Vous êtes sur la page 1sur 1120

Porto Alegre

ISCMPA
2018
© Centro Histórico-Cultural Santa Casa
Revisão: Véra Lucia Maciel Barroso
Organização: Véra Lucia Maciel Barroso, Edna Ribeiro de Ávila e Leonardo Braga Borowski –
Laboratório de História Oral do CHC Santa Casa

Capa: Bruno Caregnatto


Imagem da capa: Deposit imagens
Artefinal: Bruno Caregnatto
Karen Griebler
Editografia: Manuela Sant’Anna Pereira

Conselho Editorial
Benito Bisso Schmidt
Carla Simone Rodeguero
Claudia Musa Fay
José Edimar de Souza
Lorena Almeida Gill
Dóris Bittencourt Almeida
Luciane Sgarbi Santos Grazziotin
Regina Weber
Véra Lucia Maciel Barroso

Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)

E56 Encontro de memórias [recurso eletrônico] / – Porto Alegre : ISCMPA,


2018.
1118p.

ISBN: 978-85-89782-15-9

1. História oral. 2. Patrimônio


Bibliotecária: cultural.
Lidiane 3. Memória
Marques Gomessocial. I. Centro
Histórico-Cultural Santa Casa. II. Título.
CRB-10/2257
CDU 930.2

Bibliotecária responsável: Lidiane Marques Gomes CRB-10/2257


13

14

A perspectiva de (i)migrantes e jornalistas sobre as representações 15


midiáticas de fluxos migratórios contemporâneos no Brasil (2000-2014)
Samira Moratti Frazão
Entre o Brasil e a Itália: narrativas e emigrantes no início do século XXI 28
Gláucia de Oliveira Assis
História Oral de intelectuais e artistas nipo-brasileiros do pós-guerra 41
Monica Setuyo Okamoto
O trabalho com crianças e adolescentes que estudam música, filhos(as) de (i)migrantes
em situação de vulnerabilidade social: aproximações do Brasil e Holanda 48
Fabiana Aparecida da Silva
Painel: Compromisso Moral e Lições de Solidariedade 60
Ieda Gutfreind

Minha mãe, uma militante: Helena Greco e o Movimento Feminino


pela Anistia em Minas Gerais na memória de seus filhos 70
Kelly Cristina Teixeira
Narrativas verdadeiras e representações fictícias: experiências de escrita
dramatúrgica a partir de relatos orais de silenciamento e opressão 82
Clóvis Dias Massa
“Tiravam a mim com um braço e abraçavam a outra”: memória, gênero e
conflitos raciais a partir de uma trajetória de abandono 92
Denize Terezinha Leal Freitas
Trajetórias de historiadoras e historiadores: notas sobre gênero e 100
classe em narrativas comparadas
Carmem Silvia da Fonseca Kummer Liblik
Violência contra a mulher: um estudo sobre réus julgados no Juizado 112
da Violência Doméstica na comarca de Pelotas/RS (2012-2017)
Elisiane Medeiros Chaves
Voando alto: homens e mulheres dividindo a cabine de comando 126
Claudia Musa Fay e Geneci Guimarães de Oliveira

Povos e comunidades tradicionais: uma temática interdisciplinar 135


Carmo Thum
A oralidade das crianças quilombolas do Território Kalunga em Goiás
Kalyna Ynanhiá Silva de Faria 145
As demandas Kaingang em meio ao processo de reterritorialidade
na região do Vale do Taquari/RS 153
Luís Fernando da Silva Laroque e Jonathan Busolli
Imagens, fotografias e oralidades: aspectos da infância pomerana
Carmo Thum e Jeruza da Rosa da Rocha 167
Histórias, memórias e educação: a valorização da oralidade como
instrumento de luta e empoderamento do campesino 175
Eneusa Mariza Pinto Xavier e Renata dos Santos Alves
Os vestígios da Casa-Escola do Valentin: panorama histórico,
narrativas e memórias (1977-1982) 186
Carlos Roberto da Silveira e Maria Clelia Pereira da Costa
Terreiro Bate Folha: histórias de vida, resistência cultural 202
e patrimônio (i)material da religiosidade afro-brasileira
Carla Maria Ferreira Nogueira

“Aquiagatamia”: História Oral, identidade e o futebol informal de cada sexta 211


Gérson Wasen Fraga
Entre(vistas) e ditos: problematizações em torno da História 218
Oral com um ex-surfista profissional
Thiago Silva de Souza
Federações Esportivas do Rio Grande do Sul: a experiência de mulheres gestoras 228
Luiza Aguiar dos Anjos e Suélen de Souza Andres
O futebol operário na região carbonífera do Rio Grande do Sul através
dos relatos de seus cronistas 237
Tassiane Mélo de Freitas
Práticas e culturas das aulas de Educação Física: memórias da professora 247
Jaqueline no Grupo Escolar Giuseppe Garibaldi (1982-1989)
Cristian Giacomoni
“Tua bandeira faz parte da história”: memórias do Esporte Clube 260
Bujuru de São José do Norte/RS
Gustavo da Silva Freitas, Leonardo Costa da Cunha e Douglas Santos Paladino Costa

“A gente tinha uma liberdade vigiada”: memórias de uma ex-aluna 273


interna na cidade de São Leopoldo/RS (1958-1962)
Estela Denise Schütz Brito
A importância da constituição de um acervo de História Oral: 283
arquivo da Faculdade de Educação (FACED/UFRGS)
Maria Beatriz Vieira Branco Ozorio
A trajetória escolar dos descendentes de origem italiana (Pelotas/RS) 291
Renata Brião de Castro e Patrícia Weiduschadt
Ao som das vozes: história e memória institucional da Escola de 305
Administração da UFRGS
Evelin Stahlhoefer Cotta e Margarete Panerai Araújo
Colégio Santa Teresa: história e memórias de uma experiência 317
educacional comunitária
Andrea Fernandes de Sousa
Entre a teoria e a prática comercial: o ensino de Contabilidade na Escola 329
Técnica de Comércio do Colégio Farroupilha de Porto Alegre/RS (1950-1983)
Eduardo Cristiano Hass da Silva
Entre o pesquisar e o lecionar: a pesquisa e o ensino de História nos anos 1970 e 1980 340
Bruna Silva
Expansão e complexidade na educação japonesa no litoral e na
região Sul do Estado de São Paulo 355
Rafael da Silva e Silva
História Oral na trajetória de vida de professores de Matemática 368
Cris Helena Padilha da Silva
Memórias da alfabetização em escolas sinodais luteranas (1930-1945) 376
Elias Kruger Albrecht
Narrativa sobre democratização e gestão educacional: memória, rupturas e
práticas na Rede Municipal de Ensino de Caxias do Sul/RS (1988-1992) 391
Mônica de Souza Chissini e Roberta Ângela Tonietto
Narrativas de formação docente na cidade de Pelotas: as imagens
como evocadoras de memórias (1957-1962) 400
Maria Cristina dos Santos Louzada
Narrativas de uma cidade: o acervo de memória oral do Arquivo
Histórico Municipal João Spadari Adami (Caxias do Sul/RS – 1980-2007) 409
Dóris Bittencourt Almeida e Julia Tomedi Poletto
No casarão da Rua Esperança: memórias de estudantes do Grupo
419
Escolar Uruguai em Porto Alegre/RS (1948-1954)
Dóris Bittencourt Almeida, Alice Jacques e Lucas Costa Grimaldi
O fazer-se professora na Escola Primária Rural nos anos de 1950 439
Isabel Rosa Gritti
Os modos de ensinar e de aprender em uma comunidade rural: memórias
de professores e alunos (Lomba Grande/RS – 1940-1952) 445
José Edimar de Souza
Representações acerca das práticas de Canto Orfeônico: traços e vestígios
evocados pela memória de uma docente de Porto Alegre, na década de 1950 453
Gisele Belusso e Deise da Silva Santos
“Tive essa fama de professor muito rigoroso”: ofício de professor e
vivências escolares numa comunidade do interior de Santa Catarina 464
Karla Simone Willemann Schütz
TVE-RS: instituição de comunicação pública e sua importância
471
para a memória do Estado
Nádia Maria Weber Santos e Marluce Dias Fagundes
“Um Pecado Venial”: a presença feminina na Casa do Estudante 481
Universitário Aparício Cora de Almeida-CEUACA (1963-1981)
Marcos Luiz Hinterholz

A atuação do Ministério Público na área ambiental 493


Cíntia Vieira Souto
História Oral como metodologia para pesquisas em Ecomuseus 504
Cezar Karpinski e Leonardo Hermes Lemos
Histórias de vida e organização coletiva de trabalhadores da Associação 512
de Recicladores de Porto Amazonas – ARPA, Paraná
Alessandra Izabel de Carvalho e Robson Laverdi
Narrativas sobre a ação das madeireiras e da agricultura: trabalhadores e paisagem 525
Daniele Brocardo
O MST no Nordeste e o Nordeste no MST: reflexões sobre a política de 536
deslocamentos de militantes do MST para o Nordeste brasileiro (1985-1993)
Rose Elke Debiasi
O Nzo Inkise Nzazi: a relação entre saberes e natureza de um candomblé angola 547
Roberta Barros Meira e Janaína Gonçalves Hasselmann
Vivências e experiências dos moradores da Flona Macauã 555
Fortunato Martins Filho

Ação docente na pesquisa como princípio educativo da EJA de 568


Florianópolis: saberes docentes e culturas escolares
Cláudio Roberto Antunes Scherer Jr.
Construção de identidades raciais a partir de olhares sobre a branquitude 578
Maria Angélica Zubaran e Joice Mari Ferreira da Cruz
Memória e identidade das mulheres negras frequentadoras do Clube Cultural 591
Fica Ahí pra ir Dizendo: pertencimentos etnicorraciais em evidência
Viviane Adriana Saballa e Lisiê Coelho de Souza
Narrativas de professores sobre o governamento do Sistema Educacional, 605
família e escola (Florianópolis/SC)
Raquel de Melo Giacomini
O exercício reflexivo prático do uso da oralidade como método de pesquisa 620
Carlos Alberto Lourenço Nunes
Saberes docentes na Pedagogia Waldorf, segundo a experiência de dois professores 629
Clarícia Otto e Suellen de Souza Lemonje

A cidade que se ensina: rememorações de professores de História 643


Elison Antonio Paim
As fontes orais e o direito à memória e à cidadania: o papel dos centros
de documentação e seu patrimônio documental
657
Janete Leiko Tanno
Entre alegorias e adereços: as ações educativas nas narrativas
orais dos frequentadores de uma Escola de Samba
665
Ricardo Figueiró Cruz
Idealista, oportunista ou profissional? As diferentes facetas do
advogado Antônio Ferreira Martins 672
Camila Martins Braga
Imaginário, memória e linguagens: a zona do meretrício de Passo Fundo/RS (1940-1955) 680
Marlise Regina Meyrer
O patrimônio cultural nas narrativas de professores de História
de escolas públicas de Florianópolis/SC 694
Giovanna Santana e Valdemar Lima de Assis
Ponte da Amizade: as histórias em muitas memórias 707
Milena Costa Mascarenhas
Relatos orais sobre a Educação Patrimonial, desenvolvida pelo Preserve/FE
no Museu do Trem – São Leopoldo/RS, no período da redemocratização 714
Cinara Isolde Koch Lewinski

Direitos reprodutivos: da pílula à quarentena 724


Eduarda Borges da Silva
Identidade ideológica: entre modos de adesão e divergências 737
Cristina Furlan Zabka
Luiz Francisco Guerra Blessmann: amor à Medicina, à família e à Zona Sul de Porto Alegre 745
Janete da Rocha Machado
O ofício de benzer: conflitos e negociações entre medicina oficial e cultura popular
Ronaldo Bernardino Colvero e Juliani Borchardt da Silva 752

Comerciantes italianos na voz das mulheres: perspectivas de análises de pontos de vista 761
Egiselda Brum Charão
Histórias de guerra na visão de um pracinha: relatos sobre a experiência
de um pracinha na II Guerra Mundial
777
Vania Beatriz Merlotti Herédia e Guilherme Griebler
II Guerra Mundial em Pelotas: o quebra-quebra nos hotéis pelotenses 789
Caroline Beskow Quintana
Memória, etnia e identidade: o caso dos árabes em Porto Alegre e 801
as fontes para uma pesquisa histórica (1900-1930)
Júlio Cesar Bittencourt Francisco
O método de análise de narrativas biográficas de Gabriele Rosenthal no 816
contexto da História Oral: comparação metodológica preliminar
Jaqueline da Silva de Oliveira
O papel da memória oral na produção de arranjos documentais de acervos privados 823
Eliana Rela e Cláudio da Costa
Refugiados sírios ortodoxos no Rio de Janeiro: narrativas sobre contexto de integração 837
Raul Felix Barbosa e Maria Cristina Dadalto
Um alfaiate calabrês: a trajetória de Carmine Motta em Porto Alegre (1961-2000) 851
Leonardo de Oliveira Conedera
Uma francesa presidente de uma fábrica de champanhe no Brasil: sua trajetória 864
Ana Maria Greff Buaes e Martha de Leão Lemieszek
Vivências de trabalhadores rurais na região Sudoeste do Paraná
874
Tiago Arcanjo Orben

A ditadura e a censura a partir da memória dos artistas 885


Jerry Adriani, Carlos Capinan e Geraldo Azevedo
Daniel Lopes Saraiva
“Aí começou realmente a vida como pessoa”: mulheres, movimento
estudantil e ditadura em relatos de História Oral 896
Carla Simone Rodeghero
Décio Freitas: memórias particulares da ditadura militar no Brasil 912
Alessandro Bracht
Experiências cruzadas entre História Oral e dispositvos virtuais: os
centros clandestinos da ditadura argentina 922
Virginia Vecchioli
Memória e Comissão da Verdade: uma análise das memórias de vítimas da
ditadura militar a partir dos depoimentos da CNV no Oeste do Paraná 933
Marcelo Hansen Schlachta
Narrativas de sobrevivientes: ex-presos políticos de Uruguay ¿Cómoresistieron? 947
Julia Gallego Gomez
O “leite do medo” e as memórias tóxicas na narrativa fílmica de La teta asustada 959
Renata Santos Maia
O velho e o novo: a memória da ditadura na narrativa de dois militantes 971
sindicais – Novo Hamburgo/RS (1974-1986)
Micaele Irene Scheer e Evandro Machado Luciano
O(s) golpe(s) de 1964 nas narrativas dos advogados Omar Ferri, Werner Becker 979
e Eloar Guazzelli
Dante Guimaraens Guazzelli
Percursos de professores de História e de Estudos Sociais no RS 992
(1974-1988): narrativas memorialísticas
Ânia Chala
Silenciamentos e ocultações sobre a repressão ocorrida durante o Estado Novo 1006
em São Lourenço do Sul/RS
Cristiano Gehrke
Todo direito é um direito humano! Na redemocratização, a construção da cidadania
pelos direitos: história do Centro de Defesa de Direitos Humanos de Osasco – CDDHO 1020
Claudia Moraes de Souza

A paixão e o ensino de História: palavras de professoras e de professores 1031


Caroline Pacievitch
Construção do Estado de Exceção em 1964 e as memórias refletidas na educação brasileira 1046
Carlos Alberto Xavier Garcia, Maria Aparecida Possati dos Santos e
Marta Jacqueline Ramos Mendes
“Exposição Histórias de Família”: o encontro do educando com a sua comunidade 1055
Eduardo Braga de Souza
O uso das fontes orais no trabalho de educação para o patrimônio do
Museu Histórico de Nova Hartz/RS 1068
Vania Inês Avila Priamo
Uso de testemunhos orais como fonte para História das mulheres na ditadura civil-militar 1079
Isadora Ritterbusch Librenza

História do bairro Restinga: segregação, resultado do sistema de


representação da cidade de Porto Alegre 1088
Neila Prestes de Araujo
Memória e construção identitária: os clubes “negros” de Laguna/SC 1097
na primeira metade do século XX (1930-1950)
Júlio César da Rosa
Memórias de idosos e idosas sobre o carnaval de Porto Alegre – décadas de 1950 e 1960 1112
Laura Spritzer Galli
Narrativas de vida, inextrincavelmente, remetem à evocação de memórias algo que se
estende, por conseguinte, à captação de depoimentos praticada pela História Oral. Jacques Le Goff,
em célebre artigo sugestivamente denominado Memória, acompanha percursos e percalços da
transmissão de memórias, desde as sociedades iletradas. Propagadora dos denominados mitos de
origem, foi justamente a oralidade que, durante séculos, cristalizou a transmissão da memória entre
gerações.1 Contudo, com o surgimento da escrita, ainda segundo Le Goff, surgiria uma “outra forma
de memória” devidamente ancorada pela transmissão textual. 2 A partir daí, por iniciativa de
membros da realeza, surgiriam as denominadas “instituições memória”, ou seja, arquivos,
bibliotecas, museus, possibilitando, portanto, uma apropriação, e seleção do passado, por parte da
elite dominante que, além de salvaguardar documentos e objetos, passa a inscrever seus “feitos” em
pedras e/ou anais, prática que nos conduz rumo “à fronteira onde a memória se torna história3”. Tal
deslocamento analisado por Le Goff descortina como que com o advento e a consolidação da
escrita; a memória seria hierarquizada, textualizada, burocratizada e elitizada, resultando numa
desarticulação desta com a transmissão oral. Eis que, graças à História Oral, teríamos uma
rearticulação e ressignificação da oralidade, notadamente no que concerne ao registro de memórias
de excluídos, ou seja, numa contracorrente dos eleitos da história qualificada como “oficial”.
A presente publicação, cujos textos resultam de apresentações em Simpósios Temáticos,
proferidas durante o IX Encontro Regional Sul de História Oral, realizado em Porto Alegre, em
agosto de 2017, nos deixa entrever uma reunião de temas prementes em nossa cena contemporânea,
a saber: imigração, exílio, diáspora, gênero, comunidades tradicionais, práticas corporais, educação,
meio ambiente, identidade, raça, patrimônio cultural, democracia, direitos, diversidade, saúde e
regimes totalitários. Assim, a História Oral possibilita esse referido “Encontro de Memórias” que
intitula a presente obra, um local de conexões que dimensiona a diversidade, o engajamento e a
amplitude que se instauram quando nos posicionamos diante de nossos depoentes. Ao lermos esse
livro ouçamos as vozes, e porque não os silenciamentos, que dele reverberam.

Ana Carolina de Moura Delfim Maciel


Presidenta da Associação Brasileira de História Oral (2016-2018)

1
2
LE GOFF, J. História e Memória, Campinas: Ed. da Unicamp, 1996, p. 428.
3
Idem, ibidem, p. 432.
Idem, ibidem, p. 434.
O título desta obra dimensiona o seu significado e a natureza do conteúdo apresentado.
Trata-se, de fato, de uma publicação que promove, efetivamente, um “encontro de memórias”.
Aliás, esta “reunião” enfeixada em livro, pereniza a extensão do Encontro da Regional Sul de
História Oral – Associação Brasileira de História Oral, realizado em Porto Alegre, no Centro
Histórico-Cultural Santa Casa (CHC), em agosto de 2017. Significativos trabalhos então
apresentados, em diversos Simpósios Temáticos, animou o Laboratório de História Oral do CHC a
organizar esta obra.
Esta publicação dimensiona as possibilidades da História Oral – cuja metodologia cada vez
mais conhecida e apropriada vem permitindo a produção de fontes orais – como também
promovendo a inclusão de temáticas e recortes da realidade, até recentemente silenciados nos
escaninhos do tempo presente.
São doze capítulos, com diversos trabalhos que transitam por temáticas do interesse
daqueles que ultrapassaram a porta da “historial oficial”, dando protagonismo a muitos atores e
agentes que promovem a inclusão, combatem a diversidade, animam o respeito aos direitos e
articulam estratégias para a vigência da democracia, apesar dos reveses impostos no cotidiano.
É interessante registrar que os textos desta obra possibilitam, também, mostrar as diferentes
formas e abordagens da prática da História Oral, uma vez que seus autores tem uma representação
espacial não só da região Sul, como também de outros estados do Brasil. Trata-se de uma
oportunidade de entrecruzamento de experiências e fazeres, com certeza frutífera, que aproxima e
promove diálogo e aprendizagem, sempre necessários, para os que se valem das narrativas, cujas
escutas vêm sendo ampliadas e os silenciamentos desocultados.
Que a leitura desta obra, para além de atraente, seja frutífera e instigadora, como também
animadora de próximos encontros em outros “palcos da memória”.

Edna Ribeiro de Ávila


Véra Lucia Maciel Barroso
Historiadoras do Laboratório de História Oral/CHC Santa Casa
Samira Moratti Frazão

Em outubro de 2014, um refugiado da Guiné foi representado em diversos discursos


presentes no jornalismo brasileiro por supostamente ter contraído o vírus Ebola e manifestado sinais
semelhantes aos da doença ao dar entrada no Brasil, após ter saído de seu país situado na África
Ocidental onde, naquele momento, havia um surto da doença. Informando nome completo, dados
de identificação impressos no documento de entrada no país, foto e local onde estava residindo
temporariamente, veículos da imprensa, sites, emissoras de televisão e rádios repercutiram notícias
sobre tal acontecimento, promovendo na opinião pública um clima de pânico moral. Após o
governo brasileiro investigar o caso, foi notificado o resultado negativo sobre a doença (G1, 2014;
MORAIS, 2014). No entanto, a vida do imigrante em questão provavelmente não seria a mesma
após esse episódio.
Ao invés de guarida, com o pânico gerado pelas representações sobre o caso, o refugiado
em questão que veio ao Brasil em busca de asilo, fugindo de uma perseguição utilizada como
prerrogativa para a solicitação de refúgio, possivelmente deve ter encontrado rejeição em seu
destino, se considerar a forma como foi exposto nos discursos jornalísticos analisados e conforme
explicitado anteriormente. Em uma das reportagens, imagens captadas em 9 de outubro de 2014
por câmeras de segurança na Unidade de Pronto Atendimennto em Cascavel, no Paraná, cidade
onde o refugiado esteve, inicialmente, e a partir da qual o caso ganhou repercussão midiática,
apresentaram-no discursivamente como alguém que estava comentendo um crime, uma ilegalidade
sob uma perspectiva midiática higienista e de Segurança Nacional, exigindo o fechamento de
fronteiras para evitar possíveis disseminações de doenças como a citada (a título de exemplo, ver
as seguintes fontes: Fantástico, 2014; Jornal Nacional, 2014; Jornal do Brasil, 2014). Abaixo dois
exemplos de discursos publicados à época por jornais brasileiros e que foram analisados na tese,
cujo corpus é composto por 20 reportagens veiculadas entre 9 de outubro de 2014 e 16 de outubro
de 2014:

Imagens gravadas pela câmera de segurança da Unidade de Pronto Atendimento (UPA)


de Cascavel, no Paraná mostram [o refugiado] esperando por quatro horas até ser

* Doutoranda em História - PPGH/UDESC.


atendido na última quinta-feira (9). Tempo suficiente para ter contato com diversas
pessoas que também estavam na UPA. [...] Ele tinha febre, dor de garganta e tosse. A partir
daí, uma operação de emergência foi montada. A suspeita era que ele estivesse
contaminado com o vírus ebola. (Fantástico, 2014, grifo meu).
Contudo, apesar de [o refugiado] ter entrado no país de forma tradicional, um medo que
pode surgir na população é da entrada de imigrantes de forma ilegal no país, muitas vezes
junto aos migrantes vindos do Haiti. [...] O infectologista ressalta que os problemas
médicos relativos à pouca fiscalização das fronteiras é muito anterior ao medo da entrada
de ebola. “Reforçar fronteiras é uma coisa que já deveria ter sido feita a muito tempo, por
conta da entrada de drogas e armas que causam vários problemas à saúde do usuário de
drogas, por exemplo. A fragilidade da fronteira já é algo que compromete a saúde
brasileira há muito tempo. Não sei se agora por conta do ebola vai começar a melhorar,
mas eu gostaria que isso acontecesse”, denuncia. (Jornal do Brasil, 2014, grifo meu).

Em parte dos comentários publicados nas páginas das reportagens dos sites de notícias
consultados, notou-se mensagens feitas por internautas envoltas sob a penumbra do ódio.
Disfarçados de liberdade de expressão, tais comentários podem promover discursos xenofóbicos,
racistas e preconceituosos (O Estrangeiro, 2014). Foi possível observar, em alguns casos, que essas
explanações tiveram respaldo também nos discursos midiáticos os quais promoviam uma ideia de
nacionalismo brasileiro, tentando proteger fronteiras contra a “invasão” de migrantes e refugiados,
discurso este empregado especialmente quando migrantes de origem africana eram os protagonistas
das notícias, como explicita o editorial publicado no site O Estrangeiro, em 11 de setembro de 2014:
O jornal O Globo relatou em sua edição do 09 do 09 que, diante do temor de que a
epidemia de ebola chegue ao país, africanos que tentam cruzar a fronteira entre a Bolívia
ou o Peru e o Acre estão sendo recusados por agentes da Polícia Federal. Entre os que
entram, são comuns os relatos de discriminação. [...] Por conta das notícias sobre o surto
na África, quem chega de lá sente na pela a dificuldade de socialização. Em Brasileia,
grupos de africanos se isolam na praça central. São poucos os brasileiros que se
aproximam. Segundo os senegaleses que ontem estavam por ali, o medo do preconceito é
tamanho que eles não saem para pedir comida como fazem os haitianos. (O Estrangeiro,
2014, grifo meu).

Acredita-se que, em alguns casos, o pânico, presente nas falas de autoridades e


brasileiros consultados, pode ser respaldado pelo modo como as representações de tais
acontecimentos foram reelaboradas nas reportagens publicadas em sites de notícias ou outras
plataformas midiáticas, a partir de discursos presentes na sociedade, de um modo geral.
Apesar dos esforços encampados por sociedades civis e governamentais no Brasil
para, além de inserir, integrar imigrantes e/ou refugiados na sociedade brasileira até
meados de 2016, por exemplo,1 o que se nota é que devido a diversos fatores políticos e
1
Uma das ações foi promovida pelo Ministério da Justiça no Brasil. A campanha “Brasil, a imigração está no
nosso sangue" foi lançada em outubro de 2015 e divulgada, por meio de peças publicitárias e apoio informativo
em redes sociais digitais, na imprensa, dentre outras vias. Na ocasião, foi produzido um site (http://
www.eutambemsouimigrante.com.br) com informações sobre a campanha, cuja proposta era sensibilizar a
população brasileira contra atos xenofóbicos, preconceito e intolerância a imigrantes e/ou refugiados
(PORTAL BRASIL, 2015).
sociais do passado transpostos na contemporaneidade, há uma diferenciação na recepção e no
acolhimento por parte da sociedade brasileira a migrantes e/ou refugiados, notadamente
negros de origem africana ou de outras nacionalidades, entre homens, mulheres e crianças.
Entende-se que inserir é diferente de integrar: as duas ações devem ser realizadas, não uma
isolada da outra. Nesse sentido, o jornalismo em suas várias plataformas (impresso,
radiofônico, audiovisual e digital) pode agir como apoio na inclusão da população migrante
em seus locais de destino e mobilidade dentro do Brasil. Contudo, em reportagens
analisadas no presente estudo, o que se notou foi justamente o oposto.
Assim como a política adotada em alguns países que observam as migrações sob a
ótica da Segurança Nacional, assim o jornalismo, e aqui se detém a atenção à plataforma
digital, também interpreta o fenômeno em sua abordagem relacionando os
fluxos migratórios internacionais e demais fenômenos sociais a uma ideia de risco de
saúde e perigo,2 como exemplificado no caso de suspeita de ebola ocorrido em 2014.
Também foi possível notar a relação mesmo que indireta das migrações – sejam por
motivações econômicas ou de outra natureza, sejam as forçadas como é o caso do refúgio –,
a práticas ilícitas como o tráfico de pessoas, a violência urbana, a exploração sexual, a
propagação de doenças, ou mesmo a questões sociais como o desemprego, a criminalidade e
a pobreza. Entende-se que essa relação com aspectos negativos contribui para que migrantes,
tanto homens quanto mulheres, sejam marginalizados (CASTRO, 2001).
Ainda com base nas pesquisas lideradas por Castro (2001), esta já alertava no início
dos anos 2000 sobre a importância em relacionar a discussão em torno das políticas públicas
migratórias e a opinião pública.

No debate sobre governabilidade da migração internacional, diplomacia multilateral e o papel


dos organismos internacionais e não-governamentais, é necessário destacar a questão de
formalização de opinião sobre direitos dos migrantes e sobre a relação Estado-sociedade-
indivíduos. [...] Ou seja, que se acompanhe como a mídia de outros países representam
seus nacionais, cuidando da expansão de um sentimento anti-imigrante (CASTRO, 2001,
p. 24).

Tal visão corrobora para a elaboração de pesquisas como a presente proposta, a qual pode
servir para realçar a importância em analisar a perspectiva midiática, e aqui se detém atenção
especial às fontes jornalísticas digitais, sobre acontecimentos recentes como as migrações
contemporâneas e o possível impacto gerado na opinião pública bem como na própria história,

2
Para mais informações sobre a teoria, consultar a obra de Ulrich Beck “Sociedade de risco: rumo a uma
outra modernidade", lançada inicialmente em 1986. No livro, Beck sustenta a teoria de que a sociedade de risco,
contextualizada em um mundo globalizado e que substitiu a sociedade industrial, daria novos rumos ao
capitalismo, gerando uma nova ordem global, com impactos diretos em aspectos políticos, econômicos e,
sobretudo, sociais (GUIVANT, 2001).
quando do uso de tais fontes para a análise de acontecimentos recentes e que, portanto, ainda não
foram sedimentados na História do Tempo Presente, campo no qual o presente estudo é elaborado.
Porém, além de apenas analisar os discursos jornalíticos sobre a temática, também foi
necessário apresentar o olhar dos próprios migrantes vindos de regiões como a África e o Caribe e
que migraram para o Brasil, entre os anos de 2000 e 2014, e de jornalistas que realizaram coberturas
na área, durante o mesmo período. O foco das entrevistas, obtidas através da História oral, foi como
cada um dos depoentes observa as representações de fluxos migratórios contemporâneos no
jornalismo brasileiro. Até o momento, foram coletados oito depoimentos, dos quais dois deles
foram apresentados neste artigo.
Contudo, antes de refletir acerca dos depoimentos coletados, é necessário discutir os
conceitos que deram base para a pesquisa aqui apresentada: representação, discurso, memória,
pânico moral e História Oral.

A noção em torno da representação social pode tratar sobre uma “[...] relação entre a
significação, a realidade e sua imagem” (CHARAUDEAU, 2014, p. 431). Por meio das
representações, os indivíduos conferem sentido à realidade em seu ambiente social. No entanto,
pressupõem ideais, interesses, ideologias, fundados em discursos oriundos de grupos dominantes
(CHARTIER, 1990, 1991).
As informações presentes no discurso jornalístico, que também encontram guarida em tais
ideais presentificados no discurso dos grupos sociais dominantes, podem ser consideradas como
componentes utilizados na construção da realidade e na formação de uma opinião pública sobre
assuntos diversos. A partir delas, são adotadas representações acerca do que se pensa ou se almeja
moldar do que é e como deve ser visto.
Entende-se que os discursos podem ser materializados de forma escrita ou falada,
associados a imagens estáticas ou audiovisuais, e gerar impressões implícitas ou explícitas acerca
do que e/ou de quem são retratados discursivamente (FOUCAULT, 2013). Para Stuart Hall, os
discursos são formas pelas quais os sujeitos percebem ou tentam compreender assuntos, grupos e
práticas, e a partir delas elaborar conhecimento (HALL, 2016).
O discurso, neste caso, está relacionado às formas de representação elaboradas para
compreender determinada situação e/ou grupo de pessoas, atrelado, ainda, a um determinado
momento histórico. Constitui a forma como determinada linguagem é ressignificada em um
contexto específico, combinada com “[...] a maneira como práticas representacionais operam em
situações históricas concretas.” (HALL, 2016, p. 27).
Desse modo, no jornalismo podem ser representadas realidades baseadas em fatos verídicos
ou moldados de acordo com interesses diversos – seja dos grupos hegemônicos direta ou
indiretamente envolvidos, da própria linha editorial do veículo em questão ou de patrocinadores,
por exemplo. “[...] As representações constroem uma organização do real por meio das próprias
imagens mentais veiculadas por um discurso” (CHARAUDEAU, 2014, p. 433).
Nesse contexto, a representação da História, enquanto uma reconstrução problematizada,
porém incompleta daquilo que não existe mais, é construída com base em restos de memória que
persistem ao longo do tempo, emergindo na História do Tempo Presente. E a seletividade da
memória, que convive com o esquecimento, a impossibilita de registrar todos os acontecimentos
em nossa existência (NORA, 1993). O processo de recordar, de utilizar a memória, conta ainda com
a presença de subjetividades inerentes aos indivíduos, que também se valem dela na elaboração de
lembranças, identidades e vivências (HALBWACHS, 2003).
No que tange ao discurso jornalístico, incluindo as entrevistas publicizadas, Navarro-
Barbosa propõe que tanto o enunciado verbal presente na materialidade discursiva quanto o
enunciado imagético – quando existente – funcionariam como operadores de uma memória social.
Desse modo, a linguagem jornalística pode ser compreendida como “[...] um meio de acesso
essencial à análise da história e dos conjuntos sociais da memória” (NAVARRO-BARBOSA, 2007,
p. 94).
As práticas discursivas estimulam, portanto, o estabelecimento de uma memória que
coaduna com os princípios que emanam do discurso. “Eles o fazem pelo mútuo atravessamento, ao
longo do tempo, de uns discursos em outros discursos, no que se denomina interdiscurso”
(BENETTI, 2009, p. 99). Carregam consigo “significados históricos presentes no imaginário de
quem o elabora. Cada discurso é, assim, uma representação do imaginário no qual seu autor está
inserido” (SILVA; SILVA, 2015, p. 101).
É preciso atentar, nesse ínterim, que os discursos presentes no jornalismo podem promover
pânicos morais, dependendo do acontecimento ou grupo do qual se fala. O conceito de pânico moral
aqui utilizado advém dos estudos do sociólogo britânico Kenneth Thompson (2014), o qual tomou
como referência as pesquisas do sociólogo Stanley Cohen. Thompson diz que as representações
podem desencadear uma percepção equivocada sobre algum comportamento cultural ou grupo de
indivíduos, em especial as minorias (FRAZÃO; ASSIS, 2016).
O conceito de pânico moral foi sedimentado na Sociologia e é relacionado aos estudos que
observam condutas coletivas e de desvio social, presentes ou não nos meios de comunicação.
Dentre as características de um acontecimento ou grupo de indivíduos associados a um pânico
moral estão:
1) algo ou alguém é definido como uma ameaça aos valores e interesses da sociedade; 2)
esta ameaça se representa nos meios massivos de tal modo que sua forma será facilmente
reconhecida; 3) se produz uma rápida construção de uma preocupação pública; 4) as
autoridades e os formadores de opinião devem responder ou dizer algo a respeito; 5) o
pânico passa ou produz mudanças sociais (THOMPSON, 2014, p. 23).
De acordo com Thompson, os termos pânico e moral estão relacionados a uma ameaça ao
que é considerado sagrado ou fundamental para um grupo hegemônico, cujo poder tenha um
respaldo social e político em uma sociedade (FRAZÃO; ASSIS, 2016).
Para que determinados grupos sociais continuem prevalencendo seu poder sobre os demais,
estes exigem por intermédio da opinião pública e do jornalismo uma “maior regulação ou controle,
uma demanda para regressar aos ‘valores’ tradicionais” (THOMPSON, 2014, p. 24). Em estudos
anteriores, Thompson (2014) notou a presença de pânicos morais em momentos associados ou não
a um aumento nos níveis de stress em parte da sociedade. O autor salienta que, para verificar se
determinado acontecimento ou grupo está envolto em um possível pânico moral, é necessário
compreender de que forma os indivíduos em questão foram socialmente representados em um
discurso, além de elencar as razões que desencadearam tal pânico. Por exemplo, “um alto nível de
preocupação pelo comportamento de um determinado grupo ou tipo de pessoas, e um aumento do
nível de hostilidade a aqueles considerados como uma ameaça” (THOMPSON, 2014, p. 24) podem
ser dois dos fatores analisados em um acontecimento.
Ambas as razões foram constatadas ao analisar o caso de suspeita de ebola ocorrido no
Brasil, em outubro de 2014, e que envolveu um refugiado da Guiné. Como exposto no início do
artigo, na ocasião o refugiado com suspeita de ter contraído a doença foi marginalizado
publicamente, a ponto de gerar reflexos sobre a inserção e integração de outros grupos migratórios
envolvendo ou não pessoas em situação de refúgio, especialmente os negros de origem africana ou
de outras nacionalidades.
Adiante, serão discutidos alguns pontos destacados por dois depoentes ouvidos na presente
pesquisa, recorte de tese em andamento, e cujos depoimentos foram coletados por meio da História
Oral. Antes de prosseguir é oportuno, igualmetne, refletir acerca do método de coleta das
entrevistas.

Para Verena Alberti (2000), a História Oral consiste em “[...] uma metodologia de pesquisa
e de constituição de fontes para o estudo da história contemporânea surgida em meados do século
XX, após a invenção do gravador a fita”. E complementa: “[...] consiste na realização de entrevistas
gravadas com atores e testemunhas do passado” (ALBERTI, 2000, p. 1). Ao refletir acerca do
mesmo conceito, Marieta de Morais Ferreira (2012) diz que a História Oral pode ser compreendida
de três formas: como técnica, disciplina e como metodologia.
Se considerarmos a história oral uma técnica, nossa preocupação se concentrará
exclusivamente em temas como organização de acervos e realização de entrevistas (temas
em si relevantes, mas, como esperamos ter demonstrado, muito aquém das possibilidades
da História Oral). Se concebermos a história oral como disciplina, há dois caminhos
possíveis, ambos, a nosso ver, problemáticos: “esquecermos” as questões de caráter
teórico, deixando de abordá-las em nossos trabalhos, ou tentarmos encontrar respostas
para elas apenas no âmbito da história oral. (FERREIRA, 2012, p. 171).

A autora detalha, ainda, que “[...] a história oral inaugurou técnicas específicas de pesquisa,
procedimentos metodológicos singulares e um conjunto próprio de conceitos” (FERREIRA, 2012,
p. 169).
Ainda que eu, enquanto pesquisadora, ocupe dois campos distintos – pela formação tanto
em Jornalismo, na Graduação e Mestrado e, no atual momento, no Doutorado em História – optei
por adotar a História Oral como método para a coleta dos depoimentos, por julgar este caminho
como mais adequado ao que se propõe na pesquisa, empreendida no campo da História do Tempo
Presente.

Para a pesquisa, que está em fase de escrita e análise dos dados e fontes, optou-se por coletar
depoimentos orais de imigrantes que vieram para o Brasil, a partir dos anos 2000 até 2014, e que
ainda estão no país, em especial os de origem africana e caribenha. Aqui foram analisados relatos
tanto de imigrantes quanto de jornalistas. No caso das últimas fontes, considerou-se aqueles(as)
que, direta ou indiretamente, trabalharam em coberturas midiáticas sobre fluxos migratórios
contemporâneos, pela proximidade com o tema.
Uma das entrevistadas foi Julia,3 proveniente da Guiné-Bissau, país africano onde
nasceu, e que desde 2010 vive em Florianópolis, Santa Catarina. Ela foi precedida de seu
companheiro que chegou na cidade brasileira um ano antes, pela mesma via: o Programa de
Estudantes- onvênio de Graduação (PEC-G). Atualmente a estudante, que possui 27 anos
de idade, está vinculada à Universidade Federal de Santa Catarina, onde estuda Serviço
Social, graduação em curso até o momento da entrevista, realizada em maio de 2017.
Na época em que saiu da Guiné-Bissau, Julia estava com 20 anos e precisou fazer
uma difícil decisão: deixar seu filho de quatro anos para vir ao Brasil, em busca da
profissionalização. Ele permaneceu na África aos cuidados da avó paterna até 2014, ano em
que foi possível trazer a criança para perto da mãe. Com oito anos de idade, o menino foi
matriculado em uma escola local para continuar os estudos. E exatamente quando ocorreu o
caso de suspeita de ebola, nem ele tampouco Julia ficaram incólumes aos discursos
midiáticos, tomados como base das conversas que brasileiros mantinham com ambos.

[...] Aqui na universidade tem colegas que quando passa alguma coisa em um país da
África, começam a perguntar: “O que está acontecendo no seu país?”, mesmo que seja um
acontecimento que eu não saiba. E quando alguém me pergunta nesses casos, sempre me

3
A pedido da fonte foi adotado um pseudônimo para proteger sua real identidade.
estranha e interrogo: “Que estranho. No meu país? No meu país não está acontecendo nada
disso”. Quando falam “África”, sem especificar onde, não dá para saber onde é, até porque
pode ser um país bem longe do meu. Eles [os media] confundem as pessoas. (JULIA,
2017, grifo meu).

Quando ocorreu o caso de suspeita de ebola envolvendo o refugiado da Guiné, Julia contou
que seu filho era chamado de “ebola” na escola. Incomodada com a situação, foi até a instituição
de ensino, algumas vezes, na tentativa de evitar que os demais alunos o chamassem daquela forma.
Como iniciativa própria, Julia tentava explicar para as pessoas a diferença entre as Guinés, três
países diferentes no mesmo continente: a Guiné-Bissau, a Guiné e a Guiné Equatorial. A partir de
2013, a Guiné sofria uma grave epidemia do vírus ebola. De acordo com dados da Organização
Mundial da Saúde (OMS), desde o início do surto até dezembro de 2015, aproximadamente 28.700
mil pessoas haviam sido infectadas, sendo a maior incidência nos países de Serra Leoa, Libéria e
Guiné. Neste período, 11.315 pessoas haviam morrido em decorrência da doença. A organização,
no entanto, havia declarado que não havia mais casos confirmados até o final daquele ano (WHO,
2015). No caso do país de origem de Julia, a Guiné-Bissau, embora seja vizinho da Guiné, de acordo
com a World Health Organization (WHO), vinculada à Organização das Nações Unidas (ONU),
naquela época não foram registrados números relevantes da doença na região (WHO, 2015).
Ainda que Julia tenha vindo por um fluxo migratório considerado privilegiado, por destoar
da vinda precária pela qual passam alguns imigrantes que vêm por rotas alternativas e fazem parte
do percurso por terra, não foi poupada dos pânicos morais gerados especialmente a partir do então
considerado primeiro caso de suspeita de ebola. “Muita gente perguntou: “Como é que está sua
família lá? Será que estão bem?” Respondia: “Sim, estão bem, porque o ebola não chegou na Guiné-
Bissau. Mas, sim, na Guiné e em mais outros dois países” (JULIA, 2017).
Para Julia, o fato de os brasileiros com os quais teve contato não souberem diferenciar quais
países estavam com surto de ebola, na época, se dá pela ausência de explicação por parte do
jornalismo. Quando indagada sobre o que achava da cobertura jornalística a respeito do caso de
suspeita de ebola e de outros acontecimentos relacionados à África, para ela seria fundamental que
no discurso jornalístico fossem feitas referências aos aspectos positivos do continente africano e
dos país nele localizados. “[...] quando estão falando da “África”, não mostram que tem coisas boas
em diferentes países. Só falam das coisas ruins mesmo. Acho que falta falar do lado bom das coisas
também” (JULIA, 2017).
Outro entrevistado foi Rogério, cujo sobrenome será preservado a pedido da fonte. Vindo
em 2003 do Moçambique, país africano onde nasceu, Rogério também chegou ao Brasil pelo PEC-
G, para cursar Jornalismo na Universidade de São Paulo, instituição onde se formou em 2007. Fez
Mestrado na mesma instituição e, atualmente, ingressou no doutorado. Hoje, atua como jornalista
no Brasil e já abordou o tema das migrações em alguns dos trabalhos realizados, sobretudo
documentários e reportagens em vídeo. O contato com ele ocorreu, inicialmente, por uma rede
social, quando do meu conhecimento de sua participação em uma roda de conversa sobre um filme
de temática migrante em que ele foi um dos convidados a debater sobre. Coincidentemente, soube
que Rogério veio pela mesma via que Julia. Ou seja, não foi intencional a busca por possíveis
entrevistados que vieram unicamente por esta via, até porque outros imigrantes entrevistados
utilizaram caminhos diferentes.
A análise pessoal que Rogério fez sobre a influência das representações midiáticas acerca
do fluxo migratório contemporâneo, especialmente o que envolve imigrantes negros, deu-se,
portanto, a partir de sua perspectiva enquanto imigrante e jornalista. Ao ser questionado sobre qual
era sua opinião a respeito do discurso jornalístico sobre a migração recente, Rogério destacou o
racismo como um dos principais problemas presentes neste tipo de cobertura:

Acontece que quando a imigração é de pessoas negras, ou seja, vindos do Haiti, por
exemplo, [ou] de africanos, essa cobertura tende a ser problemática. Então, o Brasil está
precisando lidar com um problema quanto ao trato da migração de povos negros. Por uma
questão que, imagino, eu não preciso te explicar. Eu considero o Brasil um país
estruturalmente racista. E isso não tinha, obviamente, como deixar de transparecer na
cobertura jornalística sobre a migração de povos negros especificamente. Então, eu
considero que há uma dualidade de percepção sobre a temática da migração, dependendo de
quem se fala. Eu venho desenvolvendo esse olhar, desde a experiência de estudante no
Brasil. Eu era muito questionado na época, e sou ainda, enquanto estudante na Universidade
de São Paulo, por exemplo. As pessoas queriam saber quem paga meus estudos, como eu
entrei na universidade, como é que eu consegui as bolsas que eu consegui, se o governo
brasileiro pagava, enfim. Um verdadeiro raio X. Mas eu tinha colegas que vinham da
Espanha, que vinham de Portugal, que vinham da Inglaterra e eu não os via tendo que
responder as mesmas perguntas, assim. Então, desde essa época, eu já percebo uma
dualidade, nesse sentido. E a cobertura jornalística também reflete esse problema: a
imigração africana, haitiana e dos países sulamericanos é um “problema” pro Brasil. O
Brasil precisa resolver um “problema” desses povos. Já a imigração europeia, não tanto
assim. As pessoas estão querendo entender porque é que os europeus estão vindo ao Brasil,
o que os interessa no Brasil, o que a gente tem de interessante a ponto de um imigrante
escolher morar ou passar pelo Brasil. (ROGÉRIO, 2017, grifo meu).

Outros jornalistas brasileiros e imigrantes de outras nacionalidades também


foram entrevistados,4 porém ambos os depoimentos, aqui apresentados, sintetizam, de certo
modo, alguns problemas relacionados à cobertura jornalística brasileira, no tocante aos
fluxos migratórios contemporâneos.

4
Como a tese está em sua fase final de escrita, foi necessário neste artigo recortar e limitar o número e trechos
integrais do depoimentos, a fim de manter o ineditismo da pesquisa, quando da futura defesa, prevista para
ocorrer no primeiro semestre de 2018.
Ainda que o estudo não seja conclusivo, já que ainda está em fase de análise dos dados, é
possível inferir com base nos dois depoimentos assinalados que a ausência de informações objetivas
e de explicação sobre determinados fatores, em especial quando a cobertura aborda acontecimentos
que possam ter uma perspectiva negativa, são, na visão dos depoentes, fundamentais para gerar
desinformação e provocar pânicos de ordem moral sobre os migrantes que estão em mobilidade no
Brasil contemporâneo.
A partir do conceito de pânico moral, também foram utilizadas como referência as obras
escritas por Cogo e Souza (2013) e Cogo e Silva (2015), nas quais se discute a relação entre um
discurso semântico que pode promover o pânico para com os migrantes que fazem parte do fluxo
migratório contemporâneo, e as representações presentes nos discursos jornalísticos sobre tais
grupos. Termos comumente utilizados no discurso jornalístico quando da abordagem dos fluxos
migratórios contemporâneos, tais como “invasão”, “ilegais”, “indocumentados”, “clandestinos”,
“chegada em massa”, “leva” possuem conotação negativa (COGO; SOUZA, 2013; COGO; SILVA,
2015). Seu uso, pois, pode influenciar a opinião pública sobre o macrotema, além de promover o
pânico moral sobre migrantes e pessoas em situação de refúgio que integram os fluxos recentes.
Ainda que o discurso jornalístico, por si somente, não promova o pânico, é necessário
refletir acerca dos grupos hegemônicos por trás de tais representações, os quais podem, além de
influenciar quais discursos serão privilegiados em detrimento de outros, a forma como serão
expostos, se por intermédio de uma cobertura jornalística sensacionalista, se com exposição
exacerbada dos indivíduos envolvidos, enfim. Considera-se que é justamente este fator o
responsável por contribuir com a manifestação, por parte da sociedade, de pânicos morais contra
imigrantes e pessoas em situação de refúgio e que, não raro, possam estar em situação de
vulnerabilidade social.
Neste caso, as autoras sugerem que as notícias cujo foco sejam os fluxos migratórios, atuais
ou passados, deve-se “focalizar [a] migração como tema; abordar [a] migração como experiência
sociocultural; potencializar [a] migração como fonte em notícias de interesse geral da sociedade;
buscar fontes de migrantes nacionais e internacionais [e] incluir a perspectiva de gênero como
importante para não reforçar a desigualdade” (COGO; SOUZA, 2013, p. 61, grifo meu). É preciso,
porém, atentar que “embora parte das migrações sejam motivadas por fatores econômicos, é
importante, na cobertura das migrações, não enfatizar apenas aspectos relacionados às situações de
carência e precariedade vividas pelos migrantes” (COGO; SOUZA, 2013, p. 61).
Assim como ressaltado por Julia e Rogério, reportagens focando aspectos positivos como a
cultura, a gastronomia, dentre outros, seriam benéficos para apresentar representações positivas a
respeito não apenas de países do continente africano, como de outros locais a partir dos quais os
fluxos migratórios contemporâneos envolvendo imigrantes e/ou refugiados negros não sejam
estigmatizados, como o ocorrido em 2014 no caso de suspeita de ebola.
ALBERTI, Verena. Fontes orais: histórias dentro da História. In: PINSKI, Carla (Org.). Fontes
históricas. São Paulo: Contexto, 2008, p. 155-202.

_____. ALBERTI, Verena. Indivíduo e biografia na história oral. CPDOC/FGV. Rio de Janeiro:
CPDOC, 2000. 5p. Disponível em: <http://cpdoc.fgv.br/producao_intelectual/arq/1525.pdf>. Acesso
em: 5 jun. 2015.

BENETTI, Márcia. Discurso. In: MARCONDES FILHO, Ciro (Org.). Dicionário da Comunicação.
São Paulo: Paulus, 2009, p. 98-99.

CASTRO, Mary Garcia. Migrações Internacionais e políticas: Algumas experiências Internacionais.


In: CASTRO, Mary Garcia (Coord.). Migrações Internacionais: Contribuições para Políticas.
Brasília: Comissão Nacional de População e Desenvolvimento (CNPD), 2001, p. 15-32.

CHARAUDEAU, Patrick. Representação social. In CHARAUDEAU, Patrick; MAINGUENEAU,


Dominique. Dicionário de Análise do discurso. 3 ed. São Paulo: Contexto. 2014, p. 431.

CHARTIER, Roger. A história cultural entre práticas e representações. Rio de Janeiro: Bertrand
Brasil; Lisboa/Portugal: Difel, 1990.

_____. O mundo como representação. Estudos Avançados, 5, 11, 1991. Disponível em:
<https://goo.gl/z38xZn>. Acesso em: 2 dez. 2014.

COGO, Denise; SILVA, Therezinha. Mídia, alteridade e cidadania da imigração haitiana no Brasil.
Encontro Anual da Compós 2015. Disponível em: < https://goo.gl/wfFCh4>. Acesso em: 1 jun. 2015.

COGO, Denise; SOUZA, Maria Badet. Guia das Migrações Transnacionais e Diversidade Cultural
para Comunicadores – Migrantes no Brasil. Belatterra: Instituto de la Comunicación de la
UAB/Instituto Humanitas Unisinos, 2013.

FANTÁSTICO. Africano com suspeita de ebola esperou por 4 horas até ser atendido. Fantástico –
G1, 12 out. 2014. Disponível em: <https://goo.gl/ZXBxVt>. Acesso em: 15 set. 2016.

FERREIRA, Marieta de Moraes. História oral: velhas questões, novos desafios. In: CARDOSO, Ciro
& VAINFAS, Ronaldo (Org.). Novos domínios da História. Rio de Janeiro: Elsevier; Campus, 2012,
p. 169-186.

FOUCAULT, Michel. A ordem do discurso: aula inaugural no Collège de France, pronunciada em 2


de dezembro de 1970. 23 ed. São Paulo: Loyola, 2013.
FRAZÃO, Samira Moratti; ASSIS, Gláucia de Oliveira. O “pânico moral” na narrativa
(tele)jornalística: uma análise da representação de refugiados ganeses em telejornais brasileiros (2014).
In: SILVA, Karine de Souza; PEREIRA, Mariah Rausch; SANTOS, Rafael de Miranda (orgs.).
Refúgios e Migrações: práticas e narrativas. Florianópolis: NEFIPO/UFSC, 2016, p. 75-99.

G1. Exame de suspeito de ter ebola no Brasil dá negativo. Bem Estar, 11 out. 2014. Disponível em:
<https://goo.gl/nC8Ra3>. Acesso em: 17 jan. 2016.

GUIVANT, Julia S. A teoria da sociedade de risco de Ulrich Beck: entre o diagnóstico e a profecia.
Revista Estudos Sociedade e Agricultura, n. 16, abril 2001, p. 95-112.

HALBWACHS, Maurice. A memória coletiva. São Paulo: Vértice ; Revista dos Tribunais LTDA.,
1990.

HALL, Stuart. Cultura e representação. Rio de Janeiro: Ed. PUC Rio: Apicuri, 2016.

JORNAL DO BRASIL. Refugiados e imigrantes ilegais elevam o risco de entrada de ebola no país.
Jornal do Brasil, 19 out. 2014. Disponível em: <https://goo.gl/vEFksq>. Acesso em: 15 set. 2016.

JORNAL NACIONAL. Primeiro caso suspeito de ebola no Brasil é de homem que veio da Guiné.
Jornal Nacional – G1, 10 out. 2014. Disponível em: <https://goo.gl/Nj5dLC>. Acesso em: 17 jan.
2016.

JULIA. depoimento [maio 2017; transcrição aprovada pela fonte em junho 2017]. Entrevistadora:
Samira Moratti Frazão. Florianópolis: 2017. 1 arquivo digital m4a (44 min.).

MORAIS, Raquel. Novo exame de suspeito de ter ebola dá negativo, diz ministro da Saúde. Bem
Estar, 13 out. 2014. Disponível em: <https://goo.gl/aO8Ynq>. Acesso em: 17 jan. 2016.

NAVARRO-BARBOSA, Paulo Luis. Mídia, Memória e Identidade. In: FONSECA-SILVA, Maria da


Conceição; POSSENTI, Sírio (Org.). Mídia e rede de memória. Vitória da Conquista/BA: Ed. Uesb,
2007, p. 93-110.

NORA, Pierre. Entre memória e história: a problemática dos lugares. In: Projeto História. São Paulo:
PUC, n. 10, p. 07-28, dezembro de 1993.

O ESTRANGEIRO. Histeria – incompetência – cacofonia. O Estrangeiro. 11 set. 2014. Disponível


em: <https://oestrangeiro.org/2014/09/11/histeria-incompetencia-cacofonia/>. Acesso em: 13 fev.
2015.

PORTAL BRASIL. Campanha vai combater xenofobia e intolerância a imigrantes no Brasil. Portal
Brasil, 13 out. 2015. Disponível em: <https://goo.gl/Q6ZUOt>. Acesso em: 17 jan. 2016.
ROGÉRIO. depoimento [maio 2017; transcrição aprovada pela fonte em junho 2017]. Entrevistadora:
Samira Moratti Frazão. Florianópolis/São Paulo: 2017. 1 arquivo digital m4a (1 hora e 4 min.).

SILVA, Kalina Vanderlei; SILVA, Maciel Henrique. Dicionário de conceitos históricos. 5. ed. São
Paulo: Contexto, 2015.

THOMPSON, Kenneth. Panicos Morales. Bernal: Universidad Nacional de Quilmes, 2014.

WHO - World Health Organization. Ebola Situation Reports. World Health Organization, 30
dezembro 2015. Disponível em: <http://apps.who.int/ebola/ebola-situation-reports>. Acesso em: 1
janeiro 2016.
1

Gláucia de Oliveira Assis

Este artigo analisa as narrativas de emigrantes ítalo-brasileiros, mulheres e homens que


emigraram de antigas regiões de colonização italiana no Sul do Brasil rumo à Europa, num
movimento considerado como “retorno” à terra de seus nonos e nonas. As narrativas de suas
experiências de reencontro com a Itália, imaginada e narrada por seus nonos, comparadas com as
experiências de migrantes contemporâneos na Itália, mostraram como se reconstroem as
identificações, não só com a Itália e o Brasil, mas também suas identidades familiares e de gênero.
Neste sentido, procuramos refazer percursos, trajetos e memórias de movimentos recentes da
população brasileira nos quais as mulheres se têm inserido de maneira significativa, principalmente
rumo à Europa.
As mulheres e homens incluídos no presente estudo pertencem a gerações distintas de
descendentes de imigrantes italianos que chegaram ao Brasil, no final do século XIX. Trata-se de
uma imigração que teve como destino predominante as regiões agrícolas de Santa Catarina, Rio
Grande do Sul e São Paulo, de onde, ao longo do século XX, os descendentes migraram dos núcleos
coloniais para as cidades e, desde meados dos anos 1990, iniciaram um movimento de “retorno” à
terra de seus nonos e nonas (BENEDUZI; ASSIS, 2014). Como relata uma entrevistada em 2001,
“a primeira geração foi para a cidade; a segunda geração foi para a universidade e a terceira geração
vai para o mundo”.
No presente artigo, os sentidos de italianidade são colocados em questão. Enquanto as
descendentes que fizeram o caminho do campo para a cidade, em geral nos anos 1960, vivenciaram
processos de construção de italianidade em seu cotidiano, ouvindo narrativas de nonos e nonas,
fazendo parte de associações e grupos de música italiana, falando dialeto vêneto, fazendo “comida
típica italiana” e promovendo festas, os mais jovens, que viveram na cidade, se identificam como
descendentes, mas não falam o dialeto, não participam de associações ou grupos de música e veem
nos processos de dupla cidadania, mais do que um retorno à terra de seus ancestrais (ZANINI;
ASSIS; BENEDUZI, 2013; 2015), uma oportunidade de ir para a Europa, e vivenciar experiências
mais cosmopolitas.

1
Trabalho apresentado no Tercer Congreso AREIA "América Latina-Europa: Silencios, reticencias, ficciones
en las narraciones de las migraciones y de los migrantes " este artigo é uma versão com alterações do artigo
apresentado.
* Doutora em Ciências Sociais, professora associada – Universidade do Estado de Santa Catarina (UDESC),
Professora do Programa de Pós-Graduação em História e Programa de Pós-Graduação em Planejamento
territorial e Desenvolvimento Socioambiental.
Nesses trânsitos, há uma Itália imaginada, produto de histórias de migração e de uma
italianidade construída em relatos oficiais sobre a migração. Tais narrativas são confrontadas com
o presente, pois, quando partem rumo à Europa, vivenciam encontros, algumas vezes traumáticos,
entre a Itália imaginada e a vivenciada na condição de migrante.
Neste artigo, as narrativas de mulheres e homens migrantes que partiram rumo à Itália, no
início de século XXI, são apresentadas reconstruindo suas trajetórias de migração. Embora sejam
apresentados relatos de homens, nos centraremos nas narrativas das mulheres. Por que o foco nas
narrativas de mulheres? Porque, assim como outros fluxos de imigrantes latinos rumo à Europa
(PAGNOTTA, 2014), as mulheres brasileiras se inserem num mercado de trabalho que envolve as
redes internacionais informais de cuidados – trabalhando nos chamados enclaves étnicos de
imigrantes, marcados por gênero e raça trabalhando como cuidadoras de idosos, como babás,
faxineiras ou empregadas domésticas (MOROKVASIC, 1984; ANTHIAS, 2000; FLEISCHER,
2002; ASSIS, 2011), ou no mercado do sexo (PISCITELLI, 2008). Nesse contexto de feminização
dos fluxos migratórios, as mulheres participam das redes de cuidado e de sexo, num mercado de
trabalho segmentado por gênero, classe e raça. No caso das mulheres brasileiras, elas ainda se
inserem no ramo da estética e da beleza, o que também lhes configura um nicho no mercado de
trabalho. Segundo observa Saskia Sassen (2003), a feminização dos fluxos migratórios
transfronteiriços deve ser compreendida no contexto da expansão da economia informal, que
favorece a flexibilização e a desregulamentação da força de trabalho, absorvendo mão de obra
feminina e estrangeira.
Visando reconstruir essas trajetórias migratórias e os processos de reconfigurações de
identidades, o texto procura, inicialmente, discutir a contribuição dos relatos orais para os estudos
das migrações contemporâneas. Num segundo tópico, aborda os processos de reconstrução de
italianidade, a partir dos relatos orais de imigrantes que buscaram a dupla cidadania. No terceiro
tópico é dado destaque à trajetória de D. Maria de Fátima e de outras mulheres migrantes para
compreender melhor como gênero é um princípio que atravessa o processo migratório.
Para reconstruir essas trajetórias foram realizadas cerca de 45 entrevistas,2 em
localidades de imigração italiana na Região Sul do país (Santa Catarina e Rio Grande do Sul),
bem como na Itália. Mas, para esse artigo utilizamos apenas entrevistas realizadas em
Santa Catarina. Os/as entrevistados/as são descendentes de imigrantes italianos de 3ª ou 4ª
geração que emigraram ao longo dos anos 1990 e início dos anos 2000, rumo aos Estados
Unidos e Europa.

2
Os dados que embasam esse artigo foram coletados no âmbito do projeto “Os pequenos pontos de partida: das
colônias de imigração do sul do Brasil rumo à Itália, nesse início de século XXI.” Edital MCT/CNPq/SPM-PR/
MDA nº 20/2010 - Relações de Gênero, Mulheres e Feminismo. Agradeço ao CNPq pelos recursos que
possibilitaram a realização das entrevistas e do trabalho de campo.
Iniciamos os percursos da pesquisa apresentando, brevemente, relatos de dois jovens que
emigraram para a Itália em 2008. Antônio emigrou primeiro, para conseguir a cidadania italiana, e
depois passá-la à namorada, com quem se casou antes de para lá emigrar, para poder retirar a
documentação dela também. Gabriela, sua esposa, emigrou em 2009, depois que o marido já tinha
conseguido a documentação, embora ainda tivesse que aguardar por sua documentação para poder
permanecer na Itália.
Antônio: No começo, eu fui pra lá com a intensão de pegar o documento, primeira coisa.
Depois, eu queria trabalhar na Alemanha, porque a gente é muito conhecido lá. Na época
[2008], tinha seis primos lá. Então, era só da um toque pra eles que eles arranjavam
emprego para nós, não tem? Só que a gente viu que na Itália, o negócio ia dar certo e ali
se vive melhor que na Alemanha. Entendeu? Não se ganha tanto, não se economiza
tanto, financeiramente, mas em qualidade de vida é melhor.3
Gabriela: Eu disse pro Antônio, que eu sozinha não ia. Então, ou eu ia com a Carola [sua
prima], que é uma companhia, que eu também nunca tinha andado de avião nada, morro
de medo... ou não ia. Então eu disse pra ele, ou eu vou agora ou daqui dois meses eu
não vou mais, porque já tive que largar meu emprego tudo pra ir, então...4

Os relatos orais de Antônio e Gabriela falam de um movimento recente em Urussanga,


cidade do sul de Santa Catarina. Nesse início de século XXI, os descendentes, em geral da terceira
ou quarta geração, buscam, através da cidadania italiana, ir para a Europa, migrar para a Itália,
conseguir os papéis, para depois ir trabalhar nas sorveterias, durante o verão na Alemanha, ou
migrar para outros países europeus. Esse fluxo acontece desde meados da década de 1990 (ASSIS,
2011, 2014; SAVOLDI, 1998; FAVERI; AREND, 2014); a cidadania italiana passou a representar
um passaporte para a Europa (ZANINI; ASSIS; BENEDUZI, 2015). Além desse aspecto, os relatos
indicam como uma parcela de homens e mulheres migra e quais as redes e os atributos de gênero
que permeiam esse processo. Antônio inicia o fluxo, viaja inicialmente com um primo, para
conseguir a documentação e Gabriela o segue depois, já casada, pois assim sua família ficava mais
tranquila e com uma prima, por não querer viajar sozinha.
Os relatos orais expõem motivações, dificuldades, encantamentos e decepções no dia a dia
da Itália. Como Pagnotta (2014b), utilizamos os relatos orais como fonte de pesquisa sobre
migração contemporânea, pelo que oferecem de subjetivo, levando em conta a diversidade de
situação das experiências migratórias. Os testemunhos reconstroem aspectos fragmentados, às

3
Antônio. Entrevista a Gláucia de Oliveira Assis, em 18 fev. 2012, em Urussanga, Santa Catarina. Acervo da
pesquisa os "Pequenos Pontos de Partida”, arquivada no Laboratório de Gênero e Família - Labgef. Acesso por
consulta. Todos os nomes constantes nesse artigo são fictícios, por procedimento ético de pesquisa, que garante a
não identificação dos entrevistados.
4
Gabriela. Entrevista a Gláucia de Oliveira Assis, em 18 fev. 2012, em Urussanga, Santa Catarina. Acervo
da pesquisa os "Pequenos Pontos de Partida”, arquivada no Laboratório de Gênero e Família - Labgef. Acesso
por consulta.
vezes omitindo fatos que não correspondem à autoimagem de migrantes bem-sucedidos,
silenciando determinadas situações. Importa, portanto, reconstruir o processo no presente, por
permitir, na confrontação com outras narrativas, vislumbrar como a emigração contemporânea é
vivenciada pelos descendentes e, ao mesmo tempo, como essa experiência reconstrói os sentidos
de italianidade com os quais muitos foram criados em suas cidades.
As memórias, atualmente, circulam num contexto em que imagens, bens e palavras viajam
muito mais rapidamente. Na região sul de Santa Catarina, os relatos de possibilidades de vida na
Itália, os contatos sobre onde ficar, sobre conseguir trabalho e encaminhar a documentação em
geral percorrem caminhos particulares, de amigos, parentes, conhecidos. Assim relata
Palmira:5
Palmira: Eu trabalhava na época. Era o polo da UFSC a distância, é EAD né? Aí tinha um
rapaz que trabalhava ali embaixo. Daí ele disse: “não, tem uma moça da Itália que está
chegando agora e eu vou falar com ela” E ele conseguiu o telefone dela. No outro dia, a moça
veio ali em casa e disse que ela ia pra Itália um pouquinho antes que eu. Aí eu fiquei com a
comunicação dela lá e quando eu fui, ela foi me buscar na estação e ela alugou uma casa pra
mim e pra uma amiga dela que a gente pagava aluguel de quarto.

Conforme destaca Alistair Thomson (2002), os profissionais que trabalham com a História
Oral da migração têm observado que a história do migrante pode ser registrada ou mal
documentada, e que a evidência oral proporcionaria um registro essencial da história oculta da
migração. Os migrantes, através de seus relatos orais, reconstroem, revelam e esclarecem a
experiência de migrar, permanecer e retornar. Suas narrativas são analisadas como reconstruções
desse processo, do qual os emigrantes selecionam aspectos como as histórias de sucesso, a ajuda
mútua, as continuidades e permanências; nem sempre, como no caso de Palmira, relatam tensões,
conflitos e dificuldades. Há muitos silêncios e reticências sobre os aspectos marcados por
dificuldades. Palmira era casada no momento em que emigrou para a Itália e decidiu migrar com a
filha para lhe dar a cidadania italiana: “Queria o documento italiano justamente para os filhos no
futuro poder ir pra Europa, sem tem que dar entrevista para poder entrar no país sem complicação”.
Seu relato, ao tempo em que revela a importância das redes sociais, fala das dificuldades e conflitos
vivenciados na chegada à Itália, das dificuldades com a língua, com a desconfiança dos italianos:

Eu fui pra fazer os documentos. Aí nós chegamos, numa quarta-feira e na quinta já fomos
procurar essa menina, que é de Criciúma, filha de uma tal de Leia, Carina, o nome dela. Daí
ela encaminhou tudo pra mim, só que era pra sair em três meses o meu documento. Demorou
seis meses pra sair o meu documento. [...] Na época, ela trabalhava na posta; daí foi essa
menina que eu nem conhecia, né? que me arrumou a casa, que me pegou na estação. Eu
fui assim sem saber de nada, né? Falava italiano daqui [dialeto falado em Turvo], assim,
né?

5
Palmira. Entrevista concedida a Marlene de Fáveri em 8 abr. 2012. Acervo da pesquisa os "Pequenos
Pontos de Partida" arquivda no Laboratório de Gênero e Família - Labgef. Acesso por consulta.
né? Mas o povo da Itália não faz questão de te entender, sabe? Isso é muito mau. Eu fui numa
loja da Tim que eu comprei uma internet móvel e lá te tratavam mal, não te atendiam, não
faziam questão de te entender e depois que tu faz um esforcinho tu consegue entender. Eu,
como falava alguma coisa de dialeto aqui, mas eles não fazem questão nenhuma, assim. Tu
vai numa loja, eles nem olham. Lá tu procura, compra, tu passa no caixa eles, nem te dá uma
informação. Difícil. Bem difícil, assim, são bem... Não sei se tem medo que a gente vai atrás
de dinheiro, por alguma herança... Não sei porque. Não te recebe bem.

O relato de Palmira revela suas impressões sobre os primeiros momentos, a chegada, a


discriminação e o não reconhecimento de seu pertencimento étnico, sua italianidade, uma vez que
falava o dialeto, se sentia italiana, mas não era reconhecida como tal. Ao narrar suas experiências,
ela, assim como Antônio e Gabriela, as organizam e rememoram selecionando, recortando e
enquadrando suas memórias (POLLACK, 1992).
A história oral, ao trazer o testemunho como fonte, evidencia aspectos da experiência dos
migrantes que, de outro modo, poderiam ser negligenciados, complexificando esses relatos e
revelando como foram construindo suas trajetórias. As informações aqui apresentadas questionam
as explicações que reduzem os deslocamentos a seus condicionantes econômicos e
macroestruturais, ajudando, através de seus relatos, a reconstruir e evidenciar a importância das
redes que se constituem ao longo do processo migratório. Esses migrantes partiram em busca da
cidadania italiana e, embora melhorar de vida estivesse entre seus objetivos, está muito presente
nos relatos o desejo de viver outras experiências, mudar de vida, como relatam Antônio e Palmira,
ao buscar a cidadania para os filhos (FAVERI; AREND, 2014).

Nos anos de 1980 e 1990, através de convênios com algumas regiões da Itália,6 os
netos e bisnetos dos imigrantes do século XIX partiram para Itália a fim de reencontrar seus
parentes, da mesma forma que italianos vieram conhecer um pedacinho da Itália no
Brasil. A partir desse intercâmbio, as cidades do sul do Estado de Santa Catarina, –
Urussanga, Araranguá, Nova Veneza, Cocal do Sul, Rio Jordão e Criciúma –, passaram por
um processo de reconstrução das tradições italianas, revalorizando os brasões de família, a
língua e as comidas típicas, que se tornam elementos que atraem os italianos para virem
conhecer no Brasil uma Itália que não existe mais – a Itália narrada pelos descendentes que
vivem no Brasil.
A busca da dupla cidadania é acompanhada de processos de reinvenção das
italianidades, através de festas de família, – festas italianas que celebram a gastronomia e
a cultura do vinho e procuram reconstruir os processos de identificação com a Itália –,
como
6
Segundo Savoldi (1998), o sul do Estado vem investindo em festas típicas italianas para criar a sua marca
como região e atrair turistas italianos. A cidade de Urussanga é considerada a capital italiana de Santa Catarina.
como veremos na narrativa de Maria de Fátima, ao nos relatar o quão se sente italiana.
Assim, enquanto a dupla cidadania aponta a busca de um caminho para a Europa para
os jovens migrantes, ela é ao mesmo tempo um processo de reconstrução e reencontro
com a Itália, imaginada e narrada pelos ancestrais. As festas têm um importante lugar nesses
processos de construção de italianidades (SAVOLDI, 1998; ZANINI 2006; ASSIS, 2011;
ASSIS; TOMASI, 2014).
Tomasi (2012) analisa eventos festivos, como a Festa do Vinho, que desde 1984 ocorrem a
cada dois anos, quando a cidade recebe turistas de diversas localidades, mostrando aos seus
visitantes a gastronomia e, principalmente, os diversos vinhos produzidos na região. Da mesma
forma, a festa do Ritorno alle Origini, que ocorre também a cada dois anos, desde 1991, busca
reviver memórias de imigração e a ligação com a Itália.
Maria Catarina Zanini (2006) observa que esse fenômeno de reconstrução das italianidades
está presente em muitas cidades de imigração italiana, em especial no sul do Brasil. Segundo a
autora, esse fenômeno está presente em diversos grupos sociais que expressam a italianidade,
através de festas e jogos de bocha, marcando as diferenças de classe entre os descendentes, uma
vez que os que não pertencem aos grupos sociais economicamente mais estabelecidos
não frequentam as associações italianas.
Esses trabalhadores ítalo-brasileiros, pelo fato de possuírem o passaporte italiano,
podem trabalhar sem problemas na Itália e na Europa. Em um contexto de revalorização da
identidade italiana, nesse encontro de culturas, os emigrantes surpreendem-se quando chegam
à Itália e são reconhecidos como brasileiros/estrangeiros. Este é um primeiro choque, pois
encontram-se com aqueles que julgam ser seus patrícios, mas são distinguidos do grupo, não
sendo reconhecidos como italianos, e sim como extracomunitários. Por isso, os imigrantes
sentem-se objeto de “certo preconceito” como relatado por Palmira.
Uma outra característica desse processo é que pode-se identificar uma seletividade
migratória que tem estimulado a migração de mulheres descendentes. Em Criciúma, na década de
1990, havia anúncios em jornais locais solicitando mulheres descendentes para trabalhar como
enfermeiras (ASSIS, 2011). No final da década de 1990, Bógus e Bassanezi (1998) indicavam o
crescimento da migração feminina na Itália e destacavam as imagens divulgadas na imprensa que
associavam o trânsito de mulheres com a prostituição e a presença de travestis na Itália. As autoras
questionavam essas representações, destacando que nem só de travestis e prostituição se mantém
esse fluxo migratório. Analisando esse movimento, colocam como uma hipótese que a migração
estaria relacionada a uma contracorrente migratória de oriundi, na qual se inserem os ítalo-
brasileiros aqui analisados. É nesse cenário que trajetórias como as de Maria de Fátima e de outras
mulheres descendentes reconstroem sentidos de italianidade, no tempo presente, revelando como
gênero, etnicidade e nacionalidade se cruzam.
Maria de Fátima,7 é branca, descendente de imigrantes italianos que chegaram ao país
no século XIX, pertencente à camada média em sua cidade, Urussanga. A sua trajetória se
integra às primeiras levas de imigrantes para os Estados Unidos (partiu ainda na década de
1970). Um aspecto que revela a invisibilidade das trajetórias de mulheres migrantes é que
essa sua experiência nos Estados Unidos, ocorreu juntamente com outros imigrantes
considerados pioneiros na região, mas como ela foi acompanhando o marido, sua trajetória
não apareceu. Maria de Fatima aprendeu inglês, conseguiu um emprego regular, e logo
conseguiu o green card, mas o casamento não ia bem. Nos Estados Unidos, ao se tornar mais
autônoma financeiramente, conseguir seu trabalho e a cidadania, foi sentindo e percebendo
os limites que o relacionamento colocava-lhe e chegou a ficar doente, quando resolveu se
separar e retornar ao Brasil.
O retorno ao Brasil, no início da década de 1980, foi para se separar do marido e
seguir um caminho próprio de autonomia e independência. Seu relato evidencia como, –
no processo de migrar, retornar e reemigrar –, essa mulher, proveniente de uma região
rural e descendente de italianos, foi reconfigurando suas relações familiares e de gênero, em
busca de autonomia.
Os deslocamentos, os trânsitos vivenciados contribuíram para que se reposicionasse,
pois, ao vivenciar outros modos de vida e de relações de gênero nos Estados Unidos, sua
primeira experiência migratória na década de 1970 a expôs a um padrão de relações afetivas
incompatíveis com as do marido, o que a levou a se separar em busca de relações mais
igualitárias ou que fosse mais reconhecida, como ela mesma dizia.
Eu vim pro Brasil pra separar. Porque, naquela época, – a época do machismo –, os
homens nem tinham culpa porque... Só que as mulheres sofriam muito. Então, eu peguei
forças pra separar quando eu vim pra cá. Mesmo assim, Glaucia, eu fiquei me preparando
psicologicamente pra ter todo mundo contra mim. Sociedade, parentes, amigos e até as filhas.
Só que eu não queria viver mais aquela vida. Me... Gritei independência ou morte (risos). Me
libertei, mas para minha grande surpresa, os meus pais ficaram do meu lado. (Maria de
Fátima).

Ao mesmo tempo em que relata como foi construindo seu projeto de autonomização,
Maria de Fátima revela como foi se aproximando dos processos de identificação com a
italianidade. São processos que ocorrem ao longo das experiências migratórias.
Ao retornar ao Brasil, já separada e independente financeiramente, torna-se porta-voz
dos processos de reinvenção da italianidade, o que lhe confere um lugar de menor
desconfiança em sua cidade natal. Uma mulher separada, com filhos, jovem e independente,
poderia gerar suspeita entre outras mulheres. Assim, buscando encontrar um novo lugar na sua
cidade, começou a se envolver

7
Maria de Fátima. Entrevista concedida a Gláucia de Oliveira Assis, em Urussanga, dez. 2011. Acervo da
Pesquisa os Pequenos Pontos de partida. Labgef. Acesso sob consulta.
cidade, começou a se envolver com os círculos de italianidade e nos processos de
revalorização dos pertencimentos étnicos na região. Gênero e etnicidade se cruzam para dar
outros sentidos às italianidades:

Então, faço questão que elas [minhas filhas] acompanhem o estilo da casa. E de lá, ainda
estamos lá, são 42 anos desde que a gente mudou pra lá (Estados Unidos); minha filha mora
lá. A gente nunca perdeu contato; já fez, inclusive, cidadania americana. Então eu tenho
cidadania brasileira, porque eu nasci aqui; italiana, pelo sangue, e americana, por direito. Hoje
eu posso viajar”. (Maria de Fátima).

Maria de Fátima reconfigura suas identidades, dizendo-se cidadã brasileira, italiana e norte-
americana, mas ressalta seu sangue italiano e a possibilidade de circular pelo mundo. Ao retornar
dos Estados Unidos, fez a dupla cidadania para dar às filhas a possibilidade de circular pelo mundo
e manter a italianidade, conforme relata:

Nós preservamos a italianidade. Agora falamos em termos de Urussanga, através da


gastronomia e da música. Então eu faço meu pouquinho e tenho, também, há três anos, eu
comecei meu programa italiano na rádio Marconi: La voce dela Benedetta. La voce della
Benedetta é a Voz da Benedeta. E quem é a Benedetta? É o apelido de Urussanga,
porquepessoal sempre dizia “ah! Vamos pra Benedetta, vamos pra Benedetta”. Aí ficou.
Então esse programa tem como único objetivo preservar as tradições italianas e honrar os
nossos antepassados. Porque eu tenho certeza que eles aprovam tudo o que a gente faz. O
pouquinho que eu posso, eu faço pra a preservação. (Grifo da autora).

Maria de Fátima, diferentemente de Antônio e Gabriela, e mesmo de Palmira, revive, em


seu cotidiano, sentidos de italianidade, como participar de festas, organizar um coral de música
italiana, manter um programa numa rádio local em dialeto. A rádio Marconi transmite todos os
domingos e tem, inclusive, ouvintes na Itália, reforçando a preservação da italianidade reconstruída
nesses contextos. Já para os jovens, o contato com a italianidade está muito mais relacionado ao
pedido de dupla cidadania. Um passaporte para a Europa é o sentido mais pragmático nesse
processo de reconstrução da italianidade.
Em seu relato Maria de Fátima, não menciona ser tratada com preconceito. Por outro lado,
as mulheres mais jovens que migraram tiveram que lidar com as representações sobre a mulher
brasileira. É interessante observar que como descendentes de imigrantes italianos, são em sua
grande maioria mulheres consideradas brancas, provenientes de camadas médias ou médias baixas
no Brasil, e que se descobrem na Itália, mais brasileiras, pois os atributos de sensualidade, simpatia
e brasilidade são também marcadores que lhes são atribuídos. Elas se inserem no mercado de
trabalho segmentado por gênero, trabalham na faxina, como babás ou cuidadoras de idosos,
empregadas domésticas, em restaurantes e no comercio; muitas fazem apresentação de produtos
em lojas. Em todos esses trabalhos é ressaltada a simpatia, o cuidado e o carinho, no caso dos
serviços de cuidados. Conforme, observado por Zanini, Assis e Beneduzi (2015), nesses espaços e
em outras situações cotidianas, o corpo é alvo de constantes policiamentos, uma vez que há muitas
situações, especialmente para as descendentes, em que a “mulher brasileira” aparece
como categoria dominante nas interações, conforme a narrativa de Carla:8

Porque, de repente, a gente que é brasileiro talvez, é... Te dou um exemplo, talvez seja mais
fácil: quando tu vais em locais brasileiros, tu vês como os brasileiros se vestem e como os
italianos se vestem. No período do inverno... de neve... as brasileiras geralmente vão com a
barriga de fora, com uma sandália... com isso que aqui... Jamais se vê esse tipo de coisa e é
normal que chame a atenção das pessoas... feito a posta, ou não... Se uma faz justamente pra
chamar a atenção ou não, eu não sei... Mas é a mesma coisa, é... Tu tem que tentar te adequar,
mas isso... Adequar... De alguma maneira... Eu não falo nas pessoas muçulmanas, que de
repente usam vestidos longos, tudo, porque faz parte de uma cultura dele... Vestir dessa
maneira, e eu acho que tirar esse tipo de cultura é... É uma coisa inútil... Mas, eu falo mais de
nós, de aprender... a tentar se vestir um pouco mais decentemente porquê... A tendência de
muitos brasileiros. E eu tenho visto... agora trabalhando em shoppings daqui pra... Daqui,
é... Em Bassano, em Pádova, em Veneza... de pessoas que, que... se vestem... Com...
Microgona, microssaia, não míni... Porque é uma coisa... Que tu vê de cara, é... Eu vejo de
cara quem são os brasileiros... Na maneira como se vestem, mas não é uma discriminação
minha... (Carla, 2012).

Carla possui cidadania italiana, tem um relacionamento afetivo com um italiano e procura
se afastar do estereótipo das mulheres brasileiras, como outras descendentes entrevistadas, se
veste “mais a europeia”, – o que significa roupas mais discretas e menos coladas ao corpo –,
para driblar o preconceito e a discriminação. As narrativas das emigrantes jovens, buscavam
de certa forma, se distinguir das imagens associadas ao mercado do sexo e à prostituição, ou
da ideia de que as brasileiras eram mulheres fáceis e sempre disponíveis. A palavra, às vezes,
nem era pronunciada nas entrevistas. Quando perguntávamos sobre a imagem da mulher
brasileira, muitas diziam: “aquela, sabe qual é?” No entanto, a despeito dessas representações,
encontramos algumas mulheres envolvidas com italianos que acionavam outros atributos de
gênero relacionados às brasileiras. Nesse caso, os atributos da sexualidade e da simpatia
étnica eram ressignificados e associados à imagem de mulher carinhosa e boa mãe e esposa, o
que é acionado pelas brasileiras que se casaram com italianos para fugir dessas imagens e se
inserir nas famílias italianas.

Ao retornarem à terra de seus nonos e nonas, os ítalo-brasileiros descobriram uma Itália


bem diferente da narrada por seus nonos e nonas. A cidadania de direito não assegura a cidadania,
de fato, e sentem a discriminação no seu cotidiano, no mercado de trabalho, ao utilizarem o dialeto,
8
Carla. Entrevista realizada em fevereiro de 2012, na região do Veneto, Itália, por Maria Catarina Zanini e
Gláucia de Oliveira de Assis. Pesquisa "Os pequenos pontos de Partidade". Acesso por consulta.
ao perceberem que carregam no corpo as marcas da brasilidade, como no caso das imagens da
mulher brasileira na Itália. Assim, se a cidadania italiana os aproximou das histórias de emigração
dos nonos e nonas, a experiência migratória os conduz a perceber vários sentidos da italianidade
que são negociados nesse processo.
A geração de Maria de Fátima inicia o processo migratório, primeiro indo aos Estados
Unidos, na década de 1970, e, depois para a Itália, nos anos 1990, para retornar ao Brasil. Nesse
processo, “conquista a cidadania para suas filhas” para que possam circular pelo mundo, ao mesmo
tempo que reforça seus laços com a italianidade. Do ponto de vista das relações de gênero, Maria
de Fátima, ao conviver com padrões menos hierárquicos de relações e maior autonomia financeira,
a conduziu ao processo de separação e à busca de uma vida autônoma, quer nos Estados Unidos,
quer circulando pela Europa.
No caso dos imigrantes, do início dos anos 2000, a relação com a cidadania italiana articula
o sentimento de pertencimento à italianidade de uma forma mais instrumental do que nas gerações
anteriores. Os jovens não reconhecem na Itália do presente a Itália imaginada e narrada por seus
nonos e nonas. A Itália vivida é representada como a terra de oportunidades, a qual possibilita a
inserção no mercado de trabalho europeu. Da Itália para a Alemanha, ou para Inglaterra, pois com
o passaporte da comunidade europeia pode-se circular no mundo globalizado.
Quanto às relações de gênero, diferente da trajetória de Maria de Fatima, que acompanhou
o marido em sua primeira migração, as mulheres e homens jovens tendem a ter projetos mais
coletivos – ao migrar, planejam juntos o processo e, também, o investimento, o que pode significar
uma modificação nessas relações no retorno –, traduzindo-se em parceria e, portanto, em relações
menos hierárquicas ao longo do processo migratório. Esse processo não ocorre sem tensões e
conflitos, mas aponta para redefinições nas relações de gênero.
No caso das mulheres solteiras, elas têm que enfrentar situações de preconceito e
discriminação, que constroem imagens que sexualizam e exotizam as brasileiras, relacionando-as
ao mercado do sexo e ao dos casamentos por interesse. Ao viver na Itália ou em outros países na
Europa, essas mulheres negociam suas posições de gênero, seus afetos para garantir seu lugar nas
famílias italianas e driblar o preconceito. Casar com um italiano implica adotar outra forma de
andar, de vestir e se manifestar, apagando certo sinais que possam gerar preconceito e ressaltando
os aspetos da boa mãe e boa esposa. Assim, embora estas mulheres se considerem mais autônomas
e livres do que se sentiam no Brasil, o fazem reafirmando lugares que poderiam ser considerados
mais convencionais em termos de identidades de gênero. Essa é uma questão complexa, pois ao
mesmo tempo que reafirmam sua liberdade de escolha e de viver no país um encontro afetivo feliz
e que lhe garante segurança ao mesmo tempo vivem como boas esposas e mães ou evitando se
“parecer brasileiras”, numa vigilância do corpo e das atitudes que corrobora com algumas reflexões
realizadas por Piscitelli (2011) sobre as mulheres inseridas nos mercados do sexo que se casam com
estrangeiros.
Os sentidos da italianidade que levaram à busca da cidadania e à revalorização da identidade
italiana no Brasil, no contexto da emigração, evidenciam os complexos processos de
identificações, não só com a Itália e o Brasil, mas também com suas identidades de gênero, raça e
classe como evidenciam as narrativas aqui apresentadas.

ANTHIAS, Floya. Metaphors of home: Gendering new migrations in southern Europe”. In:
AHTHIAS, Floya; LAZARIDIS, Gabriela. Gender and Migration in Southern Europe. Oxford. New
York: Berg, p. 17-47, 2000.

ASSIS, Gláucia de O. De Criciúma para o mundo: rearranjos familiares dos novos migrantes
brasileiros. Florianópolis: Mulheres, 2011.

_____ e TOMASI, Julia M. O retorno alla origine: a migração de descendentes rumo à Itália no início
do seculo XXI. In: BENEDUZI, Luis Fernando; ASSIS, Gláucia de O. Narrativas de Gênero: relatos
de História Oral, experiências de ítalo-brasileiros na Itália contemporânea. Vitória: EDUFES, p. 159-
177, 2014.

BENEDUZI, Luis Fernando; ASSIS, Gláucia de O. Narrativas de Gênero: relatos de História


Oral, experiências de ítalo-brasileiros na Itália contemporânea. Vitória: EDUFES, 2014.

FAVERI, Marlene; AREND, Silvia Maria Favero. Cidadania italiana, passaporte para Europa:
memórias de três mulheres (Santa Catarina-Brasil). In: BENEDUZI, Luis Fernando; ASSIS; Gláucia
de O. Narrativas de Gênero: relatos de História Oral: experiências de ítalo-brasileiros na Itália
contemporânea. Vitória: EDUFES, p. 119-140, 2014.

FLEISCHER, Soraya R. Passando a América a limpo: o trabalho de housecleaners brasileiras em


Boston. Massachussets. São Paulo: Annablume, 2002.

HOBSBAWN, Eric; RANGER, Terence. A invenção das tradições. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1997.

MOROKVASIC, Mirjana. Birds of Passage are also Women. International Migration Review, 18 (4),
p. 886-907, 1984.

PAGNOTTA, Chiara. La migracion ecuatoriana a Espana e Italia: historias, memorias e identidades,


1995-2007. Quito: Universidade Andina Simon Bolivar, 2014a

_____. O uso de fontes orais nos estudos de migrações contemporâneas. Observações metodológicas
nos bastidores de uma pesquisa sobre o caso equatoriano. In: BENEDUZI, Luis Fernando; ASSIS,
Gláucia de O. Narrativas de Gênero: relatos de História Oral, experiências de ítalo-brasileiros na Itália
contemporânea. Vitória: EDUFES, 2014.

PISCITELLI, Adriana. “Papéis”, interesse e afetos, relacionamentos amorosos sexuais e migração.


AREND, Silvia F.; RIAL, Carmen S.; PEDRO, Joana M. (Org.). Diásporas, mobilidades e
migrações. Florianópolis: Mulheres, 2011, p. 103-129.

SASSEN, Saskia. Contrageografías da globalización: género e cidadania en los circuitos


transfronteirizos. Madrid: Traficantes de sueños, mapas, 2003.

SAVOLDI, Adiles. O caminho inverso: a trajetória dos descendentes de imigrantes italianos em


busca da dupla cidadania. Dissertação (Mestrado) – Programa de Pós-Graduação em Antropologia
Social – UFSC, Florianópolis/SC, 1998.

TOMASI, Julia M. Ritornando alle origini: a identidade italiana em Urussanga (SC) no final do
século XX e início do XXI. In: Fronteiras: Revista Catarinense de História [on-line], Florianópolis, n.
20, p. 33-52, 2012.

THOMSON, Alistair. Histórias (co)movedoras: História oral e estudos de migração. Revista


Brasileira de História, 22 (44), 341-364, 2002. Disponível em: <https://dx.doi.org/10.1590/S0102-
01882002000200005>.

ZANINI, Maria Catarina C.; ASSIS, Gláucia de Oliveira; BENEDUZI, Luis Fernando. Ítalo-
brasileiros na Itália no século XXI: "retorno" à terra dos antepassados, impasses e expectativas. In:
REMHU, Rev. Interdiscip. Mobil. Hum. Brasília, v. 21, n. 41, p. 139-162. Dec. 2013. Available from
<http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S1980-
85852013000200008&lng=en&nrm=iso>. access on: 4 dez/2015. Disponível em:
<http://dx.doi.org/10.1590/S1980-85852013000200008>.

ZANINI, Maria Catarina C.; ASSIS, Gláucia de Oliveira; BENEDUZI, Luís Fernando (2015).
Cidadãos de direito, estrangeiros de fato: narrativas de ítalo-brasileiros/as na Itália. História Oral, v.
18, n. 1, p. 117-145, jan./jun. 2015. Available from: <http://revista.historiaoral.org.br/acesso> em: 4
dez. 2015.

ZANINI, Maria Catarina. Italianidade no Brasil Meridional: a construção da identidade étnica na


região de Santa Maria/RS. Santa Maria. Ed. da UFSM, 2006.

ANTÔNIO. Entrevista concedida a ASSIS, Gláucia de Oliveira. Santa Catarina: Urussanga. 18 fev.
2012.

CARLA. Entrevista concedida a ZANINI, Maria Catarina; ASSIS, Gláucia de Oliveira. Itália: Veneto.
fev. 2012.

FÁTIMA. Entrevista concedida a ASSIS, Gláucia de Oliveira. Santa Catarina: Urussanga. dez. 2011.

GABRIELA. Entrevista concedida a ASSIS, Gláucia de Oliveira. Santa Catarina: Urussanga. 18 fev.
2012.

PALMIRA. Entrevista concedida a FÁVERI, Marlene de. 8 abr. 2012.


Monica Setuyo Okamoto

Este estudo de História Oral tem como objetivo repensar a representatividade dos nikkeis
dentro da sociedade brasileira. Repensar porque até hoje muitos e tem ressaltado acerca da
visibilidade positiva dos imigrantes japoneses e seus descendentes por terem alcançado sucesso
econômico por meio do esforço, da disciplina, mas, principalmente, da educação. Índices altos de
aprovação de nipo-brasileiros nos cursos tradicionais mais concorridos, sobretudo Medicina,
Engenharia e Direito das principais universidades públicas brasileiras, desde a década de 1960,
comprovam a fama dos nikkeis e o bordão: “mate um japonês hoje e garanta a sua vaga na
universidade amanhã”.
Entretanto, há outro lado da história imigrantista, e, nesse sentido, lançamos a provocação:
o que o embaixador Edmundo Sussumu Fujita, a cineasta Tizuka Yamasaki e a apresentadora e
modelo Sabrina Sato têm em comum, além da ascendência japonesa? Eles foram pioneiros em
campos profissionais, onde a representatividade dos asiáticos permaneceu negativa por muito
tempo, e mesmo atualmente ela é considerada discreta. Assim, este projeto de História Oral,
desenvolvido com os alunos de graduação em Letras Japonês da Universidade Federal do Paraná,
tem como interesse investigar o porquê dessa representação com números tão baixos e esclarecer
se a causa dessa situação está ligada à falta de espaço dado pela sociedade brasileira a esse grupo
étnico, nesses campos de atuação, e/ou se a causa está ligada ao desestímulo que os jovens nikkeis
sentem em iniciar uma carreira nessas áreas, por acharem que o campo é restrito a eles. Qual o
pensamento e a opinião desses nipo-brasileiros acerca dessa questão? Como eles analisam a
inserção social deles no mundo de domínio predominantemente branco? Eles sentem que ainda são
estigmatizados por estereótipos?
A “rede” selecionada é composta por: políticos, jornalistas, diplomatas, literatos e artistas.
Historicamente, os nikkeis, por várias razões, mas principalmente econômica, costumavam escolher
carreiras tradicionais. Nas décadas de 1960 e 1970, segundo o consulado japonês, havia somente
no Estado de São Paulo, 560 engenheiros, 1.350 médicos, cinco juízes e 450 advogadosnikkeis
(LESSER, 2008, p. 45). Na atualidade, a situação não é muito diferente, ao observarmos a pesquisa
realizada pelo G1,em 2015, acerca do perfil racial dos candidatos dos dez cursos mais procurados
no vestibular na Universidade de São Paulo:

* UFPR, Doutora em Letras.


Tabela 1 ─ Fuvest 2015: Perfil racial dos calouros dos dez cursos mais concorridos
Cursos Brancos Pretos Pardos Amarelos Indígenas
Medicina (SP) 234 (78%) 4(1,3%) 30(10%) 32(10,7%) 0
Medicina (RP) 77(77%) 0 20(20%) 3(3%) 0
Psicologia 55(78,6%) 0 7(10%) 8(11,4%) 0
Engenharia civil 47(78,3%) 2(3,3%) 6(10%) 5(8,3%) 0
Artes cênicas 11(73,3%) 0 4(26,7%) 0 0
Audiovisual 25(71,4%) 0 6(17,1%) 4(11,4%) 0
Jornalismo 50(83,3%) 4(6,7%) 5(8,3%) 1(1,7%) 0
Publ.e propag. 38(77,6%) 0 8(16,3%) 3(6,1%) 0
Rel. internac. 48(80%) 2(3,3%) 8(13,3%) 2(3,3%) 0
Arquitetura 38(84,4%) 0 6(13,3%) 1(2,2%) 0
Total na USP 8.282(74,7%) 391(3,5%) 1.642(14,8%) 733(6,6%) 0%
Fonte: CAPUCHINHO, Cristiane; MORENO, Ana Carolina; GONÇALVES, Gabriela. Não há calouros pretos em 6
dos 10 cursos mais concorridos da Fuvest. Disponível em: <https://goo.gl/1rxQ4r>.Acessadoem 05/07/2017. (Grifo
nosso).
As áreas tradicionais como Medicina e Engenharia continuam com maior procura pelo
grupo étnico asiático, em contraponto ao curso de Artes Cênicas e Jornalismo. Ainda, segundo a
reportagem, os cursos de Engenharia da Poli e de Direito da Faculdade São Francisco, que estão
entre os mais concorridos na lista de candidatos por vaga, e considerados de prestígio, também
figuram entre os mais procurados pelos nikkeis. Entre os 872 calouros do curso de Engenharia
da Poli, 132 (12,1%) se autodeclararam amarelos.1 Dessa forma, notamos que muitos nikkeis
ainda optam por carreiras em áreas tradicionais, e que, por outro lado, certos segmentos
profissionais continuam com pouca representatividade do grupo étnico japonês.
Impulsionada pela curiosidade desse fato, iniciei a pesquisa em torno de personalidades da
elite nikkei.O intuito é não só reconstruir os eventos e as memórias desses depoentes, mas o
pensamento e a trajetória profissional desse grupo de intelectuais, empreendedores e artistas que
foram pioneiros em áreas de predominância “branca”. Gostaria de mostrar como essa rede (formada
por políticos, diplomatas, artistas, jornalistas, empreendedores, cineastas e literatos) venceu
barreiras sociais, econômicas e, sobretudo, raciais, para ocupar um papel de relevância dentro da
sociedade brasileira. Esses nikkeis bem-sucedidos, os quais não seguiram caminhos considerados
“seguros” e “tradicionais”, certamente remodelaram estereótipos e paradigmas acerca dos
japoneses e seus descendentes, abriram o caminho para as gerações posteriores criando precedentes
e, por fim, contribuíram para a integração, a representatividade e a inclusão desse grupo étnico no
cenário social brasileiro.

1
De acordo com o IBGE 2010, a presença de amarelos no Estado de São Paulo é de 1,3%.
E seguindo essa linha de pesquisa, começamos com a história do embaixador Edmundo
Sussumu Fujita, o primeiro nipo-brasileiro a entrar no Itamaraty. Infelizmente, o embaixador
faleceu em abril de 2016, interrompendo, assim, as entrevistas. Ele concedeu sua última entrevista,
um mês antes de seu falecimento. Diante dessa situação, optou-se em dar prosseguimento ao projeto
colhendo relatos da esposa, a embaixatriz Maria Ligaya Fujita, dos amigos de infância e dos colegas
do Ministério das Relações Exteriores.
Entretanto, antes de relatar sobre a vida de Fujita e comentar acerca do projeto, creio ser
importante narrar um pouco sobre a história exclusivista do Itamaraty que, ao longo de sua
existência (criada em 1736), teve em seu corpo diplomático a presença quase que exclusiva da elite
branca carioca. Essa contextualização se faz necessária para se entender a dimensão da façanha
desse nipo-brasileiro que quebrou um velho paradigma no Itamaraty: o preconceito racial.

Foi com esse título que Carlos Conde publicou na revista Política Externa um pequeno
artigo acerca da visão elitista da chancelaria brasileira. Conde comenta a entrada do primeiro
diplomata negro no Brasil em 1978, como um “fenômeno auspicioso na sociedade brasileira e na
do Itamaraty” (CONDE, 1978, p. 15) Para Conde, a justificativa dada pelo Instituto, de problemas
socioeconômicos e não, étnicos, para a ausência de negros na carreira diplomática “não esgota o
assunto”, pois o preconceito racial era uma realidade no velho Itamaraty que excluía não só
candidatos negros, mas também amarelos.
Esse caráter elitista, na verdade, possui uma longa história. Por muito tempo, a nação
brasileira sofreu com a imagem de povo degenerado pela mestiçagem e, por essa razão, a elite
brasileira do final do século XIX e começo do século XX tentou mudar a imagem do Brasil no
Velho Continente, revitalizando a cidade do Rio de Janeiro, então, capital brasileira. Entretanto,
essa modernização de fachada não se limitou à reforma da cidade. A própria elite carioca
representada, sobretudo pelos diplomatas, tentou também projetar uma imagem positiva do povo
brasileiro negando qualquer indício de degeneração racial. (NEEDEL, 1993).
O corpo diplomático brasileiro era formado por homens fisicamente de porte, de grande
estatura e vigorosos. Sem dúvida, os representantes do Itamaraty em nada lembravam um mestiço
degenerado, ao contrário, eles apresentavam um ar refinado, criados e educados em ambiente
sofisticado, mas que, definitivamente, não representavam boa parte da população brasileira.
A aprovação de Fujita no Rio Branco, na década de 1970, certamente foi um marco para a
representação dos nipo-brasileiros em uma carreira restrita até então à elite branca brasileira. Além
do mérito acadêmico de Fujita, acreditamos também que o governo brasileiro tentou dar o primeiro
passo para uma ação afirmativa com o intuito de promover oportunidade a outras etnias e acabar
com a representatividade negativa de negros e amarelos no Itamaraty.
Amigos de infância de Fujita e o papel da educação
Ao levantar a história de vida de Fujita foi possível notar que a sua infância e adolescência,
na década de 1960 na cidade de São Paulo, teve características peculiares a um jovem Nikkei; a
começar pela formação educacional no renomado Colégio Liceu Pasteur, onde Edmundo teve a
oportunidade de participar do coral ministrado pelo maestro Walter Lourenção, de aprender a tocar
piano e flauta e de estudar francês. Ao contrário da realidade de muitos nisseis (segunda geração),
sobretudo daqueles que viviam em zonas rurais no interior de São Paulo; o jovem Fujita parece não
ter tido problemas com o aprendizado do português e ajustamento com os colegas e amigos da
escola brasileira, justamente porque não teve que conviver com dois ambientes distintos: o da escola
japonesa e o da escola brasileira (fato comum que ocorria nas colônias japonesas das zonas rurais).
De acordo com o relato de seu amigo de infância, Augusto Mazzola, Fujita era o único descendente
da classe, com exceção de uma menina mestiça. Foi nesse ambiente, longe da colônia e com total
entrosamento entre os colegas não descendentes, que Fujita teve a sua formação educacional. Seus
melhores amigos, Augusto (descendente de italianos) e Carlos (descendente de alemães) formavam
o que Fujita costumava chamar de “eixo”. Ainda de acordo com a entrevista de Augusto,
eles costumavam se reunir todos os dias na casa de Edmundo para estudar, jogar pingue-pongue
e ouvir os discos dos Beatles. A mãe de Edmundo, sempre solícita, preparava um lanche aos
amigos do filho, conta Augusto.2
Sobre essa integração e socialização dos nisseis, Ruth Cardoso (1959) comenta que:

Como todo imigrante, o japonês pretende uma rápida ascensão, e espera dos filhos sucesso
econômico ou adoção de uma carreira que lhe garanta “status” mais elevado. Esta
expectativa exige um relativo entrosamento dos jovens à sociedade brasileira, levando o issei
a aprovar e admitir um círculo de convivência, fora da família, em que age como brasileiro.
(p. 321).

No caso de Edmundo, seus pais, por viverem na cidade, ao que parece aceitavam essa
integração do filho com os amigos não nikkeis com mais naturalidade, ao contrário do que se
costumava ver em alguns núcleos nipônicos da zona rural, onde os filhos se mantinham mais
ligados à família, à escola japonesa e à comunidade nipônica.
Apesar da educação relativamente “abrasileirada” de Edmundo, seus pais mantinham
algumas diretrizes muito comuns nos imigrantes da época. Eles esperavam que Edmundo, como
filho mais velho, continuasse os negócios da família e dedicasse os estudos em uma área tradicional.
Era muito comum que nisseis, do pós-guerra, até meados da década de 1970, recebessem uma dupla
orientação da família: alcançar ascensão social e econômica dentro da sociedade brasileira por meio
dos estudos e, concomitantemente, manter os valores e o pensamento tradicional japonês. Essa

2
Entrevista de Augusto Mazzola, concedida no dia 24 de abril de 2017.
identidade mista ou “sincrética”3 (CUCHE, 2002, p. 193), na qual o nissei se sente
totalmente brasileiro, mas conserva a educação tradicional dos ascendentes, é muito comum
ainda nos dias de hoje entre a terceira e até quarta gerações. E segundo o próprio
embaixador Edmundo, essa identidade mista foi mais um ganho do que um obstáculo em sua
carreira, pois permitiu que ele transitasse por dois mundos, quase que opostos, com
naturalidade.
Quanto a essa questão da educação dos filhos dos imigrantes japoneses, nesse
período (década de 1960 e 1970), é necessário um adendo acerca do assunto com o
propósito de se compreender o porquê Edmundo, de certa forma, foge dos padrões da época.
Em geral, os isseis (imigrantes japoneses ou primeira geração) tinham a intenção de
tornar seus filhos herdeiros da tradição cultural japonesa. Para muitas famílias que viviam
em regiões agrícolas, o isolamento em núcleos étnicos exclusivos, facilitou a manutenção
dessa tradição. (CARDOSO, 1973, p. 319).
Nesses núcleos era comum a existência de escolas japonesas, onde sentimentos
de patriotismo e civismo em relação ao Japão eram constantemente lembrados e reforçados no
ensino da língua japonesa e nas atividades. Contudo, mesmo dentro desse ambiente
exclusivista, os nisseis dos núcleos coloniais eram pressionados pelos pais a ultrapassarem
esse círculo fechado das escolas japonesas e do seio familiar e se integrarem à sociedade
brasileira mudando-se para a capital a fim de prosseguirem com os estudos. Assim, o
nissei, dessa época, tinha como missão ascender socialmente por meio da escolha de
uma carreira, considerada pelos pais e pela comunidade, como sendo “segura” (Direito,
Engenharia ou Medicina), integrar-se à sociedade brasileira; e, ao mesmo tempo,
tornar membro da comunidade japonesa.
Dessa forma, percebemos que a formação de Fujita seguiu meandros pouco comuns
aos jovens nikkeis de seu tempo, especialmente, no que diz respeito a sua formação
educacional. Seu gosto musical pelos clássicos e eruditos, em vez da música enka (música
japonesa tradicional); sua proficiência em francês e inglês maior que em japonês; seu
interesse por filosofia e artes, em vez de matérias das áreas de exatas; revelam que Fujita teve
uma educação de elite branca brasileira.

No ano de 1975, Edmundo Sussumu Fujita ganhou destaque em uma matéria da Folha
de São Paulo intitulada: “Edmundo Sussumu Fujita: o primeiro nipo-brasileiro a entrar no
Itamaraty”. O jovem Edmundo, então com 25 anos, parece ter ficado surpreso com o artigo
do jornal dando ênfase a sua descendência nipônica, segundo o relato de sua esposa, Maria
Ligaya. E, ao que parece, até aquele momento nunca havia pensado no peso de sua etnicidade
em um campo profissional. Por ter sido pioneiro e permanecido como único asiático no
quase vinte anos, o
3
Segundo Deny Cuche, identidade sincrética é a “[...] adição de duas identidades para uma só pessoa.”
Itamaraty, por quase vinte anos, o embaixador Fujita certamente abriu precedentes e deixou
um legado para as futuras gerações de diplomatas nipo-brasileiros.
Na verdade, foi deste ponto, em um almoço informal com a esposa de Fujita, a
embaixatriz Maria Ligaya, que o projeto teve início em meados de julho de 2016. Eu conheci
a embaixatriz por meio de uma amiga que se casou com o sobrinho do embaixador. Assim,
ao iniciar o projeto de escrever sobre a trajetória de vida e o pensamento do embaixador
Edmundo Fujita, viajei para Brasília, em julho deste ano, e me hospedei por três dias na casa
da embaixatriz. No escritório do casal, Maria Ligaya me mostrou meia dúzia de pastas, nas
quais havia organizado em ordem cronológica todos os documentos, cartas, artigos de
jornais, bilhetes, convites e fotos do marido ao longo de sua carreira na chancelaria. Na
realidade, esse arquivo pessoal havia sido selecionado e guardado pelo embaixador, o que nos
dá uma pista de como ele desejava se constituir; direcionando, de certa forma, o sentido quedeu
à própria vida. Entretanto, essa vida linear construída pelo casal por meio das pastas
organizadas atesta aquilo que Pierre Bourdieu (2006) chamou de “ilusão biográfica”, pois
sabemos que a trajetória de qualquer indivíduo, de destaque social ou “comum”, apresenta
variações ao longo da vida. Segundo Bourdieu:
Produzir uma história de vida, tratar a vida como uma história, isto é, como o relato
coerente de uma sequência de acontecimentos com significado e direção, talvez seja
conformar-se com uma ilusão retórica, uma representação comum da existência que toda uma
tradição literária não deixou e não deixa de reforçar (p. 185).

E, de fato, paralela às informações cuidadosamente selecionadas e arquivadas nas


pastas pelo casal, havia um mosaico de informações que a decoração e o ritmo da casa
(preenchida com jantares com amigos e a presença das mascotes da família: quatro cachorros
Shiba) apresentavam: um casal sem filhos que adorava cachorros, apreciava a boa
gastronomia e a visita de amigos.
Além dos três dias em que passei na casa do embaixador em Brasília,
observando o escritório repleto de fotos, livros e objetos de arte e o “jardim japonês”
compondo a parte externa da residência e as telas com pinturas do próprio Edmundo
produzidas em um passado recente, tive a oportunidade de visitar o apartamento do casal em
São Paulo por dois dias, onde também foi possível perceber como a vida de Edmundo Fujita
parecia ter voltado às suas origens nos últimos anos de sua vida. A aproximação com a
família, sobretudo com os sobrinhos, o reestabelecimento de antigas amizades de colégio e a
volta à cidade de São Paulo, após percorrer o mundo, conotam que Fujita repensou os
experimentos de seu passado, num processo de lembranças, esquecimentos e invenções, nos
dois últimos anos de sua vida.
Quanto à questão de sua etnicidade, Fujita, em sua última entrevista declara que
sua ascendência facilitou o trânsito entre o Japão e o Brasil em aspectos culturais e políticos.
Ao que parece, graças à sua educação mais europeia e liberdade familiar, o embaixador
desenvolveu uma identidade étnica com orientação mais progressiva e transnacional que
muitos nisseis de sua época.
Infelizmente, as entrevistas de Edmundo Fujita, de sua esposa, dos amigos de infância e dos
colegas do Itamaraty ainda estão em fase de transcrição; portanto, não serão apresentadas nessa
comunicação.
Assim, até o momento, em face das limitações apresentadas: falecimento do entrevistado
durante o processo de entrevistas, transcrições inacabadas e poucos entrevistados, tornou-se
necessário lançar mão da conclusão, por não dispormos, até o momento, de dados suficientes que
possibilitem uma análise mais aprofundada.

BOURDIER, Pierre A ilusão biográfica. In: FERREIRA, Marieta de Morais; AMADO, Janaina. Usos
e abusos da História Oral. Rio de Janeiro: Ed. da FGV, 1998. p. 183-191.

CAPUCHINHO, Cristiane; MORENO, Ana Carolina; GONÇALVES, Gabriela. Não há calouros


pretos em 6 dos 10 cursos mais concorridos da Fuvest. Disponível em:
<https://goo.gl/1rxQ4r>.Acessadoem 05/07/2017.

CARDOSO, Ruth Corrêa Leite. O papel das associações juvenis na aculturação dos japoneses. In:
SAITO, Hiroshi; MAEYAMA, Takashi. Assimilação e integração dos japoneses no Brasil. São
Paulo: Ed. da USP, 1973. p. 317-345.

CONDE, Carlos. O preconceito no Itamaraty. In: Revista Política Externa, São Paulo: Paz e Terra, 03
de agosto de 1978. p. 15.

CUCHE, Denys. A noção de cultura nas ciências sociais. Bauru: Edusc, 2012.

LESSER, J. A negociação da identidade nacional: imigrantes, minorias e a luta pela etnicidade no


Brasil. Tradução Patrícia de Queiroz Carvalho Zimbres. São Paulo: Ed. da UNESP, 2001.

NEEDELL, Jeffrey D. Belle Époque tropical: sociedade e cultura de elite no Rio de Janeiro na virada
do século. Tradução Celso Nogueira. São Paulo: Companhia das Letras, 1993.
Fabiana Aparecida da Silva

Esse artigo se propõe a discutir sobre filhos de imigrantes que estão em situação de
vulnerabilidade, e têm seus direitos violados pelo simples fato de serem filhos de imigrantes e o
Estado é omisso em protegê-los. Os cenários desse breve estudo serão dois programas sociais de
Educação Musical nas cidades de São Paulo e Amsterdam.1
A pesquisadora trabalha há sete anos no Programa de Educação Musical em São Paulo Guri
Santa Marcelina, onde em quase sua totalidade de público atendido são alunos, filhos de migrantes,
oriundos de diversos estados do Brasil, contando também com alunos que são filhos de imigrantes.
Esse Programa tem como missão a educação musical e a inclusão sociocultural de crianças e
adolescentes da Capital e Grande São Paulo. Simultaneamente, é realizado um trabalho social com
os alunos e suas famílias através do qual se busca criar condições para uma ambiência favorável ao
melhor aproveitamento do aprendizado. Para tanto, é realizado o acompanhamento individualizado
das crianças e adolescentes matriculados, por meio de um monitoramento da frequência e são
realizadas ações socioeducativas com a aplicação da pedagogia de direitos, incidindo no estímulo
à autonomia, ao exercício da cidadania e ao protagonismo infanto-juvenil. Ademais, o trabalho com
as famílias dos alunos busca fortalecê-las e auxiliá-las na sua capacidade e no exercício de sua
função protetiva.
A pesquisadora trabalhou o ano passado (2016) e realizou parte da sua pesquisa de
doutorado esse ano (2017) durante o estágio sanduíche, com os trabalhadores, crianças e
adolescentes, na sua grande maioria filhos de (i)migrantes, que são alunos das escolas públicas nas
regiões periféricas de Amsterdam, participantes do Programa Leerorkest Amsterdam, que atende
crianças e adolescentes das escolas públicas localizadas na periferia de Amsterdam. O objetivo
desse Programa é oferecer música para todos, já que na Holanda o ensino da música é pago e a

* Doutoranda e Bolsista da CAPES pelo Programa Institucional de Bolsa de doutorado Sanduíche no Exterior
(de março a junho de 2017), processo nº 88881.134906/2016-01 no Instituto Superior Miguel Torga –
Portugal, e Mestre em Serviço Social pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (2012).
Graduada em Serviço Social pela Universidade São Francisco (2008). Atualmente é Assistente Social da
Associação de Cultura, Educação e Assistência Social Santa Marcelina, atuando com famílias da região de
Guaianases - São Paulo; e Professora Mestre da Faculdade Tijucussú, no Curso de Graduação de Serviço Social.
1
A pesquisadora estuda imigração em São Paulo, desde a graduação, e pode acompanhar diversas vezes em suas
pesquisas que os filhos de imigrantes, muitas vezes, trabalham para ajudar os pais, ainda no período da infância
que deveria ser para estudar e brincar. Além disso, através dos depoimentos coletados em suas pesquisas, houve
relatos
1 de diversas violações de direitos contra essas crianças e adolescentes.
grande maioria do público atendido não teriam condições de pagar para aprender música. Além
disso, eles disponibilizam uma plataforma on-line para que outros programas possam buscar e
utilizar materiais para ensinar música e uma oficina de conserto de instrumentos, que atendem
outras instituições além do próprio Leerorkest.
Neste trabalho, além da pesquisa bibliográfica, apresenta-se também a pesquisa qualitativa
através da técnica história de vida, porque ela trabalha com as memórias dos sujeitos, interagindo
com o que acontece no encontro do particular com o social, no momento atual. Segundo Lang:
[...] a História Oral busca conhecer a História de fatos passados através do testemunho de
pessoas que dele participaram, está recorrendo à memória do entrevistado. [...] E ainda, que
lembrar é reconstruir o passado com os olhos e os valores de hoje, somando-se ao fato
passado as experiências da vida do narrador. (LANG, 1996, p. 01).

Para a construção desse artigo, foram utilizados depoimentos colhidos para a


dissertação de Mestrado da pesquisadora. 2 Os nomes dos entrevistados são fictícios para a
preservação das identidades dos mesmos. Essa entrevista foi gravada e com a
autorização assinada dos entrevistados. Foram utilizados também extratos do relatório do
trabalho da pesquisadora, em Amsterdam, com iniciais dos nomes dos envolvidos para
preservação das identidades dos mesmos. A vivência dos entrevistados e os relatos da
ser as principais
experiência fontes de pesquisa,
da pesquisadora permitindo
em Amsterdam vão a coleta de dados que talvez outra técnica não
consiga tantos elementos e detalhes sobre essa realidade que está posta no contexto atual da
imigração. “[...] a história oral é, então, ao mesmo tempo, um gênero de narrativa e um discurso
histórico, e um agrupamento de gêneros, alguns compartilhados com outros tipos de discurso,
alguns peculiares a ele”. (PORTELLI, 2001, p. 11).
Os movimentos (i)migratórios foram se desenvolvendo com a história da sociedade
mundial, sendo determinada por diversos fatores: guerras, fome, perseguições religiosas, ou em
busca de trabalho: “[...] tem empurrado milhares de pessoas para a “estrada” em busca de outros
lugares para viver em melhores condições ou, pelo menos, para escapar da morte violenta.”
(MORAIS; SANTORO; TEIXEIRA, 2015, p. 10). No caso do Brasil, Silva nos relata que sempre
houve a imigração neste país, desde o seu descobrimento:
Para contextualizar, a imigração atual no Brasil, é necessário analisá-la na perspectiva da
formação histórica do Brasil, que registra a chegada de portugueses, que vieram se
apropriar da riqueza existente nas terras dos indígenas, os primeiros habitantes desse
3
território . Posteriormente, africanos foram trazidos forçadamente para trabalhar
como mão de obra escrava. A partir da segunda metade do século XIX, povos de outras etnias

2 Dissertação de mestrado: “Trabalho e (I)migração: determinações do movimento migratório dos bolivianos


da cidade de São Paulo para Guarulhos”, defendida pela pesquisadora em 2012, pela PUC-SP.
3 Pode-se dizer que a formação histórica do território brasileiro teve início no século XVI com o desembarque de
navegadores portugueses no litoral oriental da América do Sul. A princípio, esses exploradores vieram tomar
posse das terras partilhadas com os espanhóis, divisão esta estabelecida pelo Tratado de Tordesilhas, documento
assinado. pelas duas potências marítimo-mercantes da época, Portugal e Espanha, no ano de 1494. Esse tratado
que estabeleceu uma linha imaginária (cerca de 370 léguas de distância a oeste das ilhas de Cabo Verde, na
África), que dividia as terras a serem exploradas por Portugal (leste) e pela Espanha (oeste). Esse foi o primeiro
movimento de imigração para o Brasil.
começaram a imigrar para o Brasil, como os europeus e asiáticos, que fugiram das guerras e
vieram para o Brasil em busca de melhores condições de vida. (SILVA, 2012, p. 43).

O Brasil sempre recebeu imigrantes, e também sempre houve emigrações brasileiras para
outros países. Köche nos apresenta um parâmetro de como se deu esse processo para o Brasil:

A partir da década de 70 do século XIX, a imigração internacional ganhou força no Brasil. Se


entre 1820 e 1876 pouco mais de 350 mil estrangeiros entraram no País, no período
1872-1930, o número de imigrantes internacionais foi da ordem de 4,1 milhões. A crise da
economia mundial, em 1929, e a consequente crise do café conduziram à passagem para
outra etapa. [...] Até a década de 60 do século passado, o País apostava em meios de
colonização por estrangeiros, com destaque para os portugueses, japoneses, italianos,
alemães e espanhóis. A Segunda Guerra Mundial foi decisiva para a migração de um
volume expressivo de pessoas da Europa meridional para o Brasil, que, até 1990,
representavam cerca de metade do número de estrangeiros no País. (KÖCHE, 2015, p. 31-32).

O Brasil faz parte da rota das imigrações internacionais. No contexto de intensificação dos
deslocamentos das populações conforme confirma a autora: “historicamente predominante na
fronteira, ganha novos contornos em sua distribuição no Brasil, com destaque para sua importância
no cotidiano da metrópole paulista.” (BAENINGER, 2012, p. 15).
Muitos imigrantes quando chegam a São Paulo, não tem onde ficar e acabam ficando em
equipamentos públicos ou de ordem religiosa para acolher imigrantes e refugiados. Mas esses
serviços são insuficientes para a demanda de imigrantes que chegam à cidade e muitos são
encaminhados para Centros de Acolhida de População de Rua, o que acaba tendo uma grande
evasão porque os imigrantes não querem permanecer nesses Centros de Acolhida e sim em
um serviço específico para imigrantes.4
E as crianças e adolescentes filhos(as) desses imigrantes acabam vivendo nesse contexto:
sem local para morar, muitas vezes sendo acolhidas em serviços de população de rua. São inseridas
na escola e fazem atividades oferecidas pelo serviço de acolhimento. Porém, se chegam ao
Brasil e não vão para o serviço de acolhimento, ficando em casa de conhecidos, a inserção na
escola e emerviços de proteção é mais demorada. Algumas vezes não ocorre, pois, os pais não
têm uma orientação e têm medo de serem denunciados e até presos.

4
Participando de uma reunião de rede na região da zona leste de São Paulo, a pesquisadora ouviu técnicos de
serviços de acolhimento de população de rua relatando que os imigrantes não queriam permanecer nesses
serviços porque têm dificuldade de se comunicar, dividem os quartos com pessoas usuárias de drogas, álcool,
egressos do sistema prisional, não conseguindo dormir direito devido às brigas que acontecem todas as noites
pelos diversos motivos. Além disso, os técnicos dos serviços de população de rua têm dificuldades com a
comunicação com esses imigrantes (não é requisito, o técnico falar outra língua nesses serviços), o que
dificultava o trabalho, resultando na evasão dos mesmos que vão dormir na porta da Casa do Migrante para ver se
consegue vaga.
Nesses casos, a violação desses direitos começa na própria moradia que, muitas vezes,
é precária, e também no local de trabalho: dormindo no chão, trancados, vulneráveis a
doenças pulmonares, respiratórias e infectocontagiosas; sem alimentação adequada e
trabalhando até mais de vinte horas diárias. A seguir, o depoimento de uma imigrante que veio
para o Brasil, ainda criança, e passou por isso, nessa época:

Pra dormir nos lugar que eu trabalhei é[...] A dona deixava tomar banho só uma vez por
semana, só sábado [...] Que horrível, né? Tomar banho só uma vez por semana. E lençol podia
trocar só uma vez por mês; não podia ficar lavando muito a roupa, lava só uma vez por
semana - Tânia. (SILVA, 2012, p. 86).

Por não estarem sendo acompanhados por algum serviço, seja ele de acolhimento ou não,
pode ocorrer uma violação de direitos dessas crianças e adolescentes: na negação do acesso aos
direitos básicos que é garantido pela Constituição; na humilhação, no desrespeito ao atendimento
dessas crianças e adolescentes, por pessoas que abusam do poder ao invés de garantirem direitos e
não oprimir e reprimir apenas pelo fato de serem filhos de imigrantes: “[...] mesmo assim, ele por
ser filho meu, eles sofria também, né? Porque eu era a mãe. Eu não tinha documento. Eles tinham
documento, mas, eu não [...] Aí eles sofriam junto. Tânia.” (SILVA, 2012, p.106)
O abuso de poder é explícito quando se trata do imigrante ilegal, por funcionários que
deveriam fazer valer a lei e os direitos. “Tinha um menino que a professora não queria que ele
participasse da atividade.” (SILVA, 2016, p. 13). O que deveria ser um atendimento respeitoso,
acabava se tornando um motivo para ameaçar, impor a repressão, assustar os atendidos ou ignorar
a existência desses e deixá-los esperando. “O Conselho Tutelar falou, a moça brasileira falou que
as crianças não estiveram na escola. Eu quase fui para a cadeia por causa das crianças que não
estavam no segmento da escola. Maria”. (SILVA, 2012, p. 102).
Já na Holanda, com a independência das colônias holandesas a partir da década de 1940,
começou a imigração de indonésios e, posteriormente, na década de 1960, o país recebeu turcos,
marroquinos e italianos. Em 1975, o Suriname, que foi uma colônia holandesa, teve sua
independência e sua população começou a imigrar para seu antigo colonizador. Durante o trabalho
em Amsterdam, foi notório o número grande de crianças, filhos de imigrantes do Suriname:
algumas já nasceram na Holanda ou vieram muito pequenas com os pais. “Participamos da aula,
tocando junto. E quando nos apresentamos falando que éramos do Brasil, um aluno abriu o sorriso
e disse que amava o Brasil. Seu nome era Robinho. Perguntei de qual país ele era, e o mesmo
respondeu que era do Suriname.” (SILVA, 2016, p. 05).
Além de crianças do Suriname, foi notado um grande número de crianças vindas da região
da Turquia e de Marrocos. “O prof. B. ajudou as crianças nessa atividade e me auxiliou na tradução,
pois muitas crianças não sabiam inglês. Tive contato, principalmente, com as crianças da Turquia e
Marrocos nas turmas do Prof. B., nessa escola.” (SILVA, 2016, p. 11)
Hoje temos imigrantes do mundo inteiro na Holanda, segundo dados do site
Wikipédia.5 Em 2012, a composição de Amsterdam era de 49,5% de holandeses e 50,5% de
estrangeiros. Dentro desse dado, 34,9% são pessoas de origem não europeia e 52,6% são
menores de idade.

Conversando com as crianças na troca de aulas conheci crianças de várias nacionalidades:


Suriname, Índia, países da África e quando eu disse que era do Brasil as crianças me
trouxeram E. uma criança do Brasil que veio para a Holanda com três anos. Hoje está com dez
anos e ainda fala português. (SILVA, 2016, p. 05).

Os imigrantes que chegam nessas duas cidades constituem famílias. Ao constituírem


famílias formam a segunda terceira ou quarta geração. No caso do Brasil, como vimos,
anteriormente, temos imigrantes chegando desde seu descobrimento. A Declaração Universal dos
Direitos Humanos em seu artigo XIII garante: “Toda pessoa tem o direito de livremente circular e
escolher a sua residência no interior de um Estado. Toda pessoa tem o direito de abandonar o país
em que se encontra, incluindo o seu, e o direito de regressar ao seu país”. (ONU, 1948).
Diferente do Brasil, onde hoje tem um número alto de imigrantes vindos sem estrutura e
ficando em centros de convivência, na Holanda percebeu-se que já encontram moradia rapidamente
ou ficam em casa de parentes ou amigos. E, assim, que a criança chega, ela já é inserida na escola
e tem aulas de holandês após o horário da aula. Muitas dessas crianças se tornam os tradutores de
seus pais que não conseguem aprender o holandês; apenas a língua de seu país de origem e um
pouco de inglês.6
Esta situação pode ser considerada positiva por atender tão rapidamente às necessidades
dessa criança filho(a) de imigrante. Mas, por outro lado máscara que esse país não tem uma
legislação específica e tão pouco políticas públicas para criança e adolescente.

M2. aponta que sente falta das políticas para atendimento das crianças e adolescentes.
Questionou se existia alguém de contato para a escola acionar ou buscar ajuda, saber o que
pode ou não pode? A partir desse questionamento nos foi informado que na quarta
falaríamos com a P. que é diretora de uma escola primária e a pessoa ideal para conversar
sobre isso. (SILVA, 2016, p. 14).

5
Disponível em: <https://goo.gl/D68Lhv> .
6
A pesquisadora teve contato em uma das escolas em Amsterdam, com uma aluna que apenas falava inglês e
foraestava da sala de aula. Então convidou a menina para participar da atividade sociopedagógica que estava
fazendo com os alunos que participam do programa de música, dentro da escola, puxando uma conversa com a
ajuda de um professor que ia traduzindo. A menina contou que tinha 7 anos, que era do Congo e que estava no
novo país há uma semana. Quando a pesquisadora questionou à mesma se gostava mais da Holanda ou do
Congo, sua resposta foi a Holanda. Indignada com a resposta da criança, a pesquisadora perguntou o porquê e a
aluna respondeu porque seu país estava em guerra. Após essa pequena conversa, o professor que estava
traduzindo explicou sobre as escolas oferecerem aulas de holandês para crianças imigrantes, e que em menos de
seis meses ela estaria falando fluentemente a língua, podendo traduzir para os pais.
Na Holanda, a única legislação de proteção para crianças e adolescentes é a Declaração
Universal dos Direitos das Crianças, aprovada em 1959: “P. que nos contou que apenas a Carta dos
Direitos da Criança e Adolescente é a legislação que defende os direitos das crianças e adolescentes
na Holanda. A única figura que defende os direitos é um defensor para o país inteiro que é mais
uma figura que faz fala para a sociedade dos direitos. É uma figura pública.” (SILVA, 2016, p. 18).
Já no Brasil, além da Declaração Universal dos Direitos das Crianças, temos outras
legislações de proteção à criança e ao adolescente, como a Constituição Federal que prevê no seu
artigo 227:

É dever da família, da sociedade e do Estado assegurar à criança, ao adolescente e ao


jovem, com absoluta prioridade, o direito à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao
lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência
familiar e comunitária, além de colocá-los a salvo de toda forma de negligência,
discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão. (BRASIL, 1988).

Temos também o Estatuto da Criança e do Adolescente – ECA, que é referência no mundo


por ser uma legislação que protege a criança, desde o ventre da mãe até os dezoito anos de idade.
O ECA reforçou alguns preceitos já determinados pela Constituição de 1988, como a proteção
integral de crianças e adolescentes e a prioridade na formulação de políticas públicas, na destinação
de recursos da União e no atendimento de serviços públicos. Ele estabelece em seu artigo 4º, que:

É dever da família, da comunidade, da sociedade em geral e do poder público assegurar,


com absoluta prioridade, a efetivação dos direitos referentes à vida, à saúde, à alimentação,
à educação, ao esporte, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à
liberdade e à convivência familiar e comunitária. (BRASIL, 1990).

E, em 2013, tivemos mais uma conquista que foi o Estatuto da Juventude que determina os
direitos dos jovens a partir de 15 anos que devem ser garantidos e promovidos pelo Estado
brasileiro. Deve ser assumido como parte da agenda pública, incorporando várias políticas para
enfrentamento das diversas violações de direitos sofridas pelos jovens no país.
Esses filhos(as) de imigrantes têm seus direitos violados de diversas formas. Apenas, pelo
fato de serem filhos(as) de imigrante sofrem discriminação, conforme aponta Silva: “Na maioria
das vezes, a gente é discriminado por ser boliviano [...] Muitas vezes sofremos discriminação na
escola mesmo. Rafael” (SILVA, 2012, p. 105).
As escolas na Holanda são muito regradas, tudo em seu devido lugar, na sua devida hora,
até mesmo a hora do recreio. As crianças podem brincar, porém têm que ser uma por uma, não
foram presenciadas ações coletivas, o que para os educadores de lá é considerado bagunça.

[...] fui ao pátio lá fora ver as crianças brincando. E, desde que chegamos, vi as crianças
pulando corda uma por uma. E eu propus de pularmos em dupla. Elas ficaram receosas e
olharam para as professoras que permitiram acenando a cabeça. Começaram a pular em
dupla, depois trio e chegaram até seis crianças pulando cordas de uma vez. Acredito que
as crianças gostaram pelos sorrisos. Fui embora do pátio exterior e elas continuaram
brincando. Só por isso valeu a pena a visita. (SILVA, 2016, p. 09).

Diferente do Brasil, essas regras são tão seguidas à risca que na hora do recreio as crianças
saem da escola e brincam na praça em frente à escola. Na hora do lanche do meio dia, a criança
pode ir em casa comer e voltar para a escola depois. Os portões são abertos e as escolas possuem
muros baixos de grade vazada.
Na Holanda, essa discriminação é escancarada e não encarada como discriminação. Muito
raro um filho de imigrante estudar nas escolas da região central, onde o ensino é melhor. Estudam
nas escolas da região periférica e dentro de algumas delas tem uma divisão, o que faz com que
aumente a questão da xenofobia.

Fomos recebidos pela coordenadora M. que conversou conosco sobre como funciona essa
escola. São três escolas juntas: islâmica, cristã e sem distinção de religião. Cada um estuda
em uma parte da escola e apenas na hora da música que essas crianças se encontram e se
misturam. (SILVA, 2016, p. 04).

E conforme a criança vai crescendo, vai sendo alienada a esse tipo de discriminação e passa
a fazer isso também:

[...] pude perceber que, quando criança, ela não faz distinção de religião, cultura, cor ou
condição social. Elas brincam e na hora da aula de música elas se misturam e não ligam
para essas separações que são impostas. Porém, quando adolescentes, elas já sentam
separadas em seus grupos, mesmo estando na mesma sala e a própria escola é segregada
fazendo que reforce ainda mais esses grupos. Isso deve refletir no futuro adulto que virá
se tornar e cada vez mais estará “europeu”. (SILVA, 2016, p. 24).

Isso descumpre diretamente o X princípio da Declaração Universal dos Direitos das


Crianças: “A criança deve ser criada num ambiente de compreensão, de tolerância, de amizade entre
os povos, de paz e de fraternidade universal e em plena consciência que seu esforço e aptidão devem
ser postos a serviço de seus semelhantes.” (ONU, 1959). O que quando crianças foi imposto pela
escola ou familiares, futuramente eles mesmos se dividem em grupos diferentes, seja ele de religião
ou cor de pele. “Percebi eles em grupos, mesmo que estudem juntos. De um lado ficam os islâmicos,
de outro os negros, de outro os cristãos. Na hora da aula de música, eles se misturam um pouco,
mas depois voltam para seus grupos.” (SILVA, 2016, p.18).
Esses fluxos migratórios são diretamente ligados ao contexto social, político e econômico
dos países, tanto os que têm a saída quanto a chegada desses imigrantes, chegando ao ponto de ter
rejeição dos imigrantes e outras gerações em países que estão em crise econômica, dando espaço à
discriminação, preconceito e xenofobia.
Na Holanda, não se encontra crianças em locais públicos e quando questionamos o porquê
disso tivemos a resposta que, culturalmente, lá a criança fica em casa; que tem restaurantes que não
aceitam crianças e que em eventos formais como casamentos, muitas vezes as crianças não são
convidadas, apenas os pais; que contratam uma babá para cuidar das crianças enquanto vão aos
eventos. “Não vimos quase crianças na feira; apenas algumas que pareciam imigrantes ou filhas de
turistas. Este fato me chamou a atenção.” (SILVA, 2016, p. 12).
Em ambas as cidades, essas crianças e adolescentes não pretendem ter o mesmo destino de
seus pais. Estão buscando outros modos de vida, ou seja, estudarem para terem uma profissão, se
qualificando para o mercado de trabalho, pois não pretendem reproduzir o trabalho de seus pais,
visto que na maioria das vezes não é registrado em carteira, podendo ser em: oficinas de costuras,
vendedor ambulante em São Paulo e na área de serviços7(jardinagem, marcenaria, diarista)
e atendimento ao cliente (caixa, repositor, garçom). Em Amsterdam, “[...] os imigrantes ou
filhos desses imigrantes são as pessoas que trabalham na área de serviços: caixa de
supermercado, limpeza, jardinagem, atendente; o que não é diferente com o que acontece no
Brasil: eles vão para áreas que os compatriotas não querem trabalhar.” (SILVA, 2016, p. 24).
A esperança de ter uma vida melhor pode estar diretamente relacionada a problemas
de desigualdades decorrentes do desemprego e dos limites do mercado de trabalho em seus
países, reproduzidos na falta de acesso à educação e a outras necessidades básicas. E cada dia
que passa, os números da imigração cresce cada vez mais, como nos relata Souza:

Segundo a Organização Internacional para Migrações (OIM) não houve outro momento
da história da humanidade em que tantas pessoas estiveram em trânsito. Hoje, temos mais
de 232 milhões de pessoas vivendo fora de seu país de origem, ou seja, pouco mais 3,2%
da população mundial. Isso equivale a dizer de 1 em cada 35 habitantes do planeta é
migrante. (SOUZA, 2015, p. 49).

Tanto no Brasil como na Holanda, o trabalho com as crianças e adolescentes que estudam
nos Programas de Educação Musical apresentados, traz um enorme desafio para os trabalhadores
desses programas, que lidam diretamente com todas essas questões de vulnerabilidade, dificuldade
e preconceito que estouram dentro da sala de aula, durante o ensino da música. A arte, através da
música, tem sido um instrumento de socialização, e de construção de vínculos para o enfrentamento
da série de situações vivenciadas pelo público beneficiado pelos Programas.
As histórias desses sujeitos da pesquisa são algumas, entre milhares de histórias de filhos
(as) de imigrantes nessas duas cidades que foram apresentadas. Histórias que, na sua grande
maioria, revelam a tentativa de superação de vida, apontando para a insuficiência da atuação das

7
A pesquisadora teve contato com dois adolescentes brasileiros em Amsterdam que relataram que para
conseguir se manterem e estudarem, trabalham informalmente em bares como atendentes, tocando instrumentos
em espaços públicos e limpam casas (serviço de diarista). Para aguentar a saudade da família e suportar essa
rotina, em outro país, fazem o uso abusivo de álcool, refletindo diretamente no desenvolvimento dos estudos.
instituições e do Estado que é omisso na efetivação da legislação, de políticas e de direitos dessa
população.

Os depoimentos mostraram que o Estado por mais que esteja respaldado em legislações,
como é o caso de São Paulo, ou tenha uma estrutura boa, como é o caso de Amsterdam, ambas têm
a mesma questão: a omissão do Estado em efetivar os direitos dessas crianças e adolescentes que
são os objetos de estudo. Isso reforça um círculo vicioso na sociedade: “a falta de políticas públicas
empurra os jovens pobres para comportamentos socialmente excludentes; quanto mais excluídos,
menos as políticas atuais atingem mudanças de comportamentos necessárias para sua inclusão
social.” (LOSACCO, 2010, p. 73).
As políticas sociais e políticas públicas no município de São Paulo deveriam pensar em
estratégias em atender com qualidade e pautada na legislação vigente de proteção à criança e ao
adolescente, conforme apresenta Silva:

O acesso aos direitos desses imigrantes apresenta limites pela ausência de políticas
públicas e as poucas ações previstas são ineficazes; há limitações, também, na efetivação
de políticas públicas permanentes; nas condições de acesso a programas de geração de
emprego e renda; nos serviços públicos da rede de ensino, como creches e escolas,
proteção social, entre outros; na criação de mecanismos de controle, de participação social
e na superação dos preconceitos e da discriminação. Embora certas conquistas no campo
dos direitos humanos para imigrantes tenham sido obtidas, com o apoio de organizações
sociais e públicas, como o CAMI e a Comissão Municipal de Direitos Humanos, elas ainda
são insuficientes e pontuais. (SILVA, 2012, p. 107-108).

Para o enfrentamento das diversas violações é necessário fazer pressão nas diversas instâncias
para que o Estado saia da posição cômoda e comece a trabalhar na efetivação de direitos.

É fundamental a pressão nas várias instâncias de poder e esforço conjunto entre


universidades e secretarias municipais (Assistência Social, Saúde, Educação, entre outras)
existentes, o CAMI e outras organizações não governamentais. Essas ações devem ser
empreendidas de forma articulada para contribuir na discussão e no atendimento aos
imigrantes. (SILVA, 2012, p. 108).

Ficou nítido como a criança e o adolescente, na Holanda, não tÊm legislação e nem voz
nesse país. Eles são limitados a estarem nos locais e doutrinados a ser futuramente europeus
com costumes e hábitos europeus (de sociabilização), mesmo sendo imigrante e ou filho(a) de
imigrante, anulando costumes e cultura descente. Esse sistema de excluir a criança e ao
adolescente é tão forte nas escolas e na sociedade holandesa, que, quando adolescentes, elas já
sentam separadas em seus grupos, mesmo estando na mesma sala. E a própria escola é
segregada, fazendo que reforce ainda mais esses grupos. Isso deve refletir no futuro adulto que
virá se tornar e cada vez mais estará “europeu”.
Outro ponto que ficou nítido é que os imigrantes ou filhos desses imigrantes são as pessoas
que trabalham na área de serviços: caixa de supermercado, limpeza, jardinagem, atendente; o que
não é diferente com o que acontece no Brasil: eles vão para áreas que os compatriotas não querem
trabalhar.
Há muito para ser feito para possíveis enfrentamentos da violação de direitos desses
sujeitos, dos dois países, pois muitos desafios ainda devem ser vencidos, como a superação da
suposta neutralidade do Estado em relação às desigualdades presentes na sociedade, assumindo
ele um lugar para a construção de políticas que visem à igualdade, ao reconhecimento das
demandas específicas dos imigrantes e à admissão da existência dessa desigualdade,
necessitando de mudanças de paradigmas e conceitos.
Para haver uma articulação entre os diversos órgãos públicos, inúmeras barreiras e desafios
devem ser enfrentados para que realmente se elabore e efetive políticas públicas que atendam esses
imigrantes e suas famílias. Esse artigo chama a atenção para que haja mecanismos de enfrentamento
dessa problemática, conforme preconiza o princípio II da Declaração Universal das Crianças:

A criança gozará proteção social e ser-lhe-ão proporcionadas oportunidades e facilidades,


por lei e por outros meios, a fim de lhe facultar o desenvolvimento físico, mental, moral,
espiritual e social, de forma sadia e normal e em condições de liberdade e dignidade. Na
instituição das leis, visando este objetivo, levar-se-ão em conta, sobretudo, os melhores
interesses da criança. (ONU, 1959).

Em ambas experiências, foram presenciadas diversas violações de direitos e a omissão do


Estado com a população (i)migrante em ambos os países. Através da arte essas crianças e
adolescentes têm acesso aos Programas de Educação Musical que são meios de possibilitar a que
eles tenham uma melhor socialização e desenvolvimento no ambiente no qual estão inseridos.
Na perspectiva da ontologia social de Marx (Lukács,1966), a arte é concebida como uma
atividade enriquecedora, pois permite ao indivíduo sair de singularidade e se conectar com
motivações e valores humano-genéricos. Por isso, a arte tem uma função no desenvolvimento
humano, como explica Celso Frederico: “Nascida para refletir a vida dos homens, a arte produz
uma ‘elevação’ que a separa inicialmente do cotidiano para, no final, fazer a operação de retorno.
Esse processo circular produz um contínuo enriquecimento espiritual da humanidade”.
(FREDERICO, 2013, p. 133).
Além disso, o acesso à arte e à cultura pelas crianças e adolescentes coloca em discussão a
questão dos direitos humanos. Conforme preconiza o artigo 71 do Estatuto da Criança e do
Adolescente (ECA): “A criança e o adolescente têm direito à informação, cultura, lazer, esportes,
diversões, espetáculos, produtos e serviços que respeitem sua condição peculiar de pessoa em
desenvolvimento”. (BRASIL, 1990, p. 53). Desta forma, a arte contribui para o desenvolvimento,
sociabilização e a inserção dessas crianças e adolescentes em países com costumes e culturas
diferentes. Esse estudo, que ainda está em construção, tentou mostrar a experiência de instituições
que fazem o que deve ser de responsabilidade do poder público para todos: o acesso à cultura e
educação.

BAENINGER, Rosana. Fases e faces da migração em São Paulo. Campinas: Nepo/Unicamp, 2012.

BRASIL. Constituição Federativa da República do Brasil de 1988.

_____. Estatuto da Criança e do adolescente. Lei nº 8.068, de 13 de julho de 1990.

_____. Estatuto da Juventude. Lei nº 12.852, de 5 de agosto de 2013.

FREDERICO, Celso. A arte no mundo dos homens. São Paulo: Expressão Popular, 2013.

KÖCHE, Rafael. Migrações e (de)igualdade no século XXI: entre políticas de redistribuição e de


reconhecimento. In: MORAIS, José Luis Bolzan de; SANTORO, Emílio; TEIXEIRA, Anderson
Vichinkeski (Org.). Direito dos migrantes. São Leopoldo: Ed. da UNISINOS, 2015.

LANG, Alice Beatriz da Silva Gordo. A palavra do outro: uso e ética. Comunicação apresentada no
XX Encontro Anual da ANPOCS. Caxambu, 1996.

LOSACCO, Silvia. O jovem e o contexto familiar. In: ACOSTA, Ana Rojas; VITALE, Maria Amalia
Faller (organizadoras). Família: redes, laços e políticas públicas. 5. ed. São Paulo: Cortez, 2010.

LUKÁCS, Gyorgy. Estética. I. La peculiaridad de lo estético. Barcelona-México: Grijalbo, 1966.

MORAIS, José Luis Bolzan de; SANTORO, Emílio; TEIXEIRA, Anderson Vichinkeski (Org.).
Direito dos migrantes. São Leopoldo: Ed. da UNISINOS, 2015.

ONU. Declaração Universal dos Direitos Humanos, 1948.

_____. Declaração Universal dos Direitos das Crianças, 1959.

PORTELLI, Alessandro. Tentando aprender um pouquinho: algumas reflexões sobre a ética na


história oral. In. Projeto História. São Paulo, EDUC, n. 14, p. 07-24, fev. 2001.
SILVA, Fabiana Aparecida da. Trabalho e (I)migração: determinações do movimento migratório dos
bolivianos da cidade de São Paulo para Guarulhos. Dissertação (Mestrado em Serviço Social) –
Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, São Paulo, 2012.

_____. Guri Santa Marcelina e Leerorkest: Relatório de visita, Amsterdam – Holanda, 14 a 28 de


maio de 2016. (Relatório não publicado – interno das instituições que receberam e prestaram serviço).

SOUZA, Marcia Maria Cabreira Monteiro de. Migrações internacionais contemporâneas: fluxo
migratório intrarregional na América do Sul – caso da migração Brasil-Bolívia. In: CUTTI, Dirceu e et
al. Migração, trabalho e cidadania. São Paulo: EDUC, 2015.
Ieda Gutfreind

Apresento a atividade Painel Compromisso Moral e Lições de Solidariedade que vem sendo
desenvolvida, desde 2008, na rede escolar de ensino do Estado e do município de Porto Alegre,
instituições educacionais de ensino privado, faculdades e universidades. O Instituto Cultural
Judaico Marc Chagall (ICJMC) deu início a esta promoção e convidou a B'nai B'rith (Os Filhos da
Aliança, em Hebraico), também uma associação da comunidade judaica, como parceira.
Recuperando a história do que iniciou como Mesa Redonda e que hoje se intitula Painel
Compromisso Moral e Lições de Solidariedade, remeto ao lançamento do livro de Samuel Schajer,
“O relato de um Sobrevivente”, que ocorreu no ano de 2008. Schajer, solicitara auxílio do Chagall,
quando se encontrava no término da elaboração de suas memórias. Tivemos encontros,
comentários de fotos, foram dadas sugestões e organizamos o lançamento da obra que ocorreu no
auditório da Federação Israelita do Rio Grande do Sul (FIRS) em 20 de agosto de 2008.
Na montagem desta apresentação, da qual já participou Liana Richter, representando a B’nai
B’rith, Loja Barão Hirsch, constou de: uma mesa redonda na qual estavam presentes, além do autor
do livro, que narrou suas experiências durante a Segunda Guerra Mundial, Bernard Kats que
discorreu sobre os sete lares nos quais ele e sua irmã, ficaram escondidos durante este mesmo
período. Eles foram protegidos por famílias protestantes calvinistas, que criaram uma rede de
proteção amparando não apenas para crianças judias, pois a mãe de Bernard ficou escondida em
outra região da Holanda. Johannes Melis, por sua vez, discorreu sobre a participação de seu pai na
resistência holandesa contra os nazistas, tanto em atividades de sabotagem, quanto em abrigar
judeus escondendo-os em sua casa.
Foram narradas três experiências distintas, mas centradas na violência e no desrespeito ao
ser humano. Nesta ocasião proferi a seguinte fala:

[...] O Instituto Cultural Judaico Marc Chagall e a B’nai B’rith/RS – lojas Yehuda Halevi
e Barão Hirsch, instituições da comunidade judaica de Porto Alegre, aproximadas em seus
objetivos, dão continuidade às promoções de manter acesas as lembranças dos crimes
perpetuados durante a II Guerra Mundial que a história gravou como Holocausto.

Manter viva esta memória significa o rechaço ao absurdo, à exclusão de pessoas,


grupos, comunidades, cidades...
Convictas de que a memória deve ser exercitada, as duas instituições – ICJMC e
B’nai B’rith/RS vêm trabalhando em parceria, com o apoio da Federação Israelita do Rio
Grande do Sul. Em uma das atividades trouxeram a Porto Alegre a Exposição “Anne Frank:
uma história para hoje”, que permaneceu por várias semanas em um amplo espaço, a Usina
aa
* Doutora em História, historiadora do Instituto Cultural Judaico Marc Chagall.
do Gasômetro em Porto Alegre. As visitas ao evento somaram-se a milhares de pessoas e
os comentários deixados por escrito ou mesmo feitos oralmente, indicam o desconhecimento
pelo que ocorreu com judeus e não judeus no período vivido por Anne Frank e sua família, e
milhares de outras.
Nos locais onde muitas das tragédias aconteceram há marcas, como por
exemplo a residência onde a família Frank escondeu-se, que abriga, atualmente, o Museu
Anne Frank. E, em outros tantos locais, nenhuma lembrança está registrada: onde outrora foi
o Gueto de Varsóvia, por exemplo, lá há uma grande praça, uma esplanada ajardinada com
um monumento e placas e um grande museu.
Locais citados nas memórias do Sr. Samuel Schajer como Siauliai – a cidade do sol
– e Paneiriai constam nos roteiros turísticos atuais, exaltando suas belezas naturais –
bosques de pinheiros, entre outras espécies, que exalam o perfume da frondosa vegetação...
O tempo passou, as gerações estão a se suceder e novas histórias são incorporadas e
outras tantas desaparecem no envolver deste mesmo tempo.
Cidades outrora com grandes concentrações judaicas como Vilnius, é conhecida
como a Jerusalém da Lituânia, que possuía 100 sinagogas, segundo a literatura, atualmente
tem apenas uma em funcionamento.
Na segunda metade do século XIX e primeiras décadas do século XX, o eixo
geográfico da vida judaica da Europa Central e Oriental transferiu-se para outros espaços,
especialmente para a América e Israel. E é deste espaço, Europa Central e Oriental, a maior
parte dos depoimentos de histórias de vida que compõem o acervo de História Oral do
ICJMC. O mundo judaico, a cultura judaica de então refugiou-se na literatura, conforme lê-
se nas crônicas autobiográficas de Isaac Bashevis Singer compiladas em “O tribunal de meu
pai”, edição de 2008, da Cia. de Letras. São contos anteriormente publicados com o
pseudônimo Isaac Warshawsky, no Jewish Daily Forward, jornal editado em New York.
Mas, o passado ainda se faz presente e esquecê-lo ou secundarizá-lo significa
deixar brechas, espaços para reproduções de tragédias já ocorridas. Partindo destas
considerações, o ICJMC e a B’nai B’rith/RS objetivam relembrar que, quando da Segunda
Guerra Mundial, em pleno século XX, não foram respeitadas fronteiras geográficas,
étnicas, políticas, sociais e/ou religiosas.
O Sr. Johannes Melis e o Sr. Bernard Kats, crianças ainda, estavam
próximos geograficamente, mas passaram por experiências distintas que, no entanto,
interligam-se profundamente, inseridas no conflito mundial – enquanto o Sr. Johannes viveu
sob o medo por sua família esconder judeus, o Sr. Bernard teve sua identidade escondida.
O Sr. Samuel Schajer, que hoje publica suas memórias, tão necessárias às novas
gerações, por sua vez, geograficamente estava distante de seus colegas aqui presentes
nesta mesa. Sua experiência foi distinta; não escondeu e nem ficou escondido, desde o início
da guerra. Já em 1939, tornou-se prisioneiro, passando por campos até o término do conflito,
em 1945. Mas, igualmente,
em 1945. Mas, igualmente, interliga-se aos demais – esconder, escondido, prisioneiro,
experiências dispares, mas que se aproximam, porque foram vítimas de um conflito
em âmbito mundial, cujas marcas não desapareceram de todo, mas a memória vai se
desvanecendo. Mantê-la viva é nosso compromisso para que as novas gerações apreendam
o alcance que podem adquirir desmandos político-ideológicos de grupos e mesmo de
indivíduos”. Na ocasião do painel, cada membro da Mesa narrou suas experiências.
O evento trouxe resultados, pois provocou comentários que se espalharam por múltiplos
locais. Tomando conhecimento, uma professora da Escola Pastor Dohms contatou o ICJMC,
indagando a possibilidade de apresentar o Painel em sua escola.
Iniciavam-se as apresentações do Painel Compromisso Moral e Lições de Solidariedade em
escolas, faculdades e universidades do Rio Grande do Sul, centrado nos conceitos de intolerância,
racismo, preconceito, discriminação e resiliência, dentro outros.
Desde o início das apresentações, Liana Richter, membro da Loja Barão Hirsch é a
responsável pelo contato com as escolas, o agendamento da apresentação, as providências de
locomoção e os demais encargos que antecedem as visitas às escolas, bem como as fotos registradas,
durante as apresentações; Ieda Gutfreind, coordena o Painel.
Samuel Schajer participou das apresentações até seu falecimento; Max Wachsmann
Schanzer se fez presente em muitas escolas e outros locais. Atualmente, participam do Painel,
Johannes Melis, Curtis Stanton e Bernard Kats. Ao longo destes anos, eles foram entrevistados por
canais de televisão e suas narrativas encontram-se em diversos sites.
As apresentações sofreram modificações ao longo do tempo; apresentação breve pela
coordenadora, do Power Point, no momento, passa por reformulações. Este material é cedido às
escolas.
Figura 1 – Painel Compromisso Moral e Lições de Solidariedade (1)

Fonte: acervo do Instituto Cultural Judaico Marc Chagall.


Figura 2 – Painel Compromisso Moral e Lições de Solidariedade (2): Segunda Guerra Mundial (1939-1945)

Fonte: acervo do Instituto Cultural Judaico Marc Chagall.

Figura 3 – Painel Compromisso Moral e Lições de Solidariedade (3): Segunda Guerra Mundial (1939-1945)

Fonte: acervo do Instituto Cultural Judaico Marc Chagall.


Figura 4 – Painel Compromisso Moral e Lições de Solidariedade (4): Segunda Guerra Mundial (1939-1945)

Fonte: acervo do Instituto Cultural Judaico Marc Chagall.

Figura 5 – Painel Compromisso Moral e Lições de Solidariedade (5): o Nazismo e o Brasil

Fonte: acervo do Instituto Cultural Judaico Marc Chagall.


Figura 6 – Painel Compromisso Moral e Lições de Solidariedade (6): o Nazismo e o Brasil

Fonte: acervo do Instituto Cultural Judaico Marc Chagall.

Figura 7 – Painel Compromisso Moral e Lições de Solidariedade (7):


Meios de transporte – trens (vagões de gado)

Fonte: acervo do Instituto Cultural Judaico Marc Chagall.


Figura 8 – Painel Compromisso Moral e Lições de Solidariedade (8): o Nazismo e o Brasil

Fonte: acervo do Instituto Cultural Judaico Marc Chagall.

Figura 9 – Painel Compromisso Moral e Lições de Solidariedade (9): o Nazismo e o Brasil

Fonte: acervo do Instituto Cultural Judaico Marc Chagall.


Figura 10 – Painel Compromisso Moral e Lições de Solidariedade (10): o Nazismo e o Brasil

Fonte: acervo do Instituto Cultural Judaico Marc Chagall.

Figura 11 – Painel Compromisso Moral e Lições de Solidariedade (11): Redes de solidariedade - organizações
judaicas de auxílio aos sobreviventes do Holocausto

Fonte: acervo do Instituto Cultural Judaico Marc Chagall.

A apresentação do Painel nas escolas é delimitada pelos anos (oitavo ou nono devido à
reforma do Ensino Fundamental), isto é, após os alunos desenvolverem conteúdos sobre história
contemporânea, especificamente, a conjuntura da Segunda Guerra Mundial.
Normalmente, a direção do local, escola ou faculdade ou..., abre a seção, os professores
envolvidos manifestam-se e a coordenadora do Painel apresenta os palestrantes e o Power Point.
Após, cada um deles relata suas experiências, ocorrendo algumas vezes a complementação de um
fato novo ou o esquecimento de outro já apresentado em outros painéis. Terminadas as falas dos
sobreviventes, a coordenadora faz breves conclusões e abre a oportunidade para o diálogo com os
alunos. É um momento muito significativo e já foram apresentadas observações pertinentes. A seção
é fechada pela direção da instituição e vem o momento do contato direto estudante com os
palestrantes. Nesta ocasião, observa-se em muitas situações mudanças significativas nos ouvintes.
Após as apresentações, a coordenação elabora o Relatório que consta de um cabeçalho sobre
informações da Escola/Instituição, acrescido do item Comentários. Neste, destacam-se
receptividade e o comportamento dos alunos, justificativa dos professores em relação ao interesse
do Painel e da Escola. São destacados, da mesma forma, o número de alunos ouvintes, as perguntas
que fizeram aos palestrantes e, através das fotos, o carinho dos alunos aos painelistas, seus pedidos
de fotos, autógrafos, selfies.
Em 2008, foram visitadas poucas escolas, todas em Porto Alegre. Em continuidade foram
aumentando as solicitações de instituições de ensino e temos o seguinte quadro das
instituições visitadas pelo Painel, entre o final de 2008 e 2017.

Tabela 1 – Levantamento das instituições visitadas pelo Painel entre 2008 e 2017 - Porto Alegre
Instituições Nº de escolas
Rede Municipal de Ensino 14
Rede Estadual de Ensino 04
Rede Particular de Ensino 24
Faculdades 06
Universidades 06
Associações 04
Fonte: acervo do Instituto Cultural Judaico Marc Chagall.

