA, 2012, p. 22).
aspectos marcadamente europeus nuna abordagem da História, presentes nas publicações
sobre a pedagogia Waldorf:
Tem um livro não sei se você conhece, é “Passeios através da História”. Já viu? Esse é
bem legal, bem interessante. Apesar de ter algumas coisas naquele livro que eu não gosto. O
geral, a ideia da História na Pedagogia, eu acho ainda muito focado na Europa. E eu sinto
falta desse olhar, inclusive, alguma crítica, nesse sentido, e eu não acho saudável isso naquele
livro. É europeu. Teria que alguém do Brasil escrever um livro mais ou menos nesse sentido.
Ele é interessante, mas precisa incluir mais História das Américas, Ásia, inclusive. Ele está
focado demais na Europa. Claro, “Passeios através da história Europeia” tudo bem, tem
navegações, essas coisas, mas eu sinto falta de um olhar para o resto do mundo; ficou um
pouco no umbigo. Eu sou crítica a tudo que esquece que a gente faz parte da história do
mundo. E isso não é privilégio da pedagogia Waldorf. Em todos os livros de História que eu
pesquiso no Brasil, falta. (Professora do 6º ano. Entrevista, 2015, p. 16).
Em diferentes momentos, os dois entrevistados indicaram o livro de Rudolf Lanz
(1995), intitulado “Passeios Através da História”, por considerarem-no uma referência para
pesquisadores e estudiosos da pedagogia Waldorf, principalmente no que concerne ao ensino
de História sob o viés antroposófico. Na fala dessa professora é possível identificar o
descontentamento com as obras que permanecem embevecidas pelos pressupostos
eurocêntricos das publicações de Steiner. Além de se dar conta de que isso não acontece
apenas em escolas Waldorf, ainda sugere que se ampliem as publicações brasileiras sobre a
temática, a fim de incluir a História do continente americano e asiático. Embora essa
professora esteja comprometida com a orientação curricular Waldorf, é a sua formação e os
seus saberes docentes que possibilitam um diálogo tangencial entre o discurso
antroposófico e o discurso acadêmico contemporâneo, que critica a abordagem eurocêntrica,
tanto na literatura, quanto em livros didáticos. Para finalizar, a professora entrevistada afirma:
Esse caminho que a pedagogia nos oferece de fazer História dessa forma e que está em
todas as pedagogias, o que acontece é que, às vezes, as pessoas se fixam tanto no ‘tem que
ser essa data, esse nome, essa hora, essa coisa’ e esquecem que a criança nem precisa nada
disso, porque ela não tem que saber nenhuma data decorada, nem nada. Isso ela vai poder
decorar mais tarde, se ela quiser, se ela precisar. (Professora do 6º ano. Entrevista, 2015,
p. 13).
Cientes de que a História não está mais presa a fatos e datas, concepção proveniente do atual
debate teórico-historiográfico acadêmico da Nova História, há momentos em que os professores se
contradizem em relação à teoria e à prática em sala de aula.
A primeira vez eu fiquei meio assustado, porque o currículo de História do 9º ano em uma
época só é pouco para dar aula de atualidades, dos séculos XIX e XX, na verdade,
principalmente, o século XX, História Mundial e História do Brasil. Mas na minha
concepção de História, não dá para eu começar o século XX falando de 1901. Eu preciso
fazer um apanhado do que estava acontecendo antes. E, a minha tendência é sempre dar
um passinho atrás para poder falar: “isso é consequência disso, isso é consequência
daquilo”. Nas minhas aulas, isso fica bem claro porque eu tento traçar sempre essa
continuidade da História. Que História não é só uma data, não são várias datas e nomes. É
lamentável encarar História dessa forma. Então, eu sempre tento mostrar para os alunos
como uma coisa vai influenciando a outra. (Professor do 9º ano. Entrevista, 2015, p. 10).
O professor do 9º ano demonstra estar ciente que já caiu em desuso a concepção da História
como um “relato fiel de fatos verídicos vivenciados pelos grandes heróis” e que hoje o conteúdo
histórico é abordado por meio do estabelecimento de relações entre as rupturas e continuidades.
Identifico em seu discurso o contraponto entre o método positivista e os métodos da História Nova.
Então, eu conto a História de como estourou uma guerra, ou quem foi Luiz Carlos Prestes
ou Olga Benário Prestes ou Getúlio Vargas. E a biografia é muito importante no 9º ano
para que eles se vejam mais uma vez dentro da História e saibam que quem faz a História
são pessoas; isso é importante que eles percebam. Então, Getúlio Vargas que ficou tantos
anos no poder, a vida pessoal dele tinha tudo a ver com a vida política. Ainda mais ele que
no final saiu da vida para entrar na História. Uma biografia mostra como é a vida pessoal
deles, e que a História é feita por seres humanos. (Professor do 9º ano. Entrevista, 2015,
p. 14).
Um professor muito experiente de Botucatú me disse algumas coisas; uma delas, é como
uma coisa vai influenciando a outra. [...] Ele me falou que é bem importante para a História
dentro da Pedagogia Waldorf, especialmente, no Ensino Médio, mostrar essas influências,
essa continuidade, essa relação e que a História é complexa, e também fazer com que eles
percebam que eles fazem parte da História. [...] Uma coisa que eu adoro pedir para eles,
na verdade como tarefa, é fazer um relato da família. Então, hoje mesmo no final da aula
eu li um relato, e solicitei que eles pesquisassem alguém da família deles ou um amigo do
avô. Enfim, alguém distante da família, ou alguém bem próximo que viveu lá no nazismo
ou que viveu num campo de concentração, ou que teve o primo do tio, que foi preso na
ditadura no Brasil e eles se dão conta que a História não é uma coisa lá do museu, morto,
mas a escola, a História tem que estar viva. Então, é isso, o ensino na Pedagogia Waldorf
é o ensino vivo. Isso é até um conceito que se utiliza bastante, assim, ensino vivo. Que não
é aquele ensino só intelectual do livro didático, mas sim que o aluno se perceba no
conhecimento. (Professor do 9º ano. Entrevista, 2015, p. 11).
Eu pesquiso todo o dia, muitas vezes, a partir de perguntas deles. Eu preparei a minha
época, eu sei o que tenho que dar. Mas, quando surgiu uma questão, por exemplo, das
mulheres: ‘ah, professora, e as mulheres?’. Quando eu fui dar os nomes para eles fazerem
uma pesquisa, eu fui atrás, pesquisei todas as mulheres que tiveram alguma relevância
para a época estudada. (Professora do 6º ano. Entrevista, 2015, p. 14).
A temática de gênero é uma conquista legítima e legal e deve ser incorporada nos bancos
escolares. No entanto, percebi que a professora só incorporou o debate em suas aulas, mediante a
proposição das estudantes. Poderia ser uma temática recomendada por ela mesma, em virtude dos
debates da mídia e a necessidade de trabalhar não apenas o papel das mulheres nas escolas, mas
também a temática de gênero e diversidade. No entanto, sabemos que são mudanças a serem
materializadas com o tempo. Os professores ainda estão em processo de aprimorar novos debates e
perspectivas de História para suas aulas.
Para finalizar, o docente responsável pelas aulas de História do 9º ano coloca o seu ponto
de vista sobre seu esforço de ter se tornado um professor-pesquisador:
Os alunos não têm ideia o quanto a gente se prepara, o quanto a gente se dedica; em cursos,
em palestras e durante a aula. Você viu minha época? Então dá para ver como é suado,
como é o esforço de estar aqui tão cedo. Enquanto aluno eu não tinha ideia. Para minha
vida foi muito bom ter sido professor, assim, porque eu sei que qualquer professor de
qualquer escola tem que se dedicar muito e aqui a gente se auto-cobra muito. Não é que o
professor Waldorf é melhor, não é isso. Todos os professores de várias escolas são muito
dedicados, exigem muito. Mas aqui eu vejo que os próprios alunos têm uma expectativa
da aula. (Professor do 9º ano. Entrevista, 2015, p. 7).
Aqui cabe a reflexão de que na Academia os futuros professores não lidam com os saberes
da prática, como a preparação da aula, a preocupação com o horário, o planejamento do plano de
ensino, a avaliação da turma, a formação continuada em palestras e cursos, seja em escolas públicas
ou privadas, com ou sem método específico. Não se trata de reduzir tudo à prática, nem tampouco
desvalorizar a teoria, “Trata-se de um espaço e um tempo que devem assegurar e possibilitar as
condições necessárias para o exercício da relação entre os aspectos teóricos e práticos da formação.”
(FONSECA, 2003, p. 247).
Pela experiência e narrativas dos dois professores entrevistados, podemos concluir que a
academia não é o único polo do saber. Existem outros espaços de conhecimento tão legítimos
quanto o saber acadêmico, como o saber da experiência, o saber da prática, o contato com o campo
profissional e as diferentes vertentes de ensino provenientes de outras tendências, como o próprio
campo da Pedagogia Waldorf. Nessa, é possível identificar aspectos científicos e espirituais que
englobam saberes considerados legítimos por seus seguidores e praticantes. Há aspectos que
contribuem no processo de ensino e aprendizagem, como o vínculo e a afetividade entre professor
e aluno e, para que esse processo se materialize, a cultura escolar específica da Escola Waldorf
Anabá é um dos elementos-chave.
Nem todo conhecimento para tornar-se professor é adquirido no ambiente acadêmico ou em
cursos de formação oferecidos por outras instituições de ensino. É a soma dos saberes da formação,
dos saberes curriculares, dos saberes disciplinares e dos saberes da experiência que compõem a
identidade desse profissional docente, somado ao contexto social em que esse sujeito histórico
vivenciou suas experiências, suas crenças, valores, comportamentos, entre outros aspectos
subjetivos. Suas estratégias didáticas, seu discurso e suas escolhas em sala de aula são resultados
das experiências pessoais e não tão somente das prescrições curriculares.
Concluímos que, muito embora os dois professores estejam comprometidos com a
orientação curricular Waldorf, é a formação acadêmica e os saberes docentes que possibilitam um
diálogo tangencial entre o discurso antroposófico e o discurso acadêmico contemporâneo. Este
critica a abordagem eurocêntrica, tanto na literatura quanto em livros didáticos, bem como a
necessidade de atualização do currículo Waldorf e a inserção, no material pedagógico, de temáticas
e perspectivas que correspondam ao debate atual do campo do ensino de História. A título de
exemplo, podemos indicar a obrigatoriedade do Ensino de História da África, da História Indígena
e da temática de gênero.
FREIRE, Paulo. Pedagogia da autonomia: saberes necessários à prática educativa. 25. ed., São
Paulo: Paz e Terra, 2002.
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_____. Passeios através da História: à luz da Antroposofia. 2. ed. São Paulo: Antroposófica,
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TARDIF. Maurice. Saberes docentes e formação profissional. Rio de Janeiro: Vozes, 2001.
Certo. Olha, como eu te falei, eu comecei a trabalhar mais, dar uma importância maior –
não sei a palavra é essa, “né”, “dar uma importância maior” – mas comecei a trazer história
local com mais ênfase para as minhas aulas bem recentemente. Isso data, aí, do período de
2012 para 2013 com o projeto PIBID. [...]. Então, ficou muito restrito ao bairro. Eu fiz,
nesse período, uma saída com eles aqui para o centro, para o centro da cidade. Foi um
roteiro do Santo Afro, “Viver de quitandas”. A gente fez esse roteiro com duas turmas do
oitavo ano. Então, o trabalho com história da cidade, basicamente, foi esse aí; e, fora isso,
assim, em alguns momentos nós fizemos… olha, foi… isso aconteceu em 2013, o assunto
era a participação dos africanos e descendentes de africanos na sociedade florianopolitana
no período imperial. Então, aí, primeiro, de novo, a contextualização, com uma leitura de
textos; geralmente a minha prática é assim, ás vezes, varia, mas a prática em geral é assim.
É um texto que seja mais geral, tentando contextualizar, fazendo uma espécie de…
delineando o tempo histórico em que a gente está. Depois, uma variedade de textos que eu
gosto de trabalhar bastante em grupos – às vezes, em duplas, às vezes, em grupos maiores,
2Walter Benjamin defende que “A ideia de mônada, isto significa, em suma, que cada ideia contém a imagem
do mundo. A representação da ideia impõe como tarefa, portanto, nada menos que a descrição abreviada do
mundo”. (2007, p. 69). O conceito poderá ser ampliado a partir de Galzerani (2013) e França (2015).
isso vai depender sempre da turma – em que cada dupla ou cada turma (não
necessariamente um para cada dupla, “né”); mas, assim: escolho, sei lá, cinco ou seis
textos, às vezes um pouco mais, às vezes, menos. E distribuo entre os grupos; que eles
façam leituras diferentes, “e tal”. A gente faz algumas atividades, de apropriação, de
interpretação. Quando é possível passar algumas imagens, coloco algumas imagens. [...].
Então, após esse período, a gente vai fazer uma visita ao centro, em alguns locais
históricos. E aí tinha no projeto Santo Afro, tinha um monitor, dois monitores – uma
monitora e um monitor – que levava a turma em diferentes pontos da cidade e conversava
com eles. Levava imagens, também; mostrava o que era no passado e como está no
presente, o que mudou. E aí eu pedia para eles fazerem, quem pudesse fazer foto. Hoje,
quase todo mundo tem, todos eles têm um celular com câmera. Então, eles fazem as fotos.
E a gente chega em sala de aula, a gente conversa a respeito, e elabora, pensa uma forma
de apresentação em que eles possam comparar o passado com o presente. E aí essa
atividade, geralmente… é sempre feita em grupo. (Prof. 1).
Assim… Curricularmente, se olhar, por exemplo, no plano de ensino, não terá. Mas a
gente toca quando a gente discute, por exemplo… está falando sobre, por exemplo,
ditadura, protestos, manifestações, mobilizações, a gente começa a falar sobre questões de
mobilizações contemporâneas. Invariavelmente, surgem… [...] Como eu te falei: às vezes,
eu estou lá, trabalhando com… a questão de fonte histórica, eu trago fotos da cidade para
pensar a cidade. A cidade em si eu vou trabalhar lá no final do ano, quando eu penso
quando surgiram e se organizaram os primeiros povos em torno de alguma coisa. E aí é
um... eu trago para eles como é a nossa cidade, como ela se constituiu, como uma cidade
marítima. E aí a gente vai, a gente desenha o centro, né? Ali, o Mercado, a relação entre
igreja e o mar, o mar que não está mais, ali hoje, mas que já esteve presente. Por que a
igreja fica mais no altinho; que relação que se estabelecia com o mar, que precisava que a
igreja fosse mais alta; que prédios que surgiram, prédios públicos que foram construídos
junto da igreja; por que a relação entre igreja, prédio público – que é a questão das trocas,
né? A gente acaba falando muito dessas trocas. Mas, acho que mais dessa maneira, assim.
(Prof. 2).
Agora eu me lembrei de uma experiência, que, assim, foi bem legal [...] para mim isso
ainda passa muito batido, sabe? Em termos de, como conteúdo, mesmo, nunca… não tive
essa oportunidade de fabricar um material específico para isso, embora tenha participado
de uma saída de campo… saída de estudo, visita, experiência, com a EJA do Anísio
Teixeira em projeto, [...] organizado pelo IFSC, ou, por egressos do IFSC, não sei agora o
nome… está fugindo aqui a memória… exatamente! Ah! Acho que era um curso de
formação de guias de turismo do IFSC! Alguma coisa assim. Nossa, isso foi muito legal!
Foi fantástico ter passeado pela... feito um circuito ali, muito bacana, as pessoas…
Realmente, as pessoas descem no terminal, vão em uma loja, compram um treco e vão
embora, e a cidade, é isso, né? Tu parar, é difícil, mas nenhum… [ninguém] fica andando
filosofando e pensando a toda hora, né? [...]. E daí, teve o circuito. Ele passou… daí eles
relembraram, o antigo nome do rio, como é que ele era, parar embaixo de uma placa para
dizer que antes da República aquela rua tinha outro nome. [...] então, teve essa relação com
as toponímias, com as mudanças dos nomes dos locais, de rio, de rua, ou de função de
nome, em função de uma… uma casa; tipo, acho que a gente parou ali na antiga FAED
[...] paramos na praça, também. Tem a historinha que a praça era cercada; então, por que
Praça XV, a mudança de nome; tem essas ressignificações… Eles eram muito… gostei
muito deles! Eles eram muito … não sei se é a palavra: didáticos? [...] a gente parou na
escadaria da igreja. Daí tem a lembrança que faz da escravidão, uma série de coisas. (Prof.
4)
É, por exemplo: a gente teve uma parceria, durante um tempo (porque o projeto deles
acabou, como extensão) com o Santa Afro Catarina. Acabou, enquanto extensão; mas nós
estivemos com eles uns dois, três anos; e eu fiz muita questão que fosse no 1º Ano,
justamente para a gente pensar essa questão dos africanos, dos libertos aqui em Desterro,
porque eu queria trazer um pouco para a questão da cidade – é óbvio que a gente trabalha,
pode trabalhar as questões com vários tipos de documento, [...] Mas, eu tinha um pouco a
necessidade de tentar fazê-los olhar um pouco para esse entorno, para que eles
percebessem que as simbologias estão por aí né? [...] E aí a gente tentava fazer um trabalho,
mudando… os três anos foi diferente. Cada ano a gente fez diferente. Vocês sabem como
é que funcionava: a gente ia para o centro [de Florianópolis] com eles, e lá eles passavam
por lugares de africanos, africanos libertos, enfim, na cidade de Desterro. Então a gente
fazia, às vezes, um preparo antes; e a gente pediu uma coisa diferente. Teve um ano que a
gente pediu narrativas históricas com personagens. Teve um ano que a gente fez uma
exposição com as imagens; então eles tinham que tirar imagens, bater foto, e escolher duas
imagens, justificando aquelas duas imagens, pensando no passado e no presente. Então,
como é que as duas imagens podiam pensar, um pouco, na história, a partir do presente
daquele lugar. Com tudo o que eles ouviram, mas, aquele lugar na cidade, hoje. Então,
atualizar, um pouco, essa memória do passado; e ver como é que ela está constituída, ali,
em cima de uma materialidade, em cima desses indícios. As narrativas foram um processo
de invenção, em cima das narrativas que eles faziam com a gente no Santa Afro, de alguns
documentos, mas eram narrativas ditas fictícias, mas com esse suporte histórico – tinha
que ter essas questões históricas balizando, ali, nesse personagem do século XIX. Então,
ele tinha um contexto. É mais ou menos isso. A cidade acaba sempre estando presente, um
pouco, na questão dos conteúdos, quando a gente puxa as questões do próprio conteúdo
do século XIX, eu gosto de trabalhar várias outras questões, de literatura, e tal. Mas,
enfim… a cidade enquanto espaço físico. (Prof. 5).
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ZANOTTO, André. Entrevista concedida a Elison Antonio Paim. Florianópolis: Sala 621 do
PPGE da Universidade Federal de Santa Catarina, 15 de março de 2017.
Janete Leiko Tanno
Silva Junior, ao comentar sobre uma carta pastoral do Bispo direcionada à comunidade
religiosa, indica a posição deste frente à diocese: “[...] seu texto procurará ‘defender’ os princípios
da neocristandade e da romanização, mostra ainda uma visão de mundo tomista e medieval
condenando veementemente o comunismo entendido como um reflexo dos males da modernidade.”
(SILVA JUNIOR, 2006, p. 43).
Como parte desta empreitada extremamente conservadora e elitista, foi fundada a primeira
faculdade para receber os filhos da elite local e da região, a Faculdade de Filosofia e Letras,
em 1960,2 para fazer frente ao avanço das ideias e comportamentos liberais promovidos pelos
Estados Unidos da América e ainda contra as ideologias comunistas e de esquerda em voga no
Brasil (SILVA JUNIOR, 2006).
1 Dom Geraldo de Proença Sigaud era representante da ala conservadora do clero, anticomunista e cofundador,
com Plínio Correa da TFP (Tradição, Família e Propriedade). .
2 Em 2008, a faculdade seria encampada pelo governo do estado do Paraná e faria parte da Universidade Estadual
do Norte do Paraná - UENP/Campus Jacarezinho.
A partir desses apontamentos, verifica-se que a cidade esteve sob a égide do
catolicismo desde o início de sua formação,3 configurando-a como uma sociedade
conservadora, elitista e excludente.
Uma sociedade assim formada, ainda revela, nas relações pessoais cotidianas, o poder de
certos grupos e famílias, que apesar de não possuírem mais riquezas materiais, preservam os
símbolos e representações do poder e lutam para manter a hierarquia entre os diversos setores
sociais e a submissão que advém disso. Nesse tipo de sociedade, além das exclusões sociais,
econômicas, culturais e étnicas, a que certos grupos são submetidos, há ainda as exclusões e
apagamentos de suas memórias, de suas histórias, de suas experiências de vida e trabalho, como se
não fizessem parte da construção da história da cidade.
Esse fato é muito comum e fácil de ser percebido nas memórias escritas sobre inúmeras
cidades do país, nas quais sobressaem os “pioneiros”, os “desbravadores”, os “bandeirantes”, enfim,
os “heróis”, vistos como responsáveis pela fundação e desenvolvimento dos municípios. E não é
por acaso que somente as pessoas participantes das elites e setores médios são lembrados, em
detrimento dos pobres, dos trabalhadores, das mulheres, dos índios, dos negros. Este últimos são,
geralmente, apagados da história da construção das cidades. Com relação à cidade de Jacarezinho,
não foi diferente. Ao longo das décadas, por meio dos relatos jornalísticos, memorialísticos e
históricos, corroborou-se a mesma ideia, isto é, de um grupo – os pioneiros – que fundaram e foram
os responsáveis pelo crescimento da cidade.
Diante da tal realidade, as instituições responsáveis por coletar, guardar, preservar e dar
acesso ao patrimônio documental da sociedade têm um papel fundamental e dentre eles, os centros
de documentação e pesquisa, que em geral, são ligados às universidades com a função primordial
de preservação dos documentos locais e regionais nos lugares onde estão instalados (CAMARGO,
2003).
Tal função, também, foi encampada pelo Centro de Documentação e Pesquisa da
Universidade Estadual Norte do Paraná, e em relação ao seu acervo de História Oral, já definiu
algumas diretrizes fundamentais que lhe trouxe um perfil adequado de acordo com a linha de acervo
adotada. É o que veremos a seguir:
O acervo será constituído de relatos orais a partir da seguinte temática estabelecida:
Experiências de vida, trabalho, cultura e religiosidade de populares na região nordeste do Paraná.
A abrangência do tema, justifica-se, segundo Alberti, “[...] porque marca a linha do acervo e
constitui a identidade institucional”. (ALBERTI,1999, p. 32). Assim, o intento é que o acervo enseje
a implantação, posterior, de um Programa de História Oral que seja permanente e reconhecido, entre
os pesquisadores, por sua temática envolvendo os relatos de populares na região privilegiada.
Como as entrevistas serão realizadas para uso de futuros pesquisadores, alguns cuidados
foram tomados, como inserir um cabeçalho antes de cada entrevista com dados gerais sobre o
3 Jacarezinho tornou-se município em 1900, porém os memorialistas da cidade localizam sua fundação em
1888, quando ali chegaram os primeiros mineiros que passaram a explorar as terras.
entrevistado. Este deve conter informações suficientes que possam dar ao pesquisador condições
de saber quem está falando e de que lugar social fala (ALBERTI, 1999).
A autorização de uso das entrevistas está sendo solicitada a todos os entrevistados, visto que
o acervo será aberto a todos os interessados. O pesquisador ao utilizar as entrevistas deverá também
assinar um termo de responsabilidade, como garantia de uso adequado e ético da mesma. A
princípio, as entrevistas não serão transcritas.
Diante da temática escolhida para o acervo de História Oral, convidamos colegas de outras
áreas afins para fazer parte do projeto. Assim, o grupo reúne pesquisadores e entrevistadores,
historiadores, sociólogos, jornalistas e literatos, além de alunos de graduação do curso de História.
Dessa maneira, buscamos refletir a partir de pontos de vista de diferentes áreas o tema privilegiado.
Outra questão fundamental que ainda necessita ser melhor definida, diz respeito ao acesso
à informação. Quais instrumentos de pesquisa são os mais adequados para esse tipo de fonte? Quais
informações devem conter os instrumentos de pesquisa que facilite o acesso do pesquisador ao tema
que lhe importa?
Os dois primeiros grupos escolhidos foram os herdeiros e frequentadores de terreiros de
umbanda e candomblé, e as trabalhadoras rurais, moradoras do Jardim Aeroporto, localizados na
cidade de Jacarezinho. Tais escolhas partiram das pesquisas que estão sendo realizadas por alunos
do curso de História que fazem parte do Grupo de Pesquisa: “Preservação dos Bens Culturais:
História, Memória, Identidade e Educação Patrimonial (PEBEC)”, coordenado por mim. A
iniciativa de constituição do acervo nasceu das discussões do grupo acerca da metodologia da
História Oral, das questões ligadas à memória e da necessidade de preservação do patrimônio
documental de Jacarezinho, visto que muito pouco da história da cidade foi registrado em
memórias, jornais, revistas e trabalhos acadêmicos e o que existe, diz respeito aos setores
economicamente mais privilegiados ou à história da religião católica e sua influência, assentada na
implantação da Diocese de Jacarezinho e, ainda, aos murais pintados por Eugênio de
Proença Sigaud na catedral diocesana.4
Além dessas constatações, por meios de alunos, moradores na cidade descobriram várias
histórias e figuras interessantes referentes aos setores populares, como os inúmeros terreiros de
umbanda e candomblé que já existiram e ainda persistem numa cidade com forte influência da
religião católica; a existência de um senhor chamado Pato que atraía centenas de pessoas,
diariamente, vindas de diversas cidades da região do Paraná e de outros estados, em carros e
caravanas de ônibus, em busca de cura para inúmeras doenças; contos populares, lendas sobre a
4 SILVA JUNIOR, Alfredo Moreira. Catolicismo, poder e tradição: um estudo sobre as ações
do conservadorismo brasileiro durante o bispado de Dom Geraldo Sigaud (1947-1961). Assis, 2006. Dissertação
(Mestrado em História). Faculdade de Ciências e Letras/UNESP; SANTOS, Elton Alves dos. Reorganização
eclesiástica e questões patrimoniais na ordem republicana: um estudo histórico da criação e do estabelecimento
da Diocese de Jacarezinho – Pr. (1926-1940). Rio de Janeiro: Multifoco, 2011; EVANGELISTA Luciana de
Fátima M. O artista e a cidade: Eugênio de Proença Sigaud em Jacarezinho (1954-1957). Londrina, 2012.
Dissertação (Mestrado em História) – Universidade Estadual de Londrina.
origem da cidade, artistas plásticos e poetas do povo. À exceção da história do Pato, nada disso foi
registrado e está passível de ser perdido.
Assim, dois objetivos principais estão presentes na criação do acervo de História Oral. O
primeiro, é o de coletar as histórias e experiências de vida, trabalho, cultura e religiosidade dos
populares e, consequentemente, uma história da cidade que vai além daquela contada por
memorialistas com ênfase nos “pioneiros”, no crescimento econômico, nas ações da Igreja católica
e buscar as histórias e as memórias dos moradores e da cidade nos relatos de pessoas ordinárias,
que podem ser reveladoras, em alguns casos, de personagens que fogem ao senso comum, surreais,
lendárias, presentes no imaginário popular, e colocar tudo à disposição da população e dos
pesquisadores. Outro objetivo, tem um caráter social e político, visto que as entrevistas podem
proporcionar, por meio do processo de rememoração, um repensar dos entrevistados enquanto
sujeitos, com direitos plenos de ter sua história e de seu grupo preservadas para que tanto eles quanto
as gerações futuras conheçam e tenham acesso.
Assim, mais do que apenas coletar, guardar e preservar as memórias e histórias de setores
populares da sociedade local, importa, restabelecer memórias e identidades desses grupos, a fim de
que se percebam também como construtores e agentes da história da cidade. É dar a todos o direito
ao passado, às memórias, ao patrimônio cultural, enfim, ao pleno exercício da cidadania.
Preservar o patrimônio documental dos setores populares da cidade, configura-se ainda, na
mesma perspectiva política, como uma forma, de minimamente, estes grupos terem condições de
disputas de memórias em suas lutas cotidianas e nos embates políticos e sociais, por espaços e
direitos na sociedade local, para que eles se recordem, por meio das memórias registradas, que
também são sujeitos construtores do lugar que habitam e trabalham e que têm direito a ele, e à
cultura, ao patrimônio da cidade e do seu grupo social, étnico, de gênero, e, é claro, de estar no
poder.
Com o processo de constituição do acervo de História Oral, por meio da produção das
entrevistas, documentos em outros suportes também serão requisitados aos entrevistados para que
façam parte do acervo, posteriormente, mas que sirvam também como meios de afloramento de
memórias durante as entrevistas. Assim, além das fontes orais produzidas, pretende-se a
constituição de um acervo mais amplo e diversificado que englobe documentos iconográficos, atas,
cadernos de anotações, cartas, etc., enfim, documentos que atestam a presença e a contribuição dos
negros e negras, dos pobres, dos trabalhadores e das trabalhadoras rurais, dos poetas populares na
formação da cidade de Jacarezinho, constituindo assim parte do patrimônio documental do
município e da sua população.
Ao tratarmos do patrimônio documental brasileiro, é explícito, os inúmeros instrumentos
que asseguram a sua preservação. Desde a Constituição de 1988 que no Artigo 23, inciso terceiro,
afirma: “É competência comum da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios:
proteger os documentos, as obras e outros bens de valor histórico, artístico e cultural, os
monumentos, as paisagens naturais notáveis e os sítios arqueológicos [...]” (grifos meus), passando
pelas ações do Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (IPHAN), que cumpre
suas funções de preservação do patrimônio documental, desde 1937 (FONSECA, 2005).
Em 2007, por meio do Comitê Nacional do Brasil do Programa Memória do
Mundo, o patrimônio documental ganhou mais um aliado, nomeando dezenas de arquivos
como referências da memória coletiva nacional (DUARTE, 2013). Completando essa
importante lista de instituições e leis que asseguram para as futuras gerações as memórias da
sociedade, em 1991, o governo federal por meio da lei n. 8.159, que criou o CONARQ
estabeleceu uma política nacional de arquivos públicos e privados, e a partir do instrumento
“declaração de interesse público e social”, foi possível a salvaguarda do patrimônio
documental público e privado no país (MOLINA, 2013).
Apesar das atuações desses órgãos, a destruição ou as perdas dos documentos públicos
em todas as esferas de atuação do governo federal, estadual e municipal, é uma realidade; em
especial, nos municípios onde, na maioria dos casos, não existe um arquivo municipal. E
em relação aos acervos particulares, as perdas são ainda maiores pois a manutenção adequada
de documentos em diversos suportes exigem investimentos de alto custo.
Diante desse quadro, dificilmente, os setores populares de qualquer lugar do Brasil,
teriam condições de constituírem instituições onde pudessem preservar seu patrimônio
cultural e, nesse sentido, os centros de documentação vinculados às universidades têm podido
contribuir ao realizar ações dessa natureza.
Entretanto, é necessário que os centros de documentação não se apresentem
como portadoras da salvação das histórias e memórias dos grupos sociais diversos, mas
busquem incentivar e oferecer meios para que as pessoas dos setores minoritários
reflitam sobre essa necessidade e sobre quais memórias gostariam de deixar para a
posteridade. Portanto, as memórias preservadas devem partir dos interesses e preocupações
dos seus protagonistas e não somente das expectativas e demandas dos pesquisadores.
Concluindo, diante do quadro apresentado de perdas de histórias e memórias dos
setores minoritários da sociedade brasileira e as consequências disso, consubstanciadas na
exclusão desses mesmos grupos de direitos ao seu passado, ao seu patrimônio cultural e às
disputas políticas e ideológicas com igualdade de forças, a História Oral é um grande aliado
como metodologia que possibilita coletar e preservar o patrimônio documental dos setores
populares como uma das garantias de pleno exercício da cidadania.
ALBERTI, Verena. História Oral e arquivos. IN: SILVA, Zélia. L. (Org.) Arquivos, patrimônio e
memória: trajetória e perspectivas. São Paulo: Ed. da UNESP; FAPESP,1999. p.31-39.
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CAMARGO, Célia. Centros de documentação e pesquisa histórica: uma trajetória de três décadas.
IN: CPDOC 30 anos. Rio de Janeiro: Ed. da FGV/CPDOC, 2003. p.21-44.
PAOLI, Maria Célia. Memória, história e cidadania: o direito ao passado. In: São Paulo (cidade).
Secretaria Municipal de Cultura. Departamento do Patrimônio Histórico. O direito à memória:
patrimônio histórico e cidadania. São Paulo: DPH, 1992.
SILVA JR. Alfredo Moreira. Catolicismo, poder e tradição: um estudo sobre as ações do
conservadorismo católico brasileiro durante o bispado de D. Geraldo Sigaud em Jacarezinho
(1947-1960). Assis, 2006. Dissertação (Mestrado em História) – Faculdade de Ciências e
Letras/UNESP.
Ricardo Figueiró Cruz
Ao analisar os inventários podemos perceber que existiu uma diversidade grande de blocos
e cordões carnavalescos, assim como Escolas de Samba; muitas tinham um curto período de
existência, outras tinham um tempo mais longo. As entidades em destaque são as que terão mais
destaque durante os anos 70, e consequentemente ganharem destaque no jornal.
Podemos pensar a formação do Império Serrano através do bairro, Ermo, onde está
localizado. Essa formação vai ver por uma população majoritariamente negra, e afastada do centro
da cidade, que se desloca para uma zona mais alta e periférica da região central, onde estava
centrada a parte comercial da cidade.
Sendo assim, para Selau (2004), a técnica de História Oral como metodologia, contribui
para o desenvolvimento de uma série de técnicas e procedimentos metodológicos que auxiliam a
produção do conhecimento em história.
Para François (2006), a História Oral poderia distinguir-se como um procedimento
destinado à constituição de novas fontes para a pesquisa histórica. Ainda segundo François (2006),
fazer História Oral significa, portanto, produzir conhecimentos históricos, científicos, e não
simplesmente fazer um relato ordenado da vida e da experiência dos “outros”.
Em depoimento,1 as senhoras Maria da Conceição e Marieta (2015) relatam que o
Império Serrano surgiu por volta do ano de 1969, na saída de três dos seus fundadores,
Liberato Garcia, Jairo dos Santos e Irajá Silvério, do clube Academia do Samba. Ao fundar
a Escola de Samba Império Serrano, na mesa de um bar, escolhem esse nome por gostarem
da agremiação de mesmo nome do Rio de Janeiro, mas o registro oficial da escola foi
realizado em 30 de novembro de 1971.
Como forma de investigar esse passado, devido à falta de documentação
recorremos à metodologia de História Oral, revisitando memórias para assim traçar sua história.
O preenchimento das lacunas criadas na história do objeto em análise é o que se busca
revisitar, onde partes desses “não-ditos” não caiam no esquecimento, como nos evidência
Pollak (1989): “as fronteiras desses silêncios e "não-ditos" com o esquecimento definitivo
e o reprimido inconsciente não são evidentemente estanques e estão em perpétuo
deslocamento”.
Embora na maioria das vezes esteja ligada a fenômenos de dominação, a clivagem entre
memória oficial e dominante e memórias subterrâneas, assim como a significação do
silêncio sobre o passado, não remete forçosamente à oposição entre Estado dominador e
sociedade civil. Encontramos com mais frequência esse problema nas relações entre
grupos minoritários e sociedade englobante. (POLLAK, 1989, p. 5).
Para Halbwachs (1990), o indivíduo que lembra é sempre um indivíduo inserido e habitado
por grupos de referência; a memória é sempre construída em grupos, mas é também, sempre, um
trabalho do sujeito. Pois o sujeito para Halbwachs (1990) é um sujeito atrelado ao coletivo, logo
não há memórias individuais, mas coletivas.
Com isso elaboramos um contraponto com a área do conhecimento da Antropologia, na
qual observamos a memória como na fala dos parceiros de pesquisa. Sendo assim, podemos pensar
a perspectiva de História Oral, sendo uma propulsora de fonte oral.
1 Depoimentos recolhidos por mim, no dia 14/06/2015, na sede da Sociedade Recreativa Império Serrano. Maria
da Conceição da Silva Garcia (63 anos), esposa do fundador Liberato Garcia (falecido) e Marieta Ribeiro Almeida
(71 anos), amiga da família Garcia.
Tenho um sonho de montar uma biblioteca numa salinha lá dentro do Império. Porque às
vezes as crianças querem fazer um trabalho, e tem que ih no centro na Biblioteca do
Município, então quero fazer uma aqui, para facilitar. (Andréa, 13/04/17).
To bem, to aqui fazendo esse coelho. Porque depois que as gurias descobrem que a
‘perereca’ não é só para mijar, elas não fazem mais nada, não adianta nem pedir. Só
querem colocar aquelas roupas apertadas, que arrebitam a bunda, e sair por aí rebolando.
(Tia Bete, 16/04/17).
Antes era assim, na época do Liberato [um dos fundadores da Escola de Samba, faleceu
em 1991] o Império não dava fantasia, a gente cobrava pela fantasia. Mas, o Edinho é
coração bom não cobra, quer dar. Então agora temos dividas com costureiras. Eu e a
Marieta [irmã da Maria da Conceição], costuramos um pouco, mas só nós duas não damos
conta. Aí contratamos pessoas de fora. (Maria, 13/04/17).
Pedagogia da Arte
Além das áreas ligadas à História, Literatura e outras, que formam parte dos currículos
escolares, no processo de organização dos desfiles desenvolvem-se noções de artes plásticas, como
apresenta Tramonte. (2001). “Ricardo, o Tamanca constrói essas esculturas tudo, desses carros
[aponta para o material que está no barracão]. Ele é muito bom com isso; pena que se perde na
bebida..” (Andréa, 13/04/17).
ECKERT, Cornelia; ROCHA, Ana Luiza Carvalho da. Etnografia: saberes e práticas. In: PINTO,
Céli Regina Jardim; GUAZZELLI, César Augusto Barcellos. (Org.). Ciências Humanas: pesquisa
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LEOPOLDI, José Sávio. Escola de Samba, ritual e sociedade. Petrópolis: Vozes, 1977.
PESAVENTO, Sandra Jatahy. História & História Cultural. Belo Horizonte: Autêntica, 2005.
Maria da Conceição da Silva Garcia – entrevista realizada por Ricardo Figueiró Cruz, no dia 14
de junho de 2015, na sede da Sociedade Recreativa Império Serrano.
Marieta Ribeiro Almeida – entrevista realizada por Ricardo Figueiró Cruz, no dia 14 de junho de
2015, na sede da Sociedade Recreativa Império Serrano.
13/04/17 – Visita
[...] percebe-se que o retorno da biografia, pelo menos no âmbito da história, não significa
simplesmente a retomada de um gênero velho, mas está inserido em um processo de
profunda transformação das bases teórico-metodológicas da disciplina, com um
consequente repensar de questões clássicas como: a relação indivíduo/sociedade, as
formas narrativas do conhecimento histórico, entre outras.” (SCHMIDT, 2000, p. 51).
[...] nos trabalhos históricos, os momentos de invenção precisam ser sempre sinalizados
ao leitor através da utilização de expressões “provavelmente, “talvez”, “pode-se
presumir”, [...] Ou seja, assim como o romancista ou cineasta, o historiador também pode
utilizar-se da imaginação, desde que essa seja explicitada ao leitor enquanto tal e balizada
pelas fontes. (SCHMIDT, 2000, p. 67-68).
Para não cair nas “armadilhas” de simplificação e coerência ao personagem, ao utilizar das
ferramentas da biografia, o historiador deve ser cauteloso em suas afirmações. Pierre Bourdieu
(2006) afirma que se deve ter cuidado ao falar do biografado. Expressões como “sempre” ou “desde
pequeno” devem ser evitadas, pois as mesmas indicam a busca da coerência na trajetória do
biografado. Benito Schmidt (2000) diz que expressões como “através”, “por intermédio”, mostram
a preocupação dos autores em fugir do voluntarismo individualista e estabelecer conexão entre a
trajetória estudada e os contextos onde ela se encontra.
[...] quero defender a ideia de que os biógrafos não devem se fixar na busca de uma
coerência linear e fechada para a vida de seus personagens, mas que precisam sim
apreender facetas variadas de suas existências, transitando do social ao individual, do
inconsciente ao consciente, do público ao privado, do familiar ao político, do pessoal ao
profissional, e assim por diante, sem tentar reduzir todos os aspectos da biografia a um
denominador comum. (SCHMIDT, 2000, p. 63).
Em seu artigo “Grafia da vida: reflexões sobre a narrativa biográfica”, Benito Schmidt
(2004), diz que fazer a biografia de um indivíduo está longe de poder escrever uma vida, pois seria
pretensioso imaginar que as “linhas de um texto seriam cabíveis para expressar descontínuos e
contraditórios fios de um destino pessoal” (SCHMIDT, 2004, p. 64). Nessa mesma perspectiva,
Pierre Bourdieu (2006) ressalta que, ao analisar a “história de vida” de um indivíduo, o pesquisador
deve atentar para a análise do contexto que este indivíduo está inserido e sua relação com outros
agentes.
Tentar compreender uma vida como uma série única e por si suficiente de acontecimentos
sucessivos, sem outro vínculo que não associação a um “sujeito” cuja constância
certamente não é senão aquela de um nome próprio, é quase tão absurdo quanto tentar
explicar a razão de um trajeto de metrô sem levar em conta a estrutura da rede [...] não
podemos compreender uma trajetória [...] sem que tenhamos previamente construído os
estados sucessivos do campo no qual ela se desenrolou e, logo, o conjunto das relações
objetivas que uniram o agente considerado [...] ao conjunto dos outros agentes envolvidos
no mesmo campo e confrontados com o mesmo espaço dos possíveis. (BOURDIEU,
2006, p. 189).
Apesar deste trabalho não ser um estudo biográfico de Antônio Ferreira Martins, esta autora
se apoia em algumas “ferramentas” que a metodologia oferece, pois ao optar por analisar a atuação
do referido advogado, torna-se possível analisar uma construção estrutural que lhe ultrapassa
(AVELAR, 2010). Neste sentido, analisar a atuação profissional de Martins, torna-se relevante para
compreender as relações entre trabalhadores, empregadores e Justiça, durante a década de 1940.
Isto levando em consideração que, durante sua atuação no Direito, esse personagem tenha sofrido
por algumas mudanças no que se refere ao caráter identitário.
A escolha desse enfoque [...] não significa conferir às biografias dos personagens uma
identidade estável, um sentido linear e uma conferência ex post, aquilo que Pierre
Bourdieu chamou de “ilusão biográfica”. Significa sim, priorizar multifacetadas
trajetórias. (SCHMIDT, 2004, p. 26).
Memória, história: longe de serem sinônimos, tomamos consciência que tudo opõem a
outra. A memória é a vida sempre carregada por grupos vivos e nesse sentido ela está em
permanente evolução, aberta à dialética da lembrança e do esquecimento, inconsciente de
suas deformações sucessivas, vulnerável a todos os usos de manipulações, suscetível de
longas latências e de repentinas revitalizações. A História é a reconstrução sempre
problemática e incompleta do que não existe mais. A memória é um fenômeno sempre
atual, um elo vivido no eterno presente; a história uma representação do passado. [...] A
memória se enraíza no concreto, no espaço no gesto, na imagem, no objeto. A história só
se liga às continuidades temporais, às evoluções e as relações das coisas. A memória é um
absoluto e a história só conhece o relativo. (NORA, 1980, p. 9).
Através da afirmação do autor, levanta-se a dúvida para o historiador sobre como trabalhar
com um elemento tão mutável como a memória? Apesar de até hoje permear discussões acerca do
antagonismo entre história e memória, a perspectiva de Nora mostra que, com o auxílio das
narrativas é possível contar parte da história de um personagem – no caso, o advogado Martins, que
construiu sua memória como uma espécie de precursor do Direito do Trabalho no Brasil.
Trabalhar com a memória é trazer para a pesquisa a voz de pessoas que se dispuseram –
seja qual for a motivação ─ a compartilhar momentos de suas vidas, seus anseios, alegrias,
experiências. Apesar do entrevistador guiar o depoente ─ por intermédio das perguntas ─, este deve
entender que seu entrevistado está naquele momento constituindo sua identidade.
Quando um indivíduo constrói sua história, ele engaja uma tarefa arriscada consistindo em
percorrer de novo aquilo que acredita ser a totalidade de seu passado para dele se apropriar
e, ao mesmo tempo, recompô-lo em uma rapsódia sempre original. O trabalho da memória
é, então, uma maiêutica da identidade, renovada a cada vez que se narra algo. (CANDAU,
2011, p. 76).
Alessandro Portelli (1997) afirma que, apesar da memória ser social, ela é um fenômeno
construído individualmente. Esta construção se dá através do entrelaçamento das memórias
individuais (construídas de forma consciente ou inconsciente) com o meio social que o indivíduo
se encontra inserido.
[A memória] Ainda que esteja moldada de diversas formas pelo meio social, em última
análise, o ato e a arte de lembrar jamais deixam de ser profundamente pessoais. A memória
pode existir em elaborações socialmente estruturadas, mas apenas os seres humanos são
capazes de guardar lembranças. Se considerarmos a memória um processo, e não um
depósito de dados, poderemos constatar que, à semelhança da linguagem, a memória é
social, tornando-se concreta apenas quando mentalizada ou verbalizada pelas pessoas. A
memória é um processo individual, que ocorre em um meio social dinâmico, valendo-se
de instrumentos socialmente criados e compartilhados. (PORTELLI, 1997, p. 16).
[...] o ato de rememorar também é subjetivo, sendo uma criação constante por parte do
depoente/entrevistado, reagindo de acordo com os fatores sociais do presente que estão
agindo sobre ele, trazendo em seu discurso a sua verdade, a sua visão do fato ocorrido,
considerando o seu lugar ocupado no interior do grupo e das relações mantidas com outros
meios sociais, ainda que encubra o que realmente aconteceu (LOPES, 2012, p. 2).
A História Oral tende a representar a realidade não tanto como um tabuleiro em que todos
os quadrados são iguais, mas como um mosaico ou colcha de retalhos, em que os pedaços
são diferentes, porém, formam um todo coerente depois de reunidos. (PORTELLI, 1997,
p. 16).
Seguindo a linha de pensamento de Alessandro Portelli (1997), neste artigo utilizamos os
relatos dos entrevistados como um aporte para estudarmos acerca da construção dos perfis
identitários de Martins.
A primeira narrativa analisada foi a do filho mais velho de Martins, Aires Roberto Veiras
Martins.Durante a entrevista, notamos a preocupação do entrevistado em construir uma identidade
“exemplar” do advogado Martins.
Como o escritório de meu pai tinha uma linha de advocacia, não vou dizer exemplar, mas
uma linha correta, como em tudo na vida dele. O que aconteceu? Eu comecei a ser
procurado por empresas [...] Como eu trabalhava no escritório do meu pai eu tinha
experiência no Direito do Trabalho, então eu comecei a ser procurado por empresas. Meu
pai me retirou do escritório dele e ficamos dois anos sem nos falar” (MARTINS, 2014, p.
4, grifo da autora).
Conforme Candau, um indivíduo jamais poderá ser totalmente rememorado, sua identidade
é uma forma de apresentação. Constatamos que os dois filhos entrevistados optaram por exaltar os
valores morais do personagem pesquisado, apresentado-o como um indivíduo exemplar para a
sociedade.
Ao descrever sobre sua atuação profissional, Martins salientou a ideia de uma vida linear
baseada em princípios de justiça social. Neste sentido, buscou emprestar coerência à sua trajetória.
[...] o fato de dotar de coerência sua trajetória de vida satisfaz uma preocupação que
podemos qualificar como estética: permite ao narrador transformar a seus próprios olhos
a narrativa de si próprio em uma “bela história”, quer dizer, uma vida completa, rica em
experiências de toda natureza. Nesse sentido, todo aquele que recorda, domestica o
passado e, sobretudo, dele se apropria, incorpora e coloca sua marca em uma espécie de
selo memorial que atua como significante da identidade. (CANDAU, 2011, p. 74).
MARTINS, Aires Veiras. Atuação profissional do advogado Antônio Ferreira Martins. Entrevista
de História Oral Temática, concedida a BRAGA, Camila Martins, 2014.
MARTINS, Daniel Antônio Veiras. Atuação profissional do advogado Antônio Ferreira Martins.
Entrevista de História Oral Temática, concedia a BRAGA, Camila Martins, 2015.
Marlise Regina Meyrer
Foi somente nas últimas décadas que a historiografia sofreu mudanças mais significativas
no que diz respeito à valorização das diferentes linguagens, que por sua vez se expressam em
diversos suportes/fontes da pesquisa histórica. Esse movimento tem possibilitado o
desenvolvimento de abordagens teórico-metodológicas inovadoras que ampliam o entendimento
sobre as dinâmicas sociohistóricas, rompendo definitivamente com uma visão homogênea e
absoluta dos fenômenos históricos.
Nessa trajetória, a emergência e consolidação da História Cultural, ou Nova História
Cultural, que atualmente concentra a maioria das produções historiográficas, contribuiu para a
ampliação das possibilidades metodológicas na medida em que expandiu o campo da História num
diálogo profícuo com outras áreas do conhecimento como a Antropologia, Sociologia, a Filosofia,
a Linguística, o campo das artes, entre outros. Novos conceitos, como o de representação e
imaginário social, bem como a atenção aos aspectos simbólicos das relações sociais, abriram
caminho para a exploração de diversificadas linguagens nos processos de construção do
conhecimento histórico, o que tem permitido acessar diferentes discursos e representações sociais
que, por sua vez, revelam sujeitos com distintas práticas e visões de mundo.
Essas considerações fundamentam a proposta do Laboratório de Memória Oral e Imagem
(LAMOI-UPF), vinculado ao curso de Graduação em História e ao Programa de Pós-Graduação
em História da Universidade de Passo Fundo, que tem como finalidade o desenvolvimento de
pesquisas a partir da organização da memória oral, visual, audiovisual e escrita da região norte do
Rio Grande do Sul. A problemática fundamenta-se na questão da memória, horizonte esse que se
liga ao conceito de identidade, pois as memórias produzidas, historicamente pelos diferentes grupos
(sociais, étnicos e de gênero), construíram representações de identidade que podem ser acessadas a
partir de fontes diversas e passam a ser entendidas como registros das experiências humanas ao
longo do tempo e que, na ação de rememorar, unem passado e presente, num processo de
manutenção e reforço dos laços identitários dos grupos.
A memória, individual ou coletiva, constitui-se a partir das experiências vividas, mantendo
uma linha de continuidade temporal com o presente através da história. O conceito de memória
coletiva, desenvolvido por Maurice Halbwachs, orienta nossa proposta de estudar a memória de um
grupo. Para esse autor, toda memória se funda em identidades de grupo, nossas lembranças
vinculam-se a experiências numa vida em grupo – família, vizinhos, fábrica, escola, etc. Todo o
* UPF, Drª em História. Projeto com apoio da FAPERGS. (Pesquisador Gaúcho, 2014).
social está inscrito na memória individual como vice-versa. A memória é entendida, assim,
enquanto construção social.
Para Ricoeur (2007), a relação entre a memória individual e coletiva se dá através da
narrativa. Construída sobre as experiências vividas, a memória funda-se na linguagem. É a
linguagem cotidiana com todas as suas nuances que permite aos grupos exteriorizar a memória em
forma de narrativa. A linguagem torna-se, assim, a portadora da memória, fortalecida através das
narrativas coletivas. Neste aspecto, entendemos que a memória contada oralmente pelos membros
das comunidades adquire um sentido específico, tornando cada membro da comunidade sujeito de
sua própria história.
Entre as fontes privilegiadas pelas pesquisas ligadas ao LAMOI, estão a fotografias e os
depoimentos orais, ambas consideradas fontes de memória. As histórias de vida que emergem
dessas fontes acabam por criar uma identidade entre as pessoas, na medida em que as mesmas
partilham diferentes estratégias e saberes diante de uma mesma realidade, conformando o que
Maurice Halbwachs define como memória coletiva.
Apresentamos aqui, uma das pesquisas desenvolvidas pelo LAMOI, dentro da proposta
descrita acima. Trata-se do estudo de um espaço específico da cidade de Passo Fundo/RS, a rua
Quinze de Novembro. O local foi um espaço caracterizado por abrigar estabelecimentos e práticas
entendidas como marginais na sociedade passo-fundense da época. Na cidade de Passo Fundo,
observa-se a permanência deste espaço no imaginário da cidade como um submundo, um local
proibido do qual fala-se muito. Nesse sentido, a rua Quinze e seu entorno, pode ser entendida como
lugar de memória, reconhecido pela comunidade enquanto parte da memória da cidade,
independente da conotação positiva ou negativa que carrega. Como a memória é feita de lembranças
e esquecimentos, é uma memória que alguns querem esquecer e outros rememorar.
Adequando-se à proposta do LAMOI, a pesquisa utilizou-se de diferentes fontes,
explorando a leitura de diferentes linguagens e/ou formas de fazer e pensar a história. Fotografia,
imprensa, caricatura, pintura, oralidade e textos literários foram consideradas como possibilidades
de leitura e interpretação do mundo social em uma perspectiva histórica. Buscamos explorar a
diversidade de linguagens também na produção dos resultados da pesquisa. Assim, o artigo aqui
reproduzido é um dos produtos textuais da pesquisa sobre a rua Quinze de Novembro. Além desse,
produzimos um pequeno documentário sobre o tema e um programa de rádio com trechos das
entrevistas feitas para o estudo.
Metodologicamente gravamos, em vídeo, dez entrevistas com pessoas que tiveram alguma
relação histórica com a rua Quinze de Novembro, com perguntas abertas. As entrevistas foram
transcritas e arquivadas, constituindo-se em acervo de fontes para esta e outras pesquisas futuras.
As imagens editadas e transformadas em um documentário que vem sendo apresentado em eventos
acadêmicos e da própria comunidade de Passo Fundo. Desse material, foram selecionados
pequenos trechos de áudio e editados em MP3, resultando no programa de rádio: A Escuta da
memória, Passo Fundo e suas histórias, veiculado pela rádio UPF em pequenos spots, três vezes
ao dia.
O programa “A escuta da memória: Passo Fundo e suas histórias” divulga diferentes
realidades e experiências que constituem a memória local, visando romper com o distanciamento
entre a memória popular produzida nas comunidades e a oficial ligada a instituições. Com a
finalidade de valorizar a riqueza da fala dos sujeitos, essas memórias são contadas na rádio UPF,
para serem ouvidas pela comunidade passo-fundense em toda a riqueza da narrativa oral. Assim, as
pausas, os risos, choros, emoções, sotaques, impossíveis de serem traduzidos para o formato do
texto na íntegra, completam e muitas vezes revelam o sentido da narrativa, pois oralidade carrega
esse “no que me diz respeito”, repleto de vivências subjetivas, mas que trazem consigo a memória
coletiva da comunidade, não descurando do fato de que esta memória particular está integrada a
uma rede de relações sociais e culturais, configurando a memória local e regional.
O rádio, como veículo de fala e escuta dessa memória, através dos programas de entrevistas
produz, assim, documentos históricos sonoros, cuja função é, sobretudo, a de (re)memoração da
história de Passo Fundo. Essa ação é potencializada pelo caráter abrangente e popular do veículo,
cuja escuta permeia o cotidiano de um grande número de pessoas, especialmente nas localidades
mais afastadas dos grandes centros. Em muitas comunidades, a escuta radiofônica constitui-se num
hábito que persiste de geração em geração. Esse potencial do rádio, de educar, mobilizar, aglutinar,
sensibilizar, conversar com a comunidade é, dessa forma, explorado para produzir uma forma de
narrativa historiográfica.
Destacamos que a História Oral é um dos principais instrumentos utilizados nas pesquisas
do projeto descrito acima, na medida em que nos valemos dos depoimentos orais dos moradores
das diferentes comunidades a fim de conhecer sua própria narrativa sobre a história local. Não
queremos aqui compactuar com a ideia generalizada de que a História Oral sirva especificamente
para contar a história dos menos favorecidos, atribuindo a este grupo uma teórica incapacidade de
produzir sua própria história. Entretanto, esta metodologia de fato significou uma maior
possibilidade de escrever a história dos excluídos, na medida em que as fontes escritas sobre estes
grupos são escassas.
Cientes dos questionamentos que envolvem a História Oral, especialmente no que diz
respeito a sua carga de subjetividade, o entendimento dos relatos, enquanto documentos históricos
sonoros, precisam ser entendidos a luz de referências bibliográficas sobre o contexto em questão,
pois concordamos com Janoti (2010) quando ela aponta para a necessidade de se recorrer a fontes
múltiplas, lembrando que o testemunho do depoente não é apenas um relato do que viu e ouviu,
mas uma construção de um determinado discurso sobre o fato. Além disso, a autora chama a atenção
para a necessidade metodológica de se levar em consideração os objetivos do entrevistador, nesse
caso o historiador, que domina todo um aparato teórico que orienta a entrevista e irá influenciar na
construção do discurso.
Entendemos que a articulação entre as narrativas individuais nos possibilita vislumbrar a
perspectiva histórica do grupo, ou seja, um mesmo olhar do presente sobre o passado, revelando
reflexões sobre si e a história do grupo, enfatizando o caráter reflexivo dos processos de memória,
que nos remete a ideia de identidade. As histórias de vida assim, acabam por criar uma identidade
entre as pessoas, na medida em que partilham diferentes estratégias e saberes diante de uma mesma
realidade.
A Rua Quinze de Novembro em Passo Fundo concentrou, ao longo dos anos 1940 e 1950,
uma série de estabelecimentos voltados para atividades e práticas, consideradas marginais pela
sociedade tradicional da cidade. Dancings, cassinos, bares e pensões, que alugavam quartos para a
prática da prostituição, compunham o cenário do local, que também era um espaço de sociabilidade,
onde parte da elite masculina fechava negócios e fazia política. Um desses estabelecimentos se
sobressaiu, ganhando fama nacional: o Cassino da Maroca, ou Cassino Palácio.
O Cassino recebia a elite local, visitantes de fora da cidade e mesmo do Estado. Era
considerado inacessível para a maioria da população. Mulheres bem vestidas, vindas dos países
vizinhos como Uruguai e Argentina, orquestras e mesas regadas a champanhe fazem parte do
imaginário da cidade sobre o Cassino. Os anos áureos da movimentação da Rua Quinze foram os
da década de 1940 até meados de 1950. Em 1955, com a proximidade das comemorações do
centenário da cidade, alguns membros da sociedade de Passo Fundo, com apoio das autoridades
locais promoveram, através do jornal O Nacional, uma intensa campanha para retirada da zona do
meretrício daquele local, que ficava praticamente no centro da cidade. Lugar maldito para alguns,
de prazer para outros, a rua compõe o imaginário da cidade e pode ser considerada como um lugar
de memória do município, conforme acepção de Nora (1993, p. 25), para quem a “memória
pendura-se em lugares como a história em acontecimentos.
As discussões sobre o tombamento do prédio onde se situava o Cassino da Maroca, “
símbolo da boemia e da diversão das noites de Passo Fundo” (ROHRIG, 2016) evidenciam uma
disputa pela memória do município, envolvendo a construção da identidade dos passo-fundenses.
Uma ação do Ministério Público sobre o tombamento do prédio do antigo Cassino da Maroca, na
rua Quinze de Novembro, permanece aberta desde 2007, quando foi julgada improcedente pelo
Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul. O prédio foi adquirido por dois empresários em 2010,
sendo que um deles, Igor Loss da Silva, deu a seguinte declaração no jornal O Nacional
(10/11/2010: “[…] a Justiça considerou que não foi determinado o valor histórico do imóvel por ter
sido uma casa de prostituição […]”. A reportagem diz, ainda, que o sobrado não é considerado
legalmente um imóvel histórico para a cidade.
As disputas entre o memorável e o imemorável em relação à rua Quinze de Novembro, nos
leva a considerá-la como um espaço de fronteiras; fronteiras da (in)tolerância. Espaço de fronteiras,
a Rua Quinze de Novembro pode ser estudada a partir da categoria de análise da relação
estabelecidos – outsiders, conforme Elias (2000), na medida em que era considerada como o espaço
do outro, dos excluídos da sociedade formal. Seria o que Elias (2000) definiu como um grupo
considerado inferior diante de outro que detém o monopólio do poder e o estigmatiza. Para o autor,
entre os estigmas impostos aos outsiders está a visão do grupo estabelecido de que eles são “
indignos de confiança, indisciplinados e desordeiros”. (p. 27).
Este conceito, segundo o autor pode ser utilizado para o entendimento de muitos contextos
sociais para identificar como se constroem as diferenças entre os grupos, sejam elas sociais, étnicas,
de gênero, entre outras. No caso da Quinze de Novembro buscamos identificar, através dos
depoimentos orais e da memória jornalística, os elementos que separam esse espaço e seus
ocupantes da sociedade formal de Passo Fundo. E também entender de que forma os atributos
negativos sobre a rua e os positivos sobre a sociedade formal/legal vão sendo construídos e
reconhecidos como naturais. Para Elias (2007), isso só é possível devido ao desequilíbrio de poder
existente entre os grupos: “um grupo só pode estigmatizar o outro com eficácia quando está bem
instalado em posições de poder das quais o grupo estigmatizado é excluído”. (p. 23).
Um grupo outsider é visto comumente pelos estabelecidos como não cumpridores das
regras e por não respeitar os tabus da sociedade formal, colocando em risco a estabilidade dessa
sociedade. Por outro lado, os inseridos no grupo dominante, precisam constantemente estar atentos
ao cumprimento de tais regras, para permanecerem como membros do grupo. Nesse sentido, o
contato com os outsiders pressupõe um rígido controle sobre as fronteiras entre os grupos.
As narrativas dos entrevistados sobre a rua evidenciam essa situação de fronteiras entre o
lícito e o ilícito; o tolerado e o intolerado; a ordem e a desordem. A primeira situação limite
observada refere-se à identificação da rua, ora como espaço marginal, ora como local de ostentação
e luxo, representado, principalmente pelo Cassino da Maroca. A memória dos frequentadores,
homens, retém de um lado, as lembranças de uma boemia glamorosa e luxuosa com belas mulheres
bem vestidas, músicos estrangeiros noitadas regadas a champagnes e muito dinheiro. De outro, as
recordações da violência e da marginalidade daquele espaço.
A partir das narrativas, podemos dizer que até início dos anos 1950, havia um certo
equilíbrio e interação necessários entre esses dois mundos. Os homens de bem da sociedade passo-
fundense frequentavam os bordéis/cassinos da Quinze, onde socializavam tanto com seus pares
frequentadores, quanto com os outros daquele espaço, onde as fronteiras não eram tão rígidas.
Depois voltavam para o mundo legal e, muitas vezes, empreendiam batalhas morais contra a zona
do meretrício frequentada e mantida por eles, como foi o caso das campanhas deflagradas pelo
principal jornal da cidade para retirada dos bordéis do centro da cidade.
Ao tratar do imaginário da cidade, Sandra Pesavento (2000) assinala que, embora os grupos
sociais produzam um ideal de cidade, permeado pelos ideais de progresso e civilidade, a zona do
meretrício tem um papel fundamental na constituição do espaço urbano, pois funcionam como
“válvula de escape” às normas de convívio estabelecidas na cidade “legal”. A Zona do Meretrício
aparece, assim, como mal necessário e marcador social entre o lícito e o ilícito; o certo e o
errado; “estabelecidos e outsiders”, como podemos observar na narrativa do sr. Walter1:
Tinha um vereador muito polêmico em Passo Fundo que defendia a Maroca lá em plena
Câmara de Vereadores. E ele dizia com palavras a boca cheia que as mulheres da zona
preservavam suas filhas, e preservavam eles de terem guampa. Então, havia, assim, que a
prostituição era um mal necessário. E elas tinham escolhido aquele caminho e deviam ser
respeitadas. E ele era contra aquele tratamento que davam como fichar a mulher como
meretriz; ele achava muito pejorativo. E daí tinha um outro na época que gozava: são
ajudantes do lar. Então, no final, virava um motivo de gargalhada esses comentários.
[…] É a vida. E havia muito dinheiro naquela época, do contrabando de pneu, e da madeira
que era exportada para a Argentina. O pessoal levava daqui a Porto Alegre de caminhão,
entende? Era isso, mais ou menos o que tinha na época. E o mulherio, como diz os caras,
era de montão, e funcionavam as casas de mulheres. E tinha o Cassino da Maroca na
esquina, e a casa verde aquela que estão mexendo. E aquilo era engraçado, porque a pista
não era maior que isso aqui (se referindo à sala em que estávamos). Agora o que acontecia
com o pessoal? O mulherio tomava muito champanhe, naquele tempo; a bebida que elas
tomavam era champanhe. (Sr. Aldo).
Os testemunhos são unânimes em apontar para o luxo de tais estabelecimentos que recebiam
a elite local, das cidades vizinhas e até de outros estados.
O luxo, entretanto, não tornava aquele espaço integrado à sociedade tradicional passo-
fundense. Esta memória da boemia elegante da cidade não desfaz a representação de um lugar à
margem, espaço do outro, da anomia. Para muitos, este era um local proibido, lugar de mistério,
sobre o qual contavam-se muitas histórias, despertando a curiosidade e especulação da população.
Maria assim sintetizou o imaginário sobre a rua: “a Quinze de Novembro, para mim, foi uma rua
proibida.”
A fronteira a que se refere Maria, na época uma adolescente, é aquela que separava as
mulheres honestas das mulheres “da vida” ou as do lar e as da rua. As primeiras foram preparadas
para o pleno exercício, das tarefas do lar, os cuidados com filhos e marido e, sobretudo, para serem
responsáveis pela manutenção da moralidade da família. Seu espaço por excelência era a casa, a
Igreja e, em alguns casos, os salões da alta sociedade, quando também eram responsáveis pelo status
da família. Sua sexualidade estava restrita ao casamento com objetivo de procriar. Já as segundas
têm sua referência na sexualidade mercantilizada, na sua capacidade sedutora que se constitui em
ameaça à família e aos “bons costumes” (RAGO, 1991, p. 41). Ainda Maluf e Mott (2006) afirmam
que, nas primeiras décadas do século XX, a sociedade criava estratégias para “ assegurar os limites
entre as mulheres ‘honradas’ e a libertinagem de mulheres de ‘conduta duvidosa’ que desfilavam
pelos teatros e cafés da cidade” (p. 392). A fala de Maria evidencia esta situação:
[...] ela era sim uma rua mais afastada porque o centro, geralmente como toda cidade
pequena é a avenida né? Então, uma quadra que se avance né, já se achava assim que
estava invadindo um território promíscuo né? Era da época né? […]. Não recomendavam
e o pai, principalmente, ia ficar muito brabo. A mãe já era mais condescendente. “Ah, mas
porque que foi? Aonde que se viu” aquela coisa toda. “Lá não presta”. Mas, o pai tá louco,
“lá só tem gente que não presta”, essas coisas... É isso aí [...]. (Grifo meu).
[Era] tranquilo. Não tinha nada. Alguma encrenca dava, por causa de amante de mulher
com amante e amante de outro. Senão, briga, assim, por nada, não tinha briga. A troco de
nada, não tinha briga, que nem hoje, que qualquer coisa tão se matando. Por qualquer
coisinha tão se matando. Que nem esse guri que eu vi – se é verdade eu não sei – que
matou outro guri por causa de uma janela que estava aberta. Não sei se é verdade isso...
agora essa semana. Naquele tempo não tinha. Por nada, não brigavam. Às vezes se
‘pegavam no cacete’, se enchiam de tapa e depois saíam abraçados: “vamos tomar um
trago”. (Sr. Vitor).
Eram tempos muito difíceis; inclusive ele tinha que trabalhar armado [pai]. Ele tinha dois
revólveres, por incrível que pareça. Um ele usava na cintura e o outro do lado do caixa.
Nem era caixa, era tipo umas gavetas onde guardava o dinheiro. Então, na época, quase
todo mundo andava armado. Noventa por cento da população tinha um revolver em casa.
O pai tinha dois: […] que ele dizia que era o melhor. Eu me criei vendo aquelas armas,
que felizmente ele nunca precisou usar. Se lidava com todo o tipo de pessoas aqui. Vinham
pessoas de toda a parte do Brasil por causa do Cassino. Vinham os bons e vinham os maus,
também né? Como tinha os bons, aqui na cidade, então tinha que trabalhar prevenido. (Sr.
Freitas).
Se a zona do meretrício marca a fronteira entre o mundo organizado e desorganizado, no
interior desse espaço o controle da desordem era atribuído à polícia do mundo externo. Os policiais
que eram, muitas vezes, clientes das casas, acabavam sendo os principais promotores da violência,
porque detentores de um poder de força desigual em relação aos demais. Na Quinze de Novembro
atuava uma patrulha policial, responsável pelo policiamento do local. Tanto os relatos orais, quanto
as notícias no O Nacional, informam sobre atos violentos da Patrulha, desde espancamentos de
elementos suspeitos até a responsabilidade por algumas mortes na zona.
Além de abrigar as casas luxuosas frequentadas pela elite masculina da cidade, na mesma
rua havia outras, de nível inferior, que atendiam uma diversidade social mais ampla. Entretanto,
todos os estabelecimentos integravam o espectro marginal da cidade, o espaço não formal, no qual
indivíduos masculinos cruzavam frequentemente a fronteira entre o lícito e o ilícito, constituindo-
se num lugar que Nascimento (2003) chamou de alternativo, onde eram permitidos excessos,
negados no mundo legal. A presença de representantes dos grupos dominantes da cidade neste
espaço, demandava ainda mais a presença da Polícia, cuja função, muitas vezes, era a de proteger
e encobrir certas situações e personagens.
A rua tinha suas fronteiras internas, que podem ser descritas pela distribuição geográfica
dos estabelecimentos na rua. Conforme Nascimento (2003), existiam na Quinze de Novembro e seu
entorno, aproximadamente 41 casas de prostituição, desde as mais sofisticadas às mais simples. A
partir de depoimentos orais, registros da Polícia e imprensa, Nascimento (2003) elaborou um mapa
da rua e adjacências, a partir do qual, podemos extrair algumas referências. No centro da Quinze de
Novembro (próximo à rua Independência) encontrava-se a “Casa da Olívia” - descrita como uma
das maiores casas de prostituição da época - a da “Maria Varga”, a da” Maria Preta” e o “Cassino
Palácio”. Na quadra seguinte haviam três casas, chamadas de “Pensão da Elpídia”, usadas pelos
frequentadores do “Cassino Royal” (NASCIMENTO, 20003, p. 38). Ao lado dessas vinham as
casas da “Velha Maria” e a pensão da “ Chicha”. Mais adiante, funcionaria uma casa de travestis e,
em seguida, a casa de prostituição “ Pé de Porco” e o prostíbulo “Toca da Onça”. No final da mesma
quadra estava a casa da “Maria Italiana” e a do “Joani”, estas de muito baixo nível. As diferenças
hierárquicas entre esses estabelecimentos são descritas pela maioria dos entrevistados, com o que
segue:
Ah! O Pé-de-Porco era uma briga. Aí ficava mais pesado o ambiente, porque bom mais
ou menos era o Cassino, até a Independência. Ali tinha umas casas mais ou menos.
Passando da Independência, tinha a Elpidia, a Maria Vargas. Essas casas que tinham ali,
depois subia até o Cassino, é o que tinha de bom. Mulher que se vestia bem, que se pintava
bem, etc. e tal. E depois, da esquina da General Osório para baixo, tinha o Royal, que era
meia boca, entende? (Sr. Aldo).
Por isso que diziam que passava uma menina, como eu já vi. Passavam duas, três meninas
e elas [donas das casas] saiam na rua e diziam: “Ó, isso aqui não é lugar para moças. Vocês
vão lá por cima, pela outra rua, porque aqui não é lugar pra vocês, não é lugar pra moças”.
Então, eles usavam do respeito. E eu vivia aqui, aí no meio deles. Para lá, para cá, Dona
Olívia, eu ia comprar coisas para ela. A Dona Eupídia, eu ia comprar coisas para ela. Era
assim. Entrava nas casas de todas, sem problema nenhum. (Sr. Vitor).
As cafetinas parecem boas administradoras de seus negócios para o qual era necessário
habilidades “diplomáticas no relacionamento com os fregueses: sutileza, absoluta descrição,
informações sobre os homens e suas preferências, jogo de cintura no seu relacionamento com as
“pensionistas” (RAGO, 1991, p. 174), sobre as quais mantinha uma relação de controle e
exploração. Diferente das outras mulheres, ela participava do mundo público dos negócios, onde
“se relacionava com homens influentes, dos quais conhecia segredos íntimos” (RAGO,1991, p.
176). O maior exemplo do poder exercido por essas mulheres, em Passo Fundo, é a fama atribuída
a Maroca, identificada como Isaldina Rodrigues.
Então, ela trazia essas mulheres e ela condicionava o gerente dela, ou a gerente, ou o
gerente, ali do cassino, que as mulheres tinham que beber [...]. Mas ela impunha, veja a
ideia, que elas não podiam ficar bêbadas. […] Quando chegava determinado ponto, elas
chegavam: ‘olha, seu filho não tá passando bem senhora, tão te chamando lá em casa’,
para ela se retirar para não dar vexame. […]. Então essa casa começou a se tornar famosa
dessas mulheres que ela trazia, da França, do estado de São Paulo. Então, essas mulheres
ficavam nas mesas ou chegavam na mesa, onde tinha um ou dois rapazes sentados, pediam
licença, sentavam e de cara já perguntava ‘um uisquezinho, e ela assim e tal. Então, não
tinha uísque coisa nenhuma. Tinha água mineral ou guaraná, mas o preço era cinquenta
pila, cinquenta reais a dose. Então, quer dizer, o lucro dela na realidade, era das moças
bonitas, vistosas, boa aparência e boa conversa. Elas selecionavam, nesse sentido, tinham
um grau de cultura do médio para cima. Então, quer dizer, ela não era simplesmente uma
prostituta. Então, lá dentro era respeitado, o cara ficava aguçado e pagava a ida né? E
depois chegavam lá, pagava a casa, também o quarto. Então virou um negócio realmente
e realizou-se. Então, começaram a aparecer concorrência né? (Giovane).
3 Expressão utilizada pelos entrevistados para definir as cafetinas, donas dos bordéis e que tinham o controle
sobre as prostitutas.
Nesse sentido, podemos dizer que, na Quinze de Novembro, as fronteiras
entre os papéis sociais tradicionalmente atribuídos aos gêneros feminino e
masculino também eram frequentemente ultrapassados, evidenciando a tolerância da
sociedade nesses espaços, pois geográfica e socialmente demarcados por outros
critérios, ou seja, a exclusão já era dada a priori: em relação às mulheres
“desonestas” que o habitam ou a sua localização geograficamente demarcada na
cidade. Esses pressupostos encontram respaldo nas teorias positivistas de Lombroso,4
no..início..do..século,..que..consideram..a..prostituição o lado feminino da criminalidade
(RAGO, 1991, p. 146). Estando sua sexualidade destituída do sentimento materno,
considerado natural, elas automaticamente encontravam-se no espectro da anormalidade. A
essas mulheres era permitido o exercício de papéis negados às mulheres da sociedade
tradicional, pois elas não eram consideradas “normais”, mas portadoras de uma “loucura
moral” (RAGO, 1991, p. 160). Esse estigma, imputado pelos grupos dominantes,
mantinham demarcada a fronteira entre o universo masculino e feminino nas zonas de
prostituição.
As fronteiras de gênero não se limitavam ao binarismo feminino/masculino. As
fronteiras da heteronormatividade também eram frequentemente atravessadas. Aqui
encontramos os maiores esforços no sentido de apagamento da memória. Se a zona era um
mal necessário para salvar a honra das filhas e cultivar a masculinidade, porém mantendo
sempre a distância adequada da boa sociedade, o homossexual seria uma ameaça ao cultivo
dessa mesma masculinidade. A manutenção da fronteira entre o masculino e o feminino
aparece na figura do homossexual como uma ameaça.
A maioria dos relatos sobre a Quinze negam a existência de casas específicas e/ou
de homossexuais que se prostituíssem naquela zona. Entretanto, um personagem é lembrado
em todos os relatos, porém como uma figura isolada e estereotipada. Sua sexualidade não
aparece nas memórias, mas, sim, suas qualidades masculinas, “apesar de...”. O Flores foi, por
muito tempo, o gerente e o apresentador dos shows do Cassino Palácio. Segundo relatos, ele
forjava um sotaque espanhol para apresentar com efeito cenográfico os espetáculos da noite.
Era também uma espécie de segurança do Cassino. Ex-sargento é descrito como alto e forte
que mantinha os desordeiros e bêbados afastados, usando, se necessário, a força. Essas
informações podem ser extraídas dos relatos dos entrevistados, conforme abaixo:
Olha, na época o homossexual era uma raridade. E o Flores não era o único; tinha mais
um. Como era o nome dele... mas era de categoria [sinal para baixo]. O Flores, ele era um,
o que melhor se vestia dentre todos os homens. Ganhava até do prefeito, de se trajar,
naqueles trajes brancos de linho, sapato branco, aquelas gravatas bem vistosas […]. Ele
vinha aqui no centro e almoçava, e todo mundo conversava: “Ó, o Flores” e tal e ele fazia
questão de cumprimentar um vereador, cumprimentar um médico, e isso e aquilo. Ele se
dava muito valor, mesmo sendo homossexual. No caso, né, ele se dava muito valor e ele
4 Criminologista positivista italiano do século XIX, cujas ideias tiveram muita influência na Europa e no
Brasil. Associava características físicas aos perfis mentais dos criminosos. Seus estudos também foram
usados para definir as prostitutas, na medida em que estas eram consideradas criminosas.
não andava escondido porque era um escândalo, na época, Deus o livre! Não, ele andava
aberto, e se tornou tão famoso como a própria rua Quinze […]. Ele dava também uma de
policial, assim, porque ele era … “Opa”, o pessoal tinha um medo dele, ele era boxeador,
né? E quando ele via lá, que tinha algum rapaz, alguma coisa, se excedendo na bebida e
querendo pegar meio forçado e a mulher não aceitando tudo, ele chegava: “Vem cá, sai,
sossega e deixa essa mulher” e pá e pá. Quando eles viam que era o Flores, todo mundo
se entregava. (Marcos).
“[...] não satisfeitos com a frequência das meretrizes, mandarem vir elementos da escoria
porto-alegrense, dados ao homossexualismo, para melhor satisfazerem aos apetites dos
enfermos sexuais e tarados de toda a espécie, transformando ditas casas em antros
nauseabundos e infames. Damos, por isso, todo o nosso apoio à medida do sr. Joaquim
Germano Melgaré. [...]. (O Nacional, 04/02/1955, p . 4).
Entendemos que a rua Quinze de Novembro, em Passo Fundo, se mostrou um espaço no
qual diferentes fronteiras eram frequentemente ultrapassadas e/ou confrontadas. Fronteiras sociais,
de gênero, geográficas e culturais. Onde as fronteiras são testadas é também onde elas se reforçam,
no próprio jogo de adaptação e transformação que as mantém. Os estigmas são reafirmados nesse
embate constante entre os estabelecidos e os outsiders que, em última análise, conforma a
permanência dos estigmas em relação aos grupos de menor poder e prestígio social e, neste caso, o
estigma se mantém na atualidade em reação ao próprio espaço geográfico da rua Quinze na cidade.
O Sr. Vitor, sempre morou naquela rua, desde os anos de 1950, sendo que ainda permanece no local,
ao lado do antigo Cassino da Maroca. Sobre a rua nos dias atuais ele diz:
A nossa rua sempre foi assim. Do jeito que vocês viram, sempre foi assim. É uma rua
quase esquecida pelo prefeito. O policiamento de vez em quando passa. Sempre foi uma
rua – não sei se por causa da Zona ou se tem alguma assombração, pesada. Uma rua
pesada. Não que tenha assalto, roubo, mas a gente sente que é uma rua pesada. (Vitor).
MALUF, Marina; MOTT, Lúcia. Recônditos do mundo feminino. In.: NOVAES, Fernando A.;
SEVEVCENKO, Nicolau (Org.). História da vida privada do Brasil. v. 3. São Paulo: Cia das
Letras, 2006.
O NACIONAL, 16 . fev.1955.
ROHRIG, Daniel. Nos embalos do Cassino da Maroca: um pulo de 60 anos no passado para
reviver a época de ouro das noites de Passo Fundo. Passo Fundo: Nexjor - FAC- UPF, 2016.
https://nexjor.atavist.com/nos-embalos-do-cassino-da-maroca. Acesso em 10 de outubro de 2016.
Olha, eu fui começar a trabalhar com patrimônio, utilizar o conceito de patrimônio, a partir
de 2013, quando eu recebi – nós tivemos uma parceria com a professora Mônica, com o
projeto PIBID [Programa Institucional de Bolsa de Iniciação à Docência]. Então, através
deste projeto PIBID, eu entrei em contato com o conceito de patrimônio, e comecei a
pensar em função disso. Mas, antes disso já trabalhava com patrimônio, sem usar o
conceito. Trabalhei… a minha vida toda trabalhei com música popular; especialmente a
história da música popular brasileira: desde o período colonial com batuques, umbigadas
“e tal”, no período do Império com choros, lundus, maxixes, “e tal”, e depois, a história
do samba, no século XX. Enfim, tenho trabalhado bastante isso. (p. 2017).
A partir do relato docente propusemo-nos a investigar o que vem a ser hoje pensar em
função do patrimônio. Assumimos que uma plena apreensão do conceito é indissociável da sua
contemplação histórica, e ainda que muitos dos desafios presentes na Educação Patrimonial
mantêm estreita relação com os conflitos no entorno da sua conceitualização. Diante de
transformações, contradições e disputas políticas de memória buscamos uma definição de
patrimônio que indique “no terreno de hoje, local e posição em que é conservado o velho”
(BENJAMIN, 1987, p. 239).
No tempo presente podemos afirmar que vivenciamos uma expansão dos estudos
patrimoniais, o que por um lado acarreta no aumento das possibilidades de abordagens do tema, e,
por outro, amplifica o seu grau de complexidade. A condição anterior deve-se ao fato de que a
democratização em torno da questão patrimonial implicou no alargamento dos seus usos e
significados. Portanto, entende-se que é preciso estar ciente do processo de democratização da
questão patrimonial para uma abordagem adequada do patrimônio e, ainda, que se faz cada vez
mais necessário demarcar a noção de memória vinculada ao conceito, levando em consideração a
colonialidade característica das definições anteriores.
O conceito de patrimônio é oriundo do pensamento moderno europeu e foi introduzido no
corpo jurídico brasileiro através da organização do Estado nacional. Em conformidade com a
pesquisa de Fonseca (1996), dois modelos de ação patrimonial se consolidaram durante o
século XIX na Europa, os quais variam segundo as concepções de arte e história, e em
especial, de cultura política de cada país. De modo sucinto, estruturou-se o modelo anglo-
saxão fundamentado na visão humanitária da cultura, posteriormente exportado para os
Estados Unidos. Já a tendência patrimonial francesa priorizou o perfil nacionalista
centrado no Estado, concepção que mais tarde foi herdada na América Latina bem como
nas colônias africanas em razão do processo colonizador. Na tradição francesa do século
XIX, o estudo da memória coletiva, no âmbito das relações sociais, preocupava-se, sobretudo,
com a coesão social e o modo como as comunidades, os grupos e as instituições sociais
atuavam no processo de formação das memórias comuns. A origem do conceito memória
coletiva é atribuída a Halbwachs, sociólogo francês da escola durkheimiana, que entendia a
nação como a forma mais coesa de um grupo e a memória nacional como manifestação
mais integrada da memória social.
Do modo como observou Pollak (1989, p. 3), tratava-se de “[...] uma memória
estruturada com suas hierarquias e classificações, uma memória também que, ao definir o que
é comum a um grupo e o que o diferencia dos outros, fundamenta e reforça os sentimentos de
pertencimento e as fronteiras socioculturais”. Com ênfase na força institucional, na duração,
na continuidade e na estabilidade, tal concepção restringiu-se à memória oficial e encobriu de
forma significativa histórias e narrativas divergentes do plano patriótico. Por intermédio dos
projetos nacionais e aliado à tradição da memória coletiva, o patrimônio assumiu a denotação
de propriedade individualizada, visto que oficializava o reconhecimento de uma característica
singular a qual conferia identidade à determinada forma de vida em um lugar histórico
específico. O conceito de patrimônio nacional e a noção de memória coletiva inscreviam-se
numa narrativa do tempo histórico, em que a luz da racionalidade moderna anunciava o fim
da tradição em virtude do progresso.
No Brasil, a discussão do patrimônio no século XIX, e com maior força no século XX,
legitimou a tendência francesa. Segundo indica a pesquisa de Amaral (2012), durante os
primeiros anos de atuação do Serviço do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional
(SEPHAN) foi concedida prioridade aos denominados bens de pedra e cal, compreendidos na
arquitetura civil, religiosa e militar portadora de valores estéticos europeus.2 Até a década de
1960, Fonseca (1996, p. 159) argumenta que predominaram nas instituições de política
cultural as representações dos modos de vida autóctones, afro-brasileiros e camponeses do
ponto de vista etnográfico e folclorizante, sob a perspectiva de que a cultura popular deveria
ser conservada “do mesmo modo como peças de um museu”. Ainda, menciona que a
justificativa dada pelo SEPHAN para a exclusão dessas culturas nas políticas de preservação
ccc
2 Parte dos autores brasileiros defendem que o início das ações patrimoniais brasileiras se iniciam durante o
Estado Novo em 1937, dada a criação do SPHAN, que ao longo da sua trajetória “[...] passa a ser chamado
Departamento do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (DPHAN) de 1946 a 1970; Instituto do Patrimônio
Histórico e Artístico Nacional (IPHAN) de 1970 a 1979, quando é dividido em SPHAN (Secretaria), na condição
de órgão normativo, e na Fundação Nacional Pró-Memória (FNPM), como órgão executivo. Em 1990, ambos são
extintos e dão lugar ao Instituto Brasileiro do Patrimônio Cultural (IBPC) que, em 1994, assume definitivamente
a alcunha de Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (IPHAN)” (PEREIRA, 2016, p. 17).
ocorria “[...] pelo fato de não haver, no Brasil, testemunhos materiais significativos da cultura
desses grupos sociais, e por estarem esses bens em geral, imersos em uma dinâmica de
uso que inviabilizava o tombamento” (FONSECA, 1996, p. 159). Em suma, perdurou
desde os anos 1930 o preconceito com as culturas não modernas e com as tradições
fundadas na oralidade, encaradas genericamente como “testemunhos de um tempo
imemorial, marcado pelo ritmo dos fenômenos naturais” (FONSECA, 1996, p. 160).
Por conseguinte, esse entendimento de patrimônio subsidiou uma Educação Patrimonial
civilizatória ou também colonizadora da memória, na medida em que negava do plano
da História experiências divergentes do projeto nacional. A pesquisa em referência
com recorte no Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (IPHAN) – e,
em particular, na trajetória de Rodrigo Melo Franco de Andrade – mapeou o início de
mudanças significativas no que diz respeito à preservação do patrimônio no Brasil, que se
inicia a partir de 1960 e se estende aos anos autoritários de ditadura-civil-militar
(1964-1985). Na política institucional, essas transformações aparecem testemunhadas
pela criação de órgãos envolvidos com o patrimônio e pelo aumento do número de
tombamentos oriundos de proposições da sociedade civil.3 .
3 Segundo a pesquisadora: “A consideração do conjunto de processos abertos na década de 1970 a 1980 indica
que o sinal mais visível de uma mudança em relação às décadas anteriores, no sentido do envolvimento da
sociedade brasileira com a questão do patrimônio, é um aumento considerável no número de processos abertos
a pedido de pessoas, grupos ou instituições externas ao IPHAN. Não só proprietários de imóveis, como também
prefeituras, Assembleias Legislativas, e até mesmo grupos que se expressam através de abaixo-assinados entram
com pedidos de tombamento federal. Outro traço significativo é a diversidade de bens que são
apresentados para o tombamento.” (FONSECA, 1996, p. 157).
“viva”, sobretudo daquele enraizado no fazer popular como forma de tornar mais
“nacional” e mais “plural” a representação da cultura brasileira. [...] O trabalho realizado
pelo CNRC (integrado, a partir de 1979, à Fundação Nacional Pró-Memória) representou,
sem dúvida, um passo importante no sentido de ampliar a noção de patrimônio cultural no
Brasil [...]. Somente a partir dos anos 80 essa preocupação foi traduzida no discurso oficial
como necessidade de “efetiva participação da comunidade nas decisões e no trato dos
problemas afetos à produção e preservação cultural (FONSECA, 1996, p. 156, grifo meu).
Nos estudos de Pereira e Roza (2012) sobre o uso político e pedagógico da memória, há o
prognóstico de que as ações para incluir grupos marginalizados no currículo escolar resultam, por
ora, de esforços isolados de alguns professores e professoras que se identificam com as causas das
ações afirmativas. No entanto, ressaltam que as agendas dos movimentos sociais pela expansão da
cidadania, com destaque nas pautas antirracistas, têm sido eficientes em pressionar as escolas no
intuito de promoverem uma educação para o bom convívio entre diferenças; e evidente que não
livre de contestações. Desse modo, a escola – essencialmente o ensino de História – constitui-se
como palco privilegiado de disputas pelo dever de memória, cujas pressões não apenas exigem dos
docentes domínio atualizado sobre a disciplina, mas também clareza das proposições políticas
intrínsecas à forma e ao conteúdo.
Com vistas a traçar um panorama da Educação Patrimonial nas escolas públicas de
Florianópolis ouvimos de professores e professoras da rede municipal, estadual e federal como
estão sendo trabalhadas atualmente as questões do patrimônio: quais atividades estão sendo
propostas e de que forma elas aparecem ou não integradas à disciplina de História. Observamos,
conforme anteposto, que em determinados casos subsiste a discussão indireta do patrimônio, tal
qual aponta a narrativa do professor:
Embora num primeiro momento sobressaia o tom de modéstia do professor acerca do seu
domínio sobre os temas questionados (o que pode guardar relação com o contexto no qual esteve
dialogando com um entrevistador vinculado à Educação Patrimonial), noutro tempo da narrativa,
ele nos apresenta com mais elementos a condução do seu trabalho indireto com memória, junto ao
estudo da ditadura civil-militar.
Então, uma das coisas que a gente discute com os alunos, e a gente trabalha, é um pouco
isso. É de que forma que a gente constrói uma história, e traz uma memória deste período
do regime militar no Brasil, que, de alguma forma – não é que nos autoriza, mas, assim,
não nos permite que a gente faça um enfrentamento, de fato, com esse acerto de contas
com os torturadores, que até hoje não foram punidos. Então, assim… com base em uma
interpretação da Lei da Anistia, de 1979, até hoje, o Brasil não fez um acerto de contas,
muito diferente, por exemplo, da Argentina (A., 2017).
Com fundamento na recordação do professor podemos presumir que grande parte da sua
discussão permeia as ações de direito à memória e à história, as quais remontam as pautas dos
movimentos sociais na década de 1980. O que em nossa análise torna essa abordagem da memória
relevante para o ensino é o quanto ela deixa explícito o espaço de disputa política na dimensão
narrativa da história. Portanto, ressaltamos o potencial desta discussão no que se refere a fornecer
um contraponto discursivo à história tradicional, que ancorada na tríade nação, datas
comemorativas e heróis é indiferente aos demais componentes da vida como o trauma, o
silenciamento e as dívidas sociais.
Outros trabalhos promovidos pela professora de História da mesma instituição federal de
ensino têm priorizado a referência direta à memória. Durante a sua entrevista, a educadora expôs
seu programa do estudo da memória dentre as diferentes séries.
[...] a memória é um conceito trabalhado no sexto ano, porque no sexto ano a gente está
falando como que a História é construída. E aí a gente tem uma história que vai ter a cultura
escrita como suporte, mas a gente tem toda uma história que foge do código escrito…
então quando a gente vai falar... No sexto ano, a gente fala primeiro como que era a história
antes de a história existir, assim. E aí, a questão, por exemplo, da oralidade, e da
importância da memória coletiva para um grupo, é fundamental; e a gente acaba falando
disso. [...] No oitavo ano tem um conteúdo que é o conteúdo sobre Roma, que a gente
acaba levando a questão de como que a memória é construída, uma memória sobre o
passado, e a diferença entre memória e história. E aí a gente pega bastante a questão da
construção de um passado [...] A construção de um passado mitológico, e como esse
passado mitológico é importante para afirmar o império, por exemplo… a memória do
que vai vir, lá no mito (C., 2017).
Em certa medida, podemos afirmar que a proposta da professora estabelece relação com a
metodologia de trabalho que aqui também empregamos, quando observamos que ambas procuram
demarcar como a memória serve de instrumento para construção da narrativa da história e contém
potencial para legitimar/deslegitimar organizações políticas e modos de viver. Não diretamente
vinculada à memória, as questões patrimoniais ainda podem ser trabalhadas intrínsecas ao estudo
da cultura, do modo como apareceu no primeiro relato trazido ao texto – sobre a música popular de
choros, lundus, maxixes – e da maneira como foi contemplado pela professora:
[...] questão do patrimônio negro, aqui em Florianópolis, não trabalho, Elison; nunca
trabalhei, assim. Mas, sim com Brasil, a questão de que… o que é a cultura brasileira.
Então, eu acabo falando, inclusive, da questão de que, porque não se conhece África e
porque, agora, a gente está começando a estudar um pouquinho, um pouquinho mais a
importância de se estudar isso. A gente problematiza isso a partir da questão brasileira,
sim [...]. Assim, faz muita falta para a gente até formação. A gente não tem formação
continuada acessível. Por exemplo, o que eu te falei: eu me formei em um curso de história
que negou história indígena e negou história de África e de afrodescendentes. Eu preciso
disso. E eu só consigo estudar isso porque eu trabalho em um Colégio de Aplicação;
estudar por minha conta porque eu trabalho em um Colégio de Aplicação. É muito difícil
chegar essa formação pra gente (C., 2017).
A História Local é uma coisa que também eu negligenciei por muito tempo. A partir desse
projeto PIBID é que eu comecei, também, a ter essa… a trazer essa História Local. Porque
era um conteúdo que ficava sempre para o final. [...] Só que nunca dava tempo de chegar
naquele ponto. Então, foi a partir desse projeto PIBID também que eu comecei a trabalhar
de forma mais intensa, a dar uma atenção mais especial para a História Local. (p. 2017).
Tendemos a perceber que esse esquecimento da experiência local, como uma imagem
verdadeira daquele que se recorda, transparece a dificuldade de se situar adequadamente na
narrativa da história; como se protagonismo não fosse concebível. Nesse aspecto, relevamos o
modo como a aproximação da escola com a universidade em torno da Educação Patrimonial pode
gerar benefícios recíprocos a partir da correspondência entre essas duas lógicas de produção de
conhecimento distintas. Hoje, os trabalhos do campo de Educação Patrimonial da Universidade
Federal de Santa Catarina têm se dedicado a pensar a História Local no intuito de superar
10 Quando dialoga com o poeta Baudelaire, Benjamin (1994) explicita como a modernidade capitalista apaga as
memórias e as experiências. Para fugir das ruínas em que a modernidade capitalista se assenta, o filósofo nos
propõe que descubramos o sentido da vida por meio da rememoração [Eingedenken]. A (re)memória é, então, um
entrecruzamento de tempos, espaços e vozes. Na rememoração, amplia-se a possibilidade da experiência vivida.
Para o autor com ascendência judaica, os mortos, os esquecidos, os que foram apagados da história, são
redimidos quando alguém os traz à tona.
abordagens comuns ao currículo de História. No que se refere a tais colaborações entre escolas
públicas, universidade e comunidade, surgiram melhorias em certos aspectos:
Bom… A gente teve um ganho interessante nessa… Assim, elas chegam na aula de
História quando a gente trabalha o ensino de História local. Mas, ela teve um ganho
interessante, essas propostas de patrimônio justamente com o – você tinha citado o PIBID,
antes, “né”? – coma troca que a gente teve com o PIBID, por exemplo. Porque a gente, aí,
teve outras pessoas envolvidas trabalhando junto. [...] E, apesar de eu pegar o ano final do
projeto, deu para sentir como aquilo teve um ganho interessante. Por que? Porque a gente
produzia material didático; eles produziam material didático, principalmente os alunos
bolsistas – entrevistas, [...] que tiveram um ganho interessante, de pensar patrimônio do
Ribeirão da Ilha. Então, acho que esse foi um momento forte de inflexão, da questão de
patrimônio (Z., p. 2017).
Neste trabalho considerou-se que a realização de pesquisas sobre memória na relação com
o ensino de História aprofunda as discussões e práticas de Educação Patrimonial. Trabalhamos no
sentido de traçar um panorama das escolas públicas em Florianópolis e mapear as mudanças
qualitativas para a educação a partir da iniciativa dos professores em estabelecer um diálogo entre
universidade, comunidade e escola. A despeito de não haver um pleno domínio dos pressupostos
teórico-metodológicos sobre o patrimônio, é notável a atuação dos professores e estudantes nas
escolas no que diz respeito ao desenvolvimento de práticas que dialogam com esse campo.
Entendemos que uma lente decolonial sobre o patrimônio possibilita superar a ordem cronológica
linear, e junto do rememorar é possível dar visibilidade à subsistência do passado no presente. Ao
concebermos memória como rememoração, nos posicionamos para que o ensino da História Local
dialogue com as experiências vividas da comunidade e subsidie a educação sensível do olhar de
todos os atores envolvidos. Não basta reconhecermos que muitas culturas foram subtraídas ou
soterradas, como diz a analogia de Benjamin (1987), sem antes admitir que elas se relacionam com
o saber científico na sua complementaridade. Construindo conhecimento receptivo às formas
subalternas de ler o mundo, a universidade ao lado dos movimentos sociais pode contribuir para
uma revisão conceitual. Mas são nas práticas de Educação Patrimonial – e aqui destacamos as ações
nas escolas públicas – que encontramos uma devolutiva acerca do potencial que esses debates têm
sobre as formas de pensar e de agir sobre o mundo.
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A ponte liga, conecta, alia, associa, une, vincula e relaciona, servindo para aproximar,
acessar, desobstruir e/ou desviar. Propicia passagem sobre obstáculos, serve para beneficiar ou
combater uma sociedade e liga as pessoas ou as distancia, dependendo dos seus objetivos. Pode-se
aproximar povos ou dominá-los a partir da apropriação do trajeto, estabelecendo tributos, pedágios
e impostos.
Pontes existem desde de que o homem se deu conta da sua capacidade de construir e facilitar
sua vida. A ponte também tem relação com a comunicação, pois de uma forma latu sensu, a palavra,
nada mais é do que uma ponte que liga o emissor ao receptor.
O estreitamento fronteiriço entre dois países pode se dar através de uma ponte, demarcando
a fronteira, mas também tornando-a mais acessível.
A Ponte Internacional da Amizade é um importante patrimônio na região fronteiriça Brasil-
Paraguai, compreendida como algo que une, diminui barreiras, facilita o acesso, aumenta o trânsito,
facilita migrações, intensifica o comércio, atrai o ilícito e oculta inúmeras outras práticas, ou seja,
uma intensa vida com milhares de pessoas que frequentemente fazem o seu uso. Demarcando a
fronteira entre Brasil e Paraguai, une e distancia em muitos contextos. Representa uma complexa
rede de interesses políticos, econômicos, sociais e culturais. Ou seja, o traço da união, ligando povos
e culturas também liga contradições e multiplicidades de memórias e significados em torno desta
obra.
A pesquisa, ainda insipiente, é um estudo sobre a construção das memórias em torno da
Ponte Internacional da Amizade, inaugurada em 1965 na fronteira entre as Ciudad Del Leste,
Paraguai e Foz do Iguaçu, Brasil. Propõe-se estudar como a ponte foi compreendida pelos
moradores foziguaçuenses que faziam a travessia da fronteira Brasil e Paraguai, antes da construção
da ponte, e os impactos dessa prática após sua construção, buscando analisar quais foram os
mecanismos e dinâmicas afetados ou facilitados e como estas vêm formando as suas memórias.
Para tanto, estudamos não só as memórias desses moradores, mas também, como a memória
institucionalizada sobre a ponte se apresenta e apresentou e como vem sendo construída na cidade.
A partir da perspectiva teórica da História Cultural procura-se compreendê-la sob um
enfoque que vai além do dito ou escrito nas fontes ditas “oficiais”.
Pode-se olhar a Ponte Internacional da Amizade como um patrimônio, ou seja, uma herança
do passado, estabelecida nas fronteiras Brasil-Paraguai, contribuindo para a formação de uma
identidade local. Conforme Klauck e Skekut (2012), a cidade de Foz do Iguaçu, por exemplo, é
marcada pela ideia de diversidade de grupos, sendo construído um discurso do multiculturalismo.
E, da mesma forma, a Ponte da Amizade forjou um discurso de união, também utilizada para a
construção da identidade local; de certa forma, encena um passado no presente (CANDAU, 2016).
Quantas lembranças e significados existem sobre esse patrimônio? Memória dos que
construíram, dos que vivenciaram a construção da ponte e/ou vivem cotidianamente o seu entorno,
memórias essas muitas vezes silenciadas, pouco valorizadas ou escondidas nos discursos e
narrativas oficiais.
E quais são as memórias e significados construídos pelos grupos populacionais que se
estabeleceram nesse espaço e que fazem o constante uso, a exemplo de taxistas, mototaxistas,
transportadores, trabalhadores, estudantes, contrabandistas, consumidores entre outros sujeitos que
protagonizam ou vivenciam esse espaço.
A Ponte da Amizade não tem somente uma história, tem várias, e pode ser contada de
diferentes formas e maneiras. Pode-se contar uma história do ponto de vista paraguaio, do ponto de
vista do brasileiro ou do ponto de vista de quem se sentiu mais vigiado, ou mais distante dos amigos,
após sua construção. E, procurando andar na contramarcha de uma história oficial, entendida como
uma versão autorizada dos acontecimentos, propõe-se construir uma outra história, dando
visibilidade e audibilidade àqueles que protagonizam outras memórias (FENELON, 2004, p. 5-13).
Geograficamente, o Brasil com a extensão territorial de 8.515.767 km2 (IBGE, 2015),
quinto maior país do mundo e o maior da América do Sul, faz fronteira com dez países, compondo
nove tríplices fronteiras. Com o Paraguai possui 1.339 quilômetros de fronteira, compondo entre as
cidades de Foz do Iguaçu (Brasil), Ciudad del Este (Paraguai) e Puerto Iguazú (Argentina); a tríplice
fronteira com o maior contingente populacional das fronteiras sul-americanas.
E, do ponto de vista político, pode-se dizer que a ponte se tornou um símbolo da geopolítica
brasileira e paraguaia a partir das décadas de 1950, pois a obra materializou as intenções políticas,
econômicas, sociais e culturais do Brasil e Paraguai.
Vale ressaltar que a cidade de Foz do Iguaçu1 faz fronteira também com a Argentina,
por isso a preocupação do Brasil, desde 1888, em estabelecer certa “vigilância”, no caso,
através da colônia militar e políticas de ocupação, garantindo a integridade do território
brasileiro. As políticas, mais efetivas de ocupação no Oeste Paranaense, iniciaram na década
de 1930 estabelecendo um contingente populacional que servisse aos propósitos
relacionados à Segurança Nacional e estabelecimentos de fronteiras, adotadas no governo
de Getúlio Vargas.
Além disso, havia grande interesse em aumentar as relações com os países
fronteiriços, em especial com o Paraguai. E com a ascensão de Stroessner, o Brasil
percebeu uma excelente oportunidade de ampliar a influência no país vizinho a partir da
expansão territorial, a chamada “marcha para o oeste”, investindo capital brasileiro além
de se beneficiar com os inúmeros incentivos fiscais proporcionados pelo Paraguai (LAINO,
1979, p. 8).
Para o governo paraguaio, principalmente a partir da década de 1950 com a ascensão
do general Stroessner, via golpe de Estado, e a consolidação de novas diretrizes do Estado em
relação aos seus vizinhos no Cone Sul, em particular ao Brasil, a ligação fronteiriça sobre o
rio Paraná tornou-se fundamental, pois representava uma nova rota de comércio exterior e
uma possibilidade de se tornar independente do Porto de Buenos Aires, Argentina. Para
isso, aproveitando a boa relação com o Brasil e o recíproco interesse, solicitou a construção
de uma ponte entre o Rio Paraná que ligasse os países. O pedido foi acatado pelo governo
brasileiro concordando em assumir todos os encargos de tal obra (MORAES, 2000, p. 96-97).
Para compreender a política adotada pelo Paraguai, depois da década de 1950, é
necessário conhecer de maneira mais profunda o homem/personagem responsável por estreitar
a relação com o Brasil, a frente do jogo político estabelecido nesse período, ou seja, o general
Alfredo Stroessner. Considerando ser impossível compreender a totalidade do processo
histórico partindo de um indivíduo isolado, vamos estudá-lo no sentido de compreendê-lo
“[...] dentro da sociedade de acordo com a sua gênese e o seu caráter social [...]” (SCHAFF,
1967, p. 54).
Apelidado de “El Supremo”, Alfredo Stroessner, de descendência alemã, nasceu e
cresceu em Encarnación no Paraguai. No ano de 1929 entrou na Escola Militar, participou da
Guerra do Chaco (1932-1935), fez curso de artilharia no Brasil, dedicando-se à carreira militar
no Paraguai. Participou da guerra civil de 1947 e de dois golpes de Estado em 1948, foi
perseguido e perseguiu, assumiu cargos importantes aumentando a influência política,
respeito entre os militares e visibilidade internacional nos EUA, Argentina e Brasil.
Filiado ao Partido Colorado, aproveitou a grave crise política no qual passava o país e,
no dia 5 de maio de 1954, Stroessner, com o apoio dos militares, deu o golpe de Estado,
assumindo a presidência da República no dia 15 de agosto. O Estado foi organizado para
que as forças de segurança e a burocracia trabalhassem e servissem aos seus interesses e
propósitos ditatoriais.
1 Foz do Iguaçu passou a ser chamada, assim, a partir de 1918. O município foi elevado à essa condição em 1914,
pela lei nº 1383, quando foi criada a Vila Iguaçu.
Internamente, a ditadura de Stroessner (1954-1989) iniciou e se manteve baseada no medo,
instaurando várias práticas repressivas, conforme discorre Laino (1979, p. 87-89) e mesmo
Chiavenato (1980, p. 65-66). A primeira fase iniciada em 1958 eliminou companheiros do próprio
Partido Colorado com o objetivo de permanecer no poder, instituindo práticas de assassinatos,
torturas e perseguições sob a justificativa de um combate comunista, pelo menos assim era vendido
para a comunidade internacional.
Além da forte repressão, também se estabeleceu o chamado pyrague ou soplón, que
significava o “dedo duro”, gerando um ambiente ainda mais apreensivo com a vigilância anônima,
ficando a mercê de qualquer um ser chamado a investigaciones e submeter-se às usuais torturas. O
aparelho da repressão estava nas estruturas públicas, mantendo inclusive a oposição vigiada, até
cercá-los, isolá-los e destituí-los (CHIAVENATO, 1980, p. 14).
A corrupção paraguaia também se institucionalizou tornando-se a base de sustentação do
sistema ditatorial. O mecanismo de controle permitia a assinatura de decretos para beneficiar
amigos e familiares, a exemplo do enriquecimento de Stroessner e sua família através do monopólio
dos jogos (do jogo do bicho aos cassinos) e do general Andrés Rodriguez, que controlava o tráfico
de drogas (CHIAVENATO, 1980, p. 40-41).
Essa aproximação com os brasileiros iniciou com Getúlio Vargas em 1941, assinando dez
acordos de natureza comercial, cultural e econômica (MENEZES, 1987, p. 43) e se intensificou
com Juscelino Kubitschek, presidente do Brasil, entre 1956-1961, ao materializar as intenções do
Paraguai ter uma saída em direção a leste, assinando o acordo de construção da Ponte da Amizade
em 1956, além disso, “[...] A relação pessoal entre os dois presidentes foi muito boa. Stroessner
elogiava Juscelino por seu pan-americanismo e cooperação, assim também como o “grande nome
da união Paraguaia-Brasileira” (MENEZES, 1987, p. 44, grifo meu).
Em 1956, o presidente brasileiro Juscelino Kubitschek e o presidente do Paraguai General
Alfredo Stroessner assinaram o acordo e no dia 06 de outubro do mesmo ano, em um ato simbólico,
se encontraram no lugar onde seria construída a ponte, chancelando o projeto que se tornou de
importância fundamental para ambos os países, marcando a história das relações Brasil-Paraguai
“o telegrama de Stroessner para Juscelino dizia que os acontecimentos do dia 06 de outubro era a
melhor prova da união americana sonhada por Bolívar. A resposta de Juscelino dizia que os novos
fatos, incluindo aquela ponte, representavam o ideal da união americana e da parceria entre
brasileiros e paraguaios” (MENEZES, 1987, p. 53).
Os aspectos econômicos e políticos empurraram o Paraguai para o estreitamento da relação
com o Brasil, que também estava indo ao encontro dos interesses paraguaios, pois havia um
empenho de conquistar novos mercados para os seus produtos, principalmente de industrializados.
Para manter a relação, o Brasil apoiou fortemente a ditadura de Stroessner, inclusive ignorando sua
existência.
No dia 27 de março de 1965 foi inaugurada a Ponte Internacional da Amizade pelos
respectivos presidentes Castelo Branco e Alfredo Stroessner. Segue abaixo, uma descrição da ponte
elaborada pela Agência Nacional em 1965, demonstrando um discurso conciliador entre os dois
países e, ao mesmo tempo, ufanista e enaltecedor do Brasil.
[...] que uma das principais conclusões dos congressistas foi justamente a de que é preciso
esquecer o conceito tradicional de que o museu serve, apenas, para perpetuar os valores
ligados à preservação da herança cultural e natural do homem, pois no mundo
contemporâneo os museus têm, cada vez mais, um importante papel educativo.
(CARRAZZONI, 2001, p.122).
Sendo assim, os museus são instituições de seu tempo e constituídas e mantidas com
objetivos distintos. E, portanto, o Preserve/FE absorveu algumas das concepções da nova
museologia, sobretudo os assuntos que concernem à implantação de serviços educativos. Com isso,
este artigo tem o intuito de investigar os discursos construídos por meio da Educação Patrimonial
promovida pelo programa preservacionista do governo federal e, para atingir os objetivos foram
acolhidos depoimentos de pessoas que conheceram o trabalho de difusão da história ferroviária no
Centro de Preservação da História Ferroviária do Rio Grande do Sul. Então, por meio de
entrevistas, foi possível constituir os subsídios para o estudo a partir de diferentes olhares sobre o
mesmo assunto. Sendo assim, para cumprir a proposta utilizou-se como embasamento teórico e
metodológico, a História Cultural, juntamente com História Oral e, desse modo, a pesquisa se
concentrou em dois focos: a pesquisa documental e as fontes testemunhais produzidas
especialmente para o estudo de caso. Tendo em vista que “documento algum é neutro, e sempre
carrega consigo a opinião das pessoas e/ou do órgão que o escreveu” (BACELLAR, 2005, p. 63),
buscou-se analisar as fontes como produções humanas e conforme Bacellar (2005), “[...] ser
9 Coordenadora do projeto Preserve/FE.
historiador exige que se desconfie das fontes, das intenções de quem as produziu, [...]”.
(BACELLAR, 2005, p. 64). Dessa maneira, procurou-se examinar tanto as fontes documentais
como as fontes testemunhais, de forma crítica e com a correta contextualização das mesmas. Para
utilizar as fontes testemunhais, adotamos a sugestão de Meneses (1992) que propõe não somente o
estudo do conteúdo (as representações) sob o ponto de vista da crítica da ideologia, mas também
das estruturas e dos processos a ele articulados. No entanto, para estudar as estruturas e os processos
articulados foi utilizada a definição de representação proposta por Chartier (1990). Segundo o autor
mencionado, pode-se ter um duplo entendimento das representações: tanto ela pode tornar presente
o ausente; quanto pode dar-se por intermédio dos modos de exibição da própria presença, pois a
representação “[...] está associada a um certo modo de ‘ver as coisas’, de dá-las a ver, de refigurá-
las”. (BARROS, 2011, p. 48). Por isso, “as representações são variáveis segundo as disposições dos
grupos ou classes sociais; aspiram à universalidade, mas são sempre determinadas pelos interesses
dos grupos que as forjam”. (CHARTIER, 1990, p. 17).
10 As árvores foram plantadas pelas crianças de várias escolas do município de São Leopoldo,
juntamente com o Secretário de Obras e Viação Paulo Koch, Profº Telmo Lauro Müller, além de outras
autoridades.
A entrevistada também recordou que, durante o período do mês de outubro, os funcionários
do museu fizeram muitas atividades com crianças. Quando indagada sobre a participação da
comunidade, a entrevistada comentou sobre a Associação dos Amigos do Museu do Trem.
Conforme relato, a comunidade participava, por intermédio dela, de projetos alusivos a datas
comemorativas, já citadas anteriormente. Também relatou que sempre foi feito um trabalho
integrado entre a instituição e a comunicação social, porém, no período Collor, as atividades
culturais foram desprestigiadas por falta de recursos financeiros destinados para as áreas, e os
museus ferroviários foram repassados para as prefeituras municipais. Segundo a jornalista da
RFFSA, foi nesse momento que a comunicação social perdeu a ingerência junto ao Museu.
O segundo entrevistado foi um morador de São Leopoldo que fez trabalhos voluntários no
Centro de Preservação da História Ferroviária do Rio Grande do Sul. Conforme o seu depoimento,
o objetivo da instituição era reconstituir um pouco da história da ferrovia e a memória ferroviária
do Estado do Rio Grande do Sul. Acredita que a ideia principal do espaço museológico foi mostrar
o tipo de material usado para construir uma ferrovia, e tudo que era usado na estação em épocas
anteriores. Com relação ao trabalho de Educação Patrimonial, relembrou que houve o interesse em
inserir a comunidade ao interligar a história da ferrovia com a história da imigração alemã, pois a
estação ferroviária de São Leopoldo foi a primeira estação ferroviária gaúcha a ser inaugurada, e a
estrada de ferro foi extremamente importante para o desenvolvimento de toda a riqueza da região.
Já o terceiro depoimento deixou mais evidente o papel educativo que o museu pretendia
exercer. A funcionária da RFFSA que trabalhou por vários anos no Centro de Preservação da
História Ferroviária do Rio Grande do Sul, fazendo o trabalho de recepção do público, respondeu
várias perguntas por e-mail sobre o assunto. Conforme a fonte testemunhal, as visitas guiadas
tinham como escopo passar para o público a ideia da importância da ferrovia na construção do país.
A entrevistada recordou que, durante os finais de semana, havia um público diversificado, enquanto
que durante a semana recebiam mais escolares. Relembrou que existiam projetos para atender
escolares nos vagões em frente ao depósito, onde eram organizadas exposições temporárias. Ela
também lembrou que existiam três pessoas para atender as várias escolas que vinham durante a
semana; que uma ficava dentro da exposição permanente, outra conduzia as turmas ao longo do
pátio, explicando o funcionamento de cada objeto, e a museóloga que contava a história da ferrovia
dentro dos carros de passageiros. Com relação à inserção da comunidade, relatou que algumas
histórias eram contadas por grupos de pessoas que moravam no entorno da estação quando crianças.
Segundo a funcionária, os visitantes elogiavam tanto o trabalho de recepção, como a
exposição e os objetos distribuídos. Quando foi questionada a respeito dos objetos que mais
chamavam a atenção na exposição de longa duração, pela ordem de preferência do público em
geral, ela listou da seguinte forma: miniatura de locomotiva a vapor, miniatura de locomotiva,
escafandro, galo de ouro, maquete de ponte, máquina fotográfica, telefone, telégrafo, sinos e farol
farroupilha. Diante desses dados, buscou-se averiguar como o público selecionava os objetos mais
apreciados. E, para obter informações sobre o assunto, foram feitas perguntas para a ex-funcionária
da instituição, propondo dois grupos de visitantes (escolares e ferroviários), com o intuito de
caracterizar melhor o seu perfil. A partir das respostas concluiu-se que entre os objetos preferidos
pelos ferroviários sobressaíram-se aqueles que faziam parte do seu cotidiano, pois destacavam “[...]
as lembranças dos eventos e das experiências que dizem respeito à maioria de seus membros e que
resultam de sua própria vida [...]”. (HALBWACHS, 2006, p. 51). Nesse sentido, para os ex-
funcionários da ferrovia, os objetos em exposição tinham um sentido de rememoração e não de
espetacularização como no grupo de escolares. Portanto, Chartier (1990) já sugeria em suas obras,
que há diferentes apropriações do público que são “[...] socialmente determinadas de maneiras
desiguais, segundo costumes, classes, inquietações: diferenças também dependentes de princípios
de organização e diferenciação socialmente compartilhados”. (CARVALHO, 2005, p. 157).
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No que diz respeito à esfera pública, implica a restrição, tanto a qualquer tipo de controle
coercitivo da natalidade quanto a qualquer tipo de imposição natalista que implique a
proibição de uso de métodos contraceptivos. No mundo privado, respeitar os direitos
[...] seja como conquista de uma luta feminista (o caso da França), seja como objetivo das
políticas demográficas (o caso do Brasil) – indicam a existência de inúmeras contradições
nesse processo. Destaca-se entre estas, os limites da livre escolha marcados: pelas
contradições de classe, raça/etnia; pelos impactos da utilização de métodos contraceptivos
pesados, como a esterilização feminina no Brasil; pelos danos que os métodos
contraceptivos, sem acompanhamento médico, podem causar à saúde das mulheres; pelas
desigualdades sociais relacionadas com o uso dos métodos contraceptivos (SCAVONE,
2001, p. 51-52).
Joana Pedro (2010), em seu artigo “A trajetória da pílula anticoncepcional no Brasil (1960-
1980)”, afirmou que o destino dos contraceptivos era diminuir as numerosas famílias pobres sob
um recorte racial. Contudo, as mulheres das camadas médias “apresentaram uma vertiginosa queda
na fecundidade e mudaram sensivelmente as relações de gênero” (PEDRO, 2010, p. 141). O medo
de uma explosão populacional que se via na mídia até os anos de 1980 era “uma preocupação
eminentemente racista. A questão é o crescimento da população não-branca” e pobre. (PEDRO,
2010, p. 142).
Malthus propunha que as pessoas se abstivessem das relações sexuais. Já os
neomalthusianos, no final do século XIX, propuseram métodos que separavam a sexualidade da
procriação. Responsabilizando os pobres por sua própria pobreza, surgiram as ligas
neomalthusianas, muitas comandadas por mulheres que trabalhavam na área da saúde. Dentre os
argumentos para defender o uso dos contraceptivos estavam: “[...] capacidade dos contraceptivos
de proporcionar a felicidade do casal, e, especialmente, na possibilidade de melhoria da qualidade
da raça, redução dos gastos com assistência social e, consequentemente, com impostos”. (PEDRO,
2010, p. 143).
Nos Estados Unidos, a pílula foi liberada para comercialização em 1960, e, no Brasil em
1962. “Em 1970, no Brasil, foram vendidas 6,8 milhões de cartelas de pílulas anticoncepcionais e,
em 1980, este número subiu para 40,9 milhões.” (PEDRO, 2010, p. 146). Para Pedro (2010, p. 147),
“o investimento no controle da natalidade, no Brasil e nos demais países da América Latina, teve
relação direta com a Revolução Cubana de 1959”. Os governantes capitalistas acreditavam que o
crescimento da população latino-americana poderia servir de aliado à revolução comunista. Já na
Europa, “a quantidade de mortos da Segunda Guerra Mundial, da mesma forma como ocorrera na
Primeira Guerra, provocava a adoção de políticas públicas fortemente natalistas”.
Ao invés de uma revolução comunista como alardeavam, o Brasil viveu a ditadura militar.
De um lado, estavam os antinatalistas, e, do outro, os anticontrolistas, os quais “[...] com a teoria
geopolítica de “ocupação de espaços vazios”, encontravam entre os militares nacionalistas fortes
aliados. Estes argumentavam que a soberania nacional dependia da presença de brasileiros em todas
as regiões do País”. (PEDRO, 2010, p. 149).
Diferentemente do modo como ocorreu na Inglaterra e na França, onde os movimentos
feministas lutaram por informações e gratuidade dos métodos anticonceptivos para todas, no Brasil
não houve luta coletiva. O acesso aos métodos não foi “[...] resultado de reivindicação, luta coletiva,
e, portanto, não poderia estar na memória das mulheres como tendo forte significado para a
autonomia do conjunto das mulheres”. (PEDRO, 2010, p. 154).
As fontes deste artigo foram elaboradas a partir da História Oral Temática (MEIHY;
HOLANDA, 2007). Essa modalidade possibilita que o diálogo gire em torno de um tema, utilizando
um roteiro flexível de questionamentos. Para a pesquisa de Mestrado, foram construídas doze
entrevistas, sendo dez com parteiras que atuaram a domicílio na zona rural e urbana e hospitais da
região sul do Rio Grande do Sul; uma com um médico e outra com uma auxiliar de Enfermagem.
Contudo, neste artigo se utilizam oito entrevistas das parteiras: Cecília dos Santos, Dalva Luçardo,
Erci Maria da Rosa, Eulália Sória, Hilda Macedo, Maria Basilícia Soares, Teresa Machado e Vera
Maria Venske da Silva.
As narrativas foram realizadas e cedidas nas residências das narradoras, entre os anos de
2012 e 2015, e versam sobre os saberes e as transformações do ofício de parteira e as relações de
gênero que se estabeleciam entre as parteiras e as comunidades que atendiam. A riqueza destas
fontes, além do seu ineditismo, pois, nenhuma das entrevistadas havia cedido um relato
anteriormente, deve-se ao fato de que existem poucos documentos sobre a assistência informal aos
partos e a saúde da mulher nesta região do Estado.
As narradoras desta pesquisa compreendem que os métodos contraceptivos não devem ser
incumbências só da mulher. Teresa (2015), contou que muitas parturientes reclamavam que não
conseguiam comprar ou ir ao Posto de Saúde para adquirir um anticoncepcional por morarem em
zonas rurais, por falta de dinheiro, e até por vergonha, e enfatizou o fato da maioria dos maridos se
recusar a usar preservativos. Há uma resistência dos homens com relação aos contraceptivos
masculinos e um desinteresse da ciência em desenvolvê-los ou divulgar os estudos já realizados
(SCAVONE, 1985).
Ondina Leal (1994, p. 132), pesquisando no RS, indicou que a lógica de preparo dos chás
abortivos é a mesma para os chás que evitam a gravidez, não havendo uma distinção entre aborto e
contracepção. “[...] a própria noção de prevenção não se faz presente no domínio da reprodução:
pode-se desfazer apenas aquilo que está feito. O sangue que conforma o feto é o sangue que, não
tendo ocorrido fecundação, seria fluido menstrual.”
Teresa (2015) para referir-se aos abortos chamou-os de “descontos”. Contou sobre os
abortos, possivelmente espontâneos, de sua mãe.
A minha mãe tinha muitos filhos. Ela ganhava de dois em dois anos um, de dois em dois
anos outro. Ela teve nove filhos! Nove que nasceram; fora os descontos. Que assim, às
vezes estava num trabalho pesado. [...] Ela perdeu [...] no início da gravidez com dois
meses por aí, três meses. [...] Por causa do trabalho, as panelas muito grandes, ela era
cozinheira [...].
Não nasceu com tempo, fora de tempo; dois descontos. Uma guriazinha que nasceu de um
ataque de nervos que me deu. Me deu o ataque e dali três dias na criança. Me deu um
ataque de nervos de ver um irmão esguelhando a mulher. E eu comecei a gritar, gritar e
me botei nele. Ainda lutei um pouco com ele. [...] Com oito meses, quase nove. E ela
botou uma perninha pra fora; o corpo já estava morto. Depois que deu aquela agitação
botou a perna pra fora, mas morreu. Aí eu mandei chamar uma vizinha do lado e disse:
‘Dê uma olhada aqui pra mim vizinha, o nenê botou a perna pra fora’. E eu sentia uma
coisa que parecia que pulava. E o outro que eu perdi era pouquinho tempo. Estava na horta
capinando, senti o sangue correndo na perna. Fui olhar e sabia já que ali não tinha mais.
Tinha uns três, quatro meses por aí.
Chama-se a atenção para a diferença entre o aborto do feto que carregava há quase nove
meses e o que ela gestou por pouco tempo. O primeiro, o feto tinha uma “perninha” que colocou
para fora do seu corpo e ele próprio tinha um “corpo” que estava “morto”; era em suas palavras,
um “nenê”. O outro feto, de poucos meses, se desfez, como ela disse: “ali não tinha mais, quando
o sangue escorreu pela perna.” Há uma oposição entre o feto que possui um corpo sólido e o feto
líquido. Poderia se dizer que este é, nesse sentido, mais sangue que gente. Além disso, é notável
que tanto esse último aborto quanto os de sua mãe, gestações de poucos meses, são justificados em
razão do trabalho. Teresa estava capinando e sua mãe carregando pesadas panelas (TERESA, 2015).
As parteiras entrevistadas confirmaram que os chás são um recurso abortivo. Entretanto,
disseram desconhecer quais têm essa indicação e como devem ser preparados e ingeridos, apesar
de muitos deles terem seus efeitos conhecidos popularmente. Leal (1994) dissertou sobre o tema:
O uso destas poções não restringe-se ao uso oral, talvez por isto sejam chamadas de
chapueradas e não de chá. Neste caso, de uso não tão difundido, são usadas como ducha
ou intravaginalmente, associadas com outros procedimentos abortivos. As chapueradas,
que são uma combinação de diversas ervas, erva-de-passarinho, canela, folha de
bergamoteira, ou fervura de vinho, caldo-de-feijão e cachaça—as receitas e os
procedimentos variam em diferentes regiões — têm em comum o fato de que são
ministrados quentes (fervendo), associados a alimentos fortes e medicamentos, também
classificados como fortes, comprados em farmácia. Os medicamentos empregados são
aspirinas ou similares, ingeridos em grande quantidade, ou uma cartela inteira de
contraceptivos orais, ou ainda, Cytotec (medicação para úlcera de verificada eficácia
abortiva) ou outras medicações para o coração. Quanto mais restrita for a venda da
medicação, e quanto mais difícil de consegui-la, mais identificado como forte ele será, e
isto torna-se também uma medida da eficácia do preparado a ser ingerido. (LEAL, 1994,
p. 133, grifo meu).
O fato de ingerir ervas, nem sempre é compreendido como aborto, ainda mais, se for
realizado no princípio da gestação. O aborto, propriamente dito, inclui a intervenção de outra
pessoa, médico/a, parteira ou um/a “especialista” em abortos (SCAVONE, 1985).
Michelle Perrot (2008, p. 70) explicou que até os séculos XVIII e XIX “a morte de uma
criança era considerada uma fatalidade. O bebê ainda não é uma pessoa. O que não quer dizer que
a mãe não sofra com sua morte.” Essa concepção que torna o infanticídio um crime é recente: “[...]
a própria visão do feto, que outrora não tinha nenhuma existência, pela ecografia, torna ainda mais
dolorosa a decisão do aborto.”
Até a Primeira Guerra Mundial, quando começaram as campanhas natalistas na Europa, em
decorrência do grande número de mortos, o aborto era mais tolerado.
O recurso do aborto era muito mais tolerado, pois o feto não representava nada. Parteiras,
curandeiros, médicos clandestinos, prestavam-se a tal prática, mas o faziam às ocultas e
em condições sanitárias quase sempre deploráveis, ligadas à clandestinidade. Era
praticado não somente por mulheres que não eram casadas, mas também por mães de
famílias multíparas que viam no aborto o único meio de limitar o tamanho de uma família
que elas consideravam já suficientemente numerosa. [...] Após a hecatombe da Primeira
Guerra Mundial, as leis de 1920 e 1923 reforçam uma repressão que visa não somente
coibir o aborto, mas também a propaganda anticoncepcional, que tem muita dificuldade
em se fazer ouvir. (PERROT, 2008, p. 71)
“O Segundo Sexo” de Simone de Beauvoir é uma obra que no pós Segunda Guerra Mundial
questionou a maternidade, abordando temas como o aborto e a liberdade sexual. Em sua visão,
poucos assuntos demonstraram tanta hipocrisia da sociedade burguesa quanto o aborto. Abordou a
postura contraditória dos conservadores que tanto falam contra o aborto, mas nada fazem diante a
condição de crianças, quando os pais não conseguem as alimentar e/ou que se tornam vítimas de
um sistema assistencialista falho.
A maternidade forçada leva a deitar no mundo crianças doentias, que os pais serão
incapazes de alimentar, que se tornarão vítimas da Assistência Pública, ou crianças
mártires. Cabe observar, ademais, que a sociedade tão encarniçada na defesa dos direitos
do embrião se desinteressa da criança a partir do nascimento; perseguem as praticantes do
aborto ao invés de procurarem reformar essa escandalosa instituição que chamam
Assistência Pública; deixam em liberdade os responsáveis que entregam os pupilos a
verdugos; fecham os olhos a horrível tirania que exercem "em casas de educação" ou em
residências privadas os carrascos de crianças; e, se recusam admitir que o feto pertence à
mulher que o traz no ventre [...]. (BEAUVOIR, 1967, p. 249).
Para esta autora, os motivos levantados contra a legalização do aborto têm “[...] razões
morais, reduzem-se ao velho argumento católico: o feto possui uma alma a que se veda o paraíso,
suprimindo-o antes do batismo.” Contra argumenta a autora afirmando que a Igreja autoriza e
encoraja a morte de “homens feitos”, quando os encaminha para guerrear, principalmente na luta
contra os infiéis. (BEAUVOIR, 1967, p. 250).
Desde a infância, as brincadeiras estimuladas e tidas como femininas são as bonecas e as
casinhas, para treinar as tarefas de cuidar dos filhos e do lar. A maternidade, assim, é expressa como
um privilégio e uma missão. Mas, quando o homem pede ou ordena que a mulher realize o aborto,
alegando que seu futuro está em jogo, as cartas são reveladas. “O filho não é mais um tesouro
imensurável: engendrar não é mais uma função sagrada: essa proliferação torna-se [...], importuna
[...]. O aborrecimento mensal da menstruação apresenta-se, [...] como abençoado [...].”
(BEAUVOIR, 1967, p. 256).
O recurso ao aborto e às práticas contraceptivas, principalmente, as feitas de modo seguro
são vividas de modos diferentes de acordo com a classe social, tanto na França como abordou
Beauvoir, quanto no Brasil atual.
[...] a existência do banheiro torna sua aplicação mais fácil do que entre os operários e
camponeses privados de água corrente; as moças da burguesia são mais prudentes do que
as outras; [...] A mulher burguesamente casada ou confortavelmente sustentada, [...] leva
grande vantagem; primeiramente obtém muito mais facilmente uma licença para um
aborto "terapêutico"; se necessário, tem os meios de pagar uma viagem à Suíça onde o
aborto é deliberadamente tolerado; nas condições atuais da ginecologia, é uma operação
benigna quando executada por especialista, com todas as garantias da higiene e, se preciso,
os recursos da anestesia. Na ausência da cumplicidade oficial, ela encontra ajudas oficiosas
igualmente seguras: conhece bons endereços, tem bastante dinheiro para pagar cuidados
conscienciosos e sem esperar que a gravidez se ache adiantada: tratá-la-ão com
consideração (BEAUVOIR, 1967, p. 251-252).
O aborto é um tema tabu entre as parteiras. As entrevistadas negam ter atendido abortos
provocados, somente os espontâneos. Cecília mencionou a história de Catarina, parteira que
realizava abortos.
A Catarina era parteira e lá naquele Terceiro [localidade] as moças solteiras ganhavam os
filhos e ela era parteira, mandavam ela matar e ela matava e botava fora. [...] Já morreu há
muitos anos. E ela morreu quando morreram seis crianças. [...] Depois que ela deixou de
ser parteira, ela ganhou seis, tudo num tamanhozinho assim. Seis crianças numa vereda, e
ganhou mortos, todos os pobrezinhos mortos. Fui eu que passei com ela. E ela olhando
pras crianças dizia: ‘é verdade meus filhinhos todos mortos’. Eu disse: ‘isso são as crianças
que tu matava que Deus te deu agora tudo morto’. E fechou os olhos e morreu. Foi
sepultada com as seis crianças. [...] As moças solteiras às vezes ganhavam família e
mandavam ela matar; ela matava e botava fora. (CECÍLIA, 2013, grifo meu).
Quando era aborto a gente atendia só se estava saindo ali, se não ficava na maca mesmo e
já ia pro PS. Aborto não era lá com nós, porque a gente não sabia se era espontâneo,
provocado, não sabia o que tinha acontecido, porque aí contamina tudo. Se foi um aborto
provocado, muitas chegavam e diziam assim: ‘fulana meteu uma agulha de tricô’. Aborto,
a gente não atendia. Só se tivesse saindo que tivesse que tirar ali o fetinho, mas mesmo
assim não ficava com nós. Com nós só feto a partir do 5º mês. Senão, mistura muito, cria
muita polêmica, esse negócio de aborto. [...] Se o aborto fosse provocado, se denunciava
a mulher, mas isto era feito lá no PS. O médico, a assistente social de lá que faziam.
Complicado! (VERA, 2015, grifo meu).
Ao afirmar que o aborto “cria muita polêmica”, Vera está evidenciando que atestá-lo como
espontâneo ou intencional era muito difícil, exceto quando alguém contava, mesmo assim, ficava
mais no âmbito das palavras do que da prova. A denúncia era feita pelo médico ou pela assistente
social, conforme dito. Isto pode indicar que a denúncia possivelmente era acolhida, já que provinha
de profissionais legitimados. Cabe questionar porque as parteiras não realizavam a denúncia?
Talvez, por não ter o prestigioso patamar moral dos médicos ou se negavam em sororidade ao
momento vivido por aquelas mulheres que praticaram o aborto.
Outro ponto importante a ser mencionado é a esterilização feminina, popularmente
conhecida por laqueadura ou ligadura de trompas, como um método praticamente irreversível de
contracepção. É um procedimento que visa tornar a mulher infértil, cortando ou amarrando as
trompas, para evitar que óvulo e espermatozoides se encontrem. No Brasil, tornou-se um processo
rotineiro durante a cesariana, quando as mulheres decidem romper com a possibilidade de uma
nova gestação. Conforme Lucila Scavone (2001, p. 52), “a esterilização se tornou a solução das
mulheres brasileiras (e latino-americanas) para optarem pela não-maternidade”, o que junto
também reforça “o caráter social da maternidade e sua não determinação biológica”.
Dalva (2013) relatou ter feito a laqueadura junto à cesariana por sugestão do médico. “[...]
na segunda [gestação] o doutor fez laqueadura que eu era imperfeita dos ossos. Não abria, não
adiantava esperar pra ganhar e eu já estava com muita idade, aí ele fez laqueadura.” Erci (2012)
também relatou ter optado pela cesariana para junto realizar a ligadura das trompas. Queria evitar
uma nova gestação, pois considerava ter uma idade avançada, 38 anos.
O médico insere-se na vida familiar tornando-se uma espécie de conselheiro respeitável.
“Ao tornar-se um aliado da mulher nos assuntos relativos aos filhos, o médico teve acesso a outros
assuntos específicos às mulheres como a gravidez, o parto, o puerpério e as queixas ginecológicas”
(MARTINS, 2005, p. 652). Todavia, cada vez mais as mulheres estão questionando o controle
médico invasivo/abusivo no parto. “Esta inquietação remeteu, implicitamente, a uma postura
positiva diante da maternidade: uma experiência feminina importante, cujo controle não deveria
escapar às mulheres” (SCAVONE, 2001, p. 53).
Vera contou sobre o abuso dos médicos estagiários que mutilavam a genitália feminina para
estudar no corpo da parturiente:
Quando os residentes examinavam muito, ficava uma vagina que dava pena de ver. É uma
parte muito sensível. Vem um examina, vem o outro examina, vem o outro... Eles ficavam
praticamente estudando no corpo. Isso é uma coisa que eu sempre fui contra. A mulher na
hora do parto, não é um boneco de exposição (VERA, 2015).
Já a parteira Hilda (2015) advertiu que examinava a vulva da parturiente somente para
acompanhar a dilatação, e que ao fazer o exame usava os dedos, por ser uma forma menos invasiva
do que usando ferramentas: “Examinava com os dedos pra pessoa não sentir. Não ia com
estupidez.”
Segundo Ana Paula Vosne Martins (2005, p. 659), os “exames obstétricos são
procedimentos clínicos fundamentais para a transformação do corpo feminino em objeto do saber
e alvo do poder”. O corpo durante esses procedimentos tornava-se um objeto de análise, “[...]
passível de manipulações que só podiam ser realizadas pelo médico”.
O corpo da parturiente devia ser manipulado pelas mãos do médico para que fossem
conhecidas as posições, o que exigia da mulher adotar certas posições e permanecer
imóvel, o que nem sempre ocorria, pois muitas mulheres não aceitavam o toque vaginal e
preferiam movimentar-se quando sentiam as contrações. Alguns médicos aceitavam esses
comportamentos, mas a tendência foi convencer a parturiente de que quanto mais ela
colaborasse com o médico, deixando-se examinar, melhor seria o atendimento e mais
seguros os resultados. (MARTINS, 2005, p. 662).
A mulher, durante os exames, deve evitar expressões, de dor ou prazer. O ideal seria manter-
se imóvel para auxiliar no trabalho do médico e para não comprometer sua moralidade. Caso não
conseguisse manter-se assim, por conta própria, deveria ser imobilizada.
A forma como o parto pode ser conduzido de modo rotineiro, intervencionista e
desrespeitoso, assusta. Este tema, atualmente é uma discussão presente no âmbito da saúde, no
movimento de humanização do parto e tem se tornado pauta política no país a partir do projeto de
Lei nº 7.633, de 2014, que dispõe sobre a humanização da assistência à mulher e ao neonato, durante
o ciclo gravídico-puerperal. Trata-se de um projeto apresentado pelo Deputado Federal Jean Wyllys
(PSOL/RJ).
Várias definições estão sendo criadas para o conceito de violência obstétrica. Simone Grilo
Diniz et al. apontou que a proposição da Venezuela foi a pioneira:
Olha, tu sabe, que as mães de primeiro parto, muitas e muitas eram melhores que aquelas
velhas de quinto, sexto parto. [...] porque já tinham conhecimento, mas eu gostava mais
de atender paciente do primeiro parto. Que tu conversava com elas, tu explicava e elas
faziam aquilo que tu pedia e as velhas não, já eram acostumadas a fazer assim e ficavam.
(MARIA BASILÍCIA, 2013).
Contudo, a autora não se referirá a essa imposição de poder das parteiras para com as
parturientes como violência obstétrica, por compreender que esta é uma violência
institucionalizada, legitimada pelo saber acadêmico e pelas relações de gênero. Nas palavras de Ana
Colling (2014), o discurso médico permanece como no tempo de Aristóteles e Hipócrates servindo
para justificar um lugar de submissão à mulher. “[...] comprova-se novamente a teoria, ainda hoje
aceita, de que o homem é a medida de todas as coisas; [...] a anatomia feminina vista como
interior e a masculina como exterior, mais perfeita”. (COLLING, 2014, p. 78-80).
A Rede Parto do Princípio elaborou o dossiê intitulado “Violência Obstétrica: parirás com
dor” para a CPMI da Violência Contra as Mulheres em 2012. Neste material citaram algumas das
frases ouvidas pelas pacientes:
Na hora que você estava fazendo, você não tava gritando desse jeito, né?
Não chora não, porque ano que vem você tá aqui de novo.
Se você continuar com essa frescura, eu não vou te atender.
Na hora de fazer, você gostou, né?
Cala a boca! Fica quieta, senão vou te furar todinha. (Rede Parto do Princípio, 2012, p.
2).
Para Scavone (1985), a falta de diálogo entre o médico e suas pacientes, a ausência de
informação e a forma de examiná-las é a causa do descrédito e desconfiança das mulheres para com
os médicos.
Um assunto pouco abordado, e que não é compreendido no âmbito da saúde como um
direito reprodutivo, é a quarentena. Soraya Fleischer (2007), pesquisando em Melgaço, Pará, contou
sobre uma de suas saídas de campo e suas experiências com esse tema.
Numa das vezes em que avistamos Filó, D. Dinorá me explicou: “Ih, minha filha, o marido
dessa daí deu muito nela quando ela estava quarentando. Não respeitou ela. Aí, o parto
subiu para a cabeça. Aí ela ficou doida”. Filó, negra, muito magra e relativamente baixa,
era uma das três moças que eu via vagar pela cidade, banhar-se no rio, remexer as latas de
lixo. Ela não conseguiu quarentar, descansar, ficar dentro de sua rede amamentando seu
recém-nascido. Provavelmente, logo teve que se levantar para arrumar a casa, cozinhar,
atender aos pleitos sexuais do marido. Provavelmente, à beira de dores e exaustão, em
algum momento, negou-se a atender alguma dessas tarefas e recebeu safanões e pontapés
como resposta. (FLEISCHER, 2007b, p. 82, grifo meu).
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Cecília dos Santos. Parteira. Entrevista concedida a Eduarda Borges da Silva. Realizada na casa
da entrevistada, Piratini, 2012.
Dalva Luçardo. Parteira. Entrevista concedida a Eduarda Borges da Silva. Realizada na casa da
entrevistada, Piratini, 2013.
Erci Maria Rosa. Parteira. Entrevista concedida a Eduarda Borges da Silva. Realizada na casa da
entrevistada, Pelotas, 2012.
Eulália Sória. Parteira. Entrevista concedida a Eduarda Borges da Silva. Realizada na casa da
entrevistada, Piratini, 2013.
Hilda Macedo. Parteira. Entrevista concedida a Eduarda Borges da Silva. Realizada em Pelotas,
2015.
Maria Basilícia Soares. Parteira. Entrevista concedida a Eduarda Borges da Silva. Realizada na
casa da entrevistada, Piratini, 2013.
Teresa Machado. Parteira. Entrevista concedida a Eduarda Borges da Silva. Realizada na casa da
entrevistada, Pelotas, 2015.
Vera Maria Venske da Silva. Parteira. Entrevista concedida a Eduarda Borges da Silva. Realizada
na casa da entrevistada, Pelotas, 2015.
Cristina Furlan Zabka
Quando eu comecei, eu fui convidado para dar aula na PUC, na Faculdade de Medicina,
em 1980. Existia um grupo na Reitoria, com representantes de diversas unidades, que se
reunia para implementar um programa de extensão, junto à uma comunidade
desfavorecida de Porto Alegre. Tendo em vista que a universidade já atuava no Alto
Solimões, lá no Amazonas, e eles queriam então trazer a universidade para atuar em uma
comunidade próxima, também. Então, eu fui designado pela Faculdade de Medicina, para
fazer parte desse grupo. E eu tinha alguma experiência nesse tipo de atividade e propus,
elaborei um projeto e apresentei para o grupo. [Diretor].
Eu vim para cá porque quem pensou a Pediatria no Centro de Extensão foi a doutora Hebe
Torino, talvez uma das poucas pessoas no Brasil que trabalhava com Pediatria Social. Eu
fui aluna dela na UFRGS, sempre gostei dessa área, e fui monitora dela. Então, quando
surgiu uma oportunidade, ela me convidou para trabalhar aqui. Sempre me identifiquei
muito com o projeto aqui. Então, comecei a me envolver mais do que a carga horária que
eu tinha como professora. [Professora].
Nesses trechos dos depoimentos, passagens como “eu tinha alguma experiência nesse tipo
de atividade” e “Sempre me identifiquei muito com o projeto aqui”, entre outras, demonstram uma
construção narrativa que relaciona a identidade do indivíduo com o aspecto social do projeto
institucional. Recorrendo a Pollak (1992), temos que a memória é um elemento constituinte do
sentimento de identidade, tanto individual como coletiva, na medida em que ela é também um fator
extremamente importante do sentimento de continuidade e de coerência de uma pessoa ou de um
grupo em sua reconstrução de si. A construção de si, permeada por uma questão de identidade
ideológica, reflete a construção de uma narrativa coerente com tal aspecto, extraindo da memória
os elementos necessários à estruturação da narração.
Alberti (2008) também relaciona a construção de uma identidade ligada a contextos
históricos e culturais e a trajetórias individuais, se constituindo como resposta a uma experiência.
A identidade não está dada de antemão, ela constrói-se ao longo do tempo. E o tempo torna-se
tempo humano, na medida em que está articulado de modo narrativo (RICOEUR, 1994).
Assim, temos nesses trechos dos depoimentos, construções narrativas estruturadas em
lembranças que remetem à identificação dos indivíduos com a ideologia institucional, de traços
marcadamente sociais, influenciando o modo de adesão dos profissionais ao projeto.
A memória mobilizada nas fontes orais pode constituir-se, dessa maneira, como
fundamento de processos identitários, referindo-se a culturas, comportamentos e hábitos coletivos,
uma vez que o relembrar individual – especialmente aquele orientado por uma perspectiva histórica
– relaciona-se à inserção social e também histórica de cada depoente. O que talvez possa-se atribuir
a essas duas narrativas é que as identidades são representações coletivas contextualizadas e relativas
a uma instituição. Dessa forma, a identidade materializa-se em expressões e formas originais e
específicas, aqui neste caso, ideológica. Identidades, representações e memórias encontram-se
interrelacionadas. Por meio da memória, os coletivos e os indivíduos podem, por exemplo, resgatar
identidades ameaçadas e construir representações sobre sua inserção social e sobre sua cultura
(DELGADO, 2010).
A identidade, como espaço de construção do indivíduo, parece ser um lócus privilegiado
onde pode-se observar o funcionamento do paradigma narrativo em termos de negociação de
significados entre os acontecimentos e o modo como o indivíduo os significa. (VIEIRA;
HENRIQUES, 2014).
[A LBA também tinha] uma proposta educacional, que aqui a gente conseguiu fazer de
um jeito muito bom. Se conseguiu reabilitar muitas crianças, envolvendo a mãe e fazendo
ela entender que a desnutrição é uma doença geradora de outras doenças. Morria muita
criança de complicação, de pneumonia, etc. [Têm fotos dessas ações]. Era um grupo
semanal, com uma estagiária da Nutrição e supervisão de uma nutricionista. A estagiária
era da LBA, era uma estudante de Nutrição. A minha mãe trabalhava aqui junto, como
voluntária, ela era educadora sanitária, que, na verdade, é a primeira versão de atendimento
em casa, da década de 1940. Buscavam as crianças em casa, faziam vacinas, faziam
mamadeiras para as crianças.
(Professora).
Bom, nós fizemos ‘n’ cursos, na nossa história de capacitação profissional, ‘n’ cursos.
Depois alguns até conseguiram empregos (Diretor).
Foi o primeiro curso que a gente fez [o de formação de agentes de saúde]. Nós fizemos aí
vários sábados, a gente veio aí trabalhar com eles. Ensino em relação a lixo, a controle de
vetores. (Professora).
Usa-se aqui o termo representação no sentido dado por Candau (2012) que, ao admitir o
uso pouco rigoroso, metafórico, da identidade (cultural e coletiva), a considera certamente uma
representação. De maneira constantemente renovada, os indivíduos percebem-se membros de um
grupo e produzem diversas representações quanto à origem, história e natureza desse grupo. Os
trechos dos depoimentos anteriores são exemplos de como a construção narrativa, nos dois casos,
representa a natureza de auxílio social e educacional do projeto e, indiretamente, da instituição.
A relação entre representação e narrativa merece aqui algumas considerações.
A narrativa é uma das ferramentas utilizadas pelos indivíduos para construir suas
representações do mundo. Filosoficamente falando, a narrativa é construtivista – uma visão que tem
como premissa que a principal função da mente é a construção do mundo, quer seja através das
ciências ou das artes. A representação de nossa experiência de vida é, portanto, uma narrativa, e nós
utilizamos a narrativa como uma ferramenta, a fim de organizar nosso contato com o mundo em
termos de uma experiência inteligível. História e linguagem são dois elementos fundamentais à
construção narrativa da identidade. É através da narrativa que o sujeito dá significado à sua história
e planeja suas ações futuras. Cada indivíduo ocupa determinadas posições históricas ou
desempenha determinados papéis ao longo de sua história, os quais se organizam em um processo
de desenvolvimento que delimita o campo interpretativo de seu entendimento e define a sua versão
narrativa da história de vida. Essa dialética entre indivíduo e contexto historicamente situado parece
ser fundamental para a compreensão de como o sujeito constrói significados a partir da realidade
vivida (VIEIRA; HENRIQUES, 2014).
Não que o projeto do Centro de Extensão não tenha outros aspectos que possam merecer
atenção, além das ações social e educacional. A questão é que essas duas são representações sobre
o passado expressas nas construções narrativas dessas fontes orais específicas, provavelmente
porque tais representações ainda conferem sentido para a narrativa presente dos depoentes
(lembrando que ambos aderiram ao projeto na sua origem).
Como foi dito no início desta análise, a construção narrativa das fontes orais, aqui
exploradas, constituem, até certo ponto, uma identidade individual em consonância com a da
instituição. Como no coloca Connerton (1993), no que diz respeito, em particular, à memória social,
constatamos que as imagens do passado legitimam geralmente uma ordem social presente.
Entretanto, alguns aspectos dos depoimentos parecem dissonantes da construção narrativa das
fontes apresentadas até aqui.
Considere-se os seguintes trechos dos depoimentos:
E aí, com as instalações maiores, nós conseguimos trazer mais unidades acadêmicas, que
vinham desenvolver seu currículo. Nós sempre cuidamos que as atividades fossem
curriculares. Não eram voluntárias. Sabe como é, começa e não dá sequência. (Diretor).
Foi a época [o início do projeto] que mais se trabalhou com voluntariado. Porque também
voluntariado aqui para nós nunca foi uma grande experiência, porque as pessoas vinham
e achavam: “Ai, que bom fazer alguma coisa pelos pobres” e tal, mas aí achavam outra
coisa para fazer e iam embora. (Professora).
A relação com a comunidade sempre foi boa. Mesmo naquela época, a gente conhecia
mais as pessoas do que conhece hoje, conhecia mais as famílias. Nada aqui era asfaltado,
era terra, a gente vinha de Kombi, de vez em quando atolava. E tinha uma resistência maior
dos alunos do que a gente tem hoje. Os alunos vinham da universidade, do hospital, e
achavam que isso aqui era de última. E tinha um movimento assim, uma coisa que as
pessoas diziam que quem trabalhava em unidade básica de saúde é porque sabia menos,
era de menor qualidade, então isso de alguma maneira perpassava para os alunos. Claro
que depois eles chegavam e viam que a gente gostava de estar aqui e as coisas
melhoravam. Mas, o primeiro momento era de resistência, coisa que agora não acontece
de jeito nenhum, pelo contrário, eles fazem questão de vir para cá. Mudou muito. O estágio
sempre foi obrigatório, mas, mesmo assim, tinha resistência. Não queria sair porque ia
sujar o sapato, achava que tudo que era pobre era ladrão, merecia ganhar umas esmolas,
para se proteger. Ideologicamente era mais complicado, eu acho, agora não, as pessoas
gostam, os alunos gostam, a gente criou uma tradição. (Professora).
Eu acho que é uma virtude do serviço, é que só fica gente que gosta, né. As pessoas
achavam sempre que isso aqui podia ser um trampolim para ir para dentro do hospital, e
isso acabou. Ou a pessoa gosta e fica ou I’m sorry, não dá. E os alunos reconhecem isso.
A gente não vem de costas, a gente não quer empurrar os pacientes para rua, não quer
diminuir as fichas, a gente vem e fica, e faz, e trabalha, enfim, e tem uma relação boa, e
ninguém se sente explorado. (Professora).
ALBERTI, V.; PEREIRA, A. A. Possibilidades das fontes orais: um exemplo de pesquisa. Anos
90, Porto Alegre, v. 15, n. 28, p. 73-98, dez. 2008.
POLLAK, M. Memória e identidade social. Estudos Históricos, Rio de Janeiro, v. 5, n. 10, p. 200-
212, 1992.
Entrevista realizada por Cristina Furlan Zabka, com o diretor do CEUVF/PUCRS José Francisco
Bergamaschi, no dia 11 de maio de 2016.
Entrevista realizada por Cristina Furlan Zabka, com a professora Brasília Ache, no
CEUVF/PUCRS, no dia 30 de maio de 2016.
Janete da Rocha Machado*
Todo o curso d’água, por pequeno que seja, é, geralmente, usufruído para a recreação dos
moradores de suas proximidades. E foi assim com o Lago Guaíba e a população que habitava as
margens dele em tempos passados. Mesmo distante mais de cem quilômetros do oceano, a cidade,
emoldurada por belas praias, tornou-se uma opção prazerosa e prática para o recreio da população,
nos meses mais quentes do verão. O Guaíba apresentava, entre o final do século dezenove, e a
primeira metade do século vinte, condições favoráveis ao banho, ao lazer e ao descanso.
Entre as famílias que buscavam lazer à beira do lago estão aquelas oriundas de imigrantes
alemães. Eram comerciantes, industriais, médicos, advogados, políticos, entre outros, que
compunham esse grupo, apreciador dos veraneios nos balneários do Arrabalde da Tristeza, Zona
Sul de Porto Alegre. Desta forma, a ascensão social dessas famílias, aliada às novas práticas de
lazer, permitiu, ao longo dos anos, não só usufruir as férias em lugares aprazíveis, mas também a
concretização do sonho da casa de verão. As chácaras de lazer, muito utilizadas neste período,
configuraram-se, também, em um espaço de sociabilidades, ou seja, de encontros e reuniões de
negócios.
Os grupos buscavam recreação em suas propriedades, proporcionada não só pelas águas
límpidas do Guaíba, mas também pela natureza bastante preservada. Entre as atividades recreativas,
destaca-se a de andar a cavalo, caçar, pescar, velejar e tomar banhos no Guaíba. Os encontros de
famílias estimulavam as relações sociais e de negócios. Alguns balneários eram espaços elitizados,
pois seus ocupantes faziam parte de uma classe privilegiada da sociedade Porto-Alegrense da época.
Uma elite, não apenas econômica, mas também política e intelectual.
Para este grupo estar em uma estação balneária por um determinado tempo pressupunha
variadas experiências. Havia aqueles que vinham em busca apenas do descanso e sossego, pois o
ambiente representava um intervalo em suas vidas. O objetivo era, portanto, o reequilíbrio do
organismo, uma vez que promovia uma interrupção na rotina profissional, marcada pelas exigências
do dia-a-dia. Era a certeza de descansar e também se refrescar na estação do calor e usufruir do
local. A permanência nos balneários da Zona Sul por alguns dias ou semanas levava, desta forma,
ao esquecimento do mundo urbano.
E foi nesses locais encantadores e pitorescos onde ocorreram as reuniões ocasionais de
pessoas que se conheciam ou se queriam conhecer, surgindo aí as aproximações familiares, os
casamentos e os encontros profissionais e políticos. Pois, conforme Azevedo, “[...] a busca de
1 O acidente aéreo que vitimou a filha mais velha, o genro e o neto também mais velho do médico
Guerra Blessmann ocorreu em 28 de julho de 1950. Mais informações disponíveis no site: https://
pt.wikipedia.org/wiki/Voo_Panair_do_Brasil_099.
bonito. E se via, ao fundo, a casa. Tinha uma alameda. Era uma casa lindíssima. Lareiras de
mármore eram duas e tinha calefação central” (BLESSMANN, 2017). Assim, com a
finalidade de hospedar a todos – familiares e amigos, o médico não poupava esforços
na implementação de melhorias na propriedade. “No andar de cima tinha cinco quartos e
embaixo tinha só o quarto dele. Havia uma sala de jantar com uma mesa imensa, onde
todos sentavam para os almoços em família” (KOWARICK, 2017).
Ele gostava, especialmente, do convívio com os netos, os quais estavam sempre juntos com
ele. “Nos domingos, a família toda almoçava na chácara. No sábado, vovô nos buscava, cada neto
na sua casa, e levava todos para dormir lá. E, no domingo, nossos pais nos buscavam. Então, era
uma convivência com os primos e com ele” (KOWARICK, 2017).
O relacionamento afetuoso com a família, portanto, era uma constante na vida do médico.
Ele amava muito os netos e havia também admiração das crianças por ele. “Foi uma convivência
muito íntima. Vovô vivia sempre rodeado pelos netos. Era uma pessoa que a gente achava muito
importante. Nós o valorizamos sempre, não só como avô, mas como homem público”
(KOWARICK, 2017).
Muitas vezes, os momentos de brincadeiras na chácara com as crianças remetiam ao ofício
de médico ou de professor universitário: “Eu me lembro de quando ele era diretor da Faculdade de
Medicina, e a gente era pequena. Ele colocava uma toga para fazer a entrega dos diplomas, no fim
do ano” (KOWARICK, 2017).
Os natais em família, vividos na chácara, também são lembrados com carinho pelas netas.
Todos os anos, Guerra Blessmann fazia questão de receber em sua casa, não só familiares, mas
também amigos e colegas de trabalho. “Para os natais, o vovô convidava sempre gente que estava
aqui, professores, estudantes, por estarem longe de suas famílias. Eu me lembro que teve um ano
que foram alunas do curso de Enfermagem criado pelo vovô.” (KOWARICK, 2017).
E as comemorações costumavam acontecer sempre em dois momentos: na véspera com um
jantar, e, no dia seguinte, com o tradicional almoço de natal. Desta forma, os jantares e os almoços
natalinos costumavam atrair familiares e amigos em torno da mesa principal da sala de jantar da
chácara, reforçando assim o espírito de confraternização daquela data tão especial. Assim,
conforme relembra Maria Luiza Kowarick, os natais eram celebrados como um ritual: “Os natais
na casa do vovô tinham todo um ritual. É um capítulo à parte. A gente ajudava a arrumar a árvore
de natal. O natal para mim é isso, um sentimento de congregação” (KOWARICK, 2018).
No bairro Tristeza já era tradição a floricultura Winge.2 Muitos recorriam aos serviços
da Família Winge para a entrega do “pinheirinho” (natural) de natal. “O pinheiro chegava no
dia 23 de dezembro. O Walter Winge entregava. Eu sinto até hoje o cheiro da casa com
o pinheiro” (BLESSMANN, 2017). Assim, o espírito natalino imperava na chácara,
envolvendo a todos. “E aí nós arrumávamos tudo com o presépio. E no dia de natal nós
fechávamos a sala, fazíamos uma fila por ordem de idade, e só ficava iluminado o pinheiro.
Aí a gente entrava na sala para receber os presentes” (KOWARICK, 2017). E o papai noel
que era uma tradição natalina sempre aparecia na noite de natal. “Tem outra coisa do Natal
que eu acho importante. É que tinha papai noel que era ele mesmo, o vovô” (KOWARICK,
2017).
Dr. Guerra era um homem muito admirado pela família e pelos amigos, não só
pela importância da Medicina que desempenhava, mas também por sua conduta séria e
personalidade forte. Alguns colegas de trabalho o chamavam de “Berra Blessmann”,
referindo-se aos momentos em que o médico atuava de forma mais enérgica. “O vovô como
médico era uma pessoa muito exigente e ele tinha um pavio um pouco curto. E alguns
médicos da época apelidaram ele de Dr.
2A floricultura Winge foi fundada em 1886, quando Joseph Winge, um juiz alemão aposentado, se mudou para
Brasil em busca de um clima mais ameno. Junto com a família, ele se instalou em um pedaço de terra da zona
Sul de Porto Alegre e iniciou um viveiro de frutíferas. Sem nenhuma formação na área, porém com uma visão
empreendedora, o alemão foi aprendendo as técnicas agrícolas de forma autodidata, por meio de livros.
Atualmente, a floricultura esta na quarta geração da família Winge. Fonte: Site da floricultura. Disponível
em: www.floriculturawinge.com.br Acesso: 28 ago. 2017.
“Berra Blessmann”, porque ele ficava furioso e gritava” (KOWARICK, 2017). Porém, com os
netos essa energia sempre se transformava em carinho e atenção. E isso era percebido por
eles. “Eu me lembro de que conosco ele nunca fez isso. Sempre foi muito
carinhoso” (KOWARICK, 2017).
A ética profissional sempre o acompanhou. Não gostava de interferir quando o assunto
era saúde dos netos e filhos. Quando havia doença, deixava sempre (ou quase sempre) para os
médicos da família resolver. “Quando eu tinha sete anos tive uma congestão pulmonar. Eu
tinha muito resfriado. Quando a gente ficava doente e a mamãe ligava para o vovô, ele
sempre dizia: elas não têm pediatra? Então chama o pediatra.” (KOWARICK, 2017). Porém,
ele não se furtava de dar sua opinião médica sempre que solicitado. “Quando a gente
perguntava, ele dava opinião médica, mas ele não se metia” (KOWARICK, 2017).
Em algumas situações mais sérias, o Dr. Blessmann agia com determinação:
“Quando pequena tinha o pé chato. Aí apareceu um japonês em Porto Alegre. Ele queria me
operar. O vovô ficou furioso e disse que não tinha japonês nenhum que ia enfiar a mão em
mim. Não vai fazer cirurgia coisa nenhuma” (BLESSMANN, 2017). Em outras situações,
agia simultaneamente como avô e médico amoroso. “Mas eu me lembro de que quando eu
tive doente, eu tinha que tomar uma injeção que doía muito. Então ele me dava a injeção,
porque eu ficava sentadinha e ele dizia que não doía tanto e eu acreditava nele e ficava tudo
bem” (KOWARICK, 2017).
Luiz Francisco Guerra Blessmann aparece como um dos precursores da cirurgia
na Faculdade de Medicina de Porto Alegre, e também, no Rio Grande do Sul. A busca por
novos conhecimentos na área o fez viajar para a Europa na década de 1920. O aperfeiçoamento
no exterior em 1927 trouxe inovações também para a Santa Casa, onde trabalhou durante
muitos anos. “O vovô passou um ano na Europa. Levou os filhos, toda a família e até a
empregada. Ele foi estudar em Paris e Berlim. E lá ele estagiou em diversos hospitais.
Falava alemão fluente” (KOWARICK, 2017).
É fato que, durante muitos anos, Dr. Blessmann foi um grande colaborador da Santa
Casa de Misericórdia. A inauguração do Hospital São Francisco, uma homenagem as irmãs
franciscanas que já atuavam na instituição, no ano de 1930, ocorreu no final da gestão de
Aurélio de Lima Py e início da administração de Guerra. Na solenidade esteve presente o
então Presidente do Estado, Getúlio Vargas. É interessante salientar que o momento político
era de extrema indefinição para o presidente, o qual se achava envolvido com a preparação do
movimento revolucionário de 1930.3 Dr. Blessmann viveu até quase os 81 anos de idade.
Faleceu em junho de 1972, no Hospital Moinhos de Vento, após ter sofrido um acidente
vascular cerebral em sua casa na Zona Sul. Após uma longa e profícua trajetória na área
médica do País e do Estado, fica o legado e, principalmente, as lembranças das descendentes,
sem as quais não seria possível essa recuperação de parte de sua história.
3 A revolução de 1930 foi o movimento armado iniciado no dia 3 de outubro de 1930, sob a liderança
de Getúlio Vargas e sob a chefia militar do tenente-coronel Góis Monteiro, com o objetivo imediato de derrubar
o governo de Washington Luís e impedir a posse de Júlio Prestes, eleito presidente da República em 1º de março
anterior. O movimento tornou-se vitorioso em 24 de outubro e Vargas assumiu o cargo de presidente provisório a
três de novembro do mesmo ano (Fonte: FGV/CPDOC).
E isso se confirma nos estudos de Ecléa Bosi, pesquisadora da memória e das
lembranças dos mais velhos. Segundo essa autora, “há um momento em que o homem
maduro deixa de ser um membro ativo da sociedade, deixa de ser um propulsor da vida
presente do seu grupo. Nesse momento de velhice social resta-lhe, no entanto, uma função
própria: a de lembrar” (BOSI, 1994, p. 63). Assim, aos velhos, ou “guardiões do passado”
é dada a função social de lembrar, pois para esses grupos, a lembrança é a sobrevivência
do passado, o qual se conserva no espírito de cada ser humano, aflorando a consciência
na forma de imagens e de lembranças. “O vovô até morrer vivia cercado de gente.
Nós gostávamos de conversar com ele. Os palpites que ele dava, os conselhos eram
importantes. E ele gostava muito da Pedra Redonda” (KOWARICK, 2017), finaliza a neta
Maria Luíza, emocionada pelas lembranças.
AZEVEDO, Thales de. A praia, espaço de socialidade. Salvador: Universidade Federal da Bahia;
Centro de Estudos Baianos, 1988.
BOSI, Ecléa. Memória e sociedade: lembranças dos velhos. São Paulo: Cia das Letras, 1994.
FRANCO, Sérgio da Costa; STIGGER, Ivo. Santa Casa 200 anos: caridade e ciência. Porto
Alegre: Ed. da ISCMPA, 2003.
HASSEN, M. Fogos de bengala nos céus de Porto Alegre: a Faculdade de Medicina faz 100
anos. Porto Alegre: 1998.
A prática dos benzimentos reflete vários aspectos de uma sociedade, em especial daquelas
pessoas que a detém simbolicamente, perpassando pela necessidade de cura física, espiritual ou
simplesmente proteção e benção, demonstrando características da cultura, religiosidade, saberes e
imaginário daqueles que benzem e também das pessoas que os procuram. Seu objetivo fundamental
está na obtenção de cura, porém na história, o diálogo entre práticas não científicas de medicina e
profissionais formados na área sempre causou embates e conflitos, exaltando as diferenças, forças
e potencialidades de cada sujeito. Para Boltanski, a primeira diferença que separa a medicina das
classes populares é o vocabulário.
É em primeiro lugar uma barreira linguística que separa o médico do doente das classes
populares, pois a utilização pelo médico de um vocabulário especializado redobra a
distância linguística, devido ao mesmo tempo a diferenças lexicológicas e sintáticas, que
separam a língua das classes cultas das classes populares. (1989, p. 44).
Dessa forma, o benzedor utilizaria uma forma mais fácil e compreensível para explicar e
justificar as doenças àqueles que o procuram, explicando inclusive através de suas representações
a solução para tais problemas, havendo assim uma proximidade muito maior das classes populares
com este tipo de prática, a qual se assemelha a seu público, diferentemente do médico que possui
um perfil (e vocabulário) distinto dos seus pacientes, o que pode acarretar inclusive um
distanciamento entre as partes envolvidas no processo de diálogo e de cura.
Valorizada e respeitada por muitos, desconsiderada e desqualificada por outros, a história
mostra que os conflitos nesse campo sempre foram intensos. Medicina ‘oficial’, caracterizada pelos
profissionais que possuíam diploma superior na área passou a competir espaço com pessoas que,
até então, eram as únicas responsáveis pela cura da população: barbeiros, sangradores, curandeiros,
parteiras, benzedores, mateiros, etc. – figuras importantes e representativas em uma sociedade
carente de estrutura médica e de pessoas qualificadas para o tratamento de doenças complexas.
Weber lembra que:
* Doutor em História pela PUCRS. Prof.º Adjunto da Universidade Federal do Pampa - UNIPAMPA -
Campus São Borja. Professor Efetivo do Programa de Pós-Graduação em Memória Social e Patrimônio da
Universidade Federal de Pelotas.
** Doutoranda em Memória Social e Patrimônio Cultural da Universidade Federal de Pelotas.
Nos vestígios que chegaram até nós, percebemos que os envolvidos nessas práticas não
estavam apenas reagindo aos procedimentos impostos pela Medicina científica. Muitas
delas eram construções dos grupos sociais com os elementos aos quais tinham acesso,
segundo as crenças e rituais tradicionalmente conhecidos por eles. (1999, p. 179).
Para o autor, estas práticas de cura seriam resultado de construções e negociações culturais
e simbólicas destes grupos, refletindo o meio onde viviam, os materiais dos quais tinham acesso e
a religião (ou expressões religiosas) por eles praticada. Todos esses itens seriam determinantes para
justificar e entender estas formas de cura e a resistência por um método de tratamento ‘oficial’ – o
qual teve início no Brasil nos últimos dois séculos com a introdução dos primeiros cursos de
Medicina. Alves reforça e complementa esta ideia afirmando que:
1São Miguel das Missões, município situado na região noroeste do Estado do Rio Grande do Sul. Possui suas
origens no antigo povoado de São Miguel Arcanjo, datado de 1687, tendo como possível fundador o Padre
Jesuíta Cristóvão de Mendonza. Compôs um dos sete povoados missioneiros construídos no que hoje é Brasil
durante o chamado segundo ciclo missioneiro.
Nesse período, 1806, havia apenas 16 médicos e cirurgiões inscritos em toda a região da
província (Rio Grande do Sul). O atendimento, em caso de doença, era realizado por esses
poucos médicos nas residências dos pacientes. A maior parte da população não tinha
nenhum local ou forma de assistência terapêutica oficializada. Assim, a legislação
estabelecia que eram “permitidos curandeiros” nos lugares que não dispusessem de outros
“cultores da arte de curar”, cuja presença era vista como uma espécie de complemento ou
alternativa à presença dos clínicos diplomados. (1999, p. 182).
Por haverem poucos médicos, nem toda população tinha acesso a estes por questões
financeiras, se tornando um serviço elitizado. Para suprir a demanda da falta de profissionais
emergiram os mais diversos tipos de profissões e sujeitos que se colocavam a serviço da
comunidade para sanar seus problemas de saúde. Neste sentido, Pimenta afirma que “Assim, os
curandeiros continuavam a ser considerados o recurso de que dispunham os pobres. Eram pessoas
de camadas subalternas que tratavam de miseráveis, os quais não teriam mesmo condições de pagar
a visita de médicos diplomados.” (PIMENTA, apud CHALHOUB, p. 321, 2003).
O serviço prestado por essas pessoas servia de alento e conforto para as classes
economicamente menos favorecidas, sendo, muitas vezes, o único recurso disponível para tentarem
solucionar seus males de saúde. Com a vinda da família real portuguesa ao Brasil no ano de 1808,
foi necessário modernizar e estruturar minimamente a colônia – que passaria a ser sede do governo
e da coroa – surgindo aos poucos os primeiros cursos superiores de Medicina no território brasileiro.
Entretanto, a escolha de atuação desses profissionais era nos capitais e grandes centros – o que
deixava o interior e as pequenas cidades desassistidas. Leite lembra ainda que
Essa solicitação foi mais uma das que estavam sendo feitas como forma de cobrar do
Estado um órgão fiscalizador do exercício da medicina, o qual as atendeu criando em
1850, a Junta de Higiene Pública (posteriormente, em 1851, rebatizada e regulamentada
como Junta Central de Higiene Pública) para cumprir essa e outras funções. Não obstante,
até a adoção de leis no final do século 19 que tornaram crime tal exercício sem a devida
habilitação, muitas pessoas sem formação acadêmica continuaram prestando serviços
relacionados a esse campo de conhecimento, sobretudo no vasto interior do país onde a
fiscalização dificilmente conseguia chegar. (LEITE, apud EUGÊNIO, 2012, p. 204).
As práticas de cura que não fossem realizadas por profissionais graduados eram
consideradas crimes, o que resultou na clandestinidade das pessoas que as utilizavam
tradicionalmente, tendo em vista que a grande maioria não as abandonaria facilmente – pois já fazia
parte de seu cotidiano e de sua cultura. Holzer critica as mudanças e a desvalorização dos saberes
populares no que tange a busca pela cura, dizendo que:
A abordagem do curador parece um pouco estranha ao homem ocidental, que sofreu uma
lavagem cerebral com a abordagem tecnológica da cura e a aceitação muito limitada por
parte da medicina ortodoxa de tudo que não pode ser produzido, dissecado, ou
reconstruído em experiências de laboratório. (1987, p. 17).
Para o autor, as formas alternativas de cura dariam às pessoas um cuidado e atenção além
do físico, onde o ser humano é compreendido em sua totalidade corpo-alma, esquecidas e não
consideradas em sua amplitude na medicina oficial. Para estes profissionais, o que não pudesse ser
justificado, compreendido, dissecado e produzido em laboratório não representaria a ciência e sua
verdade. Provavelmente pelo fato destas formas alternativas espirituais não poderem ser explicadas
e compreendidas, o caminho mais fácil era desqualificá-las e colocá-las num status e condição de
marginalidade e clandestinidade. Tais práticas valorizam as relações e os saberes tradicionais
milenares, repassados e reproduzidos ao longo das gerações, que apesar de todo o combate contra,
jamais deixou de existir nas mais diversas localidades.
Cabe ressaltar, também, que a pressão desenvolvida pela mídia (especialmente por jornais)
foi fundamental no processo de repressão aos curandores, conforme relata Weber.