Tabela 2 – Levantamento das instituições visitadas pelo Painel entre 2008 e 2017 – Interior do RS
Instituições Nº de escolas
Rede Municipal de Ensino 15
Rede Estadual de Ensino 19
Rede Particular de Ensino 14
Universidades 03
Associações 01
Fonte: acervo do Instituto Cultural Judaico Marc Chagall.
O Painel esteve presente até o momento em 99 Instituições de Ensino mas, em muitas
situações, tanto em Porto Alegre quanto no interior do Estado, reuniam-se no mesmo local várias
escolas que assistiam a mesma apresentação.
Para o ano de 2018, já há escolas inscritas e, pelas condições dos palestrantes, tentaremos
delimitar as apresentações entre uma a duas por semana e as viagens para o interior do Estado, não
excederem em torno de 100Km. O power point conforme dito acima será modificado, mas será
mantida a exigência das apresentações ocorrerem entre alunos que já trabalharam os conteúdos da
Segunda Guerra Mundial.
Por fim, chamo a atenção de vários painéis em escolas que excederam as expectativas dos
próprios palestrantes e coordenadores, cujos alunos realizaram apresentações teatrais, literárias,
musicais, relacionadas com a proposta do Painel, cujo título, Compromisso Moral que é o que faz
os três palestrantes, retornarem com suas falas a este passado terrível que viveram e Lições de
Solidariedade, recebidas por cada um deles neste período tão trágico. O que leva os alunos a
refletirem na capacidade humana de resiliência e de uma educação possível que se oponha a
intolerâncias ideológicas, raciais, religiosas. Uma das propostas é a do jovem tomar consciência do
perigo de atitudes preconceituosas que envolvem indivíduos, grupos, comunidades, nações, etc.,
levando-o a acreditar na possibilidade de uma sociedade mais justa e harmoniosa.
Kelly Cristina Teixeira

Pollack ressaltou a ligação estreita entre memória e o sentimento de identidade, a identidade


tomada como o sentido da imagem de si e para os outros. Esta sendo seletiva traz à tona
elementos da trajetória que visam dar coerência na construção e reconstrução de si.1 Ao
trazermos elementos do casamento e do nascimento dos filhos, na trajetória de Helena, visamos
configurar esta coerência na memória de seus filhos no que concerne ao nascimento da
mãe militante. Helena recorre a determinados acontecimentos e elementos de sua infância
na busca de justificar determinados posicionamentos e escolhas políticas. Helena ficou
conhecida no imaginário mineiro como a Defensora dos Direitos Humanos, e esta
identidade social foi construída coletivamente e individualmente. Entretanto, Helena
possuía uma força simbólica para dizer quem era? Sabemos que o contexto relacional explica
porque em determinados momentos uma identidade é afirmada ou reprimida. Segundo Odir
Belatto, a construção desta identidade realiza-se no interior de contextos sociais que
definem a posição dos agentes e, por isso, guiam suas representações e escolhas. Portanto,
a construção da identidade não é ilusória, uma vez que é dotada de eficácia social.2 Por
conseguinte, ao relacionar a subjetividade do indivíduo e sua caracterização e relação com o
meio, reiteramos que a identidade é constituída de significados e da experiência dos
indivíduos. 3 E são essas experiências de vida que elegemos nesta tese. Sabemos que
outras vivências ficarão de fora de nossa análise, entretanto, seria impossível analisar uma
vida sem seus desdobramentos.

* Doutoranda em História, pela Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC), Mestre em Ciência da
Religião pela Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF); Especialista em Aspectos Metodológicos e
Conceituais da Pesquisa Científica pela Universidade Federal de Juiz de Fora, graduada em História, pela
Universidade Federal de Juiz de Fora, Pesquisadora do Laboratório de Estudos de Gênero e História (LEGH/
UFSC). Bolsa de Doutorado da CAPES.
1
POLLAK, Michael. Memória e identidade social. Estudos históricos, n. 10, Teoria e História. Rio de Janeiro:
Fundação Getúlio Varga, 1992, p. 5.
2 BERLATTO, Odir A. construção da identidade social. Revista do Curso de Direito da FSG, a. 3, n. 5, p. 142,
jan/jun 2009.
3 CASTELLS, Manuel. O poder da identidade. São Paulo: Paz e Terra, 2008.
Mineira de Abaeté, Helena Greco nasceu 15 de junho de 1916, em uma família de classe
média. Seu pai, Antônio Greco, foi um comerciante de origem italiana e sua mãe Josefina de
Campos Álvares, brasileira, professora e dona de casa, descendia de família tradicional da cidade
de Abaeté, sendo Helena a mais velha de sete irmãos. Uma curiosidade é que, mais tarde, a família
de Helena é vista como comunista na cidade, pelo fato de um dos irmãos de Helena interessar-se
pelas propostas do Partido Comunista. Entretanto, seu pai deu a um de seus filhos o nome de
Mussolini, por compreender através das notícias que chegavam ao seu ouvido, as benesses que este
havia feito ao seu país. Devido à ampliação dos negócios, seu pai resolveu mudar-se para Belo
Horizonte, em 1924. Sua origem somada à escolaridade no colégio Santa Maria, dirigido por irmãs
dominicanas e considerado de elite de Belo Horizonte, no início do século XX, contribuiu para que
Helena tivesse uma educação refinada e uma formação clássica que incluiu: música e o domínio de
outras línguas como o francês, inglês e o italiano. Nos tempos de colégio interno, segundo relata
em entrevistas, sua leitura era realizada à luz de lanterna às escondidas no dormitório. Estas leituras
proibidas eram incentivadas por um professor de Filosofia conhecido, como Velloso, nos tempos
de internato. Segundo relata, estes livros tiveram forte influência em sua formação, distanciando-a
do padrão tradicional de leituras e comportamentos desejados para as “moças de família”. Afinal,
ainda estava em vigor o Index Librorum Prohibitorum, ou seja, a lista de livros proibidos, que viria
a ser abolida pela Igreja Católica, apenas em 1966. Segundo Helena, em sua entrevista concedida
ao Laboratório de História Oral da Universidade Federal de Minas Gerais, ou o livro era indecente
ou era contra a religião. O professor Velloso, além de passar uma lista de livros, também lhe
emprestava alguns, sendo rara a semana que não lia um livro escondido das irmãs. (GRECO,
Helena, 1995, p. 30-42). Todavia, mesmo com o afastamento da leitura denominada “cor de rosa”,
Helena parecia compreender que havia códigos de conduta a serem interpretados e reproduzidos,
pois, em alguns de seus relatos, esclarece que a questão espiritual nunca foi importante em sua vida.
Contudo, narra que nos tempos venceu todos os concursos ligados à religião, para não levantar
suspeita sobre o que realmente pensava. Há nesta passagem, aproximações e rupturas com os
modelos fixados a uma geração, que abordaremos no decorrer deste trabalho.
Entre 1933 e 1937 cursou Farmácia na Faculdade de Odontologia e Medicina da
Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), mas, seu real desejo, de acordo com sua narrativa,
era cursar Medicina.
Em 25 de dezembro de 1937, Helena e José Bartolomeu, recém-formados, casaram-se; ela
com 21 anos e ele com 26 anos de idade. Sobre este dia sonhado e tão planejado por muitas moças,
Helena narra:
O casamento foi o seguinte. Nós queríamos casar só no civil, mas a minha família era
muito tradicional, então eu peguei e falei: Está bom, eu vou casar, mas vamos casar em casa.
E eu não tinha... Eu era completamente desligada dessas coisas de religião. Mas, como a
minha mãe era muito "carola" e as minhas irmãs também, elas nem perguntaram nada, foram
e me casaram, sem preparo, sem coisa nenhuma. Porque eles não queriam o que eu vesti,
[vestido de noiva] porque minhas irmãs queriam que eu vestisse, eu vesti.
[...] Porque tinha alguns casamentos ricos que faziam isso também. Mas, aí já era com
preparo, com os padres. De modo que não chamou muita atenção não. (GRECO, Heloísa,
1995, p. 15, grifo nosso).

Helena demonstrou o desejo de formalizar sua união apenas perante o Estado. Tal
fato assegurava direitos estabelecidos pelo Código Civil de 1916, que legislava sobre
bens e propriedades, mas, ainda perpetuava antigas relações patriarcais. O marido
permanecia o cabeça do casal e as mulheres casadas permaneciam na condição de
incapazes, na mesma condição de deficientes mentais, mendigos, menores e indígenas. 4
Este fato é evidenciado quando Helena expõe que mulher de médico não abria laboratório,
o que a fez trabalhar com seu esposo e seu cunhado. Segundo Vera Lucia Puga a sociedade
ocidental cristã brasileira preparava homens para que assumissem como maridos a
responsabilidade no provento da família e da mulher – a denominada rainha do lar, –
criada para a administração da casa, dos filhos e no cuidado do marido.5
Até 1981, ano da promulgação da primeira Constituição republicana, todo o controle
sobre a vida civil estava na prática, a cargo da Igreja Católica, controlando nascimentos,
casamentos e morte. 6 Compreende-se que para a mãe e as irmãs, o casamento religioso
seria necessário, garantindo o reconhecimento social dentro de uma moralidade cristã,
uma vez que Helena as nomeia como carolas. Casou de véu e grinalda com as bênçãos de
Deus, mas, em casa, e sem a preparação dos casamentos da alta sociedade, com discrição,
como revela. A religião atravessou a vida de Helena, em especial durante os anos do Colégio
Santa Maria. No período do Colégio seguia um roteiro, conforme mencionou, e ganhou
prêmios de religião com o intuito de agradecer as freiras por toda atenção e conhecimento
adquirido entre 1928 e 1932. Mas, em muitas de suas entrevistas deixa claro que, tanto para
ela quanto para seu esposo, a questão religiosa era secundária. Em entrevista, em 1994,
para a Revista T&D, quando perguntada sobre sua visão sobre religião, particularmente
sobre a Igreja respondeu: “A religião não está entre meus pensamentos prioritários. Fé é uma
coisa muito interessante, ou você tem ou não tem. Eu me caracterizo como uma pessoa
agnóstica, que é uma coisa que nem existe mais. Eduquei minhas duas filhas e meu filho
dentro desse princípio.” (GRECO, 1995) [2016]
José Bartolomeu Greco nasceu em Indaiá, Minas Gerais, era filho do tio de
Helena, o artesão Bartolomeu Greco e Amélia Alexandrina Greco e tinha duas irmãs, Maria e
Zulmira Greco. Conforme citamos, José Bartolomeu formou-se em Medicina em 1937 e
desejava continuar seus

4
PUGA. Vera Lucia. Casar e Separar: dilema social histórico in: Esboços, Revista do Programa de Pós-
Graduação em História da UFS. Florianópolis: n. 17, p. 157-172, 2007.
5
GRIMBERG, Keila. Código Civil e Cidadania. Rio de Janeiro. Jorge Zahar, p.37-42, 2001.
6
No Brasil havia duas legislações em vigor sobre o casamento: civil e eclesiástica. Porém, apenas a eclesiástica
era vista como legítima. Segundo a tradição portuguesa, o Estado delegava à Igreja Católica a tarefa de organizar
as etapas dos habitantes do país, cabendo ao Estado legislar sobre as propriedades e heranças. Para maiores
considerações, consultar: MARQUES, Teresa Cristina de Novais. A mulher casada no Código Civil de 1916. Ou,
mais do mesmo. In: Textos de História, v. 12, n. 1/2, p. 127-144, 2004.
desejava continuar seus estudos fora do país. Após alguns anos, em 1944, conseguiu a bolsa
de estudos para prosseguir especialização nas áreas de alergologia e imunologia nos
Estados Unidos. Helena na ocasião escreveu ao presidente Roosevelt com o intuito de ir
com seu esposo:
Nós estávamos esperando essa bolsa que saiu afinal, para ir para os Estados Unidos.
Porque ele foi fazer pós-graduação lá, em alergia. O meu marido é o pioneiro da alergia
na América do Sul. E eu iria com ele, como de fato eu consegui. Eu escrevi direto para o
Roosevelt [...]. Falando que eu precisava ir com ele porque estava acostumada a ser
secretária dele e seria ruim para ele, se eu não fosse. Então, ele me escreveu de volta,
dizendo que eu podia ir sim, mas com uma condição. Que eu não participaria de nenhum
curso oficial. Agora, eu fiz dois cursos lá. Inglês comercial e... Não lembro qual
foi o outro...7 (GRECO, Helena, 1995, p. 13).

Helena fez os cursos, mas não obteve o diploma pelos mesmos. Em São
Francisco, Califórnia, Helena prestou concurso com candidatos de diversos países para
trabalhar na seguradora Hartford Fire Insurance Company, trabalhando no tempo em
que esteve na cidade.8 (OLIVEIRA, Mais tarde, seu esposo foi para Nova Iorque e
Helena conseguiu transferência para outra filial da empresa. Helena e seu esposo não
encontraram dificuldade de adaptação no período o em que estiveram nos Estados
Unidos, tanto pela língua que falavam, fluentemente, quanto para Helena obter uma
ocupação. Os Estados Unidos, neste período, atravessava a Segunda Guerra Mundial
(1939-1945). Em 1944, ano em que se mudaram, o mercado americano necessitava de
mão de obra; afinal milhares de homens e também mulheres foram enviados para
atuarem contra o Eixo. Assim, imigrantes como Helena, conseguiram postos de trabalho,
sem grandes dificuldades.
José Bartolomeu e Helena ficaram apenas por um ano nos Estados Unidos, e não dois
anos conforme planejado. Helena evitou filhos, com o desejo de realizarem as aspirações
profissionais, em especial do esposo, uma vez que o acompanhava em sua trajetória médica.
Sobre evitar filhos neste período, Helena relata a dificuldade em conseguir os
contraceptivos: “Nós buscávamos remédios fora, porque aqui não tinha. Porque ele era
médico e eu era farmacêutica. Então, nós conseguimos fazer alguma coisa, porque era
difícil.” (GRECO, Helena 1995, p. 14). Joana Maria Pedro, ao resgatar a memória de
mulheres de duas gerações distintas, nascidas nas décadas de 1920 e 1930, e de 1940 e 1950,
classe média, moradoras de Florianópolis, focaliza a experiência dos métodos contraceptivos
no Brasil, a partir de um viés político internacional, como a Guerra Fria que intervinha na
vida privada.9 Pedro esclarece que o comércio da pílula anticoncepcional teve início no
Brasil em 1962. Porém, destaca que foi em instituições estrangeiras que os médicos
brasileiros,
7
Mais adiante, durante a entrevista, Helena lembra-se do curso Public Speaker, traduzido por ela como um curso
de Oratória. Vide Entrevista, fita idem.
8
9
OLIVEIRA. Ana Maria Rodrigues de, op. cit. p. 24.
PEDRO, Joana Maria. A experiência com contraceptivos no Brasil: uma questão de geração. Revista Brasileira
de História, São Paulo, v. 23, n. 45, p. 239-260, 2003.
brasileiros, nos anos 1950, buscavam informações sobre a contracepção, uma vez que até a
década de 1960 tais métodos não eram ensinados nas faculdades de Medicina do Brasil10. Há
que se notar que Helena e José Bartolomeu faziam uso de medicamentos, já no final dos anos
1930. Porém, a profissão de ambos e, possivelmente, o fato de seu marido possuir um
laboratório clínico facilitasse a vinda ou até mesmo a elaboração de algum medicamento para
inibir a gravidez. Após oito anos de casamento e o retorno ao país, para passar o Natal,
Helena sente os primeiros sinais da gravidez no Rio de Janeiro: um desmaio. Ela assim
descreve:
Eu acho que a mulher tem o direito de escolher. Não tinha calculado, nem nada não. Mas,
o que é fato, é que quando nós estivemos aqui na véspera de Natal eu tive o primeiro
sintoma de gravidez [...] O primeiro filho é uma sensação que eu não esqueço [...] Ah! De
me ter completado como mulher, não é? As duas meninas, a Marília foi planejada também,
mas a Heloísa escapuliu. (GRECO, Helena, 1995, p. 14, grifo nosso).

Helena faz parte de um contexto no qual a maternidade era um caminho inevitável para
uma mulher casada. Sua fala nos incita a indagar quantas vezes lhe foi cobrado um filho, um
neto ou um sobrinho? Afinal, estamos transitando em períodos que a maternidade era uma
obrigação, mais do que uma vocação e muito menos que uma opção. O casal optou pela espera
e, possivelmente, sofreu as pressões de uma época; inclusive, podemos crer, o próprio
José Bartolomeu, em sua masculinidade enquanto procriador.
Elisabeth Banditer ao escrever sobre o amor materno esclarece que este amor não é
inerente e que a sociedade, a cultura e o contexto histórico foram grandes contribuintes na
tentativa de atribuí-lo à mulher e, mais tarde, relacionando-o à natureza feminina, que
inscreveu sobre seus corpos o destino materno.11 Helena refere-se a essa coroação do ser
mulher, o encerramento deste ciclo com o advento da maternidade. Essa sensação do primeiro
filho que não esqueço conforme se referiu; o primeiro filho e ainda homem, Dirceu
Bartolomeu Greco nasceu na conjuntura da geração baby boom ou geração pós-guerra.
Helena e seu esposo planejaram para que ele não nascesse nos Estados Unidos segundo
relata; queria que fosse cidadão brasileiro. (GRECO, Helena, 1995, p. 14). Três anos e meio
após veio Marília Greco, segundo Helena também planejada uma vez que estava “querendo
mesmo mais um e o Greco estava na dúvida. [...] Das duas uma: ou você arranja um filho ou
vamos ter que mexer no seu útero, porque ele estava virado. Então, eu fiquei grávida e,
realmente, não precisou fazer a cirurgia. Nasceu a Marília.” (GRECO, Helena, 1995, p. 17).
Uma próxima gravidez viria meses depois do nascimento de Marília. Helena tinha feito uma
viagem e não se sentia tão mal como nas outras gestações, mas, segunda rememora “depois
eu comecei a sentir uma coisa. Falei: eu estou com a menstruação atrasada. Fui fazer os
exames e

10
PEDRO, Joana Maria. A experiência com contraceptivos no Brasil: uma questão de geração. Revista
Brasileira de História, São Paulo, v. 23, n. 45, p. 243, 2003.
11
BADINTER, Elisabeth. Um amor conquistado: o mito do amor materno. Rio de Janeiro, Nova Fronteira, 1985,
p. 17.
exames e estava grávida outra vez. Achei muito bom.” (GRECO, Helena, 1995, p. 17). Pouco
mais de um ano após o nascimento de Marília, nasceu Heloísa Greco. Helena, após o
nascimento de Dirceu, trabalhava sem horário no laboratório de seu esposo. Após o
nascimento das filhas, voltou-se mais para a criação destes, uma vez que a diferença ente os
três era pequena. A imagem abaixo mostra esta composição familiar.

Figura 1 – Helena Greco e José Bartolomeu Greco com o filho Dirceu Greco, e filhas Marília Greco
e Heloisa Greco (ainda bebê). S/d

Fonte: Arquivo IHG.

Helena criou os filhos dentro da religião católica, segundo narra: “Eu peguei e fiz o seguinte:
eu botei os meninos no catecismo, eu batizei, primeira comunhão, crismei e os deixei escolher. As
meninas saíram muito primeiro que o Dirceu...” (GRECO, Helena, 1995, p. 30). A narrativa de
Helena, demonstra a complexidade do ser mulher de uma família católica, estudante de um colégio
de freiras, mas que teve acesso a leituras e culturas que lhe proporcionaram outras visões de mudo.
Transgredir completamente a ordem social, para uma mulher da elite, seria quase impraticável para
a época. Assim, é compreensível que Helena negociasse pequenas transgressões. Ao mesmo tempo
em que não era ligada às questões religiosas no período do colégio, ganhou todos os prêmios de
religião, ao mesmo tempo que não quis casar na Igreja, casou em casa recebendo o sacramento por
um padre e vestida de noiva e, por fim, batizou os filhos, mas permitiu que escolhessem continuar
seguindo a religião católica ou não. Portanto, quando Helena revela que “eu tive uma época de
exaltação espiritual, sabe? [...] eu acho é o seguinte: dentro das minhas... preocupações imediatas,
a questão religiosa não figura não” (GRECO, Helena, 1995, p. 30) possivelmente esta reflexão
sobre o passado possui posicionamentos atuais, como já mencionamos. Indo na mesma perspectiva,
a expressão lugares da memória criada por Pierre Nora nos parece sugestiva. Por lugar de memória
entendemos que são “antes de tudo restos, ou seja, fragmentos do vivido, onde passado e presente
situam-se lado a lado numa dinâmica onde o que está em jogo é a memória ou a disputa
desta.12 Helena ao falar sobre religião possui também seu olhar e posicionamentos do presente
e do vivido em sua trajetória. Portanto, reconhece que em algum momento esta foi
importante, mas, há que se notar que ela não fala uma determinada religião e sim em uma
exaltação espiritual, o que não é equivalente; afinal anteriormente em uma de suas narrativas
já havia distinguido fé e religião.
Os filhos narram a complexidade desta temática; todos estudaram em colégios
católicos. Dirceu conta que após dezessete anos de estudo no Colégio Loyola de padres,
passou no vestibular em Medicina e ao sair do país após formar-se comprou seu primeiro
botton, no qual estava escrito: eu sobrevivi à escola católica. (GRECO, Dirceu, 2016, p. 14).
Marília relembra que a mãe, durante as reuniões de Colégio, passava por algumas situações:

Ela ia nas reuniões e ela não tinha religião e ai ela sentava lá com aquelas madames né?
[...] Nem são madames são senhoras. E aí elas falavam Dona Helena aonde a senhora faz
adoração? [...] Aí... ela falava: eu faço aqui na Igreja São José. Aí a moça: mas lá não tem
adoração e eu ficava muito envergonhada. Pensava cá comigo minha: mãe é muito doida
(risos) porque ela inventava. (GRECO, Marília, 2016, p. 6).

Possivelmente para evitar falatórios, Helena criou esta história para sua interpeladora.
Afinal, sua filha estudava em um colégio confessional católico, o que subentendia que seus pais
professassem a religião da instituição. A trajetória de Heloisa foi um pouco diferente, dentro do
colégio católico, sendo expulsa em determinado momento:

Lá em casa não tinha esse negócio de reza, embora a gente tenha sido educado dentro da
questão do catolicismo. Eu estudei no colégio das Irmãs Salesianas, que é ao lado
praticamente ali de casa, que é Colégio Pio XII. Acabei sendo expulsa desse colégio
(risos), mas estudei lá. A formação muito rígida, um negócio pesado, mas eles nunca
tiveram isso; é muito diferente dos irmãos e das irmãs dela. As irmãs dela tinham esse
negócio de ir à missa, de comungar. Eles não tinham isso, não tinha esse negócio de reza
lá em casa. (GRECO, Helena, 2014, p. 4).

Enfim, Helena faz parte da elite belorizontina e colocar os filhos em bons colégios, nos
indica ser uma prioridade. Bons colégios e de renome estavam ligados à religião, sobretudo católica.
Conta-se, ainda, a boa experiência que Helena teve no colégio Santa Maria. Possivelmente, estes
fatores contribuíram para que Helena e José Bartolomeu optassem por estas instituições
confessionais.
As filhas relembram o quanto a mãe era excelente nos afazeres domésticos, mas, não
gostava. Segundo Heloísa, sua “mãe era uma dona de casa fantástica. Ela sabia fazer de tudo.

12
NORA, Pierre. Entre memória e história: a problemática dos lugares. Projeto História Revista do Programa de
Estudos Pós-Graduados em História. PUC-SP. São Paulo, n. 10, p. 7-28, dez. 1993. P.12-13. Disponível em:
https://revistas.pucsp.br/index.php/revph/article/view/12101/8763. Acesso em: 22/03/2015.
Cozinhava bem, bordava bem, fazia tudo bem, mas não gostava, ela não gostava... (risos) mas fazia
tudo.” (GRECO, Heloisa, 2016, p. 6). Marília reafirma em sua entrevista a fala de Heloísa e
acrescenta que sua mãe dizia: “Não entra aí não. Se você entrar aí você não vai sair” (GRECO,
Marília, 2016, p. 4). (sobre as filhas entrarem na cozinha). Marília ainda lembra que Dirceu era
mais livre que as meninas. “E seria até pedir demais se não o fosse por causa da época.” E continua
exemplificando:

Meu pai foi fazer um pequeno curso na Europa e eles ficaram fora dois meses, mas mamãe
foi junto. Ela deixou eu e Heloisa no colégio interno e meu irmão foi para a casa de minha
tia. Mas, ela desmontou toda a motoca dele; não sei o que isso quer dizer, talvez excesso
de zelo. (GRECO, Marília, 2016, p. 4).

Helena como leitora voraz também incentivava seus filhos à leitura, definindo livros para
cada fase de crescimento. Heloisa resgata esta memória de sua infância e de seus irmãos:

Monteiro Lobato todinho... Então isso não teve, assim, não é um clássico lá... Teve um
outro passando para a adolescência, na minha puberdade, que ela e meu pai colocaram na
minha mão. Foi o Winnetou do Karl May. [...] Machado de Assis, até Thomas Mann. Ela
tinha mania de um livro, de uma obra específica do Thomas Mann que é José e Seus
Irmãos que eu sempre lembro quando eu leio ou releio. E vai por aí afora. (GRECO,
Heloisa, 2016, p. 8).

Além da leitura, Helena era apaixonada por cinema. Chegou a conhecer Walt Disney,
quando esteve nos Estados Unidos, em um evento que contava com a presença de Carmem Miranda
e o Bando da Lua. Na infância de seus filhos, Dirceu, Marília e Heloisa relembram as tardes no
cinema. Heloisa recorda “eu pequenininha, sete ou oito anos, e ela levava a gente pra assistir três
filmes de uma vez, três sessões [...]. Ela sabia tudo de cinema, era capaz de falar o elenco inteiro,
inclusive do pessoal que era elenco de apoio.” (GRECO, Heloisa, 2016, p. 6). Marilia conta que a
mãe assistia todo tipo de filme bom ou ruim. E seu irmão Dirceu, também se recorda das tardes no
cinema o quão era divertido. Para Marília, sua mãe era uma apaixonada pela literatura e cinema e
também todos os filhos se recordam da mãe com o livrinho de palavras cruzadas que José
Bartolomeu importava em inglês, feitas com tranquilidade. Uma vida cercada pela paixão pelos
livros, cinema, palavras cruzadas e pela música. Mas ainda bordava e cozinhava, mas não gostava;
assim Helena é revisitada pelos filhos. Marília nos convida à reflexão ao rememorar que “seu pai
não gostava que ela entrasse na cozinha. Ele achava que ela era muito inteligente para ficar lá.”
(GRECO, Heloisa, 2016, p. 9). Mas, entrou várias vezes até obter ajuda de uma parenta próxima,
que foi uma espécie de governanta da casa por alguns anos. Uma mulher culta que se adequava a
normas sociais, com pequenas transgressões cotidianas. Uma mulher de uma classe social
privilegiada, a mulher de um pioneiro na imunologia-alergia na América Latina, da década de 1940.
Uma vida de poucas amigas, um pouco solitária, talvez por sua erudição. A filha caçula diz em sua
entrevista:
Eu acho que essa perspectiva humanista já proporcionava uma certa visão de mundo que
é diferente. Então, ela sempre foi muito intelectualizada [...] uma figura um pouco peculiar
mesmo. [...] Eu me lembro da vida dela. Ela tinha realmente uma turma de mulheres com
as quais ela compartilhava algumas coisas. A minha mãe nunca foi uma pessoa de ter
amigas de visitar, de tomar chá, de fazer compras. Ela não tinha essas histórias, entendeu.
E eu acho que ela se sentia sozinha mesmo. (GRECO, Heloisa, 2016, p. 12).

“Esta solidão talvez fosse preenchida pelas trocas entre o casal, uma companheira muito
próxima de papai se davam muito bem”, narra Dirceu Greco (2016, p. 14). Ou como lembra Marília:
“Eles tinham uma afinidade intelectual muito grande. Era um casal ligado no mundo das ideias.
Nunca brigaram. Tinham um carinho muito grande um com o outro.” (GRECO, Marilia, 2016, p.
9). A filha caçula Heloisa expõe: “Nunca assisti profusão de beijos e abraços entre meus pais. Mas
o companheirismo deles era uma coisa muito concreta; quase podia pegar com a mão. Era um
negócio impressionante! Eu nunca vi os dois brigarem.”(GRECO, Heloisa, 2016, p. 8). Um casal,
sobretudo ligado pelo gosto da leitura, das viagens, da música. Na esperança que a filha caçula se
tornasse pianista, José Bartolomeu encomendou de Hamburgo, na Alemanha, um piano da marca
Steinway, renomada por sua qualidade. Heloisa não se tornou pianista profissional. Seguiu carreira
acadêmica cursando História. Entretanto, no período universitário, o piano também foi um motivo
para levar seus amigos e de seus irmãos para sua casa. Havia um ambiente na casa, uma espécie de
sala de estudos e ali os filhos do casal também recebiam amigos. Helena sempre compartilhava
ideias e opiniões com os jovens universitários dos anos 1970. Heloisa relembra:

Foi reformada [a casa]. Eles fizeram uma, embaixo, que lá é uma casa de um pavimento
só. Tem um mezanino onde tem os quartos. Mas tem embaixo da casa uma sala muito
grande que era a sala de estudos, que era só para eles; para a gente não. O pessoal ia lá
estudar, às vezes pessoas que nem eram colegas mesmo, por exemplo. Eu tinha três
grandes amigos, mais ou menos em 68, 69, 70, sobretudo 69, 70, que eram estudantes de
Medicina, que iam para lá estudar também, entendeu? Eu não fiz Medicina. Meu irmão
fez e já tinha formado. Embora eles não eram amigos do meu irmão; eles eram meus
amigos, então tinha esse vínculo também, entendeu? [Helena] interagia muito com eles.
Eles gostavam muito dos dois. (GRECO, Heloisa, 2016, p. 10).

Neste período, Heloisa fazia parte do movimento estudantil e se aproximou do Grupo


Centelha. Sua participação neste grupo, segundo relata, foi periférica, mas seus pais sabiam e
amigos seus frequentavam sua casa. Além de receber amigos para estudos, eram realizados saraus
onde declamavam poesias e ouvia Helena e Heloisa tocarem piano. Também eram realizadas as
macarronadas que se tornaram conhecidas entre familiares e amigos. Estas eram realizadas,
semanalmente. O dia da semana de sua realização variou de acordo com a necessidade do casal que
observava sua casa cada vez mais repleta de pessoas. Heloísa e Marília recordam deste evento,

Lá em casa acabou sendo até um centro de encontro dos próprios familiares, meus tios.
Minha família da minha mãe é numerosa. Então eles iam lá. Minha avó materna, que era
Josefina, morou lá também. Então essa macarronada ao menos já existia. Tinha amigos
que chegavam, amigos dela também, embora meus pais nunca foram essa coisa de sair, de
acontecer, nada disso, mas tinham alguns amigos fiéis. (GRECO, Heloisa, 2016, p. 12).

Helena parecia interagir muito bem com pessoas da geração dos filhos. O segundo
marido de Marília já era amigo de Helena bem antes de Marília o conhecer. Helena e o
jovem rapaz conversavam e trocaram livros de Marcel Proust e James Joyce.13 A vinda dos
amigos de seus filhos para o estudo, as macarronadas, os amigos de outra geração que Helena
foi conquistado através do hábito da leitura, as trocas de experiência, foram dando elementos
para a mulher que buscava algo, além da esfera doméstica. Incentivada em vários aspectos por
seu esposo, pela vivacidade de seus filhos, Helena foi acumulando sonhos, vontades que se
desembocam em um único dia, mas que fazia parte de um longo processo. O fio geracional
que estabelecia uma conexão com seus filhos, amigos destes e amigos mais jovens que
Helena, foi conquistando e girando em torno de interesses comuns, que até certo ponto eram
distantes de sua geração biológica.
Heloisa faz uma observação importante a respeito da mãe:

E eu me lembro uma vez... Acho que foi no processo mesmo, que ela estava já na
menopausa e tudo. Eu me lembro que ela passou por um processo de depressão muito
grande que tem a ver com essa parte fisiológica, mas tem a ver também com a maneira,
essa certa solidão existencial que ela tinha aí.
E a partir desse momento eu não vi mais nenhum tipo de sentimento dela nessa
perspectiva. Então, ela começou a construir uma vida de militância muito consistente e
muito consciente. (GRECO, Heloisa, 2016, p. 12).

A esta solidão existencial, soma-se ao que Marília se referiu como solidão povoada
(GRECO, Marília, 2016, p. 4). E Dirceu apontou como “ela não gostava de gente, mas gostava de
ajudar gente.” (GRECO, Dirceu, 2016, p. 4). Nos indagamos: que tipo de gente ela se afastava?
Possivelmente os de sua geração, sobretudo mulheres que como ela foram educadas para serem
mães, esposas, enfim “rainhas do lar”, abrindo mão de desejos e anseios em prol da família. Toda

13Valentin Louis Georges Eugène Marcel Proust foi um escritor e poeta francês. (1871- ). Considerado um dos
pais do romance moderno. De origem abastada, de 1908 até sua morte, Proust levou uma vida retirada e
escreveu uma série de romances em sete partes intitulada Em busca do tempo perdido. James Joyce
(1882-1941) nasceu em Dublin, na Irlanda, em 1882. Filho de rica família católica recebeu uma rígida
formação com padres jesuítas, contra a qual mais tarde se rebelou. Foi aluno da Universidade de Dublin, onde
estudou inglês, francês e italiano. Participou de grupos de literatura e teatro. Autor de "Ulisses",
considerada a obra que inaugura o romance moderno e uma das mais importantes da literatura ocidental.
esta composição exposta até aqui demonstra a engrenagem que fará Helena se mover em um dia no
qual seu povo como se referiu aos estudantes, se viam cercados na Faculdade de Medicina e ela se
viu inspirada a levantar sua voz e deixar o piano rumo aos palanques.

BADINTER, Elisabeth. Um amor conquistado: o mito do amor materno. Rio de Janeiro: Nova
Fronteira, 1985.

BERLATTO, Odir A. Construção da identidade social. Revista do Curso de Direito da FSG. a. 3, n. 5,


p. 142, jan/jun 2009.

CASTELLS, Manuel. O poder da identidade. São Paulo: Paz e Terra, 2008.

GRIMBERG, Keila. Código Civil e Cidadania. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2001.

NORA, Pierre. Entre memória e história: a problemática dos lugares. Projeto História. Revista do
Programa de Estudos Pós-Graduados em História, PUCSP. São Paulo, n. 10, p. 7-28, dez. 1993.

PEDRO, Joana Maria. A experiência com contraceptivos no Brasil: uma questão de geração. Revista
Brasileira de História, São Paulo, v. 23, n. 45, p. 239-260, 2003.

POLLAK, Michael. Memória e identidade social. Estudos históricos, n. 10, Teoria e História. Rio de
Janeiro: Fundação Getúlio Vargas, p. 5, 1992.

PUGA. Vera Lucia. Casar e separar: dilema social histórico. In: Esboços, Revista do Programa de
Pós-Graduação em História da UFS. Florianópolis: n.17, p. 157-172, 2007.

GRECO, Dirceu. Entrevista concedida a TEIXEIRA, Kelly Cristina. Gravador digital. Belo Horizonte
Minas Gerais. 10/05/2016. Acervo da autora.

_____. Entrevista concedida a TEIXEIRA, Kelly Cristina. Gravador digital. Belo Horizonte Minas
Gerais. 10/08/2016. Acervo da autora.

GRECO, Helena. Entrevista concedida a DELGADO, Lucília de Almeida Neves; LANNA, Anna
Flávia Arruda, 1995, p. 30-42.

_____. Entrevista concedida à Revista T&D em 20 de agosto de 1994. Disponível em:


<http://www.teoriaedebate.org.br/materias/nacional/helena-greco?page=full>. Acesso em: 12/01/2016
GRECO, Heloisa. Entrevista concedida a TEIXEIRA, Kelly Cristina. Gravador digital. Belo
Horizonte Minas Gerais. 09/04/2014. Acervo da autora.

_____. Entrevista concedida a TEIXEIRA, Kelly Cristina. Gravador digital. Belo Horizonte Minas
Gerais. 10/03/2016. Acervo da autora.

_____. Entrevista concedida a TEIXEIRA, Kelly Cristina. Gravador digital. Belo Horizonte Minas
Gerais. 11/03/2016. Acervo da autora.

GRECO, Marília. Entrevista concedida a TEIXEIRA, Kelly Cristina. Gravador digital. Belo
Horizonte Minas Gerais. 10/05/2016. Acervo da autora.

_____. Entrevista concedida a TEIXEIRA, Kelly Cristina. Gravador digital. Belo Horizonte Minas
Gerais. 10/08/2016. Acervo da autora.
Clóvis Dias Massa

Primeiramente, antes de problematizar algumas experiências de criação dramatúrgica


realizadas a partir da História Oral, torna-se importante esclarecer a definição de desconstrução
utilizada, tomando como referência a filosofia de Jacques Derrida, como um trabalho que consiste
em desfazer um sistema de pensamento dominante, que resiste à tirania dos logos, onde ela se
enuncia, com a ajuda do mesmo material que se desloca. Nesse sentido, desconstruir "significa
inverter a hierarquia" (DERRIDA, 2001, p. 48), sendo proposta inventiva que interroga,
incansavelmente, os diferentes discursos que decompõe, operando, muitas vezes, no terreno da
ambivalência, da duplicidade e da dubiedade, ao não incorrer no reducionismo das oposições
binárias com as quais a metafisica ocidental está acostumada a operar, tais como "natureza/cultura,
realidade/aparência, causa/efeito, língua/fala, fala/escrita, significante/significado, homem/mulher
e por aí vai" (RAJAGOPALAN, 2000, p.121).
Operar essa inversão no tratamento dos relatos orais no campo da criação dramatúrgica
significa operar no terreno e no interior do sistema desconstruído da representação (e da
apresentação/personificação), ao decompor os discursos com os quais o ator/performer opera,
revelando seus pressupostos, mas acima de tudo seus contrastes e ambiguidades para com a história
narrada e presentificada.
Quando, a partir de 2013, a pesquisa Histórias e Perspectivas do Teatro em Porto Alegre,
desenvolvida no Departamento de Arte Dramática e ligada ao Programa de Pós-graduação em Artes
Cênicas da UFRGS, passou a ter como colaboradores não apenas artistas e espectadores, que
abordavam diferentes aspectos do teatro gaúcho através de seus relatos autobiográficos, mas
também pessoas que não eram nem artistas nem espectadores regulares de teatro, observou-se que
esses sujeitos contavam situações trágicas de vida, na maioria das vezes, muito emocionados. Face
a isto, ainda que a pesquisa tivesse como foco primordial, naquele momento, a constituição de uma
História Oral sobre a recepção do teatro porto-alegrense, a partir de 2015, a abordagem passou a
investigar também o modo como os relatos – de artistas, espectadores ou não – podiam servir de
fonte à criação dramatúrgica, ao se produzir uma ficção com base em fontes documentais, no caso,
orais. A História Oral do teatro poderia, assim, engendrar a criação a partir de sua própria temática.
No decorrer dessa nova etapa, a delimitação de um tema único tornou-se necessária para
dar uma certa unidade ao amplo espectro de fatos narrados, optando-se pelas situações de
silenciamento e de opressão. Esse critério procurou satisfazer a interrelação entre o individual e o
coletivo, de modo que as narrativas não ficassem somente no âmbito das biografias e das

* UFRGS, Doutor em Letras, apoio CNPq e Propesq/UFRGS.


subjetividades. Mas fossem consideradas em sua relação com o social. A escolha determinou, de
forma progressiva, a procura por pessoas em situação de silenciamento e opressão por gênero, raça
ou perseguição política, entre elas mulheres cisgêneras e transgêneras (travestis, transexuais),
homossexuais, negros, familiares e sobreviventes do período da ditadura.
A desconstrução utilizada como estratégia de criação dramatúrgica implicou, de
início, considerar como legítimas as narrativas dos participantes da pesquisa,1 tanto quanto os
relatos dos colaboradores entrevistados. Mais adiante, buscou apagar, na escritura teatral, as
fronteiras entrejustamente
real e a ficção, o como forma de lidar com esse limite tênue entre o testemunho verdadeiro
e as possibilidades poéticas da criação. Enfim, procurou indiferenciar a criação e o relato dos
depoentes, pensados não como discursos individuais, mas como fontes materiais a serem
articuladas em um monólogo polifônico, composto de diferentes naturezas. Para melhor
compreensão, o recorte apresentado, aqui, se refere aos dois primeiros momentos descritos.
Sem a necessidade de apresentar uma "verdade verdadeira", como no teatro documentário,
realizado em diferentes momentos por Erwin Piscator e Peter Weiss, que partia do testemunho
tornando-o documento em evidência, nosso desejo enquanto pesquisador passou a ser o de
investigar como as distintas faces do testemunho poderiam se relacionar com os elementos
ficcionais na escritura dramatúrgica.
No teatro documentário, de um lado, há o contato direto com os acontecimentos do mundo,
que se dá por meio da captura da documentação, e, de outro, a exigência da teatralização, por meio
da articulação estética desses documentos. Em nossa abordagem desconstrutiva/inventiva, os
terrenos da realidade e da ficção tornam-se instáveis quando a narrativa soma, ao caráter de
confiabilidade da testemunha, a realidade do próprio ator/performer, o que pressupõe a produção
de movimentos erráticos ao leitor/espectador, ao aumentar, segundo Derrida, a indeterminação, a
indecidibilidade e a destinerrance, enquanto possibilidades de uma ideia não chegar a um
destinatário, "de um gesto não chegar ao seu destino." (DERRIDA, 1999, p. 53).
No entanto, para se apropriar dessas narrativas, a ponto de trazer o testemunho do outro,
abordando suas histórias, seus segredos, traumas e não-ditos, para tratá-los e expô-los de maneira
respeitosa, seria preciso, em nosso entendimento, testemunhar inicialmente sobre nós mesmos, criar
um espaço de fala de nossas histórias escondidas, mostrando assim nossas próprias vergonhas, entre
as falas dos outros sujeitos. Dentre nossas próprias narrativas, surgiram relatos de abuso, violência
e desamparo, como o relato de um drama sofrido aos treze anos de idade, na tentativa de se auto-
aplicar uma injeção de penicilina, para tratar de uma doença sexualmente transmissível, contraída
em sua primeira relação sexual.

1
Além de mim e da Prof.ª Dr.ª Camila Bauer Brönstrup, líderes do grupo de pesquisa Teoria do Teatro:
História e Dramaturgia, vinculado ao Diretório de Grupos de Pesquisa do CNPq, colaboraram os bolsistas
Caroline Vetori, Jéssica Barbosa e Thiago Silva, como autores no processo de escritura.
O banheiro branco. Os azulejos brilham e emanam cheiro de alvejante. Uma pequena lasca
de mofo no canto do espelho prende minha atenção por um instante. A matéria pura e sua
natureza real e imediata. Uma lagartixa corre pelo vidro do box. Por um momento, esqueço
da seringa. Por um momento, abandono a agulha e sua ponta. Por um momento, não
percebo o frasco sobre a pia. […] Apanho a seringa que já está pronta. Seguro a barra da
camisa. Aproximo ela da minha pele. Meus pelos arrepiam. Será este o lugar certo para
aplicar? Eu não sei. Não consigo lembrar. E se eu fizer errado? Se eu fizer errado e tiver
alguma complicação? Se tiver alguma complicação eles irão descobrir. Tudo deve ser
muito preciso. Não tenho espaço para erro. Qualquer tremor da minha mão e vai tudo por
água abaixo. Se eu aplicar no lugar errado e eu tiver alguma complicação, meu pai terá
que me levar ao médico. O médico informará a ele que eu apliquei em meu próprio corpo
uma dose de penicilina. Ele irá querer saber o motivo […] Meu pai vai querer saber de
onde eu tirei isso. Ele que nem imagina que eu já tenha beijado alguém. Ele que nem
imagina que eu já tenha me tocado e tocado alguém. Ele que sequer cogita a ideia de eu já
ter tido alguma experiência sexual. Ele, submerso em seus afazeres e no cumprimento de
seu papel de pai e de homem da casa. E se ele quiser saber quem foi? E se ele me colocar
contra a parede e me obrigar a dizer. E se eu precisar dizer que este alguém não é a minha
colega que vem aqui em casa estudar matemática toda quarta-feira. E se ele me obrigar a
dizer o nome. O nome vem junto com o sexo. O nome carrega a identidade. Mas o nome
carrega também o sexo. O nome me denunciará. […] Saberá. Saberá algo de mim que eu
ainda não entendo. (In: Jéssica Barbosa, No banheiro).

Noutra narrativa, a violência física sofrida na rua, provocada pela homofobia, um dos
integrantes foi espancado por três homens que o seguiram quando desceu do ônibus; o
comportamento machista e abusivo do ex-namorado de outra participante, em seu primeiro
relacionamento amoroso. As proposições de escritura, em exercícios em primeira e terceira pessoa,
tiveram como objetivo lidar com as técnicas mais empregadas na dramaturgia atual, que se alternam
entre elementos dramáticos e épicos, acentuando o caráter rapsódico de determinados trechos, como
forma de se distanciar de situações tão próximas.

Naquele dia, ele optou por pegar um ônibus. Restavam só umas moedinhas no bolso. Ele
as contou e as entregou para o cobrador. Sentou no banco que dava para o corredor, fechou
os olhos para descansar a visão já cansada de tantas leituras. O preto do olho fechado
sugeria em sua mente uma imagem fixa de um animal. Um cão. Pedro fechava o olho e o
fitava. Com seus olhos grandes de cachorro. Uma senhora esbarrou em seu ombro e ele
acordou de súbito. Já era seu ponto. Desceu, com pressa de chegar em casa. O apartamento
ficava a duas quadras da avenida. Caminhando apressadamente na rua escura, percebeu
que não estava sozinho. Cada vez mais perto dele, três pessoas. Eram três homens.
Certamente, mais um assalto. Não tinha dinheiro, mas um velho celular. Os homens não
o queriam. Queriam a ele. Ou melhor, queriam a sua humilhação. Uma sequência de
golpes no rosto, nos ombros, no abdômen. Queriam seu nariz sangrando, sua face
desfigurada, seus músculos contraturados, queriam vê-lo implorar por clemência.
Queriam vê-lo ser cuspido e silenciado. Queriam jorrar em seu cérebro palavras de ódio.
“Esse viadinho tem que morrer”, diziam eles. “ Esse tipo de gente, essa anomalia, esse
lixo humano não merece viver.” “Tem que acabar com essa raça podre.” "Mata. Mata.
Mata ele. Ah é, viadinho, tá doendo? Não pensou na dor antes de dar o cú, né.” “Lixo.”
Atirado na sarjeta. Em silêncio, enquanto as pessoas jorravam comentários nele. “Ah,
coitado.” “Será que vai aguentar?” "Mas também, né?!” O barulho da sirene o embalou,
uma espécie de desmaio seguido de calmantes e remédios para a dor. A luz branca entrava
pelas frestas dos olhos e a pulsação aumentava absurdamente. “Será que eu estou
desfigurado?” Ele não podia ver a si mesmo. A ideia da imagem do seu rosto deformado
o paralisava em um estado de absoluta imobilidade física e mental. De olhos fechados, via
seu rosto rasgado a se metamorfosear naquela fera que o assolou em pensamento, ainda
no ônibus. Uma besta desconhecida que, finalmente, se apresentava a ele com toda a sua
fúria e ódio. Uma besta domesticada, alimentada por algo mais monstruoso que ela
própria. Domada por homens de terno e gravata, por mantos, por respeitáveis famílias.
Uma fúria e ódio legitimados pelas sagradas escrituras. Uma fúria e ódio senhores das leis.
Ele não encontrou forma de denunciar, apesar de insistir. Aconselhado a prestar BO como
assalto, pois somente assim havia alguma, mesmo pequena, possibilidade de os encontrar,
foi à delegacia. Descreveu seus agressores. Desenhou oralmente com minúcia cada linha
daqueles olhos tão nítidos em sua memória. Os desenhos ficaram empoeirados nas estantes
do Departamento de Polícia. A camada de pó também foi se instalando em sua memória
até borrá-los completamente. Uma fera desfocada que o espreita em suas caminhadas
noturnas. Grandes olhos a segui-lo, fazendo-o vulnerável. Olhos de todas as cores que se
multiplicam mais rápido que as horas. (Caroline Vetori e Jéssica Barbosa, Violência na
rua).

Entre os primeiros relatos trabalhados de depoentes de fora do grupo de pesquisa, estão o


de um professor que não denunciou às autoridades a violência familiar sofrida por um de seus
alunos, um garoto pobre chamado Andriel, que trazia a irmã muito magrela e baixinha, numa
bicicleta velha, para ela fazer aulas de teatro da escola e aproveitava e ficava na aula também. Como
ele gostava de vestir roupas de mulher e fazer as personagens femininas, a família sempre dizia que
o teatro estava tornando o menino afeminado. Até um dia em que ele contou sobre a violência do
padrasto:
Eu não acreditei. Até que ele levantou a blusa e tinha uma marca de faca. Era pior do que
eu imaginava. Ele foi esfaqueado pelo padrasto. E ele me contou que sempre era assim.
Que sempre sofria agressão do padrasto. Naquela semana, fiquei aflito. Não sabia o que
fazer. Tinha pouco tempo dando aula. Inexperiente. Sem auxílio. Conversei com meu pai
que me colocou no telefone com uma tia dele, que foi diretora de uma escola municipal
em outra cidade do interior. Ela disse que isso é muito comum de acontecer. Que existem
adultos covardes e que meu papel era contar para algum órgão de cuidado de menores.
Que aquela criança estava pedindo grito de socorro. Estava decidido a fazer isso até que
minha irmã me aconselhou o contrário. Disse que é normal crianças mentirem e que,
possivelmente, a própria criança havia se esfaqueado para falar mal do padrasto. Resolvi
conversar com a diretora do local onde dava aula. Ela me disse que conhecia sobre a
família do menino e que eram pessoas complicadas. Que ali era interior, cidade de 15 mil
habitantes, e que muitas coisas funcionavam no “faroeste"... Que eu correria risco de
vida… Que o padrasto do menino poderia me balear. (D. G.)

Um dos textos criados, tendo como fonte o relato desse professor, foi intitulado "Sor João",
no qual se inverteu a posição de quem fala, ao se reconstituir a voz do aluno:

Sor João, eu não tenho com quem conversar. Me sinto sozinho. Muito sozinho. Percebi
que desde os sete anos eu não tenho nenhum dia da minha vida em que eu fique sem
chorar. Sempre cai alguma lágrima do meu olho. Nem que seja uma só. Todo santo dia.
Às vezes eu enterro a lágrima, pra ver se brota alguma florzinha. Mas nunca brota. É
sempre uma lágrima enterrada na terra seca e só. Mas eu sempre sorrio também. Só que
nem todo dia. É normal eu não sorrir. […] Eu sou anormal, sor. É isso que o Seu Inácio
fala pra mim. Que eu sou anormal. Um dia ele me chamou de "aberração". Depois eu fui
procurar no dicionário e fiquei muito, muito assustado. Fiquei com medo de fazerem
alguma coisa comigo ou de que as pessoas tivessem medo ou nojo de mim. Eu acho que
eu escolhi o senhor pra ser meu novo pai, porque o senhor não tem nojo de mim. Você
gosta de brincar também e é o único adulto que eu conheço que ainda brinca. E o senhor
não se importa que eu use os figurinos das meninas. Será que é pecado isso, Sor João? Eu
posso parar de te chamar de Sor João e te chamar de pai? Você ainda não me disse se
aceita ou não ser meu pai. Tá dando agora uma tristeza daquelas, pai. Desculpa, Sor João.
Tá dando uma tristeza forte agora. Parece que o meu olho é um oceano inteiro pronto pra
transbordar. Tem uns caras que aparecem na televisão que andam de submarino dentro do
mar. Eu sempre fico pensando, se eu tivesse um mini submarino que pudesse entrar e
navegar dentro desse meu oceano que mora no meu olho. Quanta porcaria ele ia achar lá
dentro. Acho que meu oceano do olho é todo poluído. Era pro oceano de uma criança ser
cheio de corais e peixinhos dourados. Mas o meu só tem porcaria. Talvez latinhas de Coca-
Cola, petróleo, talvez sangue até. Mas eu não posso saber exatamente o que é, porque eu
não tenho um mini submarino. Quando a minha mãe foi morar com o Seu Inácio, eu
achava que eu era um menino bom. Mas depois eu entendi que eu sempre fiz coisas
erradas. E eu penso coisas que são pecado. Engraçado, que com o senhor eu esqueço que
todo esse meu jeito esquisito é pecado e eu me sinto livre. Sabe a minha bicicleta? Eu
inventei um nome pra ela. Andorinha. Esse é o nome dela agora. Porque eu ando nela e
me sinto um passarinho. A minha irmã disse que eu sou um retardado e que eu sou veado.
O Seu Inácio também diz que eu sou viado. Sor João, será que eu sou mesmo veado? É
pecado ser veado, Sor João? (In: Jéssica Barbosa, Sor João, 2017).

Por ter sido uma dos primeiras propostas, percebe-se a ênfase por manter a forma dramática
por meio do monólogo dramático endereçado a um interlocutor. Essa forma do discurso teatral não
mantém uma relação direta com os usos específicos da língua comum, visto que, costumeiramente,
é o diálogo que se estabelece como modelo de comunicação. Mas, no teatro, o monólogo é
considerado uma forma ambígua, até mesmo híbrida, visto que se desvia da função fundamental da
comunicação própria da linguagem e propõe um simulacro de diálogo, ao incorporar o outro.
Enquanto que o diálogo permite mensurar as diferenças que o monólogo coloca em perigo, o
monólogo mata a alteridade e a especificidade do eu. Como diz Dubor, “somente persiste nele o
silêncio. O monólogo é então o espaço perigoso de uma experimentação radical, pela qual poderia
cessar toda palavra: ele está permanentemente na beira deste silêncio definitivo.” (DUBOR, 2011,
p. 38. Tradução nossa.). Além disso, a escolha vem ao encontro da equivalência da linguagem dos
relatos orais, da mesma forma como, numa entrevista de História Oral, a retirada da fala do
interlocutor culmina na transformação da realidade do diálogo em um monólogo imaginário. Deve-
se salientar, também que, apesar da construção poética de alguns trechos, percebe-se ainda a escolha
pela manutenção da verossimilhança da situação descrita.
Diferentemente da História Oral, o lugar de fala e a legitimidade em falar sobre o outro, não
sendo o artista do mesmo gênero, raça ou classe social, é o principal desafio da representação na
atualidade. Os teatros do real, como são chamadas as manifestações que afirmam a existência real
dos seres, objetos e ações que são diretamente presentificadas e não apenas representadas em cena,
acabam por questionar as costumeiras formas e princípios éticos da representação teatral. Apesar
da crença de que o papel do artista é o de se colocar no lugar do outro, de que o relevante é a
identificação e não a identidade (HALL, 2006, p. 18), questões sobre a legitimidade em representar
personagens mulheres, transexuais ou negras estiveram presentes durante todo o processo,
ocasionadas por situações vividas por artistas que tiveram seu lugar de fala questionado por líderes
de comunidades, descontentes com o fato do homem escrever sobre a mulher, o branco sobre o
negro, o heterossexual sobre o gay, o rico sobre o pobre. O princípio de descolonização de si, que
buscou descolonizar o corpo representado nos textos, promoveu o questionamento intermitente de
parâmetros na constituição dos discursos.
Uma das mulheres transgêneras entrevistadas, a travesti Cleo, contou a nós de sua infância,
quando ainda vivia numa cidade do interior do Estado, quando não havia preocupações com gênero,
sendo bem acolhida pela família até o momento em que começou a perceber que era diferente das
meninas com quem brincava de casinha. O estranhamento fica mais acentuado quando ela se muda
para Sapiranga.

Oito, dez anos por aí, quando eu começo a perceber que algo não se enquadrava, sabe...
que havia uma maneira de existir ali… Aqui em Sapiranga era muito mais cruel. Deveria
ser mais tranquilo, porque é uma cidade, né. As pessoas deveriam ter a mente mais aberta,
mais evoluída. São pessoas mais cultas e inteligentes, veem televisão e têm acesso à
informação, né. Era para ser, só que não... Eu descobri que aqui eu teria que interpretar um
personagem. Aqui eu fingi ser um homem. Aqui eu comecei a me vestir de guri pra poder
sobreviver, e foram os dez, onze anos mais tortuosos e tormentosos da minha vida... De
eu me olhar, sabe, nos espelhos, na vitrine das lojas por onde eu passava e não me
reconhecer, sabe? Aquilo que o espelho me mostrava não era o que o interior tava sentindo
e dizendo... Era cruel... Foi horrível essa fase. Eu vivi assim, creio que deve ter dado uns
doze anos de mentira na minha vida, uns dez ou doze anos por aí, interpretando um
personagem... Que foi o tempo que eu fiz o Estadual, estudei no Instituto Estadual,
trabalhei nas fábricas de calçado, tentei seguir uma carreira na indústria corporativa, né.
(Cleo, 2017).

Uma das formas de fomentar a escritura e lidar com a construção de personagem passou a
ser a constituição de uma linguagem, baseada na própria linguagem utilizada pelos depoentes.
Nesse caso, seu relato deu origem a um dos textos mais fluentes e representativos em termos de
vocabulário e prosódia, intitulado "As Faces de Cleo”, no qual ainda se manteve o discurso em
primeira pessoa.
Sabe, teve um dia em que eu percebi que era diferente. Eu só podia ser diferente. Porque
toda aquela humilhação, toda aquela recusa, não podia ser normal. Eu não me faço de
coitadinha, entende? Até porque muitas, muitas de nós passam por isso. Mas hoje eu
entendo um pouco melhor tudo aquilo. Não que apague alguma coisa, mas, pelo menos,
eu sei que a errada não era eu. Eu vou falar assim, no feminino, porque eu sou mulher, tá?
Tá bem. Eu sei que tu sabe disso, mas, sei lá, eu tô tão acostumada a ficar me afirmando,
ficar explicando essas coisas que já é assim, automático. […] Ah, não, eu não tenho
paciência. Sabe guri, a gente tem que se unir. Mas se unir mesmo, de verdade, se não a
coisa não anda. Nós somos muito discriminadas, o tempo todo. Outro dia eu tava saindo
lá do prédio e o porteiro nem olhou na minha cara. Daí eu virei pra ele e disse: “Vem cá
hein, o senhor tem alguma coisa contra mim? Não, porque não é a primeira vez que eu
passo aqui e o senhor me vira a cara ou me dá as costas!” Desaforo, mas credo! Mas
também não me faço de coitadinha, não. Isso não. Não me faço de coitadinha, mas também
não quero que me olhem torto... Meu Deus, guri, eu falo tanto que o café já esfriou. Tá,
mas voltando um pouco no que eu estava dizendo. Teve um dia que eu percebi que era
diferente. A gente sabe desde muito cedo, mas é aquela coisa: só entende mesmo isso
quando a coisa pega fogo. E assim, né meu filho, a escola não ajuda em nada. Bom, tu
deve saber, né? A escola é uma porcaria porque não tem o que fazer. Hoje ainda se discute
mais – se bem que agora nem isso querem deixar, tá louco – mas, na minha época, era
horrível. Nós sofremos muito. Muitas de nós sofreram, todas nós sofremos pra dizer bem
a verdade. Ao menos todas as que eu conheço odiavam a escola. Eu até que gostava. Mas
quando eu fui, digamos assim, percebendo que minha fruta era outra, começou o inferno.
Porque não tinha como esconder, simplesmente não tinha como. E ninguém me ajudava.
Se eu tivesse chorando, gritando, sangrando... Ninguém se importava. Um dia, teve uma
professora que olhou bem pra mim e disse que se eu fosse mais normal, eu não iria ser tão
excluída. Dá para acreditar nisso? Ela queria que eu fosse um machinho como todos os
outros, isso sim. Um dia ainda quero encontrar aquela vaca e dizer umas boas verdades na
cara dela. Tu já pensou, se todas nós pudéssemos falar umas verdades na cara desses
merdas? Aí, que delícia, a gente ia lavar a alma! Bom, se bem que nem ia adiantar nada,
né. A gente já passou por aquilo tudo mesmo. Já foi. Mas aquela vaca bem que eu queria
encontrar. Sei lá, só pra ver a cara dela quando me visse assim, mulher. Porque nós somos
mulheres e ela precisa engolir isso, mas credo. Ai, meu Deus, não consigo mais beber esse
café, isso aqui tá frio, tá um nojo. Vou pedir outro. (In: Thiago Silva, As Faces de Cleo).
Entendendo que a questão da legitimidade do lugar de fala, no âmbito da criação
dramatúrgica, vem acompanhada da recusa dos padrões de heteronormatividade, da resistência em
dar protagonismo aos personagens masculinos, não apenas a escolha por dar escuta à mulher
transgênera, mas à cisgênera, foi uma das maneiras de lidar com esse critério. Em outro relato, o
tema da opressão foi abordada pelo silenciar da fala ou da expressão de uma jovem que nunca teve,
nos anos de convívio com os pais, a oportunidade de se expressar.

Ela envolve toda a minha vida e a minha constituição. Na minha casa, lá no início, quando
eu ainda era criança, eu me construí num padrão de família, onde não se era permitido ter
voz. Então, não era permitido a voz, a opinião, e em muitos momentos não era permitido
nem a fala. […] As cenas que eu me lembro e que me marcaram muito é de muitas, muitas
vezes, o meu pai trabalhava muito, ele estava muito fora. E quando ele estava em casa, ele
era uma pessoa dos gestos, das ações; ele não era uma pessoa da fala propriamente dita.
Então, ele ia trabalhar. Teve uma época em que ele trabalhava numa fazenda. Ele ficava a
semana inteira fora e no final de semana ele vinha pra casa. Ele vinha e trazia pêssegos pra
mim, que ele sabia que eu gostava muito. Então, o ritual era: ele trazia uma caixa de
pêssego e sentava, descascava o pêssego e ficava me dando os pedaços, mas ele nunca
trouxe palavras. E eu demorei inclusive para entender e perceber como é que isso
acontecia. Ainda hoje eu me pego, me dando conta de algumas coisas. Não era uma
situação em que ele chegava em casa e ia dizer “Oi, como é que foi a tua semana? O que
que aconteceu contigo? Como é que foi a tua escola? Me conta um pouco de ti”. Isso não
existia. […] Existia a ação, mas não existia o conforto da fala. E como não existia esse
conforto da fala, não existia emoção, não existia espaço para existir expressão. […] Existia
o preto e o branco, não existia as escalas de cinza. (E. M.)

Comparado ao universo constituído pelo pai, de falta de emoção, o papel da mãe era o de
subserviência e, ao mesmo tempo, de falta de atenção à menina, pois quando a mãe não estava
fazendo tarefas de casa, estava falando dela mesma, inclusive, da vida sexual do casal, para a filha
de seis ou sete anos de idade, queixando-se de como o convívio entre eles era ruim. Segundo a
depoente, das poucas vezes em que procurou se rebelar contra isso, quando ainda era adolescente,
na tentativa de deixar de ser apenas o repositório das queixas da mãe, esses momentos foram
completamente rechaçados pela mãe, no intuito de que fosse mantido o silêncio. Entre os textos
gerados a partir dessa narrativa, um dos mais contundentes, pela força das imagens que descrevem
a relação entre mãe e filha, com interesse em desconstruir os limites entre o real e o ficcional através
da irrealidade temporal e da condensação cronológica, é o texto intitulado “Estetoscópio”:
Meu sonho sempre foi ter um estetoscópio. Eu queria ter podido saber mais cedo que
eu tinha mesmo um coração. Tem alguém aí? Eu penso, mas já não falo. […] Percebi
que se eu chorar vocês vêm me ver. Eu já tenho três meses. Vocês acham que eu sou
doente por causa do choro constante. Me olha? Ouvi o médico dizendo que não é
nada e ele, já no carro com pressa, falou que é manhã. Eu ouvi essa palavra durante
um bom tempo, quando eu tentava. Depois eu parei de tentar. Mas demorou. Não
sei nem dizer quando isso aconteceu. Não foi um grande evento. Grande só
vivemos
vivemos o silêncio. Como um elefante denso que toma conta da casa, afunda o
assoalho velho e se instala para sempre no nosso cerne. De repente, eu deixo o sol
bater no meu rosto e não fujo do ardor. Me enrolo no edredom e sinto algo que eu
nunca senti. Parece um abraço. Começo a dormir com mais uma almofada. Uma para
a cabeça e outra para eu abraçar. E toda manhã abro a janela quando o despertador de
vocês toca e volto correndo para a cama para deixar que o sol me beije o rosto. Eu
pisco como quem busca ver melhor. Eu vejo vocês, mas e eu? Pisco novamente e
já tenho 5 anos. Onde estão meus dentes que caíram? Meu colega mostrou que a mãe
dele fez uma coleção e que a cada um ele ganhava uma moeda grande. Eu te vejo
pouco, passando correndo pelos corredores e fazendo ranger a velha casa de madeira.
Eu te vejo muito, mas tu não me vê, né? Eu te sigo em tudo que tu faz em casa, uma
mãozinha invisível que alcança as coisas e tem seus ouvidos como reféns. Eu achei que se
eu te escutasse em algum momento, tu faria isso comigo também. Tu sabe como é a minha
voz? Eu sei como é a minha voz? […] Eu sinto como se eu pudesse ficar escondida para
sempre e ninguém ia notar a minha falta, que eu posso me camuflar no sofá e virar sofá
também. Tu me fala dele. Reclama, reclama e reclama e eu não entendo os assuntos que
despeja em mim. Vou virando um recipiente fundo, um poço e quase me afogo em meio
a isso. Eu não quero saber disso. Eu juro que falo, mas nunca tenho certeza porque tu não
me respondes? Às vezes, eu queria que tu morresses. Ou ele. Mas é só às vezes. Dizem
que quando as pessoas morrem, a gente consegue conversar com elas. […] Tudo parece
tão ruim em ser adulto. Mas eu quero crescer. Sim. Gente grande tem o direito de falar, ou
ficar calado, se quiser. Vocês me ensinaram isso com os silêncios todos que me deram.
Nos domingos, sobretudo, aprendi muito. Já tenho 12 anos e descobri que tenho um
coração. Foi quando eu dei o meu primeiro beijo. Senti algo bater tão rápido que me
assustei e saí correndo do quiosque onde eu estava. Vocês nunca souberam. O beijo foi
horrível, mas saber que eu tinha coração foi incrível. Boletins e folhas de calendário vão
me mostrando que algo passa. Começo a entender algumas coisas, mas não consigo expor
elas. Tu continuas falando, falando, falando e querendo que eu seja a solução dos teus
problemas. Eu sei tudo sobre a vida de vocês, inclusive a sexual. Eu não gostaria. Começo
a ter nojo de sexo. Eu já tenho 15 anos e queria que tu soubesse que eu menstruei. Ele
percebeu e trouxe de cabeça baixa uma embalagem de absorvente. Acho que ele te contou
depois, mas ninguém falou sobre isso. Tenho vergonha dos meus pensamentos; não deixo
eles seguirem. Tenho vergonha do meu corpo e não sei se isso é normal, mas aprendi
contigo. Sabia que consegui meu primeiro emprego anteontem? Que entrei na faculdade
hoje? Que amanhã eu me formo e me mudo do país? Que depois de amanhã eu terei um
relacionamento com uma pessoa que eu amo muito? E que no mês que vem eu abortarei?
Que após 5 anos eu terei a minha casa? E que eu existo? (In: Caroline Vetori,
Estetoscópio).

Para promover a diluição da relação entre o real e o ficcional em termos formais, passou-
se, a seguir, a empregar a noção de monólogo polifônico, com vozes de diferentes naturezas. Essa
afirmação da condição, na qual o responsável pelo discurso é não exatamente um personagem, mas
um ator-performer que articula as distintas vozes, apresentando discursos orais e escritos,
estatísticas, falas em primeira e terceira pessoa, diz respeito à dimensão performativa do teatro,
bastante acentuada nos dias de hoje, e de certa forma solucionou a questão ética da apropriação e
da representação do outro, dando legitimidade ao lugar de fala, tão reivindicado e discutido em
nossos dias, quando a representação cede lugar ao real.

DERRIDA, Jacques. Mal de Arquivo: uma impressão freudiana. Trad. Claudia de Moraes Rego. Rio
de Janeiro: Relume Dumará, 2001.

_____. Sur paroles. Instantanés philosophiques. Paris: Éd. de l’Aube, 1999.

DUBOR, Françoise. Le monologue, les questions des définitions. In: DUBOR, Françoise & HEULOT-
PETIT, Françoise. Le monologue contre le drame? Rennes: Presses Universitaires de Rennes, 2011.

HALL, Stuart. Identidade cultural na pós-modernidade. Tradução Tomaz Tadeu da Silva, Guacira
Lopes Louro. 11. ed. Rio de Janeiro: DP&A, 2006.

PAVIS, Patrice. A encenação contemporânea. São Paulo: Perspectiva, 2013.

RAJAGOPALAN, Kanavillil. Ética da Desconstrução. In: NASCIMENTO, Evando; GLENADEL,


Paula (Org.). Em torno de Jacques Derrida. Rio de Janeiro: 7 Letras, 2000.
Denize Terezinha Leal Freitas

Aos quatro dias de novembro no ano de 1952, na localidade de Lajeado/RS foi levada à
pia batismal Maria.1 A primeira vista mais um registro de filho natural tão
estudado pelos historiadores, sobretudo, do passado colonial brasileiro (FREITAS, 2017). No
entanto, este registro possuía uma história mais complexa e multifacetada que ultrapassa a
discussão sobre a questão da legitimidade.
Em primeiro lugar, tal como toda fonte, este registro também tem suas peculiaridades e não
deve ser tomado como tal. Para começar, a mãe registrada no batismo é, na realidade, sua avó
biológica. E, mais ainda, o pai incógnito era um protagonista importante para entendermos os
conflitos raciais, o abandono e os conflitos de gênero nesta história.
Trata-se da problematização da história de vida de uma mulher mestiça, filha de uma
ascendente direta de imigrantes alemães moradores de Santa Clara, localizada no Vale do Taquari
com um curandeiro negro que percorria esta região. O envolvimento e o nascimento fruto desta
união desigual, aos olhos da sociedade e da família da moça, na década de cinquenta do século XX,
teve consequências contundentes no desenrolar da trajetória de Maria. Neste estudo, pretendemos
analisar o impacto e as consequências do abandono como produto dos conflitos raciais e de gênero
presentes nesta sociedade. Num primeiro momento, vamos trazer dados fundamentais da trajetória
de nossa personagem, bem como, suas próprias impressões e ressignificações, através da entrevista
oral cedida no dia 14 de maio de 2017. Posteriormente, partiremos para a análise de como podemos
evidenciar os conflitos e as marcas dos mesmos, na trajetória da vida desta protagonista e o próprio
revelar desta história após 50 anos.
Desta forma, dentre os principais objetivos desses apontamentos é, primeiramente, trazer
uma apresentação geral do contexto desta trajetória de vida. Em seguida, problematizar as marcas
dos conflitos raciais e de gênero que marcaram a vida desta mulher e de sua família. E, por fim,
realizar um apanhado breve das marcas deixadas, inicialmente, a partir dos nuances da memória.
Vale salientar ao leitor, que este trabalho de pesquisa está em processo inicial de
levantamento de fontes e análise dos dados. Portanto, trata-se de apresentar, nesse texto, as inúmeras
possibilidades de pesquisa e, sobretudo, os inúmeros questionamentos e problemáticas surgidos
durante esse primeiro passo do processo investigativo; trata-se dessa forma, de uma carta de

* Doutora em História/UFRGS. Docente da rede estadual de ensino/SEDUC-RS.


1 O nome Maria é fictício. Optamos por ocultar o nome verdadeiro de nossa personagem devido a dor e
sofrimento repwecutidas em suas memórias.
intenções. Metodologicamente, partimos de uma primeira entrevista realizada com a protagonista
e seus familiares e, também nos valemos da utilização de fontes complementares: documentação
civil e eclesiástica fornecidas pela própria família.

A descoberta da gravidez e o nascimento de Maria foi um momento ímpar para o


desenrolar da trajetória de abandono. Ao saber do envolvimento e gravidez, o patriarca da
família Richter mandou um capanga de sua propriedade pegar a criança e retirá-la da mãe. O
temor e a promessa de violência, pela parte paterna, levaram ao primeiro abandono de Maria.
Com ares pitorescos de folhetim, a menina, que segundo a constatação das enfermeiras, “ia
ficar moreninha,” tinha que ser retirada com segurança e vida do hospital.
Um funcionário da ala hospitalar do hospital, sabendo da necessidade de um casal de
adotar um filho, pegou a menina – ainda enrolada em panos sujos.2 E disse à parturiente que
daria sua filha a “gente de bem”3. Assim, escapando pelos fundos do hospital e saindo do
campo de visão paterno e de seus empregados, a criança saiu com vida para os braços de uma
família adotiva.
A mãe biológica de nossa personagem acabou se casando, nove meses após seu
nascimento, com um marido pertencente a seu grupo étnico e social, escolhido pelo pai. Ela
constituiu família, tendo três filhos legítimos, dessa união, e nunca mais teve notícias ou
procurou saber informações da primeira filha tida antes do casamento. Tão pouco, soube
qualquer notícia do curandeiro. Posteriormente, soube pelas redondezas que o mesmo
indivíduo tivera outros filhos naturais com outras moças em regiões próximas.
As informações obtidas na entrevista sobre o curandeiro foram bastante escassas, seja
por falta de dados por parte da família, ocultamento devido a origem étnica do mesmo,
“apagamento” forçado da memória pelo trauma do evento e/ou pela ênfase da descoberta
do lado familiar de origem germânica. Sabe-se que o encontro do curandeiro com a família
Richter ocorreu devido a doença que acamou um dos filhos do patriarca, tendo
dificuldades de tratamento eficaz pela medicina tradicional. A esperança de cura, através da
fama deste indivíduo pela região, aproximou-o dessa família.
A atração deve ter sido mútua e instantânea, visto a fama de ambos os envolvidos pela
sua beleza nesta sociedade; a primeira, pela beleza da aurora dos seus 15 anos e, o
segundo, pela reputação de conquistador e sedutor. O envolvimento e o contato entre
ambos devem ter sido motivo de uma situação escandalosa para os padrões de
comportamento, moral e preconceito racial presentes nestas comunidades rurais,
constituída predominantemente por descendentes de imigrantes germânicos. O documento,
a
2
Essa fala foi recorrente na memória de nossa personagem que enfatizava que sua mãe repetia esse trecho com
bastante ênfase em seu relato de como recebeu sua filha adotiva.
3 Esta expressão foi colocada pela mãe biológica, quando questionada sobre como se sentia diante do abandono
e a falta de informações da filha, durante tanto tempo.
a seguir, mostra uma reprimenda judicial proibindo a participação da mão biológica de
nossa personagem em “pagodes” nas localidades; o documento é do período de sua gravidez.

Figura 01 – Declaração de proibição da Repartição Central de Polícia

Fonte: Arquivo pessoal da família de Maria.

A acolhida de um curandeiro para necessidade e emergências parecia um negócio


promissor e ao que indicam no relato foi muito bem pago; a gratidão da família deve
ter ampliado o relacionamento. Porém, a perspectiva de incluir na família um indivíduo
negro, pobre, curandeiro e sem paradeiro fixo deve ter extrapolado e desafiado os
padrões impostos pela família ao casamento de sua filha branca, filha de proprietário
abastado, daquela comunidade.
A segregação racial da mãe biológica de Maria com o curandeiro, não se dá apenas
nas circunstâncias de seu nascimento advindo de uma união desigual entre seus pais. A adoção
também se revelou um local de continuidade velada dos conflitos raciais e, também, de
gênero. Apesar dos cuidados e da educação dada a Maria, a entrevista revelou fortes
indicativos de que mais uma vez existiam diferenças indeléveis, entre a nossa protagonista e
seu seio familiar.
A posição adotiva de nossa personagem sempre era reforçada nos pequenos detalhes
do dia a dia e marcou sua trajetória de vida, tanto que podemos perceber em seus relatos
em situações reforçadas, como: “eu era a última a cumprimentar as primas e tios e tias, e
quando estava a frente tiravam a mim com um braço e abraçavam a outra”. Também houve
relatos de reclamações da mãe adotiva por tê-la criado e, pelo fato da mesma ser a marca
indelével da sua incapacidade de gerar prole consanguínea.
As condições de vida na nossa protagonista foram repletas de desafios. Além disso, muitos
destes surgiram no momento do próprio nascimento. Dentre os inúmeros problemas de ordem racial
e de gênero, a priori classificamos três aspectos gerais que podem dar uma ideia do contexto social.
Desta forma, classificamos em quatro pontos:
 Período histórico: 1950-1960;
 Local: interior de Santa Clara – área de imigração alemã X população local;
 Diferenças sociais: mulher branca, abastada e de família de imigrantes X homem negro,
curandeiro e nômade;
 Contexto histórico-social: conflitos raciais, conservadorismo, submissão da mulher e
machismo (conflitos de gênero).
O período histórico e o local possuem características particulares que acentuam os
problemas de gênero e racialidade. Em primeiro lugar, a década de 1950, no Brasil, é marcada por
uma onda conservadora no que tange ao papel da mulher na sociedade. A vida doméstica e a
educação dos filhos deveriam ser o abrigo de toda mulher dita “descente” e moralmente educada.
Além disso, o próprio divórcio e a liberdade sexual feminina serão ainda um tabu para esta
sociedade extremamente misógina e conservadora.
A ideologia patriarcal, que estruturava as relações conjugais e familiares, desde o tempo
em que o Brasil era colônia portuguesa, conferia aos homens um grande poder sobre as
mulheres, justificando atos de violência cometidos por pais e maridos contra filhos e
esposas. Nascida do estilo de vida das minorias dominantes, essa ideologia acabou
influenciando todas as outras camadas da sociedade, disseminando entre os homens um
sentimento de posse sobre o corpo feminino e atrelando a honra masculina ao
comportamento das mulheres sob sua tutela. Assim, cabia a eles disciplinar e controlar as
mulheres da família, sendo legítimo que, para isso, recorressem ao uso da força. (LAGE;
NADER, 2012, p. 287).

A espacialidade onde aconteceu este relacionamento amoroso e, posteriormente,


o nascimento da nossa protagonista era uma área repleta de conflitos étnicos, visto que eram
áreas rurais bastante isoladas dos lócus urbanos, onde uma parcela da população significativa
era formada por homens e mulheres imigrantes. O distanciamento e convivência entre a
população local e esses grupos de imigrantes alemães eram mediados pelo conflito, sobretudo,
envolvendo o acesso à terra, conforme estudo de Tramontini (2000).
Destacamos o fato de que, mesmo diante da segregação racial verificada neste caso
pela violência aplicada ao nascimento de Maria, há fortes indícios de que, na prática, nos
locais de sociabilidade, tais como: bailes, festas locais, pagodes, etc., o encontro e
envolvimento entre pessoas de diferentes origens étnicas aconteciam naturalmente. Porém,
quando se tratava de questões como: casamento, reprodução familiar e territorial, o
distanciamento e a endogamia étnica eram características marcantes nas práticas sociais.
O contexto social e as diferenças étnicas entre os envolvidos serão o principal
fator desencadeador da violência. A diferença étnica e a desigualdade social marcada
entre o casal constituído por uma mulher branca, abastada e vinda de família de imigrantes
alemães com um homem negro, pobre, nômade e curandeiro irão significar o
complemento ideal para que os conflitos raciais e de gênero culminem no desenrolar dos
fatos.
A falta de informação e a desvalorização da vida do pai da protagonista, também nos
chama a atenção. A ausência do outro lado da história, isto é, da família paterna nos
demonstra que o impacto da violência racial foi eficaz e, pior, atravessou décadas
culminadas pela negação e preocupação com esta memória e distanciamento da identidade
afrodescendente.4
A violência familiar vivenciada ao longo da trajetória de vida de Maria
levanta importantes questões sobre a sua condição de mulher negra nesta sociedade no final
dos anos 50 do século XX. Em primeiro lugar, a família materna não aceitou sua existência,
tanto que seu avô queria “livrar-se dela”, após o parto. Em seguida, sua infância dentro
da família adotiva também foi conflituosa em alguns momentos. Isto é, ela foi criada por
uma mulher que, também, deve ter sido julgada pela família por não ter tido a “capacidade
e cumprido o dever feminino” de gerar filhos5 . Duplo sofrimento e julgamento: por ser um
fruto indesejado e, também, por não ser uma filha legítima e consanguínea daqueles que a
criaram.
Além disso, percebemos que, ao longo da entrevista, a própria protagonista utiliza de
falas que buscam justificar a misoginia de seu avô materno. Ela procura respostas plausíveis
dentro do espectro moralista de sua criação e pertinente ao período histórico no qual sua mãe
viveu. Portanto, vale-se de subterfúgios como a perda da virgindade da mãe, seu
envolvimento com um “desigual”, a desobediência paterna, etc. Citamos algumas passagens
retiradas da entrevista:

 “Ela não queria dar, mas ela era obrigada a dar [a criança]”.
 “Você sabe, né? Ela acabou de ‘se perder’ com um homem que não era namorado, nem nada”.

4
Munanga (1999) identifica o quão forte e eficaz é o inconsciente coletivo de submissão ao branco. Trata-se de
sempre partir das condições culturais e do modo de vida do branco e, isto, efetivamente coloca as culturas
africanas ou afrodescentes como submissas ou secundárias ao padrão social pautado no modelo eurocêntrico
branco. Costa (1983, p. 3), já evidenciava que tal situação gradativamente busca “destruir a identidade do sujeito
negro” .
5
Neste período, a moralidade familiar e a sua aparência para a sociedade estavam todas colocadas sobre
"os ombros da mulher". A responsabilidade de prover a casa poderia e deveria ser masculina, porém o encargo
da organização e administração do lar, bem como, a educação e bem estar familiar eram atributos designados ao
mundo feminino, tal como destaca Stearns (2010, p. 206).
Noutro momento podemos verificar a violência sofrida por esta mãe. Na fala, a seguir,
verificamos que a negação imposta pela criação e aceitação desta filha natural e mestiça foi tão bem
cultivada e enraizada durante a sua vida, que ela questiona, mesmo assim, se durante o encontro
tratava-se de sua filha. E, mais ainda, reforça a necessidade de manter em segredo, mesmo passados
mais de cinquenta anos. Nesta fala podemos verificar os resquícios atemporais da violência paterna
na determinação de apagar a identidade e a existência deste acontecimento.
 “Ela me abraçou e disse: ‘Tá, então fica entre nós?’... Mas é filha, é?”
 “ ...eu dei pra gente de bem!” – a culpa.
Aqui podemos perceber a importância da resignificação da memória. Trata-se da fala da
mãe através do relato em entrevista da filha. É como se mais uma vez, pela terceira vez, houvesse
uma negação. É um reforço constante da condição de inferioridade perante a família materna e, ao
mesmo tempo, a valorização da ascendência de imigrantes alemães que agora aceitam esta filha
mestiça. Deste modo, percebermos como a memória destes fatos trazem aspectos contraditórios,
envolvendo a aceitação familiar e, também, um constante reforço dos problemas raciais e de gênero
ainda não resolvidos.

A história é a reconstrução sempre problemática e incompleta do que não existe mais. A


memória é um fenômeno sempre atual, um elo vivido no eterno presente; a história, uma
representação do passado. Porque é afetiva e mágica, a memória não se acomoda a
detalhes que a confortam: ela se alimenta de lembranças vagas, telescópias, globais ou
flutuantes, particulares ou simbólicas, sensível a todas as transferências, cenas, censura e
projeções. [...] (NORA, 1993, p. 9).

A memória familiar de nossos interlocutores, através da fala de nossa protagonista, nos


revela diversos sintomas da necessidade de valorizar a própria história e dar veracidade aos fatos
narrados como evidencias cruciais dos fatos acontecidos como nas falas a seguir: “a importância da
memória”, trata-se da fala inicial do marido ao relatar a importância de contar a própria história,
uma narrativa épica. A fala do marido de nossa protagonista, sempre enfatiza que eles tiveram uma
educação esmerada e que relatam a verdade dos fatos: “cantávamos a Marselhesa”. Vale salientar
que outra característica de gênero marcante era a dificuldade que tivemos em dar voz à protagonista.
A narrativa épica do marido estava presente, constantemente, e, quando a mesma, iria se posicionar,
havia momentos de interrupção, tais como: “Calma, eu conto melhor, meu bem”.
Como se pode perceber, este processo de análise está em fase inicial. Neste primeiro ensaio
de escrita, nos propusemos a apresentar um levantamento inicial das inúmeras possibilidades de
problemáticas trazidas a tona nesta primeira entrevista. Nossos próximos passos irão investigar,
com mais ênfase, outros membros familiares, realizar uma entrevista individual com a nossa
protagonista e resgatar a trajetória de vida deste curandeiro.
O principal ponto de consideração final deste primeiro ensaio refere-se às questões que o
mesmo levantou ao ser escrito. Muitos são os caminhos a serem trilhados e, sobretudo, a serem
estudados para análises mais profícuas e densas. Porém destacamos alguns pontos de análise para
futuras publicações e, também, para os novos pesquisadores que pensam em tratar da mesma
temática.
Dentre elas, citamos a necessidade de pensar a história da violência dos mestiços,
questionando quem eram e como viveram os filhos resultados de uniões interétnicas! De que forma
resolveram ou não seus conflitos de ordem racial e de gênero na sociedade em que viviam?
Questões que permitem problematizar o envolvimento entre brancos e negros e relativizar a real
prática da segregação e endogamia étnica, nessas comunidades de migração.
Outro aspecto que pretendemos analisar é o porquê da violência e negação da cultura
afrodescendentes persistente até hoje. São evidencias deixadas ao longo da entrevista, pela ausência
de informações da trajetória de vida do curandeiro, e da supervalorização da ascendência germânica
da família. A pesquisa ainda precisa de mais suporte teórico para auxílio na análise e, sobretudo, a
carência de respostas sobre quem era esse homem negro curandeiro e como se deu a sua trajetória
de vida.

COSTA, Jurandir Freire. In: Tornar-se negro: as vicissitudes da identidade do negro brasileiro em
ascensão social. Rio de Janeiro: Graal, 1983.

FREITAS, Denize Terezinha Leal. Para além do matrimônio: formas de união, relações
familiares e sociais na Freguesia Madre de Deus de Porto Alegre (1772-1822). Tese (Doutorado
em História) – Programa de Pós-Graduação em História, Universidade Federal do Rio Grande do
Sul, Porto Alegre, 2013.

LAGE, Lana; NADER, Maria Beatriz. Da legitimação à condenação social. In: PINSKY, Carla
Bazzanesi; PEDRO, Joana Maria. Nova História das Mulheres no Brasil. São Paulo, Contexto:
2012, p. 286-312.

MUNANGA, Kabengele. Conceitos e categorias na área do Negro e Educação. In: I Seminário


do II Concurso Negro e Educação. Rio de Janeiro: ANPED, 2001.

NASCIMENTO, Abdias do; NASCIMENTO, Elisa Larkin. Enfrentando os termos: o significado


de raça, racismo e discriminação racial. In: Revista para além do racismo: abraçando um futuro
interdependente. Estados Unidos, Brasil e África do Sul, jan. de 2000.
NORA, Pierre. Entre memória e história: a problemática dos lugares. In: Projeto História. São
Paulo, n.10, dez., p. 7-28, 1993.

STEARNS, Peter N. História da sexualidade. São Paulo: Contexto, 2010.

TRAMONTINI, Marcos Justo. A organização social dos imigrantes: a Colônia de São Leopoldo
na fase pioneira (1824-1850). São Leopoldo: Ed. da UNISINOS, 2000.
1

Carmem Silvia da Fonseca Kummer Liblik

Em 2012, o periódico História da Historiografia publicou um artigo da historiadora Sabina


Loriga, intitulado "O eu do historiador". Nele, a autora questiona qual seria a distância que o
historiador (sujeito sempre situado no gênero masculino) deveria tomar em relação ao passado e
em que medida esses profissionais projetam sobre o passado, suas próprias fantasias, seus interesses
e preconceitos. A escolha dessa pergunta, diz Loriga, visa retomar o antigo debate entre a
"objetividade" e a "subjetividade" na escrita histórica.
Esse debate é inerente ao processo de profissionalização do historiador que ocorreu em
países europeus no século XIX. Na França, Jules Michelet distinguia dois tipos de historiadores: o
cronista e o artista. Enquanto o primeiro anula-se em sua escrita, o segundo acrescenta-lhe um
pouco de si: "se há aí uma falha, devemos reconhecer que ela nos ajuda. O historiador desprovido,
que, ao escrever, procura apagar-se, não existir, seguir por trás da crônica contemporânea, não é, de
maneira alguma, historiador" (MICHELET, 2002 apud LORIGA, 2012, p. 248).
Na Alemanha, Leopold Van Ranke propôs uma concepção diferente ao trabalho do
historiador. Contra a ideia de que a história tivesse uma visão moral, Ranke defendia intensamente
o valor da imparcialidade, o afastamento das paixões e o arrefecimento do "eu" do historiador: "Eu
gostaria de apagar, de alguma forma, o meu eu e deixar as coisas falarem e fazer aparecer [...]"
(RANKE, 2002 apud LORIGA, 2012, p. 249). Ranke ainda defendia a ideia de que o passado não
fosse assimilado ao presente, que se evitassem os julgamentos e que se tirasse do passado
ensinamentos para o futuro. Livre da subjetividade do pesquisador, a história podia, enfim, aspirar
a se constituir em um saber seguro, estável, confiável e verdadeiro.
A recomendação de que o historiador deve tratar os acontecimentos do passado de forma
imparcial, distante e objetiva propagou-se nas últimas décadas do século XIX, especialmente na

* Doutora em História, UFPR, apoio Capes.


1
Recorri a entrevistas orais que realizei com historiadoras entre 2013 e 2015. Laura de Mello e Souza (USP),
Leila Mezan Algranti (Unicamp), Maria Ligia Coelho Prado (USP), Magali Gouveia Engel (UFF), Marieta de
Moraes Ferreira (UFRJ), Ana Maria Burmester (UFPR), Joana Maria Pedro (UFSC), Ismênia de Lima Martins
(UFF), Suely Gomes Costa (UFF), Maria Luiza Marcílio (USP), Maria Helena Rolim Capelato (USP), Aidyl de
Carvalho Preis (UFF), Rachel Soihet (UFF), Helena Isabel Muller (UFF, UEPG) e Maria Ignes Mancini de Boni
(UFPR) são as entrevistadas, cujos depoimentos foram analisados para atender os objetivos da pesquisa de tese.
Ou seja, os de registrar a vida, o pensamento e as práticas profissionais de mulheres que se dedicaram à produção
do conhecimento histórico brasileiro. Além delas, para auxiliar a análise e estabelecer um contraponto crítico e
comparativo das trajetórias acadêmicas, realizei também entrevistas no ano de 2015 com os historiadores
Euclides Marchi (UFPR), Sergio Odilon Nadalin (UFPR), Edgar De Deca (UNICAMP) e Elias Saliba (USP).
França. O mais metódico historiador desse tempo, Numa Fustel de Coulanges, retomou a questão
em diversas ocasiões. Na sua aula inaugural, na Universidade de Estrasburgo, invocava o combate
à tentação de "levar para o estudo do passado nossas ideias, nossos sentimentos, nossas
preferências" (HARTOG, 2001 apud LORIGA, 2012, p. 250). Ele repetiu tal argumentação em
sucessivos estudos: a história não é uma arte, também não é um tipo de anexo moral, e o historiador
devia cultivar a imparcialidade, o distanciamento e o estilo imparcial (LORIGA, 2012, p. 250).
Coulanges deixou herdeiros de seu pensamento. Charles-Victor Langlois e Charles
Seignobos passaram a repetir e disseminar as ideias do mestre. A história possui um espírito
científico e, por isso, deveria seguir todas as regras da objetividade e da imparcialidade. Para que o
passado fosse compreendido da maneira mais fiel possível, o historiador devia desaparecer, tornar-
se neutro. Assim, a profissionalização da História, no final do século XIX e o regime universitário
que selou seu desenvolvimento corresponderam a uma contenção do sujeito que fazia a pesquisa e
escrita histórica. Como afirma Christophe Prochasson, o discurso do historiador é o do distante, do
ausente, talvez o do morto. (PROCHASSON, 2002, p. 210-211)
Apesar desse discurso ter seduzido gerações inteiras de historiadores, ele encontrou
objeções. Loriga traz para sua análise a fala do historiador belga Henri Pirenne que, em 1897,
propôs a "história-narrativa". Esta, para ele, seria a escrita do passado em sua realidade viva, bem
como a única história verdadeira, alimentada pelas inquietudes do seu tempo. Uma das suas maiores
reivindicações diz respeito ao peso do presente e ao fato de que o historiador não é um sujeito
desinteressado. "Qualquer coisa que ele faça, o espírito público do seu tempo reage sobre ele. [...]
O historiador é dominado, sem perceber, pelas ideias religiosas, filosóficas e políticas que circulam
ao seu redor" (PIRENNE, 1897 apud LORIGA, 2012, p. 251).
Nas primeiras décadas do século XX, outros historiadores retomaram essa discussão. Para
o americano Charles Beard e o italiano Benedetto Croce, a história surge diretamente da vida, isto
é, só uma preocupação da vida presente pode nos levar a compreender o passado. Cada historiador
é o produto de sua época e sua obra reflete as questões do seu tempo, de sua nação, de sua raça e
do seu grupo social. Logo, para além das diferenças que regem o pensamento desses três últimos
historiadores, a visão do conhecimento histórico proposta por eles parece marcada pela lógica do
pertencimento temporal.

Hoje, nenhum estudante acredita verdadeiramente que os textos de Bossuet, de Gibbon,


de Mommsen ou de Bancroft poderiam ser reescritos da mesma maneira. Cada estudante
de história sabe que, na seleção e na disposição da documentação, seus colegas tinham
sido influenciados por suas preferências, seus preconceitos, suas crenças, suas emoções,
sua educação geral, assim como por sua experiência, em particular, social e econômica.
(BEARD, 1933 apud LORIGA, 2012, p. 252).

Nas últimas décadas do século XX, essa ideia foi retomada pelos adeptos da virada
linguística, a Linguistic Turn. Além de reforçar as características retóricas da escrita histórica, de
definir a história como um gênero específico da ficção narrativa, de avaliar as pesquisas segundo
os critérios da crítica literária, historiadores sustentaram que a narração histórica é apenas uma
projeção do pesquisador. Parte-se do princípio de que o historiador está sempre "posicionado" e,
como afirmou Keith Jenkins, cada ato de compreensão é sempre uma construção, uma
autorreferência (JENKINS, 2011). Nesse ponto da discussão, Loriga conclui que "o historiador não
é nada além do produto de suas inscrições sociais: classe social, área cultural, gênero, etc."
(LORIGA, 2012, p. 253).
Loriga aponta em sua análise uma reflexão que Smith (2003) já destacara: o gênero como
um elemento influenciador da prática histórica. Apesar de ter citado pelo menos três elementos que
subjazem o trabalho histórico (classe social, cultura e gênero), Loriga não aprofunda essa última
categoria, pois incursiona suas discussões para um possível equilíbrio entre objetividade e
subjetividade do historiador. Aliás, com exceção da obra de Smith, não se tem análises sobre as
possíveis articulações entre o historiador, a historiadora, suas obras e alguns dos registros que
atravessam suas vidas, como gênero e classe.
As análises feitas acerca da identidade do historiador, as quais partem do campo dos estudos
historiográficos e da teoria da História (CERTEAU, 2011; RÜSEN, 2002; JEKINS, 2011), tendem
a analisar os historiadores e suas obras dentro de um contexto acadêmico institucional e de espaços
sociais produtores do conhecimento histórico, como se esses lugares fossem neutros e não
atravessados pelas variantes mencionadas. Até mesmo Bourdieu (2013), que define a academia
como um campo longe de ser neutro, limita-se a identificar nesse espaço apenas as posições sociais
e os capitais culturais pertencentes aos agentes.
Trouxemos essa discussão por uma razão: como se mostrou, a noção da suposta
neutralidade do historiador é antiga e conclui-se que ela é difícil de ser alcançada não só porque
esse profissional está sujeito ao seu tempo, mas porque ele traz sua própria autorreferência ao fazer
história. Apesar desse tipo de reflexão não causar tantas objeções hoje em dia, é muito raro encontrar
análises que articulem algumas das dimensões citadas com a profissionalização, a prática histórica
e o resultado final desse trabalho, a obra. De fato, dimensões como raça, gênero, classe e geração
não são problematizadas nos estudos voltados ao campo acadêmico e às trajetórias dos sujeitos
historiadores.
É a partir dessa ideia – a dos marcadores sociais, sobretudo o de gênero – que pretendemos
verificar de que modo nossos entrevistados e as entrevistadas os percebem em suas trajetórias
profissionais. Após a formulação de tantas perguntas sobre as origens familiares, a educação na
infância e juventude, a formação acadêmica, o início da profissionalização, a conciliação entre a
vida profissional e a familiar, chegamos às últimas perguntas que geraram, sem sombra de dúvidas,
as mais complexas e diversas respostas por parte dos nossos entrevistados e das entrevistadas.
"Historiadores e historiadoras fazem História de modos diferentes"? "A ocupação das mulheres na
historiografia brasileira mudou, de alguma forma, a produção historiográfica"? "Percebem o gênero
como um dos princípios norteadores de suas vidas profissionais"?
Antes de qualquer resposta, primeiro deparei-me com um breve silêncio, acompanhado por
um sentimento de dúvida e inquietação perante estas duas perguntas. Mas, conforme os
pensamentos se organizavam e as explicações apareciam, muitas reflexões foram compartilhadas.
Cabe salientar que este momento da entrevista implicou numa mudança discursiva, uma vez que as
falas dos entrevistados se afastaram da narrativa sobre acontecimentos passados para situar-se em
um novo lugar de fala, referente a uma percepção individual e subjetiva acerca do gênero em suas
vidas profissionais.
De maneira geral, podemos distinguir duas percepções na forma como esses profissionais
pensam o gênero: temos aqueles que negam o gênero como um marcador que atravessa o "modo
de fazer história" do historiador e da historiadora; e outro grupo que, apesar das diferenças percebem
o gênero articulado à profissionalização.
Conforme alguns dos depoimentos transcritos abaixo, em relação ao "modo de fazer
história", as pessoas entrevistadas não concordam sobre haver diferenças na maneira como homens
e mulheres produzem o conhecimento histórico. Isto é, elas partem da ideia de se compreender a
pesquisa histórica em termos de "competência", e assim, tanto as mulheres quanto os homens
possuiriam a mesma capacidade. Nessa perspectiva, do ponto de vista profissional (análise de
fontes, aplicação metodológica, reflexão teórica e escrita), os relatos consideram que o gênero não
seria um registro que diferenciaria a prática histórica. A diferença começa a aparecer em suas
reflexões quando se trata da escolha dos temas e objetos de pesquisa, apontando que foram as
mulheres que trouxeram os estudos de gênero, a história das mulheres e das crianças, bem como o
mundo doméstico, aplicando em muitos casos uma mirada feminista sobre estes temas.

[...] por isso que eu te falei, esse ambiente já era feminino só que não existia uma leitura
feminista do gênero, algo que cresceu aos poucos. Hoje em dia os estudos feministas
tentam buscar esse... chegam até falar em epistemologia feminista. Para dizer a verdade,
eu não acredito nisso, mas acho que existe com certeza um recorte de gênero nas escolhas.
Há um recorte hoje pela própria conquista da mulher, dos papéis e dos lugares que
elas estão. Então, o recorte de gênero hoje é muito forte. (Ícaro).2
Eu acho, acredito que mudou muito, mudou muita coisa. As historiadoras trazem a
condição feminina. Claro que não são todas, mas eu tenho impressão que a matéria passa
a ser vista com mais simpatia. No [ ] correu tudo muito naturalmente porque eram
pesquisas sérias, eu acho que por isso. Se não fosse a pesquisa séria, a gente estava danada.
E tem mais. Tem textos de pessoas como a [ ] que entrou no campo também. A [ ] tem
um peso político enorme dentro da categoria, dentro dos movimentos associativos, dentro
da ANPUH. Uma posição política, uma posição política. O caso da [ ] também, por
exemplo, é emblemático. Décadas atrás as coisas não eram assim. As conquistas vieram
com o tempo e foram grandes. Temos que incluir a História da Vida Privada, as várias
coletâneas que a História da Vida Privada nas quais as questões de gênero aparecem. Com

2
Nesta pesquisa foram utilizados pseudônimos em substituição aos verdadeiros nomes dos
historiadores e historiadoras entrevistadas.
o tempo foi se abrindo um espaço para uma produção que olha esse mundo escondido, o
mundo do doméstico. (Cibele).
A gente até poderia dizer que a gente conhece menos historiadores. Por exemplo, na área
de gênero, eu acho que há menos historiadores. É uma área que a pesquisa foi
predominantemente feminina. (Juno).

Para Ícaro, Juno e Cibele, algumas historiadoras incluíram no campo historiográfico os


estudos das mulheres, entre outros temas da história da vida privada. Mas, ainda que o espaço
acadêmico tenha passado por um processo de feminização, não foram todas as mulheres que se
lançaram nesses estudos. Ao contrário, disseram que, inicialmente, foram poucas se comparado
com o número absoluto de pesquisadoras. Interessante notar a percepção de Ícaro: apesar de
"acreditar que existe um recorte de gênero nas pesquisas", não acredita na possibilidade de uma
epistemologia feminista. Em sequência, ele afirma que não basta somente utilizar a categoria
"gênero" ou estudar os papéis sociais e sexuais de homens e mulheres na história, e sim recolocar
as questões e construir diferenças no campo teórico e metodológico. Termina sua fala com uma
crítica, dizendo que percebe um viés feminista mais acentuado na Sociologia e na Antropologia,
pois considera que os estudos históricos acabam se limitando às descrições das relações de gênero
e papéis sociais/sexuais.
De todo modo, essas percepções indicam que a historiografia brasileira recebeu significativa
contribuição de pesquisas históricas acerca do mundo privado, da história das mulheres e, mais
tarde, do gênero como categoria analítica, em que as historiadoras assumiram um lugar de
pioneirismo. Toma-se como exemplo o periódico Revista Brasileira de História (RBH), publicação
oficial da Associação Nacional de História do Brasil (ANPUH) e que, tanto pelo nome quanto pelo
vínculo institucional, apresenta-se como representante da história enquanto campo intelectual e
profissional no país. Na década de 1980, foram contabilizados 141 artigos publicados. Durante este
período houve uma predominância de estudos em História Social (39%), seguidos pelos de História
Política (19,1%) e História Cultural (12,1%). Acompanhando uma tendência já apontada por
análises historiográficas anteriores (LAPA 1985. FICO; POLITO, 1992), a maioria desses trabalhos
se concentrou nos períodos mais recentes da história do Brasil, principalmente no período do Brasil
República, com 52,2% dos artigos publicados. As temáticas mais pesquisadas pelos historiadores e
historiadoras, no caso deste periódico, acabaram sendo as relacionadas aos movimentos sociais
(11,3%), escravidão e à transição para o trabalho livre (9,2%), história das mulheres (8,5%), história
social da família (8,5%) e história social do trabalho (7,1%), especialmente sobre o movimento
operário e os trabalhadores urbanos.
Maria Odila foi uma das pioneiras nos estudos da história das mulheres, das relações de
gênero, da politização do cotidiano e do mundo privado no início da década de 1980. Trouxe para
a historiografia brasileira uma importante contribuição ao questionar os objetos de pesquisa dos
historiadores: deveriam se preocupar somente com a organização do Estado ou poderiam, também,
incluir outras questões, como a organização do cotidiano e sobrevivência de mulheres pobres?
Maria Odila tornou possível a reflexão sobre as motivações, para muitos historiadores e
historiadoras, os estudos voltados à política, ao Estado como sendo mais importantes que os temas
relacionados à história das mulheres.

Em Cotidiano e poder, procurei documentar aspectos da organização de sobrevivência de


mulheres que viviam à margem da cidadania. Existe na historiografia brasileira um
excesso de aceitação por parte dos historiadores do que seja a construção do Estado. É
como se ele estivesse embutido como eixo principal da história. (DIAS, 2002, p. 203-204).

Outras reflexões acenam para as diferenças como historiadoras e historiadores consideram


os papéis sociais vividos por eles e o gênero como codificador das experiências sociais e culturais.
Jasão tece um pensamento breve e muito objetivo, assinalando que homens e mulheres são
diferentes, assumem os papéis de "pai" e "mãe" e, por isso, teriam preocupações diferentes. Clio
elabora uma resposta mais complexa, indicando a importância das experiências de vida e suas
articulações com o gênero. Próximo à percepção do historiador e das historiadoras tratados
anteriormente, esse modo de conceber as diferenças acaba incidindo nos olhares e preocupações
lançados à pesquisa histórica.

Enquanto mulheres sim, quer dizer, eu acho que sim, enquanto mulheres na medida em
que as mulheres são diferentes dos homens. Então, nesse sentido, eu acho que elas têm
preocupações diferentes, quer dizer, uma mulher historiadora é mãe e o homem historiador
é pai, começa por aí. Não é verdade? (Jasão).
Olha, o que eu posso dizer... Assim como na literatura, os autores sempre falam de si
mesmo. O historiador também. Ele presta atenção em coisas pelas quais ele teve
experiências. Numa sociedade como a nossa que tem estipulação de gêneros, faz
diferenciação de espaços que são percorridos por homens e mulheres, isso sempre salta
aos olhos. Mesmo com a igualdade que a gente tem alcançado com a derrubada dos muros
entre público e privado, podemos falar que ele ainda não está completamente derrubado,
certo? Esse muro faz com que meninas e rapazes tenham experiências diferentes. E essa
experiência acaba impactando a maneira de lidar com as coisas. Tenho esperança que isso
desapareça cada vez mais, mas ainda persiste. (Clio).

Na fala de Jasão não é possível ter certeza se a diferença que ele estabelece entre homens e
mulheres se dá em função das experiências sociais/históricas que cada um vive ou em função da
natureza biológica, o que demarcaria uma perspectiva essencialista. Mesmo assim, Jasão e Clio
consideram, guardadas as devidas diferenças, que as mulheres têm uma experiência histórica e
cultural diferenciada da masculina. São essas experiências, relacionadas às histórias de vida, que
tornam possível uma diferenciação no olhar e nas preocupações de cada um. Desse modo, a
existência de uma “escrita de si” nas escolhas de temas e pesquisas históricas borram as fronteiras
entre a vida do pesquisador e a suposta “neutralidade” conferida ao seu ofício. Soma-se a essa
percepção o depoimento de Maria Odila. Para ela, o historiador dirige às suas fontes seus próprios
interesses, os quais dizem respeito à maneira como ele se insere no mundo. Os fenômenos que
ocorrem na vida de cada um acabam influenciando as maneiras como são construídas as
problematizações e questionamentos às fontes.

O trabalho do historiador sempre parte da consciência possível do momento presente.


Existe sempre nas perguntas que o historiador dirige às suas fontes interesses do mundo
contemporâneo para ele. As fontes dialogam com questões específicas relativas à inserção
do historiador no mundo contemporâneo. Trata-se de um conhecimento situado no tempo.
Fenômenos do mundo atual estão embutidos no trabalho de qualquer historiador,
antropólogo ou sociólogo. (DIAS, 2002, p. 205).
Entretanto, é também verdade que certo tipo de engajamento é inerente à inserção do
conhecimento no mundo contemporâneo no processo de interpretação histórica. Sem esse
engajamento, não se faz uma história crítica, de movimentos sociais, das relações de
gênero, etc. (DIAS, 2002, p. 205).

Outras análises percebem as mesmas diferenças no que diz respeito à escolha dos temas e
objetos de estudos, mas as situam dentro de um "processo natural" de cada sexo, tendendo às
explicações de natureza biológica que tendem a um certo essencialismo. Ou seja, existe nessas falas
uma associação entre o mundo dos sentimentos e da sensibilidade com a feminilidade, e o da razão,
objetividade e "frieza" com a masculinidade. Nessa direção, Eneias apresenta uma observação
muito interessante para esta discussão. Em um primeiro momento, ele não percebe diferença porque
todos os historiadores e as historiadoras devem seguir o "método" e atentar-se à "seriedade da
pesquisa". Assim como Clio e Jasão, a diferença para Eneias começa a residir nas experiências
inerentes à vida de cada um, de modo que as mulheres podem ter preocupações diferentes às dos
homens. Mas, no final de sua análise, a diferença é apontada conforme a natureza dos sexos: as
mulheres são mais sensíveis enquanto os homens são mais frios. Concórdia também percebe que
muitos dos temas introduzidos pelas mulheres se deu por uma questão de sentimentos, próprio do
universo feminino.

Eu acho que sim. Acho que, inclusive, muitos temas foram introduzidos, que os homens
não pensavam e que agora também estão sendo obrigados a pensar. Mas é uma questão
dos sentimentos, uma questão das suas habilidades, da mulher enquanto não só como
cidadã, mas enquanto ser humano. (Concórdia).
Sim e não. Não porque elas são historiadoras. Então existe um patamar de qualidade
metodológica, de seriedade e de pesquisa que todos devem seguir igualmente. Eu diria que
não há diferença nessa parte. Sim, diferente ... eu acho que a vida nos ensina a ser
diferentes, você percebe? Então, as mulheres hoje têm grandes preocupações que as
atingem. Até porque as mulheres ficaram fora da História. Então, eu diria que ninguém
melhor que a mulher para destacar essa História. Agora, não dá para dizer que as mulheres
não tenham mais sensibilidade que os homens. Na minha concepção elas têm. E é bom
que seja assim, até porque, veja, o historiador não deixa de ser um homem e a historiadora
não deixa de ser uma mulher. [...] Então, eu digo, existe a parte toda da escolha dos objetos,
dos problemas, a forma de enxergar da mulher, a mulher tem uma visão muito ampla das
coisas e percebe mais rapidamente, muitas vezes, que os homens. Os homens são mais
frios, estou te falando pelas orientações que eu fiz, são mais frios, são mais racionais e
mais objetivos. As mulheres têm uma outra sensibilidade. Eu nunca tive um orientando
que chorou, mas eu tive muitas mulheres que choraram. Então, são experiências diferentes
de vida que por mais que você tenha aquela base que eu comentei igual, que não é
diferente, de metodologia, de pesquisa, de trabalho, de competência e de capacidade,
existe o contrário que eu acho fantástico que isso exista. (Eneias).

Considerar que a sensibilidade e os sentimentos são dimensões generificadas, ou seja, que


é uma característica própria das mulheres, não é um pensamento incomum. Tampouco acreditar
que a escolha de determinados temas históricos por parte das mulheres decorrem por elas serem
natural e biologicamente mais direcionadas ao mundo dos sentimentos. Não seria pouco provável
a ideia que estas percepções decorrem da própria divisão sexual de temas na historiografia
brasileira.
Ou seja, temas como loucura, prostituição, bruxaria, maternidade, escrita de mulheres,
saúde, sexualidade, parto, história das emoções e dos sentimentos foram inseridos na história pelas
mulheres. Como afirma Margareth Rago (1998), no artigo Epistemologia feminina, gênero e
história, é claro que muitos podem discordar da existência dessa divisão, mas é inegável que "a
entrada desses novos temas se fez em grande parte pela pressão crescente das mulheres, que
invadiram as universidades e criaram seus próprios núcleos de estudo e pesquisa, a partir dos anos
setenta". Feministas assumidas ou não, as historiadoras incluíram objetos de estudo que falam de
si, que contam sua própria história e de suas antepassadas e que permitem entender as origens de
crenças e valores, de práticas sociais e de inúmeras formas de desclassificação e estigmatização
(RAGO, 1998).
Mas há quem se preocupe em romper com algum tipo de tendência essencialista como
explicação para a escolha de temas históricos. Terpsícore, assim como seus colegas de profissão,
também observa a diferença ao destacar os novos temas e questões trazidas por muitas historiadoras.
Porém, ela se esquiva de uma análise que julga sexista, pois acredita que homens podem ser
femininos e voltados a uma grande sensibilidade, enquanto mulheres podem ser "duras". Acredita
também que todos nós podemos ter algo de masculino e feminino em nossos comportamentos,
equacionando as posições de gênero e sexo.

Eu acho que sim, eu acho que sim, apesar de que não saberia avaliar precisamente isso,
nesse momento. Existe um processo natural em que as mulheres podem ter trazido
questões novas. Mas, por exemplo, quando você vê livros escritos por homens que tratam
a História do Amor, a História da pobreza... tem uns que são tão femininos. E são escritos
por homens. Por isso, eu tenho horror a essa visão sexista de que “isso é coisa de homem
ou coisa de mulher”. Eu conheço homens que têm uma enorme sensibilidade feminina
para várias questões. Esse negócio de dizer que homem não chora, isso tudo é besteira, né.
E, por outro lado, conheço mulheres que são duras. Não é toda mulher que está pronta para
ser mãe. Eu acho que a sensibilidade masculina e feminina todos nós as temos, né?!
(Terpsícore).

Apesar de demonstrar consciência sobre o viés sexista adotado em muitos discursos,


Terpsícore deixa escapar a seguinte frase: "não é toda mulher que está pronta para ser mãe". Essa
frase indica as "frestas", as fronteiras ou zonas borradas que podem aparecer em nossos discursos.
Nesse caso, mesmo havendo uma preocupação em evitar análises sexistas, Terpsícore lança um
olhar essencialista sobre a relação da mulher com a maternidade. Não queremos com isso apontar
uma contradição, beirando a um julgamento de valor, mas sim sublinhar a tensão entre os discursos
naturalizados e, ao mesmo tempo, a tentativa de questioná-los e torná-los conscientes.
Dando continuidade à análise das respostas, o segundo grupo de historiadoras, em
quantidade bem inferior, respondeu que não percebe diferença entre o trabalho do historiador e da
historiadora, e não mencionaram como o gênero pode operar nesse campo profissional.

Não, não vejo. Você sabe que tem até uma linha de História de Gênero voltada para a
masculinidade. Eu acho super interessante. Creio que não tem diferença de olhar. O que
tem é que você se depara no seu departamento com algumas figuras muito machistas.
(Euterpe).
Eu não sei se tem aí uma diferença. Eu acho que não tem. Eu acho que tem bons e maus
professores, bons e maus pesquisadores, independentemente de ser homem ou mulher.
(Belona).
Eu não vejo assim uma diferença muito marcante, sabe!? Eu acredito que tem ótimas
historiadoras hoje no Brasil, como também tem homens. O que tem na grande maioria dos
historiadores é que eles raramente vão para o arquivo, então fica num ‘achismo’ danado,
sabe. Isso que eu acho um problema, mas também tem os historiadores que vão para
arquivo, né? (Urânia).

As perguntas feitas às historiadoras e aos historiadores se aproximam do polêmico


questionamento introduzido por Michelle Perrot, na década de 1980: existiria uma maneira
feminina de fazer/escrever a história, diferente da masculina? Perrot (1989) respondeu,
simultaneamente, sim e não. Sim, porque entendia que há um modo de interrogação próprio do
olhar feminino e um ponto de vista específico das mulheres ao abordar o passado. Não, em se
considerando que o método, a forma de trabalhar e procurar as fontes não se diferenciavam do que
ela própria havia feito antes, quando estudou o movimento operário francês.
Desse modo, as argumentações de grande parte dos nossos entrevistados aproximam-se do
ponto de vista de Perrot. Avaliam a história como um campo que tem suas próprias regras, métodos
e critérios de cientificidade que estariam desarticulados de qualquer inscrição social, cultural e de
gênero. As "regras do campo", a metodologia e a prática histórica seriam dotados de uma
neutralidade e objetividade, inerentes às exigências do campo científico. Além disso, é notável nos
depoimentos a presença da noção de competência. Os dois grupos responderam que "as mulheres
são tão competentes quanto os homens", indicando o quanto o lugar da diferença é primeiramente
pensado na oposição entre capacidade e incapacidade, aptidão e inaptidão, conhecimento e
ignorância.
Enquanto o segundo grupo encerrou a discussão ao afirmar que não existem diferenças entre
mulheres e homens quando fazem/escrevem história, o primeiro localiza a diferença ao destacar a
presença do gênero como categoria analítica e a escolha de determinados temas trazidos para o
campo historiográfico. A história das mulheres e das crianças, o mundo privado e doméstico, a
sexualidade, a maternidade, a loucura, a saúde seriam temas pesquisados, em grande parte, pelas
historiadoras. Para esse grupo de pessoas, as preocupações que atingem cotidianamente as mulheres
são projetadas nos olhares e questionamentos de suas pesquisas, havendo, portanto o que se poderia
chamar de um registro feminino. As razões que esse grupo oferece são duas: (1) as mulheres têm
uma sensibilidade que lhes é natural e, por isso, são direcionadas a esses temas; (2) as experiências
de vida e os papéis sociais/sexuais, atravessados pelo gênero, podem influenciar as preferências
temáticas.
Uma questão a se complementar nessa discussão é a pluralidade de percepções acerca do
conceito de gênero. Historiadores e historiadoras apresentam discursos diversificados, por vezes
confusos e até mesmo contraditórios. Noções como gênero, epistemologia feminista, papéis
sexuais/sociais, sexo, feminino, masculino e diferença são articulados de acordo com suas próprias
crenças, valores e representações. Não é o nosso propósito estabelecer um julgamento das análises
elaboradas pelas pessoas entrevistadas. Cada uma delas reflete sobre as trajetórias pessoais e
profissionais percorridas, as sociabilidades constituídas, as leituras realizadas, o tipo de
aproximação e compreensão que tiveram (e têm) com os estudos de gênero, crítica feminista e a
história das mulheres. Em muitos casos, é notória a ausência do gênero como elemento de
compreensão dos processos históricos, sociais e de vida pelos quais passaram, justamente porque
esses historiadores e historiadoras partem de outras categorias e olhares para descrevê-los.
Um exemplo disso é a dimensão de classe. Muitos desses profissionais sentem-se mais à
vontade em narrar suas histórias de vida a partir da perspectiva de classe se comparado com a
perspectiva de gênero. Enquanto a condição de ser homem ou de ser mulher é naturalizada, a
posição de classe não, pois tendem a lembrar-se de histórias de difícil superação, tanto deles quanto
de suas famílias. Ou seja, devido às origens familiares relativamente modestas, ter sucesso e
prestígio profissional foi um marco muito importante em suas trajetórias. As condições de trabalho,
a remuneração, as conquistas profissionais que lhes asseguraram uma nova e segura posição social
são apresentadas de maneira mais segura e menos naturalizada por eles. Provavelmente essa forma
de narrar a própria vida está intimamente ligada às suas orientações no campo teórico e
historiográfico. Não seria de todo impossível afirmar que aqueles que foram influenciados pela
teoria marxista e se encontram no campo da História Social são exemplo dessa interpretação.
Quando Loriga analisou o discurso de historiadores do século XX que problematizaram a
identidade do historiador, fica claro que a neutralidade é deixada de lado, pois a grande maioria
considera a influência das instituições, dos lugares de produção da pesquisa histórica, das posições
sociais ocupadas pelos agentes no campo, bem como o envolvimento deles com o contexto político
de suas épocas. São questões não naturalizadas, entendidas como dimensões que precisam ser
analisadas, contextualizadas e problematizadas. Contudo, o sujeito dessas análises é o historiador
branco, homem, heterossexual, cuja identidade é inseparável de sua obra.
Procuramos mostrar o quanto a reflexão acerca da diferença entre mulheres e homens na
produção do conhecimento histórico causa desconforto e incertezas, pois esse tipo de
questionamento confronta uma representação identitária bastante consolidada. Se num primeiro
momento a tendência é oferecer uma resposta afirmativa, em sequência percebe-se a dificuldade de
localizar e verbalizar a diferença, bem como elaborar uma reflexão sobre o campo historiográfico,
no qual noções como gênero, identidade de gênero, papel sexual/social, masculinidade e
feminilidade o transformam numa zona borrada, quiçá de múltiplas identidades.

BOURDIEU, Pierre. Homo Academicus. Florianópolis: Ed. da UFSC, 2013.

CERTEAU, Michel de. A escrita da História. Rio de Janeiro: Forense, 2011.

DIAS, Maria Odila Leite da Silva. Entrevista. In: MORAES, José Geraldo; REGO, José Marcio.
Conversa com historiadores. São Paulo: Ed. 34, 2002.

FICO, Carlo; POLITO, Ronald. A história no Brasil (1980-1989): elementos para uma avaliação
historiográfica. Ouro Preto: UFOP, 1992.

JENKINS, Keith. A História repensada. 3. ed. São Paulo: Contexto, 2011.

LORIGA, Sabina. O eu do historiador. In: História da Historiografia. n. 10, 2012.

PERROT, Michelle. Práticas da Memória Feminina. In: Revista Brasileira de História, São Paulo:
Anpuh/Marco Zero, v. 9, n. 18, 1989.

PROCHASSON, Christophe. Les jeux du « je »: aperçus sur la subjectivité de l’historien,. In:


Sociétés & Représentations, v. 1, n. 13, 2002.

RAGO, Margareth. Epistemologia feminista, gênero e história. In: PEDRO, Joana; GROSSI,
Miriam (Org.). Masculino, feminino, plural. Florianópolis: Mulheres, 1998.
RÜSEN, Jörn. Razão histórica: teoria da história: fundamentos da ciência histórica. Brasília:
Ed. Universidade de Brasília, 2010.
Elisiane Medeiros Chaves
O estudo que está sendo realizado se refere a uma pesquisa que aborda a
violência contra a mulher, tema bastante presente na contemporaneidade. O trabalho é
realizado no Mestrado em História,1 junto à Universidade Federal de Pelotas e nele
são analisadas situações de violência praticadas, na maioria das vezes, pelos companheiros
das vítimas que são réus em ações penais que tramitam no Juizado da Violência
Doméstica, na comarca de Pelotas.
No devir histórico, aos homens foram conferidos privilégios em
detrimento das mulheres,2 tendo sido construída no meio social uma cultura de
superioridade masculina que permitia, muitas vezes, que mulheres fossem tratadas com
violência para serem mantidas no espaço que a elas cabia, ou seja, o interior das casas. Aos
homens era permitido o exterior, ou naquele espaço da rua. Nessa linha de entendimento
Saffioti (1987, p. 47) assegura que:

Calcula-se que o homem haja estabelecido seu domínio sobre a mulher há cerca de seis
milênios. São múltiplos os planos da existência cotidiana em que se observa
esta dominação. Um nível extremamente significativo deste fenômeno diz respeito ao
poder político. Em termos muito simples, isto quer dizer que os homens tomam as
grandes decisões que afetam a vida de um povo.

As mulheres, na contemporaneidade, ampliaram suas esferas de atuação, têm


acesso à educação formal, ao mercado de trabalho e à participação política. Podem ter
independência financeira, escolher a profissão que querem seguir e serem ou não mães. Enfim,
também passaram a ocupar o espaço da rua.
Entretanto, há homens que parecem não terem assimilado as mudanças sociais
ocorridas e ainda sob a égide de uma cultura de virilidade e dos estereótipos de gênero,
procuram, da maneira que for, continuar subjugando as mulheres. Essa situação reforça os
números

* Possui graduação em História (2015). Atualmente é mestranda em História/UFPel.


1
Sob a orientação da Professora Lorena Almeida Gill. Possui Graduação em História/UFPel (1988), Mestrado
(1998) e Doutorado (2004) em História/PUCRS (2004). Professora Associada da Universidade Federal de Pelotas.
2
Muito embora os homens, na maioria das vezes, estivessem no comando, segundo ABREU (2013), existiram
sociedades primitivas matriarcais, ou seja, lideradas por mulheres, geralmente a mais velha. Nessas sociedades, as
mulheres exerciam o domínio sobre as relações sociais e econômicas. A autora informa que ainda existem, nos dias
atuais, organizações sociais baseadas no matriarcado, como, por exemplo, os Nagovisi, na Austrália, os Kashi, na
Índia, sendo a sociedade mais forte formada nessas bases, a tribo Mosuo, na China, com cerca de 40 mil
habitantes, sendo os homens os responsáveis pelas tarefas domésticas e comandados pelas mulheres.
Disponível.em:<http://200.129.163.131:8080/bitstream/tede/2292/1/JEANNE%20CHAVES%20DE%20ABREU.p
df >. Acesso em setembro 2016.
números absurdos 3 de mulheres agredidas e outras tantas assassinadas, na maioria
das vezes, por seus companheiros. A esse quadro estatístico, ainda devem ser
acrescentados os casos de mulheres que não fazem denúncias e que se mantêm em
relações violentas, silenciosamente.
Analisando trabalhos referentes ao tema da violência contra a mulher, foi possível
perceber que existem várias pesquisas4 realizadas com as vítimas de violência doméstica, e,
que, por outro lado, há poucas direcionadas aos agressores.
Entretanto, no combate ao fenômeno da violência contra a mulher, os agressores não podem
ser deixados de lado, pois mesmo que mulheres consigam sair de situações de violência, há homens
que não modificam seus modos de pensar e de agir e que irão continuar sendo potenciais agressores.
Saffioti (2004) não acredita em uma mudança radical de uma relação violenta quando se
trabalha exclusivamente com a vítima, a qual pode sofrer algumas mudanças, enquanto o agressor
permanece como sempre foi. Considera ainda, a mesma autora, que as duas partes precisam de
auxílio a fim de que ocorra uma transformação da relação preexistente, projetando para novas
práticas no futuro.
Pode-se compreender esses modos de pensar e agir masculinos, a partir da cultura da
virilidade, através de Corbin et al (2013), como uma construção social imposta aos homens, desde
a infância, através de um sistema de representações, valores e normas formadoras de um estereótipo
que caracteriza o homem viril como aquele que é corajoso, controla suas emoções, domina seus
medos, encara seus desafios, é belicoso, forte, honrado, firme, aquele que domina todas as coisas,
inclusive, as mulheres.
A grandeza atribuída aos homens sempre mascarou e justificou a dominação masculina.
Entretanto, o mesmo autor ensina que essas normas sociais, embora ainda sejam atuantes nos dias
de hoje, sofreram fissuras, desde o final do século XIX, uma vez que os privilégios concedidos aos
homens foram regredindo, as mulheres passaram a sofrer menos proibições e se insurgir contra a
dominação que pesava sobre elas e a própria belicosidade masculina foi perdendo prestígio. Porém,

3
No mapa da Violência 2015, Homicídios de Mulheres no Brasil consta que: “Entre 2003 e 2013, o número de
vítimas do sexo feminino passou de 3.937 para 4.762, incremento de 21,0% na década. Essas 4.762 mortes em
2013, representam 13 homicídios femininos diários”. Disponível em: <https://goo.gl/fAOxrU>. Acesso em
setembro 2016.
4
Ver, entre outras RODRIGUES, Adriana. Quotidiano de mulheres que vivenciam a violência domésticas :
contribuições para um cuidar sensível na enfermagem e saúde. Tese de Doutorado Universidade Federal da
Bahia. 2015. Disponível em: <https://goo.gl/PHT7gy>. Acesso em agosto de 2016; MOTA, Rosana. História
Oral de adolescentes grávidas em situação de violência doméstica. Dissertação de Mestrado. Universidade
Federal da Bahia”, 2012. Disponível em: <https://goo.gl/rwPt1h>. Acesso em março de 2016; RAMOS, Maria
Eduarda. Histórias de “mulheres”: a violência vivenciada singularmente e a lei 11.340 como possível recurso
jurídico. Dissertação de Mestrado. Universidade Federal de Santa Catarina, 2010. Disponível em: < https://
goo.gl/2fXqeE>. Acesso em agosto de 2016 e CORTÊS, Gisele. Violência doméstica contra mulheres: Centro de
Referência da Mulher – Araraquara. Tese de Doutorado. Universidade Estadual Paulista, 2008. Disponível em:
<https://goo.gl/tV86f9>. Acesso em agosto de 2016.
as culturas da dominação masculina e da virilidade ainda influenciam comportamentos masculinos,
e, nessa perspectiva, para Saffioti (1987), em dias atuais, existem homens que se consideram
superiores às mulheres, pois mantêm ideias impregnadas de resquícios de uma ideologia patriarcal
e machista.
A admissibilidade da violência, para manter as mulheres submissas às vontades masculinas,
já foi uma situação aceitável em diversas sociedades, porém, atualmente, essa é uma atitude que
não é mais tolerada. Em relação a não admissibilidade de se agredir mulheres, cabe comentar que,
conforme Binicheski (2010), existem países, como, por exemplo, Afeganistão, Arábia Saudita, Irã,
Marrocos – todos de tradição islâmica –, nos quais são válidas as práticas violentas contra mulheres.
Elas têm que ser submissas a seus pais e maridos seguindo padrões de uma cultura de dominação
masculina que não aceita que elas desrespeitem as regras, podendo ser punidas fisicamente, o que
não é considerado violência, mesmo que leve à morte. Ainda segundo a mesma autora, na
Indonésia, Malásia, Paquistão, Índia, além de alguns países africanos, há práticas de mutilação
genital em jovens e mulheres adultas, sendo essa mais uma forma de violência contra mulheres,
ainda vigente.
Há décadas vem acontecendo a promoção e o reconhecimento dos direitos das mulheres,
principalmente devido ao engajamento dos movimentos feministas, visando uma real equidade de
gêneros. E tendo em vista o reconhecimento da vulnerabilidade que as cerca dentro do contexto
social, foram promulgadas leis para protegê-las e punir os agressores. Mas é forçoso reconhecer
que a violência contra a mulher ainda permanece.
A violência doméstica é aquela que ocorre dentro do lar, nas famílias, podendo envolver
todos os seus membros, como pais, filhos, avós, tios e primos. A pesquisa se propõe, no entanto,
mais especificamente, a investigar a violência de gênero, que também ocorre no espaço doméstico
e que, segundo Minayo (s/d, p. 36):

Constitui-se em formas de opressão e de crueldade nas relações entre homens e mulheres,


estruturalmente construídas, reproduzidas na cotidianidade e geralmente sofridas pelas
mulheres. Esse tipo de violência se apresenta como forma de dominação e existe em
qualquer classe social, entre todas as raças, etnias e faixas etárias. Sua expressão maior é
o machismo naturalizado na socialização que é feita por homens e mulheres. A violência
de gênero que vitima sobretudo as mulheres é uma questão de saúde pública e uma
violação explícita aos direitos humanos.

O conceito de gênero passou a ser desenvolvido pelas teóricas feministas a partir dos anos
1960, a fim de compreender e responder as desigualdades sociais entre os sexos biológicos. As
relações de gênero refletem o que internalizaram mulheres e homens e se pode argumentar que a
desigualdade está presente nos processos de socialização das meninas e dos meninos, refletindo-se
nos comportamentos de ambos, na própria infância, na adolescência e quando adultos.
Gênero, conforme o entendimento de Scott (1995, p. 13) organiza socialmente a diferença
sexual: “O que não significa que gênero reflita ou implemente diferenças físicas fixas e
naturais entre homens e mulheres, mas sim que gênero é o saber que estabelece
significados para as diferenças corporais”. A respeito desses significados (SCOTT, 1995,
p.13) esclarece que eles: “variam de acordo com as culturas, os grupos sociais e no tempo, já
que nada no corpo, incluídos aí os órgãos reprodutivos femininos, determina univocamente
como a divisão social será definida”. Levando essas diferenças de comportamentos
estabelecidos socialmente, se pode compreender a desigualdade que favorece homens e
que pode levá-los a ter atitudes violentas em relação ao sexo feminino. Cabe referir que,
em 2006, foi criada a Lei nº 11.340, conhecida popularmente como Lei Maria da Penha,51
visando proteger as mulheres e punir seus agressores. Em Pelotas, as ações penais referentes à
violência doméstica, desde a implantação da referida lei, eram julgadas na 3ª Vara Criminal, o
que ocorreu até março de 2015 quando passou a funcionar, na cidade, o Juizado da Violência
Doméstica e Familiar contra a Mulher que passou a ser o órgão julgador das ações relativas
à violência doméstica que já tramitavam na vara 3ª Vara Criminal e de todas as novas ações
penais propostas a partir da data de funcionamento do Juizado, sendo, portanto, órgão que julga,
exclusivamente, todos os crimes de violência doméstica da comarca, conforme prevê a norma
legal.
O estudo que está sendo realizado tem como enfoque homens que agridem mulheres ou
que foram acusados de terem cometido agressões e que estão sendo julgados no Juizado da
Violência Doméstica, na comarca de Pelotas. A intenção é conhecer a versão que eles
apresentam para seus atos violentos.
Como através das entrevistas foram produzidas fontes orais, foi utilizado o recurso
da História Oral, a qual, segundo Selau (s/d, p. 221) é uma metodologia: “capaz de contribuir
para esta atividade de análise das memórias por intermédio das entrevistas realizadas com
pessoas de um determinado grupo, envolvido com temas de interesse para a pesquisa em
desenvolvimento”. O autor (s/d, p. 226) também reflete que “[...] a História Oral contribui
para o desenvolvimento de uma série de técnicas e procedimentos metodológicos que auxiliam
a produção do conhecimento em História”.
Foi utilizada a História Oral Temática, tendo em vista que os agressores que
participaram das entrevistas são sujeitos capazes de fornecer narrativas em relação ao tema da
pesquisa, tendo por base um roteiro de questionamentos que foi previamente elaborado para
esse fim. E, nesse sentido, foram feitas aos réus perguntas não só a respeito das situações de
violência nas quais se envolveram, mas também sobre a infância que tiveram, a vida familiar, a
convivência com amigos, enfim, sobre valores aprendidos nos seus grupos sociais, com a
finalidade de tentar compreender o que eles pensam sobre como são, ou como deveriam ser, as
relações entre mulheres e homens.

5
A Lei nº 11.340/2006 chama-se Lei Maria da Penha em homenagem à biofarmacêutica, Maria da Penha
Maia Fernandes, que tornou-se símbolo contra a violência doméstica, por ter lutado durante 20 anos para ver a
condenação de seu marido/agressor.
Esse tipo de História Oral, segundo Meihy e Holanda (2011), é sempre de caráter social e
tem como foco no projeto ser uma metodologia que busca informações sobre um determinado tema
que deve ficar bem explícito e cujas perguntas durante a entrevista devem ser orientadas para seu
esclarecimento por parte do narrador.
Pode-se afirmar que a História Oral é uma metodologia multidisciplinar, visto que atende a
vários campos de pesquisas que a utilizam, como a História, o Direito, a Sociologia, a Psicologia,
entre outros.
Um estudo utiliza a História Oral pura quando sua única fonte de pesquisa são as entrevistas.
No presente caso, é utlizada a História Oral híbrida, uma vez que as fontes da pesquisa são as
entrevistas e os processos judiciais, a fim de se contrapor as narrativas dos entrevistados com o
conteúdo que for encontrado nos autos processuais, especialmente no que tange aos depoimentos
das vítimas e das testemunhas neles anexados.
Em relação ao recorte temporal, o estudo é relacionado à História do Tempo Presente, já
que são analisados processos contemporâneos à realização da pesquisa e, também, por conta da
convivência da pesquisadora, no mesmo período histórico, com os autores das falas produzidas nas
entrevistas. Delgado e Ferreira (2013) entendem que o tempo presente refere-se a um passado atual
ou em permanente processo de atualização, que está inscrito nas experiências analisadas e que inclui
diferentes dimensões, tais como, um processo histórico marcado por experiências ainda vivas, com
tensões e repercussões de curto prazo.
Para que a pesquisa pudesse ser implementada, no final de 2015 foi realizada uma conversa
com o juiz responsável pelo Juizado da Violência Doméstica, Dr. Christian da Conceição Karam, o
qual autorizou a realização de entrevistas com os réus que se dispuserem a participar do estudo e o
acesso aos seus respectivos processos judiciais. Essa conversa foi previamente agendada com a
assessora do juiz, Laura Leal. A autorização do juiz era necessária porque essas ações penais
tramitam em segredo de justiça (sigilo processual), razão pela qual, por uma questão ética, será
mantido o anonimato das pessoas entrevistadas, as quais são identificadas através de nomes
aleatórios.
A pesquisa é realizada com réus atendidos pela Defensoria Pública do Estado,6 uma
vez que as defensoras (são todas mulheres), após tomarem ciência do conteúdo da
pesquisa, concordaram que os clientes atendidos por elas, participassem, sendo necessária tal
concordância, pois poderiam se opor a que eles falassem sobre os crimes sobre os quais estão
sendo julgados. Já os réus não foram consultados previamente pelas defensoras, porque a
grande maioria deles somente teve contato com elas diretamente no fórum, no horário das
audiências. Por essa razão, os réus participantes só ficaram sabendo do estudo, exatamente
alguns
6
A Defensoria Pública do Estado do Rio Grande do Sul é instituição permanente e essencial à função
jurisdicional do Estado, incumbindo-lhe a orientação jurídica, a promoção dos direitos humanos e a defesa, em
todos os graus, judicial e extrajudicialmente, dos direitos individuais e coletivos, de forma integral e gratuita, aos
necessitados, sendo consideradas vulneráveis todas as pessoas que comprovarem renda familiar mensal, igual ou
inferior a três salários mínimos nacionais, considerando-se os ganhos totais brutos da sua entidade familiar.
Disponível em: <http://www.defensoria.rs.def.br/conteudo/18836/apresentacao>. Acesso em julho 2016.
alguns momentos antes das suas audiências, através da própria pesquisadora, que ao
abordá-los, explicou sobre a pesquisa e os convidou a participar voluntariamente da mesma,
o que foi por eles aceito de boa vontade, uma vez que poderiam ter se negado a participar.
Não se conversou com réus que tinham advogados particulares, tendo em vista que
seria necessário abordar estes, primeiramente, antes de cada audiência, a fim de explicar a
pesquisa e solicitar autorização para que seus clientes pudessem participar, o que se considera
que poderia ser um fator complicador uma vez que só naquele momento conheceriam o
projeto e, além disso, poderiam temer que seus clientes falassem algo comprometedor para
seus processos judiciais, mesmo sendo informados sobre o uso do anonimato no trabalho.
Por outro lado, muito embora o perfil socioeconômico dos participantes da pesquisa
seja específico em vista de serem pessoas atendidas pela Defensoria Pública do Estado, cabe
mencionar que a violência contra mulheres ocorre em todas as camadas sociais, ou seja, ela
ocorre de forma difusa na sociedade, não sendo um fenômeno restrito aos mais
vulneráveis. Por vulnerável se compreende uma pessoa com trabalho precário e com poucos
apoios relacionais, conforme Castel (1997).
O procedimento utilizado para a execução da pesquisa no que diz respeito aos réus
que foram entrevistados, consistiu em um pouco antes do horário da realização das
audiências, conversar com aqueles que esperavam no corredor do Fórum, explicando a
respeito do estudo e convidando-os a voluntariamente participar da mesma. Foram assistidas
as audiências dos réus que concordaram em participar e as narrativas foram construídas em
uma sala reservada do Fórum, tendo as mesmas sido gravadas, mediante o uso de dois
gravadores. Utilizou-se um roteiro básico de perguntas, como é próprio da História Oral
Temática. Todos os participantes assinaram um Termo de Cessão.
A receptividade dos réus foi expressiva, pois de 20 abordados, 18 foram
entrevistados, sendo que dois se negaram a participar alegando não ter tempo para ficar depois
de suas respectivas audiências. Em relação aos que se dispuseram a ser entrevistados, é
possível comentar que eles responderam todas as perguntas e pareciam estar à vontade
durante a conversa. A impressão é de que foi um momento em que refletiram sobre fatos de
suas vidas, como, por exemplo, quando falaram sobre as dificuldades da infância (alguns
choraram ou era visível que seguravam as lágrimas durante essa parte de suas narrativas),
ou sobre o que pensavam sobre relacionamentos, já que disseram nunca ter refletido muito
sobre esses assuntos anteriormente.
Esse estranhamento dos réus, ao serem inquiridos a respeito de fatos pessoais,
pode ser compreensível através de Pollak (1992, p. 213), que assim escreve:

O primeiro critério, ao meu ver, é reconhecer que contar a própria vida nada tem de natural.
Se você não estiver numa situação social de justificação ou de construção de você próprio,
como é o caso de um artista ou de um político, é estranho. Uma pessoa a quem nunca
ninguém perguntou quem ela é, de repente ser solicitada a relatar como foi a sua vida, tem
muita dificuldade para entender esse súbito interesse. Já é difícil fazê-la falar, quanto mais
falar de si.

Os homens entrevistados também comentaram que gostaram de ter participado do estudo,


pois usaram expressões durante ou após a entrevista como “vai ser importante falar sobre isso”, “foi
bom ter colocado para fora” ou que “ter conversado foi um alívio para o estresse que estava antes
da audiência”. Criou-se um clima amistoso em que o entrevistado pode falar o que quis e, como
revela Portelli (1997, p. 22), cabe ao entrevistador ser educado, pois estará invadindo a privacidade
de outra pessoa e tomando seu tempo, sendo que “a abordagem ética ou cortês é cientificamente
compensadora: boas maneiras e respeito pessoal constituem um bom protocolo para trabalho de
campo”.
As narrativas dos entrevistados, no que dizem respeito ao modo como eles entendem os
momentos de violência que tiveram com suas companheiras, propiciam uma maneira única de se
conhecer suas impressões sobre esses acontecimentos, mesmo que estas, em alguns casos, não
passem de meras estratégias de defesa em relação aqueles que negam os fatos denunciados, pois há
entrevistados que não assumem que foram violentos, mesmo que nos autos processuais existam
laudos periciais comprovando lesões físicas nas vítimas. Nesse sentido, para Portelli (1997, p. 17),
o importante é conhecer a versão do entrevistado, pois sempre é possível aprender algo e adquirir
experiência:

O respeito pelo valor e pela importância de cada indivíduo é, portanto, uma das primeiras
lições de ética sobre a experiência com o trabalho de campo na História Oral. Não são
exclusivamente os santos, os heróis, os tiranos – ou as vítimas, os transgressores, os artistas
– que produzem impacto. Cada pessoa é um amálgama de grande número de histórias em
potencial, de possibilidades imaginadas e não escolhidas, de perigos iminentes,
contornados e por pouco evitados. Como historiadores orais, nossa arte de ouvir baseia-se
na consciência de que praticamente todas as pessoas com quem conversamos enriquecem
nossa experiência.

A fase da realização das entrevistas já foi concluída e se está na etapa de análise dos
processos judiciais. Mas, se pode comentar, a partir das entrevistas, que os réus têm idade
entre 20 a 49 anos. A maioria não tem ensino médio completo e a renda familiar varia entre um
e três salários mínimos. Os crimes, sob julgamento em relação aos réus entrevistados, variam
entre lesões corporais,7ameaças8 e crimes contra a liberdade pessoal.9
Alguns réus possuem antecedentes criminais, já tendo sido presos por furtos,
arrombamentos e tráfico de drogas. Outros foram presos por terem agredidos suas
companheiras, exclusivamente.
A maior parte dos réus relatou que aprendeu que o homem deve tomar a frente das
decisões de um casal, pois sempre foi assim. Acreditam que tal fato foi aprendido, tanto com
os pais, quanto na convivência em sociedade, o que demonstra a existência de um campo
social mais amplo, no qual são aprendidas e reforçadas essas visões.
Estas narrativas podem ser pensadas através de Bourdieu (2005), quando escreve
que a dominação e a opressão de homens sobre mulheres, resultam de uma visão legitimada
por práticas incorporadas e reproduzidas pela sociedade, que conferem aos homens a melhor
parte.
Tais práticas reproduzidas pela sociedade, que ao longo de muitos séculos
reforçaram a cultura de hegemonia masculina, perpassam as construções mentais de homens
de tal forma que alguns, ou muitos, ainda se identificam com as mesmas, durante a definição
de suas identidades, inclusive enquanto um elemento organizador de suas memórias, pois
segundo Pollak (1992, p. 204):

[...] em todos os níveis, a memória é um fenômeno construído social e individualmente,


quando se trata da memória herdada, podemos também dizer que há uma ligação
fenomenológica muito estreita entre a memória e o sentimento de identidade.

Observou-se, também, que alguns réus tiveram pais extremamente autoritários e


que agrediam suas companheiras, o que possibilitou identificar que há, entre os agressores
pesquisados, alguns que tiveram um histórico de violência na infância ou na adolescência e
que podem estar reproduzindo o que viveram, e, entre esses réus, alguns têm filhos pequenos
que também já presenciaram as brigas entre seus pais. Pode-se pensar que, nessas situações, a
história de violência vivenciada por esses homens, e depois por seus próprios filhos, na
infância ou adolescência, tende a ser reproduzida na vida adulta, conforme orienta Gomes et
al (2007).

7 Os crimes sobre os quais estão sendo julgados, os participantes da pesquisa estão elencados no Código Penal
brasileiro (Decreto-Lei nº 2.848/1940, disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto-lei/
Del2848compilado.htm>. Acesso em agosto de 2016. O crime de lesão corporal é tipificado no artigo 129,
parágrafo nono do Código Penal: Art. 129. Ofender a integridade corporal ou a saúde de outrem: Pena -
detenção, de três meses a um ano. § 9o Se a lesão for praticada contra ascendente, descendente, irmão, cônjuge
ou companheiro, ou com quem conviva ou tenha convivido, ou, ainda, prevalecendo-se o agente das relações
domésticas, de coabitação ou de hospitalidade. Pena - detenção,..de..3..(três)..meses..a..3..(três)..anos..
(Redação..dada..pela..Lei..nº..11..340,..de..2006).
8 O crime de ameaça é tipificado no artigo 147 do Código Penal: Art. 147 - Ameaçar alguém, por palavra,
escrito ou gesto, ou qualquer outro meio simbólico, de causar-lhe mal injusto e grave. Pena - detenção, de um a
seis meses, ou multa. Combina-se o referido artigo, com o artigo 61, inciso II, letra f, do mesmo diploma legal:
Art. 61 - São circunstâncias que sempre agravam a pena, quando não constituem ou qualificam o crime: II - ter o
agente cometido o crime: f) com abuso de autoridade ou prevalecendo-se de relações domésticas, de coabitação
ou de hospitalidade, ou com violência contra a mulher na forma da lei específica; (Redação dada pela Lei
nº11.340, 2006).
9 O crime contra liberdade pessoal é tipificado no artigo 148, parágrafo primeiro, inciso I, do Código Penal: Art.
148 - Privarm alguém de sua liberdade, mediante sequestro ou cárcere privado: Pena - reclusão, de um a três
anos. § 1º - A pena é de reclusão, de dois a cinco anos: I – se a vítima é ascendente, descendente, cônjuge ou
companheiro do agente ou maior de 60 (sessenta) anos.
A fim de ilustrar a ideia acima abordada, o réu identificado como Pedro, quando
perguntado sobre como era a relação dos seus pais, relatou a existência de conflitos familiares,
desde a infância:

(Pedro – 42 anos) Tinha brigas por causa que o meu pai era alcoólatra, bebia, ele tinha
problema com bebida. [...] Então, eu sofri um pouquinho com isso [...]. Ele brigava,
empurrava, discutia muito com a mãe. [...] Ela deixava, não fazia queixa. [...] Eu via, eu
tinha na base de cinco a seis anos. [...] Tenho uma filha de nove anos [...] a mais
prejudicada era ela.

Candau (2012, p. 141) também assevera a possibilidade da interferência da memória


familiar em nossos atos, em razão da existência de um forte vínculo com nossas experiências
pessoais já vivenciadas:

[...] a memória e a identidade pessoal devem sempre compor com a memória familiar,
que é uma memória forte, exercendo seu poder para além de laços aparentemente
distendidos. Solidariedades invisíveis e imaginação vinculam sempre um indivíduo a seus
ascendentes: a memória familiar é nossa "terra” [...] é uma herança da qual não podemos
nos desfazer e que faz com que, como diz Rimbaud, percorramos lugares desconhecidos
sobre os traços de nossos pais.

Podem ser apontados como elementos que fizeram parte dos contextos de violência
que foram produzidos pelos réus e que geraram as ações penais que tramitam contra eles,
depressão, ciúmes, traição, não aceitação da separação, uso de álcool ou drogas, bem como
o revide como forma de defesa por parte de alguns réus que alegam que são as mulheres
que batem, o que, inclusive, foi admitido por algumas delas nas audiências.
Pedro, já mencionado anteriormente, considera que fica agressivo porque tem
depressão. Tendo em vista esse quadro, afirma que fica nervoso e não consegue se controlar.
Em razão de sua alegada falta de controle emocional, esteve internado em uma clínica
psiquiátrica para tratar a depressão e toma remédios que o deixam mais calmo. Já foi preso
por ter agredido sua companheira e, atualmente, aguarda em liberdade o julgamento final da
ação penal que tramita contra ele. Nesse sentido relata que:

(Pedro) Eu fui preso já, eu cheguei a agredir ela. [...] Eu tô fazendo tratamento, já fiquei
internado numa clínica, tava com depressão e motivo de nervosismo [...]. Às vezes, a
esposa falava uma coisa que não me agradava, aí parece que eu me perdia assim, sistema
nervoso, ficava agitado, aí me perdia e aí discutia e discutia, eu dava um empurrão nela.
[...]. Cheguei a machucar ela, mais de uma vez. Foi mais empurrão, tapa, chinelada.
Renato também contou que tem depressão, bem como relatou que sua companheira
costumava agredi-lo, o que o tirava do sério já que se descontrola facilmente:

(Renato – 33 anos) Imagina, eu tô trabalhando três meses fora de casa, louco de saudade,
e mandando dinheiro, sempre mandando dinheiro. Aí eu chego em casa, um dia, dopado
do remédio que eu tomo (depressão) e ela tá no telefone com outro cara falando de mim;
aí eu não aceitei [...]. E ela começou a me agredir, com prato, tudo que é louça me jogou,
prato com comida dentro, caneca de vidro, tudo. [...]. No início, foi uma companheira
muito boa, no primeiro ano, antes de eu pegar caminhão. Depois que eu comecei a viajar,
ela começou a se sentir sozinha, liberta. E eu chegava de viagem e ela só queria brigar,
queria discutir e sempre me agrediu, me deu uma facada aqui na testa, tentou furar meu
olho, me deu uma na barriga.

Ciúme seria a motivação de Artur para agredir. Ele admitiu que tinha ciúme da ex-namorada
e que não aceitava a separação, razão pela qual a ameaçou de morte, o que resultou na ação penal
que tramita contra ele. O relato que segue é a respeito de outra situação de violência na qual ele
esteve envolvido, quando ainda era menor de idade, por imaginar ter sido traído e, com ciúme, teria
usado droga e bebido, a ponto de agredir fisicamente a ex-namorada:

(Artur – 29 anos) Quando eu era menor, eu tinha uma namorada. Ela me traiu e eu quebrei
ela a pau. Tive dois processos em cima de mim. Ah, tá louco, eu era doente por aquela
guria [...] Ela foi pra um baile pra fora, ela e uma amiga dela. Aí eu me chapei, fiquei
louco, fui pra lancheria comecei a tomar. [...] No momento que ela chegou, deu, quebrei a
pau, ali eu quebrei ela a pau, chutei, arroxei os dois olhos. Ali eu perdi a razão. Ah, eu
gostava tanto dela; não era pra ter feito aquilo comigo.

Através das narrativas dos agressores, se percebe que alguns ainda vivenciam o que
Bourdieu (2005) chama de dominação masculina, ou seja, em uma supremacia da vontade do
homem sobre a da mulher, no que diz respeito às escolhas feitas pelo casal. Eles acreditam que,
justamente, por serem homens, devem ter o controle da relação e usar da violência, em situações
que julgam pertinentes. Bourdieu (2005) também escreve que a violência que sempre atingiu as
mulheres foi legitimada pela sociedade, tendo os homens sido autorizados a dominá-las, de tal
forma que a maioria delas se submete, praticamente como se essa dominação fosse algo natural e,
às vezes, nem percebem que se trata de uma forma de violência que fica no campo do simbólico,
das ideias circulantes no meio social no qual convivem, mas que as limitam, oprimem, tratam de
forma desigual em direitos e oportunidades.
Vários réus conviveram com um pai violento e podem pensar que é natural reproduzir
relações que experimentaram. Nessa perspectiva, agressores admitiram que gostariam que as
mulheres continuassem sendo submissas, ao relembrarem que viveram dessa forma em suas
famílias de origem, bem como porque aprenderam que assim era antigamente, portanto, tinham
intenção que tudo continuasse da mesma forma.
De outro lado, um requisito da virilidade, que pode ser ou não posto em prática pelos
homens, é ser violento. Segundo Virgili (2013, p. 83), com a Revolução Francesa, os homens
adquiriram uma masculinidade ofensiva, onde ser homem era: “combater, adotar comportamentos
desafiadores e fazer a demonstração da sua força ao preço da violência”. Violência essa que se
estendia inclusive às mulheres, para evitar que seus comportamentos perturbassem a ordem social,
sendo, portanto, autorizado aos homens conterem-nas com o uso da força, para que respeitassem
suas reputações de marido e sua honra de macho.
Ainda segundo Virgili (2013, p. 84), “no início do século XX, o novo modelo masculino
que se impôs, passo a passo, foi aquele de uma relação contida e racional com a violência”.
Contudo, o autor adverte que essa mudança não fez desaparecer o hábito da violência masculina, e
que a percepção e a legitimidade desse fenômeno varia entre os indivíduos.
Segundo Bauberót (2013), quando o movimento feminista de emancipação da mulher, a
partir dos anos 1970, passou a questionar o ideal de homem viril e os modelos sociais que fundaram
a dominação masculina, as prerrogativas reservadas aos homens foram abaladas. Esse
questionamento por parte das mulheres foi levando a uma desintegração do controle masculino
sobre elas, o que Santos (2010, p. 63) chama de crise da masculinidade. E sobre o assunto ela
escreve que:
O modo natural de submissão feminina, que a fazia inclinar-se, abaixar-se, curvar-se e
submeter-se ao homem, cedeu lugar às mudanças de papéis que valorizam o campo
feminino. Os séculos XIX e XX protagonizaram uma mulher ativa, independente,
escolarizada e reivindicadora dos direitos civis e políticos, diferentemente daquela mulher
doce, passiva e frágil, construída em oposição e negação ao masculino.

Santos (2010, p. 63) ainda escreve:

Mas é nesse momento que se gesta uma nova subjetividade masculina, possibilitando uma
reflexão do homem sobre si mesmo, implicando, assim, em um processo de
estranhamento, pois o homem poucas vezes precisou fazer perguntas sobre si mesmo e o
seu papel na sociedade. O homem idealizado como ser viril, agressivo, aquele que precisa
conquistar várias mulheres e não importar-se com os sentimentos, é desmistificado.

Porém, apesar das mulheres terem adquirido novos espaços e conseguido sair do
confinamento da esfera privada, levando os homens a repensarem seus conceitos de virilidade,
ainda assim não aconteceu um rompimento com a tradicional estrutura da dominação masculina.
Os privilégios masculinos ainda existem e estão sendo repassados na contemporaneidade às
meninas e aos meninos e vivenciados por mulheres e por homens. A manutenção dessa situação
pode ter uma relação de causalidade com inúmeros casos de agressões às mulheres.
Por mais que tenham acontecido mudanças no papel masculino, ainda hoje meninos são
ensinados que devem ser fortes, corajosos, agressivos, comandantes, ou seja, que devem continuar
reproduzindo comportamentos com os quais se identificam, ou deveriam se identificar, no sentido
de que devem ser superiores e isso se dá tanto em relação a eles próprios, quanto em relação às
mulheres. E uma vez que há uma hierarquização na relação homem-mulher, sustentada até hoje por
uma parcela da própria sociedade, podem existir homens que agridem suas companheiras
justamente por acreditarem que, historicamente (até porque muitos foram ensinados assim), têm
esse direito, já que desde épocas remotas era normal agredir mulheres.
Em outra perspectiva, pode se pensar que como há homens (alguns réus) que gostariam que
seus privilégios fossem mantidos, a mudança ocorrida na vida das mulheres no sentido de terem
mais liberdade e decidir sobre suas vidas, pode ser um problema para eles, e, inclusive, ser também
uma das causas geradoras de casos de violência.
Desta forma, como há homens que assumem, expressamente, que ainda tentam vivenciar
em suas relações os pressupostos da hegemonia masculina, tal como foi construída socialmente há
séculos atrás, e que aprenderam essa visão no meio social, se pode concluir que, estrategicamente,
a fim de se tentar diminuir os casos de violência contra mulheres, deveria haver por parte do poder
público mais investimentos em educação, principalmente desde a infância, no sentido de se
descontruir os estereótipos de gênero ainda vigentes, visando, assim, a construção de novos
relacionamentos baseados na solidariedade.
Outro procedimento que pode ser usado para enfrentar a violência é fazer com que os réus
participem de programas de tratamento na tentativa de modificarem seus modos de pensar e de agir.
Na realidade, essa política de tratamento já existe e é prevista em lei, mas não é largamente utilizada,
permitindo que o problema da violência de gênero não seja encarado de frente como uma política
pública que deva ser implementada urgentemente.

ABREU, Jeanne Chaves de. Igualdades e diferenças: os sentidos simbólicos da dor e prazer nos
corpos dos gêneros masculino e feminino. 2013. Dissertação de Mestrado. Universidade Federal
do Amazonas. Disponível em:
<http://200.129.163.131:8080/bitstream/tede/2292/1/JEANNE%20CHAVES%20DE%20ABRE
U.pdf>. Acesso em setembro 2016.

BAUBERÓT, Arnaud. Não se nasce viril, torna-se viril. In CORBIN, Alain. História da
virilidade. 3. A virilidade em crise? Séculos XX - XXI. Petrópolis: Vozes, 2013.

BINICHESKI, Dilaine. Direitos humanos internacionais: cultura islâmica frente às relações de


gênero. 2010. Dissertação de Mestrado em Direito. Universidade Regional Integrada do Alto
Uruguai e das Missões – URI. Santo Ângelo. Disponível em:<https://goo.gl/oNtSY1>. Acesso em
abril 2017.

BOURDIEU, Pierre. A dominação masculina. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2005.


CANDAU. Joel. Memória e identidade. São Paulo: Contexto, 2012.

CASTEL, Robert. A dinâmica dos processos de marginalização: da vulnerabilidade à


“desfiliação”. CADERNO CRH, Salvador, n. 26/27, p. 19-40, jan/dez. 1997.

CÓDIGO PENAL. 1940. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto-


lei/del2848.htm>. Acesso em junho 2016.

CORBIN, Alain. História da virilidade. 2. O triunfo da virilidade: o século XIX. Petrópolis:


Vozes, 2013.