[...] O jornal A Noite empreendia uma verdadeira campanha contra eles, havendo caso de
pelo menos um processo aberto devido a denúncia do jornal. A Gazeta do Commercio
fazia, sistematicamente, campanha contra a “imperícia” desses profissionais, denunciando
parteiras, cartomantes, benzedores, curandeiros, etc. Porém, os jornais não expressavam,
necessariamente, as preocupações da população, que, afinal, procurava essas práticas –
caso contrário, as denúncias não seriam tão frequentes. É importante que interpretemos
essas denúncias e críticas como a opinião de intelectuais ou de setores ligados aos próprios
médicos formados. Expressavam um grupo social que tinha maiores possibilidades de
acesso ao saber formal e tinham uma visão sobre a “civilização”, estado ideal que devia
ser atingido e do qual curandeiros não faziam parte. Aliás, consideravam que a população
que se utilizava dos seus serviços devia ser educada e regenerada por intermédio da
denúncia para evitar que outros seguissem o mesmo caminho. (1999, p. 194).
Weber alerta para o objetivo destas perseguições pela imprensa, que representavam as elites
e seu discurso carregado de interesses sociais e econômicos, não considerando os motivos pelos
quais as pessoas buscavam estes profissionais – os quais eram mais acessíveis que os médicos – e
que, na realidade, não os deixariam de procurar, apesar de todas as campanhas contra realizadas,
pois já faziam parte da vida e do cotidiano das camadas sociais menos favorecidas. Ambas não
poderiam coexistir, havendo espaço apenas para uma ser a correta, digna e eficaz. Ainda, neste
sentido, Sampaio afirma que:
[...] Em oposição a esta figura hostil, ia sendo construída a identidade do médico, portador
da ciência. Assim, os médicos usavam o título de charlatão para assinalar em todos os seus
‘outros’ uma mesma visão negativa. [...] Para caracterizar o charlatão, um recurso era
bastante utilizado: narravam-se casos de erro [...]. Assim, curandeiros, espíritas,
sangradores, parteiras, ervateiros, farmacêuticos que produziam remédios e não revelavam
suas fórmulas, enfim, qualquer diferente era igualmente um perverso charlatão, que agia
sempre de má fé, enganando as pessoas para enriquecer. (2001, p. 53).
[...] Tem um senhor, o nome dele é Valdomiro, lá da Colônia Vitória, estava no hospital
acamado e o doutor apartou ele dizendo que estava com meningite e tinha uma vala na
cabeça dele. A esposa dele veio aqui e eu curei ele em dois dias. Meningite não é qualquer
um que cura, só benzedor mesmo, doutor não cura. (2013).
A entrevistada, em uma narrativa que busca legitimação e aceitação social, conta que há
doenças que cabe apenas aos benzedores curarem. Assim como os médicos buscam narrativas
2 Alzira de Oliveira Leite, 79 anos. Nasceu na comunidade Pasta Guerrera, interior de São Miguel das
Missões onde morava com a mãe e mais quatro irmãos. Sua mãe, Angelina Alves de Oliveira, era natural de
Jaguari/RS e criança ainda veio morar no interior de São Miguel, onde era católica e benzedeira, faleceu com 112
anos de idade. É casada a 62 anos com o Sr. Dorcino da Costa Leite (83 anos) com quem teve 10 filhos (8
homens e duas mulheres). Mora há mais de 30 anos na zona urbana de São Miguel das Missões. É católica e
aposentada como agricultora.
compartilhadas para se legitimarem (ou desqualificarem o outro), a prática dos benzimentos
necessita desses casos de cura contados e recontados, e transmitidos socialmente para serem aceitos
e até mesmo procurados pela comunidade em momentos de precisão. Alzira narra ainda que:
As ervas plantadas desde a origem do mundo são remédio. Não existe uma árvore que não
seja remédio pra uma coisa ou outra. Todas as árvores que dão fruto são remédio. Eu
indico e ensino. Tenho muitas aqui na horta e quando pedem eu dou. Pode ser pra dor, pra
massagem. (2013).
O uso de plantas e ervas medicinais é comum entre os benzedores, que além de benzerem,
indicam e até mesmo fornecem as plantas e ervas para a comunidade, que as utiliza – o que pode
contrariar interesses de farmácias e laboratórios farmacêuticos, os quais mantêm o monopólio desta
área. Compartilham também mudas destas plantas, que serão cultivadas e utilizadas quando
preciso, mantendo vivo assim este hábito na comunidade. Em entrevista, a benzedeira Laídes
Dutra3 diz que:
Esses dias eu não andava comendo e minha cunhada disse pra ir no médico fazer uns
exames de sangue e não sei mais lá o que, porque podia ser tireoide e tal. Vocês acham
que eu tenho medo de tirar sangue? Não tenho. Há dezoito anos eu fiz os mesmos exames
de hoje e não tinha nada, nem tireoide, colesterol, glicose e essas coisas. Não gosto nem
de falar em médico porque até me ataco dos nervos quando vejo um médico. (2013).
Obviamente a entrevistada, por ser benzedeira, busca solucionar seus problemas de saúde
através de formas alternativas, deixando o recurso médico em última opção. Faz questão de exaltar
que possui uma ótima saúde – justificando isso em sua narrativa pelo fato de ter feito os mesmos
exames há 18 anos e não ter problemas com sua saúde. Por não ser habituada a ir ao médico, sente
medo e repulsa, como se este representasse uma situação ruim. Isso se deve, provavelmente, pelo
fato de tradicionalmente estas pessoas procurarem um serviço médico especializado apenas em
momentos graves, cabendo aos pequenos problemas métodos simples e alternativos como ervas,
chás e benzimentos. Narra ainda, um episódio de uma mulher que a procura
Ontem mesmo teve uma mulher aqui dona de loja e me disse: “ah guria eu não aguento
mais, mandei arrumar um dente e me dói”. E eu disse: “a tua fé que tá pouca, eu vou te
benzer e tu vai sair daqui boa”. E eu benzi a mulher e ela já saiu boa. E tinha ainda que
viajar pro Paraguai hoje e saiu na porta dizendo que estava boa do dente. E meta antibiótico
só pra estragar o sangue. Coitada, só faltava Jesus no costado dela. Eu benzi em Nome de
Jesus; tudo o que eu faço é em nome dele. (2013).
3 Laídes Dutra da Silva, 63 anos. Nasceu na comunidade de Rincão dos Morais, interior de São Miguel
das Missões, onde morava com os pais e mais 09 irmãos. Analfabeta, benzedeira há 29 anos, solteira, devota
de São Jorge, aposentada pela agricultura e moradora da zona urbana de São Miguel das Missões.
Laídes fala em nome da mulher que a procura para curar uma dor de dente, que segundo ela
é motivada pela falta de fé em Jesus. O benzimento seria a solução: e assim acontece (segundo ela).
Após o benzimento, ela já não sente mais dores, estando assim com seu problema resolvido. Alzira
representaria um canal de fé junto a Jesus, colocando-o na vida das pessoas. Para a entrevistada, o
uso de antibióticos serve apenas para ‘estragar o sangue’, onde a fé é capaz de salvar e curar tudo.
Deixa claro a sua intransigência aos remédios industrializados. Conta também que:
[...] Agora que eu fiz meus exames, o doutor se apavorou como é que eu tinha um sangue
bem forte e me perguntou o que eu comia. Eu disse: “doutor, a minha comida é leite, feijão,
arroz, ovo, salada – eu como muito pouco –, fruta, sardinha e pão”. Eu não gosto muito de
carne. Se eu faço um carreteiro, eu engulo o arroz e deixo a carne. Hoje eu fiz carne de
galinha e não comi. Não sou carnífera. Eu gosto de comer feijão, arroz, mandioca, ovo,
leite; essas são minhas comidas preferidas. Prova é que meu sangue estava limpinho. Eu
disse pro doutor “que quero saber que sangue eu tenho”. Ele disse: “mas com um sangue
forte desse não precisa nem ficar sabendo que sangue é. Eu nunca vi sangue igual a esse
teu. Se metade do povo de São Miguel tivesse esse teu sangue aí, eu desistia de ser doutor”.
(2013).
São meus pacientes, consultam comigo como qualquer outro paciente, mantenho bom
relacionamento, não tenho nenhum tipo de preconceito com eles e eles comigo. São
geralmente idosos com patologias de base como hipertensão e alguma outra doença
cardiovascular e usam medicamentos como qualquer outro paciente e também fazem
exames quando solicitado. São pessoas que agem com muito respeito com o médico, que
valorizam o trabalho do médico. (2013).
4 43 anos de idade. Médico formado, desde 1995, pela Universidade Católica de Pelotas (Pelotas/RS). Reside
em São Miguel das Missões, desde 1997.
Com descrédito, quem conhece a ciência, a fisiologia e a fisiopatologia do corpo humano
tem dificuldades em acreditar em coisas empíricas. [...] Aqui os benzedores respeitam
muito a conduta médica, e não há conflitos. [...] São Miguel ficou com a fama por causa
do encontro dos benzedores, mas é pouco acreditada por aqui. Nos dias de hoje não se
houve falar que alguém veio de outro município para se benzer. No passado acredito ter
sido mais acreditada. Percebo que as pessoas que benzem têm poucos pacientes nem em
todos os dias. Soube de uma paciente recente que tem câncer de mama avançado que se
benzeu esta semana, mas veio consultar dizendo que não adiantou nada. (2013).
EUGÊNIO, Alisson. Arautos do Progresso: o ideário médico sobre a saúde pública no Brasil na
época do Império. Bauru: Edusc, 2012.
SAMPAIO, Gabriela dos Reis. Nas trincheiras da cura: as diferentes medicinas no Rio de Janeiro
Imperial. Campinas/SP: Ed. da Unicamp, 2001.
Os relatos de mulheres procedentes de outros países nos permitem fazer uma viagem ao
passado, pois elas guardam na memória as lembranças das experiências vivenciadas ao longo do
tempo. Neste sentido, as mulheres são indicadoras para os estudos da história da imigração no
Brasil. Com base nesse princípio, o estudo verte para a imigração feminina na cidade de Porto
Alegre, Rio Grande do Sul, no período entre 1930 e 1955, quando passou por picos de intensificação
e quase estagnação em decorrência da guerra e da crise econômica europeia. Através das falas das
mulheres, pretende-se conhecer aspectos relativos ao comércio, à guerra e às relações sociais por
elas estabelecidas. É importante entender os diferentes olhares e percepções da cidade, levando em
conta a origem de cada uma das imigrantes e confrontando as formas distintas de relações à medida
que se integravam à nova realidade.
Pesquisar a imigração, a partir das mulheres, se justifica porque seus relatos fornecem pistas
para entender os meandros e os artifícios utilizados por elas para se adaptarem e construírem
identidades contraditórias e diversificadas. Sabe-se que os indivíduos imigravam de várias regiões
da Itália, através de arranjos que configuravam as relações familiares e de trabalho. Eram essas
relações que determinavam os locais onde fixavam moradia e trabalhavam. Geralmente eram locais
e espaços comuns. Por exemplo, os moraneses se fixaram onde hoje é a Cidade Baixa, e os sicilianos
se fixaram no 4º distrito. Os imigrantes oriundos de outras regiões da Itália, se dispersaram para
outros bairros da capital gaúcha, como Menino Deus, Gloria, São João, Partenon, Azenha, Vila
Conceição, etc.
Desse modo, pensar o universo das mulheres imigrantes é pensar as diferenças de origem
regional que estabelecem fronteiras evidentes e, ao mesmo tempo, cogitar que, em sua maioria, as
mulheres integraram um projeto coletivo que não é vivido de modo totalmente homogêneo pelas
pessoas que o compartilham (VELHO, 1994, p. 41). Por exemplo, o grupo calabrês, considerado
até a década de 1990 como um grupo coeso, apresenta diferenças e divergências internas, tanto de
No que tange às questões relacionadas com a História Oral, se buscou suporte nas obras de
Portelli (2010) e Thompson (1992), que elucidam sobre os procedimentos teórico-metodológicos
relativos ao uso das fontes orais pelo historiador, e, também, chama a atenção para a função social
da oralidade de uma narrativa de vivências. Quanto ao social, esses autores, já citados, priorizaram
em seus estudos os grupos ou classes sociais locais de minorias que viviam em determinadas
comunidades. As narrativas dizem de um grupo composto por indivíduos que compartilham
experiências e fatos vividos. Portanto, eles também desenvolvem relações de amizade ou trabalho
(THOMPSON, 1992, apud FREITAS, 1992, p.19). Entretanto, os indivíduos se inserem
socialmente em níveis de realidades e fenômenos relacionados que estão em permanente tensão.
Isso pode ser percebido nos relatos das suas trajetórias porque
No caso, as imigrantes elencadas para este estudo possuem uma idade superior a 70 anos e
formam uma espécie de ligação entre a sua unidade de sobrevivência, com uma unidade maior, ou
seja, a narrativa de cada uma representa:
As pessoas mais velhas, por suas experiências e vivências, se tornam a memória da família,
do grupo e da sociedade, que pode ser percebida nas construções representativas que as pessoas
elaboram de si e do outro quando se relacionam cotidianamente. Essas construções se manifestam
nas práticas culturais recorrentes em determinados espaços de convivências que são limitadas de
formas visíveis ou invisíveis (BHABHA, 1998, p. 70-104). Nesse ângulo, o trabalho aponta que as
lembranças das mulheres imigrantes possibilitam a leitura de dados que se ligam através de rede de
funções, onde as pessoas desempenham relações umas com as outras.
As personagens deste texto chegaram a Porto Alegre em datas diversas, vindas de Morano
Calabro e da Sicilia, no Sul da Itália. Dalva Di Martino chega em 1948, com 14 anos; Maria Di
Gesú, em 1947, com 19 anos; Amala Morelli Aita em 1950, com 17 anos; Angelina Sanzi Ferraro
em 1937, com 22 anos. Elas imigraram da Calábria. Vicenza Nani em 1955, com 14 anos e Maria
Vinciprova Mancuso, em 1955, aos 26 anos, elas imigraram da Sicilia. Os parentes das imigrantes
arroladas estavam residindo em Porto Alegre, desde antes da II Guerra, é o que cada uma
informa nos respectivos depoimentos.3
As imigrantes não sabem dizer exatamente a data da chegada dos familiares porque tiveram
que suportar anos de separação e a cronologia da memória afetiva tem seus mistérios (BRUM,
2009, p.166). E não apenas esse fator concorre para que haja uma imprecisão ou esquecimento do
período que os parentes imigraram para Porto Alegre. Na época da vinda para Porto Alegre, as
imigrantes eram crianças e, na infância, a noção de tempo e espaço exige pensamento concreto e
racional, algo que nessa fase da vida a criança não tem, porque vive no mundo do “faz de conta”.
Abaixo, se apresenta a fotografia das italianas que colaboram com os depoimentos para produção
de fontes de pesquisa sobre imigração. A finalidade da foto e a elaboração mental da fisionomia das
mulheres produzindo um referente e dando visibilidade às vozes das italianas, portanto, é a de
representação.
A representação faz ver uma ausência, o que supõe uma distinção clara entre o que
representa e o que é representado; de outro, é a apresentação de uma presença, a
apresentação pública de uma coisa ou de uma pessoa. Na primeira acepção, a
representação é o instrumento de um conhecimento mediato que faz ver um objeto ausente
3Depoimentos das personagens encontram-se depositados no Acervo do Laboratório de História Oral do PPG
de História/PUCRS.
substituindo-lhe uma "imagem"capaz de repô-lo em memória e de "pintá-lo" tal como é.
(CHARTIER, 1991, s/p).
Fonte: ALAPHO5
4 Seus nomes, da esquerda para a direita: Vicenza Nani, Amalia M. Aita, Maria Di Gesù, Maria Vinciprova e
Dalva Di Martino. .
5 O Acervo do Laboratório de História Oral será referenciado com a sigla (ALAPHO).
6 Texto compilado do Almanaque comemorativo dos Cinquenta anos da Colonização Italiana no Rio Grande do
Sul. Cinquantenario della Colonizzazione Italiana Nello stato del Rio Grande del Sud: 1875-1925. Porto Alegre:
Globo; Roma: Ministero degli Affari Esteri dItalia, 1925, p. 13.
7 "Comércio", "Casa de negócios", "armazém de secos e molhados", "venda", "loja comercial", "taberna",
“botequim” são algumas das denominações para referir-se a um estabelecimento que promovia transações
comerciais, compra e venda de produtos diversificados, encontros para discutir sobre política, religião e falar
sobre a vida dos vizinhos. [...] podiam ser tanto um espaço de sociabilidade, na qual ocorriam jogos de carta,
troca de ideias, bailes; como um local de conflito, motivado, algumas vezes, pela ingestão excessiva de algum
tipo de bebida por alguns frequentadores, resultando em xingamentos, brigas ou desordens (VON MÜHLEN,
2014, apud AMADO, 2002, p. 52-53; SPERB, 1987, p 17-18; MARTINY, 2010, p. 238).
em meio às transformações. Em 1895, a Rua da Praia, no centro de Porto Alegre, era o local
onde havia maior concentração de estabelecimentos comerciais. Dos 286 estabelecimentos
registrados, 161 eram identificados com segurança por seus proprietários com sobrenome
estrangeiros; destes, 78 estabelecimentos que estavam registrados eram de origem italiana
(CONSTANTINO, 1998, p. 151).
As informações dos registros e crônicas dão conta de um número expressivo de
comerciantes italianos participando ativamente da sociedade no inicio do século XX, em Porto
Alegre. Os italianos eram proprietários de casas de negócios na Rua dos Andradas, entre as Ruas
Bento Martins e Senador Florêncio Igartua. A zona era conhecida como quadra dos italianos e
alguns estabelecimentos possuíam nomes que sugeriam a procedência e a condição de seus
proprietários (CENNI, 2003, p. 171). Há que se reiterar que registros frisavam a presença de
peninsulares, indicando que estes apresentavam atividades comerciais diversificadas e onde
estavam radicados na capital. As informações mencionadas dão conta de um período específico
relacionado à grande migração. Entretanto, poucos anos antes, em 1890, o censo apontava para o
fator de que em torno de 10% da população porto-alegrense era composta por
italianos, o equivalente a seis mil habitantes; um percentual que através de projeções8 se
estende até 1915 (CONSTANTINO, 1987, p. 61, apud BORGES, 1993, p. 27).
A pesquisa de Nuncia Santoro de Constantino (1987), fundamentada em uma gama
diversificada de fontes, inclusive aquelas ligadas à administração municipal, como relatório anual
de recolhimento de impostos, constatou o predomínio e a ascensão social dos calabreses em
determinados nichos comerciais. Recentemente, a pesquisa de Leonardo Conedera (2012) também
evidenciou a presença siciliana caracterizada por uma imigração qualificada no pós II Guerra
Mundial. O autor observa, em sua investigação, que os sicilianos constituem o terceiro maior grupo
do contingente italiano em Porto Alegre, no período, sendo que parte deles dedicou-se ao comércio
de pequeno e médio porte, como tavernas, cafeterias, açougues, alfaiatarias sapatarias, armazéns,
entre outros.
Entretanto, há muito que conhecer a respeito dos comércios de imigrantes italianos que se
fixaram em Porto Alegre, antes e depois da II Guerra, dedicando-se ao comércio. Os imigrantes que
se deslocaram, nesse período, caracterizam-se por fluxos espontâneos oriundos de pequenas áreas
da Itália e estimulam uma experiência de mobilidade, relacionada, principalmente, à atividade dos
pequenos comerciantes e dos artesãos, alcançando significativa contribuição à construção das
modernas redes urbanas (DE RUGGIERO, 2012, p. 179).
8 Consultar a obra de Stella Borges: Italianos: Porto Alegre e trabalho. Porto Alegre: EST, 1993, p. 30.
É precisamente neste período que as personagens desta investigação estão inseridas, num
momento intermediário entre o primeiro fluxo que vem para a cidade, antes da II Guerra, e o
segundo que se inicia quando termina a II Guerra. As mulheres fornecem informações sobre os
deslocamentos, sobre as atividades e as localizações dos estabelecimentos. Dalva (2010) relatou
que veio em 1948 para Porto Alegre. Além disso, expôs que não via o seu pai, desde “pequenina”,
em decorrência da guerra. O seu pai tinha comércio, um pequeno restaurante. “Ele (o pai) conta,
porque eu não sei... Era na Santa Casa. Tinha aqueles vários lugares embaixo para entrar, que agora
já não sei se tão usando.” Dalva exprime suas lembranças de uma forma particular, das quais se
vislumbram aspectos da memória e da cidade.
O local, mencionado por Dalva, se refere ao conjunto das denominadas “casinhas” de
propriedade da Santa Casa de Misericórdia de Porto Alegre, localizadas na Rua Independência e na
Rua Sarmento Leite. As edificações foram construídas para serem alugadas com a finalidade de
ajudar a manutenção do hospital. Algumas casas destinavam-se à moradia de famílias e outras eram
utilizadas como estabelecimentos comerciais onde, ao que indica o depoimento de Dalva, se
localizava o restaurante do seu pai.
Figura 2 – Antigas casas de aluguel pertencentes à Santa Casa (atual Centro Histórico-Cultural)
Fonte: www.ufrgs.com.br
Observa-se que a evocação não pertence à sua memória; são lembranças que o seu
pai compartilhou com a família. Elas constituem uma memória familiar denominada memória
herdada, ou seja, são as memórias transmitidas de geração para geração, dentre as quais os
familiares são as principais e são importantes fontes de conexão entre memória e identidade.
(POLLAK, 1992, p. 5). Prossegue dizendo que: “depois o pai colocou um armazém, mas
sempre na parte comercial. Era onde é o gasômetro,9 próximo às margens do Guaíba” (DI
MARTINO, 2010). Provavelmente, o
9 Antiga usina brasileira de geração de energia localizada na capital gaúcha, que apesar do nome usina era movida
a carvão mineral. Adenominação "Gasômetro" fazia referência à área onde hoje está a Usina, chamada de Volta
do Gasômetro. O prédio da Usina do Gasômetro foi inaugurado no final da década de 1920 para abrigar a
Companhia Brasil de Força Elétrica, subsidiária da Eletric, Bond & Share Co., empresa com sede nos Estados
Unidos, que gerou a eletricidade e o transporte elétrico de Porto Alegre até a metade da década de 1950.
MARTINO, 2010). Provavelmente, o estabelecimento se localizava próximo ao gasômetro,
mais especificamente onde persistem até hoje alguns antigos armazéns e bares.
Por sua vez, Maria Di Gesù recorda que quando chegou a Porto Alegre, em 1947, foi
morar na Rua Avaí, onde já residiam outros italianos próximos: “na Demétrio Ribeiro e na
Rua Espírito Santo, tudo mais ou menos no mesmo lugar [...].” Era um espaço ocupado pelos
italianos da “velha guarda calabresa”, rastreados nas pesquisas anteriores. Maria prossegue
dizendo que o pai e os irmãos eram sócios no restaurante Bela Vista; este se localizava na
Rua Washington Luiz, esquina com a Rua Espírito Santo. “Naquele tempo, o restaurante
ficava ao lado da Associação Cristã de Moços. O trem ainda passava por ali quando
chegamos da Itália.” (DI GESÙ, 2010). A foto panorâmica retrata o local, onde estava
localizada a Associação, que está marcada por um círculo, e o restaurante, provavelmente,
localizava-se em um dos pontos assinalados pelas setas.
Figura 3– Sede da Associação Cristã de Moços em Porto Alegre - Rua Washington Luiz, 1955
Fonte: www.flikr.com
[...] ao chegarmos à cidade de Porto Alegre, em 1950, fomos morar na Vila São Luiz, no
Jardim Botânico. O marido fazia comércio. Primeiro vendia bilhetes de loteria, depois de
um tempo resolveram montar um negócio na Rua Tomas Flores; um negócio de açougue
e fiambreria. (MORELLI AITA, 2012).
Fonte: ALAPHO
[...] em 1949, Francesco Spina, outro imigrante italiano, entrou para a sociedade. Quatro
anos mais tarde, Biaggio Sanzi também passou a integrar o grupo. Este efetuara o trajeto
Itália - Brasil, em 1945, quando a Europa vivenciava o desfecho da Segunda Guerra
Mundial. (Jornal do Comércio).
Conversando com as depoentes, se entende os atrativos que a venda de bilhete exercia sobre
eles. Primeiro, porque era uma atividade onde se ganhava muito dinheiro. Segundo, porque a língua
não era entrave, pois a atividade era exercida nos espaços públicos onde atuavam muitos italianos.
Terceiro, porque a circulação dos imigrantes favoreceu à inserção e socialização em um espaço de
tempo menor; logo aprendiam a falar o português rapidamente. Contudo, após a II Guerra, a venda
de bilhetes deixou de exercer atração devido a nova característica da imigração. Para entrar no
AMATTA, R. Cidadania: a questão da cidadania num universo relacional. In: _____. A casa e a
rua. São Paulo: Brasiliense, 1985, p. 71-102.
BORGES, Stella. Italianos: Porto Alegre e trabalho. Porto Alegre, EST: 1993.
BRUM, Rosemary Fritsch. Uma cidade que se conta: imigrantes italianos e narrativos no espaço
social da cidade de Porto Alegre nos anos 20-30. São Luis/MA: EDUFMA, 209.
Cinquantenario della Colonizzazione Italiana Nello stato del Rio Grande del Sud: 1875-1925.
Porto Alegre: Globo; Roma: Ministero degli Affari Esteri dItalia, 1925.
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AITA, Amalia Morelli. [História de vida] Transcrição do depoimento oral. Acervo. Laboratório
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FERRARO, Angelina Sanzi Ferraro. [História de vida] Transcrição do depoimento oral. Acervo.
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Porto Alegre, 2006, p. 01-09.
SALVATORE Aita. 1943. Imagem. Acervo. Laboratório de Pesquisas em História Oral, Programa
de Pós-Graduação em História, PUCRS, Porto Alegre, 2015.
Vania Beatriz Merlotti Herédia*
Guilherme Griebler**
A cidade de Caxias do Sul conta com um museu especial que trata da presença da Força
Expedicionária Brasileira, na Segunda Guerra Mundial. O museu foi criado por iniciativa de um
ex-combatente, que decidiu socializar a experiência que teve na guerra, junto com outros pracinhas,
e criar um espaço dessa memória. A criação do museu materializou o desejo de reunir fragmentos
de uma história que nem todos conheciam, bem como ter um local de referência, que pudesse
garantir a manutenção de uma série de fontes sobre o evento.
O museu da FEB, em Caxias do Sul, foi criado em 1976 por iniciativa de Alberto Arioli e
companheiros de luta, envolvendo muitas famílias que tiveram seus familiares na guerra. O objetivo
do museu foi reunir artefatos, fotografias, jornais, materiais de guerra, vestimentas e uniformes que
pudessem estimular o imaginário dos visitantes sobre o evento, num viés histórico, político e social,
e permitissem visualizar situações que os pracinhas enfrentaram. O estudo faz uso da História Oral
e utiliza uma entrevista de um dos principais protagonistas do museu da FEB em Caxias do Sul,
que se chama Alberto Arioli.
De acordo com Portelli (1997, p. 31), “a subjetividade do expositor” é um elemento precioso
que auxilia a esclarecer os eventos e seus significados. O autor postula que “a importância do
testemunho oral pode se situar não em sua aderência ao fato, mas de preferência em seu afastamento
dele, como imaginação, simbolismo e desejo de emergir”. (PORTELLI, 1997, p. 32). Neste estudo,
a memória coletiva é tratada segundo a concepção de Halbwachs (2004, p. 32). Esse autor postula
que para compreender uma recordação é necessário que seja “contemporaneamente reconhecida e
reconstruída”. A condição é estar vinculado a um quadro social que possa ser uma referência para
esse reconhecimento. Evidencia que, “no primeiro plano da memória de um grupo se destacam as
lembranças dos acontecimentos e das experiências que concernem ao maior número de seus
membros e que resultam, quer de sua própria vida, quer de suas relações com os grupos mais
próximos”. (2004, p. 49). Quando Halbwachs (2004, p. 38) se refere à memória de apenas um
indivíduo, comenta a necessidade de o mesmo estar vinculado a uma “comunidade afetiva”, que
lhe permite recordar. Essa memória, que é individual, também é coletiva, já que compartilha os
mesmos sentimentos que unem esses indivíduos por meio dessas lembranças. Nesse sentido, os
depoimentos sobre a participação dos pracinhas, que constituem uma memória coletiva, agrupam
O presidente Getúlio Vargas, durante seu período de governo ditatorial, conhecido como
Estado Novo, criou uma grande campanha nacionalista aliada a uma política intervencionista,
visando o crescimento econômico-industrial do País. A campanha foi marcada por ideais de
patriotismo e civismo, com o objetivo de que o Brasil se tornasse uma nação consolidada em nível
de unidade política, fortalecendo-o como governante. Capelato completa:
Com a eclosão da Segunda Guerra Mundial, o Brasil procurou não se envolver diretamente
no conflito. Havia interesses econômicos por parte do governo, em ambos os lados. Por simpatizar
e haver semelhanças com os sistemas de governo alemão e italiano, Vargas continuou negociando
com os países do Eixo, mesmo estando sempre mais ligado social e economicamente aos Estados
Unidos. Os jornais da época, que eram os principais meios de divulgação de informações sobre o
que estava acontecendo no “velho continente”, também traziam diretrizes do governo, como, por
exemplo, a proibição de comentários sobre o conflito europeu na época, enquanto o Brasil
mantinha-se neutro. Como é o caso do jornal A Época, que circulava na cidade de Caxias do Sul e,
na ocasião da invasão da Polônia pelos nazistas, trouxe a seguinte notícia:
NEUTRALIDADE! Vinte e cinco anos e dias após, voltam a ribombar os canhões e a ser
derramado o sangue de outra geração, em uma nova conflagração europeia. Esgotadas, ao
que parece, todas as tentativas para a solução pacifica dos problemas [...]. [...] o Brasil terá,
indiscutivelmente, com a atual guerra, influências determinantes em sua economia interna
e externa. [...] Livres, portanto, estamos para mantermos uma política que nos convier,
política essa que salvaguardando os brios de nossa nacionalidade e princípios humanos
que nos têm orientado até hoje, deverá se firmar em bases econômicas. Impõe-se-nos,
entretanto, para que as consequências não nos resultem funestas como em 14, ou mais,
que se adote intransigentemente a política da neutralidade. Mantendo uma neutralidade
até quanto a nossa honra de povo livre e nossos interesses no-lo permitam e lutando com
lealdade e com todas as nossas energias para esse mesmo alheiamento material da grande
hecatombe que está a destruir países irmãos, alimentemos a nossa fé e segurança nos
destinos de nossa pátria, confiantes e serenos, ainda, e que os nossos governantes, mais
uma vez, saberão compreender o seu povo e manter sua integridade moral e material
lutando com todas as forças até o inevitável. Caxias, 02/09/39 (B. NETTO, 1939, p.1).
A FEB transformou-se [...] em algo mais humano, mais vivo, mais real. E os seus
componentes, em atores de uma intensa representação onde houve de tudo: o humor, o
erro de organização, o temperamento do chefe, a dor, a alegria, o medo da morte, a
coragem irrefletida, a inquietação, etc. Representação em que o homem, com o seu
coração e o seu psique, se revelou por inteiro. (HENRIQUES, 1959, p. 9).
O histórico de vida de muitos dos brasileiros que compuseram a Força Expedicionária era
de sofrimentos e privações no Brasil. E quando estes chegaram à Europa, e viram a situação do
povo que ali vivia, naturalmente se sensibilizaram com a causa. Muitas homenagens foram
realizadas, inclusive, com monumentos, museus, em algumas cidades por onde a FEB esteve na
Itália, e também no Brasil.
Durante a investida brasileira na Europa, Vargas intensificou sua política nacionalista,
proibindo o uso de línguas e dialetos derivados do alemão, italiano ou japonês. Além disso, houve
a substituição de nomes de ruas, praças e avenidas, que fizessem alusão a figuras estrangeiras, para
nomes que caracterizassem identidades nacionais. Há relatos de pessoas, descendentes de italianos,
por exemplo, geralmente mais velhos que mal sabiam falar português, que tinham medo de sair de
casa pela possibilidade de serem presos por irem ao mercado comprar mantimentos falando algum
tipo de dialeto.
Alberto Arioli é o protagonista desta história. Foi voluntário e participou da guerra de forma
espontânea. Neto de imigrante italiano, chamado Tommaso Arioli, de Reggiolo, Provincia de
Reggio Emilia, seu pai nasceu em Bento Gonçalves, antiga Colônia Dona Isabel. Trabalhava como
funileiro quando foi convidado pela metalúrgica Abramo Eberle para fazer parte do corpo de
funcionários. Casou-se com a filha de um professor que vivia em Caxias do Sul, da família Pezzi.
Alberto Arioli conta que tomou conhecimento das notícias sobre a guerra por meio de um jornal
que passava no cinema antes do começo dos filmes, denominado Jornal da UFA. Esse jornal tinha
preferências por eventos militares, e Adolf Hitler era um símbolo apreciado. Mas, houve um
momento em que as notícias da guerra passaram da tela do cinema para o centro da praça da cidade,
e este espaço tornou-se um lugar de discursos políticos. Esses comícios datam de 1942. Os mais
fortes e alarmantes ocorreram quando os navios brasileiros foram atacados, e o governo brasileiro
rompeu com a Alemanha, Itália e Japão e assumiu apoio aos ingleses, americanos e franceses.
A guerra não era um fato novo, e sabia-se dos resultados do que havia ocorrido vinte e oito
anos antes, quando declarada a Primeira Guerra Mundial. Mas, em 22 de agosto de 1942, o Brasil
declarou guerra, e essa decisão política significava que o conflito mundial afetaria nosso País.
Criou-se um clima contra os italianos, uma vez que o Brasil havia se colocado do lado contrário ao
da Itália. Para a colônia italiana, era difícil entender todas as exigências que a guerra traria, ou seja:
mudanças de hábitos, perseguições, discriminação, problemas de natureza política, que afetariam a
vida na cidade.
Arioli comenta, que com a queda de “Mussolini, a Itália voltou a ser nossa aliada, e os
ânimos foram apaziguados em nossa região. Os italianos natos e os seus descendentes começaram
um novo amanhã”. (ARIOLI, 2012, p. 59). Arioli descreve como o Brasil comprou um navio
mercante, denominado “Cabedelo”, para participar da guerra em 1942, navio que foi afundado por
um submarino italiano, antes mesmo de o Brasil declarar guerra.
Seu Arioli conta que uma parte da história começou com a compra de um navio mercante
por parte do governo brasileiro, que era chamado de Cabedelo, quando o Brasil entrou de forma
efetiva na guerra. Cabedelo é também o nome que Arioli dá ao livro que escreve sobre a sua
participação na guerra. Quando fala de Cabedelo, lembra que seu comandante era o “Capitão Pedro
Veloso da Silveira” e narra como o navio foi destruído por um submarino italiano; esse fato foi
conhecido apenas após a guerra.
O serviço militar para os jovens no Brasil é uma regra estabelecida por lei. O alistamento
não significa que o jovem será incorporado às Forças Armadas. A instituição do serviço obrigatório
remete à Lei 1.860, de 1908, que “instituiu o serviço militar obrigatório, extinguiu a figura do
soldado profissional e estabeleceu que a convocação se faria por sorteio.” (LEAL, 2007, p. 6).
A Lei 1.860, de 4 de janeiro de 1908, regula o alistamento e sorteio militar e reorganiza o
Exército.1 É apenas em 1915 e 1916, por meio de uma campanha liderada por Olavo Bilac,
que essa norma é incorporada à legislação com fins práticos.
Entretanto, quando Alberto Arioli se alistou para participar da FEB, tinha convicção de que
seria convocado. Havia lido, no jornal da cidade A Época, que estavam recrutando civis para
participarem da FEB. A obrigatoriedade do serviço para os jovens não implicava ir para a guerra.
São Leopoldo, para Alberto Arioli, foi a primeira etapa do deslocamento. Os inscritos em Caxias
para participarem do movimento bélico eram 12, incorporados ao Oitavo Batalhão de Caçadores
de São Leopoldo e o número de envolvidos para o treinamento armado foi de 500 homens. Segundo
Arioli:
A unidade recebeu gente do interior (estes convocados), pessoas da colônia alemã que não
sabiam falar português. Dava pena, eram pessoas humildes, da colônia, mas tínhamos
alguns sargentos que falavam alemão, por serem da região e, isto, facilitava bastante. O
nosso comandante, muito rígido, resolveu mandar colocar no braço desses soldados, uma
fita preta, com a recomendação de que somente poderia sair do quartel quando soubessem
um português razoável. (ARIOLI, 2012, p. 87).
Enfim, chegávamos ao roteiro final: Nápoles. Neste dia, recordo que me perguntaram
como eu sabia em que cidade estávamos, afinal, eu nunca estivera lá. Contei-lhes, então
que assistira a um filme chamado Os últimos dias de Pompéia, em que Vesúvio era o
personagem principal. O dito vulcão tinha destruído a cidade fundada pelos gregos,
chamada de Pompeia, com suas lavas e seus gases. (ARIOLI, 2012, p. 92).
Após essa vitória, novo alvo havia sido traçado pelos estrategistas da guerra. Estávamos
próximos do fim da guerra, mas os soldados ainda não tinham essa dimensão. O alvo era a cidade
de Montese, que se localizava atrás de Monte Castelo, onde os alemães haviam se instalado. Após
essa cidade, continuou o avanço das tropas. Antes da derrubada de Mussolini do poder, os italianos
conviviam com os alemães de forma espontânea, mas depois se tornaram inimigos. A rendição dos
alemães estava prestes a acontecer.
A guerra foi duplamente dificultosa para os homens, como seu Arioli. Participar de um
conflito mundial, em um Exército que enfrentou toda a sorte de problemas e precariedades,
enquanto seus amigos e familiares sofriam as duras repressões por parte do governo, não foi uma
empreitada fácil.
A história destes nossos heróis, ainda não é clara para todos. Os brasileiros não têm
consciência da verdadeira participação do seu País no conflito. Nem os italianos, apesar de grande
parte da população presente naquelas regiões de guerra ter tido contato com os soldados da FEB,
não são ensinados sobre a participação do Brasil na libertação do seu povo.
O que traz à tona essa “história não contada” são os relatos de seus protagonistas, pequenas
histórias que não foram esquecidas. Fontes que, muitas vezes, por traumas de guerra, não puderam
4 Despedida dos pracinhas da FEB, com desfile na praça central de Caxias. De onde partiram para Porto Alegre,
rumo ao Rio de Janeiro,embarcando no navio a vapor com destino à Itália, para juntarem-se aos soldados das
forças aliadas na Segunda Guerra Mundial. Imagens cedidas por Alexandre Milesi de seu avô Maximiliano
Zattera, ex-combatente da FEB. .
5 Uma companhia do III Batalhão do 11ºRegimento de Infantaria da Força Expedicionária Brasileira na
Segunda Guerra Mundial. Disponível em: <https://goo.gl/qKcX4z>. Acesso em: 30 julho de 2017.
ser tão exploradas. O que nos resta, então, é resgatar essa história. As lembranças, as fotografias, os
relatos são possibilidades de explicitar esses fatos. Todas essas fontes devem ser exploradas. Um
relato, além de nos trazer uma informação, pode nos mostrar um pouco mais daquilo que sabemos,
pode permitir “passear” pela História, por meio de experiências narradas, que revelam detalhes que,
de outra forma, talvez passassem despercebidos.
Arioli (2012, p. 97) faz uma declaração do que entende por heróis e explica que a sociedade
banalizou esse conceito. Para ele, o herói é “aquele que deixou marcas indeléveis, deixando o seu
currículo de vida acima de todas as circunstâncias normais e transcendendo o eterno. É aquele que
deixou sua vida como um símbolo, sem manchas, que nem mesmo as palavras podem definir”.
ARIORI, Alberto. Cabedelo: a odisseia de uma vida. Caxias do Sul: Quatrilho, 2012.
BANTI, Alberto Mario. L’età contemporanea: dalla grande guerra a oggi. Bari: Laterza, 2009.
CAPELATO, Maria Helena. O Estado Novo: o que trouxe de novo? Rio de Janeiro: Record,
2007.
DUROSELLE, Jean Bapstiste. Todo império perecerá. Rio de Janeiro: Ed. da FGV, 2000.
HENRIQUES, Major Elber de Mello. A FEB doze anos depois. Rio de Janeiro: Biblioteca do
Exército, 1959.
LEAL, Alberto. Serviço militar obrigatório: a alternativa adequada. Diretoria de Serviço Militar.
Brasília, 2007. Disponível em: <https://goo.gl/WHRJAz>. Acesso em: 3 ago. 2017.
MOREIRA, Regina da Luz. Fatos & Imagens > 1944: O Brasil vai à guerra com a FEB.
Disponível em: <http://cpdoc.fgv.br/producao/dossies/FatosImagens/FEB>. Acesso em: 05 set.
2017.
NASCIMENTO, Luiz Augusto Rocha do. Serviço militar obrigatório no Exército brasileiro:
(re)formando o cidadão. Juiz de Fora: UFJF, 2007. Disponível em: <https://goo.gl/r4YFrg>.
Acesso em 4 ago. 2017.
NETTO, João Brusa. Neutralidade. In: A Época. Caxias do Sul, a. 1. n. 49, 3 de set.de 1939.
PORTELLI, Alessandro. O que faz a história oral diferente. Projeto História. Revista do
programa de Estudos pós-graduados de História. São Paulo, v.14, p. 25-39, fev.1997.
SANTOS, Luciana Ibarra dos. Há algo de novo no front: a participação do Brasil na Segunda
Guerra Mundial. 2006. Dissertação (Mestrado em História) – PUCRS, Porto Alegre. Disponível
em: <https://goo.gl/J9nPYE>Acesso em 04 de agosto de 2017.
Caroline Beskow Quintana*
O presente artigo foi elaborado com base no terceiro capitulo da minha monografia,
intitulada “Hotelaria em Pelotas na década de 1940: proprietários alemães ou descendentes”. O
trabalho também se insere no projeto de pesquisa “A história da hotelaria em Pelotas na primeira
metade do século XX”, financiado pelo edital MCTI/CNPq nº 14/2014.
O objetivo deste artigo é analisar os impactos da II Guerra Mundial nos hotéis cujos
proprietários eram alemães ou descendentes, analisando o “quebra-quebra” de agosto de 1942, na
cidade de Pelotas. Para isso foram identificados 5 hotéis que estavam em funcionamento em 1942,
cujos proprietários eram alemães ou descendentes, e que tiveram seus estabelecimentos atacados
em agosto do mesmo ano, durante o “quebra-quebra” ocorrido em Pelotas.
Foi aplicada a História Oral, utilizando a narrativa de quatro entrevistados. As entrevistas
foram gravadas e transcritas. A História Oral é “uma pratica de apreensão de narrativas feita através
do uso de meios eletrônicos e destinada a: recolher testemunhos, promover analises de processos
sociais do presente, e facilitar o conhecimento do meio imediato.” (MEIHY; HOLANDA, 2011, p.
18). Este método de pesquisa permite “recuperar aquilo que não encontramos em documentos de
outra natureza: acontecimentos pouco esclarecidos ou nunca evocados, experiências pessoais,
impressões particulares.” (ALBERTI, 2005, p. 22).
Na pesquisa, utilizou-se também fontes bibliográficas, como as listas telefônicas do Guia
de Assinantes da Companhia Melhoramento e Residência e os Almanaques de Pelotas, onde
obteve-se os endereços dos hotéis pesquisados, bem como seus proprietários e as fontes
jornalísticas, principalmente o jornal Diário Popular, para a busca de datas, como fundação dos
hotéis, entre outras informações.
As informações foram analisadas de forma qualitativa, descritivamente, utilizando as falas
dos entrevistados, as quais, em determinadas situações, foram transcritas literalmente.
Pelotas recebeu imigrantes alemães durante todo o século XIX, mas principalmente na
segunda metade, após o término da Revolução Farroupilha, em 1845. A região serrana da cidade
foi destinada ao assentamento de imigrantes europeus, entre eles, alemães e italianos, o que
aconteceu, basicamente por capitais particulares (ANJOS, 2000).
A década de 1940 foi marcada pela II Guerra Mundial, fato que afetou a economia de todo
o mundo, incluindo o Brasil, que entrou na guerra em agosto de 1942. Nesta data, os imigrantes
alemães e seus descendentes residentes no Brasil sofreram com a violência causada pelos
brasileiros. Neste contexto, Pelotas também foi atingida, tendo vários estabelecimentos atacados,
saqueados, queimados e/ou fechados. Assim, se faz necessário realizar uma breve descrição do
contexto da II Guerra Mundial.
Serão analisados, de forma breve, alguns acontecimentos anteriores à II Guerra Mundial,
quando, em 1930, Getúlio Vargas chegou à presidência do Brasil.
O período conhecido na história nacional como Estado Novo teve seu início no dia 10 de
novembro de 1937, quando o Congresso Nacional foi fechado e uma nova Constituição
foi promulgada. Sob o comando de Getúlio Vargas, essa nova forma de governo foi
imposta e justificada como a mais adequada para a realidade e para as necessidades do
país (VIANNA, 1939, apud BONET; ABREU, 2009 p. 1).
Sobre a nova Constituição, Bonet e Abreu (2009, p. 1) afirmam que “a nova Constituição
centralizava o poder nas mãos do presidente, fortalecia a intervenção estatal na economia e
estimulava a organização sindical em moldes corporativistas.”
Em 1º de setembro de 1939, quando invadiu a Polônia, a Alemanha entrou oficialmente na
II Guerra Mundial (BONET; ABREU, 2009). E, segundo esses autores, os Estados Unidos e a
Alemanha lutavam por um posicionamento do Brasil. O Brasil representava para os Estados Unidos
e para a Alemanha um grande mercado fornecedor de matérias-primas e consumidor de produtos
manufaturados. Enquanto isso, Vargas negociava vantagens comerciais com os dois países.
Segundo Fachel (2002), um dos motivos do posicionamento de Getúlio Vargas foi:
Sob pressão econômica e militar dos Estados Unidos, precisando de financiamentos para
a construção da Siderúrgica de Volta Redonda, da manutenção das exportações para os
aliados e na eminência de sofrer uma ocupação no nordeste brasileiro, Vargas foi coagido
a se definir. Ao lado da cedência de bases no Rio Grande do Norte e da posterior
subordinação da FEB aos norte-americanos, o governo brasileiro, num aparente absurdo,
decretou violenta repressão aos nazi-fascistas [sic] ligados aos governos do eixo.
(FACHEL, 2002, p. 37).
Segundo Bonet (2008), em janeiro de 1942, ocorreu a Reunião dos Chanceleres na capital
do Brasil, onde:
Segundo Fachel (2002), para mostrar que o posicionamento do Brasil era firme e
demonstrar sua nova fé, “a polícia do Estado Novo passou a perseguir todas as manifestações
culturais dos alemães, italianos e japoneses ou de seus descendentes.” (FACHEL, 2002, p. 37).
De acordo com o mesmo autor, o governo brasileiro havia decretado uma violenta repressão
aos países ligados aos governos do eixo, e, com a política do Estado Novo, passaram a perseguir
todas as manifestações culturais de alemães, italianos e japoneses incluindo os seus descendentes,
mostrando uma confusão entre o nazismo e a identidade cultural destes imigrantes, o que acarretou
a indignação brasileira ao povo alemão. Essa confusão não começou quando o Brasil entrou
oficialmente na Segunda Guerra Mundial, como apontado por Fachel (2002):
Porém, foi com a entrada oficial do Brasil na Segunda Guerra Mundial que a violência
contra os “teuto-brasileiros” se acentuou.
Segundo Perazzo (2003), de 1942 a 1945, alemães, japoneses e italianos foram presos,
confinados, por serem “súditos do Eixo” no que denominamos de Campos de Concentração. No
sul do país, a comunidade teuto-brasileira foi “rotulada com a expressão “súditos do Eixo”, aplicada
até mesmo a brasileiros descendentes de alemães, que chegavam a ser presos por causa de questões
culturais (língua, tradições, etc.).” (PERAZZO, 2003, p. 3). E, segundo a autora:
A vigilância e a repressão estenderam-se a todos os estrangeiros do Eixo, mas variavam
de intensidade de grupo para grupo. Os alemães foram os mais visados pelas perspectivas
nacionalistas do governo Vargas e, consequentemente, os mais atingidos pelas medidas
governamentais. Somando o maior número de cidadãos encarcerados, eles representavam
uma dupla ameaça: enquanto grupo étnico que insistia em supervalorizar sua cultura e
atuar politicamente nos moldes de um regime estrangeiro, colocando em risco o projeto
nacionalista interno e, como súditos de um chefe com ambições imperialistas, como era o
caso de Hitler, representavam um perigo internacional. (PERAZZO 2003, p. 2).
No dia 18 de agosto de 1942 foi noticiado em jornais que três navios mercantes brasileiros
foram afundados por submarinos do “Eixo” no litoral brasileiro. Essa notícia desencadeou uma
onda de revolta contra a comunidade germânica em diferentes regiões do Estado (FACHEL, 2002).
No dia em que o Brasil entrou na II Guerra Mundial, contra os países do eixo (Alemanha, Itália,
Japão e países satélites), conforme anunciada pelos jornais Opinião Pública e Diário Popular, se deu
início a uma passeata no centro da cidade de Pelotas, conhecida como o grande “quebra-quebra”,
tendo como alvos os estabelecimentos comerciais e residências de alemães e italianos que residiam
em Pelotas.
As manifestações e depredações na cidade deram início às 48 horas de saques, queimadas
e invasão aos estabelecimentos e residências dos teuto-brasileiros. Entre estes estabelecimentos
estavam os hotéis cujos proprietários eram alemães ou descendentes. Obtive informações de que
cinco hotéis foram atacados durante o “quebra-quebra” em Pelotas, em 18 e 19 de agosto de 1942.
Foram atacados os seguintes hotéis: o Hotel América, o Hotel do Comercio, o Hotel Gloria, o Hotel
F. Treptow e o Hotel Fiss e Tessmann.
Na notícia acima, do jornal Diário Popular, é relatado que a multidão apedrejou diversas
casas de alemães, entre elas o Hotel do Comércio e o Hotel América. Ressalta-se aqui a confusão
comentada por Fachel (2002) entre a identidade cultural dos alemães e o nazismo, pois não foram
os nazistas atacados na cidade e sim os imigrantes alemães e descendentes de alemães.
Nesta notícia, é relatado que um grande número de casas comerciais foi depredado no dia
19 de agosto, no período da tarde, dentre eles: o Hotel América, o Hotel do Comércio, que foram
citados na notícia anterior, o Armazém Fiss e Tessmann e o Hotel de F. Treptow e Cia.
O “quebra-quebra” não foi um fator isolado da cidade de Pelotas, pois, conforme Fachel
(2002), aconteceram depredações em Porto Alegre e outras cidades do Sul do estado. O autor
também esclarece que não foi apenas com a entrada do Brasil na II Guerra Mundial, mas que a
partir da I Guerra estes incidentes já ocorriam. Porém, em agosto de 1942, estes ataques ocorreram
de forma acentuada. “Os dias dos “cristais”, para os teuto-brasileiros, ocorreram em agosto de
1942, quando suas lojas foram saqueadas e destruídas em várias cidades brasileiras. Pelotas e Porto
Alegre são dois exemplos.” (FACHEL, 2002, p. 35).
O Hotel América foi incendiado em 1942, durante o “quebra-quebra”, como mostram as
Figura 1 e a Figura 2. Após os ataques, o proprietário não abre mais o hotel. Porém, no mesmo local
é aberto outro hotel, cujo proprietário não era alemão ou descendente, mas com o mesmo nome.
Assim, em 1947 estava em funcionamento o Hotel América, na rua Félix da Cunha, nº 604, de
propriedade de Florentino Vieira F. (COMPANHIA, 1947).
O Hotel do Comércio também foi atacado. E segundo a entrevistada, Erna (2005), em 1942
o hotel fechou, pois, o proprietário foi preso durante o “quebra-quebra”, não abrindo novamente
com o mesmo proprietário. Em 1943 foi aberto no local o “Novo Hotel do Comércio”, pelo ex-
proprietário do Hotel Rego (Diário Popular, 11.07.1943, p. 6).
Segundo Perazzo (2003), os teuto-brasileiros foram rotulados com a expressão “súditos do
Eixo”, e esta era aplicada até mesmo a brasileiros descendentes de alemães, que eram presos por
questões culturais como língua e tradições.
A entrevistada Erna relata o que aconteceu no dia que atacaram o hotel:
Aí houve aquelas quebras e queimas por causa da Guerra Mundial, da II Guerra Mundial.
Aí uma noite, eles vinham pela Sete de Setembro e foi tudo assim um movimento. Havia
assim de gente, com pedras nas mãos e começaram até a atirar pedra nas janelas no
segundo andar. Aí quebrou vidro e não tinha hóspede quase, assim durante a noite; não
tinha muitos. Muita gente usava aquele hotel para vir fazer compras, para consultar de São
Lourenço, Camaquã, assim de Morro Redondo; paravam durante o dia. Também pediam
um quarto, e no momento que aquelas pessoas saíam, aí tinha que ser tudo já... Trocada a
roupa para não... E aquela noite o que que a gente fez? De repente... Tinha o porteiro e o
porteiro não queria deixar entrar ninguém. Eles queriam entrar e atirar tudo para a rua; aí
não deixou o porteiro velho. Seu Julio era o nome dele. Aí veio um soldado e pedia
bandeira brasileira. Aí eu que guardava a bandeira junto em um armário de guarda roupa,
eu dei a bandeira para o soldado e ele hasteou a bandeira. Aí eles bateram palma, aqueles
invasores. Aí eles foram embora e o que que nós tinha que fazer no outro dia? Limpar toda
vidraça quebrada. Tinha ali uns viajantes, mas foram embora para outro hotel; ficaram
com medo. Quando era meio dia, quando a comida estava pronta, embaixo era as
cozinheiras, e eu a camareira, nós trabalhávamos em cima... (Erna Schüller Weirich,
2005).
A partir da fala da entrevistada pode-se afirmar que a multidão que praticou os ataques no
“quebra-quebra” eram pessoas da cidade, cidadãos comuns, acompanhadas de guardas, que
chegaram atirando pedras e pedindo para hastear a bandeira do Brasil, como símbolo de patriotismo,
negando a identidade alemã dos proprietários.
Segundo Perrazzo (2003), a repressão se estendia a todos os estrangeiros do Eixo, mas
variava de intensidade de acordo com o grupo, sendo os alemães os que mais sofreram com os
ataques: “Os alemães foram os mais visados pelas perspectivas nacionalistas do governo Vargas e,
consequentemente, os mais atingidos pelas medidas governamentais”. (PERAZZO 2003, p. 2).
A entrevistada Erna continua com o seu relato sobre o “quebra-quebra”:
O hotel foi atacado duas vezes. Na primeira pediram apenas para hastear a bandeira do
Brasil, mas voltaram no segundo dia de “quebra-quebra” para destruir, queimar e saquear o hotel,
levando os pertences de quem estava hospedado e dos funcionários do hotel. Segundo a
entrevistada, “não ficou um garfo no hotel, tudo foi levado e destruído e por fim o dono do hotel
foi preso.” (Erna Schüller Weirich, 2005).
Ainda, conforme a entrevistada Erna, o senhor Germano Bunde, dono do hotel, era natural
da Alemanha. Sobre a mulher do Germano, também chamada Erna, “a dona não estava [...] nós
tínhamos uma governanta com nós no lugar da patroa. Aquela pobre coitada já velha, aquela acho
deixaram sair pela porta da frente [...]” (Erna Schüller Weirich, 2005). A esposa do senhor Germano
não se encontrava no hotel no momento dos ataques.
A entrevistada Erna retornou ao hotel na tarde do ataque para tentar recuperar os seus
pertences e relata:
Mas aí depois de tarde, eu e a outra guria que trabalhava lá, – ela já era de mais idade –, aí
nós fomos lá. Vamos ver se já sobrou alguma coisa! Mas estava só água pingando, um
alagamento e tinha, acho que era um PM com o despertador na mão, o despertador do
hotel. E eu disse assim para a Emília: “olha o despertador do Seu Germano!” E ele disse:
“Não, você não tem nada que ver aqui”. E eu disse: “como não? Nos trabalhamos aqui,
temos só a roupa do corpo.” Mas, olha, aquilo foi uma tristeza. Quem podia levar, levava,
roubava. Quem queria roubar, pegava. Aí quando nós fomos, tinha duas mulheres sentadas
em cima dos colchões, no pátio embaixo. Aí nós descemos pela escada dos fundos e ela
disse: “Isso aqui é meu, isso eu vou levar.” E eu disse: “Pode levar. Nós vamos ver se tem
alguma coisa nossa.” [...] Aí tu não achava mais nada na cozinha. Ai... coisa mais triste.
Eles tinham até uma caixa d’água por cima, em um enorme fogão. Aquecia pelo fogão a
lenha, aquecia aquela caixa para lavar louça, e até aquilo quebraram, mas não tinha nada,
nada, nada. Aquelas mesas tudo com coisa branca, tudo lascado. Então, tu não achou mais
nada. (Erna Schüller Weirich, 2005).
Segundo a entrevistada, tudo foi perdido e o público que atacou o hotel recebia apoio
policial. Foi afirmado por Erna (2005) que a PM (Polícia Militar) estava presente nos ataques.
Alguns anos depois, o senhor Germano e a senhora Erna foram encontrados por colegas da
entrevistada Erna. “Depois eu já estava casada e aí as outras minhas colegas encontraram eles. Eles
vieram e foram presos; eu não sei foram para Porto Alegre. Aí queriam me ver, nos gratificar, que
a gente foi tanto tempo, como é que diz... [Empregado].” (Erna Schüller Weirich, 2005).
O Hotel Gloria também foi atacado em 1942, cujo proprietário era Carlos Bernardo
Neutzling. A entrevistada Luiza Brauner morou neste hotel, como afirma em entrevista “e eu
morava no hotel que eles era Neutzling, eles eram alemães [...]” (Luiza Del Grande Brauner, 2005).
A Luiza morou no hotel por dois anos, com seu filho e marido, e saiu quando aconteceu o “quebra-
quebra”, como relata.
Foi quando eu saí; foi coisa horrível. Queriam quebrar tudo, mas não quebraram porque o
meu irmão estava junto. Um dos meus irmãos e o sobrinho estava junto. Não aqui vocês
não vão fazer nada. Aqui tem meu sobrinho, e outra minha irmã não tem nada que ver com
isso. Não fizeram nada, porque se não estava tudo na rua, muito mal feito né. (Luiza Del
Grande Brauner, 2005).
Como foi relatado pela entrevistada, ela estava no hotel no momento do “quebra-quebra” e
só não teve seu quarto atacado, pois o seu irmão estava no grupo que participou do ataque e disse
que ninguém deveria fazer nada com sua irmã e sobrinho, o filho de dois anos de Luiza.
O Hotel F. Treptow também sofreu com as atrocidades do “quebra-quebra”. Em agosto de
1942, o hotel foi invadido e saqueado. A família saiu correndo e fugiu para a colônia, como foi
relatado por Fritold (2016) “chegaram lá de repente assim [...] chegaram lá para destruir tudo,
saquearam, roubaram o que podiam”, e queimaram a casa.
Levaram ele. A minha esposa, a Selma pegou ele, o Gilberto, de dois anos, e saiu correndo
com ele. Aí eles fugiram, eles fugiram e foram lá para a chácara de um tio. Eles pegaram
lá e foram lá. Aí esse que eu estava falando antes, o capitão Souto, ele do quartel, ele estava
em casa. Aí ouviu aquilo e ele pegou do quartel meia dúzia de soldados que estavam lá de
serviço. Estava de folga e foi lá tomar conta e disse: “Quem não se vai eu vou mandar
matar todo mundo.” E ele era corujão e assumiu lá. Botou todo mundo a correr. Botaram
fogo no depósito. E eu sei que naquele dia, eles tinham recebido 200 sacos de linhaça, de
torta de linhaça e estava na garagem. Ele chegou, ele pegou... o forro queimou uma parte
grande, do forro assim. Mas eles salvaram e lá no deposito grande, a madeira já foi
salpicada com fogo, mas conseguiram apagar também e aí o soldado: “O capitão tomo
conta” e disse: “olha, aqui nem entra e nem sai ninguém.” Aí eu entrou e ele mesmo tranco
com soldado e guardou... Aí o teu pai e não sei quem é que foi [...] chegaram lá e ele disse:
“Não, eu entrego e vocês vão toma conta. Agora é de vocês. Qualquer coisa vocês me
chamam.” E aí ficaram lá. Aí depois [começaram] a devagarzinho indo novamente.
(Fritold Rutz, 2016).
Em agosto de 1942, a família Treptow fugiu para casa de parentes na zona rural de Pelotas,
com medo dos ataques. O prejuízo só não foi maior para a família porque conseguiram fugir a
tempo e receberam auxílio do “capitão Souto” do Quartel Militar. Porém, quando o capitão chegou,
já haviam botado fogo no depósito da família, depósito este que estava cheio de linhaça, o que fez
com o fogo se espalhasse rapidamente.
Depois disso, a família voltou e retomou o hotel e o armazém. Em 1979, recebeu um
ressarcimento da guerra, pago pelo Estado, mas, que, segundo Fritold e Gilberto, não valia a pena
retirar, pois o valor não era corrigido.
O Armazém Fiss e Tessmann, que segundo Fritold (2016) possuía hotel nos fundos do
armazém, foi atacado no “quebra-quebra” e o prédio foi totalmente queimado. Depois disso, a
família não retomou o negócio, pois teve perda total e o prédio permaneceu abandonado, em ruinas,
por muitos anos (Fritold, 2016).
Em agosto de 1942, a cidade de Pelotas encontrava-se em meio ao caos e a violência. Os
estabelecimentos e residências de alemães e descendentes foram invadidos, saqueados e
incendiados. Entre estes estabelecimentos estavam cinco hotéis: Hotel América, Hotel do
Comércio, Hotel Gloria, Hotel Treptow e Hotel Fiss e Tessmann. Estes hotéis foram invadidos
fazendo com que os hóspedes fossem embora, seus empregados e proprietários fugissem e, em
alguns casos, seu proprietário fosse preso.
As lembranças destes dois dias estão presentes na fala dos entrevistados e marcados na sua
memória, como na fala da Luiza.
Foi horrível! Vocês não têm... Eu vi, eu vi com meus olhos, o que eles fizeram [...] Todas
casas de alemães, tudo que era alemão, hotel e família, tudo voava, tudo voava. Esse hotel
que tu falas foi a coisa mais triste do mundo. Triste, triste... Eu não vi, mas contaram lá do
sobrado que aquela coisa... da casa... mas que voava. Era coisa horrível, não deviam ter
feito isso. (Luiza Del Grande Brauner, 2005).
A entrevistada repete que foi muito triste o que aconteceu: “a coisa mais triste do mundo”,
que era “coisa horrível” e que “não deviam ter feito isso”.
ALBERTI, Verena. Fontes Orais. História dentro da História. In: PINSKY, Carla Bassanezi
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Júlio Cesar Bittencourt Francisco
Embora a maioria dos sírios e libaneses que chegaram ao Brasil fosse formada por
agricultores, a estrutura fundiária do país, baseada nas grandes propriedades e na monocultura, a
carência de terras disponíveis a baixos preços e os parcos recursos financeiros trazidos por eles
inviabilizaram sua fixação no meio rural. Como esses imigrantes também não se enquadraram na
categoria de operários urbanos, ficaram à margem do perfil idealizado pela política imigratória
brasileira.
Esses imigrantes, que chegaram de forma espontânea, concentraram-se nos centros urbanos,
neles desenvolvendo atividades relacionadas ao comércio, ou primeiramente como ambulantes
(mascates), ou, mais tarde, em negócios regularmente estabelecidos. Contudo, sua atuação
profissional não estava restrita somente às cidades, uma vez que a população rural representava um
importante contingente de consumidores a serem atendidos (ALMEIDA, 2000, p. 87). Desse modo,
eles deram uma importante contribuição ao processo de ocupação do território nacional,
funcionando como elementos dinamizadores dos mercados local e regional, integrando regiões até
então isoladas do mercado consumidor (NUNES, 1986, p. 62). Nos primeiros anos de atividade, os
mascates, em visita às cidades interioranas e, principalmente, às fazendas, levavam apenas
miudezas e bijuterias. Mas, com o passar do tempo e o aumento do capital, começaram também a
oferecer tecidos, lençóis, roupas prontas, entre outros artigos. Conforme acumulavam os ganhos,
os mascates contratavam um ajudante ou compravam uma carroça; o passo seguinte era estabelecer
uma casa comercial. Foram eles que introduziram as práticas da alta rotatividade e da grande
quantidade de mercadorias vendidas, das promoções e das liquidações.
1Sem falar na matraca que muitos sacolejavam enquanto caminhavam, chamando atenção paras si e suas
mercadorias.
Pesquisamos no Arquivo Público do Estado (APERGS), com mais detalhes, o ambiente
seminal dessa comunidade de imigrantes na capital gaúcha, no fim do século XIX e início do século
XX. Vimos que muitos sírios e libaneses se instalavam na rua Gen. Andrade Neves, ou rua Nova,
onde se concentravam, tanto para residência quanto para aquisição de mercadorias, nas lojas dos
patrícios ali estabelecidos, mercadorias essas que depois revendiam pelas ruas da cidade e pelo
interior do estado. Nessa época, os sírios contavam com pouco mais de trinta estabelecimentos
comerciais no centro da cidade. Verificamos, no Arquivo Histórico Moysés Vellinho, que, no 1º
distrito de Porto Alegre (centro), entre 1899 e 1905, as ‘lojas’ dos árabes eram em número de 24,
somente na Andrade Neves. Havia ainda mais quatro estabelecimentos na rua Voluntários
da Pátria2 e quatro no Mercado Público,3 além de um comércio que localizamos na rua
Vigário José Ignácio, do árabe Calili Nedir.4
As lojas de ‘miudezas’ que encontramos na pesquisa do Arquivo Público poderiam ser
atacadistas, repassando mercadorias aos mascates para venda de maneira ambulante, ou também
poderiam ser estabelecimentos para comercialização de bugigangas feitas de material barato, como
pentes, lâminas de barbear, cigarros, fósforos, enfeites, bibelôs para casa ou bijuterias
e, principalmente, armarinhos,5 isto é, produtos como linhas e fios para costura, agulhas,
ilhoses, rendas etc. Na lista de comerciantes que disponibilizamos, vários membros da família
Bechara,6 por exemplo, aparecem, em diversas ocasiões, trabalhando com vários produtos
e segmentos comerciais distintos.
No quadro I, observamos que o ramo de tecidos já aparece em segundo lugar na preferência
dos patrícios estabelecidos em Porto Alegre.
2 Por volta da década de 1930, já não havia senão vestígios dos árabes na Andrade Neves, tendo a maioria
das lojas desses levantinos se transferido para a rua Voluntários da Pátria, mais próxima ao porto e à
estação ferroviária, onde desembarcavam (e embarcavam) mercadorias.
3 Em relação aos quatro estabelecimentos que aparecem no Mercado Público, na verdade, trata-se de quiosques
montados na praça em frente ao mercado, para que os quitandeiros pudessem vender suas mercadorias.
4 Fundo Valor Locatício. Arquivo Histórico de Porto Alegre, Moysés Vellinho. Pesquisas em 06/2013 e 03/2014.
5 Quando o comércio é de ‘armarinho’ pode significar que é uma loja pequena, porém que pode vender, além
de aviamentos, roupas feitas,entre outros artigos, como perfumes, bordados e lã. (CAMPOS, 1987).
6 Encontramos registros da família Bechara, (Bichara ou Bixara) entre Santo Ângelo, Ijuí, Rio Grande e Santa
Maria, desde 1895. (Fonte: APERGS; pesquisa online sobrenome Bechara: <http://www.apers.rs.gov.br/portal/
index.php?menu=aap>.)
Manayel, Jorge Miudezas 1900 Nº23 $75.000
Bechara, Moysés Botequim 1900 Nº25 $50.000
Buchain, José João Miudezas 1900 Nº76 $40.000
Jorge Siadi&irmãos Miudezas 1900 Nº55 $40.000
Bechara, Jorge Miudezas 1900 Nº65 $60.000
Sarquis, José Jorge Miudezas 1900 Nº17 $70.000
Bechara, Aear Botequim 1900 Nº75 $50.000
José, Jorge Funilaria 1900 Nº67 $40.000
Jorge Monaiar Fazendas 1902 Nº23 $80.000
Bechara Capsa Fazendas 1902 Nº65 $40.000
Miguel Jorge Fazendas 1902 Nº67 $35.000
Abrahão Elias Fazendas 1902 Nº139 $80.000
José Amim Fazendas 1902 Nº70 $35.000
Fonte: Arquivo Público Moysés Velhinho. Porto Alegre.
De acordo com Sérgio da Costa Franco (1983), o ano de 1901 é caracterizado por crise e
recessão econômica em consequência da política anti-inflacionária do Presidente Campos Sales –
houve dificuldades para a coleta da tributação, o que corrobora a precariedade e a falta de
continuidade na coleta do imposto retratadas aqui. Por outro lado, conforme mostra o autor, os
grandes comerciantes da capital solicitavam aos políticos que resolvessem os problemas de logística
e estrutura de escoamento de mercadorias que tanto encareciam os produtos gaúchos os quais
chegavam ao norte do país (p.106). Outro problema que afligia os comerciantes da capital, durante
a Belle époque, era o contrabando. Ainda de acordo com Franco (p.107), quase não havia
fiscalização, e a praça da capital formulava repetidas reclamações aos políticos e às instituições da
República visando à sua repressão.
Adriana Dorfman (2009, p. 136) relata que “desde que os mascates abasteciam-se
contrabandeando, a semente ‘grelou’ e o contrabando fez-se cada vez mais volumoso”. De acordo
com a autora, já, naquele momento, observa-se a relação entre o câmbio e o contrabando, a busca
do necessário, bem como do mais barato. Cinara Alves (2014, p.15), analisando o desenvolvimento
econômico e a cultura árabe, descreve o mascate como um tipo de agente econômico que realiza
poupança e que se vincula a uma rede comunitária de outros imigrantes árabes como meio de
potencializar suas atividades. Peters (2006) caracteriza as famílias de comerciantes sírios como
sendo unidas entre elas, possuindo uma rede de relacionamento intensa e, ainda dentro da própria
família, dividindo tarefas administrativas e comerciais, estas ficando muito mais a cargo dos
homens, e reservando-se às mulheres os assuntos domésticos e familiares.
Gráfico I – Comércio árabe em Porto Alegre – Diversidade (1899-1905)
14
12
12
10
10
4
2 2 2 2
2 1 1
0
comercio
Fonte: Arquivo Histórico de Porto Alegre Moysés Vellinho. Fundo valor Locatício (1899-1905).
14
15
10
7
4
5
2 2
1 1 1 1 1 1
0
Comércio
Fonte: Dados do imposto ‘valor locatício’ (1924). Arquivo Público Moysés Velhinho.
Acima, o Gráfico II mostra que o comércio árabe de Porto Alegre já se distribuía com
mais diversidade de segmentos, porém também indica uma crescente fixação, com abertura de
lojas, dos que deixavam a mascateação.
Na pesquisa realizada no conteúdo das fichas cadastrais dos imigrantes árabes
depositadas no Arquivo Nacional do Rio de Janeiro (ANRJ), referentes aos anos entre 1939 e
1949, verificamos que, dos 753 nomes selecionados, 436 residiam em Porto Alegre, ou seja,
cerca de 58% do total de imigrantes que se cadastraram em todo o estado. Do conjunto de 436
residentes, 146 se fixaram no centro de Porto Alegre, ou seja, por volta de 33%. Observando
este universo, percebemos que o centro da cidade concentra mais de duas vezes o número de
sírios do que o vizinho bairro Floresta, local onde muitos também se fixaram e onde
contamos 55 pessoas. Esta concentração de árabes nos bairros Centro e Floresta explica-se,
talvez, por esses imigrantes residirem em seus locais de comércio, pois a rua Andrade Neves
localiza-se no centro, e a Voluntários da Pátria, começando no centro, atravessa toda a
extensão do bairro Floresta. Os demais bairros da cidade a contar com maior número de
imigrantes árabes, conforme ilustra o gráfico abaixo, são os seguintes:
Gráfico III – Distribuição dos 436 Imigrantes sírios e libaneses – Bairros de Porto Alegre (1939-1949)
Centro
Floresta
São João
7 36
C.Baixa
10
Azenha 8
10
Glória 10
146
Independência
11
Menino Deus
13
São Geraldo
17
Santana
Teresópolis 18
Auxiliadora
20
Petrópolis
Higienópolis 37 55
outros 38
Importante pontuar, novamente, que, de acordo com o recorte temporal estabelecido pela
coleta de dados da pesquisa, muitos patrícios, na década de 1940, continuavam a residir nos mesmos
locais em que possuíam comércio, especialmente nas ruas Voluntários da Pátria, Cristóvão
Colombo, Benjamin Constant e rua da Azenha, entre outras. Eram geralmente sobrados, em cujo
primeiro piso ficava o armazém e cujo andar superior, ou os fundos da casa, servia como residência
da família.
Cabral (1996, p. 45) atribui esse processo às consequências do capitalismo, que provocou
um aumento populacional “sem precedentes” nas cidades, e descreve este novo arranjo, muito em
voga desde o fim do século XIX, como “rua comercial”, que consistia numa sucessão de lojas
delimitadas, total ou parcialmente, pela calçada, estando ou não localizadas sob edificações
destinadas para outros fins quaisquer, inclusive o de residência. De acordo com a autora, “a rua
comercial inclui o espaço público, e, necessariamente, se limita com esse, quer seja resolvido como
espaço unicamente pedestre, quer como espaço destinado a pedestres e veículos” (p. 45).
Vemos que, nas primeiras décadas do século XX, a comunidade árabe da cidade era mais
complexa e organizada, formada não só por imigrantes, mas também por seus descendentes, que
podiam ser filhos de árabes com pessoas de diversas origens. Ao mesmo tempo, o ramo de fazendas
e têxteis se consolidava, sendo o nicho comercial que contava com maior número de representantes
da comunidade – e o que mais pagava impostos ao estado, conforme observado nos livros de
tributos que investigamos.
Tal preferência indica uma estratégia mais elaborada entre os ‘patrícios’, os quais se
articulavam com fornecedores, principalmente outros sírio-libaneses de São Paulo, onde adquiriam
crédito e prazo para pagamento, habilitando-os a fazer frente à concorrência com outros
estabelecimentos tradicionais de Porto Alegre.
Meu pai ia duas ou três vezes por ano a São Paulo para adquirir mercadorias, além da
visita dos viajantes, que iam lá na loja com outros comerciantes, mas tínhamos que sempre
ir ao mínimo duas ou três vezes por ano a São Paulo para comprar diretamente das fábricas,
porque as indústrias têxteis, de confecção, são até hoje quase todas pertencentes a
descendentes de árabes. (Entrevista com Habib Abduch).
Meu pai, Raphael Dabdab, chegou ao Brasil em 1925, diretamente da Antióquia, na Síria.
(Hoje, território da Turquia). Ele veio para comunicar ao irmão, que já estava no Brasil, a
morte de nosso avô. Em Porto Alegre, nosso primeiro comércio foi aberto na rua da
Ladeira (General Câmara). No final dos anos de 1940 viemos para a Voluntários [da
Pátria]. Em 1952, chegamos à esquina desta mesma rua, onde estamos até hoje. Posso
dizer que comecei no ramo dos tecidos aos cinco anos, acompanhando meu pai, mas aos
7 Essa projeção se verifica na participação desses imigrantes emergentes nas instituições sociais formais da
etnia, e também fora dela, quando, através de doações, as patrocinavam e promoviam.
14 anos comecei a frequentar diariamente a loja. Eu aprendi identificar tecidos pelo toque
das mãos, mas também pelo caimento da roupa. (Entrevista com Elias Dabdab).
A trajetória do pai de nosso entrevistado, Raphael Dabdab, indica que alguns desses
imigrantes já chegaram ao Brasil com conhecimento e capital. De fato, quando Raphael chegou ao
Brasil, seus irmãos já eram médios proprietários em São Paulo e no Rio de Janeiro. Com o
estabelecimento da loja no Sul, os empreendimentos formaram uma rede de cooperação,
importando juntas mercadorias exclusivas da Europa que eram oferecidas aos seus clientes nas três
capitais.
Meu pai ajudou muitos patrícios recém-chegados. Ele contou que, uma vez, deu uma
carroça para um patrício trabalhar como ambulante, mas, debaixo do banco, havia um
buraco no qual ele escondia as mercadorias. Passou meu pai pra trás... (Entrevista com
Rafik João).
Ivo Nesralla, filho de um imigrante que veio da Síria8 para Porto Alegre com o irmão,
no começo do século XX, nos conta que seu pai, no início, foi mascate, mas depois juntou
capital e abriu uma “pequena lojinha no centro de Porto Alegre, e foi progredindo”. Habilidoso
nos negócios, o pai do cirurgião logrou educar seus filhos no Colégio do Rosário, uma das
melhores instituições de ensino da capital na primeira metade do século XX. Porém, nem
todos tiveram a mesma sorte.
Quando meu pai9e o irmão dele chegaram, em 1910, além de não falarem uma
palavra de português, não conheciam ninguém. Foi graças à família Asmuz, que
ajudava muitos patrícios, que eles conseguiram mercadorias e ajuda para começar
suas vidas aqui em Porto Alegre. Depois de mascatear uns dez anos, ele montou um
pequeno comércio de venda de tecidos na esquina da rua Demétrio Ribeiro, ali
onde é o Cinema Capitólio, depois passou para a rua dos Andradas e, por último,
uma loja bem maior, onde ele vendia seda, a loja Internacional, na rua Mal. Floriano.
(Entrevista com Ivo Nesralla).
8 O território, no Oriente Médio, onde nasceram Abrahão e José Elias Nesralla, pertencia à Síria, porém, com o
Mandato Francês, aquela porção da Síria se tornou parte do “Grande Líbano”. .
9 De acordo com prontuário do ANRJ, Abrahão Nesralla, nascido em 1895, no Líbano, chegou em 1910, com
oirmão mais velho, Elias JoséEm 1939, Abrahão era residente na rua Demétrio Ribeiro, 997 e proprietário de
comércio na rua dos Andradas, 1411. Em 1943, mudou sua loja para a rua Mal. Floriano, 290, no Centro de Porto
Alegre.
.
livros a que tivemos acesso mostram a cobrança, primordialmente, no 1º distrito (centro da cidade
de Porto Alegre).
Nas férias, quando era guri, meu pai, com medo que eu me extraviasse, fazer bobagem,
me obrigava a ficar na loja. Eu fazia a arrumação dos tecidos e, no fim do dia, o livro da
féria. Eu via os vendedores mostrando a mercadoria e ficava fascinado. Costumo dizer à
minha mulher que, se não fosse cirurgião cardíaco, eu seria vendedor de tecidos!
(Entrevista com Ivo Nesralla).
Tirei o científico em Porto Alegre. Depois eu fiz o vestibular e passei para Engenharia
Química. Na UFRGS, Engenharia Química. Em Porto Alegre, eu conhecia os amigos de
meu pai, que era gente de muito dinheiro e de muita importância lá. Eles eram árabes
mesmo, da comunidade. Eram atacadistas de tecidos muito fortes. Eu tirei o curso muito
novo. E quando eu me formei, tinha 21 anos. Engenheiro Químico. (Entrevista com
Muhamed Baccar)
.
Os grupos de imigrantes árabes que foram chegando à cidade, vindos do Oriente Médio no
início do século XX, sem muito capital, e que trabalharam à sua maneira, como ambulantes,
10 Suzana Schilling (2007, p.17) nos traz a informação de que, no fim da década de 1920, os irmãos
Selaimen lotearam, para seus patrícios que viviam no centro, um grande terreno adquirido na década
anterior. Com a transferência de muitos deles ao local, onde construíram suas casas, o arrabalde de São João,
no 4º distrito da cidade, passou a abrigar boa parte da comunidade libanesa de Porto Alegre.
11 Não estão computados aí os bairros da Azenha e da Cidade Baixa, dois locais com razoável presença de
comerciantes de origem e língua árabe estabelecidos com lojas.
mascates ou pequenos lojistas, sucederam outros grupos étnicos migratórios chegados
anteriormente à cidade, entre a metade do século XIX e a última década deste.
O gráfico IV mostra que a imigração sírio-libanesa na capital dos gaúchos foi, além de tudo,
um fator econômico importante. Nos primeiros trinta anos, eles ali trabalharam, fornecendo
mercadorias, vendendo bens e produtos, transportando, atendendo a clientes e pagando impostos.
Apesar da estagnação de alguns que nunca passaram do pequeno comércio, uma parte desses
imigrantes, embora não tenham enriquecido, conseguiram manter um padrão de vida que talvez não
tivessem na origem, indicando que o comércio e os negócios foram, para aqueles que decidiram
ficar no país, veículos de ascensão social. Contudo, não devemos esquecer que o grau de motivação
pessoal não pode ser generalizado entre eles, restando, na vida real, falta de simetria entre os
comerciantes exitosos e aqueles que não conseguiram estabelecer exatamente um bom padrão,
conforme lembra Rafik João:
O velho morreu pobre e doente e só deixou um terreno na [Avenida] Cascata. Acho que
ele não tinha muita paciência e não era tão atencioso como os outros patrícios. No seu caso
foi diferente, teve comércio, mas não prosperou, e acabou como mascate, vendendo
mercadorias para armazéns. Eu mesmo não estudei, trabalhei com patrícios em lojas e
confecções, mas perdi tudo que ganhei porque jogava, diferente do meu irmão Paulo, que
se formou em Direito e foi Procurador do Estado. (Entrevista com Rafik João).
Em Porto Alegre, a partir da década de 1930, assim como em outras cidades e lugares da
diáspora sírio-libanesa, verificou-se acentuada fragmentação entre diferentes grupos dentro da
colônia de imigrantes e descendentes. Apesar de se perceber uma clara tendência à tribalização de
grupos étnicos levantinos, especialmente entre os sírios e libaneses, essas duas nacionalidades se
separaram, formalmente, tornando mais claras as fronteiras étnicas, as diferenças confessionais,
políticas e ideológicas, embora as exceções, nesses casos, possam ser inúmeras. Essas mudanças
também ocorriam no Oriente Médio, com a estabilização do Mandato Francês e a [primeira]
independência do Líbano, em 1926. Em Porto Alegre, a marca dessa legitimação é a ruptura através
da criação do Clube Sociedade Libanesa, em 1936, marcando o fim do Clube Sírio-libanês, criado
em 1922.
O lugar ocupado pelos árabes dentro da Nação Brasileira continua sendo paradoxal. O
nacionalismo sírio levou muitos sírios e libaneses a assumir posições cada vez mais
públicas. O Brasil viria a desempenhar papel crucial na criação de uma Síria independente.
(ALFARO-VELCAMP, 2007 p. 133).
A atividade laboral e a localização geográfica onde este trabalho era exercido marcou as
identidades dos diversos grupos de imigrantes no Rio Grande do Sul. Os sírios e
libaneses, precisamente por serem de origem semita,12 de língua e cultura árabe,
frequentemente eram vistos pejorativamente como ‘turcos’. Além da cor da pele, comumente
mais ‘brejeira’ que a da maioria dos imigrantes europeus, a fala estranha e gutural acabava
denunciando a diferença. É, contudo, razoável pensar que as fronteiras entre os grupos são
tanto menos permeáveis quanto mais a organização das identidades étnicas esteja ligada à
divisão diferencial das atividades do setor econômico. Conforme preconiza Streiff-Fenart
e Poutignat (1997, p.155), a fronteira étnica sobrepõe-se à fronteira social quando uma
reforça a outra.
A ascensão social pelo comércio marcou a imigração árabe na capital, formando
uma espécie de barreira que amenizava o preconceito e protegia esses imigrantes.
Além disso, proporcionou-lhes a inserção na sociedade gaúcha, facilitando a transposição
da identidade de comerciantes para uma nova imagem adquirida por seus descendentes,
que, como profissionais liberais, criaram novos espaços dentro da sociedade porto-
alegrense, o que poderia ser apenas sonhado pelo imigrante estabelecido na cidade no
início do século XX. “A loja do meu pai era muito frequentada. Até hoje, alguns pacientes
com mais idade que vêm aqui [ao Instituto de Cardiologia] me falam: ‘Eu fiz meu enxoval
na loja do seu pai.’” (Entrevista com Ivo Nesrsalla).
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Jaqueline da Silva de Oliveira*
Para trabalhar as questões relacionadas com a História Oral, inicialmente se buscará apoio
nos textos tradicionais de Thompson, que tratam dos procedimentos da teoria e metodologia, do
uso das fontes orais pelo historiador, bem como da sua função social relacionada à oralidade de
uma narrativa de vivências. Sendo social, as narrativas priorizam um grupo composto por
indivíduos que partilham experiências e fatos vividos, portanto, eles também desenvolvem relações
de amizade ou trabalho.
Neste sentido, o método da escolha dos entrevistados deriva de indicações em que o
entrevistado vai indicar outro nome para entrevista, e, sendo assim, o critério de seleção é aleatório
e depende da relação entre entrevistado e entrevistadores, sendo chamado de “bola de neve”.
Amparada nos estudos de Thompson, Sonia Maria de Freitas (1992), no prefácio da edição
brasileira, afirma “que a História Oral pode dar grande contribuição para o resgate da memória
nacional, mostrando-se um método bastante promissor para a realização de pesquisas em diferentes
áreas” (1992 apud THOMPSON, 1992, p. 19), pois, segundo ela, “é preciso preservar a memória
física e espacial, como também descobrir e valorizar a memória do homem. A memória de um pode
ser a memória de muitos, possibilitando a evidência de fatos coletivos” (FREITAS, 1992 apud
THOMPSON, 1992).
Quanto ao social, Thompson priorizou os grupos ou classes sociais locais de minorias que
viviam em determinadas comunidades. Eles apontam para as relações sociais de grupos, espaços e
tempos definidos, ao mesmo tempo em que levantam questões relacionadas aos cuidados com o
material produzido (narrativa oral, transcrição, formas de armazenamento e divulgação e, por fim,
a interpretação), que deve levar em conta na escrita final ou na produção científica, a subjetividade
do indivíduo, as entrelinhas, os gestos, as expressões etc.
Por outro lado, Gabriele Rosenthal em seu livro “Pesquisa Social Interpretativa: uma
introdução” (2014, p.19), em um primeiro momento trata de diferenciar a metodologia da pesquisa
social interpretativa, onde está inserido o método de análise narrativa, dos outros métodos de
pesquisa qualitativa comumente utilizados na Sociologia. A autora chama atenção para o
“pressuposto de abertura do procedimento”, onde:
[...] cita três tipos de memória que pode ser entendida como a base sobre a qual se
inscrevem os encadeamentos de atos: a memória específica, a étnica e a artificial. A
primeira define a fixação dos comportamentos de espécies animais. A segunda
assegura a reprodução dos comportamentos nas sociedades humanas. A terceira é a
memória eletrônica, pois reproduz os atos mecânicos encandeados. (LERROI-
GOURHAN, apud LE GOFF, 1996, p. 427).
Quanto à memória coletiva, o autor a define como “o que fica do passado vivido dos grupos,
ou o que os grupos fazem do passado” (NORA apud LE GOFF, 1996, p. 472). Entretanto, Le Goff
(1996) salienta que a memória coletiva age como um instrumento e objeto de poder. Nesse viés, os
escritos das sociedades que têm sua história baseada na oralidade permitem compreender os
processos de dominação a partir das recordações de grupos constituídos socialmente.
“A memória, onde nasce a história, que por sua vez a alimenta, procura salvar o
passado para servir o presente e o futuro. Devemos trabalhar de forma que a memória
coletiva sirva para a libertação e não para a servidão dos homens.” (LE GOFF, 1996,
p. 477).
Nesse viés, pode-se afirmar que “na História Oral se apresenta a memória coletiva, impressa
de subjetividade nos ritmos e nas imagens que ultrapassam o conteúdo. “A história narrada existe,
quando a memória se manifesta, seleciona motivos para esquecer ou reter novas impressões.”
(BRUM, 2006, p. 83).
Na perspectiva da análise narrativa, “a reconstrução do trabalho biográfico, [...] esclarece
não apenas a particularidade do caso, mas evidencia, antes, o social mesmo, em seu surgimento e
em suas implicações para a ação” (ROSENTHAL, 2014, p. 224). Ou seja, essa metodologia torna
1 Nesta perspectiva, a cognição pode ser entendida como o processo pelo qual o ser humano interage com os
seus semelhantes e com o meio em que vive.
menos provável que “aspectos essenciais” da relação indivíduo e sociedade se percam no trabalho
do pesquisador.
Biografia individual e a história social – realidade subjetiva e realidade coletiva – se
implicam mutuamente; a biografia, em seu processo concreto de desenvolvimento, mas
também quando reexaminada pelo entrevistado a partir do momento presente, é sempre
dual, produto ao mesmo tempo individual e coletivo. (ROSENTHAL, 2014, p. 224).
Importante, nesse passo de análise, é vislumbrar quais opções estariam à disposição dos
entrevistados, considerando, evidentemente, os constrangimentos e configurações
biográficas, além do contexto em que está inserido o/a entrevistado(a). Procedendo desta
maneira, evidenciam-se as escolhas possíveis no horizonte do/a entrevistado/a e o percurso
vivenciado ao longo da vida, descartando-se o pressuposto de que haveria algum tipo de
determinismo na trajetória de vida.
Por fim entende-se que muito embora sejam procedimentos metodológicos e teóricos
distintos e bem definidos, não há grandes contradições ou prejuízos no uso do método de análise
narrativa em detrimento da História Oral em um contexto de pesquisa histórica relativa à imigração.
Enquanto a História Oral possibilita a comprovação ou não de hipóteses previamente estabelecidas
ou ao menos pré-supostas, a análise narrativa demanda um maior desprendimento do pesquisador,
visto que a própria pesquisa proporcionará hipóteses, sendo impossível lançá-las anteriormente.
Por um lado, com a análise narrativa obtém-se resultados muito mais exatos, mediante o
uso de uma metodologia mais rígida e bem estruturada. A História Oral possibilita mais
flexibilidade nos procedimentos metodológicos e múltiplas possibilidades de processamento dos
dados coletados, o que também acarreta um menor nível de exatidão nos resultados obtidos. Em
ambos os casos, o pesquisador desempenhará um papel importante na produção e resultado da
pesquisa, porém entende-se que na História Oral a necessidade do pesquisador de “se colocar” no
resultado final do trabalho acaba sendo muito maior, pois dele dependerá também a interpretação e
complementação (e muitas vezes confirmação) dos dados obtidos nas entrevistas. Assim, a escolha
da melhor metodologia dependerá tanto do resultado que se objetiva no trabalho, quanto do
processo metodológico mais acessível ao pesquisador.
BARROS, José D’Assunção. História e memória: uma relação na confluência entre tempo e
espaço. Mouseion, Canoas, v. 3, n. 5, p. 35-67, jan./jul. 2009.
_____. Tempos narrados: os espanhóis em Porto Alegre. Porto Alegre: Animal, 2014.
_____. Uma cidade que se conta: imigrantes italianos e narrativas no espaço social da cidade de
Porto Alegre (1920-1937). 2003. 432 f. Tese (Doutorado em História) – Pontifícia Universidade
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FERREIRA, Marieta de Moraes (Coord.). Entre-vistas. Rio de Janeiro: Fundação Getúlio Vargas,
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MEIHY, José Carlos Sebe Bom; HOLANDA, Fabíola. História Oral: como fazer, como
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THOMPSON, Paul. A voz do passado: História Oral. São Paulo: Paz e Terra, 1992.
Eliana Rela
Cláudio da Costa
[...] testemunho é todo o discurso que se enuncia como tal e se submete ao julgamento da
história. É, portanto, o contrato firmado entre o historiador e a testemunha que dá ao
discurso desta última o status de testemunho, o que implica igualmente a sua consciência
de ter que depor e, para o primeiro, de ter que consignar e conservar tanto quanto utilizar
(VOLDMAN, 2005, p. 256).
5 Cabe esclarecer que cultura polonesa é aquela vivida e produzida na Polônia, de cultura polônica: aquela
produzida e vivida pelos núcleos de descendentes poloneses, e suas formas de expressão distintas (SIUDA-
AMBROZIAK, 2011).
6 Maiores detalhes em: http://www.ufrgs.br/nph/acervo/fundo-arquivo-edmundo-gardolinski/ - acessado em
10/07/2017 às 11h40min.
7 Maiores detalhes em: http://capuchinhos.org.br/muscap - acessado em 12/07/2017.
Durante o trabalho de campo, de organização dos acervos e realização das entrevistas com
o sr. André e dona Vanda Hamerski, foi permitido ao pesquisador acessar, não somente o arquivo
documental, mas também as muitas belezas espalhadas pela residência.
As dificuldades que se apresentaram ao longo do trabalho de pesquisa foram muitas. a
primeira delas foi a de trabalhar constantemente com diversas línguas estrangeiras. Devido a
escassez de bibliografia em língua portuguesa, foram consultados títulos e documentos em polonês,
alemão, italiano, espanhol e inglês, com primazia à língua polonesa, que tem seu alfabeto único e
de rica expressividade linguística. Para executar o presente trabalho foi necessário treinar a escuta,
para compreender expressões em polonês fluente, trocadas entre o casal. Outra dificuldade
percebida ao longo do trabalho de pesquisa, foi a de trabalhar com a História do Tempo Presente,
sentindo “os cravos e os louros”, como coloca Chartier (2005):
Para o historiador modernista, a história do tempo presente, pelo menos como ele a
imagina, desperta um mau sentimento: a inveja. Antes de tudo, inveja de uma pesquisa
que não é uma busca desesperada de almas mortas, mas um encontro com seres de carne
e osso que são contemporâneos daquele que lhes narra as vidas (p. 215).
Inveja, enfim porque o historiador do tempo presente é contemporâneo de seu objeto e,
portanto, partilha com aqueles cuja história ele narra as mesmas categorias essenciais, as
mesmas referências fundamentais. Ele é pois o único que pode superar a descontinuidade
fundamental que costuma existir entre o aparato intelectual, afetivo e psíquico do
historiador e o dos homens e mulheres cuja história ele escreve. Para os historiadores dos
tempos consumados, o conhecimento histórico é sempre uma difícil operação de tradução,
sempre uma tentativa paradoxal: manifestar sobre o modo de equivalência um afastamento
irredutível. Para o historiador do tempo presente, parece infinitamente menor a distância
entre a compreensão que ele tem de si mesmo e a dos atores históricos, modestos ou
ilustres, cujas maneiras de sentir e de pensar ele reconstrói (p. 216).
Como pressuposto, a história oral implica a percepção do passado como algo que tem
continuidade hoje e cujo processo histórico não está acabado. A presença do passado no
presente imediato das pessoas é a razão de ser da história oral. Nessa medida, a história
oral não só oferece uma mudança para o conceito de história, mas mais que isso, garante
sentido social à vida de depoentes e leitores que passam a entender a sequência
histórica e sentir-se parte do contexto em que vivem (MEIHY, 1998, p. 13).
Buscou-se registrar na primeira entrevista experimental, uma das conversas tidas com sr.
André, sobre religiosidade. Após essa primeira gravação, constatou-se que as entrevistas
subsequentes deveriam ter menor duração, pois a densidade das informações e a exaustão do
trabalho de lembrar, foi sentida em avaliação após a atividade de registro (transcrição). A primeira
entrevista também serviu para familiarizar-se com o ritmo e a forma do entrevistado se expressar,
com duração de aproximadamente 120 minutos. As entrevistas subsequentes duraram pouco mais
de 30 minutos e as horas de trabalho de campo ultrapassaram 180 horas. André, como militante de
longa data, não só na polonidade, mas inclusive como político-partidário, possui uma oratória
aprimorada e irreverência única, que por meio da convivência constatou ser seu modo natural de
ser:
Para os militantes, sejam eles sindicalistas, políticos ou feministas, testemunhar, dar uma
versão e uma visão do passado, formar para a história um ponto de vista sobre os fatos e
permitir estabelecer a sua veracidade também é controlar a posteridade, ter domínio
sobre a imagem que será legada à eternidade: em suma, deter ou acreditar deter a
legitimidade de todo o movimento (VOLDMAN, 2005, p. 258).
Porque nos apegamos aos objetos? Porque desejamos que não mudem, e continuem a nos
fazer companhia? Afastamos toda consideração de comodidade ou de estética. Nosso
entorno material leva ao mesmo tempo nossa marca e a dos outros. Nossa casa, nossos
móveis e a maneira segundo a qual estão dispostos, o arranjo dos cômodos onde vivemos,
lembra-nos nossa família e os amigos que víamos geralmente nesse quadro
(HALBWACHS, 1990, p.131).
Nos templos, cemitérios, praças e avenidas das cidades, ao longo de estradas até “o mais
profundo da montanha, na grande solidão”, as inscrições acumulavam-se e obrigavam o
mundo greco-romano a um esforço extraordinário de comemoração e de perpetuação da
lembrança. A pedra e o mármore serviam na maioria das vezes de suporte a uma
sobrecarga de memória. Os “arquivos de pedra” acrescentavam à função de arquivos
propriamente ditos um caráter de publicidade insistente, apostando na ostentação e na
durabilidade dessa memória lapidar e marmórea (LE GOFF, 1996, p. 432).
O casal destaca que a residência não foi construída com toda a arte que Witkiewicz
apresentou em suas obras. Esclarecem que só não fizeram melhor, pois desconheciam a região
montanhosa da Polônia quando construíram a casa. A casa-obra enquanto expressão histórico-
artística, posta-se como um patrimônio que demonstra a todos que visitam a cidade de Nova Prata,
as contribuições do imigrante polonês ao Brasil e os ideais poloneses de liberdade e independência
na transição do séc. XIX para o séc. XX; um exemplar único que mescla as culturas brasileira e
polonesa.
O objetivo inicial da pesquisa era a salvaguarda das contribuições de André Hamerski para
a comunidade polônica. Porém, com o andamento do trabalho, percebeu-se também as
contribuições de dona Vanda, que vão desde os simbólicos bordados e tecidos, que adornam a
residência, à preparação das aulas de língua e canto, bem como das idas e vindas à costureira por
razão das roupas do grupo Kalina. André em entrevista conferida à revista polonesa Przegląd
Oponiarski - Revisão do Pneu8, comenta que sua esposa Vanda sempre atuou mais do que ele
na causa da polonidade.
A militância de dona Vanda se apresenta de forma mais silenciosa, e somente por meio da
convivência foi possível chegar à percepção de seu papel fundamental, como base operacional da
polonidade. Dona Vanda relata que foi educada para ser dona de casa, e que em sua juventude era
cobrado da mulher uma formação exemplar – costurar, cozinhar, cuidar da casa, além de ser uma
pessoa culta; era o mínimo que se esperava. Conta que durante a juventude nunca chegou a trabalhar
fora de casa, mas que desde os sete anos (1952), ajudava a mãe nos afazeres domésticos, tendo logo
assumido a responsabilidade de fazer o almoço para o pai, a mãe e os dois irmãos. Ela lembra que
as primeiras receitas foram um desastre. Humildemente complementa dizendo que com o passar do
tempo aprendeu a cozinhar. Recorda com carinho da mãe, operária em fábrica de tecelagem, e do
pai, mecânico e marceneiro, que apesar de bastante severo, sempre foi bondoso.
Lembra ainda que, quando era “dia de comprar sapatos”, seu pai sempre lhe presenteava
com dois pares, enquanto que só um aos irmãos, dizendo que dessa vez ela poderia escolher dois.
Dona Vanda deduz que a generosidade do pai se dava pelo fato dela ajudar em casa e se esforçar
nos estudos, por isso que todas as vezes o pai repetia a generosidade. Ao leitor de hoje em dia,
inserido em um crescente pensamento de consumo, comprar dois pares de sapato pode parecer a
coisa mais comum do mundo, mas em uma leitura contextual comprar dois pares de sapatos nas
décadas de 1950-1960, podia ser considerado um luxo.
Ainda que muitas vezes a existência de depoimentos colhidos no tempo presente seja
usada como contribuição para preencher vazios documentais, lacunas de informações e
complementar ou promover o diálogo com outras fontes já conhecidas, é importante
A criança recebe do passado não só os dados da história escrita; mergulha suas raízes na
história vivida, ou melhor, sobrevivida, das pessoas de idade que tomaram parte na sua
socialização. Sem estas, haveria uma competência abstrata para lidar com os dados do
passado, mas não a memória. Há dimensões da aculturação que, sem os velhos, a educação
dos adultos não alcança plenamente: o reviver do que se perdeu, de histórias, tradições, o
reviver dos que já partiram e participam então de nossas conversas e esperanças; enfim, o
poder que os velhos têm de tornar presentes na família os que se ausentaram, pois deles
ainda ficou alguma coisa em nosso hábito de sorrir, de andar (BOSI, 2003, p.73-74).
A família, para os emigrantes, foi o grupo de apoio, de proteção, que trouxe na sua
experiência uma série de valores humanistas, porque acreditava ser a responsável pela
transmissão de conceitos e de valores sociais, bem como por integrar o indivíduo à
sociedade pelos ensinamentos das normas mínimas de convívio coletivo, mesmo que fosse
pela coerção social (HERÉDIA; PAVIANI; 2003, p. 60).
Nesta pesquisa, notou-se que a religião católica era introduzida no seio do lar, sendo
costurada ao reconhecimento de uma identidade de raiz polonesa. Cabe recapitular, que a forte
conexão entre os poloneses e a igreja tem raiz histórica, pois na Polônia ocupada (1795-1918), a
igreja era um dos únicos redutos de participação política das populações (WACHOWICZ, 1970;
STAWINSKI, 1976; WENCZNOVICZ, 2007; 2010).
No caso em específico dos antepassados de André, emigrados entre 1883-1884 da
Pomerânia (norte da Polônia), vieram ao Brasil motivados pela Kulturkampf:
A minha língua materna é polonesa, o português não é materno para mim, materna foi a
polonesa. Depois aprendi o português, logo que eu cresci. Com minha mãe e com meu
pai, nunca falei em português... com o pai um pouquinho... mas de um modo geral, era em
polonês... Quando o pai queria me xingar, ele me xingava em polonês... porque eu entendia
melhor o polonês que o português... Mas meu pai e mãe também falavam bem o português,
escreviam também... (Mas tu aprendia só falando! Ou se escrevia, lia-se alguma coisa!)
Eu aprendi a falar em polonês, mas não fui alfabetizado em polonês. Eu acabei
lendo e escrevendo mais tarde por conta própria (HAMERSKI, 2015).11
O cenário rural de Guarani das Missões/RS, local de crescimento de André, destoa da capital
Porto Alegre, onde dona Vanda cresceu; distintos cenários, ambos na década de 1950.
Dona Vanda relata que, desde criança, participou da Sociedade Polônia de Porto Alegre, já
que seus pais eram sócios, assim como frequentava a Igreja Polonesa, próxima à referida sociedade.
Lembra que começou a participar ativamente da Sociedade Polônia aos seis (06) anos de idade,
frequentando as aulas de canto, atividade que cultiva até hoje, há mais de 65 anos. Esclarece que
fez parte da ala jovem da Sociedade Polônia, que, na década de 1960, era composta pelos jovens e
pelos adultos. Frequentou o grupo da JOPOL e da referida sociedade, ingressando no grupo de
danças folclóricas da sociedade sob a direção da sra. Janina Figurska. Conta que seu pai instituiu
que em casa só era permitido falar em polonês, para forçá-los – ela e os irmãos –, a aprenderem a
língua polonesa: “Ele dizia que se não aprendêssemos em casa a língua, um dia iria fazer falta... e
que em todos os outros lugares usaríamos o português”. Dona Vanda aos 72 anos coloca
agradecimentos póstumos ao pai, dizendo que: “se não soubesse a língua polonesa não teria feito
muita coisa”. Conta que em 1990 foi sozinha a Polônia para fazer um curso de Etnografia, e, que,
graças à fluência em língua polonesa pode trocar as aulas de idioma pelas de folclore, que confessa
ter aproveitado mais.
Os relatos, cada qual são únicos e pessoais. E marcam um tempo em que a educação, nos
lares, devia formar culturalmente: “através da língua vão passando de pais para filhos os
sentimentos de simpatia e admiração para com o povo polonês” (STAWINSKI, 1976, p. 149). Os
depoimentos mostram os esforços empreendidos no ensino da língua polonesa, e atestam a
convivência entre línguas de raízes distintas – uma eslava e a outra latina; o uso destas demarca
igualmente o público e o privado.
11 Trecho de depoimento oral. As transcrições estão em posse do pesquisador. Entre parênteses, intervenção
do pesquisador.
Uma das manifestações mais importantes da identidade coletiva é a língua. Falar a mesma
língua, ou variedade de língua, que uma outra pessoa é uma maneira simples e eficiente
de indicar solidariedade; falar uma língua diferente ou variedade de língua é uma forma
igualmente eficiente de distinguir-se entre outros indivíduos ou grupos (BURKE, 1995, p.
94).
Este texto buscou expor as vivências de um casal de brasileiros, que acredita na riqueza
cultural do Brasil, e que tiveram suas vidas marcadas pela luta cultural, como exemplos da
contribuição polônica ao mosaico cultural brasileiro.
Porque esse agudo contraste de atitude para com o passado em diferentes culturas? Diz-
se, muitas vezes, que a história é escrita pelos vencedores. Eles podem dar-se o luxo de
esquecer, enquanto os perdedores não conseguem aceitar o que aconteceu e são
condenados a remoê-lo, revivê-lo, refletir sobre como poderia ter sido diferente. Outra
explicação para isso poderia em termos de raízes culturais. Quando se têm essas raízes,
pode-se considerá-las como certas, mas quem não as tem sente necessidade de procurá-
las. Os irlandeses e os poloneses foram desarraigados, e seus países divididos. Não
surpreende que pareçam obcecados pelo passado (BURKE, 2000, p. 83).
No Brasil, em alguns casos essa memória social se manifesta, essa polonidade está viva,
mesmo que pareça desatinada no espaço e tempo. Para os polônicos no Brasil, recomenda-se o
conhecimento da Polônia atual, para uma melhor organização e reconhecimento da parcela cultural
que foi e é legada ao Brasil, nomeando-se polonesa. Se o reconhecimento é esperado, que ao menos
seja usado o termo correto: polônico:
Bem, mas afinal de contas a Polônia atual não são os desenhos recortados ou os trajes da
Pomerânia, ou talvez seja muito mais do que isso. É a excelente música, é um dos melhores
cinemas do mundo, são os festivais de cultura brasileira na Varsóvia coberta pela neve, é
a Grande Orquestra da Festiva Ajuda, continuando a mostrar a solidariedade de uma
grande nação no contexto do etos do “Solidariedade” que aos poucos vai definhando nessa
nação. A Polônia e o polonismo são os assuntos diários, os problemas e as eleições, em
que a vida agitada nos faz mergulhar, perdendo-nos, muitas vezes, na normalidade e nos
afazeres diários – se a segunda linha do metrô deve ir a Targówek ou a Bermowo, se o
preço da gasolina pode chegar a 6 zlótis o litro e se o livre mercado é o remédio para tudo,
até para a especulação... Mas essa Polônia e esse polonismo não podem deixar de ser
percebidos no Sul do Brasil, onde algumas vezes a farmácia da esquina se chama “Jeszcze
Polska nie Zginęła” (“A Polônia ainda não pereceu” – palavras iniciais do Hino Nacional
polonês), da qual até hoje guardo uma etiqueta promocional para mostrá-la aos que
duvidam. E a residência da família Hamerski em Nova Prata/RS é uma casa de madeira
no estilo dos montanheses da Polônia, cercada de pinheiros e com uma bandeira branca e
vermelha tremulando na varanda. (SIUDA- AMBROZIAK, 2011, p. 98-99).
BOSI, Ecléa. Memória e sociedade: lembranças dos velhos. 10 ed., São Paulo: Companhia das
Letras, 2003.
HERÉDIA, Vania Beatriz Merlotti; PAVIANI, Neires Maria Soldatelli. Língua, cultura e valores:
um estudo da presença do humanismo latino na produção científica sobre imigração italiana no
Sul do Brasil. Porto Alegre: EST, 2003.
MEIHY, José Carlos S. B. Manual de História Oral: São Paulo: Loyola, 1998.
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STAWINSKI, Alberto Victor. Primórdios da imigração polonesa no Rio Grande do Sul (1875-
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XERRI, Eliana Gasparini. Nova Prata: uma incursão na história. Caxias do Sul: EDUCS, 2004.
WENCZENOVICZ, Thaís Janaina. Luto e silêncio: doença e morte nas áreas de colonização
polonesa no Rio Grande do Sul (1940-1945) – Tese de doutorado em História. Instituto de
Filosofia e Ciências Humanas. Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul. Porto
Alegre, 2007.
2 Segundo o ACNUR (2009), mais de 50% da população refugiada está estabelecida em áreas urbanas.
uma junção de categorias analíticas e políticas, que retornam ciclicamente ao centro das discussões.
A exemplo, os estudos produzidos por Malkki, (1995b); SCHMIDT, (2007) e BAKEWELL,
(2008).
A este respeito, destaca-se a concentração de pesquisas em questões consideradas típicas da
experiência dos refugiados, tais como o impacto da ajuda humanitária na construção identitária e
na interação com organizações internacionais (BAKEWELL, 2008). Ou ainda, a tendência para
situar grande parte das análises em locais como campos de refugiados, apesar do crescimento
contínuo de refugiados urbanos (POLZER, 2008). Como resultado, corre-se o risco de marginalizar
os segmentos da população refugiada. É preciso evitar “uma aproximação reducionista, incapaz de
acolher os componentes intencionais e a capacidade de agency daqueles atores sociais que vêm
vexando na categoria dos refugiados” (AMBROSINI, 2008, p.17).
Esta seção é baseada em uma pesquisa empírica realizada na cidade do Rio de Janeiro,
Brasil, buscando compreender as estratégias, as dificuldades e os percursos de integração de
refugiados originários da República Árabe da Síria. Neste contexto, foi adotada uma metodologia
qualitativa, usando entrevistas de História Oral, acompanhadas de conversas de caráter mais
informal. Duas entrevistas se desenvolveram com refugiados juridicamente reconhecidos
pelo governo brasileiro.3 A decisão de entrevistar apenas refugiados juridicamente
reconhecidos, se deve ao propósito de um relato em primeiro grau mais heterogêneo.
Os refugiados selecionados para a entrevista são de nacionalidade síria – cristãos ortodoxos
–, que chamaremos nesse estudo de Bassam. Aos 42 anos, originário da cidade de Aleppo,
farmacêutico, é residente no Brasil desde janeiro de 2015. E Ibrahim, 59 anos, é originário de
Damasco, formado em administração e residente no Brasil, desde março de 2014. Os dois
entrevistados declaram apoio ao regime de Bashar Al-Assad. Os entrevistados revelaram um
profundo sentimento de pertencimento à sociedade síria e à religião cristã ortodoxa.
O tamanho da amostra e o processo não probabilístico na escolha dos entrevistados
possibilita que façamos algumas reflexões e pressupostos analíticos sobre as maneiras pelas quais
a realidade é por estes refugiados gerida, bem como, sobre os percursos efetuados por estes
indivíduos observados, mas que não comporta generalizações.
Os dois entrevistados estão inseridos numa rede com origem no Líbano, mas cuja
centralidade no Brasil está situada na cidade do Rio de Janeiro, Brasil, e é mediada pela Sociedade
Ortodoxa de São Nicola – uma instituição religiosa ligada ao Patriarcado Greco-Ortodoxo de
3 A pesquisa foi desenvolvida entre janeiro e fevereiro de 2016, na cidade do Rio de Janeiro, Brasil.
Foram entrevistados dois refugiados sírios de origem cristã ortodoxa.
Antioquia. A sociedade foi fundada em 1917 por imigrantes sírio-libaneses, e agora recebe
refugiados sírios fugidos da guerra civil.
A oportunidade de realizar esta pesquisa em uma conjuntura própria dos refugiados sírios,
imersos em sua comunidade e envoltos em suas tradições étnicas e religiosas, nos permitiu perceber
a relevância do quadro social especifico e a contínua negociação de recursos e pertencimento
identitário, instrumental para a construção de um percurso de integração no Brasil.
A crise na Síria fez com que os sírios se tornassem a principal nacionalidade de
refugiados no Brasil – são 2.077 refugiados reconhecidos.4 Existem, ainda no país, 389
refugiados libaneses reconhecidos pelo governo brasileiro. O Comitê Nacional para os
Refugiados (CONARE), órgão governamental responsável pela analise dos pedidos de
refúgio, esclarece que apesar de o Líbano não ser um país em guerra ou situação de conflito, o
país sofre reflexos do que ocorre na vizinha Síria.
Apesar do crescimento no número de solicitações e de refugiados reconhecidos, Barbosa
(2015) argumenta que a capacidade brasileira de receber refugiados é muito superior, devido às
condições culturais e espaciais do país; opinião com a qual concorda o Alto Comissário para
Refugiados das Nações Unidas no Brasil, Andrés Ramirez (BARBOSA, 2015). Para ele, o Brasil
está na vanguarda dos direitos refugiados, com uma legislação moderna e uma população receptiva.
O Brasil é signatário da Convenção de Genebra de 1951, e também dos protocolos
posteriores e declarações regionais. Portanto, está no seleto grupo de países signatários de todos os
instrumentos jurídicos internacionais de proteção aos refugiados. Contudo, somente em 1997, o
país criou um instrumento jurídico interno, direcionado exclusivamente ao solicitante de asilo e
refugiado no Brasil: a Lei 9474/97, conhecida como Estatuto do Refugiado (ACNUR, 2016).
Desde o processo de redemocratização, iniciado na década de 1980, e o subsequente
compromisso do país com os direitos humanos no país e no exterior, as atividades brasileiras para
proteção dos refugiados evoluíram consideravelmente. Com a lei 9474/97, e mais recentemente as
iniciativas de reassentamento em seu território, o Brasil passou a ser considerado como um modelo
para a proteção de refugiados na América Latina, segundo o ACNUR (JUBILUT, 2006).
Jubilut (2006) argumenta que ao Brasil se deve a liderança regional na América Latina em
relação à defesa dos direitos do refugiado, devido ao Estatuto do Refugiado e também à importância
política e econômica desenvolvida pelo Brasil na América do Sul. Para Jubilut, o país deve ser
considerado um modelo jurídico e de proteção ao refugiado na América do Sul.
Devido à situação generalizada de agressão aos direitos humanos na Síria, o Brasil
implementou, desde 2013, através do Ministério da Justiça, e dos órgãos correspondentes como a
Polícia Federal (que realiza o papel de polícia de migrações) e o CONARE, a emissão de vistos
humanitários para cidadãos sírios que buscam refúgio. A concessão de um visto especial a pessoas
afetadas pelos conflitos armados na Síria e região, que desejem chegar ao Brasil buscando refúgio,
4..Em janeiro de 2016, existiam aproximadamente 13 mil solicitações de asilo em análise pelo governo
brasileiro e 8.500 refugiados reconhecidos, de mais de 70 nacionalidades diferentes.
é estendida também à família dessas pessoas deslocadas. Somente no primeiro dia em que o visto
humanitário entrou em vigor, 27 solicitações foram feitas (ACNUR, 2013).
Segundo registros do Ministério da Justiça, é crescente o número de pessoas do Oriente
Médio que buscam se refugiar no Brasil. Para o CONARE, isto demonstra a tradição de
sensibilidade do governo brasileiro. Originalmente, com validade de dois anos (2013-2015), a
emissão de vistos humanitários para cidadãos atingidos pelo conflito na Síria, foi prorrogada por
mais dois anos. Diante do agravamento da crise humanitária na Síria, o governo brasileiro decidiu
prorrogar a medida que flexibiliza o ingresso de refugiados daquele país no Brasil. A regra que
facilita a concessão de vistos para refugiados sírios fez com que o Brasil se tornasse uma opção à
tradicional rota de fuga dessa população, que, em sua maioria, ruma à Europa (BRASIL, 2015).
A Síria, desde março de 2011, passa por uma série de conflitos armados. São conflitos entre
o regime que está no governo, desde 2000, representado por Bashar Al-Assad. São grupos
oposicionistas, reconhecidos internacionalmente como a legítima oposição ao regime de Al-Assad
e ainda organizações terroristas como o Estado Islâmico da Síria e Iraque (ISIS). No conflito, que
é considerado sectário, Bashar Al-Assad é acusado de privilegiar algumas minorias. Como os
alauítas da qual faz parte, os drusos residentes, principalmente nas Colinas de Golã – constituem
um grupo considerado essencial para a segurança nacional por serem fiéis ao regime e residirem
em uma área em disputa com Israel – os cristãos, que são cerca de 10% da população síria, divididos
em ortodoxos, siríacos e melquitas e ainda uma minoria muçulmana xiita (PHILLIPS, 2015).
Apesar dessas minorias serem consideradas privilegiadas pelo regime, elas também se
tornaram refugiadas. O conflito na Síria se assemelha, nesse ponto, ao conflito armado
desenvolvido na Colômbia, onde o perseguido pode ter sido em algum momento o perseguidor.
Essa realidade dialética implica nas relações entre os refugiados que vivem no refúgio, dado que
sírios cristãos evitam o contato com compatriotas muçulmanos e também o contrário.
Tal sentimento está presente na fala de Ibrahim5:
[...] tenho muitos amigos refugiados. Convivo com eles, porque assim é uma forma
de recordar a vida na Síria. [...] Eu conheço alguns iraquianos e também libaneses
que são muçulmanos e convivo com eles. Faço negócios com eles também. Mas
quando é de origem síria, eu prefiro que seja ortodoxo, como eu. Porque a gente
nunca sabe, ele pode ter saído da Síria por ser contra o governo Assad. E seria
complicado manter uma amizade harmoniosa nessas condições.
7
Entrevista com Bassam, 2016.
8 Entrevista com Ibrahim, 2016.
em relações que possam ser baseadas na convivência, amizade e/ou parentesco, e apoiar uns aos
outros. Boyd (1989) argumenta que as redes sociais são base para a análise central de imigração,
pois se tornam o elo entre o envio e recebimento de países e podem explicar a continuação da
migração.
Alexander e seus colegas (2004, 2007) destacam que, para algumas comunidades de
imigrantes, o termo comunidade é construído em torno da rede de familiares, amigos e da rede
social étnica, que pode atuar como o principal recurso para o apoio social. De acordo com Portes
(1995), uma rede social pode ser uma fonte para a aquisição de meios escassos, como o capital
financeiro e informação, e pode ligar indivíduos dentro e entre as comunidades e organizações.
Mais importante, ela pode influenciar os objetivos dos indivíduos.
É amplamente reconhecida a importância do papel das redes no âmbito migratório: a sua
relevância é registrada principalmente em três momentos da experiência migratória. 1) no processo
de decisão, antes de partir; 2) na escolha do destino e 3) na integração na sociedade de acolhimento
(KORAC, 2001). Podemos falar da função seletiva para os dois primeiros momentos e de função
adaptativa para o terceiro (ZANFRINI, 2004).
Embora a função seletiva das redes seja geralmente menos significativa para os refugiados
do que na migração econômica (KORAC, 2001; AMBROSINI, 2008), as entrevistas realizadas
destacam como as redes também trabalham para os solicitantes de refúgio, ou pelo menos parte
deles, na seleção do país e da cidade para qual ir. Bassam, bem como Ibrahim admitem que
chegaram ao Brasil por intermédio da rede que se inicia no Líbano. Eles acreditam que não teriam
vindo para o Brasil, caso não existisse o apoio da rede étnica e religiosa:
E ele [um amigo do entrevistado] falou que algumas Igrejas Ortodoxas no Brasil
estavam recebendo e dando apoio aos sírios que queriam ir para lá. [...]. Não, de
forma de nenhuma eu teria vindo para cá sem ter algum conhecimento, sem ter
ajuda. [...] Eu vim para o Brasil com os meus recursos, mas só vim porque essas
pessoas me ajudaram, me receberam e receberam a minha família. Aqui, essas
pessoas me apresentaram outras pessoas, imigrantes ou não, que hoje são meus
amigos e elas me ajudam. Eu acho que, por isso, eu tenho a obrigação de ajudar
os outros.9
De forma nenhuma [o entrevistado viria para o Brasil sem conhecimento]. O
Brasil é um país muito hospitaleiro, muito agradável. Mas chegar aqui sem
ajuda, sem conhecimento, sem amigos, pode se tornar uma aventura. Na
verdade pode se tornar um grande desastre, porque é um país muito diferente
do nosso, com muitas peculiaridades.10
9
Entrevista com Bassam, 2016.
10
Entrevista com Ibrahim, 2016.
Tal situação revela a função seletiva das redes sociais, também no caso das migrações
forçadas. Durante a pesquisa, identificamos dois canais, fontes dos recursos utilizados pelos
refugiados: a oferta institucional e as relações étnicas e religiosas. O primeiro faz referencia aos
apoios fornecidos pela Sociedade Ortodoxa de São Nicolau. O segundo está relacionado com o
suporte e os recursos acessados pelos refugiados com base em relações pessoais, de parentesco ou
amizade, ou ainda em virtude do seu pertencimento a um grupo, definido pela origem comum ou
por um pertencimento étnico, um compartilhamento de identidade.
No contexto analisado, os entrevistados sírios mostram uma propensão a confiar mais,
sempre que possível, nos recursos obtidos através de sua rede étnica e religiosa, demonstrando um
melhor relacionamento com outros cristãos ortodoxos. Tais redes são acessadas não somente em
virtude do conhecimento pessoal prévio, mas de acordo com a pertença a um grupo, identificado
pela população síria e reforçada pelo pertencimento à religião ortodoxa e da afiliação étnica.
Apesar das diferenças étnicas e religiosas com os demais grupos de refugiados sírios no Rio
de Janeiro, os entrevistados revelam um forte discurso nacionalista e de defasa ao regime sírio no
poder. Por vezes revelando uma simpatia ao nacionalismo árabe presente no discurso baatista, o
que revela como estes laços transcendem o status de beneficiário de proteção internacional.
Esse sentimento de pertencimento, mesmo a milhares de quilômetros de distância, pode ser
explicado por Bourdieu (1998, p. 11-12), onde o imigrante não encontra seu lugar, pois, segundo o
autor, “o imigrante é atopos, sem lugar, deslocado, inclassificável”. Mesmo estando no Rio de
Janeiro, os refugiados sírios se sentem pertencentes a um contexto específico sírio, comum a
Damasco ou Aleppo, mas esta pode ser uma condição passageira. Ou ainda se enquadram na
definição de Glick Schiller (2005, p. 570) sobre o nacionalismo a longa distância, que diz que: “a
set of identity claims and practices that connect people living in various geographical locations to a
specific territory that they see as their ancestral home”.
O sucesso econômico dos entrevistados é bem recebido por todos, inclusive pela
comunidade local. Bassam iniciou com a ajuda da rede um pequeno comércio que se expandiu para
fora dos limites étnicos e religiosos. Ibrahim, por sua vez, empreendeu uma empresa de navegação
marítima, com o know-how trazido de experiências anteriores na Síria, e teve apoio jurídico do
advogado cedido pela Sociedade Ortodoxa.
Os entrevistados descreveram um percurso migratório denso e fechado, que fornece
suporte material, cognitivo e emocional, permitindo ao refugiado recém-chegado alcançar
gradualmente a autonomia econômica através do trabalho; em alguns casos amparados por um
dos tantos exercícios comerciais geridos por um dos seus compatriotas. Nenhum dos
entrevistados se dirigiu alguma vez a organizações do terceiro setor, como a Caritas
Arquidiocesana do Rio de Janeiro.11 O surgimento de nichos étnicos no local de trabalho é,
eeee
11 A Cáritas Arquidiocesana do Rio de Janeiro é uma associação ligada à Igreja Católica Romana,
mas que desenvolve um importante trabalho no acolhimento e apoio a refugiados de todo mundo,
independentemente de credo ou etnia. Alguns dos trabalhos desenvolvidos pela instituição são o amparo jurídico
e os cursos de língua portuguesa.
por outro lado, um efeito emergente relacionado à centralidade de redes compatriotas de
inserção no mercado de trabalho (PORTES, 1995).
Por outro lado, devemos lembrar como os recursos obtidos por meio do uso do capital
social existente dentro das redes, embora possam aparecer ‘gratuito’ terá um custo final
(Portes, 1993; 1995). Podemos, portanto, supor que, além dos benefícios, a adesão a uma rede
tão densa e coesa pode ter efeitos negativos em longo prazo (RYAN et al.; 2008;
ZANFRINI, 2004). Neste caso, deve-se enfatizar que o ímpeto que a rede parece dar a seus
membros vai em direção à separação do resto da sociedade, ao invés de promover uma
integração gradual à sociedade do país de acolhimento.
Os entrevistados mostram-se ainda desconfortáveis ao desenvolver relações com
brasileiros fora da rede étnica e religiosa:
De acordo com estas narrativas, não existe na sociedade brasileira uma visão estereotipada
e marginalizada dos refugiados sírios, assim como ocorre no Líbano. Também não foram reportados
casos de xenofobia ou qualquer tipo de agressão ou preconceito gerado pelo fato dos refugiados
serem imigrantes. Bassam e Ibrahim admitiram ter dificuldades de interação e integração com a
comunidade local por diferenças culturais, mas, principalmente linguísticas. Apesar dessa falta de
interação entre imigrantes e nativos, os refugiados destacaram seu apreço pelo Brasil, pela cultura
brasileira e pelo povo brasileiro, que segundo ambos, é muito receptivo.
12
Bassam, entrevista realizada em 2016.
13 Ibrahim, entrevista realizada em 2016.
A pesquisa traz à luz aspectos importantes para a análise teórica e empírica sobre refugiados,
em geral e de forma específica – os sírios ortodoxos refugiados no Brasil. Por um lado, os requisitos
para ser capaz de aspirar a mudança de status de país para país, e por outro, os direitos ligados a
ele, a legislação, as intervenções públicas ou privadas e a reação do público podem ser muito
diferentes, com o resultado que serve de referência ao mesmo termo criado em um quadro
absolutamente diferente de restrições e oportunidades.
Para os entrevistados é evidente que ser um refugiado no Brasil é diferente de ser um
refugiado no Líbano. Alterando o contexto específico, os recursos disponíveis e as dificuldades a
serem enfrentadas, também variam as estratégias e os modos de ação e interação. No Brasil, o
refugiado não recebe apoio estatal. O governo brasileiro se compromete apenas com a aceitação
legal dos sírios. Contudo, através das redes sociais e do uso do capital social, o refugiado assentado
no Brasil possui capacidade de agency, de agir em causa própria e também da comunidade em que
está inserido.
A identidade de refugiado pode ser central, auxiliar ou unicamente instrumental, a depender
do refugiado ou da situação. Existem aqueles que contam apenas com redes de apoio de
compatriotas, como os sírios, no Rio de Janeiro. Outros, com os serviços oferecidos pelas
autoridades locais, organizações e associações, como os refugiados atendidos pela Cáritas em
algumas regiões do Brasil ou os que recebem algum apoio de governos na Europa, como
alimentação e moradia. Em todas as situações, o refugiado não perde a capacidade de agente.
A fuga do próprio país e a constrição dentro de esquemas rígidos e imperativos não priva o
indivíduo da possibilidade de agir, ou remover as suas características sociais, culturais ou o capital
humano construído ao longo de uma vida, ou torná-lo parte de um conjunto indefinido e uniforme.
Contudo, devemos esquecer que o refugiado permanece sempre um ator social, e que sua situação
pode ser mais bem compreendida, considerando-se as redes e contextos de interação em que as
variáveis são inseridas.
No que corresponde ao contexto nacional brasileiro para refugiados, podemos assumir uma
posição confiante. Apesar de problemas na estrutura de recepção, acolhimento e integração dos
refugiados, o Brasil mantém uma postura humanista e proativa em defesa dos direitos humanos e
tem se mostrado favorável ao recebimento de novos refugiados do conflito sírio. Mas, devemos
ainda ponderar que os custos do deslocamento entre a Síria e o Brasil são elevados, muitas vezes
tornando a fuga inviável.
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Neste texto visa-se analisar a trajetória do imigrante italiano, Carmine Motta, em Porto
Alegre. Carmine encontra-se dentre os vários peninsulares que se deslocaram para o Rio Grande
do Sul, depois do final da Segunda Guerra Mundial. O estudo pretende colaborar com os estudos
produzidos sobre a imigração italiana, detendo-se na fase do pós-guerra.
Então, por meio do percurso de um imigrante proveniente da Calábria, propõe-se
contextualizar a imigração italiana no período do pós-guerra (1946-1976), na capital gaúcha. Além
disso, visa-se observar a profissão de alfaiates desempenhada pelos italianos no espaço dos centros
urbanos do Rio Grande do Sul, que se caracteriza por uma imigração qualificada. Por último,
pretende-se tratar as questões referentes ao associativismo e ao transnacionalismo, verificados na
trajetória sociocultural do imigrado, já mencionado.
* Doutor em História/PUCRS. .
1 Triveneto refere-se às três regiões italianas, a saber: Veneto, Friuli-Venezia Giulia e Trentino-Alto Adige,
situadas no nordeste do país.
2 Mezzogiorno refere-se ao Sul da Itália.
velhas potências; posteriormente, o paralelo surgimento de novos Estados; o último, a explosão
demográfica transcorrida nos países subdesenvolvidos (CORTI, 2007, p. 84).
É pertinente referir, também, a reabertura das fronteiras de diversos países no período do
pós-guerra, que impeliu o alvorecer de um novo ciclo migratório, mormente, no ocidente. Não se
pode negligenciar que, da Europa, entre 1947 e 1951, partiram 460.000 emigrados, dos quais
218.000 deixaram a sua própria pátria de maneira espontânea; enquanto que 242.000 seguiram
direcionados pelas organizações internacionais de refugiados; entretanto, estas acabaram extintas
em 1951 (CORTI, 2007, p. 84).
As direções seguidas pelas novas ondas migratórias aliaram-se a algumas tendências
alicerçadas em deslocamentos anteriores. A maioria dos emigrantes da Europa Setentrional
transferiram-se para países de cultura anglo-saxã, como Estados Unidos, Canadá e Austrália; em
contrapartida, os provenientes dos países meridionais foram, especialmente, para países da América
Latina, como: Argentina, Brasil, Uruguai, Venezuela entre outros (CORTI, 2007, p. 85).
O crescimento industrial foi bastante relevante, sobretudo, na Argentina, no Brasil e no
Uruguai, graças à expansão registrada no período da Segunda Guerra Mundial, e mantida depois
através de uma maciça intervenção dos Estados Unidos nas economias destes países. Contudo, a
diferença do passado é que os novos fluxos não se direcionaram somente para os maiores países de
imigração, como assim se espalharam por toda a área latino-americana. A Argentina, o Brasil e o
Uruguai seguiram sempre o papel predominante próprio, pelo peso que estes assumiram em razão
da sua produção industrial (CORTI, 2007, p. 84).
Entrementes, o fato mais significativo da década de 1950 foi que alguns países da Europa
Centro-Setentrional não recuperaram apenas as posições econômicas precedentes à Guerra, mas
ainda registraram um crescimento que os colocou a níveis superiores aos resultados industriais
alcançados pelos EUA, tornando-se indiscutíveis protagonistas na economia mundial. Diversos
acontecimentos contribuíram para o crescimento: a estabilidade monetária, que foi finalmente
alcançada após os altos picos inflacionários do pós-guerra; os estímulos na industrialização, que
foram oferecidos pelas políticas econômicas nacionais e pelos auxílios internacionais; e a positiva
influência exercida pelo nascimento do mercado econômico europeu (CORTI, 2007, p. 90).
Em síntese, os italianos, cuja meta foram os países distantes do continente europeu,
caracterizaram-se por uma migração de caráter definitivo. Já aqueles que se endereçaram para os
Estados europeus evidenciaram uma permanência temporária. A proximidade de emigrados com as
suas cidades e o fato de se deslocarem desacompanhados de suas famílias favoreceram para que a
sua mobilidade tivesse uma curta duração – aqui se registrou grande número de repatriados.
3 Vale lembrar que inúmeros italianos radicados no Brasil, dentre as décadas de 1930 e 1940,
pleitearam e conseguiram as suas naturalizações junto ao governo brasileiro. Logo, os dados dos Censos
referem apenas aqueles que permaneceram com a nacionalidade italiana.
século passado, a capital gaúcha demonstrou um grande crescimento urbano associado à ampliação
do seu parque industrial, vinculada à rede de transportes de médios e longos trajetos (ferrovia,
navegação fluvial e aviação civil). O distrito industrial – formado, primeiramente, pelos
bairros Navegantes e São João,4 e que com o tempo englobou toda a Zona Norte da cidade –
concentrou a expansão populacional de Porto Alegre nesta fase (FORTES, 2004, p. 31).
No começo dos anos de 1940, a capital iniciou a transição para a moderna metrópole. O
crescimento demográfico, de 1940 a 1950, foi de 45 %. Isto é, neste arco temporal, a população
recrudesceu de 272.000 para 394.000 habitantes (SILVA, 1996, p. 53-54).
O princípio da Segunda Guerra viabilizou a aceleração do desenvolvimento em Porto
Alegre, cujo resultado manifestou-se na década de 1950. A impossibilidade da importação de bens
de consumo, que acabaram eliminados em consequência do conflito, possibilitou o nascimento de
novas indústrias na cidade (CONEDERA, 2012, p. 81). O município foi o maior núcleo de
desenvolvimento industrial no Estado do Rio Grande do Sul. Assim, a capital atraiu o maior
contingente de operários do Estado (SINGER, 1968, p. 172).
Em 1940, Porto Alegre possuía mais de 270 mil habitantes. A capital era a quinta cidade
mais populosa do país. Paulo Roberto Rodrigues Soares (2007, p. 300) destaca que:
Os municípios de Porto Alegre, Rio Grande, São Leopoldo, Caxias do Sul e Pelotas
detinham as principais casas comerciais, industriais, manufaturas, o comércio de exportação e
importação, e uma grande parcela da construção civil (edifícios, prédios e habitações de luxo)
ligados ao trabalho e à atuação de imigrantes (SOARES, 2007, p. 300).
Os postos de trabalho, advindos do crescimento industrial na Zona Norte da capital,
favoreceu a atração do fluxo migratório internacional e do interior do Estado. Alexandre Fortes
(2004, p. 39) frisa que:
[...] as levas de alemães e italianos e para a intensificação da vinda de cidadãos dos mais
variados países do Leste europeu. [...] Os trabalhadores trazidos à capital em função dos
trabalhos de expansão na Viação Férrea. Estabelecendo moradia próxima às fábricas,
abrindo as ruas e loteando as antigas chácaras, a fixação desses migrantes levou à
4 Os bairros Navegantes e São João foram criados pela Lei nº 2022, de 07/12/1959. Entrementes, o primeiro
arruamento das imediações do Navegantes data de 1870. Ulteriormente, a inauguração da primeira Estação
Navegantes, em 1886, interligando Porto Alegre-Novo Hamburgo, favoreceu a dinamização e ocupação da
região. Em 1895, a Empresa Territorial Porto-Alegrense implementou um grande loteamento nas áreas do bairro,
incentivando a sua habitação. (FRANCO, 1988. p. 284-285).
integração, na paisagem urbana de Porto Alegre, de um bairro operário multiétnico: o
Navegantes-São João, que logo viria a ser administrativamente definido como núcleo do
Quarto Distrito da cidade.
O meu irmão veio em 1951, logo depois, quando terminou a guerra. Porque toda a família
da minha mãe estava aqui (Porto Alegre). [...] E enquanto eu crescia, eu já tinha esta ideia
de vir para Porto Alegre na cabeça, porque éramos só dois irmãos. E eu queria ficar junto
com o meu irmão. Então, quando cresci, eu decidi que eu vou para Porto Alegre!
Como descreve o entrevistado, Porto Alegre era já um lugar conhecido através das histórias
que escutava em sua casa, comentadas por familiares e pelos amigos e pessoas de Morano Calabro.
É importante mencionar o estudo de Constantino (2008, p.15), “O Italiano da Esquina”, que informa
que a maioria dos italianos que se radicaram em Porto Alegre, desde o último quartel do século
XIX, era proveniente do Mezzogiorno, e, em particular da cidade de Morano Calabro.
5 Realizou-se, no dia 2 de agosto de 2017, uma entrevista com o senhor Carmine Motta. A entrevista ocorreu nas
dependências da alfaiataria do depoente. Elaborou-se uma entrevista com um roteiro seguindo os pressupostos
da História Oral temática com a finalidade de saber sobre a sua experiência migratória no Brasil.
Carmine Motta, como vários patrícios de seu paese6 de origem, empreenderam
uma imigração espontânea, seguindo uma cadeia migratória. Segundo a tipologia do
Antropólogo Charles Tilly, a modalidade de imigração em cadeia caracteriza-se por “envolver
o deslocamento de indivíduos motivados por uma série de arranjos e informações
fornecidas por parentes e conterrâneos, já instalados no local de destino” (TILLY, apud.
TRUZZI, 2008, p. 200).
As relações entre os imigrantes peninsulares encontravam relacionados a redes
sociais7 sustentadas por relações de solidariedade e confiança. Rotineiramente, a família
constituía-se na base da rede de solidariedade, já que ela representa o grupo social do sujeito
(CONEDERA, 2017, p. 39).
A partir do emprego dos termos “cadeia” e “rede” propõe-se ressaltar a condição da
qual diversos imigrantes deslocavam-se após se certificarem, com antecipação, sobre as
oportunidades e dificuldades com aqueles que já experimentaram, anteriormente, a
imigração para saber informações acerca do destino escolhido (TRUZZI, 2008, p. 203).
Vale dizer que, durante os anos do pós-guerra (1946-1976), a maioria dos
peninsulares presentes em Porto Alegre prosseguia sendo constituída por indivíduos
oriundos da Itália meridional. O grupo calabrês mantinha-se como a parcela,
quantitativamente, mais representativa, sendo acompanhada em menor medida por imigrantes
da Campania (principalmente da província de Salerno) e Sicília (especialmente das províncias
de Enna e Catania) (CONEDERA, 2012, p. 72).
Carmine Motta foi recebido por seu irmão e familiares que já moravam no lugar da
sua meta de imigração. Estes sugeriram ao jovem alfaiate de trabalhar no comércio de
produtos alimentícios. Nos anos do pós-guerra, os italianos em Porto Alegre continuaram
inserindo-se, majoritariamente, no comércio. Sabe-se que a atividade comercial caracterizou
os emigrados de Morano Calabro, bem como o investimento neste tipo de ramo por
meridionais de outras Regiões da península, desde o final do oitocentos na capital
gaúcha. Algumas famílias moranesas especializaram-se em determinados ramos, como
do tecido, dos açougues, calçados, secos e molhados, casas lotéricas, entre outros
(CONEDERA, 2012, p. 92).
Contudo, Carmine rejeitou a proposta de trabalhar com seus parentes, porque desejava
se dedicar, no Brasil, à sua formação de alfaiate. Inicialmente, começou a trabalhar como
funcionário em uma alfaiataria que prestava serviços para as lojas Renner, que durante os
anos de 1950 e 1970 oferecia aos seus clientes ternos sob medida. Sobre esta fase, o depoente
narra:
Fiquei trabalhando ali por 3 anos. E eu sempre com aquela ideia de montar uma sartoria
[alfaiataria] própria. No meio tempo, fiz uma economiazinha e montei a minha alfaiataria.
Após inaugurar o seu próprio negócio, Carmine Motta prosperou, gradualmente, como
também aumentou a sua clientela na sociedade porto-alegrense. Carmine pertence ao
grupo de imigrantes italianos qualificados8 que se inseriram no Brasil, alcançando êxito em
sua atividade profissional nos anos do pós-guerra. Diversos peninsulares, que
desembarcaram em território brasileiro, e através do seu trabalho alcançaram
reconhecimento e sucesso nas suas respectivas profissões.
Carmine, quando abriu sua própria alfaiataria na capital gaúcha, especializou-se na
confecção de ternos sob medida. O entrevistado explica:
Bem, para fazer um terno inteiro tem um ditado italiano que diz: “Il tuo corpo è unico al
mondo. E solo lo sarto lo sa!” [O teu corpo é único no mundo. E somente o alfaiate sabe
disto!] Então, para fazer um terno inteiro precisa se ter um domínio do corte. Eu fiz um
curso de corte na Scuola di Taglio Ligas di Torino. E isso foi um aspecto muito importante
para mim! Porque este curso me deu a base técnica para desenvolver a alfaiataria sob
medida. Isto é, que era, ao mesmo tempo, cortar e confeccionar uma roupa.
Como Carmine expôs na sua fala, o fato de possuir um domínio na técnica de cortar tecido
permitiu-lhe de fazer trajes masculinos sob medida para seus fregueses. Vale lembrar que esta
prática do corte de tecido não era uma formação que todos os alfaiates tinham. Logo, como outros
colegas de profissão – que dominavam a técnica do corte – o imigrante de Morano Calabro oferecia
um diferencial em sua atividade.
A partir da sua atividade profissional, Carmine também constituiu muitas amizades. Em
uma ocasião, o alfaiate recebeu o convite de um amigo e cliente para comparecer a sua festa de
casamento onde conheceu a senhora Carmelina com quem, depois de alguns anos, casou-se e teve
um casal de filhos.
É preciso referir que desde que chegou a capital do Rio Grande do Sul, o alfaiate sempre se
manteve integrado com o grupo dos seus compatriotas oriundos de Morano Calabro. Como outros
conterrâneos, Carmine participava das festas e bailes organizados pela Sociedade Principessa Elena
di Montenegro (atual Sociedade Italiana do Rio Grande do Sul) que reunia grande parcela da
coletividade de peninsulares residentes na capital gaúcha.
[...] não tínhamos uma sílaba escrita sobre a presença calabresa de Porto Alegre. E a partir
daí uma série de intelectuais começou a escrever como o Dr. Dante de Laytano, a Núncia
com o seu livro, O Italiano da Esquina, o professor Coeiro e outros e outros... Fiore
Marrone, a professora Maria Feoli Guaragna. A professoressa Maria Feoli Guaragna foi
muito, muito importante! E a Núncia! Eu tinha a ideia do que fazer, mas não tinha os
meios.
Desde que eu cheguei, comecei a participar da Sociedade Italiana. Até quem me convidou
para frequentar a Sociedade Italiana, foi o então presidente Januario Severino. Ele, que foi
presidente da Sociedade Italiana, foi por um tempo para a Itália, e ele ficou morando
próximo da casa onde estava morando a minha mãe; assim ele fez amizade com a minha
mãe. E quando ele voltou, ele me procurou, porque a minha mãe lhe disse que eu estava
aqui [Porto Alegre]. Ele me encontrou e me convidou para participar da Sociedade
Italiana. Então, eu me associei, e depois eu sou um cara que sou muito crítico, e então eu
comecei a criticar algumas coisas.... Até o dia que eu fui em uma reunião da diretoria para
criticar algumas coisas, então me convidaram para ser o Diretor Social [risos] E a partir
daí eu sempre participei.
Carmine e outros patrícios – que vieram para o Rio Grande do Sul nos anos do pós-guerra
– traziam uma bagagem diferente (como uma formação e mentalidade distinta) daquela que seus
compatriotas que imigraram outrora da península. Além disso, a questão social fora um aspecto que
repartiu os grupos, a saber: aqueles que já estavam estabelecidos com seus descendentes possuíam,
muitas vezes, uma condição econômica confortável, diferentemente, dos recém-chegados que
vinham em busca de sucesso no Novo Mundo.
A partir do seu envolvimento na esfera associativa, Carmine Motta tornou-se um nome
conhecido na comunidade italiana de Porto Alegre e do Rio Grande do Sul, pois integrou uma série
de iniciativas sociais e culturais da coletividade italiana existente no Estado mais ao Sul do Brasil.
Assim, o seu trabalho para com a sociedade italiana e porto-alegrense rendeu-lhe
reconhecimentos por parte dos governos italiano e brasileiro. Da sua pátria de origem, Carmine foi
homenageado com: Cavaliere dell´Ordine al Mérito della Repubblica Italiana (1990) e Cavaliere
Ufficiale dell´Ordine al Mérito della Repubblica Italiana (2004). Da cidade de Porto Alegre,
recebeu o título de Cidadão Honorário de Porto Alegre (1992). Depois de exercer diversos cargos
e funções em diferentes associações brasileiras e italianas, Carmine Motta atua hoje como um dentre
os 7 consultores da Regione Calabria na América do Sul.
As experiências e os reconhecimentos, que Carmine vivenciou no país de imigração,
exemplificam como muitos imigrantes italianos foram atores capazes de criar e preservar laços
entre dois mundos diferentes. O depoente fala que
O imigrante italiano tem uma coisa boa! Ele se adapta ao país onde ele vai, e se integra.
Ele tem essa facilidade italiana de se integrar. Agora eu, quando vou para a Itália, eu sou
brasileiro! Porque se alguém fala mal do Brasil, Deus me livre! Eu brigo. Se alguém fala
mal da Itália aqui, eu também brigo! Então, eu me integrei, como se integraram todos,
pode ver os filhos [dos imigrantes]!
A trajetória do alfaiate moranês não se restringiu apenas a sua vida profissional e familiar.
Carmine constitui-se em um ponto de referência e liderança de uma coletividade de imigrantes de
sua Regione de origem. Em seu percurso, Carmine demonstra como os imigrantes italianos foram
atores capazes de circular por diversos espaços da sociedade porto-alegrense.
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USP, v. 20, n. 1, p.199-218, 2008.
Nas entrevistas de história oral de vida, as perguntas devem ser amplas, sempre colocadas
em grandes blocos, de forma indicativa dos grandes acontecimentos [...] a riqueza de
detalhes favorece uma gama enorme de temas que, em conjunto, enriquecem a percepção
da vida social brasileira. (MEIHY, 1996, p. 48).
Nicole nasceu em Valence, cidade ao sul da França em 1943, sendo filha única do casal
Gilbert Trouiller e Odette Eugenie Victoria Gremeaux.
Quando tinha sete anos, seu pai ─ que ela define como um aventureiro ─ resolveu tentar a
vida em outro país. Gilbert vinha de uma família de comerciantes, mas estava insatisfeito com essa
condição e resolveu que iria tentar a vida em outro lugar que poderia ser o Canadá, Chile, Argentina
ou Brasil. Através do jornal local anunciou sua vontade de montar um negócio fora da França.
Conseguiu a adesão de três investidores.
Como havia estudado no colégio dos maristas em Valence, na dúvida do que fazer
exatamente, foi aconselhar-se com os padres quanto ao ramo de negócios que poderia, juntamente
com os outros investidores, desenvolver fora da França. Nessa ocasião, fazia noviciado naquela
cidade, o Irmão José Otão, natural de Garibaldi. O encontro foi decisivo para definir como destino
o Brasil, especificamente a cidade de Garibaldi, terra natal do religioso que, posteriormente, foi
Reitor da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUCRS).
Gilbert não era vinicultor, mas deixou-se guiar pelo espírito aventureiro. Tudo acertado com
os demais investidores e com o apoio dos irmãos maristas, vendeu seus pertences na França e
adquiriu todo o maquinário necessário para a montagem da fábrica de champanhe.
Garibaldi, situada a 110 quilômetros de Porto Alegre, na região de colonização italiana, foi
instalada como colônia em 1870, ainda no Império. Recebeu a denominação de Colônia Conde
D’Eu, elevada à condição de município e desmembrada de Bento Gonçalves em 1900,
passou a chamar-se Garibaldi1.
Figura 2 ─ Rua Buarque de Macedo em 1900: na ocasião da fotografia, Garibaldi ainda era
denominada como Colônia de Conde D'Eu
As colônias italianas no Rio Grande do Sul foram fundadas sob o regime da pequena
propriedade e o trabalho era executado pela mão de obra familiar.
A produção agrícola das colônias sempre foi diversificada, mas com o passar do tempo a
implantação das vinhas e o respectivo progresso da vinicultura tornaram-se um nicho de mercado
bastante lucrativo, acelerando a economia a ponto de tornar-se uma cultura permanente e principal
produto comercial da região. (HERÉDIA, 2014, p. 127).
Anteriormente à chegada dos investidores franceses em Garibaldi, já estavam instaladas na
região a fábrica de bebidas Dreher, em Bento Gonçalves, a Peterlongo, fundada em 1913 em
Garibaldi, que também, dentre outras bebidas, produzia champanhe, além de outros pequenos
fabricantes, especialmente de vinhos.
Em outubro de 1950 chegava a Garibaldi o grupo de franceses com o objetivo de montar
uma fábrica de champanhe que em breve entraria em operação. Estabeleceram os sócios que a
empresa levaria o nome de um deles, Georges Aubert, pois o nome do sócio majoritário, Gilbert
Trouiller era de difícil pronúncia para os brasileiros.
Como a fábrica de bebidas Dreher não produzia champanhe, os novos empreendedores
fizeram contato com a Dreher para que os representantes comerciais daquela empresa os pudesse
representar também em outros estados do território nacional, visto que inexistia concorrência de
produto. Tal iniciativa foi importante e resultou em agilidade na comercialização e distribuição da
nova champanhe que chegava ao mercado.
O processo de fabricação da champanhe Georges Aubert e da região de um modo geral, era
o chamado “charmat”. O vinho-base era levado a fermentar a uma temperatura de 13 a 15 graus
centígrados em recipientes de aço inox, as chamadas autoclaves, com capacidade de 5 a 10 mil
litros para depois ser engarrafado e distribuído.
Em 1950, quando da chegada das quatro famílias de franceses a Garibaldi, Nicole era ainda
uma criança de sete anos e tudo que sabia sobre o Brasil era o que seu pai contara: que era um país
onde fazia muito calor e de natureza exuberante, com muitas florestas, animais, inclusive muitos
macacos. A narrativa encantou a menina que sonhava em ter seus próprios macacos.
Justamente por ser abordada sob a ótica de uma criança, a narrativa de Nicole é rica em
detalhes que marcaram sua chegada ao país. As reminiscências permanecem vivas em sua memória
e rica em detalhes, pois aos olhos infantis foram muitas as descobertas que, ao fim revelam como
era a vida da cidade na década de 1950.
Na chegada, as quatro famílias instalaram-se no hotel de Garibaldi onde, relata Nicole, não
havia água encanada, os banhos eram “de lata” como chamou. Explicou que latas grandes eram
penduradas na parede, furadas na parte de baixo e, por cima, era colocada a água quente para os
banhos. Nos quartos havia bacias para lavar o rosto e as mãos. A água usada dessas bacias era
simplesmente jogada da janela para a rua e Nicole lembra que um hóspede, menos cauteloso, virou
a sua bacia sem olhar para baixo, acertando em cheio a cabeça do cônsul francês que entrava no
hotel.
Lembra ainda, que aos domingos, as famílias da cidade, depois da missa, costumavam
passar pela frente do hotel “para ver os franceses”. Era o programa dominical, já que despertavam
muita curiosidade. Como seu pai era um homem comunicativo e educado, juravam que ele era um
nobre.
Figura 3 ─ Gilbert Trouiller em Garibaldi (esquerda) e o passaporte da menina Nicole (direita),
que, na época, tinha a foto do pai junto no passaporte da filha porque era menor de idade
Garibaldi tinha um colégio de freiras, o São José, e lá Nicole iniciou seus estudos regulares.
A hora do almoço era dedicada ao aprendizado de português, já que o colégio tinha algumas freiras
francesas. O surpreendente na narrativa é que a entrevistada afirma não se lembrar de um dia não
ter falado português.
Recorda que as coleguinhas a tratavam muito bem e todos os dias voltava para casa com os
chamados “santinhos” comemorativos e outras gentilezas. Assim, a inserção e adaptação de Nicole
ao novo ambiente aconteceram de forma rápida e tranqüila, o que não ocorreu com sua mãe que
sentia muitas saudades da França e da mãe que lá deixara.
Figura 4 ─ Colégio São José: escola onde Nicole estudou em Garibaldi. Fundado em 11 de fevereiro
de 1901, com a chegada das irmãs Azélia Diorcet, Clotilde Zabrer e Dorothée Pachod, além da madre Paula
Dunand, vindas da comunidade de Moutiers, na França
A vida seguia seu curso. Aos dezesseis anos, Nicole fora mandada para França para conviver
durante um ano com parentes; talvez fosse pensamento de seus pais que ela não cortasse
definitivamente suas raízes com o país natal.
De volta ao Brasil, foi cursar Secretariado em Porto Alegre e, posteriormente, contraiu
núpcias com um médico, indo residir próximo a Garibaldi, em Carlos Barbosa.
Nicole foi eleita presidente em assembleia com os sócios minoritários, e daquele momento
em diante, a Georges Aubert estava sob seu comando. Nas palavras de Nicole: “Nesta época não
havia nenhuma mulher no ramo de vinhos por aqui e havia certa dificuldade das pessoas da colônia
em lidar com uma mulher empresária, mas sempre fui respeitada. Penso que o fato dos homens me
respeitarem nos negócios tinha muito a ver com o nome que meu pai tinha deixado”.
Na verdade, em toda entrevista Nicole referiu-se ao pai como um homem carismático,
extremamente sociável e bem quisto na colônia.
Afirmou que o tratamento com os representantes comerciais de outros estados era mais
fácil, principalmente com aqueles que vinham de cidades grandes como Rio de Janeiro e São Paulo.
Quanto aos problemas da fábrica em si, disse que eram resolvidos na medida em que
surgiam em conjunto com os outros sócios, sem maiores embates. O ambiente, disse ela, era
agradável. Cita na entrevista alguns percalços, como, por exemplo, em véspera de fim de ano, com
muitas encomendas, as rolhas vieram com defeito e começaram a estourar durante o transporte.
Mas, disse: “isso não foi um grande problema, pois foi logo resolvido.”
Outro problema inevitável era com os funcionários que gostavam de beber. Com eles, sim,
as medidas tinham de ser enérgicas, pois não podiam continuar a trabalhar numa fábrica de bebidas.
Por outro lado, não tinha problema de abastecimento, pois a matéria prima era abundante na região.
Assim, a empresa que seu pai legara continuava a funcionar sob sua direção.
Ocorre, entretanto, que a partir de 1987 com a inflação em alta no Brasil, os negócios
começaram a ficar difíceis. Nicole não tinha capital para investir na empresa.
Em 1990, assumia a presidência do Brasil, Fernando Collor que lançou um conjunto de
reformas e planos com a finalidade de estabilizar a economia no país combalida pela inflação.
Segundo o economista Joal Azambuja de Rosa, Diretor Técnico da América Estudos e
Projetos Internacionais e ex-presidente da Fundação de Economia e Estatística do Rio Grande do
Sul, tais medidas, entretanto vieram a prejudicar determinados setores da economia, especialmente
a indústria e o comércio de determinados ramos. As principais medidas para estabilização da
inflação foram acompanhadas de programas de reforma de comércio externo, a “Política Industrial
e de Comércio Exterior”. Essa política, dentre outras medidas de ordem econômica, afetou
diretamente a maioria das pequenas e médias empresas, como era o caso da Georges Aubert. Collor
reduziu as restrições sobre as importações, as chamadas barreiras tarifárias e com isso aumentou a
concorrência o que tirou muitas empresas domésticas do mercado.
Esse tema é controverso entre os economistas, proteger ou não a indústria nacional. Existem
economistas que defendem que deveria existir uma política industrial, senão por razões conceituais,
pelo fato de que a experiência está a mostrar que depois da Primeira Revolução Industrial na
Inglaterra, todos os países hoje desenvolvidos que protegeram e protegem suas indústrias, como foi
o caso da Alemanha, Estados Unidos e determinados países asiáticos, tiveram êxito.
Em vários países vinícolas como a França, a Itália e Portugal, a produção das pequenas
empresas é muito importante. O que as mantêm na competição é a qualidade e o modo artesanal de
produção que é protegido por políticas públicas. No Brasil não houve este cuidado.
Com a nova política, as fábricas nacionais, de um modo geral, começaram a sentir a
concorrência das multinacionais e os negócios ficaram cada dia mais difíceis.
A Georges Aubert tornou-se inviável para Nicole sem dinheiro para investir. Tomou então
a decisão de vender sua parte que foi adquirida por um grupo paulista, contrariando o desejo de
legar a seus filhos a fábrica. Esse grupo não demorou a sentir as mesmas dificuldades e faliu. O
prédio da Georges Aubert foi levado a leilão, tendo sido arrematado pela fábrica Tramontina que o
demoliu, construindo em seu lugar um depósito.
Hoje, Nicole Trouiller Thomé vive em Porto Alegre, levando uma vida social muito ativa,
fazendo parte de vários grupos e são muitos seus interesses como viajar, jogar baralho, saborear um
bom vinho, herança talvez de seu passado quando aprendeu muito sobre vinicultura. Faz parte
também de uma associação de mulheres, cujo objetivo é degustar novos vinhos harmonizando com
bons pratos.
Figura 10 ─ Foto atual de Nicole
MEIHY. José Carlos Sebe Bom. Manual de História Oral. São Paulo: Loyola, 1996.
THOMPSON, Paul. A voz do passado: História Oral. São Paulo: Paz e Terra, 2002.
Tiago Arcanjo Orben
A entrevista analisada foi realizada com o casal de agricultores Arcanjo e Maria do Prado,
no dia 06 de julho de 2011, como parte do projeto de extensão intitulado: Memórias da terra: modos
de viver, lutas e resistências camponesas no Oeste e Sudoeste do Paraná. Ambos possuem
significativas vivências agrícolas enquanto arrendatários e empregados temporários e, no momento
da entrevista, residiam em uma Vila Rural (nessa vila possuem um lote de terra de 0,5 hectares) no
munícipio de Verê-PR. Arcanjo continua trabalhando como empregado temporário em
propriedades agrícolas da região, e Maria, eventualmente, acompanha o marido, mas, geralmente,
trabalha nos afazeres domésticos. Ganha destaque em suas vivências as diferentes ocupações
experimentadas ao longo de suas trajetórias, ao mesmo tempo em que expõem de que maneira
diferentes dinâmicas regram a estrutura agrária e fundiária recente do Sudoeste do Paraná.
Para compreender as experiências experimentadas por Maria e Arcanjo do Prado, serão
considerados o aporte metodológico da História Oral e o teórico da memória, vistos, aqui, como
matéria prima para os pesquisadores que se utilizam de tal metodologia na análise histórica. Nesse
sentido, será dado destaque para os aspectos relacionados à subjetividade que essa metodologia
suscita ao historiador.
A partir desta conjuntura, o texto está organizado em três momentos: no primeiro, são
discutidos alguns aspectos relacionados à memória e à História Oral, com destaque para o aspecto
subjetivo que a utilização dessa metodologia nos expõe; na sequência, são apresentadas as
experiências de Arcanjo e Maria do Prado, com ênfase para seus deslocamentos enquanto
trabalhadores rurais sem-terra, além de enfatizar, durante a entrevista, a condição que lhes era
apresentada; por fim, procura-se concluir o texto percebendo em que medida as vivências dos
entrevistados dialogam com a atual conjuntura agrícola brasileira, com destaque para os processos
que regram a organização agrária e fundiária no Brasil.
O que procuro ressaltar com essas considerações é que a noção de subjetividade não deve
ser pensada, sobretudo para nós historiadores, como uma figura ou uma dimensão a-
história ou trans-histórica, uma essência de todo ser humano, uma matéria alojada no
coração ou na mente dos homens, algo natural e que pode ser resgatado e analisado pelos
praticantes da História Oral; ela é, sim, resultado de múltiplos percursos históricos que
convergiram, não sem tensões, para a fabricação do indivíduo moderno, aquele que
“possui” uma determinada subjetividade (SCHMIDT, 2012, p. 87).
Tais considerações nos instigam a pensar em que medida a subjetividade é vista como um
aspecto isolado, feita somente a partir das emoções do entrevistado, enquanto seria mais
conveniente encará-la como reflexo do que é apresentado ao entrevistado no momento da
entrevista. O ponto que quero chegar é que talvez seja mais interessante observar esse aspecto da
narrativa a partir da conjuntura que é apresentada ao entrevistado, isso significa que os
direcionamentos e subjetividades que, por ventura, possam surgir no transcorrer da entrevista,
estejam muito mais relacionados às conjunturas que lhe são apresentadas pelo mediador da
entrevista.
Evidentemente que algumas subjetividades podem ser elaboradas a partir de “traumas” e
experiências singulares na trajetória do depoente. Entretanto, devemos ter consciência de que a
entrevista é produzida como uma experiência de diálogo e, nessa conjuntura, não é possível nos
colocarmos como sujeitos neutros. Conforme menciona Schmidt, a subjetividade é muito mais
resultado dos “múltiplos percursos históricos” e de suas “tensões” do que uma dimensão deslocada
da história. Neste interim, a figura do pesquisador/historiador exerce função primordial para
entendermos os direcionamentos que o uso dessa metodologia pode nos apresentar (SCHMIDT,
2012, p. 87).
Afora estas questões, a colaboração de Schmidt para o debate envolvendo a subjetividade
nas fontes orais deve ser destacada, principalmente no que se refere à “inocência” com que vemos
esse aspecto. O autor nos alerta sobre o fato de, na qualidade de pesquisadores, não podermos olhar
a subjetividade com a “inocência” que, comumente, conferimos a ela e isso significa,
primordialmente, uma maneira diferente de enxergá-la, sobretudo quando há colocações, nas
indagações, que podem ser consideradas a partir da memória.
Além dessas questões, ao falarmos de memória coletiva, ou simplesmente do caráter
coletivo da memória individual, evidentemente, não podemos deixar de citar as contribuições de
Maurice Halbwachs. Sua forma de perceber a memória, seja a partir do individual, seja a partir da
coletividade, despertaram nas ciências humanas e sociais inúmeros elogios e críticas. Algumas
destas questões podem ser verificadas no trabalho de Regina Weber e Elenita Malta Pereira, as
quais, inicialmente, dão-nos uma noção da maneira como Halbwachs concebe a memória coletiva:
Halbwachs expõe sua teoria sobre a memória, esperando comprovar, através de uma série
de exemplos, o fundo social, coletivo, de praticamente todas as nossas lembranças.
Narrando em primeira pessoa, o autor cita acontecimentos de sua vida particular, tais como
passeios, viagens, visitas, que provocaram recordações posteriores. Entretanto, ao
lembrar-se desses eventos, afirma não estar sozinho, pois em pensamento, situava-se
“neste ou naquele grupo” (WEBER; PEREIRA, 2010, p. 107).
Portelli nos expõe aspectos fundamentais para o trabalho com fontes orais junto ao
significado que as memórias podem apresentar quando alçadas à contemporaneidade por meio da
memória. Dessa maneira, considera que narrar nada mais é que expressar o “significado” da
“experiência” por meio “dos fatos”; esse movimento feito pela memória já é uma “interpretação”.
Neste interim, para Portelli, a subjetividade se expressa na maneira como os sujeitos constroem e
significam suas vivências, como os indivíduos elaboram sua própria experiência e identidade. Em
sua visão, não podemos tratar a subjetividade apenas como uma questão “fantasiosa” na busca por
uma suposta “objetividade”, mas sim, nos atentarmos como a memória é reconstruída a partir dos
processos, das conjunturas que cercam as experiências do entrevistado na contemporaneidade.
A partir das questões expostas, em relação aos aspectos metodológicos das fontes orais e
teóricas, em vista da relação estabelecida com a memória, serão apresentadas a seguir algumas
experiências e vivências experimentadas por Arcanjo e Maria do Prado, ao longo de suas vidas
como trabalhadores rurais. Neste aspecto, ganham especial destaque os espaços sociais onde os
entrevistados construíram suas vivências agrícolas, na maioria das vezes, na condição de
empregados temporários e vivendo sob a égide de relações patronais de submissão, na qual as
relações de trabalho estabelecidas é que os faziam detentores de moradia e alimentação.
Conforme foi elencada, anteriormente, a entrevista foi realizada no dia 06 de julho de 2011
como parte do projeto de extensão intitulado: Memórias da terra: modos de viver, lutas e
resistências camponesas no Oeste e Sudoeste do Paraná. Este projeto de extensão tinha como
intenção privilegiar memórias, modos de vida, lutas e resistências pela terra nas regiões Oeste e
Sudoeste do Paraná. A partir dessa conjuntura, no Sudoeste do Paraná procurou-se priorizar as
memórias de remanescentes dos levantes sociais ocorridos em outubro de 1957. Entretanto, o
projeto acabou por absorver outras contradições sociais que se mostraram evidentes nessa região,
sobretudo aquelas ligadas às questões que envolvem a posse da terra e os sujeitos envolvidos nos
modos de vida e nas diferentes vivências agrícolas observadas naquele espaço.
Dada esta conjuntura, o casal Arcanjo e Maria do Prado foi entrevistado por terem
significativas vivências em relação ao trabalho agrícola. Ambos possuem expressivas experiências
agrícolas enquanto arrendatários e empregados temporários. No momento da entrevista, residiam
em uma Vila Rural1 no munícipio de Verê-PR. Arcanjo continua trabalhando como
empregado temporário em propriedades agrícolas da região, e Maria, eventualmente,
acompanha o marido, mas geralmente trabalha nos afazeres domésticos.
Nesse sentido, iniciamos a análise dos depoimentos de Arcanjo e de Maria, salientando a
maneira como expõem suas experiências em relação à agricultura. Assim, sobre as vivências de sua
família, enquanto trabalhador rural, Arcanjo destaca:
É, a turma dava os pedacinhos; até aquela época era a maior parte era mato. Daí eles
pegavam e aonde tinha a turma, dizia lá, tu faz uma casinha, pode pegar aquele pedaço e
plantar. Então, ele ia lá e fazia um ranchinho, lá no meio do mato, e lá eles plantavam e
viviam assim. [...] mas eles plantavam de tudo um pouquinho para se viver (PRADO, A.,
2011, p. 2).
Antes de darmos atenção ao trecho elencado, é preciso salientar que Arcanjo do Prado
quando da realização da entrevista, no ano de 2011, estava com 47 anos e tinha três filhos. Assim,
salienta, em seu depoimento, a maneira como a família de seu pai construiu sua trajetória de vida
em relação à agricultura. Nesse sentido, inicialmente, destaca que seu avô paterno, quando migrou
para a região, “conseguiu ter” um pedaço de terra, mas que, após seu falecimento, o pai de Arcanjo
decidiu vender essa propriedade, pois, de acordo com o entrevistado, seu pai achou que “comprava
mais fácil, só que bem no fim fico sem” a terra.
Conforme fica evidente, a trajetória inicial da família de Arcanjo do Prado se assemelha à
de muitos agricultores que migraram para a região nas décadas de 1940 e 50, com a compra de
posses. Todavia, esse caminho sofre modificações quando o pai de Arcanjo decide desfazer-se da
propriedade que possuía. Isso fez com que sua numerosa família começasse a trabalhar em
propriedades da região, como empregados temporários – os populares “bóias-frias”. Essa passou a
ser uma característica marcante da família de Arcanjo; ele, seu pai e irmãos ficaram conhecidos nas
redondezas como “Os Prados”. Desta maneira, eram reconhecidos como sujeitos bons de serviço,
que trabalhavam por dia ou de agregado, além de ser uma família numerosa, o que fazia com que a
empreitada rendesse mais e satisfizesse aqueles que os contratavam.
Tais questões clareiam muitos aspectos do depoimento de Arcanjo apresentado
anteriormente. Arcanjo destacou que nas roças que improvisavam em terras cedidas por
agricultores, donos de grandes e médias propriedades, aproveitavam algum espaço da sua
propriedade para alocar à família dos “Prados”; assim, até cediam algum espaço para plantar e
construir uma “casinha”. “Dizia: ‘lá tu faz uma casinha, pode pegar aquele pedaço e plantar’”
(PRADO, A., 2011, p. 4). Esse sistema facilitava a mão de obra do empregador, já que tinha sua
força de trabalho próximo de si e a baixo custo. Outro aspecto interessante é que, o fato de residirem
1 O Programa Vilas Rurais do Estado do Paraná foi desenvolvido pelo ex-governo Jaime Lerner no ano de
1995. Entendido e apresentado como um programa de Reforma Agrária para o estado acabou por ocasionar uma
espécie de urbanização do espaço rural, ao considerar que a maioria dos lotes de terra não possuía mais de 0,5
hectares.
em determinada propriedade não excluía a possibilidade dos “Prados” trabalharem por dia para
outros agricultores.
Com vistas a esta conjuntura, Arcanjo salienta de que maneira ele e sua família sobreviviam
na região: “É, fazia empreitadinha, empreitadinha fazia com a turma, que por dia quase não
aguentava o serviço; era muito novo. Empreitava uns pedacinhos pra fazer, empreitava com todo
mundo uns pedacinhos naquela época lá, que fazia a maior parte de enxada e tudo o que é coisinha”
(PRADO, A., 2011, p. 4). O entrevistado nos expõe alguns aspectos sobre suas experiências em
relação à agricultura em sua juventude. Neste sentido, destaca que começou a trabalhar com seu pai
e irmãos com aproximadamente 13, 14 anos e que nessa idade preferiam trabalhar por empreitada,
já que neste sistema o trabalho era feito coletivamente, juntamente aos irmãos, ao considerar que,
nessa forma de trabalho, tinham menos desgaste físico em comparação ao trabalho feito “por dia”.
Na empreitada, era feito um acordo entre o patrão – proprietário agrícola – e os
trabalhadores. Ficava acertado que determinada área – de feijão, por exemplo – deveria ser colhida
até determinado dia e pelo valor acordado. Enquanto que o trabalho por dia, além de gerar certa
pressão do patrão para com o trabalhador, era feito o pagamento individual; cada trabalhador
ganhava pelos dias de trabalho. Por esse motivo, a experiência de Arcanjo em sua juventude está
mais ligada ao trabalho em empreitada, juntamente a seu pai e irmãos.
O contexto apresentado por Arcanjo e Maria refere-se às décadas de 1970, 80 e início
2
de 90. Nesse período, viveram sua infância e juventude como filhos de trabalhadores rurais
sem terra, tanto é que se conheceram dessa forma. As famílias de Maria e Arcanjo
trabalhavam para o mesmo patrão, no município de Verê, e isso fez com que se
aproximassem e, posteriormente, construíssem uma relação juntos. Nesse contexto, Maria
nos expõe alguns aspectos de como se apresentava a organização agrária da região, naquele
período, salientando que seu pai trabalhou para vários proprietários de terra e que, nessas
propriedades, as culturas agrícolas mais presentes eram a soja e o milho, conforme se refere a
uma propriedade em que trabalhavam no município de Dois Vizinhos: “plantava soja,
plantava milho. Ele precisa bastante pião, por que ele destocava bastante [...]”, “Precisava
bastante pião pra ajuntá as raízes que eles destocavam e para limpar as plantas” (PRADO, M.,
2011, p. 5).
O processo de destoca adveio com o avanço da agricultura na região. Isso aconteceu
após a exploração madeireira, que ocorreu de forma massiva nas décadas de 1950 e 60.
Assim, para que a terra pudesse ser plantada, era necessário arrancar os tocos das árvores
derrubadas ou mesmo derrubar algumas parcelas de capoeira remanescentes. Esse processo
de “limpeza” da terra ficou conhecido como “destoca”. Nas regiões Oeste e Sudoeste do
Paraná, esse procedimento é característico da modernização da agricultura, isto é, foi
uma etapa importante para o desenvolvimento de culturas e técnicas agrícolas vinculadas
ao processo de tecnificação do meio rural brasileiro.
2 Arcanjo do Prado nasceu no ano de 1963, enquanto Maria em 1970.
Nesses termos, se, para os agricultores que possuíam propriedade agrícola, esse processo
foi essencial para a modernização e ampliação da produção agrícola, para os trabalhadores rurais
sem terra, ele se apresentou enquanto uma ação que não modificou suas condições de vida no
campo. Ou seja, manteve-os como trabalhadores rurais sem terra e sem perspectiva de mudar de
condição, já que as políticas agrícolas daquele período – sobretudo durante o regime civil militar –
não privilegiavam este grupo social.
Outra consequência desse processo é que, como na região Sudoeste do Paraná não existiam
muitas grandes propriedades, os trabalhadores rurais sem terra, como Arcanjo e Maria, precisavam
se deslocar constantemente em busca de trabalho, situação que os fazia migrar com frequência.
Maria do Prado destaca que, por sua família ser muito pobre, seu pai migrava regularmente em
busca de trabalho e isso afetou diretamente seus estudos, já que estudou apenas até o segundo ano
do primário. A prioridade de sua família era conseguir alguma renda para suprir as primeiras
necessidades com alimentação e vestuário. Isso fez com que Maria começasse a trabalhar muito
jovem como diarista e babá.
As migrações e a necessidade de renda para a família também obrigaram Arcanjo a
abandonar seus estudos; assim, como não possuíam escolarização, Arcanjo e Maria destacam que
foi na agricultura que construíram seu modo de viver. Sobre a realidade recente, enquanto
trabalhadores rurais, Arcanjo destaca os seguintes aspectos: “Ah, eu trabalho por tudo, onde quer,
tudo o que lugar que tivé serviço, eu estou indo, é empreitada, por dia. Hoje, aqui tá na média de 40
[reais] por dia. Plantar, roçar, carpir, plantá fumo, colher” (PRADO, A., 2011, p. 8).
Conforme conseguimos notar, a mudança de Arcanjo e Maria do Prado para a Vila Rural,
onde residiam no momento da entrevista, não modifica suas relações de trabalho, já que continuam
trabalhando como empregados temporários, “por dia” ou por “empreita”, para alguns agricultores
da região. Isso acontece em razão da conjuntura que lhes é apresentada. Apesar de residirem em
uma Vila Rural e terem um lote de terra, não conseguem produzir nesse lote o suficiente para
viverem do campo, tendo que se submeter às relações de trabalho, como empregados, para
conseguirem satisfazer suas necessidades.