DELGADO, Lucilia de Almeida Neves; FERREIRA, Marieta de Moraes. História do tempo


presente e ensino de História. Revista História Hoje. v. 2, n. 4, p. 19-34, 2013.

GOMES, Nadiele Pereira; DINIZ, Normélia Maria; ARAÚJO, Ane Jacob; COELHO, Tamara
Maria. Compreendendo a violência doméstica a partir das categorias gênero e geração. Acta
Paulista de Enfermagem, São Paulo, v. 20, n. 4, p. 504-508, 2007.

MEIHY, José Carlos Sebe Bom; HOLANDA, Fabiola. História oral: como fazer, como pensar.
São Paulo: Contexto, 2011.

MINAYO, Maria Cecília de Souza. Conceitos, teorias e tipologias de violência: a violência faz
mal à saúde. S/d. Disponível em:
<http://www1.londrina.pr.gov.br/dados/images/stories/Storage/sec_mulher/capacitacao_rede%20/
modulo_2/205631-conceitos_teorias_tipologias_violencia.pdf >. Acesso em agosto 2016.

POLLAK, Michael. Memória e identidade social. Estudos Históricos, Rio de Janeiro, v. 5, n. 10,
p. 200-212, 1992.

PORTELLI, Alessandro. Forma e significado na História Oral: a pesquisa como um experimento


em igualdade. Cultura e Representação. Revista do Programa de Estudos Pós-Graduação em
História, São Paulo, n. 14, 1997, p.1-17. Disponível
em:<http://revistas.pucsp.br/index.php/revph/article/viewFile/11233/8240> Acesso em agosto
2015.

SAFFIOTI, Heleieth I. B. O poder do macho. São Paulo: Moderna, 1987.

_____. Gênero, patriarcado, violência. São Paulo: Fundação Perseu Abramo, 2004.

SANTOS, Simone Cabral Marinho dos. O modelo predominante de masculinidade em


questão.In: Revista Políticas Públicas. São Luís, v. 14, n. 1, p. 59-65, 2010.
SCOTT, Joan. W. Gênero: uma categoria útil para análise histórica. Revisão de Tomaz Tadeu da
Silva. Educação &Realidade. Porto Alegre, v. 20, n. 2, p. 71-99, 1995.

SELAU, Mauricio da Silva. História Oral: uma metodologia para o trabalho com as fontes orais.
Revista Esboços, Florianópolis, n. 11. Disponível
em:<https://drive.google.com/folderview?id=0B5NjXY959KzxflB3RVh4NFBITDlWMTMtczF3
LURQMUZ0M1NWMHdjNXhaakJ2cGJjb2dQSzQ&usp=sharing> Acesso em maio 2015.

VIRGILI, Fabrice. Virilidades inquietas, virilidades violentas. In: CORBIN, Alain. História da
virilidade. 3. A virilidade em crise? Séculos XX - XXI. Petrópolis: Vozes, 2013.
Claudia Musa Fay 
Geneci Guimarães de Oliveira 

As mulheres ao direcionarem suas carreiras profissionais para a aviação, em particular à


cabine de comando, se deparam com um mundo predominantemente masculino, o que, por si só,
representa quebra de paradigmas. No caso da presença feminina como piloto na aviação comercial,
embora ainda se constituam em "reservas" masculinas, observa-se que nas últimas duas décadas
têm acontecido consideráveis avanços. Cada conquista serve de estímulo para que outras mulheres
encarem os desafios e passem a exercer o comando de aviões.
A presente comunicação pretende demonstrar que apesar dos avanços, a participação
feminina comparativamente à presença masculina na aviação, ainda é pequena. A presença feminina
carrega consigo uma dimensão simbólica importante na formação de uma identidade, que tende a
parecer que elas se diferenciam das demais. Entretanto, esta mulher somente escolheu se realizar
num campo tradicionalmente destinado ao homem.
Peter Burke diz da necessidade de se fazer uma história das mulheres, até então descartadas
pela história tradicional. Mas nas recentes tendências historiográficas, “os historiadores das
mulheres têm ampliado seus interesses, para incluir as relações entre os gêneros em geral e a
construção histórica, tanto da masculinidade quanto da feminilidade”. (BURKE, 1992, p. 36).
Para que as mulheres realizem o sonho de voar existem fatores estruturais que devem ser
considerados, tais como, o ambiente familiar, a escola, o meio social, e demais obstáculos a serem
transpostos, formados no cotidiano da criança ou nas permanências culturais que criam estereótipos,
como“trabalho de homem” e “trabalho de mulher”. Percebe-se que é inexpressivo o número de
mulheres ocupando funções que determinem tomadas de decisão, tais como, chefes de
equipamento, direção de operações e a presidência de empresas aéreas.
No Brasil, qualquer profissional que deseje exercer atividades a bordo de uma aeronave
deve possuir um CMA (Certificado Médico Aeronáutico) válido. O CMA é o certificado emitido
pela Agência Nacional de Aviação Civil (ANAC), após exames de saúde periciais realizados em
candidatos, atestando as suas aptidões psicofísicas para exercer funções a bordo de aeronaves.
Seguindo a determinação das diretrizes internacionais determinadas pela ICAO
(International Civil Aviation Organization), por meio do Anexo I à Convenção de Chicago, que trata
das licenças de pessoal da aviação e do qual o Brasil é signatário, desde sua fundação em 1944, o
detentor de um CMA válido deve se reportar à ANAC, ou ao examinador responsável pela sua

* Profª. Drª Docente do Programa de Pós-Graduação em História da PUCRS.


** Arquiteta e Doutoranda em História pelo Programa de Pós-Graduação em História da PUCRS.
certificação, qualquer diminuição de suas aptidões psicofísicas que possa impedi-lo de exercer as
prerrogativas de suas licenças e habilitações sem afetar a segurança de voo; entre elas, está a
gravidez. Ou seja, para a ICAO, a aeronauta grávida pode voar entre a 12ª e a 26ª semana de
gestação, caso sua gravidez seja considerada de baixo risco. Neste aspecto, as leis brasileiras são
mais rigorosas do que determina a ICAO, uma vez que a aeronauta deve ser considerada não apta
a exercer suas atividades, durante todo o período de gravidez e não somente parte dele, como
preconiza a ICAO. Assim, quando ciente do seu estado de gravidez, a mulher deve deixar
imediatamente suas funções a bordo e dedicar-se às atividades em terra, conforme abaixo:

Nenhuma pessoa do sexo feminino pode exercer qualquer função a bordo de aeronave em
voo a partir do momento em que seja constatada a sua gravidez, exceto quando exercendo
as prerrogativas de um CMA de 4ª classe e respeitados os requisitos da seção 67.213.
(RBAC 67, Parágrafo 67.13 (j)).

No item que trata dos requisitos obstétricos do Regulamento Brasileiro de Aviação Civil nº
67 (RBAC nº 67), a legislação da ANAC deixa claro que a aeronauta deve ser julgada não apta,
assim que for constatada a gravidez. Seu comunicado ao examinador ou à ANAC da ocorrência da
gravidez, como requer o parágrafo 67.15 (c) do RBAC 67, tem por objetivo providenciar a
suspensão do seu CMA. Enquanto isso não for feito, ela deve deixar imediatamente de cumprir as
atribuições de sua licença aeronáutica.
Bila Sorj, na pesquisa “Gênero família e trabalho no Brasil” (ARAÚJO; SCALON, 2005,
p. 80-88) aborda a temática – Percepções sobre esferas separadas de gênero – na qual enfoca a
participação da mulher no mercado de trabalho, considerando que o nível de educação e a geração
têm influência na participação feminina nas diferentes profissões em relação à igualdade de gênero.
Alessandro Portelli reforça a importância das fontes orais, em especial "a história da
memória, a história da imaginação, a história da subjetividade (tanto dos indivíduos como das
instituições)” (PORTELLI, 2004, p. 12). Para esta pesquisa se torna relevante os depoimentos das
aeronautas, principalmente, àquelas que resolvem se tornar mães e pilotar aviões, pois conforme o
Regulamento Brasileiro de Aviação Civil nº 67, nenhum profissional do sexo feminino pode exercer
qualquer função a bordo de aeronave em voo a partir do momento em que seja constatada a sua
gravidez.
Joan Scott destaca a conexão entre a história das mulheres e a política caracterizada por ser
ao mesmo tempo óbvia e complexa, e que na década de 1980 conseguiu seu próprio espaço, sendo
que “a emergência da história das mulheres como um campo de estudo envolve, nesta interpretação,
uma evolução do feminismo para as mulheres e daí para o gênero; ou seja, da política para a história
especializada e daí para a análise.” (SCOTT, 1992, p. 65).
Na pesquisa de Márcia Siqueira de Andrade encontramos que a discriminação inicia no
contexto familiar, evidenciando as dificuldades que as filhas têm em estudar e progredir
profissionalmente:
[...] essas dificuldades parecem ser mais acentuadas quando existe um ou mais irmãos do
sexo masculino. Nestes casos, a família investe mais no futuro do menino, instalando,
desde cedo, e no próprio seio familiar, a desigualdade de oportunidades. (ANDRADE,
2004, p. 24).

Bourdieu traz para reflexão dos pesquisadores interessados em discutir os temas


relacionados com a dominação masculina estudos que servem de suporte para o entendimento das
permanências, ou seja, que determinadas profissões estejam reservadas ao seleto mundo do
universo masculino,
[...] longe de afirmar que as estruturas de dominação são a-históricas, eu tentarei, pelo
contrário, comprovar que elas são produto de um trabalho incessante (e, como tal,
histórico) de reprodução, para o qual contribuem agentes específicos (entre os quais os
homens, com suas armas como a violência física e a violência simbólica) e instituições,
famílias, Igreja, escola, Estado. (BOURDIEU, 1999, p. 46).

Na aviação, as pesquisas evidenciam que apesar da capacidade e da determinação, as


"Amélias", as "Anésias", as "Lucys", as "Therezas", as "Carlas" e tantas outras pioneiras tiveram
que ir à luta para que ocupassem o “reservado" espaço da cabine de comando, pois, pilotar uma
aeronave independe da questão sexual.
Thereza di Marzo e Anésia Pinheiro Machado foram as duas primeiras mulheres a tirar o
brevê de piloto, em 8 e 9 de abril de 1922, respectivamente (PEREIRA, 1987, p. 406). Em 1943,
Anésia participou do curso da Federal Aviation Agency, nos Estados Unidos, no qual recebeu a
licença como piloto comercial e de instrutora de voo, função que desenvolveu na Panair do Brasil
e no CPOR da Força Aérea Brasileira.
Thereza di Marzo, despertou para a aviação aos 17 anos; ao olhar para o céu avistou um
avião e resolveu que um dia iria voar. A notícia “caiu como uma bomba” no seio familiar,
principalmente para seu pai, que desejava à filha um bom casamento, mas jamais pilotar aviões.
No cenário das guerras, as mulheres vinculadas à aviação não participaram diretamente dos
confrontos, mas, colaboraram no transporte de suprimentos, na formação de novos aviadores. Wohl,
na sua obra, deixa bastante claro o pensamento masculino da época a respeito do assunto:

A maior parte dos pilotos homens acreditava que a mulher não tinha nada que fazer no
céu. Elas eram temperamentais, propensas ao pânico e não tinham força física para
emergência. Voar era perigoso e mulheres não tinham o direito de arriscar a sua vida e a
dos outros. Por isso, muitos homens eram relutantes em dar treinamentos às mulheres e
em vender aviões a elas. (WOHL, 1994, p. 279-280).

Ada Rogato1 se torna a primeira paraquedista sul-americana, tendo ministrado cursos de


preparação para novos paraquedistas. Pereira (PEREIRA, 1987, p. 407) observa que: “[...] ela fazia

1 Disponível em: <http://www.biologico.sp.gov.br/grandes_nomes/ada_rogato.htm->. Acesso em: 25 out. 2006.


parte da turma que prestou exame em 23 e 24 de abril de 1933, mas seu nome só aparece na lista
de diplomados pela FAI-Brasil em 2 de maio de 1936, quando foi expedido seu diploma que recebeu
o n. 248.”
O reconhecimento veio somente em 2000 quando os Correios lançaram carimbo postal e
selo comemorativo aos 50 anos do sobrevoo dos Andes por Ada com o CAP-4 de 65HP PP-DBL,
Brasileirinho, sob o tema “Mulheres Aviadoras”, cujos dizeres são: "Homenagem às Mulheres
Aviadoras Pioneiras da Aviação no Brasil – 1º dia de circulação: São Paulo/SP- 8.2.2000".
Lucy Lúpia, em 1967, tomou a decisão de fazer o curso no Aeroclube de Nova Iguaçu,
obtendo a licença de piloto privado e logo em seguida a de piloto comercial. As dificuldades
começaram a aparecer quando da sua busca por um emprego.
Em pesquisas anteriores (OLIVEIRA, 2006, p. 85-108) a respeito das pioneiras na aviação
brasileira, verificou-se que uma grande batalha movida por preconceitos, e até por perseguições
pessoais, estariam à espera de Lucy. O mercado de aviação sempre foi competitivo entre os homens.
A chegada de um piloto-mulher seria uma ameaça, pois, além do tabu, haveria o risco de invasão
de novos concorrentes no futuro: as aviadoras.
Tarefa árdua teve a copiloto Carla Roemmler que, após sucessivas tentativas, finalmente,
em 1988, ingressou na Vasp e se tornou a comandante pioneira da aviação comercial em 1996, ao
pilotar um Boeing 737-200. Carla permaneceu fora da cabine de comando, por uma década, até ser
contratada em 2010 pela Azul Linhas Aéreas Brasileiras.
Destaque também para Kalina Comenho, a primeira mulher piloto da Varig, que recebeu
seu certificado de conclusão do Curso de Formação de Copilotos da EVAER em 22 de maio de
1992. Atualmente, ela está voando como copiloto de voos internacionais na Emirates Airlines,
sendo a primeira mulher a ingressar nesta empresa. Kalina fez parte da tripulação técnica que
efetuou o voo inaugural da rota Dubai-São Paulo-Dubai no Boeing 777-200LR, prefixo A6EWA,
que em 01 de outubro de 2007, unia pela primeira vez o Brasil ao Oriente Médio sem escalas.
Nessa trajetória das mulheres aeronautas na aviação comercial brasileira, destacma-se
ainda, as presenças de Eveline Borges Fontenelle e Alena Maria Teixeira, ambas contratadas,
em maio de 1995, como copiloto em linhas da Transbrasil. De acordo com artigo publicado2:

[...] em 23 de janeiro de 2006, Eveline Borges, de 34 anos, foi a primeira mulher da


América Latina a voar um ABSA Cargo Airline, como comandante do avião em um voo
internacional. Ela completou seu primeiro voo de carga ABSA como Master Chief Pilot
na rota de Campinas-Brasil para Miami operando um Boeing 767-300F PR-ABB. O voo
incluiu escalas em Maiquetia, Venezuela, e Bogotá e Medelin, na Colômbia, onde
enfrentaram tempo nublado, mas foi recebido por um belo nascer do sol em Miami para a
conclusão da rota.

2 http://www.thefreelibrary.com/ABSA+Cargo+Airline+Celebrates+First+Female+WideBody+Aircraft+Captain
Claudine Melnik, conforme a reportagem do jornal Estado de São Paulo, (GUIMARÃES,
24 mar. 1996, p. 21) era graduada em desenho industrial. Iniciou como comissária de bordo na TAM
em 1992, e como refere: "entrei pela porta dos fundos". Com o brevê tirado em 1995, foi admitida
para testes e cursos neste mesmo ano, realizando ainda seu primeiro voo. Claudine fala sobre a
carreira: "por mais bonita que possa ser, é também bastante sacrificada. Acabam os amigos, a
família, os aniversários, e datas como Natal, Ano Novo, Carnaval...". Passados cinco anos tornou-
se copiloto do maior equipamento da frota brasileira a incluir uma mulher como tripulante técnico,
o Airbus A330-200.
Na matéria jornalística publicada pelo Correio Braziliense, 3 em 26 de julho de
2001, intitulada "Mulheres no Céu", no preâmbulo da redação constam frases de impacto
sobre as mulheres que optam pela aviação, tais como: "Elas não têm medo de altura. Vivem a
maior parte do tempo no ar e não se importam de abrir mão da rotina", e "elas vivem no ar,
mas têm os pés no chão. Determinadas e corajosas, elas passaram a ocupar, há pouco mais
de 20 anos, assentos garantidamente masculinos".
A notícia faz referência às mulheres comandantes ou copilotos, responsáveis pela condução
dos aviões comerciais de grandes companhias aéreas como Varig, Vasp, TAM, Gol e Rio Sul. Elas
deixam de lado a rotina diária em prol de uma vida com muitas viagens, sem horário definido, e
poucas conseguem frequentar uma faculdade ou manter relacionamentos estáveis.
O jornal traz uma reportagem com o depoimento da copiloto Cristina Vieira Marques, cuja
carreira começou na aviação executiva, voando em jatos de pequeno porte. Em agosto de 1998, foi
para a Vasp trabalhar no Boeing 737-300, onde fez a ponte aérea e, dois anos, depois ingressou na
GOL. Cristina declara que a escolha profissional provocou alterações no seu dia-a-dia: "Namoro,
nem pensar, resolvi abrir mão disso por enquanto, mas penso em casar e ter filhos mais tarde.”
Na primeira década do século XXI nos deparamos com pesquisas que trazem dados que, de
certa forma, aliviam a pressão sobre estas mulheres que deixam a maternidade e até mesmo o
casamento para mais tarde.
A revista Veja (JIMENEZ, 29 maio 2013, p. 115) publicou uma reportagem sobre o recente
Censo do IBGE, no qual revela que o percentual das mulheres que estão para cruzar a fronteira dos
50 anos, ou seja, no fim do ciclo reprodutivo, que chegam neste período sem filhos teve um aumento
de 20% em relação à última década.
Percebe-se que na esteira destes acontecimentos tem aumentado de forma significativa o
ingresso de mulheres, também na aviação, como revela a reportagem: “a libertação da mulher, em
resumo, significou a capacidade de fazer escolhas – até mesmo sobre ter ou não ter filhos.”
As mudanças, embora lentas, estão ocorrendo e os dados da Agência Nacional de Aviação
Civil (Anac) mostram o crescimento do número de mulheres que procuram o mercado aéreo. Em
2009, foram expedidas 44 licenças para pilotos do sexo feminino: 35 conseguiram licença de piloto

3 Disponível em: <http://www2.correioweb.com.br/cw/2001-07-26/mat_47279. htm>. Acesso em 22 ago. 2006.


privado, 8 de comercial e apenas uma obteve a habilitação para comandante de uma linha aérea. O
número duplicou em 2010, quando foram expedidas 86 licenças para mulheres: 56 novas de piloto
privado, 24 de comercial e 6 de linha aérea e, a tendência é que nos próximos anos se tenha números
mais expressivos.
No ano de 2001 havia cerca de 1200 pilotos (mulheres e homens) no mercado de trabalho
no Brasil, dentre os quais as mulheres representavam cerca de 1,8% da quantidade total. Em 2016,
as mulheres passaram a representar 2,8% do total, tendo um acréscimo de 1% no período de 15
anos; o que mostra que a mudança acontece de forma lenta.
Apesar dos dados otimistas, ainda temos registros de preconceito, como o caso que ocorreu
em maio de 2012 em um voo da TRIP, onde um passageiro se recusou a permanecer na aeronave
cuja comandante era uma mulher, com forte repercussão na mídia nacional:

Ele afirmou que faria uma reclamação para companhia, para informar quando fosse uma
mulher comandante, para ele ter a opção de não embarcar, contou a piloto Betânia Porto
Pinto, com quase 20 anos de carreira e mais de nove mil horas de voo. Ela explicou que
ordenou a retirada do passageiro da aeronave “Se acontece qualquer coisa, uma rajada, se
acontece uma turbulência, que ele sinta desconfortável e entra em pânico, ele pode
colocar um avião com 100 pessoas inteiro em pânico dentro da aeronave.4

Os estudos de Caroline L. Davey e Marilyn J. Davidson (2000, p. 195-225) com homens e


mulheres de empresas aéreas europeias, investigam o impacto da presença feminina em um
ambiente predominantemente dominado por homens, sendo que eles admitiram achar difícil se
adaptarem à presença feminina, da mesma forma, observa que eles precisavam ser mais vigilantes
em relação à linguagem e ao comportamento ao dividirem a cabine de comando com mulheres.
Preconceitos, obstáculos para permanecer na profissão, questões pessoais como a
maternidade e tantas outras fazem parte do processo de conquistas que as pioneiras enfrentaram de
forma mais intensa e, as mulheres que as seguiram, ainda percebem, contudo, o avanço tecnológico
permitiu que elas enfrentassem de maneira mais igual as diferenças.

Ao longo das últimas décadas a História tem revelado que as mudanças ocorridas
na condição feminina foram muito mais significativas que aquelas dos séculos anteriores.
Os avanços alcançados começam a retirar do silêncio as vozes que por milênios a sociedade
calou. Todavia, elas se insurgem, ainda que muito lentamente, contra o obscurantismo que
lhes havia sido imposto e a "história das mulheres" começa a ser escrita.

4..
Globo.com<http://fantastico.globo.com/Jornalismo/FANT/0,,MUL1680595-15605,00.MULHER+PILOTO+
DIZ+QUE+EXPULSOUU+PASSAGEIRO+DE+VOO+POR+SEGURANCA.html >
Proliferam as discussões a respeito da emancipação feminina, das manifestações
reivindicando sua inserção no espaço público, numa nova relação mulher-trabalho e, que vão
delineando os diferentes olhares sobre as questões de gênero. Assim, as histórias de vida trazem
à tona o quanto as mulheres tiveram e têm que lutar para legitimar seus espaços em todo o mundo.
A ideia que coloca a mulher no espaço privado, e sob a sua “custódia” a família e o lar, é uma
prática de longa duração que contribui para a perpetuação da desigualdade e impede o processo
de desenvolvimento das mudanças de comportamento.
A formação de piloto exige grandes investimentos que começam pelos elevados custos
da preparação teórica, que nos dias de hoje passa pela universidade ou outros centros de formação
devidamente autorizados. Nas aulas práticas, além dos simuladores é exigido um número mínimo
de horas de voo que são bastante dispendiosas. O fato de não ser "bem visto" como uma profissão
feminina; meninas não receberem incentivo familiar e, tampouco serem estimuladas a lidar com
as máquinas e com a tecnologia avançada que somados aos componentes de natureza econômica,
torna ainda mais difícil o acesso das mulheres à profissão de piloto.
O preconceito e os obstáculos sociais e culturais que geram barreiras à entrada da mulher
nas relações concretas de poder impedem de forma intensiva que elas desenvolvam suas
potencialidades plenas, e que se construam efetivamente novas relações mais igualitárias entre
os sexos, favorecendo o desenvolvimento de estruturas sociais equilibradas, ao incorporar de
forma equânime as diferenças e a diversidade de gênero, cultural, social e econômica existentes
em todas as sociedades.
No período compreendido entre a Segunda Guerra Mundial e a década de 1970, quando
as empresas passam a contratar pilotos como profissionais, percebe-se uma ausência das
mulheres neste mercado de trabalho. No Brasil o seu ingresso ocorre somente no final da década
de 1980.
Observa-se ainda que as novas gerações estão conseguindo ingressar e ascender com menos
restrições nas empresas aéreas. Entretanto, cabe questionar até que ponto estas políticas adotadas
no apoio das novas “entrantes”, contribuem para a imagem das empresas ou se é realmente para
uma eficaz inserção feminina nas profissões tecnológicas. Outros fatores, não menos relevantes,
são as mudanças de comportamento em relação à maternidade, ao casamento. Percebe-se que,
atualmente, algumas mulheres estão constituindo família e filhos e adaptam as escalas de trabalho.
No entanto, a pouca representatividade das mulheres como pilotos de aeronaves nos altos cargos
das empresas aéreas, que ainda são destinados aos homens, põe à mostra barreiras invisíveis que
elas necessitam ultrapassar. O “teto de vidro” não se rompeu totalmente.
ANDRADE, Márcia Siqueira de. Mulheres do século XX: a aprendizagem do feminino. São
Paulo: Memnon Edições Científicas, 2004.

ARAÚJO, Clara; SCALON, Celi (Org.). Gênero, família e trabalho no Brasil. Rio de Janeiro:
Fundação Getúlio Vargas, 2005.

BOURDIEU, Pierre. A dominação masculina. Tradução de: Maria Helena Kühner. Rio de
Janeiro: Bertrand Brasil, 1999.

BURKE, Peter (Org.). A escrita da história: novas perspectivas. Tradução de: Magda Lopes. São
Paulo: Ed. da UNESP, 1992.

OLIVEIRA, Geneci Guimarães de. Rota de colisão: a história das mulheres no “reservado”
espaço da cabine de comando. Monografia de Conclusão para Bel. História, PUCRS, 2006

PEREIRA, Aldo. Breve história da aviação comercial brasileira. Rio de Janeiro: Europa, 1987.

SCOTT, Joan Walach. A cidadã paradoxal: as feministas francesas e os direitos do homem.


Tradução de: Élvio Antonio Funck. Florianópolis: Mulheres, 2002.

WOHL, Robert. A passion for wings: aviation and the western imagination (1908-1918). Londres:
Yale University, 1994.

DAVEY, Caroline L. e DAVIDSON, Marilyn J. The Right of Passage? The Experiences of


Female Pilots in Commercial Aviation. Feminism and Psychology 10, 2000, p.195-225.

GUIMARÃES, Berenice Santos. Ela voa alto. O Estado de São Paulo, São Paulo, Suplemento
Feminino, p. 21, 24 mar. 1996.

JIMENEZ, Gabriele. Filhos? Não, obrigada! Veja. Comportamento. Edição 2323, a. 46, n. 22,
p.114-122, 29 de maio de 2013.

BIOLOGICO.SP.GOV.BR. Disponível em:


<http://www.biologico.sp.gov.br/grandes_nomes/ada_rogato.htm>.
COMISSARIODEBORDO.BLOSPOT.COM. Disponível em:
<http://comissariadebordo.blospot.com/2005_11_01_comissariadebordo_archive.html>.
CORREIOWEB.COM.BR. Disponível em: <http://www2.correioweb.com.br/cw/2001-07-
26/mat_47279.htm>
GLOBO.COM. Disponível em: <http://fantastico.globo.com/Jornalismo/FANT/0,,MUL1680595-
15605,00-
MULHER+PILOTO+DIZ+QUE+EXPULSOU+PASSAGEIRO+DE+VOO+POR+SEGURANC
A.html >.

THE FREE LIBRARY. Disponível em:


<http://www.thefreelibrary.com/ABSA+Cargo+Airline+Celebrates+First+Female+Wide-
Body+Aircraft+Captain>.
Carmo Thum

A proposição do ST 03 “Povos e Comunidades Tradicionais: memória, narrativas e fontes”


buscou estabelecer um espaço de discussão acadêmica a fim de problematizar a metodologia da
História Oral como instrumento, assim como oralidade e as narrativas como fontes. Partindo da
premissa de que as narrativas orais são as fontes, buscou-se compreender o conjunto de dados
apresentados nas suas condições de fonte histórica, e a Memória como história dos Povos e
Comunidades Tradicionais.
Para dar conta desses objetivos, o ST problematizou as metodologias e os instrumentos de
pesquisa histórica utilizados. Refletiu sobre os aspectos históricos, conceituais, metodológicos e
analíticos da dimensão da oralidade na vida desses grupos. Debateu sobre os modos de analisar a
construção e transmissão de saberes e valores dos diferentes grupos sociais, buscando compreender
suas práticas culturais e educacionais, fundadas nas suas memórias, experiências e narrativas.
Interpretou os modos das lutas por reconhecimento de suas identidades e de seus direitos sociais no
cenário político, dos conflitos de terra e territorialidade, sociobiodiversidade e as tensões pela
preservação e emancipação pela memória.
De uma forma geral, o ST “Povos e Comunidades Tradicionais: memória, narrativas e
fontes” incorporou estudos e pesquisas com diferentes abordagens metodológicas e conceituais em
torno da temática.

Povos e Comunidades Tradicionais é uma temática entrelaçada a campos de conhecimento.


Estabelece-se dentro das interseções da História, da Memória, da Antropologia, da Sociologia e da
Educação; portanto, uma temática interdisciplinar. Seus contornos conceituais são amplos. Os
conceitos constitutivos da temática são interdependentes e complementares. A História Oral está no
centro dessa discussão, pois a oralidade é o modo de relação entre o saber e a experiência. A
narrativa é um instrumento educativo. Os modos de fazer e os saberes narrados de geração a

* Professor na Universidade Federal do Rio Grande - FURG. Coordenador do Núcleo Educamemória.


Doutor em Educação. Líder do Grupo de Pesquisa CNPq: EDUCAMEMÓRIA - Educação e Memória.
Linha: Memórias, Patrimônios e Povos Tradicionais.
geração, garantem a permanência dos grupos, a reprodução e as reinvenções dos modos de ser dos
grupos singulares, identidades, autoreconhecimento e pertencimento.
O surgimento da temática no universo brasileiro remonta a discussões travadas nos anos 80
do século passado, a partir dos movimentos de direitos à identidade e diferença nos modos de vida,
especialmente, das formas singulares de comunidades específicas presentes no espaço. O conceito
de Comunidade Tradicional, paulatinamente, tem impactado as políticas públicas contemporâneas.
A produção dessa condição de Povo e Comunidade Tradicional tem contributos, tanto do mundo
acadêmico como dos movimentos sociais e seus protagonistas.
A questão das populações tradicionais é presente nos debates sobre a diferença de modos
de ser de populações. No decorrer desse processo, diferentes tentativas de definição foram
colocadas em circulação. O próprio IBAMA, enquanto órgão regulador, tensionado pelos grupos
organizados, já em 1992, estabelece pauta de discussão e trabalho sobre ‘Populações Tradicionais’.
Mas essa definição era restritiva. Não abarcava as diferentes formas de ser comunidade e
povo comunidade presentes no território. Nos estudos de Almeida (2004),1 especialmente os
derivados da Nova Cartografia Social, o conceito de Povos e Comunidades Tradicionais
também se faz presente com considerável produção bibliográfica. A conceituação ganha
concretude a partir das autodefinições dos grupos.
De um modo geral e de amplo plano, compreendemos que conceituação dessa temática se
dá na resultante de um amplo processo de debate entre lutas populares, movimentos sociais,
academia, movimentos ambientalistas, convenções internacionais, políticas públicas. Processo esse
em curso, onde lutas e disputas estão em pleno movimento.
Brandão2 (2011), ao pesquisar os 'Sertões Roseanos3, já observava a presença demarcada de
segmentos sociais distintos presentes no espaço geográfico brasileiro. Naquele momento
formulava uma definição com caracterização capaz de incorporar as diferentes dimensões
presentes nesses segmentos:
Comunidade tradicional constitui-se como um grupo social local que desenvolve: a)
dinâmicas temporais de vinculação a um espaço físico que se torna território coletivo
pela transformação da natureza por meio do trabalho de seus fundadores que nele se
instalaram; b) saber peculiar, resultante das múltiplas formas de relações integradas à
natureza, constituído por conhecimentos, inovações e práticas gerados e transmitidos
pela tradição ou pela interface com as dinâmicas da sociedade envolvente; c) uma
relativa autonomia para a reprodução de seus membros e da coletividade como uma
totalidade social articulada com o “mundo de fora”, ainda que quase invisíveis; d) o

1
.Considerar..também:..Diegues..(2001)..e..Calegare;..HiguchI;..Bruno..(2014).
2
.BRANDÂO, Carlos Rodrigues. A comunidade tradicional. In: Cerrado, Gerais, Sertão: comunidades
tradicionais dos sertões roseanos. Montes Claros: 2010 (Relatório de Pesquisa). Presente também em:
RODRIGUES, Leila Ribeiro; GUIMARÃES, Felipe Flávio Fonseca; COSTA, João Batista de Almeida.
Comunidades tradicionais: sujeitos de direito entre o desenvolvimento e a sustentabilidade. Anais do I Circuito
de debates. CODE; IPEIA, 2011. .
3 Relativo a uma região já profundamente interpretada por Guimarães Rosa em suas obras.
reconhecimento de si como uma comunidade presente, herdeira de nomes, tradições,
lugares socializados, direitos de posse e proveito de um território ancestral; e) a
atualização pela memória da historicidade de lutas e de resistências no passado e no
presente para permanecerem no território ancestral; f) a experiência da vida em um
território cercado e/ou ameaçado; g) estratégias atuais de acesso a direitos, a mercados
de bens menos periféricos e à conservação ambiental. (BRANDÃO, 2010, p. 37;
RODRIGUES; GUIMARÃES; COSTA, 2011).

Essa temática incorpora e aporta elementos do campo dos direitos conseutudinários;


da idéia de que a presença em um território por longo tempo gera direitos aos sujeitos; que o
modo de vida demarca diferenças; que a consciência da diferença promove a ação política de
identidade; que as questões ambientais-culturais são componentes importantes na produção
dos saberes e dos modos de relação com a terra e o ambiente natural; que a cultura imaterial
e os significados dados expressam saberes e racionalidades próprias e não são aspectos
dissociados da cultura material.
A perspectiva da 'conservação pelo uso' está presente na luta política de reconhecimento
das identidades, dos aspectos de território e territorialidade, de modos de vida e manutenção
dos 'modos de fazer' pelo uso dos bens naturais disponíveis. Portanto, biodiversidade,
identidades singulares e conservação.4 Quanto aos aspectos antropológicos, as demarcações
da singularidade nos modos de fazer, de significar, as práticas sociais e os modos de transmitir
a experiência às novas gerações são elementos que se somam no ato de delinear o campo
temático.
Portanto, a emergência da temática tem vertentes diversas, mas insere-se dentro do
campo das lutas populares e dos direitos dos povos. Espaço-tempo, onde a memória do
processo histórico vivenciado por esses segmentos torna-se consciência histórica e coloca os
sujeitos em movimento de luta por direitos.
A cultura, o modo de vida, os ritos e os saberes se dão no espaço da vida.
Portanto, a emergência dessa temática está diretamente vinculada a tensionamentos vividos
pelos grupos no acesso e uso da terra, pois terra e permanência na terra são elementos
fundamentais na reprodução das condições de existência. Rocha e Favilla (2015) afirmam
que a permanência nos espaços e garantia do acesso à terra são também garantias da
produção da vida futura.
A garantia de manutenção dos povos e comunidades tradicionais em seus territórios
tradicionalmente ocupados ainda se configura como a principal questão para a
reprodução sociocultural destes segmentos. Os territórios tradicionalmente ocupados
são os espaços onde são mantidas as memórias coletivas dos grupos, onde estão seus
ancestrais, onde se encontram seus sítios sagrados, onde é vivenciada a cultura, onde
se têm acesso aos recursos naturais vitais para sua produção e reprodução e que
incorpora as visões de mundo e cosmologia. (ROCHA; FAVILLA, 2015, p. 62).
4
Para saber mais sobre as divergências entre as duas vertentes: o preservacionismo e o conservacionismo, ver:
SILVA, Ana Tereza R. da. A conservação da biodiversidade entre os saberes da tradição e a ciência. Estudos
Avançados, v.29, n. 83, p. 233-259, 2015.
O entendimento expresso acima, revela que no caso dos Povos e Comunidades
Tradicionais, não se pode dissociar a atividade econômica das atividades sociais e culturais.
A compreensão de que cultura se dá no espaço social está expressa nessa formulação
conceitual de Povos e Comunidades Tradicionais. Compreende-se, portanto, que a vida se faz a
partir de relações “com entre” e “com os outros” em um território. Esses elementos demarcam um
avanço nos direitos sociais desses agrupamentos, pois não mais só a cultura imaterial torna-se objeto
de definição, mas também o espaço ocupado, física e simbolicamente. A idéia de territorialidade é
também presente nessa definição. Nesse sentido, podemos considerar que a materialização da
cultura dos povos e comunidades tradicionais se dá por meio da vivência em plenitude de seus ritos,
seus modos de fazer, suas práticas de transmissão e de modos de organização social.
Para além disso, o processo de luta dos movimentos sociais, que envolve camponeses,
agricultores familiares, ribeirinhos, extrativistas, sempre dialogou com a problemática ambiental e
a produção da vida. O conceito de desenvolvimento sustentável, embora possa ter vários matizes
interpretativas, tem razão de estar na categorização de Povos e Comunidades Tradicionais, pois são
populações que vivenciam processos de cuidado com a terra e dela tiram seu sustento. As práticas
de conservação dos recursos naturais são passadas para as novas gerações exatamente porque são
processos presentes nos modos de vida dos diferentes segmentos. Nesse sentido, ter direito ao uso
da terra e a partir do uso garantir a permanência e as condições de suas reproduções, é uma
necessidade.
A produção conceitual do significado de Povos e Comunidades Tradicionais tem no Decreto
6040/2007 um marco legal. As disputas quanto a sua validade e sua aplicabilidade nas políticas
públicas é um processo em curso como afirma Wagner Almeida (2004).

O chamado “tradicional”, antes de aparecer como referência histórica do passado,


aparece como reivindicação contemporânea em forma de autodefinição coletiva.
Antes de serem interpretadas como “povos ou comunidades tradicionais” aparecem
hoje envolvidos num processo de construção do próprio “tradicional” a partir de
mobilizações e conflitos. Deste ponto de vista, além de ser do tempo presente, o
“tradicional” é, portanto, social e politicamente construído a partir de uma
classificação empírica fruto da existência localizada desses novos movimentos
sociais.

A história da produção da definição do termo revela o quanto foi disputada a construção


desse conceito, entre Estado e Sociedade Civil. Oficialmente, o movimento organizado de luta de
Povos e Comunidades Tradicionais, no Brasil, remete a 2004, quando foi criado em 27 de
dezembro a Comissão Nacional de Povos e Comunidades Tradicionais5. Esse é um marco
oficial de políticas públicas. Contudo, essa luta é mais antiga. Especialmente, se pensarmos
em termos de movimentos

5
Comissão Nacional de Desenvolvimento Sustentável das Comunidades Tradicionais (Decreto nº 10408
de 27/12/2004)
sociais da América Latina. Entre os elementos congruentes6 a essa proposição são as
declarações de direitos internacionais, especialmente a declaração dos direitos humanos, a
declaração dos direitos linguísticos, a declaração da diversidade cultural,7 a declaração de
Tlaxcala8 (1982), a Convenção da Proteção do Patrimônio Mundial, Cultural e Natural9 e os
dispositivos 168 da OIT (Organização Internacional do Trabalho).
No Brasil,10 a luta organizada ganhou forma e contornos mais claros no ínterim
2004-2005, tempo em que aconteceu o I Encontro Nacional de Comunidades Tradicionais,
quando foram estabelecidas metas de ação, entre elas as de que a Comissão Nacional de
Povos e Comunidades Tradicionais, constituída de Sociedade Civil e Estado, estabeleceu-se a
política pública de “Povos e Comunidades Tradicionais”, o que ocorreu em 2006; ano em que
foi publicada a Política do Plano Nacional de Povos e Comunidades Tradicionais. A Política
Nacional de Povos e Comunidades Tradicionais foi instituída por meio do Decreto 6.040, em
07 de fevereiro de 2007. A partir de 2013 iniciou-se um processo visando ampliar a
abrangência e as competências, gerando o II Encontro Nacional de Povos e Comunidades
Tradicionais em 2014, que criou o GT de Transição, donde se materializou a proposta de
criação do Conselho Nacional de Povos e Comunidades Tradicionais, que foi criado
oficialmente em 2016.
Portanto, a definição oficial, se estabeleceu a partir do Decreto 6040/2007.
Nesse documento estão expressas três dimensões constitutivas, a saber:
Povos e Comunidades Tradicionais – grupos culturalmente diferenciados e que se
reconhecem como tais, que possuem formas próprias de organização social, que
ocupam e usam territórios e recursos naturais como condição para sua reprodução
cultural, social, religiosa, ancestral e econômica, utilizando conhecimentos, inovações
e práticas gerados e transmitidos pela tradição.
Territórios Tradicionais – os espaços necessários à reprodução cultural, social e
econômica dos povos e comunidades tradicionais, sejam eles utilizados de forma

6
Esses dados foram em parte narrados ao autor pelos membros da CNPCT, e em parte vivenciado pelo
mesmo no processo de participação da luta de PCTs.
7 Convenção para a Salvaguarda do Patrimônio Cultural Imaterial, promulgada pelo Decreto nº 5.753, de
12/4/2006. 67 Declaração de Tlaxcala (1982), produzida no Simpósio Norte-Americanosobre a Conservação do
Patrimônio Edificado dedicado ao tema da “Revitalização dos Pequenos Povoados”, organizado pelo Comité
Nacional Mexicano do ICOMOS, reunido em La Trinidad, Tlaxcala, entre 25 e 28 de outubro de 1982.
8 Decreto nº 4.339/2002, que institui a Política Nacional da Biodiversidade, baseada em princípios que
prevêem a compatibilização de direitos, como afirmado no artigo 2º, XII: 'a manutenção da diversidade cultural
nacional é importante para a pluralidade de valores na sociedade em relação à biodiversidade, sendo que os
povos indígenas, os quilombolas e as outras comunidades locais desempenham um papel importante na
conservação e na utilização sustentável da biodiversidade brasileira'. .
9 O governo federal havia criado, em 1992, o Conselho Nacional de Populações Tradicionais (CNPT), no
âmbito do IBAMA. Para saber mais, ver: Portaria/IBAMA. N. 22-N, de 10 de fevereiro de 1992 que cria o
Centro Nacional de Desenvolvimento Sustentado das Populações Tradicionais – CNPT.
10 Em julho de 2000, por meio da Lei 9.985 que cria o Sistema Nacional de Unidades de Conservação, são
reconhecidos os direitos das comunidades tradicionais em suas interfaces com as unidades de conservação.
permanente ou temporária, observado, no que diz respeito aos povos indígenas e
quilombolas, respectivamente, o que dispõem os arts. 231 da Constituição e 68 do Ato
das Disposições Constitucionais Transitórias e demais regulamentações.
Desenvolvimento Sustentável – o uso equilibrado dos recursos naturais, voltado para
a melhoria da qualidade de vida da presente geração, garantindo às mesmas
possibilidades para as gerações futuras. (Decreto 6040/2007. Inciso I do Art. 3).

Na atualidade, a criação do Conselho11 Nacional de Povos e Comunidades


Tradicionais expandiu a participação e o reconhecimento para 28 segmentos.
O mundo acadêmico tem uma relação de produção literária ainda de pequeno
impacto. Como um tema emergente, se coloca como uma nova pauta12 nos estudos de
Sociedade e História. No encontro da ABHO, em 2016, estabelecemos uma nova pauta,
problematizando e interpelando mundo acadêmico sobre a temática.
Para compreender um pouco mais desse tema e visualizar sua abrangência e
abordagens em um dos espaços acadêmicos, sistematizamos dados das pesquisas sobre/com
Povos e Comunidades Tradicionais: fontes, abordagens, abrangências presentes no ST 03 no
IX Encontro Regional Sul de História Oral (2017).
Os trabalhos inscritos no ‘ST O3: Povos e Comunidades Tradicionais: memória,
narrativas e fontes’ no IX Encontro Regional Sul de História Oral (2017), apresentaram um
conjunto de temas e subtemas que problematizam e explicitam dimensões constitutivas e a
complexidade conceitual desse campo temático: Povos e Comunidades Tradicionais.
Na busca para dar visibilidade ao conjunto temático abordado pelos trabalhos
apresentados, recompilamos as palavras-chave dos mesmos e as destacamos:

 História Oral, acervos, memória,


 Comunidades Tradicionais, memórias, pomeranos, quilombolas,
 Quilombo, memória, migração,
 Narrativas; práticas educativas; saberes campesinos,
 Terreiro Bate Folha, patrimônio (i)material,
 Língua, representação, pomeranos no Brasil,
 Kaingang, reterritorialidade, cultura, direitos, educação,
 Povos e Comunidades Tradicionais; biomas, pampa,
 Kalunga, crianças, oralidade, roda de causos.

11
.PORTARIA Nº 258, de 12 de julho de 2017. Designa a composição do Conselho Nacional dos Povos e
Comunidades Tradicionais - CNPCT os membros de Governo e os membros eleitos da Sociedade Civil.
Disponível em: <https://goo.gl/B1tWJX>.
12
No âmbito da ABHO, inauguramos a discussão através do GT 24 - Povos, Comunidades Tradicionais e
Grupos Populares: oralidades, memórias e imagens, 2016. Coordenado por Prof. Dr. Carmo Thum e Prof. Dr.
José Walter Nunes.
Entre conceitos abordados, espaços investigados e modos de registro da oralidade,
recortamos passagens dos diferentes textos apresentados, que evidenciam um arcabouço temático
sobre o tema de Povos e Comunidades Tradicionais:
 As fontes orais da pesquisa se constituíram de moradores que migraram do quilombo.
 Alunos, professores e outros sujeitos da comunidade.
 Privilegiar aspectos da experiência coletiva que leva ao saber compartilhado, passando
de geração em geração.
 Como a memória é reconstruída de modo próprio.
 Com moradores de diferentes lugares.
 Saberes e práticas discursivas e identidade linguística.
 Narrativas orais de sujeitos membros de povos e comunidades tradicionais do Pampa.
 História Oral; memória da Casa-Escola; assentamento e educação.
 A memória como uma ferramenta potente na produção da história.
 A oralidade como modo de transmissão dos conhecimentos e das experiências.
 Referenciais definidos pelos sujeitos da cultura local.
 Imagens da paisagem cultural e geográfica do espaço.
 Respeito a sua afirmação enquanto identidade própria e diferenciada.
 Sociedades que recorrem à oralidade para a transmissão às gerações vindouras de
aspectos culturais ligados à tradição, à crenças, o mitos e a sua historicidade.
 A permanência na terra, territórios, territorialidades, memórias, oralidades, ofícios e
modos de vida.
 I Encontro de Povos e Comunidades Tradicionais do Pampa.
 Como instrumento de defesa dos direitos de identidades socioculturais.
 Registro dos modos de ser de benzedeiras e benzedores, comunidades quilombolas,
pecuaristas familiares, pescadoras e pescadores artesanais, povo cigano, povos indígenas, povo
pomerano, povo de terreiro, ribeirinhos, pantaneiros.
 Sociodiversidades presente no bioma Pampa – Povos Amazônicos.
 A fala das crianças é resultado da sua relação com a comunidade.
 Narram os acontecimentos dando origem à história da Casa-Escola.
 Guardadoras e reveladoras do silêncio no construtor das memórias e da história.
 Nos conceitos teóricos da Pedagogia da Terra, espaços escolares.
 Os Conflitos e as Lutas.
Entre os temas tratados, a questão dos “Modos de Viver e de Narrar” são preponderantes,
estando presentes na maioria dos trabalhos, assim como a discussão da História e da Memória.
A temática da oralidade perpassa todos os trabalhos e se concretiza nas fontes. A narrativa
dos povos são as fontes primárias. Mas, para além disso, é preciso compreender que a oralidade é
mais que uma fonte. Ela é instrumento de transmissão de saberes dos povos tradicionais. Nesse
sentido, a oralidade é elemento constitutivo do modo de ser. As narrativas advindas a partir dos
sujeitos das comunidades apresentam um conteúdo que fala do mundo da vida, das formas de viver,
das lutas por visibilidade, defesa de direitos e emancipação cultural.
O acervo de fontes orais é formado por narrativas, memórias e tradições. O conjunto dos
dados apresenta discussões acerca da vida comunitária, da forma de ser na infância, das histórias
de vida, das formas de resistência cultural, de patrimônio cultural: material e imaterial, oralidade,
infância, tradições, narrativas, memórias e vestígios.
Estão presentes, também, a dimensão educativa, as experiências onde o mundo escolar se
debruça sobre a cultura local e a partir dessa relação de pesquisa-conhecimento-
autoreconhecimento se problematiza o currículo da Educação Básica e se propõe ao processo
formativo uma relação profunda com a realidade das culturas locais. Nesse movimento, a memória
se coloca como instrumento de reinvenção de identidades e territorialidades; uma reescritura da
história a partir da ação educativa.
Outra vertente temática presente no conjunto dos textos, é a narrativa do movimento de luta
por reconhecimento da identidade, onde estão os aspectos que atentam para o processo de
visibilidade e de defesa de direitos, na forma de luta organizada e na defesa do direito de existir e
permanecer. Nesse sentido, território e territorialidades e luta política se entrelaçam a um processo
de narrativa do mundo da vida, produzida com e pelos sujeitos membros das comunidades.

O campo da História Oral tem uma relevância central na temática de Povos e Comunidades
Tradicionais. Para compreender a história desses grupos, a metodologia da História Oral se coloca
como um caminho necessário. A oralidade é o instrumento de narrativa da história dos sujeitos.
Narrativa, memória e tradição são temas entrelaçados e configuram um campo.
A academia encontra-se desafiada a compreender esse tema emergente. A História Oral é
uma metodologia que se coloca como potente para essa tarefa. No âmbito da ABHO, a iniciativa
de propor um Simpósio Temático (24), já em 2016, no Encontro Nacional, visou colocar no cenário
da pesquisa histórica as questões que emergem de pesquisas com esses grupos.
A temática dialoga com os clássicos da História e interpela nossas metodologias e modos
de compreensão. Tensiona o mundo acadêmico a compreender em maior profundidade o tema,
tarefa que em 2017 o ST 03, em parte, desenvolveu.

ALMEIDA, Alfredo Wagner Berno de. Terras tradicionalmente ocupadas: processos de


territorialização, movimentos sociais e uso comum. In. Revista Brasileira de Estudos Urbanos e
Regionais, v. 6, n. 1, ANPUR, maio 2004.
BRANDÂO, Carlos Rodrigues. A comunidade tradicional. In: Cerrado, Gerais, Sertão:
comunidades tradicionais dos sertões roseanos. Montes Claros: 2010 (Relatório de Pesquisa).

BRASIL. I Encontro Nacional de Comunidades Tradicionais. 2004. Disponível em:


<https://goo.gl/HGdoYG>. Acesso em: 05 de maio, 2014.

BRASIL. Decreto 6.040 de 07 de fevereiro de 2007. Disponível em: <https://goo.gl/6FPSH6>


Acesso em: 20 de março de 2017.

BRASIL. Portaria nº 258, de 12 de julho de 2017. Ministério do Desenvolvimento Social.


Disponível em: <https://goo.gl/B1tWJX>

CALEGARE, Marcelo Gustavo Aguilar; HIGUCHI, Maria Inês Gasparetto; BRUNO, Ana Carla
dos Santos. Povos e Comunidades Tradicionais: das áreas protegidas à visibilidade política de
grupos sociais portadores de identidade étnica e coletiva. In. Ambiente & Sociedade n São Paulo
v. XVII, n. 3 n p. 115-134 n jul.set. 2014. Disponível em:
<http://www.scielo.br/pdf/asoc/v17n3/v17n3a08.pdf.> Acesso em: 20 de março de 2017.

FREIRE, Paulo. Pedagogia do oprimido. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1978.

_____. Conscientização. Teoria e prática da libertação: uma introdução ao pensamento de Paulo


Freire. 3. ed. São Paulo: Moraes, 1980.

_____. Pedagogia da Esperança: um reencontro com a Pedagogia do Oprimido. Notas: Ana


Maria Araújo Freire. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1992.

DIEGUES, A. C; ARRUDA, R. S. V. Saberes tradicionais e biodiversidade no Brasil. Brasília:


Ministério de Meio Ambiente, 2001.

MAZURANA, Juliana; DIAS, Jaqueline Evangelista; LAUREANO, Lourdes Cardozo. Povos e


Comunidades Tradicionais do Pampa. Porto Alegre: Fundação Luterana de Diaconia, 2016.

OSOWSKI, Cecília Irene. Cultura do Silêncio. In: STRECK, Danilo R.; REDIN, Euclides;
ZITKOSKI, Jaime José (Org.) Dicionário Paulo Freire. Belo Horizonte: Autêntica, 2008.

Protocolo comunitário biocultural das raizeiras do Cerrado: direito consuetudinário de praticar a


medicina tradicional / organizado por Jaqueline Evangelista Dias e Lourdes Cardozo Laureano. -
Turmalina: Articulação Pacari, 2014.

ROCHA, Marcelo Cardona; FAVILLA, Kátia Cristina. Doze anos de inserção dos Povos e
Comunidades Tradicionais no cenário político do Estado brasileiro e na garantia de direitos
individuais e coletivos. In: CERQUEIRA, Edmilton; SOUZA, Luiz Fernando M. de; MELO,
Patrícia; SANTOS, Quêner C. dos; PIRES, Tauá Lourenço (Org.). Os povos e comunidades
tradicionais e o ano internacional da agricultura familiar. Brasília: Ministério do
Desenvolvimento Agrário, 2015.

RODRIGUES, Leila Ribeiro; GUIMARÃES, Felipe Flávio Fonseca; COSTA, João Batista de
Almeida. Comunidades tradicionais: sujeitos de direito entre o desenvolvimento e a
sustentabilidade. Anais do I Circuito de debates. CODE 2011, IPEIA, 2011.

STOER Stephen R.; MAGALHÃES António M.; RODRIGUES, David. Os lugares da exclusão
social: um dispositivo de diferenciação pedagógica. São Paulo: Cortez, 2004.

SHIRAISHI NETO, Joaquim (Org.). Direito dos povos e das comunidades tradicionais no Brasil:
declarações, convenções internacionais e dispositivos jurídicos definidores de uma política
nacional. Manaus: UEA, 2007.

THUM, Carmo. Educação, História e Memória: silêncios e reinvenções pomeranas na Serra dos
Tapes. Programa de Pós-Graduação em Educação, Unisinos, São Leopoldo, 2009. Tese de
Doutorado.

_____. Povos e Comunidades Tradicionais: aspectos históricos, conceituais e estratégias de


visibilidade. Revista Eletrônica Mestrado Educação Ambiental, Edição especial XIX Fórum de
Estudos: Leituras de Paulo Freire, p. 162-179, junho, 2017.

_____. Povos e Comunidades Tradicionais: do impacto do GT de Transição na criação do


Conselho de Povos e Comunidades Tradicionais. In: JESUS, Sergio Nunes de; NEGREIROS,
Davys Sleman de; BARBOSA, Ingrid Leticia Menezes; SILVA, Reginaldo Conceição da. (Org.).
Povos e Comunidades Tradicionais: perspectivas além da epistemologia. Curitiba: CRV, 2017, v.
1, p. 59-74.
Kalyna Ynanhiá Silva de Faria

O objetivo deste trabalho é apresentar as crianças do território quilombola Kalunga, da


comunidade de Engenho II, localizado no município de Cavalcante, no Estado de Goiás, abordando
as representações das culturas quilombolas pela perspectiva das crianças. Tal análise se fez
relevante pela invisibilidade das crianças nos trabalhos que abordam tais temáticas. A historiografia,
construída ao longo dos anos, apresenta as crianças apenas como expectadora da história. Elas
aparecem nas rodas de expostos, nos colégios internos, porém não como protagonistas de sua
história. Isto posto, entendemos que a percepção das crianças integrantes, nesses povos e
comunidades tradicionais, é fator essencial para a construção das identidades dessas comunidades.
No Estado de Goiás, o Laboratório de Estudos de Gênero, Étnicorraciais e Espacialidades
do Instituto de Estudos Socioambientais da Universidade Federal de Goiás
(LAGENTE/IESA/UFG) é referência no estudo das comunidades tradicionais negras,
representadas pelos quilombolas, congadeiros(as), domésticas, ativistas, intelectuais, religiosos,
entre outros. (BARBOSA, 2013). As dissertações de Mestrado e Doutorado produzidas pelos
programas de Pós-Graduação do Programa de Sociologia e Geografia da Universidade Federal de
Goiás, destacando Almeida (2010), Ratts (2013), Marinho (2008) e Paula (2003), realizados acerca
das comunidades quilombolas, destacam sua estrutura organizacional, suas relações como
remanescentes escravistas, sua territorialidade e espacialidade e seus aspectos culturais. Em geral,
as pesquisas têm como principal objeto de pesquisa as comunidades, são trabalhos marcados pela
História Oral, principalmente das lideranças das comunidades.
Segundo a Fundação Palmares, no Brasil existem hoje cerca de 2474 comunidades
remanescentes quilombolas. Os Estados de Maranhão, Pará, Bahia e Minas Gerais são onde mais
se encontram essas comunidades; cerca de 64% do total de comunidades remanescentes
quilombolas. Em Goiás, esse número cai para 30 comunidades, representando cerca de 1,3% do
total de comunidades. Em Goiás, existem cerca de 33 comunidades quilombolas. A maior
comunidade é a Kalunga que se localiza nos municípios de Cavalcante, Monte Alegre de Goiás e
Terezina de Goiás. O território Kalunga se divide por quatro núcleos principais: Contenda e Vão do
Calunga, Vão de Almas, Vão do Moleque e Ribeirão dos Bois.
As definições acerca do que se entende por quilombos é controversa, explorando o sentido
de abrigarem negros refugiados até serem considerados uma comunidade de camponeses livres.

* Doutoranda no Programa de Pós-Graduação em História/UFG. Docente no Curso de História na


Universidade Estadual de Goiás/UEG/CEAR/PEAR.
Em definição adotada pelo Instituto SocioAmbiental (ISA), os remanescentes de quilombo são
definidos:
[...] como grupos étnicorraciais que tenham também uma trajetória histórica própria,
dotados de relações territoriais específicas, com presunção de ancestralidade negra
relacionada com a resistência à opressão histórica sofrida. E sua caracterização deve ser
dada segundo critérios de auto-atribuição atestada pelas próprias comunidades, como
também adotado pela “Convenção da OIT sobre Povos Indígenas e Tribais” [...]. É uma
categoria social relativamente recente, representa uma força social relevante no meio rural
brasileiro, dando nova tradução àquilo que era conhecido como comunidades negras rurais
(mais ao centro, sul e sudeste do país) e terras de preto (mais ao norte e nordeste), que
também começa a penetrar ao meio urbano, dando nova tradução a um leque variado de
situações que vão desde antigas comunidades negras rurais atingidas pela expansão dos
perímetros urbanos... (ISA, 2010).

As políticas de reconhecimentos das comunidades remanescentes quilombolas foram


efetivadas a partir de 1988, com a promulgação da Constituição Brasileira. O artigo 68, o Ato das
Disposições Constitucionais Transitórias, diz que “aos remanescentes das comunidades dos
quilombos que estejam ocupando suas terras é reconhecida a propriedade definitiva, devendo o
Estado emitir-lhes os títulos respectivos”.
Essa medida constitucional foi interpretada como uma reparação histórica de injustiça
herdada da sociedade escravocrata brasileira e o reconhecimento dos direitos aos remanescentes
quilombolas no Brasil. Os artigos 215 e 216 da Constituição Brasileira garantem a preservação da
cultura material e imaterial dessas comunidades.
O parágrafo I, do Artigo 3, do decreto 6.040/2007, compreende que

Povos e Comunidades Tradicionais: grupos culturalmente diferenciados e que se


reconhecem como tais, que possuem formas próprias de organização social, que ocupam
e usam territórios e recursos naturais como condição para sua reprodução cultural, social,
religiosa, ancestral e econômica, utilizando conhecimentos, inovações e práticas gerados
e transmitidos pela tradição. (BRASIL, 2007).

Isto posto, se percebe que os direitos das comunidades remanescentes quilombolas estão
associados aos direitos de terra e da sua preservação cultural, tendo o Poder
Público responsabilidades legais para as comunidades que conseguem a titulação. 1 Os
aportes legais garantidos pela Constituição Brasileira só se efetivam após a titulação dos
territórios quilombolas.

1 O Decreto 4.887, de 2003, atribuiu ao Incra a responsabilidade de identificar, reconhecer, delimitar, demarcar
e titular as terras ocupadas pelos Kalungas. Assim, o órgão passou a ser o responsável por retirar ocupantes não-
quilombolas da área. Diante das contradições sobre esta construção legalmente impossível da PCH, na área, que é
de interesse coletivo e inalienável, ele pediu, após o conflito anunciado, a suspensão do processo de
licenciamento da hidrelétrica, alegando a existência do processo de regularização do território quilombola
Kalunga. (ALMEIDA, 2010).
No entanto, menos de 1% das comunidades remanescentes quilombolas do Brasil é titulada, das
quais, segundo atualização de fevereiro de 2015 realizada pela Fundação Palmares, 326
comunidades estão com processos abertos para a titulação das terras e aguardam a emissão da
certidão.
Com a obrigatoriedade da lei 10639/2003, acerca do ensino nas escolas da História e Cultura
Africana e Afrodescendente, assuntos como as comunidades quilombolas, suas definições,
singularidades e particularidades iniciam um processo de reconhecimento na formação cultural do
país, levantando suas questões econômicas, sociais, culturais, entre outras.

[...] as comunidades quilombolas despertaram uma série de questões socioeconômicas,


espaciais, jurídicas e culturais que passaram a fazer parte da discussão sobre o que
representam os quilombos contemporâneos, na atualidade, e sobre a sua efetiva inserção
cidadã. Entretanto, para que essa inserção se realize, não basta que a sociedade obtenha o
conhecimento sobre estes grupos, mas também que a população quilombola se veja dentro
da sociedade atual, que o conhecimento ocidentalizado, eurocêntrico, presente nas escolas
formais abra um espaço significativo para a vivência e educação destas comunidades.
(PARÉ, 2007).

O conhecimento dessas comunidades tradicionais é importante para além da


obrigatoriedade das leis, para saber e entender aspectos desses grupos étnicos é preciso conhecer
parte da história do Brasil e de Goiás.
Analisando o século XX, percebemos que as crianças e adolescentes têm ocupado grande
destaque nas sociedades, com especial atenção para o papel que elas representam nas famílias e
para organizações internacionais, destacando o Fundo das Nações Unidas para a Infância
(UNICEF). (MORELLI, 2011).
Segundo Morelli (2011), analisando dados de historiadores Ariès (1981) e Perrot (1991)

A família, nos séculos XVIII e XIX, na Europa, passa por profundas transformações, e os
filhos recebem atenção cada vez maior, em virtude da preocupação de prepará-los para a
nova sociedade. É o período de consolidação da sociedade capitalista, quando os debates
e a implantação de medidas relacionadas com a formação do cidadão e com a formação
de mão-de-obra promovem algumas dessas mudanças. Este processo envolveu algumas
áreas diretamente relacionadas com a infância, tais como: o combate à mortalidade
infantil, através de ações da assistência social e da saúde em conjunto com a pediatria e a
puericultura; a formação moral, trabalhada intensamente nas escolas; e o controle direto
de crianças e adolescentes em conflito com a lei, os direitos da chamada menoridade.
(MORELLI, 2011).

A representação das crianças se alia às preocupações acerca da importância da infância, de


melhores condições de saúde, educação e trabalho. O aumento das produções e dos estudos, tendo
as crianças como objetos de pesquisa, não refletem na relação dos adultos com as crianças; são
estudos que ainda carregam a herança escravocrata. Segundo Morelli (1996), mesmo com a
expansão urbana, as ações direcionadas às crianças são voltadas para os discursos à sua proteção e
desenvolvimento. (MORELLI, 1996).
Para maior compreensão e contextualização da pesquisa faz-se necessário definir o que se
entende por infância e, consequentemente, por criança. Segundo Postman (1999), o conceito de
infância foi se transformando ao longo do tempo. Para o autor, o conceito de infância está em crise,
na sociedade contemporânea. As alterações do conceito de infância, alteraram o modo das crianças
se vestirem, de se alimentarem, de se comunicarem, de se relacionarem e de brincarem.
(POSTMAN, 1999).
A infância e a criança são sempre formuladas pelos adultos, segundo Silveira (2000). A
definição de infância está sempre ligada à ótica do adulto. Dessa forma, para o autor, a infância se
relaciona com a importância da criança na sua relação com a família e com seu papel na comunidade
em que está inserida, concluindo que as condições sociais e biológicas imprimem significado à
conceituação de infância. (SILVEIRA, 2000).
O Decreto de Lei nº 8.069, de 13 de julho de 1990, define no artigo 2º que “considera-se
criança, para os efeitos desta Lei, a pessoa até doze anos de idade incompletos, e adolescente aquela
entre doze e dezoito anos de idade”. Tendo a Lei 8.069 como parte do aporte teórico deste trabalho,
a análise dos dados contemplará o material produzido pelas crianças até 12 (doze) anos,
pertencentes às comunidades quilombolas de Vão do Moleque e Vão de Almas e na cidade de
Catalão, participantes dos ternos de congada.
Entendendo as tradições das comunidades de remanescentes quilombolas como também
cultura imaterial, se faz necessário pensar na construção das identidades dessas comunidades. As
crianças pertencentes a esses grupos étnicos são para a pesquisa, as personagens e/ou indivíduos
primordiais para a construção e preservação da cultura imaterial.
Nesse sentido, qual a importância de perceber as crianças como indivíduos, como sujeitos
centrais de suas comunidades? Qual a relevância de entender como as crianças se percebem imersas
em suas comunidades? Qual a relevância em entender como as crianças percebem suas heranças e
tradições culturais? As crianças, suas percepções e suas narrativas, são a ponte de compreensão,
entendimento e preservação da cultura material e imaterial de seus grupos étnicos.
Na construção da pesquisa que dá aporte para essa comunicação, os principais conceitos a
serem trabalhados para a realização da pesquisa são conceitos de comunidades tradicionais,
identidades e cultural imaterial.
O conceito de identidades terá como base o apresentado Stuart Hall em “A identidade
cultural na pós-modernidade” (2005), em que o autor afirma que a identidade é formada na
“interação” entre o eu e a sociedade, entre o “interior” e o “exterior”, e que o processo de
identificação, através do qual nos projetamos em nossas identidades culturais, tornou-se provisório,
variável e problemático. Os trabalhos de Gilberto Velho “Memória, identidade e projeto” e de
Kathryn Woodward “Identidade e Diferença: uma introdução teórica e conceitual” (2012) ajudam
na formulação dos conceitos.
Os relatos orais são para a pesquisa considerados fontes e base conceitual. Apropriamo-nos
dos estudos de Ioan Garrido, Philippe Joutard e Michael Pollak. Segundo Pollak (1992), as fontes
orais estão ligadas à construção da memória, e que esta se faz na relação e compreensão dos
acontecimentos, indivíduos e lugares.
A memória, por sua característica seletiva, carrega os sentimentos de seus atores e,

[...] assim, situações vividas só se transformam em memória se aquele que se lembra


sentir-se afetivamente ligado ao grupo ao qual pertenceu. Aliás, ao qual pertence, pois só
se faz parte de um grupo no passado se se continua afetivamente a fazer parte dele no
presente. (D’ALÉSSIO, 1992).

E entendendo que,

se nos proporcionarmos os meios e as condições para construir cientificamente, com todas


as técnicas das quais dispomos hoje em dia, temos condições de produzir um discurso
realmente sensível à pluralidade das realidades. Temos uma possibilidade, não de
objetividade, mas de objetivação, que leva em conta a pluralidade das realidades e dos
atos. (POLLAK, 1992).

Nos trabalhos de campo já realizados, na área de pesquisa, conseguimos observar o


cotidiano da comunidade. A relação da comunidade com seus membros, a relação das crianças com
a comunidade e das lideranças com as crianças. Nesse sentido, entendemos que a relação da
construção das identidades culturais na comunidade do Engenho II se passa por três momentos. O
primeiro é o da relação das crianças com seu socializador, que entendemos como os adultos
interagem com essa criança, seja em casa, na escola ou no convívio cotidiano da comunidade. Outro
momento é o da criança com outras crianças, tanto na escola quanto fora dela. E o terceiro momento
é o da criança e sua relação consigo, seus sonhos, perspectivas e seu entendimento.
Para conseguir entendermos e participarmos da percepção dessas crianças, estamos
construindo metodologias que consigam dialogar com crianças que foram alfabetizadas, e as que
ainda estão em processo de alfabetização e letramento; por isso o papel da escola se faz
extremamente necessário. As “rodas de causo”, as produções cartográficas e as oficinas de desenho
e fotografia protagonizadas pelas crianças são parte da metodologia da pesquisa.
Em nossas observações iniciais, percebemos que as crianças nas comunidades são
percebidas como “quase-grupo, os quais apresentam um certo grau de organização, mas, apesar
disso, não são grupos”.

[...] as ações de qualquer membro tornam-se relevantes apenas na medida em que são
interações com o próprio ego ou seu intermédio. O critério de associatividade não inclui a
interação com outros membros do quase-grupo em geral. As interações nessa categoria de
quase-grupos ocorrem em um conjunto-de-ação, ou, de preferência, em uma série de
conjuntos-de-ação. (MAYER, 1987, p. 127).

As crianças estão em todos os ambientes da comunidade, dentro das casas, nas reuniões de
comunidade, reuniões da associação, nos centros de turismo, na escola, entre outros. No entanto, a
sua presença é em alguns casos ignorada ou não percebida, e decisões são tomadas sem a
consulta de suas opiniões. O seu ambiente ainda é o escolar; fora dele a voz não é percebida.2
A compreensão desse novo espaço de pesquisa, tendo como atores principais as
crianças, sua voz e seus olhares, é relevante pois possibilita maior interpretação do tema
na fonte e no contexto em que está inserido. No Brasil, temos um longo caminho a percorrer,
no que se refere às pesquisas sobre as crianças, suas experiências e culturas. O campo da
sociologia da infância tem nos ensinado que as crianças são atores sociais que interagem com
as pessoas, com as instituições. Elas reagem frente aos adultos e desenvolvem estratégias de
luta para participar no mundo social. Mesmo assim, ainda necessitamos construir
referenciais de análise que nos permitam conhecer estes atores sociais que nos colocam
inúmeros desafios, seja na vida privada ou na vida pública.

ALMEIDA, Maria Geralda de; CHAVEIRO, Eguimar Felício. Territórios de quilombolas: pelos
vãos e serras dos Kalunga de Goiás - patrimônio e biodiversidade de sujeitos do Cerrado. Ateliê
Geográfico–Edição especial. Goiânia/GO v. 4, n. 1, fev/2010, p.36-63.

ARIÉS, Philippe. História Social da criança e da família. Rio de Janeiro: Zahar, 1981.

BARTH, F. Grupos étnicos e suas fronteiras. In: POUTIGNAT, Ph.; STREFF- FENART, J.
Teorias da etnicidade. São Paulo: Ed. da UNESP, 1998.

BRASIL. Constituição Federal. 1988. Artigo 216. Disponível em: <https://goo.gl/Tvkpqx>.


Acesso em: 22/09/ 2015.

BRASIL. Estatuto da Criança e do Adolescente. Lei nº 8.069, de 13/7/90.

BRASIL. Ministério do Desenvolvimento Agrário. INCRA - Instituto Nacional de Colonização e


Reforma Agrária. Plano de Trabalho: identificação, reconhecimento, delimitação, demarcação e
titulação das terras ocupadas por remanescentes das comunidades de quilombos. Brasília, 2004.

2
Os relatos que já foram captados para a pesquisa de doutorado estão em fase de processamento, e necessita
de aprovação da comunidade para serem publicados.
D’ALÉSSIO. Marcia Mansor. Memória: leituras de M. Halbwachs e P. Nora. Revista Brasileira
de História, v. 13, n. 25-26, São Paulo, 1992.

DEL PRIORE, Mary (Org.). História das crianças no Brasil. São Paulo: Contexto, 1999.

FREITAS, Marcos Cezar (Org.). História Social da infância no Brasil. São Paulo: Cortez, 1997.

GARRIDO. Loan del Alcazar i. As fontes orais na pesquisa histórica: uma contribuição ao debate.
Revista Brasileira de História, São Paulo, v. 13, n. 25/26, set192-ago/93, p. 33.

HALL, S. A identidade cultural na pós-modernidade. Tradução Tomaz Tadeu da Silva e


Guaracira Lopes Louro. Rio de Janeiro: DP&A, 2001.

ISA - Instituto Socioambiental. Disponível em: http://www.socioambiental.org/pt-br.

JOUTARD, Philippe. História Oral: balanço da metodologia e da produção nos últimos 25 anos.
In: AMADO, Janaina; FERREIRA, Madeta de Moraes (Coord.). Usos & abusos da história oral.
Rio de Janeiro: Fundação Getúlio Vargas, 1996, p. 43-62.

LE GOFF, Jacques (org.). A História Nova. 3. ed. São Paulo: Martins Fontes, 1995.

MARINHO, T. A. Identidade e territorialidade entre os Kalunga do Vão do Moleque. 2008.


Dissertação (Mestrado em Sociologia) – Programa de Pós-Graduação em Sociologia – UFG.
2008.

MAYER, Adrían C. A importância dos “quase-grupos” no estudo das sociedades complexas. In.:
A Antropologia das sociedades contemporâneas. São Paulo: Global, 1987.

MIGNOLO, W. La opción de-colonial: desprendimiento y apertura. In. Un manifiesto y un caso:


Tabula Rasa. Bogotá – Colombia, n. 8: 243-281, 2008.

MORELLI, Ailton J. A criança, o menor e a lei. Assis: UNESP, 1996. Dissertação (Mestrado) –
Universidade Estadual Paulista, Assis,1996. MOURA, Esmeralda B. Bolsonaro de. Por que as
crianças? In: CARVALHO, Carlos Henrique; MOURA, Esmeralda Blanco B. de; ARAUJO, José
Carlos Souza (Org.). A infância na modernidade: entre a educação e o trabalho. Uberlândia:
UDUFU, 2007. p. 13-48.

MUNANGA, GOMES. O negro no Brasil de hoje. São Paulo: Global, 2006.

PARE, Marilene Leal; OLIVEIRA, Luana Paré de; VELLOSO, Alessandra D'Aqui. A educação
para quilombolas: experiências de São Miguel dos Pretos em Restinga Seca (RS) e da
Comunidade Kalunga de Engenho II (GO). In. Cad. CEDES [online]. 2007, vol.27, n.72, pp. 215-
232. ISSN 1678-7110.

POLLAK, Michael. Memória e Identidade Social. In: Estudos Históricos, Rio de Janeiro,
Fundação Getúlio Vargas, v. 5, n. 10, p. 200-212, 1992.

POSTMAN, Neil. O desaparecimento da infância. Rio de Janeiro: Graphia, 1999.

RATTS, Alecsandro (Alex) J. P.; FURTADO, George da Cunha. Observações sobre a situação dos
quilombos em Goiás. In: Alfredo Wagner Berno de Almeida, Rosa Elizabeth Acevedo Marin,
Emmanuel de Almeida Farias Jr. (Org.). Caderno de debates n. 02 - Territórios quilombolas e
conflitos. Manaus - AM: UEA Edições, p. 235-241, 2010.

SANGLARD, G.P. Entre os salões e o laboratório: Filantropia, mecenato e práticas cientificas,


2005. Tese. (Doutorado em História das Ciências da Saúde) – Casa de Oswaldo Cruz, FIOCRUZ,
Rio de Janeiro, 2005.

SARMENTO, Manuel Jacinto; PINTO, Manuel. As crianças e a infância: definindo conceitos,


delimitando o campo. In: SARMENTO, Manuel Jacinto; PINTO, Manuel. As crianças, contextos
e identidades. Braga, Portugal. Universidade do Minho. Centro de Estudos da Criança; Ed.
Bezerra, 1997.

UNICEF – Histórico. Disponível em: <http://www.unicef.org/brazil/pt/overview_9489.htm>.


Acesso em jun. de 2009.

VELHO, G. Memória, identidade e projeto. Tempo Brasileiro. 1989

WOODWARD, Kathryn. Identidade e Diferença: uma introdução teórica e conceitual. In: SILVA,
Tomaz Tadeu (org.); HALL, Stuart; WOODWARD, Kathryn. Identidade e Diferença: a
perspectiva dos estudos culturais. 11 ed. Petrópolis, RJ: Vozes, p. 7-72, 2012.
1

Luís Fernando da Silva Laroque


Jonathan Busolli

Os Kaingang são um grupo indígena pertencente ao tronco linguístico Macro-Jê e aos


Jês meridionais. Segundo dados do Censo Demográfico de 2010 (IBGE, 2012), os
Kaingang se constituem no terceiro maior grupo populacional indígena do Brasil, com uma
população de 37.470 pessoas. Seu tradicional território se estende por áreas do planalto
meridional brasileiro, cobertas por florestas de araucária, desde a bacia do rio Tietê, no
estado de São Paulo, até as bacias hidrográficas do lago Guaíba, e dos rios Sinos, Caí e
Taquari-Antas no estado do Rio Grande do Sul.
Diferentemente de outras populações indígenas que viviam próximas a eles, só
foram diretamente atingidas pelo contato com populações não indígenas a partir do século
XIX, em um momento em que o recém-criado Estado nacional brasileiro buscava ocupar suas
áreas de fronteiras com populações de origem europeia. Este contato e o subsequente
conflito gerado, a partir dele, originaram um processo de expulsão das populações
Kaingang de seus territórios a partir da iniciativa estatal de confiná-los em
aldeamentos. Nestes espaços, essas populações foram submetidas às tentativas de
catequização e de formação de mão de obra agrícola barata para a economia local, práticas
empreendidas pelo Brasil a partir das políticas indigenistas adotadas, independentemente
dos regimes que o governaram, ao longo dos séculos XIX e XX.
Mesmo com as políticas repressivas, as populações Kaingang jamais deixaram de
se movimentar por seus territórios e, principalmente, a partir da década de 1950,
passaram a empreender um processo de reterritorialidade sobre suas áreas tradicionais,
estabelecendo terras indígenas em espaços agora parte de contextos urbanos. No Vale do
Taquari, Rio Grande do Sul, esse processo intensificou-se por volta da década de 1960, a
exemplo da Terra Indígena Jamã Tÿ Tãnh, localizada no município de Estrela.
Posteriormente, outras oito terras indígenas surgiram, distribuídas em áreas da
porção centro-norte do Rio Grande do Sul. Uma das áreas mais recentes é a Terra
Indígena Pó Mág, localizada no município de Tabaí, também no Vale do Taquari,
instalada como medida compensatória às comunidades Kaingang da região e proximidades
EE

1
...O estudo insere-se no Projeto de Pesquisa “Identidades étnicas em espaços territoriais da Bacia
Hidrográfica do Taquari-Antas/RS: história, movimentações e desdobramentos socioambientais” e no Projeto de
Extensão “História e Cultura Kaingang em territórios da Bacia Hidrográfica do Taquari-Antas” e conta com
auxílio financeiro da Universidade do Vale do Taquari - UNIVATES.
* Universidade do Vale do Taquari – Univates, Doutor em História. Professor do PPG em Ambiente e
Desenvolvimento.
** Universidade do Vale do Taquari – Univates, Graduação em História, Mestrando no PPG em Ambiente
e Desenvolvimento, Bolsa PROSUP-CAPES.
em virtude da duplicação da rodovia BR 386, atingidas direta ou indiretamente pelas obras.
A Pó Mág surgiu então, em uma área de terra nos arredores do município de Tabaí, onde se
fixaram Kaingang oriundos da Terra Indígena Foxá, localizada na cidade de Lajeado, sendo a
primeira um desdobramento desta.
O objetivo da pesquisa é identificar as demandas desta comunidade em meio ao
processo de reterritorialidade Kaingang. A base metodológica é qualitativa com análise de
conteúdo e o uso dos procedimentos ligados à História Oral, além da revisão bibliográfica,
pesquisa documental e pesquisa de campo. A História Oral é relevante para a execução do
trabalho, uma vez que os Kaingang somente passam a fazer uso da escrita após o
início do processo de conquista empreendido a partir do século XV.
Conforme aponta Paes (2003), em um estudo realizado junto aos indígenas Terena de
Mato Grosso do Sul, o uso da História Oral entre as populações indígenas pode
contribuir para revitalização da cultura, da autoestima e das tradições próprias dessas
populações. Desse modo, a utilização desta metodologia vem ao encontro da transmissão
das tradições entre as populações indígenas realizadas a partir da oralidade.
A utilização de entrevistas fornece a possibilidade de uma reconstituição histórica a
partir do ponto de vista daqueles sujeitos que no caso não são as fontes oficiais, ou seja, os
indígenas relegados a condições de marginalidade social e que em demasia sofrem com
o processo de invisibilização. As entrevistas foram pensadas de maneira
semiestruturada e realizadas considerando a dinâmica da comunidade Kaingang da Terra
Indígena Pó Mág, localizada em contexto urbano na região do Vale do Taquari. Foram
entrevistados, dessa maneira, liderança Kaingang e agentes públicos ligados às áreas de
saúde e à educação, totalizando quatro entrevistas. As entrevistas foram realizadas tendo o
aceite da comunidade Kaingang, expresso por meio do Termo de Anuência Prévia (TAP) da
liderança indígena e do Termo de Consentimento Livre e Esclarecido (TCLE) dos
entrevistados.
O estudo também contou com a revisão bibliográfica e o levantamento documental
junto ao Ministério Público Federal de procedimentos que abordem questões de conflito
entre os indígenas e não indígenas no município de Tabaí. Também realizou-se um
levantamento etnográfico a partir da presença na terra indígena, documentada através da
elaboração de diários de campo e da realização de registros fotográficos. Os dados obtidos na
pesquisa são analisados com base teórica de autores como Clastres (1979), bem como Paes
(2003), Vansina (2010) e Lappe e Laroque (2013).

Na segunda metade do século XX, iniciou-se um processo de reterritorialidade


empreendido pelas comunidades indígenas do planalto rio-grandense para seus territórios
tradicionais, principalmente os espaços localizados próximos a cidades de médio ou grande porte,
na serra gaúcha, nos vales do Taquari e Sinos, bem como na região Metropolitana de Porto Alegre,
não só transitando por esses espaços, algo que eles nunca deixaram de fazer, mas, também, se
fixando em algumas destas áreas. Na região do Vale do Taquari, o início do retorno dessas
populações se deu há mais quarenta anos por grupos Kaingang que lutam para manter em áreas
deste território elementos de sua cultura e tradição (OLIVEIRA, 2010).
Na região são encontradas, atualmente, três terras indígenas Kaingang: a Terra Indígena
Foxá, em Lajeado; a Terra Indígena Jamã Tÿ Tãnh, em Estrela; e a Terra Indígena Pó Mág, em
Tabaí. Além destas, há outras cinco terras indígenas Kaingang nas regiões da serra e da região
metropolitana de Porto Alegre.
Segundo Lappe e Laroque (2013), a presença Kaingang em contextos urbanos visa manter
a sustentabilidade do grupo através da venda de seu artesanato, uma vez que os indígenas não
conseguem, nos dias atuais, manter-se apenas com a agricultura de subsistência e com a coleta de
produtos nas matas. Desse modo, os acampamentos provisórios erguidos tradicionalmente em áreas
de coleta de provisões, denominados pelos Kaingang de wãre, passaram por uma atualização e,
desde então, também podem estar localizados próximos às rodovias ou áreas urbanas, buscando
através da venda do artesanato possibilitar o abastecimento econômico do grupo.
Esse processo de reterritorialização gera uma série de desencontros culturais dentro de uma
fronteira étnica que está se formando entre indígenas e não indígenas. Este fenômeno vai ser
maximizado a partir do ano de 2010, quando se iniciou a duplicação da rodovia BR 386. A execução
da obra atingiria diretamente a Terra Indígena Jamã Tÿ Tãnh. Desse modo, conforme a legislação
vigente, antes do início de qualquer obra, um estudo antropológico e ambiental deve ser produzido
visando avaliar os impactos que tal obra tende a acarretar.
O primeiro desses Estudos de Impacto Ambiental/Relatório de Impacto Ambiental
(EIA/RIMA) fora conduzido pelo antropólogo Dr. Jaci Rocha Gonçalves (2008), contendo o
contexto histórico, as condições de vida e as relações sociopolíticas da comunidade indígena em
relação à sociedade envolvente, além das questões relacionadas ao impacto que as obras de
duplicação da rodovia causariam não só aos indígenas Kaingang, mas também aos demais
moradores estabelecidos às margens do trecho duplicado.
O laudo técnico sugeriu a aplicação de medidas compensatórias aos indígenas como meio
de minimizar as perdas territoriais sofridas por eles. Dentre as medidas apontadas aos órgãos
públicos para compensar os impactos aos Kaingang da Terra Indígena Jamã Tÿ Tãnh estão, por
exemplo, a busca pela demarcação e oficialização da área como Terra Indígena; a criação de um
grupo de trabalho para reunir e dialogar com os Kaingang das Terras indígenas próximas; a
implementação de programas de apoio para sua sustentabilidade e autonomia da comunidade, a
regularização, construção de moradia, banheiro, água e saneamento; a reforma e construção de uma
escola, um posto de saúde e um centro cultural na comunidade (GONÇALVES, 2008).
Um segundo laudo antropológico fora produzido, agora desenvolvido por Ledson Kurtz de
Almeida e Ricardo Cid Fernandes (2010), onde são apontados uma série de objetivos e metas a
serem alcançados em relação à comunidade, como a construção de novas casas para os Kaingang e
a construção de uma escola, além da aquisição de 33 hectares de terra a serem distribuídos à
comunidade de Estrela e outros 17 hectares a serem distribuídos para cada uma das seis
comunidades Kaingang mencionadas no laudo anterior.
A liderança Kaingang da Terra Indígena Foxá da época, o cacique Francisco Rockã dos
Santos, uma área terra fora escolhida por ele e pelo restante do grupo para ser repassada à
comunidade. Desse modo, surgiu a Terra Indígena Pó Mág, em Tabaí, como um desdobramento da
Terra Indígena Foxá, representando uma medida compensatória em razão da duplicação da BR 386,
que atinge esta última comunidade de forma indireta.
Desdobramentos e dissidências são fatores comuns entre as sociedades indígenas, entre elas
os Kaingang. As sociedades indígenas são caracterizadas por um movimento centrífugo,
diferentemente das sociedades com Estado e seu movimento centrípeto, uniformizador. O
movimento centrifugo das sociedades tradicionais é o meio destas se afastarem da centralização do
poder a partir do afastamento de membros do grupo que ameacem o status quo, fazendo com que a
formações de novos grupos a partir de um primeiro entre comunidades indígenas seja algo comum,
sendo para o autor, um mecanismo que impede a formação do Estado entre as sociedades indígenas
(CLASTRES, 1979).
Entre os Kaingang, dissidências ou desdobramentos entre as lideranças foram comuns
durante o século XIX, conforme apresentado por Laroque (2009). Outro exemplo desse tipo de
movimentação, na atualidade, pode ser ilustrado a partir do desdobramento da Terra Indígena Jamã
Fág Nhin/Lomba do Pinheiro que deu origem à Terra Indígena Jamã Tupẽ Pẽn/Morro do Osso,
ambas localizadas em Porto Alegre.

O nome Pó Mág tem origem na língua Kaingang e significa “Pedra Grande”, uma referência
às inúmeras formações rochosas presentes no local. A Pó Mág fora inicialmente pensada como um
acampamento provisório, para abastecer a Terra Indígena Foxá com matérias primas para a
produção de artesanato. No entanto, acabou por se transformar em um acampamento fixo (Diário
de Campo, 08/01/2014). A sustentabilidade da comunidade também depende da venda do
artesanato, realizado nos municípios próximos de Lajeado e Montenegro.
A Terra Indígena Pó Mág, localizada em Tabaí, vem enfrentando desde sua criação,
resistência por parte da sociedade envolvente, no que diz respeito às suas demandas por acesso à
educação e também à saúde, sofrendo, assim, um descaso e um desrespeito em relação aos seus
direitos constitucionais. A Constituição Federal de 1988 representa um marco, pois é um grande
avanço em relação aos direitos indígenas. Conforme Matte (2009) é a primeira vez no Brasil que se
tem uma regulamentação jurídica nas relações entre o Estado e as populações indígenas
contemporâneas.
Não há abastecimento de água na Terra Indígena Pó Mág, de modo que os antigos
proprietários da área se utilizavam de um poço artesiano para obtê-la. No entanto, no momento da
instalação da comunidade Kaingang no local, este poço já estava inutilizado, sem os instrumentos
mecânicos necessários para a obtenção da água. A liderança da época, o cacique Francisco Rockã,
informa ter tentado resolver a questão a partir da obtenção de uma nova bomba d’água, porém sem
auxílio dos órgãos competentes como a Secretária de Saúde Indígena (SESAI), não obteve sucesso
(Diário de Campo, 11/09/2014).
Em relação à educação, desde o estabelecimento da comunidade em fins do ano de 2013,
que o então cacique Francisco Rockã vinha buscando matricular as crianças indígenas no sistema
escolar local gerenciado pela Secretária de Educação do município, porém não obteve sucesso
(Diário de Campo, 08/01/2014). As sucessivas negativas da matrícula escolar das crianças levaram
a comunidade Kaingang a acionar o Ministério Público Federal (MPF) por meio do Termo de
Declarações PR-RS – 00014694/2014, que se encontra presente no Procedimento Preparatório nº
1.29.000.002074/2014-11 (BRASIL, 2014).
Nesse mesmo documento, a comunidade solicita a contratação de um professor indígena,
no sentido de resolver a questão sem maiores conflitos. Além disso, também há o relato da
comunidade acerca de “diversas formas de preconceito por parte do Poder Público Municipal,
principalmente no que diz respeito à questão da educação”, uma vez que a prefeitura local alegou
não poder matricular os alunos indígenas devido à disparidade em relação à faixa etária dos
mesmos. Essa informação é confirmada pelo entrevistado E1 (2015), que atua junto à 3ª CRE,
conforme segue:

Eles tiveram resistência em Tabaí. Tabaí se explicou quando eles estiveram em 2014. No
segundo semestre eles foram ao Ministério Público e Tabaí negou vaga. Realmente eles
confirmaram que fizeram isso diante do Ministério Púbico por que... pelo seguinte. Eles
falaram que não tinha como colocar uma criança de quinze, catorze com crianças de oito.
Mas, na verdade, tinha outras crianças com a mesma idade né, pequenos. Então foi uma
justificativa que deixou a desejar, pelo menos os pequenos podiam ser incluídos e aí eles
falaram que transporte, que é demanda do município. Como é que o transporte ia entrar lá
em cima, não tinha como da BR, porque eles moram em um local de difícil acesso, bem
irregular assim. Então eles alegaram isso né, que não teria como o transporte ir buscar lá
dentro e também colocar um aluno grande com um aluno pequeno. Eles alegaram que não
negaram a vaga, mas como justificativa colocaram isso (E1 – 23/10/2015, p. 4-5).

O entrevistado E2 (2015), morador da Terra Indígena Foxá, quando perguntado sobre a


importância da escola dentro da comunidade, aponta-a como contraponto ao ensino não indígena
realizado nas escolas de fora, conforme segue:

Porque a escola fora da aldeia ela influencia a educação dos nossos filhos fora. Ela muda
a educação já que lá é diferente, é uma maneira. Lá é assim, assim, assim, aqui é a cultura
indígena né. Aí é muito importante que a escola seje (sic) drento (sic). Aí a criança não vai
ter todo o processo de ir para fora para poder estudar (E2 – 28/08/2015, p. 12).

Como já discutido, os Kaingang recorrem à oralidade para a transmissão às gerações


vindouras de aspectos culturais ligados à tradição, crenças, mito e à sua historicidade, não sendo
apenas um instrumento de comunicação diária, mas também o meio da transmissão e de
preservação de sua sabedoria ancestral, ou seja, de sua tradição oral, fenômeno muito presente entre
as sociedades ágrafas (VANSINA, 2010). Segundo Claudino (2010), a importância da oralidade no
ensino e aprendizagem Kaingang é evidenciado à medida que se observa a confecção de suas
ferramentas e artesanatos, produzidos a partir do conhecimento ancestral. No entanto, possuir um
espaço escolar dentro da comunidade é uma forma de buscar um maior diálogo com a sociedade
nacional, além de promover a continuidade da cultura Kaingang, apesar de este constituir-se como
uma instituição ocidental.
Sobre os problemas envolvendo o abastecimento de água, a comunidade da Terra Indígena
Pó Mág redigiu em agosto de 2014 uma carta endereçada ao Procurador do MPF, de Porto Alegre,
Mauro Cichowski dos Santos, onde expunham o problema e a não resolução do mesmo por parte
dos órgãos públicos, além de apresentar uma imagem do açude, quase seco e cuja água era
imprópria para o consumo e que, no entanto, estava sendo consumida pela comunidade, conforme
trecho a seguir:
Nós Kaingang da Terra Indígena Pobán, localizada no município de Tabaí-RS, viemos
através deste documento pedir ajuda em uma questão de extrema urgência. Desde o final
de 2013 ocupamos a área em que vivemos e desde lá enfrentamos sérios problemas divido
à falta de água. O verão passado foi um dos mais quentes dos últimos anos e nós vivemos
esse período praticamente sem ter água potável (CARTA, 2014, p. 1).

Em resposta às solicitações da comunidade, o MPF se reuniu com os gestores públicos


envolvidos na questão, estando eles situados no âmbito municipal, estadual e federal. No termo de
reunião, registrado no Procedimento Preparatório nº 1.29.000.002074/2014-11, a SESAI se
prontificou a tomar as providencias cabíveis no sentido de propiciar o abastecimento de água para
a comunidade, emergencialmente através de uma caixa d’água abastecida a partir de um caminhão
pipa (BRASIL, 2014).
Desse modo, a SESAI se comprometeu o disponibilizar o mais rápido possível, o incentivo
estadual para a saúde indígena. O incentivo em questão consta na Portaria estadual nº 41/2013
publicada no Diário Oficial de 1º de fevereiro de 2013 do estado do Rio Grande do Sul, que garante
uma verba de quatro mil reais a municípios que possuírem uma Equipe Multidisciplinar de
Saúde Indígena (EMSI)2 , ou como no caso de Tabaí, de no mínimo mil reais para todo e
qualquer
2
Programa do Ministério da Saúde voltado para facilitar e garantir o atendimento das populações indígenas
pelo Sistema Único de Saúde (SUS).
qualquer município que possuir grupos indígenas fixados, de modo a subsidiar o atendimento
médico àquela população (RIO GRANDE DO SUL, 2013). Essa verba específica está
sendo enviada para o município de Tabaí, conforme aponta a entrevistada E3, onde o
representante do município diz: “A gente até pediu essa verba, mas hoje a gente recebe mil
reais mensal (sic) do estado, da SESAI” (E3 – 23/10/2015, p. 1).
Em relação à educação, a questão das diferenças na faixa etária foi novamente referida pelo
município de Tabaí para a não matricula das crianças indígenas. Em resposta, a Secretária de
Educação (SEDUC) do estado informou que, inicialmente, a implantação de uma escola indígena
na área era inviável devido ao fato de haver apenas três crianças em idade escolar, naquele momento
(final de 2013 e início de 2014), mas que a SEDUC já estava a par de que a população da
comunidade havia aumentado, de modo que a criação e instalação de uma escola na Terra Indígena
Pó Mág deveria tramitar até o fim do ano de 2014.
A não resolução dos problemas forçou a comunidade a mais uma vez se reunir junto ao
MPF de Porto Alegre no dia 25 de setembro. Representando a comunidade estavam presentes o
então cacique Francisco Rockã, sua esposa Lurdes Carvalho e o então vice-cacique da Pó Mág,
Tomé Fongue, com o objetivo de alcançar a imediata normalização do acesso à saúde e educação
na comunidade. O problema foi resolvido no mês de outubro de 2014, quando houve a instalação
de uma caixa d’água na comunidade. Esta primeira caixa, segundo informações do Diário de
Campo (23/10/2015), foi substituída, posteriormente, por outra, mais resistente, sendo abastecido a
cada quinze dias por um caminhão pipa enviado pela SESAI, ou quando não há mais água.
No entanto, os problemas persistiram. O acesso do caminhão à Terra Indígena Pó Mág é
dificultado pela localização da mesma, já que se trata de uma área de acentuado aclive conforme
atesta levantamento topográfico do local conseguido junto ao SEDUC, além das péssimas
condições da estrada. Devido a isso, algumas vezes o caminhão não consegue abastecer a
comunidade dentro do prazo estipulado.
Uma nova reunião no MPF ocorreu no dia trinta de julho de 2015, onde o então vice-cacique
Tomé Fongue se reuniu com representantes da SESAI, da Companhia Rio-Grandense de
Saneamento (CORSAN). A presença da CORSAN foi uma solicitação da SESAI, que devido à
ineficiência do abastecimento a partir do caminhão pipa, cogitava-se a perfuração de um novo poço
artesiano, questão que caberia então a este órgão. Os estudos de viabilidade da perfuração seriam
solicitados à Prefeitura Municipal (BRASIL, 2014).
Buscando auxiliar na resolução da questão da escola, a própria comunidade da Pó Mág
buscou um professor que, posteriormente, seria oficializado pela 3ª CRE. Desse modo, uma
professora, oriunda da Terra Indígena de Guarita, se estabeleceu em Tabaí, em fins de 2014, e
permaneceu na mesma até meados do ano de 2015, ministrando aulas de forma voluntária.
Entretanto, devido à falta de perspectiva de regularização de sua situação e pelo fato de não ter o
curso de Magistério concluído, a referida professora retornou para sua comunidade de origem
(Diário de Campo, 23/10/2014; 28/05/2015).
Finalmente, em treze de março de 2015, a criação da escola foi confirmada por meio de
publicação no Diário Oficial do estado do Rio Grande do Sul, sendo denominada Escola Estadual
Indígena de Ensino Fundamental Pó Mág, visando atender as treze crianças da comunidade, cuja
faixa etária estendia-se entre os seis e os catorze anos. No entanto, apesar da criação e nominação
da escola, de concreto não houve maiores avanços, conforme relato do entrevistado E1 (2015):

[...] Na verdade, o estado deveria ter já dado uma urgência para esse caso, porém houve,
bem na época, a troca de governo. Quando eles foram no Ministério Público a segunda
vez; a segunda vez foi esse ano. Mas quando eles foram em 2014, já estava sendo feito
encaminhamento. Foi feito encaminhamento aqui na CRE, tava [sic] sendo feito o
encaminhamento para que fosse aprovado pelo estado a criação. A primeira coisa que é
feito é a criação e denominação da escola, depois o processo de credenciamento e
autorização. Daí como foi exigido aqui da CRE, a CRE fez isso. A CRE encaminhou. Só
que daí até o final do ano esse encaminhamento não obteve resposta entenderam. Foi feito
o oficio, mais de um oficio, inclusive, feito pra que fosse feito [alarme de carro tocando]
criada a denominação da escola. Então, só em março desse ano o governo Sartori assinou
(E1 – 23/10/2015, p. 6).

Um novo professor chegou à Terra Indígena Pó Mág em meados do ano de 2015, convidado
pelas lideranças locais. Também oriundo da Terra Indígena de Guarita, o professor iniciou de
maneira voluntária as aulas, aguardando sua contratação e regularização pelo estado. Como a
situação persistiu, a alternativa encontrada pela comunidade indígena foi a de ministrar as aulas na
garagem de uma das moradias da Terra Indígena Pó Mág, que pertencia aos antigos moradores da
área (Diário de Campo, 28/05/2015).
De qualquer modo, o imbróglio pela instalação da escola na Terra Indígena Pó Mág
prosseguiu, mesmo tendo seu funcionamento praticamente acertado juridicamente. Na primeira
semana do mês de julho de 2015, a SEDUC abriu edital para a contratação de professores indígenas,
buscando regularizar a situação das escolas indígenas, não só na região do Vale do Taquari, mas
também em outras partes do estado. A comunidade aguardava havia muito a abertura de tal edital
por parte da SEDUC, pois se pretendia regularizar a situação do professor indígena que já estava
estabelecido no local (Diário de Campo, 18/09/2015).
Sobre isto, apresenta-se o seguinte relato:

Tabaí é assim. Nós mandamos, ontem, né. Foi levado o processo daqui da coordenadoria
de várias páginas pra Porto Alegre e esse processo foi pra SEDUC e pro Conselho Estadual
de Educação, sendo que neste processo consta uma ata do Ministério Público onde dois
anos as crianças ficaram sem escola né e as crianças precisam estudar. Isto está na lei, é
obrigatório e está sendo uma falha né essas crianças estarem fora da escola. Então, foi em
agosto desse ano que eles foram no Ministério Público dizer isso, que eles não queriam
mais que as crianças ficassem sem escola. A comunidade indígena exigiu que essas
crianças frequentassem uma escola ou que as crianças fossem... Eles queriam uma escola
na área indígena né, porque ali naquela área da pra se construída. Aí aconteceu em março
desse ano, [alarme de carro tocando] treze de março de 2015 que o governo do estado
assinou o decreto de criação e denominação da escola. Esse ano ele criou e assinou esse
decreto no diário né. Aí essas crianças, são doze crianças que estão fora da escola desde
dezembro, desde o segundo semestre de 2013, quando eles se mudaram pra lá. Então, na
verdade, há dois anos eles estão fora da escola. (E1 – 23/10/2015, p. 3-4).

A burocracia é um dos grandes entraves para a não consolidação da escola indígena na Terra
Indígena Pó Mág, que há dois anos vem nesta caminhada para a implantação deste direito
constitucional. As várias instâncias pelas quais este tipo de demanda deve transitar foram
responsáveis por postergar a implantação da escola para o ano letivo de 2016. Desse modo temos:

Então agora a gente conseguiu instaura esse processo, enviando pra SEDUC e pro
Conselho Estadual de Educação, e aí eles analisam esse processo e algumas coisas que
tem que ser, como vou dizer assim, algumas coisas que eles percebam que não está
adequado, retorna pra nós. Por exemplo, as fotos. Fotos não pode ter pessoas, tem que ser
só as instalações. Nós tiramos fotos, assim, com alguns indígenas, daí não pode né. Então,
a gente vai refazer as fotos e a gente vai estar enviando esse processo para que eles tenham
escola. E tem um professor já em vista que é um professor lá do norte também, parente da
liderança da aldeia Pó Mág de Tabaí. Esse professor é bem jovem, Mizael Carvalho.
Então, ele se formou em estudo bilíngue na escola de São Valério, na mesma escola que
o outro professor. Ele se formou na escola bilíngue e então ele vai lecionar o Kaingang e,
também, o currículo por atividades ali naquela escola. Só que nós só chamaremos ele em
um momento posterior. Agora tem que esperar esse processo porque tem toda uma
burocracia para aguardarmos, porque a gente gostaria que ele assumisse ontem (E1 –
23/10/2015, p. 4).

A construção da escola na Terra Indígena Pó Mág prevista nas medidas compensatórias da


duplicação da BR 386, deverá levar em consideração aspectos próprios da cultura Kaingang, a
exemplo do que está acontecendo na Terra Indígena Jamã Tÿ Tãnh, onde o prédio da futura escola
apresenta as marcas exogâmicas Kamé e Kairu. A representante da 3ª CRE entrevistada para o
presente estudo confirma isso, bem como demonstra ter conhecimento sobre o assunto:

A Secretária de Obras no caso é estudada junto né, Secretária de Obras e Secretária de


Educação. A gente tem visto, por exemplo aqui em Estrela. A construção foi de acordo
com a cultura indígena né. Tem sido feito de acordo com a cultura indígena que é os dois
irmãos mitológicos, Kamé e Kairu, que foi feito ali; muito bonito o projeto. A gente espera
que seja feito a partir da cultura indígena os demais já que ali foi um modelo, muito lindo,
muito significativo dessa cultura. A gente espera que seja construída assim, porque no
norte não é assim, nas demais escolas que já têm os indígenas que tem outras escolas
indígenas que não foi construído dessa forma. Mas que isso seja um modelo e que
provavelmente isso vai ser cumprido porque agora as comunidades indígenas viram que
fico. Todos eles quando visitam ali, dizem: nós queremos que nossa escola fique assim,
também; tem a ver com a nossa cultura”. Então, eu acredito de acordo com que a
comunidade deseja que também vai ser feito assim dessa forma. Eu acredito que sim, que vai
ser de acordo com a cultura deles. Porque o que eles reivindicam, normalmente eles são
atendidos, às vezes um pouco devagar, mas enfim (E1 – 23/10/2015, p. 7).

Além da regularização do abastecimento de água para a comunidade, a Terra Indígena Pó


Mág vinha enfrentando resistência por parte do município de Tabaí, também no âmbito do
atendimento médico, conforme abordado. No entanto, esse quadro parece ter sido resolvido nos
meses iniciais do ano de 2015, uma vez que as famílias Kaingang passaram a ser atendidas no posto
de saúde local, conforme relata o novo cacique, Tomé Fongue, ao informar que a comunidade
estava sendo bem atendida pelo posto de saúde local, diferentemente do que ocorria logo após
instalarem-se em Tabaí, sendo esta uma conquista importante para a Terra Indígena Pó Mág (Diário
de Campo, 18/09/2015).
Conforme relato do entrevistado E3 (2015) sobre o atendimento médico na comunidade da
Pó Mág, temos:
Eles são atendidos aqui mesmo (Posto de Saúde) pelo dentista, pelos médicos da atenção
básica e eles têm visita domiciliar que o médico vai até a aldeia com a enfermeira e a
agente deles também. [...] É um médico do Saúde da Família que faz visita lá, com a nossa
enfermeira. Que a equipe faz visita domiciliar. [...] eles atendem a área indígena e os
demais bairros que pertencem pra área deles, que seria o SF1, que seria o médico do Saúde da
Família (E3 – 30.10.2015, p. 3).

Tal fato pode ser exemplificado pelo falecido cacique Francisco Rockã, que teve seu
tratamento garantido pela saúde local em relação a uma tuberculose e, posteriormente, um câncer
no pulmão. No entanto, devido à gravidade do seu quadro de saúde, Francisco precisou ser
transferido para Porto Alegre, aonde veio a falecer (Diário de Campo, 28/05/2015; 25/06/2015).
Quando perguntada sobre qual tipo de atendimento era mais comum entre a comunidade, o
entrevistado E3 (2015) apontou o caso do falecido cacique Francisco como excepcional, uma vez
que a comunidade dificilmente procura o atendimento. Sobre isto, temos:

[...] eles não procuram muito não. É só quando realmente eles têm necessidade. Eles não têm
como vir assim periodicamente fazer exames, esse tipo de coisa.
Acompanhamento, só que seja realmente necessário. Se é um caso especifico, como o
cacique deles lá3 que teve um caso de tuberculose e nos procurou, foi atendido, medicado e
então ele vinha todo mês. Que até ele veio a falecer faz uns três meses já, por motivo, mas daí
de câncer, ele morreu de câncer de pulmão (E3 – 30/10/2015, p. 1-2).

A relação entre comunidade da terra indígena e os responsáveis pelo atendimento


médico é positiva conforme aponta um dos responsáveis pela administração do serviço de
saúde em Tabaí:
3O entrevistado E3 está se referindo ao cacique Francisco Rockã dos Santos.
Bem tranquila... Eles têm uma agente de saúde que trabalha conosco aqui, integrada na
rede da atenção básica e eles procura... Toda vez que eles procuram nós aqui, são
atendidos, não tem reclamação, bem tranquilo. [...] é bem tranquilo. Eles procuram quando
eles têm alguma demanda assim especifica deles, alguma dor, alguma coisa. Só nesses
casos mesmo, eles procuram a Saúde (E3 – 30/10/2015, p. 1).

Outra conquista empreendida pela terra indígena e sua liderança foi a contratação de
maneira emergencial, por parte da SESAI, de um membro da comunidade como agente de saúde
indígena, visando suprir as necessidades médicas da comunidade, recebendo do órgão treinamento
e aperfeiçoamento para cumprir esta função. A referida agente, denominada aqui de entrevistado
E4 comenta que: “Aqui é coisa de todo dia que eu acompanho. Todo dia que eu estou assim nas
casas, mas só que assim, eu anoto só uma vez por semana” (E4 – 23/10/2015, p.1).
Mesmo hoje, com a escassez de produtos naturais, a comunidade ainda busca se utilizar de
remédios do mato a partir dos conhecimentos dos mais velhos, mesmo que em menor quantidade
que nos tempos de outrora, conforme segue: “Assim, minha mãe, por exemplo, quando a gente fica
doente, ela procura os remédios, assim, no mato. Mas daí eu não sei te dizer bem o nome porque só
ela que sabe” (E4 – 23/10/2015, p. 1).
Como visto, apesar dos percalços iniciais, as demandas da comunidade Kaingang da Terra
Indígena Pó Mág vêm aos poucos sendo alcançadas. E conquistas importantes já aconteceram como
o acesso indiscriminado da comunidade ao sistema de saúde local: a contratação de uma agente de
saúde indígena e a criação e denominação de uma escola indígena a ser construída dentro daquela
área, entre outras. Percebe-se, dessa maneira, que a luta e o protagonismo dessa população pela
obtenção e pela garantia de seus direitos vêm sendo construída pouco a pouco, com esforço e
dedicação.

Percebe-se a inserção da Terra Indígena Pó Mág no longo processo de lutas Kaingang,


advindas desde os primeiros contatos com o elemento não indígena até o processo de
reterritorialidade, marcado pelas difíceis relações com as populações não indígenas. Além disso, a
luta Kaingang da Terra Indígena Pó Mág, assim como das demais terras indígenas da bacia Taquari-
Antas, também se desenvolve no que diz respeito à sua manutenção cultural, a partir do acesso a
uma saúde e educação diferenciada, que leve em consideração sua alteridade étnica e seus saberes
tradicionais, sendo esta considerada também como uma demanda central dessa população na busca
pela sua continuidade étnica, demonstrando sua preocupação em afirmar-se como identidade
própria.
A Constituição Federal de 1988 apresentou para as populações indígenas, novas
possibilidades em relação à reprodução de seus processos próprios, questão essa que se dá a partir
do reconhecimento da importância da língua nativa e de sua manutenção a partir de escolas dentro
das terras indígenas. A partir disso uma série de medidas governamentais no âmbito da educação
escolar indígena vem surgindo, visando avançar ainda mais nesta questão. A conquista de espaços
como este, assim como a garantia de seus direitos em relação ao acesso à saúde pública, no entanto,
ainda é realidade distante em alguns casos. Mas, a partir do protagonismo das comunidades
Kaingang e suas lideranças, essas demandas vêm sendo alcançadas nas terras indígenas localizadas
em áreas da bacia hidrográfica Taquari-Antas.

ALMEIDA, Ledson Kurtz; FERNANDES, Ricardo Cid (Org.) Programa de apoio as


comunidades Kaingangs: Plano Básico Ambiental das obras de duplicação da Rodovia BR-386 –
segmento 350,8 – Km 386,0, com 35,2 km de extensão. MRS Estudos Ambientais LTDA: 2010.

BRASIL. Constituição. Constituição da República Federativa do Brasil. Brasília/DF: Senado


Federal: Centro Gráfico, 1988. Disponível em:
<http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constitui%C3%A7ao.htm>. Acesso em: 01
ago. 2015.

BRASIL. Ministério Público Federal no Rio Grande do Sul. Procedimento Preparatório nº


1.29.000.002074/2014-11. Porto Alegre/RS, 2014.

CARTA ao Senhor procurador do Ministério Público Federal. Comunidade Kaingang Pedra


Grande, Tabaí/RS: agosto de 2014. In. BRASIL. Ministério Público Federal no Rio Grande do
Sul. Procedimento Preparatório n. 1.29.000.002074/2014-11. Porto Alegre/RS, 2014.

CENSO DEMOGRÁFICO 2010. Instituto Brasileiro de Geografia e Estatísticas (IBGE). Rio de


Janeiro: IBGE, 2011. Disponível em: <http://censo2010.ibge.gov.br/.> Acesso em: set. 2015.

CLASTRES, Pierre. A sociedade contra o Estado. Porto-POR: Afrontamento, [1974] 1979.

CLAUDINO, Zaqueu. Educação escolar indígena: um sonho possível? In. BENVENUTI, Juçara;
SANTOS, Simone Valdete dos; MARQUES, Tania Beatriz Iwaszko (Org.). Educação indígena
em diálogos. Pelotas/RS: Ed. da UFPEL, 2010.

DIÁRIO de Campo de 08/01/2014. Pesquisa à Terra Indígena Pó Mág no Vale do Taquari.


Projeto de Extensão História e Cultura Kaingang em Lajeado e Estrela/RS. 08 jan. 2014. 4 p.

DIÁRIO de Campo de 11/09/2014. Pesquisa à Terra Indígena Pó Mág no Vale do Taquari.


Projeto de Extensão História e Cultura Kaingang em Lajeado e Estrela/RS. 11 set. 2014. 2 p.
DIÁRIO de Campo de 23/10/2014. Pesquisa à Terra Indígena Pó Mág no Vale do Taquari.
Projeto de Extensão História e Cultura Kaingang em Lajeado e Estrela/RS. 23 out. 2014. 2 p.

DIÁRIO de Campo de 28/05/2015. Pesquisa à Terra Indígena Pó Mág no Vale do Taquari.


Projeto de Extensão História e Cultura Kaingang em territórios da Bacia Hidrográfica Taquari-
Antas. 28 mai. 2015. 4 p.

DIÁRIO de Campo de 25/06/2015. Pesquisa à Terra Indígena Pó Mág no Vale do Taquari.


Projeto de Extensão História e Cultura Kaingang em territórios da Bacia Hidrográfica Taquari-
Antas. 25 jun. 2015. 6 p.

DIÁRIO de Campo de 18/09/2015. Pesquisa à Terra Indígena Pó Mág no Vale do Taquari.


Projeto de Extensão História e Cultura Kaingang em territórios da Bacia Hidrográfica Taquari-
Antas. 18 set. 2015. 2 p.

E1 – Entrevistado 1: depoimento [23 de out. 2015, 7 p.]. 3ª CRE, Estrela/RS. Entrevistador:


Jonathan Busolli. Estrela/RS: s. e., 2015. Gravação em máquina digital. Entrevista concedida ao
Projeto de Extensão História e Cultura Kaingang em Territórios da Bacia Hidrográfica Taquari-
Antas. Lajeado: Univates.

E2 – Entrevistado 2: depoimento [28 de ago. 2015, 3 p.]. Cacique da Terra Indígena Foxá,
Lajeado/RS. Entrevistador: Jonathan Busolli e Emeli Lappe. Lajeado/RS: s. e., 2015. Gravação
em máquina digital. Entrevista concedida ao Projeto de Extensão História e Cultura Kaingang em
Territórios da Bacia Hidrográfica Taquari-Antas. Lajeado: Univates.

E3 – Entrevistado 3: depoimento [23 de out. 2015, 2 p.]. Agente de saúde indígena, Terra
Indígena Pó Mág, Tabaí/RS. Entrevistadores: Emeli Lappe e Jonathan Busolli. Tabaí/RS: s. e.,
2015. Gravação em máquina digital. Entrevista concedida ao Projeto de Extensão História e
Cultura Kaingang em Territórios da Bacia Hidrográfica Taquari-Antas. Lajeado: Univates.

E4 – Entrevistado 4: depoimento [30 de out. 2015, 3 p.]. Secretaria de Assistência Social,


Tabaí/RS. Entrevistador: Jonathan Busolli. Tabaí/RS: s.e., 2015. Gravação em máquina digital.
Entrevista concedida ao Projeto de Extensão História e Cultura Kaingang em Territórios da Bacia
Hidrográfica Taquari-Antas. Lajeado: Univates.

GONÇALVES, Jaci Rocha. Relatório final antropologia na área de duplicação da BR 386,


Triunfo, Tabaí, Taquari, Fazenda Vila Nova, Bom Retiro do Sul e Estrela/RS Aldeia Kaingang TI
Estrela. Tubarão/SC: Universidade do Sul de Santa Catarina – UNISUL – 2008.
LAPPE, Emeli; LAROQUE, Luís Fernando da Silva. Um estudo sobre indígenas Kaingang em
áreas urbanas no Rio Grande do Sul. História e-História. Campinas/SP. v. 00, n. 00 set. 2013.
Disponível em: <http://historiaehistoria.com.br/materia.cfm?tb=artigos&id=246> Acesso em: 27
de set. 2013.

LAROQUE, Luís Fernando da Silva. Os Kaingangues: Momentos de Historicidade Indígenas. In.


BOEIRA, Nelson; GOLIN, Tau. (Org.). Povos indígenas - Volume 5. Passo Fundo/RS: Méritos
Editora, 2009. p. 81-108. (Coleção: História Geral do Rio Grande do Sul).

MATTE, Dulce Claudete. Indígenas no RS: educação formal e etnicidade. In. SILVA, Gilberto
Pereira da; PENNA, Rejane; CARNEIRO, Luiz Carlos da Cunha (Org.). RS índio: cartografias
sobre a produção do conhecimento. Porto Alegre/RS: EDIPUCRS, 2009, p. 104-114.

OLIVEIRA, Marilda Dolores. Essa terra já era nossa: um estudo histórico sobre o grupo
Kaingang na cidade de Lajeado. 2010. 89 f. Lajeado/RS: Monografia (Graduação) – Curso de
História, Centro Universitário Univates, 2010.

PAES. Vanderléia Leite Mussi. Educação indígena: a História oral como processo de reafirmação
de identidade étnica dos índios Terena. In. Diversidade Cultural e Educação Indígena. Campo
Grande/MS, n. 15, p. 139 – 150, jan./jun. 2003.

VANSINA, Jan. A tradição oral e sua metodologia. In. História Geral da África I: Metodologia e
Pré-História da África. 2. ed. rev. Brasília-DF: UNESCO, 2010. p. 139-166.
Carmo Thum
Jeruza da Rosa da Rocha

Este trabalho apresenta a produção de imagens compilado em um fotolivro, desenvolvido


em contexto investigativo e extensionista, vinculado ao Núcleo Educamemória/IE/FURG.
Contamos com a colaboração de quatorze crianças pertencentes à escola da rede pública de Ensino
Municipal de Canguçu/RS, na produção de imagens fotográficas do contexto campesino. Estas
imagens referem-se à vida no campo e da escola, como cenários de atuação e interpretação das
crianças. Interessa-nos sinalizar aproximações teórico-metodológicas capazes de anunciar
estratégias de pesquisa e de extensão potentes com as crianças, atores sociais ativos nos modos de
recriar e comunicar o cotidiano no qual se inserem (CORSARO, 2011). O amparo metodológico
eleito inspirou-se nos estudos da etnografia da pesquisa com crianças, referenciada pela obra de
Graue e Walsh, 2003. Adotou-se a pesquisa participante como alicerce metodológico para
empreendermos o desenvolvimento e a organização da investigação com as crianças. Cabe destacar
a urgência na criação de ferramentas metodológicas potentes em retratar a realidade das crianças, o
que neste estudo pautou-se na participação ativa das crianças, nessa ação, e culminou na criação de
material bibliográfico, o fotolivro. Destacamos, neste contexto, o processo de criação e imaginação
metodológica como meio capaz de inserir as crianças como proponentes de novos caminhos
epistemológicos e metodológicos (SOARES; SARMENTO; TOMÁS, 2005). Desocultando suas
vozes, as metodologias participativas recuperam a partilha de saberes, de criação e rompem com a
perspectiva etnocêntrica da voz única, a dos adultos na pesquisa. Pensar perspectivas participativas
e construí-las prima-se pela parceria com as crianças; caracteriza o processo investigativo e
extensionista como flexível, aberto e interativo e retoma a ética e o respeito à presença das crianças
na sociedade. Concebem as crianças como seres sociais plenos, dotados da capacidade de ação e
culturalmente ativos em seus processos intergeracionais e intrageracionais (SARMENTO, 2005).
O texto estrutura-se em quatro seções: a primeira apresenta o contexto da investigação; a
seção seguinte prioriza escolhas teórico-metodológicas eleitas para a realização da pesquisa com a
participação das crianças; a terceira parte direciona discussões com interlocutores teóricos,
anunciando as crianças como atores sociais ativos e potentes comunicadores de suas realidades; por
fim, apresentamos a compilação das ações investigativas com as crianças e formato de fotolivro,
salientando sua potencialidade em registrar olhares e apontamentos da realidade campesina, através
das imagens e das narrativas infantis.

* FURG. Doutor em Educação. Professor da FURG. Coordenador do Núcleo Educamemória/IE/FURG


** UFPEL. Doutoranda em Educação. Apoio CAPES. Pesquisadora colaboradora do Núcleo Educamemória/IE/
FURG. .
Este estudo é fruto de ações de extensão e de pesquisa do projeto “Protagonismo das
Crianças: memória, espaços e imagens registradas pela Cultura Infantil Camponesa”, vinculado ao
Núcleo Educamemória-IE/FURG, desenvolvido na localidade de Nova Gonçalves, interior do
município de Canguçu/RS, desde o ano de 2014 até o presente. Desenha-se, neste projeto, o
empoderamento das crianças por meio de suas narrativas, interpretações e registros da cultura local,
sinalizando aproximações teórico-metodológicas capazes de anunciar estratégias de pesquisa e de
extensão potentes com as crianças. São estratégias constitutivas no redimensionamento da
participação das crianças em contextos investigativos e de seus modos próprios de interpretar a
realidade em que vivem. Neste recorte, apresentaremos a compilação de uma das ações do projeto
o qual iniciou com a realização de fotografias pelas crianças, rodas de diálogo projeção e discussão
das imagens, construção de bâneres temáticos e, por fim, o fotolivro, foco deste estudo.
Os colaboradores do projeto são quatorze crianças pertencentes à escola Carlos Soares da
Silveira, na faixa etária de 10 a 13 anos de idade (ano de 2014). A localidade pertence à Serra dos
Tapes, constituída por pequenos agricultores familiares, os quais cultivam fumo, soja, morango,
entre outros. As famílias pertencentes à localidade são de ascendência pomerana e quilombola; dois
segmentos dos povos e comunidades tradicionais que primam por sua cultura e pelo trabalho e vida
no campo. Nesta direção, o intento é tornar visível a cultura local através das lentes da infância, a
partir de crianças protagonistas de seus territórios, capazes de (re)interpretar e (re)produzir
processos culturais vivenciados na localidade. Com isso, elegemos o campo de Estudos da Criança,
como aporte teórico fecundo em seus anúncios neste trabalho, pois anuncia as crianças como atores
sociais de direitos, pertencentes à sociedade, (re) produtores de cultura e excelentes comunicadores
de seus territórios (SARMENTO, 2013).
Nesta perspectiva, a organização do fotolivro, foco deste estudo, pautou-se no registro de
imagens realizadas pelas crianças, seguidas de suas narrativas, as quais traduziram modos próprios
de ressignificar a vida e o trabalho no campo. Estas imagens foram eleitas mediante o critério de
apresentar os territórios os quais as crianças ocuparam-se com atividades que desenvolveram em
contato com a vida no campo e as interações geracionais constituídas em situações de trabalho,
lazer e escola. Portanto, este material segue com embasamento metodológico inspirado no campo
da etnografia com crianças, com preceitos da investigação participativa, tendo como base a
fotografia e as narrativas das crianças, elementos constitutivos de ações que envolveram
diretamente a participação das crianças e as reconheceram como atores do processo investigativo

Os caminhos metodológicos eleitos para este estudo pautaram-se na inspiração no campo


da etnografia, bem como nos princípios da investigação participativa com crianças (GRAUE;
WALSH, 2003). Para tanto, a descrição densa dos pormenores da investigação, o uso do diário de
campo com registros e reflexões sinalizaram elementos fecundos para que
desenvolvêssemos nossas ações pautadas na escuta atenta e na observação acurada às crianças.
Seguindo as escolhas metodológicas, desenvolvemos as caminhadas,1 ao redor da
localidade, para os registros fotográficos e as “Rodas de Diálogo” com as crianças. Este
movimento interpretativo instalou a “Rodas de Diálogo”, como uma ação metodológica de
análise, potencializada pelo diálogo com as crianças sobre aquilo que foi observado e
registrado (THUM, 2009), pois a análise não se faz por completa se os dados gerados em
campo deixarem de ser problematizados pelos próprios atores, em processo de reflexão da
ação do vivido e experienciado em campo. Nesta perspectiva, a organização e a
construção do fotolivro tomaram por base a postura participativa e analítica das crianças no
seu processo constitutivo.
Nesta direção, as estratégias eleitas para as ações tangenciaram interesses de
alargar a discussão a respeito da pesquisa com a participação das crianças, desde a
estruturação do roteiro fotográfico até a compilação do material em formato de fotolivro.
Entendemos que a participação prevê “a existência de espaços de escuta das crianças, de
comunicação, de diálogo”, o que talvez, neste estudo, esteve presente nas páginas e nos
escritos/imagens do fotolivro (FERNANDES, 2009, p. 303). Consideramos fecunda a inclusão
das crianças na pesquisa, a qual sinaliza a desmistificação de sua incapacidade enquanto grupo
pertencente à sociedade. Estar com as crianças, construir ferramentas metodológicas
pensadas com suas participações, as elege como atores ativos e as inclui como excelentes
comunicadores de suas realidades e potentes colaboradores de processos investigativos
(ALDERSON, 2005). A mobilização em desenvolver ações de pesquisa com as crianças
almeja a criatividade e a interatividade, como elementos fecundos ao perfil do pesquisador.
Exige constantemente “maneiras novas e diferentes de ouvir e observar as crianças e de
recolher os traços físicos das suas vidas.” (GRAUE; WALSH, 2003, p. 120). Nesta
perspectiva, investigar com as crianças exige, assim, um “modo disciplinado e sistemático de
conviver com crianças que sabem mais acerca do seu mundo do que o investigador” (GRAUE;
WALSH, 2003 p. 115).
Os dados não estão à espera do investigador. É necessário a interação do pesquisador
com seus colaboradores, com o cenário empírico eleito e com as questões que interessam à
investigação. A postura metodológica, que assumimos, entende o investigador como aprendiz
desafiado em suas ações na pesquisa, e na concepção teórica que conduz seu trabalho
investigativo. Com isso, seu trabalho necessita transcender a descrição ou/e diagnóstico dos
dados. Em outras palavras, “não é decidir se aquelas pessoas deveriam estar a fazer o que
fazem, mas sim descobrir o que elas fazem e o que isso significa” (GRAUE; WALSH, 2003 p.
125).
Por isso, salienta-se a inspiração etnográfica como desenho metodológico deste estudo,
pois permite a flexibilização da investigação quanto revisitação dos dados e a criação de
ferramentas metodológicas, capazes de inserir direcionamentos potentes quando estamos
B
realizando pesquisas
1
Este termo, refere-se à estratégia metodológica desenvolvida na Dissertação de Mestrado (ROCHA, 2014),
como forma de observar as vivências das crianças em sua localidade, aproximando-se de suas experiências
cotidianas e das interações constitutivas com o território.
realizando pesquisas com as crianças. É uma abordagem que “possibilita uma base de dados
empírica, obtida por meio da imersão do pesquisador nas formas de vida do
grupo” (CORSARO, 2009, p. 83). Ao pesquisador é necessário atentar às pistas ofertadas
pelas crianças e os significados que atribuem às ações e produções culturais que ocorrem
no/entre os grupos. A intenção, deste estudo, é partilhar com as crianças seus modos de agir e
de significar suas culturas, por meio da compilação bibliográfica.
Por isso, a fotografia, neste estudo, ancorou-se como elemento potencializador
para pensarmos nos territórios ocupados pelas crianças e as estratégias que elas lançam mão
em suas narrativas para contar suas relações e interações cotidianas. O uso das imagens
fotográficas constitui-se por representações simbólicas interpretadas pelas crianças em relação
às brincadeiras, ao trabalho e a vida no campo. Nesta perspectiva, as fotografias
“registram atividades que se enraízam nas relações sociais mais amplas, e na totalidade social
em que se articulam” (CIAVATTA, 2009, p. 45). São produções culturais entre seus pares,
processos de ressignificação das relações tecidas entre elas, e outros grupos geracionais e
seus territórios.
As imagens não falam por si só. A intenção de utilizá-las junto com as narrativas
das crianças permite construir um diálogo com os aportes do campo dos estudos da infância.
É saliente a relevância de se construir direcionamentos metodológicos que reforçam a
colaboração das crianças em ações de pesquisas. Empregar as imagens como uma
ferramenta metodológica transcende a mera ilustração de um determinado contexto ou
acontecimento, mas apresenta a representação do real, das vivências e das experiências
cotidianas das crianças.
As narrativas, aliadas às imagens, trazem histórias, expressam memórias
individuais e coletivas e potencializam suas culturas com base na lente da câmera fotográfica
(HALBWACHS, 1990). As fotografias empreendem um artefato metodológico tangenciador
das histórias, da cultura e do saber local pelas lentes das infâncias ali presentes.
Compartilhamos dos argumentos de Bencostta:

a imagem fotográfica apresenta-se como um testemunho visual e como representação que


requer, pois, uma leitura específica. Como fonte de informação, recordação e até emoção, a
imagem fotográfica associa-se à memória e introduz uma nova dimensão no
conhecimento histórico. O desafio para o historiador que busca utilizar a fotografia como
objeto de estudo reside justamente na interpretação. Enquanto receptor da imagem, ele não
pode desconsiderar os mecanismos implicados em sua recepção (2011, p. 408).

Atentar às imagens e ao que elas representam exige preocupação com o contexto, e com as
relações sociais e culturais que ali se estabelecem. Ao fotografar, elegemos compreender o que é
visível aos olhos, em um primeiro momento, porém, invisível quando entendemos que essa
representação anuncia a produção de significados tecidos em um determinado contexto; neste caso,
o que as imagens e as narrativas das crianças produziram sobre seus territórios.
A estudiosa, Gobbato (2011), salienta que, no processo de geração de dados em suas
pesquisas, lançou mão da câmera fotográfica e de registros escritos para compreender os
significados do espaço e do tempo escolar das crianças pequenas a partir de seus contextos e
interações. As imagens lhe possibilitaram “desvelar o já observado, uma vez que permitiram rever
o fotografado e perceber aquilo que foi impossível de ser percebido durante o desencadeamento do
episódio” (p. 69). Nesta perspectiva, em um primeiro momento, as imagens trazem um olhar inicial,
o qual aliado às narrativas das crianças em processo de diálogo e de interpretação reforçam
processos de ressignificação cotidiana da cultura que vivenciam entre si e com outros grupos
geracionais.
Ao estarmos imersos na “teia de significados” é relevante compreendermos o que as
crianças têm a dizer sobre o que fazem e pensam, ou melhor, quais significados constituem suas
ações e suas produções culturais, o que neste estudo pautou-se em fotografar seus territórios. Para
isso, entendemos a cultura não “como uma ciência experimental em busca de leis, mas como uma
ciência interpretativa, à procura do significado” (GEERTZ, 2008, p.4). A pesquisadora Barbosa
(2008) aponta como relevante ouvir as crianças, por isso cabe ao pesquisador, “nessa teia de
significados”, procurar “configurações de sentidos que estão para além do que se observa
empiricamente” (p. 03). Ouvir e entender o que as crianças trazem em suas falas é um desafio, o
qual necessita ser construído como um processo atencioso ao que elas dizem e significam; ao
mesmo tempo, o pesquisador precisa observar e interpretar essa mediação que só ocorrerá por meio
de sua inserção participativa, ou seja, envolver-se com as crianças no processo investigativo.
Exposto os interlocutores teóricos que embasam o desenho metodológico, cabe descrever a
compilação do material, o já referido fotolivro. Este material é constituído por vinte e quatro
páginas, das quais contam com vinte e sete fotografias de autoria das crianças seguidas de suas
narrativas descritivas/analíticas a respeito dos territórios da vida campesina. Ele sinaliza a vida e o
trabalho no campo e o contexto escolar, como cenários de atuação e interpretação da cultura local
pelas crianças. Com o título de “Territórios Infantis: produção de imagens e narrativas das crianças
da Escola Carlos Soares da Silveira”, o fotolivro busca transcender a mera ilustração de um
determinado cotidiano. O intento é salientar a construção de ferramentas metodológicas com a
participação das crianças; a descentralização do papel do investigador como gestor central do
processo investigativo e a busca por diálogos epistemológicos e metodológicos que se ocupem das
produções de culturas infantis e de seus territórios. Para isso, segue na última seção alguns anúncios
e apostas deste material bibliográfico como contribuição para os estudos das infâncias e para o
protagonismo das crianças em contextos investigativos.

Compilamos esta produção no intento de apresentar o olhar das infâncias e de seus


territórios como forma de empoderar a participação ativa das crianças em contextos investigativos,
aproximando cada leitor das vivências e dos territórios em que as crianças transitam e de suas (re)
interpretações por meio das imagens fotográficas referentes ao contexto campesino.
É oportuno construirmos ações de pesquisa/extensão, as quais empoderem as oralidades das
crianças, anunciando-as como atores sociais (re) produtores de cultura e excelentes comunicadores
de suas realidades sociais, culturais e de seus territórios. Trata-se ações interessadas na cultura dos
povos e comunidades tradicionais, em seus saberes e modos de viver e experienciar o campo, pelas
lentes infantis. A pluralidade das vozes infantis, quando pensadas como fontes orais, permite
viabilizar o empoderamento das crianças, pois retratam tempos, espaços e memórias próprias das
vivências e experiências infantis e de seus territórios.
Esta produção bibliográfica é fruto da participação ativa das crianças na pesquisa. Os
caminhos e as ferramentas metodológicas eleitas com as crianças, representaram, através das
imagens fotográficas/narrativas, o cotidiano da vida no campo. As caminhadas, nesta produção, são
fruto de um esforço epistemológico, no qual interessa-nos o empoderamento da ação das crianças
em contextos investigativos, com respeito ao que dizem e pensam sobre seus contextos sociais e
culturais, busca-se aproximar suas realidades, e de seus modos de comunicar o cotidiano ao qual
pertencem.
Concluir argumentos que tratem da pesquisa com crianças, seria demasiado inoportuno
nesta produção bibliográfica. O engessamento de palavras e apontamentos absolutos que imaculem
contextos investigativos com a participação das crianças seria divergente ao que empreendemos
como pesquisadores. E expor ideias reducionistas e genuínas traria ao campo das ciências um mero
esboço de técnicas a serem cumpridas aos interessados ao conhecimento. Trataremos nossos
argumentos como pistas e sinalizações a serem discutidas e refletidas com o leitor. Nosso interesse
é anunciar esta produção como uma possibilidade de estar, pensar, dialogar e fazer estudos com
crianças, as quais trazem de seus cotidianos experiências e vivências potentes a serem
problematizadas no âmbito da investigação participativa.
As estratégias metodológicas com a participação das crianças é um desafio proposto aos
pesquisadores, na descentralização de suas identidades como gestores principais. Busca-se a
inserção das crianças como colaboradoras ativas e participativas do processo de investigação. Os
olhares e as narrativas infantis, elucidadas nesta produção, transgridem a participação das crianças
em pesquisas como meros expectadores passivos. É oportuna a criação de ferramentas
metodológicas que dialoguem com as realidades e territórios infantis constitutivos da sociedade,
em especial do cotidiano campesino. Com isso, concebemos esta produção como um esforço
metodológico, o qual esboça um movimento de transgressão à visão adultocêntrica da pesquisa com
crianças. Desenha-se o interesse aos modos próprios de expressão e de comunicação das crianças
por meio das imagens fotográficas e de suas narrativas.
O estar junto às crianças, o entrecruzamento de ideias, de argumentos e discussões trazem
de antemão um redirecionamento da pesquisa com crianças. Traduzem olhares atentos aos seus
territórios que, (re)construídos com seus pares, elucidam (re)interpretações da cultura local, do
pertencimento e do cotidiano campesino como parte de um território constitutivo das infâncias que
ali vivem.
Os olhares infantis são fecundos aos interesses do campo científico, em especial aos Estudos
da Criança. Este campo prima por uma base interdisciplinar do conhecimento com outras áreas, que
conceba as crianças do presente e as traga para o lugar de atores sociais, merecedores de espaços
de escuta e de diálogo com outros grupos geracionais. Proporcionar escuta às crianças viabiliza
aproximarmos de suas realidades, de seus interesses e de anseios como grupo pertencente à
sociedade. Portanto, nosso interesse em organizar e desenvolver este estudo, compilado nesta
produção bibliográfica, foi de construir uma via de empoderamento e visibilidade às crianças
campesinas por meio da fotografia e de suas narrativas. Estes olhares fotográficos traduziram o que
há de inédito às crianças. È acima de qualquer análise superficial a representação do real, das
histórias, das inquietudes e dos interesses de um território visto e interpretado pelas crianças.

ALDERSON, P. As crianças como pesquisadoras: os efeitos dos direitos de participação sobre a


metodologia de pesquisa. Revista Educação & Sociedade, Campinas, v. 26, n. 91, p. 419-442,
maio/ago. 2005. Disponível em: http://www.cedes.unicamp.br

BARBOSA, S. N. F. O desafio de compreender e ser compreendido. In: 31ª REUNIÃO ANUAL


DA ANPED. Anais. Caxambu: Anped, 2008. Disponível em: https://goo.gl/KVtXm3

BENCOSTTA, M. L. Memória e Cultura Escolar: a imagem fotográfica no estudo da escola


primária de Curitiba. História (São Paulo) v. 30, n.1, p. 397-411, jan/jun 2011.

CIAVATTA, M. A cultura material escolar em trabalho e educação. a memória fotográfica de sua


transformação. Educação e Filosofia, Uberlândia, v. 23, n. 46, p. 37-72, jul./dez. 2009.

CORSARO, W. A. Métodos etnográficos no estudo da cultura de pares e das transições iniciais na


vida das crianças. In: MÜLLER, F., CARVALHO, A. M. A. (Org.). Teoria e prática na pesquisa
com crianças: diálogos com William Corsaro. São Paulo: Cortez, 2009

_____. Sociologia da infância. Porto Alegre: Artmed, 2011.

FERNANDES, N. Infância, Direitos e Participação: representações, práticas e poderes. Porto:


Afrontamento, 2009.

GEERTZ, Clifford. A interpretação das culturas. Rio de Janeiro: LTC, 2008.

GOBBATO, C. “Os bebês estão por todos os espaços!”: um estudo sobre a educação de bebês
nos diferentes contextos de vida coletiva na escola infantil. 2011. Dissertação (Mestrado em
Educação) – Programa de Pós-Graduação em Educação, Universidade Federal do Rio Grande do
Sul.

GRAUE, M. E; WALSH, D. J. Investigação interpretativa com crianças: teorias, métodos e ética.


Lisboa: Fundação Calouste Guibenkian, 2003.

HALBWACHS, Maurice. A memória coletiva. São Paulo: Vértice; Revista dos Tribunais, 1990.

SARMENTO, M. J. Gerações e alteridade: interrogações a partir da sociologia da infância.


Educação & Sociedade, Campinas, v. 26, n. 91, p. 361-378, Maio/Ago. 2005. Disponível em:
<https://goo.gl/NNyNxm>

SARMENTO, M. J. A Sociologia da infância e a sociedade contemporânea: desafios conceituais e


praxeológicos. In.: TEODORA, R. GARANHANI, M. C. (Org.) A sociologia da infância e a
formação de professores. Curitiba: Champagnat, 2013.

SOARES, N. F.; SARMENTO, M. J.; TOMÁS, C. Investigação da infância e crianças como


investigadoras: metodologias participativas dos mundos sociais das crianças. Nuances: estudos
sobre educação – ano XI, v. 12, n. 13, jan./dez. 2005. Disponível em: <https://goo.gl/fwJUVu>

ROCHA, J. da R da. Prática Pedagógica e Participação das crianças na escola. Dissertação de


Mestrado. Pelotas; Universidade Federal de Pelotas, 2014. Disponível em:
<https://goo.gl/BMjGpB>

THUM, Carmo. Educação, História e Memória: silêncios e reinvenções pomeranas na Serra dos
Tapes. Tese de Doutorado. São Leopoldo; Unisinos, 2009. Disponível em:
<https://goo.gl/g4Cizw>
Eneusa Mariza Pinto Xavier*
Renata dos Santos Alves**

Construir uma narrativa histórica é um desafio que envolve diferentes variáveis.


Poderíamos dizer que realizar tal produção implica um esforço intelectual e crítico para explicar
aspectos da “realidade”. Nessa perspectiva, rememorar o passado demanda combinações para
organizar a trama histórica e construir uma narrativa. Trata-se da forma de como cada um
sistematiza e estrutura representações que se estabelecem nas relações sociais em forma de escrita.
Compreender a história como operação implica compreender a produção desta, assim como a
relação entre um lugar, procedimentos de análise e a construção de uma escrita (CERTEAU, 1982).
O presente trabalho de pesquisa realizou-se tendo como temáticas os saberes docentes e
experiência de profissão, sobre uma perspectiva da memória de uma das autoras como professora
de Escola Rural e narrativas de sujeitos que fazem parte deste contexto como alunos, professores,
comunidade e funcionários. É essencial frisarmos que nesta comunicação estamos nos desafiando
a problematizar uma história do tempo presente. Nesta direção,
[...] fazer história do tempo presente começa pela definição de um problema de pesquisa
que tem implicações existenciais para o pesquisador, de modo mais agudo que na pesquisa
de épocas mais distantes. [...]. Por outro lado, a questão do presente e de uma história do
tempo presente torna-se eminentemente política não apenas pelas escolhas do historiador,
mas também porque “sujeito” e “objetos” da pesquisa habitam o mesmo tempo. (HAFF
JÚNIOR, 2009, p. 20).

Buscando dissertar a respeito dos saberes docentes, pertencimento identitário,


experiências de vida e relação com a cultura local e produção dos fazeres da escola
analisamos um conjunto de oito narrativas. Desta forma, a pesquisa irá trazer a visão dos
sujeitos envolvidos na educação deste meio, demonstrando a realidade, vantagens e
dificuldades para a formação profissional que exigem algumas estratégias de superação.
As entrevistas foram realizadas com cinco alunos de cada turma da escola Brasilino
Patella e três responsáveis, sendo perguntado: Você gosta da escola? O que tem de melhor? O
que deveria ser mudado ou melhorado? Você gostaria de estudar em outra escola? Por quê?
Entrevistas foram realizadas, ainda, com três professoras da escola com perguntas
relacionadas a sua formação, turma que trabalham, tempo de atuação na escola, experiência

* Professora na Escola Municipal de Ensino Fundamental Brasilino Patella. Graduada em Pedagogia pela
Universidade Federal do Rio Grande (FURG). .
** Mestranda em Educação pela Universidade Federal de Pelotas (UFPel). Graduada em Pedagogia pela
Universidade Federal de Rio Grande (FURG).
no meio rural, problemas enfrentados no desenvolvimento de sua prática com os
alunos, as estratégias que utilizam para superar esses problemas, e se consideram
importante um trabalho diferenciado na escola do meio rural. Complementando as
entrevistas, realizou-se um questionário fechado com o motorista do ônibus escolar sobre as
dificuldades que ele observa no seu trabalho junto com as crianças e como entende que
poderia ser modificado.
O objetivo das entrevistas era problematizar a identidade que alunos,
professores e comunidade desenvolvem com a escola e com o meio rural, as dificuldades
que enfrentam, as estratégias que utilizam para superar e também relacionar suas falas com a
possibilidade de buscar uma metodologia diferenciada para atender os alunos da escola.
É pertinente salientar que utilizar a observação de uma das autoras, como fonte de
pesquisa, fundamenta-se na certeza de que nossas experiências são produzidas por
vivências que relacionamos como produtoras de aprendizagens significativas, e que de
alguma maneira constituem nosso processo de formação e de percurso de vida. Isto
implica na necessidade de realizar um trabalho de reflexões sobre o que foi vivenciado e
nomear aquilo que foi aprendido (tomadas de consciência).
A análise dos dados obtidos através da pesquisa, nos levou a entender o modelo de
educação atual aplicado no meio rural, tendo argumentos críticos para problematizar não
estando baseada só na experiência empírica e na memória individual, verificando assim a
realidade local e tendo fundamentação para questionar e sugerir reformas e
aperfeiçoamento nas práticas pedagógicas aplicadas no meio rural.

Este estudo faz uso da História Oral, de forma a buscar uma aproximação com a memória
de sujeitos que fizeram parte da história das instituições escolares em análise. Assim, a memória
apresenta-se como fonte histórica, enquanto, a História Oral representa a principal referência
metodológica para produção, sistematização e análise de fontes orais. Assim, vale dizer que a
História Oral é um conjunto de procedimentos que se iniciam com a elaboração de um projeto,
desdobrando-se em entrevistas e cuidados com o estabelecimento de textos/documentos que podem
ser analisados e/ou arquivados para uso público, mas que tenham um sentido social.

Em nosso entender, a História Oral, como todas as metodologias, apenas estabelece e


ordena procedimentos de trabalho – tais como diversos tipos de entrevistas e as
implicações de cada um deles para a pesquisa, as várias possibilidades de transcrição de
depoimentos, suas vantagens e desvantagens, as diferentes maneiras de o historiador
relacionar-se com seus entrevistados e as influências disso sobre seu trabalho –
funcionando como ponte entre teoria e prática. (FERREIRA; AMADO. 2001, p. 16).
Conforme Alberti (2005),

[...] a História Oral é uma metodologia de pesquisa e de constituição de fontes para o


estudo da história contemporânea surgida em meados do século XX, após a invenção do
gravador a fita. Ela consiste na realização de entrevistas gravadas com indivíduos que
participaram de, ou testemunharam acontecimentos e conjunturas do passado e do
presente. (p. 155).

A entrevista é um fazer central da História Oral, momento em que o historiador constrói sua
fonte. É um espaço de encontro entre entrevistado e entrevistador, em que ambos interagem em um
processo dialógico em que a lembrança do passado de um é motivada pelas questões apresentadas
pelo outro. Contudo, o fazer metodológico da História Oral não tem início no encontro com o sujeito
a ser entrevistado. Mas, antes disso, na seleção dos depoentes, na elaboração de um roteiro de
entrevista a partir das temáticas e problemáticas da pesquisa.
Para Alberti (2005), a entrevista é uma fonte de pesquisa e não a história propriamente dita,
ou seja, ela assim como as outras fontes necessita de interpretação e análise. Amado (1995)
corrobora com a reflexão ao falar sobre fontes oriundas de entrevistas:

Penso que entrevistas podem e devem ser utilizadas por historiadores como fontes de
informação. Tratadas como qualquer documento histórico, submetidas a contraprovas e
análises, fornecem pistas e informações preciosas, muitas inéditas, impossíveis de serem
obtidas de outro modo. Pesquisas baseadas em fontes orais, publicadas nos últimos anos,
têm demonstrado a importância das fontes orais para a reconstituição de acontecimentos
do passado recente. (p.134-135).

Compreendemos as narrativas como fontes históricas, como fontes orais, uma vez que são
produzidas a partir de memórias de sujeitos, memórias que dão conta de descrever e contextualizar
histórias individuais e coletivas. Ressalto a necessidade de transformação das entrevistas em
documento (processo de transcrição) para que tal produção possa caracterizar-se como fonte de
pesquisa. A História Oral produz narrativas orais, que são narrativas de memória. Essas, por sua
vez, são narrativas de identidade na medida em que o entrevistado não apenas mostra como ele vê
a si mesmo e ao mundo, mas também como ele é visto por outro sujeito ou por uma coletividade.
A memória é construída socialmente (HALBWACHS, 1990), mas, contudo, também é
ressignificada a partir das relações estabelecidas com o meio social. As lembranças evocadas são
aquelas que o narrador vivencia no meio social, ou seja, nas relações com o seu grupo. Concordo
com Ecléia Bosi (1994) quando esta afirma que “A memória do indivíduo depende do seu
relacionamento com a família, com a classe social, com a escola, com a igreja, enfim com os grupos
de convívio e os grupos de referência a este indivíduo.” (p. 17).
O relato oral é uma representação da realidade narrada. É preciso considerar que o processo
de rememorar é um processo seletivo em que os atos de lembrar e esquecer atuam de forma
concomitante. Logo, é preciso considerar que ao narrar o sujeito não está reproduzindo o relato dos
fatos tais como aconteceram, mas reinterpretando-os. Compreender tais reinterpretações implica
compreender que os processos de memória não são lineares. A memória é construída por
entrelaçamentos de tempos, vivências e significados. Nesse sentido, define relevância a tudo que
evoca o que passou, garantindo sua permanência reatualizada, ou mesmo ressignificada a partir das
experiências do presente. Nessa dinâmica, memórias individuais e memórias coletivas encontram-
se, fundem-se e constituem-se como possíveis fontes para a produção do conhecimento histórico.
Cabe ao historiador problematizar a memória narrada tendo em perspectiva os objetivos e
categorias de análise de sua pesquisa.
Quanto as diferenças entre memória e história, coloca Nora (1993):

Memória, história: longe de serem sinônimos, tomamos consciência que tudo opõe uma à
outra. A memória é a vida, sempre carregada por grupos vivos e, nesse sentido, ela está
em permanente evolução, aberta à dialética da lembrança e do esquecimento, inconsciente
de suas deformações sucessivas, vulnerável a todos os usos e manipulações, susceptível
de longas latências e de repentinas revitalizações. A história é a reconstrução sempre
problemática e incompleta do que não existe mais. A memória é um fenômeno sempre
atual, um elo vivido no eterno presente; a história uma representação do passado. (p . 09).

As narrativas, tal qual os lugares da memória, são instrumentos importantes de preservação


e transmissão das heranças identitárias e das tradições. Percebe-se o quanto a História Oral pode
auxiliar na compreensão de perspectivas cotidianas que não poderiam ser objeto de análise de outra
maneira, podendo ser o pesquisador de História da Educação o produtor de suas próprias fontes;
perspectivas que podem estar atreladas, por exemplo, à história das instituições escolares ou ainda
à identidade docente.

A Escola Municipal de Ensino Fundamental Brasilino Patella está situada na Granja do


Salso, quarto distrito, zona rural do município de Santa Vitória do Palmar. Ela foi fundada no dia
20 de março de 1967.
A escola da comunidade atende alunos do todas as etapas do Ensino Fundamental e, por
participar do processo de nucleação, recebe educandos de localidades bastante distantes da escola,
apesar de estar localizada em uma área rural de difícil acesso. A escola segue os modelos do
contexto urbano, tendo um currículo padronizado, sem diferenciação na prática pedagógica.
Os profissionais que trabalham na escola, em sua maioria são contratados e moram na zona
urbana da cidade. Em função do trabalho, precisam morar na localidade em uma casa em estado
bastante precário cedida pela granja. Estes profissionais, não raras vezes encontram obstáculos para
participam de um processo de formação.
Analisando a situação da escola partindo dos princípios de Educação de Campo e,
principalmente, diferenciando a Educação Rural, que é desenvolvida na escola, da Educação de
campo, que pensamos ser a mais apropriada à realidade local, podemos analisar com outro olhar
certas situações de dificuldades dos alunos e professores que poderiam ser superadas com políticas
públicas adequadas a esta realidade rural, como por exemplo, um currículo e um calendário escolar
diferenciado. Pesquisando na documentação, verificamos que, atualmente, a escola atende a 160
alunos distribuídos em duas turmas de Educação Infantil, cinco turmas de Anos Iniciais e quatro
turmas de Anos finais.
Durante nossas reflexões e observações, um ponto que causou grande preocupação foi em
relação às crianças moradoras de localidades distantes da escola; é que às vezes ficam durante
longas horas dentro do ônibus e, também, o tempo chuvoso faz as estradas ficarem intransitáveis,
impossibilitando estas crianças de frequentarem regularmente a escola, podendo trazer prejuízos
em seu rendimento escolar.
Outro aspecto que começamos a analisar a partir dessa observação é o fato de que estas
crianças estão sendo colocadas em outra comunidade, sendo assim a escola precisa ter um cuidado
especial para trazer também a realidade delas dentro do processo educativo. A grande maioria dos
alunos não pertencem à comunidade da Granja do Salso e como utilizam o transporte escolar, há
uma diferenciação bastante grande nos horários de entrada e saída; alguns chegam muito cedo, e
outros chegam até uma hora depois do horário da entrada. Na saída todos os que não moram no
Salso se retiram meia hora antes. Percebemos que este é um fato que precisa ser levado em
consideração durante o trabalho em sala de aula, pois o professor precisa organizar o tempo e os
conteúdos de uma forma que estas crianças não sejam prejudicadas.
Partindo dessa realidade, observamos que a escola ainda não possui um projeto direcionado
para estas crianças. O currículo da escola é igual ao das escolas urbanas, sem diferenciação e isso
causa prejuízo para o desenvolvimento do trabalho dos professores. A maioria dos alunos é de
localidades distantes, sendo assim em dias de chuva, as salas de aulas ficam com um número
bastante reduzido de crianças e as professoras não conseguem desenvolver o planejamento que
estava programado.
Desta forma, analisamos a importância da escola organizar seu currículo de acordo com a
concepção de Educação de Campo, com um currículo e calendário escolar diferenciado a partir
dessa realidade, onde esteja presente a realidade rural, inclusive nas propostas de trabalho, para que
assim os alunos possam ter sua identidade de campo preservada e valorizada.
Observamos que a distância da escola, também é um fator que prejudica a relação
família/escola, pois a maioria dos responsáveis dos alunos não consegue participar efetivamente
das atividades desenvolvidas na escola, ficando a comunicação resumida somente a telefonemas e
bilhetes.
Outro aspecto que consideramos importante destacar é a situação dos professores. A maioria
está trabalhando em regime de contrato e não são moradores da Granja do Salso, sendo assim
desconhecem a realidade do interior. Analisamos que estes profissionais poderiam passar por uma
formação, onde tivessem a oportunidade de conhecer práticas de trabalho direcionadas para os
sujeitos do meio rural, levando em consideração a realidade da comunidade.
Outro ponto que também observamos foi a sala de leitura da escola. Este era um espaço
onde as crianças geralmente poderiam desenvolver bastante atração, pois teriam possibilidade de
sair do ambiente de sala de aula e escolher livros de acordo com seus interesses e realizar leituras,
releituras e escritas de textos, contribuindo para o seu desenvolvimento em diversos aspectos.
Porém, atualmente, este espaço está dividido com o refeitório da escola, o que impossibilita muitas
vezes o trabalho em função dos horários de merenda.
A escola está com um espaço físico bastante reduzido. Este é mais um desafio para as
professoras que necessitam planejar atividades para serem desenvolvidas em sala de aula,
destinando um espaço para passeios, leitura e confeccionando brinquedos e jogos que são tão
importantes para o desenvolvimento integral das crianças.
Durante nossas observações, conversamos informalmente com as crianças perguntando se
gostam da escola, se gostariam de estudar na cidade e o que queriam modificar na escola. As
respostas foram bastante variadas e os relatos cheios de significados mostrando dificuldades e
superações.
Também destacamos a observação dos dias de entrega de pareceres e boletins, que sempre
é bastante tumultuada; os responsáveis não têm muitas oportunidades de frequentar a escola, muitos
em função do difícil acesso. Então, nestes momentos, há uma grande confusão, pois todos querem
falar com as professoras sobre as crianças, com dúvidas e inquietações.
Assim, constatamos que a comunicação dos responsáveis com a escola, também é algo que
precisa ser pensado para ser melhorado na escola.

Algumas entrevistas foram conduzidas de forma que os participantes se sentissem a vontade


e demonstrassem seu pensamento em relação à escola e o ensino que receberam de forma narrativa,
para que fossem utilizadas como uma técnica de geração de dados proposta por Jovchelovitch e
Bauer (2002). Para os autores, compreender uma narrativa não é apenas seguir a sequência
cronológica dos acontecimentos que são apresentados pelo contador de histórias: é também
reconhecer sua dimensão não cronológica, expressa pelas funções e sentidos do enredo.
A análise das narrativas se deu por meio da Análise Textual Discursiva (ATD), de Moraes e
Galiazzi (2007), a qual consiste na produção de novas compreensões sobre os fenômenos e
discursos.
Os ex-alunos entrevistados por narrativas serão designados pelas letras A, B, C; os alunos
atuais pelas letras D e E, a mãe pela letra M e a professora pela letra P.
Destacamos nas narrativas dos ex-alunos o discurso decorrente de que consideraram o
ensino que receberam na escola como muito bom, sem interferir no desenvolvimento de seus
estudos fora do campo, conforme narra a entrevistada A: “Dentro do Brasilino Patella, os
professores tinham um cuidado individual comigo e por isso aprendi muito e tive facilidade quando
precisei mudar para cidade”
O entrevistado B também ressalta que: “Quando estudei no interior o ponto positivo era
que, como tinha poucos alunos, o ensino era bem melhor e nunca deixou a desejar”
Percebemos como discurso decorrente em vários meios de comunicação e também em
alguns centros urbanos e rurais que os sujeitos envolvidos nas Escolas Rurais são inferiores por
morarem no interior do município e que as escolas urbanas possuem uma qualidade superior.
Nossos entrevistados, através de suas narrativas demonstram que esta visão é falsa quando
pressupõe o rural como atrasado. Sobre este aspecto Caldart, Cerioli e Fernandes (2004), destacam
que:
[...] O camponês brasileiro foi estereotipado pela ideologia dominante como fraco e
atrasado, como Jeca Tatu. [...]. Precisamos romper com esta visão unilateral dicotômica
(moderno-atrasado) que gera dominação, e afirmar o caráter mútuo da dependência: um
(rural ou urbano; campo ou cidade) não sobrevive sem o outro. (p. 31-32).

Estudos, como os realizados por Arroyo (2007) e Munarim (2006), indicam que o campo
historicamente foi visto como lugar do atraso a ser superado. Tal perspectiva impulsionou em
diferentes épocas políticas sociais e educativas centradas no modelo urbano de ser, produzir e viver.
Estas privilegiam as demandas das cidades e têm este espaço como local da civilização, da
sociabilidade e da expressão política, cultural e educativa. Em suma, um exemplo a ser seguido.
Em contrapartida, reforça-se neste contexto o campo como lugar do atraso, do tradicionalismo
cultural, como uma realidade que precisa ser superada.
Pensamos que uma das alternativas para mudar este ponto de vista seria justamente repensar
a Educação e o ‘Rural’ a partir das características da comunidade, valorizando seus contextos e
reconhecendo a realidade como objeto do currículo diferenciado, com projetos que sejam
desenvolvidos em todas as escolas, destacando a importância do meio rural e desenvolvendo
políticas públicas adequadas para as escolas do interior.
Apesar da valorização do ensino, nossos entrevistados não manifestam a vontade de retornar
ao interior depois de formados, justificando o difícil acesso da Granja do Salso e a falta de mercado
de trabalho dentro de sua área de formação, assim como a inexistência de curso de pós-graduação
específicos para seu campo no município de Santa Vitória do Palmar.
Também foi utilizado como instrumento de pesquisa a coleta de dados, aliada ao processo
de reflexão sobre os próprios fazeres enquanto docente do espaço do campo. Nesse sentido, as
narrativas, colhidas nas entrevistas realizadas e observações da didática que orienta no momento as
práticas educativas da escola, constituem-se enquanto unidade fundadora do diálogo. Trata-se de
diálogo iniciado em momentos de introspecção, a partir da reflexão da própria ação pedagógica,
configurado desta forma como diálogo do sujeito consigo com a finalidade de produzir novos
conhecimentos a partir da significação e da reinvenção de conhecimentos já adquiridos via ‘saber
de experiência feito’. Freire (1993) corrobora com nossos intuitos ao esclarecer que:

[...] partir do saber que os educandos tenham não significa ficar girando em torno deste
saber. Partir significa pôr-se a caminho, ir-se, deslocar-se de um ponto a outro e não ficar,
permanecer. Jamais disse como às vezes sugerem ou dizem que eu disse que deveríamos
girar embevecidos, em torno do saber dos educandos, como mariposas em volta da luz.
Partir do “saber de experiência feito” para superá-lo não é ficar nele. (FREIRE, 1993, p.
70).