Isso corrobora com a tese de que a criação de vilas rurais no Estado do Paraná foi muito
mais um projeto de urbanização do espaço rural, do que propriamente um programa de Reforma
Agrária, como foi divulgado no seu lançamento, na década de 1990. Além disso, os lugares
“estratégicos”, onde estão localizadas essas vilas – próximas a sedes dos municípios ou dos distritos
– confirmam a ideia de que esse projeto serviu apenas para alocar mão de obra barata para o setor
agrícola e agroindustrial.
Conforme se evidenciou no desenvolver do artigo, este texto teve como objetivo primordial
privilegiar as memórias e experiências de vida de Arcanjo e Maria do Prado. Deste modo, por meio
da metodologia da História Oral, foi possível perceber os deslocamentos experimentados por tais
sujeitos ao longo de suas vidas, com destaque para as vivências junto ao espaço rural, sempre como
trabalhadores rurais sem terra. Evidentemente que os deslocamentos experimentados pelos
entrevistados são fruto das conjunturas apresentadas à agricultura brasileira nas últimas décadas.
Creio que tais elementos mereçam maior atenção em outra produção, ao considerar que a realidade
social que encontramos no meio rural brasileiro acontece como reflexo das conjunturas políticas e
econômicas, historicamente impostas a este espaço.
Esse cenário nos mostra que a forma como é abordada a questão agrária e fundiária no
Brasil, em nada se modificou ao longo dos anos. Isso significa que os grupos que estão no poder e
possuem influência política e econômica continuam a ver a questão agrária sob a ótica dos
latifundiários. Mesmo que exista resistência, que grupos de luta pela terra consigam colocar seus
representantes no poder, a bancada ruralista – como são chamados os grandes proprietários e
latifundiários no Congresso Nacional – não permite que nada que venha contra os interesses de seu
grupo ocorra em relação ao meio rural brasileiro.
SCHMIDT, Benito Bisso. Do que falamos quando empregamos o termo “subjetividade” na prática
da História Oral? In: LAVERDI, Robson (Org.). et al. História Oral: desigualdades e
diferenças. Recife: Ed. da UFPE, 2012.
PRADO, Maria do. Entrevista concedida ao Projeto de Pesquisa: Memórias da terra: Modos de
viver lutas e resistências camponesas no Oeste e Sudoeste do Paraná. Por Francieli Pinheiro, Paulo
José Koling e Tiago A. Orben. Perímetro rural. Verê/PR: 06 de julho de 2011, duração: 37min.
53segs.
Daniel Lopes Saraiva*
Nas últimas décadas, diversas pesquisas foram realizadas a respeito da memória sobre a
repressão, durante o período de vigência do golpe civil-militar instaurado no ano de 1964. Algumas
ações governamentais foram feitas para tratar não apenas do conhecimento da história, como
também da violação dos direitos humanos durante o período ditatorial. Nesse ponto, a Comissão da
Verdade foi a maior dessas ações. Instalada oficialmente em 2012, ouviu mais de uma centena de
vítimas e testemunhas de ações de regimes repressivos entre 1946 e 1988.
Neste artigo, trabalhamos em duas frentes: a primeira é o cerceamento da liberdade de
expressão artística durante o regime civil-militar; a segunda é trabalhar com a memória de três
artistas que tiveram grande relevância nas décadas de governo militar, mas que tiveram suas
memórias a respeito do assunto trabalhadas tardiamente e de forma discreta, e, muitas vezes, não
trabalhadas. São eles Jerry Adriani (1947-2017), Carlos Capinan (1941) e Geraldo Azevedo (1945).
O primeiro artista foi ligado pelos críticos musicais à Jovem Guarda; o segundo à Tropicália e o
terceiro à Nova canção Nordestina. Abordaremos, então, a memória desses artistas em relação à
realidade impingida pelos militares. Foram feitas entrevistas com os cantores supracitados, entre os
anos de 2012 e 2014, usando a Metodologia da História Oral. Essas entrevistas foram amplas, e
abordamos diferentes pontos de suas carreiras. Aqui destacamos apenas a relação dos pesquisados
com o cerceamento e a censura impostas pelo governo civil-miliar instaurado em 1964.
Pretendemos, a partir das memórias, observar um pouco de como cada um dos artistas enfrentava
o momento político, como constroem suas trajetórias, como lidam com a censura e como
conduziam suas carreiras no período; pensando também a memória como fonte importante, mas
não detentora da verdade absoluta.
Para a antropóloga Santuza Cambraia Neves, é nesse período que a ideia de MPB (Música
Popular Brasileira) vai surgindo com uma carga política e estética elaborada, com a simbiose de
vários temas, como sertão, morro e vida do trabalhador. A imagem artística de nosso país surgia da
interação equilibrada de elementos estéticos e poéticos. Música e letra tratavam, então, de diversos
aspectos da nossa cultura (NAVES, 2010, p. 41).
É nesse período que diversos artistas se tornariam referência dentro da sigla MPB, gravando
seus primeiros discos, Nara Leão (1964), Chico Buarque de Holanda (1966), Caetano Veloso
(1967), Gilberto Gil (1967), Geraldo Vandré (1964), dentre outros. Mesmo fazendo parte da classe
média brasileira, esses artistas se tornaram referência ao cantar o cotidiano do povo, ao protestar
contra o governo em canções, em entrevistas e em apresentações. Por ter relativa “liberdade”,
durante os primeiros anos do governo ditatorial, esses artistas tornaram-se uma espécie de porta-
voz de uma parte da sociedade e, por diversas vezes, clamaram por um governo democrático, foram
a passeatas e criaram manifestos. O sucesso alcançado servia a eles como “escudo”, uma vez que
prender um artista popular poderia gerar uma repercussão desagradável com a população, em
especial com a classe média que, no primeiro momento, deu apoio ao governo militar.
Se até a publicação do Ato Institucional Número 5 (AI-5), as manifestações de artistas não
eram consideradas muito perigosas, e, muitas vezes, até contavam com certa permissividade, depois
elas passaram a ser reprimidas com intransigência (GARCIA, 2012, p. 121). Não é de se estranhar
que, após o decreto do AI-5, todos esses artistas citados deixaram o país, seja porque foram
obrigados pelo governo, seja porque estavam sendo ameaçados por ele.
Caetano Veloso e Gilberto Gil foram expulsos do país e se exilaram na Inglaterra. Chico
Buarque partiu para Itália, Nara Leão para França, Geraldo Vandré vai primeiro para o Chile e
depois segue para a temporada. Esses artistas estavam entre os mais citados quando os assuntos
eram a censura e a repressão, durante o período ditatorial. Mas houve outros artistas que sofreram
com a privação da liberdade para compor, gravar, e até mesmo se colocar em determinado grupo.
Paulo César Araújo, no livro Eu Não Sou Cachorro Não, cita que a partir do período do AI-
5, o ato de cantar e compor teria efetivamente tornado caso de polícia. Destaca, também, que artistas
como Chico Buarque, Milton Nascimento e Gonzaguinha são citados em diversos textos, tanto na
mídia, quanto em obras de acadêmicos sobre a mutilação que sofreram. Já artistas como Odair José,
Luiz Ayrão, Waldik Soriano, entre outros, não seriam sequer mencionados nesses textos. Para ele,
isso ocorre porque há uma cristalização no campo da música de uma memória que liga a canção
popular a cantores vinculados à sigla MPB, gênero musical vinculado à classe média, de onde saem
a maior parte dos pesquisadores e jornalistas que escrevem sobre a cultura popular (ARAÚJO,
2010, p. 53).
Concordamos que alguns artistas têm seus papeis cristalizados e recontados em diversos
textos sobre seu cerceamento, durante a ditadura militar. Entretanto, destacamos que mesmo artistas
vinculados à sigla MPB, por diversas vezes, não têm suas trajetórias recontadas e ouvidas.
Buscamos aqui, então, partindo da Metodologia da História Oral remontar a trajetória de três
artistas, e suas vivências sobre o período de repressão no Brasil.
Trabalhamos aqui com a memória dos artistas em relação ao período ditatorial. Foram feitas
perguntas aos três sobre quais problemas eles tiveram com o governo militar e com a censura. Sobre
trabalhar com memória, cabe ressaltar o que afirma Daphne Patai:
A ideia deste trabalho é mobilizar diferentes memórias e discursos de artistas que, muitas
vezes, não tiveram a oportunidade de dizer sobre problemas que enfrentaram durante a vigência do
regime autoritário, não pensando a memória como um elemento estático, mas, sim observar como
essas memórias são construídas e recontadas para a pesquisa. Ana Rita Fonteles Duarte ressalta que
muitas memórias sobre o período são cristalizadas e consideradas oficiais, enquanto outras são
relegadas ao esquecimento e acabam sendo apagadas.
As imagens e discursos sobre o período ditatorial pós-64, na história brasileira, são quase
sempre relacionados ao terror e repressão que tomaram a cena pública, calando
movimentos sociais, institucionalizando tortura e os desrespeitos aos direitos civis,
acelerando a opção pela luta armada por diversos grupos de esquerda. E compreensível
que assim seja, posto que, para alcançar a estabilidade institucional, o regime autoritário
usou amplamente da força para coagir e eliminar opositores. Mas na construção das
narrativas sobre o período, alguns grupos ou personagens acabam sendo mitificados e
outros simplesmente desaparecem, sob o mandato das memórias oficiais ou daquelas com
tais recursos para tornarem-se hegemônicas. (DUARTE, 2012, p. 253).
Optamos aqui por citar três momentos da entrevista com os artistas, nos quais eles
relacionam seus problemas e a forma como viam o regime militar. Carlos Capinan ao ser
questionado se teve alguma letra censurada diz:
É provável, mas eu não sei dizer. Agora a letra que mais poderia ser alvo de uma censura,
ela hoje, por exemplo, nos Estados Unidos eles pensam que ela é uma louvação aos
Estados Unidos. Que é Soy Loco por ti América. E, então, ela tinha metáforas e formato
muito pouco traduzível. Eu nunca fui um autor de poemas de protesto. Embora sempre
perto da faixa de política. Sempre meus poemas e minhas canções são muito... mas nunca
nada direto. Nunca nenhum hino de protesto, com aquelas clássicas letras de contestação.
(Capinan, 2014)
É evidente que a letra faz a crítica ao regime vigente no Brasil. O homem morto que seria o
povo e a noite que se espalha pela América Latino estão diretamente ligadas aos regimes autoritários
que se instalavam em diversas partes do continente. Talvez, por estar em espanhol, a letra não
passou pelos cortes dos censores. Cabe destaque aqui que, muitas vezes, os censores trabalhavam
quase como parceiros dos artistas nas canções, cortando palavras, frases, trechos e, algumas vezes,
sugerindo substitutos. Muitas vezes, as modificações das canções eram negociadas por artista e
censor, que chegavam a um denominador comum.
Cheguei a ser interrogado no inquérito policial militar daqui da Bahia. Eu vim para uma
seção coletiva e sentei ao lado de vários contemporâneos que não estavam satisfeitos com
o Brasil e sua situação social, econômica e política, e sentei no banco dos réus.
Interrogatório, mas eu nunca fui preso. Sempre tive medo de ser preso e sempre consegui
ficar fora, embora tivesse levado uma surra em Ipanema por conta de uma canção de um
festival em Cataguazes. (Capinan, 2014).
O artista cita o inquérito que participou, e ainda que apanhou de um grupo que se dizia
policial, além do medo de ser preso, perigo constante entre os opositores do governo vigente.
Durante as pesquisas, foi achado no Arquivo Nacional de Brasília um documento que traz um dossiê
de diversos artistas do período, narrando, ano a ano, as ações consideradas subversivas. Entre os
artistas no dossiê temos: Caetano Veloso, Chico Buarque, Gilberto Gil, Nara Leão e Carlos Capinan.
O poeta é citado em duas páginas, e as atividades cobrem o período de 1964 até 1968.
Originário do serviço nacional de informações, agência Rio de Janeiro, ele tem o carimbo de
“confidencial”. No documento são elencados os manifestos assinados por Capinan, sua relação com
o CPC, nomina o poeta de comunista e cita que a música Soy Loco por ti America fazia uma
apologia a Che Guevara e ridicularizava os governantes da América Latina. Fica evidente, então,
que, mesmo que a música não tenha sofrido cortes, posteriormente o governo tomou conhecimento
do seu conteúdo crítico e contestatório. O artista cita no fim da entrevista que, após a pressão da
censura e das ameaças, ele resolve voltar com a família para Salvador, onde acreditava estar mais
seguro.
Enquanto Capinan sofreu ameaças e chegou a ser agredido em uma praia, Geraldo Azevedo
foi preso e torturado por duas vezes. A respeito desse episódio, a primeira citação do ocorrido
ocorreu em entrevista ao programa do Jô Soares no ano de 2011. Na ocasião, o cantor narrou que
foi preso duas vezes, nos anos de 1969 e 1975. O artista narra o acontecimento de maneira bem
parecida para a pesquisa.
E aí aconteceu uma coisa, eu fui preso em 1975. E, durante a prisão, eu me lembro que
eles descobriram que eu tinha uma música em uma novela. Aí na hora da novela
normalmente eles me tiravam da cela – “chama o artista.” E era uma coisa, porque a gente
só ficava encapuzado, nu. E eles ficavam: “Canta para a gente.” Eram os torturadores, e
eu: “que é isso? Que é isso?”, “Canta, porra.” E porrada. E aquela coisa toda. E terminava
cantando timidamente com capuz na cara. Dança. E eu estou falando estas coisas, mas era
muito humilhante. E dança, e era porrada na cara. E aí eu balançava o corpo assim e até
que chegou um cara e falou: “O que é que este cara está fazendo ai? Bota ele na cela.” Era
um cara que tinha uma autoridade maior do que os outros. Numa das torturas, eu estava
sendo torturado e eu e mais dois e um dos caras morreu; o Armando Frutuoso, está até na
lista. Armando Frutuoso morreu nas torturas. Estava eu e o Gildásio (Westin Consenza),
que, na época, era cunhado do Henfil. Eu não conhecia ele, não. Vim a conhecer ele
depois, mas ele estava preso junto comigo por alguma razão; eu não conhecia ele. E então
eu digo que foi importante porque eu tinha este disco que eu gravei. Este primeiro disco
eu já tinha uma concepção do disco todinho na minha cabeça como seria o disco. Com
aquela coisa que eu vi o cara morrer, eu preso pela segunda vez... Se eu não morrer, eu
acho que vão matar a gente todinha aqui. Mas, se eu não morrer, eu ficar preso, eu vou
fazer uma obra na cadeia e quando eu sair eu vou ter muito material. Assim, pensamento
positivo. E aí o terceiro pensamento: se eu for solto eu vou gravar um disco e vou ficar
famoso, porque eu não quero mais ser preso do jeito que eu fui preso. Era sequestrado,
eles pegavam a gente e colocavam um capuz e colocava dentro do carro. Quero ficar igual
Chico Buarque que é intimado. (Geraldo Azevedo, 2014)
O depoimento de Geraldo Azevedo é atordoante. Ele descreve detalhes da tortura, o que nos
faz repensar o discurso de alguns pesquisadores, que dizem que os artistas brasileiros teriam sido
poupados das torturas. O que podemos dizer, e a fala do artista também colabora, é que os artistas
já consagrados teriam menos chance de serem sequestrados e torturados, pois a fama seria uma
forma de resguardar sua integridade física. O artista rememora o momento em que pensou os rumos
da sua carreira, como faria seu disco. O período de prisão serviu, então, como referência para
organizar e traçar seus planos. Ao mesmo tempo, o depoimento traz a esperança de sair vivo e os
horrores enfrentados pelo preso. Agressão, humilhação, medo da morte, todos esses elementos nos
faz repensar o que foi a repressão militar. O artista cita ainda a morte de um preso, evidenciando
que qualquer um dos que ali estavam poderiam ter o mesmo fim.
Diferente do discurso de Geraldo Azevedo e Carlos Capinan, que sentiram a repressão na
pele, com agressões, perseguições ou necessidade de fuga, Jerry Adriani traz outros elementos em
sua entrevista. Ressalta os horrores do período, a necessidade de luta contra o governo golpista,
mas, também destaca a polarização e a forma com que os artistas que não se enquadravam na linha
politizada eram tratados. A fala dele corrobora com a fala de Paulo César Araújo, quando destaca
que cantores de outros gêneros e movimentos sofreram com a repressão, mas isso é pouco
ressaltado.
Independente de reclamar que era uma bandeira deles, que era uma coisa, eu, por exemplo,
não fui chamado nunca para nada, porque eu não participava dos Diretórios Estudantis e
essa coisa toda; era um outro caminho, uma outra coisa. Chegou na minha mão uma vez
um manifesto contra a censura e eu não me neguei a assinar. Eu assinei, e poderia ter sido
preso ali por isso, qualquer coisa então. Eu não me neguei como ser humano, digamos
como cidadão brasileiro. Veja bem, eu enalteço e acho super válido e o Brasil deve muito
a essa galera que realmente “chiou”, reclamou, fez música. Eles merecem todo o apoio,
mas não precisava a carga contra a Jovem Guarda. Fazia uma outra jogada mais
desprendida, mas que não deixava de ser, como É Proibido Fumar, por exemplo, não
deixava de ser um protesto, digamos uma música. (Jerry Adriani, 2012).
Jerry Adriani destaca a importância da música engajada, mas destaca que não era necessária
a carga negativa que a Jovem Guarda sofreu da esquerda por ser considerada alienada e da direita
por ser considerada transgressora em roupas e costumes. Portanto é outro olhar sobre os
acontecimentos da época, o olhar de quem não estava envolvido de forma direta, mas que acabou
sendo condenado pelos dois lados.
O artigo de Ricardo Santhiago ao abordar a História Oral no mundo das artes, nos ajuda
elucidar o entendimento dos discursos e da elaboração das memórias:
Documentos de processo feitos a posteriori, independente da natureza oral ou escrita,
devem ser entendidos como narrativas sobre as quais incidem a percepção do próprio
artista acerca do seu processo de trabalho; acerca do resultado do trabalho, quando
distanciado de quem o gerou; acerca da recepção do trabalho no intervalo de tempo entre
sua produção e o instante de criação do registro da memória. O que o artista relata a
respeito de seu processo criativo deve ser tomado como a representação que ele faz de
uma parte de si mesmo. (SANTHIAGO, 2013, p. 172).
Essa mesma visão de representação pode ser usada para a forma que os artistas constroem
sua relação com o período ditatorial no Brasil e como eles sofreram isso e de que forma reelaboram
essa experiência e trazem em suas entrevistas.
ARAÚJO, Paulo César. Eu não sou cachorro, não: música popular cafona e ditadura militar. Rio
de Janeiro: Record, 2002.
CALADO, Carlos. Tropicália:a história de uma revolução musical. São Paulo: Ed. 34, 2004.
DUARTE, Ana Rita Fonteles. Jogos da memória: o movimento feminino pela anistia no Ceará
(1976-1979). Fortaleza: INESP; UFC, 2012.
FRÓES, Marcelo. Jovem Guarda em ritmo de aventura. Rio de Janeiro. Ed. 34, 2000.
_____. Contra a censura, pela cultura: a construção da unidade teatral e a resistência cultural à
ditadura militar no Brasil. ArtCultura (UFU), v. 14, p. 103-121, 2012.
NAPOLITANO, Marcos. 1964 - História do Regime Militar Brasileiro. São Paulo: Contexto,
2014.
NAVES, Santuza Cambraia. Canção Popular no Brasil. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira,
2010.
PATAI, Daphne. História Oral, feminismo e política. São Paulo: Letra e Voz, 2010.
PORTELLI, Alessandro. Ensaios de História Oral. São Paulo: Letra e Voz, 2010.
SANTHIGO, Ricardo. História oral e as artes: percursos, possibilidade e desafios. In: História
Oral. v. 16, n.1, 2013.
Entrevista concedida por Jerry Adriani a Daniel Saraiva, na cidade de Itaúna, em 05 de maio de
2012.
Entrevista concedida pelo cantor e compositor Geraldo Azevedo a Daniel Saraiva, na cidade de
Belo Horizonte, em 03 de abril de 2014.
Entrevista concedida pelo compositor José Carlos Capinam a Daniel Saraiva, na cidade de
Salvador, em 26 de maio de 2014.
Arquivo Nacional de Brasília: arquivos da Força Área Brasileira, da Polícia Federal e do Serviço
Nacional de Informações.
Carla Simone Rodeghero
Nos referiremos ao movimento estudantil, ora como “política estudantil”, ora como
“lutas estudantis” ou como “militância estudantil”. Procuraremos captar, a partir das
entrevistas e da produção acadêmica, as dimensões subjetiva e coletiva das ações,
considerando o protagonismo de entidades e de suas lideranças, mas tendo como enfoque
central as formas como as experiências foram vivenciadas e, mais recentemente,
rememoradas por um grupo de mulheres. Por causa desse recorte, a atenção não se
concentrará nas correntes políticas, diretorias e congressos da União Brasileira de
Estudantes Secundaristas (UBES), da União Nacional de Estudantes (UNE) e das entidades
estaduais, metropolitanas ou municipais a elas ligadas, temas já bastante tratados pela
bibliografia pertinente.2 Da mesma forma, não daremos visibilidade ao conjunto da
experiência de vida das mulheres entrevistadas, já que nosso enfoque será sua militância nos
meio estudantis. É importante lembrar que em poucas entrevistas a participação no movimento
estudantil foi o centro dos relatos. Na maioria delas, ocupou apenas os momentos iniciais das
conversas.
Para dar conta da conjuntura que vai do Movimento da Legalidade à decretação do
AI-5, passando pelo golpe de 1964, nos apoiaremos nos relatos de Rita Sipahi, que começou a
estudar Direito em 1960, em Fortaleza; de Victória Grabois que ingressou no curso de
Ciências Sociais no Rio de Janeiro em 1963; de Ana Bursztyn e de Dulce Pandolfi, que
estudaram desde 1967, nos cursos de Farmácia no Rio de Janeiro e de Ciências Sociais no
Recife, respectivamente.
Rita relatou a mobilização dos estudantes universitários em Fortaleza para dar
divulgação à Campanha da Legalidade, encabeçada pelo governador gaúcho Leonel Brizola e
que visava garantir a posse de João Goulart na presidência da República, quando da renúncia
de Jânio Quadros, em agosto de 1961. Na oportunidade, foi constituída a “Rede da
Legalidade”, à qual se juntaram mais de cem emissoras de todo o país, para divulgar os
discursos de Brizola.3 Rita explicou:
A gente pegou as mesas de xadrez, de jogos, de pingue-pongue, e pusemos tudo na rua e
fizemos uma cancela de um lado e do outro impedindo a passagem dos ônibus, e depois
conseguimos liberar uma parte pros ônibus, [risos] eu lembro. Pusemos a Rádio
1 Chamo a atenção para as considerações acerca do uso de entrevistas feitas por outrem, que podem
ser encontradas no artigo Mulheres em movimento (MACHADO; RODEGHERO, 2017a), bem como sobre
obras que tratam da militância feminina contra a ditadura no Brasil.
..
2 Análises que tratam, entre outras coisas, da trajetória da UNE e das correntes políticas que
influenciavam o movimento estudantil podem ser encontradas em: Araujo (2007b) e Martins Filho (2007). Para
a década de 1970, ver: Pellicciotta (2008), Müller (2010), Araujo (2007a), Bortot; Guimaraens (2007), Della
Vecchia (2011) e Dienstmann (2016). .
3 Sobre o tema, ver Grijó (2011).
Farroupilha dando para a rua na renúncia do Jânio [...]. Toda aquela [história da] posse
do Jango e todas aquelas coisas no Sul [...]. (RITA SIPAHI, 2012).4
4
A emissora que esteve à frente da rede foi a Guaíba e não a Farroupilha.
5
Sobre o tema, ver Trindade (2011).
6
O caso do diretor Eremildo Viana é mencionado em Ferreira (2013).
7 Sobre o CPC da UNE, ver Araujo (2007b).
que eu acho que produziu muitos efeitos em mim: esta preocupação com o social, essa
vontade de participar, eu lembro das eleições, das campanhas, como aquilo me mobilizava,
assim como o próprio governo Arraes” (DULCE PANDOLFI, 2011).
Sobre a mobilização estudantil, por sua vez, a entrevistada destacou o ambiente geral de
discussão. Segundo Dulce,
A gente já foi para o interior e tinha que saltar no meio do nada, num caminhão com uma
lona preta em cima, a gente saltou no meio de duas estradinhas [...]. Tinha uma casinha
onde um monte de gente entrou lá [...]. Aquilo tudo para mim era meio surreal: eu não
estava fazendo guerrilha! Eu estava indo para um congresso estudantil! [risos].
A entrevistada foi levada para o Presídio Tiradentes, junto com centenas de colegas
participantes do evento. Dois meses depois foi decretado o Ato Institucional n. 5. Ele concedia
poderes ao presidente da República para fechar o Congresso Nacional, cassar mandatos eletivos,
suspender direitos políticos dos cidadãos, demitir funcionários públicos, decretar estado de sítio,
proibir que o Judiciário apreciasse recursos impetrados por pessoas acusadas com base no ato,
suspender a garantia de habeas corpus em casos de crimes contra a segurança nacional. No que diz
respeito ao movimento estudantil, é importante lembrar que o recurso do habeas corpus era uma
segurança nos casos de prisão – bastante comuns – que deixou de existir depois de 13 de dezembro
de 1968.
Uma das entrevistadas, Vera Vital Brasil, que ingressou no curso de Farmácia, no Rio de
Janeiro, em 1967, assim se manifestou sobre o AI-5:
[...] foi para mim de grande impacto porque mudou, mudou... O movimento estudantil,
que já sofria repressão, a partir de 1968 passou a sofrer uma grande repressão, as lideranças
estudantis passaram a adotar medidas de clandestinidade (VERA VITAL BRASIL, 2011).
Da mesma forma, relatou Nilce Cardoso. Ela havia acabado de concluir o curso de Física
na USP, tendo morado no CRUSP (Casa do Estudante, daquela universidade). Em 17 de
dezembro de 1968, o CRUSP foi invadido por homens do Exército e da Polícia Militar.9 A
entrevistada contou que “todo mundo que estava no CRUSP foi preso” (NILCE CARDOSO,
2011). Havia uma “lista de todo mundo, e aí todo mundo estava sendo procurado”, inclusive
ela (NILCE CARDOSO, 2011). A respeito do impacto causado pelo AI-5, a entrevistada
avaliou: “A ditadura estava tomando outro aspecto, ditatorial mesmo, mais forte, ir atrás dos
militantes. Então eu, nesse momento, que acontece? Eu sou empurrada, eu acho, eu fui
empurrada pela ditadura, para uma clandestinidade” (NILCE CARDOSO, 2011).
As últimas entrevistas mencionadas ajudam a compor o quadro marcado pela intensa
repressão, pela inviabilidade de dar continuidade às ações levadas adiante até então, pelo
movimento estudantil como reuniões, passeatas, congressos, reorganização das entidades, etc. Os
relatos indicam que o caminho que se abriu a estas mulheres e a muitas lideranças estudantis foi
majoritariamente o da clandestinidade. A partir desses indícios, teríamos a fase áurea do movimento
estudantil sendo substituída pela fase do descenso, por uma espécie de “deserto”, como indicou a
entrevistada apresentada sob o pseudônimo Renata, na obra Mulheres e militância
(GIADORNOLI-NASCIMENTO; TRINDADE; SANTOS, 2012).
Ainda que esta afirmação possa se sustentar em boa parte das entrevistas analisadas e na
bibliografia consultada, um olhar mais atento permite captar outras estratégias colocadas em prática
por estudantes que chegaram às universidades brasileiras, no período que ficou conhecido como
“anos de chumbo”. Queremos, nesse ponto, mostrar que as trajetórias de outras mulheres – um
pouco mais novas que as que conhecemos acima – nos trazem indícios interessantes sobre as
maneiras de fazer política estudantil após o AI-5. Faremos, dessa forma, a caracterização do último
período que nos interessa, aquele do início dos anos 1970.
Do conjunto das entrevistas do projeto Marcas da Memória, apenas a concedida por Heloísa
Greco traz elementos sobre essa conjuntura. Heloísa recuperou, entre outras questões, sua trajetória
como estudante universitária entre 1970 e 1975, no curso de História, na Universidade Federal de
Minas Gerais:
Como se viu acima, a partir de um mosaico de relatos femininos foi possível reconstituir
momentos marcantes e diferenciados das lutas estudantis, desde o início dos anos 1960. Quisemos
reforçar as práticas relativas ao período posterior ao AI-5, dando valor às experiências vivenciadas
por outro/as protagonistas que não apenas os/as que se engajaram em organizações clandestinas a
partir de dezembro de 1968 e, dessa forma, dialogamos com estudos como os de Piliciotta e de
10 Não trataremos aqui do período do final dos anos 1970, caracterizado nos meios estudantis pela retomada das
manifestações de rua, pela reorganização das entidades, pela refundação da UNE (1979) e pelo intenso
envolvimento dos estudantes nos movimentos sociais.
Müller que apresentam preocupações correlatas às nossas. Ao mesmo tempo em que quisemos
mostrar que a partir de relatos femininos pode-se chegar ao entendimento de processos mais amplos
– ao contrário de uma história centrada nos registros das entidades e das lideranças majoritariamente
masculinas – quisemos captar os significados da militância estudantil nas trajetórias das mulheres
entrevistadas. A esse último ponto, daremos mais substância nos próximos parágrafos.
Sustentamos que a militância política contra a ditadura (e no meio estudantil, neste caso)
interferiu – em termos individuais e coletivos – na forma como as mulheres vivenciaram ou
romperam os papéis de gênero do seu tempo. Alguns indícios disso permearam entrevistas já
apresentadas e alguns outros serão aqui. Rita Sipahi mencionou a entrada no movimento estudantil
como a possibilidade de romper com certo tipo de proteção que recebia da família e que considerava
repressora; Ana Bursztyn se referiu a temas que eram discutidos em sua época de universitária
(como sexo antes do casamento, uso de pílula anticoncepcional, o melhor momento para sair de
casa); Vera Vital Brasil avaliou que a entrada na universidade e no movimento estudantil permitiram
romper com uma “maneira acrítica de viver”. Além disso, ao longo do conjunto dos relatos
estudados, foi possível vislumbrar situações de socialização das quais essas moças participaram,
seja o contato com certas leituras, com atividades culturais, com moradias coletivas, a possibilidade
de viajar (para participar de um congresso, por exemplo) etc.
Duas entrevistadas no projeto Marcas da Memória, uma com militância no movimento
secundarista e outra no universitário, trouxeram elementos ricos para a discussão. A conquista de
autonomia e a descoberta de um mundo diferente daquele de casa aparecem no relato da
pernambucana Lilia Gondin (2011). Para cursar o Científico – porque queria estudar Medicina –
em 1966, saiu da escola católica onde estudava em Olinda e passou a frequentar o Colégio Estadual
do Recife, que era público. Começou a andar de ônibus de linha, “a ter contato com a realidade de
verdade”; a “ter contato mais de perto, realmente, com a vida, de como é, o que acontece (...) e
também comecei a ter contato com o pessoal do Grêmio Estudantil”. (LILIA GONDIN, 2011).
Logo passou a integrar a diretoria do Grêmio, o que implicava, por exemplo, em entrar nas salas de
aula para discutir temas do interesse dos estudantes. Aos poucos, começou a participar de reuniões
fora da escola, com colegas ligados à Ação Popular. Quando a família descobriu que a jovem estava
envolvida no movimento estudantil e que tinha sido aberto um inquérito para investigar todo o
pessoal do Grêmio, seus movimentos começaram a ser controlados. “Me proibiram de sair de casa”,
contou a entrevistada. Como reação, Lilia fugiu e foi para a casa de uma amiga. A ruptura brusca
teve efeito positivo, pois o pai foi procurá-la, pediu que voltasse para casa e aceitou sua atuação
política. Na entrevista, o fato foi assim avaliado: “e aí, me liberei em casa. Dei meu grito de
independência em casa” (LILIA GONDIN, 2011). Um pouco mais tarde, Lilia foi presa, ao
participar de uma pichação contra a presença de Nelson Rockfeller no Brasil. No DOPS, relatou
não ter sofrido tortura física, apenas psicológica, “agressão tipo palavrões, chamavam a gente de
prostitutas [...]. Perguntavam pelos homens da gente [...]” (LILIA GONDIN, 2011). Numa segunda
prisão – na ocasião, Lilia estava grávida – foi sequestrada na rua e levada ao DOI-CODI. A cena
foi assim descrita na entrevista: “quando você chega lá, eles tiram toda a sua roupa, deixam você
só de calcinha, chão molhado, fio aqui, fio aqui, fio aqui [...], máquina de choque, [...] muita
porrada” (LILIA GONDIN, 2011). Naquela situação, teve dúvida se devia ou não informar que
estava grávida. Se revelasse, os policiais poderiam força-la a abortar ou poderiam estuprá-la. Foram
três dias de “pancada e interrogatório, pancada e interrogatório, pancada e interrogatório” (LILIA
GONDIN, 2011).
Socorro Ferraz, que vivia em Caruaru, quis fazer vestibular em Recife, onde seu irmão já
estudava, na metade dos anos 1960 (FERRAZ, 2011). Logo depois de sua chegada à capital
pernambucana, ela se aproximou da Juventude Comunista. Lembrou, em sua entrevista, que o PCB
organizava células nas universidades, nos colégios, entre operários; que participou de discussões
sobre a situação geral do país, além das questões internas do âmbito estudantil, como os acordos
MEC-USAID; que havia alianças sempre tensas entre os comunistas e os cristãos e também
contatos e disputas com o grupo liderado por Francisco Julião, que estava à frente das Ligas
Camponesas. O pai de Socorro não gostou da ideia da mudança dela para a cidade grande porque
“uma filha sair de casa para vir estudar no Recife sozinha significava que ele estava desmoralizado”
(SOCORRO FERRAZ, 2011). No “mundo do Sertão”, segundo Socorro, “os pais tinham o poder
de vida e morte sobre os filhos, de dizer do destino, de tudo sobre os filhos. Eu tive toda a minha
adolescência sob esse poder”.
Depois que a filha passou no vestibular, o pai acabou ficando orgulhoso com o feito, mas
houve um novo risco aos planos da moça, que queria morar na “casa da universitária” e não com
uma tia. As desconfianças do pai foram aplacadas quando ele viu que a presidente da casa era filha
de um conhecido seu, de uma “família muito tradicional”. Segundo Socorro, o pai percebeu “que
isso não era nenhuma forma das mulheres quererem se tornar independentes para fazer o que
quisesse sexualmente, moralmente” (SOCORRO FERRAZ, 2011). Viu que o ambiente era
reservado só às mulheres e que os rapazes não entravam na casa. A entrevistada conseguiu, assim,
morar na casa da universitária, experiência que, muitos anos mais tarde, avaliou como sendo crucial
para sua vida: “aí começou realmente a vida como pessoa, como indivíduo, entendeu? Como pessoa
que pensa, que estuda, que pode ter a sua liberdade de ir, de voltar” (SOCORRO FERRAZ, 2011).
A entrada no movimento estudantil, nos dois casos, foi a porta para a conquista da
autonomia das jovens mulheres, rompendo as barreiras que as impediam de viver a vida “como
pessoa, como indivíduo”. Os enfrentamentos da luta estudantil contribuíram para o
amadurecimento pessoal e para desafiar a repressão não apenas da ditadura, mas também aquela
que vinha de dentro da própria casa. Essa repressão se relacionava, entre outras coisas, com os
papéis admissíveis para mulheres e para homens, para jovens e para adultos. O contato com a
repressão da ditadura, no relato de Lilia, por sua vez, indica as expectativas em relação aos mesmos
papéis. Numa das prisões, encontramos a insinuação de que as jovens presas fossem prostitutas. Na
outra, a entrevistada relata o medo de que a condição de grávida fosse utilizada pelos algozes como
fator adicional para a sua punição. Tais situações dialogam com a literatura que trata
das particularidades da resistência feminina à ditadura.11
Nas páginas anteriores, construímos uma narrativa sobre as idas e vindas, pautas, desafios
e dificuldades do movimento estudantil e da luta contra a ditadura a partir de depoimentos
femininos. Com isso, quisemos sustentar a presença e o protagonismo das mulheres neste universo,
os quais não têm sido suficientemente levados em conta em estudos que se baseiam nos registros
produzidos pelas entidades, os quais enfatizam a atuação das diretorias (nas quais as mulheres
tiveram pouco espaço), as correntes políticas e seus documentos, as disputas durante os congressos,
a produção de jornais e panfletos e de atividades culturais.
Ao mesmo tempo, quisemos marcar as diferentes possibilidades de engajamento estudantil
nas décadas de 1960 e 1970: uma efervescência política muito grande até o golpe; a continuidade
da atuação política entre estudantes até 1968, ano que comportou uma “militância aberta” contra a
ditadura; o reforço da repressão ao longo de 1968 e o seu coroamento com o AI-5. Resgatamos,
ainda, o choque representado pela medida, com o fechamento das possibilidades de crítica ao
regime e de trabalho de massas; buscamos, finalmente, indícios do que foi possível continuar
fazendo no movimento estudantil no começo dos anos 1970. Nesse momento, uma nova geração
adentrava a universidade enquanto parte da anterior estava envolvida com a luta armada e sendo
alvo da repressão.
Frente ao exposto, queremos defender a fecundidade da História Oral para captar
experiências diversificadas no que toca ao engajamento nas lutas estudantis, bem como para
sustentar o argumento de que na reconstituição do movimento estudantil, certos protagonistas – as
mulheres – e certas ações – aquelas mais circunscritas ao ambiente universitário, levadas adiante
no contexto pós-AI-5 – ainda não receberam a devida visibilidade e valorização.
ARAUJO, Maria Paula. Lutas democráticas contra a ditadura. In: FERREIRA, Jorge; REIS
FILHO, Daniel Aarão (Org.). Revolução e democracia (1964-...). Rio de Janeiro: Civilização
Brasileira, 2007a. (As Esquerdas no Brasil, 3). p. 231-253.
11Sobre o tema, ver PEDRO, Joana Maria; WOLFF, Cristina (Org..). Gênero, feminismos e ditaduras no Cone
Sul. Florianópolis: Editora Mulheres, 2010; JOFFILY, Mariana. Violências sexuais nas ditaduras militares
latino-americanas: quem quer saber? Sur: Revista Internacional de Direitos Humanos, v. V, p. 1, 2016.
_____. Memórias estudantis: da fundação da UNE aos nossos dias. Rio de Janeiro: Relume-
Dumará; Fundação Roberto Marinho, 2007b.
ARAÚJO, Maria Paula; MONTENEGRO, Antônio T.; RODEGHERO, Carla S. (Org.). Marcas
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29-60.
JOFFILY, Mariana. Violências sexuais nas ditaduras militares latino-americanas: quem quer
saber? Sur: Revista Internacional de Direitos Humanos, v. 13, n. 24, p. 165-176, dez. 2016.
_____. Mulheres em movimento: militância estudantil e luta contra a ditadura. In: História Oral,
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MARTINS FILHO, José Roberto. O movimento estudantil dos anos 1960. In: FERREIRA, Jorge;
REIS FILHO, Daniel Aarão (Org.). Revolução e democracia (1964-...). Rio de Janeiro:
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_____. O Congresso de Ibiúna: uma narrativa a partir da memória dos atores. In: FICO,
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BURSZTYN, Ana. [jul. 2011]. Entrevistadoras: Cecília Matos, Izabel Silva e Maria Paula Araujo.
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CARDOSO, Nilce. [maio 2011]. Entrevistadora: Carla Simone Rodeghero. Porto Alegre, RS, 18
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GONDIM, Lilia Maria Pinto. [out. 2011]. Entrevistadores: Suzane Araújo e Tasso Araújo. Recife,
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GRABOIS, Victória. [nov. 2011]. Entrevistadora: Izabel Silva. Rio de Janeiro, RJ, 18 nov. 2011.
GRECO, Heloísa. [nov. 2011]. Entrevistadoras: Maria Paula Araujo, Izabel Silva e Fernanda
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PANDOLFI, Dulce. [maio 2011]. Entrevistadoras: Cecília Matos, Desirree Reis e Izabel Silva.
Rio de Janeiro, RJ, 25 maio 2011.
IPAHI, Rita. [jan. 2012]. Entrevistadoras: Cecília Mattos, Desirree Reis e Izabel Silva. São Paulo,
SP, 29 jan. 2012.
Para as entrevistas registradas sob os pseudônimos de Renata, Raquel e Rita, a fonte é Giardonoli-
Nascimento, Ingrid; Trindade, Zeidi Araújo & Santos, Maria de Fátima de Souza. Mulheres e
Militância:encontros e confrontos durante a ditadura militar. Belo Horizonte: Ed. da UFMG,
2012.
DÉCIO FREITAS: MEMÓRIAS PARTICULARES DA DITADURA MILITAR NO BRASIL
Alessandro Bracht*
A crítica mais contundente que habita o campo da produção histórica com o uso de fontes
orais refere-se ao fato de que, em geral, a memória que produz as revelações sofre com influências
que invariavelmente transformam de maneira significativa os eventos narrados. Em sua origem, a
História Oral fez de pessoas de idade avançada os seus documentos primordiais. E, como é sabido,
o avançar do tempo e a subjetividade têm a capacidade de alterar os dados da memória. Como
afirma Peter Burke, a memória opera como uma reconstrução do passado; lembrá-lo e escrever
sobre ele não são atividades ingênuas e inocentes. Daí que as narrativas podem conter enganos,
seletividades, recriações e invenções – voluntários ou não. Com o crescimento do campo de ação,
as pessoas-fonte deixaram de ser apenas as idosas e qualquer faixa etária tornou-se passível de ser
explorada oralmente – entra em cena a História do Tempo Presente. Nesse sentido, o desejo do
depoente de só trazer à luz aquilo que lhe interessa passou a ser a grande armadilha, já que as
carências no campo da lembrança deixaram de ser o problema. Dito e repetido, caberia, nesse
cenário, ao historiador usar de sua responsabilidade profissional e do método para driblar os
referidos perigos das fontes orais. Segundo Matos e Sena:
Há alguns aspectos críticos que envolvem a utilização da fonte oral. Críticas quanto à
confiabilidade da fonte, pois muitos dizem que os depoimentos orais são fontes subjetivas,
relativas à memória individual, às vezes falível ou fantasiosa. Paul Thompson argumenta
que nenhuma fonte está livre da subjetividade, seja ela escrita, oral ou visual. Todas podem
ser insuficientes, ambíguas ou até mesmo passíveis de manipulação. Apesar da
subjetividade a que a fonte oral está sujeita, em seu livro “A voz do passado,” o autor
defendeu o uso da metodologia da história oral ao afirmar que “a evidência oral pode
conseguir algo mais penetrante e mais fundamental para a história. [...] transformando os
‘objetos’ de estudo em ‘sujeitos’” (THOMPSON, 1992, p. 137). No processo apontado
por Thompson de transformação dos objetos estudados historicamente em sujeitos, é
preciso haver cuidado na entrevista e transcrição, de forma a constituir precisão no relato
oral. Da mesma forma, deve ser feito no decorrer da pesquisa um paralelo e diálogo entre
a documentação escrita já existente e a fonte oral. O importante é que o historiador perceba
o que a testemunha quer expressar e quais seus motivos para o que relatou (SILVEIRA
MATOS; KIVANSKI DE SENNA, 2011, p. 102).
[...] de uma maneira geral, eu deixei de acreditar na História, que era uma paixão para mim.
Não era uma disciplina acadêmica, era uma paixão. E hoje verifico que eu não estou sozinho.
[...] Sinto hoje pela História um interesse que eu qualifico de âmbito literário, acho que é
uma fonte literária interessantíssima. É uma fonte de prazer intelectual. Acho que manusear
documentos antigos é uma espécie de aventura, uma aventura de descobrimentos e que
permite entrever, apenas entrever, nesgas do passado, mas nunca em absoluto há a
reconstituição do passado. Sobretudo porque cheguei a conclusão de que não há nem
neutralidade, nem objetividade em História. O historiador, cada fato, cada documento, ele
aprecia segundo suas perspectivas filosóficas, ideológicas [...]. Acho que o homem não faz
sua história, ele é feito pela história e é um processo irracional, que não está sujeito a leis,
como nós pensávamos. A minha geração acreditava que havia leis gerais, que
predeterminavam o curso da evolução das sociedades. Então, não estou inclinado a escrever
história. Estou com vontade de escrever a história de um caso de canibalismo que houve em
Porto Alegre, em 1864 (Depoimento oral, 1992)
Entretanto, a questão da “armadilha” ainda não foi devidamente esclarecida, ou seja, porque
o perigo aqui inscrito diz respeito à questão da memória individual ser falível e fantasiosa. Num
caso específico, como o de Décio Freitas, um intelectual popular e reconhecidamente vaidoso, a
aceitação pura e simples de suas narrativas pessoais não parece o caminho mais recomendável. Dito
isso, fica claro que faltou algo na pesquisa desenvolvida no final dos anos 1990, capitaneada pela
historiadora Ieda Gutfreind sob o título de ‘Décio Freitas: um historiador do seu tempo’. A missão
aqui é, portanto, resgatá-la em sua incompletude e trazer seus resultados novamente à luz, com
ênfase nos relatos do exílio de Freitas por força de sua cassação em 1964, quando exercia o cargo
de Procurador Geral da República, e fazê-los passar por um filtro que os coloque na perspectiva da
História Oral enquanto metodologia de grande valia, mas também enquanto produto que se verá
perenemente cercado, como já foi dito, de arapucas, especialmente quando elas vêm de um homem-
personalidade, a quem se costuma dar crédito por vezes de forma incondicional, algo que aconteceu
na pesquisa que apoiei enquanto bolsista em Iniciação Científica. Como afirmou Marc Bloch há
muitas décadas:
Seria pueril pretender enumerar, em sua infinita variedade, as razões que podem levar
alguém a mentir. Mas os historiadores, naturalmente levados a intelectualizar em excesso
a humanidade, agirão sensatamente ao lembrar que todas essas razões não são sensatas.
Em certos seres humanos, a mentira, embora em geral associada, aí também, a um
complexo de vaidade ou de recalcamento, torna-se quase, segundo a terminologia de
André Gide, um “ato gratuito” (BLOCH, 2001, p. 98).
A suspeita de que Freitas floreou seus relatos do exílio excessivamente surgiram a partir dos
escritos do historiador Cláudio Pereira Elmir, pesquisador e professor de longa data na Universidade
do Vale do Rio dos Sinos – Unisinos. No livro ‘Odiosos homicídios – O Processo 5616 e os crimes
da Rua do Arvoredo’, publicado no ano de 2010, em parceria com outro historiador da mesma
instituição, Paulo Roberto Staudt Moreira, Elmir questiona, de forma notável e responsavelmente
embasada, as informações documentais oferecidas por Freitas no já referido ‘O maior crime da
Terra’. De tudo que ele escreve sobre o livro de Freitas, ficam adjetivos nada elogiosos (mas que
tampouco são ofensivos) e a certeza, diante da investigação minuciosa, de que o chamado
“historiador dos oprimidos” inventou grande parte do que consta em ‘O maior crime da Terra’. Se
ele tivesse assumido tratar-se de uma obra meramente literária, não haveria problema. Mas não foi
o que aconteceu. Segundo Pereira Elmir:
Algumas das principais fontes documentais utilizadas por Décio Freitas n’O maior crime
da terra têm origem incerta. Mais rigorosamente falando, elas são insondáveis. Dos três
processos criminais que o autor diz haver, relacionados aos crimes da Rua do Arvoredo,
só conhecíamos um até então – ao que tudo indica, na íntegra (o que trata da morte de
Carlos Claussner, o açougueiro) – e pequena parte de outro (o que respeita às mortes de
Januário e José Inácio), e que agora, no seu todo, é objeto da presente publicação. Sobre
um terceiro processo, citado pelo autor, inúmeras vezes, e que diria respeito a seis outras
mortes (os chamados “crimes da linguiça”), não há qualquer referência, a não ser a do
próprio autor, que teria tido acesso a ele ainda nos anos 1940, e que teria desaparecido do
Arquivo Público do Estado, naquela mesma ocasião.
A maior parte dos detalhes trazidos pela narrativa de Freitas, quer sobre as circunstâncias
dos crimes, quer sobre a vida pregressa de José Ramos e Catarina Palse, foram urdidos
tendo como referência um suposto depoimento oferecido por Catarina – por escrito e
oralmente – ao Chefe de Polícia depois da condenação de ambos em 1864. A tradução da
confissão escrita estaria, ainda segundo o autor, aposta ao terceiro processo – desaparecido
– e do qual ele manteria cópia. [...] São inúmeras as evidências periféricas de que disponho
que refutam a veracidade das informações resgatadas nestas supostas fontes. Não há
dúvida, penso eu, de que Décio Freitas inventou boa parte dos detalhes que tornam a
história espetacular. Inclusive tomando emprestado alguns destes da narrativa ficcional de
Luiz de Antonio de Assis Brasil, no romance Cães da Província (1987) (PEREIRA
ELMIR, 2010, p. 300-301).
Que fique claro que o presente trabalho não tem a pretensão de desqualificar um intelectual
do peso, como Décio Freitas, acusando-o de mero inventor de fatos; longe disso. Por ocasião de seu
falecimento em 2004, ele foi homenageado por gigantes da produção intelectual no Brasil. Gente
do tamanho de Tau Golin, Sérgius Gonzaga, Juremir Machado da Silva e Voltaire Schilling
manifestaram seu pesar por conta da perda de Freitas (nas palavras de Schilling, “uma verdadeira
faculdade de ciências humanas” (2004, p.15)). No que tange às suas entrevistas, não há maneira de
comprová-lo ou desmenti-lo imediatamente, se é que é possível fazê-lo. Os méritos em seu papel
de formador de opinião são inquestionáveis. Mas trabalhar a partir do benefício (ou malefício) da
dúvida não deve ser evitado. Em suma, mais que criticar Freitas, trata-se de uma autocrítica a um
grupo de pesquisa que se deixou levar pela capacidade de Freitas em fornecer, com o poder de sua
retórica, dados que pareciam inquestionáveis diante da credibilidade pública do depoente.
Para além das dúvidas impostas por Pereira Elmir, uma das passagens da entrevista
concedida ao programa “Histórias”, da extinta TVCOM (a data da veiculação do programa não foi
possível localizar até o presente momento, tendo em vista que o mesmo está sendo trabalhado a
partir de uma transcrição feita em 1998), é aquela que mais impõe dúvidas a respeito de sua
veracidade, já que ela em momento nenhum é citada nas duas entrevistas concedidas a Gutfreind.
É curioso que isso tenha acontecido tendo em vista que suas memórias do exílio em Montevidéu se
mostram as mais vívidas. E esta diz respeito a um encontro com Che Guevara na capital uruguaia,
evento que ele não data e, pela sua negação em citar uma terceira personalidade envolvida sob pena
de ver sua versão desmentida pela outra testemunha viva dos acontecimentos, coloca a narrativa
em dúvida quanto a sua veracidade:
Eu era conhecido pelo fato de que eu contestava a guerrilha como método eficaz e único
de mudar as coisas no Brasil. Então eu fui qualificado de conciliador porque eu era contra
a guerrilha. Mas a guerrilha era um dogma. E quem não aceitasse a guerrilha era um
conciliador. E eu era muito ligado ao Jango, nesta época, embora eu também mantivesse
melhores relações com o Brizola. E isso [a posição contrária à guerrilha] era público e
notório entre os exilados. Então, essa personagem política me procura no meu
apartamento, que era na calle Rio Negro, há poucos metros de distância da 18 de julho. E
me chamou essa personagem ao seu apartamento e me disse que no dia seguinte, à hora
tal, chegaria a Montevidéu o companheiro fulano de tal, que era o Che Guevara, e se eu
podia – ele vinha incógnito – hospedá-lo, já que eu estava morando sozinho. Então ficou
combinado de que eu iria recebê-lo. O Che Guevara desembarcou de um trem na estação
central de Montevidéu. Não sei de onde ele vinha. Também, ele não se identificou para
mim. Eu é que o reconheci. Embora ele estivesse sem barba e estivesse gordo. Na verdade,
a gordura eram reservas que ele estava acumulando para a aventura ou a tragédia da
guerrilha. Eu hospedei ele, então, e lá passamos uma noite conversando, durante a qual
finalmente houve a identificação. E realmente estabelecemos uma relação muito boa. Mas
uma coisa que me causou muito espécie é que no dia seguinte eu fui convidado por essa
personagem para ir com o Che Guevara a um apartamento na avenida Agraciada. E, neste
apartamento, a personagem abriu um mapa onde mostrou, a fronteira do Brasil com a
Bolívia, e colocou vários alfinetes coloridos nos lugares onde tinha, bases guerrilheiras já
implantadas, brasileiras. E o Che fez várias perguntas sobre isso. Aproximadamente, ele
queria saber quantos homens, que tipo de armamento, como é que podia se articular a ele...
Eu fiquei assombrado com o que eu via porque eu, em primeiro lugar, achei que todo
mundo sabia entre os partidários da guerrilha. Eu fiquei espantando de coisas que estavam
sendo feitas e eu não sabia. Só que, em determinado momento, eu comecei a me perguntar:
“Mas, por que eu fui convidado para testemunhar esse encontro e essa demonstração, se
eu tenho posição contra a guerrilha?”. Tanto assim que eu não sabia absolutamente nada
daquilo. Eu cheguei a uma conclusão: a de que eu fui convidado porque eu não sabia que
aquilo não era verdade. Quem estava por dentro, sabia que aquilo não existia. Eu não sabia.
[Estavam enganando o Che Guevara] porque havia sobre os exilados mais radicais de
Montevidéu uma pressão muito grande, tanto de exilados como também de brasileiros que
iam lá, ou que nem iam lá; estavam aqui, no sentido da guerrilha. De Cuba tinham chegado
recursos para isto. Foi um milhão de dólares que veio em três partidas. Eu deveria ir buscar
a primeira, mas à última hora eu não quis fazer isso. Não quis porque eu teria que fazer
isso com um passaporte falso, que eu comprei em Buenos Aires. E comecei a pensar que
podiam me prender por crime comum, de passaporte falso. E quem foi buscar essa
primeira partida foi o Darcy Ribeiro. De sorte que esta explicação para o Che, de certo
modo, era uma forma de justificar o dinheiro. Eu perguntei [onde esse dinheiro foi parar]
muitas vezes e me foi dito que tinha sido empregado, em primeiro lugar, no pagamento de
viagens de brasileiros para Cuba, para treinar guerrilha, e em despesas de todo o tipo,
manutenção de exilados e assim por diante (Transcrição de entrevista concedida ao
programa História da TVCOM, 1998).
No dia 31 [de março de 1964], à tarde, eu saí da Rodrigues Alves, da imprensa oficial,
com vários exemplares do Diário Oficial debaixo do braço com a minha nomeação para
Marselha. Eu entro pela avenida Rio Branco, vejo uma casa de câmbio e resolvi ver como
estava o câmbio, tanto mais que eu teria que ir para o exterior; já estava tudo preparado
para minha viagem. E vi que o dólar tinha dado um salto, um pulo tremendo e pensei
comigo: 'Acho que está acontecendo alguma coisa muito grave. Foi quando eu liguei para
o Correio da Manhã e um amigo me disse que tinha sido iniciado um movimento militar
em Minas Gerais, em Ouro Preto, que era o movimento do general Mourão. E eu soube
que o Jango estava no Rio e, como sempre que estava no Rio, ele despachava no Palácio
das Laranjeiras. Eu me dirigi para lá e fiquei o resto da tarde, a noite toda até o dia seguinte,
depois do meio-dia. O Jango ficou no Palácio das Laranjeiras num andar de cima.
Embaixo tiraram os móveis, ficou um salão imenso onde estavam lá conversando
políticos, deputados, os ministros dele. Assim se varou a noite, em debates febris. O porta-
voz de imprensa era o Raul Riff, que tinha sido meu companheiro de tradução de telegrama
do Correio do Povo e também meu companheiro de Partido Comunista. Em determinado
momento, o Riff me mandou um recado, queria conversar comigo. Eu subi. Ele queria me
perguntar algo. Até que toca o telefone, o Riff atende e passa o telefone para ele [Jango].
Era um telefonema do general Amauri [Kruel], de São Paulo, comandante do Segundo
Exército, em que ele disse ao Jango que garantia a manutenção dele na presidência se ele
dissolvesse a UNE, a Frente de Mobilização Popular, a CGT e aquela organização dos
marinheiros. E o Jango respondeu, isto eu ouvi: “Olha, Amauri, eu para ficar na
presidência não vou repudiar as minhas bases”. E assim que foi selada a sorte do Jango
(Depoimento oral, 1992).
Foi na capital uruguaia que Décio afirma ter se aproximado da História. O encontro com a
referida ciência humana se deu, de acordo com Freitas, por força de uma conspiração
contrarrevolucionária que jamais foi posta em prática. O curioso desse período é que ele se diz o
único a perceber que ditadura teria vida longa e que a contrarrevolução nunca aconteceria, em uma
demonstração de ceticismo pouco usual em tempos de fé na luta armada como meio de derrubar
um poder ilegalmente constituído.
Olha, eu passei a me ocupar de História posso dizer que casualmente por acidente da vida
política. Em 1964 eu morava em Brasília, onde eu era Procurador Geral, presidente em
exercício de uma fundação federal e com o golpe eu fui dar com os costados em
Montevidéu onde vivi oito anos, de 64 a 1972 (Depoimento oral, 1992).
Porque o seguinte: durante algum tempo, em Montevidéu, se acreditou nos meios culturais
brasileiros que seria possível, – sobretudo o Brizola acreditava nisso –, seria possível
organizar um contragolpe já que ainda restavam bases importantes das forças vencidas. E
havia sinais nesse sentido, inclusive visitas de militares de alta patente, coronéis para
conversar lá, sigilosamente. Então havia a convicção de que seria possível um contragolpe.
Então se resolveu que, ao entrar no Brasil, seria lançado um manifesto, no qual se diriam
as razões do movimento. E se resolveu dividir o manifesto em duas partes; uma parte
histórica, na qual nós nos propunhamos como continuadores de todas as lutas populares
brasileiras, e esta parte foi atribuída a mim, ao Aldo Arantes e o Betinho, que eram
dirigentes e líderes da AP. O Aldo Arantes foi recrutado do PC do B. E a parte política
ficou entregue ao deputado Marques da Costa dos Santos e mais não me lembro quem...
Então, [...] nós falávamos em lutas populares, mas não sabíamos bem o que era isso. Então
fomos pros livros, principalmente eu, na Biblioteca Nacional de Montevidéu, muito boa,
com uma Brasiliana excelente, além do que o público brasileiro era recebido muito bem.
Então eu, sobretudo, me debrucei na História do Brasil, mas veio, sobretudo, a
interrogação sobre o Brasil: Por que que tinha acontecido aquilo ali? Foi quando eu
deparei, no Varnhagem, com doze ou quinze linhas sobre Palmares que foi citada. E me
lembro de que ninguém tinha ouvido falar naquilo e que era citado no manifesto, entre
outros movimentos populares. Acontece que o contragolpe não saiu e o manifesto ficou
no papel. Só que eu, em determinado momento, percebi que não ia haver absolutamente
nenhuma mudança. Eu na verdade já era cético. E quando eu cheguei a Montevidéu, eu
fui visitar o Darcy Ribeiro, que estava num hotel ali na Rambla, o hotel Libertador San
Martin; e quando vou entrando no hotel tá saindo dele o Jango. Tá saindo o Jango
apressado e disse: “Olha, o Darcy tá lá em cima”. E, conversando, me despedi e
conversando com o Darcy, o Darcy, eu disse: “Olha, Darcy, aquilo, no Brasil, veio pra
ficar muito tempo, viste?” E ele disse: “Tu estas completamente cego. Dentro de seis
meses o Jango vai voltar nos braços do povo!”. O Brizola também acreditava nisso: “Coisa
de meses!”. O mais cético era o Jango. Bom, o fato é o seguinte: eu então cheguei à
conclusão de que não ia haver nada. Falava-se em guerrilha, etc. Eu dizia: nada daquilo
não vai acontecer (Depoimento oral, 1998).
O passo seguinte nos anos de exílio seria o de conhecer o Brasil em termos populares já
que, para Freitas, era um elemento que faltava. A história do país era eminentemente contada em
tintas heroicas e a partir da visão da elite – para não usar o jargão do “vencedor”. Daí, ele teria
retornado clandestinamente ao Brasil para produzir seu primeiro livro, ‘Palmares – a guerra dos
escravos’, publicado em 1971. Essa passagem da vida de Décio Freitas, é no mínimo bastante
pitoresca:
[...] finalmente, eu ingressei clandestinamente no Brasil para pesquisar. E é preciso saber
que havia dois IPMs contra mim e uma prisão preventiva decretada. É claro que se eles me
encontrassem no Brasil jamais acreditariam que eu tinha entrado para pesquisar, eles jamais
aceitariam isso. Mas, veja que eu chupei e suguei tudo que havia no Instituto Histórico e
Geográfico, me foi muito útil. Claro, depois, fui ao Rio de Janeiro, pesquisei muito na
Biblioteca Nacional, voltei a Montevidéu, trabalhei, fiz uma primeira versão do meu texto
de Palmares. [...] E entrei uma segunda vez no Brasil, mas, então, porque eu queria pesquisar
no Arquivo do Recife. Do Recife eu fui a Maceió, onde trabalhei no Arquivo de Maceió;
quis ver de perto o local onde havia existido durante um século na Serra da Barriga [...].
Depois do Recife, depois de Maceió, voltei via Rio de Janeiro e na minha volta eu achei que
estava sendo seguido, e tive virtualmente a certeza disso. Então eu achei que não devia
cruzar a fronteira de novo, que era perigoso e resolvi me esconder em Porto Alegre. Só que
era muito difícil porque eu tinha familiares aqui. Na casa dos meus familiares era onde eu
primeiro seria procurado; os amigos tinham medo disso aí. E veja que coisa curiosa, foi aí
que uma irmã minha, com quem eu me encontrava às escondidas, teve uma ideia. Eu, no
meu tempo de advogado, eu tinha feito um inventário de uma senhora suíça que havia sido
casada com um italiano; era um técnico em papel celulose, desta fábrica em Guaíba, e havia
morrido. Eu tinha feito o inventário; é uma coisa banal em advocacia. Ela supervalorizou
esse meu trabalho, e contraiu uma gratidão imensa para comigo. Essa senhora, [...] tinha
ainda uma filha que morava na mesma rua, do outro lado da casa dela, casada com um
brasileiro, e ela vivia sozinha nesta casa. Ela ia todos os anos à Itália, voltava dizendo que a
Itália estava desgraçada, a tal de democracia, porque ela era uma fascista assumida e
consciente, muito mais que um filho dela, um rapaz de dezoito anos. Ele tinha se engajado
naquela milícia do Mussolini e foi capturado pelos partigiani nas proximidades do lago de
Como, foi fuzilado e teve o seu corpo jogado no lago de Como. Ela não acreditava na morte
do filho e achava que ele iria aparecer vivo e isso era o motivo pelo qual ela continuava fiel
ao fascismo e odiava a democracia italiana. Então, veja que a minha irmã sugeriu que eu
fosse me esconder na casa dessa senhora fascista, uma coisa que todo mundo tinha medo de
fazer; sobretudo a Dona Eliza, conhecendo como conhecia as minhas ideias. Mas
consultada, ela concordou prontamente e fez mais uma coisa: organizou toda a sua vida de
modo a me proteger e me resguardar. Por exemplo, despediu a empregada e me colocou
num quarto que ela tinha sempre pronto e preparado para a eventual volta do filho. Esse
quarto era cheio, na parede, de fotografias do filho e do Duce.
[...] E eu fiquei cinco meses escondido ali. Ela mudou totalmente a sua vida. A filha vinha
vê-la, falar com ela, almoçar com ela e nunca ficou sabendo, na época, que eu estava lá. Só
que eu, para passar o tempo, eu consegui um máquina de escrever por intermédio da minha
irmã. Para passar o tempo eu comecei a escrever, e escrevi o livro ‘Palmares’. A questão é
que era uma mesinha e quando, às vezes, parava para descansar eu levantava os olhos e via
o retrato do Duce. Tanto que eu escrevi um depoimento para um livro do José Luís Werneck
da Silva – “A Deformação da História” intitulado “Sob as vistas de Mussolini”. Escrevi
como eu escrevi esse livro sob às vistas de Mussolini. O fato é que voltei a Montevidéu e aí
o livro foi publicado primeiro em língua espanhola. (Depoimento oral, 1998).
[...] a anistia saiu em 79. Foi em 80 efetivada a anistia. E, então, eu reassumi o cargo e
exerci algum tempo. Foi quando eu (ingressei como presidente) do Comitê Nacional de
Anistia, porque se lutava por uma segunda anistia, já que a primeira tinha beneficiado
unicamente aqueles que haviam sido atingidos por Atos Institucionais. Aqueles que
haviam sido demitidos de empresas estatais ou de outros cargos públicos, sem ser por Atos
Institucionais, ficaram de fora da primeira anistia. Então, o movimento foi para uma
segunda, que acabou sendo feita e que beneficiou outros não punidos por Atos
Institucionais. Então eu fui envolvido como presidente no Comitê Nacional de Anistia.
Nessa condição viajei por todo o Brasil, me reunindo com anistiados e sendo que me
lembro de conseguir que alguns poucos ministérios estatais concedessem
espontaneamente a anistia antes de vir a lei; e era muito interessante que o primeiro
ministério que espontaneamente anistiou os funcionários da Petrobrás – eram em número
de mais de seis mil – foi o Aureliano Chaves, no Ministério de Minas. Eu tive problemas
com os ministros progressistas (Depoimento oral, 1998).
No cenário anteriormente descrito, encerra-se o período em que Décio Freitas viveu entre o
exílio e a clandestinidade. A partir daí, tornou-se um intelectual multifacetado e, como indicado
anteriormente, marcado pela controvérsia mas também pela admiração de outros intelectuais e do
público em geral. Seu falecimento em 2004 deixou lacunas abertas e, em princípio, insolúveis. Sua
resolução exigiria um aprofundamento para o qual não há espaço aqui. Mas devido à sua
significância na produção do conhecimento no Brasil, abre-se caminho para que a pesquisa
finalizada há aproximadamente duas décadas encontre novos rumos e coloque Décio Freitas não
no panteão ao qual foi alçado, mas no lugar dos seres humanos, todos eles evidentemente falíveis.
Afinal, as dúvidas que aqui foram apresentadas no que tange à veracidade das narrativas
habita momentaneamente o campo da especulação e foram motivadas por revelações que nada têm
que ver com a História Oral propriamente dita. Não se pode negar que ela tem peculiaridades que
a tornam um campo de investigação muito específico. Se o respeito já foi conquistado pelo método
e pela seriedade dos que com ela trabalham, vale ressaltar que não existe conquista perene na
história por ela ser uma fonte de conhecimento que não se esgota. Todo conhecimento histórico
construído está sujeito a revisões. Se na história não existe ponto final, são as reticências que não a
deixam esquecer.
ALBERTI, V. História oral: a experiência do CPDOC. Rio de Janeiro: Fundação Getúlio
Vargas, 1990.
BURKE, P. História como memória social. In: _____. Variedades de História Cultural. Rio
de Janeiro: Civilização Brasileira, 2000.
_____. Décio Freitas:depoimento [set. 1998]. Entrevistador: Ieda Gutfreind. Porto Alegre:
1998. 2 cassetes sonoros. Entrevista concedida ao Núcleo de Estudos e de Integração de
Pesquisas em História Oral no Programa de Pós-Graduação em História da Unisinos.
PEREIRA ELMIR, Cláudio. Razões ardilosas: das formas de devorar a História. In:
______; STAUDT MOREIRA, Paulo Roberto (Org.). Odiosos homicídios: o Processo 5616 e
os crimes da Rua do Arvoredo. São Leopoldo: Oikos, 2010.
Este trabalho tem como objetivo apresentar uma reflexão sobre as experiências de uso
de dispositivos interativos digitais na recriação dos centros clandestinos de detenção,
tortura e extermínio1 que funcionaram durante a última ditadura militar (1976-1983) na
Argentina. Quais são as implicâncias da criação destas ferramentas na construção do
passado recente? Estes dispositivos virtuais utilizam recursos em três dimensões, modelos
em escala, animação, objetos e materiais audiovisuais como forma de recriar o
funcionamento passado dos CCDs. Estes “documentários interativos” fornecem ao
usuário uma realidade imersiva, fazendo possível percorrer virtualmente o CCD ao tempo
que recriar as experiências do cativeiro das vitimas a partir da incorporação do testemunho
daquelas que sobreviveram. São recursos que têm o potencial de serem utilizados por um
público massivo, dada a sua disponibilidade online. Aos mapas, fotografias e objetos agregam-
se também testemunhos das vitimas, sendo o resultado um tipo de animação com um alto
conteúdo emocional.
Formulados sobre esta base, estes dispositivos acarretam um interessante desafio
para as ciências sociais que parecem colocar-se em um espaço de fronteira entre a realidade e a
ficção, entre passado e presente, entre a evidencia e a invenção, abrindo múltiplos
interrogantes para a exploração. Se a história como disciplina utilizou tradicionalmente a
imagem produzida no passado como evidência válida para reconstruí-lo (BURKE, 2016),
qual seria o estatuto da evidencia produzida por estes dispositivos virtuais para a
reconstrução do passado ditatorial?
A gente se depara com uma imagem que não é uma evidencia que vem do passado e
que ainda não tem existência real, mas que é produzida no presente e chega até nós através do
recurso à hiper-realidade. Ao mesmo tempo que invenção no presente, estes dispositivos
contêm o relato testemunhal dos sobreviventes dos CCD sobre o passado. Os usuários têm
acesso à informação sobre o que aconteceu através da voz da própria vítima no próprio
território onde se desenvolveu a repressão. Os documentários interativos são eles mesmos
produzidos sobre a base de múltiplos testemunhos convergentes sobre o CCD. Seriam então
fontes históricas? São equiparáveis a atos de testemunho ocular? As imagens dos objetos
incluídos no dispositivo poderiam ser consideradas indícios do passado? Os relatos
compilados nos documentários fazem destes dispositivos uma forma de arquivo histórico?
* Departamento de Ciências Sociais/CCSH – Universidade Federal de Santa Maria. Dr.ª em Antropologia Social
(PPGAS. Museu Nacional, UFRJ). .
1 A expressão Centro Clandestino de Detenção será resumida como CCD.
De que maneira estes dispositivos produzem verdade sobre o passado da ditadura? Qual seria o
lugar desta inovação em termos da Historia Oral?
Na literatura existente sobre a história social da tecnologia, Anderson (1993) já nos advertiu
sobre o impacto do surgimento do capitalismo de imprensa na produção de uma imaginação
nacional. Benjamin (1994) destacou o impacto da fotografia na redefinição da experiência artística.
A invenção do gravador e a fita teve também uma importância decisiva para o desenvolvimento da
própria História Oral segundo reconhece Da Silva Silveira (2017). Se voltarmos nosso olhar para a
produção destes dispositivos que se propõem trazer uma experiência mais vivida sobre o horror da
ditadura, poderíamos concluir que a memória da repressão será afetada pelo surgimento dessas
novas tecnologias de realidade virtual. Em que medida estes suportes tecnológicos redefinem a
memória do passado? Qual será seu impacto na imaginação histórica de nossos contemporâneos?
Se a realidade virtual permite colocar estes “museus virtuais” ao alcance dos dispositivos digitais
de uso massivo, como uma tablet ou um celular, qual será o impacto destas tecnologias na produção
de memórias? São estes documentários interativos novos “lugares de memória”, no sentido
outorgado ao termo por Pierre Nora (1997)?
O propósito deste trabalho não é fornecer uma resposta exaustiva e conclusiva a todos e a
cada um destes interrogantes. Meu interesse é colocar estes interrogantes em debate e começar a
desenhar alguns caminhos possíveis a percorrer na compreensão do que está envolvido na
introdução desta invenção tecnológica que combina ficção com relato testemunhal para o campo
da historia e da memória sobre o passado recente. Para isso, vou começar adotando a recomendação
de Peter Burke para quem “planeje utilizar o testemunho da imagem”, de iniciar o trabalho
“estudando os diferentes propósitos dos realizadores destas imagens” (2016, p. 22). A seguir, vou
apresentar os diferentes recursos utilizados na reconstrução dos CCD na Argentina, assim como
também um perfil dos produtores destes dispositivos e um dos principais contextos de uso destes
documentários, a cena judicial. Através desta estratégia interessa refletir sobre o lugar destes
dispositivos na produção de conhecimento sobre o passado. Os dados apresentados aqui são
resultado de entrevistas realizadas a alguns dos realizadores destes dispositivos, de entrevistas
realizadas a sobreviventes, a funcionários vinculados às políticas de memória sobre a ditadura, da
pesquisa de fontes documentais, de materiais audiovisuais de audiências orais e do fato de ter
produzido e coordenado eu mesma uma destas iniciativas no contexto de um projeto de
extensão universitária.2 Este texto é produto de uma pesquisa em andamento.
2 O Projeto “Museo Virtual Campo de Mayo" foi eleito ganhador entre as alternativas em disputa para
o programa de orçamento participativo da Universidade Nacional de General Sarmiento (UNGS) 2014.
Coordenado por mim e pelo antropólogo Francisco Suárez incluiu uma equipe de aproximadamente 20
pessoas entre antropólogos, sociólogos, museólogos, especialistas em realidade aumentada e desenho gráfico.
A reconstrução deste CCD foi feita em parceria com a equipe Huella Digital com sede na Universidade de
Buenos Aires.
As Forças Armadas que assumiram o controle do país a partir do Golpe de Estado em 1976,
instituíram como método principal de luta contra o chamado “inimigo subversivo” um sistema
generalizado e clandestino de desaparecimento de pessoas. A sequência prototípica do mecanismo
repressivo "sequestro, cativeiro, tortura e desaparecimento" requereu de instâncias materiais para a
sua implementação. Para isso, as Forças Armadas fizeram uso de instalações tão diversas como
residências de oficiais, quartéis de soldados, hospitais, casas particulares, escolas, estádios,
delegacias, oficinas mecânicas, etc., que adaptaram para os novos fins. Alem de centros de tortura
e extermínio, alguns desses locais funcionaram também como agencias de inteligência,
maternidades clandestinas, espaços de trabalho escravo, enfermarias e depósitos dos bens roubados
aos próprios detentos. Em muitos casos, não desapareceram somente os corpos daqueles que eram
considerados inimigos do regime, mas também desapareceram os mesmos centros clandestinos.
Estes foram destruídos, demolidos ou transformados, a fim de remover as provas do exercício
do terror de Estado.3
O recurso à produção visual teve um lugar chave, desde os inícios do movimento pelos
DDHH, quando, as mães percorriam as dependências de governo, hospitais e delegacias policiais
com as fotografias dos “detenidos-desaparecidos”. Mais tarde, estas fotografias se converteram em
cartazes a serem exibidos na Praza de Maio trazendo a presença do desaparecido e parafraseando a
Barthes, dizendo “esta pessoa existiu” (BARTHES. In: LONGONI, 2010). Chegada a democracia
(1983) trechos das audiências públicas do Julgamento aos mandos militares responsáveis pelas
violações aos DDHH foram televisadas para o pais tudo.
Quatro décadas depois do início da ditadura existem hoje quatro plataformas interativas
públicas que reconstroem vários dos CCD: a associação “Memória Abierta”, uma aliança
de associações de direitos humanos 4 que desenvolveu estas ferramentas virtuais como
parte de muitas outras atividades; “Huella Digital”, uma iniciativa acadêmica desenvolvida em
parceria com uma agencia de Estado e as outras duas iniciativas que têm a sua origem no
jornalismo, “Periodismo Modelado” e “Todo Noticias” (TN), um canal de notícias 24h
integrado a um conglomerado mediático equivalente à Rede Globo no Brasil.
Memória Aberta, a partir da iniciativa do arquiteto Gonzalo Conte, irmão de um
desaparecido e filho de Augusto Conte, uma importante liderança do movimento pelos DDHH,
fundador do Centro de Estudios Legales y Sociales (CELS, 1979) começou a reconstruir o espaço
dos CCD através de ferramentas digitais. Memoria Abierta criou a plataforma "topografias da
memória", com o objetivo de fazer um levantamento de dados, sistematizar e produzir
documentação sobre os locais, edifícios e espaços que foram usados como CCD em todo o território
3 Estes são os casos dos CCD, conhecidos pelos apelidos "El Campito", "Club Atlético", "Vesúvio" e "Mansión
Sere", entre muitos outros.
4 A expressão direitos humanos será sintetizada como DDHH.
nacional.5 Cada um desses sítios foi incorporado a um mapa do território nacional. O usuário
pode percorrer o mapa e identificar a totalidade dos CCDs que existiram no pais. Eles criaram
também o recurso interativo Audiovisual de Representação Territorial, um projeto
financiado pela Comunidade Econômica Europeia, que combina texto, mapas, registro
audiovisual e provas documentais e que procura explicar o funcionamento de diferentes
CCDs. Fragmentos do relato das testemunhas acompanham as imagens.6
Em 2008, a equipe de Huella Digital, conduzido pelo especialista em animação por
computador Martín Malamud e com sede na Universidade de Buenos Aires, começou a fazer um
trabalho pioneiro de reconstrução 3D dos CCDs, localizados na cidade de Buenos Aires em parceria
com o “Instituto Espacio para la Memoria (IEM)”, liderado pela sobrevivente do CCD Club
Atlético, Ana Maria Careaga, pela sua vez, filha de uma mãe de Praza de Maio que foi desaparecida
pela ditadura quando procurava por Ana María. Huella Digital reconstruiu os CCD
Esma, Automotores Orletti e Club Atletico.7 A experiência audiovisual imersiva é produzida a
partir da associação dos espaços reconstruídos com tecnologia digital com as descrições dadas
pelos próprios sobreviventes dos campos. Os testemunhos audiovisuais dos sobreviventes têm
uma importância chave em suas histórias e as experiências são incluídas no dispositivo e
acompanham o tour virtual interativo. O usuário do dispositivo cria o seu próprio itinerário,
selecionando o conteúdo de acordo com os seus interesses. Atualmente trabalha na
reconstrução de um dos maiores CCD do pais, El Campito.8
Periodismo Modelado criou uma plataforma de realidade aumentada que permite a imersão
no CCD Masión Seré, destruído durante a ditadura. Apenas restaram as bases do prédio,
identificadas a partir de trabalho arqueológico. Os jornalistas que integram este equipe Ariel
Moyano e Juan Charovsky têm como interesse mais amplo o de contar histórias através da realidade
virtual. Eles criaram o dispositivo em 3 dimensões do CCD Mansión Sere, como uma maneira de
"ganhar experiências em primeira mão", é eles entendem que o usuário pode
mergulhar completamente na realidade passada do CCD.9
O sinal de televisão “Todo Noticias” criou um percurso 360 do CCD Virrey Ceballos. O
dispositivo traz o relato de um sobrevivente falando da sua experiência enquanto percorre o local.
Este recurso está disponível para os usuários tanto na web quanto no celular. O canal de notícias
explica que criou este dispositivo como uma forma diferente de recordar a ditadura na ocasião da
Todos estes dispositivos utilizam elementos tecnológicos comuns, tais como recursos em
duas ou três dimensões, vistas desde o exterior e interior dos CCD, modelos em escala de edifícios,
animação, objetos da época e materiais audiovisuais. O usuário dispõe de várias vias possíveis para
se deslocar e percorrer o campo de detenção. Entre estes materiais, se destaca o testemunho dos
sobreviventes que vão narrando as suas experiências, a medida que o usuário percorre o campo de
forma que ele tem a possibilidade de descobrir de primeira mão as vivencias do sobrevivente-
testemunha.
Na realização destes dispositivos, a entrevista aos sobreviventes dos CCDs se configura
como o principal instrumento (ou técnica) de trabalho em tanto ela fornece os dados chaves que
vão permitir recriar em formato virtual o CCD já desaparecido ou recriar o funcionamento passado
de locais que hoje existem, mas que não funcionam mais como CCDs. É preciso levar em conta a
dificuldade deste trabalho porque os sobreviventes ficaram, a maior parte do tempo, de olhos
cobertos e quase sem nenhuma chance de interagir uns com os outros. Muitos dos que estiveram a
cara descoberta não sobreviveram. Portanto, os dados são fragmentários, parciais e subjetivos.
Como relata uma testemunha, “dadas as condições de sigilo, nada era real dentro do campo, os
Um dos principais usos destes dispositivos é no contexto dos processos por crimes contra a
humanidade. Memoria Abierta desenvolveu recursos digitais em resposta à demanda feita pelos
próprios tribunais. Assim criaram os Registros Audiovisuais Judiciais que permitem reconstruir a
experiência de inspeção ocular das testemunhas quando visitam os CCD. Através de fotografias,
testemunhos audiovisuais, desenhos e cópias de registros judiciais, se apresenta ao usuário uma
reconstrução da visita que realizam ao campo os sobreviventes, os operadores judiciais e a equipe
de Memória Aberta.
O trabalho consiste em fazer visíveis as estruturas dos prédios utilizados para a detenção e
tortura das vítimas e recuperar a sua funcionalidade e espacialidade, tal como foram utilizados
durante a ditadura (nos casos em que os prédios não foram destruídos, mas têm outros usos). Os
registros combinam o plano arquitetônico do CCD com o testemunho de sobreviventes. No
relato a vítima reafirma as provas da sua presença no local na época da ditadura. Assim,
é possível observar como uma sobrevivente vai individualizar a cela onde ela esteve detida.
Este relato se acompanha da reprodução de trechos do expediente criminal e fotografias atuais
do que foi outrora a cela. Gonzalo Conte, um dos diretores deste projeto, enfatiza a
importância desses recursos já que segundo ele permite "olhar as evidencias" tal como elas se
apresentam no contexto de processos por crimes contra a humanidade.
No caso de dispositivos interativos feitos por Huella Digital/IEM, estes foram
utilizados no espaço das audiências orais como ferramenta de apoio audiovisual ao relato
da testemunha e também como uma apojatura do trabalho dos promotores e da alegação dos
advogados da acusação. Na perspectiva dos realizadores e das vítimas, o uso de imagens
facilita a compreensão do relato pela audiência. Para Martín Malamud, a reconstrução dos
CCDs exigiu solicitar informações aos sobreviventes para que dessem testemunho de
como foi a sua passagem pelo lugar, mas, principalmente, para coletar todo tipo de
detalhe espacial e ambiental que fizesse possível reconstruir os prédios, a modalidade de
uso dos prédios e as modalidades em que os prisioneiros eram mantidos detidos, etc. O
objetivo é reconstruir da forma mais rigorosa possível o local onde só temos a ausência no
presente (Malamud, entrevista com a autora, 2017).
Inicialmente pensado para ser utilizado no contexto judicial, o primeiro
dispositivo funcionava em “stand alone”. Quer dizer, seu uso era limitado ao computador
do produtor do dispositivo e continha apenas a reconstrução do espaço, tanto na sala da
audiência se adicionava o relato da testemunha11. Para conseguir que a imagem e a voz
trabalhassem juntas, sobreviventes e integrantes de Huella Digital treinaram previamente a
possibilidade de se acompanhar um ao outro. Na entrevista com Ana María Careaga, ela
descreveu como nestes encontros prévios à audiência, o dispositivo foi se adaptando
conforme as necessidades do relato da testemunha. Perante as dificuldades praticas
surgidas no momento da audiência oral, na segunda re-elaboração do documentário se
adicionadas as vozes dos sobreviventes. Um segundo motivo de ter produzido as entrevistas
foi a intenção de preservar o testemunho da fragilidade da vida humana, já que com o passou
do tempo alguns sobreviventes tinham falecido (Malamud).
O testemunho apresentado perante o cenário judicial tem as suas exigências e
encontra-se amplamente determinado pelo destinatário como reconhecem Pollak e Heinich
(2006): ele se restringe a “um número limitado de acontecimentos em resposta a perguntas
precisas. A pessoa da testemunha tende a desaparecer por trás de certos fatos, já que trata-se
de restituir a verdade perante um interlocutor que [...] é um profissional da
representação jurídica do corpo social. Os depoimentos levam consigo a marca dos
princípios da administração da prova jurídica: limitação ao assunto do processo, eliminação
de todos os elementos considerados alheios.” (2006, p. 62).
11
Martim Malamud em entrevista com a museóloga Dolores Tezanos Pinto, integrante da equipe do projeto El
Campito, 2017.
Este contexto que impõe suas determinações em todo processo, apresenta singularidades na
hora de tratar com o testemunho que resulta da experiência de ter sobrevivido ao CCD. Como foi
colocado acima, os relatos são fragmentários, parciais, incompletos dadas as condições de
encerramento. Passados quarenta anos dos acontecimentos que são tratados no contexto dos
processos judiciais, às vezes acontece que as testemunhas não se lembram de todos os detalhes que
são demandados pelos operadores judiciais, enquanto outros sobreviventes, nem tem
disponibilidade para depor perante os tribunais em função de diversas coerções morais. Dadas as
condições de clandestinidade da detenção, não existem registros administrativos sobre o
funcionamento dos CCDs. A ausência desta prova documental deve ser suprida pelo relato
dos sobreviventes que, como já se explicitou, se compõe de fragmentos dispersos.12 No
mesmo texto Pollak e Heinich (2006) destacam como “os princípios de administração da prova
jurídica eliminam do testemunho as emoções” ao ponto de transformar os depoimentos das
vítimas em uma coação a sua memória em forma de interrogatório (2006, p. 64).
Portanto, assim como acontece na realização dos dispositivos virtuais, também no contexto
das audiências por crimes contra a humanidade, a prova apresentada perante aos tribunais é o
produto da reconstrução coletiva feita pelos sobreviventes: é a partir de micro elementos aportado
por cada um deles como se reconstroem os planos completos dos CCD, os nomes dos repressores,
a relação entre os apelidos dos repressores e seus nomes verdadeiros, a relação entre estes nomes e
a imagem fotográfica deles, os apelidos ou número de identificação dos detidos que passaram pelo
campo com seus nomes reais, etc. Perante a requisitória judicial, a necessidade de dar respostas
conclusivas à pergunta dos magistrados “mas, como você sabe disto?”, os sobreviventes, que em
forma individual não conseguiam fazê-lo, mas assim que se organizaram em “Comissões”
conseguiram aportar dados concretos, provas conclusivas na reconstrução da sua
experiência individual no CCD.13 (Careaga).