Considerando a educação como um ato político, no sentido de estar engajadas em ações


transformadoras, tal organização de pesquisa e de estranhamento do espaço da escola tem
relevância conceitual e metodológica, pois consiste na construção do conhecimento de forma crítica
de forma que como ponto de partida do processo educativo encontra-se vinculado aos contextos e
vivências dos sujeitos.
Quanto mais os homens praticam sua capacidade de refletir sobre si e sobre sua relação com
o mundo e com o outro diferente de si, maior será o campo de sua percepção, descobrindo saberes
que antes, mesmo se existentes, não eram reconhecidos por eles. Compreender a nós mesmos no
inacabamento nos auxilia a nos percebermos e aos outros como seres de possibilidades.
Intencionados ao aprendizado, seremos capazes de captar a realidade como processo contínuo de
vir a ser e de, a partir dessa essência, ir além daquilo que se coloca como condicionamento e de
exercitar a realização de escolhas, portanto, realizar mudanças.

Analisando o contexto rural em que a escola está localizada, associando com as leituras,
reflexões, observações, entrevistas, fotos e questionários, percebemos que este meio é constituído
por pessoas de diferentes culturas, que enfrentam dificuldades e preconceitos, estabelecendo
estratégias de superação para estudar e trabalhar.
O estudo realizado nos levou a refletir e problematizar as condições da educação dos
espaços camponeses dos campos neutrais de Santa Vitória do Palmar. Trata-se de uma educação
escolar, fortemente orientada para uma pedagogia urbana, para um currículo pré-definido, para um
calendário inadequado ao tempo da comunidade, atividades e projetos que não associam
conhecimento sistematizado a realidade local. Práticas essas que por fim, consideram todos os
indivíduos iguais independente de seu meio e suas especificidades.
Consideramos que através da Educação de Campo associada com a metodologia Pedagogia
da Alternância haja uma possibilidade de avanço gestionário e metodológico, pois se referencia em
uma visão cultural da comunidade envolvida, apresenta possibilidades de promover ações
educativas de acordo com a necessidade que é diagnosticada, estabelece articulação com as famílias
e problematiza a realidade do campo, tornando essas questões, objeto do currículo escolar.
Percebemos que os alunos e a comunidade têm a escola como referência da localidade. A
mesma estabelece um vínculo forte com esta comunidade, e se constituí como um espaço
aglutinador da vida comunitária.
Este é o questionamento que nos colocamos como pesquisadoras do meio rural e quais
princípios e estratégias que a educação escolar deveria vivenciar em nosso meio.
Pensando em uma vida profissional com qualidade e que o profissional necessita vivenciar
uma ação docente que valorize os saberes, encontrando modos de garantir conhecimento a partir da
escola aos sujeitos em formação, consideramos essencial que sejam compreendidos os limites da
ação educativa a partir da escola e modos de como alcançar uma ação de formação escolar que
impacte na vida dos sujeitos educandos.
Nos estudos que realizamos, compreendemos que para isso acontecer é necessária uma
pedagogia adequada à realidade rural da escola, que associe as dificuldades, buscando novas
possibilidades. É necessário que se vivencie uma prática de ensino alicerçada nos contextos locais,
que o conteúdo formativo dê condições para significar a vida e que os conhecimentos apreendidos
na escola possibilitem a argumentação e o pensamento crítico.
Observamos que muitas pessoas usam certos estereótipos que consideram os moradores do
interior como atrasados, ignorantes e pobres, desvalorizando o meio rural. Mudar esta concepção
também é uma tarefa da escola. Porém, ela somente será alcançada desenvolvendo uma pedagogia
que valorize a identidade local, com profissionais comprometidos e que tenham pleno
conhecimento da comunidade onde atuam.
Pensamos que ao refletir, pesquisar e elaborar estratégias para conseguir sucesso em
qualquer ação educativa é necessário atender realmente às necessidades dos educandos. Assim,
analisando a atual situação dos alunos do interior de Santa Vitória do Palmar, observamos que a
educação deste meio precisa ser reconstruída e reformulada.
Percebemos, principalmente, a falta de políticas públicas apropriadas que atenda
objetivamente a necessidade dos alunos e professores, com material didático apropriado associando
a realidade e o investimento em formação e educação continuada para qualificar educadores
específicos para o espaço em questão, proporcionando assim um ensino articulado e com qualidade,
onde a cultura da comunidade seja valorizada e associada nas práticas pedagógicas.
Analisando as características deste espaço geográfico, destacamos ser imperativo que a
escola que atende esta localidade tenha características diferenciadas, associando em seu Projeto
Político Pedagógico a realidade de sua comunidade, argumentando sobre a possibilidade de
trabalhar com uma pedagogia diferenciada, específica para seus educandos para que realmente
sejam atendidas suas reais necessidades.
Dentro desta perspectiva vemos na Educação de Campo e na Pedagogia da Alternância uma
aproximação com esta realidade, já que estas metodologias de ensino preveem propostas educativas
onde é levada em consideração a realidade dos alunos, estabelecendo uma articulação com as
famílias, valorizando o meio, a identidade local e proporcionando aos professores conhecimento da
comunidade escolar para que associem os saberes aos conhecimentos sistematizados.
As características próprias dos moradores dos campos neutrais, sua cultura, identidade,
dificuldades e superações são argumentos para que seja desenvolvida uma pedagogia adequada e
diferenciada da urbana. Esta proposição de educar a partir da realidade preconiza um entendimento
da relação de mútua dependência entre rural e urbano. Ambos são importantes e um depende do
outro, porém, para que a educação alcance seus objetivos é necessário trazer a especificidade de
cada localidade dentro do processo.
A Pedagogia da Alternância aparece como grande contribuição para os alunos do processo
de nucleação, pois prevê atividades para serem realizadas no tempo-comunidade, possibilitando
que os alunos estejam atualizados com os conteúdos, trazendo a visão de sua comunidade com
reflexões, pesquisas e sugestões para serem debatidas, problematizadas e articuladas com os
conteúdos programáticos. Desta forma, também acontece uma socialização de saberes,
promovendo interações, aprendizagens coletivas e trocas de culturas. O tempo-comunidade amplia
a relação do aluno com o conhecimento, pois permite que ele compreenda mais profundamente a
aplicação dos conceitos sistematizados.
Também é notório que essa mudança na proposta pedagógica leva certo tempo para ser
compreendida. Ela não acontece repentinamente, pois necessita ser apresentada para todos
envolvidos, problematizada, debatida, argumentada. Os profissionais necessitam desenvolver um
vínculo forte com a comunidade, conhecendo, sendo orientados e capacitados para trabalharem
dentro dessa nova metodologia. É necessário produzir uma consciência da necessidade de uma nova
postura.
Avaliamos que através da Educação de Campo associada com a Pedagogia da Alternância,
a escola poderá trabalhar com uma visão de toda sua comunidade, tendo possibilidades de promover
atividades de acordo com a necessidade que é diagnosticada, estabelecendo uma articulação com
as famílias e trazendo a realidade do campo para dentro do espaço escolar, desenvolvendo desta
forma uma educação com significado e maior qualidade para todos.
A pesquisa também proporcionou que nossos conceitos sobre educação fossem repensados,
aprofundados e ressignificados. O que vivenciamos no processo de pesquisa oportunizou uma nova
visão para a educação obtida através de observação, análises e estudos da Educação de Campo e
Pedagogia da Alternância.

ALBERTI, Verena. Fontes orais: histórias dentro da história. In: PINSKY, Carla (Org.) Fontes
históricas. São Paulo: Contexto, 2005.
AMADO, Janaína. O grande mentiroso: tradição, veracidade e imaginação em História Oral. In:
História, São Paulo, p. 125-136, 1995.

ARROYO, Miguel Gonzalez. Políticas de formação de educadores (as) de campo. Caderno


Cedes, Campinas, v. 27, n. 72, p. 157-176, maio/ago., 2007. Disponível em:
<http://www.cedes.unicamp.br>. Acesso em: jun. 2017.

BOSI, Ecléia. Memória e sociedade: lembranças de velhos. 3 ed. São Paulo: Companhia das Letras,
1994.

CALDART, Roseli Salete; FERNANDES, Bernard M.; CERIOLI, Paulo R. Primeira Conferência
Nacional “Por uma Educação de Campo”, Texto preparatório, In: ARROYO, Miguel Gonzales;
CALDART, Roseli Salete; MOLINA, Monica Castagna (Org.). Por uma Educação do Campo. 4
ed. Petrópolis, RJ: Vozes, 2009.

FERREIRA, Marieta; AMADO, Janaína (Org.). Usos e abusos da história oral. 4 ed. Rio de
Janeiro: FGU, 2001.

FREIRE, Paulo. Pedagogia da esperança: um reencontro com a pedagogia do oprimido. Rio de


Janeiro: Paz e Terra, 1993.

HALBWACHS Maurice. A memória coletiva. São Paulo: Vértice, 1990.

HUFF JÚNIOR, Arnaldo Érico. Campo religioso brasileiro e História do Tempo Presente. Anais
do II Encontro Nacional do GT História das Religiões e das Religiosidades. Revista Brasileira de
História das Religiões. São Paulo, v. 1, n. 3, p. 20, 2009.

JOVCHELOVITCH, S.; BAUER, M. W. Entrevista narrativa. In: BAUER, M. W.; GASKELL, G.


Pesquisa qualitativa com texto, imagem e som. Petrópolis: Vozes, 2002.

MORAES, R.; GALIAZZI, M. C. Análise textual discursiva. Ijuí: UNIJUÍ, 2007.

MUNARIM, Antônio. Os campos da pesquisa em Educação do Campo: espaço e território como


categorias essenciais. In: MOLINA, Mônica Castagna. Educação do Campo e pesquisa: questões
para reflexão. Brasília: MDA, 2006.

NORA, Pierre. Entre Memória e história: a problemática dos lugares. In: Projeto História, n. 10, p.
07-28. 1993.
Carlos Roberto da Silveira
Maria Clelia Pereira da Costa

Com o propósito de observar de forma mais especifica as questões da pesquisa sobre “Os
vestígios da Casa-Escola do Valentin”, buscamos nos embasar nos conceitos dos teóricos da
pedagogia da terra para desenvolver as discussões a partir do olhar de Caldart, (2004) que trata a
educação do campo de forma peculiar considerando essa universalidade de saberes, Arroyo (2001)
o qual tem na educação do campo uma forma propícia de desenvolver as culturas e fortalecer a luta
em prol da escolarização, e das práticas pedagógicas orientadas pelas estratégias de ensino
aprendidas ainda muito sedo por meio da historia cultural e social. São pensadores que fazem
emergir os conflitos e as lutas pelas escolas, nos movimentos de assentamentos de terra em distintas
épocas e reconhecem a pedagogia da terra como elementos necessários para o desenvolvimento e
formação do sujeito do assentamento, considerando suas experiências e lutas pela escola do campo.
Viñao Frago (2001), pensador que transita pela educação, e sinaliza os espaços escolares, a
arquitetura, a história da instituição como elementos essenciais no desenvolvimento do sujeito da
escola. Nas técnicas da história oral procuramos nos assegurar da importância das narrativas,
segundo Meihy e Holanda (2007), pois são guardadoras e reveladoras do silêncio no construto das
memórias, da história das coisas e dos seres humanos. O corpus da pesquisa são fontes orais
apresentadas a partir de entrevistas semiestruturadas, aplicadas a três sujeitos que narraram os
acontecimentos que originou a história da Casa-Escola do Valentin. O objetivo do artigo é mostrar
a trajetória da Casa-Escola a partir das narrativas dos migrantes participantes dessa história;
conhecer a luta dos assentados pela permanência do professor na Casa-Escola; apresentar aspectos
históricos sobre as memórias e história da “Casa-Escola do Valentin”.
Portanto, se justifica a escolha do tema pela ausência de escritos sobre o processo histórico
e a história da Educação dentro do Projeto de Assentamento Dirigido – Coronel Salustiano e Anauá.
Há ausência de registros da luta dos migrantes pela implantação da escolarização no assentamento.
A Casa-Escola foi localizada às margens da BR 174 em áreas do Projeto de Assentamento Dirigido

* Docente do Programa de Pós-Graduação Stricto Sensu na Universidade São Francisco-USF/ São Paulo.
Pós-Doutor em Educação pela Universidade São Francisco-USF-SP. Doutor em Filosofia pela Pontifícia
Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP). Mestre em Filosofia (PUC-CAMP). Apoio - Governo do
Estado de Roraima e Prefeitura Municipal de Rorainópolis-RR.
** Mestre em Educação-Universidade São Francisco-USF/São Paulo. Professora da Educação Básica da rede
pública de Ensino do Estado de Roraima. Coordenadora Pedagógica da Secretária Municipal de Educação de
Rorainópolis-RR. Doutoranda do Programa de Pós-Graduação Stricto Sensu em Educação- USF-Campus Itatiba-
São Paulo.
Anauá (PAD/ANAUÁ) na Amazônia Roraimense. Diante da temática abordada, eis o problema de
pesquisa: Quando surgiu a Casa-Escola desse lugar? Quem teve a iniciativa de instalação e que
material utilizaram? Quando foi instalada de fato? Quem foi seu primeiro professor? Qual era sua
formação?

Como a vida é curta! É uma caixinha de surpresas! Eu que naquele tempo fui quase
obrigado, pela minha madrinha Amália, esposa do Valentin e Tomaizão, a trabalhar como
professor. [...] Hoje daria qualquer coisa para estar no trabalho que aprendi a fazer:
“ensinar a leitura, a escrita, o cálculo, direitos e deveres” os menos favorecidos; os sem
saberes formais, àqueles que lutaram pela terra, pela educação, excluídos da sociedade e
do mundo letrado, subjugados pelo poder dos políticos. Mas, como seres humanos, não
sabemos como reagir diante do conflito, e das tragédias da vida que segue seu curso. Quer
você queira ou não, elas são inevitáveis. Mais cedo ou mais tarde ela bate à tua porta; ela
é intrusa, democrática entra sem nossa permissão. [...] E quando o partilhar das lágrimas é
necessário o desperta do sonho que a vida nos apresenta. Essa vida nos permite buscar
forças para vencer e transformar o desvelo da vida imposto ao homem pelo ato de lutar,
educar, ensinar, aprender, conviver e, acima de tudo, amar os excluídos da sociedade em
tempos diferentes... (Zé Professor - Boa Vista, 5/7/2015).

Ao ler a poesia do senhor José Raimundo dos Santos (Zé Professor1) e sem a pretensão
de um discurso linguístico a respeito de suas considerações, àqueles a quem ele define
como desprovidos de saber formais dentro do movimento dos sem-terra do sul do Estado de
Roraima, procurei observar seus dizeres e compreender o processo da educação rural do
assentamento. Nosso narrador centra seu olhar sobre a escola de modo geral, e deixa claro
sua preocupação com a educação formal dos migrantes que lutaram em busca da escola,
moradia e de trabalho que pudessem manter a família daqueles que viviam às margens da
miséria, enfrentando os conflitos cotidianos, como as doenças, a falta de segurança pública,
marginalizados, esquecidos e excluídos da sociedade. Tais fatores certamente implicaram
pela ausência de políticas públicas, pelo poder político e pela indiferença às minorias
(pobres, migrantes, os sem-terra).
Os ditos de Zé Professor conferem essa angústia, quanto ao acesso a uma vida
digna, à escola e ao ensino de qualidade, pois se trata de um dever do poder público, para com
o humano independente de sua classe social. Suas palavras trazem questões importantes
sobre a educação brasileira, a cultura, os domínios sobre as terras o acesso e permanência dos
alunos e professores na escola pública do assentamento Anauá vivido num período crítico da
história da educação de Rorainópolis. .
1 Utilizamos este termo de tratamento pessoal, por ser assim conhecido em Roraima, pelo fato de ser o
primeiro educador do Projeto de Assentamento Dirigido Anauá.
O pensamento de Zé Professor expressa uma questão muito debatida por pesquisadores da
atualidade sobre a história da educação brasileira e sua realidade histórica. Com a grande
diversidade de escolas em toda a extensão territorial brasileira passa por lutas e conflitos por
melhorias, acessibilidade, qualidade na infraestrutura, no ensino, transporte e outros direitos
essenciais provenientes da educação formal. No fundo, Rorainópolis não foi e não é diferente dos
demais municípios brasileiros, que também trazem em suas raízes o contexto histórico pautado por
lutas, conflitos e pelo desejo da instrução pública para todos. Muito embora essa busca pela
educação esteja ligada ao contexto histórico relacionado à Igreja Católica, que tentou disseminar
em todo o país uma educação com práticas e métodos disciplinares voltados para algumas classes
sociais e não para todos que almejavam.
Desse modo, a pesquisa de doutorado de Sebastião Monteiro Oliveira (2016, p. 57), buscou
identificar historicamente os primórdios da educação roraimense e sua trajetória, por meio dos
vestígios documentais e deu visibilidade interessante a esse respeito. Segundo o autor, “a educação
roraimense surgiu a partir da Ordem dos beneditinos entre 1909 e 1948, e com a ausência dos
missionários, uma nova ordem religiosa surgiu, a da Nossa Senhora da “Consolata”, onde tanto
moças, jovens e meninos desenvolveram trabalhos artesanais, atividades domésticas, leitura e
escrita junto às freiras e padres”.
Ao longo da leitura da tese percebe-se que, entre 1910 e 1920, todo o sistema educacional
de Roraima era administrado pelo Amazonas que ditava as normas sobre a Educação de Roraima,
na época. Em Roraima existiam duas escolas, uma para moças e outra para rapazes. As escolas eram
pensadas nos modelos do ideário da educação católica, com o formato de instrução não somente da
educação formal, mas para atividades domésticas, onde as alunas eram preparadas especialmente
para a vida familiar.
Estas escolas também não ofereciam oportunidades de vaga para todos que procuravam.
Além de ser em número pequeno e distante, a população pobre possivelmente não acreditava no
acesso à escola em função de vários fatores (distância, registro de nascimento, condições sociais,
econômicas e culturais). As duas escolas acabaram fechadas por falta de “pagamento dos
professores” e somente a partir de 1945 o sistema educacional do ex-território do Rio Branco foi
instituído, resolvendo em parte a situação das escolas em outras localidades do ex-território
(OLIVEIRA, 2016, p. 34-35).
Desse modo, o processo educacional de Roraima foi marcado pela igreja católica, assim
como no restante do país, em que a educação surgiu a partir da chegada dos jesuítas em 1549,
quando implantaram o sistema educacional em algumas cidades do Brasil Colônia. Priorizaram a
catequização dos indígenas para torná-los civilizados com práticas pedagógicas alternativas,
transformaram o cotidiano dos nativos, reorganizaram o espaço de vivência dos indígenas com
objetivo de domesticá-los, e torná-los assim corpos dóceis, obedientes e submissos aos ditames
políticos daquele período.
O modelo de ensino dos jesuítas reinou com exclusividade por séculos no país. Mesmo
depois de expulsos, ainda causavam conflitos no sistema educacional brasileiro, tendo em vista uma
educação direcionada para a elite do Brasil Colônia, (aqueles que dominavam a economia, os
comerciantes, os cafeeiros e açucareiros). O ensino era oferecido às classes dominantes,
identificadas como uma educação classificatória que excluía negros, pobres, escravos, colonos
órfãos e outras classes sociais da época. “A educação do jesuíta era naturalmente a formação do
homem cristão dentro das doutrinas da Igreja católica” (LUZURIAGA, 2001, p.120).
Sem dúvida, os métodos eram os de uma educação clássica, religiosa, voltada para a
transformação do ser humano em favor das mudanças dos seus costumes, dos hábitos,
comportamento, moral, do saber, da ética. Isso possibilitou a transformação dos nativos em sujeitos
civilizados, obedientes às doutrinas e ao pensamento cristão. Nesse aspecto, a herança dos saberes
da educação do Brasil Colônia, não priorizava toda a sociedade e, por mais de um século, se buscou
o desejo de ampliá-la a todos os cidadãos para que pudessem usufruir dos conhecimentos formais
oferecidos pela escolarização. Essa clientela incluía os habitantes do campo, já que o acesso se
mostrava mais restrito ainda a esta classe, considerada minoria.
Os jesuítas não se limitaram somente à alfabetização, mas expandiram cursos de Letras e
Filosofia em caráter secundário, Teologia e Ciências Sagradas em nível superior, para formação de
sacerdotes. Legaram ao povo brasileiro um ensino de caráter verbalista, retórico, livresco,
memorístico e repetitivo que estimulava a competição através de prêmios e castigos. Um ensino
discriminatório, exclusivista e preconceituoso. “Os jesuítas dedicaram-se à formação das elites
coloniais e difundiram nas classes populares a religião da subserviência, da dependência e do
paternalismo, características marcantes de nossa cultura ainda hoje” (GADOTTI, 2003, p. 231).
Não é fácil compreender essa educação como um processo social, transformador direcionado à
mudança de alguns seres humanos da época.
O fato é que, em pleno século XXI, de acordo com a Lei de Diretrizes e Base (LDB,
9394/96), quando a “educação é a alvorada para a transformação da sociedade e um direito de
todos”, ainda continua a luta do acesso à escola para todos, incluindo a escola do campo em
diferentes regiões do país. A referida lei, no artigo 28, define as características da educação básica
e seus respectivos processos focados no direito do cidadão quanto: à oferta de educação básica para
a população rural, com orientações e adaptações dos conteúdos curriculares; à condição do aluno;
à metodologia; à organização escolar; ao calendário de produção em função de atender às
particularidades da vivência do campo (período de colheita, plantio, enchentes...) de acordo com as
necessidades de cada região; ao atendimento à demanda escolar e preparações dos sujeitos para o
trabalho; ao acesso e permanência na escola do campo, onde supostamente seu trabalho foi
necessário.
Diante desta realidade histórica, a proposta deste texto é compreender a luta pela instalação
da escola de ensino primário dentro do Projeto de Assentamento Dirigido Coronel Salustiano de
Faria Vinagre e Anauá (PAD/CSFV/ANAUÁ), entre 1977 e 1982. A escola foi denominada pelos
assentados de “Casa-Escola do Valentin” e aqui se busca construir um histórico de suas ações e
apresentar suas memórias a partir das narrativas dos sujeitos partícipes desse movimento.

Os vestígios sobre a existência da Casa-Escola surgiram das discussões tratadas com os


participantes da pesquisa, quando buscava informações sobre outro objeto de estudo. Os fatos
desconhecidos aos poucos revelados foram marcados pela certeza que naquele lugar teve início a
escolarização do assentamento Anauá. Durante quase quarenta anos, não se soube quem havia
iniciado o processo educacional dentro do assentamento Coronel Salustiano e posteriormente
Anauá. E as perguntas que não queriam calar: Quando surgiu a Casa-Escola desse lugar? Quem
teve a iniciativa da instalação e que material utilizaram? Quando foi instalada de fato? Quem foi
seu primeiro professor? Qual era a sua formação?
São essas algumas das inquietudes que marcaram o estudo desse objeto, atravessado pelo
silêncio e pela pouca luz que pudesse clarear as pegadas de sua história. No decorrer da investigação
foi evidente o desejo dos sujeitos em esclarecer seus sentimentos a respeito da importância da escola,
a partir das respostas que transmitiam e quando em determinados momentos o retrato do passado
era vivenciado nitidamente por suas palavras. E de modo mais evidente, quando retrataram
momentos muito particulares da vida de cada um; são “ditos” que mesmo a pesquisadora que já os
conhecia há tanto tempo se mostrou perplexa pelo desconhecido revelado pelos atores entrevistados.
Nesse aspecto, o uso de entrevistas como técnica de pesquisa científica propiciou recursos
inesgotáveis à medida que esse instrumento favoreceu o prestígio das narrativas, e fez com que
merecesse atenção na explicação e no uso das fontes gerais, a partir de novas interpretações,

Como técnica, o uso das fontes orais confere sentido acadêmico à aplicação das entrevistas
que passaram a ser válidas como recursos de separação da história oral, produzida na
universidade em oposição às soluções que se valiam do uso mais ‘inocentemente’ ou “livre”
das entrevistas (MEIHY; HOLANDA, 2007, p. 71).

A interpretação das narrativas a partir da oralidade deixa claro que as vozes dos sujeitos
participantes não se esgotam. E desse modo vamos conhecer alguns fragmentos das memórias da
escola revelada pelo senhor Valentin Bauduíno Gonçalves, natural de Itainópolis - PI que chegou à
Roraima em abril de 1976, com a esposa e sua enteada. O migrante veio em busca de terras,
emprego, garimpo e escolas. No período da entrevista, ainda residia em seu lote de terra onde foi
assentado há quarenta e um anos atrás. Em seus dizeres relembra como chegou a Roraima,
Meu enteado já morava aqui, no povoado de Martins Pereira e dizia que esta era a terra
para o “pobre morar” e convidou a gente a vir embora e fugir da “seca” que maltratava o
povo piauiense. Quando cheguemos encontramos somente a “flor de casa” (muita terra) e
dava medo a escuridão, isolamento e a falta de comunicação com o mundo lá fora. E as
doenças! Parece que a gente estava vivendo em outro planeta. Os barracos muito distantes,
transporte, somente os caminhões do 6º BEC. As onças esturravam muito perto de casa, o
porcão passava de bando ao redor do meu barraco; parecia que a gente não ia sobreviver.
Foram tempos difíceis, mas não troco hoje minha paz por dinheiro nenhum. No ano que
cheguemos aqui não existia farinha, nem o arroz. Passamos quase seis meses comendo
batata-doce, esperando a primeira safra de arroz e mandioca. O jeito, minha senhora, era
comer mingau de araruta com carne de tatu. Eu particularmente comi tanto que enjoei
(06/07/2015).

Os significados e contornos delineados pelo relato das memórias do senhor Valentin,


ressaltam alguns acontecimentos históricos (destaque para muitos fatos apresentados no decorrer
da pesquisa). O leitor poderia imaginar uma pessoa se alimentar durante tanto tempo com esse tipo
de alimento? Valentin revela sua experiência, e permite construir sua história de vida no
assentamento da BR 174 com algumas particularidades. Seu relato traz as marcas das lutas dos
migrantes pelas terras em Roraima, pela escola, pelo educador (a), pela saúde, o lazer e outros
direitos humanos. O senhor Valentin lembra que a instituição fora criada para promoção da
educação escolar dos filhos dos assentados a partir de muitas lutas e desafios, mediada pelas forças
dos colonizadores e outros interessados.
Em se tratando da memória Le Goff (1990, p. 477) assegura que, “A memória, onde cresce
a história, que por sua vez a alimenta, procura salvar o passado para servir o presente e o futuro.
Devemos trabalhar de forma que a memória coletiva sirva para libertação e não para a servidão dos
homens”. Por trás desse cenário de lembranças, de tempo, espaço e a relação da memória com os
acontecimentos, são compreensíveis valorizar o trabalho dos sujeitos (Valentin, Zé Professor,
Tomaz Neto, Francisco Mathias, Amália e tantos outros) – homens e mulheres que decidiram pelo
bem comum em favor da escola e da coletividade; isso marcou a vida política, social e cultural
desses pioneiros.
A revolta, a decepção, o descontentamento pelas tantas lutas, a exclusão social, a busca da
instrução pública para seus filhos, a fome, as doenças, em suas vozes dão lugar a outros sentimentos,
de esperança, sonhos e realizações. Os sentimentos negativos provavelmente desapareceram
quando o esforço de todos constituiu um importante trabalho tecido em fios de várias tessituras,
como a coragem, a esperança e a união. As narrativas indicam que, por falta de escola e,
principalmente, de professores, os alunos sentiam-se prejudicados na conclusão dos anos letivos de
1977 e 1978. Isso mobilizou os pais para resolverem os problemas da educação da BR 174, dentro
do Projeto de Assentamento CSFV. O senhor Valentin desvela o silêncio de quatro décadas, (os
fatos desconhecidos da sociedade rorainopolitana) e caminha para iniciar seus relatos a respeito da
construção da Casa-Escola.

Quero te dizer professora! Aqui não existia escola quando chegamos, muito menos igreja,
nem povoado. Tudo era uma mata bruta cheia de pragas, cipós, cobras e muita pobreza.
Mesmo assim, todos queriam as terras, emprego, escola para os filhos que já passava do
tempo de estudar! [...]. Aqui teve início a primeira escola desse trecho e a primeira igreja
católica, as primeiras festas […]. Construímos a escola – um salão de 6 x7m, cercada de
taipa, coberta de cavaco, fechadura de tramela, piso de chão batido aguado todos os dias
para não levantar a poeira. O salão servia também para muitos fins: as festas da BR 174,
reuniões dos colonos, a missa e casa do(a) professor(a) (06/07/2015).

A decisão dos migrantes era priorizar a escola a fim de atender não somente suas
necessidades de instrução pública, mas para a formação dos futuros profissionais daquele lugar.
Não que esta instituição tivesse tal pretensão, no entanto, seria o ponto de partida para a
continuidade dos estudos na capital Boa Vista. Desse ponto de vista, o trabalho social e coletivo
tem suas vantagens. Arroyo, (1999, p. 9) entende que […] “os movimentos sociais são em si
mesmos educativos em seu modo de se expressar, pois o fazem mais do que por palavras, utilizando
gestos, mobilizações, realizando ações, a partir das causas sociais geradoras de processos
participativos e mobilizadores”.
O senhor Valentin, líder interessado no funcionamento regular da escola, foi à capital Boa
Vista, em janeiro de 1977, em busca de solução para o conflito vivido em função do não
funcionamento da instituição. Desde 1976, com sua chegada, tratou de organizar um espaço para
funcionamento de uma sala de aula no acampamento dos sem-terra, mas faltava o principal, “o
professor”.
Ao chegar à Boa Vista, o senhor Valentim disse, ter informado a situação ao chefe da
Coordenação e Administração de Educação do Interior de Roraima (CAEIRR), o professor Paulo
Lopes da Silva, que se mostrou sensibilizado e garantiu que logo resolveria o problema. O senhor
Paulo acrescentou - “[...] Estarei enviando o professor para a localidade, mas duvido que tenha
gente interessada em trabalhar e morar naquele lugar isolado, cheio de mato, animais selvagens e
mosquito”. Ao interpretar o dito acima, entende-se que na visão do Coordenador, o lugar não se
mostrava propício para o funcionamento de uma escola, devido às condições do ambiente, à
distância e à falta de transporte, fatores estes que comprometiam a permanência do professor (a),
tornando-se um obstáculo para a Secretaria de Educação do ex-território de Roraima, para os
estudantes e suas famílias. Então, o acesso à educação escolar se tornou um desafio duradouro.

Na verdade, a professora chegou aqui somente em meados de 1977, e não concluiu o ano
letivo; as crianças continuaram sem estudar. Isso causou uma grande revolta aos
moradores da BR 174, e logo nos reunimos outra vez para buscar resolver o problema.
Dessa vez, não tivemos sucesso; não teve ninguém interessado em trabalhar na Casa-
Escola do Valentin. E como um leão preso, eu fiquei lutando para o funcionamento da
escola. Quando vi que não adiantava fui para o garimpo. Quando voltei no final do ano,
comecei tudo de novo. (Valentin, 06/07/2015).

A partir dos dizeres do senhor Valentin, imaginamos um trabalho árduo, um lugar perigoso,
desordeiro, cheio de animais selvagens, impossível de se viver. Acredita-se que dentre os motivos
para a desistência dos professores, estavam as precárias condições de trabalho oferecidas pelo poder
público e pelos colonos. As instalações da Casa-Escola, o salário e a falta de alojamento, não
garantiam a permanência do professor no lugar, e se constituíam empecilhos que possivelmente
resultaram na constante rotatividade de professores nas escolas do PAD/CSFV. Nesse aspecto, os
“rastros”, tanto das fontes orais como documentais, indicaram, de fato, um novo professor em 1979,
responsável pela Casa-Escola do Valentin. Observamos a partir dos documentos assinados por
José Raimundo dos Santos “Zé Professor”2, que durante quatro anos ele trabalhou na Casa-
Escola e fez a diferença no ensino aprendizagem dos alunos.

Enquanto instituição escolar, as casas-escola, desde seus primórdios, no sul do ex-território


do Rio Branco, sem dúvida, são marcantes em diferentes aspectos: a infraestrutura precária,
funcionando debaixo de árvores, de lona, em barracos coberto de palha ou cavaco3 com piso de
chão batido, na igreja, na associação de agricultores, em uma única sala e, na maioria das vezes,
numa parte da moradia dos assentados, que gentilmente pela necessidade, ofereciam o espaço para
que os filhos não ficassem sem estudar. O importante era dispor de um lugar para acomodar os
alunos e, também, o professor. Isso, levando em consideração, a escassez de mobília, material
didático e recursos humanos (professor, zelador, copeiro e outros profissionais).
Os pais em regime de mutirão organizavam as escolas, ainda que de forma primária, tendo
em vista o material abundante da natureza (barro, envira, cipó titica, madeira roliça, palha e o cavaco
substituindo a telha), incluindo a mobília, os bancos de madeira roliça cortados de machado, a mesa
grande que permitia acomodar até seis alunos, a lousa improvisada de tábuas serradas, o fogão
construído de barro queimado a lenha, que também era missão dos pais e dos meninos.
A escola integrou um conjunto de ações e, mesmo que este espaço fosse distinto, precisava
servir ao seu propósito de ensinar. Frago (2001, p. 31) assegura “a melhor escola é à sombra de uma
árvore. [Mas] admitamos, para não escandalizar demais, que a escola é uma casa. Assim, a escola
buscará ‘o ar e a luz’, longe das cidades e das fábricas”. Esse lugar de memória se constituiu a partir
de um trabalho educativo histórico, em função da quantidade de alunos que precisavam frequentar
a escola, embora as classes fossem multisseriadas e as condições de infraestrutura do espaço não se
mostrassem adequadas à demanda escolar. Assumindo um olhar mais atento para essa região,
compreende-se a necessidade da escola de espaço para as diversas práticas sociais, culturais e
atividades realizadas pela instituição.

2
..Para melhores informações, acessar Revista Linha Mestra – a. X. n. 30 (set./dez.2016). ISSN:
1980-9026. Acesso ao artigo completo sobre a vida e experiência pedagógica de Zé Professor.
3 Espécie de telha tirada da madeira para cobrir casas na Amazônia roraimense.
Construir o ambiente educativo de escola é conseguir combinar num mesmo movimento
pedagógico as diversas práticas sociais que já sabemos ser educativas, exatamente porque
cultiva a vida como um todo: a luta, o trabalho, a organização coletiva, o estudo, as
atividades culturais, o cultivo de terra, da memória e dos afetos. (CALDART, 2004, p.
122).

No assentamento, a Casa-Escola se mostrou necessária para disseminar as práticas


pedagógicas, a socialização, a organização espacial e a aprendizagem, mesmo que seus pares ainda
não possuíssem acesso aos livros, bibliotecas, museus, cinemas, computadores, celulares, etc.
Os estabelecimentos de ensino do PAD/CSFV/Anauá, viviam os desafios do cotidiano com
os ocupantes do espaço das colônias, procurando integrar a escola às necessidades políticas, sociais
e culturais dos habitantes do lugar. Os migrantes viviam sob o controle do poder público, na espera
de oportunidades de ter na escola a experiência socioeducativa e o desejo de aprender a leitura, a
escrita e o cálculo matemático. A “Casa-Escola”, sem dúvida, apesar de sua infraestrutura precária
não desmerecia seus alunos, segundo os dizeres do próprio Valentin.

As crianças apreciavam o que tinha de melhor na floresta, e na escola durante o recreio:


as frutas, os pássaros, os animais, as árvores frondosas. Com ou sem aulas, elas brincavam,
corriam e se organizavam do jeito que dava. Elas não reclamavam da situação de miséria
que a gente vivia naquele momento; todos eram felizes por ter uma terra para viver, plantar
pescar e caçar. Os alunos aprendiam com muita rapidez. O interesse dos alunos era maior
do que as dificuldades que a gente enfrentava. Os pais não aceitavam o professor brincar,
mais ensinar, seja de que forma fosse. Com lousa, sem lousa, com livro ou sem livro, os
alunos estavam dispostos e os pais também em ajudar os professores nas tarefas dos filhos
(06/07/2015).

Em relação à escola, – à materialidade e sua realidade –, apesar das limitações, se observa


que ela era feita de diferentes espaços, culturas, pessoas e saberes, sendo esta investigação centrada
numa área geográfica extremamente "densa" com desafios a superar.

[...] De espaços, materiais, visualizáveis. O conhecimento de si mesmo, a história interior,


a memória, em suma, é um depósito de imagens. De imagens de espaços que, para nós,
foram alguma vez e durante algum tempo lugares. Lugares nos quais algo de nós ali ficou
e que, portanto, nos pertencem; são, portanto, nossa história (FRAGO, 2001, p. 63).

Esses lugares, estas memórias, as imagens do vivido a que nos remete o autor, podem ser
também observados em mudanças presentes na escola do Valentin, onde a ordem social estava
sendo construída em pleno regime da ditadura militar, o que poderia estar relacionado com o medo,
a revolta, a discórdia. No entanto, as famílias se preocupavam com o fortalecimento da educação
do assentamento, no sentido de promover a educação que se traduziu na voz dos entrevistados como
o “lugar de saberes”, de aprendizagem. O fragmento abaixo são as memórias do senhor Francisco
Mathias que abraçou a Casa-Escola e descreve sua situação física, organização do calendário,
funcionamento, relação social e forma de atendimento,

A escola atendia os alunos da redondeza, e desde sempre funcionou pela manhã. Os meus
filhos iniciaram seus estudos ali; era uma tranquilidade. Mesmo as crianças problemáticas
(filho epilético) eram recebidas com cuidado e aprendiam a leitura rápida. Sem professor
formado, mais isso não foi um problema para os colonos aprenderem. Hoje, os alunos
passam anos na escola e não sabem ler, escrever e matemática, pior ainda. [...] Na escola
do Valentin, os alunos chegavam cedo porque precisavam sair mais cedo de sala de aula,
pela distância; andavam até seis quilômetros para chegar à escola. Pai não buscava filho
na escola; a gente tinha que trabalhar. E no tempo de colher o arroz; toda molecada ficava
de férias. Não tinha nenhum transporte, bicicleta, cavalo, um burro, um jegue, nada para
levá-los tão distante. Hoje, o ônibus pega o sujeito na porta de casa, e ele não é aprovado
no final do ano. […] Mesmo tudo misturado, aluno surdo, deficiente físico, doente mental
e com outros problemas, Zé professor deu conta de trabalhar com os nossos filhos. Pode
ser considerado um herói. Hoje não se vê mais este tipo de professor por aqui, dedicado e
respeitoso com a família, e interessado no ensino dos alunos (06/07/2015).

Nos dizeres desse migrante, a escola estava a uma distância considerada da Vila do Incra,
povoado sede do assentamento, cerca de sete quilômetros. Assim, cheia de defeitos, discriminada,
sem muitos espaços, se manteve de forma produtiva no local durante sete anos, embora seu
reconhecimento nas terras do Valentin, tenha se dado a partir de 1979. As narrativas dos sujeitos
representam o que o silêncio não mostrou. “A memória individual, apesar de se explicar no contexto
social, é aferida por meio de entrevistas, nas quais o colaborador tenha ampla liberdade para narrar.
Cuidados devem ser tomados em relação às interferências ou estímulos presentes nas entrevistas.”
(MEIHY; HOLANDA, 2007, p. 56).
Estam memórias conferem que, mesmo que o prédio escolar não tivesse uma arquitetura
exuberante, ainda assim se fazia notar significativamente pela localização e, o espaço arejado
propício para as brincadeiras dos alunos, em meio às árvores o que tornava um ambiente acolhedor
produtor de culturas diversas. Ainda hoje, quem trafega pela rodovia BR 174, observa o espaço
onde foi construída a primeira Casa-Escola do Assentamento CSFV. É ponto de parada obrigatória
para os caminheiros que apreciam, o restaurante do senhor Valentin, um lugar histórico que mantém
as estruturas da escola, embora sirva a outros propósitos. Estrategicamente,

O espaço escolar é apenas um “continente” em que se acha a educação institucional, isso


é, um cenário planificado a partir de pressupostos exclusivamente formais no qual se
situam os atores que intervêm no processo de ensino-aprendizagem para executar um
repertório de ações (FRAGO, 2001, p. 26).

Na verdade, é de conhecimento geral que a escola tem sua finalidade; não importa o lugar
e o ambiente físico. A escola estudada não teve biblioteca, sino, muro, aulas de informática, quadra
de esportes, cerca ou grades. A vigilância se fazia pelas próprias famílias que atuavam
diligentemente a partir de rodízio no cuidado do espaço, na limpeza, no puxar água do poço,
provisão do carvão e lenha para o preparo da merenda escolar. E quando instalada às margens de
duas estradas de tráfego intenso (BR 174 e estrada vicinal 06) próximo às terras do senhor Francisco
Mathias em 1983, a “Casa-Escola do Valentin” ou a do Major Terêncio (nome dado à Casa-Escola,
anos depois), os alunos desfrutavam da liberdade de brincar livremente. Nos momentos da
alimentação, embora não houvesse um refeitório ou mesas para refeições, as crianças sentavam nas
pedras, ou nas carteiras. Mesmo para realizar as necessidades fisiológicas, tanto os alunos como os
demais ocupantes do espaço, quando entrevistados, não lamentaram a situação de fazer uso da
latrina por mais de vinte anos.
Compreende-se que,

Os espaços educativos, como lugares que abrigam a liturgia acadêmica, estão dotados de
significados e transmite uma importante quantidade de estímulos, conteúdos e valores do
chamado currículo oculto, ao mesmo tempo em que impõem suas leis como disciplinares
(FRAGO; ESCOLANO, 2001, p. 27).

Os autores acima defendem que o espaço escolar aplicado às transformações ao longo da


história da escola e suas necessidades, construía-se focado no uso do tempo, dos espaços no interior
das instituições, marcada também pela realização das múltiplas atividades da escola e da cultura
dos sujeitos ali inseridos. Segundo Snyders (1993, p.146), “A cultura da “minha escola” se impõe
por meta organizar a vivência: superar o parcial, estabelecer ligações, vislumbrar perspectivas,
conseguindo colocar como conjuntos a situação, a comunidade e até o desenrolar da história”.
Há de se pensar esta situação quando se observa a importância da escola diante das
lembranças dos pioneiros: “De modo mais sério, os alunos podem ter acesso à sensação de que o
passado não está perdido e não se perdeu; a história é movimento pela qual o passado se mantém e
se prolonga no presente e se ultrapassa, e se projeta no futuro” (SNYDERS 1993, p.147). Os
envolvidos nessa história demonstraram união e procuraram maior autonomia e valorização do
espaço escolar. Esse entendimento focalizava na escola o clamor dos migrantes, resignificando a
luta no campo político, cultural e simbólico dos agentes promotores da escolarização do lugar.
Essa luta, nas palavras de pesquisadores sobre “pedagogia da terra” tem um significado de
permanência, de ajuda, de solidariedade e se pauta na esperança do homem como esclarece Caldart
(2004, p. 342), pois “o ser humano precisa de raízes, e somente consegue produzi-las quando
participa de uma coletividade”. Esta coletividade esteve presente quando invocaram e provocaram
os vínculos efetivos e simbólicos de suas lutas na construção dos ambientes, tanto urbanos como
rurais do assentamento do Sul de Roraima.
Considerando as análises dos acervos examinados e a relação dos dados coletados nas
entrevistas, foi possível averiguar as condições de instalações da Casa-Escola e sua funcionalidade.
As análises dos arquivos dão conta que em 1977 tiveram início os trabalhos da instituição quando
funcionou por um período breve. Os documentos apresentam somente dois alunos de 3ª série, um
reprovado e outro aprovado. Nos dizeres do senhor Valentin, havia, naquele ano, cerca de quinze
alunos matriculados regularmente. Essa Ata foi assinada por Maria Vanda da Silva; há
evidências que os alunos são da Casa-Escola do Valentin.4
A pesquisa não identificou indícios do funcionamento da Casa-Escola em 1978, o que
reforça os relatos dos participantes desse texto sobre a ausência do professor, naquele ano. Em se
tratando da funcionalidade da Casa-Escola, em 1980 havia dezessete alunos: um, de 1ª série; oito,
de 2ª série; quatro, de 3ªsérie, e quatro, de 4ª série. Cinco foram reprovados na primeira série. Não
houve desistência e a ata final está assinada por José Raimundo dos Santos, em dezembro de 1980.
Ao se indagar Zé Professor sobre o motivo das reprovações, ele alegou que,

Estes alunos vinham transferidos de outros lugares, principalmente do Nordeste, e não


acompanhavam a turma, pelo fato de não saber leitura, escrita e cálculo matemático.
Necessitavam de uma atenção dobrada, e já no final do semestre era algo difícil de alcançar.
Com a sala lotada, não tinha como eu dar atenção especial a estes alunos. Às vezes, a gente
conseguia alfabetizar um ou outro, mas era quase impossível. Sempre trabalhei com a
realidade dos alunos vivenciada na roça, e para quem chegava em sala, no final do ano,
era um desafio dos piores (02/07/2015).

Já em 1981, a ata indica dezoito alunos: seis, de 1ª série; dois, de 2ª série; cinco, de 3ª série,
e cinco, de 4ª série; todos foram aprovados. A ata foi assinada por José Raimundo dos Santos “Zé
Professor”. Verificou-se que, em 1982, a turma contava com onze alunos, sendo: seis, da 1ª série,
um, de 2ª série, dois, da 3ª série, e dois, da 4ª série. Não consta assinatura da ata por nenhum
responsável pela escola. No entanto, os participantes afirmaram a presença de Zé Professor e
confere com assinatura dos boletins dos filhos do senhor Francisco Mathias.
As atas analisadas, entre 1975-1981 evidenciaram quais de fato foram as(os)
primeiras(os) professoras(es) a trabalharem na Casa-Escola.5 As pistas, não indicaram
maiores informações sobre as duas primeiras professoras mencionadas (formação, origem,
contrato, tempo de serviço, etc.) e história de vida profissional. Zé Professor narrou suas
memórias e julgou necessário lembrar as múltiplas tarefas do professor da Casa-Escola e sua
própria formação:

4
É possível a existência do restante das atas? Talvez. .
5Ao indagar sobre a matrícula inicial das referidas escolas, um funcionário do RH da Secretaria de Educação do
Estado de Roraima, em julho de 2015, disse ser impossível encontrar nos arquivos o nome das pessoas, cadastro,
ficha de matrícula e relatórios (Boa Vista, julho, 2015).
Naquele tempo, nas escolas isoladas do Território, o professor além de não ser formado,
fazia todo o trabalho de Secretaria, limpeza, merenda e dava aulas nas classes
multisseriado. A gente perdia muito tempo lavando, cozinhando e limpando. As aulas
eram pela metade, de tanta coisa que o professor tinha que fazer em seu horário de aula.
Nessa escola, a marca registrada foi sempre a participação das mães. Assim, meu trabalho
podia render mais, e não precisava deixar os alunos fazendo as tarefas para preparar a
merenda que era importante para as crianças que moravam mais distante e a maioria
chegava sem o café da manhã. As aulas precisavam ser bem aproveitadas, pois era tudo
muito complicado com quatro séries na sala. O desafio era um gigante e não havia uma
receita pronta para resolver a situação. A falta de treinamento para aprender como
trabalhar com tantos alunos, numa sala com séries e tempos de aprendizagem diferente,
era um grande desafio dos tantos que tive que vencer (05/07/2015).

Dificilmente se encontrava um professor com Ensino Médio; mais difícil ainda formado em
magistério. Os poucos treinamentos não contribuíam para aquisição de metodologias eficazes de
ensino, com ênfase em metodologias que viabilizassem estratégias de aprendizagem nas classes
multisseriadas. O currículo desse período estudado consta em todas as séries: Língua Portuguesa,
Matemática, Estudos Sociais e Ciências, sem menção à Educação Física ou Religião. Os arquivos
examinados não indicam a idade, nem a origens dos estudantes.
No que se refere à situação da escola, a tabela abaixo apresenta a linearidade do
funcionamento, desde seu surgimento em 1977, e também indica o surgimento em 1975, da escola
denominada oficialmente de Major Terêncio de Lima que, posteriormente, em 1983 substituiu a
Casa-Escola do Valentin.

Tabela 1 – Período de funcionamento da Casa-Escola do Valentin (2015)


Ano Professor atuante S-1ª S-2ª S-3ª S-4ª Lugar Escola Quant. Alunos

1975 Sebastiana P. Viana 08 01 x x Vila da Prata/ Mucajaí Major Terêncio 09


1976 Maria Vanda da Silva 10 07 02 x Vila da Prata/ Mucajaí Major Terêncio 19
1977 Maria Vanda da Silva x x 02 x Não comprovado Casa-Escola 02
1978 Não consta x x x x Não identificado Não identificado 00
1979 José Raimundo dos Santos 10 05 x x Casa do Valentin Casa-Escola 15
1980 José Raimundo dos Santos 01 08 04 04 Casa do Valentin Casa-Escola 17
1981 José Raimundo dos Santos 06 02 05 05 Casa do Valentin Casa-Escola 18
1982 José Raimundo dos Santos 06 01 02 02 Casa do Valentin Casa-Escola 11
1983 Documento não confere x x x x Não encontrado Major Terêncio 00
Fonte: Arquivo da Auditoria de Ensino de Roraima.
Quanto à lista de alunos e à frequência, Zé Professor afirma que o registro de nascimento
sempre foi o entrave para a matrícula dos alunos. Se o aluno não possuísse registro não contava na
matrícula oficial nem recebia boletim.

Muitos não dispunham de registros de nascimento, por isso, o nome dos alunos não
aparece na ata, nem na ficha de matrícula, mais assim mesmo eles frequentavam como
ouvintes. Para conseguir o registro de nascimento levava muito tempo, enquanto isso os
alunos estuavam normalmente. Também, os alunos não usavam uniformes, mas se
cantava o hino nacional, diariamente, e hasteava-se a bandeira. [...] Não havia alunos
indígenas, e sim deficientes físicos e mentais. Todos tinham o livro didático, e a gente
fazia leitura todos os dias, a partir da realidade dos alunos vivenciada no trabalho da roça.
[...] A gente construía textos incríveis, um material muito rico ao nosso redor: a paisagem,
os animais, pássaros. E o mais interessante: a correção era feita pelos próprios colegas de
classe. Isso, eu chamei de “caderno de produção de texto” (28/12/2015).

Essa metodologia, segundo Francisco Mathias, parecia mágica, pois os alunos aprendiam
com mais interesse. Esclarecemos, também, que, a ausência de assinatura nos documentos deixou
dúvida sobre quem de fato atuou em 1983, na nova Escola da BR 174, a Major Terêncio de Lima.
Ela foi construída na estrada vicinal 06, e continuou atuante até entre 1983 e 2010, quando foi
desativada por falta de alunos.
Ao analisar as narrativas dos idealizadores da Casa-Escola e seus desdobramentos, pode-se
considerar a luta e a dedicação dos mentores pela permanência do professor, nesse meio amazônico.
Acredita-se que esses fatores surgiram em respostas ao movimento que se constituiu ao longo da
história dessa instituição escolar com o poder-saber dos assentados. Esse espaço vivo e atuante, não
abstrato, mas real, foi dirigido por pessoas que não se curvaram à opressão, mas se comprometeram
com o direito de poder aprender, fazendo a diferença desse lugar isolado e excluído do restante do
país.

Ao escrever esse artigo, a intenção foi apresentar as lutas e as ações dos migrantes a partir
de suas narrativas. Muito embora não sejam sociólogos, professores ou filósofos, eles souberam,
como nenhum outro sujeito dessa história, contar suas lutas, a pobreza, os desafios e mostrar seus
conflitos e suas buscas pelos seus ideais quanto à instalação e construção da escola, em área de
assentamento de terra, na Amazônia roraimense. Estas memórias se manifestam em tom de certeza
da militância dos sujeitos que exerceram seus direitos nos lugares que circularam, sobretudo, a
persistência pela permanência do professor no ambiente escolar.
Essas lutas pela educação dos filhos permeiam o desejo dos migrantes dos PAD/
CSFV/ANAUÁ, como lutas embrionárias, marcadas pelo descaso do direito à escola no campo. E,
de acordo com a investigação, ela é a primeira instituição de ensino do assentamento, – um espaço
social –, onde a classe trabalhadora da terra esteve empenhada pela força de vontade, na defesa da
implantação da escola e defenderam seus interesses e expandiram os saberes escolares dos filhos.
Ao longo da pesquisa, percebe-se que não houve preocupação dos pesquisadores,
memorialistas, biógrafos e historiadores de Roraima em organizar o sistema de ensino do
PAD/CSFV/Anauá e trazer para o debate o contexto histórico desse movimento. As narrativas
constroem pedaços dessa história silenciada e, nesse compasso, abrem caminhos para iniciar novos
processos investigativos sobre a escolarização do PAD/CSFV/Anauá. Esperamos que esta discussão
tenha esclarecido detalhes significativos sobre o surgimento da Casa-Escola do Valentin, que nos
faz acreditar que a escola, independente de sua arquitetura e de sua clientela, sem dúvida, tanto o
professor quanto os alunos, foram sujeitos singulares, marcados pela trajetória e experiências na
busca do conhecimento sistematizado.

ARROYO, Miguel Gonzalez; CALDART, Roseli Salete; MOLINA, Mônica Castagna. Por uma
educação do campo. Petrópolis, RJ: Vozes, 2004.

CALDART, Roseli Salete. Pedagogia do Movimento Sem Terra: escola é mais do que escola. São
Paulo: Expressão Popular, 2000.

_____. Roseli Salete. Pedagogia do Movimento Sem Terra. São Paulo: Expressão Popular, 2004.

FRAGO, Antônio, Viñao. Currículo, espaço e subjetividade: a arquitetura como programa:


[tradução Alfredo Veiga-Neto].2 ed., Rio de Janeiro: DP& A, 2001.

GADOTTI, Moacir. Pedagogia da Terra. Peirópolis: São Paulo, 2000.

LE, Goff, Jacques. História e memória. Documento Monumento. Tradução Bernardo Leitão et al.
Campinas/SP: Ed. da UNICAMP, p. 535-549, 1990.

LUZURIAGA, Lorenzo. História da educação e da pedagogia. 19 ed. São Paulo: Campanha


editora Nacional, 2001. v. 59.

MEIHY, José Carlos Sebe Bom, HOLANDA, Fabíola, História oral: como fazer, como pensar.
São Paulo: Contexto, 2007.

OLIVEIRA, Sebastião Monteiro. A organização do sistema de ensino e as políticas de formação


dos professores de Roraima. 2016. Tese (Doutorado em Educação) – Universidade Nove de
Julho/UNINOVE.

SNYDERS, Georges. Alunos felizes: reflexão sobre a alegria na escola a partir de textos literários.
Tradução Cátia Aida Pereira da Silva. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1993.
Francisco Mathias de Sousa (Chico Leão) é natural de Mocotó, Rio Grande do Norte. Nascido
aos 13 dias do mês de fevereiro de 1944; profissão agricultor. Foi entrevistado em sua
residência às margens da BR 174, km 472, estrada vicinal 06, km 01, Rorainópolis/RR. A
entrevista aconteceu no horário das 18h às 19h do dia 06/07/ 2015.

José Raimundo dos Santos (Zé Professor) nasceu 23/01/1953 é brasileiro, casado, natural
de Fortuna Maranhão, e sua profissão é a de professor do Quadro da União. Reside à Rua
Manoel Vicente de Sousa nº 429, Bairro Asa Branca, Boa Vista/RR. A entrevista foi
realizada em sua residência, nos dias 05 de julho de 2015 e 28 de dezembro de 2015.

Valentin Bauduíno Gonçalves é brasileiro e nasceu em 13/ 02 /1943. É natural de Itainópolis-


Piauí; profissão agricultor. Atualmente é empresário no ramo de Restaurante. O local da
entrevista foi em sua residência, situada à BR 174 km, 472, Lote 99, Rorainópolis/RR das
15h às 17:30 min., em 06/07/2015.
Carla Maria Ferreira Nogueira

Recordar:
Do latim re-cordis tornar a passar pelo coração.
(Eduardo Galeano. Livro dos Abraços, 2002, p. 9).

O presente artigo se dedica a refletir acerca da utilização da Metodologia da História Oral


e da (re)construção das memórias no espaço do centenário Terreiro Bate Folha, na Bahia. O uso das
fontes orais para a escrita da história do terreiro nos remete às possibilidades de romper com as
memórias cristalizadas nos registros ditos oficiais produzidos por religiosos, pesquisadores,
viajantes, entre outros agentes sociais externos à dinâmica de vida das comunidades tradicionais
afro-brasileiras.
Através da memória traduzida em palavras e que transmite uma experiência vivida, a qual
se pode ter acesso aos momentos de antigamente que permanecem, mesmo sem que deles se tome
consciência, como motivos para o comportamento presente. Ecléa Bosi, em seu livro O tempo vivo
da memória, anuncia que “existe dentro da história cronológica, outra história mais densa de
substância memorativa no fluxo do tempo (2004, p. 24). Rememorações que aparecem com clareza
nas biografias, tal como nas paisagens, lugares e objetos, marcos no espaço onde os valores se
adensam.
É sabido o quanto a produção do conhecimento interferiu e ainda interfere na construção de
representações sobre o negro brasileiro. E para se compreender essa realidade, não somente as
características físicas e a classificação racial devem ser consideradas, mas também a dimensão
simbólica, cultural territorial, mítica, política e identitária. Por que como bem esclarece o
antropólogo, professor Kabengele Munanga, é bom lembrar que nem sempre a forma como a
sociedade classifica racialmente uma pessoa corresponde, necessariamente, à forma como ela se
vê.
Se o processo de construção da identidade nasce a partir da tomada de consciência das
diferenças entre “nós” e “outros”, não creio que o grau dessa consciência seja idêntico
entre todos os negros, considerando que todos vivem em contextos socioculturais
diferenciados. Partindo desse pressuposto, não podemos confirmar a existência de uma
comunidade identitária cultural entre grupos de negros que vivem em comunidades
religiosas diferentes, por exemplo, os que vivem em comunidade de terreiros de
candomblé, de evangélicos ou de católicos, etc, em comparação com a comunidade negra

* Universidade Federal da Bahia (UFBA). Doutoranda Multidisciplinar em Cultura e Sociedade, apoio CAPES.
militante, altamente politizada sobre a questão do racismo ou com as comunidades
remanescentes dos quilombos. (MUNANGA, 2012, p, 11).

No contexto das relações de poder, políticas e práticas tanto conservadoras quanto


emancipatórias têm ganhado cena no trato da questão etnicorracial. Nesse aspecto, significa que
para compreendermos as relações etnicorraciais no Brasil, temos de considerar os processos
identitários vividos pelos sujeitos, os quais interferem no modo como esses se identificam, falam
de si e do seu pertencimento. Para entender as relações estabelecidas pelos sujeitos negros na
sociedade brasileira, a forma como a construção e a lógica das classificações raciais e a vivência de
experiências compartilhadas, nas quais a descendência africana e negra se apresenta como uma
forte marca, muitos estudiosos colocam o alcance do conceito de etnia para se referir ao negro
brasileiro, sobretudo ao ser apresentada de forma isolada e desarticulada com a reivindicação que
se deseja alcançar das diversidades no âmbito cultural, linguístico e humano. Segundo estes, o
conceito de etnia traz elementos importantes, porém, ao ser adotado de maneira desarticulada da
interpretação ressignificada de raça, acaba se apresentando insuficiente para compreender os efeitos
do racismo na vida das pessoas negras e nos seus processos identitários (GOMES, 2005).
Nesse complexo contexto teórico e político, vem sendo adotada a expressão etnicorracial
para se referir às questões concernentes à população negra brasileira, sobretudo, na educação. Mais
do que uma junção dos termos, essa formulação pode ser vista como a tentativa de sair de um
impasse e da postura dicotômica entre os conceitos de raça e etnia. Nesse momento, o uso do
conceito de etnia ganhou força acadêmica para se referir aos ditos povos diferentes: judeus, índios,
negros, entre outros. A intenção era enfatizar que os grupos humanos não são marcados por
características biológicas (muitas atrocidades foram cometidas em nome dessa idéia), mas, sim, por
processos históricos e culturais (GOMES, 2005).
Ao longo da clássica historiografia, relatos e compêndios historiográficos foram
oficializados com equívocos e mitos sobre a natureza, o homem, a religiosidade e as culturas dos
negros no Brasil e em toda parte do mundo. Danos ainda repercutem nas sociedades
contemporâneas, quando exigências de direitos se constituem como pautas de vários movimentos
sociais, inclusive, o negro e lutas são empreendidas diariamente para assegurar os já conquistados;
desde a manutenção das demarcações de terras quilombolas à implementação das leis 10.639/03 e
11.645/08, entre outras ações cotidianas impostas pelo duro enfrentamento ao racismo, do
institucional às exclusões supostamente veladas nas diversas camadas da discriminação. No
entanto, desde 2007, a aplicação dos direitos culturais e proteção à diversidade etnicorracial
brasileira conta com a instituição da Política Nacional de Desenvolvimento Sustentável dos Povos
e Comunidades Tradicionais de Matriz Africana que define princípios, objetivos e garante direitos
culturais e territoriais, também para essa população, para além dos povos indígenas.
As comunidades tradicionais de matriz africana se organizam em torno de valores de
convivência humana trazidos por africanos para o Brasil, possibilitando um contínuo construído em
territórios próprios caracterizados pela vivência comunitária. A crescente politização e conquista de
assentos em instâncias participativas promoveu o avanço na definição de políticas públicas de
defesa de direitos humanos, de combate ao racismo e de igualdade racial, principalmente, nos
processos de reelaboração dos processos de coexistência.
Entre os princípios de convivência das Comunidades Tradicionais de Matriz Africana estão
presentes a ativa participação dos mais velhos nas tomadas de decisão e manutenção dos saberes,
princípio que estrutura as hierarquias estabelecidas em torno da relação com a ancestralidade que
fundamenta as práticas tradicionais. No entanto, a ideia de circularidade pressupõe certa
horizontalidade entre os indivíduos, no processo de troca de conhecimentos, que organiza a própria
cosmovisão na complexidade integrativa do passado e presente, profano e sagrado e da relação com
o meio ambiente.
Na Bahia, em geral, e no Recôncavo Baiano, em particular, há uma grande visibilidade no
âmbito nacional e internacional de uma cultura marcadamente afro-brasileira; isso muito em
decorrência da expressiva vinda do negro em condição de escravizado para essa região do Brasil.
Wlamyra Albuquerque e Walter Fraga Filho (2006, p. 40) destacam que os dados não são precisos,
com estimativa de chegada, entre o século XVI e meados do século XIX, de mais de 11 milhões de
homens, mulheres e crianças africanas e africanos trazidos para as Américas; número que não inclui
os não sobreviventes do processo violento da travessia atlântica.
Com o fenômeno do movimento migratório transatlântico forçado, cerca de quatro milhões
de pessoas desembarcaram em portos brasileiros. E por um período de mais de três séculos,
nenhuma outra região americana esteve tão ligada ao continente africano, por meio do tráfico, como
o Brasil, unindo, para sempre, o nosso país à África, como bem pontuam Wlamyra
Albuquerque e Walter Fraga Filho (2006, p. 40). Parte deste fenômeno se deve à produção
agrícola de exportação, em alta expansão, naquele período, necessitando assim de mão de
obra barata. Mecanismos debatidos com questões apontadas por estudiosos quando tratam das
culturas negras na região, a exemplo de Fraga Filho (2006), ao salientar que situações como
essa fez com que a escravidão negra e as culturas de matriz africana se deslocassem a um
plano de destaque, constituindo um amplo material na historiografia, fato evidente quando se
busca estudos sobre as comunidades negras rurais, quilombolas ou religiosas.
Ao longo da história da construção identitária brasileira, o candomblé sempre foi um dos
componentes fundamentais na e para preservação e difusão das religiosidades e culturas africanas
no Brasil, muito embora com novas configurações dado o contexto encontrado no novo continente.
Segundo Prandi (2006), o candomblé teve sua constatação mais evidente após as últimas chegadas
de negros oriundos de África, em que eram traficados para o Brasil com a finalidade de trabalhar
nas cidades e ocupações urbanas no século XIX.
A história do Brasil é profundamente marcada pelos séculos de escravidão. Apesar das mais
tristes condições a que um ser humano pode ser submetido, mulheres e homens viram na fé nos
ancestrais a condição de refazer os laços, manter e recriar reminiscências e reconstituir, mesmo em
termos simbólicos, as famílias, que, como parte da estratégia do sistema escravagista, foram
completamente esfaceladas. A noção de família foi uma das primeiras funções do candomblé, pois
no espaço dos terreiros, a identidade familiar foi recuperada, tendo nas mães e pais de santo suas
figuras centrais.
Nos terreiros, as famílias de santo criaram uma rede de proteção essencial para a
preservação dos valores e tradições, costumes e fé, além de possibilitar a reconstrução de
identidades e a manutenção da cultura, filosofia e visão de mundo africana, sem as quais o negro
não teria sobrevivido à escravidão. Assim como os quilombos, os terreiros são espaços de
resistência e de recuperação dos vínculos de aproximação e relação mútua.
Propagador de uma tradição milenar e repleta de significados e significâncias, dentre elas o
culto aos Nkisis, Orixás, Vodus e ancestrais, o candomblé representa uma conformação importante
na compreensão dos movimentos de construção da religiosidade afro-brasileira em todo o país. Os
terreiros contribuíram substancialmente para a salvaguarda, manutenção e transmissão das culturas
africanas no Brasil, sendo o espaço religioso o “centro do mundo”, para usar uma expressão de
Mircea Eliade (1992, p. 17), historiador das religiões, que deve ser entendido como local sagrado,
patrimônio material e imaterial de preservação da memória, de sustentação e, sobretudo, de
celebração.
As comunidades dos terreiros, enquanto instituição social, são portadoras de uma identidade
social que vai desde a preservação da memória coletiva, o respeito aos mais velhos, a transmissão
de saberes através da oralidade, o respeito às diferenças religiosas e culturais e, acima de tudo, o
equilíbrio entre corpo e espírito através de uma relação intrínseca entre o natural e o sobrenatural.
Essa experiência coletiva que leva ao saber compartilhado, passado de geração em geração, produz
um grande valor simbólico-religioso em que os saberes ali praticados compõem um patrimônio
imaterial de transmissão de conhecimentos e significados que se tornaram mais amplos quando
passaram a transportar um conjunto de bens culturais pertencentes a comunidades maiores do que
a família, estendendo-se para um povo, pois a noção ampliada de família é uma de nossas heranças
africanas.
O reconhecimento da cultura negra no Brasil e a valorização da diversidade expressa nas
diversas manifestações culturais de matriz africana foram ganhos obtidos na luta contra a
discriminação, que ainda persiste na sociedade brasileira. Nesse contexto, o papel dos candomblés
foi essencial para a resistência e construção da formatação do povo brasileiro, principalmente, no
que se refere ao sentido de pertencimento e defesa aos interesses de preservação das tradições.
O candomblé utiliza a oralidade para transmitir os seus dogmas e ritos no processo de
iniciação e perpetuação da religião, desde o período da escravatura. Nesse sentido, a História Oral
se apresenta como uma metodologia fundamental para a produção de fontes privilegiadas para a
escrita da História desses atores sociais – Povos e Comunidades Tradicionais que por meio de suas
memórias e narrativas montam importantes fontes para leituras do passado e estabelecimento de
ligações com o presente. Essa riqueza está evidentemente relacionada ao fato de permitir o
conhecimento de experiências e modos de vida de diferentes grupos sociais. De acordo com Verena
Alberti, a narrativa é um dos principais alicerces da História Oral. “Ao contar suas experiências, o
entrevistado transforma o que foi vivenciado em linguagem, selecionando e organizando os
acontecimentos de acordo com determinado sentido.” (2006, p. 159).
Na tentativa de privilegiar aspectos das falas do pai, filhos e filhas de santo, assim como a
da matriarca Nengua Ganguasese, nome de iniciação da senhora Olga Conceição Cruz do terreiro,
a qual passou 70 dos seus 90 anos de idade à frente do tradicional terreiro do Bate Folha, o repertório
de entrevistas que constituem as fontes orais do trabalho foram elaboradas e reelaboradas a partir
das experiências no espaço e no tempo, observando como a memória é reconstruída de modo
próprio, apontando para a afirmação identitária, tanto quanto os processos simbólicos, imaginários
e ideológicos na elaboração de construções discursivas que problematizem o discurso oficial.

O Terreiro Bate Folha, denominado em língua Kimbundu1 como Manso


Banduquenqué, foi fundado em 1916, em Salvador, por Manoel Bernardino da Paixão,
Tata Ampumandezu, e, atualmente, é conduzido por Cícero Rodrigues Franco Lima, Tata
Muguanxi. De nação CongoAngola, referida alusão aos territórios de origem dos africanos
trazidos ainda no período escravocrata, resguarda componentes históricos, culturais e
religiosos de tradição Bantu. Dedicado ao Nkisis2 Mbamburucema, a origem do terreiro é
repleta de acontecimentos que abrigam a passagem do sobrenatural para a aquisição de um
bem material, a terra, para abrigar os filhos e filhas da Casa (assim também denominado os
terreiros de candomblé).
Figura 1 – Vista panorâmica do bairro Mata Escura

Fonte: Imagem cedida pela fotógrafa Marisa Viana, em 07 de novembro de 2016.

1
O kimbundu é a terceira língua nacional mais falada em Angola, com incidência particular na zona centro-
norte, no eixo Luanda-Malange e no Kwanza-Sul. Possui grande relevância, por ser a língua da capital e do
antigo reino dos N'gola. Foi esta língua que deu muitos vocábulos àlíngua portuguesa e vice-versa.
2
Os Nkisis são divindades para os povos Bantu.
Localizado no bairro da Mata Escura é o maior terreiro em extensão territorial da capital e
um dos mais antigos da cidade de Salvador. O bairro da Mata Escura é considerado uma das zonas
periféricas de Salvador, e, de acordo com os dados do IBGE, no Censo 2010, possui 33.454
habitantes, com renda média da população no valor de R$830,00, na sua grande maioria.
Como em muitas localidades do país, com predomínio de moradores negros, a baixa oferta
de educação pública de qualidade e a falta de saneamento básico nessas áreas afetam diretamente a
população que, de acordo com muitos dados estatísticos que estão aí, também, concentram os
maiores índices de violência e homicídios de jovens negros. Imerso nessa realidade situacional, o
Terreiro Bate Folha, conforme imagem abaixo, circundado pelo crescimento desordenado e
irregular das áreas urbanas, aponta para os grandes desafios da região e chama a atenção para a
melhoria das condições fundamentais de vida. Ademais, percebe a necessidade da realização de
ações pontuais e efetivas no que se refere à valorização da cultura negra, fortalecendo a autoestima
e o autorreconhecimento dos moradores do próprio bairro e membros da comunidade.
Figura 2 – Vista aérea do bairro Mata Escura

Fonte: Imagem retirada do Google Maps, em 17 de agosto de 2017

Referência de todo o território mencionado, o terreiro preserva, no escopo de sua estrutura,


aproximadamente 15 hectares de Mata Atlântica, em zona urbana, na periferia de Salvador (grande
área verde circundante da imagem). A natureza é considerada como o alicerce elementar ancestral
para o culto de matriz africana, e, desse modo, a preservação do meio ambiente é substancial para
a ritualística e sobrevivência de modo geral, além de representar para o bairro um símbolo positivo,
de alusões negras, diante de tantas dificuldades sociais. Considerando a histórica contribuição do
terreiro para o desenvolvimento local e testemunho do processo de urbanização da Mata Escura, as
primeiras habitações foram construídas a partir do seu entorno pelos adeptos iniciados no início do
século XX.
Contém em sua história inicial, o registro da primeira instituição de Ensino Fundamental
no espaço do terreiro, contribuindo para a formação escolar inicial de muitas crianças. Ainda para
a manutenção do culto afro-brasileiro e nesse contexto de resistência e agrupamento, salienta-se
que esta mesma área consistia em uma antiga reserva quilombola, cujo legado é ratificado pelo
terreiro em seu valor identitário.
Após quatro anos de sua fundação, foi instituída a representação civil “Sociedade
Beneficente Santa Bárbara”, organização sem fins lucrativos e/ou econômicos, com autonomia
administrativa e financeira que funciona como braço social do terreiro. Datada de 1920, a sua
composição é de filhos e filhas da Casa com definições e regulamentos sobre as especificidades
desempenhadas: atividades religiosas de matriz africana da nação Congo-Angola, assistenciais,
socioculturais e educacionais. Considerada de utilidade pública, em 1993, pela Câmara Municipal
de Salvador, a Sociedade Beneficente Santa Bárbara preserva o compromisso que institui o
empenho da Casa em salvaguardar manifestações próprias, ressaltadas por meio dos ritos, crenças,
celebrações e costumes.
Reconhecido como Patrimônio Cultural Brasileiro e tombado como Patrimônio Nacional
pelo Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional, em 10 de outubro de 2003, foi também
destacado como Território Cultural Brasileiro pela Fundação Palmares, o Manso Banduquenqué é
um importante núcleo de culto afro-brasileiro. A valorização e o cultivo do conhecimento associado
à natureza fazem do lugar, além de um templo sagrado, um espaço de preservação ambiental,
destacando-se pela enorme área onde estão árvores sagradas centenárias.
São princípios que regem a constituição da sociedade que compõe o terreiro – amparar,
proteger e cultuar os preceitos da religião de matriz afro-brasileira –, exercendo a caridade segundo
os preceitos da religião de matriz africana sobre os costumes dos seus antepassados. O estudo, a
prática e a difusão do candomblé em todos os seus aspectos, com base nas obras alusivas à religião,
bem como, na oralidade e experiências dos mais velhos nos auxiliam a traçar linhas de atuação no
reforço dos compromissos firmados pelos seus antecessores.
Atestando a permanente contribuição pela preservação da história dos povos africanos no
país, os terreiros são verdadeiros templos de conservação da memória dos antepassados. Nesse
aspecto, o terreiro do Bate Folha possui inegável importância na manutenção de suas práticas
religiosas e na conservação da tradição Congo-Angola.
Por ocasião das comemorações do centenário do Terreiro Bate Folha, em dezembro de
2016, foi realizado um ciclo de encontros com as filhas e filhos de santo da Casa, para registro do
sentido de pertencimento àquele espaço religioso e dos significados que foram atribuídos a ser
membro daquela comunidade tradicional de atriz africana, considerando a dinâmica interna de
convívio entre as pessoas, os ensinamentos e a percepção de mundo.
Ao seguir a lógica que rege a comunidade do terreiro Bate Folha, a qual se confunde com
demais comunidades tradicionais, o primeiro registro foi feito com Dona Olga Conceição Cruz,
mais conhecida como Nengua Ganguancesse, nome recebido após seu processo de iniciação na
ritualística do candomblé, o qual ocorreu por volta de 1949, três anos posteriores ao falecimento do
fundador do terreiro, Seu Manoel Bernardino da Paixão. Nas quase duas horas de fala, as histórias
individuais da Nengua se confundia com a história do terreiro e também com a de Salvador, pois a
característica mais contada daquela época foi o isolamento, com total afastamento do centro da
cidade, a inexistência de moradias nos arredores e a falta de luz. Água se tinha porque era abastecido
por uma nascente, a qual mais tarde iria atender aos moradores locais e adjacentes, servindo até
para fornecer a uma parte de Salvador.
Frequentadora desde criança, relembrou que apesar de ter conhecido o fundador, não foi
inserida na ritualística no período deste, pois estava muito nova. Mas lembra, com riqueza de
detalhes, os aspectos físicos dos espaços, as pessoas que por ali passaram e do tempo em que passou
a viver definitivamente no terreiro; escolha, conforme próprio relato, que lhe rendeu aprendizados
e confiança. Sentimentos partilhados como fio condutor para representar o maior ganho definido
por essa senhora de 92 anos, que destaca como maior ensinamento a humildade e a fé. Crença nos
Nkisis e na força dos nossos ancestrais africanos que deixaram como legado a perseverança e a
insurgência do ser.
As comunidades alocam suas relações comunitárias enquanto aspecto central em sua forma
de organização social no significado que reside o humano na cosmovisão africana, como bem define
os povos Bantu, através do princípio Ntu, que diz: “Eu sou porque você me reconhece”. A existência
de cada um só faz sentido no reconhecimento do coletivo.

ALBERTI, Verena. Fontes orais: histórias dentro da História. In: Fontes Históricas. PINSKY,
Carla Bassanezi. São Paulo: Contexto, 2006. p. 155-171.

ALBUQUERQUE, Wlamyra R. de; FRAGA FILHO, Walter. Uma história do negro no Brasil.
Salvador: Centro de Estudos Afro-Orientais da Universidade Federal da Bahia e da Fundação
Cultural Palmares, 2006.

BOSI, Ecléa Bosi. O tempo vivo da memória: ensaios de psicologia. São Paulo: Ateliê
Editorial, 2004.

ELIADE, Mircea. O sagrado e o profano. Tradução de Rogério Fernandes. São Paulo: Martins
Fontes, 1992.

FRAGA FILHO, Walter. Encruzilhadas da liberdade: histórias de escravos e libertos na Bahia,


1870-1910. São Paulo: Ed. da Unicamp, 2006.
GALEANO, Eduardo. O livro dos abraços. Tradução de Eric Nepomuceno. 9. ed. Porto Alegre:
L&PM, 2002.

GOMES, Nilma Lino. Alguns termos e conceitos presentes no debate sobre relações raciais no
Brasil: uma breve discussão. Educação antirracista: caminhos abertos pela Lei Federal n.
10.639/03. Brasília: MEC/SECAD, 2005. p. 39-62.

PRANDI, Reginaldo. As religiões negras no Brasil: para uma sociologia dos cultos afro-
brasileiros. Revista USP, São Paulo, n. 28, dez/fev., 1996.
Gérson Wasen Fraga

Este texto apresenta as primeiras considerações relativas ao projeto de pesquisa homônimo,


que tem como objetivo investigar os elementos que conformam a identidade e a história de um
grupo de amigos que, há vinte e cinco anos, se reúne semanalmente em Porto Alegre para a prática
informal do futebol de salão. Tal grupo, autodenominado “Aquiagatamia”, é constituído por
homens com formação superior, majoritariamente nas áreas de Ciências Humanas e Ciências da
Saúde. Contudo, para além da história de um grupo específico de amigos, interessa a nós, através
deste recorte, investigar a importância dos espaços de lazer e sociabilidade na sociedade
contemporânea, notadamente a partir da década de 1990, bem como a compreensão dos integrantes
do grupo sobre suas práticas de lazer
As entrevistas para este trabalho estão sendo realizadas, individualmente, a fim de que cada
entrevistado possa expressar suas percepções, sem a concorrência de narrativas construídas através
de rodas de conversa (ou seja, de forma coletiva). Também por este motivo, optamos por não
realizar as entrevistas no momento de encontro do grupo para a prática do futebol de salão, ocasião
que se mostraria a mais fácil, mas onde dificilmente teríamos a oportunidade de realizar entrevistas
em separado, posto que trata-se de um momento de fruição coletiva. Assim, temos buscado realizar
as entrevistas na residência dos integrantes do grupo ou, caso não seja possível, em lugares e
momentos onde possamos ouvi-los, separadamente. No primeiro caso, é possível que nas
entrevistas realizadas nas residências dos entrevistados, tenhamos a participação de outros membros
da família (esposas, por exemplo). Entendemos que tal possibilidade não é a priori problemática,
uma vez que o grupo adquiriu, ao longo do tempo, um caráter “familiar”. Logo, podem nos
interessar as percepções compartilhadas entre os membros do grupo e seus cônjuges.
Por fim, cabe destacar que estas são as primeiras considerações a respeito deste projeto de
pesquisa. Não trata-se desta forma de um texto sobre algo acabado. Ao contrário, estes são os
primeiros passos de algo que, pretendemos, torne-se uma caminhada maior. Foram realizadas até
agora três entrevistas. Trabalhamos com um número mínimo ideal de 15 a 18 depoimentos como

* Doutor em História/UFRGS. Professor da Universidade Federal da Fronteira Sul/UFFS. Coordenador do


Centro de Documentação e História Oral da UFFS/Campus Erechim.
meta para constituir o rol de fontes primárias desta pesquisa, muito embora uma quantidade maior
de entrevistas seja possível, caso resolvamos abrir o leque para ex-participantes.

O “Aquiagatamia” é, a princípio, um grupo de amigos que, de maneira informal, reúne-se


para jogar futebol de salão no final das tardes de sexta-feira em Porto Alegre. Sua “fundação” teria
se dado em 1992, a partir de um conjunto de alunos de Pós-Graduação, desejosos de jogar futebol.
Curiosamente, esta origem do grupo é revestida de certa obscuridade, inclusive para seus
integrantes, uma vez que de seus fundadores originais, apenas um ou dois ainda manteriam contato
com os integrantes do grupo atual, apesar de morarem ambos, por motivos profissionais, em
Brasília. Assim, o próprio ano de fundação do grupo é objeto de controvérsia interna. Nas palavras
de um dos membros, identificado como “dos mais antigos do grupo”;

E o aquiagatamia, ele foi criado, o espaço foi criado por estudantes que eram do mestrado
de Sociologia, no caso que eu conheci um, um colega da Filosofia; eu, da História. Então
eram pessoas que por algum motivo tinham alguma relação. Então eram pessoas assim,
bem distintas do que temos hoje. E acho que, talvez, junto com o Serginho, eu sou um dos
mais antigos, provavelmente. Mas não fui o fundador do grupo, porque eles já estavam
jogando antes […]. Por exemplo: temos o Marcelinho, lá, que tá em Brasília, que seria um
dos fundadores. Mas, ele, por conta da distância, eventualmente ele joga. (VIANA, 2017).

Seja como for, o fato é que este encontro esporádico de alguns colegas acabou por originar
um espaço/tempo de lazer que perdura há 25 anos. Como todo grupo informal, também este
organiza-se de forma aberta, integrando novos membros por afinidade e possuindo certa
rotatividade, muito embora seja possível identificar um “núcleo duro”, com participação efetiva e
regular que já remonta há duas décadas. Questionado sobre os motivos da perenidade do grupo,
outro entrevistado explicita a forma “anárquica” de organização do grupo, muito embora aponte em
sua fala para outras características do mesmo:

Ele persiste porque é um grupo anárquico. A nossa postura sempre foi, o Aquiagatamia
sempre foi um grupo de amigos que estava lá para jogar bola. Que tinha identidade
ideológica, que tinha um certo… mais isso está em um terceiro plano. Nosso negócio no
Aquiagatamia era nos divertirmos, e nos divertirmos de forma anárquica, sem regra, sem
muita bitola. Eu entendo tranquilamente que esse grupo só existe pela postura anárquica
que, desde o começo, assumiu. Onde cada um dá pitaco, onde cada um é respeitado, onde
cada um decide, onde cada um tem influência e é considerado pelos outros, e se tem um
descontente a gente pára para conversar e para pensar. E isso não foi uma combinação.
Isso é uma questão de respeitar a humanidade, o ser humano, no sentido de ter respeito
pelo ser humano. Sobretudo porque o resultado disso sempre foi muito prazeroso. Nosso
resultado é jogar bola, é ter amigos, é ter uma inserção. Ninguém de nós, das ciências
humanas desconhece o mundo em que vivemos, a dificuldade de ter isso, e a hipocrisia.
Então, eu penso que esse grupo, ele se propôs a não ser hipócrita, e a aceitar o que viesse.
(CUNHA, 2017).

Este excerto nos parece revelador por nos apontar para alguns elementos que conformam a
identidade do grupo para além do ato de reunir-se para jogar futebol. Com efeito, a “identidade
ideológica” apontada inicialmente, bem como “resultado prazeroso” da atividade apontam
elementos subjacentes à mera prática informal do esporte. Há, portanto, elementos que denotam
uma identidade coletiva, que formam um amálgama a unir indivíduos que, de outra forma, não
teriam motivos para sair de suas casas em um dia de semana e se encontrarem para jogar futebol. É
hora pois de darmos uma rápida olhada neste “prazer” resultante da sociabilidade. É hora, pois, de
olharmos para um conceito que a nós é fundamental: o de lazer.

Uma vez identificado o grupo com o qual desejamos trabalhar, é hora de partirmos para
uma primeira tentativa de estabelecer pilares conceituais com os quais devemos trabalhar.
Embora tenha uma trajetória de duas décadas e meia, a prática pura e simples do
Aquiagatamia em nada difere da de outros grupos de homens que encontram-se semanalmente para
jogar futebol. Qualquer pessoa que já tenha vivido esta experiência sabe que tais grupos são diversos
e que, com frequência, é possível transitar em vários ao longo de uma semana. As justificativas
apontadas para a participação em tais grupos costumam variar de questões que envolvem, desde a
relação com o corpo (“suar um pouquinho”, “dar uma corrida atrás da bola”, “perder a barriga”) até
questões de ordem “emocional” ou “afetiva” (“espairecer”, “descarregar a energia”, “encontrar os
amigos”). Seja como for, esta é uma prática alocada fora do tempo de trabalho, naquela
temporalidade destinada aos interesses pessoais, à família e a tudo que não envolva as imposições
do trabalho cotidiano. Em outras palavras, trata-se, antes de mais nada, de uma prática de lazer.
Segundo Luiz Lima Camargo, não é possível falar em uma única definição de lazer, posto
que diversas são as possibilidades neste campo: individuais ou coletivas, envolvendo esforço físico
ou tendo como finalidade um mero deleite estético-cultural, de âmbito doméstico ou tendo “a rua”
como seu locus. Todavia, seria possível encontrar algumas características básicas que nos permitam
analisar a prática do lazer.

O lazer é sempre liberatório de obrigações: busca compensar ou substituir algum esforço


que a vida social impõe. Assim é ir ao cinema para descarregar as tensões do trabalho ou
quebrar a rotina sedentária com uma corrida em um parque. Esta é a propriedade mais
óbvia do lazer, talvez pelo seu lado dramático. Para muitos trabalhadores, com extenuantes
jornadas de trabalho, mais transporte e obrigações domésticas, o lazer é compensatório na
sua forma mais crua, de liberação da fadiga e de reposição das energias para o trabalho no
dia seguinte. Por mais interessante que seja o lazer possível, acaba sendo interrompido
pelo sono (CAMARGO, 2008, p. 12-3).

Embora o estabelecimento de uma definição precisa de lazer seja uma tarefa complexa,
dadas as múltiplas possibilidades pressupostas pela prática, tem-se que o lazer é resultante da
organização urbana e industrial do trabalho, onde o foco das atividades não está na produção
material, nem na satisfação das obrigações domésticas. É um tempo de não produção no sentido
capitalista, mas pode ser um tempo de produção cultural, de estabelecimento de relações pessoais,
enfim, um tempo que tem como fim último a pessoa, e não a produção. Neste sentido, concordamos
com Joffre Dumazedier, quando este coloca que:

Acreditamos ser a um só tempo mais válido e mais operatório destinar o vocábulo lazer
ao único conteúdo do tempo orientado para a realização da pessoa com fim último. Este
tempo é outorgado ao indivíduo pela sociedade quando este se desempenhou, segundo as
normas sociais do momento, de suas obrigações profissionais, familiais, socioespirituais e
sociopolíticas. É um tempo que a redução da duração do trabalho e das obrigações
familiais, a regressão das obrigações socioespirituais e a liberação das obrigações
sociopolíticas tornam disponível; o indivíduo se libera a seu gosto da fadiga descansando,
do tédio divertindo-se, da especialização funcional desenvolvendo de maneira interessada
as capacidades de seu corpo ou de seu espírito. Este tempo disponível não é o resultado de
uma decisão de um indivíduo; é primeiramente, o resultado de uma evolução da economia
e da sociedade. Como já dissemos mais acima, é um novo valor social da pessoa que se
traduz por um novo direito social, o direito dela dispor de um tempo cuja finalidade é,
antes, a auto-satisfação (DUMAZEDIER, 2008, p. 91-2).

Se nosso objeto é um espaço e tempo de lazer, importa também termos claro que tipo de
lazer é este. Comecemos pelo mais elementar.

O futebol é produto da sociedade urbana e industrial criada do século XIX. Segundo Hilário
Franco Junior, tal criação reflete não somente o surgimento de uma cultura associada a esta nova
realidade, mas expressa as novas relações com o tempo e com o trabalho. No primeiro caso, a
associação com o relógio é um tanto lógica. Afinal, tanto a duração do dia de trabalho quanto a
duração do jogo estão submetidas ao passar inexorável do tempo medido pelo cronômetro (em
oposição à realidade do trabalho rural, marcado pela luz do sol e outros elementos dados pela
natureza). Já a nova relação com o trabalho transparece na associação feita entre a especialização
de funções na linha de montagem e a especialização dentro de campo, onde cada jogador
desempenha sua função específica no conjunto da equipe (FRANCO JUNIOR, 2007).
Tal qual o futebol que lhe deu origem, o futebol de salão é fruto de uma sociedade
eminentemente urbana, algo perceptível na sua natureza de esporte indoor, seja pela característica
de sua maior operacionalidade (é mais fácil juntar 10 pessoas para uma partida de futebol de salão
do que as 22 necessárias para o futebol de campo, sem falar da obtenção do espaço necessário).
Embora tecnicamente seja outro esporte, tanto as semelhanças quanto a forte presença do futebol,
como elemento constituinte da cultura brasileira, faz com que a prática informal do futebol de salão
e todas as outras derivações do futebol (“futebol 7” ou society, “futebol suíço”, etc...) sejam, por
vezes, tratadas genericamente por “futebol”. Muito embora seja possível perceber um crescimento
do futebol feminino no país nos últimos anos, trata-se ainda, ao menos no que se refere à prática,
de um universo marcadamente masculino.
É sobre tal prática, fortemente masculina, derivada do futebol de campo (verdadeira
bricolagem que ganhou autonomia e status de esporte à parte), que gira o encontro dos integrantes
do Aquiagatamia. E é tal prática que é entendida coletivamente como momento de lazer.
Voltemos agora à concepção de lazer enquanto “tempo conquistado”. Esta característica é
marcada nas entrevistas feitas até o momento, muito embora seja possível encontrar matizes
diversos nos mesmos. Assim, o lazer poder ser inicialmente concebido como uma necessidade que
abarca o conceito de prazer.
Eu considero a atividade física um lazer, por exemplo. Jogar bola é um lazer. Então assim,
eu assim, como eu precocemente sempre fiz atividade física, depois fui atleta, eu sinto uma
necessidade fisiológica até do lazer. Eu me sinto mal se eu não corro. Agora não estou
correndo na Redenção […]. Um momento de lazer, ele significa não estar ligado em uma
coisa que é laboral, que é do trabalho. E isso inclusive te faz ser mais criativo no trabalho.
A criatividade no trabalho… a falta de criatividade no trabalho se dá pela saturação do…
pela saturação (24:00) da coisa cotidiana, contínua, que às vezes faz parte, até pelo tempo
que tu fica no trabalho. Mas, se tu não tiver, inclusive ter lazer no trabalho, ou pelo destoar
daquela coisa rígida que o trabalho exige, por vezes, que não deixa de ser um lazer no
trabalho, tu fica… acho que tu enrigesse, tu enrigesse, fica duro, literalmente. Então é
muito importante. (ARAÚJO, 2017).

As atividades de lazer, no entanto, podem ultrapassar a questão de estabelecer uma atividade


externa ao mundo do trabalho. Lembremos aqui que a prática do lazer demanda, antes de mais nada,
um investimento de tempo em algo do qual não espera-se, a priori, um retorno financeiro. Deste
modo, este tempo destinado pelo indivíduo a si próprio pressupõe a existência de um tempo que
não será regido pela lógica do capital. Tal explicação talvez fique mais clara se tivermos em mente
que mesmo o sono pode ser entendido pelo capitalismo clássico como um tempo necessário para a
reconstituição da força de trabalho, tal qual o salário seria estipulado como o necessário para que o
trabalhador reconstituísse sua força de trabalho para voltar a produzir na fábrica no dia seguinte
(BEAUD, 1989). O tempo do lazer é, desta forma, um tempo negado pelo indivíduo à lógica de
produção capitalista. Passa a ser, desta forma, não apenas uma atividade de prazer e descanso, mas,
igualmente, um ato de resistência e de humanização.
É, eu acho que na medida em que a gente se impõe um horário determinado, temos
que ganhar, por exemplo, aquele espaço de horário do nosso trabalho, que muitas
vezes diz não para isso. Na medida em que a gente vai, diante de todas as
dificuldades da vida, do dia a dia, confirmando a sua presença, realmente é um
espaço de humanização, de trocas de valores. (VIANA, 2017).

Ou, nas palavras de outro entrevistado:


Todos nós sabemos: o Aquiagatamia é um grupo de resistência, também. De diversão e de
resistência. Inclusive resistir para se divertir. Porque entendemos que diversão é só na
resistência. Todo ser humano é pertencente, quer pertencer a um grupo e o nosso grau de
pertencimento no Aquiagatamia é algo que só os membros dele podem… [...] As nossas
festas, os nossos encontros, o sentido, o conceito de encontro que é o Aquiagatamia é
muito maior do que qualquer coisa. Eu não tenho dúvida disso. Então, é futebol, mas o
nosso encontro enquanto ser humano é muito maior do que qualquer futebol. Ainda que o
futebol seja… Nós sabemos que o futebol é a nossa desculpa, nós sabemos que o futebol
é o nosso veículo. E nós somos dependentes do Aquiagatamia. Não tenho dúvida.
Qualquer membro é dependente, ou não faríamos as coisas que fazemos para chegar lá na
sexta-feira, às seis da tarde. Cada um de nós faz as suas loucuras para ir. Eu saio daqui,
viajo quarenta e poucos quilômetros em um trânsito desgraçado para chegar lá na sexta-
feira. Porque é um encontro. E é um encontro que me humaniza, é um encontro que me
faz gente. E a todos nós. Eu não tenho dúvida disso. (CUNHA, 2017, grifo meu).

Desde modo, a participação no grupo, muito mais do que um mero encontro para jogar
futebol, toma outros sentidos, para além da própria noção de lazer. O encontro com os amigos no
fim da sexta para a prática esportiva assume uma dimensão de resistência ao capital, posto que é
um espaço de tempo subtraído à possibilidade do utilitarismo com fins de ganho financeiro. Esta
dimensão de “resistência” e a dimensão de “humanização” andam juntas, segundo a perspectiva
apontada pelos dois entrevistados acima citados, demandando, portanto, a compreensão de que há
um caráter desumanizador do capital quando este incide sobre as relações pessoais. O lazer, desta
forma, assume a sua máxima função: promover práticas e relações que levem à valorização da
dimensão humana dos integrantes.

Como expresso anteriormente, este pequeno texto é o resultado de uma primeira


aproximação ao nosso objeto de pesquisa, não sendo, portanto, o caso de apresentarmos aqui
conclusões. Contudo, é possível apontar alguns caminhos pelos quais deveremos percorrer no
futuro.
Inicialmente, cabe aprofundar a percepção de uma ideia de vinculação entre o lazer e a
resistência ao capital. Tal percepção, se difundida entre os integrantes do grupo, pode apontar para
uma noção acerca do lazer que ultrapassa a mera ideia de “passatempo”. Pelo contrário, haveria um
claro viés político associado ao lazer. Julgamos oportuno investigar se tal percepção está associada
a uma identidade política do grupo ou se, ao contrário, seria uma leitura restrita a determinados
membros e, neste caso, qual seria a característica destes membros que conduz a tal leitura
Outro caminho a ser percorrido diz respeito à transformação do grupo ao longo do tempo.
Com efeito, é possível perceber que a construção dos vínculos e de uma identidade de grupo se dá
ao longo do tempo, transformando o caráter do grupo, de “masculino” para “familiar”, dado que
diversas atividades de confraternização envolvem a presença de filhos, esposas ou outros parentes.
Se é certo que tal transformação ocorre devido ao processo de maturidade ou envelhecimento dos
membros, também é possível que seja envolvida por outros fatores, como a adesão – ainda que
involuntária do grupo – ao discurso do “politicamente correto”, o que demandaria a incorporação
de uma perspectiva descolada da tradicional valorização do universo masculino/machista presente
nos espaços associados ao futebol informal. Evidentemente, a incorporação deste discurso pode
estar associado a uma identidade ideológica, bem como às marcas que a própria História imprime
sobre a coletividade, o que também deve ser objeto de nossa atenção.
Por fim, um terceiro caminho diz respeito a um elemento específico da constituição do
grupo, qual seja, o estabelecimento de uma “burocracia” na organização do grupo, bem como de
um espírito de maior competitividade durante as partidas. A julgar pelas primeiras aproximações,
as transformações vividas ao longo do tempo pelo grupo levaram à criação de uma espécie de
“diretoria” escolhida informalmente, o que se chocaria com uma identidade histórica de grupo
gerido coletivamente, onde todos teriam direito à vez e voz.

BEAUD, Michel. História do capitalismo: de 1500 aos nossos dias. São Paulo: Brasiliense, 1989.

CAMARGO, Luiz O. Lima. O que é lazer. São Paulo: Brasiliense, 2008.

DUMAZEDIER, Joffe. Sociologia empírica do lazer. São Paulo: Perspectiva, 2008.

FRANCO JUNIOR, Hilário. A dança dos deuses: futebol, sociedade, cultura. São Paulo:
Companhia das Letras, 2007.

Entrevista com Ivo Luís Viana, realizada em 26 de março de 2017.

Entrevista com Sérgio Luis Cunda da Cunha, realizada em 03 de fevereiro de 2017.

Entrevista com José Cláudio dos Santos Araújo, realizada em 13 de junho de 2017.
Thiago Silva de Souza

Com o presente trabalho, problematizamos uma, de três entrevistas realizadas com surfistas
profissionais brasileiros, participantes de etapas do circuito mundial, no início da década de 1990 e
meados da primeira década do século XXI. A entrevista foi produzida com o ex-surfista profissional
Flávio “Teco” Padaratz, realizada em Florianópolis/SC, no final do verão de 2016. Sua oralidade o
localizou enquanto um dos surfistas brasileiros a desbravar o circuito mundial de surfe. A ênfase
da entrevista girou em torno das preparações físicas dos surfistas para as (itinerantes) etapas do
mundial, sendo disparador para essa pesquisa, um fragmento em que Teco nos fala das condições
preparatórias para um surfista tornar-se profissional, como, por exemplo: saber conceder uma boa
entrevista. Esse destaque a performance frente a uma entrevista nos fez dedicar atenção às próprias
questões que direcionávamos ao entrevistado. Aos poucos, identificamos o quanto o jogo de força
em torno de uma pergunta pode tornar-se produtivo para a produção das fontes orais. Nestas, ao
que tange alguns fragmentos, vemos emergir resistências a maltratados direcionamentos
empenhados pela opinião pública aos surfistas profissionais no início da década de 1980. Esse
resistir traz à tona uma afirmação da vida em sintonia a imagens religiosas que marcam a
experiência do surfista.

A entrevista que constitui esse trabalho foi produzida no apartamento do entrevistado. Uma
moradia nova, com poucas mobílias, mas com prazo de poucos dias para a entrada de Teco e sua
família. Fomos recebidos pelo próprio Teco, sorriso aberto, ele logo nos convidou para entrar e,
entre outras conversas, nos falava do prazer em cozinhar para os amigos. Essa tarefa, ao tocante do
lugar em que nos recebia estava marcada pela conjugação da cozinha com a sala. Dizia ele que,
com aquela arquitetura, evitava dos amigos ficarem aglomerados na porta da cozinha, enquanto
preparava a comida, bem como acontecia na casa que em breve substituiria pelo apartamento que
estávamos.

* Professor do Instituto Superior de Educación Física no Centro Universitario de Rivera (CUR/


Uruguay). Doutorando do Programa de Pós-graduação em Educação Física (PPGEF) da Universidade Federal
de Pelotas (UFPEL).
Quando iniciei apresentando um pouco da pesquisa, Teco mostrou-se esclarecido e como
um “surfista autorizado” a falar sobre o surfe profissional brasileiro. Foi logo dizendo que
poderíamos ir às questões. Gravador e câmera ligados e posicionados, iniciamos a entrevista no
final da tarde daquela sexta-feira ensolarada do dia 26 de fevereiro de 2016. Com duração de cerca
de 50 minutos, muitos foram os subtemas que perpassaram o tema principal: os processos de
profissionalização do surfe.
Entre esses subtemas, ao que tange as preparações para um surfista tornar-se profissional,
um conteúdo para nós inusitado surgiu entre os temas postos em jogo pelo entrevistado. Tratava-se
do próprio ato de saber conceder uma boa entrevista. Ou seja, lado a lado com os exercícios de
alongamentos, concentração para entrar na onda, treino de baterias dentro do mar, seu treinador
fazia-o:
[...] treinar entrevista, olhar entrevistas de outros esportistas, vê nos principais esportistas
como eles respondem ou não. Porque isso fazia a diferença, ganhando ou perdendo você
tem que ser a notícia, entendeu? Então, isso fez muita diferença para mim, na minha
carreira. Sempre que tinha que dar uma entrevista entre os brasileiros era comigo porque
eu dava uma entrevista boa. Não ficava gaguejando e tal; tinha o que dizer e sabia o que
dizer. (PARADATZ, 2016).

Essa ênfase dada às entrevistas pelo nosso entrevistado produziu efeitos ao próprio processo
que nos envolvíamos, já que seus ditos ativavam uma atenção para as posições de sujeito que
ocupávamos diante da entrevista. Isso porque, o saber conceder uma boa entrevista, quesito
preparatório para a profissionalização de um surfista profissional, nos fez pensar no próprio ato de
entrevistar ou, se desejarmos, nos modos como direcionamos as perguntas a nossos entrevistados:
O que perguntar? Como perguntar? Em que momento da entrevista dirigir essa ou aquela pergunta?
Como conectar as perguntas com os nossos temas de pesquisa?
Essa última questão, em especial, inquietou nossa tarefa de fazer entrevista, antes ainda do
encontro com o Teco, visto que inúmeras foram as estratégias utilizadas para formular essas
questões, como, por exemplo, buscas a conteúdos nas mídias especializadas em surfe nas quais se
falavam dos (ou falavam os próprios) entrevistados. Essas buscas foram realizadas no sentido de
irmos ao encontro de Meihy e Holanda (2013), quando nos diz que “tudo que é gravado e
preservado se constitui em documento oral” (p. 13). O autor está a questionar, nessa esteira, o
reducionismo de considerar como História Oral somente o produto oriundo de uma entrevista
gravada.
Para ampliar esse espectro para além das entrevistas, ao mesmo tempo em que não as nega,
Meihy e Holanda (2013) nos falam da noção de “fonte oral”, isto é “o registro de qualquer recurso
que guarda vestígios de manifestações da oralidade humana” (p. 13). E, nessa esteira, foi uma
produção audiovisual (nos dedicaremos a ela na próxima seção) que possibilitou a
problematização de umas das questões que compuseram o roteiro da entrevista com o Teco.
O caráter problemático desses delineamentos foi que ao mesmo tempo em que
reconhecíamos
reconhecíamos a potencialidade da História Oral, vista para além de “uma forma” que poderia
vir a expressá-la, utilizávamos o recurso audiovisual como fonte para “uma entrevista”. Ao
mesmo tempo em que questionamos a fácil caracterização da História Oral, como a
realização de entrevistas, mobilizávamos diferentes fontes, justamente para conceber uma
entrevista.
Vimo-nos nessa esteira problematizando o próprio fazer metodológico colocado em
jogo: Qual a produtividade de perguntar por aquilo que já foi dito? Nossa preparação
(enquanto aqueles que produzimos as perguntas) para uma entrevista não acaba tão
somente por legitimar (como científico) aquilo que (por já ter sido dito) já sabemos sobre
determinado tema?
E, talvez, o mais interessante ao nos defrontarmos com essa trama seja a pergunta:
como escapar do que já foi dito sem negar o tocante do que produz nossas posições de sujeito,
no caso de uma entrevista, a própria experiência de entrevistar? Isso porque, só nos
deparamos com essas questões através da efetivação do próprio ato de realizar uma
entrevista. Sem querermos propor uma solução, dedicamo-nos a pensar o próprio processo
em que nos enveredamos com a realização daquela entrevista do dia 26 de fevereiro de 2016.
E, para a próxima seção selecionamos um pequeno fragmento da
entrevista, especificamente, quando nosso entrevistado fala do processo de
profissionalização do surfe brasileiro, iniciado lá no final da década de 1980 e início da
década de 1990.

A pergunta disparadora na ocasião da entrevista do dia 26 de fevereiro de 2016


emergiu da audiência ao documentário Ohana Pupo1. Especificamente, no instante em que em
uma das duas2 participações de Teco, este nosso entrevistado fala da criação da figura do
surfista profissional a partir da geração que ele (Teco Padaratz), o Wagner Pupo (protagonista
do documentário), e outros surfistas ajudaram a constituir.3 A questão colocada sobre esse
contexto circundou “quais são” suas memórias desse momento de profissionalização do surfe
brasileiro.
1
O documentário está disponível em https://www.youtube.com/watch?v=4Fl_PO9oIHo. Acesso em
27/07/16.
2
Em outra participação de Teco no documentário, suas palavras giram em torno da performance de Miguel
Pupo, filho de Wagner Pupo. Naquela ocasião, nosso entrevistado se mostra otimista com o repertório de
manobras do Pupo prodígio, salientando “eu já vi ele surfando algumas vezes, tem o dom pra pegar tubo, pra dar
aéreo, pra dar um rasgadão! Ele tá bem completo. Eu acho que se ele seguir os caminhos do pai aí, vai dar um
grande surfista para o Brasil, com certeza!”. O olhar perspectivo de Teco calcado nas técnicas de manobras de
Miguel Pupo, não expressam somente as qualidades técnicas, daquele menino, que no início desse ano de 2016
ingressou na elite do surfe mundial, mas também, a perspicácia do nosso entrevistado. na leitura técnica do surfe e
dos surfistas.
3
Sobre a constituição dessa geração no interior daquela produção audiovisual é o surfista Picuruta Salazar quem
lança pistas interessantes à delimitação da geração em que o Teco se constituiu, ao citar além do Wagner, os
surfistas Fábio Gouveia, o Piu Pereira e o Zé Paulo. Entre esses surfistas, Fábio Gouveia também fala no
documentário, enfatizando que era uma geração que tentava “botar a bandeira do Brasil lá no topo”,
acontecimento já iniciado por uma geração anterior da qual cita além de Picuruta Salazar, o surfista paulista
Tinguinha. Destacando ainda que a diferenciação de sua geração para a desses dois últimos surfistas era o apoio
que eles conseguiram, daquela época em diante.
Frente a isso, perguntar “quais são suas memórias” e não “quais eram suas memórias” se
fazia pelo entendimento de que as memórias também são constituídas pelas “condições de
enunciação”, colocadas em jogo em uma entrevista. E aqui, as questões colocadas por Alberti
(2012) tornam-se produtivas, especificamente quando ela nos diz que: “o conhecimento histórico é
condicionado pelas fontes que temos – ou melhor, pelas perguntas que fazemos às fontes que
temos” (p. 163). E, se as fontes que tínhamos frente àquela entrevista estavam marcadas pela
oralidade do entrevistado, também estavam marcadas pelas perguntas que direcionávamos a ele.
O que destacamos disso é o quanto as perguntas que direcionamos aos nossos entrevistados
também nos ajudam a pensar as “funções do tempo na História Oral”, bem como amplamente
discutido por Portelli (2000). Mas um tempo, cabe ressaltar, não restrito a um momento de nossas
vidas, já que provém de um espaço de tempo (um documentário) que também produz sentidos nas
formas que expressam (ou se expressam) essas vidas, na ocasião daquela entrevista, o jogo de
palavras imbricadas a uma das perguntas realizadas.
Destacamos que diante o uso de um documento audiovisual não é só um tempo que “se
passa”, que ganha relevância, já que as condições de enunciação no interior de cada produção
também endereçam aquilo que é dito através do foco principal, como, por exemplo, no
documentário em voga, em que a ênfase era maior na família Pupo. Ainda que Teco apareça naquela
produção audiovisual falando do surfe profissional, não foi com ênfase nisso que se deu sua
participação e, por isso, víamos como relevante perguntar mais sobre o tema que elegemos a fim
de enfatizar ou, se preferimos, ampliar essa temática.
Estar aberto a essa experiência, enquanto aquele que pergunta se faz no sentido de
considerarmos que a memória também se constitui a partir das demandas da atualidade em que
vivemos ou, se quisermos, são constituídas por acontecimentos que marcam a atualidade em que
vivemos. Estabelecendo relação com a noção de experiência que nos fala Larrosa (2002), podemos
dizer que a memória, assim como a experiência, está menos no que se passa, no que acontece ou
no que toca e mais no que “nos” passa, “nos” acontece, e “nos” toca frente aos temas que nos
enveredamos.
Ao estabelecermos essa relação, pontuamos que não se trata de encarar a memória a partir
tão somente do presente. Assim como Portelli (1997) e Joel Candau (2010), também a pensamos
enquanto “versões do passado”. Queremos pontuar, portanto, que essas versões também estão
imbricadas aos jogos de força da atualidade em que vivemos, ainda que seu conteúdo se refira ao
passado. Na relação da memória com a noção de experiência, gostaríamos de
demarcar uma resistência a um trato informacional4 que ao se afastar das relações de força
que marcam a
4
Referimos aqui às sugestões de Larrosa (2002), quando distingue os saberes da experiência relativos ao
que “nos” passa do “saber coisas, tal como se sabe quando se tem informação sobre as coisas, quando se está
informado” (p. 22). Se para o autor “uma sociedade constituída sob o signo da informação é uma sociedade na
qual a experiência é impossível” (LARROSA, 2002, p. 22), da mesma forma, para nós, uma entrevista
constituída sob o signo da informação que tem os jogos de força de seu processo de produção excluído, também
tornam a experiência impossível.
que marcam a atualidade em torno da produção de uma entrevista, concentrando-se tão
somente no tema, naturalizam a própria experiência de pesquisar/entrevistar e
respectivamente a memória quando transcrita em palavras a um papel. Vemos essa
perspectiva, privilegiando, na atualidade, somente o produto final de uma entrevista, “a”
transcrição, quando catalogada e arquivada ou publicada em um “banco de dados” ou
“repositório” que as separam do momento ou perguntas que as fazem emergir aos nossos
ouvidos e gravadores.
Não estamos dizendo que o produto final não seja importante e, sim, que diferente de
algo engessado no tempo ou num espaço de tempo (como também na produção audiovisual a
que nos referíamos a pouco), a memória é “fundadora”, como nos diz Joel Candau (2014) ao
distingui-la da história, a qual para ele esta muito mais envolvida a tarefa de “legitimar” as
formas do passado. Nesse jogo, entre história e memória, aquele antropólogo nos leva
adiante, ao salientar que “enquanto a primeira tem uma preocupação de ordenar, a segunda é
atravessada pela desordem da paixão, das emoções, dos afetos” (2014, p. 132).
O ir adiante frente aos ditos de Candau (2014) pode ser lido como um embalar para
um pouquinho mais longe a conversa com a noção de experiência de Larrosa (2002),
especialmente, quando esse filósofo espanhol também nos fala da paixão, imbricada a
experiência. Esta para ele não pode ser apreendida a partir de uma “lógica da ação”, isto é, “a
partir de uma reflexão do sujeito sobre si mesmo enquanto sujeito agente, a partir de uma
teoria das condições de possibilidade da ação” (p. 26). E é aqui que entra a paixão, já que é
frente a ela, ou melhor, frente a uma “lógica da paixão” que Larrosa (2002) nos diz ser
possível apreender a experiência, lógica essa muita mais envolvida por “uma reflexão do
sujeito sobre si mesmo, enquanto sujeito passional” (p. 26).
Além disso, Larrosa (2002) nos diz que a palavra paixão pode referir-se a várias
coisas. E, entre as múltiplas questões abordadas pelo autor para melhor explicar isso, é
logo no primeiro ponto, quando se refere à paixão, enquanto “um sofrimento ou um
padecimento” (p. 26), que vemos conexão com a resposta de Teco à nossa pergunta sobre
quais são suas memórias do momento de profissionalização do surfe brasileiro. A potência
que se conecta às palavras de Teco com ao que diz Larrosa (2002) é tão forte que as
colocaremos lado a lado no início da próxima seção, para depois, um pouco como os
surfistas fazem com as ondas, nos insinuarmos entre elas.

 Cara, a memória que eu tenho mais marcante é que a gente tinha dois adversários;
um deles era o cara que entrava na bateria com você, pra competir e o outro era a opinião pública
sobre a tua profissão. Nem sobre se você ia bem nela, isso nem se discutia, era o fato de ser
surfista; isso para alguns era sentido de pejoração. A gente sentia vergonha, era maltratado,
era tirado muitosarro da gente. Só que o surfe é tão irado que eu nem dava bola. Eu pensava
em Jesus Cristo, naquela época, aquela frase “Deus perdoa eles! Eles não sabem o que estão
falando”. Eles não sabem o que tão fazendo, eles não conhecem o surfe. Se a pessoa
conhecesse o surfe [...] se
conhecesse o surfe [...] se um general conhecesse o surfe é capaz dele não entrar em
guerra, tá ligado? Essa é a diferença (TECO PADARATZ, 2016).

 No padecer não se é ativo, porém, tampouco se é simplesmente passivo. O sujeito


passional não é agente, mas paciente. Mas há na paixão um assumir os padecimentos, como um
viver, ou experimentar, ou suportar, ou aceitar, ou assumir o padecer que não tem nada que ver com
a mera passividade, como se o sujeito passional fizesse algo ao assumir sua paixão. Às vezes,
inclusive, algo público, ou político, ou social, como um testemunho público de algo, ou uma prova
pública de algo, ou um martírio público em nome de algo, ainda que esse “público” se dê na mais
estrita solidão, no mais completo anonimato (LARROSA, 2002, p. 26).
Indo ao encontro de nossos intercessores, vemos que no momento em que Teco nos fala da
profissionalização do surfe brasileiro, os surfistas não são os agentes do padecer, já que a opinião
pública dava conta dessa tarefa, os maltratando e os envergonhando. Esse agenciamento –
maltratado e insensível – regido pela opinião pública emerge de um martírio na voz de nosso
entrevistado, aquele enquadrado à frase que representa o momento de crucificação daquele que com
seu corpo morto e crucificado tornou-se o símbolo do cristianismo.
Mas não só disso que se trata, uma vez que o que nosso entrevistado coloca com aquele
pequeno fragmento são também pistas potentes para pensarmos a “história da memória”, bem como
se dedicou Jacques Le Goff (2003). Ao que compete aos ditos de Teco somos forçados a estabelecer
relações com o que aquele historiador chama de “memória coletiva”, a qual é apresentada, logo nas
primeiras descrições desse autor, como um modo de contar a história que “descreve e ordena [os]
fatos de acordo com certas tradições estabelecidas” (p. 424).
Como exemplo desse modo de contar a história, Le Goff (2003) nos fala dos “mitos de
origem” e, frente a isso, destaca uma das principais características dessa “memória coletiva”, isto
é, “sua tendência a confundir história e mito”, voltando-se, de preferência para os “primórdios” (p.
424). Evocamos essas descrições sobre a história da memória por perceber o quanto as memórias
de Teco sobre o período de profissionalização do surfe brasileiro, esta marcada também por um
modo de contar a história do surfe. Especificamente, quando atribuímos correlações dos
sentimentos de menosprezo dirigido ao surfista pela opinião publica a um movimento denominado
“contracultura” que segundo a historiografia dedicada a pensar o surfe a coloca lado a lado com os
“primórdios” desse esporte no Brasil.
Em linhas mais específicas, esses primórdios ao que compete o surfe podem ser conectados
a difusão do esporte para além dos limites da Califórnia, a qual, segundo Dias, Fortes e Melo (2012)
já na década de 1960 constituía-se como o “celeiro de um novo estilo de surfar e de conceber a
modalidade” (p. 115). O que abre brechas para uma interpretação – maltratada e insensível –
difundindo pela opinião pública é o fato que a Califórnia simultaneamente a esse status de berço do
surfe se constituiu em um “dos principais loci da contracultura e do movimento estudantil nos
Estados Unidos (ROSZAK apud DIAS; FORTES; MELO, p. 115, 2012).
Dias, Fortes e Melo (2012) nos dizem ainda que “quando os adeptos do surfe se
aproximaram de tais ideias – e, em muitos casos, as abraçaram abertamente –, tornaram-se estorvo
para certos setores da sociedade” (p. 116). E nos instantes “que essas visões do esporte se
espalhavam pelo mundo, o incômodo também extrapolou as fronteiras norte-americanas” (DIAS,
FORTES E MELO, 2012, p. 116). Justamente nesse extrapolar fronteiras que vemos os efeitos do
movimento da contracultura adentrar o Brasil, enquanto um mito produzido pela opinião publica
sobre os surfistas (mas que também perpassa a produção historiográfica dedicada a esse tema) a
partir daquilo que na Califórnia acontecia.
Se, como nos diz Le Goff, a memória coletiva descreve e ordena os fatos de acordo com
certas tradições estabelecidas. As tradições que podemos recorrer para falar desse tratamento – mal
tratado e insensível – difundido pela opinião pública no Brasil são marcados pelos costumes
emergidos do movimento da contracultura, mas também pelo próprio modo de contar a história
desse movimento que no trabalho de Dias, Fortes e Melo está fortemente marcada pela
tradição escrita.5
O que vemos aflorar nos ditos de Teco sob a perspectiva, portanto, da tradição oral,6
são efeitos do movimento de contracultura, mas que (pelo padecer causado aos surfistas que
no final da década de 1980 e início da década de 1990 tentavam se profissionalizar no Brasil)
resiste em levar adiante os símbolos daquele movimento. Essa resistência, como visto,
acontece com o direcionamento de nosso entrevistado a uma leitura cristã aos modos de
contar a história, colocando em jogo outros símbolos, ainda que também envolta a tradição
escrita, quando, por exemplo, evoca um fragmento bíblico.
A produtividade dos direcionamentos de nosso entrevistado acontece pela possibilidade de
percorrermos a própria história da memória (coletiva), lançando mão da leitura cristã que ele coloca.
Isso pode ser localizado no trabalho de Jacques Le Goff (2003) nos instantes que o autor discorre
sobre “a memória medieval no Ocidente”, período no qual ocorreu a difusão do cristianismo “e do
quase monopólio da igreja no domínio intelectual” (p. 438).
Ao que compete ao tema da memória (coletiva), um aspecto interessante é o quão
fundamental ela torna-se para o cristianismo (mas também para o judaísmo), visto se constituírem
como religiões “radicadas histórica e teologicamente na história, como ‘religiões da recordação’”
(OEXLE apud LE GOFF, 2003, p. 438). Isto cabe ressaltar, em diferentes feições não somente

5
Dias, Fortes e Melo (2012) quando falam da história do surfe é ao trabalho de Douglas Booth que
recorrem para introduzir seus argumentos e quando discorrem sobre a juventude e suas resistências utilizam-se
do trabalho de Passerini (1996); Torpe (2006) e Roszak (1972).
6
Trata-se, segundo Meihy e Ribeiro (2011), de um gênero narrativo em História Oral que também implica
“entrevista com uma ou mais pessoas vivas, ela remete às questões do passado longínquo que se manifestam
pelo que chamamos folclore e pela transmissão geracional, de pais para filhos ou de indivíduos para
indivíduos” (p. 92).
voltadas aos “atos divinos de salvação situados no passado” e a respectiva formação do
“conteúdo da fé e o objeto do culto”, mas também porque o livro sagrado, por um lado, a
tradição histórica, por outro, insistem, em alguns aspectos essenciais, na necessidade da
lembrança como tarefa religiosa fundamental (LE GOFF, 2003, p. 438).
Frente a essa necessidade da lembrança, o aspecto que “nos” toca frente a
materialidade empírica que produzimos esta em volta a questão de que a memória nesse
contexto “pode resultar em escatologia, negar a experiência temporal e a história” e, isso,
como pontua Le Goff (2003) “será uma das vias da memória cristã” (p. 439). Mas atenção,
nosso entrevistado ao mesmo tempo em que expõe os padecimentos que marcam a
emergência do surfe profissional brasileiro, nos mostra muito mais próximo da paixão que
falávamos junto a Larrosa (2002), especificamente, quando esse filósofo, como vimos, nos
alerta que esse padecer: “não tem nada que ver com a mera passividade” (p. 26).
Essa não passividade diante a memória cristã de negação de si pode ser apreendida
com um Cut Back,7 na escrita, manobra com a qual pretendemos um micro retorno ao
momento de potencialização da vida do nosso entrevistado: “o surfe é tão irado que eu
nem dava bola” (PADARATZ, 2016). Assim, nosso entrevistado se apresenta bem mais
próximo do que Portelli (1997), ao preferir evitar o termo “memória coletiva”, chama de
memória individual.
Para Portelli (1997) a memória é sempre individual e solicita prudência frente a
coletividade da memória: “embora estejamos trabalhando com o intuito de registrar
lembranças que possam ser coletivamente compartilhadas e aproveitadas, devemos ser
cautelosos ao situar fora do indivíduo” (p. 16). Para esse autor, portanto, não são grupos e
sim pessoas que lembram, “a memória é um processo individual, que ocorre em um
meio social dinâmico, valendo-se de instrumento socialmente criados e
compartilhados” (p. 16).
Ao contexto que viemos problematizando, a produtividade de considerarmos
essa individualidade da memória circunda a possibilidade de ampliar entendimentos que
escapam do enquadramento maltratado e insensível capaz de produzir ou difundir somente
padecimentos.

Situarmo-nos nesse entendimento de uma memória individual, acontece também pelas


resistências que nos permitem empreender frente ao que vem se produzido, historicamente, sobre

7
No Dicionário do surf, cujo subtítulo é a língua das ondas, Silva (2004) apresenta o Cut Back, como
uma “manobra em que o surfista depois de descer a onda e realizar a cavada em sua base, vai na direção
contrária, batendo ou não em sua crista e depois retornando na direção inicial, formando um “S” (p. 48). A
inspiração de utilizarmos esse termo para retornarmos a um momento anterior, o fragmento exposto no inicio
dessa seção acontece pela própria ênfase dada pelo nosso entrevistado a essa manobra – marca registrada do seu
surfe e que, segundo ele, virou título do seu filme Cut Back, produzido pelo diretor Alex Miranda. Disponível em
https://www.youtube.com/watch?v=GVycFqimUzI. Acesso em 31/08/2016.
o surfe. Não exatamente ao conteúdo que sobre esse esporte vem sendo discutido e sim aos
instrumentos socialmente criados e compartilhados, quando o intuito é produzir memórias.
Com o que nesse trabalho problematizamos, podemos nos referir a esses instrumentos,
enquanto, por exemplo, a entrevista com um surfista e o documentário em que esse surfista também
constitui. O que tentamos demostrar, é que foi menos o conteúdo de uma entrevista ou de um
documentário que se tornou relevante para o nosso trabalho em História Oral e mais o processo que
nos fazem aproximar desses instrumentos. Processos sempre inacabados, mas que, pelo rigor, as
demandas que os constituem tendem provisoriamente a anunciar um ponto final.

ALBERTI, Verena. De “versão” à “narrativa” no Manual de História Oral. História Oral. v. 15, n.
2, p. 159-166, jul-dez 2012.

BOM MEIHY, José; HOLANDA, Fabíola. História Oral: como fazer, como pensar. São Paulo:
Contexto, 2013.

BOM MEIHY, José Carlos Sebe; RIBEIRO, Suzana L. Salgado. Guia Prático de História Oral:
para empresas, universidades, comunidades, famílias. São Paulo: Contexto, 2011.

BRANDÃO, Túlio. Gabriel Medina. Rio de Janeiro: Primeira Pessoa, 2015.

CANDAU, JOEL. Memória e Identidade. São Paulo: Contexto, 2014.

DIAS, Cleber; FORTES, Rafael; MELO, Vitor. Sobre as ondas: surfe, juventude e cultura no
Rio de Janeiro dos anos 1960. Revista Estudos Históricos, v. 25, n. 49, 2012.

LARROSA, Jorge. Notas sobre a experiência e o saber de experiência. Revista Brasileira


de Educação, n.19, p. 20-28, 2002.

LE GOFF, Jacques. História e Memória. 5. ed. Campinas: Ed. da Unicamp, 2003.

PORTELLI, Alessandro. O momento da minha vida: funções do tempo na Historia Oral.


In: FENELON, Déa Ribeiro; MACIEL, Laura Antunes; ALMEIDA, Paulo Roberto de;
KHOURY, Yara Aun (Org.). Muitas memórias, outras histórias. São Paulo: Olho d’Agua,
maio/2004.

PORTELLI, Alessandro. Tentando aprender um pouquinho. Rev. Projeto História, São Paulo, v.
15, abr., 1997.
SILVA, Fernando Alexandre Guimarães da. Dicionário do surf: a língua das ondas. Ilustrações de
Andreia Ramos. Florianópolis: Cobra Coralina, 2004.
Luiza Aguiar dos Anjos
Suélen de Souza Andres

O ambiente esportivo ainda é ocupado predominantemente por homens, mas é


possível perceber como paulatinamente as mulheres têm conquistado espaços. Exemplo
disso são os recordes de participação feminina batidos a cada nova edição dos Jogos
Olímpicos.1 A afirmação de que o esporte é uma área reservada masculina (DUNNING,
1992) parece cada vez menos representativa, ainda que obstáculos à ampliação da
participação de mulheres continuem presentes.
Se o crescimento da prática esportiva por mulheres é inegável – ainda que não
plenamente satisfatório –, menos evidentes são as mudanças referentes à participação de
mulheres em outros postos que não os da prática do jogo, como nas funções de
treinadoras, jornalistas, árbitras, integrantes da comissão técnica, etc. Tal situação leva
Mourão e Gomes (2004, p. 47) a afirmarem que o “novo grande desafio das mulheres no
cenário esportivo, nos próximos anos, é conquistar mais cargos nos postos técnicos e
diretivos. A diferença entre homens e mulheres nesse setor, atualmente, é talvez a mesma
que existia dentro dos campos, quadras e pistas há cem anos”.
Esse estudo trata de um desses espaços, o da gestão esportiva. Para uma mulher,
inserir-se e manter-se em qualquer dos espaços mencionados envolve superar pressupostos de
que elas não gostam ou entendem de esportes tanto quanto homens, o que se vivencia de
forma mais ou menos conflituosa conforme particularidades de cada modalidade e
contexto. Às gestoras impõem-se dificuldades adicionais pelo fato do ofício de
administrador ser uma ocupação tradicionalmente masculina.
Tendo isso em vista, o objetivo desse trabalho é analisar as experiências de seis
mulheres na gestão de federações esportivas do Rio Grande do Sul.

Considerando o objetivo desta investigação, nossas fontes principais foram os depoimentos


orais de seis mulheres que estiveram envolvidas na gestão de federações esportivas do Rio Grande

* Instituto Federal do Rio de Janeiro – Campus Engenheiro Paulo de Frontin; Doutoranda em Ciências
do Movimento Humano/UFRGS. .
** Universidade Federal do Rio Grande do Sul/ Doutoranda em Ciências do Movimento Humano/UFRGS. 1 Para
dados dessa participação, ver Ribeiro et al. (2013).
do Sul.2 Foram elas: Eliana Cecília dos Santos, presidente da Federação de Ginástica
Artística, Rítmica, Trampolim, Aeróbica e Acrobática do Rio Grande do Sul; Laura Dias
Pantoja, presidente da Federação Gaúcha de Patinagem; Simone Philippi, vice-presidente da
Federação Gaúcha de Arco e Flecha; Tatiana Capra de Castro, vice-presidente da
Federação Gaúcha de Esportes Equestres; Andréa Benitez Fermino Ilha, presidente da
Associação Rio-grandense de Jet-ski; Vera Lúcia Mastracusa, presidente da Federação
Gaúcha de Badminton.
Tais depoimentos foram produto de entrevistas semiestruturadas, cujos roteiros
foram elaborados focando no envolvimento dessas mulheres com os esportes, sua atuação
na gestão esportiva e, mais especificamente, nas federações.
Utilizamos como eixo teórico-metodológico, a História Oral, adotando uma postura
com relação à história e às configurações socioculturais que privilegia a recuperação do vivido,
conforme concebido por quem viveu (ALBERTI, 2005, p. 23).
Para sistematizar o material empírico, analisamos as transcrições das
entrevistas e organizamos as informações encontradas em duas unidades de análise, sendo
elas: a trajetória dessas mulheres no campo esportivo, até sua atuação nas federações que
presidem; questões de gênero na gestão esportiva, na qual procuramos analisar como as
relações de gênero perpassaram a trajetória de nossas entrevistadas nesse campo de atuação.
Complementarmente, fizemos uma busca bibliográfica sobre o tema “gestão
esportiva”, focando em “mulheres gestoras no esporte”, com o intuito de melhor
compreender o cenário no qual suas experiências se concretizavam.

Em 1995, o Comitê Olímpico Internacional (COI) constituiu a Comissão Mulheres e


Esporte (IOC Women and Sport Comission). A partir de 1996, a Comissão passou a reunir-se a cada
quatro anos em uma Conferência Mundial (IOC World Conference on Women and Sport) com o
objetivo de “criar consciência sobre o papel das mulheres no esporte; avaliar os progressos feitos
na área de equidade de gênero no esporte; e definir futuras ações prioritárias para mulheres no
esporte” (IOC World Conferences, p. 2. Tradução livre do inglês.). Em todas as edições do encontro,
a necessidade de maior participação de mulheres em instâncias administrativas teve destaque, sendo
que, no segundo encontro, ocorrido em 2000, foi estabelecida meta para os órgãos que fazem parte
do Movimento Olímpico de que 20% de seus postos diretivos fossem ocupados por mulheres até o
ano de 2005. O fato da Conferência de 2012 apresentar como um de dois temas centrais a
“necessidade de ter mais mulheres na gestão e postos de liderança” (IOC World Conferences, p. 7.

2
Essas entrevistas fazem parte do acervo do Projeto Garimpando Memórias, do Centro de Memória do
Esporte (CEME/UFRGS), aprovado pelo Comitê de Ética da UFRGS sob o número 2007710.
Tradução livre do inglês) demonstra a importância dada à questão por tal fórum e a
provável dificuldade em modificar o cenário de prevalência masculina.
Apesar dessa orientação, o próprio COI não alcançou tal meta, tendo em vista que
entre seus membros há 18% de mulheres (Comitê Olímpico Internacional, 2017). Essa
situação de disparidade evidencia-se também nas entidades nacionais de diferentes países. Na
Alemanha, 3,4% das Federações são presididas por mulheres (PFISTER; RADKE, 2007). Em
Portugal, duas das 28 Federações ligadas ao COI (7,1%) têm uma mulher no comando
(JAEGER et al., 2010), nas quais as mulheres representam apenas 15,9% dos membros
(PINTO, 2009). Na Espanha, elas compõem 9,98% das integrantes de Federações e órgãos
diretivos da administração esportiva do país (FERNÁNDEZ; VENTURA, 2007). No
Brasil, por sua vez, as mulheres ocupam 7,7% dos cargos nos principais órgãos diretivos de
âmbito nacional (GOMES, 2008), conforme exposto na tabela 1:

Tabela 1 – Participação de mulheres no comando dos principais órgãos diretivos


da gestão esportiva brasileira (2006)
Órgãos Número de Efetivo Porcentagem
Cargos Feminino do efetivo
feminino
Ministério dos Esportes 77 11 14,3%
Comitê Olímpico Brasileiro 50 2 4%
Comitê Paraolímpico Brasileiro 10 3 30%
Confederações Esportivas 57 1 1,8%
Filiadas e Vinculadas
Comissão Nacional de Atletas 35 8 22,9%
Federações Esportivas Nacionais 584 38 6,5%
Total 813 63 7,7%
Fonte: adaptado de Gomes (2008).

Em trabalho de revisão acerca do perfil de gestores esportivos, Karnas (2010) verificou que,
de seis pesquisas, cinco identificaram exclusividade ou amplo predomínio (80% ou mais) de
homens. A exceção se dá em um trabalho que analisava gestores públicos, entre os quais 68,5%
eram concursados, cujo ingresso no posto não demanda a superação de eventuais discriminações
de gênero (AZEVEDO; BARROS, 2004).
Analisando um outro campo de atuação do gestor esportivo, os clubes socioculturais e
esportivos, Bastos et al. (2006) identificaram que todos os administradores das sete instituições
paulistas que participaram da pesquisa são homens. Já Santana et al. (2012), focando nos gestores
de academias fitness, verificaram que 68,7% são homens.
Percebemos, antão, que a sub-representação atravessa diferentes campos do esporte. Isso
não significa que todas as gestoras enfrentam situações similares. Nesse sentido, passamos, agora,
à análise das experiências das gestoras entrevistadas.

Dividimos a discussão dos resultados pelas unidades de análise, previamente anunciadas:

Os caminhos até a gestão esportiva


Quatro das seis gestoras entrevistadas se inseriram na modalidade, primeiramente, como
praticantes. As exceções são Laura Pantoja e Vera Mastracusa. Laura se envolveu com a patinação
por intermédio da vivência prática da filha, passando a se envolver na organização da escolinha em
que ela praticava, e, futuramente, na Federação (como colaboradora, em seguida vice-presidente e,
então, presidente). Já Vera conheceu o badminton assistindo a modalidade nos Jogos Olímpicos.
Sendo profissional de Educação Física e proprietária de uma escolinha de esportes, decidiu inserir
a modalidade em sua empresa. O desejo de contribuir com o desenvolvimento da modalidade lhe
motivou, então, a ingressar na Federação.
Apesar das quatro demais terem sido atletas, apenas duas delas iniciaram na modalidade na
infância. Eliana dos Santos começou sua trajetória na ginástica com 11 anos, tendo interrompido a
prática na juventude, quando já exercia a função de treinadora. Tatiana de Castro também se iniciou
no hipismo com 11 anos e até o momento da entrevista competia, conciliando os treinamentos com
a função de gerente de um centro hípico e a função de vice-presidente da Federação. Simone
Philippi e Andréa Ilha começaram a praticar arco e flecha e jet-ski, respectivamente, já quando
adultas.
No que se refere ao início da atuação como gestoras esportivas, para Eliana dos Santos e
Tatiana de Castro, ela parece representar uma continuidade de suas carreiras como atletas, processo
que se observa em outros estudos com gestoras esportivas (SOUZA DE OLIVEIRA; TEIXEIRA,
2009; GOMES et al., 2012; HILGEMBERG; MOURÃO, 2012). A trajetória profissional de ambas
se centra na modalidade e, antes ou durante a ocupação do cargo na Federação, envolveu outros
postos de atuação no esporte.
Nas experiências de Simone Philippi, Andréa Ilha e Vera Mastracusa, o envolvimento com
as federações, mais do que um desejo pessoal, são retratados como uma necessidade para o
desenvolvimento da modalidade em que atuam. Isso se evidencia, por exemplo, na fala de Vera
Mastracusa quando perguntada sobre os motivos pelos quais se envolveu com a Federação: “para
poder tocar o esporte [...] tinha que se envolver, não tinha como não se envolver na gestão”
(MASTRACUSA, 2007, p. 3). Andréa Ilha relata, inclusive, que deixou de competir para dedicar-
se exclusivamente à retomada do desenvolvimento do jet-ski à frente da federação, após um período
de decadência desse esporte.

Ser uma mulher gestora esportiva


Para agregar à compreensão do cenário da modalidade em que atuam nossas entrevistadas
no que tange à presença feminina, expomos na tabela abaixo (Tabela 2), o percentual atual de
mulheres nas instituições presididas por elas.

Tabela 2 – Participação de mulheres na diretoria em algumas Federações Esportivas


do Rio Grande do Sul (2017)
Federação Nº de Mulheres Percentual Presidência Vice-
cargos de presidência
efetivos mulheres
F. G. de Esportes 83 1 12,5% Homem Homem
Equestres
F. G. de Arco e 5 - - - -
Flecha*
F. G. de Badminton 5 2 40% Homem Homem

F. G. de Patinagem 10 3 30% Homem Mulher

Federação de 23 12 52% Homem Homem


Ginástica Artística,
Rítmica, Trampolim,
Aeróbica e Acrobática
do Rio Grande do Sul
Associação Rio- - - - - -
grandense de Jet-ski*
*Federações que não apresentam os membros da diretoria em sua página oficial. Fonte: as autoras (2017).

Nota-se que o percentual de participação de mulheres em todas as federações mencionadas


é mais alto que a média nacional. É relevante apontar também, no ano de 2004, entre as
confederações esportivas brasileiras, a de Ginástica e de Badminton eram as únicas com mulheres
na presidência (GOMES; MOURÃO, 2006), o que indica uma ambiência favorável às mulheres na
direção.

3A Federação possui 12 cargos, mas 4 estão vagos. Consideramos apenas os 8 atualmente ocupados.
Possivelmente contribui para isso, o fato de nenhuma dessas modalidades possuírem uma
representação associada à masculinidade. Nesse sentido, a circulação de mulheres na prática cerca-
se de menos obstáculos, o que pode desdobrar-se também na gestão. Essa tese é defendida por
Tatiana de Castro (2007, p. 4): “O hipismo é o único esporte onde homens e mulheres competem
em igualdade de condições. Sendo assim, a cultura de que não há diferença entre os sexos começa
dentro das pistas e se expande para os cargos administrativos e gestores.”
No caso da ginástica, em que, por sua vez, algumas modalidades são associadas à
feminilidade verifica-se uma presença maior de mulheres também nos postos de comando. Além
de ter sido a modalidade cuja federação gaúcha tem o maior percentual de mulheres entre as
entidades que pesquisamos, segundo o trabalho de Gomes e Mourão (2006), suas federações
nacionais possuem 90% dos cargos diretivos ocupados por mulheres (GOMES; MOURÃO, 2006).
Apesar disso, todas as entrevistadas afirmam que as mulheres ainda são minoria na gestão
de suas modalidades esportivas, ainda que percebam um aumento desse número. Para Vera
Mastracusa, a sub-representação relaciona-se com a demanda do cargo, incompatível com a
dedicação que se espera que uma mulher dê a sua família: “a gente tem muitas atividades, tem que
estar viajando muito, tem que estar muito fora da nossa casa, do nosso lugar de origem. Então, eu
acho que isso dificulta um pouco para quem tem família, para quem tem filho” (2017, p. 3). De
fato, a conciliação da vida profissional e pessoal é comumente apontada como um obstáculo para
as mulheres que desejam ocupar cargos técnicos e diretivos no esporte (JAEGER et al., 2010;
FERREIRA et al., 2013; GOMES, 2008).
Em consonância, Laura Pantoja destacou que a compreensão do marido quanto a seu
envolvimento e seu apoio na realização das tarefas domésticas foi fundamental para possibilitar sua
atuação na Federação, que se soma às suas atividades profissionais. Ela relata que no momento que
o marido se aposentou, ele assumiu as tarefas domésticas, possibilitando seu maior envolvimento
na entidade. E, mesmo anteriormente, o envolvimento compartilhado com a filha na vivência da
modalidade parece indicar que o esporte fez parte das relações familiares, ao invés de competir com
elas. Situação essa, similar à de Tatiana de Castro, cujo pai e irmão também cavalgam, sendo que o
pai chegou a exercer três mandatos como presidente da Federação, antes dela assumir a vice-
presidência.
Apesar de perceberem-se como minoria, as gestoras acreditam não serem tratadas de modo
desigual em relação aos homens. A única a mencionar ter experenciado situações de preconceito
foi Eliana dos Santos. Todavia, ainda que ela conte que as mulheres de sua geração encontraram
dificuldades em serem aceitas como gestoras, ela entende que atualmente ser mulher não lhe impõe
dificuldades. Por outro lado, ela cita situações que considera constrangedoras, como a seguinte: “Já
aconteceu de eu chegar com meu companheiro em um almoço e não ter lugar para ele sentar, ou
então, quando mandam convite mandavam só para mim... Quando normalmente mandam para um
gestor homem mandam para o casal...” (2007, p. 9).
Verificamos que as experiências das entrevistadas com relação à gestão esportiva se deram
a partir de experiências distintas no que tange ao modo e momento de envolvimento com o esporte,
tempo de dedicação à federação e motivações para tal.
O sucesso que alcançam na gestão parece relacionar-se com a habilidade e condição de
conciliarem sua vida profissional e familiar, com a atuação na federação, o que é apontado como
possível diante de compreensão e apoio por parte de seus familiares.
O percentual de mulheres nas federações presididas pelas entrevistadas é maior que a média
nacional na Federações pesquisadas, mais, ainda assim, elas são e se percebem como minoria, ainda
que não identifiquem um tratamento desigual por seus pares pelo fato de serem mulheres.
Cabe registrar que as modalidades nas quais atuam não são tradicionalmente associadas à
masculinidade, o que pode ter contribuído com sua inserção e ascensão nas federações. Além disso,
com exceção da ginástica, não se tratam de modalidades com grande reconhecimento e prestígio
no cenário esportivo nacional. Nossas fontes não permitem afirmar que isso também exerceu
influencia em suas trajetórias na entidade, mas é um elemento que merece ser considerado em
pesquisas futuras.

ALBERTI, V. Manual de História Oral. 3 ed. Rio de Janeiro: Ed. da FGV, 2005

AZEVEDO, P. H.; BARROS, J. F. A necessidade de administração profissional do esporte


brasileiro e o perfil do gestor público, em nível federal, que atuou de 1995 a 2002
EFDeportes.com, Revista Digital. Buenos Aires, v.10, n.74, jul., 2004.

BASTOS, et al. Perfil do administrador esportivo de clubes socioculturais e esportivos de São


Paulo/Brasil. Revista Mackenzie de Educação Física e Esporte, São Paulo, v.5, n.1, p.13-22,
2006.

CASTRO, T.C. Depoimento de Tatiana Capra de Castro: Projeto Garimpando Memórias.


Porto Alegre: Centro de Memória do Esporte – ESEFID/UFRGS, 2007.

COMITÊ OLÍMPICO INTERNACIONAL. The Internacional Olympic Commitee – Members.


Disponível em: <https://www.olympic.org/ioc-members-list>. Acesso em 14 abr. 2017.

DUNNING, E. O desporto como uma área masculina reservada: notas sobre os fundamentos
sociais na identidade masculina e as suas transformações. In: ELIAS, Norbert; DUNNING,
Eric. A busca da excitação. Lisboa: Difel, 1992.
FERNÁNDEZ, F. R. VENTURA, K. E. Mujeres en lós órganos de gobierno de las
organizaciones desportivas españolas 2002-2006. In: Comissão Mulher e Esporte, Comitê
Olímpico Espanhol, Madrid, 2007.

FERREIRA, H. J.; SALLES, J. G. C.; MOURÃO, L.; MORENO, A. A baixa representatividade


de mulheres como técnicas esportivas no Brasil. In. Movimento, Porto Alegre, v. 19, n. 03, p. 103-
124, jul/set de 2013.

GOMES, E. M. P. A participação das mulheres na Gestão do Esporte Brasileiro: desafios e


perspectivas. Rio de Janeiro: Quartet; FAPERJ, 2008.

______; MOURÃO, L. As mulheres na gestão das federações esportivas no Brasil. In:


MORAGAS, Miguel de; COSTA, Lamartine da. (Org.). Seminários Espanã - Brasil 2006.
Barcelona: Universidade Autônoma de Barcelona; Rio de Janeiro: Universidade Gama Filho, v.
1, p.72-81, 2006.

______; NASSIF, V.; MOURÃO, L.; LIMA, E. O. As representações da mídia sobre a gestão
feminina no Clube de Regatas Flamengo. Podium: Sport, Leisure and Tourism Review, São
Paulo, v. 1, n. 1, p. 151-173, jan./jun., 2012.

HILGEMBERG; T.; MOURÃO, L. Uma vez Flamengo sempre Flamengo: a representação da


Presidente Patrícia Amorim na Mídia Esportiva Nacional. In: CONGRESSO BRASILEIRO DE
CIÊNCIAS DA COMUNICAÇÃO, 35, 2012. Anais... Fortaleza: Intercom – Sociedade Brasileira
de Estudos Interdisciplinares da Comunicação, p.1-13.

ILHA, A. B. F. Depoimento de Andréa Benitez Fermino Ilha: Projeto Garimpando Memórias.


Porto Alegre: Centro de Memória do Esporte – ESEFID/UFRGS, 2007.

IOC WORLD CONFERENCES. IOC Women in Sport. Disponível em:


<https://stillmed.olympic.org/media/Document%20Library/OlympicOrg/Documents/Conferences
-Forums-and-Events/Conferences/IOC-World-Conferences-on-Women-and-Sport/IOC-World-
Conference-on-Women-and-Sport.pdf#_ga=1.186488809.1752131811.1492197949>. Acesso em
14 abr. 2017.

JAEGER, A. A.; GOMES, P. B.; SILVA, P.; GOELLNER, S. V. Trajetória de mulheres no esporte
em Portugal: assimetrias, resistências e possibilidades. Movimento, Porto Alegre, v. 16, n. 01, p.
245-267, jan/mar, 2010.
KARNAS, G. S. Perfil do gestor esportivo nos países de língua portuguesa: uma revisão de
literatura. Porto Alegre: Universidade Federal do Rio Grande do Sul, 2010. 36p. Monografia,
(Educação Física) – Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Porto Alegre.

MASTRACUSA, V. L. Depoimento de Vera Lúcia Mastracusa: Projeto Garimpando Memórias.


Porto Alegre: Centro de Memória do Esporte – ESEFID/UFRGS, 2007.

MOURÃO, L.; GOMES, E. M. P. A mulher na administração do esporte no Brasil segundo a


norma olímpica. In: III Fórum de debates sobre Mulher & Esporte > Mitos & Verdades< Fórum
Internacional, 2004, São Paulo.

PANTOJA, L. D. Depoimento de Laura Dias Pantoja: Projeto Garimpando Memórias. Porto


Alegre: Centro de Memória do Esporte – ESEFID/UFRGS, 2007.

PFISTER, G.; RADTKE, S. Mulheres tomando a liderança ou mulheres tomando a liderança nas
organizações esportivas alemãs. Movimento, Porto Alegre, v.13, n. 02, p.91-129, mai/ago, 2007.

PHILIPPI, S. Depoimento de Simone Philippi: Projeto Garimpando Memórias. Porto Alegre:


Centro de Memória do Esporte – ESEFID/UFRGS, 2007.

PINTO, C. Mulheres e desporto: caracterização da participação na direção nas federações


olímpicas portuguesas. Porto: Universidade do Porto, 2009. Dissertação (Mestrado) – Faculdade
de Desporto, Universidade do Porto, Porto, 2009.

RIBEIRO, B. Z.; FELIPE, M.C.R.; SILVA, M.R.; CALVO, A. P. C. Evolução histórica das
mulheres nos Jogos Olímpicos. EFDeportes.com, Revista Digital. Buenos Aires, v.18, n.179, abr.,
2013.

SANTANA, L. C.; MONTEIRO, G. M.; PEREIRA, C. C.; BASTOS, F. C. Perfil dos gestores de
academia fitness no Brasil: um estudo exploratório. Podium: Sport, Leisure and Tourism Review,
São Paulo, v. 1, n. 1, p. 28-46, jan/jun, 2012.

SANTOS, E.C. Depoimento de Eliana Cecília dos Santos: Projeto Garimpando Memórias. Porto
Alegre: Centro de Memória do Esporte – ESEFID/UFRGS, 2007.

SOUZA DE OLIVEIRA, G. A. S.; TEIXEIRA, A. P. O. Trilhando um novo caminho: a gestão


esportiva. Gênero, Niterói, v. 10, n. 1, p. 101-119, 2 sem., 2009.
Tassiane Mélo de Freitas

Através dos estudos desenvolvidos, outrora, sobre o Patrimônio Industrial Carbonífero no


Rio Grande do Sul, foi possível observar a relevante presença do futebol entre a comunidade
carbonífera dos municípios de Arroio dos Ratos, Butiá, Charqueadas e Minas do Leão. Isto foi
possível ao se deparar, por exemplo, com os relatos da comunidade e com os vestígios materiais,
tais como a sede do Esporte Clube Guarani e os documentos salvaguardados no Arquivo Histórico
da Mineração (Museu Estadual do Carvão), ambos localizados em Arroio dos Ratos.
Este texto tem como objetivo central compreender, de maneira geral, o processo de
desenvolvimento de equipes de futebol operário na região carbonífera do Rio Grande do Sul,
através dos relatos orais dos diversos sujeitos envolvidos neste processo. “No jogo de futebol o
senhor engloba muitas instâncias: a federação, os sócios, a diretoria, o técnico, as leis, as regras, a
torcida, a imprensa, o jogador, o campo” (SCHÜLLER, 2012, p. 33). Todos estes elementos
compõem a "dialética futebolística" e se entrecruzam nas relações entre patrões e operários neste
universo onde, por um lado, entram em campo tutela e supervisão, mas por outro, negociação,
consciência de classe e formas de resistência diversas.
As fontes orais utilizadas para este trabalho são entrevistas realizadas pelo extinto Centro
de História Oral do Rio Grande do Sul (CHO - RS), no ano de 2002, durante o projeto Memória
Mineira. As fitas cassetes das entrevistas e disquetes contendo os documentos produzidos
(levantamentos bibliográficos, questionário, transcrição e texto limpo) foram doados em 2013 pelo
Arquivo Histórico do Rio Grande do Sul (AHRS) ao acervo do Museu Estadual do Carvão.

Figura 1 – Ex-mineiros depoentes do Projeto Memória Mineira confraternizando após as entrevistas (2002)

Fonte: Acervo do Museu Estadual do Carvão.

* Universidade Federal de Santa Maria (UFSM), doutoranda em História – PPGH/UFSM.


O Centro de História Oral deixou como legado à região carbonífera do Baixo Jacuí
entrevistas importantes para a compreensão sobre o cotidiano nas minas de carvão no Rio Grande
do Sul. As histórias dos trabalhadores, que ressaltam o trabalho debaixo da terra, seus medos, suas
lutas, suas formas de sociabilidade e o sentimento de solidariedade da categoria, transparecem no
trabalho de entrevistas, que foi realizado no espaço do Museu Estadual do Carvão, local onde foi
erguida em 1924 a primeira usina termoelétrica do Brasil movida à carvão mineral.
Ainda entre as fontes orais presentes neste texto, acrescentam-se trechos de algumas
entrevistas realizadas para a pesquisa que vem sendo desenvolvida sobre as relações entre
operariado e patrões da indústria carbonífera do Rio Grande do Sul, através das equipes de futebol.

Walter Benjamin (1985) afirmou que a arte de narrar estava em vias de extinção, devido a
sua constatação acerca da pobreza da experiência comunicável. Para ele, nem mesmo as
experiências vividas em uma grande guerra tornavam rica a comunicação. As percepções de
Benjamin nos auxiliam a compreender sobre a figura do narrador, na medida em que o autor percebe
no escritor russo Nikolai Leskov um primoroso exemplo.
Enfim, se através de Benjamin observamos um tipo ideal de narrador, por outro se deve
insistir na possibilidade de um tipo ideal de ouvinte, e que juntos caminhem rumo a uma experiência
comunicável profícua. Fala e escuta são duas faces de um procedimento disciplinar que descortina
cenários de maneira a apresentar um olhar muitas vezes oculto nas páginas da história. Trata-se da
História Oral, que para alguns exerce o papel de técnica, a outros de uma disciplina e a outros,
ainda, de uma metodologia.
Em 1872, com a autorização concedida pelo governo imperial para o funcionamento da
empresa formada pelo inglês James Johnson e por Ignacio José Ferreira de Moura – a The Imperial
Brazilian Collieries C. Limited – teve início o processo de formação da indústria carbonífera
nacional, na localidade de Arroio dos Ratos. A partir daí, esta atividade alastrou-se para os
municípios vizinhos de Butiá, Charqueadas e Minas do Leão, outrora pequenos distritos
pertencentes ao distrito Sede (São Jerônimo), que juntamente com Arroio dos Ratos formaram em
torno da indústria carbonífera uma espécie de microcivilização mineira e católica. (ECKERT,
2012). As narrativas sobre o período áureo da mineração de carvão nesta localidade (década de
1940) perpassam gerações, e tratam-se de representações deste universo que marcou os pequenos
distritos mineradores.
Conforme Sulzbach (1989), a mineração de carvão no subsolo situa-se dentro dos seguintes
processos sucessivos: a abertura de galerias, extração do mineral, seu transporte até a saída do poço
e seu traslado para a superfície. Estes são aspectos de um cotidiano de trabalho extinto na região
aqui estudada. Porém, a identidade da categoria dos trabalhadores mineiros ainda assenta-se,
sobretudo, nas memórias daqueles que enfrentaram os perigos da profissão, quando esta se
encontrava em sua forma mais rudimentar. Conforme Amado (1995, p. 40) esta condição é
característica da memória, ou seja, “[...] sua capacidade de associar vivências individuais e grupais
com vivências não experimentadas diretamente pelos indivíduos ou grupos: são vivências dos
outros, das quais nos apropriamos, tornando-as nossas também, por meio de conversas, leituras,
filmes [...].”
Entre os trabalhos de destaque sobre a temática da mineração de carvão está a dissertação
de Mestrado de Cornelia Eckert (1985). Na terceira parte de sua pesquisa, que tem como título “A
esfera do trabalho”, a autora analisa a representação feita por mineiros no município de
Charqueadas sobre sua unidade produtiva, a natureza, organização do trabalho e o processo de
disciplinamento da força de trabalho. (ECKERT, 1985). Destaca-se, ainda, nesta análise, que ela
não teve como ponto de partida a lógica do capital, mas sim o que os mineiros falavam sobre sua
própria práxis.
Esse cotidiano de trabalho com cheiro de morte, muito comum na exploração carbonífera
de subsolo, aparece muitas vezes descrito através de entrevistas feitas com os próprios
trabalhadores. Lembrando que a pesquisa de Eckert (1985) situa-se nos anos 1980, assim alguns
detalhes citados em sua dissertação diferenciam-se do cotidiano de anos anteriores, onde, por
exemplo, ao invés do uso de lanternas pelos mineiros, o objeto que servia de iluminação era o
lampião a carbureto. Em entrevista ao projeto Memória Mineira, no ano de 2002, J.A.L. falou sobre
o uso do lampião e da lanterna:

Em São Jerônimo e Butiá continuou-se trabalhando com lampião. Já em Charqueadas,


usava-se a lanterninha com capacete; e eu diria que em termos de segurança,
luminosidade, comodidade, para o mineiro era muito melhor. No entanto, há algumas
desvantagens: o fato, por exemplo, do ar preto. A lanterna não permite a percepção e o
mineiro não tem tempo de nada. Deu a soneirinha na cara dele, caiu... (J.A.L., 2002).

Abaixo dois depoimentos também cedidos ao projeto Memória Mineira, que revelam a
organização dos turnos de trabalho e o cotidiano de extração entre as décadas de 1940 e 1950:

O turno de trabalho era de oito horas. Por exemplo: das sete horas às três, das três da tarde
às onze da noite, das onze às sete da manhã. Esses quatro turnos que eu estou falando foi
no período de seis horas de trabalho, que anteriormente eram oito horas, em vinte e quatro
horas eram três turnos. O trabalho era perigosíssimo. O serviço mais perigoso que existe
no mundo. Eu trabalhava nas galerias, muitas vezes caiam pedras e matavam operários,
pois não havia segurança de maneira que chegasse às frentes que estavam extraindo
carvão. Não podiam escorar na mesma hora e às vezes caiam pedras. (R.M.A., 2002).

Eu vou explicar como são as galerias. O carvão é por piso. Eu acho que eles tiraram o
segundo piso e começaram a dinamitar a mina, sem regra. Se era para a galeria durar dez
dias, ela durava dez dias, porque o senhor fura com três metros de largura, dois e oitenta
por um metro e oitenta de altura, dois metros e depois a mina volta com dez metros de
largura por cinco, seis de altura, porque tira o carvão da frente e depois vem tirando da
coberta, porque o carvão é todo em camadas dentro da mina. É vinte de pedra, o carvão
da briga, que é um carvãozinho muito especial, uns dez, quinze centímetros; depois uma
pedra de quarenta por quarenta centímetros; um metro e cinquenta de carvão, que é a
“coberta”, e é tudo separadinho, é a mesma coisa que o senhor olhar isso aqui, essa parede
aí, pintada. A mina é uma coisa muito importante, como é que a natureza pode acalmar
aquilo tudo, não é? Pedra, carvão, pedra, carvão, pedra. Tudo separadinho, tudo separado
e... compacto. Então é uma coisa, tem que dinamitar para poder tirar. (P.J.G., 2002).

Figura 2 – Madeireiros no subsolo de uma mina de carvão no Rio Grande do Sul (aproximadamente década de 1950)

Fonte: Acervo do Museu Estadual do Carvão.

No processo de extração mineral, a segurança das galerias dependia do escoramento que


era feito através da colocação de madeiras de forma vertical, a fim de evitar a queda de pedras de
carvão ou desabamento completo do teto. O depoimento de F.R.O. esclarece esta atividade:

[Era] madeireiro, somente madeireiro, debaixo da mina. Baixávamos com a machadinha,


embaixo do braço. Colocávamos vinte e cinco, trinta escoras para assentar tudo. Assim
que terminava com aquilo, íamos descansar, tomar café. [Fazíamos] o túnel. (F.R.O.,
2002).

Assim, mesmo em meio à dura rotina de trabalho nas minas de carvão, são nas várzeas
cobertas pelos rejeitos do carvão mineral que os operários e patrões da indústria carbonífera local
constituíram seus clubes de futebol, que por sua vez também integravam a dinâmica social de uma
comunidade erguida em torno das minas.