No âmbito da justiça, as evidências visuais encontradas nas inspeções oculares, as
fotografias, as imagens produzidas por câmeras de vídeo, os registros audiovisuais produzidos pela
televisão, todos estes elementos participam deste espaço como prova de autenticidade do relato da
testemunha, como prova “objetiva” do relato “subjetivo” da testemunha. Neste contexto, o uso dos
documentários interativos na cena judicial emerge como um elemento inovador. Se, como coloca
Roland Barthes, as imagens contribuem à produção do “efeito de realidade” (em Burke, 2016:36)
qual lugar ocupam estes documentários interativos quando o espectador pode experimentar a vivida
impressão de estar percorrendo ele mesmo o CCD?
BURKE, P. Testemunha Ocular: o uso de imagens como evidencia histórica. São Paulo: Ed.
da UNESP, 2016.
LONGONI, A. Photographs and Silhouettes: Visual Politics in Argentina. In: Afterall Journal. n.
25, Autumn Winter, 2010.
MARTIN, N. Ejercicios de la memoria en dos obras Low-Tech. In: Anales del IX Seminario
Internacional Políticas de la Memoria. Argentina: Centro Cultural Conti, 2016.
a memória permite a relação do corpo presente com o passado e, ao mesmo tempo, interfere
no processo “atual” das representações. Pela memória, o passado não só vem à tona das
águas presentes, misturando-se com as percepções imediatas, como também empurra,
“desloca” estas últimas, ocupando o espaço todo da consciência. A memória aparece como
força subjetiva e ao mesmo tempo profunda e ativa, latente e penetrante, oculta e invasora
(SARLO, 2007, p. 93).
Por meio desta perspectiva levantamos algumas questões: Como a CNV percebe essas
relações entre passado e presente na construção dos depoimentos prestados? De que maneira a
construção das entrevistas e do próprio ambiente das audiências influência nos depoimentos? De
que modo as narrativas coletadas são transportadas para os relatórios finais? E seria preciso
esquecer algo para lembrar? Entre outras perguntas. Para tanto, dialogamos com Michel Pollak ao
O atual cenário político nacional é marcado por uma série de tensões e manifestações contra
o governo do Partido dos Trabalhadores (PT). Desde 2014, de maneira mais direta, mobilizações
tomam as ruas do país e expressam sua inconformidade e oposição à presidente reeleita Dilma
Rousseff, ao ex-presidente Lula e, de modo geral, abarcam uma rejeição aos projetos políticos de
esquerda. Não raro se verificou, nessas manifestações, a presença de cartazes, faixas e outros que
defendam a intervenção militar e a volta da ditadura. O imaginário social de determinados grupos
identifica no governo militar um meio de evitar a expansão do “esquerdismo” que se alastra pela
América Latina – na visão de muitos, visto como parte de um projeto bolivariano arquitetado pelo
“Foro de São Paulo” – e enaltecem a ditadura, as perseguições, o cerceamento e até mesmo a tortura
e torturadores, como um meio necessário para garantir a ordem no país.
Nesse sentido, devemos observar que, nos últimos anos, o tema do militarismo e das ações
desempenhadas durante a ditadura, ganhou maior evidência, em grande parte, em função dos
trabalhos da Comissão Nacional da Verdade (CNV), criada no ano de 2011, por intermédio da lei
nº 12.528, sancionada pela então presidenta Dilma Rousseff. É válido observar que outras
comissões foram estabelecidas por outras instituições em diferentes lugares do país. Os trabalhos
dessas comissões objetivavam uma ampliação nas pesquisas, descobertas e esclarecimentos dos
graves crimes e violações perpetradas contra a humanidade durante o período ditatorial.
A CNV guarda como uma de suas principais finalidades o exame e esclarecimento da
violência utilizada durante o Estado de exceção, que se serviu de perseguições, desaparecimentos,
mortes, torturas, entre outros, que denotam o que se pode classificar como Terrorismo de Estado.
Assim sendo, as comissões da verdade buscam superar a negligência do Estado brasileiro que por
anos sucessivos ignorou o passado autoritário do país. Faz-se importante mencionar que as
comissões não possuem poder punitivo. Ou seja, independente das descobertas, conclusões ou
identificação de crimes e autores, elas não possuem autoridade para sua punição. Mesmo destituída
de um caráter penal, podemos asseverar que a CNV intenta promover um julgamento do ponto de
vista da história e da memória, sendo um importante momento para permitir que o passado
realmente passe.
A CNV deve ser visualizada dentro de um panorama histórico o qual traz em si uma
série de organizações atreladas aos direitos humanos e aos familiares de vítimas da Ditadura,
conforme assinala a tese de doutorado de Glenda Mezarobba: “Um acerto de contas com o
futuro: a anistia e suas consequências: um estudo do caso brasileiro (2006)”, onde conseguimos
observar as ações da Comissão Especial de Mortos e Desaparecidos Políticos (1995), da
Comissão de Anistia (2002), bem como do Projeto Memórias Reveladas (2009). Neste ínterim,
após a criação da CNV, devemos observar que esta contou com o apoio e a criação de uma
série de outras comissões e grupos de trabalho, como, por exemplo, as Comissões Estaduais
da Verdade (CEV).
1 A justiça de transição é conceituada como o conjunto de abordagens, mecanismos (judiciais e não judiciais) e
estratégias para enfrentar o legado de violência em massa do passado, para atribuir responsabilidades, para
exigir a efetividade do direito à memória e à verdade, para fortalecer as instituições com valores democráticos e
garantir a não repetição das atrocidades (conforme documento produzido pelo Conselho de Segurança da ONU -
UN Security Council- The rule of law and transitional justice in conflict and post-conflict societies) in:
<http://escola.mpu.mp.br/dicionario/tiki-index.php?page=Justi%C3%A7a+de+transi%C3%A7%C3%A3o>
Outrossim, podemos assinalar que, no Brasil, embora a aplicação de tais medidas seja mais adequada quando
realizadas no quadro de experiências históricas em que se situam, a aplicação dessas ações não se processou, de
fato, no momento em que a transição ocorria, ainda que a experiência brasileira exija o uso desse termo com
ressalvas, pois sua aplicação é mais adequada para experiências históricas que se dão, de fato, no momento em
que a transição ocorre, o que não é bem o caso brasileiro – embora, cumpre lembrar, não sejam as únicas ações
encaminhadas pelo Estado e por outros segmentos organizados da sociedade civil (no sentido de contribuir com
atos de reparação àqueles vitimados pela ditadura).
da Verdade (CEV). Podemos asseverar que estas comissões se afixaram como importante
elemento do que se considera como sendo “justiça de transição”.1 Uma gama de controvérsias
e polêmicas que perpassam a atuação dessas comissões são reveladoras dos limites e
desafios que os trabalhos para uma efetiva justiça de transição enfrentam no Brasil, para
promover, de modo mais eficiente a luta pela verdade, pela memória e pela justiça, muitas
vezes se referendando nos exemplos chileno e argentino.
Ao pensarmos as ações desenvolvidas durante o período da ditadura civil-militar, entre
as décadas de 1960 e 80, investigando e reconhecendo este ínterim como traumático para as
vítimas de um Estado autoritário e formador de uma “cultura do medo”, devemos voltar nossos
olhares para o modo pelo qual múltiplas dimensões temporárias coexistem e como embora
tenha chegado o fim do governo ditatorial e ocorrida a transição para a democracia, uma série
de continuidades e reminiscências continuam a persistir, como assinala a historiadora
Carolina Silveira Bauer:
O que a pesquisadora busca pontuar é que o encerramento desses regimes não representa o
fim do terror e a superação dos traumas. Que na memória traumática, o passado não é passado de
modo tão simples, podendo continuar vivo no nível experiencial. A autora atenta ainda para o fato
de como ao longo deste processo forjou-se uma “ideologia da reconciliação”, que procurou a
equiparação entre a violência do Estado e da esquerda armada, objetivando uma responsabilização
geral e contribuindo, em conjunto com a neutralização moral consequente da Lei da Anistia (1979),
para uma diluição das responsabilidades, para o esquecimento, para a desmemoria e o silêncio.
(BAUER, 2015, 118-9).
Tendo em vista que os conflitos e contradições não se fecham com a comutação de um
regime político autoritário para a democracia, a seara em que a CNV se propõe a transitar perpassa
o problema do convívio com uma situação-limítrofe, um passado de experiência traumática, em um
presente democrático e que expõe a fragilidade das temporalidades delimitadas por marcos
históricos matematizados e que, muitas vezes, orientam dimensões do direito e da política.
Diante desse breve cenário, este trabalho consiste em uma análise do relatório final das
Comissões Nacional e Estadual da Verdade, procurando acenar para reflexões no que tange a
verdade, a memória, as temporalidades e os direitos humanos. Estas formulações fazem parte de
um trabalho mais amplo, que se volta para o cotejamento destes relatórios com os depoimentos
prestados em audiências públicas promovidas pela CNV, na cidade de Cascavel/PR, e bem como
com entrevistas realizadas com depoentes nestas audiências, procurando compreender como se dá
a construção das memórias desses sujeitos e pela própria comissão.
O Sr. Waldemar Torres Rosin, agricultor, residente na linha Pavão, zona rural no
município de Capanema, sudoeste do Paraná, que juntamente com os irmãos participou do
chamado Grupo dos Onze,2 foi uma das pessoas ouvidas na audiência da CEV-PR em
Cascavel. Por uma série de circunstâncias, seu depoimento é bastante breve, tendo duração de
menos de 3 minutos, cercado de nervosismo, entre outras reações por falar para um
auditório cheio e para membros de uma comissão que assume o papel de autoridade sobre
o tema, bem como pela própria condição de agricultor, homem simples o qual passou
praticamente toda sua vida no trabalho no campo. Em essência, o depoimento traz o breve
relato da ida de policiais até a casa, onde morava com a família, à procura por armas e agindo
com alguns excessos de força, relatados deste modo pelo depoente:
Aquele dia que eles bateram lá em casa, lá no meu irmão, atiraram bastante, não atingiram
em nenhum dos homens, mas atingiram uma vaca do vizinho lá em cima. Bem, no fim a
vaca morreu também. E daí chegaram lá em casa, e começaram a pedir armamento e tudo.
E foi, e foi, e foi, e a mãe deixou eles entrar em tudo, reviraram colchão, quarto por quarto,
e isso e aquilo, pedindo o armamento, mas a gente não tinha! Que armamento vai ter né?
E daí passaram dali, passaram pra debaixo da casa, e daí tinha uma tuia de feijão lá, eles
abriram a tuia de feijão... Pedindo o armamento... Derramaram tudo lá; não tinha nada.
Daí eu tava lá embaixo tratando os porcos, e vieram e pediram de novo: “onde tá o
armamento?” Digo: “Mas armamento não tem.” Daí chegou um policial e me botou o fuzil
no peito. Aí fiquei quieto e saí. Pediu de novo, de novo e revistaram minha casa tudo. E
depois, mais tarde, outro tempo depois, teve uma missa lá na localidade. Daí o padre
chamou a família Rosin de comunista. Isso foi o que nos doeu pra nós. E nós somos em
onze irmãos, irmã, e nenhum não trocou de religião até hoje. É isso aí. (ROSIN, 2016,
A/A).
Diante do depoimento prestado e das questões colocadas pelos membros da Comissão, até
mesmo de modo insistente, tem-se uma impressão de que os mesmos procuram o relato da violência
sofrida em sua forma material, isto é, a tortura, a violência física, dando pouca atenção ao sujeito e
suas experiências. Interessante mencionar que nenhum trecho do depoimento do Sr. Waldemar
aparece nos relatórios da CNV ou CEV-PR, talvez por não trazer o tipo de informação o qual a
Comissão buscava.
O Sr. Waldemar foi o primeiro depoente da audiência pública de Cascavel que conseguimos
contato. Embora tendo em mãos o endereço e o telefone do mesmo, optamos por procurar um
mediador que já tivesse amizade com ele, como forma de construir um ambiente de maior segurança
para a entrevista futura. Através de uma aluna, cujo pai, o Sr. Feltrin, era amigo do Sr. Waldemar,
iniciei os contatos, indo os três para uma primeira conversa, num domingo à tarde, no sítio da
família Rosin, na linha Pavão, interior de Capanema. Naquela tarde fomos apresentados. Conheci
a esposa do Sr. Waldemar, a casa, a área da propriedade, tomamos chimarrão e comemos pipoca
enquanto conversamos sobre vários assuntos.
Realizei uma segunda visita, numa segunda-feira, após meu expediente de trabalho, quando
mais uma vez conversamos sobre diferentes assuntos enquanto tomávamos chimarrão na área
externa da casa. Estas visitas prévias e a intermediação feita pelo Sr. Feltrin foram fundamentais
para uma aproximação maior com o entrevistado. Apesar da timidez perante o gravador, o Sr.
Waldemar ficou à vontade durante a entrevista realizada no dia 26 de março de 2016.
O Sr. Waldemar encontrava-se mais solto por estar em sua casa, ao lado de sua esposa e
assim nosso diálogo ocorreu de modo mais fluído e intenso, o que se observa na segurança e na
entonação de voz que ele empregava. Partindo das noções e compromissos éticos pontuados por
Alessandro Portelli (1997, p. 13-33), procurei me colocar na condição de quem estava “tentando
aprender um pouquinho”, procurando me despir da posição de pesquisador e professor,
reconhecendo e transferindo para Waldemar o empoderamento de quem era o detentor de um
conhecimento de que eu precisava.
Com a transcrição da entrevista em mãos, a condição de pesquisador é a que deve
prevalecer. Assim, ao leiturizar a mesma, percebemos o modo como os entrevistados são
suficientemente perspicazes para discernir o que o entrevistador quer, e quais suas intenções entre
outras. Iniciamos nossa entrevista pedindo para o Sr. Waldemar narrar sua trajetória de vida, suas
origens, infância, trabalho e afins, sendo assim respondido:
Tudo bem. Eu vim de Criciumal, com... 12 anos. Chegamos aqui e até agora estamos aí
ainda. E aquela de 64, dai nós tava aqui, morava lá embaixo e deu tiroteio em tudo aquela
ali. Foi indo, foi indo, escaparam, pegaram só um e... Daí o Antônio escapou, ficou dentro
do riozinho, da valeta ali, e o Lídio ficou ali em cima dum pé de banana lá, e nós tava aí.
O meu irmão lecionava aqui, tinha a escola aqui, aquela vez: tava cheio de aluno. Era umas
nove e meia, dez horas, quando bateram aí. A polícia daí foi, foi, retiraram e pegaram o
Antônio. Daí vieram revistar a casa ali embaixo. Tava só eu e a mãe ali né. Naquela época
era colchão de palha. Não sei se o senhor lembra disso, do colchão de palha. Daí eles
queriam saber o armamento. Foram revirando pra cá, foram revirando lá né, mas não tinha
nada. A única coisa que tinha é essa espingarda que tá ai hoje (risos). Tinha só dois
cartuchinhos carregados (risos) de passarinho ainda. Daí não acharam armamento. Foi e
foi e aí foram embaixo do porão. Tinha uma tuia de feijão... “É aqui que tá o armamento.”
Pegaram, abriram e derramaram o feijão no chão... feijão do manguá, batido a pau naquela
época né, 64. Não tinha arma, não tinha nada, batia pau, não tinha armamento, não tinha
nada. Aí me judiaram bastante lá embaixo, no chiqueiro dos porcos, diziam que eu sabia
do armamento. Sabia e sabia que o armamento tava aqui, com duas latas d’água, e foi isso
(ROSIN, 2016, A/A).
O entrevistado sabia que meu interesse em função de minha pesquisa se voltava para seu
depoimento prestado na CEV-PR. Assim, logo de início ele conduz sua fala para o acontecimento.
De modo bem mais fluído e a vontade, percebemos uma reprodução da ideia narrada na audiência,
no ano de 2014, mas com uma pulsação de sentidos e detalhes bem maiores. O Sr. Waldemar
acenava e apontava para os lugares onde ocorreu o tiroteio, onde era a escola, onde se esconderam,
onde era o chiqueiro, os detalhes da moradia, como o colchão de palha, entre outros. Os detalhes
narrados eram acompanhados de sorrisos e expressões que denotavam uma maior segurança do
entrevistado.
Não podemos afirmar se era apenas a percepção de meus interesses ou se havia uma
necessidade de falar sobre o assunto, de narrar o passado, de se fazer ouvido. Todavia, podemos
perceber o movimento que Alistair Thomson (1997, p. 56) classificou como “composição das
memórias”. Isto é, nossas memórias são compostas na relação entre passado e presente, entre
memória individual e coletiva. Nossas reminiscências são compostas de modo a dar sentido à nossa
vida, no passado e no presente, utilizando linguagens e significados conhecidos de nossa cultura.
Nesse sentido, o depoimento na CEV-PR se faz presente ao longo de sua entrevista, sendo
um elemento importante na construção de sua identidade. Não sabemos se era isso antes, mas faz
parte da atuação do Sr. Waldemar durante a entrevista, bem como do processo de construção e
composição da sua memória. Destarte, podemos perceber como se tece uma memória da memória,
e não do fato em si, isto é, da última vez em que ele lembrou do fato. Para Alistair Thomson,
memória e identidade se encontram em uma relação de grande proximidade:
Nossas reminiscências também variam dependendo das alterações sofridas por nossa
identidade pessoal, o que me leva a um segundo sentido, mais psicológico, da composição:
a necessidade de compor um passado com o qual possamos conviver. Esse sentido supõe
uma relação dialética entre memória e identidade (THOMSON, 1997, p. 57, grifo meu).
Embora na audiência não tenha mencionado com clareza o tipo de agressão sofrida, na
entrevista essa memória é composta de maneira mais organizada, dizendo que “Ai me judiaram
bastante lá embaixo no chiqueiro dos porcos, diziam que eu sabia do armamento”. Ao falar que
“judiaram bastante” as memórias de Sr. Waldemar já estão sistematizadas com maior clareza e a
partir de sua experiência na Comissão da Verdade. A reivindicação e a exposição da violência
sofrida já ocupam um espaço na narrativa do agricultor que relata com maior perceptibilidade o
acontecimento: “Meteram o fuzil no peito, me derrubaram e depois me deram uns coices, ainda”
(ROSIN, 2016, A/A).
Nesse sentido, a própria entrevista faz parte desse processo constante de composição das
memórias. O Sr. Waldemar reagiu às minhas perguntas de modo mais tranquilo e inteligível, até
mesmo se posicionando quanto ao modo como o ocorrido re-significou o presente em suas
lembranças: “Claro que marca né... quando que o senhor sai ferido e vai esquecer? Nunca mais na
vida... nunca mais esquece. Essa mancha fica pra sempre” (ROSIN, 2016, A/A), me levando a
compreender que a composição das experiências nunca se finda, ela é constantemente relembrada
e retrabalhada.
Na esteira desse entendimento, A. Thomson pontua que:
Observamos que a participação no Grupo dos Onze, a troca de tiros com a Polícia, o
episódio de violência ocorrido em sua propriedade, para além da coação física, atuam em seu caráter
simbólico, na forma de danos morais e psicológicos. Tal situação pode ser potencializada pelo fato
de envolver o padre e a igreja local. Nesse sentido, devemos analisar o papel desempenhando pela
religião, principalmente em comunidades agrárias, como um elemento que garanta uma coesão
entre o grupo social.
Para Durkheim, uma das principais características da religião é sua capacidade de unir um
determinado grupo social a partir de um sistema de crenças comuns. Já o sociólogo e teólogo Peter
Berger pontua que o “nomos estabelecido é entendido como um escudo contra o terror” (BERGER,
1985, p. 35), tecendo uma relação entre o indivíduo e a sociedade, acenando para o fato de que a
religião oferece ao indivíduo uma maneira de diferir o mundo do “pesadelo da anomia” e conservar-
se seguro.
O episódio narrado demonstra como os reflexos da ação policial e do posicionamento do
padre local mergulham a família temporariamente numa situação anômica, sendo reparado somente
após um dos irmãos, Antônio, doar um novilho para a festa da Igreja e o padre reparar a situação.
Outro ponto significativo acerca dessa questão é quando interpelado sobre o que significava
ser comunista, em meio a risos, o entrevistado assim se coloca: “Comunista, nem sei o que é”.
Diante dessas reflexões sobre os relatos do Sr. Waldemar e pensando a proposição e as
finalidades da CNV em garantir o direito à memória, a dúvida de como estas memórias foram e
serão inseridas em uma proposta mais ampla se faz presente. Outro questionamento é: que tipo de
restituição, os depoentes como o Sr. Waldemar e tantos outros têm em relação ao testemunho
prestado? Como esse trabalho se volta para eles? Será possível pensar que o depoimento prestado
permitiu ao Sr. Waldemar um processo de individuação, subjetivação ou, até mesmo, perlaboração?
Ainda na esfera dos questionamentos, pergunta-se sobre o desejo de reparação material que
aparece na entrevista concedida pelo agricultor e que parece ter sido proposto pelos membros da
CEV-PR que o procuraram:
Ah, o Elias veio aqui, né, ele e mais um; não sei qual era o outro. Me entrevistaram aqui e
aí comunicaram pra ir lá. Daí eu só falei se o rapaz ia junto e se eles iriam vir me pegar
aqui. Dai eles vieram me pegar aqui e levaram. Aí meu irmão tava junto lá em Cascavel
[...]. Mas olha, ficou certo pra eles trazer né. Tem até os papeis aí tudo, mas até hoje não
apareceu.
Mas quem deixou o papel?
Valdemar: Lá da Comissão da Verdade.
É? Eles falaram em reparação, em ressarcimento?
Valdemar: Sim, em seis meses era pra receber, e até agora... (ROSIN, 2016, A/A).
Conforme a concepção do autor faz-se necessário que os sujeitos resguardem sua memória,
mas que a possam atrelar ao pensamento racional, à liberdade e identidade cultural. Pois, assim, a
democracia conseguirá garantir o respeito às diferenças individuais e à pluralidade, bem como a
práticas participativas e colaborativas sociais e políticas.
Por fim, devemos pensar a memória a partir da necessidade de problematizar a experiência
humana em tempos de violência e crise. Muitas narrativas visualizadas até o momento trazem
consigo a memória, mas também o esquecimento e uma forte tendência retórica, as quais parecem
ser analisadas sob uma única perspectiva nos trabalhos da CNV. Nesse sentido, não está em jogo
apenas o que é lembrado e o que é esquecido, mas o trabalho de seleção do que pode ou não ser
lembrado, bem como a maneira pela qual isso deve ser lembrado e narrado, fazendo com que
experiências de privação, violação, perdas, mortes e outras, assumam sentido, justificando sua
trajetória e legitimando aquilo que se reivindica.
BERGER, Peter Ludwig. O dossel sagrado: elementos para uma teoria sociológica da religião.
trad. J. C. Barcellos, S. Paulo: Paulinas, 1985
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História da PUC/SP, São Paulo, n.15, p.51-84, abr. 1997.
Me propuse como objetivo de este trabajo estudiar y comprender las historias de luchadores
sociales del Uruguay, ex presos políticos de la dictadura cívico-militar; cómo los acontecimientos
durante la dictadura y la cárcel influenciaron en sus vidas y cuales fueron los mecanismos de
superación activados para sobrellevar esas adversidades extremas. Tuve la oportunidad de
encontrarme con estos protagonistas y oír sus historias de vida, personas especiales, que siendo de
una generación anterior tienen mucho para enseñarnos. A través de una escucha sensible y
utilizando la entrevista narrativa como instrumento, registré las particularidades de estas memorias.
Busqué una forma más objetiva y amplia para analizar estos relatos y a partir del concepto de
resiliencia, fueron identificados factores protectores que accionados en los procesos de vida, pueden
dar pautas para posibles acciones e intervenciones que ayuden a otras personas que vivan
situaciones de extrema violencia.
Es en ese sentido que la sociedad necesita hablar y revisar su historia. En el discurso de
cierre del 2º Encuentro Latinoamericano por Memoria, Verdad y Justicia, es reconocida la
importancia de buscar la justicia para validar las democracias que surgieron después de las
dictaduras. Sin la memoria, la verdad y la justicia no se consigue una democracia “entera”
(GUTIERREZ GALVEZ, 2012), y es una responsabilidad nuestra y de toda la sociedad civil
buscarlas. Los Latinoamericanos estamos juntos en esta historia de tragedia y tenemos un deber en
conjunto de exigir justicia y reparación histórica. “Debemos tener el coraje para asumir el pasado”
(GUTIERREZ GALVEZ, 2012, p. 127). Y conseguir así un presente y un futuro donde “nunca más
sucedan” esos tipos de hechos, lo que solo se consigue conociendo, comprendiendo y elaborando
el pasado.
La recuperación del pasado histórico y la defensa de los Derechos Humanos hace parte del proceso
de construcción de la memoria, factor relacionado con la identidad social y colectiva (ALETTA de
SYLVAS, 2011).
En ese sentido este trabajo también hace parte de la memoria social que, contada por los
propios protagonistas, será la base para la búsqueda de un presente y de un futuro donde las
generaciones edifiquen sus historias. Será un puente entre generaciones, siendo de esa forma de un
carácter eminentemente pedagógico.
Para Halbwachs, la fuerza y la duración de la memoria colectiva se basa en la multiplicidad
de recuerdos, recuerdos individuales que en su conjunto hacen al grupo. Siendo la intensidad del
Los entrevistados son uruguayos, pequeño país al Sur del Brasil, que con un territorio es de
176.000 km², alberga actualmente en torno de 3.500.000 habitantes (Censo 2011), Al norte tiene
frontera con La República Federativa del Brasil y al Este con Argentina. Las fuentes de ingresos
más importantes del Uruguay son la agricultura, y sobre todo, la ganadería. Esta última favorecida
por el relieve plano y de pampa suave, con muchas fuentes de agua, tiene relación directa con la
historia de sus habitantes, entre ellos indios y gauchos. Estos últimos, como sabemos presentes no
solo en lo que hoy es Uruguay, sino también en el Sur de Brasil y en la Argentina.
En este marco general, la historia presenta sus particularidades, como en cualquier sociedad.
El Uruguay, país con tradición democrática, vive actualmente en ese régimen, con dos Cámaras: el
Senado y la Cámara de Diputados. También atravesó procesos dictatoriales y caracterizándose por
un bipartidismo histórico con luchas entre caudillos. Eso todo no impidió el crecimiento social y
económico, el desarrollo cultural y político, que le dió al país características particulares en América
Latina. El Uruguay fue uno de los primeros países que legalizó el voto de las mujeres, que colocó
en práctica los derechos de los trabajadores y se caracterizó por una enraizada participación popular
a lo largo de su historia. Es un pueblo que ya desde el comienzo del siglo pasado, presenta un alto
nivel de instrucción de la población en general, con un bajo índice de analfabetismo. Sin embargo,
la crisis gradual que tuvo inicio en las décadas del 50 y 60, llevó a una crisis económica que fue
marcada por conflictos y luchas sociales que precedieron al Golpe de Estado del año 1973.
El país pasa por un proceso de militarización, que llevó a las Fuerzas Armadas a intervenir
en todas los aspectos de la vida civil. Los Derechos Humanos fueron violados de diversas formas,
se implementaron leyes y decretos que prohibían y reprimían cualquier actividad política, se
eliminaron las independencias de los poderes Legislativo y Judicial, se instauró la justicia militar y
la civil fue extinta.
Las prácticas de terrorismo de estado comenzaron en Uruguay antes del período de la
dictadura militar, pero fueron profundizadas y exacerbadas durante ésta última. Prisiones masivas
y prolongadas fueron características de ésta dictadura.
La justicia militar procesó más de 6000 personas en el recorrer de aquellos años, otras
fueron interrogadas en los centros de detención bajo el régimen de Medidas Prontas de Seguridad.
Las torturas, tanto físicas como psicológicas fueron prácticas cotidianas en estos centros de
reclusión. Las fuerzas represivas del “Plan Cóndor” organizadas por los Estados Unidos orientaba
y mantenía en contacto las acciones militares de varios países, como lo eran: Argentina, Brasil,
Uruguay, Paraguay y Chile. Lo que significó la persecución y muerte de uruguayos en otros países.
Según los datos correspondientes al año 2009, en las pesquisas de la Comisión para la Paz,
se confirmaron 168 uruguayos desaparecidos, de los cuales 32 fueron en Uruguay, 125 en la
Argentina, 9 en Chile, 1 en Bolivia y 1 en Colombia (RICO, 2009).
66 personas murieron en las cárceles uruguayas, las muertes fueron causadas por las torturas
recibidas, por la falta de atención médica y por suicidio. Además de eso, 22 uruguayos fallecieron
en enfrentamientos con las Fuerzas Armadas y otros 13 fueron secuestrados y asesinados en
Uruguay y en la Argentina.
En 1985, después de 12 años de dictadura militar, Uruguay retorna a la democracia. El día
14 de marzo, salen de las cárceles los que fueron los últimos presos políticos de la dictadura militar
uruguaya, con más de 10 años de cárcel, se enfrentaban a un Uruguay diferente del que conocieran.
El miedo, la violencia, la crisis económica, los “valores” militares habían mudado al país. Después
de haber vivido torturas físicas y psicológicas, la mayoría de los presos políticos se enfrentaría, en
la salida de la cárcel, con diferentes grados de dificultad en su reinserción en la sociedad.
Comienza un proceso de reconstrucción del país, de lucha por conquista de Memoria,
Verdad y Justicia. Proceso que todavía hoy resulta doloroso, más que es una responsabilidad y esos
valores un legado que debemos a nuestros hijos y nietos.
Conociendo a los entrevistados a través de sus historias de vida, pude apreciar como el
proceso de resiliencia se hizo presente en el recorrer de las diferentes realidades. Las dificultades y
el grado de estrés que ellos sufrieron quedaron estampados en sus discursos. La dictadura militar y
el terrorismo de estado influenciaron a todas las personas que los vivieron, tanto dentro como fuera
de la prisión. De todo ese universo, elegí para este trabajo, personas que fueron militantes políticos
y que pasaron por la situación de clandestinidad y cárcel. Buscando asi comprender las diferentes
percepciones y significados de estas experiencias, tanto como los factores de resiliencia activados.
Después de la lectura atenta de las entrevistas transcritas, aparecieron varios elementos en
común que pueden dar contribución para reflexiones sobre el proceso de resiliencia. Estos son: -
Motivación para la lucha social, - Experiencia de persecución y cárcel política, - Tortura: ¿cómo
aguantaron? y - El después de la cárcel y su reinserción en la sociedad.
En este trabajo analizaremos la experiencia en la cárcel y el enfrentamiento con la tortura.
[...] influenció en todos los aspectos de mi vida, porque además después que salimos,
nosotros seguimos militando.... Y yo, toda la experiencia que hice de diferentes tipos en la
cárcel, como toda experiencia de vida, la aplico, en mi vida cotidiana, en la militancia, y
en su práctica. (Nibia).
Nibia estuvo presa por 11 años, entrando con 19 años y saliendo con 30, vivió muchas
experiencias y no hace separación de lo aprendido en el recorrer de su vida:
[...] y bueno, también aprendimos... a mí me marcó mucho el tema de los valores, que uno
reforzó y también aprendió adentro. Toda la vida colectiva, el ser solidarias [...]. (Nibia).
Chela también cree que la cárcel la marcó para siempre, habla de la importancia de los
compañeros:
[...] yo creo que te marca para siempre, primero te digo, que antes que nada están mis
compañeros... que vivieron lo mismo. A veces no precisa ni palabras, solamente con un
gesto ya sabemos lo que queremos decir, y eso a mi me marcó para siempre, para siempre
[...]. (Chela).
Hay un antes y un después de todo eso. Creo que uno en la vida, no se termina de conocer
hasta que no pasa una experiencia traumática... Bueno, entonces, el máximo, el extremo
mayor, del intento de otro ser humano contra ti... yo empecé a ver muchas cosas diferentes.
Para Baldemar, las secuelas, tanto psicológicas como físicas quedaron, de alguna forma, en
todos los que sufrieron la cárcel y la represión. Relata casos de compañeros que no consiguieron
superar la situación y se suicidaron.
Todos llevamos, raya más o raya menos, como le decimos, todos llevamos las secuelas,
que se cuelan en nosotros, no? Muchos con problemas psicosomáticos... muchos en
tratamiento psiquiátrico o compañeros que tenían que estar medicados y salieron, y les
costó readaptarse porque las secuelas de eso te quedan. (Baldemar).
En relación a la tortura, los entrevistados mostraron como fue y todavía es difícil hablar de
ese tema. Muchas personas solo consiguieron hablar de eso más de 10 años después de haber vivido
ese estrés extremo. Algunas hasta hoy prefieren no hablar.
Los entrevistados pertenecen al grupo de los ex presos políticos que se movilizan
activamente por Verdad y Justicia, haciendo denuncias en todos los ámbitos que la sociedad abrió
para eso, a nivel nacional e internacional.
Cuando fueron cuestionados sobre la fuerza que los ayudó a aguantar la tortura, todos ellos
dijeron que tanto la familia como el colectivo fueran fundamentales en la voluntad de continuar
viviendo. Además de su propia historia de vida y de su ideología. Nibia nos contó como su
embarazo fue importante para sustentarse frente a la tortura:
En ese momento era lo que me seguía uniendo al afuera, lo que me seguía uniendo a pensar
en un futuro, lo que te seguía motivando frente a tanto dolor, a tanta derrota... a tanto, tanto
golpe [...] Entonces para mí fue un milagro mantener el embarazo, que se me hubiera
mantenido. (Nibia).
Para Chela también la familia y la hija fueron importantes:
Bueno, a mí, desde que me agarran, me ponen, no solamente, capucha, sino algodón,
venda y capucha. Después de ahí yo ya no supe quien era, porque ellos lo que tratan de
hacer es que vos pierdas tu identidad, que vos no seas quien sos. Y hacen todo para que
vos enloquezcas... y ahí vos apelás a todo, a todo lo que vivístes, lo que es tuyo y lo que
vos podes en ese momento. Por eso yo digo que a mí, los compañeros cañeros, este... junto
a mi hija y junto a mis viejos, me sostuvieron en los momentos más difíciles. (Chela).
En el caso de Ivonne, tanto los compañeros como la ideología fueron importantes, más en
último caso fue la familia y la madre que se hicieron presentes en su interior para conseguir
sobrellevar ese momento:
A mí los factores que me ayudaron a pasar los momentos más difíciles, fue el saber que
tenía compañeros y compañeras, gente que me apoyaba, que no estaba sola y nunca iba a
estar sola... el saber que era parte de un colectivo, de una parte importante de la sociedad
que queríamos lo mismo. (Nibia).
Nuestras estrategias pasaban mucho por... ubicarnos en que nosotros estábamos de un lado
de la reja y los milicos del otro. Entonces teníamos que recomponernos entre nosotras para
enfrentar esa política de represión... Siempre sintiéndonos militantes, siempre sintiendo
como frente de lucha también adentro de la cárcel, planteando conductas de resistencia.
(Nibia).
La historia de vida de cada uno fue una herramienta en los peores momentos, así como su
ideología.
Me ayudó mi propia, elemental ideología, mi conciencia de clase... También lo que fui
aprendiendo, la generosidad, el tema de la solidaridad de las personas, el saber que podés
contar con ellas, el afecto, los valores. (Nibia).
Lo que me ayudó, para mí el hecho de yo haber vivido con tantas carencias, viendo el
sufrimiento de mis padres, ya no había cosa tan difícil, y además de eso yo estaba
convencida de lo que estaba haciendo. (Chela).
Entonces, la historia fue quererse a si mismo, y decir... a pesar de todo, ellos no pueden
ganar porque ahí si es un desastre total. Y bueno, capaz que mi granito de arena es tratar
de sobrevivir. Eso es una primera parte y tiene que ver con la vida, con la familia. (Ivonne).
[...] vos tenés muchas cosas que te ayudan a sobrevivir: recordando momentos... o
creándote un mundo como hizo un compañero... Cada uno tiene formas para aguantar, vas
creando formas [...]. (Baldemar).
Los factores que me ayudaron a pasar por eso, yo creo que lo ideológico es fuerte, en lo
interno de uno, después los factores externos son la familia, que pesa mucho, tener una
compañera, tener un hijo, el haber podido reconstruir todo eso... y el apoyo de la familia.
También la comunidad, el haber tenido amistades también. Eso es lo de más valor.
(Baldemar).
Lo que ellos llamaron de “instinto de supervivencia”, fue clave en los peores momentos, a
pesar de que a veces sentir voluntad de morir.
Te aferrás a la vida en esos momentos, aunque no pensaras eso, en los hechos lo hacés...
luchas por sobrevivir... es el instinto de sobrervivencia que tenemos. (Baldemar).
[...] pensás que no vas a aguantar, pero tu instinto de conservación se magnifica, se
engrandece y lográs sostenerte frente a situaciones que nunca imaginabas que ibas a
aguantar. (Nibia).
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Renata Santos Maia*
Na América Latina, cada vez mais mulheres cineastas vêm lançando luz sobre questões
relacionadas à violência, à desigualdade de gênero e à sexualidade. Nomes como Anna Muylaert,
Lucía Puenzo, Lucrecia Martel e Claudia Llosa estão ganhando uma maior projeção por abordar
em seus filmes problemas sociais dos seus países.
Claudia Llosa, cineasta cuja obra foi selecionada aqui para ser estudada, nasceu em Lima,
no Peru, no ano de 1976. Diretora, roteirista e produtora, ela iniciou sua carreira cinematográfica
com o longa-metragem Madeinusa (2006). Seu segundo filme, La teta asustada (2009), que será
discutido a seguir, conquistou o Urso de Ouro e o prêmio FIPRESCI (Federação Internacional da
Imprensa Cinematográfica) no Festival de Berlim, em 2009. No ano seguinte, Llosa dirigiu El
niño pepita (2010). Em 2011, foi a vez do curta-metragem Loxoro, também premiado no Festival
de Berlim (com o troféu Teddy Bear). Seu trabalho mais recente é o longa-metragem No llores,
vuella (2014).
Na elaboração da maior parte dos seus filmes é perceptível a influência do neorrealismo
italiano com temas ligados ao cotidiano, a constante presença de atores não profissionais e a
escolha de locações reais para a gravação das cenas; há também denúncias envolvendo a
realidade social peruana com ênfase em questões como o abuso sexual, a opressão e a violência
contra as mulheres e LGBT’s. Esses elementos do neorrealismo somam-se a aspectos
do realismo fantástico1 que aparecem em algumas cenas de La teta asustada e serão
ressaltados em partes do texto.
O objetivo deste trabalho é, portanto, pensar as implicações das relações de gênero na
construção social da memória sobre um momento dramático na vida da mãe de Fausta (personagem
principal do filme La teta asustada), interpretada pela atriz Magaly Solier, e como a questão
geracional atuou na transmissão e manutenção dessa memória.
Para além dessa questão norteadora, este trabalho busca ainda problematizar a persistência
da cultura do estupro nas práticas da sociedade latino-americana; pensar os feminismos e as
resistências na América Latina a partir dos debates sobre pós-colonialidade e decolonialidade;
2 O título do livro remete para o absurdo que foi o conflito interno no Peru, onde os assassinatos começaram
a ocorrer “entre próximos”, entre vizinhos, entre amigos. A temática discutida nesse livro se desdobrou na
pesquisa desenvolvida por Kimberly Theidon, pela Universidade de Harvard, intitulada La teta asustada: una
teoria sobre la violencia de la memoria.
sexual adquiriam, através do leite materno, um mal a que chamavam de “la teta asustada”. Tal
moléstia era caracterizada, de acordo com o mito indígena, pelo medo, pela reclusão e pela
ausência da alma que, em função do trauma sofrido, teria se escondido sob a terra. Esse
misticismo que participa da emergência e manutenção no inconsciente coletivo desse
fenômeno, faz lembrar os surtos que atormentavam a comunidade fictícia de Macondo, como
a peste de insônia e esquecimento que atingiu o vilarejo descrito em Cem anos de Solidão3, e
tanto o caso literário quanto a abordagem desse fenômeno social no filme podem ser
considerados aspectos do realismo fantástico.
As “memórias tóxicas” e a incapacidade de alimentar a vida que geraram fizeram com que
essas mulheres se constituíssem em uma corporificação histórica do sofrimento, como afirma
Theidon:
Quando me lembro das muitas mulheres que temiam dar de mamar a seus bebês e lhes
passar seu “leite de pena e preocupação” — me parece que nos oferecem um exemplo
eloquente de como as memórias dolorosas se acumulam no corpo e como alguém pode
literalmente sofrer os sintomas da história. Reitero que as memórias não apenas se
sedimentam nos edifícios, na paisagem ou em outros símbolos desenhados para propiciar
a recordação. As memórias também se sedimentam em nossos corpos, convertendo-os em
processos e lugares históricos. (THEIDON, apud SELEM, 2009, p. 5).
Fausta, afetada indiretamente pela referida violência, percebe o mundo de forma hostil,
especialmente a figura masculina em função do medo que lhe foi imputado pelas lembranças
transmitidas pela mãe. E foi justamente por temer ser estuprada que a moça introduziu na vagina
uma batata que, no decorrer do tempo, começa a germinar e lhe causar dores e inflamações no útero
- fato que só é revelado à família quando ela é levada às pressas para o hospital depois de sofrer um
desmaio e ter sangramentos no nariz.
A batata, destaque já no cartaz de divulgação do filme, possui nessa história múltiplos
sentidos. Originária do Peru e símbolo de prosperidade, ela foi um dos principais alimentos das
populações andinas, desde a civilização Inca, tendo sido não só levada para a Europa e incorporada
à sua dieta, mas também apropriada pela cultura colonizadora promovendo um apagamento da
memória de sua origem, tanto que muitos a denominam de “batata inglesa”, em um paradoxo
lamentável.
Para Fausta, o tubérculo representa proteção, como ela mesma expressa, diante da
incompreensão familiar do seu gesto, na frase: “O tio não me entende, mamãe; eu levo isto como
proteção. Eu vi tudo de seu ventre; o que lhe fizeram, senti sua aflição. Por isso levo isto, como um
escudo de guerra, como um tampão. Porque só o asco detém os asquerosos”. Na imagem que
3 O livro Cem anos de Solidão é um romance escrito por Gabriel Garcia Márquez, ganhador do Prêmio Nobel
de Literatura, que utiliza o realismo fantástico para construir uma narrativa que envolve conflitos, medo e
solidão na feitura da história de uma estirpe, os Buendía, que pode ser interpretada também como a história
genealógica da própria América Latina.
ilustra o cartaz do longa-metragem, Fausta está imersa até os ombros entre as batatas que
transmitem a sensação de defesa, mas também de sufocamento, como se fossem tragá-la para o
seu interior. Esse vegetal assume, assim, na narrativa, a conotação de extraordinário, como se
fosse ele próprio também uma personagem, embora seja, ao mesmo tempo, algo incorporado ao
cotidiano de Fausta como parte de seus cuidados genitais, tanto que ela se põe a podar os brotos
como uma tarefa rotineira.
Para Claudia Llosa, a batata
tem toda uma simbologia que a relaciona com as raízes, que luta por não perecer, por se
manter vivo, creio que a batata significa isso, porém ao mesmo tempo é um estorvo, esse
passado que não passa, que não nos permite avançar, que não nos permite evoluir, e
acredito que isso é a paródia da história, que somos o que somos porque temos a história
em nossas entranhas, que a história e seus conflitos precisam renovar-se senão não nos
deixam avançar livremente, não nos deixam revolucionar. (Visiones femeninas: Claudia
Llosa y la representación de la mujer en el cine”. Entrevista em CAMON, Caja
Mediteráneo, apud SELEM).
4 O quéchua é uma língua indígena, oriunda do Império Inca, e reconhecida oficialmente como idioma peruano.
É falada também por grupos étnicos do Equador, Bolívia, Chile, Colômbia, e em menor escala também na
Argentina.
que estão sempre mais presentes são também os mais gravados na memória dos grupos mais
chegados a nós”, por isso “cada memória individual é um ponto de vista sobre a memória coletiva,
que este ponto de vista muda conforme o lugar que ali eu ocupo, e que este lugar mesmo muda
segundo as relações que mantenho com outros meios.” (HALBWACHS, 1990, p. 51). O mesmo
movimento dá-se com Fausta, que toma como sua uma memória que pertence à mãe, quando afirma
ter visto todo o suplício de Perpetua de dentro do ventre materno.
O relato da genitora serve não só como um alerta para a filha, para que o mesmo não lhe
aconteça, como é também uma necessidade de que a experiência dolorosa por ela vivida não caia
no esquecimento, já que permaneceu impune, como se percebe na fronha do travesseiro em que
está apoiada. A imagem é emblemática, tanto pelo apelo que traz no bordado: “no me olvide” (“não
me esqueça”), quanto pelo fato de ser o local onde se repousa a cabeça e metaforicamente também
as lembranças.
Essa luta contra o esquecimento, que Perpetua teme ocorrer com o fim iminente da sua vida,
é reiterada em sua fala, quando Fausta tenta convencê-la a se alimentar: “Comerei se cantar para
mim, e regar esta memória que se seca. Não vejo minhas lembranças, é como se já não vivesse”.
Percebe-se aqui o que argumenta Michel Pollak (1989, p. 5) a respeito do processo de resistência
operado pela memória de uma sociedade civil que, impotente diante do silêncio imposto a algum
acontecimento traumático do passado, “transmite cuidadosamente as lembranças dissidentes nas
redes familiares e de amizades, esperando a hora da verdade e da redistribuição das cartas políticas
e ideológicas”.
Existe nessa transmissão de lembranças entre Perpetua e Fausta, além da marca do gênero
– já que são duas mulheres atormentadas pelo medo de um crime que atinge sobretudo o feminino
–, o peso da relação geracional, de mãe e filha. Essa situação vai ao encontro da assertiva de
Alejandra Oberti ao lembrar que “los lazos que unen la sucesión de generaciones son el vehículo
de transmisión de historias, tradiciones e creencias, así como también el lugar donde se producen
identificaciones y se crean identidades.” (OBERTI, 2006, p. 73).
A forte ligação entre mãe e filha faz com que esta não rompa o elo nem após a morte da
mãe. E a determinação de sepultá-la na terra natal leva ao desenrolar da trama. Com o firme
propósito de cumprir o que considera ser um último desejo de Perpetua, além de ser também um
aspecto importante no rito fúnebre dessa cultura sepultar os mortos no local em que nasceram,
Fausta, juntamente com outras mulheres da comunidade em que vive, embalsama o corpo da mãe
e o guarda debaixo da própria cama, enquanto vai em busca de um emprego que lhe permita garantir
o valor necessário para o enterro.
A respeito dessa cena, Maria Célia Orlato Selem (2013, p. 223) assinala que esse momento
de sociabilidade “traz à tona o papel das mulheres da comunidade: o cuidado do corpo-memória”,
já que no período dos conflitos armados, as pessoas assassinadas precisavam ter seus corpos
conservados para servir como prova, diante das autoridades, das atrocidades cometidas pelos
militares e pelos guerrilheiros. De forma análoga, “o corpo de Perpetua perdura na narrativa,
portanto, como o signo da memória que é imobilizadora, mas que, pela força do aconteci-
mento vivido, não pode ser apagada.”.
A melancolia e o pavor que se abateram sobre uma geração de crianças, fruto do
terror, não eram provavelmente transmitidos pelo leite (ou pelo menos não só por ele), e
sim, pelas lembranças de suas mães que, com o recurso da emoção,5 imprimiram na
memória delas, ainda que de forma involuntária, essa dor desde a infância. Mesmo
cogitando a possibilidade de que esse leite materno fizesse realmente mal aos bebês, já que
os corpos produzem e excretam substâncias específicas quando estão submetido a situações de
estresse ou perigo, teriam sido de toda forma as emoções sentidas por essas
mulheres, as responsáveis por manifestar, através do referido líquido, os sentimentos
de aflição, tristeza e desgosto percebidos nas suas crias.
Diante da impossibilidade de uma ação política efetiva, que levasse à punição
dos agressores, restou a essas mulheres o uso de suas próprias emoções e lembranças como
formas de resistência, culminando na criação desse mito que passou a ser um fenômeno
estudado na Antropologia, no cinema e também na historiografia. Ou seja, essas mulheres
encontraram uma agência, uma maneira de subversão, para tornar público um incômodo que
estava antes somente na esfera privada.
Outro aspecto determinante na narrativa de Perpetua é o fato de ser ela uma pessoa
idosa, estágio da vida em que ser humano assume “uma função própria: a de lembrar. A de ser a
memória da família, do grupo, da instituição, da sociedade” (BOSI, 1994, p. 63). Por isso, “ao
lembrar o passado, ele/ [ela] não está descansando, por um instante, das lides
cotidianas, não está se entregando fugitivamente às delícias do sonho: ele/ [ela] está se
ocupando consciente e atentamente do próprio passado, da substância mesma da sua
vida.” (BOSI, p. 60).
Enquanto Perpetua insiste na manutenção da sua memória, várias mulheres
entrevistadas por Theidon (2004) acreditavam não valer a pena remexer nos traumas do
passado, temendo, ao recordar o que lhes aconteceu, martirizar novamente seu corpo. De
acordo com a antropóloga, há nessas comunidades uma “divisão do trabalho emocional” a
partir do gênero em que são as mulheres as responsáveis por incorporar a dor e o luto,
especialmente em anos difíceis.
Por causa disso, criou-se no registro das histórias de guerra uma heiroicização
masculina e uma vitimização feminina, apesar de elas terem participado das patrulhas
camponesas e, ainda, atuado em posições de comando no combate à dominação senderista e
também à violência militar. Nas próprias aldeias, há relatos de como as mulheres saíram em
defesa das suas comunidades, suas famílias e de si mesmas. Outra forma de atuação feminina,
nesse período, foi a submissão de seus corpos em troca da vida de entes queridos, pois, não
raro, pessoas dos povoados eram acusadas de serem terroristas por membros do Exército e,
para serem liberadas, era exigido em troca o sexo forçado com suas filhas, esposas, irmãs ou
vvv
5 “Os estudos sobre emoções e afetos e sua influência na sociedade, na cultura e na política têm
emergido recentemente como um novo campo, que para alguns constitui um giro afetivo ou giro emocional
[...]. Trata-se de focar o olhar nas emoções, afetos, sentimentos, como parte da experiência humana, de procurar
uma compreensão do social que inclua essa dimensão nos estudos.” (WOLFF, 2015, p. 977).
mães. Mesmo assim, elas acabaram invisibilizadas no discurso oficial. Até na Comissão da
Verdade e Reconciliação essa dicotomia se fez presente, tanto que nas audiências públicas
nenhuma mulher testemunhou, e quando chegaram a estar presentes, foram pejorativamente
chamadas de “choronas” (THEIDON, 2004).
O filme aborda várias críticas sociais, e a mais explícita delas é a exploração dos indígenas
pelos descendentes europeus, mostrando como os resquícios da colonização espanhola ainda estão
fortemente entranhados na sociedade peruana, como acontece ainda hoje também em outros países
da América Latina.
Um dos momentos em que essa situação pode ser percebida se dá na relação estabelecida
entre Fausta e sua patroa, Aída, uma mulher branca da elite que explora a mão de obra da doméstica,
pagando um valor irrisório pelo serviço prestado. Além disso, antes mesmo de ser contratada,
Fausta é inspecionada da mesma forma que se fazia com os negros quando comercializados como
escravos até o século XIX: tem seus dentes avaliados, e orelhas, mãos e pescoço também são
examinados para averiguar sua limpeza. Depois de estabelecida a relação contratual, a patroa, que
é pianista, se apropria das canções da doméstica em troca das contas de um colar de pérolas, que
vão sendo dadas às prestações, conforme as melodias são ensinadas, em uma espécie de escambo
contemporâneo.
Em outra cena, o piano aparece jogado no quintal, depois de ter sido arremessado através
da janela pela encolerizada Aída. Mesmo completamente despedaçado, o instrumento continua a
emitir sons melódicos – mais um toque de realismo fantástico, produzindo a ideia de que também
as opressões e subalternidades continuam a ecoar, desde o período da colonização até a
contemporaneidade, na vida das populações latinas.
Essa relação de exploração remete ao que Aníbal Quijano chama de “colonialidade do
poder”, em que mesmo com o fim do colonialismo permaneceram resquícios dessa dominação
europeia na América Latina. Para ele, “a estrutura de poder foi e ainda segue estando organizada
sobre e ao redor do eixo colonial”, sendo que essa estrutura continua exercendo seu domínio contra
a democracia, a cidadania e o Estado-nação moderno, atingindo de maneira cruel a população
formada por índios, negros e mestiços. (QUIJANO, 2005, p. 136).
É nesse sentido que foi cunhado também o termo “decolonial”, historicizado por Luciana
Ballestrin (2013) como um conceito que sintetiza a permanência da colonialidade em diferentes
níveis da vida pessoal e coletiva e com dimensões imperialistas relacionadas ao ser, saber e poder,
uma crítica a uma situação que não foi completamente superada e que continua a gerar formas de
subordinação.
Por causa dessa permanência dominadora emanada desde a exploração colonial é que Anne
McClintock problematiza os termos “pós” e a ideia de superação do colonialismo, sinalizando
também para o neocolonialismo exercido pelos Estados Unidos, que tem assumido diversas facetas
(militar, política, econômica e cultural). Para ela, o termo pós-colonial ajuda a perpetuar a oposição
binária entre colonial/pós-colonial, e por isso, também, ela tece uma crítica à falta de multiplicidade
no uso deste termo, pois cada país que já foi colônia experimentou essa condição de formas
peculiares e diversas. E mais, “orientar a teoria em torno do eixo temporal colonial–pós-colonial
torna mais fácil não ver e, portanto, não teorizar, as continuidades nos desequilíbrios internacionais
em termos de poder imperial.” (MCCLINTOCK, 2010, p. 33).
Nesse ponto, McClintock insere uma questão de gênero, pois o termo se torna ainda mais
instável em relação às mulheres, já que elas vivem uma desigualdade bem mais cruel, onde “a
militarização global da masculinidade e a feminização da pobreza asseguraram que as mulheres e
homens não vivam o pós-colonial da mesma maneira, nem partilhem a mesma condição pós-
colonial singular.” (MCCLINTOCK, 2010, p. 34). No mesmo sentido, María Luisa Femenias
(2007) sinaliza para a dupla inferiorização que sofrem as mulheres das etnias subjugadas na
América Latina: ante a seus próprios companheiros étnicos, e em relação aos homens e mulheres
brancos em geral.
Esse traço do gênero fica impresso com maior força ainda em períodos de conflito civil
como o ocorrido no Peru, onde os corpos femininos são reificados e passam a ser símbolos de
conquista e demarcação do poder masculino dentro do território. É nesse contexto que proliferam
os casos de estupro, já que “tem sido constitutivo da linguagem das guerras, tribais ou modernas,
que o corpo da mulher anexe-se como parte do país conquistado. A sexualidade investida sobre o
mesmo expressa o ato domesticador, apropriador, quando insemina o território-corpo da mulher.”
(SEGATO, 2005, p. 278-9).
Rita Laura Segato assinala que o estupro, como ato de dominação física e moral do outro,
tem como intenção aniquilar a vontade da vítima, sendo alimentado por uma necessidade dos
agressores de reafirmarem a sua virilidade continuamente e assegurarem o controle desses corpos.
Por isso, muitas vítimas de violações no caso do terrorismo no Peru, ao contrário de seus
companheiros, permaneceram vivas como meio de reafirmar a marca do poder masculino. Ao
mesmo tempo, como também ocorreu com Perpetua, aplica-se, além do abuso físico, também a
tortura psicológica, pois “é por sua qualidade de violência expressiva mais que instrumental –
violência cuja finalidade é a expressão do controle absoluto de uma vontade sobre a outra – que a
agressão mais próxima do estupro é a tortura, física ou moral.” (SEGATO, 2005, p. 271).
Os casos de estupro coletivo passaram a ser sistemáticos durante esse período de guerra no
Peru, criando uma espécie de fraternidade letal entre os soldados, principais perpetradores desse
tipo de crime na época, que forjou laços de brutalidade e banalizou a violência. Havia ainda a
necessidade de tornar mais explícitas as violações aplicadas por eles, por isso as mulheres vítimas
tinham seus cabelos cortados para que não restasse, diante da comunidade, dúvida alguma do ato
cometido. Para Theidon (2004, p. 122), “el acto de violación fue una manera de establecer jerarquías
de poder entre los grupos armados y la población, y también dentro de las fuerzas armadas mismas.
Fue común el forzar a los hombres de una comunidad a observar mientras los soldados violaban a
sus esposas, hijas o hermanas.”
As mulheres violadas, durante o conflito interno peruano, sofreram múltiplas formas de
violência além da sexual, pois passaram a carregar o estigma da vergonha, sendo alvo de falatório
dentro das suas comunidades; várias foram abandonadas pelos companheiros e tiveram que criar
sozinhas os filhos e filhas nascidos dessa violência.
Esses crimes, como explicitam o filme de Llosa e o trabalho antropológico de Theidon,
atingem principalmente mulheres de etnias massacradas e de classes exploradas ao longo da história
latino-americana, e são resultantes do cruel predomínio dos valores patriarcais e da misoginia. No
caso peruano, as maiores vítimas foram as indígenas residentes no perímetro rural e que ainda
aguardam por justiça e por alguma reparação.
Esses casos de violência sexual, assim como em outros países latinos, principalmente nos
períodos de ditadura, só vieram a público depois que as mulheres sobreviventes decidiram revelar
os suplícios que sofreram, por isso é tão importante não deixar que essas histórias sejam silenciadas
ou esquecidas, mesmo porque a cultura do estupro continua a ser um grave problema social e de
gênero a ser enfrentado em todo o continente americano.
Com um cinema engajado, crítico e autoral, Claudia Llosa, em suas entrevistas, fala do
compromisso, como cineasta, com a história do seu país, sua cultura e sociedade,
principalmente ao tratar de um tema que possui tantas arestas e pontos de vista. Atenta para o
potencial do cinema e sua magnitude para colocar em evidência o país, ela acredita que ainda é
muito tímido o investimento do Estado nesse campo, que carece também de reconhecimento
pela conquista de prêmios como o do Festival de Berlim.
Perguntada sobre o cerne desse seu filme, a diretora afirma que ele intenta falar sobre a
complexidade do país, a coexistência e o distanciamento entre a capital, Lima, e o mundo
andino e o quão difícil é a convivência entre esses universos distintos. Ao tocar nessa ferida
aberta, Llosa aponta que as vítimas do terrorismo “não só não foram compensadas ou
consoladas, mas, ao contrário, sofreram uma marginalização porque, para a sociedade, eram
uma recordação da barbárie. Nesse sentido, La teta asustada também fala da dificuldade de
enterrar o passado” (MUJERES EN RED, 2009). Entretanto, antes de ser um filme de denúncia,
Claudia Llosa o entende como uma tentativa de entendimento, reconciliação e perdão.
Mesmo sendo um drama, Llosa insere na obra pitadas de irreverência ao longo da
história, como na cena em que Fausta é cortejada, durante o noivado de sua prima, por um dos
convidados. O incauto rapaz, tentando demonstrar seu interesse, solta a seguinte cantada: “se
vermelho for a cor da paixão, banha-me com a sua menstruação”, ao que Fausta afasta-se
horrorizada com a insólita declaração.
Outro aspecto jocoso é o empreendimento comercial da família de Fausta: um buffet
móvel contratado por noivos que não dispõe de muito dinheiro, e que por isso não dá direito
aos convidados desfrutarem da comida – que na maioria das ocasiões é mesmo cenográfica,
servindo apenas para aparecer nas fotos e sendo recolhida na sequência.
Apesar do sobrenome ilustre que a liga ao tio, o escritor Mario Vargas Llosa, e que
poderia ser interpretado como um facilitador do seu trabalho no país, a cineasta possui uma
difícil relação política em função das suas críticas. Para ela, o Peru rico se esconde
hipocritamente sob os muros erigidos para separar os bairros das classes abastadas.
Claudia Llosa e Magaly Solier se conheceram enquanto a diretora procurava locações
para rodar seu primeiro longa-metragem, Madeinusa (2006). Depois de trabalharem juntas, as
duas tornaram-se amigas e Solier sublinha o decisivo incentivo que recebeu de Claudia para
estudar música formalmente e gravar seu próprio disco. Vale ressaltar que Magaly não era atriz
antes de enveredar pelos caminhos do cinema.
Além de protagonizar dois grandes sucessos fílmicos de Claudia Llosa, Magaly Solier é
também cantora e ativista social, através de projetos pessoais envolvendo música, e como
representante da Unesco em defesa da cultura e da paz e contra a violência que sofrem milhares de
mulheres peruanas. De origem indígena e nascida em Ayacucho, região bastante atingida pelo
terrorismo, ela viveu de perto o drama retratado no filme que protagonizou.
Em entrevista ao El País, Solier fala do cotidiano violento em que nasceu e cresceu e da
falta de apoio do governo peruano ao cinema. Através de seus relatos fica claro que não é só a
violência urbana que atravessa a vida dos peruanos, mas também a institucional. Magaly conta que
aos quatorze anos de idade teve os ossos dos quadris quebrados como castigo por ter se atrasado
para um desfile da escola em que estudava. Foi quando, impossibilitada de desempenhar as
atividades antigas, por conta da recuperação, dedicou-se de forma mais intensa à música.
Outro ponto forte na entrevista é a referência ao momento em que discursou no idioma
quéchua na premiação de La teta asustada em Berlim. Com essa atitude, a atriz deixou claro o
compromisso da sua arte e a quais interlocutores/as era direcionada a sua fala. Para ela, essa atitude
foi importante para estabelecer uma conexão com os antepassados a fim de manter viva a sua
identidade cultural:
No Peru, é triste ver que crianças da atual geração já não falam quéchua por culpa do
terrorismo, porque as pessoas que falavam a língua eram tachadas de terroristas ou
simplesmente porque são discriminadas [...]. Amo o quéchua e quando falei e cantei em
Berlim era porque queria fazer esse prêmio chegar a todos os peruanos que falam o meu
idioma. (EL PAÍS, 2016).
Ser mulher na América Latina e buscar através da arte e da cultura ter voz e se expressar
não é tarefa fácil. Apesar disso, Claudia Llosa e Magaly Solier são exemplos do que é capaz a
obstinação de duas mulheres que dedicam o seu trabalho ao resgate da história de seu país.
Os estudos desenvolvidos sobre a América Latina, sejam eles cinematográficos, literários
ou historiográficos, apontam para a persistência das violências incididas, sobretudo, sobre os corpos
femininos, e ao mesmo tempo, para um esquecimento das marcas que essas violências deixaram e
a prevalência da impunidade.
A trajetória de Fausta, essa lúgubre figura que vive atormentada pelo espectro do estupro,
representa o estigma que passou a perseguir as pessoas nascidas das violações, e evidencia o quanto
esse crime é temido pelas mulheres, especialmente na América Latina, mas que é, ao mesmo tempo,
um problema social enfrentado em todo o mundo, conforme dados da ONU, que apontam que a
cada dez mulheres, pelo menos uma já foi vítima de estupro até os vinte anos.
A atuação de um grupo que espalhou o terror e, junto com o próprio Estado, massacrou e
coagiu milhares de pessoas mostra o quão frágil é a democracia e a aplicabilidade da lei no país.
Esse quadro é agravado pela impunidade, pelo preconceito e a vergonha que envolvem as vítimas
dos crimes de violência sexual e seus descendentes.
As questões abordadas neste trabalho remetem a temas muito enraizados na sociedade e,
por isso mesmo, fazem parte dos estratos mais profundos, altamente naturalizados, cuja
ultrapassagem demanda tempo e esforço. Há ainda um longo caminho a percorrer em busca de uma
sociedade menos desigual e com mais empatia, onde o medo e a dor não sejam sentimentos a
martelar na memória das pessoas.
BOSI, Ecléa. Memória e sociedade: lembranças de velhos. 3 ed. São Paulo: Cia das Letras, 1994.
OBERTI, Alejandra. La memoria y sus sombras. In: JELIN, Elizabeth; KAUFMAN, Susana.
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As pesquisas relacionadas com a História Social do Trabalho são muitas, porém poucas
contemplam o período da Ditadura Civil-Militar no Brasil. Defronte essa avaliação, propomos uma
discussão a partir da análise de entrevistas feitas com base na metodologia de História Oral, com
dois trabalhadores e ex-membros do Sindicato dos Trabalhadores na Indústria do Calçado, de Novo
Hamburgo, Rio Grande do Sul. Essas fontes foram produzidas a partir de pesquisas individuais com
questões diferentes, mas complementares, que se cruzaram. O resultado desse encontro foi o
compartilhamento de leituras e de fontes, entre essas, as entrevistas com trabalhadores das
indústrias de calçados e com sindicalistas do setor. O período privilegiado pelos encontros foram
os anos de 1970 e 1980. Apesar das perguntas não serem dirigidas especificamente para o tema, a
distinção entre “o novo e o velho sindicalismo” esteve presente de modo significativo no processo
de rememoração desses sujeitos.
Tendo em vista esta “unidade narrativa” (ALBERTI, 2004) nas entrevistas, mesmo que não
seja o objetivo principal das pesquisas em andamento, decidimos compartilhar impressões e
analisar a importância desse período para os entrevistados. Buscamos observar a memória como
um processo e entender como os narradores constroem a distinção e as aproximações entre as
gerações de sindicalistas que estiveram à frente do Sindicato dos Trabalhadores do Calçado de Novo
Hamburgo. Consideramos que o “velho” não é substituído repentinamente pelo “novo”, mas é o
resultado de uma significativa transição histórica, marcada por tensões.
Eder Sader (1988, p. 17) inicia sua análise sobre as “novas configurações sociais assumidas
pelos trabalhadores da Grande São Paulo no curso da década de 70”, alertando que essas não são
extensivas “ao conjunto dessa classe [a trabalhadora], mas, antes, a uma parcela, que constitui
movimentos sociais, com novos padrões de ação coletiva” e a “emergência de novos sujeitos
políticos”. Portanto, não consideramos que a leitura dos nossos entrevistados seja compartilhada
por todos os trabalhadores, mas com um número menor de sujeitos que se engajaram na luta
sindical.
As entrevistas foram realizadas nas casas de Carlos Gilberto Koch e de Gilnei Andrade.
Ambos construíram uma trajetória intensa no movimento sindical da cidade. Atualmente estão
aposentados, depois de anos trabalhando em parceria junto à Câmara de Vereadores de Novo
Hamburgo e ao Partido dos Trabalhadores (PT), Carlos como vereador e Gilnei como seu assessor;
Nesse período dos anos 70, então, movimento algum nós conseguimos enxergar aqui em
Novo Hamburgo?
CARLOS: Não, imagina! Por exemplo assim, as grandes greves, os grandes movimentos,
eles se dão a partir dos anos 80, as grandes greves. Antes disso, não tinha.
Nesse momento, ele [Orlando Muller] realmente não consegue segurar, as fábricas
realmente param! Algo semelhante já havia acontecido no final dos anos 70, acho que a
greve de 1979 é ainda maior. Ela paralisa toda a cidade - uma cidade com 30, 40 mil
trabalhadores, de um setor só localizado em poucos locais, vinte, trinta, quarenta
fábricas… Essa categoria parando paralisa toda a cidade. Existem registros, eu não tenho
lembranças da greve de 1979. Mas ela é dita pelos trabalhadores como a grande greve dos
sapateiros. Tu vai achar registros nos jornais, e isso muito pela versão patronal. Pela versão
da tentativa da conciliação de classes. Mas ela é uma greve tão grande que não tem como
ser dita que não aconteceu. (ANDRADE, 2017, grifo nosso).
“Não consegue segurar”. Gilnei e Carlos interpretavam essa greve como espontânea e que
Orlando Muller, presidente do Sindicato e os demais membros da direção não tiveram escolha, a
não ser apoiar o movimento instaurado na cidade. Depois dessa manifestação, há uma sequência de
mudanças nas diretorias dos sindicatos da cidade, iniciando com os metalúrgicos e que alteraram o
modelo de luta e a relação com a classe patronal nos anos seguintes, como podemos observar
através da entrevista de Carlos.
E ali começou com os Sapateiros em 87, 86,87, assumiu a direção cutista de verdade, que
antes era uma máscara que tinha, não era na realidade... Por exemplo assim, as grandes
greves, grandes movimentos, eles se dão a partir dos anos 80, as grandes greves. Antes
disso, não tinha. Por exemplo, em 88, quando já presidente Milton Rosa, parou quase 20
mil trabalhadores sapateiros em Novo Hamburgo! Metalúrgico, cinco mil, pararam. Então
tinha essa organização. (KOCH, 2017, grifo nosso).
Para além do evento local, a formação do PT e da Central Única dos Trabalhadores (CUT)
foram fundamentais. Gilnei foi bastante ativo nesse movimento. Recorda com saudosismo o
período em que se desvinculou do movimento estudantil e começava a se organizar junto aos
trabalhadores, período em que passa a viver em Novo Hamburgo e começa a trabalhar nas fábricas
de calçados e também da metalurgia.
Eu dizia, como é que é... um retiro, “Eu tinha um retiro pra fazer” e às vezes eu saía na
sexta, sábado e domingo e ia pro retiro. O retiro era lá nos metalúrgicos de Porto Alegre,
naquelas primeiras atividades alí. O que depois vira comissão pró-CUT... 78,79,80. Um
militante estudantil que está passando a ser um militante sindical, embora não fosse do
sindicato.
Os sindicatos aqui, os metalúrgicos que a gente tinha ganho em 80 e os sapateiros que o
pessoal estava se aproximando da turma do Orlando Muller estavam na formação da CUT.
Tinha uma oposição dos comerciários que também estava lá. Acho que Novo Hamburgo,
São Leopoldo e Canoas... tinha um ônibus que tinha ido pra lá. E a gente participou daquele
ato. A gente foi naquele congresso de fundação da CUT, onde o Meneghelli se elegeu
presidente da CUT. Tinha sido criado, foi criado também nesse momento a CUT do Vale,
que era o… O João Machado, era presidente dos Metalúrgicos e o Haubert era secretário,
parece. Era liberado da direção também. O Primeiro Presidente da CUT do Vale é o Paulo
Halbert e a CUT funcionava em São Leopoldo, no sindicato dos metalúrgicos de São
Leopoldo. Esse é um momento, a partir de 83, 84, de muita mudança sindical. De muita
oposição sindical. (ANDRADE, 2017, grifo nosso).
Orlando Muller é lembrado como membro do PDT, mas foi filiado à ARENA, mas mesmo
nesse período contratava advogados do MDB. Essa postura, aparentemente pouco rígida, fez com
que o maior sindicato da cidade levasse anos para ser assumido pelos “novos”, apenas em 1986.
Nas entrevistas é possível observar que não houve uma ruptura, mas um processo lento e de
negociação entre o “novo” e o “velho”.
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Dante Guimaraens Guazzelli
2A marca da trajetória do patriarca é percebida, por exemplo, em um livro de 2015 de meu tio, Eloar Guazzelli
Filho, intitulado Apocalipse Nau. .
3 Deve-se dizer que este fascínio sobre a figura dos advogados de presos políticos não é privilégio dos
familiares. Recentemente foram feitos trabalhos voltados ao grande público que tratam do tema como o livro:
Coragem – a advocacia criminal nos Anos de Chumbo, de 2014, organizado pela seccional de São Paulo, da
Ordem dos Advogados do Brasil, e o documentário Os advogados contra a ditadura: por uma questão de
justiça – livro de Silvio Tendler, também de 2014. Outro indício deste fenômeno é o fato de haver na
telenovela da Rede Globo, Babilônia, uma personagem mencionada como defensora dos direitos humanos,
tendo ela sido “advogada de presos políticos”, durante período da ditadura militar brasileira.
Ao deixar clara minha relação, busco mostrar em que meio me insiro. Penso que este é o
primeiro passo rumo a um distanciamento crítico, condição necessária para o trabalho histórico.
(BORGES, 2009, p. 203). Como afirma o filósofo Paul Ricoeur, em seu A memória, a história, o
esquecimento, o “conhecimento histórico implica a correlação entre subjetividade e objetividade,
na medida em que relaciona, por iniciativa do historiador, o passado dos homens de outrora e o
presente dos homens de hoje”. (2007, p. 349). A proximidade e a subjetividade de minha posição
em relação aos objetos não impossibilita o trabalho histórico; a subjetividade sempre está presente
no trabalho do historiador.
Ao tratar da “volta” da biografia histórica, a historiadora Vayy Pacheco Borges afirma que,
recentemente, passou-se a aceitar a subjetividade existente no ofício do biógrafo e do historiador.
(BORGES, 2009, p. 228). A biografia histórica, nesta nova abordagem, tem como objetivo, não
glorificar ou mitificar, como fazia a de inspiração positivista, mas sim compreender. A autora afirma
que “entender uma pessoa é aceitá-la, é desculpá-la, é (quase) dela gostar”. (BORGES, 2001, p.
299).
Por outro lado, reconhecer a subjetividade da História não significa abandonar a busca pela
objetividade. O historiador, ainda segundo Vavy Pacheco Borges, “assim como o psicólogo e o
psicanalista, deve procurar garantir sua objetividade pelo aperfeiçoamento constante de seu
domínio das teorias e das técnicas de sua profissão, em uma longa, contínua e interminável
formação”. (BORGES, 2009, p. 233).
Em busca da objetividade, o pesquisador, em especial aquele que está “próximo” de seu
objeto, deve estar atento aos procedimentos fundamentais de sua disciplina, como o
aprofundamento teórico, diálogo com a bibliografia e a crítica das fontes. Somente assim é possível
que ele, ao invés de ser um “guardião da memória”, um memorialista, seja um estudioso da
memória.
Além disso, os pesquisadores que estudam as memórias de um passado sensível e
traumático (como é o caso da memória do holocausto e das vítimas das ditaduras latino-
americanas), devem ter em mente as advertências feitas por pensadores como o filósofo e linguista
Tzvetan Todorov (2000) e a literata Beatriz Sarlo (2007), que afirmam que há, por parte da
memória, uma desconfiança, que pode chegar a se transformar em veto, em relação à análise. Da
mesma forma, há uma tendência de “sacralizar” ou “banalizar” o passado. Em um caso, o passado
fica isolado não se relacionando com o presente, enquanto que, no outro, o presente seria a repetição
do passado. (FERREIRA, 2006, p. 199). Frente a estes movimentos, a historiadora Marieta de
Moraes Ferreira afirma que para termos outra relação com o passado “em vez de uma militância
pela memória, seria necessário pensar em um trabalho sobre a memória”. (2006, p. 200).
Estas questões permitem-me elaborar uma forma de aproximação e análise de meu objeto.
Além de deixar clara minha relação, faz-se necessária uma problematização desta memória familiar.
Com isto não pretendo fazer de minha tese um exercício de “auto psicanálise”, mas sim abordar
esta memória da mesma forma que faço com as memórias dos outros advogados abordados. Afinal,
há uma tendência da memória à sacralização, o que ocorre em relação aos advogados de presos
políticos. Um exemplo disso é o fato de que os três advogados em entrevistas de caráter mais
“público” do que aquelas realizadas para minha pesquisa (Jornal da OAB/RS, Memorial do
Judiciário e Zero Hora), procuraram mostrar-se como “o que mais defendeu” presos políticos ou
“um dos únicos defensores dos direitos humanos”. Uma vez que pretendo fazer uma pesquisa de
História e não um livro memorialístico, trabalhar a memória de Eloar Guazzelli é algo vital para
meus esforços. O estudo das três trajetórias permite-me aprofundar o assunto através da
comparação.
Por outro lado, este esforço de “estranhar o familiar”, de “desnaturalizar noções,
impressões, categorias, classificações que constituíam” a sua visão de mundo é facilitado pelo que
o antropólogo Gilberto Velho chama de “multipertencimento”, presente dentro das sociedades
contemporâneas. (2003, p. 15-18). O antropólogo, assim como o historiador e qualquer outro
indivíduo em nossa sociedade, pertence a diferentes grupos e redes ao longo da vida:
[...] esse multipertencimento que permite ao antropólogo pesquisar sua própria sociedade
e, dentro dela, situações com as quais ele tem algum tipo de envolvimento e das quais
participa. O fato de não ser englobado por nenhum grupo exclusivo – somado às próprias
características e à formação do antropólogo, que, em princípio, produz e valoriza uma
certa distância – permite o movimento de estranhamento crítico diante do próximo.
(VELHO, 2003, p. 18).
Dos três personagens aqui abordados, Guazzelli certamente foi o menos afetado pelo golpe
e pela instauração da ditadura civil-militar. Ele já vinha exercendo a advocacia, desde a década de
1940, e havia aberto sua banca no ano anterior. Diferentemente de Ferri e Becker, ele não foi
diretamente perseguido pela repressão, não sendo preso ou obrigado a mudar de profissão. Isto fez
de Eloar uma exceção, inclusive dentro dos advogados comunistas: Antônio Pinheiro Machado
Netto e Júlio Teixeira, por exemplo, foram presos nos primeiros momentos do golpe. A justificativa,
muitas vezes apontada pela memória familiar, é a de que ele não havia sido preso devido a
intervenção de lideranças conservadoras de Vacaria, cidade natal de Eloar e na qual ele havia
residido até 1963. De acordo com tal narrativa, o cacique político vacariano teria impedido a prisão
de Eloar e de outros potenciais presos da cidade ao afirmar que “de meus comunistas cuido eu”. Da
mesma forma, deve-se lembrar que seu tio, Samuel Guazzelli, era uma liderança política da cidade,
e seu primo, Sinval Guazzelli, vinha firmando-se como jovem político da UDN, no cenário do
estado.
Nesta narrativa, pode-se perceber algumas questões importantes a respeito da relação entre
a repressão e a resistência. Há a necessidade de justificar o fato de Eloar não ter sido preso: afinal,
por que ele teria saído incólume de um sistema repressivo tão implacável? Outros advogados
comunistas haviam sido presos. Por que não Eloar? Existia a possibilidade de surgirem suspeitas
a respeito da retidão político-ideológica dele, dando a entender que o fato de não ter sido alvo de
uma perseguição direta poderia constituir um estigma, um atestado de culpa frente a seus
correligionários. É possível pressupor que Eloar sentia este potencial estigma, esta culpa; isto
explicaria seu rápido engajamento na defesa de presos políticos.
Pode-se traçar um paralelo com a análise de Elisabeth Jelin sobre a questão das vozes dos
sobreviventes do aparato repressivo argentino, dentro da memória da resistência. (2007). Como
afirma a autora, mesmo que estas vozes tivessem sido escutadas, especialmente no âmbito do
julgamento de ex-comandantes das juntas militares em 1985, “su posición en la escena pública no
había sido muy sencilla o fácil [...]. El hecho de haber sobrevivido al horror generaba en muchos
un halo de sospecha. A menudo, rondaba la pregunta acerca del por qué”. (JELIN, 2007, p. 51).
De acordo com Jelin, havia suspeita e desconfiança em relação aos sobreviventes, derivada
das razões de seu “privilégio”: teria sido colaboração, delação, traição?4 (2007, p. 51).
Ao mesmo tempo, a explicação dada traz elementos importantes para analisar o
funcionamento da repressão. Pode-se pensar que esta narrativa afetava menos a imagem de Eloar
enquanto um resistente: ele não havia sido preso por ter sido “fraco” frente à repressão, mas, sim,
devido a uma peculiaridade das elites vacarianas. Seu pertencimento a uma família “tradicional” da
cidade o teria ajudando. Este pertencimento à elite não é privilégio de Guazzelli, mas pode ser visto
em outros casos analisados a seguir.
O impacto do golpe na vida pessoal de Eloar foi mais sentido de forma subjetiva, através
do medo do anticomunismo. Isto pode ser percebido através das narrativas presentes na memória
familiar sobre o golpe de 1964: dentro dela, este período é lembrado como um momento de temor,
de medo de uma vinculação com o comunismo ou com símbolos relacionados a este. Há uma
anedota familiar que narra que logo após o golpe, Lizabel, a esposa de Eloar, escondeu livros, discos
ou imagens que tivessem alguma relação com a União Soviética, como discos do Coro do Exército
Vermelho ou um retrato do cosmonauta Iuri Gagarin.
Mais do que um simples relato, esta narrativa mostra como este momento foi assimilado
pela memória familiar: o golpe foi um momento de perseguição, de temor, que está relacionado
diretamente à Guerra Fria. Uma vez que o golpe mostrava-se como anticomunista e antissoviético,
havia a preocupação de desvincular-se dos símbolos do “outro lado da cortina de ferro”. Ter
símbolos da cultura soviética era, assim, um indicativo de “ser comunista”. E “ser comunista” era
4 De acordo com a autora, houve uma mudança disto a partir de 2004, com a eleição de Néstor
Krischner, momento em que os sobreviventes passavam a ter uma posição mais central dentro desta narrativa.
ser alvo de prisões. Este caso mostra o clima de “caças as bruxas” que se instaurou imediatamente
após o golpe. Provavelmente, o fato de não ter sido atingido por esta “inquisição” levou Guazzelli
a engajar-se, logo no início do regime, na defesa de perseguidos pela ditadura. Já que ele não havia
sido preso, tinha o dever de envolver-se na defesa daqueles que o foram.
Já Omar Ferri, nas entrevistas que concedeu, destaca sua forte atuação política, antes do
golpe. Ele havia iniciado sua militância no PTB, seguindo os passos de seu pai. Ingressou na Ala
Moça do partido, além de participar da corrente trabalhista no movimento estudantil da PUC do
Rio Grande do Sul. (FERRI, 2013b, p. 26). De acordo com suas entrevistas, o jovem Ferri era muito
atuante na política de sua cidade natal, Encantado. Em 1956, ao mesmo tempo em que iniciava sua
prática profissional, era secretário do Prefeito da cidade, mostrando que estas duas atuações
andavam lado a lado. (Dr. Omar Ferri, 2004, p. 3). Suas falas sobre este período denotam que Omar
era uma liderança dentro do PTB encantadense, sendo reforçado por ele que, quando lançou
candidatura a vereador em 1958, não fazia campanha para si, mas para seus correligionários de
cada região específica do município. (FERRI, 2013b, p. 26). Ferri reforçou ainda que, apesar
disso, foi o..vereador mais votado, sendo eleito com 804 votos de um total de 8780
votantes.5 Brasília para trabalhar na Fundação Brasil Central (FBC), em julho de 1963,
durante o governo de João Goulart. Ele havia passado em uma prova para o cargo e, de acordo
com sua entrevista, havia trabalhado na administração, muito próximo à presidência da
fundação. (FERRI, 2013a). Durante esse período, ele afirma ter transitado em diversos meios
políticos, realizando um trabalho “de político da época”, mesmo sendo, segundo o próprio, de
“pequena expressão”. (FERRI, 2017).
De acordo com o relatado por Ferri ao Memorial do Judiciário do Rio Grande do Sul,
ele foi levado ao cargo de procurador desta fundação para auxiliar seu presidente, Pedro
Tassis Gonçalves:
[Gonçalves], vendo que estava rodeado por adversários – a rigor, por inimigos – políticos,
e falando com alguns políticos importantes do Rio Grande do Sul, alguns Deputados
Federais, lembraram-se de mim. Ele, então, pediu que um deles fizesse um contato comigo
para ver se eu aceitava sair de Encantado para ir para Brasília. Obviamente, aceitei ser
Procurador.(Dr. Omar Ferri, 2004, p. 4).
Durante o período no qual foi procurador da FBC, Omar Ferri viajou a Cuba, entre
dezembro de 1963 e janeiro de 1964, por ocasião do quinto aniversário da revolução. Em sua volta,
ele teria dado “duas entrevistas meio pesadas contra as forças conservadoras e até contra o próprio
Exército Brasileiro, chamado por mim de reacionário e contrário aos interesses do povo brasileiro”.
6 Sobre o golpe em Porto Alegre ver: RODEGHERO; GUAZZELLI; DIENSTMANN, 2013, p. 31-33.
Mesmo assim, quando questionado sobre sua impressão da duração do golpe, ele afirmou
que achava, naquele momento, que “não duraria um ano”. (FERRI, 2017). Pelo que se depreende
das movimentações realizadas pelos trabalhistas no exílio, havia uma ideia de que logo o contexto
mudaria e eles voltariam ao poder. (RODEGHERO; GUAZZELLI; DIENSTMANN, 2013, p. 49-
52). Esta perspectiva dá uma dimensão da experiência vivida no golpe, pelo menos naquele dia 2
de abril. Logo, esta visão por parte dos trabalhistas mudaria devido à perseguição.
Omar afirma que, naquele ponto, ele já percebia que haveria perseguições aos trabalhistas
no governo. Mesmo assim, ele retornou a Brasília nos dias seguintes. De acordo com a
documentação mencionada por ele em diferentes entrevistas, ele foi expurgado da FBC no dia 20
do mesmo mês. Apesar de achar que ele tinha “pouca expressão” para que a repressão se
preocupasse com ele, Ferri apontou que passou os meses seguintes ao golpe, como clandestino no
Rio de Janeiro e em São Paulo. (Dr. Omar Ferri, 2004, p. 6; FERRI, 2013b, p. 17-18). Ele acabaria
por voltar ao Rio Grande do Sul devido a questões familiares, fixando-se em Porto Alegre, onde
atuaria como advogado e, eventualmente, como deputado.
Assim, nos seus relatos, o golpe representa a quebra de uma emergente carreira política. Ele
realizara investimentos há anos, e já estava colhendo os frutos deste trabalho. Isto é perceptível na
própria forma como Ferri fala, que é marcada por uma impostação e oratória características de
alguém preparado para os palanques.
De acordo com Ferri, “em um determinando momento houve um Golpe Militar e acho que
quem pensava como eu caiu em desgraça política. Eu não me adaptei nunca ao tipo de política que
era necessário que se fizesse ao tempo da ditadura ou pós-ditadura”. (FERRI, 2013b, p. 26). A ideia
de quebra de um projeto de carreira está presente em um diálogo relatado à Comissão Estadual da
Verdade, Ferri relatou que o Cel. Bermudez, Secretário de Segurança do Rio Grande do Sul, o havia
questionado sobre como ele poderia defender os “subversivos”. A isto Ferri respondeu que “eu sou
advogado[,] tenho um diploma e tenho que trabalhar na minha profissão pra sobreviver[,] porque
eu fui expurgado pelo seu Governo”. (CEV-RS, 2014, p. 72).
Com a ruptura representada com a saída da FBC, ele se transferiu para Porto Alegre
“pelado, com dois filhos, três filhos, empregada, sogra e aluguel. E eu pelado”, ou seja, sem recursos
financeiros. (FERRI, 2013a). Ferri afirmou, em outra entrevista, que o expurgo ou a cassação “muda
completamente a vida, o estilo de vida, a atmosfera familiar”, que o atingido “sofre o baque de uma
mudança radical”. (FERRI, 2013b, p. 26). Nesta situação, Omar Ferri iniciou seu trabalho na capital
com a ajuda de colegas que o abrigaram em seu escritório, atuando principalmente no
direito trabalhista, no criminal, civil e administrativo.7
7Ainda buscando novas fontes de renda após o golpe, Ferri inscreveu-se no concurso para o Ministério
Público, tendo, segundo ele, sua inscrição impugnada por razões políticas. (Dr. Omar Ferri, 2004, p. 18).