Cioccari apontou em seu estudo etnográfico (2010) sobre a comunidade de mineiros em


Minas do Leão, que quando chegou nesta localidade, tinha algumas pistas de que o futebol possuía
uma importância singular no cotidiano da comunidade erguida em torno das minas de carvão.
Segundo a antropóloga, o pertencimento a uma equipe de futebol possui um papel central na
construção da chamada pequena honra relacionada ao esporte “[...] ou seja, do valor social atribuído
ao indivíduo e incorporado por ele, que deriva de suas habilidades corporais”. (CIOCCARI, 2010,
p. 361). Somada às fontes materiais e imateriais encontradas, esta leitura também apontou
possibilidades de uma investigação voltada às relações entre o operariado e os patrões da indústria
carbonífera, através do meio futebolístico.
Observa-se a longeva presença do futebol em zonas carboníferas, de diversas partes do
mundo, através de inúmeros exemplos de clubes constituídos nestes espaços. Entre eles está o
Schalke, fundado em 1904 em Gelsenkirchen (Alemanha). Este tinha como jogadores, os obreiros
protestantes que trabalhavam nas minas de carvão e apoiavam o clube nas folgas.
Na comunidade cristã formada na cidade ao lado de Gelsenkirchen, em Dortmund, um
grupo de jovens descontentes com o time dos padres locais resolveu criar o próprio clube. Assim
nascia o famoso Borussia Dortmund, em 1909, outra equipe situada em zona carbonífera alemã.
No Brasil, no Estado de Santa Catarina, também em região carbonífera, destaca-se o
Criciúma Esporte Clube, fundado em 13 de maio de 1947 com o nome de Comerciário Esporte
Clube. Uma de suas alcunhas faz referência ao famoso clube alemão: Criciúma Dortmund. Embora
existam outros clubes catarinenses situados na região carbonífera, o Criciúma E.C. destaca-se por
seus títulos e sua participação em campeonatos importantes do país, fato que o tornou o mais
conhecido clube pertencente a zonas mineradoras de carvão do Brasil.
Hobsbawn (2000, p. 268) classificou o futebol como "quase uma religião leiga” da classe
operária e “um produto da década de 1880”. O historiador afirmou que os jornais atestavam a
importância que o futebol foi ganhando no cotidiano operário, tendo em vista que os resultados dos
jogos publicados nos jornais para apenas “preencher espaço”, com o tempo passaram a atrair cada
vez mais leitores ávidos por este esporte. Na região carbonífera do Baixo Jacuí, não demorou muito,
desde a criação do esporte bretão, para que este marcasse presença entre os operários das minas de
carvão local.
Em 1918, por exemplo, foi fundado em Arroio dos Ratos, o Esporte Clube Brasil, um dos
mais antigos clubes de futebol da região, registrado na Federação Gaúcha de Futebol.

Figura 3 – Time do Esporte Clube Brasil [192-]

Fonte: Acervo do Museu Estadual do Carvão.


Entender o processo de desenvolvimento destes clubes, requer analisar também a
complexidade das relações que envolvem os sujeitos em torno destes. Sendo assim, o que se
manifesta tanto em campo, quanto no interior burocrático dos clubes, deve ser compreendido não
apenas a partir da tese dos sujeitos “controlados” pelos interesses capitalistas, mas capazes de
construírem seu processo histórico de resistência através dos diversos espaços onde se encontram,
inclusive nos espaços de lazer e sociabilidade.
Uma prática comum entre os clubes de futebol da região, e que aponta parte destas relações
entre patrões e operários, foi a contratação dos chamados jogadores-operários para trabalharem nas
companhias mineradoras e, consequentemente, serem arregimentados para os planteis. Embora não
houvesse nenhum tipo de contrato onde constasse a liberação do trabalhador-atleta para a sua
participação em treinos, campeonatos e outros compromissos do clube, era comum que isto
acontecesse de maneira informal. Segundo o depoente J.C.A. (2002): “[...] Joguei futebol no clube
Brasil da Mina; tínhamos um time bom. Os jogadores, daquele tempo, até poderiam estar na
seleção, mas não valiam nada. Não existia contrato; jogávamos por amor à camiseta”. Este "amor
à camiseta", muitas das vezes, representava a lealdade à equipe na qual estava inserido, do que
propriamente ao empregador que o inseriu na equipe por suas habilidades no futebol.
Mesmo que informalmente, a prática de arregimentação de jogadores-operários trazia
consigo o pagamento de uma espécie de “cachê” aos operários que praticavam um futebol “ordeiro”
(mesmo longe de um contrato), o que sugere uma tentativa de “controle” da empresa frente às
atividades esportivas do operariado. Isto traduzia-se, por exemplo, no fato de assim procedendo,
tentar impedir a ausência dos operários ao trabalho, devido às brigas muito comuns entre equipes
rivais, tal como foi relatado por J. A. L. (2002) em relação à rivalidade entre Esporte Clube Brasil
e Esporte Clube Guarani, em Arroio dos Ratos:

[...] aconteceram alguns fatos pitorescos relativos aos embates entre “Guarani” e
“Brasil”. João Tissot – hoje falecido – que veio de Rio Grande, onde era proprietário
de uma colônia, para trabalhar aqui nas oficinas (ao lado dos estaleiros) no setor de
calderaria contou-me que ele, durante uma partida, arrancou com uma dentada um
pedaço da orelha de um alemão, que jogava no “Guarani”, chamado Gianequinha.
Foi condenado a dois anos na penitenciária. Algum tempo depois, ele me relatou que
errou a bocada, não era para ser na orelha, e sim na carótida. Em uma outra ocasião,
o seu João reclamou que estava com dor de dente. Sugeri, então, que fosse a um
dentista, que ficava perto de onde nós estávamos. Respondeu a mim que não iria
arrumá-los, pois por conta de estarem bons, terminou passando uma temporada na
penitenciária. Se colocasse uma dentadura, corria o risco de passar o resto da vida
numa cadeia! (J. A. L., 2002).

O investimento das empresas mineradoras nos clubes de futebol através da doação de


campos, uniformes e a contratação de jogadores-operários para o trabalho nas minas, assegurando-
lhes inclusive o pagamento de uma espécie de “cachê”, são práticas recorrentes. Tal é o caso do
Consórcio Administrador de Empresas de Mineração, o CADEM1 . Este além de manter
estas práticas, uniu as duas equipes rivais, citadas anteriormente (E. C. Guarani e o E.C.
Brasil), para em 1938 formar a sua própria equipe, o Departamento Desportivo do CADEM.
Por outro lado, a prática de arregimentação de operários-jogadores gerava também divisões
entre a classe operária. Desta maneira, era garantido ao operário considerado “bom de bola”
determinados privilégios que poderiam, consequentemente, quebrar o tão decantado princípio de
coesão, especialmente da categoria dos mineiros, ao ser percebida esta situação de “vantagem” em
relação aos demais, como foi levantado por Antunes (1992) em seu trabalho sobre o futebol de
fábrica.
Nesta multiplicidade de relações no interior dos clubes de futebol da região carbonífera,
constata-se também a participação das mulheres da classe operária, ainda que de maneira limitada.
Hobsbawn, já alertava para a atenção que deve-se estender ao estudo da história das mulheres, para
além do espaço masculino dos mundos do trabalho. No que diz respeito aos espaços de
sociabilidade, o autor afirma:

Entretanto, a vida do homem trabalhador era mais variada do que a da mulher casada,
visto que sua maior parte era passada nos centros de lazer do ambiente de trabalho,
sobretudo no pub e nos jogos de futebol, ambientes tipicamente masculinos.
(HOBSBAWN, 2000, p. 273).

Ser esposa do presidente do clube ou de um membro da diretoria, além de representar uma


espécie de status na comunidade, aumentava a possibilidade de uma participação um pouco mais
ampla. Cita-se entre o papel da mulher nos clubes, o exemplo da escrita de discursos e mesmo o
apontamento de sugestões para o andamento administrativo da equipe, conforme relatado por V. N.
(2017). Por outro lado, o papel de torcedoras também tem sido destacado entre as entrevistas,
inclusive em episódios de violência contra times adversários e juízes das partidas.
Outra forma de participação das mulheres no universo do futebol operário da região, era
como madrinhas do clube. Escolhidas pelos jogadores, era um papel que conferia destaque à moça,
que, por sua vez, deveria preparar discursos de motivação à equipe, conforme relatado por V. N.
(2017): “Assim nos dias que eles entravam em campo, que vinham visitantes, a gente fazia
discursos e desejava felicidades para eles no jogo. Era bem legal”. Este talvez constituía-se no papel
da mulher aceito socialmente, dentro desta prática esportiva, que ainda mantem preconceitos quanto
à inserção das mulheres.
A depoente C. A. M, (2017), que exerceu cargo em diretoria de um clube de futebol da
região, em relato, elogiou a atuação dos membros da diretoria pelo esforço e dedicação ao clube,
enfatizando, porém, que seu papel era de ser uma apoiadora das atividades realizadas pelos homens
na equipe. Assim destacou:

1
Empresa que controlou a exploração do carvão mineral na região de 1936 a 1964.
[...] eu era a lavadeira do Brasil, eu lavava aqui na valeta da água quente [ E quanto a
senhora cobrava?] Não! Eu não cobrava! Ora, se eu ia cobrar, se eles não tinham dinheiro
nem pra eles, nem pra comprar uniforme! Assim ó: eu tinha os meus filhos pequenos e
era assim ó, aí vê a extensão do que a gente faz por amor: eles jogavam domingo e
segunda-feira eu tinha que estar ali na sanga para secar para terça-feira, as meias que
custavam a secar. Eram passadas a ferro para terça-feira eles treinarem e lavava para
quinta-feira eles treinarem e lavava para domingo eles jogarem... por que eles não tinham
o luxo de ter dois ou três uniformes [E alguém lhe ajudava ou era a senhora sozinha?]:
Eu! E assim, também nunca se explorou se alguém queria fazer. Não... e ele veio e me
pediu e eu topei. (C. A. M., 2017).

Através dos clubes de futebol percebe-se, também, a formação de redes que


interligam-se a outros espaços de sociabilidade.2 De igual maneira, a relação dos dirigentes
dos clubes de futebol com partidos políticos também são perceptíveis. Em relação a isto,
encontra-se o caso de Naro Pereira da Silva, presidente do Esporte Clube Brasil, em 1950, e
primeiro prefeito de Arroio dos Ratos, pelo PDS.
Esta ligação entre futebol e política sobressai também no caso do Brasil F. C. de Butiá, onde
um dos fundadores da equipe, reconhecido na comunidade butiaense por seu entusiasmo no
fomento às atividades esportivas, é apontado como “aquele que sempre estava na diretoria, por que
ele fazia andar este time”. (V. N., 2017). Além de ter pertencido à diretoria do clube, este também
exerceu a função de técnico da equipe, onde sua postura de liderança fazia com que tornasse sua
casa, uma espécie de “concentração” para os dias anteriores aos jogos decisivos. Ainda era
destacado por possuir o “dom da oratória”, que exercitava durante os encontros familiares, em sua
residência, onde reuniam-se amigos, sócios do clube, vizinhos... Não tardou para que fosse lançado
candidato a vereador, posteriormente.
Ainda, conforme relato de J. W. S. (2017), a rivalidade entre Butiá F. C. e Brasil F. C.,
contribuiu na escolha do primeiro prefeito de Butiá. Luiz Vilodre, diretor do Brasil F.C. Era
considerado candidato natural pelo PTB, porém "[...] pessoas influentes do Butiá F. C. resolveram
lançar Rui Saraiva, que era presidente do Butiá F. C. Rui Saraiva venceu Luiz Vilodre, na convenção
do partido, e derrotou Gastão Hoff (do PL) que disputou com ele o cargo de 1.º prefeito de Butiá".
Os clubes de futebol, apesar de considerados espaços de lazer e sociabilidade, não apenas
apresentam esta característica. São lugares onde, encontram-se diversos sujeitos, e ali tecem suas
relações de maneira a tanto desenvolver as equipes, mas também se constituírem como sujeitos
dinâmicos, inclusive na construção de sua consciência de classe.

2
Estes também contavam com o investimento ou outras formas de apoio das companhias mineradoras, tal
como o caso da Sociedade Bailante “Filhos da Lua”, que em manuscrito de seu presidente, Sabino Antônio de
Moraes, endereçado ao Engenheiro Chefe da Carbonífera Rio Grandense (Butiá), Augusto Baptista Pereira,
solicitava o apoio da administração da empresa.
Além de se constituírem em espaços de entretenimento e sociabilidade, os clubes de futebol
são locais onde a complexidade das relações se expressa. Podem representar, assim, espaços de
dominação, resistência, construção de identidade, mas, ao mesmo tempo, revelar as contradições
da sociedade.
O foco inicial da investigação que vem sendo realizada são doze clubes de futebol criados
entre as décadas de 1910 e 1950, na região carbonífera do Rio Grande do Sul, filiados à Federação
Gaúcha de Futebol. Estas agremiações tiveram atuações significativas entre as décadas de 1940 e
1960. A partir da década de 1960, em convergência com o período de decadência da indústria do
carvão, nesta localidade, estes clubes começaram a se deparar com dificuldades financeiras e de
organização. Esta situação os levou ao fechamento, ou mesmo à extinção das equipes principais,
mantendo apenas, em situação de extrema precariedade, suas sedes e, em alguns casos, as equipes
de veteranos.
Este texto tratou, no entanto, de apresentar alguns aspectos a serem considerados sobre o
desenvolvimento destas equipes de futebol através dos relatos orais de alguns de seus integrantes,
outrora concedidos ao Projeto Memória Mineira e, também, pelas entrevistas que vêm sendo
realizadas durante a pesquisa. Pretendeu-se, assim, levantar indícios de como as relações entre os
sujeitos envolvidos nestas agremiações (majoritariamente formadas por operários e patrões da
indústria carbonífera e suas redes) podem vir a revelar, formas de resistência, tensões, conflitos,
arranjos, dominação, contradições, isto seja através, da intervenção da companhia mineradora, em
relação ao papel das mulheres nos clubes, da questão dos jogadores operários ou mesmo dos
projetos políticos diversos presentes nestes espaços.

AMADO, Janaína. O grande mentiroso: tradição, veracidade e imaginação em história oral.


História, São Paulo, v. 14, p.125-136, 1995.

ANTUNES, Fátima. Futebol de fábrica em São Paulo. 1992. Dissertação (Mestrado em


Sociologia) – Universidade de São Paulo, São Paulo, SP, 1992.

BENJAMIN, Walter. Obras Escolhidas: magia e técnica, arte e política. São Paulo: Brasiliense,
1985.

CIOCCARI, Marta. Do gosto da mina, do jogo e da revolta: um estudo antropológico sobre a


construção da honra em uma comunidade de mineiros do carvão. 2010. 482 p. Tese (Doutorado
em Antropologia Social) – Universidade Federal do Rio de Janeiro, Museu Nacional, Rio de
Janeiro, RJ, 2010.
ECKERT, Cornelia. Memória e trabalho: etnografia da duração de uma comunidade de mineiros
de carvão (La Grand-Combe, França). Curitiba: Appris, 2012.

_____. Os homens da mina: um estudo das condições de vida e representações dos mineiros de
carvão em Charqueadas – Rio Grande do Sul. 1985. Dissertação (Mestrado em Antropologia
Social) – Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Porto Alegre, 1985.

HOBSBAWN, Eric. Mundos do trabalho: novos estudos sobre história operária. Rio de Janeiro:
Paz e Terra, 2000.

SCHÜLLER, Donaldo. Reflexões esferocêntricas, In: ROHDEN, Luiz; AZEVEDO, Marco


Antonio et. al. Filosofia e futebol: troca de passes. Porto Alegre: Sulina, 2012.

SULZBACH, Ervino Lothar. Perfil de um minerador. Arroio dos Ratos, RS: PBS, 1989.
Cristian Giacomoni*

O campo da História Cultural permite narrar itinerários de vida, de instituições, de


grupos sociais de diferentes formas e conceitos. No entanto, somente a metodologia da
História Oral permite que o entrevistado revele fatos que, muitas vezes, os documentos
históricos não possuem a capacidade de contar. São nos detalhes, nas dimensões de memórias
mais densas e profundas, nos esquecimentos e nos reavivamentos dessas memórias que,
muitas vezes, se evidenciam possíveis respostas aos questionamentos do investigador.
A História Oral começa a suscitar interesse nos, investigadores, na medida em que
ela “permite obter e desenvolver conhecimentos novos e fundamentar análises históricas com
base na criação de fontes inéditas ou novas.” (LOZANO, 2005, p. 16). Essa forma de
constituir uma história, é capaz, através das memórias e lembranças dos sujeitos, de
conferir representações de nós, para nós mesmos e para os que vivem conosco.
As representações são entendidas a partir das proposições de Chartier (1991, p.
184), distinguidas entre dois conceitos: um que “faz ver uma ausência, o que supõe uma
distinção clara entre o que representa e o que é representado”, e outro conceito de
representação que pode ser interpretado como um instrumento “de um conhecimento mediato
que faz ver um objeto ausente substituindo-lhe uma "imagem" capaz de repô-lo em
memória e de "pintá-lo" tal como é” (CHARTIER, 1991, p. 184).
Cada sujeito traz consigo uma história pessoal, profissional, social, cultural e, neste
caso, escolar, as quais representa com as lembranças de suas memórias. A professora
Jaqueline Gedoz Vita dedicou 27 anos de sua trajetória profissional a uma única instituição
de ensino, a Escola Municipal de Ensino Fundamental Giuseppe Garibaldi.1 Nesse
ambiente, desenvolveu todas as atividades que lhe foram permitidas e oportunizadas, desde
professora primária nos anos 1970, até chegar ao cargo de diretora nos anos 1990.

* Bacharel em Educação Física pela Universidade de Caxias do Sul-RS (2012), Pós-Graduado em


Nutrição Esportiva pelo Centro Universitário Internacional – UNINTER (2017). Atualmente é aluno do
Programa de Pós-Graduação em Educação da Universidade de Caxias do Sul, Mestrando em Educação, estando
vinculado à linha de pesquisa em História e Filosofia da Educação. Participa do grupo de pesquisa História da
Educação, Imigração e Memória da Universidade de Caxias do Sul (GRUPHEIM).
1
A Escola Municipal de Ensino Fundamental Giuseppe Garibaldi obteve esta denominação após abertura da 8ª
série do Ensino Fundamental, no ano de 1998 (FILIMBERT, 2010).
É preciso entender um pouco da trajetória de vida da professora Jaqueline Gedoz Vita, para
compreender sua formação como docente, e com isso a organização das suas aulas de
Educação Física. Iniciou sua formação no 2º grau,2 em paralelo com o magistério no Instituto
Estadual de Educação Cristovão de Mendoza, no município de Caxias do Sul, estando assim
apta a lecionar para turmas de 1ª à 4ª série, no período de 1977 a 1980. Após, iniciou a
Faculdade de Estudos Sociais e História, de 1980 a 1985, ano em que graduou-se pela
Universidade de Caxias do Sul (UCS).
Localizado na região nordeste do Estado, o município de Caxias do Sul possui um território
total de 1.638,34 km², com cerca de 500.000 habitantes. Faz divisa com os municípios de São
Marcos, Campestre da Serra e Monte Alegre dos Campos, ao norte; Vale Real, Nova Petrópolis,
Gramado e Canela, ao sul; São Francisco de Paula a leste, e Flores da Cunha e Farroupilha, a oeste
(CAXIAS DO SUL, 2017b). Situado a 127 km da capital do Estado – Porto Alegre –, Caxias do
Sul destaca-se pelo turismo, a partir da Festa Nacional da Uva, e também pelo polo industrial metal
mecânico como suas forças econômicas (CAXIAS DO SUL, 2017c).
A Escola Municipal de Ensino Fundamental Giuseppe Garibaldi, como é denominada
atualmente, foi a escola que a professora Jaqueline Gedoz Vita lecionou durante toda a sua carreira,
localizada no município de Caxias do Sul, em destaque a seguir na Figura 1.

Figura 1 – Mapa situando Caxias do Sul no Brasil e Rio Grande do Sul

Fonte: Caxias do Sul (2017a).

A história da trajetória profissional da professora Jaqueline será tecida a partir de suas


memórias, dos documentos obtidos, dos trabalhos dedicados à escola, dos próprios estudos e

2
Segundo Carneiro (2001), a denominação de Ensino de 2º Grau é determinada pela Lei nº 5.692, de
1971, com duração de 3 a 4 anos, porém ultrapassava os 3 anos, caso o aluno optasse em realizar um Curso
Profissionalizante. A titulação de Ensino Médio é referida pela Lei nº 9.394, de 1996, que passa a ter uma
duração de 3 anos de estudos.
registros pessoais e também de todas as práticas vividas, pois estas possuem uma validação
relativa e histórica, porque se constituem perante o ambiente social. Segundo Nunes (2003,
p. 11), “a sociedade determina em boa medida como devemos desempenhar nossas
funções e com que categorias vamos pensá-las, o que vale tanto para o indivíduo quanto para
a coletividade”.
O objetivo deste artigo é analisar nas memórias da professora Jaqueline Gedoz
Vita, representações das práticas desenvolvidas em suas aulas de Educação Física nas séries
primárias do Grupo Escolar Giuseppe Garibaldi. Além disto, identificar possíveis culturas
materiais, práticas, didáticas e formas de organização das suas aulas de Educação Física.
Para que o artigo fosse concretizado, realizei uma entrevista piloto3 com a professora
Jaqueline Gedoz Vita, no dia 31 de março de 2017, em sua residência. A entrevista foi
semiestruturada, inicialmente com 10 perguntas, tendo duração aproximada de uma hora,
pois sempre que surgiam dúvidas, curiosidades ou necessidade de aprofundamento ao
tema, o autor intervia com novas perguntas.
Para Nunes (2003), as memórias quando usadas como fonte de pesquisa
permitem possibilidades de articulação do pesquisador e seu objeto de pesquisa. Essa
capacidade dos seres humanos de comunicar e interagir através do discurso é que torna nossas
memórias vivenciadas em outros momentos mais concretas, pois constituem-se a partir das
“[...] memórias do que sentimos e experimentamos ao vivermos, [...]” (NUNES, 2003, p. 14).
As memórias pessoais, profissionais e sociais, construídas no cotidiano escolar
da professora Jaqueline, serão analisadas sob os aportes teóricos da História Cultural e,
também, da História da Educação. A História Cultural possibilita uma nova forma em relação
à utilização de fontes de pesquisa em História. Como afirma Castanho (2006, p. 139), a
História Cultural “ocupa-se, de um lado, com as bases materiais e sociais da existência
humana, e, de outro, com as ideias mediante as quais os homens representam essa existência”.
A História Cultural está situada no
[...] conceito de cultura como objeto de investigação, no estudo das representações sociais,
das práticas culturais e do processo de apropriação. As representações construídas sobre o
mundo não só se colocariam no lugar do mundo, como fariam com que os homens
percebessem a realidade e a partir delas pautassem sua existência. Seriam elas as geradoras
de condutas e práticas culturais e sociais (VIEIRA, 2015, p. 371).

A História da Educação, segundo Bica (2012), está direcionando suas pesquisas a


instituições mais limitadas e regionalizadas, oportunizando interpretações mais particulares. Estes
fatores levam o pesquisador a realizar uma inserção mais profunda em seus recortes temporais,
priorizando as questões de pesquisa e oferecendo um relacionamento mais próximo com suas
fontes, partindo,

3
Essa entrevista piloto compõe o projeto de dissertação de Mestrado em Educação de Cristian Giacomoni, pela
Universidade de Caxias do Sul (UCS), pré-intitulado Escola Giuseppe Garibaldi e o ensino da Educação Física
(Caxias do Sul/1976-1989).
[...] da compreensão e ancorado na ideia de que os estudos em História da Educação
surgem da necessidade de uma renovação teórico-metodológica, temos por base que estes
trabalhos pretendam dar voz aos esquecidos, aos atores envolvidos nos processos
educativos, ao cotidiano escolar, aos aspectos da cultura escolar, bem como enfatizar uma
visão mais profunda dos espaços sociais, materiais, culturais e políticos [...]. (BICA, 2012,
p. 1).

O instrumento utilizado para narrar esta história, ancorada na metodologia da História Oral,
e analisada sob a teoria da História Cultural e da Educação, foi a entrevista semiestruturada,
fundamentada nos conceitos de Triviños (1987), com atenção à elaboração de perguntas básicas
que direcionem o pesquisador para o tema a ser investigado. A entrevista estrutura-se nas perguntas
fundamentais que estão relacionadas e apoiadas em teorias e hipóteses que realizam conexões ao
objeto deste artigo. Triviños (1987, p. 152) afirma que a entrevista semiestruturada “[...] favorece
não só a descrição dos fenômenos sociais, mas também sua explicação e a compreensão de sua
totalidade [...]”. Complementa Ribeiro (2008 p. 141), que a entrevista se constitui como:

A técnica mais pertinente quando o pesquisador quer obter informações a respeito do seu
objeto, que permitam conhecer sobre atitudes, sentimentos e valores subjacentes ao
comportamento, o que significa que se pode ir além das descrições das ações,
incorporando novas fontes para a interpretação dos resultados pelos próprios
entrevistadores.

Os aportes teóricos e metodológicos para este artigo tiveram sua base nos pressupostos de
Ferreira e Amado (2005), em que a História Oral ordena e estabelece procedimentos de trabalho,
nas diversas formas de transcrever as entrevistas, nas formas de interação entre entrevistador e
entrevistado, realizando, desta maneira, uma conexão entre a teoria e a prática. A memória é o
componente fundamental para que utilize desta metodologia, pois

Na história oral, o objeto de estudo do historiador é recuperado e recriado por intermédio


da memória dos informantes; a instancia da memória passa, necessariamente, a nortear as
reflexões históricas, acarretando desdobramentos teóricos e metodológicos importantes
[...] (FERREIRA; AMADO, 2005, p. 15).

A História Oral valoriza as memórias dos sujeitos entrevistados, ou seja, de quem vivenciou
o acontecimento que hoje é o objeto de pesquisa, produzidas a partir das inquietações e
questionamentos do pesquisador. Para Thompson (1998), a memória está ligada na construção desta
história, pois:
Toda fonte histórica derivada da percepção humana é subjetiva, mas apenas a fonte oral
permite-nos desafiar essa subjetividade: descolar as camadas de memória, cavar fundo em
suas sombras, na expectativa de atingir a verdade oculta (THOMPSON, 1998, p. 197).
A análise dos conceitos expostos das dimensões da memória foram tratados como explica
Grazziotin (2008, p. 62), em que o esquecimento pode ser observado em sociedades “submetidas a
regimes totalitários [...] que tudo fez para provocar a amnésia forçada de uma sociedade, levada a
esquecer o que não é desejado num determinado tempo, implantando outra memória, condicionada
a um regime de verdade intencionalmente criado”.
Os reavivamentos da memória são constituídos num processo inversamente ao processo dos
esquecimentos, pois, nesse, os indivíduos e/ou as comunidades acabam se submetendo “a um
processo de coleta de vestígios, sinais, marcas que ficaram nas recordações das pessoas, nos
registros em papéis, em fotografias, em imagens, em símbolos, em festas e demais marcadores que
são capazes de identificar um tempo passado” (GRAZZIOTIN, 2008, p. 62).
Estes dois fatores das dimensões da memória foram analisados, segundo a História Cultural,
a História da Educação e a História Oral, representando as práticas das aulas de Educação Física a
partir das lembranças da professora Jaqueline Gedoz Vita. Em grande parte, as memórias da
professora suscitaram reavivamentos de fatos marcantes das práticas e culturas dessas aulas de
Ensino Primário.
Os documentos foram interpretados, conforme Luchese (2014, p. 149), partindo do
entendimento em que todos os documentos do passado que chegam ao investigador “são plenos de
relações, de jogos de sentido e significação, construídos e preservados no tempo para as gerações
futuras”. Os documentos, desta forma, precisam ser montados e desmontados, lidos e interpretados,
categorizados e analisados, pois, somente, desta maneira é que poderão ser articulados, a partir dos
indícios que se apresentam, construindo assim uma narrativa histórica plausível, possível e
verossímil (PESAVENTO, 2003).
Além disto, a História Cultural possibilita a articulação destas memórias com os contextos
vividos naquela época, suas relações, suas conexões, suas tensões, suas práticas, suas culturas
particulares, pois “elas estão ancoradas em espaços e lugares nos quais circulamos, em grupos
sociais de diferentes tipos aos quais pertencemos, em objetos que manipulamos.” (NUNES, 2003,
p. 15).
Na sequência, apresento a contextualização do Grupo Escolar Giuseppe Garibaldi, no
município de Caxias do Sul, dentro do período pesquisado e adentro as representações das práticas
das aulas de Educação Física, nas séries primárias do Grupo Escolar Giuseppe Garibaldi, através
das memórias da professora Jaqueline Gedoz Vita.

Nesta seção, o texto estrutura-se de modo que reconstrua, mesmo que de forma
fragmentada, o processo de desenvolvimento da disciplina de Educação Física constituído em
Caxias do Sul-RS, no Bairro Boa Vista4, assim como relacionam-se às memórias da
professora Jaqueline Gedoz Vita sobre os primeiros tempos do Grupo Escolar Giuseppe
Garibaldi e das suas aulas de Educação Física.
O Grupo Escolar Giuseppe Garibaldi foi fundado no ano de 1974 em uma casa simples
construída de madeira. Segundo o livro disponibilizado pela Escola Municipal de Ensino
Fundamental Giuseppe Garibaldi, denominado Caderno de Reuniões com os Professores (1974-
1976), a escola constituiu-se no dia 25 de janeiro de 1974 quando,

[...] a Associação do Bairro Boa Vista realizou uma reunião com a presença do senhor
prefeito municipal Mário Bernardino Ramos e seu secretariado. Entre as reivindicações
para o bairro foi citada a necessidade de uma escola afim de atender ao grande número de
crianças. O senhor prefeito sugeriu que a escola funcionasse no mesmo salão, onde estava
sendo realizada a reunião, ou seja, o prédio pertencente ao senhor João Neves, sito à Rua
Angelina Michelon com frente para a BR-166 (EMEFGG, 1974, p. 1).

A residência em que a instituição começou a funcionar era destinada para moradia familiar,
portanto, necessitou de alguns ajustes para conseguir atender às necessidades básicas dos alunos.
Ernesto Romualdo Rissi, presidente da Associação de Moradores do Bairro Boa Vista, em 1974,
juntamente com a ajuda de outros membros da sociedade, foi quem reformou todo o espaço,
dividindo o mesmo em 3 salas de aula para atender 3 turmas pela manhã e 3 turmas pela tarde. No
primeiro ano, a escola já atendia aproximadamente 90 alunos que possuíam aulas de 1ª à 4ª série
(EMEFGG, 1974).
Natural de Caxias do Sul, a professora Jaqueline Gedoz Vita constituiu sua formação básica
em escolas públicas municipais e estaduais da cidade. De 1977 a 1980 realizou sua formação de 2º
grau no Instituto Estadual de Educação Cristovão de Mendoza, onde teve a oportunidade de realizar
em paralelo o curso de magistério. Esta titulação permitiu que a professora pudesse lecionar para
turmas de 1ª a 4ª séries do Ensino Primário (VITA, 2017).
Em seguida, a professora relata que cursou Faculdade de Estudos Sociais e História, em
que,
[...] existia a curta duração que era 3 anos e depois eu fiz a plena em História, que foi de
1980 a 1985 que foi quando eu me formei. Mas aí, neste meio tempo, que eu estava
estudando, eu dava aula no Giuseppe Garibaldi para os anos iniciais e eu gostei muito de
trabalhar com os pequenos. Então, eu só me formei em História, mas nunca atuei, eu fiquei
sempre com os anos iniciais (VITA, 2017).

A professora nunca trocou de instituição de ensino. Ingressou no Giuseppe Garibaldi em


1982 e se desligou em 2009. Dentro da escola foi professora de 1ª série, de 1982 até 1992, e nos

4
No ano de 1974, o Bairro Cristo Redentor, como é denominado, atualmente, era popularmente conhecido
como Bairro Boa Vista. Esse nome foi dado pelos moradores ao afirmarem que o bairro possuía uma vista
bonita (CAXIAS DO SUL, 1986).
anos subsequentes alternou entre 1ª a 4ª séries. Nos anos de 2003 a 2005 tornou-se Diretora da
escola e, na sequência de 2006 a 2009, foi empossada Coordenadora Pedagógica do Giuseppe
Garibaldi. Após realizou uma Pós-graduação em Formação para Adultos (EJA), trabalhou por mais
2 anos e se aposentou (VITA, 2017).
A sua relação direta com o ensino no Grupo Escolar Giuseppe Garibaldi começou no ano
de 1982 com seu ingresso para ministrar aulas para 1ª série. Recorda que realizou um curso
intensivo de alfabetização, oportunizado pela Secretaria de Educação, que sempre incentivava os
professores ao aperfeiçoamento de suas formações. Uma ocorrência marcante da narrativa de Vita
(2017), está no fato de ministrar “aula para 1ª série, sempre para 1ª série, durante 10 anos, e, como
te disse, eu gostei tanto dos pequenos e do Giuseppe que eu sempre fiquei lá”.
Quando adentro no campo da disciplina de Educação Física, Jaqueline destaca que a

[...] Educação Física era assim muito “bitolada”, pois só tinha um pedaço do pátio coberto;
não existia o local onde hoje tem um ginásio. E nós tínhamos só bola e corda, mais nada.
Era a professora da turma que dava e outra coisa muito sério e errado foi, que a gente dava
quando podia. Não existia uma fiscalização, não existia alguém que cobrava que dissesse
assim. É importante para os alunos ter Educação Física. Se a gente estava atrasada no
conteúdo, ficávamos dando aula a mais, pois os alunos não tinham esta divisão de períodos
de aula; eles tinham toda a tarde com a mesma “profe”. E, às vezes, assim quando a turma
estava muito agitada, a gente levava lá embaixo para brincar, digamos um recreio
prolongado [...] (VITA, 2017).

Ainda no antigo prédio de madeira, as aulas de Educação Física praticamente não existiam,
ou eram realizadas na rua em frente à escola, por que naquele período existiam poucos automóveis
e, desta forma, as ruas eram usadas para prática das aulas. As práticas ocorriam através de
brincadeiras lúdicas, mas também seguiam um viés desportista com o uso dos métodos ginásticos
e de atletismo. A disciplina encontrava-se sem rumo, pois os educadores não sabiam para qual
propósito ou finalidade deveriam ministrar essas aulas, seja para criar crianças fortes e saudáveis
ou desenvolver princípios sociais e humanos (VITA, 2017).
Apesar de relatar estes fatos na narrativa concedida, o Diário de Classe da 1ª série (1984)
de Jaqueline Gedoz Vita, demonstra que as suas práticas possuíam um propósito e objetivo pré-
determinado. Em grande parte, os planos de aula possuíam, como intuito, o desenvolvimento da
psicomotricidade, motricidade geral (ampla) e específica (fina) e o desenvolvimento motor dos
alunos do Ensino Primário.
A conceito de psicomotricidade desenvolve-se através da evolução da complexidade das
atividades aplicadas, partindo de aspectos amplos para os finos, definidos por Rossi (2012, p. 2),
como todas as atividades que contribuem para que os alunos desenvolvam o conhecimento-
aprendizado e “o domínio de seu próprio corpo. Ela, além de constituir-se como um fator
indispensável ao desenvolvimento global e uniforme da criança [...], se constitui como a base
fundamental para o processo de aprendizagem dos indivíduos”.
A seguir, na Figura 2, fica explícita a intenção do trabalho com a psicomotricidade nas aulas
de Educação Física, dentro das séries primárias, partindo de conceitos de motricidade ampla para
transposição em sala de aula direcionada à motricidade fina. Percebe-se uma preocupação da
professora em realizar sempre um processo pedagógico dos exercícios correlacionados a atividades
de outras disciplinas, mesmo que estas fossem ministradas somente por ela.

Figura 2 – Plano de aula de Educação Física

Fonte: Vita (1984).

Cabe ressaltar que, neste período, o Brasil ainda estava vivendo um período de ditadura
militar. Porém, a professora Jaqueline não menciona, em nenhum momento, em sua entrevista, a
influência de métodos propostos pelo governo que visava uma formação mais desportista, em que

[...] o programa de Educação Física nas escolas seria constituído por um conjunto de
atividades de ginástica, jogos, desportos, danças e recreação, com o objetivo de promover
o desenvolvimento harmonioso do corpo e do espírito de equipe de modo que fosse
alcançado o máximo de resistência orgânica e de eficiência individual (PICCOLI, 2006,
p. 26).

Vita (2017) deixa evidente sua preocupação em realizar aulas de Educação Física, mesmo
não possuindo obrigatoriedade por parte de seus superiores. Sempre aproveitava as oportunidades
na sua grade de horários, determinando objetivos, constituindo pedagogias e didáticas voltadas aos
princípios da psicomotricidade, estes evidenciados através do Diário de Classe da 1ª série (1984).
A professora Jaqueline utilizava a psicomotricidade em suas aulas de Educação Física, direcionado
a promover em seus alunos
[...] a formação de base indispensável em seu desenvolvimento motor, afetivo e
psicológico, dando oportunidade para que por meio de jogos, de atividades lúdicas, se
conscientize sobre seu corpo. Através dessas atividades lúdicas, a criança desenvolve suas
aptidões perceptivas como meio de ajustamento do comportamento psicomotor (ROSSI,
2012, p. 2).

Estas foram as principais contribuições percebidas através da entrevista com a professora


Jaqueline Gedoz Vita, para constituição de culturas e práticas dentro do Grupo Escolar Giuseppe
Garibaldi. As culturas escolares, neste contexto, formaram-se nas relações da instituição escolar,
entre professores, alunos e comunidade, desde os pequenos detalhes até as grandes estruturas
físicas. Essa cultura escolar, conforme Julia (2001, p. 10), é compreendida como:

[...] um conjunto de normas que definem conhecimentos a ensinar e condutas a inculcar,


e um conjunto de práticas que permitem a transmissão desses conhecimentos e a
incorporação desses comportamentos; normas e práticas coordenadas a finalidades que
podem variar segundo as épocas (finalidades religiosas, sociopolíticas ou simplesmente
de socialização). Normas e práticas não podem ser analisadas, sem se levar em conta o
corpo profissional dos agentes que são chamados a obedecer a essas ordens e, portanto, a
utilizar dispositivos pedagógicos encarregados de facilitar sua aplicação, a saber, os
professores primários e os demais professores.

As práticas escolares são as formas de agir e fazer incluídas, dentro das culturas que se
formam na escola, e que, também, se perpetuam para comunidade. Entendo estas práticas ocorridas,
a partir dos conceitos de Vidal e Schwartz (2011), como as ações dos alunos dentro do espaço
escolar, que são interativas, criativas, ativas, interferindo como se posicionam naquele ambiente, se
reconhecem frente a ele, criam percepções e experiências daquele mundo particular. As práticas
escolares acontecem perante os diferentes estados de desenvolvimento de cada aluno, entre estes
alunos, seus professores e no contexto do Grupo Escolar Giuseppe Garibaldi, e também através da
comunidade.
É nas memórias da professora Jaqueline Gedoz Vita, nas suas representações das práticas
das aulas de Educação Física que percebo a criação de culturas particulares, daquele grupo e
daquela comunidade. As práticas e culturas escolares envolvendo a Educação Física envolviam
fundamentalmente os alunos, os pais destes alunos e a comunidade de maneira geral. Ocorriam
através da participação de eventos criados pela escola, como: gincanas e bingos ou pela participação
em eventos esportivos promovidos pelo município e desfiles cívicos (VITA, 2017).
Posso destacar a criação de uma cultura no Grupo Escolar Giuseppe Garibaldi, de respeito
mútuo, de normas de conduta dentro da escola e, também, na sociedade, de aprendizado e respeito
às regras dos jogos, de convivência harmoniosa dentro e fora do ambiente escolar e da fomentação
para inclusão de todos os alunos nas aulas. Fica evidente que a criação de culturas e práticas
relacionadas à disciplina de Educação Física envolve diretamente a relação entre comunidade e
escola, nos primeiros anos em que a professora Jaqueline Gedoz Vita ministrava suas aulas.

Através das narrativas da professora de Ensino Primário Jaqueline Gedoz Vita, sobre os
anos de 1982 a 1989, constatei evidências que as aulas de Educação Física, no Ensino Primário, do
Grupo Escolar Giuseppe Garibaldi eram realizadas sem uma prática pedagógica pré-estabelecida
ou algum planejamento estratégico acerca dos conteúdos trabalhados.
Porém, na prática, a professora acabava realizando didáticas e planejamentos das aulas de
Educação Física, fundamentando-se na psicomotricidade, através de aulas lúdicas, buscando,
muitas vezes, uma conexão dos conteúdos trabalhados na sala de aula com as práticas destas aulas
de Educação Física. Em contraponto, revelou que muitas práticas aconteciam apenas do “fazer para
fazer” ou como forma de retirar os alunos da sala de aula para que pudessem extravasar suas
energias.
Ainda de acordo com os relatos da professora Jaqueline, a escola era muito carente de
materiais para o desenvolvimento das aulas de Educação Física, pois possuía apenas algumas bolas,
bambolês, elásticos, cordas e os demais materiais sempre eram adaptados como: garrafas plásticas,
latas de metal, cabos de vassoura, dentre outros. Referência que não era obrigada pelos seus
superiores, tanto pela escola, como também pela Secretaria de Educação, a lecionar a disciplina de
Educação Física nas séries primárias, mas no seu entendimento considerava importante para o
desenvolvimento dos seus alunos.
Analisando a entrevista, o local e o período da formação em Magistério, e também da sua
formação subsequente, posso afirmar que a professora Jaqueline possuiu influências diretas do
campo da disciplina escolar de Educação Física, tanto do magistério, dos cursos realizados na
Secretaria de Educação, bem como das trocas sociais e didáticas realizadas entre escolas e entre
professores.
No entanto, apesar das dificuldades encontradas pelos professores primários do Grupo
Escolar Giuseppe Garibaldi, os alunos tiveram um aproveitamento satisfatório das aulas de
Educação Física, dentro das possibilidades apresentadas daquele período. Destaco ainda, a intensa
iniciativa do grupo de professores, na busca de metodologias de trabalho para suas aulas de
Educação Física, além da troca de materiais didáticos e pedagógicos para formatação destas aulas,
entre as escolas, e, também, entre estes professores primários.
BICA, Alessandro Carvalho. A pesquisa em história da educação: caminhos, etapas e escolhas no
trabalho do historiador. IX AMPED SUL. Seminário de Pesquisa em Educação da Região Sul. 2012.

CARNEIRO, Moacir Alves. LDB fácil: leitura crítico-compreensiva artigo a artigo. Petrópolis:
Vozes, 2001.

CASTANHO, Sérgio Eduardo Montes. Questões teórico-metodológicas de história cultural e


educação. In: LOMBARDI, José Claudinei; CASIMIRO, Ana Palmira Bittencourt Santos;
MAGALHÃES, Lívia Diana Rocha (Org.). História, cultura e educação. São Paulo: Autores
Associados, 2006.

CAXIAS DO SUL. Mapa do município – escala 1/10.000. Disponível em:


<https://goo.gl/e1zJ5p> Acesso em: 22 maio 2017b.

CAXIAS DO SUL. Palavra e poder: 120 anos do Poder Legislativo em Caxias do Sul. Centro de
Memória da Câmara Municipal de Caxias do Sul. Disponível em: <https://goo.gl/tgCgtb>. Acesso
em: 10 abr. 2017c.

CAXIAS DO SUL. Perfil socioeconômico: Caxias do Sul, Rio Grande do Sul – Brasil.
Disponível em: <https://goo.gl/EpX3Wf> Acesso em: 20 maio 2017a.

CAXIAS DO SUL. Secretaria Municipal de Educação e Cultura; LAZZAROTTO, Valentim


Angelo; VALENTIM, Joceli (Coord.). Vilas & bairros: a história contada pela comunidade.
Caxias do Sul, RS: SMEC, 1986.

CHARTIER, Roger. O Mundo como representação. Estudos Avançados. São Paulo, v. 5, n. 11, p.
173-191, jan./abr. 1991.

EMEFGG. Caderno de Atas de Reuniões com Professores (1974-1976). Caxias do Sul: Cristo
Redentor, 1974.

FERREIRA, Marieta de Moraes; AMADO, Janaína (Org.). Usos & abusos da história oral. 7. ed.
Rio de Janeiro: Ed. da FGV, 2005.

FILIMBERT, Ana Maria. Registros Pessoais da Professora Ana Maria Filimberti (2010-2017).
Escola Municipal de Ensino Fundamental Giuseppe Garibaldi, Caxias do Sul-RS, Cristo
Redentor, 2010.

GRAZZIOTIN. Luciane Sgarbi Santos. Memórias recompondo tempos e espaços da educação –


Bom Jesus/RS (1913-1963). 2008. 94 f. Tese (Doutorado em Educação) – Programa de Pós-
Graduação em Educação, Faculdade de Educação, Pontifícia Universidade Católica do Rio
Grande do Sul – PUC, Porto Alegre, 2008.

JULIA, Dominique. A cultura escolar como objeto histórico. Revista Brasileira de História da
Educação. Campinas, v. 1, n. 1, p. 9-43, jan./jun. 2001.

LOZANO, Jorge Eduardo Aceves. Prática e estilos de pesquisa na história oral contemporânea.
In: FERREIRA, Marieta de Moraes; AMADO, Janaína (Org.). Usos & abusos da história oral. 7.
ed. Rio de Janeiro: Editora FGV, 2005.

LUCHESE, Terciane Ângela. Modos de fazer história da educação: pensando a operação


historiográfica em temas regionais. História da Educação. Porto Alegre, v. 18, n. 43, p. 145-161,
mai./ago. 2014.

NUNES, Zilda Clarice Rosa Martins. Memória e História da Educação: entre práticas e
representações. In: Maria Cristina Leal; Marília Pimentel. (Org.). História e Memória da Escola
Nova. Rio de Janeiro: Loyola, 2003.

PESAVENTO, Sandra Jatahy. História e História Cultural. Belo Horizonte: Autêntica, 2003.

PICCOLI, João Carlos Jaccottet. A Educação Física escolar no Rio Grande do Sul. In: DA
COSTA, Lamartine (Org.). Atlas do Esporte no Brasil. Rio de Janeiro: CONFEF, p. 25-28, 2006.

RIBEIRO, Elisa Antônia. A perspectiva da entrevista na investigação qualitativa. Evidência:


olhares e pesquisa em saberes educacionais. Araxá, n. 4, p. 129-148, maio. 2008.

ROSSI, Francieli Santos. Considerações sobre a Psicomotricidade na Educação Infantil. Revista


Vozes dos Vales da UFVJM. Jequitinhonha/Mucuri, n. 1, p. 1-18, maio. 2012.

THOMPSON, Paul. A voz do passado: história oral. 2. ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra Ltda.,
1998.

TRIVIÑOS, Augusto Nibaldo Silva. Introdução à pesquisa em Ciências Sociais: a pesquisa


qualitativa em educação. São Paulo: Atlas, 1987.

VIDAL, Diana Gonçalves; SCHWARTZ, Cleonara Maria. Sobre cultura escolar e história da
educação: questões para debate. In: VIDAL, Diana Gonçalves; SCHWARTZ, Cleonara Maria
(Org.). História das culturas escolares no Brasil. Vitória: EDUFES, 2011.

VIEIRA, Alboni Marisa Dudeque Pianovski. A História Cultural e as fontes de pesquisa Revista
HISTEDBR. Campinas, n. 61, p. 367-378, mar. 2015.
VITA, Jaqueline Gedoz. Diário de Classe da 1ª série (1984): Professora Jaqueline Gedoz Vita.
Caxias do Sul/RS: Cristo Redentor, 1984.

_____. Entrevista oral sobre a organização das aulas de Educação Física no Grupo Escolar
Giuseppe Garibaldi, suas práticas e representações. Entrevista concedida a Cristian Giacomoni.
Caxias do Sul, 31 de mar. de 2017.
Gustavo da Silva Freitas*
Leonardo Costa da Cunha**
Douglas Santos Paladino Costa***

O futebol é um dos esportes mais praticados no mundo, sendo que “no Brasil é a forma mais
popular de lazer entre todas as classes sociais” (GONÇALVES, 2002, p.12). Em que pese a
imutabilidade de determinadas regras e características do jogo, não podemos descartar que o mesmo
adquire contornos diversos, a partir dos locais e/ou dos sentidos em que é praticado.
Quem nos alerta para tal condição é Damo (2002; 2003) que, ao classificar a prática a partir
de quatro diferentes matrizes, propõe que retiremos o termo de uma unicidade e passemos a
trabalhar com a ideia mais plural, portanto, “futebóis”. Entre as matrizes indicadas pelo autor está
o futebol comunitário, recorte desse estudo, tratado também a partir de outros termos como de
várzea, amador e de bairro. Ao assumir mais de um termo, o futebol comunitário carrega a
expressividade geográfica ou cultural de onde é praticado. Na região sul do Rio Grande do Sul,
encontramos pelo menos três maneiras distintas de se referir a esse futebol, já destacado em alguns
estudos: futebol amador (CORREIA; FREITAS; RIGO, 2013); futebol de várzea (RIGO;
JAHNECKA; SILVA, 2010); futebol colonial (RIGO; RODRIGUES; WALLY, 2004).
Na cidade de São José do Norte, foco regional de nosso estudo, é utilizado o termo futebol
amador, mas, independente da nomeação dada, é recorrente o envolvimento de toda uma
comunidade sem distinções em torno dessa prática, já que nela não existe “gente de um só bairro,
classe ou grupo social; e se, tampouco, é de pobres, a modalidade que a todos congrega, é sem
dúvida popular” (MAGNANI; MORGADO, 1996 p.12).
Uma das maneiras de mostrar esse envolvimento se dá a partir da formação e manutenção
de um clube. Assim, neste trabalho, contamos parte da história do Esporte Clube Bujuru, um clube
de futebol amador pertencente à cidade de São José do Norte, localizada no litoral sul do Rio Grande
do Sul, banhada pelo Oceano Atlântico e pela Lagoa dos Patos. O município compreende
uma extensão de 1.118,104 km² de terra, cuja população é de, aproximadamente,
25.503 habitantes,1 distribuída em três distritos: 1º São José do Norte; 2º Estreito; 3º Bojuru.
O E. C. Bujuru encontra-se no 3º distrito, mais especificamente na localidade chamada
Vila de Bojuru, localizada cerca de 72 km ao norte de São José do Norte.

* FURG, Doutor em Educação em Ciências.


** IFRS-Campus Rio Grande, Mestre em Educação Física.
*** Licenciado em Educação Física (FURG).
1
Números retirados do último censo feito pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), em 2010.
Nela, vivem aproximadamente 2.500 moradores que dependem economicamente
das produções de cebola e arroz, além do extrativismo vegetal.2 Em termos de divertimento,
algumas atividades são reconhecidas pelo grande envolvimento dos moradores, tais como a
devoção nas festas religiosas, a participação nos Centros de Tradições Gaúchas (CTG) e o
gosto pelo futebol amador, tanto que existem dois clubes na localidade, o E. C. Bujuruense e
o E. C. Bujuru, sendo este o mais antigo do 3º distrito.
O E. C. Bujuru foi fundado em 12 de abril de 1942, possui as cores vermelho e preto, sendo,
portanto, rubro negro. Ao longo de sua existência conquistou quatro títulos municipais (1965,
1969, 1983 e 1999), pela categoria primária,3 e dois (2010, 2012) pela categoria
secundária. 4 Permanece ativo até a presente data, possuindo sede e campo próprios.
Por não haver material documentado até o presente momento sobre o clube, identificou-se
que seria oportuno e potente produzir e disponibilizar um material organizado de algumas dessas
memórias, uma vez que é parte significativa da comunidade como um todo e, particularmente, da
história de muitas vidas. Certamente, a dispersão ou não alcance de algumas fontes impedem uma
visão totalizante sobre o clube, apenas nos oferecem uma compreensão histórica possível sobre ele
e a comunidade que lhe abriga.

Neste trabalho investimos no uso da História Oral comunitária, pois trabalha com o que se
pode chamar de micro-história, anseios, muitas vezes, menos expressivos em termos de reflexão
historiográfica que atende, em primeiro lugar, à utilidade setorial (MEIHY, 2011). A escolha dos
entrevistados partiu, portanto, dos compromissos dessa comunidade que não estavam ligadas a
questões salariais, lucros e demais proventos, mas sim, o envolvimento afetivo de amor e paixão ao
clube. Em suma, na linha de Meihy (2011), deveriam ser pessoas que destinaram parte de sua vida
a uma entidade e que nela deixaram um rastro de história.
Seguindo o critério previamente estabelecido de abranger sujeitos que assumiram diferentes
posições funcionais junto ao clube ao longo do tempo (dirigentes, jogadores e torcedores), uma rede
(MEIHY, 2011) de depoentes foi formada por escolhas do primeiro autor frente sua identificação
com o local e com o clube em estudo, mesclado a indicações feitas pelos próprios entrevistados.

2 O extrativismo é a atividade de extrair da natureza os recursos que estão à disposição do homem, sejam estes
produtos de origem animal, vegetal ou mineral. O extrativismo vegetal no município é realizado em função do
pinus, que é uma planta muito cultivada na região sul do Estado do RS.
3 Em geral, composta por atletas de maior nível técnico para jogar futebol. .
4 É uma categoria mesclada, formada por aspirantes, veteranos e outros jogadores com menor nível técnico.
No total, chegamos a um número de cinco depoentes,5 sendo eles: a) Orlando
Paladino Costa (Orlandinho), 69 anos, considerado o jogador mais vitorioso na história do
clube, sagrando-se campeão municipal em 1965, 1969 e 1983; b) João Luis Martins da Silva
(João Luis), 64 anos, que atuou como presidente e tesoureiro; c) Januário Salvador Xavier
(Salvador), 70 anos, exerceu diversas funções no clube; d) João Brasil Saraiva, 78 anos, que
foi reconhecido no clube como jogador e, também, como treinador, sagrando-se campeão
municipal em 1965 e 1969; e) Lucir Ladir da Rosa (Mari Veiga), 86 anos, teve seu primeiro
contato com o E. C. Bujuru aos seus 17 anos, quando iniciou na categoria do segundo
quadro enquanto jogador. Além das entrevistas, foram acessados documentos do clube como
atas do conselho e da direção relativos ao período de 1967 a 2005, e o livro de sócios de 1985
a 1997.
De posse do material produzido, foi realizado um cruzamento entre as entrevistas
somadas aos documentos, a fim de diversificar as informações, já que a memória coletiva é
fundamental para constituir a análise em História Oral (MEIHY, 2011). Neste cruzamento,
estabelecemos algumas linhas de análise para compreensão da história do clube, levando em
consideração momentos de maior intensidade narrativa advindas dos depoentes. Estas
intensidades foram a emergência do clube e seus primeiros anos de existência; o auge do
clube em termos de conquista de títulos e reconhecimento da comunidade; e a mudança de
sede e seus efeitos para o clube.

Por volta da década de 1930 até o início de 1940, a comunidade de Bojuru era constituída
por poucas casas que se localizavam ao redor da igreja. Nesta época, existiam muitos terrenos
vazios e poucas opções de divertimento. O futebol não era praticado pelos moradores e a
vida acabava se dividindo entre trabalho, festas católicas e carreiras6 (MARI VEIGA, 2016).
Na comunidade residia um médico conhecido por doutor Bigóes. Este era casado com a
irmã de Bolivar Roig, um fazendeiro de família tradicional e com grande quantia de terras na região.
Certo dia, Dr. Bigóes trouxe uma bola para a comunidade e, dentre os inúmeros terrenos da Vila de
Bojuru, escolheu a frente da igreja para reunir alguns jovens e os apresentar o futebol (MARI
VEIGA, 2016).

[...] e aí um dia ele inventou, agarrou uma bola, eu era guri, mas o Zaldir já era mais velho
que eu quatro anos, acho que já tinha uns quatorze anos, quinze por ai e ai ele inventou de
chamar nós pro meio do campo; aquilo ali era tudo aberto [...] ali não tinha casa, só tinha
a igreja, só tinha a igreja ali, nesse tempo [...]. (MARI VEIGA, 2016).

5 As entrevistas foram realizadas entre 11/05/16 e 8/07/16, registradas através de gravador de voz, posteriormente
transcritas e devolvidas aos entrevistados para assinatura do termo de consentimento livre e esclarecido com
identificação nominal.
6 Carreiras são corridas de cavalos em cancha reta, onde o percurso geralmente varia de 200 a 400 metros.
Doutor Bigóes, então, solicitou que todos os jovens ali presentes tirassem os casacos e
montou o campo em frente à igreja. Usando os casacos como trave, separou duas equipes e explicou
como funcionava o jogo, mas “[...] tinha cara que metia [a bola] pra frente e pra trás (risos) pro lado
que tava mais perto (risos) [...]” (MARI VEIGA, 2016).
Após este dia, os jovens da época começaram a se interessar pelo futebol e, assim, Bolivar
Roig tomou iniciativa e convocou a comunidade para uma reunião. A partir daí constituíram um
conselho entre fazendeiros e pessoas com maior poder aquisitivo, na época, para a então fundação
de um clube de futebol na localidade de Bojuru, o que acabou acontecendo em 12 de abril de 1942,
data tida como oficial do E. C. Bujuru.
Durante o processo de fundação do clube, inúmeros dilemas foram decididos em reuniões
do conselho. Entre eles, a decisão sobre as cores do clube, culminando no vermelho e preto. Nesta
questão há narrativas distintas que explicam a escolha. Uma é relatada por Mari Veiga (2016), em
que o mesmo afirma ouvir, quando criança, de seu pai, que era agricultor, que o vermelho seria em
homenagem aos maragatos, revolucionários, também conhecidos como lenços vermelhos, que
lutavam contra os chimangos, lenços brancos, que representavam as forças do Estado na
Revolução de 1923, ocorrida no Rio Grande do Sul7 (Jornal Extra Classe).
Uma segunda narrativa foi trazida por João Saraiva (2016), em que o mesmo acredita que
as cores do E. C. Bujuru tenham sido copiadas de algum clube de muita tradição e reconhecido em
todo o país, muito provavelmente o Flamengo/RJ, que, assim como o E. C. Bujuru, é rubro-negro.
A inspiração das cores no clube carioca tem a distância geográfica entre ambos como contra
argumento, o que faz pensar que essa influência tenha advindo de um clube de futebol mais
próximo. Essa inferência tem a própria memória do autor principal como referência, uma vez que
o mesmo ouvia de seu pai, filho de um fundador, que a cor rubro-negra característica do E. C.
Bujuru se deu em virtude da admiração de muitos dos fundadores pelo Grêmio Esportivo Brasil da
cidade de Pelotas/RS.
Com a localização do clube definida – frente da Igreja – e suas cores escolhidas começou-
se a montar os primeiros planteis da equipe. Em seus anos iniciais de existência ocorreu uma
exclusão racial e social, ou seja, negros e pobres não podiam jogar. Apenas as famílias mais
tradicionais da época, que eram basicamente constituídas por pessoas com grandes propriedades
rurais e muitas cabeças de gado garantiam acesso ao time. Esta segregação não perdurou por muito
tempo e, três anos após a fundação do clube, mais especificamente em 1945, os negros começaram
a participar, uma vez que houve um interesse da comunidade pela melhora técnica do futebol
jogado.

7
A Revolução de 1923 é pouco lembrada porque foi a menos heroica, menos sangrenta, mais curta e não
teve participação popular. Na verdade, não era uma disputa pelo poder político e sim por razões econômicas e
sociais localizadas no RS. Disponível em: http://www.extraclasse.org.br/edicoes/2013/04/chimangos-x-
maragatos/. Acesso em: 24/08/2016.
Após a abertura das portas do clube, aumentou a quantidade de torcedores e jogadores.
Além disso, sentiu-se a necessidade de disputar jogos com outras equipes e, como ainda não
existiam campeonatos municipais, o clube passou a visitar seus adversários, que retribuíam e
também jogavam na Vila de Bojuru. Os jogos eram aos domingos e quando a localização do clube
a ser visitado era muito distante, as saídas ocorriam pela manhã e ao chegar fazia-se um almoço
perto do campo de futebol. A torcida do clube, que era composta basicamente por familiares de
jogadores, acompanhava o time dividindo espaço nos poucos caminhões de carga que existiam na
época.
As condições da estrada eram péssimas, mas, mesmo assim, os torcedores acompanhavam
seus jogadores. Os clubes que se situavam mais próximos à Vila de Bojuru eram o E. C. Guarani e
o E. C. Divisa e a maior parte das visitas se destinavam a estes locais e, muito raramente, o clube
saía para visitar outras equipes.

[...] numa ocasião nós fomos lá no Beira-Mar8, jogar no Beira-Mar, que eu tava
te falando, descemos aqui, a descida era ruim aqui, fomos pela praia, fomos pela
praia e subimos lá no coisa, lá no Beira-Mar, era o que salvava naquele tempo era a
praia, quando era boa, também por pouco tava cheia também, aí tinha que ir no pau
pela estrada [...] (MARI VEIGA, 2016).

No início dos anos 1950, o E. C. Bujuru passou por uma situação de abandono
total, a ponto de cair as traves do campo de futebol e ninguém mais se interessar em jogar ou
administrar (MARI VEIGA, 2016). Essa desmotivação ocorreu muito provavelmente pela
falta de competição oficial, o que ocasionava jogos repetidos com os clubes da região em
forma de amistoso. Outra pista que ajuda a entender esta queda está localizada na relação
entre o trabalho e o tempo livre. Naquela época, segundo os próprios depoentes, as pessoas
quase não tinham tempo para o lazer “[...] era trabalhar, sempre trabalhar; com sete anos eu
já tava trabalhando na roça [...]” (MARI VEIGA, 2016).
A situação foi revertida a partir da chegada na Vila de Bojuru, em meados da década
de 1950, de Alfredo Lisboa, que era de Tavares, cidade vizinha à localidade. O mesmo alugou
uma casa na Vila com o objetivo de colocar um hotel e ali foi fazendo amizade. Certo dia,
tratou de fazer um treino e comunicou a todos a vontade de levantar o E. C. Bujuru novamente,
“[...] botou o chapéu embaixo do braço, assim, e pegou a pedir na volta, pedir nas casas, pedir
pros moradores; nunca me esqueci [...].” (MARI VEIGA, 2016).
Na mesma semana, Édson Palladino, que foi um dos maiores incentivadores
e patrocinadores do clube e que, mais tarde, ganharia o título de patrono do E. C. Bujuru,
pegou o dinheiro arrecadado por Alfredo Lisboa, levantou mais um montante, foi na cidade
“[...] e trouxe um fardamento novo, trouxe bola, trouxe chuteira, aí criou de novo e tá até hoje
V
8
O Grêmio Esportivo Beira-Mar é um clube de futebol amador fundado em 26 de outubro de 1938 e localizado
na 5ª secção da Barra de São José do Norte. Conquistou títulos municipais nos anos de 1995, 2005, 2006, 2008,
2009 e 2011.
[...]”. (MARI VEIGA, 2016). Após a reativação do clube, Édson Palladino, juntamente
com seu irmão Mari Palladino, fizeram uma diretoria e reorganizaram o clube, levando, num
tempo curto, ao que pode ser considerado o auge do clube.

Em 1959 foi disputado o primeiro campeonato amador de São José do Norte,


tendo a participação do E. C. Bujuru, desde o início. A reorganização do clube em termos
diretivos forçou a existência de uma diretoria constituída pelas seguintes funções:
presidente, vice-presidente, tesoureiro, secretário, guarda esporte,9 além de existir um
Conselho Deliberativo, composto pelos dez sócios mais votados, com cinco suplentes.
O presidente era eleito pelo conselho e, posteriormente, escolhia os membros para
comporem o restante da diretoria.
No entanto, não era apenas a diretoria que trabalhava para o clube. Era comum os
sócios participarem das reuniões e assumirem diferentes compromissos em termos de
sustentação, tais como limpar a sede, o campo de jogo e lavar o uniforme. Além de atuarem
como torcedores, eram requisitados para dividir trabalhos voluntários, dentro do clube
(SALVADOR, 2016).
Nos domingos em que o jogo acontecia na própria sede, a movimentação começava
dois dias antes, tornando-se uma festividade com a ida das pessoas que moravam mais
afastadas da Vila de Bojuru, para reuniões nas casas de amigos e parentes ali residentes. Era
um evento muito comentado, antes e depois de ocorrido; as pessoas tinham mais gosto pelo
esporte (SALVADOR, 2016). Chegava a “[...] tarde o campo não cabia de gente [...] ninguém
pagava nada, tudo só no amor [...].” (JOÃO SARAIVA, 2016).
Mesmo não sendo sócio, o torcedor podia assistir aos jogos do clube, gratuitamente, até
porque não existiam cercas ao redor do campo, mas “[...] quem gostava de jogar bola, então
tinha que ser sócio [...].” (JOÃO SARAIVA, 2016). Com o tempo, Mari Palladino, presidente
na época, liberou os jogadores de pagarem as mensalidades, pois além de representarem e
lutarem pelo clube, dentro de campo, já arcavam com a compra de chuteiras. (JOÃO
SARAIVA, 2016).
O clube possuía um programa de sócios com mensalidades que
eram aumentadas gradativamente por decisão em reuniões. 10 Os valores não eram
suficientes para manter as despesas do clube, por isso, promoviam outros eventos, como bailes
e algumas rifas, já que “[...] naquele tempo bingo não faziam, não existia negócio de bingo.

9 Guarda Esporte era o nome dado ao responsável pelos materiais esportivos do clube: camisas, calções, meias,
toalhas, bolas, entre outros materiais. .
10 Em 1970 era pago mensalmente um cruzeiro novo por mês (NCr$ 1,00). Em 1974, a quantia passou para três

cruzeiros novos mensais (NCr$ 3,00) e, em 1978, para dez cruzeiros novos mensais (NCr$ 10,00). Segundo
Salvador (2016), em 1965, quando atuou como tesoureiro do clube, existia 180 sócios com mensalidades em dia.
O mesmo ainda afirma que, naquela época, “[...] não precisava procurar os sócios para cobrar; os sócios
procuravam o tesoureiro”. Por outro lado, estes 180 podem estar superdimensionados pelo depoente como uma
forma de engrandecimento do clube pelos laços afetivos mantidos com o mesmo. Além disso, os livros de sócios
da década de 60 mostram que o número total de associados girava em torno de 80 pessoas.
[...] depois é que foi inventado esse tal de bingo. Tu vês naquele tempo se faz um bingo dava
dinheiro [...]” (MARI VEIGA, 2016).
Como o valor da mensalidade não era muito alto, a comunidade era convocada a contribuir
financeiramente com o clube. Mesmo que não tivesse muitos gastos, por vezes, os membros da
diretoria saíam nas casas pedindo, faziam uma campanha para manter o patrimônio, uma vez que
as despesas eram basicamente com transporte e fardamentos (JOÃO SARAIVA, 2016). A ajuda da
comunidade não vinha apenas através de dinheiro em espécie, mas também na forma de terneiros
e ovelhas que, posteriormente a diretoria “[...] vendia ou fazia uma rifa [...] e hoje terminou isso aí
[...]” (JOÃO SARAIVA, 2016). As rifas eram bem diferentes do que conhecemos, atualmente, se
configurando numa espécie de leilão e “[...] aquele que desse o maior lance ficava com o prêmio.
Aí só dava eles, os grandões, aí né tchê (risos) [...]” (JOÃO SARAIVA, 2016).
A parte financeira, ainda que importante, não era o maior problema na época. As grandes
dificuldades para disputar os jogos e as competições acabavam sendo o transporte e a comunicação
entre as localidades. O transporte era pelo motivo das estradas de terra ficarem inviáveis, tanto em
dias de chuva quanto em secas de longo período. Já a comunicação, comenta um dos
depoentes, gerava contratempos:“[...] uma vez fomos lá no Oriente11, saímos daqui de manhã
cedo, chegamos no outro dia 9 horas da manhã [...] o campo tava cheio d’água, não deu jogo
[...] não tinha telefone, não tinha nada [...]” (JOÃO SARAIVA, 2016).
Nesses jogos, fora de casa, o time era acompanhado por alguns torcedores. Não saíam em
maior quantidade porque os meios de transporte da época eram limitados e, normalmente, o clube
partia para o jogo em apenas um caminhão (MARI VEIGA, 2016). Os privilegiados acabavam
sendo familiares de jogadores, pais, filhos, esposas, membros da diretoria (MARI VEIGA, 2016)
e, quando sobrava lugar, o restante da torcida acompanhava.
Quanto aos jogadores, nas décadas de 1960 e 1970, já se percebia uma preocupação com a
preparação física no clube, pois, segundo João Saraiva (2016), os treinos aconteciam duas vezes
por semana. Como muitos que integravam a equipe trabalhavam noite e dia, por intermédio da
diretoria acabaram ganhando liberação dos pais para treinarem: “[...] tinha que lavrar até às três
horas pra sair a pé, não podia abandonar o serviço, tinha que sair naquela hora [...]; saia a pé daqui
correndo e vinha correndo (risos) [...].” O treino começava às três e trinta; os jogadores eram todos
da comunidade (JOÃO SARAIVA, 2016). Além disso, existia um certo controle dos jogadores
exercido pela direção e outra parte pela própria comunidade, pois “[...] tinha gente que cuidava nós
quando tinha jogo [...] o treinador se pegasse o nego lá tomando uns tragos de noite cortava e botava
outro [...]”, demonstrando a cobrança e organização do clube (JOÃO SARAIVA, 2016).

11O Oriente é uma localidade que fica, aproximadamente, 70 km de distância da Vila de Bojuru e pertencente
ao 1º Distrito de São José do Norte. Lá está situado o E. C. Oriente, um clube de futebol amador, fundado em
1938 e de muita tradição, que conquistou diversos títulos municipais: 1961, 1964, 1968, 1970, 1971, 1975 e
recentemente, 2015.
Naquele período, somente os moradores da localidade de Bojuru compunham as equipes.
O primeiro quadro – equipe principal – era formado pelos melhores jogadores tecnicamente, o
restante disputava vaga no segundo quadro e, mesmo assim, muitos sobravam. Normalmente, o
jogador que se destacasse no segundo quadro ganhava uma oportunidade no primeiro, “[...] o cara
tinha que se esforçar [...] tinha que ter garra para subir [...]” (JOÃO SARAIVA, 2016). O
responsável por avaliar as condições do jogador ascender do segundo para o primeiro quadro era o
treinador da equipe principal. Foi desse modo que o clube conseguiu constituir com os anos uma
equipe que regularmente disputava as primeiras colocações, sagrando-se campeã municipal, nos
anos de 1965 e 1969, e vice em 1966.
Da metade da década de 1960 até o início de 1970 foram surgindo novos clubes, tanto nas
regiões que ficavam aos arredores quanto na própria Vila, e, assim, a torcida do E. C. Bujuru
começou a se dividir, pois “[...] jogadores de dentro do nosso time que jogavam no nosso segundo
[quadro] foram pra outros times; iam lá e jogavam no primeiro [...]”. Entre esses outros times
fundados está o E. C. Bujuruense, cuja dissidência produziu uma rivalidade constante com o Bujuru.
Enquanto que o segundo foi fundado pela família dos Ferreira e do Costa, pessoas com mais posses
na localidade, a família que fundou o E. C. Bujuruense era de origem mais humilde, tido por muitos
como o time dos pobres (JOÃO SARAIVA, 2016).
Em meados da década de 1970, o E. C. Bujuru passou a se situar em um novo campo, onde
aos poucos foi sendo construído o patrimônio que o clube possui até os dias atuais. As primeiras
obras foram patrocinadas por Édson Costa Palladino “[...] o vestiário e o fechamento do campo
[com tela] [...] aquilo ali foi liderado por ele [...] acredito que em torno de 80% dos recursos dele
mesmo [...]” (JOÃO LUIS, 2016).

O ano de 1983 acabou se tornando um dos mais importantes da história do E. C.


Bujuru, já que além de iniciar a construção da sede social, o clube tornou-se campeão
municipal após quatorze anos. O clube ainda se mantinha financeiramente mediante as
mensalidades,12 pagas pelos sócios, e contava com o auxílio de promoções que eram
realizadas esporadicamente, tanto pela diretoria como por voluntários (JOÃO LUIS, 2016).
Além disso, o reforço do caixa advinha, também, de um grupo de resistentes, que eram
torcedores com maior poder aquisitivo convocados para ajudar em momentos de baixa
financeira.
A sede social, por sinal, foi concluída em 1984 devido ao somatório das
mensalidades e promoções, mas, sobretudo, com o auxílio da lista de resistentes. É bom
ponderar que a finalização da obra, também contou com o apoio de indivíduos de fora da
comunidade, mostrando uma mobilização geral em torno da manutenção do clube e,
consequentemente, das movimentações na

12
O livro dos sócios mostra que em 1985 o clube chegou a possuir 84 associados em dia.
localidade a partir do futebol: “[...] eu me lembro perfeitamente, de pessoas de outros clubes que
nos ajudaram na época com caminhão de areia, caminhão de pedra, cimento, pessoas que nem da
localidade eram [...]” (JOÃO LUIS, 2016).
A mudança de localização do clube, segundo os depoentes, proporcionou algumas
vantagens. Primeiro, porque no campo de origem, o espaço era limitado e aberto. Afora isso,
comprar uma chácara com mais de 5 hectares e construir um campo de primeira linha em um local
fechado possibilitaria melhor exploração financeira (ORLANDO, 2016). Fechar o campo e vender
ingressos era uma estratégia que alguns clubes já vinham fazendo no início da década de 1980 no
município. Essa prática permitia uma maior arrecadação financeira e, consequentemente, a
possibilidade de reforçar a equipe, trazendo jogadores mais qualificados. Esse procedimento
começou, primeiramente, nas equipes localizadas dentro da cidade “[...] o Liberal e o Ferrari tinham
jogadores que vinham de times profissionais, como de Pelotas e Rio Grande e eles pagavam
jogadores. Chegou um ponto que outros times começaram a pagar também [...] e começou a
encarecer o futebol [...].” (ORLANDO, 2016).
Quando os clubes da cidade começaram a pagar jogadores, o E. C. Bujuru se viu obrigado
a fazer o mesmo, já que “[...] nós não tínhamos pra medir força com eles; nós fomos buscar em
Tavares, Mostardas [...]” (SALVADOR, 2016). Em 1983, ano que o clube sagrou-se campeão
municipal, o então presidente João Luis Martins trouxe de Tavares, Geraldino, o primeiro jogador
a ser remunerado pelo E. C. Bujuru (JOÃO SARAIVA, 2016). Deste ano em diante, o clube passou
a pagar grande parte de seu elenco, compensando seus atletas tanto em dinheiro quanto em outros
tipos de benefícios, como materiais de construção e eventuais despesas com transporte e
alimentação em dias de jogos.
A partir deste momento, muitos clubes entraram em decadência e acabaram fechando seus
portões. Isso porque os jogadores qualificados passaram a ser mais disputados e se valorizaram.
Com isso, os clubes com maiores recursos acabaram formando as melhores equipes e,
consequentemente, disputando os títulos entre si. O clube pequeno que não tinha condições
financeiras de formar bons times, acabava indo “[...] só pra bonito. Sabe que não vai ser campeão,
não é? A dificuldade é essa aí [...].” (MARI VEIGA, 2016).
Para disputar o campeonato de 1999, que ficou conhecido como o último título de expressão
do clube, o então presidente da época, Edson Afonso da Silva, devido às dificuldades financeiras
para montar uma equipe de futebol, fez um apelo aos torcedores. Solicitou a colaboração de, no
mínimo, vinte e cinco pessoas com a quantia de R$10,00 (dez reais) mensais durante oito meses. A
comunidade o atendeu e a listagem contou com quarenta e dois colaboradores. Coincidência ou
não, a última conquista veio com o último ano de forte apoio da comunidade.
Com a crescente valorização dos jogadores, ficou cada vez mais difícil equilibrar os gastos
na montagem da equipe, apenas com as arrecadações de vendas de ingressos. Até por que os gastos
não eram apenas com jogadores, mas, sim, com arbitragem, transporte e fardamentos. Essa falta de
recursos começou a se agravar no fim dos anos 1990, quando o clube cancelou o programa de sócios
que mantinha devido o baixo número de pagantes, que caiu de 84 em dia, no ano de 1985,
para apenas 8, em 1997.
Essa carência financeira é consequência da soma de uma série de fatores que vem, há
algum tempo, causando a diminuição do número de torcedores do clube. O primeiro motivo
começou já nas décadas de 1960 e 1970, com o surgimento de novas equipes em localidades
próximas à Vila de Bojuru. No início, “[...] o Bujuru convergia, o pessoal de Capão da Areia,
Curral Velho, várias localidades torciam pro Bujuru [...]” (ORLANDO, 2016). Com os
anos, os moradores dessas localidades foram fundando suas próprias equipes,
consequentemente, diminuindo a torcida do clube.
Um segundo motivo que pode ser citado é resultante do envelhecimento e falecimento
dos principais responsáveis pela organização do clube em décadas anteriores. Aqueles que
ainda estão vivos, apenas torcem, mas não se envolvem com a vida diária do clube na parte
organizativa: “[...] eu acho que falta liderança [...] alguém pra empurrar, fazer um
chamamento no pessoal, que retornem de novo [...]” (JOÃO LUIS, 2016). O retorno
dessas pessoas mais experientes para trabalhar junto com os mais jovens é tido pela
comunidade como uma maneira de estancar o declínio dessa falta de envolvimento. Além de
aumentar o número de colaboradores, essas figuras mais experientes dariam a credibilidade
para conquistar apoio dos torcedores e retomar o crescimento estrutural e futebolístico.
Em terceiro lugar, há o diagnóstico de que em 2016, a torcida do clube é “[...] 20, 30
por cento do que era [...] o Bojuru hoje tá com muita igreja evangélica. Então, isso ai tira
muita gente do futebol [...]” (SALVADOR, 2016). Após o fim dos anos 1990 e início de 2000,
começaram a surgir inúmeras igrejas na comunidade de Bojuru, sobretudo as neopentecostais.
Segundo Carmen Rial (2013), para os crentes dessa igreja, esportes e apostas, em geral, são
proibidos, pois alegam que jogos e divertimentos são “coisa do Diabo” (RIAL, 2013). Assim,
muitas pessoas que antes colaboravam com o clube acabaram escolhendo a religião e
deixando de jogar e assistir aos jogos.
Atualmente, o clube disputa os campeonatos municipais, regularmente, não possui
sócios e se mantém com promoções de eventos (bingos) e venda de ingressos para os jogos,
o que traz limites na formação tecnicamente qualificada das equipes. A relação de dependência
entre conquista de títulos e recursos financeiros é consequência de um processo que teve
início décadas atrás, primeiramente, com clubes localizados no centro da cidade, quando
alguns dirigentes resolveram investir no patrimônio dos clubes, fechando campos e
construindo sedes com o intuito de poder obter lucros com a venda de bebidas, alugueis,
promoções de eventos e, principalmente, com a cobrança de ingressos. Com maiores
arrecadações, os clubes começaram a trazer jogadores de fora com o objetivo de reforçar a
condição técnica de seus plantéis. Para Gomes (2013), a necessidade de contratar atletas,
devido à escassez de qualidade dos jogadores da comunidade, é caracterizada como um
processo de semiprofissionalização dos clubes amadores.
O desejo dos clubes em ter os melhores jogadores em seus planteis acabou gerando disputas
que valorizaram os mesmos e encareceram o futebol amador no município: “a definição do
valor
valor da remuneração paga aos jogadores de futebol amador respeita, em escala reduzida, as
chamadas leis de mercado, já que leva em conta: procura, eficiência, competência,
mérito, experiência, comprometimento, qualidade etc.” (GOMES, 2013 p. 127).
O problema é que, com o tempo, ao invés de remunerar dois ou três jogadores, os clubes
passaram a recompensar grande parte do plantel e isso é visto “por alguns mandatários de clubes
como algo negativo, que causa, a médio prazo, uma ‘queda’ do time” (GOMES, 2013 p.126). Essa
queda começa pela precarização do clube, já que ao invés de investir na manutenção e ampliação
do patrimônio, os mesmos se veem obrigados a formar equipes bem remuneradas se quiserem ter
alguma chance de conquistar títulos. Mas, como muitos clubes não arrecadam o suficiente para isso,
acabam optando por não participar da competição.
Ultimamente, além das promoções e venda de ingressos, os clubes detentores dos melhores
planteis são patrocinados por empresários, que não lucram financeiramente com seus
investimentos, apenas apoiam o time para o qual torcem, “pois não se tem qualquer garantia de que
haverá retorno para o investidor.” (GOMES, 2013 p. 127). Sem os investimentos desses
empresários, a equipe consegue contratar apenas parte do elenco, o que pode não ser satisfatório se
o objetivo maior for conquistar o campeonato, e, isso, é exatamente o que vem ocorrendo com o E.
C. Bujuru.

Em síntese, através deste estudo buscamos reunir e produzir registros históricos sobre o E.
C. Bujuru, alcançando elementos que dessem condições de compreender sua emergência, seu
processo de reconhecimento junto à comunidade e os aspectos que sustentaram sua existência por
tantos anos.
Deparamo-nos com um clube surgido a partir do desejo de um grupo de amigos em
proporcionar mais uma forma de lazer para seus familiares, entre as poucas opções de divertimento
existentes em meados do século XX. Seus fundadores pertenciam, no geral, a três famílias da região
caracterizadas por possuírem grandes propriedades rurais. Em seus primeiros anos de existência,
passou por algumas instabilidades diretivas refletindo em restrições sociais e raciais na constituição
das equipes do clube.
Passado este instante, o clube tomou grandes proporções quanto ao número de torcedores e
a quantidade de sócios, atingindo o auge nas décadas de 1960 e 1970 com a formação de uma
diretoria distribuída em funções, culminando com a conquista de títulos. Este modelo de
organização permitiu rotinas no clube que incluía treinos semanais, amistosos de pré-temporada e
compromissos dos jogadores com o clube, algo que durou até os anos 1990.
Chegado este período, os clubes passaram a ser formados por jogadores de cidades vizinhas,
uma vez que foi reduzindo o número de interessados da própria comunidade. Essa prática causou a
precarização dos clubes maiores e decretou a falência daqueles com menores estruturas, já que os
mesmos passaram a sobreviver através de arrecadações e vendas de ingressos, para poder manter
planteis devido à valorização dos jogadores mais qualificados causada pela concorrência entre os
clubes. Fatores como aumento significativo de igrejas nas comunidades, carência de liderança e
falta de qualidade dos jogadores, também contribuíram para agravar a situação de esfriamento do
futebol amador do município de São José do Norte/RS, pelo menos em termos de quantidade de
clubes e interesse da comunidade.

CORREIA, Jones Mendes; FREITAS, Gustavo da Silva; RIGO, Luiz Carlos. Narrativas de
memórias esportivas: a emergência de clubes de futebol amadores na Ilha dos Marinheiros – Rio
Grande/RS. Revista Esporte e Sociedade, a. 8, n. 21, março 2013.

CUNHA, Leonardo C. et. al. Sport Club Barrense: memórias de um clube de futebol amador do
município de São José do Norte/RS. Espaço Plural, a. XIV, n. 29, 2º sem. de 2013, p. 67-89.

CUNHA, Leonardo Costa. Entre a Laguna e o Oceano: memórias de um futebol. 2012.


Dissertação de Mestrado. Mestrado em Educação Física. Universidade Federal de Pelotas,
Pelotas.

DAMO, Arlei Sander. Monopólio estético e diversidade configuracional no futebol brasileiro. In.
Movimento, Porto Alegre, v. 9, n. 2, p. 129-156, maio/agosto de 2003.

GOMES, Lívio Rodrigues. Entre campos e cantos: para uma sociologia do futebol amador. 2013.
Dissertação de Mestrado. Mestrado em Sociologia. Universidade Federal de Minas Gerais, Belo
Horizonte, abril 2013.

GONÇALVES, Alana. Futebol Amador: Campo Emergente de Sociabilidade. 2002. Dissertação


de Mestrado. Mestrado em Sociologia. Universidade Federal do Ceará, Fortaleza, 2002.

IBGE. Instituto Brasileiro de Geografia e estatística. Disponível em:


<http://www.ibge.gov.br/home/>. Acesso em: 01/09/2015.

Jornal Extra Classe. Disponível em: <https://goo.gl/fhYxJk> Acesso em: 24/08/2016.

MAGNANI, José Guilherme; MORGADO, Naira. Futebol de Várzea também é patrimônio.


Revista do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional. São Paulo: n. 24, p.175-184,1996.

MEIHY, José Carlos Sebe Bom; RIBEIRO, Suzana L. Salgado. Guia prático de História Oral:
para empresas, universidades, comunidades, famílias. São Paulo: Contexto, 2011.
MEIHY, José Carlos Sebe Bom; HOLANDA, Fabíola. História Oral: como fazer, como pensar.
2. ed., São Paulo: Contexto, 2011.

MELO, Victor et al. Pesquisa Histórica e História do Esporte. Rio de Janeiro: 7 letras, 2013.

RIAL, Carmen. O “ovo do Diabo” e os jogadores de futebol como pastores neopentecostais.


Florianópolis: Ed. da UFSC, 2013.

RIGO, Luiz Carlos; JAHNECKA Luciano; SILVA Inácio Crochemore da. Notas etnográficas
sobre o futebol de várzea. In. Movimento, Porto Alegre, v. 16, n. 03, p.155-179, julho/setembro
de 2010.

RIGO, Luiz Carlos; RODRIGUES, Camila Hruschka; WALLY, Raquel do Sacramento. In. VII
Encontro Estadual de História. História, memória e patrimônio. ANPUH/RS, 2004.
Estela Denise Schütz Brito

Ela só tinha um remédio para se melhorar: era contar sua história. Eu disse que a escutava,
demorasse o tempo que demorasse. [...]. Então, me contou a sua história (COUTO, 1992,
p. 66).

O ato de contar e ouvir histórias é uma característica da civilização humana, tradição muito
antiga, não se sabendo ao certo sua origem. Entretanto, povos de diferentes lugares e culturas,
tinham os mais velhos como os guardiões de suas histórias e memórias. Esses, com a missão de
preservar e dar continuidade a sua tradição, reuniam-se com os mais novos, geralmente em volta
de uma fogueira, para narrarem suas vivências, experiências e histórias que ouviram em outros
tempos e espaços.
Nesse sentido, o trabalho que por ora apresento, também se utiliza da prática de contar e
ouvir histórias. Para isso, faço uso da História Oral, enquanto metodologia de pesquisa, tomando-a
como uma ponte entre teoria e prática (AMADO; FERREIRA, 1998), e também com a finalidade
de ligar a entrevistada a mim, criando uma “ponte interpessoal” (ERRANTE, 2000, p. 153) na
escuta de suas histórias e memórias.
Diferentemente de uma pesquisa utilizando documentos escritos, ditos “oficiais”, a pesquisa
envolvendo a História Oral traz uma aproximação entre entrevistador e entrevistado. Pessoas que,
em muitos casos, antes nem se conheciam, acabam sendo aproximados por um objetivo em comum:
conservar a narração de uma experiência passada. Nesse sentido, “uma pesquisa é um compromisso
afetivo, um trabalho ombro a ombro com o sujeito da pesquisa” (BOSI, 1987, p. 02).
Costa (2014, p. 51) define o pesquisador que utiliza a História Oral como um “caçador do
invisível”, visto que este sai em busca do que não foi dito e do que não se encontra escrito. Sua
missão é a de se aproximar o máximo possível da voz de quem narra a história. Sabemos que a
memória é composta por lembranças e esquecimentos. Entretanto, cabe salientar que não devemos

* Mestranda do PPG em Educação na Unisinos. Bolsista Capes/Proex.


nos preocupar com o que não foi dito, com o que foi esquecido ou deixado de ser narrado no
momento da entrevista, mas sim, devemos buscar valorizar o que o sujeito lembrou e escolheu
contar no momento da entrevista para deixar eternizado na história (BOSI, 1987).
As narrativas de memórias produzidas a partir da entrevista de História Oral, que utilizo
nesta escrita, são frutos da pesquisa que venho realizando para minha dissertação de Mestrado em
Educação.1 As narrativas estão vinculadas à Escola Normal Evangélica (ENE), no período em
que esta se localizava na cidade de São Leopoldo/RS. A ENE inicia suas atividades em 1909, na
cidade de Taquari/RS, passando pela cidade de Santa Cruz do Sul/RS, até chegar à cidade de São
Leopoldo em 1926, permanecendo nela por quarenta anos. Sua mudança ocorre em 1966 para a
cidade de Ivoti/RS, localidade em que a instituição se encontra nos dias atuais, porém sob o nome
de Instituto Ivoti. Todas suas mudanças de cidade foram no sentido de ampliar seu espaço físico
devido ao aumento no número de alunos.
Neste trabalho, opero com a narrativa de memória da ex-aluna Roswitha Dreher, hoje com
73 anos, moradora na cidade de Porto Alegre/RS e que estudou em regime de internato nesta
instituição, entre os anos de 1958 a 1962. Meu primeiro contato com Roswitha ocorreu na
cidade de Ivoti em 2016, por conta de um evento promovido anualmente na instituição,
intitulado “Dia do ex-aluno”2. Após mantermos contato por alguns meses, marcamos nossa
entrevista.
As entrevistas, conforme destaca Errante (2000, p. 143), são “eventos que ‘contam’”.
Nossa entrevista de História Oral não foi diferente; foi um evento que muito me contou. Fui
recepcionada em sua casa em fevereiro de 2017, com uma mesa organizada de lembranças:
fotos, diários, álbuns... objetos organizados e guardados por ela por longos anos e que,
honrosamente, me foi apresentado naquela tarde de verão. Percebi naqueles objetos guardados,
o modo como Roswitha arquivou a sua vida (ARTIÈRES, 1998).
Seus diários, estão marcados por recados de ex-colegas e amigos que fez durante o
período em que estudou na Escola Normal. Pessoas que até nem foram seus colegas
diretamente de turma assinaram seu diário, recorda ela. Nestes diários, encontrei marcas e
laços de histórias que se constituíram dentro de um espaço de formação, e que hoje trazem
boas recordações à sua dona. Nesta perspectiva, Maria Tereza dos Santos Cunha escreve que:

Os diários íntimos, na qualidade de fontes históricas, prestam–se a um processo de


interpretação, uma vez que comportam o simbólico podendo–se, através deles, compor
histórias. Laços, fios e nós entre os indivíduos vão, pela narrativa, formando tecidos,
malhas, redes, história de encontros, de desencontros, de proximidades, de distâncias
perceptíveis. (CUNHA, 2007, p. 47).

1 Trabalho intitulado “Memórias de ex-alunos(as) do internato da Escola Normal Evangélica em São Leopoldo/
RS: práticas cotidianas e Cultura Escolar (1950-1960).
2
O dia do ex-aluno é comemorado todos os anos no Instituto Ivoti, no último domingo do mês de agosto. Esta
festividade é organizada pela AEXEEI (Associação dos Ex-Alunos da Escola Evangélica Ivoti).
As fotografias que me foram apresentadas em nossa entrevista, muito bem guardadas e
organizadas em um álbum, confeccionado pela própria Roswitha, registraram momentos
importantes vivenciados por ela em seu período como aluna interna. Nelas, pude identificar
momentos, espaços e práticas realizadas na Escola Normal, presentes ao longo da sua narrativa. As
fotografias são documentos importantes em um trabalho de pesquisa pois, para além da narrativa,
as “imagens podem testemunhar o que não pode ser colocado em palavras” (BURKE, 2004, p. 38).
A memória, conforme Amado (1995, p.132), tem “a capacidade de transitar livremente entre
os diversos tempos”. Por este motivo, a entrevista com Roswitha foi um momento de rememorar,
não somente seu tempo como aluna da Escola Normal Evangélica, como também diversas
passagens de sua vida que, de certa forma, foram evocadas a partir das memórias como ex-aluna
nesta instituição. Por este motivo, tivemos uma narrativa longa, chegando a quase quatro horas de
gravação. Contudo, não me detive a limitar um tempo para a entrevista, visto que “lembrança puxa
lembrança” (BOSI, 1987, p. 03). Somete, me coloquei à disposição para ouvir o que ela tinha a me
contar, “demorasse o tempo que demorasse”.

Halbwachs (1990, p. 60) explica que “não é na história aprendida, é na história vivida que
se apoia nossa memória”. Desta forma, Roswitha iniciou sua narrativa contando suas vivências,
sendo filha de pastor. Relatou que pastores não permanecem muito tempo em uma mesma
localidade, por este motivo, ela nasceu na cidade de Três de Maio/RS, em 11 de agosto de 1945,
cidade que, na época, era distrito de Santa Rosa/RS. Mas, passou toda sua infância em Lajeado/RS,
devido a transferência de paróquia de seu pai. Nesta cidade cursou o jardim de infância, os primeiros
anos do colegial no colégio Alberto Torres e, foi nesta escola, que ficou conhecendo a Escola
Normal Evangélica.
A ida para o internato foi uma escolha sua. Diferentemente de outras pessoas que são
encaminhadas para o internato, ela conta com muita satisfação sobre a sua opção:

Eu conheci internato como castigo, como punição para quem não é aplicado na escola ou
quem não se coaduna ou obedece em casa, esse era o sistema de internato que eu conhecia
naquele tempo. Mas aí, quando eu vi aquele grupo lá em Lajeado, homens e mulheres
convivendo e tendo uma vida, assim, animada, cantando junto, e dançando junto, fazendo
teatro junto, quando eles saíram do ônibus então, aquela farra né? Aí eu pensei assim:
“não, eu quero isso ‘pra’ mim, eu quero ser professora, eu quero isso aí pra mim”.
(DREHER, 2017, grifo meu).

Roswitha recorda que seu pai foi novamente transferido para a cidade de Porto Alegre/RS,
no ano de 1957, e, por conta disso, toda a família o acompanhou. Ele, além de pastor, era professor
em escolas particulares e, neste ano de mudança para outra cidade, ela encerrou seu ano letivo na
escola em que seu pai estava lecionando. Por ele ser pastor da mesma igreja a qual a Escola Normal
era vinculada, o auxílio de bolsa de estudos para ela estudar nesta instituição ficava mais fácil.
Porém, mesmo com esta facilidade, todos tinham que prestar um exame de admissão no fim do ano
para ingressar na escola: “eu tive que fazer um exame de admissão, uma provinha. Então, eu fui
‘pra’ lá em dezembro de malinha e tudo [...] e fiquei de um dia ‘pro’ outro onde tinha um tipo uma
prova de seleção”. (DREHER, 2017).
Sobre o tempo de Curso Normal, Roswitha explica que eram quatro anos de estudos, mas
recorda-se que ela não tinha idade para ingressar no primeiro ano do normal, pois deveria estar com
treze anos ao iniciar o ano letivo e ela havia completado doze anos em agosto. A procura para
ingressar na escola era muito grande e, assim, relata: “E consegui a vaga, mesmo porque eu não fui
para a primeira série eu fiquei na pré-escola né? Acabei fazendo de novo o quinto ano, vamos dizer,
ou a admissão” (DREHER, 2017).
Essa escolha por realizar novamente a quinta série, foi uma forma que Roswitha encontrou
para garantir sua vaga no Curso Normal para o próximo ano de estudos na escola e, por este motivo,
ela ficou esse um ano a mais como aluna interna, o que avalia ter sido muito bom: “Então esse ano
eu pude assim pegar tudo isso aí. Era ouvinte, já em algumas cadeiras na primeira série, e eu
estudava piano, estudava flauta, estudava harmônio, me destaquei no esporte. Então, eu aproveitei
e desenvolvi mais aquilo” (DREHER, 2017).
A Escola Normal Evangélica recebia alunos de vários lugares do Brasil, rememora
Roswitha. Alunos que se destacavam em escolas do interior, eram indicados por professores ou, até
mesmo, pelos pastores das comunidades locais. Esses, procuravam enviar seus melhores alunos,
com indicação para concorrerem às bolsas de estudos. Roswitha recorda-se de um colega que teve
e que se formou com ela de Teófilo Otoni/MG, muitas colegas de Santa Catarina, inclusive da
colônia de Witmarsum/SC, meninas de São Paulo/SP, Rio de Janeiro/RJ e Brasília/DF. Ela tinha
condições de ir aos finais de semana para casa, pois sua família residia em Porto Alegre/RS. Mas
os colegas distantes, só podiam visitar a família uma ou, no máximo, duas vezes ao ano, nas férias
de inverno e verão; isso devido ao custo e à distância. Por isso, muitas vezes, Roswitha também
levava suas colegas para sua casa, a fim de passarem um final de semana com sua família.
Figura 1 – Grupo de Formandos da ENE (1962)

Fonte: Arquivo Roswitha Dreher.


A figura 1 faz referência ao dia de formatura da turma do Curso Normal de Roswitha em
dezembro de 1962. A imagem nos chama a atenção para o grande número de homens que a Escola
Normal Evangélica possuía. Enquanto hoje, a procura pelo Curso Normal se dá mais pelo público
feminino. Na década de 1960, as turmas eram divididas quase que em igual número entre homens
e mulheres. A turma que se formou com ela, não teve o mesmo número de alunos ingressantes no
primeiro ano do curso. Roswitha atenta para o fato de que, na turma de primeiro ano ingressaram
com ela em torno de 36 alunos. Porém, ao longo do curso, houve desistências: uns por saudade de
casa, não aguentaram ficar longe da família; outros não aguentaram por outros motivos. E tiveram,
também, alguns colegas homens, que tiveram que servir ao Exército, entrando no serviço militar
em São Leopoldo/RS, e acabaram se formando um ano depois, em outra turma.
Sobre o uso do uniforme, Roswitha lembrou-se que a escola tinha os uniformes especiais
para eventos, para a prática de esportes, mas afirmou que não era obrigatório no dia-a-dia. Para as
aulas usavam roupas normais. Somente quando saíam da escola, o uso do uniforme se fazia
obrigatório. Segundo ela, o uniforme servia para distinguir os alunos das diversas escolas e também
uma forma de reconhecer os estudantes quando estavam a passeio pela cidade. Assim, acaba se
instaurando uma forma das outras pessoas vigiarem os alunos da Escola Normal, quando estes não
estavam nas dimensões da escola, como as saídas ao cinema, aos cultos e nas voltas pelo centro da
cidade:
E a gente se divertiu bastante, ‘bah’! Eu acho que foi o meu melhor tempo de vida, porque
a gente tinha uma liberdade vigiada. Mas se tu andava no trâmite, não tinha muitas coisas
muito diferentes. Daí tu era bem... gozava de prestígio. (DREHER, 2017).

A História Cultural suscitou o estudo de diferentes temas e objetos e, com isso, se passou a
considerar que os sujeitos, independentemente de sua posição econômica e social, são produtoras e
receptoras de cultura. Com o advento da História Cultural, estudos em torno de conceitos como
práticas e táticas ganharam destaques, em especial nos estudos de Roger Chartier e Michel de
Certeau.
Ao estudar os modos de leitura da população francesa, Roger Chartier entendeu que as
práticas estão interligadas às formas de apropriação e representação que as pessoas realizam de
determinados fatos e objetos. O historiador explica que “a história deve ser entendida como um
estudo dos processos com os quais se constrói um sentido” e que são “as práticas que, pluralmente,
contraditoriamente, dão significado ao mundo” (CHARTIER, 1987, p. 27).
Michel de Certeau dirigiu seus estudos também para as práticas, mas voltando seu olhar
para as práticas cotidianas, os modos de fazer (CERTEAU, 1994). Neste sentido, pesquisou os
modos de fazer com táticas e estratégias desenvolvidas pelos sujeitos em seu dia-a-dia, concluindo
que “a tática é determinada pela ausência de poder, assim como a estratégia é organizada pelo
postulado de um poder” (CERTEAU, 1994, p. 101). Em suma, a tática é a arte do fraco e a estratégia
vem de um lugar de poder.
Escrever sobre uma escola ou instituição de ensino, é pesquisar e escrever sobre a cultura
que ela produz em um determinado tempo e espaço. Nas últimas décadas, a cultura escolar tem
ganhado destaque em estudos e servindo de tema de pesquisa para muitos pesquisadores
contemporâneos. Dentre esses, se destacam trabalhos de André Chervel, com os estudos referente
às disciplinas escolares; de Vinão Frago, dedicando-se nas pesquisas sobre os tempos e os espaços
e Dominique Julia que escreveu sobre as práticas escolares.
O termo cultura escolar é conceituado de forma a se complementar por Frago (1995; 2000)
e Julia (2001). Para Frago (1995, p. 68-69), essa expressão vem a ser um “conjunto de aspectos
institucionalizados que caracterizan a la escuela como organización”. E complementa sua reflexão
reconhecendo que fazem parte desse conjunto: “prácticas y conductas, modos de vida, hábitos y
ritos, [...]”. Dominique Julia (2001), já nos provoca a pensar a escola enquanto uma “caixa preta”,
que precisa ser aberta para entendê-la. Sua definição para o termo, vem ao encontro do proposto
por Frago, especificando que cultura escolar é
[...] um conjunto de normas que definem conhecimentos a ensinar e condutas a inculcar,
e um conjunto de práticas que permitem a transmissão desses conhecimentos e a
incorporação desses comportamentos; normas e práticas coordenadas a finalidades que
podem variar segundo as épocas (finalidades religiosas, sociopolíticas ou simplesmente
de socialização). Normas e práticas não podem ser analisadas sem se levar em conta o
corpo profissional dos agentes que são chamados a obedecer a essas ordens e, portanto, a
utilizar dispositivos pedagógicos encarregados de facilitar sua aplicação, a saber, os
professores primários e os demais professores. (JULIA, 2001, p. 10-11).
Figura 2 – Alunos no ritual de Meditação na Escola Normal

Fonte: Arquivo Roswitha Dreher.


A narrativa de Roswitha trouxe diversos elementos que ajudam a pensar as práticas
cotidianas desenvolvidas na Escola Normal Evangélica, durante seu período como aluna interna
(1958-1962). Estas práticas ajudam a compor o conjunto proposto por Frago e Julia, referente à
cultura escolar produzida por esta instituição de ensino. Além do mais, táticas desenvolvidas pelos
alunos da instituição com o intuito de burlarem as regras e a vigilância estabelecida sobre eles,
também surgem ao longo de sua narrativa. A partir das memórias narradas por Dreher (2017), pude
elencar quatro categorias: os rituais, as excursões, os esportes e a música.
A Escola Normal Evangélica envolvia seus alunos e professores em rituais matinais diários,
chamados por ela de meditação. Roswitha explicou que, esses momentos ocorriam no auditório da
escola, antes de iniciarem as aulas. Então, às sete horas todos se reuniam nesse espaço da escola e,
quase sempre, sob a orientação de um professor. “Tinha alunos também que eram chamados pra
fazer uma preleção [...], dois hinos, uma oração, uma pequena explanação. A gente sempre pegava
o texto bíblico da semana, ou do dia, aquela coisa, mas era de segunda a segunda” (DREHER,
2017).
Como a escola era voltada para as artes, a música e os instrumentos musicais se faziam
presente nesses rituais. Dreher (2017) explica que, nesses momentos da meditação, cada aluno dava
uma enriquecida dentro daquele tempo e espaço, alguns tocavam flauta, outros trombone. Como
ela tocava piano desde os seis anos de idade, recorda que: “quando era dia das minhas colegas [...]
tocar o órgão, elas me passavam a cantada, e eu tocava por elas, mas, tudo bem, era sob orientação”
(DREHER, 2017).
A ex-aluna recorda-se que, como era envolvida em muitas atividades durante o dia na
escola, não sobrava tempo para ensaiar seus instrumentos, a não ser à noite. No internato feminino
não se podia ensaiar. Então, ela se deslocava para as celas de música, onde se encontravam os
instrumentos para ensaiar piano e órgão. Nessas ocasiões, ela servia de “pombo correio” dos alunos
e alunas que eram internos e que estavam de “namorico”:

Haviam namoricos em andamento. Então, eles me mandavam bilhetes e a conotação era


quando eu dava os primeiros acordes de piano, se tinham combinado que as namoradas
‘iam’ mandar bilhete, vinham procurar [...] uns quantos vinham buscar. Vinham apreciar
minha música de piano e pegar os bilhetes e, aí, ‘iam’ lá escrever. Aí eu digo: ‘olha tu
traz se tu quer, meia hora, três quartos de hora, eu vou me embora’. Então, eu era [...] como
é que se chama? O pombo correio. E tem muitos casados desses meus pombos correios
[risos]. (DREHER, 2017).

Roswitha não dedicou seu período de estudos somente para a prática de instrumentos
musicais. Rememora que teve destaque, também, na prática esportiva, prática que a escola também
apostava muito em seus alunos. Ela se dedicou ao vôlei, salto em altura, corrida, salto em distância.
Relembrou que gostava tanto de praticar esportes. “Levantava às cinco da manhã pra fazer ‘free
sports’, que era esporte na madrugada, no inverno e no verão. Era uma turma grande! Nós
corríamos na BR [116] ali, quilômetros e voltávamos” (DREHER, 2017).

Figura 3 – Excursões

Fonte: Arquivo Roswitha Dreher.

Por fazer parte da Rede Sinodal, a Escola Normal participava também de Olimpíadas
esportivas. Os alunos que praticavam, então, algum tipo de esporte, eram enviados para competir
com alunos de outras escolas da rede. Roswitha se recorda de ter participado de muitas olimpíadas,
em especial uma que ocorreu na cidade de Panambi/RS. Ela explica que os alunos eram alojados
nas casas de famílias e que, nessa ocasião, ela ficou alojada na mesma casa que um namoradinho
que ela tinha na época: “Eu tinha um namorado no Colégio Sinodal, e nós fomos pra uma Olimpíada
em Panambi e eu fiquei na mesma casa que ele [risos] [...]. A gente não ia se ‘bobiar’, se agarrar
com o cara. Ficava naquilo de mãozinha, indo pra casa e indo ‘pros’ eventos” (DREHER, 2017).
As saídas de campo também trouxeram boas recordações à ex-aluna. Essas saídas,
chamadas por ela de excursões ou piqueniques, ocorriam entre alunos e professores, onde saíam,
para passar um dia ou um final de semana fora da escola, acampando, por exemplo, no Morro do
Chapéu em Sapucaia do Sul/RS, município vizinho de São Leopoldo/RS: “eram piqueniques, a pé!
A pé, levando ‘panelão’ pra fazer comida, levando os mantimentos tudo a pé, e nós passávamos a
noite fora”. Explica, também, que nem todos os alunos podiam participar dessas saídas. Os alunos
que ganhavam a oportunidade de participar eram “sempre por merecimento, não era, assim, tu ir na
excursão. Não era qualquer um que podia passar a noite no piquenique, tinha que ter educação”
(DREHER, 2017).

Grazziotin (2016) atenta-nos para o fato da narrativa de memória não se encontrar


organizada no momento da entrevista, como em um arquivo de História Oral. “A memória parte do
presente, de um presente ávido pelo passado” (BOSI, 2004, p. 20), e a memória, tendo essa
liberdade de transitar entre presente e passado, é que faz com que o sujeito a narre conforme suas
lembranças são despertadas, não se preocupando em organizar uma narrativa cronológica dos fatos.
Nesse sentido, cabe ao pesquisador organizá-la, para que a pesquisa se torne profícua. Partindo
dessas premissas, compreendi, após realizar a transcrição e organizar a narrativa de Roswitha, o
quanto sua entrevista foi abundante em informação e detalhes sobre um tempo e um espaço que já
não existe mais, a não ser em suas memórias de ex-aluna.
Sua narrativa evidenciou hábitos, fazeres e práticas desenvolvidas nesta instituição de
ensino, que ajudam a estruturar o conjunto da cultura escolar produzida por esta escola. A prática
de esportes, os passeios envolvendo alunos e professores, a prática da música e os rituais foram
apenas alguns dos elementos levantados a partir de sua narrativa, e que, neste trabalho, foram
apresentadas por meio de seus fragmentos memorialísticos e registros iconográficos.
Apesar do internato ter regras rígidas em seu funcionamento, e determinada vigilância sob
os alunos dentro e fora da instituição, como em relação ao namoro dos internos, e as saídas dos
alunos em passeios pelo centro da cidade, verificou-se, a partir da narrativa de memória de
Roswitha, uma organização entre os alunos, como a elaboração de táticas organizadas entre eles, a
fim de burlarem as normas estabelecidas pela instituição.
O título deste texto: “Liberdade vigiada”, expressão narrada por Roswitha no decorrer da
entrevista, traz à tona uma tomada de consciência que os alunos da Escola Normal Evangélica já
haviam internalizado, referente à forma de controle que a instituição tinha sobre eles. Este termo,
acaba por retratar uma subjetivação desses sujeitos ao sistema de vigilância instaurado, se tornando
também uma forma de suavizar este modelo de controle que o internato exercia sobre seus alunos.

AMADO, Janaína. O grande mentiroso: Tradição, Veracidade e Imaginação em História Oral. In:
História, São Paulo, 14, p.125-136. 1995.

AMADO, Janaína; FERREIRA, Marieta de Moraes. (Org.). Usos e abusos da História Oral. 2
ed., Rio de Janeiro: Ed. da FGV, 1998.

ARTIÈRES, Philippe. Arquivar a própria vida. In: Estudos históricos, Rio de Janeiro, v. 11, n 21,
p. 9-34, 1998.

BOSI, Ecléa. Memória e sociedade: lembranças de velhos. 2. ed., São Paulo: T.A. Queiroz: Ed. da
USP, 1987.

_____. O tempo vivo da memória: ensaios de Psicologia Social. 2. ed., São Paulo: Ateliê
Editorial, 2004.
BURKE, Peter. Testemunha ocular. Bauru/SP: EDUSC, 2004.

CERTEAU, Michel de. A invenção do cotidiano: artes de fazer. Tradução de Ephraim Ferreira
Alves. 2.ed. Rio de Janeiro: Vozes, 1994.

CHARTIER, Roger. A História Cultural: entre práticas e representações. Lisboa: DIFEL, 1987.

_____. O mundo como representação. In: Estudos Avançados. v. 11, n. 5, p. 173-191. jan/abril de
1991.

COSTA, Cléria Botelho da. A escuta do outro: os dilemas da interpretação. In: História Oral, v.
17, n. 2, p. 47-67, jul./dez. 2014. Acesso em agosto/2017.

COUTO, Mia. Terra sonâmbula. São Paulo/SP: Companhia das Letras, 1992.

CUNHA, Maria Tereza S. Do baú ao arquivo: escritas de si, escritas do outro. In: Patrimônio e
Memória. UNESP/FCLAs/CEDAP, v. 3, n. 1, p. 45-62, 2007. Acesso em jul/2017.

DREHER, Roswitha. Entrevista de História Oral sobre sua vivência na Escola Normal
Evangélica entre os anos de 1958 e 1962. Porto Alegre/RS, 02/02/2017.

ERRANTE, Antoinette. Mas afinal, a memória é de quem? Histórias Orais e modos de lembrar e
contar. In: História da Educação: ASPHE/FaE/UFPEL, Pelotas (8): 141-174, set/2000.

FRAGO, Antonio Viñao. História de la Educación y Historia Cultural: Posibilidades, Problemas,


Cuestiones. In: Revista Brasileira de Educação, nº 0, set-dez/1995.

_____. El espacio y el tiempo escolares como objeto histórico. In: Contemporaneidade e


Educação (Temas da História da Educação), Rio de Janeiro, Instituto de Estudos da Cultura
Escolar, ano 5, n. 7, 2000.

GRAZZIOTIN, Luciane Sgarbi S. História da Educação e História Oral: possibilidades de


pesquisa em acervos de memória. In: História Oral, práticas e interdisciplinaridade: São
Leopoldo: Óikos, 2016.

GRAZZIOTIN, Luciane Sgarbi S.; ALMEIDA, Dóris Bittencourt. Romagem do tempo e recantos
da memória: reflexões metodológicas sobre História Oral. São Leopoldo: Oikos, 2012.

HALBWACHS, Maurice. A memória coletiva. São Paulo: Vértice, 1990.

JULIA, Dominique. A cultura escolar como objeto histórico. In: Revista Brasileira de História da
Educação. n. 1, jan/jun 2001.
Maria Beatriz Vieira Branco Ozorio

O arquivo não se parece nem com os textos, nem com os documentos impressos, nem com
os “relatos”, nem com as correspondências, nem com os diários, e nem mesmo com
autobiografias. É difícil sua materialidade. Porquanto desmesurado, invasivo como as
marés de equinócios, as avalanchas ou as inundações... quem trabalha em arquivos se
surpreende muitas vezes falando dessa viagem em termos de mergulho, de imersão e até
afogamento [...] (FARGE, 2009, p. 11).

O artigo aqui proposto reflete sobre as contribuições da memória e da História Oral para a
História da Educação a partir do acervo do arquivo da Faculdade de Educação FACED – UFRGS.
Na sequência apresenta alguns autores e conceitos que discutem o tema em questão e auxiliam na
compreensão da importância da História Oral e as narrativas de memória. Memórias colhidas
através de entrevistas realizadas com professores da Faculdade de Educação – onde alguns deles
trabalharam, desde sua fundação em 1970.
Memória e História estão sempre presentes na produção de fontes orais, em que sujeitos de
forma individual ou coletiva tecem a História, construindo identidades, dando significado e
ressignificando a vida, as experiências, na construção permanente de laços, de tessituras, de
sentimentos e trajetórias de vidas em que são compostas as nossas memórias.
Este estudo situa-se no campo da História da Educação, em suas interfaces com as
discussões acerca da constituição de arquivos com acervos de narrativas de memórias colhidas
através da oralidade. Propõe teorizar e conferir dinamicidade e legitimidade às investigações que
tenham a História Oral como opção metodológica, entendendo como uma forma de desenvolver
pesquisas que envolvam movimentos realizados em comunidades de memória anteriormente
organizados por outros.
Segundo Halbwachs (2004, p. 32), é movediço o terreno que distingue lembranças "reais"
de lembranças "fictícias”, pois elas se fundem e se complementam, e acontece que, "para algumas
lembranças reais, se junta uma massa compacta de lembranças fictícias". Neste sentido, Amado
(1995) assinala que toda a narrativa compreende certa fabulação, uma invenção da realidade vivida,
ou ainda, possui uma dimensão simbólica que leva a um certo desapego do real em busca do
imaginário, sendo, antes de mais nada, um ponto de vista sobre algo. Às vezes, episódios vividos
no coletivo podem estar no esquecimento nas memórias de alguns, enquanto nas de outros os fatos
constituem-se em lembrança bem presentes.

* Mestre em História da Educação – UFRGS.


Tomo de empréstimo aqui as palavras de Ricouer (2007, p.188) referindo-se ao
arquivo como lugar onde os rastros foram conservados por uma instituição com o fim de
serem consultados por quem esteja habilitado a isto “[…] Armado de perguntas, o
historiador se engaja numa investigação dos arquivos.” (RICOUER, 2007). Nesse sentido,
exemplifico com o trabalho que vem sendo realizado no arquivo da Faculdade de Educação
localizado na sala 610 de seu edifício no Campus Central. Destaco sua importância como um
espaço que, além de salvaguardar inúmeros documentos da história da Instituição, é um
lugar para socialização de memórias da História da Educação com vistas à pesquisa
acadêmica.
Entre outros registros escritos oficiais, também se encontram Projetos de
Extensão e Comunitários que fazem parte da história da FACED e da própria História da
Educação no Rio Grande do Sul nos últimos quarenta anos. Como, por exemplo, os
convênios com outras faculdades (Agronomia, Letras) além da proposição e participação em
projetos federais, estaduais e municipais de educação. Conforme Farge (2009, p. 94), os
arquivos são vestígios e lugares singulares e complexos que precisam ser desvendados em
sua materialidade como um mar no qual se mergulha e onde o afogamento pode ocorrer.
Nestes espaços, podemos “captar as falas” e reconhecer “rostos e sofrimentos, emoções e
poderes criados para controlá-los” (FARGE. 2009 p. 94).
O trabalho, no também chamado Memorial FACED, vem sendo atualmente realizado
por iniciativa e coordenação da Prof.ª Dóris Bittencourt Almeida e conta com uma equipe
composta por bolsistas da faculdade, que tem buscado para além da reorganização física do
espaço, também viabilizar a criação de um acervo de História Oral. As ações ali
desenvolvidas pretendem mais do que as questões de ordenação, identificação, higienização e
catalogação dos documentos do acervo da Faculdade, mas também ter um olhar mais atento à
materialidade que pode ser objeto e fonte de pesquisa para a História da Educação.
Hoje no arquivo, para além dos documentos entendidos como oficiais, ou seja, os
que registram atividades realizadas naquela Instituição, desde a sua criação no início da década
de 1970, já é possível pesquisar num pequeno acervo oral que vem se constituindo a partir de
entrevistas e suas transcrições realizadas pela equipe de trabalho.
Nesse sentido, destaco não só a importância da preservação das fontes escritas
para a pesquisa em educação, mas também um entendimento da riqueza da oralidade, não
privilegiando a hierarquização das fontes históricas. As entrevistas e sua transcrição estão
materializando as narrativas de memórias de professores, que ainda fazem ou fizeram
parte dos quadros daquela faculdade. Estas narrativas colhidas através das entrevistas vêm
se constituindo num acervo de História Oral e irão se tornar novos documentos que trazem
em si um outro olhar carregado de sentimentos e tornando vivo este passado, através das
palavras dos entrevistados.
A referência ao passado serve para manter a coesão dos grupos e das instituições
que compõem uma sociedade, para definir seu lugar respectivo, sua complementaridade, mas
também as oposições irredutíveis:
[...] A memória, essa operação coletiva dos acontecimentos e das interpretações do
passado que se quer salvaguardar, se integra em tentativas mais ou menos conscientes de
definir e de reforçar sentimentos de pertencimento e fronteiras sociais entre coletividades
de tamanhos diferentes (POLLAK, 1989, p. 9).

Refiro-me ao trabalho realizado no Arquivo ou Memorial da FACED tomando parte do


conceito de NORA (1997, p. 16) sobre “lugares de memória”. Lugares que são definidos por ele
como:
[...] toda unidade significativa de ordem material ou ideal, da qual a vontade dos homens
ou o trabalho do tempo fez um elemento simbólico do patrimônio da memória de uma
comunidade qualquer. (NORA. 1997 p. 16).

E assim, ter feito parte de um grupo que vem pesquisando neste Memorial, me proporcionou
participar de ações visando à apropriação da “comunidade” da FACED e suas memórias, seja
através do manuseio dos documentos escritos ou através da prática dos relatos orais de professores,
colhidos através de suas narrativas de memórias. Educadores que tiveram suas vidas entrelaçadas
com a Faculdade de Educação e agora têm a oportunidade de trazer à tona seu olhar, de personagens
comuns, sobre este tempo acadêmico e comunitário. Esta história do tempo presente convive com
testemunhos vivos e oportuniza a diversidade ao ouvir os excluídos, as minorias, as pessoas
comuns, os grupos étnicos e revisitar trajetórias, buscando evitar assim o esquecimento, a
invisibilidade desses sujeitos, anônimos, infames: “todas essas vidas destinadas a passar por baixo
de qualquer discurso e desaparecer sem nunca terem sido faladas só puderam deixar rastros...”
(FOUCAULT, 2003 p. 203-222).
Alberti (2004) sugere que, para além do uso de entrevistas, o pesquisador busque arquivos,
periódicos, livros, fotografias a fim de melhor contextualizar as narrativas dos depoentes,
auxiliando na construção de roteiros de entrevistas. Contemplando esta orientação teórica, o
trabalho que se realiza no arquivo a partir das entrevistas é enriquecido com todo o corpus
documental lá guardado.
Entre outras atividades realizadas no arquivo FACED, também construímos os roteiros das
entrevistas, auxiliados pela familiaridade com toda uma documentação pré-existente dos
professores que lá atuaram. Neste sentido o trabalho de restauro e pesquisa de documentos
proporciona conhecimento de inúmeros projetos realizados por equipes de professores que
desenvolveram pesquisas de extensão junto à comunidade acadêmica e local. As entrevistas
realizadas acrescentam uma dimensão preciosa ao trabalho de pesquisa uma vez que trazem à tona
a partir da memória dos professores, seus diferentes olhares do vivido, para além dos documentos
oficiais.
Neste trabalho, Memória e História Oral se confundem como afirma Errante (2000); existe
uma dependência da história em relação à memória. Segundo a autora, a História Oral acrescenta
uma dimensão não oficial inestimável, uma vez que se distancia da história de caráter oficial. O
cruzamento das histórias individuais, colhidas em entrevistas revela o quanto a experiência pessoal
reflete as experiências coletivas, afirmação que vem ao encontro do trabalho do arquivo atribuindo
importância às narrativas de memória dos professores. Não perdendo de vista a ideia de que a
memória é uma construção do passado e pautada em emoções e vivências; ela é flexível, e os
eventos são lembrados à luz da experiência subsequente e das necessidades do presente
(FERREIRA, 2002).
Errante (2000) nos fala a respeito do cruzamento de histórias individuais validadas a partir
de publicações e documentos de arquivos e de que maneira essas histórias orais são importantes em
grupos marginalizados. Nesta pesquisa, memórias individuais também representam vivências
coletivas, uma vez que compartilharam situações comuns.
Para Nora (1993, p. 9) a "memória é sempre suspeita para a história" para isso, os locais de
memória se fazem tão importantes, uma vez que o sentimento de continuidade torna-se residual aos
locais. São os chamados "lugares de memória" (NORA, 1993), lugares que testemunham outra
época, que trazem em si sentimentos e representações, o simbólico de uma existência que vive
através da memória.
Nesse sentido, as escolas, as instituições de ensino, são "lugares de memória" (NORA,
1993):
São lugares das práticas pedagógicas, onde se estabelecem as relações professor aluno,
aluno-aluno, relações entre a comunidade, dos discursos que constituíram a educação; dos
professores enquanto profissionais, da categoria aluno; dos funcionários, das relações de
poder, (direção-professor; aluno-professor; aluno-aluno; poder público e comunidade
escolar) etc. (OZORIO. 2016. p. 42).

Muitos dos documentos conservados no arquivo FACED foram doações de professores. Ou


seja, são arquivos pessoais, destes profissionais que ao se aposentarem entregaram uma história de
vida acadêmica para a instituição a qual pertenceram em boa parte de sua vida. Elas também contam
um pouco da memória da cidade, do país e da História da Educação, e também são registros oficiais
de Projetos de Extensão e Comunitários que fazem parte da história da FACED.
No ano de 2010 teve início o projeto intitulado Memórias e Histórias da FACED, que
através da História Oral produziu testemunhos históricos sobre esta instituição, a partir de
entrevistas com antigos professores. Ações que procuraram dar visibilidade às diferentes memórias
que construíram a Faculdade de Educação da UFRGS.
Recentemente foi doado ao Arquivo da FACED, o acervo pessoal do Prof. Balduino
Antônio Adreola. Materialidade de um trabalho realizado pelo Prof. Balduino no decorrer de sua
longa trajetória de 35 anos de trabalho, desde a década de 1970 até sua aposentaria na faculdade.
Soma-se agora aos arquivos de seus trabalhos realizados nestes anos de vida acadêmica, entre
Projetos de extensão de Educação Popular e de seu período na direção da Faculdade (1988/92). Em
entrevista concedida por ele em 07/07/2011, para o grupo de trabalho do arquivo, assim afirma: “eu
devo muita coisa à Faculdade de Educação e me sinto muito bem quando volto pra cá. Acho que o
mais importante é isso...” (Entrevista, 2011).
Em 2012, a Prof.ª Dóris Almeida realizou entrevista com a Prof. Mérion Campos Bordas,
também foi diretora da FACED além de uma vida acadêmica extensa e com muitos projetos de
educação realizados. Assim, ela expressa sua relação com a Faculdade de Educação: “Eu tenho uma
história tão longa com a Faculdade que às vezes esqueço como era antes [...]” (Entrevista, 2012).
A realização de novas entrevistas e a constituição do acervo de História Oral continua com
um cuidado especial da equipe constituída e coordenada pela Prof.ª Dóris Almeida. Nos anos de
2016/2017 já foram realizadas novas entrevistas com professores Alfredo Veiga-Neto, Guacira
Lopes Louro e há previsões para novas realizações.
Depoimentos produzidos são vozes do passado no presente, possibilitando que, no futuro,
essas memórias estejam novamente presentes. Compreendendo que não há memória espontânea, e
que essas narrativas de memória são construídas por fragmentos de lembranças, tanto individuais
como coletivas. Neste sentido afirma Bosi

[...] a memória opera com grande liberdade escolhendo acontecimentos no espaço e no


tempo, não arbitrariamente, mas porque se relacionam através de índices comuns. São
configurações mais intensas quando sobre elas incide o brilho de um significado coletivo”.
(2003, p. 31).

De acordo com Farge (2009), o arquivo age como um desnudamento; encolhidos em


algumas linhas, aparecem não apenas o inacessível como também o vivo. Assim tem sido
desnudado o arquivo da FACED – UFRGS num trabalho de pesquisa, unindo documentação escrita
e relatos de memória.
A história guardada no arquivo da Faculdade de Educação tem sido cuidadosamente
catalogada, higienizada e novamente guardada. O acervo de História Oral, produzido através de
entrevistas gravadas e transcritas tem colhido preciosas informações que emergem das memórias
dos professores, novas informações acrescentadas à documentação oficial, materializando então a
relação da História com memória. Explica Bosi (1994, p. 39) que memória não é devaneio, pelo
contrário, é trabalho, há esforço ao lembrar. Registramos fragmentos, aqui, ali, “lembrança, puxa
lembrança” (Bosi, 1994). Inspirada em Halbwachs (2004), a autora diz que lembrar não é reviver,
na maior parte das vezes, mas refazer, reconstruir, repensar.
A memória não é um simples ato de recordar, ela está profundamente ligada à existência e
à integração da experiência de vida ao presente. Esse movimento da memória nos faz ressignificar
e atualizar o passado, pois nele encontramos nossas raízes e um sentimento de identidade. A
memória é tecida com múltiplos fios, cores, sabores e lugares. Ela também é ao mesmo tempo
lembrança e esquecimento, é forma de retenção do tempo. Ela não tem compromisso com o trabalho
de crítica, de problematização. Elaboramos um passado com o qual podemos conviver, para dar um
sentido para nossas vidas. "Somos exatamente o que nos lembramos e também somos aquilo que
não queremos nos lembrar". (IZQUIERDO, 2004, p. 57).
História e memória estão entrelaças pelo passado, mas atuam de maneira diferente. A
História está relacionada à produção do conhecimento, e está sempre sujeita à crítica e as teorias do
conhecimento. A memória é documento para a história, e é permeada de subjetividades. Como
reflete Amado (1995), história e memória mantém muitas relações entre si, de tal forma que é difícil
separá-las. A memória dá significado às nossas experiências e também projeta nosso futuro. Ela tem
capacidade de transitar em vários tempos e torna o nosso passado verdadeiramente passado. As
memórias reelaboram a história, relacionando-a a outros elementos e dando outros significados tão
novos que, a partir deles, é possível se produzir uma outra história. Conforme Farge (2009, p.94)
os arquivos são vestígios e lugares singulares e complexos que precisam ser desvendados em sua
materialidade como um mar no qual se mergulha e onde o afogamento pode ocorrer. Nestes espaços,
podemos “captar as falas” e reconhecer “rostos e sofrimentos, emoções e poderes criados para
controlá-los” (FARGE, 2009).
A memória, assim como a história, são construções sociais, são as construções dos homens,
de maneira individual ou coletiva. Tomando a História Oral como metodologia, busca-se um
caminho para produção do conhecimento histórico, utilizando-se narrativas provocadas, que se
constituem em testemunhos, versões sobre a História. Nesse sentido, por exemplo, podemos
conhecer mais sobre os Projetos de Extensão realizados na FACED, a partir da década de 1970, não
apenas pela documentação escrita, mas através dos relatos de memória narrados pelos professores
que realizaram os projetos nas diferentes épocas pesquisadas.
Através da evocação das memórias, procuramos novos significados para nossas vivências
e elaboramos um passado com o qual podemos conviver. Lembramo-nos através de sons, silêncios,
aromas, formas e nisso há uma interdisciplinaridade de diálogos. Nossas lembranças se manifestam
através da música, fotos, literatura, documentação escrita e de tantas outras formas de evocação de
memória. A memória trabalha tanto com o tempo passado (aquilo que está sendo lembrado) como
o tempo presente (o momento em que está sendo dado o depoimento). A memória alimenta as
narrativas que se transformarão em documentos finais, na produção de fonte histórica.
Assim, o tempo, seus ritmos e as representações coletivas sobre seu processo relacionam-
se aos movimentos históricos, construindo interpretações sobre processos específicos. Nossa
impressão pode apoiar-se não somente sobre nossa lembrança, mas também sobre a dos outros; há
sempre uma quantidade de pessoas conosco que são auxiliares de nossas memórias. Nossas
lembranças permanecem coletivas, mesmo que, muitas vezes, só nós tenhamos vivido determinadas
situações, há sempre uma quantidade de pessoas conosco que são auxiliares de nossas memórias de
acordo com Halbwachs (2004).
Encaminho para as considerações finais deixando mais algumas reflexões sobre a
importância das narrativas de memória. As memórias transcritas são transformadas em documentos
que se somam ao acervo da documentação oficial existente no arquivo da FACED, acrescentando
assim dois modos de promover os exercícios de investigação – a memória oralmente narrada e a
memória oficial. De acordo com Grazziotin e Almeida (2013), os usos que se pode fazer do
testemunho oral é um novo impulso para a superação e para o conhecimento recriado de uma
possibilidade historiográfica.
Aqui se postula que a criação e utilização de acervos de memória oral entendido como uma
fonte de pesquisa, tendo a memória como documento e História Oral como metodologia. A
legitimidade na utilização de arquivos orais ocorre muito pela riqueza de informações que alargam
a vida dos sujeitos que nesses espaços, guardam suas memórias. Trabalhar nessa perspectiva
constitui um desafio. É a possibilidade concretizada de produzir outras miradas a documentos
construídos, atribuindo, assim, movimento a algo que pode estar inerte (GRAZZIOTIN;
ALMEIDA, 2013).
A memória é um tempo vivo como afirma Bosi (2003) e toma aspectos do comportamento
cotidiano das pessoas. Ela não possui um tempo linear, mas cria uma teia de lembranças que se
entrelaçam e são tecidas entre si, constituindo-se em representações do que se viveu outrora. Este
aspecto de compor pontos de vista de modos distintos entre si promove a riqueza destas memórias
que opera com as sensibilidades, embora enraizada no concreto, no gesto, na imagem e nas relações.

ALBERTI, Verena. Ouvir contar: textos em História Oral. Rio de Janeiro: Ed. da FGV, 2004.

ALMEIDA, Dóris Bittencourt. Entrevista com Prof. Mérion Bordas. 2012. Projeto Memória
FACED.

AMADO. Janaína. Ferreira. Marieta de Moraes. (Org.). Usos & abusos da História Oral. Rio de
Janeiro: Ed. da FGV. 1995.

BOSI, Ecléa. O tempo vivo da memória: ensaios de Psicologia Social. São Paulo: Ateliê Editorial,
2003.

EDUCAÇÃO & REALIDADE. Porto Alegre: UFRGS/FACED, v. 41, n. especial, p. 1347-1370,


dez. 2016.

ERRANTE. Antoinette. Mas afinal, a memória é de quem? Histórias Orais e modos de lembrar e
contar. História da Educação. ASPHE/FaE/UFPeL, Pelotas, 141-174, set. 2000.

FARGE, Arlette. O sabor do arquivo. São Paulo: Edusp, 2009.


FERREIRA, Marieta de Moraes. História, tempo presente e História Oral. Rio de Janeiro:
Topoi, dezembro, 2002.

FOUCAULT, M. A vida dos homens infames. In: _____. Estratégia, poder-saber. ditos e escritos
IV. Rio de Janeiro:

Forence Universitária, p. 203-222. 2003

GIL, Carmen. Entrevista com Prof. Balduino Andreola. 2011. Projeto Memória FACED.

GRAZZIOTIN, Luciane; ALMEIDA, Dóris Bittencourt. Romagens do tempo e recantos de


memórias: reflexões metodológicas sobre História Oral. São Leopoldo: Oikos, 2013.

HALBWACHS, Maurice. A Memória Coletiva. São Paulo: Centauro, 2004.

IZQUIERDO, Ivan. Entrevista com Ivan Izquierdo: Lembranças e Omissões. Pesquisa FAPESP 99.
In: Grupo de Estudos em Educação e Ciências; Instituto de Ciências Básicas da Saúde UFRGS.
Memórias, aprendizagens e constituição das identidades. 2004.

NEVES. Lucilia de Almeida. Memória, história e sujeito: substratos da identidade. III Encontro
Regional de História Oral, Mariana, 2000.

NORA, Pierre. Entre Memória e História. São Paulo, 1997.

OZORIO, Maria Beatriz V. Branco. Memórias de uma escola em greve: reminiscências de


professoras do Instituto de Educação General Flores da Cunha – Porto Alegre/RS (1979-1990).
UFRGS. 2016. p. 42. Dissertação de Mestrado - Programa de Pós-Graduação em Educação.
Faculdade de Educação – Universidade Federal do Rio Grande do Sul.

POLLAK, Michel. Memória, esquecimento, silêncio. In: Estudos Históricos, Rio de Janeiro, v. 2,
n. 3, 1989.

RICOEUR, Paul. A memória, a história, o esquecimento. Campinas: Unicamp, 2007.


Renata Brião de Castro*
Patrícia Weiduschadt**

Este estudo tem como objetivo analisar a trajetória escolar dos descendentes de italianos na
Colônia Maciel. Para isso, serão utilizadas 18 narrativas orais. As entrevistas fazem parte do acervo
do Banco de Imagens e Sons do Museu Etnográfico da Colônia Maciel (MECOM). Esta está
localizada no interior do município de Pelotas (RS), tendo sido fundada pelo governo imperial no
ano de 1885 e constituída, majoritariamente, por imigrantes italianos. Está situada na chamada Serra
dos Tapes, local este que recebeu imigrantes de variadas etnias. A extensão da Serra dos Tapes é
bastante grande e o processo imigratório, no espaço, não pode ser tratado de uma forma única e
homogênea. Cada grupo étnico teve suas particularidades na colonização do território. Assim como
na vida em comunidade e na criação e manutenção de suas instituições, dentro das quais estão
incluídas as escolas e/ou instituições ligadas à instrução.
Este estudo utiliza-se, fundamentalmente, de documentos orais,1 os quais são
analisados sob a metodologia da História Oral. Para isso, concorda-se com Amado e Ferreira
(2006), quando as autoras defendem o uso da História Oral como uma metodologia. Ainda,
o texto utiliza-se de autores que abordam o uso de narrativas constituídas como acervo, tais
como Grazziotin e Almeida (2012). Outrossim, faz-se uso da categoria da memória, pois
entende-se a História Oral como um instrumento da memória e esta, por sua vez, opera-
se como um jogo entre lembranças e esquecimentos.
Para a realização do objetivo, o texto está organizado em dois tópicos fundamentais. O
primeiro trata dos procedimentos metodológicos do estudo, explicitando as narrativas orais
utilizadas. E o segundo, por sua vez, aborda os aspectos analíticos, ou seja, a análise propriamente
dita. Neste momento, se introduz a teoria pertinente para o estudo das fontes.

Nesta ocasião, serão detalhados os procedimentos metodológicos da investigação, assim


como a escolha das entrevistas. As 18 narrativas orais são oriundas do Banco de Imagens e Sons do

* Universidade Federal de Pelotas, doutoranda em Educação. Apoio: Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal


de Nível Superior - CAPES.
** Universidade Federal de Pelotas, doutora em Educação
1 A pesquisa faz uso do conceito de documento/monumento (LE GOFF, 1990). Assim, as fontes
orais são entendidas como documentos, utilizando a noção de documento proposta por esse autor.
Museu Etnográfico da Colônia Maciel. Foram realizadas por outros pesquisadores, com o objetivo
de formar um banco de dados. Os responsáveis pela produção das narrativas explicam:

[...] foram realizadas 32 entrevistas. Destas, 8 foram feitas na primeira etapa do


projeto (2000 a 2002) e 24 na etapa de implantação do museu (2005). Ainda estão
previstas 12 entrevistas com membros de famílias de ítalo-descendentes, naturais da
colônia, que atualmente residem na zona urbana do município de Pelotas. Há que se
ressaltar que, em alguns casos, foram realizadas duas ou mais entrevistas com a
mesma pessoa, uma vez que estas tinham grande número de informações que
contribuiriam com a pesquisa (CERQUEIRA et al, 2009, p. 80).

Voldman (2006) faz uma diferenciação entre arquivo e fonte oral. A autora escreve que o
arquivo oral é produzido por pesquisadores e salvaguardado para investigações futuras. Este é o
objetivo da produção das narrativas: constituir um banco de dados para uso a posteriori. Por sua
vez, a fonte oral é produzida pelo historiador para o seu próprio estudo. Na perspectiva da autora,
pode-se enquadrar as entrevistas do MECOM como arquivos orais, isto é, produzidos para
constituir-se como acervo, para acesso futuro de pesquisadores interessados. Não há, neste acervo,
um item ou uma temática específica nessas narrativas, mas, sim, vários assuntos referentes à
imigração na região.
Desta forma, ao iniciar as pesquisas no acervo oral, verificou-se que, entre os entrevistados,
havia a predominância de descendentes italianos. Assim sendo, este texto busca analisar os aspectos
relativos à escolarização e à instrução desse grupo étnico. É necessária a ressalva de que, além
dessas narrativas, há também memórias dos descendentes de alemães e franceses, as quais foram
analisadas em outro momento. Primeiramente, é oportuno registrar que a localidade onde foram
realizadas as entrevistas, (Colônia Maciel) está situada numa área de imigração italiana. Assim,
explica-se o maior número de entrevistados serem desse grupo étnico, aliado ao objetivo da
constituição do banco de dados, qual seja, registrar memórias relacionadas à imigração italiana
naquele espaço territorial.
A partir do conjunto de dados, foi necessária uma sistematização, conforme o interesse
desse estudo, pois para pouco serve um banco de dados se as informações não estiverem
organizadas. É necessário criar um sistema de classificação de acordo com a problemática de
pesquisa que se pretende investigar. Desta forma, classificar os dados foi a primeira tarefa. Michel
de Certeau (1982, p. 81) afirma que: “em história, tudo começa com o gesto de separar, de reunir,
de transformar em ‘documentos’ certos objetos distribuídos de outra maneira. Esta nova
distribuição cultural é o primeiro trabalho”. A pesquisa se faz com a desmontagem e a reorganização
dos dados numa nova ordem. Kuhlmann e Fernandes (2014), ao explicitar a construção do banco
de dados relativos a periódicos, observam que, para uma compreensão aprofundada, é necessário o
agrupamento e a classificação das informações. Embora os autores se refiram a fontes diferenciadas
destas, no caso dos autores, a publicação de um periódico, e do presente estudo com fontes orais, é
possível entender a necessidade de organização dos dados, neste sentido:

A utilização das técnicas atuais de informação leva o historiador a separar aquilo que,
em seu trabalho, até hoje esteve ligado: a construção de objetos de pesquisa e,
portanto, das unidades de compreensão; a acumulação dos dados [...] e sua arrumação
em lugares onde possam ser classificados e deslocados; a exploração é viabilizada
através das diversas operações de que este material é susceptível (CERTEAU, 1982,
p. 85).

Para Grazziotin e Almeida (2012, p. 42), o acervo oral não se caracteriza por um assunto
em específico, mas, sim, por vários itens e, à vista disso, pode ser examinado por diferentes ângulos.
Neste ínterim, as autoras se questionam: “Como garimpar nessa profusão de memórias aquelas que
interessam? Como o investigador poderá separar e reagrupar as memórias de acordo com os
objetivos da pesquisa a que se propõe?” A partir desses questionamentos, realizou-
se a categorização das narrativas, 2 as quais foram organizadas em oito itens, sendo um
deles a trajetória escolar dos entrevistados. Destarte, compreende-se que essas entrevistas são
instrumentos da memória. Essa é “guardada” em diferentes suportes, há os lugares de
memória (NORA, 1993), as fotos, a materialidade do cotidiano escolar, bem como a que é
suscitada pelas narrativas orais.
Após a organização, foi possível analisar a trajetória escolar dos descendentes de
origem italiana, como já mencionado, utilizando-se a metodologia da História Oral. E essa
nos “remete a uma dimensão técnica e a uma dimensão teórica [...]” (AMADO; FERREIRA,
2006, p. viii). Deste modo, é necessário, por um lado, estar atento aos procedimentos
metodológicos e, por outro, ao referencial teórico, o qual irá fundamentar a investigação,
evitando que as narrativas se tornem um relato descritivo das memórias. A necessidade de
uma história-problema evidencia que os historiadores da Nova História, ao insistirem, com
razão, na multiplicidade de temas e abordagens, não deixaram de se preocupar com a esfera
teórica. É imprescindível reconhecer a existência de sistemas históricos, cuja estrutura e
transformação o historiador tem a incumbência de analisar. Em síntese, não se deve descuidar
dos aspectos teóricos e analíticos da investigação (LE GOFF, 2011).
Sobre o processo de análise, Moraes (2003, p. 194) ressalta que “[...] tudo é
construído. Os textos não carregam em si um significado a ser apenas identificado
[...]”. À vista disso, compreende-se que os dados, ou as fontes, não são a pesquisa
propriamente dita; esta surge da interpretação e problematização daqueles. Verena Alberti
discute o uso da História Oral como documento. Para a autora:

[...] A principal característica do documento de história oral não consiste no


ineditismo de alguma informação, nem tampouco no preenchimento de lacunas de
que se ressentem os arquivos de documentos escritos ou iconográficos, por exemplo.

2
Sobre essas categorias, ver a dissertação de Castro (2017).
Sua peculiaridade – e a da história oral como um todo – decorre de toda uma postura
com relação à história e às configurações socioculturais, que privilegia a recuperação
do vivido conforme concebido por quem viveu. (ALBERTI, 2004, p. 16, grifos da
autora).

As fontes orais, assim como as escritas, não representam a totalidade dos acontecimentos
do passado. No entanto, isso não faz a pesquisa ilegítima ou de menor importância. Pelo
contrário, não se busca reconstituir um tempo passado ou uma instituição, mas, através
dos indícios,3 construir uma história dentre as possíveis, bem como analisar a memória
consolidada em determinado sujeito ou grupo social. 4 Neste estudo, analisam-se as
memórias de um grupo específico, os descendentes de imigrantes italianos na localidade da
Colônia Maciel. Para isso, foi construído o seguinte quadro a partir das entrevistas:

Quadro 1 – Relação dos entrevistados que rememoram sua escolarização, suas datas de
nascimento e percurso de instrução
Entrevistado Nascimento5 Percurso de instrução
MECOM 1 Professor Dario. Professor Egídio. Miguel Soares
MECOM 2 1932 Colégio Nossa Senhora Aparecida, Canguçu.
MECOM 56 A: 1937 A: Colégio Pelotense.
N: 1928 A e N: Escola Garibaldi
MECOM 10 1915 Professor alemão que falava em português
MECOM 11 Em casa com o pai em italiano
MECOM 13 1937 Escola Garibaldi
MECOM 14 Escola Garibaldi
MECOM 16 1926 Escola Garibaldi
MECOM 17 1941 Escola Garibaldi
MECOM 20 1924 Em casa
MECOM 22 Não foi à escola
MECOM 24 Colégio particular na entrada da capela São João
MECOM 25 1935 Escola Garibaldi
MECOM 32 1929 Escola étnica alemã no município de Morro Redondo.
Fonte: Quadro elaborado pelas autoras com base nas entrevistas, 2017.

3
Utiliza-se a noção de indícios com base em Ginzburg (1990). .
4
A perspectiva historiográfica usada neste texto é a História Cultural. A partir dela, não se busca uma
reconstrução ipsis litteris do passado e, sim, uma representação deste passado. (CERTEAU, 1982; BURKE,
2005; PESAVENTO, 2004).
5
.Em algumas narrativas não foi possível identificar a data de nascimento do entrevistado. .
6
Essa entrevista aconteceu com duas pessoas ao mesmo tempo, por isso optou-se por colocar os dados dos dois
entrevistados, precedidos das iniciais de seus nomes: A e N.
Percebeu-se que, em quatro das 18 narrativas, não havia como identificar o processo de
instrução dos entrevistados. Assim, a análise centra-se, especificamente, em 14 narrativas. Como
mencionado anteriormente, as entrevistas não foram realizadas para o fim específico desta pesquisa.
Dessa maneira, a História da Educação não foi o eixo norteador das narrativas. Entretanto, é
possível problematizar como esse grupo étnico organizou-se em termos escolares. Neste sentido,
escrevem Lopes e Galvão (2001), que o campo da História da Educação, por vezes, é considerado
pouco nobre pelos historiadores. Assim, pode-se questionar não haver, nas narrativas,
muitos aspectos referentes à escolarização. 7 Além disso, historiar a educação não foi o
objetivo da construção do banco de dados, mas elencar vários aspectos da trajetória do grupo
étnico.

A partir dos dados do quadro acima, é permissível realizar algumas problematizações no


que se refere à trajetória escolar dos entrevistados. A priori é importante explicar que, na Colônia
Maciel, desde o ano de 1928, há a Escola Garibaldi. Essa instituição, desde o seu início, foi
uma escola pública municipal.8 A continuidade da escolarização na Colônia Maciel deu-se
após a construção da Escola Garibaldi, visto que, antes, o que existia, em termos de
escolarização, na localidade, eram iniciativas isoladas, de escolas que fecharam. Uma das
entrevistadas rememora a implantação da escola: “Ah, a escola, foi uma briga aqui para ter
escola” (MECOM 1).9 Para a comunidade local, a construção da escola é considerada um
acontecimento importante, visto que oportunizou uma regularidade no ensino ofertado.
Alguns narradores relembram que seus familiares não estudaram na Garibaldi porque eram
de origem alemã. Sendo assim, estudavam no colégio específico para os alemães. Nesse momento,
percebem-se questões étnicas envolvidas. Para os autores, a etnicidade:

[...] não é vazia de conteúdo cultural (os grupos encontram ‘cabides’ nos quais
pendurá-la), mas ela nunca é também a simples expressão de uma cultura já pronta.
Ela implica sempre um processo de seleção de traços culturais dos quais os atores se
apoderam para transformá-los em critérios de consignação ou de identificação com
um grupo étnico. [...]. (POUTIGNAT; STREIFF-FENART, 2011, p. 129).

A identidade é entendida, nesta pesquisa, como uma construção social, a qual se modifica
com o passar do tempo e, neste contexto, está interligada com o pertencimento étnico da localidade.
Para Hall (2014, p. 109), “é precisamente porque as identidades são construídas dentro e não fora
do discurso que nós precisamos compreendê-las como produzidas em locais históricos e

7
Esta análise refere-se à quantidade de informações relativas à escolarização em comparação com o conjunto de
todas as entrevistas, ou seja, há um pequeno espaço para essas memórias.
8
A Escola Garibaldi, durante os anos de 1928 a 1950, foi objeto de estudo da dissertação de Castro (2017).
9
Essas entrevistas, que são acervos, foram utilizadas da maneira como estavam transcritas. Porém, optou-se por
referir o pesquisador pela letra P e o entrevistado pela letra E.
institucionais específicos”. Há duas visões sobre a identidade, conforme Woodward (2014): a
essencialista e a não essencialista. A primeira não se altera com o tempo; permanece imutável. A
segunda, por sua vez, tem como foco as diferenças, o que é comum entre os grupos. Assim, presta
atenção às formas como a identidade é construída, ou seja, social e historicamente. A esse respeito,
observa-se que, se entende a identidade na sua visão não essencialista.
Após essas considerações, continua-se a analisar as memórias. Um dado interessante refere-
se a uma entrevistada que estudou numa escola étnica alemã, no município de Morro
Redondo (RS).10 Conforme a narrativa, a sua escolarização se dava em português, e os demais
colegas em alemão. Em suas palavras:

E: E daí passou os anos, lembrando, saí muito com meus avós. Aí depois fui para
casa. Me lembro, meus pais me colocaram no colégio; veja bem que colégio. Aí meu
pai se mudou daí de Canguçu; ele se mudou para Morro Redondo. Eu tinha dois anos,
ele saiu da casa dos meus avós, casado, e eu tinha dois anos. Eu e o Luís meu irmão
mais velho, fomos morar no Morro Redondo. E, na época, eu meio parava na vó, na
minha vó que era muito querida, a vó Pegoraro [...]. E depois os meus pais colocaram
no colégio, sabe, colégio do lugar. Naquela época não tinha, lá no Morro Redondo,
era puro alemães , não tinha colégio público. Era colégio de alemães, era o colégio
que eu frequentei, então me ensinaram brasileiro e os outros alemão. E eu fui pegando
o alemão; era fácil no meio dos outros (MECOM 32).

No entrelaçamento entre memória e identidade, explica o autor “[...] a memória é um


elemento constituinte do sentimento de identidade, tanto individual, como coletiva. [...]” (1992, p.
204). Assim, observa-se que a memória de uma comunidade ou grupo é também moldada pela
identidade desse grupo. A rememoração e a evocação das memórias estarão carregadas de aspectos
identitários. Para Pollak, “[...] O que está em jogo na memória é também o sentido da identidade
individual e do grupo”. (POLLAK, 1989, p. 8)”.
Na mesma narrativa acima, a entrevistada menciona que também aprendia em alemão:

P: A senhora chegou a estudar em alemão?


E: Mas pouco, em alemão, dois ou três anos...
P: Estudava em alemão?
E: Estudava, mas [o professor] ensinava em brasileiro, fazia contas em alemão.
(MECOM 32).

Na evocação da memória desta entrevistada, também é possível identificar a presença da


etnicidade, bem como das escolas étnicas dos grupos de imigrantes. Porém, nesta narrativa,
percebe-se que havia, também, o critério logístico presente, ou seja, ao se mudar para Morro
Redondo, a opção foi estudar numa escola alemã e, por isso, estudou em outro idioma, diferente

10
Aproximadamente 50 km de distância de Pelotas.
tanto do seu (português) quanto o do grupo étnico do qual é descendente (italiano). Com
isso, percebe-se que havia, sim, algumas especificidades, nesta trajetória escolar dos
entrevistados, especificidades essas tangenciadas pelo contexto local.11 Decerto que esse
estudo é localizado e restrito a essas narrativas. Entretanto, podem-se elencar algumas
considerações, sem, portanto, pretender generalizações.
Notaram-se algumas regularidades no processo escolar dos descendentes de origem
italiana. Uma delas é o fato de alguns alunos, mais especificamente, seis, terem realizado seus
estudos na Escola Garibaldi. À vista disso, é oportuna a reflexão de Luchese (2007). Para a
autora, as escolas públicas, laicas e gratuitas eram solicitadas, com frequência, pelos
imigrantes italianos ao governo. A Escola Garibaldi, como dito, sempre esteve aliada
ao poder público e permanece em funcionamento, sem interrupção, até os dias atuais.
Porém, ela foi precedida por outras instituições, como, por exemplo, uma escola
comunitária (1915), a qual acabou fechando. Assim, pode-se problematizar, de acordo com
Luchese (2007), que este grupo étnico preferia as escolas públicas. Diferentemente, por
exemplo, do que se percebe no processo imigratório dos imigrantes de origem alemã, para os
quais a escolarização estava aliada à religiosidade.12
Outra reflexão refere-se à nacionalização. Para Werle e Metzler (2010), o
governo brasileiro, preocupado com o ensino ministrado em língua estrangeira, tomou
algumas medidas nas áreas de imigração, como, por exemplo, a abertura de escolas públicas.
Neste momento, pode-se pensar que a criação da Escola Garibaldi, por parte do poder público,
também serviu como um meio de nacionalização do grupo imigrante, mesmo esse (1928) não
sendo o período da nacionalização compulsória do ensino. De acordo com Weiduschadt
(2009), antes de 1930 já havia iniciativas para a implantação das políticas nacionalizadoras.
O Brasil, substancialmente no período do Estado Novo, intensificou essas políticas, bem
como os mecanismos de controle, mas algumas medidas nacionalizadoras já existiam antes
do Estado Novo, porém ainda sem uma fiscalização efetiva. Assim, a criação da Escola
Garibaldi em 1928 poderia ser uma estratégia nacionalizadora.
Além dos entrevistados que estudaram na Escola Garibaldi, os demais estudaram
em colégios na cidade vizinha de Canguçu,13 em casa com familiares, ou com irmãos mais
velhos que estudaram na Garibaldi. Exceto a entrevistada, que estudou na escola étnica
alemã, somente um estudou em um colégio particular. Essa entrevistada residia na cidade
vizinha de Canguçu.
Dentre as narrativas dos ítalo-descendentes, foi possível analisar alguns aspectos; um
deles, a relação ente escola e religiosidade. Assim, relembra o entrevistado:

E: Esse aqui ó, esse tal de Egídio [mostra a foto], é parente desse aqui, Miguel
Soares...
P: Professor também?

11 Justino Magalhães (2011), ao escrever sobre o município pedagógico, esclarece que é importante estar
atento ao local pesquisado para entender as generalidades ou especificidades da pesquisa. .
12 Sobre esse assunto, ver: Kreutz (1998, 2000); Dreher (1990).

13 Aproximadamente 55 km de distância de Pelotas.


E: Esse aqui não tinha colégio, na época, ele deu aula na igrejinha que tinha na
comunidade São José, que ele ia ser padroeiro. Esse foi nosso primeiro professor [...]
(MECOM 1).
E: [...] O falecido monsenhor também deu aula para muitos alunos aí, ajudo muito a
turma aí (MECOM 13).

Nesses dois trechos de entrevistas, é possível perceber o vínculo existente entre a Igreja e a
escola. As aulas eram realizadas no espaço da Igreja, assim como os líderes religiosos ministravam
aulas para os alunos. Nas regiões de imigração italiana, a religiosidade, majoritariamente a católica,
esteve presente na vida comunitária. Conforme Luchese (2007, p. 91), estes indivíduos que
imigraram eram, em sua grande parte, católicos e “trouxeram da Itália uma religiosidade com
práticas e valores diferenciados daqueles aqui vivenciados”. Desta forma, uniam-se num esforço
comunitário para construir capelas nas colônias. Próximo à capela da colônia, eram criadas outras
instituições de igual relevância para os imigrantes, tais como cemitério, escola e salão de festas para
a comunidade. Azevedo (1982) observa que a capela era um elemento de integração social entre
os imigrantes italianos, assim como o padre exercia influência importante. Na presente pesquisa,
percebe-se essa ligação com a instituição religiosa. Por exemplo, os alunos estudantes da Escola
Garibaldi, na década de 1940, rememoram a presença do padre na escola ministrando as aulas de
catequese. Mesmo numa instituição pública, há a presença religiosa no ambiente escolar. Ainda
hoje, é significativa a relação existente entre a escola e a comunidade religiosa local: os prédios
novos da escola foram construídos pela comunidade numa união das três Igrejas da região: Igreja
Católica, Igreja Evangélica de Confissão Luterana no Brasil e Igreja Episcopal. Ainda sobre esse
ponto, o terreno no qual a escola está situada pertence à Igreja Católica, sendo demonstrativo que a
comunidade se fez e se faz presente na construção e organização do espaço escolar. Assim explica
um dos envolvidos na construção:

E: A comunidade tinha um material para fazer o salão da comunidade. Aí quando


trocou de padre, então, ele começou a falar em fazer um colégio maior. Aí foram feitas
reuniões, várias vezes. A comunidade doou esse material, o terreno também é da
Mitra, e aí construí em [19] 74 para [19] 75; deve ter nos papéis. Eu até, eu fiz a escola
para os meus filhos. Eu trabalhei de pedreiro o tempo todo, na construção dos dois
prédios. Primeiro foi construída a parte de baixo e depois essa de cima. E a gente
usou muitas vezes, para fazer festa ali, porque não tinha isso aqui [salão da
comunidade]. Me encarregaram de responsável pelas obras. O pessoal trabalhava
bastante. Veio gente de toda a redondeza, fizeram uma comissão; três, quatro pessoas
de casa comunidade e aí tocava. Depois que estava tudo pronto, foi a comissão lá no
prefeito. Foi entregue o prédio, e eles assumissem a responsabilidade dos professores;
foi feito um contrato (J. C. 2016, grifo nosso).

Nessas memórias, percebe-se, principalmente, dois elementos comuns nas narrativas. O


primeiro, a já mencionada relação entre a religiosidade e a instituição escolar. Pode-se observar, na
narrativa, que a escola serviu também como salão de festas da igreja por um período de tempo. O
segundo elemento diz respeito à valorização da escolarização e à importância que a comunidade
atribui não só à escola, como também à participação da comunidade no ambiente escolar. No
excerto acima, isso fica nítido quando o entrevistado diz: “eu fiz a escola para os meus filhos”.
Ainda sobre a construção dos novos prédios da Escola Garibaldi, pode-se notar na rememoração, a
seguir, o envolvimento comunitário:

E: Então, depois, elas foram aos poucos me colocando professores e a gente foi
organizando o horário tudo direitinho para que pudéssemos continuar, dar
continuidade ao trabalho do professor Rodeghiero.
A mão de obra foi um trabalho feito com todos os pais e colocamos pedreiro. Então,
os pais vinham trabalhar. A gente conseguiu uma verbinha e compramos os vidros.
Sabe quem que colocou os vidros nas janelas e terminou de colocar as venezianas.,
foram os próprios alunos com os professores da UMIT14 (grifo nosso).

Torna-se oportuno, neste momento, pensar sobre a memória coletiva. Para Bosi (1994, p.
332), “uma memória coletiva se desenvolve a partir de laços de convivência familiares, escolares,
profissionais. Ela entretém a memória de seus membros, que acrescenta, unifica, diferencia, corrige
e passa a limpo.” Para Halbwachs (2003, p. 30): “jamais estamos sós. Não é preciso que outros
estejam presentes, materialmente distintos de nós, porque sempre levamos conosco e em nós certa
quantidade de pessoas que não se confundem”. É, na maioria das vezes, de forma inconsciente que
as lembranças do grupo são evocadas. Os indivíduos não possuem a clareza das memórias do
coletivo. Ao recordar determinadas situações, o indivíduo não está consciente de que esta memória
tem significado para um grupo mais amplo. Entretanto algumas memórias são tão fortes, que é
possível reconhecer como uma memória grupal (BOSI, 1994).
Ainda nas narrativas dos descendentes italianos, observaram-se as lembranças sobre a
alfabetização em casa:
E: Teve uma época no colégio. Aí o professor me ensinava a ler soletrando. E o meu
pai não podia ver aquilo, não aceitava. Então ele me tirou do colégio e disse que ele
mesmo ia me ensinar. E ele me ensinou...
[Os dois falam juntos]
P: E aí aprendeu o italiano?
E: Aprendi [muito baixo]. Mas tudo o que eu sei aprendi com ele. Mas quase todos
os filhos ele alfabetizou. Só eu me lembro o meu irmão, quer era mais velho do que
eu, que foi no colégio (MECOM 10).

A partir desta rememoração, consegue-se notar dois pontos. O primeiro, a importância


atribuída à instrução. Ao não se adaptar à escola, teve aula com os próprios familiares. O segundo
refere-se ao idioma italiano. O entrevistado relembra que aprendeu em italiano, o que possivelmente

14
Conforme a entrevistada, UMIT (Unidade Móvel de Iniciação ao Trabalho) era um órgão que trabalhava
nas escolas, ajudando na estrutura física, porém a entrevistada não se lembra de mais detalhes.
não aconteceria na escola. Ao entrecruzar as memórias, é possível notar que essa entrevistada é a
mesma que estudou, também, na escola étnica alemã. Possivelmente antes de ir para o município
vizinho de Morro Redondo, foi alfabetizada em casa pelos familiares. Ainda, neste conjunto de
entrevistas, é possível notar que o tempo da escola se faz presente na memória dos depoentes:
P: Quando vocês eram pequenos a senhora lembra?
E: Sim, lembro de quando tinha 13 anos e ia para o colégio, parece que estou indo
(MECOM 24, grifo nosso).
P: E da sua infância, assim, o que que o senhor lembra mais? O que que marcou assim,
da sua infância?
E: Sei lá, colégio... (MECOM 25, grifo nosso).

Para pensar sobre a evocação da memória, busca-se suporte em Candau (2014, p. 33). Para
o autor: “a parte da lembrança que é verbalizada (a evocação) não é a totalidade das lembranças
[...]”, na mesma perspectiva:

[...] na relação que mantém com o passado, a memória humana é sempre conflitiva,
dividida entre um lado sombrio e um lado ensolarado: é feita de adesões e rejeições,
consentimentos e negações, aberturas e fechamentos, aceitações e renúncias, luz e
sombra ou, dito mais simplesmente, de lembranças e esquecimentos (CANDAU,
2014, p. 73, grifo nosso).

Para o referido autor, a memória humana é seletiva, formada por lembranças e


esquecimentos, ou silenciamentos. Assim, nesta narrativa, especificamente, nota-se que, para esta
entrevistada, a lembrança do período escolar é uma memória escolhida para ser evocada, algo
marcante na sua trajetória de vida, pois como afirma Merlo (1997, p. 112), “o que move uma pessoa
recordar determinados fatos do passado são as preocupações com o presente: ausência ou presença
de algo ou alguém; sentimentos submersos que podem vir à tona no ato de lembrar ou provocar o
esquecimento”. Desta maneira, torna-se imprescindível reforçar que não se está a reproduzir os
fatos tais quais eles aconteceram, mas, sim, a reinterpretá-los. O que é rememorado são os
acontecimentos e vivências guardadas pelos narradores. Se, por um lado, não é possível lembrar de
tudo, pois a lembrança se vale de estratégias para lembrar o que lhe é significativo, esquecer
acontecimentos não marcantes, por outro lado, ao evocar estas lembranças, o narrador pode não
falar sobre determinados pontos ou assuntos que não lhe sejam confortáveis; ou seja, há uma
escolha inconsciente e outra consciente no momento da evocação. Para Bosi (1994, p. 55), “[...] na
maior parte das vezes, lembrar não é reviver, mas refazer, reconstruir, repensar, com imagens e
ideias de hoje, as experiências do passado [...] a lembrança é uma imagem construída pelos
materiais que estão agora a nossa disposição [...]”. Com as explicações dos autores, entra em cena
outro elemento. A memória é evocada no presente, os acontecimentos relembrados referem-se a um
tempo passado, mas não distanciados das vivências posteriores dos narradores. Entende-se que a
evocação é algo construído, ou seja, relembra-se a partir do presente e, logicamente, está imbuída
de vivências posteriores ao tempo relembrado, o que corrobora a assertiva de Janaína Amado (1995)
de que o vivido é diferente do lembrado.

O presente texto teve como objetivo analisar a trajetória escolar dos descendentes de
imigrantes italianos. Assim sendo, foi possível realizar algumas considerações. É percebível a
importância concedida à educação e à escolarização pelo grupo. Independentemente do tipo de
escola ou se foram alfabetizados em casa, essas memórias estão carregadas do quanto eram
necessárias, nas comunidades, as iniciativas escolares. Da mesma forma, foi possível notar que a
religiosidade se faz presente neste contexto. Além disso, tem relação com a escolarização: aulas
eram dadas no espaço da igreja, assim como os líderes religiosos participavam do espaço escolar.
Nota-se também a junção dos grupos e das lideranças religiosas, de três orientações, na década de
1970, para a construção dos novos prédios da Escola Garibaldi, o que é demonstrativo da
importância que esses grupos concediam à escolarização e se organizavam para isso. Esta é uma
característica dos grupos de imigrantes: a relação com a religiosidade. Ao emigrarem da Europa
para o Brasil, esses grupos trouxeram consigo valores vivenciados na terra natal, e isso foi
transmitido aos descendentes.
Os conceitos de identidade e identidade étnica foram aqui utilizados na sua visão não
essencialista, ou seja, com o entendimento de que a identidade é construída. Decerto que o meio
geográfico influencia. Entretanto, mais do que isso, as relações sociais estabelecidas e o
compartilhamento de códigos culturais comuns é o que dá consciência a um grupo étnico. Desta
forma, ao pensar na trajetória escolar dos descendentes de imigrantes italianos, é necessário o
esclarecimento de que as rememorações estão imbuídas do sentimento de pertencimento étnico e,
sobretudo, comunitário. Aliado a isso, as lembranças da terra natal de seus antepassados são
perpassadas de uma geração para outra, porém nesse processo há mudanças, adaptações ou, como
diz Hobsbawn e Ranger (2012), há uma invenção das tradições.
Nas memórias evocadas pelos descendentes de italianos, muitos desses estudaram na Escola
Garibaldi, escola pública da região, situada na colônia de italianos. Outra característica comum do
grupo dos italianos, é a preferência por escolas públicas, conforme aponta Luchese (2007).
Para finalizar, é necessário mencionar que, apesar deste estudo ter sido realizado em uma
região do Estado do Rio Grande do Sul, é possível, a partir desse conjunto de narrativas,
compreender como o grupo étnico se organizava em termos de escolarização. Outrossim, é
oportuno registrar a relevância da constituição de narrativas orais e da salvaguarda destas como
acervos, os quais potencializam a realização de diferentes pesquisas por diversas áreas de
conhecimento e pontos de vista.
ALBERTI, VERENA. Ouvir contar: textos em História Oral. Rio de Janeiro: Ed. da FGV, 2004.

AMADO, Janaína. O grande mentiroso: tradição, veracidade e imaginação em história oral. In:
História, São Paulo, p.125-136, 1995. Disponível em: <https://goo.gl/Bt9UP1> Acesso em: 10
mar. 2016.

AMADO, Janaína; FERREIRA, Marieta de Moraes. Apresentação. In: AMADO, Janaína,


FERREIRA, Marieta de Moraes; (Org.) Usos e abusos da História Oral. 8.ed. Rio de Janeiro: Ed.
da FGV, 2006.

AZEVEDO, Thales de. Italianos e gaúchos: os anos pioneiros da colonização italiana no Rio
Grande do Sul. 2. ed. Rio de Janeiro: Cátedra, 1982.

BOSI, Ecléa. Memória e sociedade: lembranças de velhos. 3. ed. São Paulo: TA, 1994.

BURKE, Peter. O que é história cultural?. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2005.

CANDAU, Joel. Memória e Identidade. 1.ed. 2. reimpr. São Paulo: Contexto, 2014.

CASTRO, Renata Brião de. A Escola Garibaldi e o professor José Rodeghiero na Colônia Maciel
– Pelotas (RS) (1928 – 1950): grupo local e etnia. 2017. 220 f. Dissertação (Mestrado em
Educação) – Programa de Pós-Graduação em Educação, Universidade Federal de Pelotas.

CERQUEIRA, Fábio Vergara et al. Museu Etnográfico da Colônia Maciel: a trajetória de um


equipamento cultural dedicado à memória da comunidade ítalo-descendente de Pelotas. Revista
Memória em Rede, Pelotas, v.1, n. 1, p. 70 - 85, 2009. Disponível em:
<https://periodicos.ufpel.edu.br/ojs2/index.php/Memoria/article/view/9567>. Acesso em: 11 jun.
2015.

CERTEAU, Michel de. A escrita da história. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1982.

DREHER; Martin (Org.). Populações rio-grandenses e modelos de Igreja. São Leopoldo: EST;
Sinodal, 1990.

GIL, Antônio Carlos. Métodos e técnicas de pesquisa social. In: Métodos e técnicas de pesquisa
social. São Paulo: Atlas, 2010.

GINZBURG, Carlo. Mitos, emblemas, sinais: morfologia e história. São Paulo: Companhia das
Letras, 1990.
GRAZZIOTIN, Luciane Sgarbi Santos; ALMEIDA, Dóris Bittencourt. Romagem do tempo e
recantos da memória: reflexões metodológicas sobre História Oral. São Leopoldo: Oikos, 2012.

HALBWACHS Maurice. A memória coletiva. São Paulo: Centauro, 2003.

HALL, Stuart. Quem precisa de identidade? In: SILVA, Tomás Tadeu da (Org.). Identidade e
diferença: a perspectiva dos estudos culturais. Petrópolis: Vozes, 2014, p. 103-133.

HOBSBAWM, Eric; RANGER, Terence. A invenção das tradições. 2 ed. São Paulo: Paz e Terra,
2012.

KREUTZ, Lúcio. A educação de imigrantes no Brasil. In: LOPES, Elaine Marta Teixeira; FARIA,
Luciano Filho Mendes de; VEIGA, Cintia Greiva (Org.). 500 anos de História da Educação no
Brasil. 2 ed. Belo Horizonte: Autêntica, 2000, p. 347-370.

_____. Etnia e educação: perspectivas para uma análise histórica. In: SOUSA, Cynthia Pereira de;
CATANI, Denice Barbara (Org.). Práticas educativas, culturais escolares, profissão docente. São
Paulo: Escrituras Editora e Distribuidora de Livros, 1998, p. 93-110.

KUHKMANN, Moysés Júnior; FERNANDES, Fabiani Silva. Periódicos e a História da


Educação: base de dados como recurso metodológico. São Paulo: FCC/SEP, 2014.

LE GOFF, Jacques. A história nova. In: NOVAIS, Fernando A.; SILVA, Rogério. (Org.). Nova
história em perspectiva. v. 1. São Paulo: Cosac Naify, 2011, p. 128-176.

_____. História e memória. Campinas: Ed. da UNICAMP, 1990.

LOPES, Eliane Marta Teixeira; GALVÃO, Ana Maria de Oliveira. História da Educação. Rio de
Janeiro: DP&A, 2001.

LUCHESE, Terciane Ângela. O processo escolar entre imigrantes na região colonial italiana do
Rio Grande do Sul, 1875 a 1930: leggere, scrivere e calcolare per essere alcuno nella vita. 2007.
495f. Tese (Doutorado em Educação) – Programa de Pós-Graduação em Educação, Universidade
do Vale do Rio dos Sinos, São Leopoldo.

MAGALHÃES, Justino Pereira de. Os Arquivos e os Museus Autárquicos na Construção do


Município Pedagógico. 10º Encontro Nacional de Arquivos Municipais, 10, 2011. Anais
eletrônicos... Disponível em: <http://repositorio.ul.pt/handle/10451/5178>. Acesso em 15 de mar.
2016.
MERLO, Márcia. As vozes do Bonete, uma face de Ilhabela. In: DIEGUES, Antônio Carlos S.
(Org.). Ilhas e sociedades insulares. São Paulo: NUPAUB-USP, 1997.

MORAES, Roque. Uma tempestade de luz: a compreensão possibilitada pela análise textual
discursiva. Ciência & Educação, v. 9, n. 2, p. 191-211, 2003. Disponível em:
<www.scielo.br/pdf/ciedu/v9n2/04.pdf> Acesso em 29 abr. 2015.

NORA, Pierre. Entre memória e história: a problemática dos lugares. Projeto História: Revista do
Programa de Estudos Pós-Graduados de História, v. 10, 1993. Disponível em: <
https://revistas.pucsp.br/index.php/revph/article/view/12101/8763>. Acesso em 05 jun. 2015.

PESAVENTO, Sandra Jatahy. História e História Cultural. 2 ed. Belo Horizonte: Autêntica,
2004.

POLLAK, Michael. Memória e identidade social. Estudos históricos, Rio de Janeiro, v. 5, n. 10,
p. 200 - 212, 1992. Disponível em: <https://goo.gl/g1vItF> Acesso em: 25 mar. 2015.

_____. Memória, esquecimento, silêncio. Estudos Históricos, v. 2, n. 3, p. 3-15, 1989. Disponível


em: <http://www.uel.br/cch/cdph/arqtxt/Memoria_esquecimento_silencio.pdf>. Acesso em: 27
mar. 2016.

POUTIGNAT, Philippe; STREIFF-FENART, Jocelyne. Teorias da etnicidade. 2. ed. São Paulo:


Unesp, 2011.

VOLDMAN, Daniéle. Definições e usos. In: AMADO, Janaína; FERREIRA, Marieta de Moraes
(Org.). Usos e abusos da História Oral. 8. ed. Rio de Janeiro: Ed. da FGV, p. 33-41, 2006.

WEIDUSCHADT, Patrícia. A nacionalização do ensino no contexto imigratório. Encontro da


Associação Sul-Rio-Grandense de Pesquisadores em História da Educação, 15., 2009, Caxias do
Sul. Anais... Caxias do Sul: ASPHE, 2009.

WERLE, Flávia Obino Correa; METZLER, Ana Maria Carvalho. Contextos, institucionalização e
práticas pedagógicas. In: WERLE, Flávia Obino Correa (Org.). Educação Rural: práticas
civilizatórias e institucionalização da formação de professores. São Leopoldo: Oikós, 2010. p. 15-
52.

WOODWARD, Kathryn. Identidade e diferença: uma introdução teórica e conceitual. In: SILVA,
Tomás T. da (Org.) Identidade e diferença: a perspectiva dos estudos culturais. Petrópolis: Vozes,
2014, p. 7-73.
Evelin Stahlhoefer Cotta
Margarete Panerai Araújo

A Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) passou por modificações


importantes e rupturas epistemológicas em mais de um século de atuação. Nesta perspectiva
precisou garantir inovação, além de ações educativas e tecnológicas no fazer massificante de
conhecimento. O curso de Administração da UFRGS foi criado nos anos de 1960 dentro da
Faculdade de Ciências Econômicas. Entretanto, a partir de 1996 tornou-se unidade acadêmica
própria, intitulada Escola de Administração (EA). A criação da Escola foi noticiada e documentada,
porém não havia a versão dos atores que participaram daquele momento. Falas que carregam
emoções, sentimentos do passado vivenciado, revividos na condição do presente, complementando
os fatos oficialmente registrados.
Formar profissionais, imbuindo-os de um habitus que se manifesta em novas maneiras de
ser, agir e pensar no mercado de trabalho. Percebe-se a importância da instituição para o
desenvolvimento econômico e social do Estado a partir de seus egressos. São milhares de graduados
desde a década de 1960. Na Pós-Graduação lato sensu são mais de cinco mil especialistas formados
desde a década de 1980. Já na pós-graduação stricto sensu são mais de 1600 mestres e doutores
formados desde a década de 1970. Para docentes e técnico-administrativos, a Universidade se
apresenta como oportunidade para desenvolver carreiras e mudar expectativas de vida. Justificou-
se que para os atores envolvidos a importância de conhecer a história e a memória da instituição e,
a partir delas, das evidências na construção de novo habitus foi relevante, visto que fomentou novas
construções para o campo acadêmico e novas trajetórias: pessoais, acadêmicas, profissionais e
institucionais. A pesquisa desenvolvida foi fruto de dissertação de Mestrado que realizou um estudo
analítico a partir do referencial teórico de Pierre Bourdieu, tendo como foco e problemática a
construção do habitus a partir das evidências emanadas da pesquisa histórica e das entrevistas de
História Oral realizadas com atores vinculados à EA da UFRGS, entre 1996 e 2016.
Metodologicamente, os depoimentos de História Oral receberam formatação diferenciada no corpo
do texto para não serem confundidos com as citações das obras. O artigo está dividido nessa
introdução e nas demais subseções que abordam a metodologia de História Oral utilizada na

* UNILASALLE. Mestrado em Memória Social e Bens Culturais do UNILASALLE - Canoas. Bibliotecária na Escola de
Administração da UFRGS. .
** UNILASALLE. Pós-doutorado em Administração Pública e de Empresas em Políticas Estratégicas pela FGV EBAPE/RJ.
Professora Pesquisadora no Programa de Pós-Graduação em Memória Social e Bens Culturais do UNILASALLE – Canoas.
dissertação de Mestrado. Segue com a conclusão e as referências.

Os caminhos adotados no processo de investigação culminaram com o alcance dos


objetivos da pesquisa. De acordo com Prodanov e Freitas (2013, p. 27), “A utilização de um ou
outro método depende de muitos fatores: da natureza do objeto que pretendemos pesquisar, dos
recursos materiais disponíveis, do nível de abrangência do estudo e, sobretudo, da inspiração
filosófica do pesquisador.” O foco desta pesquisa foi baseado na teoria metodológica bourdiana.
Um dos desafios da humanidade é a descoberta dos fenômenos que cercam a existência
humana, seu agir, seu pensar. A pesquisa científica vale-se do rigor e da formalidade para o alcance
de novas realidades. Também auxilia na compreensão do mundo, fornecendo respostas para os
problemas de pesquisa mediante o uso de uma metodologia científica com o objetivo de evolução
da ciência. Conforme Gil (2002, p. 17) “A pesquisa é desenvolvida mediante o concurso dos
conhecimentos disponíveis e a utilização cuidadosa de métodos, técnicas e outros procedimentos
científicos”. A pesquisa acadêmica, portanto, é um processo que requer várias etapas e que se
destina a alcançar objetivos, práticos ou teóricos.

O propósito da pesquisa científica é contemplar aspectos variados de um tema de pesquisa


e contribuir para o progresso do conhecimento. Para tanto, deve ser crítica, metódica e sistemática
e varia conforme a natureza, os objetivos, os procedimentos técnicos e a abordagem (PRODANOV;
FREITAS, 2013, p. 49):
a) Natureza: foi uma pesquisa aplicada, destinada à solução de problemas específicos e que
estudou os fenômenos aplicados ao objeto de estudo;
b) Objetivo: utilizou-se a pesquisa descritiva e relacional segundo Bourdieu. A pesquisa
descritiva, comumente utilizada nas ciências sociais, preocupa-se em “classificar, explicar e
interpretar fatos que ocorrem” (PRODANOV; FREITAS, 2013, p. 52). O método relacional que se
impõe, segundo Bourdieu (2005, p. 27), é “[...] verificar que o objecto em questão não está isolado
de um conjunto de relações de que retira o essencial das suas propriedades”. Em outras palavras,
pensar o campo e os agentes em termos de relações. Por isso, a pesquisa fez uso da História Oral
híbrida. Isto é, além da coleta de entrevistas com análises e comparações entre elas, houve o
cruzamento destas informações com as dos documentos factuais. A História Oral, quando gravada
num suporte eletrônico e transcrito torna-se documento referencial. Assim, também sustenta Meihy
(2005, p. 31): “Desde que o oral seja vertido para o escrito, ele também ganha foros de documento”;
c) Procedimentos técnicos: para executar a pesquisa, foi necessário utilizar a pesquisa
bibliográfica, a pesquisa documental, a pesquisa fotográfica e a pesquisa de campo.
A pesquisa bibliográfica valeu-se das contribuições já publicadas de diferentes autores sobre
o assunto que vieram ao encontro do referencial teórico da pesquisa. Além disso, a pesquisa utilizou
boletins e materiais de comunicação da Escola de Administração que contemplavam a divulgação
das atividades e projetos desenvolvidos entre 1996 e 2016.
A pesquisa em documentos de primeira mão, de acordo com Prodanov e Freitas (2013, p.
55) “baseia-se em materiais que não receberam ainda um tratamento analítico ou que podem ser
reelaborados de acordo com os objetivos da pesquisa.” Na presente pesquisa foi feita a consulta a
vários tipos documentais de primeira mão, exemplificados e descritos no Quadro 1:

Quadro 1 - Tipos documentais de primeira mão (continua)


Documento Ano Descrição

Programa de 1978 Programa de Pós-Graduação em Administração


Trabalho
Carta 1993 Enviada aos professores do DCA para opinarem a respeito da
criação da EA
Carta 1995 Enviada pelo professor Carlos Alberto Martins Callegaro, Diretor
da Escola de Administração, ao Deputado Federal Nelson
Marchesan, solicitando a instalação da EA da UFRGS no prédio
que ocupava a Rede Ferroviária Federal S/A, em Porto Alegre
Portaria 1995 Designação dos nomes para compor comissão de análise da
criação da EA
Proposta 1995 Proposta de criação da EA contendo os seguintes itens e
especificações: 1- Espaço Físico, 2- Patrimônio, 3- Biblioteca, 4-
Pessoal, 5- Verba Orçamentária, 6- Transição da Direção e 7-
Cronograma Previsional da Transição
Carta 1996 Carta enviada por Pedro Cezar Dutra Fonseca, Diretor da
Faculdade de Ciências Econômicas, ao Reitor Helgio Trindade,
pedindo pela reconsideração relativa a não aprovação da criação
da EA pelo Conselho Universitário
Decisão 1996 Conselho Universitário decide aprovar a criação da EA da
UFRGS
Fonte: Produzido pela autora, 2016.

Quadro 2 - Tipos documentais de primeira mão (conclusão)


Documento Ano Descrição

Portaria 1996 Criação da EA


Portaria 1996 Reitora designa Carlos Alberto Martins Callegaro como
Coordenador da EA
Ata 1996 Primeira reunião administrativa da EA
Livro de 1996 1a turma de formando da EA da UFRGS
formatura
Ofício 1997 De Professor Carlos Alberto Martins Callegaro para a
Magnífica Reitora Wrana Maria Panizzi, solicitando a
intervenção junto aos Ministros da Educação e dos Transportes
para que intercedam a favor da instalação da EA no prédio da
Rede Ferroviária Federal S/A, Porto Alegre. Previsão de
quatro meses para o prédio, na rua Voluntários da Pátria 1358,
estar em uso
Carta 1997 Convite à Reitora Wrana Panizzi para participar da reunião
para formação do Centro Acadêmico
Memorando 1999 Destinação dos bens móveis e imóvel da extinta DEMEC-RS
circular
Regimento 2000 Escola de Administração da UFRGS
interno
Fonte: Produzido pela autora, 2016.

Os documentos de segunda mão são aqueles que já receberam algum tratamento ou análise,
como relatórios de pesquisa, tabelas estatísticas, etc. O Quadro 2 exemplifica um tipo de documento
de segunda mão utilizado.

Quadro 3 - Tipo documental de segunda mão


Documento Ano Descrição

Relatório de 1970 Atividades desenvolvidas pelo instituto de


atividades Administração da faculdade de Ciências Econômicas
da UFRGS
Fonte: Produzido pela autora, 2016.

A fotografia é um método visual disponível para a pesquisa social e, segundo Bauer e


Gaskell (2012, p. 137) merecem destaque por três razões: 1) a imagem, com ou sem som,
proporciona registro restrito, porém muito importante dos fatos; 2) a informação visual pode valer
para comprovação da realidade; 3) atualmente, devido ao espaço dedicado ao visual nos meios de
comunicação, a fotografia se torna elemento importante na “vida social, política e econômica”. A
fotografia seria o próprio “fato social”, na perspectiva de Durkheim. Neste trabalho, as fotografias
foram utilizadas como apoio e comprovação aos textos e às falas. Entretanto, a utilização da
fotografia apresenta algumas limitações: facilidade de manipulação das imagens digitais, que
significa em alteração da realidade capturada e de serem uma simples representação “de um
complexo maior de ações passadas”, ou seja, não se tem a dimensão de tudo que estava relacionado
ao fato a partir da imagem (BAUER, GASKELL, 2012, p. 138).
A pesquisa de campo auxiliou na descoberta de novos fenômenos ou na relação entre eles
e, segundo Prodanov e Freitas (2013, p. 59) “Consiste na observação de fatos e fenômenos tal como
ocorrem espontaneamente, na coleta de dados a eles referentes e no registro de variáveis que
presumimos relevantes, para analisá-los.” A coleta de dados foi realizada através de entrevista de
História Oral, que será abordada mais adiante.
d) Abordagem do problema: utilizou-se a pesquisa qualitativa, onde a subjetividade do
agente social requereu interpretação e significação. Este tipo de pesquisa “[...] envolve examinar e
refletir as percepções para obter um entendimento de atividades sociais e humanas” conforme
Lakatos e Markoni (2007, p. 269).

A História Oral é uma prática que utiliza depoimentos e testemunhos gravados que, após
serem transcritos e analisados, se tornam documentos que facilitam o conhecimento do campo
estudado. Esta prática requer um conjunto de procedimentos que prevê desde o planejamento das
entrevistas, autorização de uso, até a análise conforme os objetivos da pesquisa. “História Oral é
uma alternativa para estudar a sociedade por meio de uma documentação feita com o uso de
depoimentos gravados em aparelhos eletrônicos e transformados em textos escritos”, conceitua
Meihy (2005, p. 18). Na presente pesquisa, as falas foram gravadas em aparelho de telefone móvel.
O conhecimento social da História Oral acaba por questionar a tradição factual tornando o
processo histórico inacabado e em constante transformação. “É isto que marca a História Oral como
‘história viva’” (MEIHY, 2005, p. 19). Valoriza a participação de cada depoente na construção da
história institucional. A História Oral dá sentido aos atos sociais vivenciados pelos atores a partir da
visão do presente. A história é vivenciada pelos cidadãos comuns a partir de sua forma de agir e
pensar, individual e coletivamente. Neste sentido “[...] o cotidiano e os grandes fatos ganham
equiparação na medida em que se trançam para garantir a lógica da vida coletiva”, afirma Meihy
(2005, p. 25). Por isso que a História Oral tem grande invocação emocional e reconhecimento
popular. A pesquisa desenvolvida se valeu da História Oral temática, isto é, abordou um tema
específico, pois pesquisou a história e memória da Escola de Administração da UFRGS. A partir de
um roteiro de entrevista pré-estabelecido, enviado com antecedência ao entrevistado, a História
Oral trabalhou com as memórias de docentes, técnicos administrativos e discentes da EA da
UFRGS, buscando testemunhos de quem vivenciou os acontecimentos factuais.

Os atores do campo acadêmico foram selecionados por intencionalidade e de acordo com


os objetivos da pesquisa dentro do período de 20 anos da instituição, isto é, de 1996 a
2016. Entende-se por intencionalidade a:
[...] posição do entrevistado no grupo, do significado de sua experiência. Assim, em
primeiro lugar, convém selecionar os entrevistados entre aqueles que participaram,
viveram, presenciaram [...] ocorrências ou situações ligadas ao tema que o pesquisador
pretende investigar e que podem fornecer depoimentos significativos (ALBERTI, 1990,
p.14).

Em outras palavras, os entrevistados foram selecionados a partir da posição estratégica


ocupada no campo acadêmico, e que, de forma geral, são ou foram ocupantes de cargos de
liderança. Bourdieu (2005, p. 40) exemplifica a questão de como escolher os nomes para a pesquisa:
Se, num estudo do campo da magistratura, não se considerar o presidente do Supremo
Tribunal de Justiça ou se, num estudo sobre o campo intelectual em França em 1950, não
se considerar Jean-Paul Sartre, o campo fica destruído, porque estas personagens marcam,
só por si, uma posição. Há posições de um só lugar que comandam toda a estrutura (grifo
da autora).

Estes atores da História Oral são representativos frente ao tema que se quis estudar e,
portanto, justificam o investimento de recursos. De qualquer forma, é importante ter consciência
que a escolha dos entrevistados requereu alguns requisitos, como: a) a possibilidade de ser
entrevistado; b) os objetivos da pesquisa; c) a abordagem qualitativa e o uso do método da História
Oral; d) o conhecimento por antecipação do objeto a ser estudado (ALBERTI, 1990). A ideia de
entrevistar diferentes atores recaiu na perspectiva de poder analisar e comparar as falas e de poder
captar diferentes visões sobre o objeto estudado.
Assim, o número de entrevistados de uma pesquisa de História Oral deve ser
suficientemente significativo para viabilizar um certo grau de generalização dos resultados
do trabalho, para permitir que se retire, do conjunto de depoimentos realizados, um
instrumental consistente que fundamente sua análise (ALBERTI, 1990, p. 18).

Por isso, foi a partir da realização das entrevistas que o número de entrevistados pôde ser
melhor dimensionado. O número de entrevistas pode ser pensado até “limitar-se ao ponto em que
as experiências narradas se repetem” defende Meihy (2005, p. 85). Isto é, as falas começam a se
repetir e o esforço na execução de novos diálogos não compensa o pouco conteúdo original que
trazem.
A entrevista adotada nesta pesquisa chama-se temática, isto é, “são aquelas que versam
especificamente sobre a participação do entrevistado no tema escolhido como objeto principal”,
define Alberti (1990, p. 19). Este tipo de entrevista requereu um conhecimento prévio da biografia
do entrevistado, justamente para poder conhecer como as experiências e as vivências melhor se
adequavam ao propósito da pesquisa. Neste aspecto, a pesquisadora utilizou de fontes primárias
como documentos e fontes secundárias como boletins informativos da Escola de Administração da
UFRGS, além do currículo Lattes, para conhecer a vida acadêmica e profissional dos atores
entrevistados. Conforme Alberti (1990, p. 56), “[...] o conhecimento prévio da biografia do sujeito,
mesmo que limitado a apenas um dado, constitui condição para iniciar-se uma entrevista de História
Oral”. E, além disso, as informações prévias permitiram à pesquisadora “[...] participar mais
ativamente da construção do [...] depoimento”, conclui Alberti (1990, p. 56).

A História Oral requer equipamentos de gravação dos depoimentos para registro e futura
reprodução e divulgação. De acordo com Meihy (2005, p. 32), “A História Oral, pelo contato com
meios eletrônicos, mostra as vantagens do manejo de artefatos da atualidade, que têm, também,
sentido para a produção, a preservação de documentos e as análises sociais.” Apesar da importância
dos artefatos tecnológicos, o contato pessoal entre entrevistado e entrevistador é a principal
contribuição da História Oral, visto que as feições do rosto e os gestos e movimentos do corpo não
são captados em gravações de voz, método utilizado nesta pesquisa. Para registrar as falas, a
entrevistadora utilizou telefone móvel celular com aplicativo Gravador de Voz. Para ouvir e
transcrever as entrevistas foi utilizado o Windows Media Player, que reproduziu a mídia digital
através do computador.
A partir da lista inicial de entrevistados, iniciou-se a marcação das entrevistas de acordo
com a facilidade e disponibilidade de acesso a eles. Isto é, foram escolhidos os docentes, técnicos
administrativos e discentes que atualmente tem vínculo com a instituição, pois segundo Alberti
(1990, p. 52), “[...] a partir da relação estabelecida, [poderão] mediar novos contatos no interior do
conjunto listado”. Foram os entrevistados iniciais responsáveis, inclusive, pela exclusão de alguns
nomes inicialmente selecionados, mas que, justificadamente, não valiam o investimento da
entrevista.
Os entrevistados foram contatados, primeiramente, por e-mail ou por telefone. Neste
contato foi abordada sobre a pesquisa e a importância da fala do entrevistado. Após o aceite, uma
segunda mensagem foi enviada com informações a respeito do local, horário da entrevista e o
roteiro de entrevista oral para que o entrevistado pudesse se preparar e para que as expectativas não
gerassem desconforto ao depoente. Na entrevista, os assuntos anteriormente mencionados no
primeiro contato por e-mail ou por telefone foram retomados. Esclareceu-se que as falas seriam
gravadas e futuramente utilizadas apenas para fins acadêmicos. Também foi mencionado que, ao
final da entrevista, o depoente assinaria um termo que autoriza a utilização das falas. Este termo
chama-se Termo Livre e Esclarecido. Condição ética importante, a cessão de direitos da entrevista
foi exposta ao entrevistado com as implicações contratuais de suas falas e preferencialmente deve
ser assinada ao fim da entrevista, pois assim “reservamos ao entrevistado o direito de modificar o
teor da carta de cessão, fazendo as restrições que achar necessárias, inclusive embargando trechos
cuja consulta julgue inconveniente” (ALBERTI, 1990, p. 55). Se assinasse no início da fala, estaria
autorizando algo que ainda não tem conhecimento.
As entrevistas foram realizadas na sala de reuniões da Escola de Administração, em salas
de estudo da Biblioteca e no estúdio de TV. A preferência na escolha dos ambientes recaía
primeiramente entre o estúdio de TV e a sala de reuniões da EA por serem locais com baixo ruído,
além de disporem de ampla mesa com cadeiras e ar-condicionado que proporcionou ambiente
agradável. A mesa serviu de suporte para o telefone móvel celular que gravou a entrevista, para o
roteiro de entrevista e para as folhas de anotações. A duração das falas, em média de uma hora e
meia, dependeu da disponibilidade do entrevistado, de suas condições físicas e do encaminhamento
da conversa se favorável ou pouco estimulante. De qualquer forma, Alberti (1990, p. 75) estima
“[...] uma média de duas horas de gravação por sessão de entrevista”.
Além dos mecanismos externos mencionados, o comportamento da entrevistadora foi foco
importante da entrevista. Primeiramente, disponibilizou total atenção ao depoente, procurando não
desviar os olhos do entrevistado enquanto este falava. Visto o empenho e o desgaste intelectual na
busca de acontecimentos passados, o foco no depoente auxiliou em sua fala e mostrou o interesse
do interlocutor. As anotações foram breves, se restringindo a questões ou a encaminhamentos
diferentes que foram seguidos durante o roteiro de entrevista, como perguntas extras que foram
questionadas após a fala presente.

História e memória remetem a manifestações do passado, mas a dinâmica de ambas é


diferente. Enquanto a disciplina de História estuda fatos documentados e confiáveis do passado,
“[...] a memória tem sido considerada um espaço no qual o repertório das versões sobre o passado
ainda não ganhou a dimensão escrita possibilitada pela História Oral” (MEIHY, 2005, p. 62). A
imaginação sobre o passado, transformada em linguagem e narrativa, acaba por se transformar em
fonte escrita. Por isso, memória e História Oral apresentam importante relação. Na verdade “[...] a
memória é um suporte para as narrativas de História Oral, mas não é ela” (MEIHY, 2005, p. 62). A
memória trata de selecionar, segundo uma lógica subjetiva a quem lembra, fatos acontecidos
socialmente. Em outras palavras, a memória individual tem validade para a História Oral quando
está socialmente inserida, pois, segundo Meihy (2005, p. 62) “[...] toda a memória tem índices
sociais que a justificam”. É na relação do indivíduo com o grupo que as recordações se configuram.
A História Oral auxilia nos projetos que abordam a localização dos indivíduos na sociedade, pois
são como condutores para as narrativas das experiências vivenciadas de formação acadêmica, no
caso desta pesquisa, na Escola de Administração da UFRGS. Estas experiências formaram a
identidade de um grupo e condicionaram seu lugar dentro do espaço social estudado. Conforme
Meihy (2005, p. 79) “O que se chama de ‘grupal’, ‘cultural’, ‘social’ ou ‘coletivo’ em História Oral
é o resultado de experiências que vinculam algumas pessoas a outras segundo pressupostos
articuladores de identidades decorrentes de memórias culturais”.
A História Oral sempre será social, pois o indivíduo se define a partir dos grupos onde está
inserido. E uma das formas do indivíduo se identificar é a partir da atuação na instituição a que está
vinculado. No caso da Escola de Administração, quer seja discente, técnico administrativo ou
docente, o grupo se identifica pela causa da formação acadêmica em Administração de Empresas
ou Administração Pública e Social e por este motivo que o método de História Oral veio ao encontro
da pesquisa. “Por isso a História Oral busca reinserir o indivíduo no contexto”, defende Meihy
(2005, p. 83). Justamente porque as organizações são compostas por pessoas, responsáveis pela
construção institucional. Neste aspecto “O estudo das identidades resgata o caráter humano da
sociedade” (MEIHY, 2005, p. 83), sendo a “questão da identidade [...] objetivo do trabalho de
História Oral” (MEIHY, 2005, p. 85). A História Oral institucional tem o caráter de reunir trajetórias
profissionais, projetos institucionais para que o grupo se auto defina. De acordo com Meihy e
Ribeiro (2011, p. 52), “Cabe, portanto, à História Oral institucional a organização documental que
permite: identificar, marcar posições, conferir o andamento da trajetória e firmar presença em
contextos corporativos”. Os documentos organizados no arquivo permanente da Escola de
Administração para fins administrativos e jurídicos, acrescentados às falas e depoimentos, tratam
por conduzir o grupo a um autoconhecimento e à projeção externa. A História Oral é uma alternativa
democrática para as versões oficiais documentadas. A História Oral, beneficiada pelas tecnologias
que facilitam a condução e registro das falas, acaba por tornar os depoimentos verdadeiros
documentos para a história institucional.
Para coletar dados para a pesquisa, utilizou-se como instrumento um roteiro de entrevista
de História Oral que seguiu as seguintes etapas que visaram contemplar os objetivos propostos: a)
Perfil – contempla dados sócio-educacionais; b) Roteiro relativo à história da Escola de
Administração da UFRGS – contempla fatos históricos que ocorreram na época em que o
entrevistado tinha vínculo com a Universidade; c) Roteiro relativo à memória institucional –
contempla lembranças das vivências na instituição, bem como motivações para ingressar na Escola
de Administração; d) Roteiro relativo à formação e educação integral – contempla as atividades
extraclasse que o entrevistado participou e se a instituição contribuiu para uma nova forma de ser e
pensar do entrevistado.

Esta etapa da pesquisa desenvolveu a interpretação e análise dos relatos transcritos a partir
das entrevistas de História Oral que foram confrontados com os pressupostos levantados na fase
inicial. Juntamente com o referencial teórico desenvolvido o pesquisador pode apresentar
conclusões (PRODANOV; FREITAS, 2013, p. 112). Ou, como descreve Bourdieu (2005, p. 49),
leva o pesquisador a uma “conversão do olhar”. O mundo social passa a ser visto diferentemente,
“Trata-se de produzir, senão ‘um homem novo’, pelo menos, ‘um novo olhar’, um olhar
sociológico. E isso não é possível sem uma verdadeira conversão, uma metanoia, uma revolução
mental, uma mudança de toda a visão do mundo social” (BOURDIEU, 2005, p. 49). Este novo
olhar pode ser visto a partir da análise de conteúdo das entrevistas de História Oral, que segundo
Bardin (2011, p. 38) pode ser utilizada a qualquer tipo de texto: “[...] qualquer comunicação, isto é,
qualquer veículo de significados de um emissor para um receptor, [...], deveria poder ser descrito,
decifrado pelas técnicas de análise de conteúdo”. Isto é, através das falas de docentes, técnicos
administrativos e discentes objetivou-se analisar evidências da criação de um novo habitus a partir
da história e da memória institucional da Escola de Administração.
A metodologia de análise de Bardin é composta de três etapas: pré-análise, exploração do
material e interpretação dos dados. Ou seja, categorias temáticas homogêneas entre os textos para
que então se pudessem fazer inferências além do que estava escrito. O trabalho de organização das
falas de entrevista de História Oral possibilitou a criação de um esquema de categorias e
subcategorias a partir das questões do roteiro de entrevista conforme o Quadro 3.

Quadro 4 - Categorias, subcategorias de análise a partir do roteiro de entrevista.


Categoria Questões do roteiro de entrevista Subcategorias
História da Vivências na época anterior e posterior Argumentos para a criação da EA
EA a criação da EA e a participação em Prédio próprio
iniciativas/projetos da EA. Desafios da nova unidade acadêmica
Memória Lembranças da época em que Orgulho de pertencimento
institucional estudou/trabalhou na EA; motivações Nova unidade acadêmica
para escolha da EA como local para Práticas organizacionais
estudar/trabalhar; trajetória memorial
da instituição.
Habitus Vivências sobre a formação Experiência acadêmica
acadêmica; experiências de aula; Experiência de vida
experiência de atividades extraclasse e Experiência empírica
outros.
Fonte: Produzido pela autora, 2016.

Por fim, a interpretação dos dados conduziu para a compreensão do objeto pesquisado, bem
como para a descoberta de fatos que vieram ao encontro dos objetivos da pesquisa complementados
pelo referencial teórico. Em Bourdieu se encontra uma metodologia que é a própria teoria. Este
autor rechaça a divisão entre ambas: “Penso que se deve recusar completamente esta divisão em
duas instâncias separadas, pois estou convencido de que não se pode reencontrar o concreto
combinando duas abstrações” (BOURDIEU, 2005, p. 24). O primeiro preceito do método proposto
pelo autor diz respeito ao real enquanto relacional. Isto é, não se deve pensar o campo social de
forma realista, mas relacional. Na pesquisa buscou-se entender como se evidencia a criação de um
novo habitus, tendo como referência a história e a memória institucional. Bourdieu (2005) apresenta
outras orientações em sua teoria que embasam os trabalhos científicos, inclusive esta pesquisa:
a) converter problemas de pesquisa muito abstratos em pesquisas científicas práticas;
b) perceber, a partir da produção científica, um conjunto de princípios de visão e de divisão
adquiridos unicamente pela prática;
c) negar ideias empíricas pré-concebidas, do senso comum. Em outras palavras, o que já é
sabido e o generalizado. A construção de objetos de pesquisa supõe uma postura ativa e sistemática,
“[...] trata-se de construir um sistema coerente de relações, que deve ser posto à prova, como tal”
(BOURDIEU, 2005, p. 32).
Seguem as etapas de ação da teoria de Bourdieu:
a) marcação de um segmento do social com características sistêmicas;
b) esquema de relações entre agentes e instituições, isto é, as posições ocupadas pelos
agentes dentro do campo acadêmico:
- Decomposição de ocorrências significativas, característica do sistema de posições
existentes no campo;
- Análise das relações objetivas entre as posições no campo;
- Análise das disposições subjetivas.
c) montagem de uma matriz relacional corrigida a partir da articulação entre as posições;
d) síntese do problema do campo dos últimos 20 anos.

A metodologia de História Oral se cristalizou como facilitadora para o estudo da história da


Escola de Administração. Juntamente com os documentos e fotografias, as falas gravadas e
transcritas se tornaram verdadeiros documentos históricos, conforme defende Meihy, e
contribuíram para contar a história de 20 anos da instituição, um dos objetivos da pesquisa. Ainda
na visão de Meihy, pôde-se constatar que a História Oral deu sentido aos fatos vivenciados pelos
atores a partir da sua visão do presente. A escolha dos atores da História Oral, isto se mostrou
acertada na medida em que foram ouvidos aqueles que tiveram atuação de destaque no campo,
conforme defende Bourdieu. Eles foram capazes de manifestar, através da fala, o que foi de mais
representativo e por isto lembrado sobre a história e a memória da Escola de Administração nos
seus 20 anos, contribuindo ao alcance dos objetivos sobre a história da EA, revelando experiências
da memória institucional e trazendo evidências da construção de um novo habitus. A análise de
dados respondeu aos objetivos da pesquisa realizada a partir das categorias e subcategorias
relacionadas.
As entrevistas com os diferentes agentes sociais vinculados à Escola de Administração
foram pontuadas de vivências que resultaram numa mudança de habitus. A participação dos alunos
no centro acadêmico, na empresa júnior, em projetos de pesquisa, em intercâmbios ou em instâncias
administrativas conferiram ganhos representativos e singulares na vida de cada um. Representaram
a prática a partir da teoria, conferindo novas habilidades e formas de agir, ser e pensar para a vida
profissional. Assim também aos servidores, tanto técnicos como docentes, a atuação em projetos e
a participação em diferentes atividades significou novas perspectivas de atuação profissional,
trazendo expectativa de vida diferenciada e atuação confortável, pois se constatou que era um
habitus que se sentia bem no local onde atuava.

ALBERTI, Verena. História Oral: a experiência do CPDOC. Rio de Janeiro: FGV, 1990.

BARDIN, L. Análise de conteúdo. São Paulo: Edições 70, 2011.

BAUER, Martin; GASKELL, George (Org.). Pesquisa qualitativa com texto, imagem e som: um
manual prático. Petrópolis, RJ: Vozes, 2012.

BOURDIEU, Pierre. O poder simbólico. 8. ed. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2005.

GIL, Antonio Carlos. Como elaborar projetos de pesquisa. 4. ed. São Paulo: Atlas, 2002.

LAKATOS, E. M.; MARCONI, M. A. Metodologia científica: ciência e conhecimento científico,


métodos científicos, teoria, hipóteses e variáveis, metodologia jurídica. 5. ed. São Paulo: Atlas,
2007.

MEIHY, José Carlos. S. B. Manual de História Oral. 5. ed. rev. ampl. São Paulo: Loyola, 2005.

MEIHY, José Carlos. S. B.; RIBEIRO, Suzana L. Salgado. Guia prático de História Oral: para
empresas, universidades, comunidades, famílias. São Paulo: Contexto, 2011.

PRODANOV, C. C.; FREITAS, E. C. de. Metodologia do trabalho científico: métodos e técnicas


da pesquisa e do trabalho acadêmico. 2. ed. Novo Hamburgo: Universidade Feevale, 2013.
Andrea Fernandes de Sousa

O tema abordado neste artigo refere-se a um recorte da pesquisa (SOUSA, 2016) realizada
durante o curso de pós-graduação – Mestrado em Educação pela Universidade Metodista de São
Paulo (UMESP), a qual objetivou registrar e documentar, a partir das impressões e vivências, e
ainda das lembranças e memórias evocadas dos moradores do antigo povoado maranhense de Santa
Teresa do Paruá, hoje município de Presidente Médici, a história do Colégio Santa Teresa, buscando
observar atentamente a maneira como esta importante experiência educacional comunitária afetou
a realidade do lugar. Na presente discussão, pretende-se, particularmente, analisar e refletir por meio
das narrativas dos sujeitos envolvidos no processo de pesquisa, e também da revisão bibliográfica,
como esse relevante projeto de educação comunitária pôde influenciar suas vidas e provocar
significativas mudanças sociais, culturais e econômicas à comunidade.
A base inicial para a construção da pesquisa resultou do meu conhecimento obtido mediante
o contato particular de inserção no campo, haja vista que tenho uma relação pessoal com o Colégio
Santa Teresa, pois, foi neste espaço de educação que iniciei a minha vida escolar, na então
denominada pré-escola, e onde permaneci estudando até a conclusão do curso de Magistério. Trato,
portanto, do contexto no qual se deu a fundação do colégio, o funcionamento, as práticas
pedagógicas e a proposta de ensino adotada.
Uma questão levantada e que busco esclarecer está relacionada às causas que levaram a
referida comunidade, a maioria analfabeta, em tempos tão difíceis, se entusiasmar pela Educação
Formal, ao ponto de construírem comunitariamente o Colégio Santa Teresa. Qual a explicação para
o interesse dos moradores em construir um colégio como o Santa Teresa, numa época que viviam
da atividade agrícola familiar e normalmente dependiam da ajuda de seus filhos na lida da roça?
Inicialmente tal situação levou-me a inferir que frequentar a escola poderia representar um
problema, deixando de ser uma solução, uma vez que, os pais teriam que abdicar da ajuda dos filhos
na roça, pois, passariam a dedicar uma parte do tempo ou todo ele, às atividades escolares. No
entanto, os relatos demonstraram que, em momento algum, essa ideia tivesse representado um
obstáculo para que os pais manifestassem a vontade e o interesse em construir uma escola de
qualidade para seus filhos. Ao encontro deste ideal fraterno encontrei também em escritos de Viera
Pinto (2003) e Demartini (1998) um caminho de reflexão e algumas respostas para tal
questionamento.

* Universidade Metodista de São Paulo (UMESP). Mestre em Educação.


E averiguo ainda sobre a relação entre a Igreja Católica e os sujeitos, pois as informações
obtidas a respeito da história do lugar, dos aspectos da formação social e da organização econômica
demonstraram que a mesma contribuiu substancialmente para que a comunidade, numa época em
que se dispunha de poucos recursos materiais para a sua sobrevivência, reunisse ao final da década
dos anos de 1970, as condições propícias à construção do Colégio Santa Teresa.
A respeito da metodologia de História Oral e o seu emprego no processo de construção da
pesquisa adotei a condição teórica proposta no acervo bibliográfico de Queiroz (1991), Demartini
(1997) e Alberti (2014). Um aspecto a considerar é que dispus apenas de alguns poucos registros,
que citam, de maneira aligeirada, o tema ora investigado. O material disposto foi basicamente o das
memórias dos moradores e suas histórias de vida – que estavam se perdendo por falta de registros.
Por isso, os depoimentos das pessoas envolvidas e que participaram da experiência educacional a
qual retrato, tornaram-se tão importantes e significativos para o desenvolvimento deste trabalho e
as futuras menções de continuidade investigativa.
É exatamente essa a função que Queiroz (1991, p. 5) atribui ao método de História Oral,
quando a autora o define como um termo amplo “que recobre uma quantidade de relatos a respeito
de fatos não registrados por outro tipo de documentação, ou cuja documentação se quer completar”.
Ao fazer uma avaliação acerca da importância da História Oral na construção das pesquisas
que a adotam como metodologia principal de trabalho, Alberti (2014, p. 174), enfatiza que “nesses
casos, o que interessa é justamente a possibilidade de comparar diferentes versões sobre o passado,
tendo como ponto de partida o contraponto permanente no que as fontes já existentes dizem sobre
o assunto”.
Corroborando com essa questão, Demartini (1997, p. 123) complementa dizendo que “neste
tipo de trabalho o pesquisador não apenas constrói os documentos com os entrevistados a partir das
entrevistas, mas elege os informantes da história e os relatos que pretende analisar”.
No total foram realizadas 8 (oito) entrevistas que foram gravadas e transcritas. O conteúdo
das histórias de vida dos sujeitos da pesquisa foi incorporado ao estudo de forma a permitir as
análises em consonância com os objetivos propostos, isto é, buscou-se “separar claramente os
diversos componentes, recortá-los, a fim de utilizar somente o que é compatível com a síntese que
se busca” (QUEIROZ, 1991, p. 4).

E foi aí que o missionário comboniano descobriu a divisa por que ainda hoje se rege: Ver,
julgar e agir; depois, celebrar e avaliar. Aí, também, a prioridade foi a escola: Foi uma
escola muito rica. Mais de vinte dos primeiros alunos fizeram depois cursos
universitários. O lema era: ‘Estuda, para depois ajudar teu povo’. (Pe. Dinis,
depoimento).1

A citação acima se refere à fala de Pe. Dinis, concedida em entrevista a Manuel Giraldes,
em março de 2002. Coube à Igreja Católica, mais especificamente ao Pe. comboniano português
Armindo Dinis, a iniciativa de sensibilizar e incentivar a população local a criar os meios
necessários para a melhoria de suas condições de vida. Não há dúvidas, do importante papel que
este missionário exerceu no processo das transformações sociais ocorridas na comunidade de Santa
Teresa do Paruá, a partir de sua chegada em 1977.
De acordo com as informações obtidas a partir do depoimento de moradores, a exemplo, de
Dona Luzia, ao chegar à comunidade, o Pe. Dinis pôs em prática um trabalho de evangelização com
fins sociais, ajudando a população a enfrentar as precárias condições de vida e a melhora do nível
socioeconômico do lugar.

Onde o padre se interessa em trabalhar com a comunidade as coisas vão para frente. [...]
Olha, todos os padres fizeram seu bom trabalho, né... evangelização. Mas, no trabalho
social, só ele desenvolveu trabalho social que nem prefeito nenhum desenvolveu sem
dinheiro, porque os prefeitos faz é com dinheiro. E ele fez foi sem dinheiro. E o trabalho
social que nem o Padre Dinis fez, se todo padre fizesse o trabalho que o Padre Dinis fez,
toda comunidade tinha uma história bonita. Mas eles só vão rezar, cumprir missa só
para rezar a missa. (Dona Luzia, depoimento).2

É essa, portanto, a mais importante característica das experiências combonianas em


território brasileiro. O serviço missionário do padre comboniano Dinis, em Santa Teresa, colocou
as pessoas, por assim dizer, “diante de um modelo de atuação missionária perfeitamente combinável
com as estratégias múltiplas de influência social que deram a tônica à gestão diocesana na primeira
metade do século XX” (NERIS; SEIDL, 2015, p. 10).
A marca que Pe. Dinis imprimiu, durante o tempo em que viveu na comunidade, foi a de
que o trabalho árduo, em regime comunitário, seria indiscutivelmente a forma mais viável, para
solucionar boa parte dos problemas sociais e da falta de serviços básicos que a comunidade carecia
e não tinha por falta de amparo governamental. E de fato, demonstrou que era mesmo indispensável.
A importância de sua atuação é destacada por Wollmann e Thiel, (2000, p. 92): “Alegre e
dinâmico, contribuiu eficazmente para a conscientização, organização e mobilização do povo”. É
do comprometimento com as demandas sociais, que resultou o legado que o Pe. Dinis deixou para
Santa Teresa do Paruá: evangelização, educação e transformação social; um projeto que uniu a fé à
ação social.

1.Trecho de entrevista concedida pelo Pe. Dinis a Manuel Giraldes, em março de 2002. .
2 Entrevista de Dona Luzia (antiga moradora do lugar), realizada em Presidente Médici, concedida em 28 de
janeiro de 2016.
Desta aliança resultou a motivação necessária para levar adiante esse trabalho de suma
importância para o desenvolvimento da comunidade, o qual incluiu a construção de um colégio de
referência na região.

Desde a sua construção e funcionamento em 1979, o Colégio Santa Teresa, passou a


representar, para a comunidade do antigo povoado maranhense Santa Teresa do Paruá, atualmente
Presidente Médici, a oportunidade de conquistar uma vida melhor.
O professor Dr. João Coelho Silva Filho, ex-aluno do Colégio Santa Teresa, no prefácio que
escreveu para o livro A poesia dos Liras, publicado em 2010, se refere ao colégio como sendo “o
núcleo de toda produção artística, cultural e intelectual” resultante “da obra do poder coletivo e
companheirismo” [...] uma escola comunitária de construção e administração” (LIRA, 2010, p. 4).
Um aspecto que chamou a atenção foi que a condição de analfabetos ou analfabetos
funcionais, naquela ocasião, não representou impedimento para que os pais se interessassem pela
Educação Formal, querendo inclusive, uma escola na qual os filhos pudessem ser “doutores”,
conforme descrito pela professora Eliane Rêgo.

Então, quando a gente veio aí, com esse propósito do Paulo Freire, de grande
conscientização, juntando as pessoas para conversar, se reunir, aí, um pulou de lá né, vamo
fazer, não me lembro quem foi: “Dona Eliane: uma palavrinha.”, “Pois não.”, “Nós
queremos uma escola onde nossos filhos possam ser doutores.” Mudou meu plano
todinho. Pensava em algo informal. Uma escola de conscientização, um galpão de
conscientização, assim, debaixo da mangueira; era assim bem nessa linha. Para chegar a
doutor tem que dar um papel para esse povo e no final de determinado nível tem que ter
um papel para eles também darem continuidade. Mas mudou toda a história. Olha o que a
fala de uma pessoa faz! Como é que vamos fazer? Adulto desses daí que estão repetindo
a quarta série, até chegar lá... Eu digo então: é a escola formal mesmo. (Eliane
Rêgo, depoimento).3

O estudo desenvolvido por Demartini (1998) a respeito das populações rurais paulistas,
durante a primeira república, desmitifica essa visão equivocada que consiste em atribuir a essas
camadas certo desinteresse pela Educação Formal. A autora considera que esta versão, tida como
oficial, fora usada tanto pela elite, a quem interessava ver as classes menos favorecidas
despreparadas, sem condições de competir igualmente com ela, quanto pelos órgãos públicos para
se eximir de suas responsabilidades em oferecer a elas o acesso à escola.

3
Entrevista de Eliane Rêgo. Presidente Médici, 03 de janeiro de 2015.
Contrariamente aos que supúnhamos, uma valorização constante do aprendizado da leitura
e da escrita foi constatada entre os habitantes de sítios e fazendas em períodos anteriores à
industrialização; além da valorização, havia procura efetiva de ensino. Isto é, não se tratava
apenas de mera valorização; está se concretizava em comportamentos efetivos, numa
procura educacional que, muitas vezes, providenciava suas próprias soluções para uma
oferta educacional sempre deficitária (DEMARTINI, 1998, p. 60).

A autora destaca várias situações nas quais essas populações buscavam contornar a não
oferta e dificuldade de acesso à Educação Formal, como a criação de escolas ou salas de aulas
particulares. “A existência de uma grande clientela potencial fora das escolas oficiais estimulava a
criação de classes particulares [...] constatou-se também a existência de ensino particular que
tentava sanar as dificuldades do ensino público” (DEMARTINI, 1998, p. 64).
Também foi possível encontrar nos escritos de Vieira Pinto (2003, p. 80) um caminho de
reflexão e de possibilidades de algumas respostas para essa questão. Ao falar sobre a educação de
adultos, o autor esclarece que “o fato das pessoas estarem na situação de analfabetos ou de
semianalfabetos não representa um obstáculo à consciência de seu papel (seu dever) social”. Essa
premissa apresenta elementos que ilustram o pensamento da comunidade que ora estudo, ajudando
a explicar sua iniciativa para construir o Colégio Santa Teresa e do interesse pela Educação Formal.
Logo, parece ingênuo pensar que uma comunidade de maioria analfabeta pudesse ignorar
ou desconhecer o valor da Educação Formal, pois, de acordo com Vieira Pinto (2003, p. 81) “na
medida em que a sociedade se vai desenvolvendo, a necessidade da educação de adultos se torna
mais imperiosa”. É porque “em verdade eles já estão atuando como educados, apenas não em forma
alfabetizada, escolarizada”.
Ainda segundo este mesmo autor, deve-se considerar que o “educando adulto é antes de
tudo um membro atuante da sociedade”, e não apenas por ser um trabalhador, mas sim pelo conjunto
de ações que exerce sobre um círculo de existência. (VIEIRA PINTO, 2003, p. 83).
O Pe. Dinis, ao organizar espaços de reflexão e conscientização, preparando e despertando
na comunidade a vontade em participar, tomar decisões, em pensar e agir coletivamente,
consequentemente o motivou a reivindicar uma educação de melhor qualidade.
A professora Mariazinha destaca a dedicação do Pe. Dinis, motivando, mobilizando e
conscientizando a comunidade acerca da importância de uma escola de qualidade para seus filhos
e o desenvolvimento do lugar.

Fazia muita reunião com o pessoal, motivando o povo que era pra construir, que era pra
ser uma escola para o povo, para os seus filhos, para os seus netos, seus bisnetos. E o
pessoal muito empolgado, inclusive o meu pai, trabalhou muito na escola Santa Teresa.
O Padre Dinis sabia fazer o pessoal se mexer. Ele colocou na cabeça do povo que a gente
tem que ter uma escola boa, de qualidade, pra botar os seus filhos. E assim o pessoal, todo
mundo motivado, todo mundo interessado e todo mundo trabalhava, era homem,
véio e menino. (Professora Mariazinha, depoimento) .4

Torna-se válido ressaltar que o trabalho com a construção da escola envolveu homens,
mulheres, adultos, jovens e crianças. Os adultos conciliavam o trabalho na roça, que começava logo
nas primeiras horas da manhã, findando com o por do sol; os pais se revezavam, trabalhando horas
a fio durante a madrugada; e os filhos e as mulheres atuavam durante o dia.
A construção dessa escola comunitária contou com o apoio incondicional de um recém-
casal de professores (Eliane Rêgo e Aécio Rego) que, no final da década dos anos de 1970, chegou
à então Vila Presidente Médici, trazendo consigo o desejo de alfabetizar, fato este que despertou
nas famílias o anseio em verem seus filhos tornarem-se doutores. Aliás, essa foi uma das frases, que
segundo a Dona Eliane, marcou o momento decisivo para iniciarem a construção do Colégio Santa
Teresa, dita em uma das muitas reuniões que faziam ao anunciar o retorno para São Luís.
A professora Eliane Rêgo conta que após o compromisso firmado com os moradores, ao
propósito de levar o projeto adiante, cuidou de se informar sobre os meios legais para construir uma
escola que correspondesse às expectativas da comunidade. Ou seja, para formar os filhos em
“doutores” precisaria ir além da ideia inicial do casal, que era a de levar para a comunidade a
alfabetização e a conscientização, em um barracão ou debaixo das mangueiras. Era preciso seguir
determinados protocolos, agir dentro dos trâmites legais, expedir um documento que comprovasse
a formação e aprovação nos níveis e etapas do sistema de ensino formal instituído pelos órgãos
vigentes.
Aí eu voltei pra São Luís, fui me informar como é que fazia, fui aprender todo esse
procedimento que eu não sabia [...]. Aí cheguei no Conselho Estadual de Educação. Você
tem que ter um prédio de alvenaria, sala de tantos metros, é tantos litros de água por aluno
não sei o quê, não sei o quê mais. Senhora, lá não tem uma casa de alvenaria. Não tinha
uma casa de alvenaria aqui. Como era que ia se fazer uma escola de alvenaria? Mais tem
que ser desse jeito. Voltei, reúne o povo de novo, eu falava: “Gente tem que ter um prédio
de alvenaria, sala de tantos metros, um tanto de água por pessoa; era uma exigência legal,
formal. Como vocês querem pra ter o papel, pra filho ser doutor, tem que ser.” Mas nós
fazemos Dona Eliane, faz mesmo! Faz [...]. Aí, pronto a comunidade foi trabalhar. Aí
foram atrás de um mestre de obras que soubesse fazer uma escola com aquela estrutura.
Aí acharam o Renato, esse mestre de obras e todo o resto veio. Sábado era o dia todo e à
noite os caboclos ainda iam trabalhar; ali foi aterrado, socado. (Professora Eliane Rêgo,
depoimento).

4
Professora Maria do Carmo da Silva Lima (conhecida como professora Mariazinha) entrevista concedida em
Presidente Médici no dia 27 de janeiro de 2016.
A construção foi iniciada em 1978 e concluída em 1979. E, neste mesmo ano, em 02 de
abril, iniciariam as atividades escolares. Inicialmente o colégio começou a funcionar com quatro
salas, sendo que, neste momento, a prioridade foi a de atender os jovens que há anos estavam sendo
reprovados na quarta série. Em virtude disto, providenciou-se logo a quinta série e nos anos
seguintes foi sendo implantado o primeiro grau completo (o então Ensino Fundamental), incluindo
a Pré-Escola (Educação Infantil dos dias atuais).
O casal de professores, no período em que permaneceram no colégio, trabalhou
voluntariamente, recebendo algumas doações da comunidade, principalmente alimentos, para o
próprio sustento. Outros serviços, como limpeza e merenda, eram realizados pela própria
comunidade através do trabalho voluntário. Em relação a mensalidades, os pais pagavam uma taxa
simbólica, irrisória, dentro de suas possibilidades.
O Colégio recebeu o nome de Santa Teresa, em homenagem ao primeiro nome do povoado.
A comunidade assumiu o compromisso de cuidar do colégio e ambos estavam ligados numa teia de
reciprocidade, na qual, um precisava do outro para continuar crescendo e se desenvolvendo.

Tanto a professora Eliane Rêgo, quanto seu esposo, o professor Aécio, se tornaram leitores
e adeptos das ideias de Paulo Freire. O contato com as obras freirianas só aconteceu após a
conclusão do curso de Licenciatura em Letras em 1977, quando passou a ter acesso e simpatizar
por estas. No período em que esteve na Universidade, de 1974 a 1977, as obras de Paulo Freire
foram proibidas – o Brasil estava sendo governado por uma junta militar que impôs forte censura
aos meios de comunicação e à expressão livre de opiniões, mantendo as universidades em
vigilância, proibindo leituras de alguns livros, principalmente se o conteúdo estivesse de alguma
forma relacionado às ideias de esquerda.

A proposta pedagógica de Paulo Freire era o que eu tinha lido, me empolgado e só tinha
dois professores, eu e Aécio, eram duas turmas. Do próprio trabalho em mutirão, porque
o que a gente veio fazer aqui né, educação popular né. A gente já começou a ler Paulo
Freire que no curso mesmo a gente nem podia falar do Paulo Freire. Eu comecei a
faculdade em 74 quando era bem ditadura, nem se falava, andar com o livro do Paulo
Freire para quê. Mas quando eu terminei em 77 naquela abertura a gente leu, se empolgou,
então eu achava que a gente ia assim fazer um barracão e conscientizar o povo, educar,
conscientizar. (Professora Eliane Rêgo, depoimento).

Enquanto o Colégio Santa Teresa estava sendo construído, o casal de professores aproveitou
para fazer um diagnóstico sobre a situação de aprendizagem dos alunos para daí elaborarem o plano
de ensino. Ali, eles já começaram a colocar em prática o Método de Alfabetização Paulo Freire,
adotando palavras da realidade concreta dos alunos, geradoras de sentidos e significados. Excertos
da fala de Eliane apresentam este contexto:

Então, Aécio ficava numa sala de alfabetização, onde ele se fundamentou no Paulo Freire.
Fez uma grande cartilha, ele era um grande artista e escreveu lá: A de abano, a letra A
muito bonita e desenhou o abano, B de... era tudo de coisa da região, todo o alfabeto
desenhado para trabalhar e as palavras chave, foi um método do Paulo Freire para
alfabetização. Pegando as palavras chaves a partir do contexto da realidade e a partir dali
foi desenvolvendo. (Professora Eliane Rêgo, depoimento).

Conforme explicitado acima, a cartilha elaborada pelo professor Aécio, teve como base um
aspecto característico do método de alfabetização Paulo Freire, que é o uso das palavras oriundas
da realidade dos alunos, denominadas de palavras geradoras. Segundo Paulo Freire (2014, p. 14),
“estas palavras são chamadas de geradoras porque, através da combinação de seus elementos
básicos, propiciam a formação de outras”. Ele acrescenta que “os temas, em verdade, existem nos
homens, em suas relações com o mundo, referidos a fatos concretos”.
Para Brandão (1981, p. 30), são das “inúmeras frases que recontam a vida do lugar e que
devem recortar todas as suas situações, com todas as categorias de seus sujeitos – saem as palavras
geradoras de que o método faz o seu miolo”.
Preparar os alunos para uma leitura de mundo, sem descuidar da realidade e do contexto no
qual estão inseridos, foi outro princípio presente no método de ensino adotado pelo casal, que
aparece em destaque na pedagogia freiriana.
A professora Eliane relatou ainda que, desde o início, ela e o professor Aécio procuraram
seguir uma filosofia educacional ou princípios pedagógicos que visassem conduzir os alunos à
conquista da emancipação intelectual e pessoal. Para eles, o processo de alfabetização só fazia
sentido se fosse capaz de desenvolver o pensamento reflexivo.

No final do ano de 1982, o casal de professores Eliane Rêgo e Aécio Rêgo, que participaram
desde o início do projeto de ensino, retornou para a cidade de São Luís, deixando como legado um
trabalho de educação voltado para a formação de pessoas comprometidas com a transformação da
realidade na qual viviam. Simultaneamente, concedeu às crianças, adolescentes e jovens a chance
de crescimento pessoal e profissional, permitindo que esses pudessem fazer escolhas, que seus pais
não puderam.
Diante da saída do casal, o Pe. Dinis, preocupado em manter a qualidade do ensino e
mediante informações obtidas sobre o importante trabalho educacional e social realizado pelos
Irmãos Lassalistas, entrou em contato com os mesmos e os convidou a assumirem a direção da
escola.
Como era de costume, os moradores foram reunidos e mobilizados a escreverem carta-
convite dirigida à Congregação Lassalista com o objetivo de explicitar e sensibilizar os irmãos
acerca do esforço da comunidade na construção do colégio e do desejo de poderem contar com o
apoio dos mesmos.
O Pe. Dinis também sabia da intenção dos Irmãos Lassalistas em estender sua atuação
naquela região do país, sendo este, portanto, mais um motivo para que aceitassem a proposta.
Assim, “a ida dos irmãos ao Maranhão integrou a política missionária da Província Lassalista de
Porto Alegre, o seu propósito de assumir novas frentes de trabalho na região amazônica” (THIEL;
WOLLMANN, 2000, p. 93).
Após tomarem conhecimento, os Irmãos decidiram fazer uma visita ao povoado em
setembro de 1981, para averiguação da realidade, isto é, se condizia com a situação descrita pelos
moradores. Desta forma, “[...] o Provincial, irmão Edgar Hengemüle, delegou o então irmão
Raimundo Giasson para realizar uma visita de observação “in loco”, que, por sua vez, [...] enviou
um informe sobre o local e a escola, e sobre os agentes pastorais e educativos aí atuando”. Ao final
da visita, ele emitiu o seguinte parecer: “sendo o plano provincial o atendimento preferencial às
periferias e às missões, acho plenamente válida a tentativa de se iniciar mais uma frente de missão,
sobretudo numa localidade completamente carente de recursos humanos”. (THIEL;
WOLLMANN, 2000, p. 93).
A presença dos Irmãos Lassalistas em Presidente Médici, na década de 1980, assinalou a
criação de um núcleo educacional que alterou significativamente a vida da comunidade local e ainda
das cidades vizinhas. Eles implantaram no Colégio Santa Teresa, a pedagogia lassalista,
fundamentada nos preceitos de La Salle, pautada nos valores cristãos, de solidariedade e
fraternidade. Para Rangel e Weschenfelder (2006, p. 19):

As crianças e jovens recebidos nas escolas de La Salle sentiam sempre mais o espirito de
acolhimento familiar em sua convivência com os mestres. Estes já não eram personagens
alheios, estranhos e desinteressados em relação à vida dos alunos. Graças ao sentido de os
mestres viverem como irmãos entre si e irmãos maiores de seus alunos, a pedagogia
lassalista, em toda sua história, foi marcada profundamente pela característica da
fraternidade. (RANGEL; WESCHENFELDER, 2006, p. 19).

Originário da cidade francesa de Reims, La Salle (1651-1719), filho de família abastada,


contrariou as expectativas de seguir a carreira do pai, demonstrando desde criança afeição à vida
religiosa, e foi por ela que optou e dedicou-se durante sua existência.
A vivência no seminário, as práticas de estágio pastoral, o contato com as escolas
elementares para pobres, o conduziram a outra experiência significativa: o envolvimento e a
preocupação em oferecer uma educação popular, que, desde então, passou a caminhar lado a lado
da vocação religiosa ou da escolha pelo apostolado. “A partir dessa perspectiva, La Salle pôde
observar a necessidade de organizar o melhor preparo dos professores, com atenção à cultura e à
formação para o magistério, com competência para ensinar” (RANGEL; WESCHENFELDER,
2006, p. 8).
O trabalho desempenhado pelos Irmãos Lassalistas de um modo geral, sobretudo na
comunidade, interferiu na realidade socioeconômica, política e cultural de Presidente Médici. Os
irmãos desenvolveram e se envolveram em atividades e projetos diversos, que não apenas na esfera
educacional, mas também na prestação de “assessoria e animação do Sindicato dos Professores do
Alto Turi em seus propósitos e atividades” (THIEL; WOLLMANN, 2000, p. 99).
O colégio buscava seguir uma linha pedagógica mista, assimilando sempre as tendências
mais progressistas e o ensino direcionado à formação integral do sujeito, sempre atento à leitura do
mundo, e, sobretudo, no cuidado e respeito com o outro, lapidando os valores humanos e cristãos.
A partir do depoimento de Roberta Kellis Ramos observa-se um pouco desta questão formativa:

[...] pra minha formação enquanto professora foi uma das melhores coisas que deveria ter
acontecido, porque como eu falei, desde criança os irmãos já estavam aqui em Presidente
Médici e já havia essa forma diferente de ver a realidade. O que eu considerei mais
importante foi o espírito de colaboração, o espírito de cooperação, sempre de auxiliar o
próximo, porque nós conhecíamos toda a história da congregação lassalista, com
o tempo nós fomos conhecendo. (Professora Roberta Ramos, depoimento).5

Dentre as ações empreendidas pelos Irmãos Lassalistas, em Presidente Médici, há destaque


para criação do curso de Magistério Supletivo e depois o regular no Colégio Santa Teresa,
contribuindo para o acentuado número de professores na região.
Não havia ainda na comunidade, professores com a formação do segundo grau (atual Ensino
Médio). Por isso, assim que chegaram, providenciaram capacitação de qualidade, abrangendo toda
a região do Alto Turi, suprindo, desta maneira, a falta de mão-de-obra, impactando na melhoria da
realidade educacional, que apresentava índices alarmantes de analfabetismo.
A oferta do Segundo Grau indicava, naquele período, um salto de crescimento,
principalmente por representar para muitos alunos a continuação de sua formação. Isto fez com que
Santa Teresa, passasse a desenvolver um grande potencial profissional na área do magistério.

Diante de uma realidade afetada por inúmeros problemas e dificuldades sociais, o Pe. Dinis
elaborou e estabeleceu um conjunto de ações, a partir das quais, iniciou o processo de mudanças
significativas voltadas para a melhoria das condições de vida da comunidade de Presidente Médici.

5
Entrevista da professora Roberta Kellis Ramos, realizada em Presidente Médici, no dia 08 de fevereiro de 2016.
E, assim, foi gestado o Colégio Santa Teresa, com a missão de preparar as pessoas para a
colaboração num processo de transformação social – mais especificamente educacional.
Sua presença dinâmica, criativa e aguçada encorajou e estimulou os moradores a realizarem
toda a obra, comunitariamente. Valores como cooperação, solidariedade e coletividade estiveram
presentes e ajudaram a construir também as bases de sustentação do Colégio Santa Teresa, tanto no
âmbito de sua estrutura física, quanto do ponto de vista humano.
Contribuíram para esse sucesso: a presença notória do Pe. Dinis; o empenho do casal de
professores Eliane Feitosa Rêgo e Aécio Domingos Rêgo, portadores de uma visão educacional
diferenciada para a época; o cuidado e zelo dos Irmãos Lassalistas na continuação do projeto; e o
envolvimento de toda a comunidade, engajada e atuante, no sentido de garantir e realizar outras
conquistas.
Tanto o casal quanto os Irmãos Lassalistas tinham uma forte ligação com os movimentos
sociais e sindicais, e um engajamento com os movimentos veiculados à Igreja Católica, como as
Comunidades Eclesiais de Base (CEBs). É claro que os valores cristãos, cultivados pelos Irmãos
Lassalistas e impressos nos princípios da Pedagogia Lassalista, estavam presentes na escola, mas,
em ambos os casos, houve sempre o cuidado em respeitar a diversidade religiosa e a preocupação
em manter a equidade.
Outra característica fundamental da escola, e que contribuiu para a bem-sucedida
experiência educacional, que nela se desenvolveu, foi o estabelecimento da relação dialógica e o
encontro com quem estava do lado de fora dela. Os conteúdos estavam associados com a vida da
comunidade, envolto de reflexões sobre os problemas que a envolvia. Os alunos demonstravam
interesse e gosto pela escola, pois sentiam-se parte e responsáveis pela instituição.
Quanto ao movimento educacional, este processo todo proporcionou aos moradores de
Santa Teresa inúmeros benefícios. Os bons resultados obtidos são facilmente identificáveis quando
se ouve depoimentos dos alunos que tiveram a oportunidade de frequentar a escola, de que, aonde
vão, procuram difundir sua prática docente ou em outros segmentos, expõem os valores aprendidos,
como o respeito à dignidade humana, a valorização dos fundamentos éticos, o olhar estético entre
outros aspectos relevantes.
Há destaque ainda para aqueles que não exercendo as funções do magistério, atuam em
atividades diversas engajadas aos movimentos sociais, ocupando cargos nos sindicatos,
associações, cooperativas e ainda em lideranças comunitárias e políticas.

ALBERTI, V. Histórias dentro da história. In: PINSKY, C. B. (Org.). Fontes históricas. 3 ed. São
Paulo: Contexto, 2014.

BRANDÃO, C. R. O que é o método Paulo Freire. São Paulo: Brasiliense, 1981.


DEMARTINI, Z. B. F. A procura da escrita e da leitura na 1ª República: recolocando questões.
Cadernos CERU, São Paulo, série 2, n. 9, p. 57-82, 1998.

_____. Algumas reflexões sobre a pesquisa histórico-sociológica sobre a Educação da População


Brasileira. In: Congresso de História da Educação Unicamp. HISTEDER – Grupo de Estudos e
Pesquisa História, Sociedade e Educação no Brasil. Anais..., p. 114-124, 1997. Disponível em:
<https://goo.gl/MUfTAf>. Acesso em: 22 jul. 2017.

FREIRE, P. Pedagogia do oprimido. 58. ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2014.

GIRALDES, M. Parque Alvorada: a esperança chama-se Projecto Mãos Dadas. Revista Além-
Mar visão missionária. Lisboa, Pt: [s.n], out. 2002. Disponível em: <https://goo.gl/XBEuZe>.
Acesso em: 22 jul. 2017.

LIRA, R. C. Santa Teresa do Paruá: minha paixão. In: LIRA FILHO, R. C. Poesias para ninguém
Ler: a poesia dos liras. São Luís, MA: [s.n.], 2010.

NERIS, W. S.; SEIDL, E. Uma Igreja distante de Roma: circulação internacional e gerações de
missionários no Maranhão, 2015. Disponível em: <http://www.scielo.br/pdf/eh/v28n55/0103-
2186-eh-28-55-0129.pdf>. Acesso em: 22 jul. 2017.

PINTO, A. V. Sete lições sobre educação de adultos. 13 ed. São Paulo: Cortez, 2003.

QUEIROZ, M. I. P. Variações sobre a técnica de gravador no registro da informação viva. São


Paulo: T. A. Queiroz, série 2, v. 7, 1991.

RANGEL, M.; WESCHENFELDER, I. L. (Org.). A didática a partir da pedagogia de La Salle.


Petrópolis, RJ: Vozes, 2006. Disponível em: <http://www.ia.ufrrj.br/ppgea/conteudo/T2-
6SF/PPGEA/A%20did%E1tica.pdf>. Acesso em 22 jul. 2017.

WOLLMANN, W.; THIEL, R. 1983: Presidente Médici. In: HENGEMÜLLE, E. 25 anos de


Presença Lassalista no Norte e Nordeste do Brasil. Canoas, RS: Gráfica e Editora La Salle, 2000.
Eduardo Cristiano Hass da Silva

A Escola Técnica de Comércio (ETC) do Colégio Farroupilha foi estudada durante a


realização do curso de Mestrado do autor, entre os anos de 2015 e 2017. Após os dois anos de
intensa pesquisa, nem todos os documentos coletados puderam ser analisados, estando dentre eles,
parte das memórias produzidas a partir das entrevistas de História Oral. Sendo assim, esse trabalho
tem o objetivo de analisar, a partir dessas memórias, as práticas de ensino desenvolvidas pelos
professores desta instituição.
Para atender este objetivo, o texto está estruturado em quatro tópicos. No primeiro, faço
uma breve apresentação da ETC, destacando alguns dos principais momentos da história da
instituição, articulando-os a alguns conceitos da História da Educação e Cultura Escolar. Em
seguida, apresento os documentos utilizados na pesquisa, articulando-os aos pressupostos da
memória e da metodologia de História Oral. No terceiro momento, são discutidas as práticas de
ensino adotadas na instituição. Para finalizar, trago alguns apontamentos resultantes da
investigação, em como as possibilidades de dar continuidade à pesquisa.

Segundo Silva (2017), a ETC Farroupilha foi uma instituição fundada juntamente
ao Colégio Farroupilha de Porto Alegre,1 tendo oferecido o Curso Técnico Comercial entre os
anos de 1950 e 1983. De acordo com o autor, embora a ideia de criação da escola
apareça na documentação por ele analisada, desde o ano de 1949, é em 1950 que a primeira
turma de alunos ingressa na instituição.
Entendendo a Cultura Escolar como “um conjunto de normas que definem conhecimentos
a ensinar e condutas a inculcar, e um conjunto de práticas que permitem a transmissão desses
conhecimentos e a incorporação desses comportamentos”, Dominique Julia (2001, p.10), destaca

* UNISINOS, Doutorando em Educação, apoio CNPq.


1 O Colégio Farroupilha de Porto Alegre é mantido pela Associação Beneficente e Educacional (ABE).
De acordo com Jacques (2013), a mantenedora é uma entidade filantrópica que surgiu no ano de 1858, com o
nomede Deutscher Hilfsverein, que significa Sociedade Beneficente Alemã. A autora destaca que esta sociedade
é criada no contexto do chamado germanismo, um movimento difundido em meados do XIX e a década de 1940,
entre indivíduos do grupo étnico alemão no Brasil, que tinham a preocupação de defender a identidade étnico-
nacional da população imigrante.
que ela deve ser estudada em paralelo às relações conflituosas ou pacíficas com a história e as
culturas que lhe são contemporâneas. Dessa forma, é importante analisar a ETC Farroupilha em
paralelo ao contexto de sua existência. Quando criada, a instituição era regida pelo decreto nº
6.141/1943, a chamada Lei Orgânica do Ensino Comercial, assinada pelo então presidente da
República Getúlio Vargas e por Gustavo Capanema. Considerando esta lei, o curso oferecido pela
ETC Farroupilha pode ser entendido como um curso de formação, com habilitação em
contabilidade, destinado a formar profissionais para lidarem com as atividades específicas do
comércio e de funções de caráter administrativo em negócios tanto públicos quanto privados.
Entre 1950 e 1962, a ETC funcionou no Centro de Porto Alegre, juntamente com o Colégio
Farroupilha. No ano de 1962, o colégio muda-se do Centro da cidade para o Bairro Três Figueiras,
passando a Escola Técnica a funcionar em salas alugadas da Igreja São José, ainda no Centro. No
ano de 1972, a ETC acompanhou o Colégio Farroupilha para sua nova sede, no bairro citado. A
mudança de sede em 1972 coincide com o ano em que começaram a ser implementadas as
modificações estipuladas pela Reforma do Ensino de 1971 (Lei nº 5.692), que faz do ensino técnico
comercial uma habilitação do ensino de 2º Grau.
Para Silva (2017), a mudança de endereço da escola, associada à Reforma do Ensino de
1971, levaram ao decréscimo do número de alunos matriculados na ETC, resultando que, em 1982,
formou-se a última turma de técnicos em Contabilidade da escola e, em 1983, ela é oficialmente
desativada, transferindo os alunos restantes para outras escolas da cidade. De acordo com o autor,
entre os anos de sua existência, a escola formou um total de 853 alunos, sendo eles 565 do sexo
masculino e 288 do sexo feminino, provindos em sua maioria do Rio Grande do Sul, bem como
representantes de outros estados e até países.

Como afirmei anteriormente, os documentos aqui analisados consistem em memórias


produzidas em entrevistas de História Oral. Antes de dar continuidade ao trabalho, é importante
delimitar alguns conceitos que serão empregados ao longo da construção deste texto. Inicialmente,
destaco que as memórias são entendidas como documentos de grande importância para a História
da Educação, sem hierarquização em relação às fontes escritas, visuais ou materiais
(GRAZZIOTIN; ALMEIDA 2012).
Memória e História são tratadas como coisas diferentes, sendo para Grazziotin e Almeida
(2012, p. 28) um desafio para o historiador “trabalhar com a memória sem a pretensão da verdade
com clareza de que ela não é a história, mas que nutre a pesquisa, produzindo uma história”. Dessa
forma, as memórias dos sujeitos aqui investigadas não são entendidas como as verdadeiras
práticas de ensino adotadas na ETC, mas como representações2 destas práticas.
Segundo Paul Ricoeur (2007), a memória pode ser pensada como rastros, formada pela
relação entre lembranças e esquecimentos. Também para este autor, memória e História são
diferentes, existindo uma passagem da primeira para a segunda, passagem na qual os testemunhos
são as estruturas fundamentais. Dessa forma, as memórias dos sujeitos entrevistados não são aqui
entendidas como história, mas faço-as passar pelas três fases da operação historiográfica
apresentadas pelo autor: fase documental (da declaração das testemunhas oculares à constituição
dos arquivos), fase explicativa/compreensiva (questionamento dos documentos produzidos) e fase
representativa (colocação em forma literária ou escrita do discurso).
Quanto à relação entre memória e História Oral, Grazziotin e Almeida (2012) salientam que
ambas se aproximam, sendo em algumas vezes até confundidas. No entanto, é importante destacar
que a memória é tomada como documento, sendo a História Oral a metodologia empregada na
operacionalização do testemunho. Neste estudo, a metodologia de História Oral é realizada a partir
dos pressupostos de Verena Alberti (2004, p. 77):

O trabalho com a história oral consiste na gravação de entrevistas de caráter histórico


documental com atores e/ou testemunhas de acontecimentos, conjunturas, movimentos,
instituições e modos de vida da história contemporânea. Um de seus principais alicerces é
a narrativa. Um acontecimento ou uma situação vivida pelo entrevistado não pode ser
transmitido a outrem sem que seja narrado.

Além do conceito de História Oral, as palavras da autora mostram a importância da narrativa


nos estudos que se utilizam desta metodologia. Para Alberti (2004), a narrativa possibilita que
lembranças, episódios, períodos da vida, experiências, entre outros, transformem-se em linguagem,
que fornecem chaves para a compreensão da realidade. Para Ricoeur (2007), é através da oralidade
que a rememoração é posta em narrativa.
Considerando os potenciais dos trabalhos com memória e História Oral, optou-se em
realizar entrevistas semiestruturadas com sujeitos, direta (ex-professores) e indiretamente (filhos de
ex-professores) ligados à ETC Farroupilha. Sempre que possível, estas memórias foram utilizadas
em articulação com as demais fontes. De forma geral, as perguntas feitas estavam ligadas à atuação
do sujeito (ou de seu pai), na escola, à existência de contadores em sua família, às relações entre os
professores da ETC, entre outros. Saliento, ainda que, apesar de um roteiro pré-estabelecido, cada
entrevista tomou rumos diferenciados de acordo com as memórias dos entrevistados, sendo
valorizada cada uma das suas narrativas.

2
Sobre o conceito de representação, ver Chartier (2002) e, sobre suas implicações específicas para a História
Cultural, ver Pesavento (2005).
Os sujeitos entrevistados foram escolhidos a partir de sua atuação na ETC (no caso dos
professores) ou da atuação de seus pais (no caso dos filhos de professores). Todos eles assinaram
“Termo de Consentimento Livre e Esclarecido”, autorizando a divulgação de suas memórias, bem
como de todos os seus dados. Considerando tratar-se de uma pesquisa de caráter histórico, optou-
se em utilizar o nome dos sujeitos na íntegra. De forma resumida, o quadro a seguir apresenta as
principais características de cada sujeito entrevistado, bem como alguns elementos da entrevista
realizada:
Quadro 1 ─ Relação de entrevistados
Nome Relação com a Data da Local da entrevista Tempo da N° de páginas
ETC entrevista entrevista da transcrição
SILLE, Hans Ex-professor da 11/12/2015 Casa do entrevistado. 2h 34min 22s 44
Joachim instituição Porto Alegre/RS –
Walter Rua Pedro Chaves
Barcelos, MontSerrat
– Auxiliadora.
KLEY, Ivam Filho do 28/01/2016 Memorial do Colégio 1h 16min 50s 41
professor Walter Farroupilha.
Kley
SCHULTZ, Filha do 29/01/2016 Casa da Entrevistada. 1h 17min 58s 21
Ingrid professor Sven Porto Alegre/RS –
Schultz Rua Felisbino de
Azevedo, São João.
POISL, Walter Ex-professor da 16/05/2016 Casa do Entrevistado. 1h 31min 54s 21
instituição Porto Alegre/RS -
Rua André Puente.
Fonte: Retirado de Silva (2017).

Como se observa no quadro, foram realizadas quatro entrevistas, sendo duas delas com
professores da ETC e duas com filhos de professores já falecidos. Entre os professores
entrevistados estão Hans Joachim Walter Sille,3 cuja entrevista ocorreu no dia 11 de dezembro
de 2005, em sua própria residência e o professor Walter Poisl, entrevistado dia 16 de maio de
2015, também em sua residência. Dentre os filhos de professores falecidos encontram-se as
entrevistas feitas com Ivam Kley, filho do professor Walter Kley, entrevistado em 28 de
janeiro de 2016, no Memorial do Colégio Farroupilha e a feita com Ingrid Schultz,
filha do professor Sven Robert Schultz, entrevistada em 29 de janeiro de 2016, na sua
residência. De forma geral, as entrevistas produzidas resultaram em um total de 6h 40 min 54s
de duração e 127 páginas, salvaguardados no meu acerco pessoal.

3 Falecido um ano após conceder a entrevista.


Como anteriormente citado, as memórias produzidas para este estudo passaram pelas três
fases da operação historiográfica elencadas por Ricoeur (2007): fase documental, fase explicativa
e fase representativa. A fase documental iniciou com a realização das entrevistas e a produção das
memórias, posteriormente ouvidas e transcritas, resultando nas 127 páginas que compõem o acervo.
Depois disso, a fase explicativa/compreensiva teve início com o questionamento dos documentos
produzidos. Durante o questionamento das memórias, foram constituídas palavras-chave, visando
aglutinar as lembranças e possibilitar a futura análise. As palavras-chave construídas foram:
Relações extraescolares; Ingresso na ETC; Paraninfos das Formaturas; Ditadura Civil-militar;
Fundação da ETC; Aulas; Desativação da ETC; Carreiras dos Filhos dos Professores; Relação
alemães x brasileiros; Carreira dos netos dos Professores; Profissão Docente; Status dos Alunos;
Relação aluno x professor; Arquivando a vida; Alunos da ETC e Carreira do Professor.
Como pode-se observar, foram elencadas 16 palavras-chave. Considerando que o objetivo
central é discutir as práticas de ensino dos professores da ETC, as memórias analisadas serão
basicamente as que compõem a palavra-chave “aula”, articuladas, sempre que possível, a outras
palavras. Após este momento, começa a terceira fase da operação historiográfica, que consiste na
colocação escrita do discurso.
Inicialmente, a partir das memórias produzidas, é possível identificar quais as disciplinas
ensinadas por cada um dos professores, bem como a constituição do currículo da ETC. Ao falar
sobre a atuação do pai na escola, Ingrid Schultz (2016, p. 4) destaca: “'Aí o meu pai foi diretor um
tempo, depois ele foi vice, depois ele foi só professor, mas sempre envolvido com a escola. A parte
dele era mecanografia, que era o manuseio com máquina de calcular, máquina de escrever,
mimeógrafos, nessa área toda."
As memórias de Ingrid podem ser tomadas como indícios, como fragmentos, analisadas a
partir da ideia de paradigma indiciário, de Ginzburg (1989). Dessa forma, as memórias da
entrevistada revelam que seu pai, além de professor, foi também diretor da ETC. Enquanto
professor, Sven Schultz atuava na disciplina de mecanografia, responsável por ensinar o manuseio
de diferentes máquinas, como as de calcular e escrever, bem como o mimeógrafo.
No caso do professor Hans Sille, suas memórias revelam que o mesmo era professor de
inglês: “como professor de inglês, eu transformei o inglês em comércio... em correspondência
comercial” (SILLE, 2015, p. 4). Mas o que significaria “eu transformei o inglês em comércio... em
correspondência comercial?” Esse questionamento será retomado no decorrer do trabalho, quando
analisar-se os métodos empregados pelos professores. Em meio a suas lembranças, o professor Sille
retomou o trabalho do professor Poisl:

Ele foi funcionário do Banco do Brasil. Todo aluno das séries das aulas dele passava pelo
Banco o Brasil, como, ser caixa, ser isso, ser aquilo; cada um fazia isso. Ele trazia os
formulários do Banco do Brasil. Vocês tavam na área de clientes, tinha que ir lá saber
preencher certo, como e porque que faziam, porque que não faziam, como é que ia [...]
(SILLE, 2015, p. 21).

Embora não mencione o nome da disciplina ministrada pelo professor Poisl, Sille afirma
que o professor era também funcionário do Banco do Brasil, trazendo formulários para serem
preenchidos pelos alunos. Dessa forma, o cruzamento entre diferentes fontes pode
preencher lacunas que surgem nesse momento. O “Relatório de Verificação Mensal da ETC
Farroupilha”4 referente ao mês de março de 1953 revela que as disciplinas eram divididas em
dois grandes grupos, sendo elas as de Cultura Técnica e as de Cultura Geral. As tabelas
que seguem organizam a distribuição das disciplinas.

Tabela 1 ─ Quantidade de períodos semanais das disciplinas de Cultura Técnica por série
Disciplina 1ª Série 2ª Série 3ª Série
Elementos de Economia 3 - -
Contabilidade Geral 3 - -
Mecanografia 3 - -
Prática Jur. Geral e Comercial - 3 3
Contabilidade Comercial - 3 -
Merceologia - 2 -
Org. e Técnica Comercial - 3 -
Elementos de Estatística - - 3
Contabilidade Bancária - - 3
Contabilidade Industrial - - 3
Contabilidade Pública - - 2
Total: (períodos de disciplinas técnicas por ano) 9 11 14
Fonte: Elaborado pelo autor a partir do relatório de verificação mensal de março de 1953.

Tabela 2 ─ Quantidade de períodos semanais das disciplinas de Cultura Geral por série
Disciplina 1ª Série 2ª Série 3ª Série
Inglês 3 3 -
Português 3 2 1
Física e Química 2 - -
Biologia - 2 -
História Adm. e Econ. do Brasil - - 2
Matemática 3 2 -
Geografia Humana Brasileira - - 3
Total: (períodos de disciplinas gerais por ano) 11 9 6
Fonte: Elaborado pelo autor a partir do relatório de verificação mensal de março de 1953.

4 Documento salvaguardado no Memorial do Colégio Farroupilha.


Considerando as disciplinas apresentadas nas tabelas, pode-se inferir que o professor Poisl
lecionava a disciplina de Contabilidade Bancária, parte das disciplinas de Cultura Técnica,
oferecida às turmas da 3ª série do curso comercial, contando com três períodos semanais.
Após identificar as disciplinas ministradas por alguns dos professores da ETC, surgiu o
questionamento a cerca das práticas e métodos de ensino por eles empregados. Como as duas
tabelas anteriormente demonstraram, as disciplinas estavam divididas em dois grandes grupos,
sendo de Cultura Técnica e de Cultura Geral. Como evidenciou-se, anteriormente, as memórias do
professor Sille trouxeram alguns elementos das aulas ministradas pelo seu colega professor Walter
Poisl. O que teriam de especial ou diferente as aulas de Poisl? As memórias do professor
demonstram que o mesmo parece ter desenvolvido um método próprio de trabalho:

Eu gostava muito de dar aula, porque era uma forma de expressar e aprender também.
Porque quando eu fui ser professor eu não tinha nada. Eu depois fiz um método todo meu
de ensinar. No fim, nos últimos anos, nós, os alunos, eles incorporavam tanto, que eu fiz
funcionar um banco na escola. Quer dizer, depois de muitos anos, um aluno veio me dizer
assim: “professor, esse dinheiro aqui é seu, que o senhor depositou no banco”. (Risos). [...]
Então, quando já entrava na escola, já estavam montados todas as cadeiras, fichário, caixa,
e tudo estava montado já direitinho. E os alunos depositavam, tiravam, faziam uma
brincadeira de contas. (POISL, 2016, p. 5-6).

Algumas observações podem ser feitas a partir das memórias do professor Walter Poisl.
Inicialmente, o professor destacou que gostava de dar aula, considerando essa prática como uma
forma não apenas de ensinar, mas também de aprender. O fato de gostar de lecionar parece ter
inspirado o professor na elaboração de um método próprio de ensinar. Durante suas aulas de
Contabilidade Bancária, o professor Walter Poisl ‘montava’ uma agência bancária fictícia em sua
sala de aula, na qual os alunos simulavam transações típicas de um banco. De acordo com Poisl,
essa prática teria sido aceita pelos alunos, uma vez que, ao chegar na sala, já encontrava as cadeiras,
fichários e caixas montadas para a simulação das transações. Provavelmente, é neste contexto que
o professor Poisl utilizava os formulários citados por Walter Sille.
O caráter prático das aulas não parece uma especificidade da disciplina de Contabilidade
Bancária. No caso da disciplina de Inglês, ministrada pelo professor Sille, também podem ser
observadas algumas práticas específicas. Conforme anteriormente demonstrado, o professor Sille
destacava: “eu transformei o inglês em comércio... em correspondência comercial” (SILLE, 2015,
p. 4). A análise das memórias do professor referentes às suas aulas pode explicar o significado dessa
expressão.
[...] mas eu transformei o inglês em comércio... em correspondência comercial. E daí as
minhas aulas eram de correspondência comercial com exemplos trazidos de todas as áreas
do mundo, e também, o que eles muito gostaram. Até hoje me dizem quando me
encontram, é com o senhor que aprendi a escrever cartas, em Português. Porque eu
ensinava que uma carta comercial não tem rodeios, é seca, é aquilo que realmente o outro
tem que ler e não pode ter dúvidas. Não por o endereço em cima. Tem uma folha que não
é carimbada, não é, como é que chama? Impressa o endereço. Você tem que bater o seu
endereço, etc. e tal. O endereço tem que ser na folha, não é no envelope, o envelope, o cara
joga fora. (SILLE, 2015, p. 4).

Como pode-se perceber, as memórias do professor mostram que suas aulas de Inglês eram,
na verdade, aulas de correspondência comercial, nas quais o professor ensinava os alunos a
escreverem correspondências, tanto em Inglês quanto em Português. Segundo Sille, as cartas
deveriam ser curtas e diretas, não deixando margem para interpretações errôneas. Assim como
Poisl, Sille afirma que os alunos gostavam de seu método, agradecendo-o sempre por tê-los
ensinado a escrever cartas.
As aulas ministradas por estes professores estão ligadas ao objetivo de um curso comercial,
que, como apresentou-se no início deste trabalho, consistiam basicamente em formar profissionais
para lidarem na área comercial, tanto em âmbito público quanto privado. Enquanto os professores
Walter Poisl e Hans Sille desenvolveram métodos práticos de ensino, que, nas memórias dos
professores, teriam marcado fortemente os alunos, no casso do professor Sven Schultz, parece ter
sido um pouco diferente. As memórias de Ingrid Schultz a respeito de seu pai como professor
destacam:
[...] quando a gente conversava com ele, dava para perceber que ele não tinha assim muita
pedagogia, ele era assim mais do técnico, muito exato. Então, às vezes, eu imagino que
algumas aulas dele tenham sido assim um pouco secas, mas os alunos se adaptavam.
(SCHULTZ, 2016, p. 6).

Na fala da entrevistada, a palavra ‘pedagogia’ está relacionada à ‘metodologia’, mostrando


que talvez, seu pai tenha ministrado aulas um tanto quanto ‘secas’. No decorrer de suas memórias,
Ingrid mostra que seu pai não tinha uma preocupação específica com o como ensinar, uma vez que
dominava os saberes técnicos a serem ensinados: "Ele dava as aulas assim muito no improviso.
Como eu disse, ele não tinha didática. Ele fazia o esquema dele, eles tinham lá um currículo
programado, e tal, ele fazia as provas com os alunos e tal.” (SCHULTZ, 2016, p. 21).
Como podemos observar até este momento, os professores da ETC Farroupilha
ministravam disciplinas de saberes específicos do Curso Comercial. Mas de onde viam esses
saberes prévios? As memórias do professor Hans Sille apresentam a resposta a este questionamento:

O Farroupilha tinha [...] professores. Todos eles eram funcionários que eram... exerciam a
profissão que eles lecionavam, a cadeira que eles lecionavam. Um era chefe da... Isso aqui
é praticamente geral; não cabia para mim como professor de Inglês. (SILLE, 2015, p. 4).

As memórias do professor Sille trazem o que é confirmado por Silva (2017), de que os
professores que ministravam as disciplinas de Cultura Técnica, em sua maioria, além de
professores, exerciam profissões relacionadas à matéria que lecionavam. O trabalho do autor citado
demonstra, por exemplo, que o professor Poisl era funcionário do Banco do Brasil (como pode ser
observado, inclusive, nas memórias aqui trabalhadas), que o professor Sven Schulze era dono de
uma empresa de máquina e que o professor Walter Kley possuía um escritório de Contabilidade e
Economia.

Ao intitular este trabalho de “Entre a teoria e a prática comercial: o ensino de Contabilidade


na Escola Técnica de Comércio do Colégio Farroupilha de Porto Alegre-RS (1950-1983)”, trouxe
no título o que tomaria como problemática desta pesquisa: a relação entre teoria e prática comercial
em um curso de formação de técnicos contabilistas. Para resolver essa problemática, tracei como
objetivo, investigar as práticas de ensino desenvolvidas pelos professores da ETC Farroupilha,
utilizando como metodologia a História Oral e como documentos as memórias produzidas com ex-
professores ou filhos de ex-professores da instituição. Destaco ainda que, as memórias aqui
analisadas, não foram tomadas como história, mas como documentos e, após passarem pelas três
fases historiográficas de Ricoeur (2007), permitiram a construção de uma narrativa sobre a ETC
Farroupilha.
Dessa forma, alguns apontamentos podem ser elencados após este estudo. Inicialmente,
destaco que a articulação das memórias com um relatório escolar permitiu identificar que o
currículo da instituição em estudo era composto basicamente por dois núcleos de disciplinas, as
chamadas de Cultura Técnica e as disciplinas de Cultura Geral. É dentre as disciplinas de Cultura
Técnica que parece estar o principal ponto de contato entre a teoria e a prática comercial.
As memórias aqui analisadas demonstraram que, no caso da disciplina de Contabilidade
Bancária, por exemplo, o professor Walter Poisl desenvolveu um método de trabalho próprio, no
qual articulava os conteúdos a atividades práticas, nas quais os alunos simulavam diferentes
transações bancárias, preenchendo relatórios, fazendo depósitos, utilizando fichários, entre outros.
Essa prática parece ter exercido significativa influência nos resultados esperados pelo professor,
pois além de suas memórias, as do professor Hans Sille também atentam para as suas práticas.
Embora do núcleo de disciplinas de Cultura Geral, a disciplina de Inglês também contou
com um método próprio, articulando teoria e prática comercial. As memórias de Sille mostram que,
a disciplina foi transformada em “correspondência comercial”, na qual os alunos eram levados a
produzirem correspondências tanto em Inglês quanto em Português.
Além das práticas estritas à sala de aula, as memórias revelam algumas características
importantes dos professores. A articulação entre as memórias produzidas nas diferentes entrevistas
realizadas mostra que a ETC Farroupilha tinha a preocupação de contratar professores que, além
de professores, exerciam profissão relacionada à disciplina que ministrariam. Embora nas memórias
de Ingrid Schultz, seu pai Sven Schultz não tenha desenvolvido um método próprio de trabalho e
nem contasse com uma ‘didática’ específica, o mesmo tinha habilidades para trabalhar com
maquinário, uma vez que, durante um período, foi proprietário de uma empresa de máquinas.
Os resultados aqui apontados são parciais e, destaca-se a necessidade de dar continuidade a
esta pesquisa. Cabe ainda apontar que as memórias aqui utilizadas foram todas produzidas a partir
da perspectiva dos professores, o que desperta o interesse em investigar o ponto de vista dos alunos.
Teriam os alunos realmente aderido a todas as propostas dos professores? Como se davam as
relações entre ambos em sala de aula? Quais as práticas que mais marcaram os alunos da ETC?
Esses são questionamentos que servem como desencadeadores de novos estudos.

ALBERTI, Verena. Ouvir Contar: textos em História Oral. Rio de Janeiro: Ed. da FGV, 2004.

CHARTIER, Roger. À beira da falésia: a história entre incertezas e inquietações. Porto Alegre:
Ed. da UFRGS, 2002.

GINZBURG, Carlo. Sinais: Raízes de um paradigma indiciário. In: _____. Mitos, emblemas,
sinais: morfologia da História. São Paulo: Companhia das Letras, 1989.

GRAZZIOTIN, Luciane Sgarbi Santos; ALMEIDA, Dóris Bittencourt. Romagem do tempo e


recantos da memória: reflexões metodológicas sobre História Oral. São Leopoldo: Oikos, 2012.

JACQUES, Alice Rigoni. Associação Beneficente Educacional de 1858 e o Colégio Farroupilha


(1886). In: BASTOS, Maria Helena Camara; _____. (Org.). Do Deutscher Hilfsverein ao Colégio
Farroupilha/RS: memórias e histórias (1858-2008). Porto Alegre: EDIPUCRS, 2013. p. 51- 76.

JULIA, Dominique. A cultura escolar como objeto histórico. In: Revista Brasileira de História da
Educação. SBHE. n.1, p. 9-43, jan./jun 2001.

KLEY, Ivam. Entrevista sobre a Escola Técnica Comercial do Colégio Farroupilha de Porto
Alegre[28/01/2016]. Entrevistador: Eduardo Cristiano Hass da Silva, 2016.

PESAVENTO, Sandra Jatahy. História & História Cultural. Belo Horizonte: Autêntica, 2005.

POISL, Walter. Entrevista sobre a Escola Técnica Comercial do Colégio Farroupilha de Porto
Alegre [16/05/2016]. Entrevistador: Eduardo Cristiano Hass da Silva, 2016.

RELATÓRIO MENSAL DA ESCOLA TÉCNICA DE COMÉRCIO FARROUPILHA: março de


1953. Disponível na Caixa 03 de Documentos da ETC (ETC-CX03).

RICOEUR, Paul. A memória, a história, o esquecimento. Campinas, SP: Ed. da Unicamp, 2007.
SCHULTZ, Ingrid. Entrevista sobre a Escola Técnica Comercial do Colégio Farroupilha de
Porto Alegre[29/01/2016]. Entrevistador: Eduardo Cristiano Hass da Silva, 2016.

SILLE, Hans Joachim Walter. Entrevista sobre a Escola Técnica Comercial do Colégio
Farroupilha de Porto Alegre[11/12/2015]. Entrevistadores: Eduardo Cristiano Hass da Silva e
Lucas Costa Grimaldi, 2015.

SILVA, Eduardo Cristiano Hass da. A gênese de um espaço profissional: a Escola Técnica de
Comércio do Colégio Farroupilha de Porto Alegre/RS (1950-1983). Porto Alegre, 2017.
Dissertação (Mestrado) ─ Escola de Humanidades, Programa de Pós-Graduação em História,
PUCRS.
Bruna Silva*

Um dos assuntos recorrentes nos anos 1970 e 1980 era a Proposta de Reformulação
Curricular para os alunos de 1º e 2º graus que estava sendo elaborada pela Coordenadoria de
Estudos e Normas Pedagógicas/CENP - SE/SP, especialmente no que diz respeito às discussões que
os professores de História elaboraram.
A proposta colocava-se na contramão do projeto MEC-Usaid, que apresentou a ideia de
uma escola que priorizava a educação rápida, porém voltada para a formação de mão de obra
especializada, formação de um cidadão consciente para o civismo e com desejo de resolver os
problemas brasileiros. Nesse momento, ocorreu a criação das disciplinas Moral e Cívica e
Organização Social e Política Brasileira, juntamente com o decreto que autorizava o funcionamento
de licenciaturas curtas. Nesse contexto, a partir de 1977, os movimentos sindicais retomaram
articulações de cunho nacional, o que aflorou a noção de que a sala de aula seria um espaço de luta.
Por outro lado, foi durante a ditadura militar que as decisões sobre o que e como ensinar fizeram
com que “[...] os intelectuais, historiadores e professores de história [voltassem] a se encontrar [...].
” (MARTINS, 2000, p. 99).
O ano de 1977 é significativo, pois até então a ANPUH era uma associação exclusiva para
professores universitários de História. Através de documentos da Associação foi possível verificar
que haviam discussões acirradas sobre a relação entre aluno/professor e professor
universitário/professor dos ensinos médios e fundamental que buscavam estreitamento de relações
com a ANPUH, o que só ocorreu no IX Simpósio Nacional realizado em Florianópolis no ano de
1977. Segue a proposta conforme documentação:

Considerando o crescente interesse e participação manifestados pelos estudantes e


professores secundários; considerando que a vivência do ensino e da pesquisa destes
participantes pode enriquecer as discussões de nossas reuniões; considerando ainda
constituir-se o Simpósio da ANPUH numa das possibilidades abertas à divulgação e
intercâmbio de pesquisas entre historiadores, PROPOMOS QUE: No artigo 20 dos
Estatutos da ANPUH. Substitua-se os §§ 19 e 29 por este § único: ‘A ANPUH assegura a
participação de professores secudários, professores de matérias afins, estudantes de pós-
graduação e graduação em todas as reuniões de seus Simpósios, salvo o direito de voto

* Doutoranda em História pelo Programa de Pós-Graduação em História da Universidade Estadual do Oeste


do Paraná – UNIOESTE, sob orientação de Marcos Nestor Stein e co-orientação de Beatriz Anselmo Olinto.
Bolsista Capes.
na Assembléia Geral’. Florianópolis. 20 de julho de 1.977. (PAULA, 1979. p. 105, grifo
meu).
A proposta foi aprovada com 73 votos a favor, 5 abstenções e 14 votos contrários. Entre os
votos contrários estava o de Cecília Westephalen, professora do Departamento de História da
Universidade Federal do Paraná – UFPR. Na abertura dos Anais do evento, a diretora de relações
públicas, Regina da Cunha Rodrigues afirmou que a assembleia em que se deu tal aprovação foi as
das mais crispantes, (PAULA, p. 14) provavelmente se referindo ao momento em que Westphalen
teria rasgado solenemente o estatuto da Associação Nacional da História – ANPUH, associação a
qual concordou em criar. Segundo o professor João Klug, Maria Cecília Westphalen discordou da
decisão da Associação em inserir alunos como membros, pois estes ainda não eram professores e
pesquisadores. Mas, a maioria estava de acordo, em um contexto de redemocratização e abertura,
pois estava-se saindo de uma ditadura militar. Desta maneira,

[...] a Profa. Maria Cecília Westphalen, da UFPR, levantou-se no auditório e, solenemente,


rasgou os estatutos da ANPUH. Em seguida, a referida professora se mobilizou e,
juntamente com colegas de várias instituições, criou a SBPH - Sociedade Brasileira de
Pesquisa Histórica. Parece-me que esta instituição morreu junto com a Profa. Westphalen.
(KLUG, 2013).

Para o entrevistado, Cecília Westphalen, não concordando com as disposições da ANPUH,


para com os estudantes de História, além de rasgar solenemente o estatuto, desligou-se, e, mais
tarde, ajudou a criar um novo grupo com professores de todo o Brasil. Já o professor Carlos Antunes
dos Santos, que lecionou na Universidade Federal do Paraná, foi membro da ANPUH, participou
como conselheiro em várias edições da Revista Brasileira de História, tendo sido também
idealizador da Associação Paranaense de História - APAH e da Revista História: questões e debates,
contou como a ANPUH foi importante, na medida em que abriu um espaço para debate entre os
historiadores do país. O referido professor, também pontuou, que, a partir da década de 1980, tinha-
se no Brasil, duas principais associações de pesquisa histórica: “Também teve a SBPH. Então aqui
no nosso Departamento tinha gente ligada à ANPUH; a maioria. E alguns ligados à SBPH. E, assim,
foi em vários departamentos de História do Brasil.” (SANTOS, 2012)
Antunes mencionou o mesmo motivo do desacordo que levou à criação de uma nova
associação em fins da década de setenta, pois que o grupo teria levado em consideração a
necessidade de a ANPUH manter-se fechada como um grupo de professores pesquisadores. Assim,
no âmbito nacional, Antunes pontuou que passaram a existir dois grupos a que professores de
História poderiam estar ligados: à ANPUH e à SBPH. No caso do Departamento de História da
UFPR, ter-se-ia, ainda, a Associação Paranaense de História com mais uma publicação específica
no início dos anos 1980.
Apesar do impacto da reação que Cecília Westphalen teria tido, a professora não foi a única
a discordar com as disposições da ANPUH, naquela ocasião. Machado apontou Maria Beatriz
Nizza da Silva, como mentora da criação de um novo grupo para “[...] contrabalancear a ANPUH.”
(MACHADO, 2016. p. 143)
Nas correspondências trocadas entre Silva e Westphalen, Machado citou um trecho em que
Silva relembrou o Simpósio ocorrido em Florianópolis, ao mesmo tempo em que sugere uma nova
associação
[...] pensei na criação de uma Associação Brasileira de Historiadores. Vocês lembram do
que se passou em Florianópolis. Se não me desliguei da ANPUH foi apenas por
consideração para com o Prof. Eurípedes. [...] Acho que chegou a hora de criarmos uma
nova Associação que, de modo nenhum, implique a relação com alunos e com professores
secundários, a menos que estes sejam historiadores, isto é, tenham pesquisa histórica
original publicada em tese, artigo ou livro. Vocês reparem: a ANPUH marginaliza uma
série de historiadores que não são professores universitários. Basta lembrar aqui em São
Paulo, os historiógrafos do Instituto de Estudos Brasileiros ou do Museu Paulista; e no Rio
então muitos exemplos há. Por outro lado, marginaliza jovens pesquisadores com teses de
Mestrado ou de Doutorado que ainda não estão inseridos numa Universidade. (SILVA.
In: MACHADO, 2016. p. 143).

Mesmo não tendo se desligado da ANPUH, ao mesmo tempo que Westphalen, Silva
afirmou estar em desacordo com aquela Associação. O não desligamento repentino teria acontecido
por ter apreço pelo professor Eurípedes, presidente da ANPUH em 1977. A professora conclamou,
então, uma nova associação, que deveria ser criada para funcionar distante dos professores
secundários e dos alunos. Neste ponto, uma ressalva foi feita: os professores secundaristas poderiam
ter acesso ao grupo, no entanto, deveriam ser além de professores, historiadores. Ou seja, teriam
que ser dedicados à pesquisa publicada. Isto porque considerou que também a ANPUH
marginalizou uma série de professores, mesmo que universitários e jovens historiadores com suas
pesquisas já publicadas.
Para Martins, a criação da SBPH rendeu confrontos por muitos anos após o Simpósio de
Florianópolis, pelo menos até o ano de 1981, pois ainda rondava o medo de que a ANPUH perdesse
seus status de cientificidade, mas “[...] em 1981, no XI Simpósio nacional de História, ocorrido em
João Pessoa, os estatutos reformulados foram apresentados à Assembleia Geral, a discussão sobre
o papel político da Associação foi objeto de discussão.” (MARTINS, 2000, p. 114). Passados quatro
anos e um Simpósio Nacional, as questões sobre cientificidade ou não, ainda pareciam pujantes no
seio das discussões da Associação. Necessitava-se que a documentação que regulamentava o grupo
estivesse adequada a nova situação para que o grupo aceitasse as novas normas. A ata do Simpósio
em João Pessoa afirmou que:

[...] o artigo 2º foi mantido, tendo sido sugerida a eliminação do artigo 3º: A Associação
não poderá tomar parte em manifestações políticas ou religiosas, nem tratar de qualquer
assunto estranho aos seus objetivos. [...] Em contraposição, pronunciou-se a Professora
Doutora Alice Piffer Canabrava, asseverando que em uma associação científica qualquer
tema pode ser tratado, desde que mantido seu caráter científico. Colocada em votação, foi
aprovada a proposta de eliminação. (MARTINS, 2000).

A proposta de os integrantes da Associação não poderem tomar parte de questões políticas


ou religiosas foi aceita, não sem contestações de Canabrava, ponderando que em um espaço
científico não se podem tolher quaisquer tipos de assuntos tratados de forma adequada ao paradigma
científico. No entanto, a ata veio atestar, documentalmente, a negação de um espaço político que
um dia a Associação tivera. Por outro lado, as acusações de não cientificidade poderia vir a perder
fôlego.
Alice Piffer Canabrava publicou, na Revista Brasileira de História, um artigo intitulado
Associação Nacional dos Professores Universitários de História, no ano de 1979, afirmando que a
ANPUH era reflexo de um sadio interesse intelectual:

É certo que a associação exerce grande atrativo para os jovens professores e estudantes,
levados ambos por sadio interesse intelectual e aqueles também estimulados pelas junções
da carreira universitária. Não temos dúvida de que, um de seus aspectos mais positivos
seja o da identificação com a juventude estudiosa que dela participa de modo efetivo e
essencial e seu dinamismo peculiar. (CANABRAVA, 1979. p. 4).

A ANPUH foi descrita por Canabrava como um grande atrativo, não somente para os
professores da disciplina, mas também para os estudantes que ficaram entusiasmados com a
pesquisa e a carreira universitária. Canabrava delegou a eles o futuro da pesquisa histórica. A
abertura para os professores de 1º e 2º graus não significou, neste trecho, a relevância que a
integração entre ensino e pesquisa poderiam ter, mas de um outro aspecto, abrir a Associação para
os jovens estudantes daria ânimo para incentivá-los a dar continuidade à pesquisa histórica no país.
Em entrevista cedida para Ilka Miglio, para Cadernos CEOM, Déa Fenelon apontou mais
uma questão sobre o desmembramento das duas associações, relacionada à entrada dos professores
que lecionavam nos primeiros e segundo graus:

[...] a Associação era uma associação científica, de conhecimentos, de produção e a


apresentação de trabalhos era uma coisa dos historiadores. Fazia-se muito essa diferença.
E o professor ainda estava numa fase que não produzia, que não era um pesquisador e etc.
E, por outro lado, havia uma reação também grande... Essa foi assim... A professora
Cecília Vestfália [Cecília Westephalen] que é uma das primeiras presidentes da
Associação [...] falou que a gente ia destruir a ANPUH. [...] Muito nessa base da reação
de que não ia mais ser um espaço científico [...] porque vinha essa turma de professores.
(MESQUITA, 2008. p. 4).

Déa Fenelon designou a ANPUH dos anos 1970, um espaço de produção de conhecimento
científico evidenciando que apresentar trabalhos e discuti-los era uma coisa de historiador, ao
mesmo tempo em que reforçou a diferença entre professor e historiador, quando afirmou que o
professor não era bem aceito por todos, pois estaria em uma fase em que ainda não produzia,
não estando nos moldes de um pesquisador.
Esta discussão foi tema central para os professores que tiveram seus textos publicados
no livro Repensando a história, organizado por Marcos A. da Silva, a partir da aprovação e
patrocínio da ANPUH – Núcleo São Paulo: “A edição deste volume foi concebida a partir
de uma moção encaminhada à seção administrativa do VI Encontro da Associação Nacional
dos Professores de História, ANPUH, realizada em Assis, campo UNESP, de 06 a 10 de
setembro de 1982”. (SILVA, 198-. p. 10). No livro, não consta a data de publicação. No
entanto, é possível balizar a publicação durante a primeira metade da década de 1980, levando
em consideração a moção apresentada no evento ocorrido em 1982.
Já na apresentação, Silva foi contundente em relação às diferenças entre os níveis de
ensino: “Trata-se de diálogo múltiplo e fecundo. Além de questionar certas concepções
ingênuas sobre a universidade como lugar exclusivo de produção de conhecimento e a escola
de 1º e 2º graus como pura repetidora do que já existe.” (SILVA, p. 10-11). O autor rebateu a
noção de que a escola não consistia em um lugar de produção do saber. Nesse contexto, as
discussões apresentadas no livro possuem um fio condutor, sempre questionando a ideologia
no ensino, refletindo as dificuldades para lecionar nas escolas, e ainda discussões sobre uso
de fontes. Já, na segunda parte do livro, professores expuseram suas experiências em sala
de aula, demonstrando suas frustrações e expectativas alcançadas em relação à produção do
conhecimento de forma conjunta entre aluno e professor.
Neste mesmo período, ocorreram também mobilizações sindicais feitas pelos
professores, através de congressos e da Revista da Associação dos Professores do Ensino
Secundário Normal Oficial do Estado de São Paulo – Apeoesp, que possuía o intuito de
construir uma política educacional para trabalhadores. No entanto, vários professores não
viam esta associação como um canal de mobilização e criaram o Movimento de Oposição
Aberto dos Professores – MOAP com projeção política, conseguindo organizar em 1978 a
primeira greve geral da categoria dos professores. É importante mencionar que, no ano
seguinte, o país vivenciou 430 greves, sendo que em todas as categorias do ensino houve greve
por 38 vezes. Apenas no ensino universitário houve 5 greves, em nível nacional, em 1980.
(RICCI, 1999. p. 35-36).
Em 1983 aconteceram debates e a produção de um projeto que culminou na publicação
do livro O ensino de História, que foi fruto de um projeto da Secretaria de Ensino Superior –
SESU do MEC, em 1983, que objetivou fomentar a produção de materiais destinados ao uso
de alunos de 1º e 2º graus. O projeto contou ainda com recursos da Pontifícia Universidade
Católica de São Paulo – PUC-SP. O livro de autoria de Conceição Cabrini, Helenice Ciampi,
M. do Pilar Vieira, M. do Rosário Peixoto e Vavy Pacheco Borges, foi publicado, apenas em
1986.
..........As autoras buscaram, de maneira muito didática, explicar a proposta de ensino,
contando com um relato de experiência ocorrido durante um ano em turmas da 5ª série,
assim: “Foi nossa preocupação, desde o princípio, pensar a pesquisa e o ensino como um
processo global, único, o que destrói pela base a separação entre produção e
transmissão.” (CABRINI, 2000. p. 11).
As autoras mencionaram a existência de uma relação de poder nas universidades, o
que contribuía para a segregação das atividades relacionadas à ciência, no entanto,
apontaram que muitas das críticas foram radicalizadas, assim

O ataque ao saber da universidade (essa ‘torre de marfim!’) feito de uma forma incoerente
e ‘incompetente’ (superficial e sem base) acabou por se radicalizar, ao se tornar mera
bandeira de luta, gerando uma atitude que leva a desprezar e a querer excluir o estudo e a
reflexão. Ora, o estudo e a reflexão são, sob suas mais diferentes formas, a essência do
trabalho ensino/aprendizagem. (CABRINI, p. 20).

Portanto, ao passo em que se radicalizavam as críticas, a distância entre as duas entidades


de ensino tornava-se profundas. Salientou-se que o caminho a ser seguido iria na contramão,
portanto, aproximando pesquisa e ensino, fazendo que as salas de aula das escolas tornassem-se um
local em que a relação entre aluno e professor propiciasse a produção dos seus próprios materiais
didáticos, incluindo discussões, textos, fontes e o que mais fosse julgado necessário, não
dependendo apenas do livro didático.
Considerou-se que o “exercício de poder” (CABRINI, 2000.) era repetido inúmeras vezes
na sala de aula, uma vez que o professor detém para si o saber e o escolher, pois

[...] é o professor, que sabe mais que o aluno, pois detém o saber dos especialistas e dos
livros didáticos. Ele é um elo dessa cadeia, pois exerce essa dominação, mas também a
sofre, por sua situação de dependência em relação ao ‘saber produzido pela academia’, em
relação às condições de trabalho, em relação à situação estrutural de ensino, em relação à
cobrança do seu papel profissional pelos alunos, pais, diretores e instituição de ensino...
(CABRINI).

A figura do professor foi construída a partir de uma rotina de sofrer a imposição do poder
sobre si e de repercuti-la em sala, fazendo com o aluno o visse de maneira impositiva. Ao contrário
disso, a proposta que configurava o livro tratava-se de que o profissional de história fosse
conhecedor do “[...] processo do conhecimento histórico, que seja alguém que saiba se relacionar
como saber histórico [...] seja alguém capaz de encaminhar seus alunos [...] nesses mesmos
caminhos da produção e da relação crítica do saber.” (CABRINI, p. 23). Nesse intuito, o foco
principal não está em o professor deter todo do conhecimento sobre história, pelo contrário, seria
fundamental que ele dominasse os mecanismos em que a história é produzida, ou seja, através de
fontes e da crítica, que deveria ser estimulada.
Cláudia Sapag Ricci descreveu como os professores buscaram trabalhar em sala de aula, e
quais os questionamentos levantados a partir daquele modelo de ensino de História que estava
sendo executado nas salas de aulas. A autora não deixou de elencar uma importante série de
revistas queoram publicadas, no estado de São Paulo, ou ainda que tiveram um aumento nos
artigos publicados, nos anos 1970 e 1980, pensando a questão do ensino, tais como a Revista
b
de História, do Departamento de História da USP; Revista Projeto História do Programa de
Pós-Graduação em História da PUC-SP; Cadernos Cedes, resultado de um evento sobre o
ensino de História parte do VII Encontro de História do Núcleo Regional de São Paulo da
ANPUH. Na Revista Brasileira de História, o número 7 foi destinado a discutir educação.
Especificamente, a respeito da Revista Brasileira de História, segue uma tabela
com o levantamento dos artigos publicados relacionados à área de ensino de História,
desde o ano de criação do periódico: de 1981 até 2001.

Tabela 1 – Artigos relacionados ao ensino de História nas publicações da


Revista Brasileira de História (entre 1981-2001)

Artigo Autor Volume/Ano

A criança e a história que lhe é Olga Brites Vol. 5, n. 10 - 1985


ensinada (Resenha)
Creche: uma escola antecipada Maria Nadja L. de Oliveira Vol. 5, n. 10 - 1985
(Resenha)
A formação do “professor I” e o Zita de Paula Rosa Vol. 5, n. 10 - 1985
ensino de História (Resenha)
Sobre a proposta para o ensino de Déa Ribeiro Fenelon Vol. 7, n. 14 - 1987
História do Primeiro Grau
(Resenha)
A impaciência do preconceito e o Marcos A. da Silva Vol. 7, n. 14 - 1987
coro dos contentes (Resenha)
Antiguidade, proposta curricular e Pedro Paulo Abreu Funari Vol. 7, n. 14 - 1987
formação de uma cidadania
democrática (Resenha)
Vivências da contramão: produção Marcos A. da Silva e Maria Vol. 10, n. 19 - 1989-
de saber histórico e Processo de Antonieta M. Antonacci 1990
Trabalho na escola de 1º e 2º
Graus
A História da reflexão didática Klaus Bergmann Vol. 10, n. 19 - 1989-
1990
A ausência da natureza nos livros Arthur Soffiati Vol. 10, n. 19 - 1989-
didáticos de História 1990
História e educação em Sesinho Olga Brites Vol. 10, n. 19 - 1989-
1990
Crescer, multiplicar, civilizar Maria Cândida D. Reis Vol. 10, n. 19 - 1989-
1990
Salvar a América – Educação e José Maria O. Silva Vol. 10, n. 19 - 1989-
História: nuances do radicalismo 1990
republicano em Manoel Bomfim
A academia vai ao ensino de 1⁰ e 2⁰ Cláudia Sapag Ricci Vol. 10, n. 19 - 1989-
graus 1990
Reflexões sobre a prática diária noCélia Morato Gagliardi, Vol. 10, n. 19 - 1989-
ensino de História Conceição Cabrini, Daisy 1990
AmadioFujiwara, Elizabeth
dos Santos Bernardo, Helenice
Ciampi, Marize Carvalho e
Rona Rocha Machado
Sabor e dissabores do ensino de Dulce Maria Camargo, Ernesta Vol. 10, n. 19 - 1989-
História Zamboni e Maria Carolina 1990
Galzerani
Ensino de História: diversificação Selva Guimarães Fonseca Vol. 10, n. 19 - 1989-
de abordagens (resenha) 1990
O ensino de História no Brasil: Elza Nadai Vol. 13, 25 e 26 -
trajetória e perspectivas 1992-1993
O ensino da História como fator de Kátia Maria Abud Vol. 13, 25 e 26 -
coesão nacional: os programas de 1992-1993
1931
Instaurando maneira de ser, Maria Stephanou Vol. 18, n. 36 - 1998
conhecer e interpretar
A CENP e a criação do currículo Maria do Carmo Martins Vol. 18, n. 36 - 1998
de História: a descontinuidade do
projeto educacional
Quando os discursos não se Cláudia Sapag Ricci Vol. 18, n. 36 - 1998
encontram: imaginário do
professor de História e a reforma
curricular dos anos 80 em São
Paulo
Representações e linguagens no Ernesta Zamboni Vol. 18, n. 36 - 1998
ensino de História
Formação da alma e do caráter Kátia Maria Abud Vol. 18, n. 36 - 1998
nacional: ensino de História na
Era Vargas
Non Ducor, Duco: a ideologia da Luis Fernando Cerri Vol. 18, n. 36 - 1998
paulistanidade e a escola
Estado Novo: projeto político- Maria das Graças Andrade Vol. 18, n. 36 - 1998
pedagógico e a construção do Ataíde de Almeida
saber
Ouvindo no Brasil: o ensino de Newton Dângelo Vol. 18, n. 36 - 1998
História pelo rádio (décadas de
1930-40)
Fonte: Revista Brasileira de História.

Fenelon se referiu a umas das edições mencionadas na tabela acima, a edição do volume 7,
nº 14 de 1987, denominada Instituições. Nesse dossiê estão o artigo “Sobre a proposta para o ensino
de História do Primeiro Grau”, de sua autoria, e também, os artigos intitulados “A impaciência do
preconceito e o coro dos contentes” de Marcos A. da Silva e “Antiguidade, proposta curricular e
formação de uma cidadania democrática” de Pedro Paulo Abreu Funari, ambos publicados na seção
de resenhas do dossiê.
A esse respeito, Fenelon considerou que as publicações foram fruto de uma proposta que
sugeriu a reformulação do ensino de História de 1ª à 8ª séries, que consistia em distribuir temas de
forma blocada que deveriam ser trabalhados em todos os períodos, “como o tema ‘trabalho’”,
(FONSECA, 1997. p. 84). No entanto, além das dificuldades que alguns professores teriam sentido
em relação à falta de livros didáticos, a proposta foi

[...] bombardeada, nessa essência que trazia o fato de não ser uma proposta fechada, de
não ter uma lista temática, foi um pouco de como tirar a segurança de que eles tinham um
certo conteúdo a cumprir, tinham uma certa temática para desenvolver. Resumindo essa
discussão toda, nós conseguimos publicar o texto na Revista Brasileira de História nº14.
Esse texto contém alguns artigos de jornais e as nossas respostas ao debate que aconteceu.
(FONSECA, p. 84).

A historiadora rememorou que a falta de ter um roteiro a ser seguido para lecionar foi
sentida, pois os materiais a serem trabalhados em sala de aula deveriam ser produzidos pelos
próprios professores. Mas, a publicação do artigo marcou a abertura de espaço para esta proposta e
rendeu uma pequena vitória. A historiadora completou: “Na verdade ele foi ‘estraçalhado’ por uma
crítica muito superficial, muito ideológica também, muito por razões pessoais, até por não estar
participando da proposta.” (FONSECA). Assim, a narrativa de Fenelon foi construída recordando
duras críticas à nova proposta de lecionar História e desavenças pessoais que culminaram na má
aceitação do projeto.
No texto escrito por Fenelon, há duras críticas ao ensino daquele período. Para ela, os
Estudos Sociais e a instituição das licenciaturas curtas representavam um verdadeiro perigo para a
educação. “[...] seria necessário recusar veementemente qualquer tentativa de considerar que o
ensino unificado de Estudos Sociais, em qualquer momento da vida escolar, possa representar uma
opção saudável.” (FENELON, 1987. p. 252).
Além de tecer críticas às estruturas fechadas de ensino, Fenelon acusou os professores
universitários de terem proposto os Estudos Sociais, juntamente com o destaque midiático que a
notícia teve sem que as associações científicas dessem seus pareceres:

O fato de que os professores universitários venham propor a volta ao esquema de Estudos


Sociais, com destaque jornalístico para a proposta, e que isto passe ao público sem que as
nossas associações científicas se manifestassem parece ser a negação de lutas bem recentes
e atuais, quando aí estão pareceres e indicação com tais sugestões. (FENELON).

A crítica foi contundente em relação à cisão entre os professores dos três níveis de ensino.
Conjuntamente foram tecidas críticas à própria ANPUH, que a seu entender estava indo na
contramão das lutas que vinham construindo.
Marcos A. da Silva criticou a grande repercussão negativa que a imprensa fomentou ao
passar a analisar o ofício do historiador, relacionando-o à proposta do currículo de História. Silva,
na época, ocupava o cargo de Assessor da Equipe Técnica de História da Coordenadoria de Normas
Pedagógicas – CENP, que elaborou a proposta em questão. Nesse contexto afirmou: “Penso que as
falas apontadas não são mera expressão de mero pluralismo de rejeições. Elas se identificam em
profundidade ao declararem os sujeitos legítimos da crítica e seus desprezíveis objetos.” (SILVA,
1987. p. 256) A proposta foi acusada de ser marxista, ter o intuito de acabar com o ensino, de postura
extremamente ideológica, dentre outras acusações. (SILVA, p. 255) Para Silva, as críticas
desnudaram as posturas dos seus locutores, não cabendo apenas dentro da diversidade de opiniões
sobre a proposta.
Pedro Paulo Abreu Funari complementou a opinião de Silva. Para ele, a proposta tem de
recuperar “[...] da Democracia Grega, o sentido profundo do diálogo: a confrontação entre
interlocutores, autônomos, de suas ordenações da experiência (logoi). O cidadão educa-se, numa
sociedade democrática, pela prática de discussão das visões e conflitantes no interior da cidadania
[...].” (FUNARI, 1987. p. 262). Funari via na diversidade o oposto das críticas. A nova proposta
agiria no sentido de construção do saber através do diálogo democrático.
Ao longo de vinte anos de edição do periódico, apenas uma edição, o volume 10, n. 19 de
1989-1990, foi dedicada inteiramente ao assunto “ensino de História”. O número foi intitulado
“História em quadro-negro: escola, ensino e aprendizagem”. Além disso, pouco se falou sobre a
formação do professor nos artigos. O único texto abordando este assunto é de autoria de Zita de
Paula Rosa, publicado em 1985: “A formação do ‘professor’ e o ensino de História”, e trata-se de
uma resenha. Outro texto que chama atenção, na edição “Quadro negro” é “A academia vai ao
ensino de 1º e 2º graus”, de autoria de Claudia Sapag Ricci. Um dos artigos desta edição seria
resultado de um evento realizado na tentativa de aproximar docentes do âmbito universitário e
escolar.
Sobre estas publicações, Helenice Ciampi e Conceição Cabrini escreveram:

[...] docentes do ensino fundamental e médio constituíram um grupo com os seus parceiros
universitários iniciaram uma participação ativa e, debates da ANPUH e nos encontros
acadêmicos, como Iª Perspectiva do Ensino de História, realizado na USP em 1988 [...]
‘Reflexões sobre a prática diária no ensino de História’, publicado na Revista Brasileira
de História. (CIAMPI, 2005. p. 07).

Apesar desta aproximação mencionada, não se pode afirmar, através do periódico, outras
aproximações por meio de eventos, como simpósios que tenham resultados em artigos publicados
na Revista Brasileira de História. Para dar uma dimensão da totalidade de publicações sobre uma
vasta diversidade de assuntos publicados ao longo de vinte anos em detrimento das publicações
sobre ensino de História, segue um gráfico:
Gráfico 1 – Artigos e resenhas sobre o ensino de História na RBH (1981-2001)

5%

Artigos e resenhas
relacionadas ao
ensino de história
Total de artigos
publicados entre
95% 1981 e 2001.

Fonte: Revista Brasileira de História.

Apenas uma pequena fatia de pesquisadores, mesmo depois do Simpósio que decidiu a
abertura da ANPUH aos professores dos ensinos de 1º e 2º graus, se interessou em problematizar o
ensino através de publicação de artigos na Revista Brasileira de História - RBH. É necessário
ponderar que os artigos passavam pelo crivo de pareceristas e de um Conselho Editorial para que
fosse publicado. Portanto, é possível questionar até que ponto a Associação e a revista estavam
propensas a se relacionar com o ensino de História.
Heloísa Faria da Cruz deixou transparecer indignação em relação à situação em que os
professores encontravam-se:
O conhecimento histórico é produzido na academia. Para nós do 1º e 2º graus cabe a
divulgação como bem prescreve a lei. Na universidade se produz o conhecimento puro,
científico, que nenhum momento discute o próprio caráter ideológico. Por que parece mais
natural propor uma mesa sobre ideologia e ensino de História nos 1º e 2º graus ao invés
da ideologia e ensino de História? Por que nossos espaços de discussão ainda guardam
esta separação? Na verdade, entre nós profissionais de História o mais comum é a
reprodução daquela postura que separa os que produzem o saber, junto com a atividade de
docência – é claro – daqueles que só ensinam. Na verdade, estamos hierarquizando e
assumimos esta hierarquia – ser docente é diferente de ser professor. (CRUZ, p. 28).

Talvez a lei que Cruz se refira, se trata da Lei nº 7.044 de 18 de outubro de 1982, que alterou
dispositivos da Lei nº 5.692, de 11 de agosto de 1971. A referida lei fixou diretrizes e bases para os
ensinos de 1º e 2º graus. Já no artigo 1º abordou os objetivos do Ensino Básico:

Art. 1º - O ensino de 1º e 2º graus tem por objetivo geral proporcionar ao educando a


formação necessária ao desenvolvimento de suas potencialidades como elemento de auto-
realização, preparação para o trabalho e para o exercício consciente da cidadania. (Lei Nº
7.044 de 18 de outubro de 1982).

A lei sancionada por Emílio G. Médici dimensionou os limites que o ensino escolar deveria
estar restrito. Assim, a formação para o mercado de trabalho e para a formação de um cidadão
exemplar, tornaram-se ápices a ser alcançados. Por outro aspecto, o decreto nº 85.487, de 11 de
dezembro de 1980, versou sobre a carreira do magistério nas instituições federais e compreendeu
que:
Art. 1º Nas universidades e nos estabelecimentos isolados mantidos pela União,
entendem-se por atividades do magistério superior.
I – as pertinentes à pesquisa e ao ensino de graduação ou de nível mais elevado, que visem
à produção, ampliação e transmissão do saber.
II – as que estendem à comunidade, sob forma de cursos e serviços especiais, as atividades
de ensino e os resultados da pesquisa.
III – as inerentes à direção ou assessoramento exercidas por professores na própria
instituição, ou em órgãos do Ministério da Educação e Cultura. (DECRETO Nº 85.487, de
11 de dezembro de 1980).

Para os bancos universitários produzirem, ampliarem e transmitirem o saber lá gestado


tornaram-se imperativos, além disso, a extensão à comunidade dos resultados obtidos eram
necessários, enfim a acumulação de cargos de assessoramento ficaram permitidos. Configurou-se
assim um paralelo entre um espaço destinado para formar cidadãos trabalhadores e outro destinado
à produção do conhecimento. Tendo em vista este quadro é factível refletir que a formação do
professor para estes espaços se dava de maneiras diferentes.
O texto de Cruz foi apresentado no debate “Ideologia no ensino de História no 1º e 2º graus”,
no VI Encontro Regional da ANPUH, em 1982, na UNESP - Assis. Portanto, ao questionar sobre o
espaço para discutir ideologia nas escolas, Cruz teceu críticas à própria organização do evento que,
ao seu ver, mais uma vez segregou a atividade dos profissionais da educação.
Em “Reflexões sobre o procedimento histórico”, Adalberto Marson destinou suas reflexões
para os professores de História, “[...] que estão, preferencialmente, nesta condição e não
propriamente de pesquisadores”. (SILVA, 198-. p. 38). Esta dedicatória é reflexo da cisão que
ocorria naquele momento. Ao passo que Marson enfatizou o aumento da quantidade de fontes para
pesquisa e a metodologia que julgou necessária para o tratamento das fontes, evidenciou o caráter
pedagógico que poderia ser dado aos documentos em sala de aula: “A título de sugestão,
desenvolvemos uma forma didática pela qual o valor documental de um dado objeto está na relação
do objeto em si com um dado sujeito, atribuindo-se aí o próprio despertar do interesse pela sua
história [...]”. (SILVA, 198-. p. 55). As fontes documentais fariam parte de um processo didático na
medida em que o aluno sentia curiosidade em descobrir mais sobre a história. Durante a leitura do
texto é perceptível que a própria construção textual é uma demonstração de que ser professor e
trabalhar como pesquisador tratava-se de uma tarefa possível.
Através das documentações narradas e escritas foi possível compreender como decisões no
interior de um grupo refletiam na comunidade de professores de História em todo o Brasil. Ao passo
que a ANPUH cedia espaço para que os docentes dos Ensinos Fundamental e Médio tivessem
acesso às reuniões criaram-se um conflito interno que criou desentendimentos que culminou na
criação de outa associação, a Sociedade Brasileira de Pesquisa Histórica – SBPH, com uma política
mais fechada em relação aos professores que não lecionavam nas universidades. No entanto, esse
processo não foi assistido passivamente, já que houve movimentos destes docentes em defesa da
importância da aproximação entre as atividades de lecionar e pesquisar. Por outro lado, observou-
se pela narrativa de Déa Fenelon e pelo levantamento de artigos publicados na Revista Brasileira
de História, publicação da ANPUH, que mesmo coma abertura desta associação até o início dos
anos 2000, o tema ensino de História não foi um dos temas mais presentes no periódico.

CABRINI, Conceição. et al. Ensino de História: revisão urgente. São Paulo: EDUC, 2000.

CIAMPI, Helenice; CABRINI, Conceição. Ensino de História: história e vivências. In:


CERRI, Luis Fernando (Org.). O ensino de História e a ditadura militar. 2 ed. Curitiba: Aos
quatro ventos, 2005.

FENELON, Déa Ribeiro. Sobre a proposta para o ensino de História do Primeiro Grau.
Revista Brasileira de História, São Paulo: ANPUH, v. 7, n. 14, 1987.
FONSECA, Selva Guimarães. Ser professor no Brasil: História Oral de vida. Campinas:
Papirus, 1997.

FUNARI, Pedro Paulo Abreu Funari. Antiguidade, proposta curricular e formação de uma
cidadania de uma cidadania democrática. Revista Brasileira de História. v. 7, n. 14. São
Paulo: ANPUH, 1987.

MACHADO, Daiane Vaiz. Modo de ser historiadora: Cecília Westphalen no campo


historiográfico brasileiro da segunda metade do século XX. In: História da historiografia. n. 22,
dezembro de 2016.

MARTINS, Maria do Carmo. A história prescrita e disciplinada nos currículos escolares:


quem legitima esses saberes? (Doutorado em História) 263f. Campinas: UNICAMP, 2000.

PAULA, Eurípedes, Simões de. Anais do IX Simpósio Nacional da Associação dos Professores
Universitários de História. São Paulo: ANPUH. 1979.

RICCI, Cláudia Sapag. Da intenção ao gesto: quem é quem no ensino de História em São Paulo:
AnaBlume, 1999.

SILVA, Marcos A. da. A impaciência do preconceito e o coro dos contentes. Revista


Brasileira de História. v. 7, n. 14. São Paulo: ANPUH, 1987.

SILVA, Marcos A. Repensando a história. 2. ed. São Paulo: [s.n.], 198-.

SILVA, Maria Beatriz Nizza da. Carta a Cecília Westphalen. São Paulo, 8 mar. 1978. Coleção
Cecília Westphalen. Arquivo Público do Paraná, caixa 3. MACHADO, Daiane Vaiz. Modo de
ser historiadora: Cecília Westphalen no campo historiográfico brasileiro da segunda metade
do século XX. História da historiografia. n. 22, dezembro de 2016.

KLUG, João. Entrevista cedida a Bruna Silva. 12 de junho de 2013.

SANTOS, Carlos Antunes. Entrevista cedida a Bruna Silva. Curitiba, 10 de dezembro de


2012.

MACHADO, Daiane Vaiz. ANPUH e a SBPH, 1877-1981. In: XV Encontro Regional de


História. Curitiba: UFPR, 2016. p. 04. Disponível em
<http://www.encontro2016.pr.anpuh.org/resources/anais/45/1468194012_ARQUIVO_MAC
HADO,D.PERFISDEENGAJAMENTO.pdf > Acesso em 27 fev de 2016.

MESQUITA, Ilka Miglio. Entrevista com a doutora Déa Ribeiro Fenelon. Cadernos do
CEOM , v. 1, p. 283-308, 2008.
PROJETO MEMÓRIA VIVA PARANÁ. Entrevista com a professora Cecília Westphalen.
Supervisão: Umuarama Comunicação e Arte. Curitiba, 1988.

DECRETO Nº 85.487, DE 11 DE DEZEMBRO DE 1980. Disponível em


<https://goo.gl/HquQUe> Acesso em 15 set de 2016

LEI Nº 7.044 DE 18 DE OUTUBRO DE 1982. Disponível em


<http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/ leis/L7044impressao.htm>. Acesso em 15 set de
2016.
Rafael da Silva e Silva

O presente trabalho é fruto de pesquisas realizadas em níveis de Mestrado e Doutorado


sobre a Educação Japonesa na cidade de Santos, litoral do Estado de São Paulo, e no Vale do Ribeira,
região sul do Estado. Nessas regiões formaram-se colônias de japoneses na primeira metade do
século XX, cuja característica marcante foram os esforços para consolidar escolas para o ensino de
língua japonesa. Sendo assim, a pesquisa se debruça na estrutura organizada pela colônia japonesa
no sentido de centralizar as diretrizes educacionais para analisar seu grau de sucesso até a proibição
de ensino de língua japonesa em 1943, pelo Governo de Getúlio Vargas. Contou com a História
Oral para compreender a complexidade da educação japonesa na região estudada, assim como as
relações estabelecidas em torno da educação japonesa e também na educação brasileira ofertada
pelo Estado através dos cursos normais no sentido de tentar alcançar as estruturas educacionais
(SAES, 2012, p. 287).

Oficialmente, a história da imigração japonesa inicia-se com a chegada do navio Kasatu


Maru no Porto de Santos em 1908. Cerca de setecentos imigrantes vieram para o Brasil para o
trabalho nos cafezais no interior do estado (HANDA, 1986, p. 314). Ao introduzir o imigrante
japonês, os fazendeiros esperavam resolver o problema da carência de mão de obra que sempre
afetara as colheitas de café. Além disso, era uma forma de aproximação a novos mercados
consumidores do produto brasileiro. Era comum, nos cafezais, fugas das fazendas onde os
imigrantes originalmente eram introduzidos (NOGUEIRA, 1973, p. 60). Isso porque as fazendas
de café apresentavam condições insalubres aos trabalhadores, onde a estrutura dos trabalhos nas
fazendas apresentava-se ainda em um estágio de transição em relação à escravidão do século
anterior (HOLLOWAY, 1984, p. 68).
Quando os imigrantes chegaram, acreditava-se que teriam dificuldades em deixar as
fazendas devido à cultura e à língua diferenciada. Aconteceu, porém, justamente o oposto e logo no
primeiro ano de experiência, registraram-se as primeiras fugas em regresso ao porto de Santos. O
mesmo aconteceu no interior do Estado de São Paulo, onde se formaram diversos núcleos de

* Doutor em Educação pela Universidade Metodista de São Paulo, professor de Educação Básica na disciplina
de História e pesquisador na área de História da Educação no Centro de Memória da Educação de Praia Grande-
SP.
imigração japonesa. O autor Tomoo Handa destaca que a grande maioria dos imigrantes que
regressaram a Santos eram provenientes de Okinawa, uma ilha mais afastada ao sul do Japão que
conserva características culturais diferenciadas do restante do arquipélago. Por essa razão optaram
por regressar ao porto de Santos que lembrava a terra natal: ilha portuária onde poderiam
desenvolver, principalmente, a pesca, atividade a qual já estavam bastante familiarizados (1986, p.
314-315). O sucesso dos imigrantes que deixaram as fazendas de café incentivou outros imigrantes
a fazerem o mesmo. Ano após ano, as colônias japonesas espalhadas por todo o Estado de São Paulo
tiveram um aumento populacional considerável. No final da década de quarenta, em Santos e
arredores, havia mais de mil famílias japonesas vivendo, principalmente da pesca de horticultura
(SILVA E SILVA, 2011. p. 70-120).
Famílias japonesas também ocuparam o litoral sul do Estado através da construção da linha
férrea Santos-Juquiá. No início do século XX, o governo do Estado pretendia interligar a economia
do Vale do Ribeira ao restante do Estado. Para isso, iniciou a construção da linha férrea em direção
ao sul em 1914 (CARDOSO, 1972, p. 317-345). Muitos imigrantes japoneses presentes na cidade
de Santos viram na construção uma boa oportunidade de trabalho. Ao término das obras, algumas
famílias arrendaram terras para o plantio do arroz. Segundo consta no livro “A História da Colônia
Japonesa de Itariri” (UECHI, 1975), os primeiros a chegarem em Itariri, que na época ainda
pertencia ao município de Itanhém, foi a família de Genzo Oshiro, que iníciou o plantio de arroz.
O mesmo ocorreu nas regiões adiante, como Pedro de Toledo, Pedro Barros, Miracatu, etc.
Em Registro, Iguape e Sete Barras, no Vale do Ribeira, a imigração japonesa aconteceu de
forma diferenciada do restante do Estado até aquele momento. Através da Lei n°1.299 de 27 de
dezembro de 1911, o governo firmou acordo com o Syndicato de Tokyo, que, posteriormente,
passou a denominar-se Kaigai Kogyo Kabushiki Kaisha, mais conhecida pela sigla KKKK. O
acordo estabelecido entre o governo e a KKKK possibilitou a colonização e a ocupação do território
pelas famílias japonesas, ignorando as populações caiçaras. Diferentemente das demais cidades da
linha Santos-Juquiá, onde os imigrantes japoneses dependiam de suas próprias associações e,
quando possível, da ajuda do Governo Japonês, principalmente para a construção de escolas; a
KKKK possibilitava auxílio financeiro para os colonos, além de ser responsável pela abertura e
manutenção de estradas, construção de escolas, beneficiamento de arroz, etc. Até aquele momento,
era uma experiência inédita com imigrantes japoneses no Brasil, onde os colonos vinham
diretamente como arrendatários de terras, diferentemente da imigração destinada ao abastecimento
de mão de obra nos cafezais (VIEIRA, 1973, p. 247).

Em geral, a bibliografia que aborda a imigração japonesa no Brasil é unânime a respeito da


importância que os imigrantes deram para a questão da educação. Uma das primeiras providências
ao se formar uma colônia era estabelecer um local para o funcionamento de uma escola que também
serviria de núcleo para reuniões e eventos culturais (HANDA, 1987, p. 270-280). A educação para
os japoneses representava, ao mesmo tempo, a possibilidade de ascensão social e uma forma de
garantir a preservação da cultura dos ancestrais através do ensino da língua. Além disso, havia
forte temor em regressar ao Japão com filhos analfabetos sujeitos a todo tipo de discriminação
(ANDO; WAKISAKA, 1971. p. 31). Portanto, logo as associações se organizaram para a
construção de escolas. As primeiras escolas eram rústicas, construídas, muitas vezes, com paredes
de barro e forro de palha. Na impossibilidade de construção desse tipo de escola, as aulas eram
ministradas na moradia do professor, que em alguns casos não era professor de formação, mas sim
alguém com domínio da língua e alguns livros que por ventura trouxera do Japão (HANDA, 1987,
p. 282-291). Somente após o ano de 1924, com apoio do governo japonês e com a melhora da
estrutura das colônias japonesas surgiram escolas mais estruturadas. A primeira escola japonesa
fundada no Brasil, que se tem notícia, foi inaugurada em 1915 no interior paulista, ao longo da linha
Noroeste na colônia Hirano. Em seguida surgiu a Escola Primária de Água Limpa, da Colônia
Birigui. No mesmo ano, na capital paulista, na Rua Conde de Sarzeda, apareceu a primeira escola
japonesa em ambiente urbano. Com o passar dos anos, as escolas japonesas se multiplicaram pelo
Estado de São Paulo, sendo que em 1932 contabilizaram-se cento e oitenta e sete estabelecimentos
de origem japonesa e, em 1938, pouco antes do governo restringir o funcionamento de escolas
estrangeiras, especulava-se ao todo a existência de quatrocentos e setenta e seis estabelecimentos
(WAKISAKA, 1992, p. 123-129).
Do ponto de vista estrutural, as escolas japonesas receberam um grande impulso após o ano
de 1924, com a participação ativa do Consulado Japonês. A partir desse momento, passou a apoiar
as instituições japonesas diretamente com auxílio financeiro. Em 1927, fundou-se a Zaihaku Nihon-
jin Kyoiku-kai (Associação Japonesa de Ensino no Brasil), posteriormente intitulada de Nihonjin
Kyoiku Fukyo-kai (Sociedade de Difusão de Ensino de Japoneses do Brasil), com o objetivo de
desenvolver e unificar o ensino da língua japonesa; melhorar o tratamento do professor; promover
seminários e conferências a respeito da educação e aperfeiçoar o material didático. A entidade era
diretamente vinculada ao Consulado Geral do Japão no Brasil. Através dela, o governo japonês
detinha grande influência sobre a educação, nomeando e enviando professores e diretores com
formação superior ao Brasil. Nos primeiros anos de funcionamento, a entidade tinha filiais
instaladas em São Paulo, Santos, Registro, Ribeirão Preto, Presidente Prudente, Promissão,
Catanduva, Penápolis, Araçatuba e Ourinhos. Em 1935, já contava com trinta e cinco filiais
espalhadas por todo Estado de São Paulo (WAKISAKA, 1992, p. 100).
Além do ensino de japonês, muitas dessas escolas buscaram integrar-se ao currículo das
escolas para o ensino da língua portuguesa, podendo inclusive funcionar como uma escola
particular, muitas vezes frequentada por alunos não japoneses nos cursos do Ensino Primário. As
aulas de Português eram ministradas em horários distintos ao curso de Japonês. Os professores
poderiam ser enviados e mantidos pelo Estado ou pela própria colônia (WAKISAKA, 1992, p. 124-
125). Em meados da década de trinta, o sistema japonês de ensino no Brasil estava bem estruturado,
com professores e diretores com formação no Japão, além dos cursos de Português, seguindo o
modelo brasileiro. Em 1932 contavam-se cento e oitenta e sete estabelecimentos de ensino japonês
oficializados e elevado número de alunos, com destaque à região da estação ferroviária Sorocabana,
que contava com trinta e seis escolas e a Noroeste, com oitenta e três. Santos, junto com a região
da linha férrea que liga a cidade ao Vale do Ribeira contava com dez escolas (WAKISAKA, 1992,
p. 126).
O autor Hiroshi Saito apresenta uma teoria interessante sobre a imigração japonesa no Brasil,
dividindo sua história em três períodos distintos:

I período: 1908-1925 - Fase da tentativa de experiência, em que os imigrantes foram


subsidiados, principalmente, pelo Governo do Estado de São Paulo com o fito de abastecer
o mercado deficitário de braços da lavoura de café; II período: 1926-1941 – Fase em que
a corrente atingiu o auge, incrementada e subsidiada pelo governo japonês, diminuindo,
porém, a partir de 1935 por efeito do chamado regime de quotas, para se interromper por
completo em 1941 com o sobrevindo da grande guerra; III período: Durante e depois da
II Guerra Mundial – Fase em que após a interrupção de cerca de dez anos (de 1942-1952),
a corrente é retomada a partir de 1953 (SAITO, 1961, p. 39-40).

Tanto na Baixada Santista, quanto no Vale do Ribeira, as escolas japonesas foram bem
estruturadas no segundo período apresentado por Hiroshi Saito. A partir de então, não só o número
de escolas foi largamente ampliado, como também havia uma melhor estrutura para garantir a
continuidade do ensino de língua japonesa. Em Santos, por exemplo, a Escola Japonesa funcionava
junto à sede da Associação na cidade. Logo, muitas escolas surgiram também no Vale do Ribeira,
ao longo da linha férrea Santos-Juquiá.
Inicialmente, a educação era ofertada de forma improvisada, com poucos livros trazidos
pelos imigrantes em suas bagagens, geralmente na casa do próprio professor. No segundo período
sinalizado pelo autor Hiroshi Saito, porém, há um cuidado muito maior com a questão da educação.
Como o governo brasileiro interrompeu o subsídio para a imigração japonesa em 1924, coube ao
governo japonês fazê-lo a partir daquele momento. Além disso, as instituições nipo-brasileiras
passaram a receber ajuda financeira diretamente, com atenção especial para a educação.
A partir desse momento, muitas escolas japonesas surgiram no Estado de São Paulo. Era
comum a parceria entre as associações e o Consulado Japonês. Através das associações, em geral
os jovens arrecadavam verba através de doações e o montante que restava era cedido ou emprestado
pelo governo japonês. Em Santos, por exemplo, foram realizadas reuniões extraordinárias, cuja
convocação e edital circulou no jornal A Tribuna, para saldar a dívida da aquisição do casarão onde
funcionaria a escola japonesa.
As medidas adotadas pela Nihonjin eram repassadas às suas filiais através de reuniões com
representantes das associações japonesas ou pelas associações de jovens. Tais associações
apresentavam uma estrutura organizacional muito eficiente e tinham como foco principal a
manutenção de escolas, como foi possível perceber nos trechos das entrevistas. A partir da
organização das associações locais, a instituição pôde se organizar a ponto de unificar com bastante
sucesso a sua ação em relação à centralização da educação japonesa. No Vale do Ribeira, ficou
responsável pela instituição o sr. Eiji Matsumura, cujo filho foi entrevistado, contando o seguinte:
Ele começou na época em que ele foi presidente da Associação Japonesa aqui em Registro,
onde meu pai foi escolhido como membro da… Tinha essa Associação mantida pelo
Ministério da Educação do Japão. Em japonês era Kyoiku Fukyu-kai, que é a Difusão da
Educação Japonesa, o nome da associação. Então, tinha o presidente, que tinha o seu
secretário, tudo… Meu pai foi escolhido como diretor educacional dessa associação.
(Entrevistado Masakazu Matsumura).

O entrevistado segue relatando a atuação do seu pai na referida instituição:

De trinta e cinco a trinta e nove, aqui em Registro, ninguém está sabendo desta história.
Meu pai era muito reservado, não era de ficar falando que “eu sou aquilo”. Agora aqui em
Registro, dessas fotos e diplomas que meu pai guardou ninguém está sabendo. Essa
Associação de Difusão da Educação Japonesa no Brasil pertenceu, a região que meu pai
era responsável, é de Santos; Santos e linha Juquiá, Registro, Sete Barras e Jipuvura. Sul
do Estado! […] Lá para Santos, até tinha o Consulado em Santos. […] Então, meu pai
tinha muita ligação com o pessoal em Santos, inclusive, tinha uma família em Santos.
(Entrevistado Masakasu Matsumura).