Apesar de contar com somente vinte e nove anos, Werner Becker já havia tido uma carreira
profissional variada no momento do golpe. Ele iniciou o curso de Direito, mas abandonou-o, indo
trabalhar como secretário do deputado petebista Temperani Pereira, na Assembleia Legislativa e,
posteriormente, a partir de 1959, na Câmara dos Deputados. (BECKER, 2017).
Ele afirma não ter gostado de viver no Rio de Janeiro e ter voltado a Porto Alegre, indo
trabalhar no gabinete do prefeito Loureiro da Silva. (BECKER, 2017). Becker estava, assim,
vinculado a um setor do trabalhismo crítico de Brizola, Loureiro da Silva, por exemplo,
deixou o PTB devido a dissidências com este líder indo para o Partido Democrata Cristão
(PDC).8 Nos anos seguintes, Werner deixou de trabalhar na política e passou a atuar
na publicidade e, posteriormente, em rádio e televisão. (BECKER, 2017).
No Diário de Notícias, de Porto Alegre, de 8 de março de 1964, era anunciada uma
reformulação do “Grande Jornal Ipiranga”, noticiário da TV Piratini, Canal 5, filiada à Rede Tupi.
(“O Grande Jornal Ipiranga do Canal-5 em nova fase”, 1964, p. 5). Entre as inovações apontadas,
surge o nome do redator Werner Becker.
Assim, ele iniciava o ano de 1964, como um jovem profissional em uma nova área de
atuação: a televisão. Ao mesmo tempo, ele era vice-presidente do Sindicato dos Radialistas, em
uma chapa em que Lauro Hagemann era o presidente. Durante seu mandato, em setembro de
1963, eles teriam organizado a primeira greve dos radialistas.9
Em 1965, ele passaria a atuar na Rádio Gaúcha; posteriormente, seria afastado do trabalho por suas
posições políticas, mas sem ser demitido, já que possuía mandato sindical. E foi neste momento de
“limbo” profissional que ele iniciou seu trabalho como solicitador acadêmico, enquanto retomava
o curso de Direito. (BECKER, 2017). Para ele, esta situação demonstrava o caráter “artesanal”,
“semilegalizado” da repressão nestes primeiros momentos: ao mesmo tempo que o impediam de
trabalhar, não podiam demiti-lo (BECKER, 2012, p. 6).
Foi então que Becker foi preso, devido, “como diz o Candido Norberto, ‘por causa de
uma bofetada privada’” (BECKER, 2012, p. 6).10 Ele teria tido discussões com o
responsável pela perseguição política na imprensa, quando teria pedido para diminuir as
demissões, visto que estas afetavam a vida das pessoas (BECKER, 2012, p. 6; CEV/RS, 2014,
p. 65). Após a demissão de um colega, o sindicalista, ao ver o algoz andando na Rua da Praia,
no Centro da capital, atingiu-o nas costas. Como Becker relatou à Comissão Estadual da
Verdade (CEV/RS): “Eu cheguei pelas costas dele, dei uma porrada e um joelhaço no... na
fenda, entende e pegou bem porque ele se retorceu e
8 Apesar disto, ele afirmou que o prefeito Loureiro apoiou a Campanha da Legalidade. Por esta razão que Becker
teria presenciado a gravação do célebre discurso de Brizola na Rede da Legalidade. .
9..Após a greve, ele entrou com um processo na justiça contra seus empregadores por não lhe darem
aumento: Werner afirma que este foi um momento em que viu que poderia gostar de advogar (BECKER, 2017).
10 Aparentemente, isto foi proferido em discurso na Assembleia Legislativa.
gritou: “Covarde, pelas costas.” Eu digo: ‘Vem cá, mas torturador tem ética agora?’ E foi que bom.
Aí tudo bem, aí eu fui preso. (CEV/RS, 2014, p. 65).
A narrativa de Werner Becker traz uma dimensão mais cômica e irônica sobre os
acontecimentos. Este caso, por exemplo, poderia ser relatado de uma forma a mostrá-lo como um
resistente, alguém que se impôs, fisicamente até, ao arbítrio e à repressão. Ele poderia ter reforçado
o caráter coletivo de sua agressão: ele, como representante de uma categoria, frente às injustiças, ia
de encontro ao agente da repressão. Apesar de trazer alguns elementos disto, ele opta por pintar o
caso com cores picarescas, tratando como “uma bofetada privada”, dada pelas costas.
Ao mesmo tempo, Werner Becker ressaltou esta dimensão “privada” da agressão, pois ela
foi a motivadora de sua prisão. A agressão, de acordo com ele, deveria ser resolvida em uma esfera
privada e não na pública. Assim, ele foi preso sem motivo, segundo Becker, junto de seu colega e
amigo, Ibsen Pinheiro. Sobre a prisão, ele relatou dois episódios que refletem o tom da narrativa de
Becker. Ao ser preso, ameaçou seus algozes:
Olha, vocês se me baterem, quem toca a mão em mim, eu quando sair daqui eu vou dar
um tiro na cabeça. E se baterem encapuzados, eu vou dar um tiro em ti! [referindo-se a um
torturador]”. Daí o cara disse, “Mas por que em mim?” Eu disse: “porque eu te sorteei, tá.
Agora te fode, bate que tu vais morrer, quando me tirarem daqui de dentro. (BECKER,
2012, p. 5, grifo meu).
Em outro momento, Becker e Pinheiro ouviram em uma cela próxima um uruguaio preso
por contrabando, clamando pela presença de um advogado, que teria recebido a resposta de Ibsen
afirmando que havia dois. (BECKER, 2012, p. 5)
Posteriormente, eles foram soltos, sob protestos de Werner, já que “não me explicaram
porque eu fui preso, e agora eu vou ser solto [,] eu não sou fechecler o que é isso? [...] Vão achar
que eu estou dedurando alguém e tal, que história é essa?” (CEV/RS, 2014, p. 65-66). De forma
mais explícita do que no caso de Guazzelli, percebe-se no relato o temor da vinculação à traição.
Da mesma forma que a memória familiar do advogado vacariano, Becker afirma que foi liberado
da prisão por ter “muitas relações”, ou seja, a partir de seus contatos. (BECKER, 2012, p. 6).
Nestes relatos, Becker busca mostrar o caráter intermediário da repressão no momento. Por
outro lado, vemos duas características muito frequentes na narrativa do advogado: ao mesmo tempo
em que ele ressalta a dimensão cômica, ele se mostra como alguém de temperamento explosivo.
Comparando seu relato com os relativos de Eloar e Omar, temos que o golpe foi um momento no
qual o jovem estava buscando encaixar-se na vida profissional.
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Outubro de 1991, p. 14-5.
1
Ânia Chala*
3 Conforme Padrós (2014), essa doutrina tem como características: a violência irradiada, a diluição da
responsabilidade dos funcionários repressivos, a consolidação de uma “cultura do medo”, a necessidade
permanente da existência de um “inimigo interno”, o caráter imprevisível, o isolamento e a política de controle.
no tecnicismo4; na expansão quantitativa da escola pública de Ensino Fundamental e Médio às
custas do rebaixamento da sua qualidade; no cerceamento e controle das atividades
acadêmicas no interior das universidades; e na expansão da iniciativa privada no ensino
superior. Ao examinar o conjunto dessas medidas, avaliam que a educação foi totalmente
instrumentalizada como aparelho ideológico de Estado.
Em todo o país, a educação passou a operar sob o amparo das reformas efetivadas pelas leis
5.540/68, voltada ao Ensino Superior, e 5.692/71, direcionada ao Ensino Fundamental e Médio.
Ferreira (2012) sustenta que essas normas responderam às demandas do novo cenário econômico,
sobretudo com a formação acelerada de mão de obra com baixo nível de qualificação, e foram
estruturadas a partir dos compromissos assumidos entre os governos do Brasil e dos Estados Unidos
por meio dos acordos firmados entre o então Ministério da Educação e Cultura e a United States
Agency for International Development5 (MEC-USAID).
Uma das disciplinas escolares que mais sofreu intervenções nesse período foi a História.
Silva e Fonseca (2010) chamam a atenção para o fato de que o regime de exceção interferiu
diretamente no ensino de História na educação básica, uma vez que os currículos prescritos pelas
secretarias estaduais e municipais de educação brasileiras contribuíram para “a diluição dos objetos
de ensino de História e Geografia, agregando forte tempero de moral e civismo ditatoriais na fusão
‘Estudos Sociais’ apresentada nos livros didáticos” (SILVA; FONSECA, 2010, p. 25). Tais
modificações, aliadas à criação das disciplinas escolares de Estudos Sociais, Educação Moral e
Cívica (EMC) e Organização Social e Política do Brasil (OSPB), buscaram conferir nova
configuração ao ensino das humanidades no contexto de uma pedagogia autoritária com ênfase na
tríade formar-cultivar-disciplinar, como frisa Martins (2014).
Durante a redemocratização, os professores se engajaram nos movimentos que
desembocaram nas greves do magistério ocorridas em todo o país, entre o final dos anos 1970 e o
início da década de 1980, movidos pela combinação entre crescimento quantitativo da categoria,
formação acelerada e arrocho salarial que deterioraram suas condições de vida e de trabalho. Nesse
contexto, a concepção do magistério enquanto sacerdócio cedeu espaço ao entendimento de que o
docente é um trabalhador como outro qualquer. Se antes, o professorado permitia-se desempenhar
o papel de ordeiramente formar “novas gerações”, portanto, sem direito a reivindicações ou a
greves, desde a redemocratização passou a reconhecer-se como profissional e como funcionário
público.
Apesar de unidos naquele momento histórico, docentes de História e de Estudos Sociais
não deixaram de travar batalhas no campo político e ideológico e também na disputa por vagas no
De acordo com Saviani (2011), esta concepção pedagógica, que no Brasil sucedeu às tendências
4..
Humanista Tradicional e Humanista Moderna, considera que cabe ao processo pedagógico conformar os
agentes educacionais, estabelecendo previamente as atividades desenvolvidas por professores e alunos. Foi a
concepção adotada pelos governos autoritários durante a ditadura civil-militar brasileira. .
5 USAID é um órgão do governo dos EUA que, a partir de 1964, passou a dar assessoria à ditadura civil-militar
no Brasil, sobretudo na área da educação.
mercado de trabalho. Isso pode ser comprovado pelas manifestações de repúdio à instituição das
licenciaturas curtas por parte das instituições federais de ensino, da Sociedade Brasileira para o
Progresso da Ciência (SBPC) e da Associação Nacional dos Professores de História (ANPUH),
entre outras entidades de classe.6
Na pesquisa que desenvolvo junto ao Doutorado em Memória Social e Bens Culturais da
Universidade La Salle, analiso três grupos de professores que atuaram em escolas públicas e
privadas do Rio Grande do Sul: os que cursaram a Licenciatura Plena em História, os que fizeram
a Licenciatura Curta em Estudos Sociais e os que se graduaram na Licenciatura Plena em Estudos
Sociais. Enquanto os primeiros e os últimos frequentaram cursos de graduação de quatro anos,
os graduados na Licenciatura Curta tiveram sua formação reduzida.7 Ao todo serão
realizadas 12 entrevistas – quatro para cada grupo de docentes – tratadas como um corpus
analisado
documental à luz das teorias da memória, da compreensão do contexto político e social e do exame
provocado,
das políticas educacionais vigentes na redemocratização brasileira.
Meu trabalho tem por foco os relatos memoriais reflexivos desses docentes que
experimentaram aqueles tempos de esperança e incerteza, vivenciando o lento retorno da
democracia e o gradual abandono da política educacional instituída pelos militares e seus
apoiadores civis. Se, por um lado, tal política cerceou a atuação de uns, por outro, beneficiou muitos
com a expansão da rede de ensino e a oferta de cursos de Licenciatura de Curta Duração, medidas
que permitiram o ingresso massivo e acelerado no mercado de trabalho. A questão central que
formulo é: a partir de reconstrução de trajetórias de vida, o que pensam, sentem e concebem
professores graduados em História e Estudos Sociais, atuantes no Rio Grande do Sul, entre 1974 e
1988, sobre o período da ditadura civil-militar?
Minha hipótese inicial é a de que a partir da narrativa memorialística do percurso desses
docentes seja possível, guardadas as proporções subjetivas dos relatos, uma compreensão de suas
experiências, da construção de sua identidade profissional e do processo de concepção a respeito
da ditadura civil-militar e do ensino de História. Tratam-se de experiências subjetivas, porém
construídas levando em conta contextos locais, regionais e nacionais, o que extrapola o particular,
o local, apontando indícios que, conforme Ginzburg (1989), podem coincidir com outras
experiências e maneiras de interpretar aqueles tempos. O mesmo autor sustenta que se pode falar
6 Ver a esse respeito: FENELON, Déa Ribeiro. A questão dos Estudos Sociais. Boletim Gaúcho de
Geografia. Associação dos Geógrafos Brasileiros. Seção Porto Alegre, agosto de 1985. Documento
disponível em: <seer.ufrgs.br/bgg/article/view/37802/24386>. Acessado em: 15/07/2017. Uma compilação
sucinta sobre as discussões ocorridas na década de 1980 em torno das licenciaturas curtas em Estudos Sociais
pode ser encontrada em SCHÄFFER, Neiva Otero. Os Estudos Sociais ocupam novamente o espaço... da
discussão. Associação dos Geógrafos Brasileiros. Boletim Informativo do I ENEGE, n. 6, Brasília, 24/07/87.
Disponível em: <www.agb.org.br/publicacoes/index.php/terralivre/article/viewFile/64/64>. Acesso em:
15/07/2017.
7 O Parecer nº. 895/71 do extinto Conselho Federal de Educação, ao analisar a existência de dificuldades
em se distinguir cursos de Licenciatura Curta dos cursos de Licenciatura Plena, propôs o critério
diferenciador pela carga horária: entre 1.200 a 1.500 horas, para os duração (plena). cursos de curta duração; e
de 2.200 a 2.500 horas, para os de longa duração.
de paradigma indiciário,8 dirigido, segundo as formas de saber, para o passado, o presente ou o
futuro.
Convém esclarecer que a memória, inserida em um amplo campo de lutas e de relações de
poder que configuram um confronto ininterrupto entre lembranças e esquecimentos, é aqui
entendida como relação, como rede, em consonância com o que sinalizam Dodebei, Farias e Gondar
(2016). Além disso, acredito com Thomson (1997), que “a memória gira em torno da relação
passado-presente, e envolve um processo contínuo de reconstrução e transformação das
experiências relembradas, em função das mudanças nos relatos públicos sobre o passado”
(THOMSON, 1997, p. 57).
Dessa maneira, assumoque as construções memoriais dos docentes que entrevistarei
poderão apresentar esquecimentos, apagamentos e outras estratégias, intencionais ou não, que
procuram ajustar suas lembranças ao que hoje muitos rotulam simplificadamente como posturas de
enfrentamento ou de adesão ao regime. Tais variações se enquadram naquilo que Jelin (2002)
entende como parte da memória, englobando lembranças e esquecimentos, narrativas e atos,
silêncios e gestos, num processo no qual entram em jogo saberes, mas também emoções, vazios e
fraturas. Por isso, a autora alerta para a importância de o pesquisador atentar para como e quando
se recorda e se esquece, uma vez que o passado rememorado e esquecido é ativado em um
determinado presente e em função de expectativas futuras.
Nesse sentido, tenho em mente que esta pesquisa está sendo desenvolvida em um período
no qual o Brasil vivencia embates político-partidários com o recrudescimento de ideais
conservadores alinhados ao neoliberalismo. Por isso, na realização das entrevistas caberá considerar
os eventuais constrangimentos que possam ser provocados por um contexto marcado pelo
surgimento de movimentos como oEscola sem Partido e a recente reforma do Ensino Médio –
proposta pelo governo federal à revelia das manifestações contrárias de professores e especialistas
em educação. Toda essa conjuntura, mediada por um ambiente de crise política, social e econômica
me leva a concordar com Jelin (2002), para quem,
[...] tanto em termos da própria dinâmica individual como da interação social mais
próxima e dos processos mais gerais ou macrossociais, parecem existir momentos ou
conjunturas de ativação de certas memórias, e outros de silêncios ou ainda de
esquecimentos. Existem também outras chaves de ativação das memórias, sejam de
caráter expressivo ou performativo, em que os rituais e o mítico ocupam um lugar
privilegiado. (JELIN, 2002, p. 18).
8 Expressão cunhada pelo historiador italiano para designar um conjunto de princípios e procedimentos que
propõe um método voltado à pesquisa de fontes e documentos centrado no detalhe, nos dados marginais, nos
resíduos tomados enquanto pistas, indícios, sinais, vestígios ou sintomas. Para Ginzburg, as fontes investigadas
pelo pesquisador, uma vez submetidas ao paradigma indiciário, podem revelar muito mais do que o testemunho
tomado apenas como um dado.
Caberá observar se o quadro atual irá ativar ou silenciar determinadas lembranças e,
igualmente, se o esquecimento imposto em momentos históricos, como o da anistia, se fará presente
também nas narrativas desses docentes.
Cabe ressaltar que, desde os estudos de Halbwachs (2003), a memória individual ou coletiva
é entendida como um fenômeno construído coletivamente sujeito a flutuações, transformações e
mudanças constantes. Porém, Pollak (1992) destacou que essas oscilações sofrem influência das
preocupações do momento em que ocorre essa construção. Ao reconhecer o caráter potencialmente
problemático da memória coletiva, Pollak (1989) anuncia a inversão de perspectiva que marca as
pesquisas atuais sobre esse fenômeno: a abordagem da História Oral passa a se interessar pelos
processos e atores envolvidos no trabalho de constituição e de formalização das memórias,
privilegiando a análise dos excluídos, dos marginalizados e das minorias. Por conseguinte, a
História Oral dará visibilidade às memórias subterrâneas em contraposição às memórias oficiais,
geralmente associadas à memória nacional. Tais memórias subterrâneas prosseguem seu trabalho
de subversão no silêncio, aflorando em momentos de crise em sobressaltos bruscos.
Aqui é possível traçar um paralelo com a história oficial da ditadura civil-militar,
apresentada em sala de aula na vigência do regime de exceção: a memória sobre aqueles tempos foi
devidamente enquadrada por força da coerção exercida em todos os níveis sobre a sociedade
brasileira. Assim, investiu-se em um ensino em consonância com os objetivos políticos, ideológicos
e econômicos dos que se instalaram no poder a partir de abril de 1964. As tentativas de resistência
foram combatidas não só no campo dos aparatos de repressão aos opositores do regime, como
também no campo educacional, já que as medidas implantadas no Ensino Básico e no Ensino
Superior trataram de formar uma geração profundamente alienada dos problemas sociais de seu
país.
Com o fim da ditatura, anunciado e controlado pelos próprios militares, possivelmente tenha
havido um reenquadramento da memória sobre aqueles anos de ordem e progresso obtidos à custa
de repressão, violência e de grande regulação do ensino em geral e da formação docente em
particular. Nesse contexto, foi editada em 1979 a Lei da Anistia, um instrumento por meio do qual
foram “perdoados”, tanto os que se envolveram na luta armada quanto os agentes do Estado
responsáveis pela repressão. Dessa forma, os civis que apoiaram e se beneficiaram do golpe –
incluindo setores da grande imprensa, empresariado e parcelas da classe média –buscaram
dissociar-se dos antigos aliados, firmando alianças com entidades civis e organizações partidárias
na esteira da reorganização da sociedade brasileira. Esses grupos civis, por sinal, como denuncia
Aarão Reis Filho (2014), continuaram no poder na transição para a democracia. Paralelamente,
segmentos antes silenciados foram conquistando espaços e tornando públicos seus relatos sobre o
que ocorreu debaixo do mutismo imposto pela ditadura. Foi quando começaram a circular as
versões conflitantes sobre o período do regime militar.
No caso da conjuntura brasileira do pós-ditadura, é possível supor que a sociedade, dadas
as arbitrariedades reveladas pelo fim da censura aos meios de comunicação, experimentou um
desses períodos de conflito e de rearrumação mencionados por Pollak (1989; 1992), no qual a
preocupação com a identidade e a memória dos diferentes grupos que se aliaram, combateram,
resistiram ou sucumbiram à opressão do regime que entrou em disputa.
É apoiada nas reflexões dos autores até aqui mencionados que parto para a apresentação de
minhas escolhas metodológicas. Penso, com eles, que a História Oral é sempre uma história do
tempo presente, podendo ser conceituada operacionalmente como “um conjunto de procedimentos
que se iniciam com a elaboração de um projeto e que continua com a definição de um grupo de
pessoas a serem entrevistadas” (MEIHY; RIBEIRO, 2011, p. 12). No caso, as entrevistas propostas
serão aqui tratadas como um meio, ou seja, um corpus documental provocado que será analisado à
luz das teorias da memória, da compreensão do contexto político e social e do exame das políticas
educacionais vigentes no período da redemocratização brasileira. Tendo isso em vista, entendo que
este é um projeto de História Oral híbrida.
De acordo com Meihy e Holanda (2015), entrevistador e entrevistado devem se reconhecer
como colaboradores, pois a adoção deste termo reforça o caráter democrático da História Oral.
Conforme recomendam esses autores, pelo fato de lidar com pessoas que tiveram sua formação e
atuação profissional numa época de transição da ditadura à democracia, evitarei o uso da expressão
“depoimento” para designar a narrativa dos entrevistados, já que ela carrega uma conotação
policialesca relacionada ao jargão do regime autoritário. Realmente, não é meu desejo que os
entrevistados participantes desta pesquisa deponham, mas sim que colaborem e dialoguem.
Além disso, considerando com Portelli (2010) que a palavra entrevista tem em sua raiz
semântica a noção do olhar entre, da troca de olhares entre entrevistador e entrevistado, adoto a
ideia de que a existência de um observado e de um observador no ato da entrevista não passa de
uma ilusão positivista.
Durante todo o tempo, enquanto o pesquisador olha para o narrador, o narrador olha para
ele, a fim de entender quem é e o que quer, e de modelar seu próprio discurso a partir
dessas percepções. [...] E bem mais do que outras formas de arte verbal, a História Oral é
um gênero multivocal, resultado do trabalho comum de uma pluralidade de autores em
diálogo. (PORTELLI, 2010, p. 20).
A ideia foi utilizada por integrantes do Núcleo de Estudos em História Oral da Universidade
de São Paulo (NEHO/USP) que a adaptaram ao âmbito das entrevistas de História Oral. Esta fase,
como salientam Meihy e Ribeiro (2011), é tarefa do pesquisador e deve ser desenvolvida no sentido
de aproximação com a intenção original que os colaboradores quiseram comunicar, buscando trazer
ao leitor as sensações provocadas pelo contato. “Assume-se, assim, uma postura em que é mais
importante o compromisso com as ideias e não apenas com as palavras. Por isso mesmo, se torna
tão importante o aval do entrevistado, que deve saber qual ordem vai ser dada em sua narrativa”
(MEIHY; RIBEIRO, 2011, p. 110). Na interpretação de Meihy e Holanda (2015), esta fase é
fundamental no trabalho com histórias orais de vida porque possibilita que o pesquisador se abra às
dimensões subjetivas das narrativas.
O fechamento dessas três etapas deve se dar pela validação, isto é, pela conferência do texto
produzido como resultado do diálogo entre entrevistador e entrevistado. É neste momento que
devem ser verificados e corrigidos eventuais erros ou enganos, tendo por norte o respeito à vontade
de quem se dispôs a narrar sua história. Como observam Meihy e Holanda (2015), “embutido nesse
comportamento respeitoso ao que o ‘outro’ diz reside o pressuposto ético da aceitação do papel do
oralista, que atua como mediador entre o que foi dito e o que se tornará registro definitivo.”
(MEIHY; HOLANDA, 2015, p. 111).
O texto final resultante de nossos encontros foi devidamente aprovado pelo colaborador, e
o relato que apresento a seguir traz algumas informações e trechos da etapa de transcriação,
pontuados por reflexões iniciais, visto que esta é a primeira de doze entrevistas.
Apesar de ter-me relatado algumas histórias de sua infância e adolescência, Cláudio foi
bastante reservado quanto à vida em família, não mencionando sequer os nomes de seus pais ou
irmãos. Com uma fala bastante articulada, desde o primeiro encontro, ele disse-me que tentaria ser
cronológico em sua narrativa. Apesar disso, foi somente em nosso segundo contato que me revelou
as circunstâncias que o levaram a estudar em um colégio de padres longe da família, bem como
discorreu sobre a militância estudantil exercida em seu tempo na Universidade. O silêncio sobre a
vida familiar foi parcialmente atenuado em nossa segunda sessão gravada, quando se referiu à
primeira e à atual esposa, revelando que ambas haviam sido suas alunas, além de falar brevemente
sobre as duas filhas.
Filho de agricultores, nascido na localidade de Gramado, interior de Nova Prata, ele
permaneceu em sua terra natal até os 13 anos, quando foi morar e estudar em um seminário mantido
pela congregação espanhola dos Sagrados Corações, em São José dos Pinhais, município vizinho
de Curitiba:
Fui. Nas primeiras noites, não dormi, só chorei. Como um guri disse pro diretor do
seminário, chorando: ‘padre eu quero ir pra casa’! Daí o padre olhou pra ele e disse: ‘eu
também’ [risos]. Não tinha volta; um porque era na Espanha, o outro não me lembro de
onde era. Muitos colegas desistiram. Normalmente, as desistências ocorriam ao final de
cada ano. Uma leva não retornava no ano seguinte por opção ou porque os padres
mandavam eles embora. Mas, fiquei até eu mesmo desistir, que foi exatamente a partir do
momento em que passei a entender melhor as coisas. Minha mãe, que foi até o fim católica,
apostólica, romana ficou meio chateada, mas não disse nada. Teve uma irmã minha que
foi a um colégio de freiras em Nova Araçá, mas ficou por lá só um ano. Meus outros
irmãos não estudaram como eu. (DILDA, Cláudio: entrevista em 24/03/2017).
Graduado em História pela Universidade Federal do Paraná (UFPR) e com uma trajetóriade
militância estudantil, Cláudio pretendia seguir a carreira docente na universidade. Porém, teve seu
projeto interrompido. Segundo ele,
[...] esse era o projeto inicial, que não se concretizou porque meu pai faleceu. Sou o mais
velho de quatro irmãos. Minha mãe estava sozinha e eu me senti na obrigação parental e
moral de retornar para Nova Prata. Foi o que fiz. E, lá chegando, fui fazer o que sabia,
trabalhar em escola. Não foi frustrante retornar porque, observado o tempo que transcorreu
de 1975 para cá, concluo que foi o que de forma acertada eu fiz. Aquela situação que te
deixa em paz com a tua consciência. A pior coisa seria a consciência te cutucando o resto
da vida (DILDA, Cláudio: entrevista em 2/03/2017).
Assim, ele retornou à Nova Prata e foi fazer o que sabia: tornou-se professor de História na
Escola Normal Tiradentes (pública) e no Colégio Nossa Senhora Aparecida (privado), atuando entre
os anos de 1976 e 1983.
Acabei agitando mais em Nova Prata por conta do sistema de trabalho, da metodologia
que eu utilizei para trabalhar com os estudantes. E... O que eles levavam para casa,
questionamentos, perguntar como é isso, como é aquilo, o professor disse isso, o professor
disse aquilo. Isso aí mexeu com os brios dos próceres da ditadura de Nova Prata. Os Arena
que estão lá até hoje, e mandando. A direita lépida e fagueira. (DILDA, Cláudio: entrevista
em 2/03/2017).
Essa última afirmação tem um tom amargo, ampliado pela revelação posterior de que ele
havia sido um dos fundadores do PT na cidade. Após desentender-se com esse primeiro grupo,
candidatou-se à prefeitura nas eleições municipais de 1982 pelo PMDB, tendo sido derrotado por
um candidato que veio a reeleger-se mais quatro vezes, adotando a estratégia de mudar de partido
a cada novo pleito.
Cláudio identifica o momento-chave em que foi tachado de comunista: quando promoveu
uma semana da cultura nas férias de inverno de 1977, exibindo peças, filmes e promovendo debates
com os estudantes do Ensino Médio:
Bom, levamos Terra em transe do Glauber Rocha! Terra em transe foi projetado no
cinema! Levamos um grupo de teatro de Novo Hamburgo e outro de Porto Alegre. De
cinema, inclusive discutimos o Super-8, com o Nelson Nadotti – autor de telenovelas e
cineasta –, um porto-alegrense que, se não me engano, continua trabalhando na Globo.
Bom, a partir daí, na verdade, eu acabei sendo identificado como o insuflador, porque os
filhos deles não iam ter a capacidade nem a iniciativa de trazer aquele tipo de coisas para
Nova Prata. Então, fui eu o culpado. Está bem. Foi o carimbo: esse cara é comunista! Bom,
começou o meu inferno! (DILDA, Cláudio: entrevista em 02/03/2017).
A partir desse episódio, ele passou a ser seguido pelo único jipe da Polícia Militar existente
na região, recebendo frequentes advertências de outros colegas professores por conta de sua
insistência em trabalhar com os alunos dentro e fora da sala de aula. Em sua narrativa, relembrou
que alguns professores o criticavam por ele tomar café com os estudantes nos intervalos entre uma
aula e outra. Tais comentários não o intimidaram, tanto que criou um grupo de estudos e debates e
outro de teatro que se reunia aos sábados em sua própria casa.
O embate com as forças conservadoras locais culminou coma convocação para que ele
comparecesse a uma audiência com o então vice-secretário de Educação do Rio Grande do Sul. O
encontro, por ele definido como um interrogatório nos moldes nazistas, o marcou de tal forma que
Cláudio até hoje recorda local e data exatos do encontro: a antiga sede da Secretaria de Educação
do Estado, situada na rua Carlos Chagas, nº. 55, Centro Histórico de Porto Alegre, no dia 6 de abril
de 1979, ocasião em que foi questionado longamente sobre sua atividade nas escolas de Nova Prata,
mediante a apresentação de um dossiê reunindo os polígrafos que ele confeccionava e distribuía aos
seus alunos. Esse momento-chave, evocado com eloquência e emoção, parece ser a principal marca
deixada por aqueles tempos. Cláudio revelou, inclusive, que atendendo a um pedido seu, um ex-
aluno o acompanhou na viagem de ônibus à capital, aguardando-o na portaria do prédio, pois
embora o país vivesse tempos de abertura política, ainda havia relatos de desaparições.
Embora tenha prosseguido com suas aulas até o final de 1983, a sucessão de confrontos
com a elite dirigente da cidade levou-o a decidir abandonar o magistério, transferindo-se para a
capital em junho do ano seguinte. Casou-se, e nas suas palavras, queria ter um pouquinho de
tranquilidade. Foi cedido à Assembleia Legislativa para assessorar o então deputado pelo PMDB,
Antenor Ferrari. A partir dali, desenvolveu uma profícua carreira como defensor da causa
ambientalista e gestor na área ambiental, tendo trabalhado pela criação da Fundação Estadual de
Proteção Ambiental Henrique Luis Roessler (FEPAM), órgão que presidiria durante o governo de
Germano Rigotto.
Ao apresentar essas reflexões iniciais sobre a entrevista de meu primeiro colaborador,
retomo o alerta feito por Patai (2010), ao observar que, quando uma pessoa nos conta sua história
de vida está, de certo modo, oferecendo o seu eu para o exame dela mesma e do pesquisador. Logo,
“o fato de que o narrador constrói seu eu no ato de falar, não altera a dimensão da exposição e da
revelação pessoais” (PATAI, 2010, p. 28).
Encerro essas considerações iniciais, afirmando que não espero “resgatar” ou “revelar”
memórias silenciadas a respeito do exercício do magistério no momento de transição da ditadura
para a democracia em nosso país. Espero, sim, por meio das narrativas de meus entrevistados,
apurar a escuta e aprender a ouvi-los. Nesse ato de narrar histórias, quero lembrar e reviver com
meus entrevistados/colaboradores seus percursos como professores, naqueles tempos de transição.
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Cristiano Gehrke*
O período compreendido entre os anos de 1937 e 1945, no Brasil, foi marcado pela política
nacionalista do governo de Getúlio Vargas. Prisões, destruição de publicações e materiais gráficos
foram uma constante nestes anos. A população de origem teuta moradora do município de São
Lourenço do Sul, no sul do Rio Grande do Sul, sofreu de forma sistemática as consequências deste
movimento que tinha como objetivo dissipar os elementos culturais que distinguiam este grupo do
restante da população.
Até o ano de 1937, o idioma alemão era de uso corrente, não somente no ambiente
doméstico, mas também nas escolas ou nas igrejas, onde o ensino e os cultos eram realizados neste
idioma. Com o avanço dos ideais nacionalistas e a promulgação de uma série de leis e decretos que
cerceavam diversos direitos, estes imigrantes e seus descendentes se viram obrigados a, de uma
hora para outra, deixar de fazer uso do seu idioma materno e adotar o português como língua
principal (FACHEL, 2002).
Dentro deste contexto, diversas instituições associativas filantrópicas e educacionais foram
fechadas e ocorreu uma destruição massiva de materiais impressos redigidos no idioma germânico.
Este período foi marcado ainda por uma série de conflitos da população com as autoridades policiais.
Alguns destes conflitos resultaram na depredação ou na incineração de residências, bem como na
vilipendiação de indivíduos, o que fez com que várias pessoas acabassem encarceradas, sob
acusação de perturbação da ordem pública ou mesmo sob o pretexto de divulgação de ideais
nazistas na região.
Percebemos, desta forma, que este foi um período de grandes traumas para toda a população.
Ao realizar a nossa pesquisa de doutoramento e dar início à realização da coleta dos primeiros
depoimentos orais, percebemos que um dos temas que era citado de forma bastante frequente e com
níveis emotivos acentuados, eram aqueles diretamente relacionados com a repressão sofrida por
familiares durante a política nacionalista empreendida durante o Estado Novo.
Neste sentido, valendo-nos da classificação proposta pelo antropólogo britânico Paul
Connerton (2008), que fez um estudo sobre as diferentes formas de esquecimento que existem na
sociedade, as quais podem ser, de acordo com suas particularidades, classificadas em sete tipos,
pretendemos analisar no presente ensaio os efeitos traumáticos do período supracitado, sob a ótima
do chamado “apagamento repressivo”, bem como buscar mapear quais permanências deste
período ainda são visíveis na atualidade, entre os descendentes de imigrantes germânicos
que habitam aquela região.
* Doutorando em Memória Social e Patrimônio Cultural. Universidade Federal de Pelotas. CAPES.
O século XIX assinala o início de um movimento que foi denominado pelos
pesquisadores como o período das grandes migrações, no qual centenas de milhares de
indivíduos se deslocam do continente europeu em direção ao continente americano. A Europa
oferecia uma série de fatores de expulsão. Fatores de ordem religiosa, política, social ou
econômica agravados basicamente pela expansão do sistema capitalista e pelos reflexos
da Revolução Industrial compeliram uma significativa parcela da superpopulação
europeia no período a buscar outras alternativas para sobrevivência.
Enquanto aquele continente sofria com um crescimento demográfico desordenado,
o continente americano, enfrentava problemas relacionados à baixa densidade
demográfica em algumas regiões. Neste sentido, aliando interesses de ambas as partes, a
imigração em massa foi estimulada de maneira bilateral.
É neste contexto que teve início uma das maiores movimentações humanas já
verificadas na história. O Brasil recebeu sucessivas levas de imigrantes, de distintas
nacionalidades.
Até iniciar a segunda metade do século XVIII, a região da chamada Serra dos Tapes era
um vasto território coberto de matas, habitado apenas por alguns grupos indígenas, com
economia baseada na caça e na pesca (ARRIADA, 1994). Após a assinatura do Tratado de
Santo Ildefonso (1777), a posse do território gaúcho foi assegurada pela coroa portuguesa
(MAESTRI, 2010), iniciando, desta forma, a concessão de sesmarias, que tinha como
objetivo fortalecer, ocupar e explorar o estado. Com a divisão do território, a região começou
a ser povoada. O surgimento das primeiras charqueadas, e o consequente aumento da demanda
de mão de obra escrava para atuar nestes estabelecimentos, fez com que a região tivesse um
crescimento vertiginoso em poucos anos (MAGALHÃES, 1993) .
Com o passar dos anos, o esgotamento da matriz econômica baseada nas charqueadas e
o surgimento de uma série de leis que anunciavam a futura extinção do trabalho escravo,1
impôs-se a necessidade de buscar novas possibilidades para a produção de alimentos. Estes
foram os fatores que levaram à criação de colônias de imigração no espaço rural do município
(ANJOS, 2006).
Além desta necessidade interna, a região que havia recebido os primeiros imigrantes no
Rio Grande do Sul estava ficando saturada, e, com o forte crescimento das correntes
migratórias, tornou-se necessária a busca de novos territórios (MANFROI, 2001). Este
crescente interesse pela colonização se deu também devido à criação da Lei de Terras, que
possibilitava, através da venda dos lotes, a obtenção de grandes lucros, por parte dos
proprietários (MAESTRI, 2000).
A Serra dos Tapes no século XIX vivia no auge da produção saladeiril, cujos
empreendimentos se concentravam nas margens do Arroio Pelotas, e tinha, desta forma,
grande parte do território em situação de relativo abandono, basicamente porque muitas terras
ff
1 Lei do Ventre Livre, Lei dos Sexagenários, Lei Eusébio de Queirós e, por fim, a Lei Áurea.
não eram adequadas nem à pecuária, nem à monocultura, devido ao grande número de cursos
d’água e ao declive acentuado de certas regiões (ULLRICH, 1999).
No sentido de diversificação das atividades econômicas, criou-se, em 1858, a primeira
colônia de imigrantes fundada por iniciativa particular no município de Pelotas, a chamada
Colônia São Lourenço, sob administração do empresário Jacob Rheingantz e do estancieiro José
de Oliveira Guimarães, e que foi colonizada majoritariamente por imigrantes de origem germânica
(COARACY, 1958). O sucesso do empreendimento fez com que em 1884 a colônia se
emancipasse de Pelotas, formando o município de São Lourenço do Sul.
São Lourenço do Sul foi considerada uma das primeiras e mais frutíferas
colônias particulares da região. É neste contexto, num município dominado pelo elemento
de origem germânica, com a economia voltada para a produção familiar de alimentos, que no
final da década de 1930 e início da década de 1940, foram implementadas uma série de
medidas de cunho nacionalista com o objetivo de criar uma identidade nacional una, e integrar
o grande número de imigrantes e seus descendentes com a sociedade brasileira, visando
aniquilar qualquer sentimento de identificação com a cultura estrangeira.
No momento em que ocorria na Europa o segundo conflito armado mundial, o Brasil
vivia um período de muitas incertezas. Num primeiro momento, conforme autores que
estudaram o período (FACHEL, 2002; GERTZ, 2012), o governo de Vargas “namorava”
com a Alemanha. Existia um intenso comércio entre ambos países, o que era bastante
conveniente para os dois lados. Mas, por pressões externas, o Brasil saiu de uma neutralidade
estratégica, que o governo tentou manter o máximo de tempo possível e declarou guerra ao
Eixo em agosto de 1942. Porém, mesmo antes desta declaração “oficial” de guerra, era
implantada no Brasil uma política nacionalista.
O ano de 1937 assinalou, no país, a instituição do regime de autoridade comandado
por Getúlio Vargas denominado Estado Novo, ele teve duração de oito anos, nos quais a
política nacional tinha como base a ideologia de que o “Estado e a Nação constituíam
uma unidade indissolúvel” (WEBER, 2013, p. 02). Neste contexto, foram instauradas políticas
no sentido de criar uma “nação homogênea com uma cultura única” (POSSAMAI, 2005, p.
243). Foi o momento em que teve início uma política de repressão a todas as manifestações
culturais, políticas e sociais de comunidades, onde predominavam elementos alemães, italianos
ou nipônicos.
A existência de desconfianças por parte das autoridades sobre a presença de
possíveis elementos com relações com o governo nazista alemão, fez com que a campanha de
nacionalização empreendida pelas autoridades e adotada pela própria população fosse bastante
representativa em São Lourenço do Sul.
José Plinio Guimarães Fachel (2002), em seu estudo constatou que várias manifestações de
ódio aos descendentes de alemães em Pelotas e São Lourenço do Sul partiram de civis,
que
que acabaram “fazendo justiça com as próprias mãos”, destruindo e saqueando
comércios, e vandalizando residências.
Roche (1969, p. 704) afirma que o objetivo do governo de Getúlio Vargas, ao
implementar uma política de nacionalização, era pôr em pé de igualdade os imigrantes e seus
descendentes com os demais cidadãos que habitavam o solo brasileiro. Contudo, foi
necessário recorrer a determinados artifícios, tais como a violência física e psicológica para
acelerar este processo.
Conforme exposto, anteriormente, grande era o número de imigrantes europeus
aqui chegados. E a formação de colônias, de certo modo homogêneas, isoladas
geograficamente, fizeram com que traços culturais dos países de origem destes imigrantes
fossem preservados, permanecendo quase que intactos em algumas regiões, criando uma
espécie de “guetos étnicos” dentro do Brasil. Isto gerava no governo brasileiro um grande
desconforto, e este pode ser apontado como um dos motivos pelos quais este grupo de
descendentes de imigrantes germânicos sentisse as consequências deste processo de forma
muito mais intensa.
A campanha de nacionalização ocorreu de forma sistemática em todo o país,
conforme atestam as leis e decretos sancionados no período. Desde 1938, uma série de
decretos do governo federal passaram a restringir as atividades dos estrangeiros no país.
Especialmente as que diziam respeito à sua atuação política e social, passaram a ser proibidas
reuniões, eventos sociais, culturais, bem como a expressão no seu idioma nativo.
No sentido inverso, procurando mostrar sua integração à sociedade local, temos
exemplos extremos de demonstração de nacionalismo, de devoção à pátria, adotadas
basicamente por medo de possíveis represálias. Reportagens veiculadas na imprensa local,
hasteamento de bandeiras brasileiras em frente a casas comerciais, fotografias de Getúlio
Vargas em escolas e residências, eram algumas das estratégias encontradas pela população
para se livrar de possíveis perseguições.
Na época,
Estas a população do
demonstrações de município era composta
nacionalismo basicamente
exacerbado não eram,por elementos de origem
todavia, uma regra
germânica. A grande
na comunidade. Estamaioria chegou
afirmativa através
pode das empresas
ser efetuada, tendomigratórias
por base anoanálise
final do século
dos XIX.
processos
relacionados
Porém, a detenções
na década de 1920 etemos
prisões
umno município
número de São Lourenço
considerável do Sul,
de imigrantes no referido
de origem período.
germânica que
veio a São Lourenço de forma espontânea. Eram profissionais, tais, como, professores, pastores,
padres, médicos, farmacêuticos, fotógrafos, entre outros.
A especialização destes profissionais e o seu deslocamento ao interior do município, suas
condições financeiras, seus regressos ao território alemão, são alguns dos aspectos que levantaram
suspeitas frente a sua conduta. Estes imigrantes passaram, então, a ser observados pelas autoridades
policiais locais com mais atenção.
Alguns poucos e pontuais estudos sobre o processo de perseguição a elementos estrangeiros
no município de São Lourenço do Sul foram efetuados até o presente momento. Contudo, não foram
analisados aspectos bastante pertinentes, tais como os resultados que tal período teve na sociedade
local, bem como a forma que o período foi e continua a ser encarado pela população. Neste sentido,
visando preencher esta lacuna e efetuar uma análise sobre estes aspectos, efetuamos algumas
entrevistas pautadas na metodologia da História Oral, para que fosse possível identificar, nos dias
atuais, possíveis permanências traumáticas daquele período. Contudo, antes de continuar, se faz
necessário fazer algumas considerações sobre o que entendemos por História Oral.
ANJOS, Marcos Hallal dos. Estrangeiros e modernização: a cidade de Pelotas no último quartel
do século XIX. Pelotas: Ed. da UFPel, 2006.
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Entrevistado: Bruno Gehrke. Entrevistador Cristiano Gehrke. São Lourenço do Sul. 26/03/2014.
Entrevitado: Elda Ebel. Entrevistador Cristiano Gehrke. São Lourenço do Sul. 22/12/2014.
Entrevistado: Magali Jeske. Entrevistador Cristiano Gehrke. São Lourenço do Sul. 12/05/2014.
Entrevistado: Nair Hübner. Entrevistador Cristiano Gehrke. São Lourenço do Sul. 06/02/2015.
Entrevistado: Teresa Brot. Entrevistador Cristiano Gehrke. São Lourenço do Sul. 20/04/2015.
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4 A História Oral de vida foi aplicada ao projeto de pesquisa que origina este artigo e com base
em sua metodologia entrevistamos membros atuantes do CDDHO: diretores, funcionários, militantes católicos
e usuários do CDDHO, organizando um banco de história de vida em audiovisual sob a guarda da Universidade
Federal de São Paulo/UNIFESP, campus Osasco. O banco de história de vida é composto pela história oral de
vida: dos 06 diretores do CDDHO, ainda vivos e atuantes politicamente; 01 entrevistas da principal plantonista
permanente e militante católica do CDDHO, entre 1977 e 1997; 01 entrevistas de militante sindical e ativista
político de Osasco, membro e usuário do CDDHO, entre 1977 e 1997. Trata-se de um projeto da memória
institucional que visa assegurar à cidade de Osasco a produção documental de registros orais acerca da história
dos movimentos sociais e da resistência à ditadura na região.
5 Consideramos o marco 1979-1988 o período da transição democrática com base nos argumentos de que, 1979
representa o ano final do estado de exceção com a revogação dos atos institucionais, refazendo-se a ordem
jurídica, e, o ano de 1988 representa o estabelecimento de um Estado Constitucional e de Direito com a
aprovação da Carta de 1988. Daniel Aarão Reis defende esta tese historiográfica nas obras: AARÃO REIS,
Daniel. Ditadura Militar, esquerdas e sociedade. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2000; AARÃO REIS, Daniel.
Modernização, ditadura e democracia: 1964-2010, Rio de Janeiro: Objetiva, v. 5, p. 75-125, 2014.
Foi na cidade de Osasco que ocorreu a greve operária de 1968. Sobre a greve e o
contexto urbano de Osasco podemos dizer que na cidade formou-se um movimento
democrático radical protagonizado por operários, estudantes e populares que, com a estrutura
dos setores progressistas da Igreja Católica, a expertise das organizações da esquerda
comunista, sindical e as formas políticas da organização popular mobilizaram um
contingente de pessoas dispostos à ação de enfrentamento do regime político instaurado
pelo golpe de 1964. Para Francisco Weffort,6 a greve de Osasco representou um elemento de
contraste no período pós golpe, moldando-se como um momento de retomada da vitalidade
do movimento sindical articulado ao ativismo estudantil e popular. O movimento
urbano hegemonizado por estudantes e operários, entrelaçados aos ideais do Maio Francês,
sustentou uma greve e um conjunto de expectativas que propunham alçar, para além da
conquista de direitos do trabalho, direitos sociais e políticos. Na historiografia referencial
sobre a greve de Osasco,7 o movimento compõe o conjunto de fatores que impulsionam
o movimento de oposição ao Regime Militar representando uma ameaça ao bloco de
poder sedimentado na instancia nacional pelo Golpe de Estado 1964, ocupando destaque na
cena de 1968, que tem seu desfecho com a publicação do Ato Institucional n. 5 - AI-5.
A repressão ao movimento foi imediata, o que tornou a cidade de Osasco uma cidade
sitiada pelas forças militares. A repressão e o contexto pós AI-5 alterou a vida urbana e sua
rotina. Nas salas de aulas das escolas secundárias, diretamente nas fábricas em suas linhas de
montagem, nas instituições políticas, infiltrados do regime repressivo agiam cotidianamente.
No ir e vir da cidade, trabalhadores das fábricas, funcionários públicos e moradores de
bairros periféricos tornaram-se vítimas constantes dos cercos e batidas policiais, prisões
arbitrárias, delações e acusações criminais cometidas pelos agentes da repressão política e da
polícia comum.
Como território marcado pela violação constante aos direitos civis e humanos, e pela violência
institucional, se instituiu o CDDHO em 1977. Suas funções e objetivos centrais eram o de divulgar,
6 WEFFORT, F. Participação e conflito industrial: Contagem e Osasco 1968. Publicado em 1969. Disponível
em:<http://cebrap.org.br/bv/arquivos/introducao_weffort.%20a.pdf>. Acesso 22 de janeiro de
2017. .
7 Desde os anos de 1970, a greve vem sendo estudada por historiadores e sociólogos, o que já compôs um
corpo historiográfico sobre o movimento operário de 1968 em Osasco. Entre os trabalhos de autores
referenciais citamos WEFFORT, F. C. Participação e Conflito Industrial: Osasco e Contagem- 1968. São
Paulo: CEBRAP, 1972; ALVES, Maria Helena Moreira. Estado e Oposição no Brasil (1964-1984). Tradução de
Clóvis Marques.5ª. ed., Petrópolis: Vozes, 1984; RIZEK, Cibele Saliba. Osasco: 1968, a experiência de um
movimento. Dissertação de Mestrado, Curso de Ciências Sociais da Pontifícia Universidade Católica de São
Paulo, 1988; ROVAI, Marta Gouveia de Oliveira. Osasco 1968: a greve no masculino e no feminino. Salvador:
Pontocom, 2013. E-book, link: <http://www.editorapontocom.com.br/livro/19/19-marta-rovai-osasco-1968.pdf.>.
Além do texto do militante Ibrahim: IBRAHIM, J. História do movimento de Osasco. In: FREDERICO,
C. (Org.). A esquerda e o movimento operário: 1964-1984. Belo Horizonte: Novos Rumos, v. 1, 1987.
promover e garantir a defesa dos DH, difundindo a informação sobre os Direitos Humanos, e
oferecendo proteção e assistência jurídica às vítimas de repressão institucional e da violência em
geral.
Segundo a interpretação de militantes e dirigentes do CDDHO, ratificada pelos documentos
institucionais, a ação de fundar o CDDHO efetivou uma parceria projetada, desde 1975, entre
múltiplos agentes do movimento social católico. A Frente Nacional do Trabalho-FNT, sob a
liderança de Mario Carvalho de Jesus, foi a protagonista em conceber a ideia de edificação de um
centro atuante em Direitos Humanos para Osasco. Entidades católicas regionais, de suma
importância, assumiram a missão de sustentar as ações estruturantes do novo centro entre elas: a
recém-criada Pastoral dos Direitos Humanos, comandada pelo Padre Agostinho e a Pastoral
Operária, sob os comandos do Padre Domingos Barbè.
Em 1977, a ação das pastorais dos Direitos Humanos, Carcerária, da Mulher e da Criança
transformava-se em realidade continental, sendo o combate à repressão política e à ação contra as
marcantes desigualdades econômicas, fatos primordiais das suas intervenções. O Concilio Vaticano
II, a encíclica Mater et Magistra (1961) e a Pacem in Terris (1963), precedidos pela criação do
Pontifício Conselho de Justiça e Paz da Cúria de Roma haviam feito crescer no interior do
catolicismo a percepção de uma Igreja comprometida com direitos fundamentais, com o combate à
opressão política e o abuso do poder econômico. Firmava-se na Doutrina Social da Igreja o valor
fundamental da dignidade humana como causa e fim das instituições, sendo o Estado uma
instituição responsável por zelar por estes valores e nunca um perpetrador da violência.
Desta forma, se articulou o Movimento dos Direitos Humanos na América Latina ao viés
católico. Em posicionamento oficial, a Igreja e sua militância leiga passou a discursar e agir contra
os regimes de força bruta na Argentina, Chile, Brasil, Bolívia, Paraguai, Equador, El Salvador e
Peru. Nestes países, desde 1976, a Igreja Católica enfrentava diretamente os governos militares
assumindo o lado da luta popular. No Paraguai, assumiu a luta camponesa; na Bolívia apoiou a
greve dos mineiros; no Peru enfrentou o modelo de desenvolvimento econômico exportador e
latifundista; posicionou-se fortemente pela reforma agrária no Equador e El salvador. Seguindo uma
cronologia ativista, em 1977, posicionou-se firmemente no Chile, ao lado dos camponeses e, em
1978, pela causa operária e contra o aparelho repressor de Pinochet.
No Brasil, a trajetória católica foi longa e bastante conflitiva em relação ao poderio
militar e repressão pós-golpe. O envolvimento da Igreja católica com o movimento camponês
no nordeste brasileiro, desde os anos 1950, já havia produzido setores críticos ao Golpe de
1964 desde seu período inicial.8 No entanto, foi em 1968, que parte significativa do clero
brasileiro ocupou papel na cena de oposição ao regime militar nos episódios que
envolveram a forte repressão ao movimento estudantil e, inclusive, a repressão à greve e à
ocupação militar da cidade de Osasco. Dentre algumas figuras referenciais, Dom Paulo
Evaristo Arns, arcebispo metropolitano de São Paulo, entre 1970 e 1998, assumiu liderança na
8
SOUZA, C. M. Pelas ondas do rádio: cultura popular, camponeses e o rádio nos anos 1960. São Paulo:
Alameda, 2013.
defesa dos Direitos Humanos, tendo reconhecido papel na articulação do MDH contra a
tortura e pela defesa dos presos políticos, sendo citado recorrentemente pelas lideranças do
CDDHO como um apoiador referencial da formação do Centro em Osasco.
Na cidade de Osasco, até o tempo presente, uma experiência advinda da ação
católica marcou a memória social: a ação dos padres operários. Padre Barbè era francês e
membro da Missão Operária São Pedro e São Paulo-MOPP. Mudou-se para o Brasil em 1964
e passou a morar na Vila Yolanda, bairro de Osasco. Estimulado pela atuação político-
social em cidades e bairros de trabalhadores, os padres franceses da MOPP
trabalhavam, viviam e evangelizavam em comunidades operárias. Domingos Barbè e
Pierre Wauthier foram dois ícones ativistas da cidade que se empregaram; o primeiro, na
Cobrasma e, o segundo, na Brasixos Rockwell S/A, experimentando a vida e o cotidiano
do trabalho fabril, convivendo com as famílias e atuando nas paróquias periféricas. Whauthier
se associou ao Sindicato dos Metalúrgicos de Osasco e junto com os operários, em 18 de julho
de 1968, foi preso durante a greve e encaminhado ao DOPS/SP, sendo deportado pelo governo
militar em agosto. Barbé, escapando da prisão e deportação, tornou-se um mediador
referencial das comunidades operárias, articulando ações visíveis de proteção a direitos
humanos, do trabalho, direitos sociais e econômicos, sendo o CDDHO o lócus que concentrava
estas ações em 1977.
Em pouco tempo, a estrutura permitiu a formação de uma verdadeira teia de relações locais
com equipes de plantonistas em diferentes paróquias de Osasco, do Jardim Munhoz e Vila Yolanda.
Depois espalhou-se para Jardim Veloso, Cipava, KM 18, Santo Antônio e Jardim Novo, atingindo
outros municípios, como Vila Analândia em Jandira, Jardim d´Abril e Jardim Arpoador em São
Paulo, Cotia e Itapevi.
A gestão do Centro era realizada por uma diretoria eleita, bienalmente, e, a partir da diretoria
organizavam-se as diretrizes do organismo, seus setores – o setor financeiro, de atendimento, de
divulgação – além do fluxo de trabalho dos plantonistas e secretários executivos responsáveis pelas
atividades rotineiras e atendimento na sede da entidade. Nas ações em paróquias, o CDDHO
contava com o trabalho voluntário organizado pela gestão, sendo o “plantonista da comunidade”
um agente local voluntário, que nas paróquias recebia casos e encaminhava ao Centro.
Como instituição jurídica, o CDDHO era financiado por recursos oriundos da
Coordenadoria Ecumênica de Serviços-CESE e por doações realizadas em grande parte pelos
associados da organização (usuários das paróquias). Desde o início de sua estruturação, o Centro
buscou angariar fundos e recursos dos setores eclesiásticos, tanto em nível nacional quanto
internacional. Por intermédio do Padre Domingos Barbé, o CDDHO contou com o apoio de
agências de cooperação internacional, tais como a Juventude Católica Austríaca e a Obra
9 Entrevista de Maria Aparecida, gravada em 05 de agosto de 2015 para o Projeto “Todo Direito é Humano”
Histórias do Movimento de Luta pelos Direitos Humanos em São Paulo, o CDDHO. O Projeto Universal
teve financiamento do CNPq, coordenado por Claudia Moraes de Souza. A entrevista está arquivada no Banco
de História de Vida, em audiovisual, sob a guarda da Universidade Federal de São Paulo/UNIFESP campus
Osasco.
Kolping. 10 Entre os anos de 1978 e 1988 contou com uma estrutura sólida de
plantonistas, advogados e outros profissionais, assim como com sede específica e de
visibilidade na cidade de Osasco, tudo em função dos financiamentos externos de obras
católicas.
10
A Obra Kolping é uma associação internacional católica que atua no campo social a serviço do trabalhador e
sua família. Como missão institucional busca promover o exercício da cidadania através do desenvolvimento
profissional, ambiental, cultural, religioso e comunitário.
saúde e moradia, ou seja, os elementos do modelo desigual de crescimento brasileiro, ao processo
urbano de ampliação da insegurança social, demandando junto aos poderes locais e ao poder federal
uma política pública para a construção da seguridade social. Em seu discurso sobre a violência
policial, já debatida aqui como presença constante no circuito urbano local desde 1968, apresentava
como causas do número abusivo de encarceramentos: a injustiça e o abuso de poder de polícia,
fruto do estado autoritário e ditatorial.
O CDDHO manteve um boletim informativo – o jornal Passo a Passo – desde 1983,
responsável por denunciar amplamente a violência policial na região, criticando o abuso dos
poderes policiais junto ao cidadão comum e ao homem pobre e periférico; denunciando ações do
Esquadrão da Morte e seus crimes; denunciando a situação da população carcerária em São Paulo
e a violação dos DH nas instituições públicas prisionais e nos aparelhos de repressão, paralelamente
ao apoio jurídico às famílias pobres vítimas da violência institucional. Em 1983, ano de lançamento
do jornal Passo a Passo, o CDDHO organizou, em Osasco, o “Tribunal Santos Dias de Violência
Policial”, um júri popular para amplificação do debate sobre a violência policial, abusos de poder,
tortura contra os presos comuns e abuso de autoridade contra a população pobre.
Para além da defesa dos DH, o CDDHO tornou-se o espaço referencial para organização de
vários movimentos, entidades e associações, na região oeste de São Paulo, entre eles a
reorganização do Sindicato dos Metalúrgicos, a formação do Sindicato dos Bancários e do Partido
dos Trabalhadores em Osasco. Acirradamente, a partir de 1981, ampliou o seu leque de ações
políticas. Naquela conjuntura, a ação do Centro refletiu a multiplicidade de demandas da população
periférica de Osasco e região. O movimento popular por moradia que começava a ganhar força
tornou-se vigoroso, assim como, o movimento pelos direitos das mulheres, a reorganização sindical,
o movimento pela educação e por creches e a luta contra arrocho salarial e desemprego.
Entre 1981 e 1988, as questões sociais aparecem recorrentemente na documentação do
CDDHO como foco da mobilização da instituição, o que resulta em muitas ações jurídicas,
campanhas, organização de seminários e plenárias, manifestações de rua, etc. O Centro aglutinou
um trabalho referencial de defesa e orientação jurídica, mobilização e assessoria a movimentos
sociais nas áreas: de moradia, no movimento contra o desemprego, reorganização sindical, saúde,
educação, questões da mulher, reforma agrária, dentre outros. Em 1988, a amplificação da ação
seguiu o processo político da transição democrática. Claramente podemos perceber no CDDHO,
guardadas as questões que diferenciam seus militantes, a edificação de um discurso coeso acerca
da democratização. Os preceitos da democracia participativa foram condutores das ações e dos
rumos tomados pelo organismo. O CDDHO expressava e defendia a força popular como agente
executor e empreendedor de suas decisões; a participação política como forma de combater a ordem
vigente e a desigualdade social; a superação do sujeito passivo e construção do sujeito ativo
propositor da política pública e em relação dinâmica como Estado. Na transição democrática, o
Centro atuou com clareza na estimulação de processos de viabilização da democracia participativa
num marco temporal balizado pela Anistia e a luta pela Constituinte – com forte ação junto aos
movimentos populares pelas demandas cidadãs na Assembleia Constituinte de 1987/1988.
No contexto dos anos de finais dos anos de 1970 e da crise econômica que marca a década
de 1980, os movimentos sociais brasileiros vigoraram na cena política manifestando-se acerca das
incapacidades do estado brasileiro em atender demandas dos direitos sociais e econômicos contra
a desigualdade social, assim como, contra o autoritarismo do Estado que insistia na exclusão da
participação popular da política institucional e da política pública. Como parte do contexto dos
movimentos populares urbanos, o CDDHO manifestava a crítica direta ao Estado e às suas
incapacidades de responder as demandas dos direitos sociais, políticos e econômicos dos moradores
das periferias de Osasco e região.
Com base política nitidamente composta pelas classes populares, o CDDHO agregou as
múltiplas demandas do movimento social urbano tornando-se um ponto de convergência de
demandas oriundas das deficiências de políticas urbanas na região. Seu ponto de destaque, no que
tange à organização do movimento popular, advindo de seus vínculos com a Igreja Católica, focava
a mobilização e a ampliação da participação política, principalmente a participação popular na
construção de soluções aos problemas coletivos, o que se materializa em propostas de participação
popular na política pública, em um momento histórico em que a estrutura das relações de poder
transitava muito lentamente do autoritarismo à constitucionalidade.
Neste sentido, este artigo analisou a experiência política do CDDHO e seu papel de
mediador institucional na relação estado-sociedade no campo amplo dos direitos humanos como
direitos fundamentais. O Estado autoritário negligenciou e omitiu-se de sua função de gestor
responsável pela distribuição e garantia de serviços e renda aos setores carentes da sociedade
brasileira; de outro lado, destacou-se como repressor, violador e ameaça aos direitos humanos a
todo e qualquer cidadão brasileiro. Foi neste contexto que os movimentos sociais urbanos
potencialmente se tornariam agentes centrais da transformação política brasileira. Como peça chave
de uma ampla engrenagem social, os movimentos populares, de fins dos anos de 1970 e início dos
anos 1980, fomentaram lutas urbanas e rurais de importância fundamental na transição democrática.
A capacidade de inventar e reinventar formas de atuação política, reivindicando participação social
popular com a incorporação da maioria da população na tomada de decisões foi, de fato, o elemento
dinâmico dos chamados “novos movimentos sociais” no Brasil e América Latina ao final das
ditaduras.
Na análise da trajetória histórica do CDDHO, em Osasco, visualizamos: o protagonismo na
sedimentação de uma organização projetada para a proteção dos direitos humanos, que ao longo do
tempo, e, no desenrolar da história local e global, adotou sentidos múltiplos de ação, que transitaram
da denúncia de padrões de violações sistemáticas dos direitos humanos para a edificação de um
movimento muito diverso em sua composição e seus fins. Se, no contexto de seus primeiros anos,
o movimento de direitos humanos no Brasil e América Latina, se constituiu fundamentalmente por
organizações de vítimas das ditaduras e seus familiares – especialmente nos países do Cone Sul –
complementado por ativistas, juristas e militantes católicos que apoiavam as demandas desses
grupos – na trajetória do lento restabelecimento da democracia, os processos de reinvindicação
sociais e econômicos se desenvolveram no interior destas instituições, abrindo espaço para
ramificação das pautas do movimento de direitos humanos para exigir os direitos fundamentais se
expandindo nas direções do campo social e econômico.
A partir dos primeiros passos dados na transição democrática, as organizações de direitos
humanos no Cone Sul estenderam sua esfera de influência original, passando a participar de forma
ativa em questões tão diversas e atuais quanto a luta contra a discriminação racial, a luta pelo direito
à diversidade sexual, a luta pela ética na política e a luta contra a fome e a pobreza. Assim, ocorreu
com o CDDHO. Seu protagonismo fomentou a luta pela anistia, a luta pela contenção da violência
institucional compondo o quadro da transição democrática, acrescentando a ela o fator da
diversificação da luta dos DH, rompendo padrões da denúncia de violações sistemáticas e
aberrantes e transitando para um movimento muito mais dinâmico em sua composição e seus fins,
fato que caracteriza e identifica, até os dias atuais, o Movimento Nacional dos Direitos Humanos
no Brasil- MNDH.
AARÃO REIS, Daniel. Ditadura Militar: esquerdas e sociedade. Rio de Janeiro: Jorge Zahar,
2000.
ALVES, M.H.M. Estado e oposição no Brasil (1964-1984). Tradução de Clóvis Marques. 5. ed.,
Petrópolis: Vozes, 1984.
MULLER, A.; GREINACHER, N. Igreja e Direitos Humanos. São Paulo: Vozes, s/d.
VIEIRA, J.C. Direitos Humanos e democracia no Brasil. São Paulo: Loyola, 2005.
VIOLA, S.E.A. Direitos Humanos e a democracia no Brasil. São Leopoldo: Ed. da UNISINOS,
2008.
Cadmo
Agora desvarias e, em teu senso, sensatez não há. [...].
Penteu
De astúcia usas, para eu mais querer escutar.
(EURÍPIDES, p.12, 14 e 19).
Para Pierre Ansart, na leitura de Stella Bresciani e do próprio Ansart, a historiografia tem
dificuldades em enfrentar temas como “[...] persistência de um apego, violência de um amor, [...]
ódios políticos” (ANSART, apud BRESCIANI; ANSART, 2002, p.7). E questionam: buscar apenas
o racional e escantear as paixões não seria, ao contrário do que parece, uma atitude irracional?
Afinal,
[...] a existência de um vínculo duradouro entre a identidade e a afetividade vem
sendo, ultimamente, confirmada pelas experiências quotidianas, assim como pelas
análises das várias disciplinas voltadas para as questões sociais. Nossas identidades
coletivas, profissionais, partidárias, nacionais não deixam de ser marcadas pelas
satisfações ou frustrações, por todas as gradações possíveis do prazer e da dor e, em
casos extremos, pela exaltação dos sucessos ou pela agonia da perda, do
desmembramento (BRESCIANI; ANSART, 2002, p. 8).
As reflexões desses autores sobre a conexão entre sonhos, ação, imaginação e identidades
podem ser férteis para refletir sobre formação docente, tendo em vista a dificuldade em separar o
pessoal do profissional, o afeto da razão, o cognitivo e o intuito nas práticas de sala de aula.
Obviamente, Bresciani e Ansart possuem outros centros de preocupação: anunciam a dificuldade
em separar razão e paixão para escrever história e conectam-na com identidades e também com a
utopia e a ação nas lutas pela democracia. Mesmo assim, abrem as portas para se pensar a conexão
com as identidades docentes e também com a História Oral, tendo em vista o potencial desta para
acessar as paixões.
Paixão, para alguns filósofos (notadamente pela matriz aristotélica), segundo Lebrun (2009,
p.12), é aquilo que acontece com cada pessoa, o que se sofre. É oposta à ação e inferior a ela. A
paixão também conduz a pensar na relação com o outro: “[...] A paixão é sempre provocada pela
presença ou imagem de algo que me leva a reagir, geralmente de improviso. Ela é, então, o sinal de
que eu vivo na dependência permanente do Outro” (LEBRUN, 2009, p.13). Assim, a paixão está
diretamente conectada com a mobilidade, a imperfeição, o humano, aquilo que pode ser
modificado, isto é, as reações de cada um pelo que vem de fora e que afeta. Nesse sentido, sua
conexão com a utopia é evidente – se a entendemos junto com a Escola de Lecce – como projeto
de futuro realizável, derivada de crítica aos problemas do tempo presente (PACIEVITCH, 2014).
Ainda segundo Lebrun, não é possível não sentir paixão. Paixões seriam constantes
antropológicas, assim como os ímpetos para mudar as coisas, como afirma Arrigo Colombo (2009).
O julgamento social não se estabelece, portanto, por se possuir ou não as paixões, mas pela forma
como elas se manifestam ou se reprimem, ou seja, trata-se de um problema ético que mede a virtude
não pela renúncia às paixões, mas pelo aprimoramento da conduta cotidiana perante as paixões
(LEBRUN, 2009, p.15).
Isso não significa que a virtude vem de encontrar o ponto médio, mas, sim, de saber
mobilizar diferentes intensidades e tipos de paixões conforme a situação. Novamente, paixões
ligam-se com o movimento, a mudança e a leitura do outro. Entretanto, essa visão aristotélica das
paixões só é possível se desconectada da matriz cristã que coloca a humanidade em combate entre
pecado e santidade e, por isso, desconcerta o pensamento contemporâneo pela ausência da luta
interna contra maus impulsos. Com essa matriz, assim como com Kant e com os estóicos, as paixões
são vistas como obstáculos a vencer. Para Aristóteles, ao contrário, ainda na leitura de Lebrun, “[...]
paixão e razão são inseparáveis, assim como a matéria é inseparável da obra e o mármore da
estátua.” (2009, p.18).
Nesse caminho interpretativo, Hegel seria o filósofo moderno que melhor contempla esse
significado, ao devolver dignidade à noção de páthos, pois se trata de uma paixão refletida,
consciente. Entretanto, tal consciência ou reflexão sustentam-se não pelo ratio romano, mas, sim,
pelo logos aristotélico, isto é, não por uma regra universal, mas pelo trabalho de adequar-se a cada
situação. Esse tipo de ética pode ser importante para se pensar na docência apaixonada: como os
professores trabalham suas paixões e utopias pessoais perante as responsabilidades docentes,
componentes da profissão? Pela lógica aristotélica, todas as pessoas são plenamente responsáveis
pelas paixões que sentem e pelo que fazem em decorrência delas, não havendo desculpa para
arroubos insensatos. É nesse sentido que Lebrun enxerga o afastamento maior entre nosso
humanismo atual e Aristóteles.
Lebrun termina nessas constatações, alertando para a diferença entre o pensamento antigo
e o contemporâneo. Sergio Paulo Rouanet (2009), porém, tensiona um pouco mais essas diferenças
para refletir sobre a epistemologia contemporânea a partir de “As Bacantes”, de Eurípides. Para
Rouanet, Penteu representaria a razão iluminista contra o charlatanismo e a superstição, o que
aparentemente é irracional. Tirésias é vidente, cego e defende os ritos e a observância das tradições.
Essa dicotomia, porém, é enganosa:
[...] a loucura de Penteu está em que suas palavras parecem razoáveis, mas não o são. Sua
loucura é um simulacro de razão [...]. O saber de Tirésias incluir o de Penteu, e o supera
[...]. Sua razão é mais rica que a de Penteu porque sabe o que ele não sabe: que a razão
pode ser a simples máscara da demência. [...] Como homem de bom senso, Tirésias sabe
que a razão que exclui a paixão dionisíaca é uma razão insensata. Basta esse bom senso
para mostrar a insanidade de uma atitude que exclui todos os momentos passionais, sem
nenhuma necessidade de um saber esotérico. (ROUANET, 2009, p. 505-506, grifos
adicionados).
Além disso, Penteu nega-se a abrir-se para o novo e tem atitudes tirânicas, o que demonstra
as fronteiras deslizantes entre paixão e razão. Primeiro, porque Penteu, no auto-engano de reprimir
as paixões, perde a objetividade. Tirésias, entretanto, consegue manter a objetividade justamente
por abrir espaço às paixões. A manifestação da paixão não é por si só negativa ou positiva.
Entretanto, ela pode manifestar-se de modo sensato ou insensato (ROUANET, 2009, p. 514).
Dessa forma, a razão que se relaciona de forma livre e autônoma com as paixões é a razão
sábia. Aquela que inibe o desejo e força o apagamento das paixões é a razão louca (ROUANET,
2009, p. 514-515). Rouanet recorre a Freud para delimitar o que é a razão louca, isto é, a falsa
consciência (também conforme Engels). Freud explica que essa falsa consciência acontece quando
a percepção do mundo externo se constitui apenas do ponto de vista interno da pessoa, mas se
expressa de tal forma que parece coadunar-se com o mundo externo. Esse movimento contribui
para “[...] sabotar a objetividade do pensamento” (ROUANET, 2009, p. 519).
Uma primeira forma de perceber essa razão louca é quando ela nega a própria influência
das paixões, que Rouanet identifica com o positivismo. A segunda forma é pela exaltação da paixão
e pelo desprezo à razão (mas ainda utilizando de meios racionais), como, por exemplo, em
Nietzsche, Heidegger e Derrida. A razão louca imita a paixão, mas não realiza uma “elaboração
reflexiva” (ROUANET, 2009, p. 521). A razão louca é problemática, tanto por conta da repressão
(recalque) como por conta da liberação conduzida apenas pelos interesses do poder. Nenhuma das
duas permite a autonomia.
Quanto à razão sábia, Rouanet afirma:
Como órgão do conhecimento, a razão sábia, interagindo com a paixão, consegue o que a
razão louca não consegue: ter acesso ao saber imparcial. É a tarefa do Ego, não como sede
da defesa, mas como sede dos processos intelectuais: ele afasta as interferências afetivas e
obtém um conhecimento fidedigno, tanto ao nível da percepção como de pensamento.
(2009, p. 524).
Não é a razão que é castradora, e sim o poder repressivo, que deriva sua solidez da
incapacidade de pensar que ele induz em suas vítimas. O fascismo se implantou através
da difusão de uma ideologia vitalista reacionária, que proclamava o primado dos instintos
vitais sobre a razão, e com isso inutilizou a razão, o único instrumento que permitiria
desmascará-lo como a negação absoluta da vida. (ROUANET, 2009, p. 530).
Por fim, quando a razão sábia interage com a paixão, ela produz a autonomia e não mais a
heteronomia. Com isso, aproxima-se do Iluminismo, que reconhecia a dignidade das paixões. Para
ficar ainda mais explícito: a inibição das paixões, na razão sábia, não acontece pela defesa, mas,
sim, pela consciência, pela inteligência, nas palavras de Freud, pelo “juízo de condenação”
(ROUANET, 2009, p. 532).
Por ser autônoma, a razão sábia é crítica. Ela consegue perceber os afetos inseridos pelo
poder a fim de torná-lo invisível. É capaz, ainda, de liberar as paixões que confrontam a dominação
exercida pelo poder.
Porque pra passar pro aluno uma coisa do sistema copiada, é muito melhor eu passar essa
paixão que eu tenho. Se eu passar essa paixão, metade da sala se apaixona também. A
outra metade odeia, mas a metade se apaixona também.[...] O curso era lindo, ela me
contava e eu me apaixonei! A primeira paixão era História.
Então, me considero realizada, mas não parei, porque comecei a aprender mandarim,
chinês.
Então, eu gosto muito de dar aula. Eu gosto muito de estar (ênfase) junto com o aluno.
Parte burocrática eu não gosto não. Não gosto muito, toma muito tempo, esse negócio de
ficar preenchendo papel, de conselho, disso, daquilo toma muito tempo da gente. Eu gosto
muito (ênfase) do que eu faço.
No início sentia muito, a desqualificação social para com a profissão; sempre um sorriso
amarelo a me sorrir quando dizia que faria História. Mas hoje vejo que minha opção não
poderia ser melhor.
Então é um sentido pra sempre, que vai te norteando, te direcionando. E a busca é pela
felicidade, tanto em termos financeiros quanto em termos de autoajuste pessoal. É esse
Deus, que me deu o dom, que me deu alegria pra poder trabalhar com meus alunos, que
me deu a saúde, que me deu o caminho pra me formar, é por esse Deus que eu acho que
tenho uma missão talvez mais do que importante diante dele.
Porque aí eu percebia que eles estavam entendendo o que eu estava falando. Enquanto só
eu falava, eles dispersavam. Isso foi muito significativo, foi uma virada na metodologia,
que trouxe um resultado bem mais significativo pra mim e pra eles também. Foi bom.
Isso, pra ter uma jornada menor e pra poder ensinar, porque meu pai falava que era tão
bonito, que era tão importante, apesar de não muito reconhecido, mas era bonito ser
professor. Era uma profissão digna, e respeitada. Ah, porque eu amo ser professora
{risos}. Por mais que todo mundo reclame, por mais que eu ache também que a gente
merece, sim, um reconhecimento, uma remuneração, um montão de coisa que todos nós,
educadores, sabemos, mas é uma profissão gratificante demais.
Tinha uns meninos jovens, adolescentes, algumas mulheres, foi uma sala muito boa, eu
comecei a me sentir professora nessa escola. [...] Ah, eu não consigo me ver fazendo outra
coisa... eu acho que vou fazer sempre…
Porém, o amor dos estudantes, o prazer em ensinar e o bem-estar em sala de aula não resume
o sentido que esses docentes atribuem à sua profissão. Elas e eles são bastante críticos e, novamente,
rompem com as fronteiras entre razão e paixão, profissão e vida pessoal, responsabilidade docente
e utopia ao tratar do papel do professor de História.
Então, hoje eu definiria [como sendo] o mundo tem necessidade do professor de História
que seja um professor que faça a diferença.
A História dá muitos caminhos pra gente. Eu acho que é uma das matérias mais
importantes que tem é História. Porque ela te abre os caminhos, você consegue enxergar
os caminhos que você não enxergava. Só que eu quando eu fiz História eu queria respostas.
Eu queria respostas para aquele povo passando fome, eu queria resposta pra morte do meu
marido, eu queria resposta pra eu ter feito tudo certinho e não ter dado certo. Eu queria
respostas pra mim, como ser humano, como pessoa. E eu acabei descobrindo que a
História me abriu muitos caminhos (ênfase) e a opção é minha. Eu vou ter que optar. [...]
Não que ele enxergue o que eu estou enxergando, mas sim que ele comece a observar que
ele pode (ênfase) enxergar coisas diferentes. Se ele colocasse alguma coisa totalmente
diferente do que eu falei, mas que fosse ideia dele, da cabeça dele, e tivesse uma certa
coerência, eu ficaria muito feliz de ele pensar diferente de mim, de discordar de mim! Mas
pra ele discordar ele tem que entender o que eu estou pensando, pra ele poder.
E aí você fica pensando, por que angustiar os alunos? É a minha função! É colocar outro
sentido. Você tem que quebrar um pouquinho esse equilíbrio dele pra ele começar ... a
pessoa que enxerga só em linha reta, você precisa chamar a atenção dele aqui, chamar a
atenção dele ali, pra ver se ele vira a cabeça, pra poder enxergar as laterais. Pode até andar
em linha reta, mas observe o que está acontecendo do teu lado direito, do teu lado
esquerdo.
Acho que o bom professor deve ser onipresente, ou seja, participar em todas as instâncias
da escola, e nunca pode negligenciar nenhum espaço democrático de construção; isso
serve de estímulo aos alunos, professores e pais.
Aí quando eu entrei, eu vi que ... não sei, tem aquela coisa, não sei de onde vem isso, de
que você tem que fazer, você tem que saber fazer e fazer bem feito aquilo que você faz!
Então eu achava que tinha que fazer bem feito e que eu precisava aprender. Não é assim.
Você não ganha o “passe” para ser professor com o diploma [risos]; é toda uma construção
o ser professora.
Ao lado desse sentido crítico e emancipador sobre a docência, os docentes reconhecem sua
conexão próxima com a formação humana dos jovens e a necessária reflexão (ou transmissão,
dependendo da perspectiva) de valores.
Olha, eu acho, eu não sei, mas o professor digno é aquele que defende os seus valores,
mas aí nós entramos numa questão muito complexa eu acho, porque eu soube de professor
inclusive que se droga e está em sala de aula e isso em Ensino Superior. Então eu fico
pensando: “será que eu estou errada?” Mas o professor digno é aquele que tem uma
formação sólida, que tem valores. Não precisa ser necessariamente um católico, um
adventista, mas que tenha um desenvolvimento espiritual, que tenha essa compreensão
dessa nossa humanidade que eu insisto tanto que precisa ser valorizada. Esse professor e
aí você diria assim: “que valores?” Mas por conta disso, pelo menos aquilo que ele acha
que é importante pra ele servir de exemplo, quer ele queira ou não, o professor serve de
exemplo pros mais novos. A mesma história do pai que quer ser amigo do filho, mas ele
é pai. Então, o professor, quer ele queira ou não, ele pode ser o maior amigo dos alunos,
mas ele vai ser sempre olhado como exemplo, ele vai. Se ele é olhado como exemplo, ele
não pode... enfim... caminhar assim pra, pra valores que ... ahm... que joguem o homem
na sarjeta. Valores que o inferiorizem. Talvez a melhor colocação seja essa: o ideal que o
professor persiga. O professor digno persegue valores que elevem a pessoa, que elevem o
homem a ele próprio. Acho que seria isso.
Eu sou contra essa reforma só de tapar buraco. Tem que ter uma renovação, não sei. Nós
tivemos aí, nós tivemos o que... Um renascimento. Nós estamos precisando acho que de
um outro renascimento.
Mas é você mexer, você remexer o fato e os envolvidos e você nesse momento poder
relacionar com a pessoa, com o atual, com a política hoje, com essa questão de ética, sabe?
Para eles eu tenho esse projeto de... é um desafio. Vamos tentar colocar aí nessas escolas...
mas trabalhar um pouquinho a ética, os valores, a solidariedade, acima de tudo, vamos
fazer gente aqui na escola. E com os pequenininhos, os desafios são menores, mas também
importantes. Vamos fazer essa garotada entender que as aulas são de 50 ou 100 minutos,
porque eles chegam totalmente desnorteados, porque saíram da “tia”, que era o dia inteiro
e daí eles não administram. [...] Eu tento ter o cuidado de procurar sempre permear o
ensino do conteúdo com a questão da ética, com os valores morais. Quando eu falo valores
morais, não calcado numa questão religiosa, que é muito delicada. Hoje, o Brasil é um
país que tem tantas religiões, tantas crenças, que dentro de uma escola é humanamente
impossível você fazer essa abordagem, pelo menos fazendo uma abordagem tendenciosa,
sem ferir alguém. Mas acho que você [deve] ser digno, ser honesto – eu sempre comento
com os alunos – nas coisas mais elementares! Parece que hoje ser honesto é ser bobo. Ser
educado é ser bobo. Pedir licença, pedir por favor, não é bacana, na concepção de mundo
que tentam passar pra gente. Parece que hoje ser desonesto é ser esperto.
Estando efetiva no Estado, sempre me identifiquei bastante com os alunos. Porque eu acho
que o trabalho de professor é ir um pouco mais além do que não é só o conteúdo, é muito
mais que isso. Questão da formação, valores, eu sempre, trato da formação como um todo.
Inclusive, agora, eu acho que é uma experiência bem interessante. Eu falei: “como são os
caminhos de Deus”, a diretora veio me chamar depois de tantos anos…
Papel do professor de História? Papel é levar o máximo de informações possível pro aluno.
E ele precisa estar bem informado, ele precisa estar lendo, ele precisa estar ouvindo, ele
precisa estar assistindo novela. Eu leio livro de piada, para saber algumas piadas, às vezes
quem sabe até da história do Brasil. Só que eu vou procurando a essência dessa piada,
porque surgiu isso, essa indagação o tempo todo. Eu acho que o papel do professor é
despertar a curiosidade do aluno, que ele seja curioso pela história dele.
Eu adapto muito esse tipo de conhecimento dentro da História. Trabalhar música pra
relacionar com aquela poesia, ou aquele documentário, ou aquela... Até nós tivemos uma
oportunidade de trazer um ex-pracinha da II Guerra pra conversar, então…
Eu tenho que seguir o Programa. A gente tem um Programa, um currículo, mas eu não
estou presa a ele... Eu tento trazer um pouco daquilo que a gente aprende para que faça
sentido para eles para dentro da sala de aula. Mas eu acho importante, tento sempre mostrar
a importância de a gente conhecer a História, você ver os povos, entender. Eu acredito que
quando você tem uma boa visão da História Geral você vê o mundo de uma maneira
diferente. Até com meus colegas de profissão, eu acredito que, quem não tem o
conhecimento de História, eu vejo que é um diferencial. Não é que seja relevante, mas é
um diferencial, como a gente olha o mundo, olha a vida, vê as relações sociais e isso é
extremamente importante.
Nós vivemos num momento de transição e de repente o que valia não vale mais. Então é
complicado dizer “o professor digno é aquele que tem que ter esse valor, aquele valor, tem
que ser honesto, tem que ser isso, tem que ser aquilo”. Eu acho que até não teria como eu
colocar assim. Mas por conta desse efervescer de valores que acho que mais uns 15-20
anos tudo se acalma e nós vamos começar a perceber realmente a Nova Era aí.
Cada um tem a sua cela, e dentro da sua cela cada um tem a sua solitária que é a sua
carteira; tudo cercado por muros, mas não pra segurança deles, pro bem-estar deles. Mas
quem sabe até pro meu bem-estar, aonde que muda de carcereiro a cada 45, 50 minutos.
E você joga lá dentro português, joga lá dentro Matemática, joga lá dentro Ciências, e joga
lá dentro História e você tem que pensar, que tem objetivos, e tem isso... Então você pensa:
“gente, que tortura!”. [...] Eu dou uma enxugada nela e deixo o que é importante. Será que
é importante pros meus alunos ou é importante pra mim? Eu estou passando para eles o
meu ponto de vista?
Não. Não porque é um processo vivido por mim. Aonde que a professora de História pode
ser um pouco mais radical, um pouquinho mais revolucionária, menos revolucionária,
contra isso, contra aquilo, porque ela viu a história, eu vi a história de dentro e quando a
gente está inserido na história a gente não enxerga muito. A gente, às vezes precisa sair...
O foco a gente tem que ver de longe pra gente conseguir enxergar. Então vai mudando a
minha concepção, o jeito que eu ensinava História e o jeito que eu ensino hoje mudou
muito depois que eu fiz o curso de História.
[...] Eu estou lidando com conhecimento! Eu não sou assistente social, eu não sou a mãe,
não sou o pai desse aluno. Eu sou professora (ênfase). Assim como nem sou pai dos meus
filhos; sou só mãe, eu só sou professora. Exijo respeito e respeito. Respeito eles e exijo
respeito. Eu nunca usei um tom pejorativo com um aluno. Façam silêncio, por favor, dá
licença, e se vocês não querem…
Vejo também que o nosso orgulho influi muito no que os outros pensam sobre nossa
profissão.
Mesmo tendo um pouco de decepção em relação à educação, ainda levo minha profissão
muito a sério.
[...] todos os lados, todos os sentidos, você pode trabalhar a moral, você pode trabalhar a
ética, você pode trabalhar o lado ecológico, você pode trabalhar política, religião,
sociedade em geral. Você pensa que é uma das disciplinas que te favorece muito pra
conduzir um verdadeiro cidadão, conduzir uma pessoa. Conduzir não digo, mas orientar,
informar a pessoa que tem um padrão profissional e humano melhor.
Na Psicopedagogia eu fui entender que eu tenho o dom de atrair os problemas. Aquele que
ninguém quer, é aquele que eu adoto. Aquele que ninguém dá valor... Só que agora eu
estou numa operação inversa, entendeu? Eu estou desapegando, porque eu estou parando
e eu já sofri muito, eu não quero sofrer mais. Como eu sofria, gente, como eu sofria e como
eu chorava de não dar conta disso. Hoje eu vejo, trabalhando com adultos, [que] consigo
ser mais feliz dando aulas para os adultos do que para os pequenos; eu vou obrigá-los a
fazer o que eu entendo que tem que ser feito.
Eu penso que sim, que tem muito e esse poder é até perigoso demais para a gente não ir
com muita sede ao pote e não soltar a criançada revoltada por aí. Então, a gente tem que
se policiar para dar alguma ferramenta e para tirar mesmo isso da ingenuidade. Para falar:
“opa, espera aí! Será que é assim ou será que pode ser de outro jeito?” Então, quando eles
fazem esse questionamento, a gente já sente que de alguma forma, já atingiu.
Por fim, nos testemunhos docentes se vê que a luta e o sonho compõem a profissionalidade
docente.
Eu tenho bastante coisas pra lutar dentro da instituição. Acreditar. Eu acredito que a sala
de aula transforma, eu acredito no que o meu trabalho transforma. Entende? Eu acredito
muito nisso. Claro que tem momentos que você desacredita, que você de certa forma abre.
Mas, sabe, eu acho que esse mundo não é o meu.
No dia-a-dia, no cotidiano, seja com a turma, seja aluno com a família, seja aluno com a
escola, precisa ter essa interação o tempo todo, você não pode se omitir! Não existe! A
vida está aí, está em tudo. Você vê os prós e os contras. Ou você interfere pra ajudar ou
então... omite-se, passa o conteúdo, mas passa aquilo muito vago na vida das pessoas.
Tentar melhorar como professor! E tentar ter um impacto maior. Mas o duro que a
estrutura não favorece muitas vezes.
Eu acho que essa escolha tem a ver com esse meu lado, não sei nem se de esquerda, mas
talvez progressista, não sei.
Eu já falei: a minha utopia é uma escola que permita que todos aprendam, e aprendam
bem. A minha utopia é que não exista mais escola “mais ou menos”. Minha utopia é que
ninguém tenha que colocar o menino na escola particular para ter numa escola boa. Essa
eu acho que é a maior de todas. Eu quero que todas as escolas sejam boas;
independentemente de serem públicas ou privadas.
O trabalho ali me trouxe muitas expectativas. Eu cresci [foi uma coisa], nunca me dediquei
tanto, nós três. Foi aquele momento propício, a junção dos três, que foi bem significativo.
Eu amei. [...] Eu quero que eles se encontrem. Mas bem... qual a palavra que eu usaria? A
relação deles com o ensino. Porque o aluno de EJA vem com uma autoestima muito baixa
em relação à escola; a maioria deles, se sentindo não capaz de aprender. E se eu vejo que
eles saíram da oitava confiantes, se vendo capazes... Então, eu gostaria muito mais que
eles se vissem capazes, como qualquer outra pessoa. A escola não redime. O que eles
buscam na escola, os alunos de EJA? Eles querem uma melhora de vida. Eles querem um
emprego melhor, ou satisfazer um sonho.
Esses professores participaram de duas pesquisas sobre identidades docentes, utopias e
ensino de História. Alguns deles apenas deram seus depoimentos, outros tiveram também aulas
observadas. Análises mais completas desses testemunhos estão disponíveis em diversas publicações
(PACIEVITCH; CERRI, 2010; PACIEVITCH, 2014). Assim, desde 2005, quando os primeiros
estudos sobre histórias de vidas e testemunhos docentes foram realizados, chamava a atenção a
recorrência da conexão íntima entre paixão pela docência e paixão pela História entre esses
professores.
Diversas perguntas surgiam à mente, colocando em questão a pertinência da paixão de
professores de História como objeto de estudo. A paixão poderia desviar os professores das
responsabilidades profissionais e de uma conduta ética na escola? Por outro lado, a ênfase nos afetos
poderia escamotear a legitimidade das lutas por condições de trabalho e de salário, bem como pelo
reconhecimento dos professores como intelectuais, reafirmando a docência como vocação?
Com receio de mergulhar na problemática dos afetos, a opção teórico-metodológica nas
pesquisas, até agora, foi a de se concentrar nas questões políticas, ideológicas ou utópicas que
envolvem a profissionalidade da docência em História. Porém, o alerta de Ansart para que a
historiografia preste mais atenção nos afetos, apoiado no raciocínio desenvolvido por Rouanet sobre
a conexão entre paixão e razão na luta contra as opressões, ajudaram a encorajar o presente
exercício.
Além disso, um dos resultados das pesquisas demonstraram que as utopias político-
educacionais expressas por professores de História aproximam-se, em grande medida, da promessa
Iluminista formulada por revolucionários franceses como os enciclopedistas, Rousseau e Condorcet
(principalmente o último). Trata-se da utopia da escola pública universal, laica, gratuita e que
garanta a todas e a todos o acesso ao conhecimento. Não é o professor, individualmente, que faz a
diferença na vida dos jovens e, sim, o conhecimento, que permite a criticidade para fazer escolhas.
Nesse sentido, considerou-se interessante investigar também a professores de História
franceses, tendo em vista a perenidade das tradições educativas e do ensino de História-Geografia
na França. Comparar os testemunhos de professores franceses, brasileiros e espanhóis permitiu
vislumbrar uma relação que, antes, se intuía, mas que não se havia demonstrado adequadamente
nas pesquisas: as dimensões políticas (as utopias) tinham, sim, um papel fundamental a
desempenhar na profissionalidade docente.
Entretanto, esse papel não se localizava no campo das identidades, nem apenas dizia
respeito apenas aos docentes com noções políticas mais à esquerda ou mais à direita, mais ou menos
experientes e assim por diante. Foi possível demonstrar que os docentes lançavam mão do político
para compreender, justificar e atuar sobre a tensão entre teoria e prática, ou entre história e educação,
que frequentemente compõe os processos formativos na área.
Dessa forma, a dimensão utópica deixou de ser uma “dimensão” – no sentido de compor
um universo que se evoca ou se afasta – para ser um definidor da profissionalidade docente em
História. É nesse sentido que as paixões, conforme exposto por Rouanet, podem ser visualizadas na
formação de professores de História: é o que permite a conexão íntima entre teoria e prática, a
relação dialética entre forma e conteúdo na organização do trabalho pedagógico, enfim: o que
permite construir os sentidos necessários à ação transformadora na docência.
Acompanhando Benjamin (1987) e sua ideia de experiência, não é desprezível a hipótese
de que tal compreensão só tenha sido possível porque as fontes documentais foram depoimentos
orais de professores de História, coletados em situações de confiança mútua e de empatia entre
pesquisadora e participantes. Houve espaço para que as narrativas se expusessem como elaborações
de experiência e, consequentemente, como fontes de sabedoria sobre a profissão.
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Eduardo Braga de Souza*
No Brasil, o maior exemplo que temos de resistência e luta é o dos povos originários, que,
mesmo, destituídos do direito à terra – a sua maior riqueza, vem demonstrando que através da
valorização da cultura, conseguem bravamente sobreviver e manter o modo de vida tradicional com
os seus costumes, valores, religião, organização política, econômica e, principalmente, social.
Chamados genericamente de índios, provam, de maneira contundente, que não são um grupo
homogêneo, e, sim, formam uma grande população, marcada profundamente pela multiplicidade
cultural de Norte ao Sul, de Leste ao Oeste do país; isso sem falar do Continente Americano como
um todo. A cultura dos povos originários não se encerra nela mesma, e, tampouco, se configura
Uma questão que tangenciou a produção do trabalho com as fontes orais em sala de aula foi
a de como desenvolver nas alunas e alunos, a consciência de que a história, – como gosto de
enfatizar em sala de aula – não são apenas fatos, acontecimentos, processos e eventos isolados em
um livro, sem nenhuma relação com o sujeito que lê ou influencia o processo histórico. Ou então,
que a história se trata apenas de lembrar os feitos grandiosos de generais e presidentes em grandes
guerras, na produção de grandes monumentos, templos e palácios, ou seja, uma história que
contempla apenas a superestrutura política, retirando do contexto, os grupos sociais e as minorias
que tiveram papéis de grande relevância para as transformações ocorridas ao longo do tempo
histórico, mas que mesmo na base das “pirâmides sociais”, transformaram a história e tiveram
grande relevância nos contextos em que atuaram.
O problema colocado aqui é: Como chamar a atenção dos jovens para o fato de que eles
também fazem parte da história e são agentes partícipes e capazes de transformar a sua própria
realidade, através da organização política e social?
O poema de Brecht coloca a questão em forma de poema, no famoso “Perguntas de um
trabalhador que lê”. Assim Brecht nos instiga a pensar:
São tantas perguntas, que nos levam a refletir sobre o nosso papel enquanto agentes
partícipes do processo histórico, e, mais do que isso, suscitam a reivindicação de um protagonismo
há muito perdido, e dentro do contexto atual, se apresenta deturpado, devido ao racismo, à
xenofobia, à desigualdade socioeconômica, e a todas as mazelas sociais que destroem o projeto de
humanidade.
Assim, é preciso dar voz às “culturas negadas e silenciadas nos currículos” como o professor
espanhol Jurjo Torres Santomé aponta em seu texto, através de uma crítica ferrenha ao modelo
tradicional de educação. Santomé explica que:
Uma educação libertadora exige que se leve a sério os pontos fortes, experiências,
estratégias e valores dos membros dos grupos oprimidos. Implica também ajudá-los a
analisar e compreender as estruturas sociais que os oprimem para elaborar estratégias e
linhas de atuação com probabilidades de êxito (SANTOMÉ, 1997, p. 171).
Os professores devem propor mudanças radicais nos currículos escolares ainda dominados
pelo eurocentrismo, evitando os erros cometidos por historiadores do passado que defenderam a
valorização de uma história política europeia e branca, em detrimento das sociedades tribais ou dos
Estados teocráticos constituídos em regiões da África, da América, da Ásia e da Oceania, que
sofreram com a violência física e ideológica, empregada pelo colonialismo dos séculos XV a XIX.
Tal processo legou às populações negra e indígena, um estigma de inferioridade, profundamente
marcado pelas diferenças culturais, vistas pelos europeus como uma justificativa para impor, através
da força, um regime de segregação racial, separando as sociedades em raças inferiores e raças
superiores, na qual o branco estava no topo da evolução.
O trabalho docente passa pela conscientização dos educandos, acerca da realidade na qual
vivemos, que é contraditória e que, por essa razão, suscita o desenvolvimento do pensamento
crítico, voltado a criar estratégias de sobrevivência, em um mundo cada vez mais dominado pelo
racismo, pelo preconceito, pela discriminação e por todas as formas de exclusão social.
No tempo atual, ainda é possível notar nas salas de aula, os elementos que nos levam a
constatar a presença do pensamento oriundo do colonialismo na mente dos educandos, como o
costume de negar, quando lhe é perguntado sobre sua crença, ou sobre a sua identidade étnica.
Geralmente os alunos se dizem católicos ou evangélicos, mesmo que sejam de uma religião de
matriz africana, como o candomblé, umbanda, entre outras, evitando, assim, não se diferenciar dos
outros, como se estivesse dominado por uma ideologia que o impede de se autoafirmar.
Partindo dessa reflexão, iniciei o trabalho de resgate da memória através da metodologia da
História Oral, visando o trabalho com as fontes orais, pelo qual os educandos realizaram entrevistas
com os familiares, procurando mapear, desde a origem da família, os lugares onde viveram, suas
experiências ao longo da trajetória de suas vidas, até o local onde vivem hoje. Para a entrevista foi
proposta a elaboração de um roteiro de entrevista, onde poderia constar as seguintes perguntas:
Essas, entre outras perguntas, aos poucos foram aparecendo nos roteiros de entrevistas, que
depois se transformaram num relato em forma de textos, nos quais, os alunos expressaram de forma
mais livre esse exercício de recordação do passado, de valorização da sua identidade sociocultural,
da noção de pertencimento ao lugar onde vivem, da construção e reconstrução da história de vida.
As respostas encontradas para a pergunta inicial aos poucos foram preenchendo as lacunas vazias
de conhecimento, se mostrando como importantes “pontos de partida” para a reflexão acerca do
melhor caminho a trilhar em busca de uma metodologia que melhor contemplasse o trabalho dos
alunos dentro de uma dimensão prática, e, também, que os fizessem “se encontrar com a sua
comunidade”, na posição de agentes críticos, percebendo as mudanças e permanências e as
contradições decorrentes dessa relação no espaço por onde circulam. Portanto, a intenção era a de
que eles se vissem como protagonistas de sua história, atuando e operando transformações em sua
realidade através da organização política, social e, inclusive, econômica, no que diz respeito à busca
de formas alternativas ao trabalho formal (com carteira assinada) para garantir o seu sustento, diante
do quadro de crise que o Brasil atravessa nesse ínterim.
O histórico de vida dos educandos tem aparecido frequentemente em pesquisas sobre
educação e se tornou preocupação entre pedagogos e especialistas, entrando para o corpo de textos
jurídicos como a LDB (Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional no Brasil), aprovada no
ano de 1996, ou seja, apenas dez anos após o fim da Ditadura Civil-Militar (1964-1986). Como
bem se sabe, ela impôs um viés extremamente autoritário, influenciando significativamente na
forma como a educação pública foi gerida, nesse período, tendo como base, a formação de mão de
obra disciplinada e “qualificada” (saber ler, escrever e realizar alguns cálculos) para o grande
capital. Em outras palavras, podemos dizer que a preocupação com o tema é recente, tendo em vista
o ano que a lei entrou em vigor no país, e que, ainda, vem sofrendo com um forte revés, por parte
de setores conservadores e liberais, seja no âmbito do estado, seja na sociedade civil.
No artigo 12, inciso VI da LDB, podemos verificar que o “ensino” terá “a incumbência de
articular-se com as famílias e a comunidade, criando processos de integração da sociedade com a
escola” (LDB, 1996). Como se pode notar, é evidente o caráter humanista que os visionários de
1996 atribuíram à legislação, tendo em vista a necessidade de superar o tecnicismo e a tecnocracia,
deixadas como herança dos “anos de chumbo” do regime ditatorial, que minou as bases
progressistas da vida política do país, e, consequentemente, do diálogo, da liberdade de expressão
e de pensamento, esvaziando o sentido de uma educação contextualizada e significativa para o
educando, voltada para os valores humanos e o exercício da cidadania.
Ao realizar a pesquisa sobre as origens de suas famílias, os educandos estabeleciam, de
forma intrínseca, uma relação com o lugar ao qual pertencem, como pude notar nos relatos que
descreviam detalhes do bairro, como ele é, o que acontece por lá, os locais por onde andam.
Era preciso nesse momento lançar mão de uma pedagogia que despertasse o educando para
a transformação, de uma condição passiva e de reprodução para uma condição ativa, crítica e de
protagonismo, na qual a criatividade fosse a base, já que as entrevistas, os textos, a apresentação e
os objetos de valor sentimental e histórico que deveriam trazer, seriam reunidos em uma aula, a fim
de organizar a “Exposição Histórias de Família”, voltada à visitação dos educandos de outras
turmas, dos professores, funcionários, pais e comunidade em geral.
O que pode ser avaliado nesse trabalho é a habilidade de expressar de forma oral as questões
que envolvem o cotidiano, no momento da apresentação das informações coletadas nas entrevistas,
ou da exposição das características dos objetos, pois, assim, os demais colegas de sala de aula
poderiam perceber semelhanças e diferenças entre as suas histórias.
A oralidade é uma característica própria do ser humano, que é iniciada no momento da
emissão das primeiras palavras, e se consolida, na fase escolar, quando se socializa com outros de
sua espécie. É o momento no qual a oralidade se transforma em confusão de ideias, que quando
bem explorada, pode se tornar uma aliada na difícil tarefa de ensinar pressupostos teóricos
conceituais importantes para o estudo da História, como memória, tempo, fato, mudanças e
permanências.
Tanto do ponto de vista do conteúdo, como da metodologia, a oralidade esteve presente no
processo criativo do trabalho, pois, essa habilidade é uma constante na sala de aula, principalmente
quando se trata de turmas de 6º ano do Ensino Fundamental, com 32 alunos dotados de desejos,
anseios, preocupações e personalidades diferentes. A agitação, típica das turmas desta faixa etária,
entre 11 e 14 anos, causa frisson nos professores que ainda veem a educação pública como uma
ferramenta de controle social e a reprodução dos conteúdos em sala de aula como a única forma
possível de viabilizar o processo ensino-aprendizagem. Existe uma contradição aí, pois, não é
possível que haja aprendizagem copiando e reproduzindo uma determinada informação
descontextualizada, compartimentada e que não faz o menor sentido para a vida do educando.
Assim, o que se espera dos educandos, com o trabalho sobre as histórias de família, do ponto de
vista da metodologia, é o desenvolvimento da sua capacidade de leitura de mundo, percebendo as
mudanças e permanências como elementos fundamentais dentro do estudo da História, bem como,
compreender que as experiências pelas quais os seres humanos passam através do tempo, embora
pareçam individuais, também podem ser coletivas, formando, assim, a memória individual e a
memória coletiva. Entre muitos grupos étnicos, espalhados ao redor do mundo, a memória coletiva
guarda a cosmovisão, que procura explicar a origem do universo, através de histórias fantásticas,
repletas de seres imaginários, antropomórficos e animais que se comunicam com os seres humanos,
lhes dando vida e auxiliando em tarefas.
Já a memória individual guarda os hábitos, costumes e regras de conduta que os ensinam a
como viver melhor na comunidade em que o indivíduo está inserido. Mas, é evidente que tanto a
memória individual como a memória coletiva se completam, de modo que fica difícil separar uma
da outra. As atividades com História Oral provam isso e nos ajudam a revelar o modo de vida dos
sujeitos históricos em sua individualidade, e, também, na relação com os outros que fazem parte da
comunidade onde vivem. Como se pode notar
Os alunos tiveram que elaborar um roteiro de entrevista, com perguntas sobre as origens de
sua família, em um exercício ativo de estudo e pesquisa sobre o passado, por meio da memória,
uma vez que a entrevista seria realizada com os parentes mais velhos de forma oral.
Nas histórias estavam presentes elementos específicos de sua cultura, como, por exemplo,
o caso de uma menina, cuja cor da sua pele, não a impedia de descrever com muito orgulho sua
ancestralidade negra e indígena, o que provavelmente lhe foi ensinado desde a mais tenra idade,
dentro de uma linha de pensamento voltada à valorização da identidade étnica a qual pertence.
Em muitos relatos, era possível perceber os hábitos e costumes, assim como, os valores
familiares que determinavam a forma como eles lidam com o meio social no qual estão inseridos,
como o relato de uma menina que nasceu no Uruguai, porque a família se mudou para o país, na
época da Ditadura Militar, para fugir da perseguição política sofrida no Brasil. Esse exemplo,
permite pensar sobre as possibilidades de encontros e desencontros entre a micro-história e a macro-
história, o que torna os estudos históricos mais dinâmicos, em vista da dificuldade de relacionar
acontecimentos e fatos históricos em espaços diferentes, dentro de uma política educacional que
impõe aos currículos escolares uma forma fragmentada de trabalho, fazendo das aulas de história,
momentos de contemplação do passado e de análise superficial
Muitos outros exemplos trouxeram à tona reflexões acerca dos fenômenos sociais, das
“experiências humanas” e dos tipos de famílias, sejam elas extensas ou nucleares, por exemplo,
permitindo, assim, uma melhor compreensão dos fatos, tal como eles se apresentam com suas
especificidades.
Um aspecto importante que se tentou buscar no trabalho, foi a valorização das fontes
históricas, bem como a memória e a oralidade, contribuindo de forma significativa para o
conhecimento histórico, uma vez que o educando vê a sua história sendo contada em sala de aula,
onde ele passa a ser protagonista, e não apenas um espectador.
Para Brodbeck “Além do conhecimento obtido através desse trabalho de resgate da
memória e do conceito de interpretação dos fatos, o professor pode comentar sobre a importância
das vivências em família e de como elas podem variar no tempo e entre os grupos humanos,
auxiliando.” (BRODBECK, 2012, p. 50).
Em meio aos textos escritos pelos educandos foi possível notar que as realidades relatadas,
ora se aproximavam, ora se distanciavam, trazendo à tona os problemas sociais comuns aos
indivíduos, sejam eles membros da família ou pessoas do seu convívio, da rua, do bairro e da escola.
Como proposto pelo professor, os alunos fizeram as entrevistas com os seus parentes,
procurando identificar as origens de suas famílias. Se vieram de outra cidade ou de outro bairro.
Como foi a sua infância? Que brincadeiras existiam? Essas, entre outras questões, aos poucos,
revelavam a identidade sociocultural, forjada de acordo com os seus valores familiares, o que
acabava por determinar a forma como cada grupo se colocava em cada situação, no tempo e no
espaço, permitindo a compreensão das transformações pelas quais o bairro passou, se foram boas
ou ruins, se influenciaram positiva ou negativamente na sua vivência em sociedade.
As questões relacionadas aos espaços de convivência com o outro, de lazer, o acesso a
tratamento de saúde como os postos médicos, o saneamento básico foram outras questões trazidas.
As mudanças ou/e permanências ocorridas ao longo dos anos, demonstram se é possível dizer que
existe progresso em nossa sociedade, como pressupõe algumas visões de mundo, como aquelas
ligadas à ideia que concebe o espaço urbano como uma área que tem esse objetivo, em detrimento
das áreas rurais, colocadas atrasadas, onde vivem pessoas rústicas.
Os alunos trouxeram objetos que continham valor sentimental e histórico, para “dar corpo”
à “Exposição História de Família”. Nos objetos também estava um pouco da identidade de cada
grupo familiar, pois, traziam as lembranças de um tempo que, embora não possa voltar mais, ainda
estava presente como uma força vital, capaz de ligar as gerações através de uma simbologia,
estabelecendo um diálogo entre passado e presente.
Outras atividades interessantes para trabalhar a memória individual e afetiva dos educandos
através da História Oral, é a “Linha do Tempo” e a produção de uma “Árvore Genealógica,” onde
o professor pode propor preencher com fatos que marcaram a sua história de vida, visando
completar os estudos históricos acerca das origens, características ou tipos de famílias.
Figura 1 – Educandos mostram seus trabalhos
Figura 2 – Professor e educandos pousam para a foto durante a “Exposição Histórias de Família”
Figura 7 e 8 – Alunas e alunos expõem os textos com as histórias de família, as fotografias e os objetos com
valor histórico e sentimental
Figura 10 – Detalhe dos documentos que fizeram parte da “Exposição Histórias de Família”
A história está repleta de exemplos “feios”. Mas, existe sempre aqueles que não se
contentam, e bravamente, resistem à dominação, buscando formas de dar sentido para a existência,
através da valorização da sua cultura, geração após geração, contando e recontando as suas histórias,
utilizando a literatura, seja ela oral ou escrita, como motivação, escrevendo no papel ou no coração,
as palavras que coordenam a ação em um discurso uníssono de união.
Pretendi mostrar para os educandos, que podemos transformar a nossa sociedade através do
conhecimento histórico, estudando, compreendendo e refletindo sobre os exemplos das gerações
que nos antecederam, evitando os erros e valorizando as experiências fortuitas, dignas de serem
lembradas pela sua importância para o fomento de uma cultura de paz e de solidariedade mútua.
Os exemplos das sociedades tribais, seja a dos indígenas americanos, seja a dos grupos
originários do continente africano, trazem a necessidade de barrar o avanço do sistema capitalista e
dos entraves impostos por ele, como o consumismo desenfreado, no nível material, e o
individualismo, no nível ideológico, que se assenta sobre os pilares da meritocracia.
A sua resistência, apoiada na luta pela terra e na valorização da sua cultura, pressupõe a
construção de uma nova sociedade possível, como um caminho para a participação cidadã, a
valorização da pluralidade das ideias políticas, da liberdade de expressão, do direito à memória, da
diversidade, e, acima de tudo, do respeito às diferenças culturais e do respeito entre todos os grupos
sociais e históricos que fazem parte da humanidade.
GIRAUDO, J. E. F. Poética da memória: uma leitura de Toni Morrison. Porto Alegre: Ed. da
UFRGS, 1997.
Em vista disso, e coerente com uma proposta de ação mais atualizada, ao mesmo tempo em
que o Museu Histórico de Nova Hartz trabalha com funções que são naturalmente suas — como a
guarda, o registro, a conservação, a proteção, a pesquisa, a exposição, a divulgação do seu acervo
—, ele também desenvolve um trabalho extramuros de inventário, proteção, tombamento, pesquisa
e divulgação do patrimônio cultural do município. Em outras palavras, está voltado para o trabalho
no qual “Homem e seu meio” estejam no centro de sua atenção, estando a “serviço da sociedade e
seu meio”. No caso de Nova Hartz, Museu e patrimônio caminham de mãos dadas, e as ações são
pensadas de modo amplo a abrangente, entendendo museus e patrimônio como campos distintos
que se completam e se complementam. Foi a partir da sua instalação que entraram em pauta, de
forma mais efetiva, discussão, debate e conversas com relação ao patrimônio cultural em Nova
Hartz, de modo que o Museu passou a ser referência na cidade com relação a essa temática.
Sendo assim, num trabalho de reflexão sobre as fontes, da mesma forma, com o mesmo
respeito, com a mesma criticidade e com o mesmo cuidado com que usamos as demais fontes
documentais, utilizamo-nos do banco de fontes orais para conhecer, ampliar o conhecimento sobre
a história da cidade, para trabalhar o patrimônio cultural, sobremaneira o imaterial, subsidiar as
exposições temporárias e para realizar o projeto de Educação Patrimonial “Você é feito de
histórias”, que é tema do presente artigo. Assim sendo,
De fato, o projeto de Educação Patrimonial vinha sendo trabalhado com muito afinco pela
equipe do Museu, por entender que ele gera, por intermédio da construção do conhecimento,
sentimento de identidade e de pertença. Também faz com que relações de afetividade se
desenvolvam e que isso resulte em maior participação e interesse da comunidade para com seu
patrimônio material e imaterial, bem como maior compreensão sobre o assunto. Nesse sentido, nas
palavras de Simão (2001, p. 45), “se o entendimento sobre as razões para a preservação de
referências do passado forem realmente compartilhados com todos os envolvidos, certamente o
comprometimento com a tarefa de preservar será significativamente maior.”
Iniciado em 2007, o projeto, primeiramente, teve como público-alvo os professores
das redes estadual e municipal de ensino,1 para que estes conhecessem o patrimônio cultural e
natural local, e assim tivessem condições de trabalhar com seus alunos a temática em sala de
aula. Após essa primeira experiência, no ano seguinte, começamos a desenvolver o projeto
com os alunos da 3ª série, hoje 4º ano, uma vez que é nessa etapa do Ensino Fundamental que
os alunos estudam o município. Não obstante, o limite quanto ao número de alunos envolvidos
vinha se dando em função do quadro de pessoal do Museu, sempre reduzido, o que
impossibilita que o projeto seja aplicado nas demais séries. Aliás, é o quadro de funcionários
do Museu que acaba por se tornar o definidor da execução do projeto. Para exemplificar isso,
pode-se citar o fato de que o projeto aconteceu nos anos de 2008 e 2009, porém teve de ser
interrompido de 2010 a 2012, voltando a ocorrer de 2013 a 2016. No corrente ano, o Museu
possui apenas uma funcionária, e por isso o projeto novamente deixou de acontecer.
Em linhas gerais, o que seria Educação Patrimonial? Entendemos que esta seja um processo
de construção de conhecimento, usando-se como tema de pesquisa o patrimônio cultural,
diferenciando-se das ações educativas por ser esta mais pontual, enquanto aquela se mostra mais
ampla e mais profunda. A esse respeito, a Coordenação de Educação Patrimonial do
IPHAN (2011) escreve que:
Toda vez que as pessoas se reúnem para construir e dividir novos conhecimentos,
investigam pra conhecer melhor, entender e transformar a realidade que nos cerca, estamos
falando de uma ação educativa. Quando fazemos tudo isso levando em conta alguma coisa
que tenha relação com nosso patrimônio cultural, então estamos falando de Educação
Patrimonial!
Dessa forma, o referido projeto busca construir conhecimento, tendo como foco da pesquisa
o patrimônio cultural tangível e intangível, com o objetivo de, por meio dele, gerar laços afetivos
da comunidade para com seus bens patrimoniais. Assim, é possível fortalecer, como já escrito, os
1
O município de Nova Hartz conta com escolas particulares apenas de Educação Infantil, mas, na época
em questão, também estas eram somente públicas.
laços de identidade e de pertencimento, provocando na comunidade a cumplicidade, a intimidade,
a responsabilidade para com eles. Assim sendo,
2Aqui entendido na perspectiva de Pierre Nora (1993, p. 21), para quem são lugares “[...] nos três sentidos
da palavra, material, simbólico e funcional, simultaneamente, somente em graus diversos. [...] só é lugar de
memória se a imaginação o investe de uma aura simbólica [...].”
pertencia a Taquara3 e onde se estabeleceu o núcleo inicial de colonização (Figura 3); na
terceira saída, visitavam a região da cidade que pertencia a São Leopoldo (Figura 4).
3 O município de Nova Hartz é cortado pelo Arroio Grande, que, no passado, era limite das cidades de
Taquara (margem esquerda) e São Leopoldo (margem direita)
Figura 3 – Visita à ICLB Campo Pinheiro
A última saída a campo era para visitar o Museu, oportunidade em que era possível fazer
uma síntese de tudo o que foi trabalhado ao longo do ano. Para tanto, oferecíamos também jogos e
brincadeiras, trabalhando a história da cidade de forma mais lúdica (Figura 5). Para encerrar o
projeto, era realizada uma gincana com atividades e brincadeiras sobre a história e o patrimônio
cultural material e imaterial da cidade (Figura 6).
Figura 5 – Visita ao Museu
É importante ressaltar que o projeto se desenvolvia ao longo do ano letivo, com a orientação
de que as temáticas fossem trabalhadas, partindo da realidade do cotidiano dos alunos, para então
estudar as tradições culturais históricas. Isso possibilitava que fossem trabalhadas as referências
culturais, tanto do passado quanto do presente, representadas pelas diversas etnias que hoje habitam
o município.
Entretanto, onde entra a História Oral neste projeto? Ela compõe o projeto em vários
momentos, desde a investigação sobre o patrimônio cultural material e imaterial até as visitas
realizadas nos lugares de memórias. Alguns materiais sobre as festas, a gastronomia e a
religiosidade são elaborados a partir das fontes orais. Nesse ínterim, o valor de memória e o
patrimônio afetivo das mais diferentes edificações são identificados a partir das fontes orais. Os
alunos podem, então, entender que, para além das características arquitetônicas, o que de fato define
um bem como patrimônio são os valores de memória que esse material representa para os
munícipes.
Além disso, as três saídas a campo que os alunos realizam durante o ano letivo, visitando
lugares de memórias, têm na fonte oral o seu maior apoio. Em verdade, todos os lugares visitados
por eles o são primeiro pela equipe do museu, que conversa com os moradores atuais ou com os
ex-moradores, faz o registro de suas memórias e estas são repassadas, posteriormente, para que os
professores as utilizem em seu trabalho. Quando os alunos visitam o lugar de memória do seu
bairro, na maioria das vezes são recebidos por moradores antigos ou pelos proprietários atuais, que
contam quando a edificação foi construída, qual a técnica construtiva empregada, as suas histórias,
a história da família, as lembranças que têm de sua infância e juventude naquele espaço. É muito
raro que um morador não deseje a visita das turmas de alunos e não os receba com carinho, embora
aconteça em casos bastante específicos, e com motivações igualmente específicas.
Nesse contexto, ao falar sobre sua vida, os moradores estão falando das suas referências
culturais, da economia, da religiosidade, do transporte, das sociabilidades, das questões de gênero,
dos valores. Os alunos e professores, então, entram em contato com as memórias afetivas que ligam
o morador à casa e aos demais membros da comunidade, àqueles acontecimentos vivenciados
naquele espaço. Dessa maneira, a preservação do patrimônio cultural passa a ganhar significado,
uma vez que ela passa a ser entendida, significada, e possibilita “[...] compreender e interpretar os
objetos e analisar sua relação com o passado, com o presente e sobre aquilo que conseguem
transmitir e construir, marcando um percurso dentro da atividade humana” (PINTO, 2013, p. 7). Ou
seja, as memórias, os saberes, os referenciais culturais andam de mãos dadas com a construção dos
saberes ditos “científicos”, com as pesquisas acadêmicas, com uma metodologia de trabalho mais
habitualmente utilizada, baseada em documentação escrita. Por sua vez, Florencio (2014, p. 24)
escreve que
[...] os processos educativos de base democrática devem primar pela construção coletiva
e democrática do conhecimento, por meio do diálogo permanente entre os agentes
culturais e sociais e pela participação efetiva das comunidades detentoras e produtoras das
referências culturais onde convivem noções de patrimônio cultural diversas.
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Isadora Ritterbusch Librenza
* Professora da Secretaria da Educação do Rio Grande do Sul. Mestranda no Mestrado Profissional em Ensino
de História/UFRGS.
mas sim apresentar as reflexões teórico-metodológicas pertinentes à História Oral, à memória e ao
gênero no ensino de História.
Primeiramente, é importante especificar que a opção por trabalhar com testemunhos de
mulheres que resistiram à ditadura civil-militar parte da constatação de que há, nos livros didáticos
de História, certo silenciamento quanto à atuação de mulheres nesse contexto. Aproximei-me deste
tema durante participação no projeto A história das mulheres que os livros didáticos não contam,
desenvolvido no Colégio de Aplicação da UFRGS. Nessa pesquisa, Vanderlei Machado observou
que vários manuais distribuídos pelo MEC não fazem referência à presença de mulheres na
oposição à ditadura militar. Segundo ele, “dos onze livros analisados somente três fazem referência
às mulheres nos textos sobre a ditadura” (MACHADO, 2010, p. 3).
Quando se trata da pesquisa acadêmica, há uma crescente produção sobre a presença
feminina nos mais diversos momentos da resistência aos governos militares. Elizabeth Ferreira
(1996), também trouxe suas contribuições ao tema com o livro Mulheres, Militância e Memória,
no qual reconstrói a trajetória de resistência de 13 mulheres a partir de entrevistas de História Oral,
sem adentrar, entretanto, nos domínios da política estudantil. Ana Maria Colling (1997), escreveu
um livro intitulado A resistência da mulher à ditadura militar, onde aborda, principalmente, a
presença de mulheres em organizações clandestinas de esquerda, mas também não contempla a
questão estudantil, restringindo-se principalmente à luta armada. Nos anos 2000 houve um boom
de produções que tratam da atuação feminina naquele contexto. Entre as diversas obras, é possível
citar o livro Mulheres e militância: encontros e confrontos durante a ditadura militar, de Ingrid
Faria Gianordoli-Nascimento (2012). Nessa obra, que lhe rendeu o título de doutora pela
Universidade Federal de Minas Gerais, a autora aborda a atuação de mulheres no Movimento
Estudantil no Espírito Santo, a partir de entrevistas de História Oral coletadas por ela.
É possível perceber, portanto, que o silenciamento observado nos livros didáticos não está
presente com tanta intensidade na produção acadêmica quando se trata da presença de mulheres na
resistência ao regime militar. A História Oral, como demonstrado, vem sendo amplamente utilizada
por pesquisadoras e pesquisadores que tratam do tema.
Esse questionamento, feito por Selva Guimarães Fonseca, instigou a elaboração do meu
problema de pesquisa, que propõe o uso das fontes orais nas aulas de História, com ênfase na
história das mulheres. Levando em conta que o Brasil é extremamente machista – em 2016, a ONU
Mulheres divulgou pesquisa na qual o Brasil é, atualmente “o pior país para se nascer mulher na
1
FONSECA,2006.
América Latina2 –, a pergunta que justifica a escolha da história das mulheres é: como utilizar
as aulas de história como um espaço de desconstrução do machismo?
Se a História tem um papel fundamental na elaboração das identidades individuais e
coletivas, ela também tem seu lugar na petrificação de determinadas condutas sociais, entre elas a
violência de gênero e sua invisibilidade e a memória coletiva excludente. A memória das mulheres
que resistiram à ditadura civil-militar brasileira foi silenciada por anos, ficando imersa em
generalizações que não contemplavam a atuação feminina nas várias formas de resistência à
ditadura. Os saberes (científicos, escolares, discentes), por sua vez, também saem prejudicados
diante deste silenciamento, que limita as interpretações historiográficas sobre o referido momento
histórico. Maria Paula Araújo, em seu artigo Uma História Oral da Anistia no Brasil: memória,
testemunho e superação, argumenta que
O trabalho com biografias e com a História Oral nos permite investigar como, concretamente, na
vida de algumas pessoas, este horizonte de possibilidades se apresenta. Essa é uma das maneiras
de [...] compreender a história a partir de uma ou múltiplas histórias de vida. (ARAÚJO, 2012, p.
69).
Partindo deste ponto de vista, uma narrativa escolar construída a partir de testemunhos de
mulheres pode trazer novas interpretações e apropriações do momento histórico da ditadura civil-
militar por parte do público escolar. Além disso, como muito bem coloca a historiadora italiana
Sílvia Salvatici (2005), em seu artigo Memórias de gênero: reflexões sobre a História Oral de
mulheres, a História Oral e a história das mulheres cresceram juntas, “de maneira natural”. Esse
entendimento da autora parte da análise de que ambos os movimentos têm uma origem comum:
revelar uma história oculta pela supremacia das fontes documentais e a supressão da presença das
mulheres como sujeito histórico. A História Oral possibilita que passagens e sujeitos até então
ausentes da escrita da História contemplados. Com isso, amplia-se o leque interpretativo da
História, surgem novos problemas e até mesmo novas categorias de análise.
Os testemunhos que serão utilizados nas atividades foram coletados no âmbito do projeto
“Marcas da Memória: História Oral da Anistia no Brasil”. Esse projeto, levado a cabo por equipes
das Universidades Federais de Pernambuco, Rio de Janeiro e Rio Grande do Sul, em 2011 e 2012,
surgiu do intuito de formar um acervo a partir de entrevistas de história de vida realizadas com
pessoas que foram afetadas pela repressão. Foram realizadas, ao todo, 108 entrevistas com mulheres
e homens que resistiram à ditadura militar (ARAÚJO, MONTENEGRO; RODEGHERO, 2012, p.
17).
Da totalidade de entrevistas realizadas pelo Projeto, tive acesso a 93, das quais 31 são de
mulheres – e constituirão o conjunto de testemunhos passíveis de utilização no decorrer da pesquisa.
2 O resultado da pesquisa foi amplamente divulgado pela mídia brasileira, como por exemplo no Jornal O
Globo, de 16/11/2016, na reportagem Brasil é o pior país da América do Sul para ser menina, diz relatório.
As entrevistas não são temáticas, mas sim da modalidade “história de vida”. Ou seja, partem da
infância das entrevistadas percorrendo suas trajetórias e priorizando, claro, assuntos relacionados à
ditadura civil-militar. As entrevistadas foram questionadas sobre temas relacionados ao início de
sua militância, prisão, tortura, exílio, anistia, organizações de esquerda, enfim, diversos assuntos
pertinentes ao entendimento da sua experiência no contexto da ditadura.
Como já foi dito, a metodologia da História Oral tem um forte potencial para a ampliação
do entendimento da história das mulheres e da ditadura civil-militar no Brasil, uma vez que
possibilita que se contemplem temas que não eram tão acessíveis através de outras fontes, tais como
a documentação oficial ou as oriundas da imprensa. Verena Alberti (2005), no artigo Histórias
dentro da História esclarece que, por aproximar o historiador das memórias daqueles que
experimentaram dado momento histórico, a História Oral permite que se ampliem as possibilidades
de interpretação do passado. A autora pondera, entretanto, que o grande erro a que o/a pesquisador/a
pode ser atraído é o de entender que a entrevista já é, por si só, história e não apenas uma fonte que,
como todas as fontes, necessitam de interpretação e análise. Sobre a subjetividade intrínseca aos
testemunhos, Alberti aponta que:
Hoje é generalizada a concepção de que fontes escritas também podem ser subjetivas e de
que a própria subjetividade pode se constituir em objeto do pensamento científico.
Surgiram novos objetos, e os historiadores passaram a se interessar também pela vida
cotidiana, pela família, pelos gestos do trabalho, pelos rituais, pelas festas e pelas formas
de sociabilidade (ALBERTI, 2005, p. 163).
A autora traça um percurso a ser seguido pelo historiador que venha a trabalhar com fontes
orais e comenta que é no campo da História Oral e da memória que esta metodologia pode trazer
as maiores contribuições, pois
No início, grande parte das críticas que o método sofreu dizia respeito justamente às
“distorções” da memória, ao fato de não se poder confiar no relato do entrevistado,
carregado de subjetividade. Hoje considera-se que a análise dessas “distorções” pode levar
à melhor compreensão dos valores coletivos e das próprias ações de um grupo. É de acordo
com o que se pensa que ocorreu no passado que se tomarão determinadas decisões no
presente. (ALBERTI, 2005, p. 163).
Pereira e Seffner alertam que um grande risco da utilização desse recurso é o de que ele seja
interpretado pela professora como uma resposta à corriqueira pergunta “como você sabe disso se
não estava lá?”. Desse ponto de vista, a fonte seria utilizada como forma de atestar a verdade da
narrativa do docente. Os autores ponderam que a melhor alternativa na utilização das fontes em sala
de aula seria a de aparelhar o ensino à “revolução documental”, valorizada sobretudo com a Escola
dos Anais, no momento de crítica ao Positivismo. Ou seja, a docente pode optar por utilizar o
documento como simples prova inquestionável da verdade, ou introduzir aos alunos à “crítica
documental”, segundo a qual o documento é visto como um monumento de determinado momento
histórico, que foi produzido e ordenado de modo a dizer algo.
No caso das fontes orais, mais especificamente àquelas que serão utilizadas na produção de
minha dissertação, os relatos das mulheres que resistiram à ditadura civil-militar brasileira não
servirão apenas como forma de entender de modo menos excludente aquele momento histórico,
mas também como recurso para compreender as disputas de memória que envolveram a produção
daquelas fontes. Além disso, as depoentes falaram com um grande distanciamento temporal dos
acontecimentos (cerca de 40 anos depois). Assim, uma série de fatores relacionados à memória, à
produção das fontes, ao silenciamento e à construção dos discursos pode ser analisada.
Como bem observou Temístocles Cézar no artigo Tempo presente e usos do passado (2012),
um dos grandes desafios do trabalho com testemunhos é a “crise de confiança” à que são submetidas
as memórias das testemunhas de casos-limite. No caso das sobreviventes da ditadura civil-militar
brasileira, inegavelmente lida-se com um caso-limite. Se mesmo a historiografia ainda se debate na
discussão sobre a memória, como utilizá-la em sala de aula, como traspor esse conhecimento ainda
em construção para o desenvolvimento dos saberes escolares? Segundo Cezar,
as técnicas convencionais dos historiadores não são suficientes para compreensão do Holocausto
ou os chamados acontecimentos-limite em regimes policialescos como o de segregação racial na
África do Sul ou do terrorismo de estado das ditaduras latino-americanas do século XX. Com
efeito, não seria um exagero afirmar que esse tipo de estudo pode conduzir a reconsiderações das
exigências da historiografia em geral. Logo, essa constatação não deveria ser um impedimento,
mas antes um estímulo para a exploração de modos de expressão alternativos que se estendam
além da narrativa histórica testemunhal ou acadêmica (CEZAR, 2012, p. 10).
Não há, portanto, consenso sobre como pesquisar e narrar tais acontecimentos. A professora
de História, por sua vez, tem a liberdade de optar por problematizar essas questões com seus alunos.
Assim, o ensino de História aparece como mais uma alternativa na compreensão desses
acontecimentos, junto com aquelas citadas por Cezar – o cinema, a música, as artes plásticas. O
saber escolar produzido no cotidiano das aulas de História é aqui entendido como possibilidade
frutífera de diálogo entre as memórias espontâneas (das estudantes), as memórias subterrâneas (das
entrevistadas), a memória coletiva e a história.
Sobre as relações entre história e memória, destaco o excelente artigo de Sabina
Loriga. Nesse texto, dedicado a discutir a tarefa do historiador na pendenga historiográfica em
torno das relações entre história e memória, a autora faz um apanhado das diversas formas
como esses dois campos tratam do passado, já encarados por historiadores.
Quando se trata do entendimento de Paul Ricoeur, ela aponta que todo o livro A
memória, a história, o esquecimento é:
marcado por uma ambiguidade relativa à imaginação histórica: será que o historiador que
desenvolve sua imaginação somente através da obra de modelagem, fundada sobretudo num
trabalho de reconstrução e recomposição dos vestígios externos – como Ricoeur parece sugerir
na segunda parte consagrada à epistemologia da história -, ou ele deve ultrapassar esses limites?
Ou seja, deve se reportar em imaginação ao passado como tendo estado presente e, portanto, como
tendo vivido pelas pessoas de outrora a título de presente de seu passado e de presente do seu
futuro, assim como se pode conceber a partir da leitura de Heidegger proposta na parte sobre a
condição histórica? (LORIGA. A tarefa do historiador. In: GOMES; SCHMIDT, 2009).
Esse questionamento, desenvolvido pela autora, nos leva a conceber uma grande
polarização entre a objetividade da História e a subjetividade dos historiadores e historiadoras.
Quanto ao ensino de História, não parece sequer interessante almejar que as operações em sala de
aula não se valham da imaginação histórica. Levando em consideração o artigo de Loriga, que
baseada em Freud afirma que o “estranhamento da história” (que tanto inquietava Ricoeur) é
causado justamente pela familiaridade que os sujeitos têm com o que os apavora, é considerável a
possibilidade de que o contato das estudantes com testemunhos orais mobilize memórias
individuais e, com elas, “algo muito familiar, tão íntimo que deveria ter permanecido em segredo”.
(LORIGA, A tarefa do historiador. In: GOMES; SCHMIDT, 2009).
Quando se trata de História Oral de mulheres é importante ressaltar que o crescimento de
ambos os campos (História Oral e história das mulheres) resultou em reflexões críticas que
“produziram um aparato crítico mais complexo, que levantou questões teóricas sobre memória,
significado e representação numa perspectiva de gênero” (SALVATICI, 2005, p. 32).
Se ensinar História sempre é um ato político, cabe explicitar que a motivação para a prática
e análise que se seguirá é a compreensão e modificação das desigualdades entre homens e mulheres.
Quem dá o aporte teórico que embasa esse posicionamento é a historiadora Joan Scott. Essa
pesquisadora não escreveu sobre o ensino de História (ao menos não sobre a Educação Básica),
mas traz grandes contribuições no que se refere à escrita da História. Essas contribuições podem
ser utilizadas no ensino, na medida em que entendemos que a prática de ensino é também lugar de
produção de saberes.
Tratando da escrita da História, ela indica que a simples apresentação de fatos que
documentam a existência das mulheres não necessariamente modificam a importância atribuída às
atividades femininas.
Apesar de as mulheres estarem “aparecendo” nos manuais didáticos, raramente são
apresentadas como sujeitos ativos, que pensam e modificam a realidade em que vivem. Para que
isso seja modificado, segundo Scott, é necessário que se questione termos que foram tomados como
auto-evidentes, historicizando-os. Ou seja, não se trata de dizer “o surgimento do homem” e em
seguida observar que as mulheres também estavam lá, mas de rever as palavras e conceitos que são
utilizados na prática de ensino. O que literalmente é dito importa muito, principalmente quando se
trata de crianças e jovens. Como indica Scott, “se se concorda que os significados são construídos
através de exclusões, deve-se explicitá-las”.
Ainda dialogando com a mesma autora, concordamos que “a história feminista deixa de ser
apenas uma correção do registro incompleto do passado, e se torna um modo de compreender
criticamente como a história opera enquanto lugar da produção do saber de gênero”. A isso é
possível acrescentar que, se a história é um lugar de produção do saber de gênero, o ensino de
História também o é, sendo ainda um espaço frutífero para a significação dos complexos saberes e
conceitos relacionados ao tema, temas estes que são relativamente recentes na epistemologia da
História.
Quando trato da epistemologia da História, estarei sempre dialogando com os apontamentos
de Fernando Araújo Penna sobre o assunto. O autor aponta que a epistemologia da História precisa
levar em consideração o destinatário dos saberes produzidos por historiadores e historiadoras, ou
seja, questionar-se: qual a função social desse conhecimento? Certeau, por exemplo, escreveu que
o destinatário dos livros de História são os historiadores. Penna sugere que se o campo de análise
da epistemologia da História seja ampliado para a Educação Básica, essa conclusão de Certeau
poderia ser relativizada.
Faço aqui, portanto, uma defesa da importância do ensino para a epistemologia da História.
Essa é uma forma de não descuidar da função social dos saberes históricos. Para Penna (2004), “a
história escolar ainda se baseia em sínteses feitas há 25 anos: o que significa uma renovação da
história que não a leva em consideração?”
Ana Maria Monteiro (2009) entende que os conceitos “saber escolar” e “saber ensinado”
ajudam a questionar a ideia de que ensinar é apenas transmitir conhecimentos produzidos na
instância científica. Para a autora, ensinar é atribuir significados. Assim, ela concorda parcialmente
com Pierre Nora, quando este diz que história é também lugar de memória. Parcialmente porque,
segundo ela, o sentido de “lugar de memória”, no caso do ensino, não seria o mesmo defendido por
Nora (lugar onde as memórias se cristalizam), mas sim no sentido de ser lugar onde as memórias
espontâneas são mobilizadas, tornam-se objeto de estudo e de possibilidades de recriação.
Concordando com Monteiro e buscando praticar os pressupostos detalhados acima, acredito
que professores e professoras precisam estar atentas para gerar, através do ensino, novos
conhecimentos que, apropriados, se incorporam nas memórias individuais das estudantes.
Entendendo, assim, o ensino de história, percebe-se que o papel mediador daqueles que ensinam é
fundamental para que a “vida” de determinado saber seja extensa, percorrendo os mais diversos
espaços da sociedade, sendo significado e ressignificado, tornando-se então um saber que realiza,
também, um papel social que extravasa a produção de saberes estáticos.
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Neila Prestes de Araujo*
6 Para leitura sobre o termo “Quase-Cidadão” ver debate em: Schwarcz (2007).
Figura 1 – Ilhota na dec. 1960, antes da remoção
Fonte: http://www.nonada.com.br/2015/06/ilhota-o-bairro-com-enchentes-de-contos/
11 É feita uma entrevista prévia que chamo de “visita inicial”, onde conversamos brevemente sobre o projeto de
pesquisa e a relação com o entrevistado e sua história; após marco uma entrevista gravada
12 A cadeira de História Oral (PPGHIS/UFRGS – ministrada pela Professora Dr. Carla Rodeghero) forneceu
momento de reflexão e formação fundamental para a qualificação do processo, que ainda precisa de muita
reflexãoe avanços.
13 O cruzamento das fontes é necessário, como lembra Alberti (2005, p. 30). “Se o emprego da História Oral
significa voltar a atenção para as versões dos entrevistados, isso não quer dizer que se possa prescindir de
consultaras fontes já existentes sobre o tema escolhido.”
14 Conheci Sr. Mozart quando estava cursando o Bacharelado em História na UFRGS em 14 de agosto de 2016.
Eu havia sido convidada por amigos para organizar uma exposição de fotos com pequenos trechos da história do
bairro e sua origem em uma atividade que pretendia reunir a comunidade em um fim de semana cultural,
em frente ao estabelecimento comercial de um dos amigos. Quando organizava as fotos no mural, o Sr. Mozart
se aproxima, de forma descontraída e ele começa a contar sua história. Paro tudo, pego um caderno que
estava a mão e passo a anotar suas falas, com símbolos que representasse suas pausas. A fala do Sr. Mozart me
deu a certeza que eu precisava deste processo de constituição do bairro, justificado por sistemas de
representações contraditórias que precisam ser entendidas. Há quase um ano atrás teve início este projeto de
pesquisa.
Quando o Sr. veio para cá?
“Vim com treze anos, ainda lembro... 18 de março de 1967, eu e minha mãe.”
E como eram as casas?
Era feito uma casa bem menor, das tábuas que davam pra usar. O pessoal reclamava do
tamanho, reclamava que não era a sua casa. É que, [...] eram usadas as tábuas boas! O
pessoal saía e ia dizendo: essa tábua é da minha casa, só que já tava na casa de outra pessoa.
Os funcionários do DEMAHB, diziam que era assim. E.... foi o que deu pra fazer com o
que tinha.
A gente se virava. Água boa, só do caminhão pipa, de 15 em 15 dias. A gente tinha que
juntar... e ... ia usando. Mais tarde, minha mãe mandou construir um poço, mas só dava
pra banho e pra lavar roupa... era barrenta. E tinha a sanga, onde o pessoal pegava água
também. (Depoimento em 14 de outubro de 2016).
É como eu te falo. Quando cheguei lá, só tava a marca da casa no terreno; tive que dormir
por lá. Aí tinha um russo lá, o cara que tinha uma tendinha, que disse: “Não, tu ficas aqui
que, amanhã nos vamos indo pra lá e tu vais conosco. Aí tá, quando eles vieram tinha um
caminhão lá. Era uma trazera de ônibus, a cabine eles cortaram... Era a trazera de ferro,
era o caminhão...
Na cabine e na trazeira do ônibus, davam umas dez pessoas sentadas no lado do motorista;
o resto era carroceria de ferro. Botava tudo, os negócios ali e iam embora. Daí quando nós
viemos de lá que via que não chegava nunca. Eu queria me atirar de dentro do caminhão!
Não chegava nunca! Eu acostumado a ir a pé pro centro... eu vinha de lá e olhando. Olhava
pra um, olhava pra outro... e... só tinha o pessoal conversando e uns brabos, porque vieram
tudo... Eu digo: “eu vou me atirar disso aqui e vou voltar correndo!” Daí disseram: “Não.
15 Sr. Antônio é um senhor de 59 anos, joga futebol na comunidade com frequência e pediu para ser
entrevistado junto do amigo Sr. Farias. Ambos são moradores da Restinga e aceitaram conceder a entrevista.
Tu não te atiras.” E fecharam as janelas e me colocaram no meio do corredor sentado, eu
louco pra me atirar pra fora.
Eu tinha oito para nove... Aí quando chegamos ali (apontando para a direção do local do
assentamento) eu vi minha mãe lá (em sorrisos ele explica). Da faixa de Belém Novo para
cá tinha mato dos dois lados. A rua era estreitinha, assim (mostrando com as mãos). Ia, ia,
ia... Cara a cavalo, carreta de boi, e eu: “O que, que é isso?... Nada de chegar...”
Sobre o momento de lazer, Sr. Antônio fala do futebol: “Eles fizeram o campo. Quando
fizeram o campo tinha os catarinas e tinha os gaúchos. Os catarinas fizeram um campo lá
embaixo [...] e os gaúchos eram onde é o Zero Hora.”
Qual a diferença entre os dois campos? “Tipo, nos catarina só jogava catarina. Time
deles lá era só branco e catarina! Time do Restinga era dos gaúchos, era negão, tudo nego e
mais branco. Tudo, mas tinha que ser gaúcho.” (Depoimento em 18 de maio de 2017).
Para esta pesquisa, ao introduzir a representação do próprio sujeito removido para o bairro
Restinga no debate, através da História Oral, foi feita uma construção narrativa dialógica com as
testemunhas e suas memórias, em coparticipação entre pesquisador e narrador na elaboração da
fonte oral, possibilitando aprofundar e contrapor versões anteriores sobre a remoção, sobre a cidade
e seus signos e significados significantes, que conduziram a mentalidade no recorte tempo-espaço
estudado. O diálogo entre pesquisador e testemunha estabeleceu a construção de uma fonte
fundamental para o entendimento do fato histórico. Mais que isso, possibilitou a representação e
autorepresentação dos que ainda não possuíram momento de reconhecimento da fala, sem buscar
vitimar ou culpar, mas sim ampliar a possibilidade de análise pelo diálogo direto com o “outro” até
então representado em falas estranhas a ele.
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* Mestre em História do Tempo Presente pela Universidade do Estado de Santa Catarina em 2011, doutorando no
Programa de Pós-Graduação em História/UNISINOS sob a orientação do Profº Dr. Paulo R. Staudt Moreira.
Bolsista de Pós-Graduação FUMDES-SC. Professor efetivo nas redes estadual de Santa Catarina e municipal de
Criciúma.
1 A cidade fez parte de acontecimentos importantes da História do Brasil, como a Guerra dos Farrapos
(1835 a 1845) e a fundação da epública Juliana (1839) – Estado independente do Império Brasileiro, aliado à
Repúblicade Piratini, localizada no Rio Grande do Sul e que também havia declarado independência do restante
do país.Laguna, com suas ruas estreitas e em seus casarios, tombados pelo Instituto do Patrimônio Histórico e
Artístico Nacional em 1985, é a terceira cidade mais antiga do estado de Santa Catarina.
2 Essas sociedades recreativas estavam localizadas na área central da cidade (o Clube União Operária
continua no mesmo endereço, já o Cruz e Sousa teve sua última sede na Rua Osvaldo Aranha, tendo se desfeito
depois), próximas às principais instituições representantes do poder público, como, por exemplo, a Biblioteca
Pública, a Praça da Igreja Católica, o antigo Mercado Público (incendiado em 1939) e, portanto, lugar de
significativa visibilidade.
Fernando Henrique Cardoso e Octávio Ianni (1960) entendem as agremiações recreativas
como locais de comercialização da dança, percebendo os associados e, deste modo, intuindo que,
até entre os “grupos de cor” havia a discriminação racial. Bernadete Orsi (1999) separou-as entre
sociedades de baile e de conscientização do “negro”, detentoras de funções distintas em suas ações.
No entanto, Orsi não percebeu que ambas as sociedades recreativas, tanto as de auxílio mútuo como
as ocupadas com discursos reivindicativos, tinham entre seus objetivos a mobilidade social de seus
sócios e frequentadores. Utilizando fontes como atas de reuniões, memórias de frequentadores das
sociedades recreativas, estatutos de Fundação desses espaços, esses/as autores/as entenderam esse
lugar como um espaço de dança.
Fernandes e Cardoso analisaram essas organizações com um viés racialista, interpretando
as aproximações e os afastamentos entre esses sujeitos como anomia e desorganização social. Não
perceberam que esses espaços de sociabilidade possibilitaram o soerguimento das populações de
origem africana, mesmo agregando um conjunto de instrumentos de vigilância, que tinham como
objetivo manter a dignidade de suas agremiações à custa da vigilância de seus membros, fora e
dentro de seus espaços, tendo a respeitabilidade e a dignidade legitimadoras da sua integração na
sociedade.
Esses autores desconsideraram uma pluralidade de vivências e experiências, generalizando
as expectativas desse pequeno grupo de afrodescendentes, ligados às sociedades recreativas, para
os demais descendentes de africanos. Tendo em vista tal perspectiva, a característica principal
desses estudiosos era perceber os agentes sociais como um bloco, ou seja, consideravam essas
pessoas iguais porque possuíam uma ascendência comum.
Na oposição dessas interpretações, para pensar o Clube Literário Cruz e Sousa e a Sociedade
Recreativa União Operária da cidade de Laguna, utilizo como fonte o jornal O Albor de 1903 a
1950, encontrado no acervo do Arquivo Municipal Casa Candemil; as fontes orais, entrevistas
transcritas de netos, bisnetos, sócios, membros da diretoria do clube União Operária, entrevistados
entre os anos de 2009 e 2010; atas de registro de fundação do clube União Operária, localizadas no
Cartório de Registro Civil de Laguna; e atas de reuniões dos anos de 1903 a 1950, pertencentes à
Sociedade Recreativa União Operária, que possibilitaram interpretar e registrar o quotidiano dos
clubes e de seus componentes. Essas fontes permitem uma interpretação possível do passado,
vislumbrando como afrodescendentes se organizavam e se percebiam enquanto cidadãos, quais
eram suas aspirações e expectativas enquanto sujeitos sociais.
Portanto, para analisar as aspirações e as expectativas dessas pessoas, é necessário
compreender o pós-abolição (RIOS; MATTOS, 2004), enquanto um campo de estudos que sinaliza
os anseios dos últimos libertos e a extensão dos direitos civis aos novos cidadãos. Os estudos do
pós-emancipação têm contribuído para questionar a situação dos afrodescendentes como reflexo
direto da escravidão, discutindo as ações e as variadas táticas daqueles sujeitos, relacionadas cada
vez mais à dimensão dos direitos políticos e às novas condições sociais criadas naquele contexto.
Não obstante, dimensionamos esses sujeitos em suas múltiplas identidades e identificações,
não necessariamente ligadas à “cor”, mas ao status social. Dessa forma, procuramos entender o
significado de ser mulato e de ser preto para aqueles homens e mulheres. As sociedades recreativas
não foram locais de construção de uma “identidade negra” pautados numa única referência de
ascendência africana e um vínculo com a herança da escravidão.
A construção das identidades, tanto a africana como a identidade afro-diaspórica, molda-se,
cultural e politicamente, e, neste sentido, corroboramos com Kabengele Munanga quando afirma
que “o não reconhecimento ou reconhecimento inadequado da identidade do ‘outro’ pode causar
prejuízo ou uma deformação ao aprisionar num modo de ser falso e reduzido” (MUNANGA, 2005,
p. 5). Questionamos a ideia de que africanos e afrodescendentes são iguais, portadores de
características físicas, sociais e psicológicas comuns, contribuindo, deste modo, para a
desnaturalização da noção de “raça”.
À primeira vista, a existência de dois clubes de pessoas de ascendência africana em Laguna
pressupõe um recorte racial. Porém, nas entrevistas realizadas encontramos indícios de que seus
participantes não se viam enquanto negros e negras. Havia uma diferença entre ser preto e mulato
para estes homens e mulheres ligadas às agremiações. Segundo os entrevistados, os mulatos se
reuniam no Club União Operária, enquanto os pretos ficavam no Club Literário Cruz e Sousa.
A existência de dois clubes de homens e mulheres de descendência africana estava ligada,
possivelmente, ao status social, à condição financeira, e ao oficio ocupado pelos sócios,
configurando conteúdo hierarquizante dos usos desses termos e seus diferentes significados em
contextos históricos específicos (VIANA, 2007, p. 39).
Com base nos relatos de participação desses atores sociais, homens e mulheres, que
representaram o Clube Recreativo União Operária e o Clube Literário Cruz e Sousa, procuramos
romper com a história tradicional centrada nos “grandes feitos e nos grandes homens”. Pretendemos
analisar os registros orais, dialogando com Michael Pollak, Eclea Bosi e Beatriz Sarlo, autores que
usam a memória como fonte histórica, possibilitando o registro do quotidiano daqueles que fizeram
parte das sociedades recreativas pesquisadas. Essas memórias podem evidenciar experiências de
um tempo que, ao ser evocado por meio da mediação do entrevistador, traz à luz histórias de pessoas
comuns, muitas vezes invisibilizadas e/ou ignoradas pela historiografia tradicional.
Como salienta Eclea Bosi,
A memória não é oprimida apenas porque lhe foram roubados suportes materiais, nem só
porque o velho foi reduzido à monotonia da repetição, mas porque uma outra ação, mais
daninha e sinistra, sufoca lembrança: a história oficial celebrativa cujo triunfalismo é a
vitória do vencedor a pisotear a tradição dos vencidos (BOSI, 1994, p. 19).
Nessa perspectiva, as memórias desses “vencidos”, retiradas dos porões da história, tornam
públicas as múltiplas experiências de afrodescendentes que viveram naquele contexto. Neste
sentido, concordamos com Le Goff, pois “o estudo da memória social é um dos meios fundamentais
de abordar os problemas do tempo e da história” (1992, p. 426).
O Cruz e Sousa. Ah, eles foram fundados por causa da cor, né, da raça. Entendeu? Porque
naquele, no meu tempo era assim. Tinha o Operária, era de moreno, de moreno entende?!...
o Sousa era de preto. (BENTO, 2010).
Na Operária, não tinha jeito que não entrava [preto]. Eles não deixavam. Era severo, era
severo, não deixavam. Porque nós também... bom, os brancos também não entravam no
nosso. E nós também, que tinha amigo branco e tudo, mas a gente não entrava no deles.
Nem eles no da gente. Tudo por causa da, da, desse preconceito. Isso foi ó [estalar de
dedos], foi vários. (sic) (BENTO, 2010).
Antônio Paulo Bento, ex-presidente do clube União Operária, esclarece que a fundação das
agremiações aconteceu por influência da cor, ou seja, o Cruz e Sousa e o União Operária nasceram
da distinção entre sujeitos de uma mesma ascendência, mas que se percebiam heterogeneamente –
pelo menos é o que nos parece num primeiro momento.
Além de os pretos não frequentarem o União Operária, aqueles que se declaravam brancos
também não entravam naquele espaço, não porque era um lugar somente de “negros”, mas porque
a esses também era vedada a possibilidade de frequentar o seu ambiente, como podemos perceber
no depoimento de Antônio Paulo Bento. Ter amigos “brancos” que trabalham nos mesmos espaços
não significava redução ou interrupção do preconceito que permeava a sociedade lagunense.
Pelo contrário, na fala da professora aposentada Marli Brum, de sessenta e nove anos, o
contato com os membros da elite de Laguna se dava através da prestação de serviços oferecidos
pelos afrodescendentes da cidade. O distanciamento nos espaços de lazer era cada vez mais
acentuado, com a negação da participação das populações de origem africana nos clubes Blondin e
Congresso Lagunense, sociedades recreativas das elites dirigentes de Laguna.
Sim, existia separação [em] toda a minha mocidade a separação, a minha irmã, minha irmã
era costureira. Então, a gente se arrumava, e então a gente se arrumava para ir pros bailes
[no União Operária] e às vezes muitos dias eu ia entregar as costuras na casa das freguesas
dela né. E as freguesas dela iam pro baile [da elite de Laguna] né. A gente passava, tava
ali o Congresso. O Blondin tinha festas e nós jamais chegávamos na porta. (BRUM, 2010).
E 99,9% dos nascidos no Magalhães, naquela época, não frequentava o Congresso. Era o
preconceito financeiro né, não era racial. Quem morava no Campo de Fora não
frequentava Blondin e nem o Congresso, mesmo sendo branco. Também era o preconceito
financeiro e não racial. Então, eu acho que os mulatos que fundaram a Operária e os pretos
que fundaram o Cruz e Sousa o fizeram para ter uma coisa só deles. Aonde eles pudessem
se reunir, aonde eles tivessem, não, não, não tivessem essa, não tivessem essa dependência,
não precisavam de favor pra entrar aqui ou acolá. Aqui era deles. Eles formaram uma
célula deles. Esse é o meu ponto de vista. É, é, é. Não era a questão de preconceito, não.
Não era a questão racial, era questão de eles ter o local pra eles reunir a família deles.
(VICENTE, 2010).
Assim, aqui tinha mulher do seu Cacique, a dona Petronilha, que organizava baile, que
organizava blocos né. A dona Cláudia, a dona Cláudia também que organizava os blocos,
ela também que organizava que convidava as moças, mandava fazer fantasias... Tinha
4 Livro de Registro de Matrícula dos Sócios do União Operária. 1938, p. 7.
também a Normélia, a dona Nair, a minha mãe porque a União Operária tinha um palco
que organizavam teatro, peças de teatro, peças de dança a dona Nair e dona Normélia elas
deveriam ter assim, elas deveriam ter muita, muita coisa escrita! Mas, a dona Nair e
Normélia tinha uma nora... Era ignorante! Queimaram tudo e botaram fora, A gente guarda
essas coisas, né, e elas puseram fogo e destruíram. Mas, a dona Nair e a dona Normélia
eram duas figuras muito importantes no União Operária. Elas diziam que, minha mãe dizia
[que], desde o tempo da minha mãe elas já eram mais velhas que minha mãe. Eram elas
que organizavam as festas, que organizavam, que mantinham os grêmios e organizavam
festas e peças de teatro. (sic) (BRUM, 2010).
Ademais, as atividades lúdicas e instrutivas, dessa sociedade, eram regidas por um estatuto,
por meio do qual os sócios eram submetidos a normas de conduta, fiscalização das ações internas
e externas ao clube com o intuito de valorizar aquele espaço. As informações que constam no livro
de matrícula dos sócios contribuintes, ao lado dos registros nos livros atas, apontam para
mecanismos de como a associação se organizava.
Se as memórias desses depoentes afirmam que havia um clube para pretos e outro para
mulatos, como explicar somente os mulatos transitando em ambas as agremiações? Como era feita
a classificação entre esses agentes sociais? E como eles classificavam quem era preto e quem era
mulato? Tratam-se de questões complexas e cujas respostas não dispomos, mas, procuramos
articular a partir de sinais, pistas, que surgem nos depoimentos e nos registros de jornal.
Constituíram-se, em campos de sociabilidades distintos, sujeitos permeados por disputas acirradas,
refletindo na identificação como preto ou mulato.
Transcrevemos, a seguir, a composição da primeira diretoria do Cruz e Sousa, anunciada no
jornal: o então presidente José Thomaz de Oliveira; o segundo fiscal na diretoria de 1904 e o
tesoureiro Affonso Sabino; eles faziam parte do quadro de sócios da Sociedade Recreativa União
Operária. Presidente: José Thomaz de Oliveira; Vice-presidente: José Antônio de Oliveira;
Thesoureiro: Affonso Sabino; 1 e 2 secretários: João José de Souza e Antônio Sabino; 1 e 2
procuradores: Algamil Luiz da Silva e Antônio Cardoso e 1 e 2 Fiscaes: Antônio Cabral e Antônio
João Ventura (sic). (O Albor. Laguna, 31/05/1908, n. 291).
É interessante assinalar que, analisando o livro de registro de sócios, as atas de fundação do
Clube União Operária e os vestígios deixados pelo Clube Literário Cruz e Sousa, no periódico O
Albor, encontramos alguns mulatos que circulavam pelo Cruz e Souza. Todavia, o contrário não
ocorria, ou seja, os pretos eram impedidos de transitar no União Operária.
Presumimos que a gradação entre aqueles que se identificavam como pretos, e aqueles que
se identificavam como mulatos foi determinante para a divisão e o surgimento de outra sociedade
recreativa devido ao quadro exposto por nossos depoentes. A cor da pele, aliada às profissões,
influenciou a construção dessas duas sociedades recreativas, e esse quadro parece compreensível
no contexto em que essas agremiações foram fundadas.
Esses indivíduos, que possuem a mesma ascendência, mas que não eram iguais, estavam
imersos numa mentalidade colonial, em que ser descendente de africano era sinônimo de ex-cativo,
e fugir desse estigma e estereótipo era a melhor maneira de ser percebido como cidadão. Daí a
aproximação de um grupo de não brancos de pele mais clara e o seu afastamento de um grupo de
não brancos de pele mais escura.
Tais negações não ocorriam em ambos os clubes. Conforme apontam as fontes, somente os
membros do União Operária faziam parte da diretoria e frequentavam o Cruz e Sousa; o inverso
não acontecia. Desse modo, a rigidez dessas fronteiras nos espaços de sociabilidade possibilitou
perceber que esses homens e mulheres travavam constantes disputas. Seu Antônio Paulo Bento
afirma que possuía muitos amigos pretos, o que lhe possibilitava a entrada no Cruz e Sousa. Além
de ter amigos sócios do clube, nosso entrevistado também contava com a figura do pai para facilitar
sua autorização, naquela agremiação, já que ele era uma pessoa muito conhecida em Laguna.
Quer dizer, quem dançava lá no de preto não dançava cá, na Operária que, que era dos
moreno tá!? Então, era onde que eu, [...] tinha muito amigo, naquela época, né, que
também era preto. Então, não vinha no meu, que era no Operária. Eu, então, também não
pudia ir no deles mas, custava, às vezes, e dava uma escapada, e eu entrava né. Quer dizer,
na hora h eles me conheciam também muito o meu pai, que eu sou filho do Manuel Bento,
então. Aí, naquele tempo, o apelido do meu pai era Mané Bento, e era muito conhecido
também aqui na Laguna. Então, eles diziam, ó esse aqui é filho do Mané Bento, deixa ir.
Então a gente... Eu ficava ali no meio dos pretinhos. Mas, quando eles fossem lá no meu,
na Operária, não tinha jeito que não entrava. (sic) (BENTO, 2010).
Não só a amizade com os pretos ou a figura notória do pai possibilitou a entrada do nosso
entrevistado, como ele ressalta. A sua inserção, naquele espaço, se dava também pelo fato de o pai
estar presente como segundo fiscal na diretoria da sociedade Cruz e Sousa formada no ano de 1932
(O Albor. Laguna, 28/04/1932, n. 1143). Seu depoimento deixa evidente que as relações entre pretos
e mulatos nada tinham de harmoniosas, sendo permeadas de constantes disputas que culminavam
na interdição nos espaços de sociabilidades.
Conforme Maria Viana da Silva, dona de casa, com 98 anos, viúva e residente em Laguna,
existiam duas festas organizadas por essas sociedades recreativas: a festa de Nossa Senhora do Parto
e a de Nossa Senhora da Conceição. Salienta a entrevistada, que os afrodescendentes de Laguna
possuíam cada um o seu espaço e sua festa específica.
Cada um tinha o seu clube né. Tinha o Cruz e Souza e a União Operária! A União Operária
era dos mulatos. Mulatos! Da minha cor né?! E o Cruz e Souza era dos nego preto! Bem
preto! E também tinha a festa da Nossa Senhora do Parto! Que era os mulatos que tomava
conta. Os pretos! Os pretos tinham a Nossa Senhora da Conceição, que era a festa deles!
(sic) (SILVA, 2010).
Identificando-se como mulata, a senhora Maria reforça que as festas organizadas pela
Sociedade Recreativa Cruz e Sousa eram melhores, e ainda relata as tensões geradas pela retirada
da santa, que os pretos homenageavam em sua festa.
É! Nós fazia uns bailes muito animados! Os baile dos pretos, sempre diziam que era mais
animado do que os da União Operária. Mais animado era dos pretos! Era! o mais animado!
O Cruz e Sousa do que o baile da União Operária. É Nossa Senhora da Conceição era dos
pretos. E a Nossa Senhora do Parto era dos mulatos! Aí teve uma ocasião que o padre,
queria tirar dos pretos, a santa! Ficar pra eles. Queria vender, pra outro lugar! É, pra tirar
dos pretos. E mandar pra um lugar. Aí já tava no caixote, já encaixotado, que era pra ir não
sei pra onde é. Aí o, fizeram uma briga os nego: Me lembro da falecido Afonso, que
morava no Magalhães. Nós saímos do colégio, aí todo mundo foi ver aquela brigassada
[...] que o padre queria tirar a santa é, pra tirar dos pretos. E mandar pra um lugar
encaixotaram, e iam mandar pro estrangeiro, não sei onde que era! Vendida! No navio!
Naquele tempo era! Aí os nego descobriram, aí vieram na igreja. Seu Afonso tava de
manga de camisa, brigando pra tirar assim que o padre... pra tirar de dentro do caixote e
botar no altar. Aí os nego aqui tomava a conta da santa no altar e que não era pra tirar a
santa e mandar pro estrangeiro; conseguiram. Fizeram uma brigassada na igreja. Aí a gente
saiu do colégio pra ver! Encheu toda igreja! O seu Afonso era um nego preto! Suava que
só vendo! Aí tiraram mesmo! Tiraram e colocaram como ele queria! (sic) (SILVA, 2010).
“A história do tempo presente é um conceito em construção que, por sua vez, expressa uma
história também em construção” (RÉMOND, 1994), reinterpretada e ressignificada com
ferramentas teórico-metodológicas para construção e defesa da história. Este texto foi desenvolvido
na perspectiva da História do Tempo Presente, haja vista a continuidade da luta dos
afrodescendentes por inserção social, visando ampliação dos direitos enquanto cidadãos, e
resistindo contra toda forma de preconceito e exclusão social.
Ademais, dessas ações enunciadas, há também uma preocupação em salvaguardar o
patrimônio material e imaterial dessa população, a exemplo do Levantamento dos Clubes Negros
no Brasil como Lugares de Memória (2009), com o apoio da Fundação Cultural Palmares, IPHAN
e Movimento Negro. Para além da salvaguarda do patrimônio material e imaterial das populações
de origem africana, é plausível refletir do ponto de vista do tempo presente, à medida que se propõe
uma discussão em torno da memória em uma perspectiva contemporânea, em que essas memórias
privilegiam as fraturas, as rupturas. E, conhecendo os problemas em utilizar as memórias,
a história busca produzir um conhecimento racional, uma análise crítica através de uma
exposição lógica dos acontecimentos e vidas do passado. A memória é também uma
construção do passado, mas pautada em emoções e vivências; ela é flexível, e os eventos
são lembrados à luz da experiência subsequente e das necessidades do presente
(FERREIRA, 2002, p. 314).
Como adverte Jacques Le Goff, “se a memória faz parte do jogo do poder, se autoriza
manipulações conscientes ou inconscientes, se obedece aos interesses individuais ou coletivos”
(1990, p. 32). Ter essas memórias como únicas fontes para análise acaba por reproduzir a visão de
mundo de um grupo específico.
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Laura Spritzer Galli
“A história contada por um só não é a mesma história. Quanto mais contarem a história,
melhor”. Com essa frase, um dos participantes resumiu os motivos pelos quais esteve presente
naquele encontro. Para ele, não bastaria uma pessoa sozinha falando sobre os antigos carnavais de
Porto Alegre, pois seria apenas uma das versões possíveis. Era necessário que muitos participantes
contassem para tornar visível a complexidade de vivências do carnaval.
As fotos foram sendo mostradas de maneira cronológica conforme constava no acervo,
algumas delas sendo de antes do período vivido pelas pessoas presentes. Sobre este aspecto, é
interessante notar que muitos dos relatos trazidos pelos idosos e idosas não necessariamente foram
vividos por eles diretamente, mas por fazerem parte de uma comunidade e de ouvir relatos
orais de pessoas mais velhas, alguns falavam de episódios ocorridos nas décadas de 1930 ou
de1940, como se de fato os tivessem vivido. Segundo Pollak, a memória é um elemento
constituinte da identidade, tanto individual quanto coletiva. Conforme o autor, “a construção
da identidade é um fenômeno que se produz em referência aos outros, em referência
aos critérios de aceitabilidade, de admissibilidade, de credibilidade, e que se faz por
meio da negociação direta com outros”. (POLLAK, 1992, p. 204). Ao compartilhar
determinadas memórias do grupo, independentemente de tê-las vivido ou não, o sujeito
sente-se pertencente àquele grupo, percebe sua ligação, se reconhece. Assim, mesmo não
tendo vivido algumas situações, os e as depoentes mostraram que por fazer parte de uma
comunidade em que a oralidade está colocada como elemento constituinte, internalizaram as
memórias de seus grupos. A vivência no carnaval mostrou-se algo que se estende para muito
além do individual, em que as pessoas fazem parte de famílias e grupos que vivem a
festividade de forma permanente. Muitos participantes do encontro tinham irmãos mais
velhos, pais, tios, avós, que já participavam do carnaval de Porto Alegre antes deles –
e também descendentes que seguiram o costume familiar.
Verena Alberti, no texto “Histórias dentro da história”, coloca que uma entrevista de
História Oral pode ser tanto um relato de ação passada, informando sobre a vida de uma
pessoa ou das atividades de um determinado grupo, como também “um resíduo de ações
desencadeadas na própria entrevista” (ALBERTI, 2010, p. 168), tendo como autor não
somente o entrevistado – quem relata – como também o/a entrevistador/a. No caso do
encontro analisado, ainda que não tenha sido uma entrevista, podemos perceber essa autoria
coletiva do compilado de informações e lembranças compartilhadas, visto que os participantes
contribuem na construção de memórias uns dos outros. Desse modo, podemos entender que
uma situação de depoimento coletivo também acarreta numa autoria compartilhada desse
registro que se tornou fonte.
A especificidade de ter sido um encontro coletivo faz com que muitos elementos
devam ser trazidos à tona para análise. Por exemplo, as relações que se dão nos momentos de
fala, bem como as memórias que, coletivamente, surgem de outra forma do que se
fossem entrevistas individuais.Do que lembramos quando ouvimos outra pessoa falar?
Para cada novo episódio relatado, vários outros eram suscitados, ainda que nem sempre
compartilhados com o grande grupo, e sim de forma “paralela” com quem estava ao lado. Foi
uma forma de reviver aqueles momentos, de “lembrar coisas que há muitos anos não
lembrava”, como disse uma das senhoras ao final do encontro.
Ainda sobre o relato feito em grupo, e as conversas “paralelas”, é interessante
mencionar a dificuldade em entender e discernir na gravação o que estava sendo dito, já
que muitas vezes histórias eram contadas ao mesmo tempo, justamente por conta desse
intenso desencadear de memórias há muito guardadas no fundo das gavetas
mentais.Memórias essas que incluem não só acontecimentos, mas também figurinos, carros
alegóricos e músicas que aos poucos todos cantavam juntos.
É interessante perceber, também, que em geral os homens se sentiam mais à vontade
para comentar no grupo do que as mulheres. Estudos de gênero da área das linguagens
demonstram que, por serem culturalmente educadas, mais vinculadas ao espaço privado, em
situações de debates públicos, ainda mais em contextos de maioria masculina, mulheres se
sentem menos convidadas a participar, entendendo que o que têm a dizer não contribuirá tanto
para a discussão. Isso pôde ser percebido nas apresentações pessoais: de cinco mulheres, três
disseram explicitamente que não sabiam muito bem como poderiam “ajudar”, mas que
estavam ali para relembrar seus bons momentos. Já dos homens, não registrei nenhum
comentário desse tipo. Por se tratar de uma análise inicial, ainda será necessário aprofundar esse
aspecto ao longo da pesquisa.
A História Oral, ainda conforme Alberti, tem um caráter fundamentalmente
qualitativo, ou seja, trabalha com singularidades e não com generalizações, “entendendo
os depoimentos como visões particulares de processos coletivos e relativizando conceitos e
pressupostos universalizantes das experiências humanas”. Assim, o interesse da pesquisa e da
análise deste material não é tanto o de buscar informações de como era “na realidade” o
carnaval de blocos nos bairros, mas entender como as memórias sobre o período são construídas
por esses idosos e idosas. As datas mencionadas, por exemplo, nem sempre são precisas. A
memória pode trair, misturar situações, justamente porque o exercício do lembrar é feito no
presente, a partir do que estamos vivendo e com as preocupações do momento. Além disso,
entendo que cada depoimento é único e varia de acordo com os muitos atravessamentos
pelos quais uma pessoa pode passar, como pertencimento de raça, gênero, local de
origem, família, trabalho, entre muitos outros. Portanto, é indispensável um conhecimento
mais a fundo desses atravessamentos de cada participante para uma análise mais rica do debate
realizado.
Ainda na temática da memória, a psicóloga Ecléa Bosi faz uma interessante reflexão sobre
lembranças de velhos na sociedade brasileira. A autora investigou a respeito da formação das
memórias de pessoas velhas, trabalhadores e trabalhadoras, e sua relação com o trabalho. Fazendo
referência a Hallbwachs, Bosi menciona a diferença da relação dos adultos e dos velhos com suas
memórias: os primeiros, envolvidos com as tarefas do presente, não têm o hábito de se ocupar do
passado. Quando recordam momentos, a memória tem caráter de fuga, contemplação, distração das
tarefas práticas do dia-a-dia. Os velhos, já tendo vivido bastante. Quando lembram o passado não
estão descansando: pelo contrário, estão se ocupando “da substância mesma da sua vida” (BOSI,
1994, p. 60). Lembrar torna-se uma ocupação, e a iniciativa do projeto aqui abordado é um exemplo
de como qualificar e positivar essa experiência.
Dependendo do contexto, os velhos podem adquirir ainda uma função social de ser a
memória da família ou do grupo em que se inserem, tendo eventualmente a obrigação de lembrar.
Isto ficou bem claro em alguns casos, especialmente nos de pessoas envolvidas com organizações
do carnaval, em que os participantes demonstraram estar habituados a contar histórias e serem
ouvidos.3 Esse aspecto mostra-se, também, na questão já mencionada acima sobre fazerem
parte de famílias e grupos envolvidos com o carnaval desde antes de nascerem e de deixar
esse legado para suas descendências.
É habitual que a pessoa já afastada dos afazeres do cotidiano, do trabalho e mesmo das
atividades do carnaval, se ocupe justamente em rememorar acontecimentos e períodos passados.
Citando a autora, “Na velhice, quando já não há mais lugar para aquele ‘fazer’, é o lembrar que
passa a substituir e assimilar o fazer. Lembrar agora é fazer. É por isso que o velho tende a
sobrestimar aquele fazer que já não se faz”. (BOSI, 1994, p. 480) As pessoas consultadas no
encontro do projeto Foto Memória, estando já menos envolvidas com as atividades do carnaval hoje
em dia, romantizam suas participações e o formato de festa que faziam, olhando para o passado
com saudade. Através do projeto, então, puderam reviver aqueles momentos e sentir-se importantes
para o contar dessa história, lembrando ─ fazendo carnaval.
Ao analisar essa fonte, procurei trazer à tona alguns aspectos que considero relevantes para
compreender como operam as memórias de idosos e idosas sobre o carnaval de Porto Alegre nos
anos 1950/1960. Por ser um trabalho inicial de pesquisa, este artigo não teve como objetivo trazer
conclusões definitivas, e sim apresentar e problematizar a fonte utilizada. Busquei aquidar início às
reflexões a respeito da memória e da metodologia da História Oral, que vem sendo utilizada neste
momento em entrevistas individuais, inclusive com pessoas que estiveram presentes no encontro
abordado.
O sentimento comum de saudade e de entender os “antigos carnavais” como mais
interessantes que os atuais pode ser expresso na seguinte fala: “o carnaval era mais envolvente
porque era o povo que fazia o carnaval. Depois começou a grande mídia a fazer o carnaval. As
pessoas começaram a pensar que o carnaval é só desfile de escola de samba; e não é só desfile de
escola de samba. Carnaval é uma coisa muito mais abrangente.” Através de fotografias e das
lembranças que elas suscitaram, foi possível ter uma ideia de qual era essa abrangência mencionada,
de como aquelas pessoas se envolviam com o carnaval, seja na organização, na participação como
foliões, como jurados, enfim, entusiastas da festa. Lembrar tornou-se, naquela tarde, fazer carnaval.
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