Em 1933, foi enviado à Escola Japonesa de Santos o professor Akio Yanaguisawa, formado
como professor de língua japonesa no Japão. Foi enviado para o Brasil como emigrante pelo
Ministério de Relações Exteriores com bolsa de professor. No Brasil, formou-se como professor
normalista no município de Jundiaí e enviado à Escola Japonesa de Santos para atuar como diretor
da escola. Seu envio para a região não foi por acaso. Pois como mostrou a entrevista do sr.
Matsumura, era de Santos que partiam as diretrizes para o Vale do Ribeira. Na ocasião, foi possível
realizar a entrevista com o filho do professor Akio Yanaguisawa:

Meu pai veio do Japão, embarcou… Ou melhor, chegou aqui no Brasil em 1935. Instalou-
se em São Paulo, como professor normalista, encaminhado pelo Ministério da Educação
do Japão. Então, ele foi diretamente até a Rua São Joaquim, na Escola Piratininga.
Chamava-se Taisho Gako, e lá ao lado da escola tinha um pensionato onde ele ficou esse
período todo e lecionava a língua japonesa e ao mesmo tempo. No ano seguinte, em trinta
e quatro ou trinta e cinco, se não me engano, ele foi morar lá em Jundiaí, para fazer o curso
de complementação, um curso normalista, na cidade de Jundiaí. […] Então, o meu pai,
vindo pra cá para a Escola Japonesa, na Rua Paraná, 129, ele então tornou-se o diretor
responsável pela Escola Japonesa (de Santos). (Entrevistado Sério Yanaguisawa).

A posição de Eiji Matsumura em relação à solicitação de professores, tanto japoneses


quanto brasileiros lhe rendeu o cargo, em 1937, de Diretor Educacional da Região Sul.
Aparentemente, Matsumura tinha um bom trânsito com as autoridades locais brasileiras, ao qual
fazia a solicitação do necessário para manter as escolas providas de professores e material didático.
Para facilitar o envio de professores brasileiros, os representantes da colônia japonesa estabeleciam
contato com as autoridades brasileiras. Por exemplo, Matsumura solicitou, em seu diário escrito em
1935, a um sujeito chamado Sr. Yamagutchi para que entrasse em contato com o diretor regional de
ensino (MATSUMURA, 1935, p. 40). Em várias situações, no diário de Matsumura, de 1935, havia
a preocupação com a educação. De um jeito ou de outro cabia a ele resolver muitos assuntos; a
maioria dos assuntos relacionados à educação desde a solicitação de envio de professores para as
escolas japonesas até ajudar na manutenção do prédio. Suas solicitações de professores japoneses
eram, em geral, atendidas, pois não se encontrou casos em que as escolas permaneceram tempos
prolongados sem professores. Contudo, não se pode dizer que foi totalmente solucionado, uma vez
que as classes multisseriadas foram uma realidade, tanto na educação japonesa, quanto na brasileira.

Era uma escola bem simples, bem simples mesmo; tinha a carteira. Naquele tempo não
tinha a carteira como hoje tem. Naquele tempo era pena de escrever; era uma espécie de
lápis com uma caneta. Então, a gente colocava a caneta na tinta para escrever. Olha a
dificuldade! Às vezes acontecia aqueles acidentes que virava o tinteiro e todo mundo saia
com tinta. Aquela tinta não saía mais da roupa; ficava toda perdida. Era bem simples.
Ficava uma carteira com dois alunos […]. Eram alunos de todas as séries em uma escola
só. Isso que eu fico pensando hoje o seguinte: Como que é que aquela professora podia
passar a classe para a primeira, segunda, terceira ou quarta série? [...] Era todo mundo
junto na mesma sala (Entrevistada Maria Marcondes).

O relato acima é da Dona Maria Marcondes, ex-aluna, brasileira, da escola de Pedro Barros.
Como a escola foi doada ao Estado, atendia em um turno a educação japonesa e no outro a educação
brasileira. Dona Maria Marcondes frequentou a educação brasileira no período da tarde. Ela relata
que a sala era multisseriada, pois havia somente uma professora, em uma sala mista, com cerca de
quarenta alunos, sendo metade brasileiros e a outra metade japoneses e filhos de japoneses. Era
classe multisseriada, com presença de alunos nipo-brasileiros e brasileiros nativos, fundada pela
colônia japonesa e doada ao Estado. Diante dessas características, têm-se noção o quão complexas
eram as relações culturais nesse ambiente, onde certamente a cultura original japonesa, assim como
a cultura caiçara local, sofreram interferências devido ao desenvolvimento das relações.

Eu nasci em Cabriúva, estado de São Paulo. De lá, meu pai mudou para Santo Amaro. De
Santo Amaro, ele veio para Saltiara e depois mudou para Pedro Barros. Quando mudou
para Pedro Barros, eu tinha doze anos. Foi quando eu comecei a estudar nessa escola. Essa
escola não existia, não me lembro de quanto tempo. O nome da escola era Pedro Barros
mesmo, que era o proprietário do local. O nome dele era Pedro Barros, a estação era Pedro
Barros, a escola era Pedro Barros, tudo era Pedro Barros […]. Então, como eu te falei, a
gente entrava meio dia e saía quatro e meia da tarde. Tinha um recreiosinho para a gente
lanchar. A gente brincava um pouco e entrava novamente para a escola até chegar o horário
de saída. Quatro e meia a gente saia e pegava o caminho para casa [...] Minha casa era
muito humilde, era de um japonês que meu pai trabalhava. E a casa era muito humilde, a
família bem pobre e necessitada. Nós éramos em seis e a dificuldade era muito grande.
Hoje, o pessoal reclama. Mas naquele tempo era muito difícil a situação. Muitas vezes, a
gente passava alimentação fraca. Estamos vivos porque o Criador nos sustentou, mas
passamos por muita dificuldade […]. Única diferença que tinha era na hora do lanche.
Parece que os japoneses, – ainda comento com o Tuzino –, parece que eles tinham
vergonha de comer o lanche junto com a gente e então eles se escondiam para comer o
lanche. Tinha uma pedra grande assim. Então, eles ficavam atrás daquela pedra e lá eles
iam fazer os lanches deles. O lanche bem comum, arroz, mais usado pelos japoneses; era
mais arroz, essas coisas assim. Então eles iam comer lá atrás daquela pedra. Depois, tudo
junto. [...] Todo dia, não tinha condução; não tinha carro escolar para levar de jeito nenhum.
Naquele tempo, não tinha escola rural como hoje tem; tem um “sitiozinho” e já tem escola
rural. Naquele tempo era só escola na vila mesmo, pequena, mas tinha essa escola lá; era
onde a gente estudava, a redondeza toda estudava lá […]. Era uma escola bem simples,
bem simples mesmo. Tinha a carteira. Naquele tempo não tinha a carteira como hoje tem.
Naquele tempo era pena de escrever. Era uma espécie de lápis com uma caneta. Então, a
gente colocava a caneta na tinta para escrever. Olha a dificuldade! Às vezes aconteciam
aqueles acidentes que virava o tinteiro e todo mundo saía com tinta. Aquela tinta não saia
mais; a roupa ficava toda perdida. Era bem simples, ficava uma carteira com dois alunos
[…]. Sempre teve professor e hoje eu acho muito estranho as coisas, porque naquele tempo
tinha o professor fixo e tinha os substitutos. Na falta de um, nunca ficavam sem aula,
porque tinha um para substituir, que não faltava aula. Não tinha essa dos alunos chegarem
lá e perder viagem e voltar para casa sem estudar, porque quando a professora faltava por
algum motivo tinha o substituto que fazia parte. (Entrevistada Maria Marcondes).

A mesma situação se repetia na escola em que o Sr. Máximo, nascido em 1932, estudou no
bairro de Cedro, em Juquiá: escola mista, com classes multisseriadas de ensino brasileiro e japonês:

Quando eu cresci, comecei a frequentar a escola, e já havia iniciada a Segunda Guerra


Mundial. Até antes disso, o Estado Novo de Getúlio Vargas, tornou-se proibido o ensino
de línguas estrangeiras. Então, a escola que havia em Cedro, construída pela colônia
japonesa, na parte da manhã havia aula do sistema brasileiro e a parte da tarde havia aula
de japonês. Quando eu cresci, a aula de japonês ficou proibida, não mais existia e a escola
foi desapropriada e não mais pertencia à colônia japonesa. [...] Mas só havia até o terceiro
ano. Havia uma professora de mais iniciativa, ela começou... qualificou-se na Secretaria
de Educação, para poder dar aula de quarto ano; inclusive regularizou para poder entregar
diploma. Então, eu consegui fazer o quarto aqui. Depois disso, meu pai me mandou para
São Paulo para fazer o curso ginasial (Entrevistado Máximo Yassuda).

Uma vez presente, os professores, tanto da língua japonesa, como brasileiro, as crianças
japonesas e nipo-brasileiras passaram a frequentar a escola em jornada dupla de ensino, onde em
um turno estudavam o japonês e em seguida o ensino brasileiro, seguindo o currículo nacional. Ou
seja, as professoras brasileiras, além da gramática brasileira, ensinavam também a Geografia e
História e a Matemática (SOUZA, 2008, p. 28-29). Se por um lado a educação japonesa
representava os valores a inculcar (JULIA, 2001, p. 10) da cultura nipônica através do ensino da
língua, o mesmo acontecia nas aulas brasileiras, principalmente ao longo da década de trinta,
culminando com o período do Estado Novo, onde o currículo brasileiro foi voltado para a formação
de um espírito de patriotismo nacional. A educação de História e Geografia, assim como a Educação
Física, buscava o despertar de uma educação cívica e moral através da linguagem corporal, do
estudo de biografias de heróis nacionais e dos símbolos patrióticos (SOUZA, 2008, p. 67-69). A
autora Ruth Cardoso afirmou que os filhos dos imigrantes japoneses vivenciaram uma situação
complexa em dois ambientes distintos: vivenciavam a cultura brasileira transmitida pelos
professores brasileiros e com o convívio dos colegas nas escolas, vivenciavam a cultura japonesa
no ambiente familiar e no ensino da língua japonesa (CARDOSO, 1973, p. 317-345).

Eu frequentei essa escola aqui do Campo de Experiência. [...] Eu ia na parte da manhã na


escola portuguesa, a tarde na escola japonesa. [...] Essa escola onde eu estudei não foi
construída no sentido de escola. Construíram como sede da Associação dos Moços porque
tinha muita rapaziada que veio, como meu primo que veio com quinze anos, aí ele já estava
com seus quinze anos. Então tinha... Fizeram uma associação dos moços do bairro, então
fizeram a sede. Então, ia funcionar a escola, cedeu essa sede da Associação para funcionar
a escola. [...] Eu frequentei as duas. Porque no Português eu entrei na escola em 1931. Eu
nasci em 1921. Em trinta e um, eu estava com dez anos. É! Dez anos incompletos. Eu fui
de manhã na escola em Português, à tarde ia na escola japonesa; passava o dia todo na
escola. Ia de manhã e voltava à tarde. [...] Porque em japonês, eu quando entrei na escola,
entrei no quarto ano da escola japonesa, porque do primeiro ao terceiro, eu estudava em
casa com minha mãe, ela era professora formada. Na escola japonesa eu consegui entrar
no quarto ano. E Português, para poder passar para o segundo ano foram dois anos, eu não
entendia nada, eu não sabia. Porque em casa falava só japonês; com minha mãe, com meu
pai, dificilmente falava português.

Apesar das escolas japonesas do Vale do Ribeira, em sua grande maioria, terem sido
doadas ao Estado e funcionando também como escola pública não só à comunidade
japonesa, mas às crianças da região como um todo; as aulas japonesas eram destinadas
somente aos filhos de japoneses. Não há relatos de brasileiros que cursaram a escola
japonesa no Vale do Ribeira. Em Santos, como a escola era particular, apesar de oferecer o
Ensino Primário, não possuía alunos brasileiros, salvo duas exceções: Francisco Carlos
Simons e Diva dos Santos.1 Ambos frequentaram a escola no final da década de trinta,
pouco antes do fechamento completo da escola, devido à relação de proximidade com as
professoras brasileiras que atuavam na escola.2

1..
Nesse caso, ambos foram entrevistados juntos, pois assim o preferiram por terem estudado juntos.
2
Vide as imagens 83, 84, 85 e 86, onde estão presentes, junto às suas respectivas turmas, as professoras
brasileiras.
Eu estava no colégio Jardim da Infância na parte da manhã e a Dona Maninha me convidou
para que eu fosse assistir às aulas do colégio japonês na parte da tarde porque era um
horário em que eu ficava sem fazer nada ou fazendo travessuras em casa. E a Dona
Maninha, como era professora do colégio, então me convidou e minha mãe achou ótimo
que eu fosse participar do colégio e assim não ficava brincando na rua (Entrevistada Diva
dos Santos).

O Sr. Francisco Carlos Simons conta que era filho da professora, e por essa razão também
estudou na escola:

Eu sou filho da Dona Maninha, que era professora lá. Talvez pela razão me levou para
estudar durante... Depois que eu já tinha feito o Jardim da Infância no Colégio Progresso
Brasileiro, eu fui para a Escola Japonesa, mas também passei lá praticamente pouco tempo!
Um ano? Talvez! E voltei outra vez para o Progresso Brasileiro. E minha mãe, além de
nos ter ensinado em casa, também nos fez passar... Deu lições para mim e meus
coleguinhas de colégio. De escola japonesa, então fui mais ou menos bem, tanto que
minhas notas nunca passaram de oitenta […]. No curso Primário, eram professoras do
curso Primário, justamente por causa desse contato diário que minha mãe tinha. E ela
aprendeu bastante coisa de japonês, muitas frases. Falava bastante bem japonês, inclusive
era uma surpresa para muita gente, principalmente feirante. Quando ela chegava na feira
e falava japonês, para eles era um espetáculo dificílimo de entender como é que uma
pessoa, uma brasileira.

A década de trinta foi marcada pela polarização de regimes ditatoriais que se espalharam
pelo mundo, sendo os mais emblemáticos o nazismo e o fascismo. Isso porque a crença no
liberalismo foi abalada com a Crise de 29. Aparentemente intocado por ela, o comunismo soviético
passou a ser ameaça aos países em crise onde ideias de extrema esquerda passaram a ganhar força.
Assim, a classe média passou a apoiar os regimes fascistas mundo afora, apontando as possíveis
fraquezas da democracia (HOBSBAWAM, 1995. p. 113-117).
Com a centralização do governo na Era Vargas, o governo investiu fortemente no ensino
público como forma de difundir a moral e cívica pertinente à constituição da nacionalidade
brasileira. O currículo escolar foi remodelado para se adequar às exigências do governo. A Língua
Portuguesa foi intitulada de língua pátria acrescentado a disciplina de Educação Moral e Cívica;
História e Geografia foram direcionadas à valorização dos heróis e eventos importantes para a
formação do Brasil como nação soberana (SOUZA, 2008, p. 58-68). A Educação Física ganhou
peso nesse momento relevante, pois era nas práticas físicas que se incutia o militarismo através da
postura e da disciplina, além de assegurar o bom condicionamento físico das crianças (BETTI, 1991,
p. 85). Deu-se destaque aos feriados nacionais. Naquele momento, o governo reduziu para sete o
número de feriados nacionais, sob a alegação de que era necessário que o povo trabalhasse para a
grandeza do Brasil, sendo que, por outro lado, os sete feriados seriam necessários à representação
do espírito patriótico (SOUZA, 2012, p. 28-29). Contudo, para estes feriados, as escolas passaram
a realizar grandes desfiles cívicos como forma de demonstração de patriotismo. Não por acaso,
essas medidas chegaram às escolas japonesas da região. Se por um lado era desejo do Governo em
incutir o espírito de patriotismo, não era interessante para a colônia japonesa, como foi visto até o
momento, entrar em atrito com as autoridades brasileiras.
Por outro lado, progressivamente o governo federal limitou a ação das colônias estrangeiras
através de decretos, sendo que alguns deles visavam atingir diretamente a educação, em especial,
japonesa. O Decreto-lei n° 383, de 18 de abril de 1938, proibia estrangeiros de exercer ou interferir
em atividades públicas de forma direta ou indireta e também impedia a organização em:

Sociedade, fundações, companhias, clubes e quaisquer estabelecimento de caráter político,


ainda que tenham por fim exclusivo a propaganda ou difusão, entre seus compatriotas de
ideais, programas ou normas de ação de partidos políticos do país de origem.

O Decreto permitia a organização de estrangeiros apenas para fins culturais, sem, contudo
receber verba ou qualquer tipo de auxílio do governo estrangeiro. Em seguida, para se cumprir a
nova legislação, foi elaborado o Decreto-lei n° 406, de 4 de maio de 1938, determinando a criação
do Conselho de Imigração e Colonização em substituição ao Departamento Nacional de
Povoamento com o objetivo de intensificar a nacionalização dos estrangeiros. Em seguida veio o
Decreto n° de 18 de novembro de 1938, que estabeleceu:

Fica criada, no Ministério da Educação e Saúde, a Comissão Nacional de Ensino Primário,


que se comporá de sete membros, escolhidos pelo presidente da República, dentre pessoas
notoriamente versadas em matéria de ensino primário e consagrado seu estudo ao seu
ensino ou a sua propagação.

Caberia a comissão: “Definir a ação a ser exigida pelo Governo Federal e pelos governos
estaduais e municipais para o fim de nacionalizar integralmente o ensino primário de todos os
núcleos de população estrangeira.”
Como tais medidas atingiam diretamente as colônias japonesas, sobretudo no Vale do
Ribeira, coube ao Delegado Damasco Pena informar a situação educacional na região. Por essa
razão, nos Relatórios de Educação constavam dedicação especial à questão da imigração japonesa.
Em diversas passagens afirmou que “os trabalhos de nacionalização estavam progredindo” com a
nacionalização das escolas japonesas da região, mas foi categórico na urgência em construção de
novos prédios escolares como instrumento de maior eficácia para a nacionalização.
Com essas medidas, o governo brasileiro atingia diretamente a educação japonesa nas
regiões do Vale do Ribeira. Contraditoriamente, como foi visto no segundo capitulo, no ano anterior,
o Delegado Damasco Pena traçou severas críticas em relação à definição das escolas do Vale do
Ribeira, pois ainda eram consideradas escolas urbanas, sendo “visceralmente comunidades rurais”.
Contudo, isso não foi argumento para o fechamento das escolas japonesas no Vale do Ribeira, a
contar dezoito estabelecimentos fechados ou nacionalizados sob alegação de estrangeiro em área
rural. Sabia-se que a maioria das escolas estrangeiras em área rural eram japonesas, sendo assim,
sabia de antemão que os decretos atingiriam diretamente as escolas japonesas no Estado de São
Paulo. A Fukyu-kai, por sua vez, em concordância com o Decreto-lei 3010/38, modificou seu
estatuto e passou denominar-se Brasil Bunkyo Fukyu-kai, ou seja, antes Associação de Difusão do
Ensino Japonês no Brasil, passando para Associação Difusora da Cultura Japonesa no Brasil
(SHIBATA, 2012, p. 55-59).
Na década de quarenta, as escolas repentinamente foram encerradas. Na cidade de Santos,
a Escola Japonesa ainda conseguiu se manter em funcionamento por mais tempo, até 1942. Apesar
de poder continuar em funcionamento com o quadro de professores brasileiros e dirigida por uma
professora brasileira, teve que deixar de funcionar devido ao contexto em que se enquadrou durante
os anos da Segunda Guerra Mundial. Em 1941 alterou sua razão social para Sociedade Instrutiva
Vila Mathias (SILVA E SILVA, 2011, p. 196).

A utilização da História Oral no presente trabalho possibilitou observar, a partir das


memórias individuais, as estruturas sociais estabelecidas no tocante à educação. De qualquer modo,
o caminho metodológico que propôs analisar as instituições escolares como forma de se alcançar a
estrutura educacional apontado por SAES (2012), possibilitou perceber as semelhanças entre as
escolas e as associações nas diversas colônias japonesas formadas de Santos ao Vale do Ribeira, e
como essas escolas transformaram-se em uma rede educacional centralizada. Isso revelou os
aspectos estruturais das escolas japonesas que reproduzem o espírito japonês, que, por sua vez, era
transmitido através do ensino da língua. Por outro lado, foi preciso transitar entre o contexto social
e o cotidiano e as narrativas biográficas a fim de compreender melhor o fenômeno estudado,
possibilitando perceber aspectos outrora subjetivos da cultura japonesa que, de um jeito ou de outro,
interferiam na educação japonesa, sendo o melhor exemplo as associações de jovens, que
originaram as escolas e que compartilhavam de grande semelhança entre si, mesmo se tratando de
regiões distantes.
Dessa maneira, percebeu-se o quão as escolas japonesas estavam organizadas através da
centralização promovida pela Nihonjin. Era preciso garantir o ensino da língua japonesa aos
imigrantes, amenizando os impactos da aculturação e mantendo vivo o espírito japonês, mesmo nos
filhos dos imigrantes. Apesar da instituição não entrar em atrito com as autoridades brasileiras,
percebeu-se o empenho do governo japonês em manter em funcionamento as escolas japonesas,
revelando o quão estavam empenhados na continuidade da educação japonesa no Brasil.
ANDO, Zempati; WAKISAKA, Katsunori. Sinopse História da Imigração Japonesa no Brasil. In:
Consulado do Japão: o japonês em São Paulo e no Brasil. São Paulo: Consulado Geral do Japão,
1971. p. 4-34.

BETTI, Mauro. Educação Física e sociedade. São Paulo: Movimento, 1991.

CARDOSO, Ruth Corrêa Leite. O papel das Associações Juvenis na Aculturação dos Japoneses.
In: SAITO, Hiroshi; MAEYAMA, Takashi. Assimilação e integração dos japoneses no Brasil.
Petrópolis: Vozes; São Paulo: Universidade de São Paulo, 1973. p. 317-345.

FAUSTO, Boris. História do Brasil. São Paulo: EDUSP, 1995.

HANDA, Tomoo. O imigrante japonês: história da sua vida no Brasil. São Paulo: T.A. Queiroz,
1987.

HOBSBAWM, Eric. A era dos extremos: o breve século XX. Curitiba: Companhia das Letras,
1995.

HOLLOWAY, Thomas H. Imigrantes para o café. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1984.

JULIA, Domenique. A cultura escolar como objeto histórico. Revista Brasileira de História da
Educação, n.1, p. 9-43, 2001.

NOGUEIRA, Arlinda Rocha. A imigração japonesa para a lavoura cafeeira paulista (1908 –
1922). São Paulo: Instituto de Estudos Brasileiros da Universidade de São Paulo. 1973.

SAES, Décio Azevedo Marques de. O lugar dos Conceitos de “Estrutura” e “Instituição” na
Pesquisa em Educação. Cadernos Ceru. São Paulo, v. 23, n. 1, p. 281-296, 2012.

SAITO, Hiroshi. O japonês no Brasil: Estudo de mobilidade e fixação. São Paulo: Fundação
Escola de Sociologia e Política de São Paulo, 1961.

SHIBATA, Hiromi. As escolas japonesas paulistas (1915-1945): a afirmação de uma identidade


étnica.176f. Dissertação (Mestrado em Educação) – Universidade de São Paulo, 1997.

SILVA E SILVA. Rafael da. A educação japonesa em Santos (1908-1943). 2011. 419f.
Dissertação (Mestrado em Educação) – Universidade Católica de Santos. Santos/SP, 2011.

_____. A rede educacional japonesa da Baixada Santista e Vale do Ribeira (1908-1945). 541f.
Tese (Doutorado em Educação) – Universidade Metodista de São Paulo. São Bernado-SP, 2016.

SOUZA, Rosa Fátima de. História da organização do trabalho escolar e do currículo no século
XX: ensino primário e secundário no Brasil. São Paulo: Cortez, 2008.

UECHI, KOEI. História da colônia japonesa de Itariri. Itariri: 1975.


VIEIRA, Francisca Isabel Schurig. O japonês na Frente de Expansão Paulista. São Paulo:
Pioneira, Ed. da Universidade de São Paulo, 1973.

WAKISAKA, Katsunori. et. al. (Coord.). Uma epopeia moderna: 80 anos da imigração japonesa
no Brasil. São Paulo: Hucitec; Sociedade Brasileira de Cultura Japonesa, 1992.
Cris Elena Padilha da Silva

O trabalho, aqui apresentado, está vinculado ao Programa de Pós-Graduação em


Educação Matemática (PPGEMAT), da Universidade Federal de Pelotas (UFPEL),
referente à linha de pesquisa História, Currículo e Cultura, sob orientação do professor Dr.
Diogo Franco Rios. E vem a somar com muitos outros trabalhos e grupos que desenvolvem
pesquisas na área da História da Educação Matemática.
Tem como objetivo produzir fontes orais a respeito da trajetória de professores
de Matemática, da cidade de Pelotas, com a finalidade de contribuir com a História da
Educação Matemática na cidade, a partir das falas dos professores; desde o despertar do
interesse pela profissão, e como ele olha para sua carreira, os processos formativos, as
angústias, a atuação profissional, desafios, interesses até o momento em que se aposenta,
dialogando com processos de professoralidade e profissionalização. Pontos de vista de
alguns professores, suas experiências profissionais, seu caminho trilhado, e quando o
professor conta sua trajetória possibilitam o seu olhar para a constituição de si.
Considerando que o professor é um sujeito que participa de um processo coletivo
de formação, atuação e que tem sua trajetória individual neste contexto, com marcas de suas
escolhas, pretendo produzir fontes orais, buscando responder como aconteceram os
processos de professoralidade e profissionalização para cada um destes professores,
acompanhando suas narrativas, entendendo que cada professor irá falar sobre si, como foi
sendo constituído como professor.
Segundo dados encontrados por Moreira e Rios (2015), a grande maioria dos
professores de Matemática em Pelotas, não eram licenciados. Possuíam um registro
profissional no qual eram autorizados a lecionar, o que acontecia em grande parte do cenário
nacional.
O primeiro Curso de Licenciatura em Matemática, no Estado, teve sua criação em
1942, na Universidade de Porto Alegre, que hoje é chamada Universidade Federal do Rio
Grande do Sul (UFRGS). O primeiro curso de Licenciatura em Matemática da cidade, foi
criado em 1960, na Universidade Católica de Pelotas, para formar professores que atuavam
na cidade e não possuíam curso de licenciatura, preocupados em garantir sua estabilidade
profissional, visto que novos profissionais licenciados poderiam chegar à cidade.
A grande maioria dos professores que atuavam em Pelotas possuíam os cursos de
suficiência da CADES, com duração de um mês e com duas disciplinas, Didática Geral
e
* UFPEL, Mestranda em Educação Matemática.
e Conhecimentos Específicos da Área, realizados na cidade de Caxias do Sul. Após a década
de 1960 foi criado o curso de Licenciatura Parcelada Experimental para professores Leigos
em Ciências e Matemática (PREMEN).
Em 1991, foi aprovado o curso de Licenciatura em Matemática, na Universidade
Federal de Pelotas, e, em 1992, ingressou a primeira turma, com o objetivo de formar
profissionais com um sólido conhecimento dos conceitos básicos de Matemática, nos níveis de
1°, 2° e 3° graus (UFPEL).
A metodologia que pretendemos utilizar é a História Oral, através de relatos de
professores sobre a sua trajetória de vida. Thompson (1998) mostra que a História Oral revela
novos campos de investigação, altera o enfoque da própria história, derruba barreiras entre
gerações, instituições e o mundo exterior. Através dos relatos de vida de pessoas comuns, a
história pode ganhar novas dimensões. Bosi (1994), Thompson (1998) e Portelli (2010),
destacam a importância da História Oral, que é construída em torno de pessoas, e ajuda os
menos privilegiados, em especial aos idosos, na conquista da autoconfiança. Com isto
surgiu a motivação em entrevistar professores de Matemática aposentados, pois não
pertencem mais ao convívio com o ambiente escolar e vejo na História Oral a possibilidade
de ouvir histórias que poderiam se perder com o tempo e de fatos vistos por outros
sujeitos que podem trazer à tona o que ainda não tinha sido registrado, contribuindo
com a História da Educação Matemática.
Ainda, em um segundo momento, é intenção potencializar aos professores
idosos rememorarem suas experiências, mostrando o valor que estes professores têm para a
sociedade, e que ficam esquecidos depois que se afastam do meio acadêmico. Suas
experiências apresentam uma enorme riqueza na formação de novos professores, trazendo
assuntos que já aconteceram e que podem fazer parte de estudos nas aulas de disciplinas
relacionadas à formação pedagógica, despertando nos alunos de graduação novas reflexões
vistas com olhares de quem passou a vida toda contribuindo com a educação.
Autores como Valente (2010), Garnica (2006), Rios (2015) já têm discutido a
importância da História da Educação Matemática na formação de professores, e com este
trabalho vemos a possibilidade em contribuir, ao disponibilizar fontes orais, enriquecer
reflexões na área, mais especificamente na cidade de Pelotas.
Valente destaca que “professores tendem a desenvolver uma prática de melhor
qualidade quando mantiverem uma relação histórica com seu passado” (VALENTE,
2010, p.125). O conhecimento do passado, assim, abre caminhos para a formação do
professor, visto que a história que é traçada por outros personagens é importante; esta é
traçada a partir sempre de uma anterior.
Com as trajetórias de vida, destaco o tema referente ao processo de professoralidade
que pretendo analisar. Entendo que a professoralidade vai sendo construída no decorrer da
história de vida do professor, a partir de suas relações com a sociedade, suas práticas e
tensões. Como, então, o sujeito torna-se professor?
Pereira (2013) fala que a professoralidade, refere-se que a uma história diferente para
cada um tornar-se professor. Busca compreender como o professor se constitui e se constrói,
dentro de
dentro de suas práticas. Procura avançar na compreensão de como se produz o sujeito,
como elabora seu conhecimento e suas ações, onde relaciona a professoralidade como
uma marca produzida no sujeito, a partir das composições que vamos vivendo.
Isaia e Bolzan (2006), em suas pesquisas, citam Pereira (1996) ao se referirem
à professoralidade, pois estudam o tema abordando os professores de Ensino Superior.
Defendem a professoralidade como um processo de construção do sujeito-professor,
ao longo de sua trajetória pessoal e profissional, envolvendo espaços e tempos em que o
professor reconstrói sua prática educativa, sua vida pessoal, sua formação, as relações
escolares no decorrer dos anos com as instituições de atuação.
Procurando entender a profissionalização dos professores, destaco Nóvoa (1999), que
diz que a profissionalização é como um processo através do qual os trabalhadores
melhoram seu estatuto, elevam seus rendimentos e aumentam o seu poder de
autonomia. Para o autor, a profissionalização dos professores teve seu marco inicial quando
passaram a ser funcionários do Estado e a ter uma licença para ensinar de caráter
obrigatório; logo, um poder maior e a possibilidade de ascensão profissional. Os
professores, no início do século XX, apresentaram uma situação de prestígio social e situação
econômica digna. Nos anos vinte, os professores se sentem pela primeira vez, confortáveis no
seu estatuto socioeconômico. O professor era respeitado, era a pessoa que compreendia de
tudo e era valorizado pela sociedade.
Como disse, anteriormente, aqui comentei questões que permeiam a minha
investigação e me ajudam a pensar em aspectos que irão dialogar com a pesquisa.

A pesquisa, aqui apresentada, objetiva produzir fontes orais, e a metodologia adotada é a


História Oral, seguindo aspectos teóricos e metodológicos desta teoria. A História Oral caracteriza-
se como uma metodologia de pesquisa com características específicas. Para Alberti (2013, p. 24)
A história oral é um método de pesquisa (histórica, antropológica, sociológica, etc) que
privilegia a realização de entrevistas com pessoas que participaram de, ou testemunharam
acontecimentos, conjunturas, visões de mundo, como forma de se aproximar do objeto de
estudo.

Esta reflexão de Alberti conecta com meu trabalho, onde vou entrevistar professores de
Matemática, que trabalharam na segunda metade do século XX, podendo contribuir com a História
da Educação Matemática.
A História Oral só pode ser empregada em temas recentes, que a memória do entrevistado
alcance. Contudo, com o passar do tempo, as entrevistas poderão servir como fontes para novas
pesquisas. Os entrevistados precisam estar em condições (físicas e mentais) de entender a tarefa
que lhe é solicitada.
O pesquisador participa diretamente na produção do documento histórico, podendo ser
interpretado de diversas maneiras pelo historiador. Também avalia o conteúdo do depoimento,
constantemente, durante sua constituição, percebendo quando o entrevistado evita falar sobre
determinado assunto, ou ainda “distorce” o passado em função de sua visão particular, analisando
e interpretando as possíveis causas dessas variações.
Também é permitido recuperar fatos que não encontramos em documentos de outra
natureza, informações inéditas podem ser resgatadas durante uma entrevista de História Oral. Mas
a principal característica quando utilizamos a História Oral está em privilegiar a recuperação do
fato por quem viveu; logo importante pensar no processo de recordação, onde inconscientemente
esquecemos fatos importantes ou não. Cabe destacar a importância do entrevistador em ter
consciência de sua responsabilidade, pois fará parte desse momento único com o entrevistado,
tratando-se de ser um atuante direto na criação do documento de História Oral, onde deve ter um
elevado respeito pelo outro, suas opiniões, atitudes e posições, que são particulares daquele
depoente, constituindo-se um elemento indispensável para a compreensão da história de seu grupo
social. (THOMPSON, 1998).
A História Oral, sendo um método de pesquisa, é um meio de conhecimento, o seu uso se
justifica no contexto de uma investigação científica, articulando-se com um projeto de pesquisa
previamente definido, destacando-se que antes de pensar em História Oral é necessário pensar em
perguntas que justifiquem a investigação (ALBERTI, 2013).
Para a realização desse projeto, destaco algumas das minhas indagações, questões que serão
observadas, e que não farei para o entrevistado, somente. Farão parte do meu roteiro, o que
mencionei no início desse trabalho: “Como um professor se constitui professor? Quais são os
caminhos traçados por ele no decorrer dos anos? Como foi modificando suas práticas, ou não, com
as mudanças que ocorreram no ensino, na sociedade e com os alunos? Todos esses
questionamentos que orientam meu trabalho constituem o desenho de como o professor se constitui
na sua professoralidade e em seu processo de profissionalização.
Depois de pensados os temas de interesse para a realização do trabalho, temos a formação
do grupo de professores que serão entrevistados, dando forma na realização da investigação. No
caso da pesquisa que estou me referindo aqui, esse grupo será formado por professores de
Matemática aposentados, que lecionaram na cidade de Pelotas, e em algum momento de sua
trajetória estiveram atuando no ensino básico.
Na grande maioria dos casos, as pessoas mais velhas, aposentadas já estão afastadas dos
meios acadêmicos, logo ficam mais à vontade para falar sobre o passado, suas experiências,
realizações e frustrações. Fazendo uma retomada da sua própria vida, podendo deixar suas
experiências gravadas e textualizadas para futuros estudos. (ALBERTI, 2013).
Pensando em trabalhar com História Oral, o tipo de entrevista a ser realizada será
caracterizada pela História Oral Temática, onde pretendo analisar as trajetórias dos professores
segundo um tema específico, suas experiências e envolvimento em relação a sua trajetória como
professor de Matemática. Garnica (2003) destaca que a História Oral Temática

[…] centra-se mais em um conjunto limitado de temas. Pretende-se reconstituir “aspectos”


da vida dos entrevistados: pretende-se auscultar partes de experiências de vida, recortes
previamente selecionados pelo pesquisador. Certamente que, dada a atmosfera em que se
espera transcorra a entrevista, fatos que deslizem para fora do campo temático previamente
definido pelo pesquisador são também considerados (GARNICA, 2003, p.7).

O número de entrevistados na metodologia da História Oral pode ser de um até quantos


depoentes forem necessários para viabilizar as análises da pesquisa. Nesse trabalho, penso em
entrevistar em torno de seis professores, mas, este número ainda não está definido, é no decorrer
das entrevistas que vou conseguir melhor avaliar a quantidade mais adequada, pois, segundo
Alberti (2013); nessa metodologia é durante o processo, conhecendo e produzindo fontes, que o
pesquisador vai adquirindo experiência para identificar o número de entrevistados.
Como já me referi anteriormente, nas entrevistas serão observados os seguintes temas, que
fazem parte de um roteiro geral, que servirá de orientação para o entrevistador.
a) A família ou outras pessoas influenciaram nas opções profissionais?
b) Quais acontecimentos levaram a ser professor de Matemática?
c) Em que fase da vida aconteceu a decisão em ser professor?
d) Qual foi o momento que apareceu a Matemática?
e) Quando e como começou a lecionar?
f) Quais foram as figuras marcantes relacionadas com a formação e atuação?
g) Como era a relação com instituições escolares, alunos, colegas e conteúdos?
h) Como esta relação foi se modificando no decorrer dos anos?
Outros questionamentos podem surgir durante as entrevistas.
Para a realização das entrevistas, outra questão que me importa pensar é sobre o local em
que serão realizadas, o que será combinado com o entrevistado, atentando-se a ser um ambiente
que possibilite a gravação e a concentração no tema da pesquisa.
A duração da entrevista deve estar de acordo com o entrevistado, seu tempo livre e suas
condições para a realização da entrevista. Um tempo razoável seria em torno de duas horas cada
encontro, para não tornar-se cansativo para ambas as partes. Na hora da entrevista deve-se prestar
o máximo de atenção ao entrevistado, demonstrando interesse para que ele possa sentir-se
estimulado a falar, procurando desviar o mínimo possível os olhos para o gravador ou para
anotações. Pois é inconveniente falar com outra pessoa que parece desinteressada (THOMPSON,
1998).
A entrevista deve ser conduzida de maneira calma e tranquila, evitando expressões de
ansiedade. O pesquisador precisa saber respeitar a opinião do depoente lembrando que o
depoimento será a fonte de estudo para sua pesquisa. Cabe ao entrevistador minimizar também a
influência que o gravador pode exercer sobre o entrevistado, que na presença do mesmo pode
sentir-se constrangido, tendo mais cuidado na linguagem utilizada (THOMPSON, 1998).
Antes de iniciar a entrevista, farei a gravação dos dados relativos a ela, como: cidade,
data, nome, contexto do projeto, local, e outras que julgar necessário. Durante a
entrevista serão realizadas pequenas anotações, para facilitar o tratamento do depoimento.
Para isso será feito o caderno de campo, que contribui para a organização do pensamento,
registrando o que aconteceu na entrevista, como ideias, expressões, dúvidas a serem
esclarecidas ao final da entrevista.
O encerramento da entrevista que poderá ser realizada em duas ou mais sessões, desde
que seja necessário, deve ser feito quando todos os pontos expressos no roteiro tenham sido
cobertos, quando verificar que não existem mais questões a serem analisadas ou quando
as narrativas começam a se repetir.
Thompson (1998), chama a atenção para que ao final da entrevista, depois de
encerrada a gravação, o pesquisador fique um pouco mais com o entrevistado, dando um
pouco de atenção e retribuindo ao que lhe foi dado. O cuidado com o entrevistado é
muito importante para o pesquisador que trabalha com História Oral.
Ao final da entrevista o depoente deve assinar o Termo de Consentimento
Livre e Esclarecido do pesquisador sobre os depoimentos. O entrevistado deve saber da
existência do termo desde o primeiro encontro, e que pode desistir de conceder os direitos em
qualquer momento. A versão transcrita da entrevista será entregue para o entrevistado.
Depois de realizada a entrevista, ela passará para o processo de transcrição, que deve
ser realizado, de preferência, pelo próprio entrevistador. É um processo demorado. Estima-
se que a cada hora gravada, demora-se seis horas para ser realizada.
A transcrição é feita integralmente de tudo que foi gravado, sem cortes ou acréscimos,
de acordo com a norma ortográfica. E cabe ao pesquisador interpretar as pausas e
realizar as pontuações adequadas, sendo aconselhável ouvir alguns minutos de entrevista,
antes de começar a transcrição, para acostumar com o ritmo do entrevistado. As ênfases
de algumas palavras, observadas na fala, devem ser destacadas pelo transcritor, como,
por exemplo escrevê-las em negrito ou itálico. Pausas de maior duração serão destacadas
com a marcação [silêncio]; risos, emoções, também são destacadas por colchetes. Após
transcrita a entrevista, será realizada a conferência de fidelidade de um depoimento, que
consiste em ouvir os depoimentos ao mesmo tempo em que realiza a leitura dos mesmos,
podendo corrigir erros, adequando o depoimento à forma escrita (THOMPSON, 1998).
Após realizada a pesquisa deve-se atender à devolução aos entrevistados dos
resultados, sendo um compromisso ético de quem pesquisou, valorizando aqueles que
dedicaram tempo e compartilharam sua história com a comunidade científica (PORTELLI,
2010).
Este trabalho não apresenta ainda análises para serem feitas. Encontra-se em fase de leitura
e revisão teórica. No entanto, me sinto mobilizada a olhar para as entrevistas com algumas
inquietações referentes a como cada um dos entrevistados tornou-se professor, como esta profissão
se constituiu, como eram as relações com alunos e colegas de profissão. Com a realização das
entrevistas, pretendo contribuir com a produção de fontes orais na área da História da Educação
Matemática e analisar a trajetória de vida de professores de Matemática.

ALBERTI, Verena. Manual de História Oral. 3. ed. Rio de Janeiro: Ed. da FGV, 2013.

BOSI, E. Memória e sociedade: lembranças de velhos. 3. ed. São Paulo: Companhia de Letras,
1994.

GARNICA, A.V. M. História Oral e Educação Matemática: o Estado de Arte. Disponível em:
<http://www.sepq.org.br/IIsipeq/anais/pdf/gt5/03.pdf> Acesso em: 02 set. 2016.

GARNICA, A.V.M. História Oral e Educação Matemática: de um inventário a uma regulação. In:
Revista Zetetiké, Campinas, v.11, n.19, p. 9-56, jan./jun. 2003.

ISAIA, S.; BOLZAN, D. P. V. Construção da profissão docente / professoralidade em debate:


desafios para educação superior. In: Anais do Encontro Nacional de Didática e Prática de Ensino-
ENDIPE, XII, Recife. Educação, Questões Pedagógicas e Processos Formativos: compromisso
com a Inclusão Social. 2006.

MOREIRA, L. L.; RIOS, D. F. Memórias de um professor de Matemática de Pelotas: articulações


profissionais durante os anos de 1940 e 1960. In: III Congresso Ibero-Americano de História da
Educação Matemática – CIHEM, III, Belém, 2015.

NÓVOA, A. Profissão Professor. Portugal: Porto Editora, 1999.

OLIVEIRA, Paulo de Salles. Sobre memória e sociedade. São Paulo: Revista USP. n. 98. p. 87-
94. junho/julho/agosto 2013. Disponível em: <https://goo.gl/uaRphS>

PEREIRA, M. V. Estética da professoralidade. Santa Maria: Ed. da UFSM, 2013.

_____. Estética da professoralidade: um estudo interdisciplinar sobre a subjetividade do


professor. Tese ─ Doutorado em Educação, Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, São
Paulo, 1996.
PORTELLI, A. Ensaios de História Oral. São Paulo: Letra & Voz, 2010.

RIOS, D. F. Memórias de ex-alunos do Colégio de Aplicação da Universidade da Bahia sobre o


ensino da Matemática Moderna: a construção de uma instituição modernizadora. 2012. Tese –
Doutorado em Ensino, Filosofia e História das Ciências, Universidade Federal da Bahia,
Salvador.

_____. O diálogo epistemológico em um caso de aproximação entre a História da Educação


Matemática e a construção teórica do real. Revista de História da Educação Matemática. v. 2, n.1,
2016.

TARDIF, M. Saberes docentes e a formação profissional. 4.ed. Petrópolis/ RJ: Vozes, 2002.

THOMPSON, Paul. A voz do passado. 2. ed. São Paulo: Paz e Terra, 1998.
Elias Kruger Albrecht

O presente trabalho tem como objetivo apresentar uma discussão a partir das narrativas de
alunos alfabetizados em língua alemã (1930-1945). Estes foram escolarizados em
instituições sinodais vinculadas às igrejas luteranas1 que atuavam junto às colônias
de imigrantes alemães/pomeranos2 na região sul do Rio Grande do Sul. Sabemos que entre
esses imigrantes, o ensino era considerado relevante, sendo que escola e igreja foram
constituídas em praticamente todas as comunidades. Logo, a alfabetização em alemão era
algo constitutivo da identidade cultural dessas pessoas, pois vinculavam religião e
aprendizado. Pesquisas anteriores (KREUTZ, 2007; WEIDUSCHADT, 2012) apontaram
que essas escolas ressaltavam a fé e o cotidiano em seus materiais didáticos e mantinham
professores formados pela própria instituição sinodal, que atuava junto a essas comunidades.
Portanto, buscaremos por intermédio das fontes orais realizadas em língua pomerana e
transcritas para a língua portuguesa, compreender o processo de escolarização desses sujeitos.
Foram entrevistados sete sujeitos em que a vida escolar se deu em escolas religiosas, sendo
alfabetizados na língua germânica. Iniciaram sua alfabetização no período de 1930 a 1945, que
tinha como intuito promover o processo de ensino-aprendizagem integrador entre o ensino, a fé
relacionada com as práticas diárias dessas comunidades. Para tanto, as memórias escolares
analisadas e complementadas com as fontes escritas, como o material didático, poderão nos
proporcionar um panorama do que era ensinado e como o aluno se apropriava desse ensino, para
assim se integrar como membro ativo junto à sua comunidade.

*.Universidade Federal de Pelotas, Mestrando em Educação.


1 No contexto foram atuantes três tipos de Luteranismo: Sínodo de Missouri, atual Igreja Evangélica
Luterana do Brasil (IELB). Para aprofundar o assunto, ver REHFELDT (2003). Sínodo Sul-Rio-Grandense, atual
Igreja Evangélica de Confissão Luterana no Brasil (IECLB). Para aprofundar no assunto ver DREHER (1984);
Igrejas independentes, Instituições religiosas que atuam de forma autônoma sem vinculação a nenhum sínodo.
Para aprofundar no assunto ver OSVALD (2014). .
2 Pomeranos é o nome dado aos imigrantes que vieram ao Brasil da antiga Pomerânia, que se situava nas costas
do mar Báltico, território atualmente incorporado pela Alemanha e Polônia. Hoje, a sua cultura praticamente
está extinta naquela região, mantendo-se viva entre algumas comunidades no Brasil, que ainda preservam o
dialeto e algumas práticas culturais e religiosas. Para aprofundar o assunto ver SCHAFFER
(2012). .
O trabalho está ancorado metodologicamente na História Oral (FERREIRA; AMADO,
1996), pressuposto que auxilia a entender as narrativas como representação do real e da importância
em considerar as experiências de vida e da subjetividade dos participantes. Para Bosi (1987) “A
memória do indivíduo depende do seu relacionamento com a família, com a classe social, com a
escola, com a Igreja, enfim com os grupos de convívio e os grupos de referência peculiares a este
indivíduo” (p. 17). Segundo Rousso (1996), a memória pertence à atualidade. Ela é, portanto, “uma
reconstrução psíquica e intelectual que acarreta de fato uma representação seletiva do passado, um
passado que nunca é aquele do indivíduo somente, mas de um indivíduo inserido num contexto
familiar, social, nacional”. (ROUSSO, 1996, p. 94).
Ressaltamos, portanto em Halbawachs, (1990), que a memória é uma construção coletiva
em que a narrativa do indivíduo está apoiado e inserido no grupo social.

[...] um grande número de lembranças reaparecem porque nos são recordadas por outros
homens; conceder-nos-ão mesmo que, quando esses homens não estão materialmente
presentes, se possa falar de memória coletiva quando evocamos um acontecimento que
teve lugar na vida de nosso grupo e que considerávamos; ainda agora, no momento em
que nos lembramos, do ponto de vista desse grupo (HALBAWACHS, 1990, p. 36).

Conforme o autor supracitado, há recordações que são evocadas pelos indivíduos, porém os
acontecimentos lembrados estão além dos vivenciados por eles. Portanto, trata-se de uma memória
coletiva que permanece inconscientemente na comunidade, usada muitas vezes para reafirmar
relações sociais do grupo.
De forma especial, podemos observar na pesquisa, as consequências do processo de
nacionalização do ensino que vinha se dando de forma natural, e que passou a sofrer um
forte acirramento. Em especial no período do governo Vargas, durante o Estado Novo 3 ,
como a proibição da língua e a escolarização em língua alemã. Observam-se nas memórias
escolares dos entrevistados, as mudanças que esse período provocou não só no currículo,
mas também na sua vivência diária. Neste contexto, as políticas de nacionalização do ensino
atingiram, principalmente, a identificação étnicocultural dessas pessoas.
Outros aspectos também foram destacados, como as lembranças da relação professor e
aluno, os tempos de recreios e as mudanças linguísticas impostas durante o Estado Novo. É preciso
ainda caracterizar a existência de uma cultura escolar representativa, ancorada no cunho religioso
que é acentuado nas falas e memórias dos narradores. Todos os sujeitos entrevistados mantêm
ligação com a religião, atualmente, principalmente mantendo práticas de leituras e de cantos de

3
Estado Novo foi o nome dado ao regime político brasileiro de cunho autoritário e centralizador, fundado por
Getúlio Vargas em 1937 e durou até 1945.
cunho religioso. Para melhor identificar o perfil dos narradores, busca-se apresentar um quadro com
a relação dos entrevistados, antes de iniciarmos as análises da pesquisa.

Quadro 1 - Relação dos entrevistados4, da pesquisa com suas respectivas idades, período de escolarização,
instituição religiosa que a escola era ligada e os materiais didáticos usados durante a escolarização
Nome Idade Data de Instituição Materiais didáticos usado
Escolarização Religiosa na escolarização
Adolfina K. 90 1933-1938 Sínodo de Livro, Cartilha, Atlas e
Neitzke Missouri Ardósia
Eurico Wolter 91 1932-1936 Independente Livro, Cartilha e Ardósia.
Ilma B. Reichow 86 1937-1941 Sínodo de Livro, Cartilha e Ardósia
Missouri
Ilsa K. Neuenfeldt 80 1943-1948 Sínodo de Livro e Caderno
Missouri
Martim V. Wille 87 1935-1940 Sínodo de Livro, Cartilha e Ardósia
Missouri
Otto Schellin 81 1942-1944 Independente Livro, Cartilha, Ardósia e
caderno
Renilda U. Schellin 83 1939-1943 Sínodo de Livro, Cartilha, e Ardósia
Missouri
Fonte: Quadro elaborado a partir das entrevistas realizadas.

Ao observar o quadro, podemos depreender que todos os entrevistados estudaram nas


décadas de 1930/40 em escolas étnicas, ligadas ao Sínodo de Missouri e as Igrejas Independentes
também chamadas, segundo estudos de Osvald (2014), de igrejas livres. Todos os narradores são
da etnia pomerana e ainda mantém a língua como principal meio de comunicação e preservam
algumas práticas culturais e religiosas. Sendo assim, das sete entrevistas realizadas, cinco delas se
deram na língua pomerana, devido à dificuldade da pronúncia da língua portuguesa pelos
narradores. Lembrando que os outros dois entrevistados optaram por usar a língua portuguesa,
durante a entrevista, porém em seu cotidiano familiar adotam a língua pomerana.
As instituições religiosas indicadas no quadro são aquelas onde se deram a escolarização,
não sendo mais a instituição atuante de alguns depoentes. E todos se mantem atuantes em sínodos
luteranos. Porém, da época de sua escolarização até os dias atuais, alguns mudaram de uma
denominação religiosa ou até migraram como é o caso de Eurico Wolter que, atualmente, frequenta
o Sínodo Sul-Rio-Grandense (atual IECLB). Quanto aos materiais didáticos usados na

4
As entrevistas foram realizadas no ano de 2016. Portanto, os dados do quadro correspondem ao ano em que
foram realizadas as entrevistas.
escolarização, o livro didático e a cartilha são apontados como os meios pelos quais foram inseridos
na leitura.
A ardósia,5 como o objeto da prática de escrita, é destacada por seis entrevistados.
É importante observarmos as mudanças do uso da ardósia para o caderno. Conforme o
quadro, os únicos dois que escreveram em cadernos estudaram na década de 1940. Cabe aqui
chamarmos a atenção para essa mudança no suporte de escrita, ocorrida durante a
nacionalização do ensino. Porém, segundo Razzini (2008), a substituição da ardósia pelo
caderno já teve início nos grupos escolares nos grandes centros urbanos no começo do
século XX. Sendo assim, provavelmente o isolamento dessas escolas étnicas rurais tenha
dificultado a introdução do caderno nesses grupos, tornando-se, assim, a nacionalização do
ensino um elemento facilitador para a substituição da ardósia pelo caderno.
As entrevistas tinham como objetivo compreender, no princípio, o uso dos
materiais didáticos. Mas, as narrativas apresentaram particularidades da escolarização que
pretendemos abordar a partir de aspectos das memórias escolares.

Quando falamos de memórias escolares, estamos nos referindo a vestígios da cultura escolar
que envolvem também todas as práticas socioculturais dos grupos que a integraram em um
determinado tempo e espaço. Para Pessanha (2004), a cultura escolar sempre está relacionada com
um espaço destinado/privilegiado para transmissão de conhecimentos e, principalmente, valores em
determinado tempo. Júlia (2001) descreve cultura escolar como:

[...] um conjunto de normas que definem conhecimentos a ensinar e condutas a inculcar,


e um conjunto de práticas que permitem a transmissão desses conhecimentos e a
incorporação desses comportamentos; normas e práticas coordenadas a finalidades que
podem variar segundo as épocas (finalidades religiosas, sociopolíticas ou simplesmente
de socialização). (JULIA, 2001, p. 10).

As memórias escolares do contexto da nossa abordagem se definem muito bem dentro dessa
concepção de cultura escolar flexível e moldada pelo espaço e pelo tempo. Conforme podemos
observar nos relatos de memórias escolares dos entrevistados, lembrando que de acordo com
Candau (2014), a memória ao mesmo tempo em que nos modela, é também por nós modelada.
Assim, a lembrança nada mais é do que uma rememoração construída a partir do fato, sofrendo ao
longo do tempo acréscimos e eliminações.

5
Ardósia: lousa escolar ou quadro-negro usada em atividades de escrever e fazer contas. Para aprofundar o
assunto ver: BARRA (2013).
Por meio das memórias escolares reveladas no processo das entrevistas serão apresentados:
o início da escolarização e os primeiros professores; as práticas escolares e o contexto escolar; as
lembranças do entorno e do prédio escolar; e o processo da mudança no Estado Novo. A maioria
dos entrevistados passou pelo processo da nacionalização do ensino na política estadonovista.

Falar sobre o período de escolarização é sempre um momento de recordações das práticas


escolares, das relações interpessoais com os colegas e professor(a), de relembrar de um espaço
físico e temporal, que de algum modo marcaram a vida do sujeito. Isto é, “acontecimentos
considerados pelo indivíduo como significativos do ponto de vista de sua identidade” (CANDAU,
2014). Em relação à memória dos entrevistados, as narrativas são recorrentes e convergem para
aspectos comuns como lembranças de professores e pastores e a valorização da religião.
A escolarização desses sujeitos foi constituída dentro de um espaço comunitário e religioso,
como podemos observar a partir das narrativas de uma cultura escolar direcionada para fins
religiosos. Como nos fala Martim V. Wille (2016):

Naquele tempo, nas escolas paroquiais, todos os dias tinha aula de religião; um dia
catecismo no outro de história bíblica. E, assim, como era um pastor sinodal, também
ensinava a parte religiosa e de conhecimentos básicos [...]. Naquela época, onde tinha uma
comunidade religiosa também tinha uma escola.

Quando perguntados sobre a dinâmica das aulas, Martim V. Wille lembra que as aulas eram
em conjunto onde todos estudavam no mesmo espaço, mas em grupos. Segundo ele, “o professor
passava as lições diferentes para cada turma”. E circulava para ver se a turma estava trabalhando
direitinho e daí explicava quando não entendiam. É perceptível, nas narrativas dos entrevistados,
que o processo de ensino e aprendizagem ocorria de forma coletiva dentro da igreja ou num prédio
ao lado. Não havia seriação, o que se tinha era um período estipulado para escolarização que
era concluído com o rito da confirmação.6 Como podemos observar nas falas dos
entrevistados.
[...] naquela época não tinha essa divisão de série. A aula era tudo num salão, só o professor
lecionava a turma que entrava até o quinto ano, como mais ou menos era o período que se
estudava. (MARTIM V. WILLE, 2016).
[...] não tinha muito essa coisa de série; estudávamos todos juntos. Quando chegava a idade
de 13, 14 anos, a gente se confirmava, depois era adulto. (ADOLFINA K. NEITZKE,
2016).

6 Confirmação: um rito de passagem análogo a primeira comunhão dos católicos, mas entre os luteranos é quando
a criança passa da infância para a vida adulta e tem autorização para namorar.
Eu fui para a escola com 8 anos e me confirmei com 12. Naquela época, a gente se
confirmava, quando sai da escola. (ILMA B. REICHOW, 2016).

Dessa forma, o período de escolarização era visto também como um tempo de preparação
para o rito da confirmação (WEIDUSCHADT; TAMBARA, 2014). Assim, o aluno também estaria
apto a se tornar um membro atuante na comunidade. Então, segundo a entrevistada Renilda U.
Schellin (2016), durante esse período “aprendia-se de tudo um pouco: a ler escrever, fazer contas,
rezar, catecismo e canto”. A entrevistada lembra ainda que iniciou a sua escolarização em alemão e
que foi interrompida pelo processo de nacionalização do ensino. Logo, o uso da língua é apontado
pelos entrevistados como um dos fatores que mais dificultou a sua alfabetização. Da mesma forma,
a entrevistada Ilma B. Reichow que sempre falou em pomerano e vinha tendo a sua alfabetização
em língua alemã, lembra que aprender português não foi uma experiência muito boa, mas que aos
poucos foi aprendendo.
Segundo Kreutz (2010), esse efeito pedagógico teve um reflexo negativo na qualidade de
ensino e aprendizagem de toda uma geração, pois fez com que escola se tornasse estranha, tanto na
língua como na escrita para o aluno teuto-brasileiro, que deixou de ser progressiva passando a ser
compulsória. É perceptível nas narrativas expostas, anteriormente, que Renilda U. Schellin e Ilma
B. Reichow tiveram uma mudança no uso da língua durante o período de escolarização; fato que
teria tornado o seu aprendizado mais difícil. Diferente de Eurico Woltter que estudou antes da fase
repressiva da nacionalização. Quando perguntado sobre a língua na qual eram ministradas as aulas,
ele lembra que as aulas eram em alemão, mas também se falava em pomerano e que havia aulas de
português, mas eram poucas. Podemos observar que antes mesmo da proibição, algumas escolas já
vinham tendo a preocupação com o ensino da Língua Portuguesa, a qual estava sendo incluída de
forma gradativa no currículo das escolas.
Ao ter em vista que a cultura escolar vai além dos conteúdos formais passados durante o
período da escolarização, torna-se importante perceber as práticas e os modos de educar, enfatizadas
nas narrativas no papel do professor/pastor. Eles exerciam dupla função: tinham a tarefa de ensinar
e também de ser o guia espiritual. Era uma pessoa respeitada e temida pelos alunos, sendo que,
muitas vezes, ele utilizava castigos físicos para punir o mau comportamento e a falta de atenção do
aluno em aula. Apesar de ser considerado severo em suas ações educativas, ele era admirado e
justificado pelos seus atos. Segundo o entrevistado Eurico Wollter (2016), “tomar uns puxões de
orelha e alguns tapas de vez em quando era necessário porque isso gerava respeito”. Kreutz (2004)
realça que o professor paroquial deveria ser um exemplo para as crianças, mostrar virtudes cristãs,
de retidão no agir, sendo um modelo de austeridade e bons costumes.
Conforme podemos observar, o professor era tido como referência pela comunidade.
Martim V. Wille lembra que, como filho de professor, tinha que ser exemplo para os outros alunos;
era sua obrigação se esforçar. Lembra que, muitas vezes, foi reprendido e castigado em aula junto
com os colegas. Essa fala reforça que as atitudes enérgicas acarretavam em credibilidade e
respeitabilidade, junto aos alunos e os pais. Otto Schellin (2016) lembra que nada passava aos olhos
do professor. “Ele não podia ficar sabendo que tu tinhas passado por alguém sem tirar o chapéu e
cumprimentar a pessoa; isso desmoralizava o trabalho do professor”. Da mesma forma, é notória,
na narrativa, a importância da questão comportamental e moral que era bastante cobrada pelas
escolas de cunho religioso. Nesse sentido, Weiduschadt (2012) afirma que tais preceitos eram
considerados importantes no sentido de preparar as crianças como cidadãos e cristãos educados.
Nos relatos, o professor é descrito não só por suas atitudes determinadas, mas é lembrado
também por suas expressões e vestimentas,
Nós já sabíamos quando ele vinha com o chapeuzinho “marrão”. Ele andava meio aluado
principalmente nas segundas-feiras. Quando vinha com chapéu listrado daí ele estava de
boas. (OTTO SCHELLIN, 2016).
O meu professor era muito bravo [risos], usava suspensório [...]. E nós já sabíamos quando
se incomodava no fim de semana. Daí, na segunda quando a gente entrava na igreja, e ele
estava olhando por cima dos óculos, já sabíamos que não poderíamos incomodá-lo. (ILSA
K. NEUENFELDT, 2016).

É possível perceber nos relatos, como a exteriorização, o vocábulo e os modos de vestir


estão presentes na memória dos entrevistados. Nesse sentido, Nunes (2003) nos lembra de que nas
escolas o modo de se vestir funcionava como um distintivo que qualificava quem o usava. Sendo
assim, a figura do professor é representada nas narrativas por sua personalidade simbolicamente
lembrada, no modo de se expressar, agir e vestir. Para Bosi (1987), as lembranças que os alunos
têm da figura do professor, seu rosto, sua voz e seu comportamento, são mais latentes porque
fizeram parte da sua convivência no período da infância, em que recordações ficam mais marcadas
na formação do sujeito.

Para Ferreira e Amado (1996), os relatos orais sobre o passado englobam explicitamente a
experiência subjetiva. Nesse sentido, as narrativas nos permitem contextualizar o funcionamento
interno das instituições escolares e ajudar a compreender como estes sujeitos se apropriavam dos
recursos didáticos oferecidos.
Conforme podemos observar nas entrevistas, uma das práticas recorrentes era a leitura. Para
Adolfina K. Neitzke (2016) “cada aluno tinha seus livros e o professor chamava um a um para tomar
a leitura e também era preciso recitar a tabuada de forma oral”. Os dispositivos de leitura e a
importância dada a ela pode ser observado também nas falas de Eurico Wollter. Segundo ele, a
prática da leitura não se restringia à sala de aula. Ele lembra que “quando chegava em casa pegava o
seu livro e estudava, para poder saber no outro dia quando o professor tomava a lição”. O livro
didático e seus usos aparecem nos relatos como um dos principais meios de inserção à prática da
leitura.
Eu tinha livros [...] a Fibel 7tinha muitas figuras e o Einmaleins8. Eu sabia toda a
tabuada de cabeça [...] na escola também tinha os livros para ler. (EURICO
WOLTER, 2016).
Cada um tinha seus livros. À noite estudava em casa: “tinha que ler”. O pai sempre me
ajudava, eu escrevia na lousa e lia (ILMA B. REICHOW, 2016).
Tínhamos o primeiro e o segundo livro. Tinha que estudar o primeiro, do princípio ao fim.
Quando passava o conteúdo referente ao primeiro, passava para o segundo (OTTO
SCHELLIN, 2016).

Podemos perceber nos relatos, acima, a maneira como os entrevistados se referiam ao


uso do livro didático e à prática da leitura. O livro era um dos poucos registros físicos das
atividades mantidas na memória dos narradores, sendo que muitos se lembravam dos
conteúdos estudados. Ilma B. Reichow ainda guarda com zelo os seus livros, entre eles a
Cartilha Fibel, a qual fez questão de mostrar, em virtude dessa cartilha ter passado anos
escondida no porão da casa. Nesse sentido, Lucena (1997) enfatiza que a lembrança é uma
imagem construída pelos materiais que estão à nossa disposição no momento em que
desencadeia o fluxo da memória. Sendo assim, as afirmativas nas práticas escolares vividas
podem ter sido rememoradas em relação ao que é importante saber no momento da
entrevista.
Notamos que alguns entrevistados ainda recordaram aspectos da materialidade do
livro e da cartilha, como modo de organização e também os espaços onde eram usados. Quanto
aos espaços de uso é conveniente lembrar, conforme Ferreira e Amado (1996), que os
acontecimentos estão ligados a lugares. E as pessoas usam esses lugares para se localizar no
espaço para falar dos eventos ocorridos, chamados por Bosi (1987) de espaços de memória.
Assim, alguns dos entrevistados lembram o uso do livro em casa, onde ocorriam as práticas
de leitura e memorização, auxiliadas, muitas vezes, pelos pais, conforme lembrado pela
entrevista Ilma B. Reichow em sua narrativa.
Os entrevistados recordam, também, que a escrita se dava na lousa,9 portanto era
preciso memorizar a lição.

Tinha que decorar a lição praticamente porque não tinha caderno para revisar depois.
(MARTIM V. WILLE, 2016).
A gente fazia muita conta, tinha que saber tudo de cabeça, porque a gente escrevia numa
lousa, tinha que memorizar. (ILMA B. REICHOW, 2016).
Eu escrevia na lousa, decorava e depois apagava. Era brabo porque depois a gente tinha
que explicar para o professor [...]. (ADOLFIBA K. NEITZKE, 2016).
Cada um tinha sua lousa, escrevia, decorava, apagava para escrever de novo [risos].
Fazíamos as contas na lousa; quem era atento aprendia. (EURICO WOLTER, 2016).

7
Fibel für deutsche Schulen in Brasilien (Cartilha para escolas alemãs no Brasil), usada na alfabetização e na
iniciação a leitura.
8
.Einmaleins, (Tabuada). Cartilha usada para o ensino de cálculos matemáticos. .
9 Lousa é o modo como os depoentes se referem à ardósia.
É interessante contemplar nessas memórias, a ênfase no domínio das técnicas básicas de
leitura e escrita e nas habilidades de memorização. Podemos perceber que existia uma organização
racional do sistema escolar, de preparar o aluno a se inserir no contexto. Ou seja, segundo Eurico
Woltter ensinava-se o que era importante saber na época. Essa fala vem ao encontro do que Kreutz
(1994) aponta em sua análise sobre o currículo das escolas sinodais, que “era organizado de forma
que as crianças aprendiam o essencial para o bom entrosamento na vida das comunidades rurais,
tanto sobre aspecto religioso e social quanto do trabalho.” (KREUTZ, 1994, p. 9).
Observamos nas lembranças, as características educacionais propagadas pelos sínodos
luteranos, sendo recorrente no currículo a ênfase da prática da leitura, da escrita e do canto. Estes
eram os fios condutores que possibilitavam uma aproximação entre a igreja e a escolarização e
garantiam a inserção no contexto social.

Concomitantemente, a escolarização, as práticas de ensino e aos materiais didáticos são


complementadas pelos espaços que fazem parte do processo: o recreio, o caminho da escola, o
prédio. Todos eles juntos formam também o que chamamos de cultura escolar. Para Nunes (2003,
p. 16), “lembrar do espaço escolar é lembrar também do entorno, do trajeto que leva da casa até à
escola, percurso de descobertas e manipulação, de aventuras e perigos, de brincadeiras e desafios”.
Estas memórias encontram-se bastantes presentes nas narrativas, em que a escola é percebida como
lugar de socialização.
Quando perguntamos sobre como se dava a organização do espaço escolar, é notável a
representatividade que professor/pastor tinha no contexto escolar, sendo que sua atuação pode ser
percebida também, nas escolhas das brincadeiras nos intervalos. O entrevistado Eurico Woltter
recorda que estudava pela manhã e tinha o intervalo para lanchar, conversar e brincar. Lembra,
ainda, que havia dias em que o próprio professor indicava do que deveriam brincar no recreio. Da
mesma forma Otto Schellin, lembra que suas aulas eram na parte da tarde. E que nos intervalos,
após comerem o lanche “café e um pão” que era levado de casa, eles brincavam, mas que,
geralmente, quem organizava as brincadeiras era o professor. Outros ainda recordam com nostalgia,
das brincadeiras nos intervalos das aulas que, mesmo quando não organizados pelo professor, eram
vigiados pelo docente.

No recreio quando o professor estava presente tinha que falar em alemão, se não falava
em pomerano [...] Brincávamos de passar anel de roda, de pegador de túnel humano, entre
outros; era muito divertido (ADOLFINA K. NEITZKE, 2016).
De vez em quando o professor organizava uma brincadeira que era a carreira, as gurias e
os guris faziam a brincadeira separados. (OTTO SCHELLIN, 2016).
Na hora do recreio, a gente brincava muito, às vezes se desentendia (risos), mas era tudo
de brincadeira; logo a gente estava de bem de novo. (MARTIM WILLE, 2016).
No recreio, a gente brincava na rua, [pensa] pegador. Sei que a gente brincava e de
esconder também (risos) (ILMA B. REICHOW, 2016),

Em tal caso, fica claro que os momentos de recreação eram aproveitados por alguns
professores, como um instrumento integração e disciplinamento. Outros, apenas, conforme lembra
Ilsa K. Neuenfeldt, observavam seus alunos brincarem. Para outros entrevistados, os recreios são
lembrados pelas brincadeiras que mais costumavam praticar e que costumavam ser bastante
divertidas. Era o momento onde se aproveitava para brincar e conversar com os colegas e amigos.
O espaço e a materialidade da escola também são rememorados. A igreja e a escola eram
geralmente no mesmo prédio, ou no mesmo pátio. Conforme lembra Wille (2011), onde havia uma
igreja também tinha uma escola. Quando não ocupavam o mesmo espaço estavam construídas uma
ao lado da outra. Já as longas distâncias percorridas até chegar à escola apresentam-se nas
lembranças com certo ar desafiador, e também prazeroso de se percorrer.

As aulas sempre eram pela manhã. Daí saía cedo de manhã, tirava o chinelo, escondia no
mato e ia correndo até a escola (risos). Corria na geada, na chuva (risos) (ILMA B.
REICHOW, 2016).
Caminhávamos meia hora a pé até a escola. Mas, tinha dias quando batia a preguiça, daí
levávamos até uma hora para volta [risos]. Aí em casa o pai nos reprendia. (ADOLFINA
K. NEITZKE, 2016).
Gostávamos de manhã cedo quando íamos para a escola no inverno de quebrar o gelo com
as tamancas [risos]. (ILSA K. NEUENFELDT, 2016).

Em virtude dos relatos mencionados, o trajeto de casa até a escola era o momento onde se
permitia quebrar certas regras que não eram permitidas em casa e na escola. Mesmo que, muitas
vezes, isso gerasse consequências, logo o caminho da escola é rememorado com certo ar de
liberdade onde não estavam sob a vigilância dos pais e professores. Este poderia ser o momento em
que eles, em seu imaginário, se sentiam desafiados, a viver certas aventuras que, se descobertas
pelos pais e professores, acarretaria em punições.

O processo de nacionalização do ensino no Brasil, com ênfase na nacionalização


compulsória sob o paradigma da uniformização cultural, induziu, conforme Kreutz (1994), a uma
destruição generalizada da memória histórica, como livros, revistas, almanaques, jornais e muitos
outros documentos do período, que foram destruídas pelos agentes do governo e pelos próprios
colonos com medo da repressão, criando assim: “Um clima de tensão e medo na região colonial
dos imigrantes e a proibição da língua materna, que era fator de identificação étnico-cultural e
religiosa, atingiu a nova geração que passou a um constrangedor silêncio sobre sua própria
identidade.” (KREUTZ, 2010, p. 79).
A nacionalização do ensino levou a um isolamento das comunidades, causado pelo processo
de restrição de cidadania que levou, segundo Thum (2009), a um fechamento identitário, que, de
certo modo, ajudou a preservar a cultura, bem como alguns materiais didáticos usados no período.
O que é corroborado pela narrativa de Ilma B. Reichow, que lembra que os seus livros passaram
por muitos anos esquecidos debaixo do porão da casa, onde eles foram escondidos pelo medo da
repressão.
É perceptível nas narrativas que o processo de nacionalização foram as rememorações que
ainda lhes causam certa inquietude. Suas falas são interrompidas, por períodos de silêncios e
reflexões, seguidas por memórias que apontam as dificuldades para se adaptar às mudanças na
língua escrita e falada. Para Candau (2014), recordar assim com o esquecer, é operar uma
classificação, “[...] pensar/classificar. Assim a memória humana é feita de adesões e rejeições,
consentimentos e negações, aberturas e fechamentos, aceitações e renúncias, [...] simplesmente, de
lembranças e esquecimentos.” (CANDAU, 2014, p. 72).
A implantação do novo currículo sofreu visíveis mudanças, como podemos observar nos
relatos abaixo:
Estudávamos matemática, gramática, redação, ciências da natureza, história do Brasil e
civismo. Os ensaios geralmente eram uniformizados [...]. Lembro que tinha a foto do
Getúlio Vargas nos livros de História. Sábados, a gente tinha aula de catecismo de canto.
(ILSA K. NEUENFELDT, 2016).
A gente cantava Ouviram do Ipiranga e Salve Lindo Pendão da Esperança, também tinha
história do Brasil. (ILMA B. REICHOW, 2016).
Tinha a hora cívica e também ensaiávamos para se apresentar e marchar na festa do 7 de
setembro [...]. Ainda levávamos a bandeira junto. O professor ia na frente segurando ela.
[...] não tinha religião na aula; elas eram dadas pelo pastor em outros horários. (OTTO
SCHELLIN, 2016).

O que mais chama a atenção nas narrativas sobre a mudança no currículo no período da
nacionalização é a separação dos conteúdos religiosos, que em algumas escolas passaram a ser em
turnos inversos ou aos sábados. Por outro lado, são introduzidos nos conteúdos no currículo, como
História e Geografia do Brasil e as ciências da natureza, que não foram perceptíveis nas narrativas
dos sujeitos que tiveram a sua escolarização anterior ao período da nacionalização, onde se tem
uma ênfase maior na religião. Fica visível o culto ao patriotismo, por intermédio da prática das aulas
de civismo. E também certa obrigatoriedade em se investir nas disciplinas de História e Geografia
do Brasil. Nesse sentido, Cristofolini (2000) aponta que o nacionalismo foi um instrumento para
legitimar práticas políticas e ideais nacionais, como promover a língua e a cultura luso-brasileira, e
garantir uma unidade e construir uma história; daí a importância da assimilação do simbolismo
patriótico.
Buscamos a partir dos aspectos analisados nas narrativas fazer algumas considerações
sobre a alfabetização em escolas sinodais. Podemos observar que as práticas escolares das escolas
sinodais envolviam a utilização do uso do livro didático para a prática de leitura, com ênfase na
escrita em lousa e a memorização. Nas falas dos narradores fica visível que o ensino não se limitava
à sala de aula, sendo que boa parte dos entrevistados enfatizava o estudo e as leituras feitas em casa.
A partir do que foi exposto, entendemos que o professor/pastor foi a figura que mais marcou
a memória escolar desses sujeitos. Nas lembranças dos entrevistados, o professor/pastor foi descrito
como uma figura emblemática, de personalidade forte e controlador do espaço escolar. Os espaços
escolares são apresentados em toda a sua composição: prédio, recreio, trajeto, entre outros, ao
mesmo tempo, as brincadeiras nos intervalos, são lembradas com muito entusiasmo.
As lembranças reforçaram ainda o processo de nacionalização do ensino. Essa política
exerceu um efeito de mudança sobre essas pessoas que fez com que muitas se isolassem e outras se
sentissem desafiadas a aprender. É notável observar que a mudança do currículo com acréscimo de
conteúdos e retirada ou diminuição de outros, não causou grandes impactos negativos. Afinal, nem
eram totalmente compreendidos os conteúdos ministrados na Língua Portuguesa. Num primeiro
momento, os alunos se comunicavam no dialeto pomerano, e tinham suas aulas ministradas em
alemão. Assim, a proibição do uso da língua dificultou em certa medida o aprendizado.
Desse modo, as sete narrativas apontaram, como significativo, o processo de escolarização,
deixando lembranças e recordações da vida infantil e do universo escolar.
Tendo em vista os aspectos observados, nas narrativas, concluímos como base em
Halbwachs (1990), que nossa memória não se apoia na história aprendida, mas na história vivida.
Sendo assim, a História Oral tem um importante papel nas pesquisas que buscam analisar processos
de escolarização étnicocultural, pois ela permite levantar dados e problematizar a partir das
experiências e representações dos sujeitos envolvidos, permitindo, assim, fazer relações com
história documental e oficial, e chegarmos, portanto, a uma compreensão maior sobre certos
comportamentos tidos com específicos de cada grupo étnico.

BARRA, Valdeniza Maria Lopes da. A lousa de uso escolar: traços da história de uma tecnologia
da escola moderna. Educar em Revista, Curitiba, Brasil, n. 49, p. 121-137, jul./set. 2013.
Disponível em: <http://www.scielo.br/pdf/er/n49/a08n49.pdf> Acesso em: 10 jul.2017.

BOSI, Ecléa. Memória e sociedade: lembrança de velhos. 2. ed. São Paulo: Ed. da Universidade
de São Paulo, 1987.

CANDAU, Joel. Memória e identidade. São Paulo: Contexto, 2014.


CRISTOFOLINI, Nilton Jose. Nacionalização do Ensino: Estratégias para a construção da
nacionalidade e sua contextualização em Joinville. 2000. Dissertação (Mestrado em História). –
Universidade Federal de Santa Catarina/UNESC. Florianópolis/SC.

DREHER, Martin Norberto. Igreja e germanidade: estudo crítico da história da Igreja Evangélica
de Confissão Luterana no Brasil. Porto Alegre: EST, 1984.

FERREIRA, Marieta de Moraes, AMADO, Janaina. Usos & abusos da História Oral. Rio de
Janeiro: Ed. da FGV, 1996.

HALBWACHS, Maurice. A memória coletiva. São Paulo, Vértice, 1990.

JÚLIA, Dominique. A cultura escolar como objeto histórico. Revista Brasileira de História da
Educação, n.1, p. 9-45. Campinas: 2001.

KREUTZ, Lúcio. Periódicos na literatura educacional dos imigrantes alemães no RS (1900-


1939). In: REUNIÃO ANUAL DA ANPED, 30ª, 2007, Caxambu/MG. Anais... Caxambu:
ANPED, 2007, p. 01-13. Disponível em: <https://goo.gl/1hy6Vk> Acesso em: 01 jul. 2017.

LUCENA, Célia. Tempo e espaço nas imagens das lembranças. IN: VON SIMSON, Olga
Rodrigues de Moraes. Os desafios contemporâneos da História Oral. Campinas: Ed. do Centro
de Memória, 1997, p. 223-266.

_____. Escolas étnicas no Brasil e a formação do estado nacional: a nacionalização compulsória


das escolas dos imigrantes (1937-1945). Poiésis, Tubarão, v. 3, n. 5, p. 71-84, jan./jun. 2010.
Disponível em: <> Acesso em: 24 jun. 2017.

_____. O Professor Paroquial: magistério e imigração alemã. Pelotas: Seiva, 2004.

_____. Material didático e currículo na escola teuto-brasileira do Rio Grande do Sul. São
Leopoldo: Ed. da UNISINOS, 1994.

NEITZKE, Adolfina K. Entrevista [abr. 2016]. Entrevistador: Elias k. Albrecht, 2016, Canguçu.
Entrevista concedida para fins desta pesquisa.

NEUENFELDT, Ilsa K. Entrevista [abr. 2016]. Entrevistador: Elias K. Albrecht, 2016, Canguçu.
Entrevista concedida para fins desta pesquisa.

NUNES, Clarice. Memória e História da Educação: entre práticas e representações. In: LEAL,
Maria C. e tal. História e memória da Escola Nova. São Paulo: Loyola. 2003.
OSVALD, Tamara. As igrejas Evangélicas Livres e independentes em São Lourenço do Sul. 2014.
Dissertação (Mestrado em História) – Universidade Federal de Pelotas/UFPel, Pelotas/RS.

PESSANHA, Eurize C. et al. Da história das disciplinas escolares à história da cultura escolar:
uma trajetória de pesquisa. In: Revista Brasileira de Educação, n.27, p. 57-59, set/out/nov/dez,
2004. Disponível em: <https://social.stoa.usp.br/ > Acesso em: 21 jun. 2017.

RAZZINI, Maria de P. G. Instrumentos de escrita na escola elementar: tecnologias e práticas. In:


MIGNOT, Ana Chrystina V. Cadernos à Vista: escola memória e cultura escrita. Rio de Janeiro:
Ed. da UERJ, 2008. p. 91-113.

REHFELDT, Mario L. Um grão de mostarda: a História da Igreja Evangélica Luterana do Brasil.


v.1. Porto Alegre: Concórdia, 2003.

REICHOW, Ilma, B. Entrevista [abr. 2016]. Entrevistador: Elias K. Albrecht, 2016, Canguçu.
Entrevista concedida para fins desta pesquisa. 2016.

ROUSSO, Henry, A memória não é mais o que era. In. AMADO e FERREIRA. Usos & abusos
da História Oral. Rio de Janeiro: Ed. da FGV, 2002. p. 93-102.

SCHAEFFER, Schirlei Conceição Barth. Descrição Fonética e Fonológica do Pomerano falado


no Espirito Santo. 2012. Dissertação (Mestrado em Estudos Linguísticos) – Universidade Federal
do Espírito Santo/UFES, Vitória/ES.

SCHELLIN, Otto. Entrevista [maio. 2016]. Entrevistador: Elias K. Albrecht, 2016, Canguçu.
Entrevista concedida para fins desta pesquisa. 2016.

SCHELLIN, Renilda U. Entrevista [maio. 2016]. Entrevistador: Elias K. Albrecht, 2016,


Canguçu. Entrevista concedida para fins desta pesquisa. 2016.

THUM, Carmo. Educação história e memória: silêncio e reinvenções pomeranas na serra dos
Tapes. 2009. Tese (Doutorado em Educação) – Universidade do Vale do Rio dos
Sinos/UNISINOS, São Leopoldo/RS, 2009.

WEIDUSCHADT, Patrícia. A revista "O Pequeno Luterano" e a formação educativa religiosa


luterana no contexto pomerano em Pelotas/RS (1931 - 1966). 2012. Tese de Doutorado em
Educação – Universidade do Vale do Rio dos Sinos/UNISINOS, São Leopoldo/RS.

_____; TAMBARA, Elomar. Cultura Escolar através da memória dos pomeranos na cidade de
Pelotas, RS (1920-1930). Cadernos de História da Educação, Uberlândia, v. 13, n. 2, p. 687-704,
jul. /dez. 2014. Disponível em: <http://www.seer.ufu.br/index.php/che/article/view/29214>
Acesso em: 30 jun. 2017.

WILLE, Leopoldo. Pomeranos no Sul do Rio Grande do Sul: Trajetória, mitos, cultura. Canoas:
Editora da Ulbra, 2011.

WILLE, Martim V. Entrevista [maio. 2016]. Entrevistador: Elias K. Albrecht, 2016, Canguçu.
Entrevista concedida para fins desta pesquisa. 2016.

WOLTER, Eurico. Entrevista [abr. 2016]. Entrevistador: Elias K. Albrecht, 2016, Canguçu.
Entrevista concedida para fins desta pesquisa. 2016.
Mônica de Souza Chissini*
Roberta Ângela Tonietto**

O presente estudo objetiva analisar narrativa que integra o corpus empírico de dissertação
alicerçada no campo da História da Educação, em desenvolvimento no Programa de Pós-Graduação
em Educação da Universidade de Caxias do Sul. Dentre os documentos da pesquisa, analisam-se
leis, documentos de Bancos de Memória e relatórios relacionados ao processo de democratização
da Rede Municipal de Ensino de Caxias do Sul/RS, além de empiria construída por meio da História
Oral. Tendo em vista que a referida pesquisa investiga a democratização da rede de ensino entre os
anos 80 e 90, do século XX, atentamos que a fonte oral, utilizada neste trabalho, resulta de entrevista
com o antigo Secretário Municipal de Educação, Odir Miguel Ferronatto, o qual exerceu a referida
função entre 1989 e 1992, e, posteriormente, entre 1993 e 1994, no município de Caxias do Sul/RS.
A entrevista ocorreu em janeiro de 2017 e relaciona-se à temática de gestão democrática.
Inicialmente, contextualizamos o município de Caxias do Sul, que está localizado na região
nordeste do Rio Grande do Sul, 127 km distante da capital do estado, Porto Alegre. De acordo com
dados do IBGE (2016), a população estimada da cidade é de 479.236 habitantes. Com relação à
trajetória da cidade, nas últimas décadas do século XX, referimos que nos anos 1970, a população
urbana de Caxias do Sul aumentou significativamente, movimento o qual esteve acompanhado de
acentuado êxodo rural. Nesse sentido, as atividades econômicas intensificaram-se no centro urbano
e, em face de tal transição, evidenciamos que, desde os anos 80, Caxias do Sul veio a ganhar força
no cenário econômico e ampliar sua participação no polo metalmecânico brasileiro, setor no qual
tem forte atuação na atualidade.

Em vista do êxodo rural intensificado nos anos 70 do século XX, muitas transformações
foram paulatinamente sendo operadas em Caxias do Sul. No que tange ao contexto educativo de
Caxias do Sul, ressaltamos o fechamento de parte das escolas rurais e alta demanda da comunidade
por ampliação de vagas em áreas cada vez mais urbanizadas, como se evidencia no estudo de Dalla

* Prefeitura Municipal de Caxias do Sul. Mestranda no Programa de Pós-Graduação em Educação da UCS.


Bolsista PROSUP/CAPES. Membro do GRUPHEIM (Grupo de Pesquisa História da Educação, Imigração e
Memória).
** Fátima Educação e Escola do Hospital Pompeia. Docente do curso técnico em Enfermagem. Aluna não
regular do Programa de Pós-Graduação em Educação da UCS.
Vecchia, Herédia e Ramos (1998). Não obstante, é nos anos 80 que muitas mudanças podem ser
percebidas na configuração da Rede Municipal de Ensino (RME) de Caxias do Sul/RS. Estudos
como o de Dalla Vecchia, Herédia e Ramos (1998), além de dados parciais da dissertação em
desenvolvimento anteriormente referida, permitem destacar forte mobilização pautada em
princípios democráticos, as quais reivindicavam abertura de espaços de escuta e participação da
comunidade. Observamos que entre as décadas de 80 e 90 a RME de Caxias do Sul apresentou
esforços ao tentar ampliar arenas de participação e discussão dos desafios educacionais no
município.
Entre 1983 e 1988, a RME foi capitaneada pela professora Marta Gobbato, tendo aceitado
o convite do prefeito de Caxias do Sul à época, Victório Trez para assumir o ofício de Secretaria
Municipal da Educação e Cultura, então referida como SMEC. Consideramos a gestão de Marta
Gobbato como um período de gestação de processos democratizantes na rede que, embora não seja
o foco deste trabalho, merece ser sinalizado. Embora o cenário brasileiro correspondesse aos
últimos anos de vigência de um regime ditatorial militar e centralizador, é possível verificar que, na
gestão Gobbato, ocorreu um gradativo, porém contínuo processo de democratização, pautado por
preocupações voltadas para a aproximação entre docentes, mantenedora, comunidade escolar e
escolas, além de atenção à organização da rede.
Dados empíricos da pesquisa de dissertação, relacionada a este artigo, permitem verificar
que a gestão educacional subseqüente, liderada pelo Secretário Municipal de Educação e Cultura,
Odir Miguel Ferronatto contribuiu para que processos de democratização viessem a consolidar
práticas de efetivação de princípios democráticos. Neste estudo, alicerçamos nossa análise na
perspectiva de gestão educacional a partir de um dos sujeitos implicados e atuantes no contexto da
mantenedora, SMEC. Em especial, atentamos para a narrativa de Ferronatto (2017) a fim de
identificar indícios de práticas que reverberaram em desdobramentos democráticos. Outrossim,
também buscamosoperar tal análise à luz do conceito de memória a partir do apoio teórico da
História Oral, vista como metodologia que possibilita a construção de empiria por meio da interação
e de negociações nas relações entre entrevistado e entrevistador.Nesse sentido, referimos o caráter
subjetivo que, inevitavelmente, permeia o processo de escuta, haja vista que os sujeitos envolvidos
em pesquisas de História Oral encontram-se para dialogar e evocar memórias, construir, reconstruir
e/oudescontruir o que foi. Portelli (2016) enfatiza que a História Oral “não diz respeito só ao evento.
Diz respeito ao lugar e ao significado do evento dentro da vida dos narradores” (PORTELLI, 2016,
p. 12). É nesse viés que subsidiamos nossa análise, entendendo a potencialidade da História Oral
tal como “arte da escuta” (PORTELLI, 2016), e como percurso metodológico que viabiliza
aproximações com o passado pelas reinterpretações da memória, produzindo outras versões para o
que foi, para além dos registros escritos.
Assim, analisamos a narrativa de Ferronatto, antigo professor da rede estadual do Rio
Grande do Sul, o qual integrou diversos projetos e cargos oficiais no município de Caxias do Sul,
atuando em diferentes setores no cenário político da mesma cidade. Odir Miguel Ferronatto nasceu
no ano de 1943, em Mato Perso, 4º distrito da cidade de Flores da Cunha/RS. Sua família mudou-
se para Caxias do Sul, ainda em sua infância. Seu pai atuou no contexto político da cidade e sua
mãe era professora alfabetizadora. Formado como técnico agrícola, Ferronatto foi servidor na
Diretoria de Fomento (Secretaria da Agricultura) de Caxias do Sul, tendo também atuado como
professor de matemática na rede de ensino pública estadual e privada. Mais adiante, Ferronatto
ocupou cargo de vereança, na mesma cidade, além de ter sido coordenador do SINE e membro
integrante do conselho organizador de uma notória festividade do município, a Festa da Uva. Para
a realização da entrevista, um primeiro contato foi realizado com Ferronatto (2017) ao final de 2016.
Então, ele foi convidado para a realização de entrevista para tratar dos itinerários de democratização
da RME de Caxias do Sul em vista da pesquisa de dissertação, inicialmente referida. Ferronatto
disponibilizou-se para entrevista piloto, quando referiu memórias e compartilhou alguns itens de
seu acervo pessoal relativos à sua trajetória profissional. Posteriormente realizou-se formalmente
novaentrevista, no início de 2017, com Ferronatto, na qual ele tratou de temas relacionados à sua
trajetória profissional e período em que atuou na Secretaria Municipal de Educação e Cultura
(SMEC). Em sua narrativa sobre sua trajetória docente, entendemos que Ferronatto fora convidado
para assumir a direção da escola da rede estadual na cidade, Abramo Eberle. Ferronatto (2017)
relata que permaneceu na gestão da referida escola por três anos. Então, surgiu o convite para
capitanear a SMEC, de Caxias do Sul, o qual teria sido feito pelo prefeito eleito à época, Mansueto
Serafini. Sua narrativa está registrada em entrevista de uma hora e vinte e sete minutos. Seguindo
os procedimentos éticos atinentes à metodologia da História Oral, a narrativa foi transcrita e
submetida para apreciação do entrevistado. Em novo encontro, Ferronatto fez suas considerações
sobre o documento transcrito e foi definida uma versão final para sua narrativa, tendo ela sido
disponibilizada como fonte para pesquisa. O narrador solicitou também que seu nome fosse
referido, reiterando que deseja contribuir para a pesquisa referente ao contexto em que atuou.
Para analisar os elementos da narrativa, subsidiamo-nos em Errante (2000), a qual aponta
que “Na dinâmica das histórias coletivas e pessoais, emergem a voz e a identidade como o resultado
da interação entre o historiador (o entrevistador) e o narrador (o informante)” (ERRANTE, 2000,
143). Nesse sentido, entendemos que o encontro propiciado na entrevista também constitui um
espaço no qual significados são negociados. Não obstante, mesmo os significados presentes em
narrativas relativas à memória individual, como a de Ferronatto, estão permeados por histórias de
seu grupo social. É o que aponta Halbwachs(2003), sobre a memória individual ao dizer que “Ela
não está inteiramente isolada e fechada. Para evocar seu próprio passado, em geral a pessoa precisa
recorrer às lembranças de outras, e se transporta a pontos de referência que existem fora de si,
determinados pela sociedade” (HALBWACHS, 2003, p. 72). Logo, embora persista a assunção da
perspectiva pessoal de Ferronattosobre o processo de democratização da RME de Caxias do Sul, é
perceptível o quanto a memória de Ferronatto está atravessada por memórias públicas, advindas de
discursos circulantes sobre outros períodos da gestão da SMEC.

Alicerçamos nossa concepção de práticas nos estudos de Certeau (2014). Nessa perspectiva,
compreendemos práticas tais como modos de fazer que encontram em si a possibilidade de criar
em vista do estabelecido. Logo, persiste em nossa análise o viés do sujeito criativo, que constrói
suas maneiras de fazer. Serão, portanto, destacados indícios de práticas que evidenciem
desdobramentos democráticos na narrativa, os quais estão subjacentes às rememorações do sujeito
entrevistado quanto a eventos e ações da RME no período em que esteve implicado. Nesse sentido,
não atrelaremos essas memórias a ordenamentos legais e outras fontes, em vista de que esses não
estão integrados aos documentos anunciados deste estudo.
Ao tratar de algumas práticas recorrentes em gestões anteriores a sua, no contexto
educacional de Caxias do Sul, Ferronatto rememora a partir do outro, o que fica evidente na
expressão “segundo diziam” no trecho subsequente, no qual ele buscou destacar a transição que se
operou das gestões anteriores para sua gestão na RME:

Naquela época, os Secretários anteriores, eles eram supervisores escolares, eles iam nas
escolas e chegavam a humilhar, segundo diziam, ainda os professores municipais. E
quando eu fui ver a realidade, nós tínhamos professores municipais com muito mais
qualidade, pós-graduados, com formação superior (FERRONATTO, 2017).

A partir dessa consideração, Ferronatto introduz uma questão basilar a respeito do período
inicial de sua gestão como Secretário Municipal de Educação. Em primeiro lugar, ele aponta para
tensões entre mantenedora e docentes municipais. A esse respeito, ressaltamos que a gestão de
Marta Gobbato era constituída quase que exclusivamente por docentes do magistério estadual, o
que se modificaria a partir da gestão de Ferronatto, em 1989. No mesmo excerto da narrativa, ele
também reconhece que compartilhava da percepção de que professores municipais não seriam
suficientemente qualificados, até conhecer pessoalmente o contexto da rede.
Esses são dois elementospodem ser evidenciados como relevantes, pois mobilizaram
rupturas e reconfigurações. Ao aceitar o convite para ser Secretário, no final de 1988,
Ferronattotomou conhecimento de que havia uma reivindicação dos docentes da RME para que a
mantenedora fosse gerida apenas por docentes municipais e acolheu a demanda,
escolhendodocentes municipais para serem as assessoras e integrarema equipe gestora. Com isso,
provocou uma ruptura em relação à configuração estabelecida até aquele período, na qual o
magistério estadual era o poder até então legitimado para gerir a rede. Ainda, o final do excerto
visibiliza que havia representações de desprestígio que circulavam sobre o docente municipal.
Uma vez que este artigo se propõe a verificar em que medida algumas práticas evidenciadas
na narrativa de Ferronatto contribuíram para desdobramentos democráticos, assinalamos parte da
narrativa do antigo Secretário a qual explicita duas práticas que ele adotara a fim de conhecer e se
aproximar da rede por ele então capitaneada.

Pra ti ter uma ideia, antes os diretores das escolas não se conheciam. A Secretária não
recebia ninguém lá; só com hora marcada. E eu abri o gabinete e disse: “Aqui diretor não
tem hora e professor também não tem hora”. Se vem aqui, só que às vezes tem que esperar.
E eu comecei também uma atividade de visitar todas as escolas. Por exemplo, de manhã
visitava duas escolas e a escola fazia um jogo com os alunos (FERRONATTO, 2017).

No trecho acima, primeiramente Ferronatto aponta para rupturas, evidenciando uma


maneira de fazer diferente que buscou estabelecer laços ao abrir seu gabinete e receber aos
professores. Em sua narrativa, essa questão foi contemplada em diversos momentos. Logo, ele
elucida que o espaço da Secretaria fora reconfigurado para atender às demandas de forma mais
ampla. As paredes teriam sido derrubadas. Sua narrativa aponta para memórias de como eles
ocupavam e praticavam esse lugar, compreendido, a partir dos significados trazidos pela memória
de Ferronatto. Assim, é possível perceber evidência de que os espaços eram ocupados com grande
movimentação da equipe em atendimento à comunidade escolar e aos professores, como também
podemos verificar quando diz: “Tanto é verdade que eu aboli os departamentozinhos assim e abri
tudo. Às vezes dava uma zoeira lá e eu chegava e ‘Epa, shh!’” (FERRONATTO, 2017).
Na continuidade do tema, Ferronatto afirma ter promovido outra nova prática: visitações
regulares nas escolas, realizadas juntamente às suas assessoras no período, o que se confirmou
também em narrativas de assessoras como Beatriz Maria Bigolin e Jaqueline Marques Bernardi, as
quais, muitas vezes, o acompanharam ou mesmo representaram a mantenedora em tais visitações.
No que tange à motivação das visitas, verificamos um distanciamento e ruptura da
perspectiva de visita à escola como mecanismo de controle e regulação, quando Ferronatto explica
que:
Eu visitava as escolas. As professoras visitavam as escolas. Retirei o nome Supervisão
Escolar para Orientador Educacional. Não tinha nada que ir lá supervisionar os cadernos.
Isso a diretora, e as pessoas da escola, tinham condição de fazer isso. Não era mais para
supervisionar. E começamos a introduzir todas essas reivindicações que eles tiveram.
Graças a essas pessoas do município que vieram trabalhar comigo, nós conseguimos, antes
do final do mandato do Mansueto, atender todas as 29 reivindicações que elas estavam
querendo [...] (FERRONATTO, 2017).

Ferronatto aponta que buscou fazer-se presente de forma distinta nas escolas, rompendo
com a prática de “supervisionar cadernos”. Assim, ele justifica a visita antes como forma de
conhecer as realidades e necessidades das escolas. Não por acaso, ele em seguida rememora as 29
reivindicações feitas pelos docentes municipais em 1988 e acolhidas em sua gestão a partir de 1989.
A recorrência com que as 29 reivindicações são referidas é significativa. Permite também perceber
o quanto Ferronatto articula-as como elemento importante de sua gestão, com viés democrático. As
reivindicações são lembradas e referidas frequentemente na narrativa como razão explicativa de por
que determinadas escolhas foram feitas no período para a RME de Caxias do Sul, especialmente no
que tange a aspectos como organização da rede e qualificação docente. Ferronatto busca enfatizar
que objetivou atender as demandas e compreendemos que se constitui importante para ele que seja
assinalado seu movimento de acolhimento de tais propostas e de abertura para escuta dos entraves
daquele contexto.
Outro elemento da gestão Ferronatto, que resultara de outra reivindicação dos professores
docentes, foi o aumento salarial. Ferronatto acrescenta entre as ações desenvolvidas em sua gestão
o fator salarial: “Ah, e outra coisa. Nós conseguimos aumento na época para os professores [...] Foi
substancial. Ultrapassamos o salário do Estado e agora tá bem longe. Conseguimos, na época, do
Mansueto também. Era uma das reivindicações deles” (FERRONATTO, 2017, p. 22).
Percebemos nas memórias de Ferronatto, elucidadas em sua narrativa, indícios de práticas
de escuta das necessidades dos docentes da rede, quando relata que:

Professores foram fazer curso em Porto Alegre, professores foram se especializar,


professores estudavam e, a partir daí houve realmente uma vontade de crescer e uma
vontade do município e do professor municipal em mostrar que eles não eram os
coitadinhos. Pelo contrário, eles começaram a ficar falados [...]. E aí começaram, e aí, o
que que acontece, com o trabalho de integração de turmas, entre séries, entre escolas, entre
professores e entre coisas assim; a evolução surgiu em cima dos professores municipais..
Eu apenas era um condutor. Apenas era o cara que dizia pode, não pode. Vamos, não
vamos. Quer dizer, eles apresentavam a proposta. É ótimo, é ótimo, vamos fazer. Tem
condição de fazer? Tem? Não tem condição de fazer? Não tem. (FERRONATTO, 2017).

Em vista disso, percebemos o reconhecimento de Ferronatto de que ao ter contemplado as


demandas, teria sido possível contribuir em certa medida com a qualificação da rede, enfatizando-
se a formação do docente. Ainda, novamente ele ressalta a questão da ruptura de representação da
identidade do docente municipal como “coitadinho” e finaliza apontando que sua atuação se
construiu a partir da mediação que fazia entre as demandas que surgiam na rede e o que poderia ser
concretizado. Assim, evidencia-se uma gestão na qual possibilidades foram moderadas: ouvidas,
discutidas e deliberadas.
Por vezes, a narrativade Ferronatto permite verificar “estratégias de ocultação verbal”,
categorias de Retzinger (1991) trazidas por Errante (2001). Observamos na narrativa algumas fugas
verbais, distração e, em alguns momentos, de defensiva, como no caso a seguir: “Bom, depois, aí
teve problema, no segundo ou terceiro...segundo ano. Aí não dava mais tempo de eu ir lá porque aí
a coisa [...]” (FERRONATTO, 2017). Nesse caso, o entrevistado explicava porque não conseguira
mais prestigiar um evento anual de apresentação dos alunos e é perceptível que passa a justificar a
questão de forma prolongada. As estratégias de Retzinger referidas por Errante (2001) elucidam
como podemos exercer olhares mais atentos aos ditos e não ditos, ao como algo é sinalizado, aos
gestos e impressões, todas unidades de sentido relevantes que também integram a narrativa e,
portanto, constituem material de análise.
Ainda, observamos na narrativa de Ferronatto (2017) posições conflituosas entre uma
posição de diálogo e uma posição mais centralizadora no que se refere à democracia e sua trajetória
como Secretário de Educação:

Democracia verdadeira tem que ouvir, mas tem que decidir. Tu tem que ouvir, mas tem
que decidir, porque não adianta tu ouvir, dez, doze opiniões, que vão aparecer e... mas a
decisão na hora tem que ser. [...]Mas, assim, a decisão final era sempre minha.
(FERRONATO, 2017).

A esse respeito, ponderamos que tensões permeiam o ato de rememorar. Afinal, memórias
aludem a ações, decisões, significados e identidades, muitas vezes, de fato, múltiplos e/ou
contraditórios. Quando nos propomos a ouvir a narrativa do outro, temos que acolher tudo aquilo
que emerge extrapolando o âmbito do evento. Assim como anteriormente referimos Portelli (2016,
p. 12), concordamos que é fundamental estarmos atentos ao lugar e aos acontecimentos nas histórias
dos sujeitos que encontramos, mantendo uma atitude respeitosa diante dos narradores que aceitam
nossos convites e gentilmente compartilham conosco suas memórias. De qualquer modo, em vista
de nossas identidades múltiplas e conflituosas, externam-se histórias e significados concorrentes:

Entretanto, essas histórias de vida raramente conseguem proporcionar um domínio


completo e satisfatório das ameaçadoras experiências do passado. Nossas tentativas de
compor um passado nunca são inteiramente bem-sucedidas, e o resultado é uma ansiedade
não-resolvida e identidades fragmentadas e contraditórias” (THOMSON, 1997, p. 58).

Portanto, narrativas diferentes constituem memórias convergentes, porém também


divergentes. Na proposta de contar o que foi a partir do ato de rememorar, significados e eventos
são referidos a partir das percepções que seus sujeitos implicados têm do presente. Assim, a
narrativa em análise permite observar que na medida em que se produz a narrativa de memória oral
persiste um esforço de produzi-la de forma a atender ao que o narrador foi, mas também de como
gostaria de ser lembrado em relação ao rememorado.

Os modos de fazer atinentes à gestão evidenciados na narrativa de Ferronatto apontam para


gradativa abertura política e práticas que contribuíram para com sucessivos desdobramentos
democráticos no contexto educacional da cidade, aspectos específicos que nos propomos a analisar
neste trabalho. Reconhecemos os limites explicativos deste estudo, tendo em vista que seu objetivo
restringiu-se à análise de uma narrativa, extraída de corpus mais abrangente. Portanto, cercamos
a questão das práticas democráticas exclusivamente a partir da memória de Ferronatto e, em razão
disso, sinalizamos que outras narrativas do corpus empírico da pesquisa da qual advém a de
Ferronatto (2017) apresentam nuances que relativizam o forte tom que nomeamos
“autogestionário” de Ferronatto, em vista da recorrência com que sua narrativa centraliza muitos
dos eventos mais como resultantes desua ação individual e menos como encaminhamentos
coletivos, embora estes também sejam reconhecidos por ele. Há inúmeras convergências e algumas
divergências quanto às ações democratizantes operadas no contexto referido nas demais narrativas
de memória oral produzidas sobre o tema, as quais não são objeto de investigação neste estudo. De
qualquer modo, em face da especificidade do trabalho e do enfoque dado à fonte oral anunciada,
verificamos que se, por um lado, o narrador refere as ações empreendidas em seu tempo de gestão
da RME de Caxias do Sul, como democráticas, embasadas no diálogo e na atenção às demandas de
docentes e comunidades escolares, ele também destaca a prevalência de sua deliberação como
definitiva, evidenciando-se também em sua narrativa o frequente uso da primeira pessoa do singular
para designar tais ações gestoras voltadas para o âmbito da rede de ensino.
Não obstante, a narrativa evidencia um período de forte movimentação na RME de Caxias
do Sul, no qual identificamos indícios de práticas e cultura de escuta às demandas da categoria
docente com efetividade de princípios democráticos, independentemente da contribuição que o
narrador atribui ao seu ofício e ao dos demais integrantes da mantenedora. Concluindo, que a RME
do período é marcada por ações da mantenedora que priorizaram processos de formação de
professores, organização da rede e aumento salarial. Assim, promoveram-se rupturas quanto às
representações desprestigiadas de professores municipais e contribuições para com o fortalecimento
identitário dos docentes municipais, bem como para a qualificação do ensino na rede no período
investigado.

CERTEAU, Michel de. A invenção do cotidiano: artes de fazer. 22. ed. Petrópolis, RJ: Vozes,
2014.

DALLA VECCHIA, Marisa Virgínia Formolo; HERÉDIA, Vania Beatriz Merlotti; RAMOS,
Felisbela. Retratos de um saber: 100 anos de história da rede municipal de ensino em Caxias do
Sul. Caxias do Sul, RS: EST, 1998.
ERRANTE, Antoniette. Mas afinal, a memória é de quem? Histórias orais e modos de lembrar e
contar. História da Educação, ASPHE/Fa/UFPel, Pelotas: ASPHE, v. 4, n. 8, p.141-174, set.
2000.

HALBWACHS, Maurice. A memória coletiva. Trad.de Lauren Lion Schaffter. Paris, França:
Presses Universitaires de France, 1968.

IBGE –Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística. Disponível em:


<http://www.ibge.gov.br/home/> Acesso em: 20 set. 2016.

PORTELLI, Alessandro. História Oral como arte da escuta. São Paulo: Letra e Voz, 2016.

THOMSON, Alistair. Recompondo a memória: questões sobre a relação entre historia oral e as
memórias. In: Projeto história. Revista do Programa de estudos Pós-Graduados em História e do
Departamento de História. PUC/SP: ética e história oral. São Paulo: Educ, n 15, p. 51-89, 1997.

FERRONATTO, Odir M. Entrevista transcrita [jan. 2017]. Entrevistadora: Mônica de Souza


Chissini. Caxias do Sul, RS: 2017. Entrevista realizada para pesquisa sobre Culturas de gestão
democrática em Caxias do Sul.
Maria Cristina dos Santos Louzada

O artigo, ora apresentado, faz parte de uma investigação maior, de uma coleta de dados
e de uma análise do uso de imagens, que tem como objetivo colaborar com as pesquisas em
História da Educação que se dedicam à história da formação docente. Este trabalho está
inserido na linha de pesquisa de Filosofia e História da Educação, do Programa de Pós-
Graduação em Educação, da Universidade Federal de Pelotas, ligado ao grupo de pesquisa do
Centro de Estudos e Investigações em História da Educação – CEIHE.1
O tema deste texto foca em analisar a relevância das imagens guardadas nos
acervos pessoais de ex-normalistas que estudaram na cidade de Pelotas nos anos de 1957 até
1962. Objetivo, através das imagens selecionadas e guardadas pelas professoras e do
cruzamento com as narrativas, ressaltar a relevância da fonte iconográfica como forte
evocadora das memórias discentes.
A delimitação temporal aqui contemplada compreende o final da década de 1950 e
início da década de 1960. Esse foi o período em que as professoras entrevistadas e que
cederam seus acervos estudaram em Escolas Normais da cidade de Pelotas.
Assim, esta escrita apresenta a contribuição das fontes iconográficas e de acervos
guardados pelas normalistas ao recordarem o tempo em que estavam cursando o Curso
Normal, tecendo algumas considerações sobre suas trajetórias discentes.
Outro ponto relevante é o confronto das imagens, principalmente das fotografias
com as lembranças de um tempo vivido. Essas imagens foram preservadas como lugares de
memória e no cruzamento com as narrativas colaboram para a construção da história de
professoras que dedicaram uma vida inteira à educação.
Penso que a pesquisa, sobre trajetórias discentes de mulheres que se tornaram docentes
em épocas passadas eonde uma das fontes são as imagens guardadas em acervos pessoais,
tende a contribuir nos estudos relacionados à formação de professores nos dias de hoje.
Assim, tendo como referenciais epistemológicos os pressupostos da História
Cultural,fundamento este trabalho em autores que auxiliam na compreensão dos
objetivos propostos.

* Mestre em Educação, Doutoranda do Programa de Pós-Graduação em Educação da Universidade Federal de


Pelotas (PPGE/fae/ufpel), na linha de Pesquisa de Filosofia e História da Educação.
1 Este texto é parte de uma pesquisa de doutoramento em andamento, que tem como título “A formação e
a atuação de egressas das Escolas Normais São José e Assis Brasil em Pelotas, RS – sob a égide das políticas
educacionais do governo de Leonel Brizola – 1959/1963: narrativas e trajetórias”, em que faço uma investigação
sobre as trajetórias docentes e discentes das normalistas que se formaram, nos anos de 1960, 1961 e 1962, nas
Escolas Normais Assis Brasil e São José, em Pelotas, no contexto das políticas educacionais do governo de
Leonel Brizola, no Rio Grande do Sul.
Para tanto, abordo o estudodas imagens evocadoras de memórias, referenciando
Saturnino (2005), Borges (2003), Fabris (1998), Mauad (2015), Kossoy (2002 e 2003), Chaui
(1999) e Burke (2017). Para o trabalho com a memória, Halbwachs (2003), Bosi (2004), Candau
(2011) Chartier (2001 e 2009), Burke (2004 e 2005) e Perrot (2005 e 1989). Quanto à História
Cultural e Oral cabe referir, Thompson (1992), Le Goff (1993) e Ferreira e Amado (1998).
Apresento a seguir, portanto, explorando as memórias das trajetórias de algumas discentes,
através das imagens evocadoras de memória e das escritas de si, a contribuição de acervos pessoais
para a constituição das lembranças do tempo de estudantes do Curso Normal.

Ressalto que o conceito de imagens evocadoras de memória tem se destacado nas novas
investigações e vem ganhando espaço nas pesquisas que trabalham com a metodologia da História
Oral e nos estudos biográficos. Em Burke (2017), o autor indica que as imagens permitem uma
visita ao passado de “forma mais vívida”.
Isso ocorre com os narradoresnas entrevistas, onde acabam revelando os fatos conforme as
lembranças são evocadas. Neste artigo, busco mostrar a importância do significado das relações
existentes entre a observação de uma imagem e o processo de recordação que ela ocasiona, ou seja,
a contribuição desta prática de rememoração para a pesquisa histórica.
As fontes da pesquisa, sejam elas imagens, narrativas ou documentos escritos, contribuem
sobremaneira na construção do trabalho do investigador, auxiliando no questionamento do processo
de produção da escrita. Como alerta Ragazzini:

A fonte provém do passado, é o passado, mas não está mais no passado quando é
interrogada. A fonte é uma ponte, um veículo, uma testemunha um lugar de verificação,
um elemento capaz de propiciar conhecimentos acertados sobre o passado. As fontes
permitem encontrar e reconhecer: encontrar materialmente e reconhecer culturalmente a
intencionalidade inerente ao seu processo de produção. Para encontrar é necessário
procurar e estar disponível ao encontro: não basta olhar, é necessário ver. Para reconhecer
é necessário atribuir significado, isto é, ler e indicar os signos e os vestígios como sinais
(RAGAZZINI, 2001, p. 14, grifo da autora).

Nesse processo, o uso das imagens é uma importante referência, ao permitir que se reavive
a lembrança individual do entrevistado. Segundo Burke:

O uso de imagens, em diferentes períodos, como objetos de devoção ou meios de


persuasão, de transmitir informação ou de oferecer prazer, permite-lhes testemunhar
antigas formas de religião, de conhecimento, crença, deleite etc. Embora os textos também
ofereçam indícios valiosos, imagens constituem-se no melhor guia para o poder de
representações visuais nas vidas religiosa e política de culturas passadas (BURKE, 2017,
p. 24).

No trabalho de pesquisa, importantes fontes, tais como entrevistas, imagens e fotografias,


apresentadas ou encontradas no exame dos acervos pessoais das entrevistadas, nos arquivos ou
bibliotecas escolares e nos periódicos locais, servem para emprestar destaque a fatos históricos
registrados e são evocadores da memória. Como afirma Mauad:

As imagens ─ fotografias, pinturas, mapas, filmes ─ caracterizam-se por documentarem,


tanto as situações que figuram no registro visual, quanto a sua própria fatura como produto
de relações sociais. A análise histórica de imagens convoca para a sua total compreensão
a sociedade que a produziu e consumiu, que a imaginou e arquivou, que a vivenciou e
esqueceu (MAUAD, 2015, p. 106).

O conjunto de imagens de uma determinada instituição ou de um grupo, assim, é revelador


das características temporais de uma determinada época e dos valores disseminados pelas trajetórias
de pessoas que vivenciaram juntas certas experiências. No caso desta investigação, trata-se do
período escolar das professoras que estudaram no final da década de 1950 e início da década 1960.
Neste sentido, é essencial atentarmos para a discussão e a crítica de Burke (2004) sobre o
uso da imagem para a compreensão de épocas já vividas, como “indícios” históricos legítimos e
dignos de uma análise minuciosa e apurada. Para o autor, a imagem emerge como um recurso na
reconstrução do passado, mas é preciso ter o cuidado com as “armadilhas” que estas fontes visuais
podem gerar.
O autor explana que “as imagens são muitas vezes ambíguas ou polissêmicas” (2004,
p.234), alertando os historiadores, dessa forma, para os perigos decorrentesdo uso das imagens
como fonte.
Efetivamente, deve-se sempre lembrar que as fotografias são envolvidas por uma série de
intenções não reveladas,

[...] deve-se levar em conta que, para analisar a significação da imagem, é importante
reconhecer que esta se encontra permeada por uma série de construções e
intencionalidades, especialmente no que tange a sua produção. Fotografias nascem de
necessidades e de interesses. A sua produção está condicionada a seleções e escolhas. São
grupos sociais ou pessoas determinadas que as requerem. (OLIVEIRA, 2012, p. 38).

No decorrer da realização da pesquisa e durante as visitas nas casas das entrevistadas, tive
contato com imagens do seu tempo de normalistas, do pátio da escola, das salas de aula, dos
trabalhos realizados e de alguns eventos destacados como relevantes pelas professoras. Percebi as
escolhas e as seleções que cada uma faz na produção de seu arquivo pessoal. Algumas fotografias
são arquivadas como verdadeiras relíquias.
Duas das professoras entrevistadas ainda mantinham em seus acervos pessoais um álbum
de fotografias organizado de forma cronológica, desde o início do Curso Normal até o
encerramento, com a cerimônia de formatura.
Nos álbuns, algumas imagens se repetiam de forma constante, como as fotografias das
exposições de trabalhos produzidos pelas alunas durante o Curso Normal, no final da década de
1950. Tais imagens, quando visualizadas pela entrevistada, suscitavam a recordação daquele
momento e ficava evidente a relevância do evento.
A partir da observação da fotografia surgia, então, o depoimento com ar saudosista. A
imagem que apontava para a exposição dos trabalhos escolares demonstrou, através da memória,
que a prática das exposições se tornou um evento importante na trajetória acadêmica das estudantes,
e era valorizada como um dos momentos marcantes de cada fechamento de semestre ou disciplina.
Veja-se o relato da professora Vera Maria Moreira Lima, que se formou em 1960, na Escola
Normal São José:
Porque, sabe o que acontecia? A gente tinha aula de manhã. E de tarde a gente tinha que
fazer um monte de material, álbum seriado, etc. Na época não tinha data show, essas
coisas. Então, a gente ia para aula de manhã e de tarde se reunia das duas às cinco horas
da tarde preparando esses materiais. Depois, tinha até exposição no colégio. Então, lá em
casa mesmo, a gente se reunia, a gente juntava pauzinho de picolé, tampinha para dar
noção de número, tudo isso aí nós produzíamos... (Vera Maria Moreira Lima, 08 set.
2014).

Nos acervos, as fotos nos revelam que, além das exposições, as alunas guardavam imagens
das salas de aula, dos recreios, das aulas de Educação Física e das datas que consideravam mais
significativas.
Na visão de Souza (2001, p. 79), “As fotografias escolares constituem um gênero de
fotografias muito difundido, a partir do início do século XX”, e elas acabam contribuindo no ato de
rememorar um tempo de escola. Diante da imagem da exposição dos trabalhos escolares, ao mostrar
esta fotografia, a aluna recorda com emoção que “esta mesa de centro aqui foi feita por mim e por
uma colega de aula” (Lúcia Helena Brauner Machado, 24/04/2015), ressaltando o valor do trabalho
manual das futuras professoras.
Conforme já foi referido, anteriormente, foram disponibilizados para a pesquisa dois álbuns
de fotografias e de recordações do tempo de estudantes: o álbum de fotografias e recordações da
depoente Lúcia Helena Brauner Machado, que estudou na Escola Normal São José, e o da
professora Heloísa Maksude Mecherefe, que fez o seu curso na Escola Normal Assis Brasil.
Em ambos os álbuns, as professoras fazem uma seleção de imagens, organizadas em uma
ordem cronológica dos acontecimentos, inserem datas nas páginas dos mesmos e, por vezes, são
escritas de próprio punho algumas frases empregando títulos às fotografias expostas. Isso
demonstra a escolha e o destaque de uma determinada imagem em detrimento de outra, o que
denota que as imagens, assim como as memórias, também passam por um processo de seleção.
Para Oliveira (2012), ao usar as imagens fotográficas como fonte de uma pesquisa, é
necessário ficar atento para o que é revelado em seu conteúdo e o que se encontra oculto. Constato
em alguns textos sobre essa temática que é dado destaque ao caráter de montagem e seleção da
fonte iconográfica:
Na imagem, o mundo ganha bordas, limites impostos pela tecnologia da reprodução
fotográfica. Logo, fotografia é reprodução e representação. Reprodução, pois a fotografia
capta uma cena que é reproduzida; representação, porque tal cena é uma escolha e, dessa
forma, relaciona-se a uma série de escolhas que levam ao seu resultado final. (OLIVEIRA,
2012, p. 37).

Além desses álbuns descritos, anteriormente, fotografias avulsas, boletins, emblemas das
escolas, carteiras de estudantes e outros guardados foram também disponibilizadas pelas
entrevistadas. Para Mauad (2015), a imagem nos provoca, tanto que confundimos as ações de ver
e de pensar. Concordo com a autora, pois quando estamos diante de uma fotografia, postal ou até
mesmo de uma obra de arte, que são evocativas de uma forma de ser, nossa percepção fica aguçada,
o que leva a uma contemplação emocional.
Ainda, de acordo com a autora, a imagem não é isolada de seu tempo ou de seu contexto:

A compreensão de imagens requer um aprendizado cultural que, no limite, permite


reconhecer em uma fotografia não a realidade em si mesma, mas a sua
(re)apresentação. Tal operação, por mais simples que pareça, implicará num exercício
de ver e reconhecer o que se vê por meio de operações conceituais: uma imagem
bidimensional onde apareço, soprando as velinhas dos meus cinco anos é denominada
fotografia. Tal aprendizado se processa num ambiente cultural historicamente
determinado, seguindo regras de codificação definidas segundo as práticas sociais de
produção de sentido (MAUAD, 2015, p. 84).

Cada imagem revela um contexto. Segundo Kossoy (2003, p. 74), “As fotografias, como
todos os documentos, monumentos, e objetos produzidos pelo homem, têm atrás de si uma
história”, e estas revelações das fontes iconográficas enriquecem a investigação dos fatos e suscitam
as narrativas.
No mesmo caminho, as imagens também serviram de base para a contextualização de
alguns acontecimentos importantes. O uso da fotografia, além de ilustrar, se torna significativo ao
preservar a imagem intacta do acontecido e remontar à sociedade de determinada época e local,
evocando, ainda, a memória e provocando o processo de apropriação do passado.
Na visão de Burke (2017, p. 25),“[...] imagens, assim como textos e testemunhos orais, são
uma forma importante de evidência histórica. Elas registram atos de testemunho ocular”.
A imagem é uma provocadora de lembranças. Para Chaui (1999, p. 33), “olhar é, ao mesmo
tempo, sair de si e trazer o mundo para dentro de si”. Através dos olhos avaliam-se as imagens que
estão diante de si e, por isso, elas são capazes de fazer lembrar, mesmo que nesta memória possam
existir as representações de um tempo passado. Ao apresentar a Caderneta Escolar da época de
estudante, a professora Maria Lúcia Moraes Dias corrobora o que havia sido narrado na entrevista
da professora Vera Maria Moreira Lima. Ambas afirmavam que, no tempo de estudantes, o rigor e
as punições nas escolas eram intensos.
Nas décadas de 1950 e 1960, os sistemas de regras de organização e de punições eram
rigorosos com as jovens estudantes. A entrevistada Maria Lúcia disponibilizou a caderneta escolar
do ano de 1958, onde eram carimbadas a presença das estudantes nos dias de aula e as eventuais
saídas em horários diversos do regular. A caderneta continha os dados do aluno, filiação, data de
nascimento e uma foto junto ao carimbo da Escola Normal Assis Brasil. Além do controle de
assiduidade e pontualidade, também constavam no documento as regras impositivas na qual as
alunas deveriam seguir.
Uma dessas regras, por exemplo, consistia em que não seria permitido aos alunos que não
estivessem devidamente uniformizados assistir às aulas.
As dinâmicas institucionais são expostas através dos acervos particulares e das narrativas
das alunas, evidenciando, assim, uma organização entre as relações que são mantidas dentro dos
educandários e que dão suporte para desvendar a cultura escolar vivenciada no tempo de estudantes.
Em Saturnino (2005), constato que a imagem pode ser uma grande auxiliar no processo de
construção da memória, contribuindo nas pesquisas em História da Educação. No cruzamento com
as narrativas e as escritas de si, as imagens merecem um papel de destaque, visto que aguçam a
memória no momento da tomada dos depoimentos, conforme vislumbro na narrativa da professora
Heloísa Maksude Mecherefe:

Olha aqui, eu peguei meus álbuns que aí a gente vai lembrando. Comecei em 1957 meu
curso do magistério aqui. Nós participávamos muito de todas as atividades cívicas e
culturais. Nesse dia, nós estávamos comemorando o Dia do Pan-Americanismo (Heloisa
Maksude Mecherefe, 27 ago. 2015).

A aluna fazia referência a uma imagem colada no álbum de retratos que revelava a reunião
das normalistas no orfeão da Escola para o ato solene do Dia do Pan-Americanismo. A fotografia
exalta a relevância do evento, sendo que no alto, atrás das alunas, estão as bandeiras representando
cada país da América, enquanto as estudantes uniformizadas traziam na mão pastinhas que
provavelmente continham o rito a que estavam acompanhando naquele momento. A memória da
entrevistada foi certamente evocada através do olhar sobre a imagem.
As autoras Mignot (2001) e Michelon (2008) mencionam o caráter memorialístico das
imagens, esclarecendo que em um contexto de História Oral, a fotografia torna-se um importante
evocador de memória.
Entretanto, ao usar as imagens como evocadores da memória, é importante atentar para o
alerta de Borges (2003). A autora ressalta que apesar do que está oculto na “chamada câmera
lúcida”, ainda assim existe uma aura de encantamento nas fontes fotográficas, fazendo com que as
lembranças fiquem romanceadas.
Cabe referir que em toda a pesquisa é realizada uma seleção de imagens, seja pelo
pesquisador, que investiga os fatos, seja pelo entrevistado, que detém a posse do acervo. Isso não
desqualifica a fonte, que, através do seu cruzamento com as narrativas, revela a cultura e as
vivências de uma época e de determinado grupo social.

A partir do objetivo levantado na introdução deste trabalho, que privilegia destacar a


relevância do uso das imagens preservadas nos acervos pessoais de um grupo de ex-normalistas
que estudaram na cidade de Pelotas, no final da década de 1950 e início da década de 1960, fazendo
um cruzamento com suas narrativas, é importante trazer algumas considerações levantadas pela
escrita do presente artigo.
Evidencio que as imagens manuseadas e apresentadas durante as entrevistas contribuíram
sobremaneira para que fossem revelados momentos vivenciados, durante a formação discente das
normalistas. Observo que muitas das recordações narradas foram aguçadas a partir da visualização
de uma fonte iconográfica.
Ficou claro que tanto as fotografias como outros guardados que as professoras possuíam em
seus acervos pessoais auxiliaram na construção da história do tempo de estudantes dessas
professoras, hoje aposentadas.
Saliento que esta foi uma leitura sobre a análise da relevância dos acervos pessoais na
pesquisa em que se rememora um tempo de estudantes, mas tenho consciência que em todo o
trabalho acadêmico novas questões surgem a partir da visão de outros pesquisadores.
Novos caminhos poderão ser apontados a partir de outro olhar sobre o objeto com uma nova
interpretação das fontes, dado o caráter flexível das pesquisas. Mediante novas investigações sobre
os acervos pessoais aqui examinados, novas perspectivas poderão ser manifestadas.

BORGES, Maria Eliza Linhares. História & fotografia. Belo Horizonte: Autêntica, 2003.

BOSI, Ecléa. O tempo vivo da memória. 2. ed. Cotia, SP: Ateliê Editorial, 2004.

BURKE, Peter. Testemunha ocular: história e imagem. Bauru: Edusc, 2004.


_____. O que é História Cultura? Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2005.

_____. Testemunha ocular: o uso de imagens como evidência histórica. São Paulo: Unesp, 2017.

CANDAU, Joël. Memória e identidade. São Paulo: Contexto, 2011.

CHARTIER, Roger. A história entre narração e conhecimento. In: PESAVENTO, Sandra


Jatahy (Org.). Fronteiras do milênio. Porto Alegre: Ed. da UFRGS, 2001.

_____. A História ou a leitura do tempo. Belo Horizonte: Autêntica, 2009.

CHAUI, Marilena. Janela da Alma, espelho do mundo. In: NOVAES, Adauto. O olhar. São
Paulo: Companhia das Letras, 1999, p. 31-63.

FERREIRA, Marieta de Moraes; AMADO, Janaína (Coord.). Usos e abusos da História Oral.
Rio de Janeiro: Fundação Getúlio Vargas, 1998.

FABRIS, Annateresa (Org.). Fotografia: usos e funções no século XIX. São Paulo: Edusp,
1998.

HALBWACHS, Maurice. A memória coletiva. São Paulo: Vértice, 2003.

KOSSOY, Boris. Realidade e ficções na trama fotográfica. 3. ed. São Paulo: Ateliê Editorial,
2002.

_____. Fotografia e História. São Paulo: Ateliê Editorial, 2003.

LE GOFF, Jacques. A história nova. 2. ed. São Paulo: Martins Fontes, 1993.

MAUAD, Ana Maria. Usos e funções da fotografia pública no conhecimento histórico


escolar. História da Educação [online]. Porto Alegre: v. 19, n. 47, p.81-108, set/dez., 2015.

MICHELON, Francisca. Introdução: Fotografia para guardar, colecionar e tentar não


esquecer... In: MICHELON, Francisca; TAVARES, Francine (Org.). Fotografia e memória:
ensaios. Pelotas: Ed. UFPEL, 2008, p. 7-16.

MIGNOT, Ana Chrystina. Eternizando a imagem pioneira. In: ALVES, Nilda; SGARBI,
Paulo (Org.). Espaços e imagens na escola. Rio de Janeiro: DP&A, 2001, p.73-86.

OLIVEIRA, Maria Augusta Martiarena. Instituições e práticas escolares como representações


de modernidade em Pelotas (1910-1930): imagens e imprensa. Tese (doutoramento) ─
Universidade Federal de Pelotas. Programa de Pós-Graduação em Educação. 403f. 2012.
_____. Práticas da memória feminina. Revista Brasileira de História, v. 9, n 18, p. 9-18,
ago/set1989.

RAGAZZINI, Dario. Para quem e o que testemunham as fontes da História da Educação? Trad.
Carlos Eduardo Vieira. In: Educar em Revista, n. 18, Curitiba, PR: Ed. da UFPR, p. 13-28, 2001.

SATURNINO, Edison Luiz. Imagem, memória e educação: um estudo sobre modos de ver e
lembrar. Dissertação (Mestrado) ─ Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Programa de Pós-
Graduação em Educação, Porto Alegre, f. 269, 2005.

SOUZA, Rosa Fátima de. Fotografias escolares: a leitura de imagens na história da escola primária.
In: Educar em Revista, n. 18, Curitiba, PR: Ed. da UFPR, p. 75-101, 2001.

THOMPSON, Paul. A voz do passado: História Oral. 3. ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1992.

PERROT, Michelle. As mulheres ou o silêncio da história. Bauru: EDUSC, 2005.

DIAS, Maria Lúcia Moraes. Entrevista concedida a Maria Cristina dos Santos Louzada.
Pelotas, 06/07/2016.

LIMA, Vera Maria Moreira. Entrevista concedida a Maria Cristina dos Santos Louzada.
Pelotas, 08/09/2014.

MACHADO, Lúcia Helena Brauner. Entrevista concedida a Maria Cristina dos Santos
Louzada. Pelotas, 24/04/2015.

MECHEREFE, Heloísa Maksude. Entrevista concedida a Maria Cristina dos Santos


Louzada. Pelotas, 27/08/2015.
Dóris Bittencourt Almeida
Julia Tomedi Poletto

A escolha por pesquisar um Banco de Memória e produzir um artigo para o


IX Encontro Regional Sul de História Oral se deu, basicamente, por dois motivos.
Primeiro, pela implicação nesse assunto como pesquisadoras, ou seja, nossa
aproximação com a metodologia da História Oral nas investigações que produzimos nos
últimos anos.1 Segundo, pelo recente contato que tivemos com o Arquivo Histórico
Municipal João Spadari Adami (AHMJSA) e, portanto, por descobrirmos a presença desse
interessante Banco de Memória.
Alguns estudos anteriormente feitos sobre Acervos de História Oral instigaram
esse olhar atento para o Banco de Memória em questão. Com algumas visitas ao AHMJSA, já
foi possível vislumbrar a possibilidade de estudo em torno desse acervo.
Sendo assim, a presente pesquisa tem como objeto de análise o Banco de Memória Oral
do Arquivo Histórico Municipal João Spadari Adami, localizado em Caxias do Sul/RS. O
Arquivo Histórico foi criado em 1976 e funcionou anexo ao Museu Municipal até 1996.
Em 1997, o AHMJSA passou a funcionar na edificação atual, situada na Rua Julio de
Castilhos, em um prédio que foi tombado como Patrimônio Histórico e restaurado.2 O
nome do Arquivo Histórico João Spadari Adami é uma homenagem a um historiador caxiense
que, segundo site da Prefeitura de Caxias do Sul, contribuiu para “[...] o resgate e a preservação
da história local”.
Atualmente, o Arquivo Histórico conta com setores de Arquivo Público, Arquivos
Privados, Banco de Memória, Fototeca, Hemeroteca e Biblioteca. Nessa investigação,
sinalizaremos o percurso histórico do Banco de Memória, sendo esse o nosso interesse de
estudo, a fim de entendermos como esse acervo se constituiu: quem foram os idealizadores,
quais foram as condições para a criação do acervo, como se produziram as entrevistas (escolha
dos entrevistados, existência de roteiro, diário de campo).
Inserida no campo da História da Educação, essa pesquisa discute a legitimidade de
espaços como esse acervo, o qual preserva memórias de homens e mulheres da cidade de
Caxias do Sul.

* Professora do PPGEDU/UFRGS. Doutora em Educação.


** Doutoranda em Educação pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS).
1 Tanto a dissertação de Mestrado de Julia Tomedi Poletto como a Tese de Doutorado de Dóris Bittencourt
Almeida adotaram,como metodologia, a História Oral.
2 Maiores informações sobre o Arquivo Histórico Municipal João Spadari Adami estão disponíveis em: PRUX,
Elenir a Inês; TRONCA, Tadiane. Arquivo Histórico Municipal João Spadari Adami: uma trajetória de
parcerias. Informação Arquivística, Rio de Janeiro, v. 3, n. 2, p. 70-86, jul./dez., 2014. Prefeitura Municipal
de Caxias do Sul. Site: <https://www.caxias.rs.gov.br/cultura/texto.php?codigo=360> Acesso em: 15/04/2017.
Cientes da possibilidade de pesquisas historiográficas por meio desse Banco de Memória,
analisaremos as potencialidades desse local, promovendo a interlocução das reflexões em torno dos
acervos, da memória e da História Oral.

Problematizar a constituição de um acervo de História Oral demanda compreender o percurso


histórico dessa metodologia. De acordo com Amado e Ferreira (1996), a introdução da História
Oral no Brasil aconteceu em 1970. No entanto, apenas nos anos 1990 conseguiu se expandir,
especialmente com a criação da Associação Brasileira de História Oral, em 1994.
Com esse boom da História Oral no país, na década de 1990, a constituição de acervos orais
foi intensa. Algumas pessoas envolvidas com a constituição e a manutenção de acervos orais
acreditavam que a História Oral era uma técnica, a qual envolvia a experiência de realização de
entrevistas com gravações e transcrições.
Outros pesquisadores entendiam a História Oral como disciplina, alegando, inclusive, a
impossibilidade de desvincular um corpus teórico dela, porém apresentavam aparente dificuldade
de sistematizarem suas ideias sobre História Oral, como disciplina, e manterem um ponto de vista
em comum (AMADO; FERREIRA, 2012, p. 13-15).
Entendendo a História Oral como metodologia, a qual opera o diálogo entre teoria e os dados
empíricos para construir conhecimentos do passado (GRAZZIOTIN; ALMEIDA, 2012),
compreendemos a constituição dos acervos orais como um desafio para quem se arrisca a criá-los
e mantê-los. Afinal, trabalhar com História Oral exige conhecimento, sensibilidade e fôlego.
Quando pensamos em trabalhar com História Oral nos aproximamos do conceito de
memória. Para Antoinette Errante (2000, p. 162), “nossa memória permite-nos lembrar quanto
esquecer.”. Nesse jogo de lembranças e de esquecimentos, quem trabalha com acervos orais precisa
estar disposto a viver essas aproximações com a memória, na certeza de que quem rememora
produz intenções de verdade sobre o que viveu. Desse modo, o ato de lembrar e o ato de esquecer
são constantes, pois são escolhas sobre o que se quer produzir sobre o vivido.
Pensando na constituição de espaços que utilizam a metodologia da História Oral e entendem
a memória como documento, percebemos a validade e a riqueza desses acervos “guardiões de
memórias”. Mesmo com a impossibilidade de alcançar aspectos que se tornam valiosos para um
pesquisador no decorrer do trabalho com a História Oral, como a organização do roteiro, o contato
com o entrevistado e a própria realização da entrevista, ter a oportunidade de trabalhar com acervos
orais representa essa aproximação com memórias de outros tempos, de sujeitos que provavelmente
não teriam deixado seu testemunho se alguém não tivesse feito esse esforço de produzi-los.
Sabemos da ausência desses momentos ímpares do trabalho com entrevistas: a relação entre
entrevistador e entrevistado, as formas de expressão durante a entrevista (olhares, suspiros, risadas,
silêncios), a produção de um diário de campo, a retomada da entrevista quando novas perguntas
emergem, etc. Todavia, mesmo com essas ausências, compreendemos o acervo oral como um
espaço possível de produção historiográfica, que permite a transformação das narrativas de
memórias em documentos. Nada está pronto em um acervo de História Oral.
As entrevistas disponíveis são mecanismos que possibilitam a construção de conhecimento
por meio das amarras, dos garimpos feitos, do exercício de investigação necessário, que teoriza
aquilo que se apresenta, tornando o estudo plausível e possível. Dessa forma, reconhecemos esses
acervos como lugares de pesquisa, de investigação e de trabalho árduo, os quais merecem ser
estudados, como é o caso do Banco de Memória do AHMJSA.

Todo lugar, tomado geográfica ou socialmente, tem um passado.


(GRAZZIOTIN; ALMEIDA, 2012, p. 21).

Os lugares têm passado e têm muito que dizer. São passados que sofrem interferências,
compostos por grupos, por práticas e por recordações. Locais de comunidades, alimentados pelas
necessidades da época e pelas situações de determinado tempo.
Esses lugares, como as cidades, são profícuos ambientes de investigação histórica. Pensando
nessas possibilidades, podemos inferir que o Banco de Memória do Arquivo Histórico Municipal
João Spadari Adami se constituiu com essa perspectiva: preservar a memória da cidade de Caxias
do Sul.
Mesmo não tendo um projeto escrito e sistematizado, pela entrevista3 feita com
a responsável atual do acervo, Sonia Mary Storchi Fries, torna-se compreensível a maneira
como esse Banco de Memória foi criado. Em 1980, o Banco de Memória foi criado por
Liliane Alberti Henrichs, que era formada em História e trabalhou por algum tempo em
um jornal da cidade, levando, inclusive, esse espírito de jornalista para dentro do arquivo.
Naquele período, a criação do acervo foi considerada relevante por buscar
preservar a memória de descendentes de imigrantes, a fim de compreender como o município
de Caxias do Sul se constituiu, desde os tempos de colonização.

[...] como tinha muitas pessoas idosas que nasceram, que foram os primeiros descendentes
de imigrantes nascidos aqui, deu pra Liliana resgatar a história da imigração. Porque esses
imigrantes deixaram a Itália, como foram esses primeiros momentos, etc. Então, são
depoimentos muitos preciosos de pessoas nascidas em 1890, 1893, e também de pessoas
que tinham uma memória da cidade. Então seriam pessoas, por exemplo, que viram a
inauguração da estrada de ferro, as cerimônias que tinham quando Caxias foi levada à
condição de cidade, como era a cidade naquele período, etc. (Sonia Mary Storchi Fries,
2017).

3 Entrevista concedida em 30 de março de 2017 para Julia Tomedi Poletto.


Com essa intenção inicial de entrevistar pessoas idosas que participaram da construção da
cidade, o acervo de História Oral, chamado de Banco de Memória, foi criado. Para se ter uma ideia,
a primeira entrevista feita é de 1980, da Dona Aurora Pezzi Ungaretti, que morava no centro,
quando criança e, portanto, tinha lembranças desse centro da cidade.
Em 1983, Sonia Mary Storchi Fries começou a trabalhar na Fototeca do AHMJSA. Formada
em História e Filosofia, Sonia atuou no Arquivo Histórico, na área da fotografia, por meio de um
projeto que buscava preservar a história dos antigos fotógrafos da cidade: as fotografias feitas, os
familiares e as pessoas que haviam sido fotografadas. Através desse projeto, Sonia passou a
entrevistar essas pessoas e, portanto, contribuiu com o Banco de Memória.
Não havia um critério para escolha de quem seriam os entrevistados. No entanto, o contexto
da época e também os projetos que eram produzidos acabavam orientando a escolha dos
entrevistados. Um dos exemplos é o próprio projeto da Fototeca, conduzido por Sônia, que
atualmente é a responsável pelo arquivo. Por meio desse projeto, a responsável procurava pessoas
que tivessem alguma relação com os fotógrafos da cidade para serem entrevistadas.

Esse era um dos projetos ligados à memória oral. [...] A não ser esse projeto ligado à
fotografia, não tinha um projeto específico para as pessoas que a gente entrevistava. A
gente, na época, por influência, pela relação que a Liliana tinha com a imprensa, a gente
conseguiu um espaço no Jornal Pioneiro que se chamava Página Memória. Esse trabalho
foi fantástico porque todos os sábados saía uma matéria, às vezes duas páginas e às vezes
uma página, sobre aspectos da história de Caxias, vários temas. [silêncio] E isso durou
mais de cinco anos. Eram pesquisas semanais e, muitas vezes, a gente não tinha
informação, por isso a gente tinha que buscar na memória. Assim, a gente fez muita
entrevista também pra essas Páginas Memórias. (Sonia Mary Storchi Fries, 2017).

A partir da fala de Sonia, é possível compreender que este acervo não se constituiu por meio
de um único tema ou de um grupo específico. Sendo o propósito do Banco de Memória preservar
as lembranças de Caxias do Sul, as variadas temáticas exploradas permitiram que esse acervo se
constituísse na pluralidade de assuntos, de pessoas e de períodos históricos.
Contudo, pela proposta inicial do lugar e, mesmo depois, pelas entrevistas produzidas ao
longo dos anos, podemos perceber um pertencimento étnico nas entrelinhas das entrevistas. A
predominância de descendentes italianos deixou marcas, inclusive na forma como esse Banco de
Memória se constituiu. Claro está que o acervo em questão não foi originado por um grupo de
imigrantes (ou descendentes de imigrantes) italianos e também não teve como objetivo exclusivo
trabalhar com memórias desses sujeitos. No entanto, temáticas envolvendo a imigração, assim
como lembranças voltadas às crenças e aos costumes italianos, independente do assunto da
entrevista, demonstram esse aproximação com as questões étnicas.
Nesse sentido, “o fundamental é que se entenda o étnico como um processo e não como um
dado resolvido no nascimento. Constrói-se nas práticas sociais em um processo de relação. ”
(KREUTZ, 2003, p. 85). Considerando o trabalho produzido, a escolha dos entrevistados e também
a recordações desses sujeitos, as quais envolveram modos de viver, de aprender e de conviver
vinculados com seus costumes na Itália, inferimos que o Banco de Memória do AHMJSA também
se tornou um espaço de aproximações étnicas, ou seja, carrega consigo pertencimento étnico.
Além dessas questões étnicas levantadas através da análise da constituição do acervo, a
mudança da gestão desse local também trouxe algumas modificações nos processos de
funcionamento. Em 1991, Sonia assumiu o Banco de Memória, sendo responsável até hoje por esse
acervo de História Oral. De acordo com a entrevistada:

Eu entrei no arquivo em 1983 e comecei a acompanhar a Liliana nessas entrevistas. Então,


minha primeira entrevista foi com o seu José Zambon, que era um cantareiro, que são essas
pessoas que trabalham em pedra, no basalto. Ele era um artista (Sonia Mary Storchi Fries,
2017).

Como mencionado anteriormente, não havia um assunto específico em que as entrevistas


eram feitas. Pela criação do acervo estar vinculada à constituição da cidade de Caxias, as temáticas
que envolviam o município se tornavam relevantes e, portanto, acabavam sendo utilizadas para a
escolha dos sujeitos a serem entrevistados. Movimentos sindicais, história dos bairros, eventos da
Igreja, presos políticos e imigração foram alguns dos assuntos que emergiram pequenos projetos
dentro do arquivo, possibilitando a realização de entrevistas e, consequentemente, a preservação da
memória de pessoas envolvidas com essas situações.
As práticas e os movimentos da cidade conduziam (e até hoje orientam) a escolha das
pessoas a serem entrevistadas. “Como as sociedades recordam? Por que recordam? Como
rememoram ou esquecem” (GRAZZIOTIN; ALMEIDA, 2012, p. 21) são questionamentos
relevantes para essas memórias presentes no acervo, imbuídas de lembranças e de esquecimentos,
armazenadas em fitas K7, sendo posteriormente transcritas e disponibilizadas para quem tinha
interesse em pesquisar.
Cabe salientar que, de 1980, data da criação do acervo, até 1991, período em que Sônia se
tornou responsável pelo Banco de Memória, 160 entrevistas haviam sido produzidas. As
recordações de Sônia sobre o começo de sua gestão nesse local traduzem um pouco do percurso
histórico da metodologia de História Oral no Brasil, inclusive as influências que os historiadores
orais tiveram na época, como a Fundação Getúlio Vargas.

Quando eu assumi o Banco, eu vi que tinha, na época, cerca de 160 entrevistas. Daí eu
comecei a estudar, por minha conta, uma metodologia de História Oral. Li muito e, naquilo
que eu li, o que me ajudou muito foi a metodologia usada pela Fundação Getúlio Vargas.
Então, eu segui e adaptei essa metodologia ao nosso Banco de Memória. Daí o Banco de
Memória começou a ter uma metodologia. Peguei desde a primeira fita que tinha sido
gravada e comecei a transcrever tudo. Eu transcrevi tudo. Hoje a gente tem cerca de 1.200
entrevistas. Todas as entrevistas eu li, transcrevi, revisei, fiz sumário, botei na base de
dados, e fui fazendo entrevistas. Praticamente, 95% dessas entrevistas estão transcritas,
processadas e disponíveis para pesquisa. (Sonia Mary Storchi Fries, 2017).

Anteriormente ao ano de 1991, as entrevistas eram transcritas sem um padrão ou alguns


critérios em comum. Nem tudo o que era gravado, era transcrito. As escolhas eram feitas pelas
próprias entrevistadoras, que também faziam esse processo de transcrição. Após a adaptação do
acervo feita por Sonia, inspirada na metodologia assumida pela Fundação Getúlio Vargas, as
transcrições das entrevistas foram (e continuam sendo feitas) de modo integral (no sentido de não
ser um processo tão seletivo como nos anos anteriores, em que apenas o que era “importante” pela
óptica das entrevistadoras, era transcrito). Todavia, mesmo sendo feita “integralmente”, realçamos
a compreensão de que durante o processo de transcrição a memória dos entrevistados também passa
por rupturas e transformações. Afinal, desde uma palavra omitida, até a ausência de olhares, das
pausas ou das respostas ofegantes, a escrita do que foi rememorado traz uma nova forma de
compreender as lembranças e os esquecimentos.
Essas inovações feitas no acervo podem ter sido ocasionadas pela mudança de gestão, mas
também estão relacionadas ao período em que a História Oral se difundiu no Brasil como
metodologia, o que justifica essas novas práticas assumidas neste lugar, as quais serão destacadas a
seguir.

Se lembramos, é porque os outros, a situação presente, nos fazem lembrar [...].


(BOSI, 1983, p. 17).

O ato de rememorar está imbuído de ações, tanto do entrevistado (que faz escolhas do que
lembrar e do que esquecer) como do entrevistador, que utiliza estratégias para que esse processo
aconteça. Na situação de um acervo de História Oral, essas práticas também ocorrem, embora quem
utilize esses espaços acabe se concentrado no “produto final”, ou seja, na entrevista transcrita.
Desde a criação do Banco de Memória, alguns processos necessários para que o acervo se
efetivasse foram produzidos e outros acabaram sendo construídos de uma forma mais “espontânea”
(ou “menos programada”). Pensando, por exemplo, na situação da entrevista, o uso de um roteiro e
também de evocadores de memória poderiam ser estratégias pensadas a priori.
No entanto, pela entrevista com a responsável do acervo e pela oportunidade de acompanhar
o trabalho de planejamento e transcrição de entrevistas, percebemos que esses movimentos
emergiram no acervo de forma não planejada. No caso do roteiro, não existem critérios definidos a
serem seguidos em todas as entrevistas. “O roteiro está relacionado com a entrevista que nós vamos
fazer. Então quem produz o roteiro somos nós.” (Sonia Mary Storchi Fries, 2017).
Por mais que não tenha um roteiro “padrão” para o processo de realização de entrevista, pela
leitura de algumas transcrições é possível perceber o uso de questões que se tornaram comuns no
momento de entrevista, como: nome completo, data de nascimento, ascendência e local em que
reside. Reconhecemos que essas informações iniciais no processo de entrevista contribuem para
situar o sujeito entrevistado. Porém, realçamos a pergunta voltada ao aspecto da ascendência para
reforçar nossa percepção em torno de um pertencimento étnico presente nesse acervo, uma vez que
a maioria das respostas se concentra na ascendência italiana.
Mais do que isso, “[...] as lembranças e as imagens dos depoentes estão configuradas de
alguma forma relacionada com o grupo social a que pertencem” (WEIDUSCHADT; FISCHER,
2009, p. 75). Em outras palavras, as lembranças e os esquecimentos dos entrevistados estão
vinculadas às marcas e às influências do grupo de pertencimento, neste caso, italiano.
Além do roteiro, outro movimento possível para quem faz entrevistas se concentra no uso de
evocadores de memória. No caso do Banco de Memória investigado, não são utilizados evocadores
selecionados previamente para as entrevistas. No entanto, as pessoas que são entrevistadas acabam
mostrando fotografias, as quais são aproveitadas pelos entrevistadores. Embora o evocador de
memória não se restrinja ao uso de fotografias, segundo a responsável pelo acervo, esse é o único
recurso que até o momento é aproveitado como “disparador” de lembranças.
Tratando de recursos humanos, verificamos que esse é o processo que tem causado mais
desafios para a manutenção do Banco de Memória do AHMJSA. Encontrar profissionais para
trabalhar nesse espaço e que permaneçam por um período mais longo tem sido uma das maiores
dificuldades de lugar, desde sua constituição. Conforme recordações de Sonia, o período de
permanência de funcionários nesse acervo dura em torno de 2 anos. A rotatividade de pessoas
trabalhando acaba fragmentando o trabalho e, por vezes, atrasando alguns processos, como a
transcrição das entrevistas.
Mesmo com esses percalços, o crescimento do acervo desde 1980 é indiscutível e o número
de entrevistas produzidas revela o potencial desse lugar. Apesar de atualmente trabalhar sozinha no
Banco de Memória, Sonia procura manter as entrevistas atualizadas, sendo que 95% delas já estão
transcritas e disponíveis para os pesquisadores. Tendo dois grandes enfoques: as temáticas variadas
(que dependem do contexto e da situação política, econômica, social e cultural do período) e as
histórias de vida, esse acervo possibilita reminiscências que não poderiam ser encontradas de outro
modo (PRINS, 1992, p. 192).
Até o ano de 2007, as entrevistadas eram gravadas de modo analógico, ou seja, em fitas. A
partir daquele ano, com a entrada do sistema digital, as entrevistas começaram a ser gravadas em
CD, o que também acabou gerando novas configurações para esse acervo e para o processo de
armazenamento das memórias dos sujeitos.
Mesmo com essas mudanças e com a ausência de algumas “formalidades” no acervo, no
sentido de organização, pela quantidade de entrevistas produzidas, reconhecemos o fôlego e o
esforço de quem tem se dedicado a manutenção desse espaço. Mais do que isso, de 1980 a 2007,
período em que o sistema analógico perdurou no Banco de Memória, é notável a mudança de
orientação que esse local adotou, a qual foi acompanhada pelo entendimento e pela vivência da
História Oral como metodologia, refletindo no modo de perceber e de fazer entrevista.
Se no princípio as entrevistas eram feitas de modo aleatório, sem um planejamento mais
sistematizado, com ausência de referências para o modo de entrevistar e transcrever, na década de
1990 essas práticas foram alteradas, tendo como respaldo as discussões que naquele período
emergiram em torno da História Oral. Claro está que outras modificações podem ser feitas nesse
Banco de Memória, como a adoção de um diário de campo, recurso que não é utilizado até o
presente momento.
Todavia, mesmo com essas possibilidades de trabalho, destacamos a potencialidade do
acervo, pelo número de entrevistas, pelas transformações feitas e inspiradas nos estudos acadêmicos
e nas experiências positivas no campo da História Oral, bem como pelo entusiasmo da responsável
pelo Banco de Memória, que traduz seu interesse e profissionalismo ao afirmar que: “Independente
de projeto, o que eu quero mesmo é entrevistar essas pessoas idosas, essas histórias de vida, que
têm muitas coisas legais para falar!” (Sonia Mary Storchi Fries, 2017).

Iniciamos a conclusão desse artigo com a tentativa de reforçar nosso interesse por ser “apenas
o começo” de uma profícua investigação. Afinal, historiar um acervo de História Oral não se
restringe à escrita de um artigo científico. Pelo contrário, possibilita a reflexão sobre os modos de
pensar a História Oral e de se preservar a memória de vozes de outros tempos, resguardadas nesses
locais de pesquisa.
Por meio dessa investigação, reforçamos nossa posição em torno da legitimidade de acervos
de História Oral. Embora as entrevistas feitas em outro momento e já transcritas acabem trazendo
consigo diferentes esquecimentos, no sentido de “perdas” (ausência do contato com o entrevistado,
impossibilidade de retomar a entrevista para novas perguntas, poucos resquícios do momento da
entrevista – os murmúrios, os silêncios, a entonação da voz, os olhares), é inquestionável a
oportunidade que essas entrevistas trazem para os pesquisadores.
Exemplo disso é a possibilidade de escutar pessoas nascidas em 1920, que mesmo já
falecidas, se mantêm vivas pelas memórias deixadas nesses gravadores, fitas K7, CD’s e DVD’s
do acervo. Nesses suportes, as vozes dos sujeitos ecoam para aqueles que desejarem escutá-las e
nos fazem pensar sobre a amplitude do trabalho com História Oral, inclusive como manutenção de
lembranças e de esquecimentos de outros tempos e espaços.
Pensamos nesse acervo – assim como em tantos outros – como um local privilegiado de
História Oral, que pode oferecer muitas possibilidades de investigação. Afinal, trabalhar com
memórias de acervos significa analisar com olhares diferentes, em outras perspectivas, documentos
construídos em outros tempos, ou seja, significa “[...] dar movimento a algo que está em inércia. ”
(GRAZZIOTIN; ALMEIDA, 2012, p. 41).
Não apenas com as entrevistas feitas, mas o próprio Banco de Memória, em si, permite que
novas pesquisas sejam produzidas. O percurso histórico após a digitalização das entrevistas, os
desafios de manter o acervo atualizado e com mão de obra permanente, a frequência e os interesses
das pessoas que utilizam o Banco e tantos outros aspectos são disparadores para novos estudos, a
partir da existência do acervo em questão.
Por esse motivo, essa pesquisa é “apenas o começo” de quem desejar continuar investigando
a História Oral em suas diferentes facetas, assim como fizemos com o Banco de Memória do
AHMJSA. Vida longa aos acervos de História Oral!

AMADO, Janaína; FERREIRA, Marieta de Moraes. Apresentação. In: _____. Usos & abusos da
História Oral. 7.ed. Rio de Janeiro: Ed. da FGV, 1997, p.7-25.

BOSI, Ecléa. Memória e sociedade: lembranças de velhos. São Paulo: T. A. Queiroz, 1979,
reimpressão 1983.

ERRANTE, Antoinette. Mas afinal, a memória é de quem? Histórias Orais e modos de lembrar e
contar. In: História da educação. Pelotas, p.141-174, set. 2000.

GRAZZIOTIN, Luciane Sgarbi S; ALMEIDA, Dóris Bittencourt. Romagem do tempo e recantos


da memória: reflexões metodológicas sobre História Oral. São Leopoldo: Oikos, 2012.

KREUTZ, Lúcio. Diferenças étnicas e educação intercultural: a partir de que entendimento de


etnicidade? Série Estudos: Periódico do Mestrado em Educação da UCDB. Campo Grande/MS,
n. 15, p. 81-92, jan./jun. 2003.

PRINS, Gwyn. História Oral. In: BURKE, Peter (Org.). A escrita da História: novas perspectivas.
São Paulo: Ed. da UNESP, 1992, p. 163-198.

WEIDUSCHADT, Patrícia; FISCHER, Beatriz T. Daut. História Oral & Memória: aportes
teórico-metodológicos na investigação de trajetórias docentes. In: FERRERIA, Márcia Ondina
Vieira; FISCHER, Beatriz Terezinha Daudt; PERES, Lúcia Maria Vaz (Org.). Memórias docentes:
abordagens teórico-metodológicas e experiências de investigação. São Leopoldo: Oikos; Brasília:
Liber Livro, 2009, p. 66-84.
Dóris Bittencourt Almeida
Alice Jacques
Lucas Costa Grimaldi

A casa da escola ainda é a mesma.


Quanta saudade quando passo ali!
Rua Direita, nº 13.
Porta da rua pesada,
Escorada com a mesma pedra
da nossa infância.
Porta do meio, sempre fechada.
Corredor de lajes [...]
À direita – sala de aulas.
Janelas de rótulas
Mesorra escura
Toda manchada de tinta
das escritas.
Altos na parede, dois retratos:
Deodoro, Floriano.
(CORALINA, 1985, p. 75-77).

“Pessoas e escolas têm memórias assentes na tradição oral” (MAGALHÃES, 1999, p. 69).
Petronilha, Neusa, Luiza, João Tadeu e Aldo, quando crianças, todos os dias do ano letivo
percorriam a Rua Esperança, e dirigiam-se ao número 187, um casarão cercado de jardins. Neste
lugar, adaptado para o funcionamento de um Grupo Escolar (G.E), eram estudantes do Curso
Primário, entre os anos de 1948 e 1954. Hoje, contam com mais de setenta anos, e em suas
memórias ecoam fortes lembranças daquela instituição educativa.
Este estudo se propõe a investigar memórias de uma escola de outrora, tendo como corpus
empírico privilegiado narrativas de memória de três mulheres e de dois homens, duas delas negras,
antigos alunos do Grupo Escolar Uruguai. O interesse da pesquisa reside naquilo que foi escolhido
para ser lembrado (BOSI, 1979).“O esforço em ouvir o outro para uma ciência mais humana” foi o

* Professora do PPGEDU/UFRGS. Doutora em Educação.


** Doutora em Educação - PPGE/PUCRS.
*** Doutorando em Educação - PPGEDU/UFRGS.
condutor que permitiu a produção de uma inteligibilidade acerca do que disseram. (SARMENTO,
2003, p. 146).
E qual foi o ponto de partida para a escrita? Um texto autobiográfico (SILVA; PEREIRA,
2011) em que Petronilha e Neusa narram memórias do Grupo Escolar Uruguai. Diante dessas pistas,
percebemos o potencial de buscar outras percepções acerca daquele lugar, apostando que
encontraríamos colegas delas dispostos a serem entrevistados. Localizamos Luiza que indicou os
contatos de João Tadeu e Aldo.
Foi assim que se desenvolveram cinco entrevistas, duas delas em duplas, em que as
memórias de um evocaram as lembranças de outro. Destacamos a legitimidade de conhecer versões
do passado pela oralidade. Como diz Portelli (2016, p. 10), “fontes orais são geradas em uma troca
dialógica, a entrevista: literalmente uma troca de olhares”. É dessa forma que o autor define a
História Oral como uma “arte da escuta”, na qual estão implicadas as complexas relações entre
entrevistador e entrevistado, em que é preciso ter em vista que vivemos em um tempo e as
evocações pertencem a outra temporalidade.
Considerando que aquele que narra, o faz a partir dos lugares de sujeito ocupados no
passado e no presente, apresentam-se os sujeitos da pesquisa.

Quadro 1 – Perfil dos entrevitados


Narradores Curso Curso Secundário Curso Superior Atividade
Primário no Profissional
G.E Uruguai
Petronilha 1949 – 1953 Ginásio e Científico no Curso de Letras/UFRGS Professora
Colégio de Mestrado e Doutorado no universitária
Aplicação/UFRGS PPGEDU/UFRGS
Neusa 1949 – 1953 Ginásio no Colégio Nossa - -
Senhora da Gloria
Luiza 1950 - 1954 Ginásio no Colégio Bom Curso de Pedagogia/UFRGS Funcionária de
Conselho Pós-Graduação em Marketing empresa
Normal no Instituto de multinacional
Educação Flores da
Cunha
João Tadeu 1948 – 1952 Ginásio e Científico no Curso de Medicina/UFRGS Médico
IPA
Aldo 1949 – 1954 Ginásio e Científico no Administração de Empresas, Advogado
Colégio Júlio de Castilhos Administração Pública e
Educação Física/UFRGS
Fonte: elaborado pelos autores.

Ao observar essas informações, vê-se que João Tadeu, Neusa e Luiza continuaram seus
estudos em instituições privadas. João Tadeu e Aldo tinham a intenção de estudar no Colégio Júlio
de Castilhos. 1 Entretanto, o primeiro não foi aprovado no Exame de Admissão ao
Ginásio, diferente de Aldo que concluiu o Curso Científico nesta instituição. Estamos a falar
de uma época em que o ensino público era altamente valorizado pela sociedade. Interessante,
o fato de Petronilha ter ingressado na primeira turma2 do Colégio de Aplicação 3 da
UFRGS, provavelmente influenciada pela mãe, professora do Instituto de Educação
Flores da Cunha, 4 entusiasta da proposta de ensino diferenciada promovida pelo Colégio de
Aplicação. Luiza fez uma trajetória de escola bastante comum às moças de classe média
daquela época. Estudou no Colégio Bom Conselho,5 uma escola católica de moças, e
depois Cursou a Escola Normal no Instituto de Educação, dando continuidade à sua
formação no Curso de Pedagogia. Entre todos, a única que não prosseguiu seus estudos para
além do Curso Ginasial é Neusa; justificou que o casamento e os filhos a impediram de investir
na sua formação. Os sujeitos do presente estudo foram alunos de um Grupo Escolar, que
estava inserido num cenário em que o rural misturava-se com o urbano.

“Nada de bandidagem, nem de malandragem, a Colônia Africana6 era um território


de gente trabalhadora, honesta, correta e que estudava [...]” (SILVA, 2010, p. 76). É assim que
Jaime Moreira da Silva descreve este amplo território negro, ocupado após abolição da
escravatura. Nas primeiras décadas do século XX, era uma região ainda com traços rurais, na
qual os casebres da população negra contrastavam com chácaras e seus palacetes. Neste
sentido, infere-se que o casarão da Rua Esperança, que se transformou em grupo escolar, era,
originalmente, uma residência rural. Entretanto, o processo de urbanização, pouco a pouco,
deslocou os negros para áreas periféricas da cidade e, à medida que o século XX
avançou, novos grupos étnicos ali se estabeleceram, especialmente, judeus. Era uma
região localizada entre os Bairros Bonfim, território dos primeiros judeus da etnia askhenazi7
que chegaram em Porto Alegre, e o Bairro Moinhos de Vento, local de moradia de muitos
alemães.

1 Inaugurado no ano de 1900, nas imediações da Faculdade de Direito do Rio Grande do Sul. Sobre o Colégio
Júlio de Castilhos, ver Lima (1990). .
2 A primeira turma foi composta por trinta alunos, convidados pela diretora Graciema Pacheco, que não haviam
sido aprovados no Exame de Admissão ao Ginásio do Instituto de Educação General Flores da Cunha e do Colégio
Estadual Júlio de Castilhos (LIMA, 2016). .
3 Sobre o Colégio de Aplicação, ver Lima (2016)                                                                  .
4 Sobre a história do Instituto de Educação Flores da Cunha, ver Louro (1986)
5 Fundado pelas Irmãs Franciscanas da Caridade e Penitência, iniciou suas atividades para um público.
exclusivamente feminino, no ano de 1903. Sobre, ver Bom Conselho (2016). .
6 “A Colônia Africana foi o espaço demarcado pelos libertos do regime da escravidão, na área atualmente
denominada Rio Branco, bairro onde se encontram as ruas Cabral (antes Bela Vista), Casimiro de Abreu, Castro
Alves, Mariante e Esperança (Miguel Tostes). Em seus limites estavam os arraiais de São Miguel e São Manoel,
situados além do Campo da Redenção, longe dos limites da cidade” (BARROSO, 2010, p. 29).
 $VNKHQD]LMXGHXRULJLQiULRGD(XURSD2FLGHQWDO 129,16.<5,%(,52*25(167(,1S 
Essas são algumas evidências da formação do Bairro Rio Branco, antiga Colônia Africana,
onde habitava o Grupo Escolar Uruguai, lugar de moradia dos personagens dessa história, quando
eram crianças. Petronilha e Neusa (2016), talvez por ainda residirem no bairro, conseguem traduzir
lembranças significativas da antiga Colônia Africana. Dizem que além de negros e judeus, o bairro
contava com a presença de “poloneses, russos e gente vinda da Argentina”. Petronilha (2016) ainda
mantém a casa de sua família, originalmente de madeira, construída em 1905, na mesma rua em
que estava a escola. Foi lá que nos recebeu para a entrevista. Recorda do ambiente interiorano no
bairro, em que todos se conheciam.
A pluralidade étnica se refletia no grupo escolar. Pelas narrativas dos entrevistados,
percebemos que se referiram à convivência de judeus e negros naquele mesmo espaço. Segundo
João Tadeu (2016), “nossos amigos lá no grupo escolar, ou eram negros ou eram judeus”. Luiza
(2016) comenta que tinha uma amiguinha negra chamada Olga que tinha cheiro de carvão. Sua mãe
explicou que provavelmente vinha de uma família de lavadeiras que passavam as roupas com ferro
a carvão.
Para entendermos o significado de um grupo escolar, naquele contexto tão diverso
culturalmente, se faz necessário conhecer alguns aspectos referentes às condições de emergência
dos Grupos Escolares. No Brasil, constituem-se como fórmula institucional que sintetizava
demandas de racionalização social e escolar e de modernidade pedagógica. Tem como
características: seriação, classes homogêneas, ensino simultâneo, regulamentação e uniformização
do tempo escolar, enquadramento disciplinar, organização do espaço escolar, etc. (FARIA FILHO,
2014). Para o autor, representaram um momento de ruptura com o passado imperial e com as escolas
isoladas, afirmando a proximidade e identidade de institutos coletivos de instrução com a
modernidade, bem como a institucionalização de uma nova cultura escolar: tempo, espaço e noção
de ordem escolar (FARIA FILHO, 2014).
A criação dos grupos escolares era defendida não apenas para “organizar” o ensino, mas,
principalmente, como uma forma de “reinventar” a escola, objetivando tornar mais efetiva a sua
contribuição aos projetos de homogeneização cultural e política da sociedade. Reinventar a escola
significava, dentre outras coisas, organizar o ensino, suas metodologias e conteúdos; formar,
controlar e fiscalizar a professora; adequar espaços e tempos ao ensino; repensar a relação com as
crianças, famílias e com a própria cidade (FARIA FILHO, 2014, p. 38).
Para Souza (1998), o modelo proposto pelos grupos escolares previa uma série de
modificações na organização didático-pedagógica do ensino, entre elas a adoção de espaços
específicos e de novos métodos de ensino-aprendizagem, assim como o emprego do tempo, da
formação de classes homogêneas, com alunos divididos por idades e por grau de adiantamento,
com um professor para cada classe, sob o controle de um diretor, entre outras modificações
fundamentadas nas concepções de modernidade e de inovação educacional.
Sobre os grupos escolares do Rio Grande do Sul, são importantes os estudos de Eliane Peres
que contextualiza a escola primária nas primeiras décadas do século XX. Segundo a autora, esse
período foi decisivo para a escola rio-grandense, pois marca o momento da institucionalização e
da difusão de um modelo escolar – o das escolas graduadas, denominadas, no Rio Grande do
Sul, de colégios elementares, mais tarde chamados de grupos escolares – e o da expansão
do sistema público estadual de ensino. Esse processo de criação dos colégios elementares se
deu em 1909, e a implantação desse modelo escolar significou um momento estruturante
para o ensino público primário do Estado. Da instalação dos primeiros colégios elementares
em 1910 até os anos de 1930 – quando foram, então, indistintivamente denominados de grupos
escolares – os governos estaduais ocuparam-se com a expansão paulatina dessas escolas no
Estado (PERES, 2010).
Assim, garantir prédios adequados para o funcionamento dos colégios, agrupar os alunos
de forma homogênea, designar professoras para cada classe, escolher a direção, fiscalizar o
trabalho docente, selecionar os livros didáticos, formular programas e regimentos para o
funcionamento desses colégios foram as preocupações iniciais. Muitas dessas preocupações
atravessaram décadas sem uma solução adequada, como foi o caso dos prédios escolares
(PERES, 2010, p. 68).
A partir de 1939, os grupos escolares, foram gradativamente sendo instalados em todas
as cidades do Rio Grande do Sul. Para Peres (2010, p. 74), o ensino primário, sob
responsabilidade do Estado, tinha, então, consolidado um modelo escolar que não seria mais
abandonado. A partir de então, a denominação das classes passa a ser: 1º ano, 2º ano, 3º ano, 4º
ano, 5º ano.
E, justamente, em 1939 constituiu-se o Grupo Escolar Uruguai, produto da fusão do
Grupo Escolar da Rua Mariante e das Aulas Reunidas da Rua Ramiro Barcelos (SCHUCK, 2008).
A escola contava com 12 professores e 260 alunos matriculados (SCHUCK, 2008). Inserido em
um bairro peculiar, localizava-se o prédio habitado pelo Grupo Escolar Uruguai. Infere-se que
se tratava de uma residência rural, alugada pelo Estado, com a intenção de abrigar a escola.
Durante a primeira metade do século XX, conviviam escolas adaptadas em
contraposição aos projetos de construções de grupos escolares segundo modelos que
possuíam plantas-tipo,8 elaborados pela Secretaria de Obras Públicas do Estado.
Na figura 1, temos a imagem da edificação escolar, em fins do século XIX. Por meio
da fotografia, percebemos um palacete que difere das moradias da comunidade negra
constantes no entorno, devido a sua imponência. Nota-se um recuo em relação à rua e a
existência de um grande jardim na frente do terreno. Esses aspectos estruturais foram
mantidos durante o período de ocupação pelo grupo escolar. Na figura 2, observa-se a
fachada da instituição, suas janelas grandes com grades de proteção, escadas em ambos os
lados e uma varanda que possuía a finalidade de recepção e acolhimento dos que adentravam
o ambiente.
8.Estes “projetos-tipos” disseminados pelo Estado indicam “uma prática encontrada também em outras
províncias brasileiras, na qual um único projeto embasa a construção de vários edifícios” (POSSAMAI, 2009, p.
151).
Figura 1 – Residência da chácara na Rua Esperança (Séc. XIX)

Fonte: Irmãs Servas da Imaculada Conceição.

Figura 2 – Fachada do G. E. Uruguai (Séc. XX)

Fonte: Irmãs Servas da Imaculada Conceição.

A materialidade escolar evoca muitas memórias nos estudantes que por ali habitaram.
Petronilha e Neusa narram sobre a fachada e o momento de entrada na escola,

[...] ao lado direito de quem entra na rua, há ou havia uma escada de mármore que dava
acesso a uma sacada. [...]. À esquerda do prédio havia outra escada, bem mais alta, que
levava a um avarandado onde se encontrava a porta principal, por onde entravam as
professoras, as visitas, os pais quando iam fazer a matrícula dos filhos ou tratar de algum
assunto de seu interesse. (SILVA; PEREIRA, 2011, p. 154).

De acordo com o excerto, os estudantes entravam por outra porta localizada na lateral da
edificação, e que tinha acesso direto ao corredor das salas de aula. A separação das entradas entre
estudantes e professores era comum nos grupos escolares da época. Muitos ainda realizavam uma
segregação por gênero; infere-se que isso não acontecia no G.E Uruguai.
Após a entrada no espaço, tem-se a descrição de Luiza (2016) sobre o seu interior, “No
primeiro andar ficava a secretaria, o 5º ano, sala de professores, banheiro de professores”. Lembra
de banheiros específicos para meninos e meninas, porém ressalta que eles não “eram legais” e, por
isso, preferia usar o dos professores.
Ainda sobre a descrição estrutural, havia salas com pé direito alto, porão e dois andares.
Somente na narrativa de João Tadeu e Aldo (2016), houve a afirmação de que havia salas de aula
em todos os andares, inclusive no porão, o que pode demonstrar a intenção de otimização do espaço
da casa para uma escola. Neste piso localizava-se a cozinha, local onde era servida a merenda. Aldo
(2016) recorda: “eu me lembro muito bem do Grupo Escolar Uruguai. Era um casarão antigo. Tinha
sala de aula embaixo no porão, tinha sala de aula no meio e tinha sala no sótão também. Te lembra?
Lá em cima. Tinha um pátio grande”.
No que diz respeito ao porão da instituição, Neusa e Petronilha (2011, p. 154), descrevem
a existência de “um rebaixamento no teto, como se fosse um porão; não se podia passar por ali, pois
logo a seguir ficava a residência – sala e quartos – da zeladora chefe da escola, dona Célia, que ali
morava com seus filhos”. Elas contam que havia uma grande mesa, rodeada de bancos, em que era
servida a sopa. Mais adiante, ficava a cozinha com um enorme fogão à lenha, suas grandes panelas
e chaleira.
Neste mesmo local, sinalizam a existência de uma abertura na estrutura do prédio que, além
de função estética, possibilitava a vigilância dos estudantes e incutia sensações,

Neusa, muito sapeca, um dia se enfiou pelo referido corredor, visitou a casa da tia Célia.
Ficou intrigada com uma abertura redonda, como vira em desenho de castelos antigos, e
descobriu que através da janela redonda se podia enxergar, sem ser visto, tudo que se
passava no pátio, o que a criançada aprontava. E ninguém entre os alunos, sabia que aquele
lugar existia (SILVA; PEREIRA, 2011, p. 154).

Os espaços educativos não são neutros, são um “constructo cultural que expressa e reflete
para além de sua materialidade, determinados discursos” (ESCOLANO, 2001, p. 26). Esses lugares
também são como forma de controle dos estudantes. Além disso, evoca sensibilidades nas
memórias das entrevistadas.

Mas o que mais a impressionou na visita foi descobrir que embaixo da escola, num espaço
pequeno e espremido, morava uma família. Teve medo e incompreensão; voltou para casa
pensando. E até hoje lembra e sente novamente um aperto, uma tristeza: como podia,
naquela escola enorme, morarem pessoas embaixo, em um porão, num pequeno espaço.
(SILVA; PEREIRA, 2011, p. 154)

No relato acima, temos uma profusão de sentimentos que emergiram a partir da


rememoração desses espaços. Este, por outro lado, foi uma dissonância nas memórias analisadas,
pois a maioria idealizava e representava esta espacialidade como um local maravilhoso. Nesta
perspectiva, apareceram as reminiscências referentes aos momentos e espaços de diversão. À direita
de quem vinha da rua, encontrava-se a cancha utilizada para os jogos de bola, vôlei, caçador durante
as aulas de Educação Física. João Tadeu e Aldo (2016) ocuparam um tempo da entrevista
descrevendo o pátio e o campo de futebol nos fundos – um lugar muito importante para eles, lugar
de brincar. Lembram também que costumavam frequentar a escola fora do horário de aulas para
jogar vôlei.
Os entrevistados contam que quando lá estudavam, o prédio já indicava sinais que precisava
de reparos. Em 1954, o terreno foi comprado pela Congregação das Irmãs Missionárias de
São Carlos Borromeo Scalabrinianas9, mas, somente, no ano de 2008, passou por uma
reestruturação com finalidade de tornar-se a residência provincial. No início da década de
1970, a escola foi transferida para um novo prédio na Av. Goethe.

Liturgias da escola
De tudo o que escutamos, percebemos uma série de liturgias que indicam determinados
rituais intrínsecos à escolarização que permeavam o cotidiano escolar, e hoje se manifestam como
pregnâncias nas memórias dos antigos alunos. Pode-se pensar que, nas aulas isoladas, esses rituais
fossem mais singelos. Mas à medida que a escola republicana se institucionalizava como espaço
formativo de cidadãos, se fez necessário o investimento em muitos aspectos simbólicos que, pela
recorrência em que aconteciam, marcam as memórias daqueles que passaram pelos grupos
escolares. Boto (2014), ancorada em Elias (1993), faz pensar no processo civilizador como
constituinte do conceito de escola moderna emergente no século XX. Esses rituais instituem
processos de civilidade, com vistas a produzir a autorregulação dos sujeitos discentes.
Assim, procuramos identificar quais indícios de liturgia escolar emergiram nas entrevistas.
Eles lembram que o deslocamento pela escola em direção ao interior do prédio se dava em filas por
turmas, que partiam do pátio, organizadas por altura. Como diz João Tadeu (2016) “e aí tinha que
pôr a mão no ombro do outro pra dar uma distância”. Nas salas de aula, dizem que meninos e
meninas se sentavam misturados. Entretanto, havia divisão dos lugares de acordo com o
entendimento da professora quanto à capacidade de cada criança acompanhar as aulas; se formavam
as filas dos “adiantados, dos médios e dos atrasados” (SILVA; PEREIRA, 2011).
Petronilha conta que costumava estar na fila dos adiantados que ficava mais próxima dos
janelões, sempre abertos. Todavia, uma vez ficou doente e, ao retornar para a escola, não pode
sentar-se no lugar de costume. Em função de estar se recuperando, teve que juntar-se aos

9 Sobre a história da congregação, ver: Scalabrinianas (2016).


“atrasados”. Segundo as entrevistadas, podia-se trocar de posição na sala, conforme as
habilidades fossem melhores em leitura, por exemplo, mas não tão boas em aritmética.
Pelas informações trazidas sobre os horários das aulas, percebe-se que havia
uma otimização do tempo escolar, pois eram três os turnos de estudo. Pela manhã, das 8h às
11h, depois outro turno no horário das 11h às 14h e, por fim, um vespertino, das 14h às
17h. Passavam três horas na escola, um tempo reduzido se observarmos a quantidade de
horas que os estudantes costumam ficar na escola contemporaneamente. Não há um
entendimento comum a respeito de quem estudava pela manhã ou pela tarde, mas
houve consenso em identificar o horário intermediário como aquele destinado aos alunos
repetentes. Aquela era outra época, as relações no mundo do trabalho não eram as mesmas
de hoje e, provavelmente, havia distintos arranjos familiares no cuidado com as crianças. E
o que pensar sobre um horário exclusivo para quem repetia de ano? Há indícios de uma
prática segregadora que está muito distante de qualquer forma de inclusão escolar.
A escola graduada se constitui na modernidade como um lugar de controle e busca
pela homogeneização. Uma prática ritualística que define a identidade do estudante e do
professor, perante o grupo, é o uso do uniforme, obrigatório no G.E Uruguai, recordado com
detalhes pelos narradores. Para os alunos, um guarda pó branco com o monograma da
escola – o dos meninos atingia a altura dos quadris, o das meninas devia cobrir a saia, tinha
pregas e um cinto. Na altura da gola, no centro os meninos usavam uma gravata e as meninas
um laço azul-marinho. Em relação aos calçados, eram exigidos sapatos pretos no diário e,
para as aulas de Educação Física, tênis branco. As professoras usavam avental de tecido
xadrez azul marinho e branco, também bordado com o monograma da escola (SILVA;
PEREIRA, 2011).
Petronilha (2016) recorda de uma docente que, em ocasiões festivas, alertava as
crianças "amanhã vocês têm que tomar banho, colocar perfume, ficar bem limpas”. Ao
chegar em casa, contava à sua mãe e esta dizia: “algum dia tu foste à escola sem tomar
banho? Algum dia tu foste com o uniforme sujo? Então, esse recado não serve”.
Outras práticas ritualísticas evocadas são as ações cívicas, com destaque ao Hino
do Uruguai, costumeiramente entoado em comemorações da escola. As entrevistadas dizem
que na Semana da Pátria sempre havia uma solenidade na escola para receber o fogo
simbólico que se instalava perto da sala da diretora e era guardado por dois alunos de
diferentes turmas, substituídos a cada 30 minutos. Neusa (2016) diz de seu orgulho quando
participou da guarda da tocha. Conta que algumas crianças passavam pela pira e faziam
caretas para aqueles que estavam na vigília e teve que se conter para não cair na
gargalhada, diante do controle das professoras que por ali estavam. “A escola compõe, por
seus fazeres e haveres, uma forma de liturgia” (BOTO, 2014, p. 102). Neste sentido, a
memória coletiva indicou os modos de como a escola por meio da sua normatividade,
fomentava o processo civilizador.
As memórias dos sujeitos da pesquisa apresentam uma escola impregnada de conceitos
próprios de uma época de consolidação dos grupos escolares, como instituições públicas de ensino.
Aqui nos propomos a discutir as impressões dos antigos alunos a respeito de suas professoras, bem
como analisar práticas educativas desenvolvidas. Algumas dessas práticas ainda são comuns,
enquanto outras parecem estranhas, dadas as transformações vividas na escola contemporânea.
O exercício da rememoração faz emergir do esquecimento memórias relacionadas às
professoras. Como sujeitos escolarizados, passaram um tempo importante de sua infância dentro
do Grupo Escolar. Se para os docentes pode ser difícil identificar antigos alunos, isto tende a não
ocorrer quando são os estudantes que evocam seus professores. Neste sentido, Halbwachs (2004)
analisa as diferenças das memórias entre quem, em tese, ensina e aprende. O autor justifica essas
diferenças do lembrar, considerando uma questão quantitativa: aquele que ministra aulas têm
muitos alunos e estes, ao longo da vida escolar, passaram por alguns professores. É nesta
perspectiva que os entrevistados descreveram detalhadamente suas antigas mestras. Mas, é Luiza
(2016) quem consegue elencar os nomes de todas elas e suas respectivas séries: “professora do
primeiro ano, Dona Nilsa, maravilhosa; segundo ano, Dona Beloni; terceiro ano, Dona Maria de
Lurdes; quarto ano, Dona Luci e quinto ano, Dona Cecí”.
Em um ambiente feminizado, ninguém recorda de homens na escola, nem mesmo a figura
da diretora era masculina. Contudo, recordam de duas professoras negras, “Dona Aracy e Dona
Helenita”, uma informação importante do ponto de vista etnicorracial, no sentido de indicar que o
magistério não era uma profissão ocupada majoritariamente por mulheres brancas. Neusa (2016)
reflete sobre o sentimento de respeito que as crianças tinham diante das professoras. Ao ser
indagada se eram rígidas, argumenta: “severas não, elas queriam o que tinha que ser na sala de aula.
A gente não tinha medo delas. Nossa, encontrar uma professora na rua era a mesma coisa que hoje
aquelas gurias que ficam gritando pelos artistas”.
Uma forte presença nas memórias dos depoentes é “D. Jovita” à frente da direção da
instituição. Luiza diz que “ela era uma pequenininha, [...] mas quando entrava, enchia uma sala. E
no tempo que professor ou diretor entravam na escola, a gente levantava, [...] e ficava até que
mandassem sentar”. Interessante a história contada por Aldo que reforça a importância de Jovita em
sua escolarização. Ele não parou de elogiá-la ao longo da entrevista. Uma de suas travessuras era
não usar a escada para deslocar-se e sim descer por um barranco, que segundo ele “era mais rápido”.
Em um desses episódios, ele e outros meninos caíram por cima de um muro que desencadeou um
acidente; uma menina quebrou a perna. Aldo resume o desfecho dessa história. A diretora teria
dito para ele: “Procura outra escola”. Foi estudar no Colégio Rosário.10 Passados alguns
meses, não se adaptou à instituição marista e procurou a diretora do Uruguai para pedir seu
reingresso: “professora

10Fundado pela congregação Marista, no ano de 1904, para um público exclusivamente masculino. A respeito,
ver: Rodrigues (2004).
Jovita, eu vou me comportar. No fim, ela me aceitou de volta. Era uma grande, grande professora!
Compreensiva!” A narrativa de Aldo faz pensar na sensibilidade daquela mulher que ocupava o
lugar da direção do grupo escolar, pois, ao final, aceitou o aluno de volta. Talvez por isso o nome
de Jovita lhe desperte tamanha comoção.
Ao falarem sobre as aulas, nossos entrevistados afirmam que havia a unidocência. Todavia,
contava-se com outras docentes especializadas para as aulas de Desenho, Trabalhos Manuais,
Educação Física e Música. Observa-se uma recorrência positiva das aulas de desenho nas memórias
dos estudantes. Destacam as saídas ao Parque da Redenção, quando a atividade consistia em
observar a paisagem e produzir desenhos. Petronilha (2016) explica que, no quarto ano, as meninas
aprendiam a bordar e fazer crochê, enquanto os meninos faziam seus trabalhos manuais utilizando
madeira, serras e pirógrafo. Em dezembro, uma exposição apresentava à comunidade a produção
dos estudantes. Ela e Neuza destacam os trabalhos com couro, madeira compensada e pirogravura,
além das dobraduras. João Tadeu (2016) diz “eu devia ter trazido um abridor de cartas com
pirogravura, que eu fiz lá”. E Aldo (2016) complementa: “tinha até pouco tempo uma caixinha de
joias que a gente fazia”.
Enquanto Petronilha, Neusa e Luiza conseguiram rememorar aspectos pedagógicos da sala
de aula, como o uso de livros didáticos e cadernos, entre outros, para Aldo e João Tadeu, o que mais
marcou foram essas saídas para o Parque da Redenção, as aulas de trabalhos manuais, além das
atividades de Educação Física. Como entender essas particularidades, sem esbarrar em um
reducionismo de diferenças sexistas? Talvez se possa pensar que, sobretudo, naquelas décadas,
meninos e meninas eram educados de modos muito distintos e isso se dava tanto em casa como na
escola. Por que, nesse estudo, os homens valorizaram as travessuras, os esportes e as atividades ao
ar livre, ao passo que as mulheres falaram dos cadernos que eram passados a limpo, das práticas de
leitura, dos detalhes dos uniformes e das composições?
É assim que as três narradoras afirmam o quanto apreciavam as aulas de Língua Portuguesa.
Petronilha (2016) complementa que a prática das composições era algo frequente na escola, sendo
quase diária. Eram escritas em folhas que, ao final, a professora recolhia. Luiza (2016) também se
refere às composições e explica como aconteciam: “e era assim ó: ou ela contava uma metade de
história ou ela botava uma gravura e pedia para desenvolver o texto”. Lembra também da
composição oral, que, depois, era transformada em escrito, que, segundo a narradora, deixava claro
aos estudantes que o texto deveria ter início, desenvolvimento e fim. As três rememoram que essa
prática escolar sempre comparecia nos exames avaliativos. Normalmente apresentava-se uma
gravura aos estudantes e estes tinham que discorrer sobre a mesma.
Aldo e João Tadeu (2016) também se posicionaram sobre suas preferências quanto às
disciplinas escolares. João Tadeu sempre reforçando o significado dos trabalhos manuais. Hoje,
médico aposentado, se dedica à escultura. Aldo, da mesma forma, destaca os trabalhos manuais,
mas não esquece as aulas de Matemática e de Educação Física. Muitos anos depois, cursou a
Faculdade de Educação Física.
Sobre as avaliações, Petronilha (2016) acrescenta que eram feitas pelo
CPOE , padronizadas e aplicadas por professoras de 2 outras escolas. Completa dizendo que
11

as professoras se reuniam no Colégio Rio Branco12 e lá corrigiam as avaliações que vinham de


outras escolas. Afirma que quando criança sabia desses detalhes, pois sua mãe era professora
pública e explicava esses meandros do processo avaliativo à filha. Luiza, Petronilha e Neusa
(2016) comentam que se fazia “provas” de todas as atividades, inclusive de desenho, trabalhos
manuais e dobradura.
Como orientação prévia para o estudo, Neusa (2016) lembra que as professoras assim
diziam: “vocês têm que estudar tal coisa e tal coisa”. Luiza, graduada em Pedagogia, critica
aquele modo de avaliar, que, segundo ela, consistia em uma única avaliação, a sabatina. Diz
que tinha facilidade em Português e História. Não gostava de Geografia e Ciências, “mas a
minha tragédia era Matemática e aí, quando eu ia para o vermelho, me botavam em professora
particular”. Interessante o fato de duas entrevistadas fazerem referência à prática das famílias
de buscarem auxílio particular para aquilo que não era perfeitamente assimilado na escola,
pois Neusa (2016) também comenta que recorrentemente tinha aulas particulares com a mãe
de Petronilha.
Em relação ao dever de casa, Luiza (2016) recorda das inúmeras vezes que enchia os
cadernos com conjugações verbais. Lembra também das cópias do quadro, sistemáticas e
cansativas. Segundo ela, “tu lia na aula e tinha que copiar, depois tu chegavas lá e ainda tinha
que ler em voz alta”.
Na esteira dessas memórias, foram evocados o uso do lápis e da caneta. Luiza (2016)
explica que, primeiramente, usava-se o lápis e, a partir do terceiro ano, começava-se a escrever
com caneta tinteiro. Ressalta que havia dois cadernos, um que era uma espécie de rascunho e
outro “caderno de verdade”, com as atividades passadas a limpo em casa. Ao ser perguntada se
isso levava muito tempo, afirma que sim, “por isso que a gente passava a tarde em cima dos
livros.”
Um aspecto curioso narrado por elas é o “super apontador de D. Jovita”, que, de acordo
com Luiza (2016), ficava “preso na ponta de uma mesa da sala que ela dividia com a secretária
da escola, D. Helga”. Dizem que, quando precisavam, pediam autorização à professora e iam
apontar seus lápis. E, nessas oportunidades, a Diretora aproveitava e “pedia que lessem alguma
coisa ou que resolvessem alguma continha”, enquanto os lápis iam sendo apontados (SILVA;
PEREIRA, 2011, p. 157).
Um lugar da escola que despertou emoções nas três entrevistadas ao ser evocado foi a
biblioteca, associada às práticas de leitura desenvolvidas. Semanalmente, contam que as
professoras levavam as turmas para retirada e devolução de livros. Petronilha e Neusa
explicam: “cada livro era um encanto, uma viagem entre castelos e magias, como as de
Tibicuera, contadas por Érico Veríssimo, a valentia de Joana D’Arc, a história do Brasil
contada por Viriato Correa. Também liam Monteiro Lobato” (SILVA; PEREIRA, 2011, p.
157).

11
Centro de Pesquisas e Orientação Educacional - CPOE, da Secretaria de Educação e Cultura do Rio Grande do
Sul. Atuou de 1942 a 1971. A respeito, ver: Quadros (2006). .
12
Escola Estadual de Ensino Fundamental e Médio, localizada no Bairro Santa Cecília, em Porto Alegre.
Para Faria Filho (2014), a biblioteca é o local que se destina às atividades de
leitura e pesquisas escolares. Assim, o espaço assume aproximação com os alunos,
professores e se potencializa com o mundo urbano. Mesmo estando localizada no interior
dos grupos escolares, ela acaba adquirindo outros significados, por haver uma proximidade
entre as moradias e a escola, resultando também na utilização pela comunidade.
Neusa explica que gostava de retirar livros de fadas que sua avó lia para ela.
Lembra, também, que recebia como presentes de Natal outros livros de fadas em que o
príncipe virava sapo, “aquilo tudo mexia com a minha cabeça”. Ela complementa
apontando a circulação de livros. “Também acontecia que quando uma lia, já dizia: ‘bah, tu
tens que pegar aquele livro". Quando questionamos se havia obrigação de retirada de livros
na biblioteca, ambas não entendem dessa forma, Petronilha (2016) argumenta que “era hora
de biblioteca e a gente ia lá e trocava os livros”. E Neusa completa “vinha para casa faceira
com os livros. E a própria dona Beloni incentivava: ó, tu já levou esse, leva outro, esse aqui é
muito bom.”.
Diferente delas, Luiza lembra da quantidade de livros em sua casa e o quanto a leitura
era algo que a movia. Nesse sentido, ressalta o significado de ter sido iniciada na leitura e
escrita no Grupo Escolar Uruguai. Mas, ao ser questionada sobre os usos da biblioteca,
demonstra um outro entendimento distinto do que foi dito pelas duas alunas anteriormente.

Eu gostava da biblioteca, mas eu tinha uma excelente biblioteca em casa. Para


estudos e pra livros, na minha casa não tinha restrições. E os meus livros eram
muito bem cuidados. E eu ficava um pouco chateada de ir à biblioteca. Tinha
variedade, eles levavam a gente, mas eu achava os livros mal cuidados, claro, eram
livros manuseados, né? Mas era bom, era bem dirigida, tinha uma bibliotecária e
ela nos ajudava. A biblioteca era usada sim para lazer (LUIZA, 2016).

O que se pode inferir? Eram meninas com uma situação de vida distinta, se tomarmos como
referência um ponto de vista econômico. É possível que, diferente de Luisa, Petronilha e Neusa não
tivessem a mesma oferta de livros em casa. Por isso, o encantamento das duas meninas negras com
o lugar dos livros no Grupo Escolar Uruguai que lhes permitia transpor o ambiente escolar e viver
outras experiências por meio das práticas de leitura.
Além das práticas educativas já comentadas, destaca-se a emergência dos pelotões de saúde,
produtos das tendências higienistas, identificados aos princípios da medicina atrelados à educação.
Luiza (2016) foi a única entrevistada que conseguiu trazer essas informações, explicando como se
desenvolviam os pelotões no colégio. Diz que era escolhida como uma espécie de monitora, devido
à sua aparência, tendo unhas bem cortadas, orelhas limpas, cabelo lavado. Mas não se esquece do
constrangimento que sentia ao ter que se colocar em uma posição de autoridade em relação a seus
colegas, “eu só brigava na hora da fila que eu queria que fizessem uma fila direita. Mas aí, teve o
desfile e esse pelotão foi todo vestidinho de enfermeira, que, na verdade, era o próprio guarda-pó,
só que com um chapeuzinho de enfermeira”. Em suas relíquias, guarda a foto deste momento:

Figura 3 – Pelotão de saúde

Fonte: acervo de Luiza Chagas.

A saúde do corpo por meio da higiene é uma questão constitutiva dos grupos escolares e
considerada determinante no processo formativo das crianças. Portanto, os prédios escolares
deveriam contar com gabinetes médicos e dentários, que, segundo Vidal e Faria Filho (2005), eram
requisitos das construções escolares, desde os anos de 1910. De acordo com Zen (2006, p. 2332),
esses espaços auxiliares eram constituídos de grupos organizados no interior das instituições
escolares, fossem elas públicas ou particulares, com um propósito comum de integrar o corpo
discente, estimulando uma formação cívica, moral e intelectual por meio do exercício de “atitudes
de sociabilidade, responsabilidade e cooperação”, contribuindo igualmente com o processo de
busca por uma identidade nacional.
Os entrevistados recordam a existência desses espaços inseridos no interior do Grupo
Escolar. Falam que os estudantes eram sistematicamente examinados e muitos eram orientados a
tomarem a sopa da escola, possivelmente por estarem abaixo do peso adequado para a idade. Além
disso, eram oferecidas vacinas, como contra a varíola. O dentista aplicava flúor nos dentes e
tratavam-se as cáries. Petronilha salienta que a filha da diretora Jovita se formou médica e virou
doutora do grupo escolar. Isso faz pensar numa certa intimidade no espaço público de trabalho, em
que mãe e filha desenvolviam suas atividades, embora distintas.
Os clubes agrícolas também eram espaços difundidos nos Grupos Escolares, cuja finalidade
era fomentar, na infância, o gosto pela agricultura em suas mais variadas particularidades.
Buscavam a promoção do sentido de cooperação, pois as atividades seriam desenvolvidas
coletivamente. Petronilha e Neusa (2011, p. 155) explicam que nos fundos do prédio da escola havia
uma horta, cultivada pelos alunos maiores sob a orientação das professoras, e cuidada pelas
zeladoras. Esses espaços cumpriam um papel educativo, além de garantir legumes e verduras
frescas para a sopa distribuída aos alunos.
As aulas de Religião são um tema que emergiu nas narrativas. O Estado republicano, laico,
ainda assim mantinha esse tipo de formação nas escolas públicas, herança de um passado colonial,
marcadamente jesuítico, que ecoa nas memórias dos sujeitos entrevistados. Essas lembranças
apareceram justamente quando falaram da expressiva presença de estudantes judeus na escola.
Luiza criticou a professora, “D. Araci que falava muito em diabo [...] eu não gostava daquilo porque
se tinha uma criança um pouco mais arteira na aula, está com o diabo no corpo. E meus colegas
judeus tinham que ficar assistindo as aulas de Religião”.
A questão que se coloca é: seria essa uma postura isolada dessa docente rememorada por
Luiza? Ou seria comum a segregação na escola às comunidades étnicas? E em relação aos negros?
O que se percebe é que na Colônia Africana houve uma adesão ao catolicismo. É possível que as
religiosidades de matriz africana não tivessem tanta força naquela região; talvez fossem mais
perseguidas ainda pela sociedade branca e católica. A mesma antiga aluna expõe um episódio que
envolve as crianças de origem judaica: “e um dia, quando estava próximo da Páscoa, ela falou que
os judeus tinham matado Jesus e todo mundo se encolheu, né? Eu não gostava dessa professora,
porque eu me sentia tão constrangida de ver meus colegas num ladinho, assim sabe?”
Entretanto, Aldo e João Tadeu dizem não lembrar que tais situações ocorressem na escola.
Mas recordam que na rua era comum fazerem um boneco, “Judas” e o queimarem na Páscoa. Assim
diz João Tadeu: “a gente fazia o boneco e malhava, batia e depois queimava o judeu”. Nesse meio
tempo, Aldo pediu para perguntarmos a João Tadeu qual era seu apelido na escola, João respondeu
“judeu”, em função da fama se ser sovina. Aldo justifica “é que eu me dava muito com os judeus e
tinha a cara muito sardenta também quando pequeno”. Essas são algumas evidências que permitem
entrever o quanto a convivência entre diferentes grupos étnicos não é algo simples de se entender.
A escola pública, pelos indícios apresentados, ainda precisaria avançar muito no respeito às
diversidades culturais.
Quando indagados se havia crianças pobres na escola, houve divergências, Petronilha, por
exemplo, diz que não, e aproveita para trazer as palavras de sua mãe, que sempre afirmava diante
da filha: “nós somos pobres, não somos miseráveis”. Essas lembranças evocaram a prática da Caixa
Escolar, a qual era custeada pelas famílias. A escola promovia atividades que arrecadava fundos
para a Caixa, como a exibição dos filmes aos sábados na parte final da manhã, em que cada
estudante, se pudesse, contribuía com uma pequena quantia. A Caixa, portanto, ajudava na compra
de materiais escolares, uniformes, até mesmo calçados para quem não os tinha. Petronilha explica
seu funcionamento, trazendo a situação de uma família que não tinha condições de comprar os
livros didáticos, “e aí na secretaria eles organizavam as coisas. E a criança nem ficava sabendo.
Perguntava: por que não tem o livro? E a criança dizia: ‘ah, a mãe ainda não deu para comprar’.
Daí a mãe ía ou a criança ía na Caixa Escolar”. Essa é uma situação que permite perceber o quanto
a comunidade escolar se organizava e desenvolvia estratégias para resolver os problemas dos mais
necessitados, sem contar com o suporte do Estado.
De modo geral, os entrevistados evocaram muitas memórias alegres dos tempos vividos no
Grupo Escolar Uruguai. No entanto, ressentimentos foram relatados por Neusa e Petronilha. Neusa
conta que havia sido escolhida para representar a turma em uma apresentação; para tanto, ensaiou
muito. Mas, às vésperas da cerimônia foi dispensada. “Então me dediquei, né? E daí na hora entrou
uma outra menina e eu não fui. E eu queria saber por quê. A minha família deduziu que era o
preconceito velado. Eu fiz tudo... e na hora assim, tu não ir? Ficou muito marcado para mim, com
essa professora, a professora Aline”.
Talvez entusiasmada pelo relato da amiga, Petronilha também narrou uma história triste:

No primeiro ano que era para desfilar, ela disse que eu não sabia marchar direito. Ah,
fiquei para morrer porque não ia desfilar. Aí, não sei se faltaram crianças e ela disse que
eu ia desfilar e que não podia não ir. Daí a minha mãe disse: "não, se tu não podias antes,
agora não pode e tu não vais. Qualquer coisa que aconteça eu vou lá no colégio".
Evidentemente, não aconteceu nada e ninguém perguntou por que eu não fui.

Chama a atenção que foram justamente essas duas mulheres negras, Petronilha e Neusa, as
narradoras de memórias ressentidas. Seria essa uma mera coincidência? Ou mais uma situação de
preconceito na escola, neste caso, preconceito etnicorracial?
As práticas desenvolvidas nos grupos escolares e trazidas pelos narradores constituíram-se
em um instrumento nacionalizador e formador de uma identidade brasileira que se pretendia
reforçar nessas instituições de ensino. É assim que os trabalhos manuais, os passeios, as atividades
de leitura e escrita, os pelotões de saúde, a Caixa Escolar, as aulas de Religião, a horta, entre outras
lembranças afloraram no momento em que conversamos sobre o Grupo Escolar em que estudaram.

Historiar uma instituição educativa é tarefa minuciosa. A História da Educação como campo
temático de investigação lança olhares distintos ao espaço escolar e se debruça sobre a cultura, a
partir de normas e práticas que levam em conta os agentes envolvidos no processo de educar
(JULIA, 2001).
Neste texto, versões do passado pelo olhar de cinco estudantes do Grupo Escolar Uruguai,
foram tecidas e tramadas com o objetivo de compor e problematizar o que foi escolhido para ser
lembrado. Esta pesquisa, entre outras possibilidades, fez uma escolha metodológica que priorizou
como documentos as narrativas de homens e mulheres longevos, valorizando suas percepções
acerca dos meandros das práticas escolares.
Nos encontros em que se partilharam conversas e escutas, eles e elas rememoraram um
tempo de outrora, quando brincavam pelas ruas, andavam de bicicleta e de carrinho de rolimã. Na
escola, tomavam a sopa, jogavam caçador, cuidavam da horta, entre tantas reminiscências.
Evocaram uma outra Porto Alegre dos anos 1940 e 1950, especialmente memórias da Colônia
Africana e de um casarão instalado na região.
Neste sentido, consideramos a força da memória coletiva, é Halbwachs (2004, p. 31), quem
diz “outros homens tiveram essas lembranças em comum comigo”. De certo modo, é como se eles
falassem todos juntos, pois encontramos mais recorrências do que dissonâncias.
A adoção dos grupos escolares significou um momento de ruptura, de recriação da educação
escolar no contexto do ensino primário. E esse período da história da escolarização leva a
compreender como um momento do processo da crescente racionalização e urbanização da
sociedade.
A representação dos grupos escolares fundamentou-se, discursivamente, pelo tripé “moral,
higiene e estética” (NUNES, 2007, p. 385) que legitimou a sustentação pedagógica desse modelo
de escola seriada, que pretendia colocar as escolas isoladas como símbolo do passado. Buscava-se
moldar as práticas, os ritos e os símbolos escolares, produzindo uma nova identidade para os
sujeitos que ocupavam os bancos da escola pública, vinculando-os com o “mundo secular público
e urbano” (FARIA FILHO, 2014).
As narrativas de memórias desta pesquisa evidenciam como reelaboram o tempo vivido
naquele espaço. De modo geral, as principais características dos grupos escolares, envolvendo
liturgias e práticas, compareceram nos relatos dos personagens dessa história. Estudaram em um
prédio adaptado para uma escola, em que havia horta, biblioteca, merenda, gabinetes médico e
dentário, várias professoras, uma diretora, rituais cívicos, exames de avaliação padronizados,
classes seriadas, práticas esportivas, uniformes, horários das aulas.
Algo que merece atenção é o fato de que os negros estavam efetivamente frequentando essa
escola, seja na condição de alunos ou professores. Não podemos esquecer que o Grupo Escolar
estava inserido na Colônia Africana. Entretanto, é Petronilha que chama a atenção para o fato de
muitos negros ingressarem tardiamente na escola e também destaca que havia um alto índice de
evasão entre eles, que partiam em busca de trabalho, antes de concluírem o Curso Primário. Este
nos parece ser um aspecto importante, para não pensarmos que havia uma equidade entre a
população negra e branca na escola pública. Também é importante salientar que estamos falando
de uma instituição de ensino primário. Seria importante saber em que medida a população da
Colônia Africana conseguiu dar continuidade em seus estudos em outros espaços escolares.
Lembranças sobre o tempo vivido na escola são carregadas de representações. Os cinco
estudantes do Grupo Escolar Uruguai, cada um a seu modo, idealizam uma escola “maravilhosa”,
em que há pouco espaço para os ressentimentos. A capacidade de todos nós fabularmos o passado
é própria da condição humana. Eles e elas, pessoas maduras, nos apresentaram memórias afetivas,
memórias de um tempo em que eram crianças e que tiveram sua iniciação escolar em uma
instituição afinada com um novo modelo de formação de um cidadão brasileiro.
Voltando à epígrafe que abre este texto, o poema de Cora Coralina nos remete às memórias
do ensino primário. Os espaços compartilhados do casarão da Rua Esperança, das salas de aula, do
pátio e dos corredores entremeavam-se às lições e aos nomes dos colegas, ao quadro-negro, à caneta
tinteiro, ao caderno borrado. Tudo isso emerge nas memórias dos antigos estudantes, inscrevendo
as experiências escolares da infância entre as marcas do passado e as horas do relógio.

BARROSO, Véra Lúcia Maciel. Porto Alegre: funções e papéis de uma cidade polo. In:
POSSAMAI, Zita Rosane (Org.) Leituras da cidade. Porto Alegre: Evangraf, 2010.

BOTO, Carlota. A liturgia da escola moderna: saberes, valores, atitudes e exemplos. Hist. Educ.
[Online]. Porto Alegre. v. 18 n. 44, p. 99-127, set./dez. 2014.

BOSI, Eclea. Memória e sociedade: lembranças de velhos. São Paulo: T.A. Editor, 1979.

COLÉGIO BOM CONSELHO. Nossa História. Disponível em:


<http://www.bomconselho.com.br/>. Acessado em: 19/12/2016.

CORALINA, Cora. Poemas dos becos de Goiás e estórias mais. São Paulo: Global, 1985.

ELIAS, Norbert. O processo civilizador. Rio de Janeiro: Zahar, 1993, v. 2

ESCOLANO, Agustin. Arquitetura como programa: espaço escolar e currículo. In: VIÑAO
FRAGO, Antonio; ESCOLANO, Agustín. Currículo, espaço e subjetividade: a arquitetura como
programa. Rio de Janeiro: DP&A, 2001.

FARIA FILHO, Luciano Mendes de. Dos pardieiros aos palácios: cultura escolar e urbana em
Belo Horizonte (1906/1918). 2. ed., Uberlândia: EDUFU, 2014.

HALBWACHS, Maurice. A memória coletiva. São Paulo: Centauro, 2004.

LIMA, Otávio Rojas. (Org.). Memórias do “Julinho”: Colégio Estadual Júlio de Castilhos (1900-
1990). Porto Alegre: Sagra, 1990.

LIMA, Valeska Alessandra de. Colégio de Aplicação da UFRGS: práticas educativas


adormecidas entre o Arquivo e a Memória Oral (1954-1981). 2016. 122 f. Dissertação (Mestrado
em Educação) – Programa de Pós-Graduação em Educação, UFRGS. 2016.

LOURO, Guacira Lopes. Prendas e antiprendas: educando a mulher gaúcha. Educação e


Realidade. Porto Alegre: UFRGS, v. 11 n. 2, p. 25-56, jul./dez. 1986.
MAGALHÃES, Justino. Contributo para a história das instituições educativas: entre a memória e
o arquivo. In: FERNANDES, Rogério; MAGALHÃES, Justino. Para a história do ensino liceal
em Portugal: actas dos colóquios do I centenário da reforma de Jaime Moniz (1894-1895). Braga:
Secção de Artes Gráficas das Oficinas de Trabalho, 1999.

NOVINSKY, Anita; RIBEIRO, Eneida; GOREINSTEIN, Lina. (Org.). Os judeus que


construíram o Brasil. São Paulo: Planeta, 2015.

PERES, Eliane. A escola graduada no Rio Grande do Sul no início do século XX: a implantação
de um novo modelo e de uma nova cultura escolar. In: VIDAl, Diana; SCHWARTZ, Cleonara
Maria (Org.). História das culturas escolares no Brasil. Vitória: EDUFES, 2010.

PORTELLI, Alessandro. História Oral como arte da escuta. São Paulo: Letra e voz, 2016.

POSSAMAI, Zita Rosane. Uma escola a ser vista: apontamentos sobre imagens fotográficas de
Porto Alegre nas primeiras décadas do século XX. História da Educação, ASPHE; FaE, UFPel.
Pelotas, v.13 (29), p.143-169, 2009.

QUADROS, Claudemir de. Reforma, ciência e profissionalização da educação: o Centro de


Pesquisas e Orientação Educacionais do Rio Grande do Sul. 2006. 429 f. Tese (Doutorado em
Educação) – Programa de Pós-Graduação em Educação, UFRGS. 2006.

RODRIGUES, Nadir Bonini. Colégio Marista Rosário: lições para a vida inteira (1904-2004).
Porto Alegre: CMC, 2004.

SANTOS, Irene (Org.). Colonos e quilombolas: memória fotográfica das colônias africanas de
Porto Alegre.

SARMENTO, Manuel Jacinto. O estudo de caso etnográfico em educação. In: ZAGO;


CARVALHO; VILELA (Org.). Itinerários de pesquisa: perspectivas qualitativas em Sociologia
da Educação. Rio de Janeiro: DP&A, 2003.

SCALABRINIANAS. História. Disponível em: <http://www.scalabrinianas.org/pcr.>. Acessado


em: 19.12.2016.

SCHUCK, Eduardo. A qualidade de vida no trabalho dos professores da Escola Estadual de


Ensino Fundamental Uruguai. 2008. 70 f. Trabalho de Conclusão de Curso (Bacharelado em
Administração) – Escola de Administração, UFRGS. 2008.

SILVA, Petronilha Beatriz; PEREIRA, Neusa. Recordando nossa escola. In: FISCHER, Beatriz
Daudt. (Org.). Tempos de escola: memórias. São Leopoldo: Oikos, 2011.
SOUZA, Rosa Fátima. Templos da civilização: a implantação da escola primária graduada no
Estado de São Paulo. São Paulo: Unesp, 1998.

VIDAL, Diana Gonçalves; FARIA FILHO, Luciano Mendes. As lentes da história: estudos de
história e historiografia da educação no Brasil. Campinas, SP: Autores Associados, 2005.

ZEN, Mariane Werner. Brasileiros pelas letras: atividades de associações auxiliares da escola no
Grupo Escolar Alberto Torres (1941-1959) Brusque, SC. VI Congresso Luso-Brasileiro de
História da Educação: Percursos e Desafios da Pesquisa e do Ensino da História da Educação.
Uberlândia, MG, 2006.

João Tadeu e Aldo. Entrevista II. [nov. 2016]. Entrevistadoras: Alice Jacques e Dóris Almeida.
Porto Alegre, 2016.

Luiza. Entrevista I. [nov. 2016]. Entrevistadores: Dóris Almeida e Lucas Grimaldi. Porto Alegre,
2016.

Petronilha Beatriz Silva e Neusa Pereira. Entrevista II. [out. 2016]. Entrevistadores: Dóris
Almeida e Lucas Grimaldi. Porto Alegre, 2016.
Isabel Rosa Gritti

A formação de professores é exaustivamente discutida, demandada como necessária em


tempos de mudanças rápidas, estudada e colocada em prática na atualidade. Entende-se que a
formação dos professores, além de sua qualificação que os titula, deve ser permanente. Daí
propostas, projetos, encontros, eventos com o propósito de uma formação constante realizadas pelas
Instituições de ensino, por administradores públicos e pelas próprias escolas. Pode-se dizer que a
formação de professores tem se constituído, além de um importante campo de pesquisa, um
importante campo de disputas de concepções de formação.
A formação de professores, portanto, nem sempre se deu de forma uniforme e universal,
como podemos ver na história de formação da professora Norma, que se iniciou no próprio trabalho.
Diante de inúmeras dificuldades e contextos diversos, a formação de professores foi se processando
de forma diferenciada e singular, especialmente para aqueles que vinham a ser os professores
destinados para as escolas mais distantes dos centros já urbanizados. E muito particularmente, com
os professores do meio rural. Neste trabalho, quero destacar a forma a partir da qual os professores
iam se construindo/constituindo professores, no bojo do processo de ensinar e aprender. Arroyo
(2007) diz que: “Os percursos da construção da cultura profissional são múltiplos. Tão múltiplos
quanto os percursos da formação humana. Um permanente tecer de muitos fios. Uma permanente
escuta e interrogação de vivências e sentimentos. De uma greve, de um encontro, de uma oficina
ou reunião pedagógica” (p. 202).

Para realizar essa breve discussão utilizei a metodologia da História Oral. A entrevistada é
uma educadora primária rural. Iniciou a ser professora em 1953 e encerrou em 1982. Dos trinta
anos de atuação profissional, 25 deles foram em Escolas Rurais Isoladas, dominantemente em uma,
na Escola Rural Isolada Rio Branco, na comunidade de Rio Branco, pertencente, desde 1964, ao
município de Mariano Moro no estado do Rio Grande do Sul. Antes desta data pertencia ao
município mãe Erechim. Encerrou sua vida profissional na Escola Estadual Mariano Moro, na sede
do município, para onde se transferiu com o intuito de que os filhos pudessem continuar a frequentar
o colégio, além da quinta série. Quando de sua transferência para a escola que oferecia até a oitava

* UFFS, Doutora em História.


série, já não era mais Professora Leiga, pois na década de 1970 fizera o Curso Normal, durante as
férias na Escola Normal José Bonifácio, de Erechim.
A entrevista realizada com a professora primária rural Norma Rosso Gritti, seguiu a
metodologia da História Oral. A entrevista ocorreu a partir do objetivo de entendermos a educação
rural sob o olhar de uma professora primária rural. As conversas prévias situaram a professora
diante do objetivo da entrevista. As questões foram feitas oralmente, transcritas e apresentadas à
professora entrevistada. Também respondeu às mesmas questões por escrito e teve liberdade de
acrescentar o que desejasse sobre sua trajetória profissional e pessoal.
Quanto a possíveis críticas ao uso da oralidade ou de histórias de vida como documentos
históricos passíveis de análise e interpretação, justifica-se, como diz Ecléia Bosi (1987, p. 1) pois:
“os livros de história que registram esses fatos são também um ponto de vista, uma versão do
acontecido, não raro desmentido por outros livros com outros pontos de vista. A veracidade do
narrador não nos preocupou: com certeza seus erros e lapsos são menos graves em suas
consequências que as omissões da História Oficial.”
Ao se trabalhar uma história de vida, como a da professora Norma Rosso Gritti, a apreensão
da significação passa não somente pelo discurso, mas também pela tonalidade e emoção do
depoimento, pelo embargo da voz, pelos gestos e até pelo silêncio. É a sensibilização para este
conjunto de elementos significantes que permite resgatar a História através da história de um
indivíduo, no caso de uma professora primária rural.

A professora Norma Rosso Gritti iniciou sua vida profissional na década de 1950. Conhecia
a vida cotidiana dos agricultores, suas vivências, seus êxitos e suas dificuldades, embora não fosse
propriamente filha de agricultores. Seu pai era um “empresário”, ousado para o período de 1940,
quando além de um moinho de cereais construiu uma pequena usina hidrelétrica, com
equipamentos importados da Alemanha, e que produzia energia elétrica para a área urbana dos
atuais municípios de Severiano de Almeida e Três Arroios. Iniciou sua vida profissional num
contexto de expansão da industrialização brasileira e, consequentemente, da escola.
A criação da Escola Rural Isolada Rio Branco, bem como o início da vida profissional de
Norma Rosso Gritti, se deu no primeiro período de expansão de ocupação da terra, e da
industrialização brasileira. Vivíamos a chamada "Era Vargas” de 1930 a 1954. O governo Vargas
caracteriza-se pelo estímulo e investimento de capital estatal no processo de industrialização do
Brasil. Concomitantemente, a escolarização expande-se.

No Brasil, o processo de ocupação da terra e de aplicação do modelo capitalista de


agricultura mostra-se com mais nitidez em dois períodos, ambos no século XX. No
primeiro, da década de 1930 à de 1950, combinam-se as necessidades contraditórias de
um mercado de força de trabalho para as fábricas e de colocar limites ao processo
migratório do campo para a cidade, de modo a ter certo controle sobre os possíveis
conflitos sociais provenientes do excesso de trabalhadores sem emprego nas periferias
urbanas. O segundo transcorre nos anos 1970, quando a ditadura militar promete responder
aos movimentos camponeses com a chamada “Revolução Verde” (STÉDILE, 2002. In:
GRITTI, 2008, p. 36).

A expansão da oferta de escolarização para as populações do meio rural, que acontece em


decorrência da nova fase do desenvolvimento brasileiro, que se implementa a partir dos anos de
1930, vai caracterizar-se pelo ingresso massivo nestas escolas de professores sem uma formação
prévia. Pode-se dizer que a emergência/urgência trazida pela demanda de professores para as
escolas “nascentes” se fazia necessária, pois se impunha a formação de uma nova sociabilidade,
também para os povos que habitavam o campo.

A legislação que criou a escola primária rural não explicitava, em seu rol de objetivos, a
formação profissional dos agricultores. Apesar disso, a escola tem-se caracterizado como
uma instituição preparadora de mão-de-obra. É, desta forma, que a escola vai ganhar
relevância e expansão para a zona rural, a partir dos anos 1930, mas principalmente após
o término da II Guerra Mundial (GRIITI, 2008, p. 35).

Assim, a região Norte do Rio Grande do Sul conhecida como Alto Uruguai, tendo como
município mãe e município polo Erechim, expande o processo de escolarização em consonância
com o contexto nacional.
Figura 1 – Mapa do Rio Grande do Sul

Fonte: BALDISSERA, CIMA (2008, p. 07).


Figura 2 – Mapa Região do Alto Uruguai

Fonte: BALDISSERA, CIMA (2008, p. 17).

Quando iniciou sua vida de professora Norma tinha a quinta série do ensino fundamental.
Nesse sentido não se diferenciava de suas colegas. Todas e todos (dominantemente eram mulheres)
eram professoras leigas e professores leigos. A formação desses profissionais não ia além da quinta
série primária. A professora nos diz: "Não teve preparação. Foi assumir a escola e trabalhar.” E
assumir a escola e trabalhar foi olhar para os alunos, sujeitos do processo e na relação com os demais
colegas e na leitura dos poucos livros e revistas que tinham acesso, e nas reuniões pedagógicas
semanais, em que discutiam as dificuldades, as metodologias, o como ensinar, ou seja, como fazer
com que o aluno aprendesse a ler, a escrever, a fazer cálculos. Assim, garantir o aprendizado da
leitura, escrita e dos cálculos constituía-se a preocupação central da professora. E ser professora:

Se mistura com o que se pensa, sente, com autoimagens, com possibilidades e limites, com
horizontes humanos possíveis como gente e como grupo social e cultural. Se mistura com
a história social destes seres humanos concretos que optam por esse ofício, por essa forma
de trabalho e sobrevivência. Se mistura com a história social e cultural, com as
possibilidades e limites de classe dos setores populares destinatários da escola pública e
popular (ARROYO, 2007, p. 199).

É necessário reconhecer a coragem e a determinação com que enfrentavam o início de suas


vidas profissionais. Aqui, falamos de uma educadora em específico. Mas, a forma de ser e fazer-se
professora, professor na escola primária rural era comum. Ou seja, pode-se dizer que o
conhecimento formativo do ser professor vinha da própria docência, aquilo que Tardif (2008, p, 51)
denomina de docência como experiência, na dimensão de que “a experiência pode ser vista como
um processo de aprendizagem espontânea que permite ao trabalhador adquirir certezas quanto ao
modo de controlar fatos e situações do trabalho que se repetem”.
Procuravam fazer os cursos que lhes eram oferecidos. Buscavam qualificar-se, mas
injustamente não recebiam título de qualificação. É por exemplo, o que vivenciou Norma com a
realização, a partir do ano de 1962, do curso para regentes das escolas primárias rurais. Do interior
do hoje município de Mariano Moro, foi a Osório, no Rio Grande do Sul, próximo a Porto Alegre,
no período de férias escolares para realizar o Normal Rural, equivalente ao Normal – Segundo Grau.
Disse: “No ano de 1962, em Osório/RS, fiz o curso de aperfeiçoamento, o Normal Rural,
equivalente ao Normal Segundo Grau, pois nós éramos professores leigos. Havia muito ensino e
práticas voltadas às escolas do interior, mais para as escolas rurais”. Foi aperfeiçoar-se porque
depois, na década de 1970, é que fez o Curso Normal Segundo Grau. Aí, sim, passou a ser
reconhecida como professora, agora titulada, deixando de ser leiga. Passou a ser reconhecida como
professora, agora sem adjetivação: professora, não mais professora leiga.
As dificuldades para realizar tal "curso de aperfeiçoamento” foram gigantescas. Deslocou-
se 500 quilômetros, deixando marido e três filhas pequenas. E no decorrer do curso nasceu a quarta
filha, que a acompanhou no curso Normal Rural. A comunicação com o marido era através de cartas
que demoravam em chegar. Por dois meses ficava sem ver filhas e marido. E esperançosa estudava.
Esperançosos estudavam.
Estudavam, pois precisavam trabalhar os conteúdos que eram solicitados pela Secretaria de
Educação Municipal, através de um Plano Anual por série. Assim dizia: “O Município fornecia um
plano anual por série e a gente pesquisava nos livros os conteúdos a serem desenvolvidos.” Livros,
ou qualquer outro material pedagógico de apoio e de estudo para preparação das aulas eram
extremamente reduzidos para não dizer inexistentes.
O fazer-se professora, educadora não foi um ato individual e independente. Como nos diz
Paulo Freire em seus escritos, nós construímos nas relações com os outros. Foi o que aconteceu
com a professora Norma Rosso Gritti e suas colegas e seus colegas. Constituíram-se professoras e
professores no coletivo, na troca cotidiana do ensinar e do aprender. Diante da questão: Com poucos
livros, pouca formação, poucos lugares de busca, como te fizestes professora? Enfática e
firmemente respondeu: “Dando aula, conversando com os colegas!”
Os poucos cursos de formação e/ou qualificação ofertados pelo Poder Público, no caso de
Norma, o Normal Rural e o Curso Normal foram realizados distante de sua escola de atuação.
Precisava morar temporariamente nos locais, foram realizados na área urbana e pensados a partir
dos interesses que daí emergiam. Da mesma forma, quem definia o que deveria ser ensinado era o
poder público através do plano anual dos conteúdos. Assim, podemos pensar que:

A educação rural foi vista como um instrumento capaz de formar, de modelar um cidadão
adaptado ao seu meio de origem, mas lapidado pelos conhecimentos científicos
endossados pelo meio urbano. Ou seja, a cidade é que apresentava as diretrizes para formar
o homem do campo, partindo daí os ensinamentos capazes de orientá-lo, civilizá-lo a bem
viver nas suas atividades, com conhecimentos de saúde, saneamento, alimentação
adequada, administração do tempo, técnicas agrícolas modernas amparadas na ciência,
entre outros. A escolarização deveria preparar e instrumentalizar o homem rural para
enfrentar as mudanças sociais e econômicas. Dessa forma, o sujeito do campo poderia
participar e compreender as ideias de progresso e modernidade que emergiam no país
(SOUZA; DUARTE, 2016, p. 198).
O uso da oralidade foi, desde os primórdios da humanidade, utilizado pelo homem para
expressar o legado de seus antepassados. Entretanto, a forma dessa transmissão tem variado, bem
como os instrumentos e os meios dessa transmissão. A oralidade possibilita que excluídos da
história oficial tenham voz. Através do depoimento ou da história de vida é possível
compreendermos melhor determinado contexto. Neste caso, como se operacionalizava o “ensinar”
em uma Escola Primária Rural, num período de incipiente Política Pública de formação de
professores.
Elemento significativo de ressaltar foi a forma que encontraram para “fazerem-se
professoras/professores. Mostrou-nos Norma como que se tornaram professoras e professores no
fazer cotidiano do ensinar: na solidariedade desenvolvida pela autonomia que tinham sobre o
processo auto-formativo, formativo, decorrente da inexistência da presença do poder público neste
processo.

ARROIO, Miguel. Ofício de mestre: imagens e auto-imagens. 10. ed. Petrópolis/RJ: Vozes, 2007.

BALDISSERA, Marli de Almeida; CIMA, Sonia Mári. De campo pequeno ao grande Erechim.
Erechim, RS: EdiFapes, 2008.

BOSI, Ecléa. Memória e sociedade: lembranças de velhos. São Paulo: Companhia das Letras,
1987.

GRITTI, Silvana Maria. Técnico em Agropecuária: formação para qual agricultura? Pelotas:
Educat, 2008.

SOUZA, José Edimar; DUARTE, Ariane dos Reis. O ensino no meio rural: Grupo Escolar Madre
Benicia. Novo Hamburgo/RS, 1940-1969. In: GRAZZIOTIN, Luciane Sgarbi S.; ALMEIDA,
Doris Bittencourt. (Org.). Colégios Elementares e Grupos Escolares no Rio Grande do Sul:
memórias e cultura escolar (séculos XIX e XX). São Leopoldo: Oikos, 2016, p. 192-213.

TARDIF, Maurice. Saberes docentes e formação profissional. 9. ed. Petrópolis, RS: Vozes, 2008.
José Edimar de Souza*

Esta pesquisa consiste em um desdobramento de uma investigação mais ampla,


desenvolvida no curso de doutorado em Educação, na qual buscou investigar memórias sobre o
ensino no meio rural de um município gaúcho do Estado do Rio Grande do Sul. As memórias
remetem a um lugar e inspirado em Ricouer (2007, p. 57). Entendemos que “é na superfície
habitável da terra que nos lembramos [...] as coisas lembradas são intrinsecamente associadas a
lugares.” Nesse sentido, esta pesquisa tem como recorte espacial o município de Novo Hamburgo,
que se localiza na microrregião geográfica do Vale dos Sinos, distando aproximadamente 50
quilômetros da capital Porto Alegre. Tem sua estrutura político-econômica desenvolvida,
principalmente, no século XIX, com a chegada dos imigrantes alemães na região.
Novo Hamburgo ocupa uma área 222,35 km² e tem uma população de, aproximadamente,
258.000 habitantes. Limita-se com Campo Bom, Dois Irmãos, Estância Velha Gravataí, Ivoti, São
Leopoldo, Sapiranga, Sapucaia do Sul e Taquara. Suas principais vias de acesso são as Rodovias
BR 116, RS 239 e a Estrada da Integração, que interliga a cidade de Novo Hamburgo à área rural
de Lomba Grande.

Figura 1 - Mapa de Novo Hamburgo no Estado do Rio Grande do Sul

Fonte: Souza (2012, p.12).

* Doutor em Educação com estágio pós-doutoral na Unisinos. Professor e pesquisador do Programa de Pós-
Graduação em Educação da Universidade de Caxias do Sul.
O presente estudo investiga, através das memórias de professores e alunos do meio rural,
práticas que se associam ao modo de ensinar e aprender em escolas isoladas, ou como também são
conhecidas, nas escolas isoladas.
As memórias evocadas aproximaram os sujeitos a partir das relações de contexto que se
estabeleceram com as instituições escolares, nas quais exerceram a docência e/ou aprenderam a ler,
escrever, contar e os valores morais estabelecidos pelo modo de convivência em comunidade.

Compartilha-se, nesta pesquisa, a perspectiva da História Cultural de Roger Chartier (2002,


p. 16-17), quando ele afirma que essa abordagem tem “[...] por principal objeto identificar o modo
como em diferentes lugares e momentos uma determinada realidade social é construída, pensada e
dada a ler”. Nesse sentido, a cultura representa um conjunto de significados partilhados e
construídos para compreender e conhecer um pouco sobre a evidência das aulas nas comunidades
rurais, como prática que caracteriza o ensino público primário no Brasil no início do século XX.
Na pesquisa mais ampla, desenvolvida anteriormente, valendo-se da História Oral, dez
sujeitos foram entrevistados. Dos quais sete memórias são aqui abordadas, para o recorte desta
temática. A saber: as professoras Maria do Carmo Schaab, Lúcia Plentz e Maria Lorena Pires; os
alunos João Bernardes, Clari Winck, Lucilda e Tomaz Thiesen. Todos assinaram termo de
consentimento livre e esclarecido e por razões metodológicas da História Oral, optaram por ser
identificados.
Para chegar aos sujeitos, utilizou-se a prática da indicação ou “snowball sampling” que
compreende a diversificação e a saturação da amostra. Bogdan e Biklen (1994) argumentam que a
saturação é o ponto da recolha de dados a partir do qual a aquisição de informação se torna
redundante. O grupo de sujeitos constituiu um grupo social possibilitando que as memórias fossem
analisadas coletivamente. Essas memórias, unidas, possibilitaram construir um “Tempo Social”
comum, como argumenta Halbwachs (2006); um tempo localizado geograficamente no meio rural.
A Memória, não sendo a História é um dos indícios, documentos de que se serve o
historiador para produzir leituras do passado, do vivido pelos indivíduos daquilo de que se lembram
e esquecem, a um só tempo. A memória exerce um trabalho sobre o tempo, mas, sobretudo o tempo
vivido, conotado pela cultura e pelo indivíduo. E, esse tempo não figura uniformemente, pois segue
a lógica das heranças e tradições (VILAS BOAS, 2008).
Essa investigação reúne um conjunto de memórias sobre a construção de um lugar de
prática, no contexto rural do município gaúcho de Novo Hamburgo. Nesse sentido, as memórias
revisitadas reconstruíram trajetórias evidenciando a prática que se caracterizou pelas
especificidades culturais dos jeitos e modos de fazer em classes isoladas. A compreensão de práticas
preocupou-se na acepção de entender como as pessoas deram sentido às suas experiências, suas
vidas, seus mundos. (CHARTIER, 2002).
As práticas são criadoras de “usos ou de representações”, que não são de forma alguma
redutíveis à vontade dos problemas de discursos e de normas; encontram-se na construção de uma
cultura (CHARTIER, 2002). O modo como os professores desenvolveram suas práticas sociais
figuraram como “[...] modos de viver, trabalhar, morar [...] Assim, a cultura é sempre tomada como
expressão de todas as dimensões da vida, incluindo valores, sentimentos, emoções, hábitos [...]”
(OLIVEIRA, 2004, p. 272).
As memórias do trabalho em classes multisseriadas representaram como o ensino se
desenvolveu em uma “parte” do município, o que configurou um conjunto de significações,
historicamente inscritas, e que se expressaram de forma simbólica em um “saber-fazer”, capaz de
perpetuar e desenvolver a cultura, a instrução e o conhecimento.

Como venho argumentando em outros estudos, Souza (2012), ao remexer nas memórias
desses professores, as histórias desses lugares se corporificaram, recriaram cenários e telas como se
o tempo parasse e fosse possível viver de novo o acontecimento vivido. Essa pesquisa reúne
memórias de sujeitos que se constituíram no espaço rural, em outros tempos e no tempo presente,
histórias que traduzem um conhecimento quanto à cultura local, quanto ao ser professor,
principalmente em classes multisseriadas.
As escolas isoladas ainda existem em algumas localidades, sobretudo nos espaços urbanos,
mas, o “interior” parece ter se configurado como lugar privilegiado dessa prática. O argumento da
adversidade às condições físicas espaciais e o reduzido número de alunos das comunidades rurais
colaboram para a continuidade desse tipo de escola.

A função da escola rural confunde-se com o conceito que a acompanha, pois as escolas
rurais, de mestre único, multisseriadas, fazem parte da história da educação brasileira.
Enquanto que as escolas rurais criadas para preparar o homem produtivo que, além dos
conhecimentos básicos dominasse as técnicas de plantio e fosse garantia de melhor
produção, foi sistematizada pelo Decreto-lei 9613, de 20 de agosto de 1946, como Lei
Orgânica do Ensino Agrícola. (MIGUEL, 2007, p. 83).

A questão do que a escola rural poderia ou deveria ensinar permaneceu limitada pelas
condições do meio, incluindo-se aí a questão da formação do professor. Como enfatiza Miguel
(2007), diferenciavam-se as práticas das Escolas Rurais, agregadas ao Ensino Agrícola, das Escolas
Multisseriadas, como primórdios da educação no país.
Em Lomba Grande, os alunos rememoraram que ao chegar à escola aguardavam um tempo
até que a professora chamava os alunos ou usava a sineta para anunciar que já era “hora da aula”.
Nesse sentido, geralmente, utilizava-se o período da manhã para as aulas nas Escolas Isoladas.
Sobre isso, Lucilda (2014) recorda, “dava a sineta. A gente entrava e começa o tema. Ai tinha o
recreio. A gente brincava e aí nos tudo rezava e vinha para casa”. No espaço da sala de aula, cada
um tinha o seu lugar certo, não costumavam pedir ou mudar de lugar.
O caminho até a escola constitui-se para este grupo de sujeitos em espaço não formal para
aquisição de saberes, momento em que se aprendia, sobretudo, no contato entre as diferentes
manifestações indetitárias trazidas da convivência do seio familiar de cada aluno, bem como,
instituía-se momentos em que fora possível reelaborar conceitos, sobre valores, tradições, costumes.
O reconhecimento de pertencer a um determinado grupo e ao mesmo tempo ter a
possibilidade de circular em outro um tanto quanto distinto, evidenciou-se também nas situações
formais de escolarização... no tempo da aula, no espaço escolar. As aulas seguiam um ritual, que,
geralmente, incluía oração, as lições, temas e realização de atividades, como se observa no quadro
01 abaixo. A proposta para um dia de aula como, por exemplo,

Quadro 01 – Um dia de aula (1940 a 1952)

Estrutura de um dia de aula


1º Oração (Pai Nosso, Ave-Maria, Santo Anjo)
2º Chamada
3º Lição no quadro Português, Matemática, História, Geografia e Ciências
4º Ditados
5º Oração para recreio (merenda/lanche)
6º Outras lições sobre as matérias Português, Matemática, História, Geografia e Ciências (tema de casa)
7º Oração de despedida
Fonte: Elaborado pelo autor, 2014.

A prática da oração, realizada em diferentes momentos do turno de aula, reforça o aspecto


da associação da escola como ambiente que reforça a fé cristã. Tudo indica que os professores de
Escolas Isoladas cumpriam bem o papel de inscreverem a orientação cristã católica como religião
“oficial do Estado”, o que fica evidente nesse outro relato:

A primeira coisa que eu fazia - Posso ser franca! Dava bom dia pros alunos. Rezava um
Pai Nosso e uma Ave-maria – não sei se o senhor é católico –. Pois é, rezava um Pai Nosso
e uma Ave-Maria e aí começava a aula. Cada um sentava na sua classe e eu dava a lição.
Tinha meia hora de recreio. Dava duas horas de aula, porque era quatro horas de aula. Aí
dava o recreio e daí continuava depois! (Maria Lorena, 2014).

Rezar era uma prática utilizada no início e término das aulas, bem como antes da realização
do lanche. As orações escolhidas pelos professores e as lembradas pelos alunos consistia no “Pai
Nosso”, na “Ave-Maria” e no “Santo Anjo do Senhor”. Alguns alunos, como Lúcia (2014), se
recordam de testes de leituras que também traziam os motivos religiosos como temática para
memorização e recitação.
Lúcia (2014), Maria Lorena (2014) e Maria do Carmo (2013) referem que essa prática foi
aprendida na escola, na condição de alunas de Escolas Isoladas. E também no Colégio Auxiliadora,
de Canoas, no caso de Maria do Carmo. Lúcia (2014) reafirma a professora Aracy Paradeda
Schmitt, na Escola Isolada de São João do Deserto, (uma escola do interior de Lomba Grande)

[...] chegava e dizia: - vai começar a aula. Aí a criançada toda entrava. E entrava na sala
de aula. Então, a professora era muito religiosa. A primeira coisa que fazia ela. Pedia ela,
era pra nós se levantar e fazer uma oração pro nosso pai do céu. Acho eu que não fazem
mais isso. Isso que está faltando [ela se mostra inconformada com a falta dessa prática nas
escolas atuais]. (Lucia, 2014).

Para Fischer (2005), muito mais do que transmitir os tradicionais saberes, a professora
primária era um “ser quase divino”, que assumia o compromisso e a missão da transcendência como
propagadora de verdades relacionadas à moral e aos bons costumes, identificadas, muitas vezes,
como o evangelho. O caráter e a moral, que estavam associados a estas professoras, imprimiam
maior valor e responsabilidade pelo ensinar e contribuir para a providência divina.
O tempo do planejamento das aulas e atividades incluíam oração e chamada. Maria Lorena
(2014) explica que preparavam a aula a partir dos livros que haviam estudado, dos livros que havia
na escola, que eram poucos e principalmente pela experiência do seu tempo de aluna. “Eu chegava
em casa e já preparava um pouco, porque eram quatro classes e já preparava as matérias, ou de noite
eu preparava pras quatro classes [...]” (Maria Lorena, 2014).
Ainda sobre o planejamento para as aulas, a professora Lúcia (2014) recorda que construía
seu plano com atividades muito simples, para os alunos do primeiro ano, a partir dos seus livros da
época de aluna, e mostrava para professora Maria do Carmo que orientava se alguma atividade não
estava adequada.
Ela, a Maria do Carmo, com ela que eu aprendi. E depois com os cursos de
aperfeiçoamento a gente aprendeu muito [...] Olha, eu acho que eu mostrava para Maria
do Carmo. Ela era formada. Ela se formou em Canoas. Ela então, dizia, isso tu pode botar.
E aí eu ia fazendo. E depois, com o tempo veio os livros. E a gente fez curso de
aperfeiçoamento. Aí deu para fazer os planos [...] Porque o meu estudo não era muito.
(Lúcia, 2014).

As atividades da aula incluíam a chamada, que era feita pela professora. João (2013) lembra
que a professora Mariquinha já conhecia todo mundo e costumava não fazer a chamada. Clari
(2013) recorda que a professora Maria Hilda sentava e abria um livro grande – livro de frequência,
“[...] e chamava um por um. Quem tava era o presente e senão era o ausente”. O dia de aula seguia
com a realização das lições e atividades. Após a oração, a professora passava lições no quadro-
negro para os três primeiros anos e entregava as lições marcadas nos livros para os demais alunos.
O modo de organizar o espaço escolar da escola isolada correspondia, em alguns casos, a
posicionar os alunos em fileiras, estruturadas por níveis de adiantamento; os alunos do primeiro
ano, do segundo, sucessivamente, até os poucos alunos que realizavam o quinto ano. Maria do
Carmo enfatiza que fazia a divisão entre os que tinham dificuldades e os que não tinham, bem como
o tipo de atividade que era preparada para cada grupo de alunos, considerando que os maiores
costumavam copiar e realizar as atividades que eram separadas dos livros didáticos. Esta prática
parece ter sido comum no contexto das duas instituições estudadas, como recorda Tomaz (2014):
[...] Escrevia coisa no quadro. Como tinha turma diferente ela dividia o quadro. Ah,
separava o quadro por matérias específicas. Isso é para o primeiro, isso para o segundo
ano. Tinha que copiar o que estava no quadro. Depois [...] me lembro muito bem Ditado;
isso era uma coisa que sempre tinha muito. Tabuada, tinha que saber de cor. A do mais,
do menos e a de vezes. [pausa] Me lembro muito bem do recreio. Chegava na aula com a
expectativa do recreio e depois do recreio ficava na expectativa de ir embora [risos].
(Tomaz, 2014).

Escrever no quadro e pedir para os alunos realizarem as atividades propostas, usar o espaço
do quadro para um grupo de alunos, divididos por série, se caracterizam como estratégias dos
professores. Quando havia um quadro-negro apenas, as atividades poderiam ser pensadas para o 1º
e 2º anos e outra para o 3º e 4º anos, enquanto a professora atendia individualmente os alunos do
primeiro ano que apresentavam muita dificuldade para se alfabetizarem. Quando havia alunos do
5º ano, geralmente, utilizava-se de livros para realizarem as tarefas escolares.
As atividades escolares, nas Escolas Isoladas, compreendem, predominantemente, o uso do
caderno, para copiar; escrever, para realizar os temas; montar frases e sublinhar. Os cadernos podem
ser um dos produtos culturais mais significativos das práticas que permitiram a transmissão de
conhecimentos e a imposição de normas, produzidas pelos diferentes sujeitos num determinado
espaço e tempo.

As memórias, imagens e entrevistas orais são analisadas, pelo referencial teórico da


“História Cultural”, Como argumentam Amado e Ferreira (2002), na memória encontra-se a
fundamentação como documento possível no processo de reconstrução da história “das sociedades
humanas”. A memória, portanto é compreendida como documento.
As práticas são entendidas como “invenção/reinvenção” de uma tradição percebida na
maneira como os professores se apropriaram dos conhecimentos do ofício ao longo do tempo,
utilizando e recriando ações pedagógicas em classes multisseriadas.
Além disso, a prática como “apropriação” construída pelo modo de fazer docente de cada
professor representa o sentido que cada sujeito lhe atribuiu significado (CHARTIER, 2002). Por
exemplo, a forma interpretativa que o professor processou no momento do planejamento da
pesquisa para suas aulas; na escolha e invenção de recursos didáticos, permitiu compreender o valor
da tradição e sua influência nessas escolhas.
As práticas de escolarização desenvolvidas, neste lugar, agregaram elementos dos diferentes
tipos de escola tais como: a ênfase do ensino das primeiras letras, os “bons costumes”, a recitação
e o modo catequético que nos reporta às escolas jesuíticas; a preocupação, não apenas com
aprendizagem da leitura, mas com a escrita e aritmética; modelo vinculado às escolas elementares,
às escolas particulares, confessionais e ao modelo republicano e laico dos grupos escolares.

AMADO, Janaína; FERREIRA, Marieta de Moraes (Org.). Usos & abusos da História Oral. 5.
ed. Rio de Janeiro: Ed. da FGV, 2002.

BERNARDES, João Honório. Entrevista sobre escolas isoladas no meio rural de Lomba Grande.
Novo Hamburgo, 2013. Entrevista concedida a José Edimar de Souza.

BOGDAN, Robert C.; BIKLEN, Sari Knopp. Investigação qualitativa em educação. Trad. de
Maria João Alvarez, Sara Bahia dos Santos e Telmo Mourinho Baptista. Porto: Porto, 1994.

CHARTIER, Roger. À beira da falésia: a história entre incertezas e inquietude. Porto Alegre: Ed.
da UFRGS, 2002.

FISCHER, Beatriz Terezinha Daudt. Professoras: histórias e discursos de um passado presente.


Pelotas: Seiva, 2005.

HALBWACHS, Maurice. A memória coletiva. São Paulo: Centauro, 2006.

MIGUEL, Maria Elisabeth Blanck. As escolas rurais e a formação de professores: a experiência


do Paraná (1946-1961). In: WERLE, Flávia Obino Corrêa (Org.). Educação rural em perspectiva
internacional: instituições, práticas e formação do professor. Ijuí: Ed. Unijuí, 2007. p. 79-99.

OLIVEIRA, Leda Maria Leal de. Memórias e experiências: desafios da investigação histórica. In:
FENELON, Déa Ribeiro et al. Muitas memórias, outras histórias. São Paulo: Olho D'água, 2004.
p. 263- 281.

PIRES, Maria Lorena Allgayer. Entrevista sobre escolas isoladas no meio rural de Lomba
Grande. Novo Hamburgo, 2013. Entrevista concedida a José Edimar de Souza.

PLENTZ, Lúcia. Entrevista sobre escolas isoladas no meio rural de Lomba Grande. Novo
Hamburgo, 2014. Entrevista concedida a José Edimar de Souza.

RICOEUR, Paul. A memória, a história, o esquecimento. Trad. de Alain François et al. Campinas:
Ed. da Unicamp, 2007.
SCHAAB, Maria do Carmo Moehlecke. Entrevista sobre escolas isoladas no meio rural de
Lomba Grande. Novo Hamburgo, 2014. Entrevista concedida a José Edimar de Souza.

SOUZA, José Edimar de. Memórias de professores: história do ensino em Novo Hamburgo/RS
(1940-2009). Porto Alegre: Evangraf, 2012.

THIESEN, Lucilda Hilda. Entrevista sobre escolas isoladas no meio rural de Lomba Grande.
Novo Hamburgo, 2014. Entrevista concedida a José Edimar de Souza.

THIESEN, Tomaz Osvaldo. Entrevista sobre escolas isoladas no meio rural de Lomba Grande.
Novo Hamburgo, 2014. Entrevista concedida a José Edimar de Souza.

VILAS BOAS, Sérgio. Biografismo. São Paulo: Ed. da UNESP, 2008.

WINTER, Clari. Entrevista sobre escolas isoladas no meio rural de Lomba Grande. Novo
Hamburgo, 2013. Entrevista concedida a José Edimar de Souza.
Gisele Belusso
Deise da Silva Santos

De acordo com Souza (2016), é possível compreender a história como a “experiência do


passado que tem se realizado em todas as épocas e é habitada por uma subjetividade que pertence
ao historiador” (SOUZA, 2016, p. 445). Dessa forma, a referência ao passado evidencia o papel do
historiador. Acerca do passado, considera-se inatingível de ser estudado sob a busca da verdade
absoluta, no sentido de não ser possível vivenciar tal qual como aconteceu, de maneira direta e
fidedigna. Ciente de tais aspectos, pretende-se compreender a atuação docente, especificamente no
canto orfeônico, por meio das práticas escolares e dos saberes, que evocados pela memória
permitem entender singularidades dos processos históricos de escolarização na cidade de Porto
Alegre, na década de 1950.
Os pressupostos da História Cultural, os quais orientam o estudo, oportunizam um novo
olhar para o fazer histórico, ampliando as possibilidades de campo de pesquisa. Perspectiva em que
outras fontes documentais passam a ser consideradas, a linearidade da cronologia é superada e é
lançado o olhar para a estrutura, o conjunto e o acontecimento. O que está em jogo não é somente
uma nova forma de compreender História, mas de como concebê-la.
Essa perspectiva histórica é atravessada pelo conceito de cultura, empregada como “um
conjunto de significados partilhados e construídos pelos homens para explicar o mundo”
(PESAVENTO, 2008, p.15); um conjunto de saberes, as maneiras e formas de operar. São os “usos
e costumes que caracterizam a sociedade examinada pelo historiador” (BARROS, 2003, p. 157); a
forma de ler, andar, cantar, comer, beber, escrever, enfim. Chartier afirma que são “práticas comuns
através das quais uma sociedade ou um indivíduo vivem e refletem sobre sua relação com o mundo,
com os outros ou com eles mesmos” (CHARTIER, 2009, p. 34). Ou seja, as ações associadas ao
fazer cultura podem ser denominadas de práticas, sempre realizadas por sujeitos (seja quem faz ou
assiste, quem produz ou recebe), por um tempo (quando) e também por um espaço (onde). A
História Cultural permite perceber essas práticas e esses conjuntos de significados, buscando

* UCS, doutoranda em Educação, apoio financeiro CAPES. Membro do Grupo de Pesquisa História da
Educação, Imigração e Memória (GRUPHEIM). Orientadora: Profa. Dra. Terciane Ângela Luchese.
** UCS, mestranda em Educação, apoio financeiro CAPES. Membro do Grupo de Pesquisa História da
Educação, Imigração e Memória (GRUPHEIM). Orientador: Prof. Dr. José Edimar de Souza.
representações de uma dada sociedade e também como essas representações são
transmitidas, entendidas, manifestadas e perpetuadas.
Ciente de tais aspectos, Chartier, (1996, p. 70) corrobora acerca do compromisso
do historiador que deve colocar no centro da análise quando se trata de práticas “mediante las
quales los hombres y las mujeres de una época se aproprian, a su manera, de los códigos y dos
lugares que los son impostos, o bien subvertem las reglas comunes para conformar prácticas
inéditas.” 1
Diante de tal compromisso, o corpus empírico é constituído da narrativa de História
Oral, legislações e documentos do acervo pessoal da professora. Os procedimentos
metodológicos são a análise documental e a História Oral. A entrevistada, professora Rita
Celina Lucena Borges, é natural de Porto Alegre, nascida em 1933, atuou como professora
de canto orfeônico na década de 50 do século XX, em duas instituições públicas – a Escola
Coronel Afonso Emilio Massoti e o Grupo Escolar Horácio Maisonette, também em Porto
Alegre, capital do Estado do Rio Grande do Sul. Seu acesso profissional foi por meio de
concurso público.
Enquanto trajetória de formação, a professora Rita iniciou seus estudos na música, a
partir dos nove anos de idade, frequentando aulas particulares de piano, posteriormente
seguindo com os estudos no Instituto de Belas Artes, em Porto Alegre, com especial enfoque
no instrumento. Mais tarde, realizou o curso de capacitação dos docentes do canto
orfeônico, que a tornou apta para realizar o concurso público no Magistério Estadual,
assumindo então a vaga na referente disciplina.
A entrevista foi realizada e transcrita pela pesquisadora Deise Santos, que deslocou-se
até a residência da professora Rita, na cidade de São Francisco de Paula, local em que
ocorreram dois encontros, com um total de uma hora e trinta minutos de gravação. A
utilização da entrevista foi autorizada por meio do Termo de Consentimento Livre e
Esclarecido, com a opção de ser identificada. A transcrição foi revisada pela entrevistada,
a qual concordou com a divulgação da versão escrita, sem alterações.
Durante os encontros, foi possível criar um vínculo com a professora Rita, a qual
dedicou-se a procurar, em seu acervo pessoal, outros materiais didáticos, disponibilizando
o “Plano de Curso” para as aulas de música e um o livro didático “Canto Orfeônico -
Volume II”, os quais constituem fontes documentais para a análise, ora proposta, na
triangulação de diferentes fontes com a História Oral.
A História Oral, enquanto método pode contribuir por meio das entrevistas com a
narrativa de indícios das práticas escolares e das tensões entre normas e práticas. E, ainda,
conforme Jourtard (2000, p. 34):

Através do oral que se pode apreender com mais clareza as verdadeiras razões de uma
decisão; que se descobre o valor de malhas tão eficientes quanto às estruturas oficialmente

1
Mediante das quais os homens e mulheres de uma época se apropriam, a sua maneira, dos códigos e dos lugares
que lhe são impostos, ou bem subvertem as regras comuns para formar práticas inéditas. (Tradução das autoras).
reconhecidas e visíveis; que se penetra no mundo do imaginário e do simbólico, que é
tanto motor e criador da história quanto o universo racional.

Compreende-se, dessa forma, que com a renovação cultural que atingiu a história, a
memória passa a ser uma possibilidade de indício, uma fonte em potencial. Sem desconsiderar que
se faz imprescindível a postura criteriosa do historiador, que permite o distanciamento necessário,
e assim procede uma leitura crítica e reflexiva das memórias. Prins caracteriza, de maneira inicial e
singela, a História Oral como “evidência obtida de uma pessoa viva, em oposição a fontes
inanimadas” (1992, p. 174), partindo de um pressuposto que já dá traços de distinção entre a fonte
escrita e a oral. Ainda, conforme Ferreira e Amado (1998), a História Oral é metodologia porque
não é só técnica, e não é disciplina, pois necessita do aporte teórico.
Assim, o pesquisador que se propõe a trabalhar com a História Oral tem como parceiras
inevitáveis, a escuta sensível e o respeito ao outro e à sua narrativa, tendo em vista que o
entrevistado expõe sua vida, suas vivências e experiências, por mais breves que sejam, quando
aceita ser entrevistado. É um trabalho que pressupõe a imersão, o conhecimento do contexto que
está inserido, além de sensibilidade na condução da escuta, análise e construção dos dados
(GRAZZIOTIN; ALMEIDA, 2012). Diante de tudo isso, a seguir passa-se à análise da narrativa de
História Oral, no intuito de aproximar-se das práticas de canto orfeônico.

A narrativa de História Oral da professora Rita, junto ao plano curricular elaborado por ela,
na época, indica práticas alinhadas à proposta do projeto do Canto Orfeônico, que objetivavam o
ensino da música, sendo que este deveria ser realizado através de práticas de canto coral que
servissem ao exercício do, e para propaganda, do civismo. Lembrando que Villa-Lobos (1934), o
idealizador do projeto a nível nacional, determinava três finalidades para o Canto Orfeônico: a
disciplina, o civismo e a educação artística, esses associados ao potencial de formação intelectual e
moral. Nesse sentido, ao atuar “cada professor é, portanto, conduzido a negociar de maneira
parcialmente dita, parcialmente sabida; e, sua maneira de fazer, a uma margem de jogo que autoriza
uma diversidade regulada e limitada de práticas possíveis.” (CHARTIER, 2000, p.165).
O Canto Orfeônico no período de atuação da professora Rita, foi regido em âmbito nacional
pelo o Decreto-Lei nº 8.529, de 2 de janeiro de 1946, que estabelecia a primeira Lei Orgânica do
Ensino Primário, também conhecida como Reforma Capanema, ordenando o Ensino Primário,
Secundário, Industrial, Comercial, Agrícola e Normal (BRASIL, 1946). De acordo com Ghiraldelli
Júnior (2009, p. 78), esse “ordenamento legal constituiu-se em uma série de decretos-leis que
começaram a ser emitidos durante”, e, também, após o término do período chamado de “Estado
novo”. Esse momento político do nosso país compreendeu os anos entre 1937 e 1945. No
dispositivo legal, os artigos 7º e 8º garantem a presença do Canto Orfeônico, como disciplina nas
duas estruturas do ensino do Curso Elementar e o Curso Complementar.
No entanto, a disciplina foi implantada, anteriormente, na década de 1930, quando o Canto
Orfeônico foi instituído como disciplina obrigatória, através do Decreto nº 19.890, de 18 de abril
de 1931, outorgado pelo presidente Getúlio Vargas, que dispunha sobre a organização do
Secundário no Distrito Federal, ainda no Rio de Janeiro (LOUREIRO, 2003). Souza (2008, p. 311)
argumenta que esse decreto seria, na realidade, uma “reforma educacional empreendida por
Francisco Campos” que instituiu “uma estrutura orgânica ao ensino secundário brasileiro”. No
documento, é estipulado que o Ensino Secundário fosse ofertado no Colégio Pedro II e em
estabelecimentos sob regime de inspeção oficial. A música, através do Canto Orfeônico, é incluída
como disciplina no Curso Fundamental do Secundário (que abrangia ainda o Complementar) sendo
ofertada nas três primeiras séries deste (BRASIL, 1931).
Em 1934, através do Decreto nº 24.794, entre outras providências, estende a abrangência
do Decreto nº 19.890 a todo o território nacional e amplia a obrigatoriedade a todos
os “estabelecimentos de ensino dependentes do Ministério da Educação e Saúde
Pública” 2 (BRASIL, 1934). O texto do dispositivo legal afirma que a disciplina era um “meio
de renovação e de formação moral e intelectual”, além de ser uma das formas mais
competentes de trabalhar o patriotismo no povo (BRASIL, 1934).
A professora Rita, ao narrar sobre as suas práticas, na década de 50 do século XX,
argumenta que versavam sobre o ensino dos hinos nacionais, associadas ao uso de brinquedos e
canções folclóricas brasileiras. Para tanto, utilizava-se dos considerados grandes compositores da
história da música ocidental erudita e também do cenário brasileiro. Monteiro e Souza (2003, p.124)
sinalizam o desejo de Villa-Lobos em “divulgar a cultura musical erudita às camadas populares que
até então não tinham tido essa oportunidade”. Dessa forma, o caráter erudito que algumas peças
possuíam, não era ao acaso, pois o compositor via na disciplina a possibilidade de associar o
objetivo estético ao cívico.
Ao fazer referência aos hinos, a docente afirma que esse conteúdo demandava muito
cuidado. Ela o representa como importante e ainda destaca que os hinos deveriam ser cantados
corretamente: “O Hino Nacional, eu comecei a ensaiar desde o terceiro ano; todos os hinos.
Primeiro aprenderam o Hino Nacional, depois o da Independência, depois o da Bandeira e por
último o da Proclamação da República, todos eles aprenderam, todos sabiam cantar os hinos.”
(BORGES, 2017). O que era consoante ao “Plano de curso”, elaborado pela professora, para atuar
no Grupo Escolar Professor Horácio Maiosonette, nas quartas e quintas séries. Já no primeiro
objetivo específico aponta que é necessário “reconhecer os hinos pátrios, cantá-los corretamente
em atitude de respeito” (Plano de Curso). Os hinos a serem ensinados citados no programa, ainda

2
“Nos estabelecimentos de ensino superior, comercial e outros, que serão previstos em regulamento, o ensino
do Canto Orpheonico será facultativo”. (BRASIL, 1934).
do plano de curso, deveriam contemplar o Hino Nacional Brasileiro, Hino da Independência, Hino
à Bandeira e Hino da Proclamação da República (letra, música). Nota-se que o Hino do Rio Grande
do Sul, não foi citado pela professora, sinalizando talvez um esquecimento ou ainda uma frequência
menor de ensaios desse hino.

O clima de nacionalismo dominante no país, a partir da Revolução de 30, fez com que o
ensino da música, em virtude de seu potencial formador, dentro de um processo de
controle e persuasão social, crescesse em importância nas escolas, passando a ser
considerado um dos principais veículos de exaltação da nacionalidade, o que veio
determinar sua difusão por todo o país. (LOUREIRO, 2003, p. 55).

Nesse sentido, o uso do canto na educação como instrumento propagador do nacionalismo


não é uma prática exclusiva da história do Brasil, tendo sido utilizado em outros países da Europa
(MONTEIRO; SOUZA, 2003, p. 116). Villa-Lobos afirmava que o orfeão possuía potencial
cultural, social, cooperativo e afetivo, evidenciando que em países de que entendia ser de cultura
maior, ele já era adotado (VILLA-LOBOS, 1946).
Mais do que atuar como docente e realizar as práticas prescritas pelos programas e ensejadas
em seu plano de curso, a professora rememora momentos de apropriação das práticas para resolver
questões cotidianas em sala de aula. “Agora vocês estão ouvindo o Trenzinho do Caipira de Villa-
Lobos. Façam um desenho baseado na música que estão ouvindo” (BORGES, 2017). Ao que
parece, a professora pode ter no mínimo dois objetivos distintos. Além de oportunizar o contato
com importantes compositores da música brasileira, ela tenta amenizar um problema
comportamental: “Foi aí que eu descobri que aquele menino que incomodava na aula era um ótimo
desenhista. Aí em todas as aulas de música, eu dava uma coisa para ele desenhar.” Além de Villa-
Lobos, outros nomes de reconhecidos compositores são citados pela professora, tais como,
“Camargo Guarnieri, [...], Chico Buarque, Roberto Carlos [...]” (BORGES, 2017).
A organização temporal da disciplina de Canto Orfeônico é aqui apresentada a partir da
narrativa da professora Rita. De acordo com ela, para cada turma era ministrado, por semana, um
período entre quarenta e cinco a cinquenta minutos de aula, e não eram todas as séries contempladas
com as aulas.

A minha supervisora de música, [...] Dona Maria [...] ela ia de vez em quando [...], e ela
ficou braba comigo que eu ficava dando aula de vez em quando para a primeira e segunda
série e não pode... E no início eu estava dando; eu tinha folga só na hora do recreio. A
professora de música tem que ter um período de folga, ela disse: ter três períodos de aula,
tá, recreio e um período de folga. Então, aí eu tinha que obedecer. Mas de vez em quando
eu ia dar né, porque eu e as professoras sentiram falta das aulas. (BORGES, 2017).

Embora a professora recorde que lecionava somente a partir do terceiro ano, o decreto nº
8020 de 1939, que substituiu o “programa mínimo do ensino primário no Rio Grande do Sul”,
previa o ensino de música para os cinco anos do Primário, o que indica que o prescrito não era
efetivado na instituição escolar em que a professora atuava; a não ser quando subvertia a regra e
utilizava o tempo de sua aula livre para ministrar aulas de canto orfeônico para a primeira e segunda
série. Assim, Anne Marie Chartier (2000, p.165) ao argumentar sobre a atuação do professor, afirma
que “com efeito, o espaço de ação que cada docente se autoriza é definido exatamente pelos gestos
e palavras que pode (que é suscetível de, capaz de, se acredita autorizado a) produzir no plano de
sua função.”
Ainda é possível perceber em sua narrativa a importância atribuída ao ensino da Teoria
Musical, como sendo necessário “dar um pouco de teoria também para eles [alunos]. Não pode ser
só cantar, cantar cantar...não! Tem que ensinar o que é o pentagrama” (BORGES, 2017), expondo
também, uma representação que remete à apreciação de seu trabalho. Em relação aos objetos
escolares, não havia nenhum material específico disponibilizado aos alunos, cenário em
que a professora contava como companheiro o seu diapasão3, este seu fiel
escudeiro no desenvolvimento das atividades de grupos de coral. Diante dessas
condições, a docente narra apropriações que geram formas criativas de ensinar.

Eu fiz até uma vez um jogo com eles... com as notas musicais. Eles adoraram né? Foi no
pátio. Uns [alunos] eram as notinhas pretas, outros eram as notinhas brancas e eu agora
vou fazer uma música e tal... Eu via as professoras rindo de mim “O que vocês estão rindo
de mim, hein? Eu vi que vocês estavam rindo de mim?”-“ Não porque tu te anima tanto
que dança com as crianças. (BORGES, 2017).

O narrado pela professora da experiência vivida traz aspectos sobre os espaços, a prática
vivida, a participação da própria docente durante a prática e o percebido pelas colegas de trabalho
que observavam a prática. O uso do pátio para realizar o jogo demonstra que não só a sala de aula
era o cenário para as aulas de Canto Orfeônico. Outro aspecto interessante é utilizar a expressão
corporal em que os alunos eram as notas musicais. “Uns eram as notinhas pretas, outros eram as
notinhas brancas” (BORGES, 2017) que se moviam conduzidas pelo entoar das canções,
divertindo-se junto com a professora. Este envolvimento parece ter causado estranheza nas demais
professoras da instituição que “riam” da professora Rita, o que nos faz pensar que não era algo
comum, ou esperado pelas demais professoras. Ainda é possível perceber o uso do pátio como
espaço de suas práticas e, também, a ausência de espaço específico destinado exclusivamente ao
ensino de música.

Eu ensaiava às vezes. Às vezes eu ensaiava fora de aula [...]. Eu falei com a diretora pra
ensaiar numa sala de aula que estivesse vazia [...]. Então, a diretora disponibilizou uma
sala que tava vazia pra eu ensaiar lá com eles quando tinha o coro. E às vezes, dependendo,

3
Instrumento metálico em forma de “U” (ou forquilha), utilizado por músicos, especialmente os que
trabalham com canto. Ao vibrar, o objeto emite a nota “lá”, utilizado como referência para alcançar a afinação
correta.
eu ensaiava até na rua, até no pátio, dependendo da disponibilidade, pra ver também como
é que ficava ao ar livre as vozes, como é que ficavam né, se dava certo, se não dava. Mas
quase tudo era cantado com duas vozes só. E quando era uma voz, ia terceira, quarta e
quinta; aí ensaiava tudo junto. (BORGES, 2017).

E ainda que não tivesse um espaço próprio para suas práticas, o cantar é especialmente
valorizado na sua narrativa, “nem que não participe do coral, nem que cante no banheiro, na
cozinha, que cante em qualquer lugar” (BORGES, 2017), exaltando a importância da música no
cotidiano, indiferente do lugar em que se realizasse a prática. Porém, afirma que ao professor de
Música, caberia além da disciplina e da postura cívica, também estimular uma apreciação musical
mais crítica e consciente por parte dos alunos que “podem até gostar de cantar, porque, a mãe ensina
ou o pai ensina [...]. Mas eles não têm aquela, aquele desejo de ouvir música, de saber, entender a
música [...]. O professor de música tem esse trabalho” (BORGES, 2017).
Para tanto, traz referência ao ensaio de peças teatrais, além de apontar que no ensino
orfeônico também eram preparadas apresentações para datas comemorativas e ocasiões festivas,

Quando havia uma apresentação, dependendo pra quem era apresentado, – se era para os
pais daí eu botava ele (um aluno que cantava de maneira inadequada, segunda a
professora). Mas, pedia pra ele cantar baixinho. Mas, quando era pra alguma autoridade,
por exemplo, eu escolhia os melhores que eu tinha ensaiado; ou ensaiava ainda, se dava
tempo de ensaiar. Os melhores eram os alunos da quarta e quinta séries pra fazer o coral,
o coro fônico. Que não era coral e preparava pra não passar vergonha também. (BORGES,
2017, grifo nosso).

Ao observar que o momento das apresentações era preparado com antecedência, pode-se
afirmar que também divergia conforme o público destinado. Assim, compreendemos ao apontar
que quando a apresentação era para os pais, independente do cantar ou não de maneira considerada
adequada, todos participavam; já quando “alguma autoridade” estava presente, o trabalho docente
ficava sob perspectiva de avaliação e, assim, os melhores é que deveriam cantar para a professora
“não passar vergonha”. Tal aspecto aponta para a valorização de alguns alunos e a exclusão de
outros em momentos solenes.
Com relação aos materiais didáticos utilizados pela professora, observou-se que não havia
materiais didáticos específicos para os alunos. No entanto, para os professores, houve a circulação
de livros, como citado anteriormente. Maura Penna considera, nesse período, que aos alunos “não
cabe pensar a música, mas praticar uma música pré-pensada, pré-concebida, pré-selecionada para
determinados fins” (PENNA, 2013, p. 6). Com essa espécie de pré-seleção subentendida, a criação
de materiais didáticos para a disciplina se torna uma estratégia importante, para que essa “música
oficial” possa chegar até a sala de aula, salientando que, após a criação da SEMA, houve a Comissão
Consultiva, responsável por selecionar hinos e coleções (MONTEIRO; SOUZA, 2003, p. 123).
Neste sentido, estes manuais podem ser vistos como objetos culturais veiculadores de dois
tipos de saberes: conhecimentos musicais e saberes pedagógicos. A forma padronizada
como os autores apresentavam o programa oficial e as finalidades do Canto Orfeônico
demonstram a necessidade de validação/legitimação da disciplina do meio educacional.
Era preciso convencer professores e alunos acerca das virtudes e finalidades formativas da
disciplina. (MONTEIRO; SOUZA, 2003, p. 125).

Assim a implementação da disciplina do Canto Orfeônico estimulou a produção de


materiais didáticos, geralmente métodos, voltados para o trabalho a ser desenvolvido em sala
de aula.4 Esse material foi fundamental para a prática do Canto Orfeônico na educação
brasileira, visto que essa literatura buscava reproduzir e mesmo traduzir orientações oficias,
além do repertório selecionado.

A narrativa da professora Rita permite uma aproximação aos indícios do vivido, do


percebido, com relação às práticas escolares e dos saberes, no ensino de Música e Canto Orfeônico,
enquanto professora no Ensino Primário público de Porto Alegre, na década de 50, do século XX.
Os vestígios acerca das práticas narradas pela professora estão intimamente relacionados ao
seu fazer cotidiano, orientado também pelo primeiro volume do livro de Canto Orfeônico de Heitor
Villa-Lobos, no contexto escolar. Os cantos citados pela docente versam também pela preocupação
com os valores e com a formação de uma nação.
Os espaços utilizados para as práticas eram os possíveis e disponíveis nas instituições
escolares e não eram exclusivos para o ensino do Canto Orfeônico. Dentre eles, a sala de aula, o
pátio e até mesmo a rua foram espaços possíveis para as práticas docentes. O tempo de celebrar
também era o das apresentações de canto preparadas com antecedência para diferentes públicos.
No Brasil, a disciplina de Canto Orfeônico mereceu atenção, normatização e produção de
materiais didáticos com especial interesse na divulgação e propagação da disciplina e do civismo,
associados ao potencial de formação intelectual e moral de uma sociedade.

BARROS, José D’Assunção. História Cultural: um panorama teórico e historiográfico. Textos de


História, v. 11, n. 1/2, 2003.

4
Para maior conhecimento dos livros utilizados é indicado o artigo de Ana Nicolaça Monteiro e Rosa de
Fátima de Souza (SOUZA, 2016) “Educação musical e nacionalismo: a história do canto orfeônico no ensino
secundário brasileiro (1930-1960)”, que trabalha e aponta alguns dos materiais didáticos produzidos como
orientação para a disciplina do Canto Orfeônico.
CHARTIER, Roger. Estrategias y tácticas. De Certeau y las “artes de hacer”. In. Escribir las
prácticas: Foucault, de Certeau, Marin. Buenos Aires: Manantial, 1996.

_____. A história cultural: entre práticas e representações. Tradução de Maria Manuela Galhardo.
2. ed. Lisboa: Difel, 2002.

_____. A história ou a leitura do tempo. Belo Horizonte: Autêntica, 2009.

CHARTIER, Anne- Marie. Fazeres ordinários da classe: uma aposta para a pesquisa e para a
formação. Educação e Pesquisa, São Paulo, v. 26, n. 2, jul./dez. 2000. p. 157-168. Disponível em:
<http://www.scielo.br/pdf/ep/v26n2/a11v26n2.pdf>. Acesso em: 18 ago. 2015.

FERREIRA, M. de M; AMADO, J. (Org.). Usos & Abusos da História Oral. 7.ed. Rio de Janeiro:
Ed. da FGV, 2005.

GHIRALDELLI JÚNIOR, Paulo. História da Educação Brasileira. 4 ed. São Paulo: Cortez,
2009.

GRAZZIOTIN, Luciane Sgarbi Santos; ALMEIDA, Dóris Bittencourt. Romagem do tempo e


recantos da memória: reflexões metodológicas sobre História Oral. São Leopoldo: Oikos, 2012.

JOUTARD, Felipe. Desafios à História Oral do século XXI. In: FERREIRA, M. de M.;
FERNANDES, T. M.; ALBERTI, V. (Org.). História oral desafio para o século XXI. Rio de
Janeiro: Ed. da Fiocruz/Casa de Oswaldo Cruz/CPDOC, Fundação Getúlio Vargas, 2000. p. 31-
45.

LOUREIRO, Alícia Maria Almeida. O ensino de Música na Escola Fundamental. 7. ed.


Campinas: Papirus, 2003.

MONTEIRO, Ana Nicolaça; SOUZA, Rosa de Fátima de. Educação e nacionalismo: a história
do Canto Orfeônico no ensino secundário brasileiro (1930-1960). História da Educação,
ASPHE/FAE/UFPEl, Pelotas, v. 7, n. 13, abr. 2003.

PENNA, Maura. O papel do canto orfeônico na construção do nacional na Era Vargas: algumas
reflexões. XXIII Congresso da Associação Nacional de Pesquisa e Pós-Graduação em Música.
Anais... Natal, 2013.

PESAVENTO, Sandra Jatahy. História & História Cultural. 2. ed. 2. reimpr. Belo Horizonte:
Autêntica, 2008.
PRINS, Gwyn. História Oral. In: BURKE, Peter (Org.). A escrita da História: novas perspectivas.
São Paulo: Ed. da UNESP, 1992, p. 163-198.

STEPHANOU, Maria; BASTOS, Maria Helena Câmara (Org.). Histórias e memórias da


educação no Brasil. 4. ed. Petrópolis, Rio de Janeiro: Vozes, 2005.

SOUZA, Rosa Fátima de. História da organização do trabalho escolar e do currículo no século
XX (Ensino Primário e Secundário no Brasil). São Paulo: Cortez, 2008.

SOUZA, José Edimar de. O uso de fontes orais em pesquisa (Lomba Grande – RS): aspectos das
escolas isoladas (1940-1950). Revista Conjectura: Filosofia e Educação, Caxias do Sul, v. 21, n.
2, mai./ago. 2016.

VILLA-LOBOS, Heitor. Solfejos: originais e sobre temas de cantigas populares para o ensino de
canto orfeônico. v. I. 1946.

BORGES, Rita Celina Lucena. Entrevistas concedidas a Deise Santos. São Francisco de Paula, 20
de março e 05 de janeiro de 2017.

Plano de curso para aulas de música - Acervo Pessoal de Rita Celina Lucena Borges.

BRASIL. Decreto nº 19.890, de 18 de abril de 1931. Dispõe sobre a organização do ensino


secundário. Rio de Janeiro, 1931. Disponível em: <http://goo.gl/y2mYwd> Acesso em: 25 abr.
2017.

_____. Decreto nº 24.794, de 14 de julho de 1934. Cria, no Ministério da Educação e Saúde


Pública, sem aumento de despesa, a Inspetoria Geral do Ensino Emendativo, dispõe sobre o
Ensino do Canto Orfeônico, e dá outras providências. Rio de Janeiro, 1934. Disponível em:
<http://goo.gl/Q0P7ia>. Acesso em: 25 abr. 2017.

_____. Decreto-Lei nº 8.529, de 02 de janeiro de 1946. Lei Orgânica do Ensino Primário. Rio de
Janeiro, 1946. Disponível em: <http://goo.gl/38uD2L>. Acesso em: 01 mai. 2017.
RIO GRANDE DO SUL. Decreto nº 8020, de 29 de novembro de 1939. Programa Mínimo a ser
adotado nas escolas primárias do Estado. Disponível em:
<https://repositorio.ufsc.br/handle/123456789/122105> Acesso em: 07 mai. 2017.
Karla Simone Willemann Schütz

Trata-se de um recorte do trabalho de conclusão de curso “As entrevistas de Simão


Willemann: história oral, memória e ofício de professor no interior de Santa Catarina (1977-1978)”
apresentado ao Departamento de História da Universidade do Estado de Santa Catarina em 2012.
Vale antes de tudo ressaltar que o artigo e as entrevistas aqui analisadas reverberam até hoje, mesmo
que indiretamente, em novas produções acadêmicas, como: a dissertação de Mestrado “Lembranças
revisitadas: o Laboratório de História Oral da UFSC e as entrevistas de Simão Willemann - memória
e história oral em Santa Catarina (1975-2013)”, e mais recentemente, a tese de Doutorado ainda em
andamento “Um historiador entre-lugares: a historiografia catarinense e a trajetória do professor
Carlos Humberto Pederneiras Corrêa (1963-2016)” ambas produzidas no Programa de Pós-
Graduação em História da Universidade do Estado de Santa Catarina/UDESC.
No presente artigo serão problematizadas as reminiscências presentes na fala transcrita de
três senhores: José Boeing, Roberto João Tenfen e Turíbio Schmidt, objetivando analisar a maneira
como estes lembram, buscando esmiuçar memórias solidificadas, bem como as características de
produção destes relatos transcritos, pontuando seus atributos em comum, mas também os que são
específicos a cada um deles. Nesta perspectiva, história e memória são relacionadas para compor
quadros pautados, sobretudo, na vivência escolar. Os conceitos de memória coletiva e identidade
são abordados e a partir desse prisma é que foi realizada a análise das experiências e opiniões pelos
entrevistados expressadas em seus relatos.
Mas, qual a história destas entrevistas? O desejo do historiador Simão Willemann em
concluir seus estudos de Pós-Graduação em História, e adquirir o grau de mestre, o levou a realizar
uma série de entrevistas seguindo as diretrizes da História Oral, tendo como justificativa o fato de,
naquele momento, não dispor de fontes suficientes sobre o tema que desejava investigar. No período
em questão, a utilização das fontes orais somente seria aceitável, caso não existissem fontes
tradicionais que pudessem suprir as lacunas do passado. A História Oral se constituía somente um
instrumento auxiliar, visando a produção de fontes “fidedignas” que pudessem informar sobre o
problema estudado, sem problematizar questões ligadas à maneira como os entrevistados
lembravam, entendendo seus lapsos e distorções como prejudiciais a construção da fonte. Foram
cerca de dois anos de afazeres (entre 1977 e 1978), realizando entrevistas e fazendo transcrições

* Doutoranda do Programa de Pós-Graduação em História da Universidade do Estado de Santa Catarina/


UDESC.
que resultaram em treze depoimentos completamente transcritos, dentre estes, oito com termos de
autorização assinados pelos seus cedentes. Importante ressaltar que em todas estas figuram somente
entrevistados do sexo masculino; no entanto em nenhum momento Simão menciona que este tenha
sido um critério para seleção. Segundo ele, sua procura se voltava para os mais idosos que tivessem
participado do cotidiano das escolas alemãs.
O trabalho de Simão intencionava realizar um histórico a respeito da formação das
chamadas “escolas alemãs” em pequenos núcleos rurais numa região específica do interior de Santa
Catarina, o vale do rio Braço do Norte. Ele buscava informações sobre a maneira como estas
pequenas escolas eram administradas e como se organizava o cotidiano dentro deste ambiente. Essa
era a intenção do historiador, mas não foi possível a ele concluir seu Mestrado. Desta forma, o
estudo aqui proposto pretende realizar uma análise que perpassa caminhos que certamente não
seriam possíveis naquele momento a Willemann, procurando apreender aspectos ligados à
construção de lembranças, analisando os temas recorrentes nas falas transcritas. As diretrizes
ligadas à História Oral que pautaram o trabalho do historiador exigiam neutralidade, a busca pela
‘verdade’ dos fatos que supostamente seria encontrada nas entrevistas, as quais não deveriam se
desviar da rigorosa metodologia analisada no capítulo anterior. Mas, ainda assim, é possível
perceber a subjetividade na tessitura das lembranças dos entrevistados, e, por isso, optou-se por
problematizar as lembranças que perpassam tais falas, incitadas ou não pelas perguntas de
Willemann, as quais estão relacionadas ao espaço escolar e familiar, e a maneira como se imbricam
ao oficio de professor e à construção de determinada identidade.
Para tanto foram selecionadas três das treze entrevistas concretizadas pelo historiador, todas
realizadas com professores que trabalharam nas pequenas escolas isoladas da região, os quais
também foram alunos das mesmas. A escolha destas entrevistas em detrimento das outras se deu,
pois se acredita que essas três falas transcritas possibilitam vislumbrar reverberações que permitem
cotejar as experiências de educando e educador, pois dentre todos os treze senhores entrevistados
somente estes tinham passado por ambas as vivências. Turíbio Schmidt, José Boeing e
Roberto João Tenfen foram entrevistados por Simão no ano de 1978 e apesar do roteiro de
perguntas ter sido o mesmo para todos, cada qual apresentou uma reação diferente a ele. Seria
possível, inclusive, mesmo não os conhecendo pessoalmente, delinear um pequeno perfil
destes homens: descendentes de imigrantes que atribuem um grande valor à educação e às
suas tradições. Percebemos estas especificidades a partir das palavras presentes nas
entrevistas, na maneira como eles são consciente e inconscientemente conduzidos a responder
as perguntas de Willemann.

Antes de nos voltarmos especificamente para um pouco das trajetórias destes três
entrevistados, cabe fazer uma pequena reflexão em relação à importância dos estudos voltados aos
percursos individuais de professores para a historiografia voltada à educação. O cotidiano docente,1
trazido à tona através de seus relatos pode revelar novas práticas que, muitas vezes, não condizem
com as condutas mais comuns; essa é a opinião de Dirceu Pacheco (2008, p. 253-254).

Essas histórias devem ser proclamadas, pois urge dizer numa construção metafórica, que,
para além da aparente homogeneidade do oceano, que trata as escolas e seus sujeitos no
singular buscando reduzi-los a uma pretensa igualdade, mergulhando fundo, indo muito
abaixo da superfície, encontramos um mundo infinitamente diverso, rico em experiências
e vivências que ultrapassam os currículos oficiais e planejamentos prévios e que não pode
ser submetido a mecanismos de controle rígidos urdidos, como antecedência, fora do
espaço, tempo das escolas e de suas salas de aula.

Pacheco, nesse caso, se refere de um modo especial à utilização de objetos escritos


pertencentes à cultura escolar, como cadernos e diários de professores. Mas, este manifesto pode
nos remeter também à utilização da fonte oral como meio para “mergulhar nesse oceano” e
encontrar condutas que destoam. Os relatos presentes nas entrevistas de História Oral revelam
experiências únicas e nos propõem novos significados. Procurando esse sentido, nos lançaremos
então sobre as palavras destes senhores, buscando em suas memórias lembranças sobre a escola e
o ofício de professor.
As escolas organizadas pelos imigrantes alemães e seus descendentes aqui abordados, como
antes vimos, preservam algumas características comuns. Esses professores, profundamente ligados
ao ambiente escolar, demonstram modos de fazer e pensar a profissão, muito semelhantes. Além
disso, eles presenciaram transformações importantes dentro deste ambiente, mudanças que
atingiram tanto o espaço escolar quanto a comunidade em que viviam. Esse é o caso de Turíbio
Schmidt, o mais idoso entre os três, que inclusive chegou a ser professor do entrevistado José
Boeing. Schmidt pode viver intensamente o período em que estas escolas se encontravam
unicamente amparadas na comunidade, como também presenciou a chegada do Estado interferindo
na administração. Quando perguntando sobre a infraestrutura dessas instituições, ele afirma:

Nada. Somente o giz que a gente comprava. Não tínhamos nada. Absolutamente nada.
Nem um quadro. Mas o que mais tarde apareceu foi uma bandeira nacional que se usava,
assim, dia de feriado só. E mapas do Brasil e do estado nessas escolas [...] particulares,
não. Depois nas escolas públicas sim, daí tínhamos tudo ali, tínhamos tudo. E mesmo essas
escolas particulares funcionavam sem programa. Até que, um dia, eu tinha essa escola
particular, eu fui chamado para Florianópolis, fui obrigado a registrar. Registrar a escola

1 Não se restringindo aos relatos orais, conforme Cunha: “Numerosos estudos têm sido feitos especialmente
sobre vidas e escritas de professoras que permitiram conhecer a partir do privado, documentos de vidas
individuais que podem ligar-se à história, emergindo em narrativas sobre aspectos pouco explorados como
o cotidiano de professoras, seus desejos, dificuldades, vistos através de pequenas referências e objetos
ligados ao seu ambiente de trabalho: cadernos, boletins, relatórios escolares e, [...] diários íntimos.” (2008, p.
122).
particular e dando também a matéria, o que eu ensinava; o português, história, geografia,
o que eu ensinava.

Roberto Tenfen também demonstra essa nova interferência:

Nos últimos dois anos, eu já em São Maurício, introduzi um uniforme, assim para 7 de
setembro, 15 de novembro e no exame final, para vir. Ou quando vinha alguma autoridade
lá, o inspetor. Depois já tinha um Inspetor Estadual, depois Municipal, que de vez em
quando já vinha examinar a escola. Então, a gente era avisado e os alunos vinham bem
prontinhos.

Nesses trechos notamos além da interferência estatal na administração destas


escolas, a introdução de temas relacionados à identidade nacional brasileira, como a
própria bandeira nacional, mapas geográficos do Brasil e do estado de Santa Catarina, e
depois as comemorações de datas festivas essencialmente brasileiras como a Independência
em 7 de setembro, e a Proclamação da República em 15 de novembro. Ao ler essas
entrevistas podemos perceber, ao menos aparentemente, que essa transformação não foi
dolorosa, ao menos para os entrevistados. Certamente que a necessidade de negar seu
passado étnico através do ataque ao idioma não é uma questão simples de se aceitar, mas estes
homens nos mostram que esta mudança já estava em vias de ocorrer, e, portanto, pareciam já
estar aceitando o processo, evidenciando inclusive que seus pais já sentiam a necessidade de
aprender o português, como veremos a seguir. Outro ponto que se repete nas memórias dos três
entrevistados é o local onde realizaram sua formação como professores
“fundamentalistas”.2 Todos eles estudaram o Curso Fundamental na cidade de Blumenau,3 no
Colégio Santo Antônio, instituição fundada em 1877, como uma simples escola
paroquial denominada Coleginho São Paulo, mas que em 1892, após a transferência da
administração aos padres franciscanos da Província da Imaculada Conceição, ganhou novas e
maiores instalações e acaba por se tornar uma instituição importante na formação
complementar (DIEGOLI, 2004, passim). Esta escolha, bem como a recomendação que
recebeu de seu pai aparecem claramente na entrevista de Tenfen: “Aí o pai disse o seguinte:
Se tu queres ficar alguma coisa, então, estuda para professor, porque tem falta de
professores. Aí eles me deram a palavra de eu poder ir para Blumenau, no Colégio Santo
Antônio.”
Não se pretende aqui atentar a detalhes específicos dessa instituição. O que nos interessa é
o fato de que esse era um colégio religioso o que nos remete novamente à importância que teve a
educação religiosa no ensino dado nessas escolas administradas pela comunidade. E que essa

2 .Essa expressão foi usada por Turíbio Schmidt para caracterizar sua formação anterior à conclusão
do Curso de Normal em Florianópolis: “Daí eu me formei normalista, mas trabalhei muito tempo
como professor fundamentalista, somente com esses conhecimentos”.
3
O que não fica muito claro nas entrevistas é o porquê da escolha de Blumenau em detrimento de Florianópolis,
que nessa época já contava com o ensino secundário oferecido no Colégio Catarinense, uma instituição também
ligada à Igreja Católica.
influência, conforme comprovam os relatos, se dava até mesmo no processo de formação
profissional dos professores que nelas atuavam.
Cabe destacar ainda outro tema recorrente nas falas dos entrevistados, a questão da
disciplina dentro e fora do espaço escolar. A disciplina era exigida pelos pais na conduta do
professor para com os alunos, conforme pode ser percebido nesta fala de Schmidt:

Ah, na disciplina? Era rigorosa. Os pais queriam isso. Os alunos eram muito arteiros, eles
brigavam na estrada. E se os alunos brigavam na estrada, assim no caminho pra casa, e se
o professor não desse educação e não repreendesse, não prestava. O senhor decerto se
lembra disso? [...] Tive essa fama de professor muito rigoroso.

O entrevistado parece tentar transmitir uma imagem de si que esteja de acordo com que era
exigido na época e dessa forma justificar as suas atitudes. Nesse sentido, ele tenta definir qual o seu
lugar nessa comunidade e de que forma ele se relacionava com os outros. Pois ao contar nossa
história de vida, segundo Pollak (1989, p. 13), “em geral tentamos estabelecer certa coerência por
meio de laços lógicos entre acontecimentos chaves (que aparecem então de uma forma cada vez
mais solidificada e estereotipada), e de uma continuidade, resultante da ordenação cronológica”. É
esse trabalho que realiza a memória de Schmidt, tomando como baliza a questão da disciplina,
prática comum nessa comunidade, ele se coloca como “rigoroso”.
Por fim, cabe destacar as datas festivas de final de ano, nas quais, conforme os entrevistados,
professores, alunos e famílias se encontravam e realizavam uma confraternização, selando laços de
confiança. Turíbio descreve essas festas de Natal em tom nostálgico: “Aquilo até hoje me deixa
saudades, essas coisas não se faz mais. É tão bonito.” Festa de Natal com distribuição de pequenos
presentes que também é relembrada por José Boeing: “Já era férias. Faziam uma... o professor fez
uma festa de Natal. Distribuía... Mas ele não olhava... quer dizer, ele distribuía para todo mundo.”.
Essas práticas coletivas, pode-se notar, permaneceram na memória dos entrevistados, pois
eram significativas para o grupo, consolidando a união entre comunidade, família e escola. São
fatos de um cotidiano em grupo que ficaram guardados na lembrança e até mesmo eram motivo de
saudade. O espaço da escola, o ofício de professor e a vida na pequena comunidade se entrecruzam
a todo o momento. O que é vivido em conjunto, nesse sentido, é mais simples de ser lembrado,
segundo Halbwachs (2011, p. 67): “os fatos e ideias que mais facilmente recordamos são do terreno
do comum, pelo menos para um ou alguns ambientes”. Foi se apoiando na memória vivida em
grupo que estes senhores puderam relembrar. Desse modo, podemos constatar que a memória é
condicionada aos círculos sociais com os quais o sujeito mantém contato. Embora já idosos e,
portanto, afastados do grupo social o qual rememoram em suas falas, as perguntas de Willeman
parecem despertar a memória a respeito da vivência como professores, remetendo a lembranças
vividas em conjunto; questões também fundamentais para a manutenção de uma identidade étnica
estrangeira em terras brasileiras.
A primeira das considerações a ser feita se refere justamente à possibilidade de ter acesso
às fontes que foram produzidas por Simão Willemann. Sem esta acessibilidade, obviamente, tal
trabalho não poderia ser confeccionado. Ao longo deste intencionou-se mostrar o quanto é
importante para a História Oral enquanto técnica, metodologia ou fonte, ter seus frutos
disponibilizados a outros pesquisadores, não os limitando a sua pesquisa original.
Muitas novas pesquisas podem ser viabilizadas e outros caminhos podem ser traçados.
Assim, iniciativas voltadas para a criação de acervos que abarquem estas produções são
importantes, pois fortalecem a História Oral em todos os seus âmbitos. Foi por meio deste prisma
que se despertou o olhar em relação à utilidade, e até mesmo ao valor destas fontes que foram há
mais de trinta anos atrás produzidas por Willemann. Os caminhos aqui traçados não foram os
mesmos que pretendia Simão esboçar. No entanto, tal escolha não pretendeu mostrar que o
historiador estaria errado na sua opção, mas sim, revelar as inúmeras possibilidades de olhares que
ainda poderiam e podem ser lançados sobre esta mesma fonte.
As entrevistas feitas pelo historiador Simão Willemann, no fim da década de 1970,
mostraram muito mais do que apenas o seu conteúdo: os relatos presentes nos testemunhos de três
senhores do interior de Santa Catarina que vivenciaram o cotidiano escolar específico da região do
Vale do Braço do Norte. Tais entrevistas revelaram a constituição de uma memória coletiva muito
solidificada que atuou de forma contundente na maneira como os sujeitos pensavam sobre si e,
também, sobre as práticas do cotidiano que se mostraram mais recorrentes em seus discursos.
Dessa forma, foi possível perceber que inúmeros são os caminhos pelos quais as fontes
podem nos levar. Estas, “fabricadas” por Willemann puderam nos guiar por uma estrada que voltou-
se para a contribuição dos estudos que relacionam história e memória na elaboração de novas
narrativas que pensam os sujeitos na sua singularidade e também pluralidade. A História Oral se
mostrou, portanto, importante contribuinte desta empreitada.
Materializada nas transcrições das entrevistas aqui utilizadas, a fonte oral foi assim
significante para pensar os sujeitos como atores dentro de uma mesma comunidade. Elas foram o
meio pelo qual se elucidou a existência de uma memória coletiva que abarcava a maneira que, no
momento presente da entrevista, aqueles senhores rememoraram. Com todos seus limites e
possibilidades a fonte oral é de fato uma das fontes mais acessíveis do contemporâneo. Por meio
do cotidiano escolar presente nos testemunhos, problematizou-se as características que mais se
mostraram presentes, centradas na relação estabelecida entre a escola e as famílias, o oficio de
professor, e a configuração de uma identidade étnica. Temas perpassados pela importância atribuída
à religiosidade, a estima conferida à educação e a forte ligação estabelecida entre a comunidade e a
escola. Esta atribuição se mostra tanto nas palavras do entrevistado, quanto nas falas do
entrevistador, que também pertencia a esta comunidade. Neste sentido, a religiosidade, a educação
e a etnicidade podem ser entendidas como fatores determinantes no desenvolvimento de uma
imagem positiva da sociedade a qual pertenciam. Tais características se mostraram muito
consolidadas nos discursos dos três senhores, o que demonstrou a força que teve o social na maneira
como estes construíram e reconstruíram suas memórias.

BOEING, José.: Entrevista concedida a Simão Willemann. Rio Fortuna, 10 de jan. de 1978.

CUNHA, Maria Teresa Santos. De ontem para o hoje: práticas escolares em diários íntimos de
professoras. In: SOUZA, Elizeu C. de; MIGNOT, Ana Chrystina V.; PACHECO, Dirceu C. (Org.)
Histórias de vida e formação de professores. Rio de Janeiro: Quartet; FAPERJ, 2008. p. 119-132.

DIEGOLLI, Rogéria Rebello. Colégio Santo Antônio: conquistando almas para Deus, formando
cidadãos para a pátria (1932-1942). Anais do X Encontro Estadual de História: História:
Trabalho, Cultura e Poder, Florianópolis, 2004. p. 132-135.

HALBWACHS. Maurice. A memória coletiva. São Paulo: Centauro, 2011.

PACHECO, Dirceu C. Por outras narrativas das escolas e de seus sujeitos praticantes:
possibilidades dos/nos registros cotidianos. In: SOUZA, Elizeu C. de; MIGNOT, Ana Chrystina
V.; PACHECO, Dirceu C. (Org.) Histórias de vida e formação de professores. Rio de Janeiro:
Quartet; FAPERJ, 2008. p. 250-171.

POLLAK, Michael. Memória, esquecimento, silêncio. Estudos Históricos, Rio de Janeiro, n.3, v.
2, p. 3- 15, 1989.

SCHMIDT, Turíbio: Entrevista concedida a Simão Willemann. Braço do Norte, 13 de mai. de


1978.

TENFEN, Roberto João.: Entrevista concedida a Simão Willemann. Rio Fortuna, 24 de jan. de
1978.
Nádia Maria Weber Santos
Marluce Dias Fagundes

O presente texto é proveniente do projeto de pesquisa “A importância da TVE da


Fundação Piratini como dispositivo de cultura e de sensibilidades para a memória da
sociedade gaúcha”1, e tem como objetivo apresentar os resultados preliminares da pesquisa.
O projeto visa perceber, através de fontes orais (e também depoimentos em redes sociais),
a importância que a emissora pública tem para a sociedade como um todo e as sensibilidades
que estão inseridas em memórias dos indivíduos que dela participam. Entretanto, é necessário
destacar que o mesmo está articulado com outro projeto recentemente finalizado, chamado
“Memória e Patrimônio da Fundação Cultural Piratini: o acervo audiovisual da TVE”2 ,
também relativo à memória da TVE e da Fundação Piratini. Neste primeiro projeto, de
objetivos diferentes do atual, foram coletados dados nas fitas de imagens produzidas nos 42
anos de existência da emissora, que constituem o acervo audiovisual da TVE. Mais
especificamente, foram examinadas 286 fitas nos formatos U Matic e Super VHS. O grupo de
pesquisa formulou grades de análise destas fitas, onde essas foram catalogadas nos
seguintes aspectos: data, tipo de imagens (imagens brutas, programas gravados,
reportagens, imagens editadas sem irem ao ar na TV), tipo de fitas (de U-Matic, VHS, etc.),
estado das fitas (bom, regular, quase sem possibilidade de visualização), conteúdo das
fitas, contextualização histórica no período da gravação. Estas grades foram enviadas aos
arquivistas da TVE a fim de alimentarem o banco de dados da emissora com informações
sobre o acervo de fitas, sendo esta uma das contrapartidas do projeto para a emissora.3

* Bolsista de produtividade do CNPq nível 2. Mestre e Doutora em História pela UFRGS, com Pós-doutorado
(Bolsa CAPES) pela Université Laval (Québec/Canadá). Membro pesquisadora do Instituto Histórico e
Geográfico do Rio Grande do Sul e curadora do Acervo Sandra Jatahy Pesavento, nesta instituição.
** UFRGS, Mestranda em História, bolsista CNPq.
1 O projeto está vinculado à BOLSA de Produtividade em Pesquisa (PQ/CNPq), com vigência até 28-02-2019, da
Professora Pesquisadora Nádia Maria Weber Santos.
2 O mesmo contou com financiamento da FAPERGS (PQG gaúcho 2014).
3 Alguns resultados do projeto (as grades formuladas, os passos da coleta de dados - a qual é inovadora em
pesquisa para a emissora, na sua relação com acadêmicos -, análises históricas das imagens das fitas e alguns
recortes temáticos nas mesmas, como por exemplo, o estudo de gênero feminino e os movimentos feministas no
Rio Grande do Sul, nas décadas de 1980 e 1990) foram apresentados pelos bolsistas em Salões de Iniciação
Científica em 2015, nas Universidades de nosso meio acadêmico, e pelas professoras em eventos nas
áreas de Comunicação e História, em 2015 e 2016. Além de artigos acadêmicos publicados em anais de
eventos e revistas acadêmicas, o projeto resultou em um livro, “TVs Públicas: memórias de arquivos
audiovisuais”, que conta com a colaboração de 38 pesquisadores experts na temática de IES brasileiras,
totalizando 22 capítulos, e um DVD (documentário) de imagens da pesquisa (making-off) e do material coletado.
Diante do rico material encontrado no acervo da TVE (qual seja: memória em imagens
da sociedade gaúcha, do Brasil e do mundo em seus diversos momentos históricos), por
exemplo: movimento feminista e suas lutas; depoimentos de Getúlio Vargas, de Leonel
Brizola e de Che Guevara; imagens da Campanha da Legalidade; de movimentos sociais e de
trabalhadores, como CPERS e Diretas Já; e memória de sua própria cultura, veiculada em
uma grade variada de programação, desde entrevistas, shows, lançamentos de peças teatrais
e discos, como por exemplo a última entrevista em vida do escritor Caio Fernando de Abreu,
pobremente indexado para busca, e do visível sucateamento da emissora (sem equipamentos
para visualizar as fitas, situação física do arquivo em situação precária, não utilização de
profissionais concursados, entre outros problemas), houve a necessidade de pensar a
nossa TV pública sob um outro viés: aquele das sensibilidades e da cultura, mais
especificamente relativo às expectativas da sociedade e à forma como a população percebe
seus conteúdos e se relaciona com eles. Assim, o atual projeto avança em relação ao anterior,
também, por trabalhar com outros tipos de fontes históricas, não mais imagéticas, mas que
deem conta deste outro enfoque, através de fontes orais (entrevistas com seus presidentes,
atual e antigos, funcionários servidores e CCs, artistas e telespectadores), fontes
eletrônicas ou digitais (mídias sociais e jornais online) e fontes documentais escritas (da
emissora e de publicações jornalísticas escritas do Estado).
A TVE-RS completou 40 anos em 2014 e foi a primeira emissora de comunicação
pública do Estado do Rio Grande de Sul. Junto com a Rádio FM Cultura (inaugurada em
1989) formam hoje a Fundação Piratini – Rádio e Televisão. Seu percurso histórico é
permeado por lutas políticas, entraves institucionais, incêndios, inúmeras mudanças de
grades de programação, passagem do sinal analógico para digital em 2015/2016 e
presidências que trocam a cada 4 anos com os governos eleitos – e, portanto, está em
constante altos e baixos, conforme os governos, que indicam os presidentes (‘trocas’
políticas, como todos sabem) e os cargos comissionados (CCs); estes nem sempre ligados à
área da comunicação ou à da cultura. Há um Conselho Deliberativo, criado em 1995, formado
por representantes da sociedade civil e entidades (CPERS, cineastas, músicos), mas que nem
sempre consegue ter voz ativa em determinadas deliberações. Foi a partir da criação deste
conselho que a TVE-RS passou a se denominar televisão pública (TORVES, 2006). Há,
também visivelmente, um constante conflito entre os servidores concursados e os
funcionários CCs, pois estes últimos exercem cargos importantes, como direção de
programação, direção de projetos especiais, setor de Marketing, entre outros, e nem sempre
tem o conhecimento do métier.
Em novembro de 2016, ainda no primeiro ano de pesquisa, o governador do estado do
Rio Grande do Sul José Ivo Sartori (PMDB) enviou para votação na Assembleia Legislativa
os projetos (PLs 246, 240 e 301) de extinção de nove Fundações Públicas do RS (ligadas à
cultura, ciência, pesquisa, saúde e tecnologia4), alegando necessidade de enxugamento de
4
Fundação de Ciência e Tecnologia (Cientec); Fundação Cultural Piratini (FPC, que mantém a TVE); Fundação
para o Desenvolvimento de Recursos Humanos (FDRH); Fundação de Economia e Estatística (FEE); Fundação
Estadual de Pesquisa Agropecuária (Fepagro); Fundação Estadual de Produção e Pesquisa em Saúde (Fepps);
Fundação Instituto Gaúcho de Tradição e Folclore (FIGTF); Fundação de Zoobotânica (FZB); Fundação Estadual
de Planejamento Metropolitano e Regional (Metroplan). Ver detalhes em http://g1.globo.com/rs/rio-grande-do-
sul/noticia/2016/11/governo-extinge-nove-fundacoes-e-reduz-numero-de-secretarias-no-rs.html. Acessado em
16/07/2017.
gastos no estado (dentro de uma votação maior, do pacote de ajustes fiscais) – e prevê a
demissão de aproximadamente 1200 funcionários, entre servidores e cargos de comissão. O
PL 246 (que incluía a Fundação Piratini) foi aprovado por 30 a 23 votos na Assembleia
Legislativa. Este processo ocasionou uma grande disputa entre os servidores, a sociedade
e o Estado e seus governantes, culminando em dias de guerra na Praça da Matriz em Porto
Alegre, dias estes que antecederam à noite da votação do pacote na Assembleia
Legislativa, em 21 de dezembro. Desde meados do segundo semestre de 2016, foram criados
movimentos para preservação da Fundação Piratini por parte dos servidores e as redes
sociais (principalmente Facebook) que ficaram repletas de depoimentos, notícias, gritos de
embates – a grande maioria contra a extinção da Fundação Piratini. Alguns atos-shows-
debates foram organizados pelos artistas e intelectuais da capital, principalmente em duas
praças públicas relevantes da cidade (Parque Farroupilha/Redenção e Praça da Matriz,
onde ficam as sedes dos poderes) e mobilizaram milhares de pessoas.
Neste momento, então, a pesquisa ganhou em profundidade, ampliando a coleta de
dados e a busca pelas sensibilidades, pois uma grande virada aconteceria na cena cultural
gaúcha veiculada pela emissora pública. Detalhes destes embates, mostrando a sensibilidade da
população em seus diversos segmentos, a partir de depoimentos em entrevistas de História Oral
e em redes sociais é o que detalha nosso projeto a partir de então. Aqui, apresentaremos uma
pequena parte deste todo, que diz respeito às respostas de alguns entrevistados sobre suas
experiências e sensibilidades em relação à TVE (“Quais experiências/sensibilidades lhe foram
proporcionadas durante o tempo como servidor na TVE-RS?
Quais experiências/sensibilidades sobre televisão pública lhe foram proporcionadas
durante sua gestão? ”), ou ainda, de alguns artistas e telespectadores nas redes sociais.

Uma televisão pública ideal deveria contribuir para o equilíbrio do sistema de comunicação
de uma nação, funcionando como um contrapeso ao sistema privado e fomentando a democracia e
a cidadania através da promoção da cultura, do conhecimento e da informação de forma universal,
ética e independente, com altos padrões de qualidade programática. Segundo Cury (2010, p. 120),
“duas variáveis impactam mais diretamente em todas as práticas de um sistema de comunicação
público – sua gestão e, especialmente, suas fontes de financiamento”. Isso porque tanto um ponto
quanto outro vão determinar a direção, aplicação e o volume dos investimentos, sejam em
conteúdo, tecnologia, serviços, entre outros.
Citando Leal Filho (apud Cury, 2010, p. 122), a autora refere que “o modelo público
consagrado internacionalmente é aquele que se mantém independente do Estado e do
comércio, política e financeiramente”. Sabemos que a BBC de Londres é a maior e melhor
TV pública do mundo e ela se mantém com uma quota que os cidadãos destinam a ela
anualmente.
A TVE-RS tem um papel de protagonismo na veiculação das
diversas manifestações culturais do Estado do Rio Grande do Sul. Ou seja, nos 43
anos de existência, houve um investimento razoável de ordem pública na emissora,
criando e recriando não só tecnologia compatível como (e, talvez, principalmente)
registros da cultura de nosso estado, conteúdos estes definidas como um bem cultural da
sociedade. Porém, como já mencionado, este percurso não foi uma linha reta ascendente,
tendo diversos percalços nas variadas gestões, e dependia do governo ou da vontade de
realização de seus presidentes. Interpretando os conteúdos das entrevistas com alguns ex-
presidentes,5 observamos que cada um, a seu modo, envolveu-se com um aspecto da
televisão, seja na criação de novas grades de programação, seja na sua manutenção
financeira a partir de projetos federais, ou na sua modernização e mesmo na sua missão
pública de comunicação – mas todos, até então, foram unânimes em dizer que tinham ‘carta
branca’ do governo do Estado para gerir a emissora – embora nem sempre isto se
configurasse na realidade e acabavam por deixar o cargo.
Embora seja uma emissora pública, com Conselho Deliberativo e muitos de
seus funcionários sejam concursados, quem investe financeiramente nela é o Estado, o que
implica em receitas não padronizadas nos diversos governos. Diferentemente de outras
emissoras públicas, como é o caso da paradigmática BBC do Reino Unido, a população não
auxilia em sua manutenção e, menos ainda, interfere em sua programação.
No site da Fundação Piratini, no link “quem somos”, escrito em 27 de maio de
2011, portanto no governo petista de Tarso Genro, sob a presidência do pesquisador e
professor universitário Pedro Osório – nosso primeiro entrevistado neste projeto – lê-se os
objetivos da emissora: Pluralidade, Criatividade, Interesse Público e Cidadania. E, mais
abaixo, está explícita sua missão: “promover comunicação democrática e que propicie o
acesso à informação, educação e cultura, estimulando a reflexão crítica da realidade.
Além disso, sua programação tem o compromisso de incentivar a participação social,
refletindo sua diversidade, expressões e seus anseios”. Segundo esta gestão, “o maior
objetivo da Fundação é oferecer à população gaúcha uma comunicação cidadã e de qualidade.
Mediante a produção de conteúdo adequado ao interesse do público, as duas emissoras – TVE-
RS e FM Cultura - contribuem significativamente para a geração de conhecimento,
estabelecendo nexos não aparentes da realidade e oferecendo contrapontos à abordagem das
emissoras de radiodifusão comerciais.”6

5
No item dedicado às fontes orais, indicaremos quantas e quais entrevistas foram feitas até o momento.
6.
Publicado em: <http://www.fundacaopiratini.rs.gov.br/?model=conteudo&menu=81>.Acessado em: 16/07/2017.
Lê-se, ainda, que seus programas, muitos deles com mais de duas décadas de exibição,
“têm como base a integração e a inclusão social, sendo reconhecidos pela pluralidade,
diversidade e valorização das culturas regionais e da identidade nacional.”
É uma constatação, a partir da entrevista com alguns funcionários, que no governo
petista de Tarso Genro, foi um dos períodos de maior crescimento da TVE e de
respeito aos seus funcionários. Porém, como já dissemos cada governo contribuiu com um
aspecto neste processo.
No atual governo estadual (do governador José Ivo Sartori), existiu desde o início uma
‘sombra’ em relação aos instrumentos de cultura de nosso Estado, tendo o atual governador, logo no
começo de seu mandato, em 2015, ameaçado extinguir alguns órgãos de cultura, bem como seus
financiamentos, incluindo a TVE-RS. Além disto, alguns contratos com funcionários deixaram de ser
cumpridos e não estão sendo admitidos profissionais concursados recentemente, etc. Assim, desde
2015, eclodiram vários movimentos dos cidadãos porto-alegrenses em redes sociais e em
manifestações públicas. Há muitas documentações disto em jornais do Estado, bem como em
redes sociais. Como exemplo no Facebook (rede social amplamente utilizada no Brasil para
manifestações de toda ordem, incluindo aquelas que são sérias reivindicações), desde meados de
2015, um grupo aberto em prol da preservação da TVE, chamado “Movimento para preservação da
TVE e FM Cultura”, que mobiliza centenas de servidores, telespectadores, artistas e intelectuais da
cena cultural gaúcha, noticiando ações de desmonte, atos de preservação, etc.7 Note-se, também,
que a TVE tem sua transmissão veiculada para as principais cidades gaúchas, não somente para a
capital (Porto Alegre).
Após a votação da PL 246, em dezembro de 2016, foi instituída uma nova
gestão encarregada de fazer a transição para a extinção da Fundação Piratini. O atual
presidente, Orestes Junior, também foi entrevistado por nós, e o mesmo afirma que está
responsável por implantar uma TV e uma Rádio “sustentável”. Segundo Orestes Júnior
(2017), o Governador Sartori irá manter a TVE e a FM Cultura, porém a Fundação Piratini
será extinta e a instrução que o mesmo segue é que “elas têm que custar menos para o Estado
e para a sociedade. E elas têm que se modificar e se modernizar. Só assim é que elas podem e
devem continuar”. Contudo, o projeto “sustentável” prevê a demissão de um número
considerável de funcionários/as.

As questões que norteiam os objetivos da pesquisa são: qual a importância da TVE da


Fundação Piratini para a cultura da sociedade gaúcha? Quais sensibilidades estão presentes na
população (redes sociais e fontes jornalísticas) e nos dirigentes (entrevistas) em relação à essa
emissora pública gaúcha? Qual a receptividade da sociedade gaúcha em relação à programação da
TVE? Qual a trajetória histórica da TVE da Fundação Piratini em termos de políticas públicas
especificadas na sua documentação? De que forma foram escolhidos e tratados os conteúdos de

7
Os conteúdos podem ser acessados no seguinte link: <https://www.facebook.com/groups/793536650682242/
>.Acessado em 16/07/2017.
programação a partir do olhar dos governos em cada período? Como podemos estudar aspectos da
memória da emissora e, consequentemente, da identidade cultural do Rio Grande do Sul a partir da
documentação pesquisada e dos depoimentos, na emissora e em redes sociais? De que forma a
realização da pesquisa histórica pode interagir com a sociedade e colaborar para a preservação da
emissora pública de TV?
Tendo o cenário cultural se transformado com a possibilidade de sua extinção, tornou-se
mais importante ainda destacar as sensibilidades da sociedade para com a emissora e, relatar, ao
final, a importância da TVE, de sua programação e de seu acervo, como dispositivo cultural da
sociedade gaúcha, colaborando para a discussão da necessidade de sua preservação no cenário
midiático do Estado, enquanto uma televisão pública – que é o objetivo central da pesquisa.
O campo das sensibilidades será introduzido, principalmente na sua relação com as fontes
orais da pesquisa, a fim de percebermos como as imagens produzidas pela TV pública e os
complexos processos que as constituem, nos mais variados âmbitos, têm sua reverberação naqueles
que as produzem e naqueles que são sensíveis a elas (e de que forma são sensíveis), tornando-a
dispositivo para cultura no Estado do Rio Grande do Sul. Para isso, a metodologia da História não
fica restrita aos procedimentos técnicos para a realização de entrevistas. Mas, enxerga a história oral
como um “recurso de transformação” (MEIHY, 2006, p. 194), pois é preciso que a mesma esteja
vinculada com os aportes teóricos na construção dos mecanismos instrumentais.
Sabe-se que a subjetividade e as sensibilidades também formatam o indivíduo em todas as
suas funções, tanto corporais, quanto sociais e culturais. Beatriz Sarlo (2007, p.18) postula uma
“guinada subjetiva”, ao admitir que, na contemporaneidade, existe a “revalorização da primeira
pessoa como ponto de vista, a reivindicação de uma dimensão subjetiva, que hoje se expande sobre
os estudos do passado e os estudos culturais do presente”. Onde, então, incluem-se “novas
exigências e métodos que tendem à escuta sistemática dos ‘discursos de memória’: diários, cartas,
conselhos, orações”. (SARLO, 2007, p.17). Independente da crítica que a autora faz a certos
‘dispositivos’ da memória em nossa atualidade e sua relação com a história, é importante sua
sugestão de que as narrativas testemunhais na primeira pessoa sejam submetidas a uma metodologia
de análise, antes de se tornarem fontes memoriais ou históricas sobre o passado. O que nos remete
à necessidade sempre imperiosa de se contextualizar as marcas de sensibilidade nos traços objetivos
do real. E fazer-se a “crítica da fonte” memorial.
A este respeito, uma passagem do texto de Pesavento (2005),8 sobre o trabalho com
as sensibilidades na História, vem ao encontro do que se pretende dizer, servindo para o
trabalho com a memória: “[...] mesmo as sensibilidades mais finas, as emoções e os
sentimentos, devem ser expressos e materializados em alguma forma de registro passível de
ser resgatado pelo historiador”. Para esse último, assim, a narrativa deve se fundamentar nas
“marcas de historicidade”, deixadas pelas fontes ou pelos registros de algo que aconteceu um
8.Referência na web, sem página. PESAVENTO, Sandra Jatahy. Sensibilidades no tempo, tempo das
sensibilidades, Nuevo Mundo Mundos Nuevos [En línea], Coloquios, Puesto en línea el 04 febrero 2005,
consultado el 14 abril 2013. URL : http://nuevomundo.revues.org/229.
dia “e que, organizados e interpretados, darão prova e legitimidade ao discurso historiográfico”.
Para o pesquisador no campo da memória não é diferente, embora guardadas as
respectivas diferenças metodológicas: postulamos que as sensibilidades podem constituir-
se em vetores memoriais que também deixam suas marcas na objetividade do mundo. Para
Pesavento, ainda, o território do sensível constitui-se em “território do não dito ou mesmo
do não provado, porque pertencem à esfera do sentimento, que tocam, não só na
subjetividade, mas também no coletivo”, onde tais indícios, “traços de sentimento”, se
insinuam em discursos, práticas e ritos. (PESAVENTO, 2001, p. 236).
Em relação às entrevistas, até o momento foram realizadas com dez pessoas:
2 manifestantes/telespectadoras na Praça da Matriz, durante as manifestações de dezembro,
4 ex-presidentes de períodos distintos, 1 atual presidente, 2 servidoras, 1 artista. Na fase de
construção dos roteiros das entrevistas, os mesmos são realizados por categoria (presidentes;
funcionários (as) – servidores e CC’s; artistas; telespectadores). No entanto, eles são
formulados de maneira semiestruturada, pois é o/a entrevistado/a que conduz a entrevista.
E, por muitas vezes, novas questões são adicionadas de acordo com as respostas dadas pelo/a
entrevistado/a.
Nesse texto destacamos dois aspectos relevantes na interpretação de cada entrevistado,
na categoria de “Presidentes” (4 ex-presidentes, 1 atual): o que cada um compreende por
sensibilidade e como sentem suas experiências na TVE ou proporcionadas pela TVE.

É um respeito pelo servidor público, eu acho que são pessoas majoritariamente dedicadas
que nesse ou naquele governo são pessoas que trabalham muito além de suas obrigações.
E eu vi isso na Fundação Piratini, pelo número considerável de servidores a maioria que
são absolutamente dedicados. Então, eu confirmei essa percepção que eu sempre tive
assim – o respeito. E, por outro lado, também trabalhar para desenvolver uma programação
que atendesse o interesse dos servidores, da audiência no que diz respeito à formação de
determinadas sensibilidades mesmo. Na construção de uma narrativa sobre o dia a dia que
fosse sensível as questões culturais, as questões de gênero, as questões ambientais.
(OSÓRIO, 2016, grifo nosso).
Eu vou te dizer, assim, que eu sou movida pelo afeto. Eu digo o afeto não no sentido do
carinho, mas de estar afeta as coisas. Então eu acho assim, no momento que eu passei a
estar afeta àquelas pessoas que faziam a TV, eu passei estar afeta às pessoas que assistiam
a TV e passei a estar afeta às pessoas que ouviam essa rádio. Então, eu acho que a minha
sensibilidade foi nessa minha disposição de estar afeta ao outro, de estar afeta ao projeto
que eu fazia. (MILLANEZ, 2017, grifo nosso).
O que proporciona mesmo é contato com as pessoas, esse é o porquê da coisa. Porque
normalmente são servidores que estão há muitos anos na casa, embora tenha sido concurso
e tudo mais, e eles tem um jeito muito seu de, e primeiro eles acham que são os donos
daquilo ali, e são – porque eles chegaram primeiro. [...] Porque aquilo ali é deles, foi eles
que construíram, já tiveram incêndios, já teve 4 ou 5 governos, alguns bons e outros ruins,
Presidentes bons e Presidentes ruins, chefes bons e chefes ruins, gente que roubou, gente
que não roubou, enfim, eles já viram de tudo. A cada 4 anos muda a orientação. (DUTRA,
2017, grifo nosso).
Do meu ponto de vista pessoal apesar de todas as dificuldades era um lugar de grande
satisfação. Porque se produz coisas, porque se faz coisas, porque se promove coisas e
coisas bacanas como a área cultural e abre espaço para a cultura local. E mesmo para
debates de coisas que não existem em mais nenhum outro lugar em que se debata coisa
nenhuma em televisão. Digo com vontade e seriedade, nós tentamos fazer algumas coisas
nesse sentido. Então, é um lugar assim apesar de tudo, e tenho um pouco a sensação que
todo mundo que passa por lá fica assim, tu cria um laço afetivo. Isso então é uma coisa
meio inevitável, talvez por todas as dificuldades. (MORAES, 2017, grifo nosso).
A TV tem a cara do Rio Grande do Sul. A gente sente isso andando pelos corredores aqui
desse prédio. Um prédio deteriorado é um prédio lá dos anos 40 que tem uma série de
problemas. Mas é um prédio, que os corredores exalam história aqui da TV. Então as
pessoas também. A gente entra nos estúdios é um ambiente diferente, é um ambiente
quente como eu chamo. Não é um ambiente frio de estúdio, ele tem história aqui dentro.
A gente enxerga e a gente sente isso na pele mesmo. (ANDRADE JÚNIOR, 2017, grifo
nosso).

Os testemunhos até agora coletados transmitem emoções das mais diversas em relação à
TVE. Entre os temas levantados pelos entrevistados o fator humano é o que recebeu maior destaque.
Esse fator está inserido tanto no lado individual de cada pessoa, como no lado coletivo social. Por
isso, destacamos que os cinco presidentes entrevistados (atual, e outros quatro ex-presidentes)
quando narram aspectos relacionados ao sensível, remetem sua fala às relações estabelecidas com
os servidores e funcionários no período de cada gestão. Alguns referem que a TVE é feita por essas
pessoas, independente de quem esteja presidindo-a, sendo os servidores que, em meio às mais
diferentes dificuldades de uma emissora pública e estatal, colocam diariamente a TV no ar.

A TVE-RS e sua produção de imagens constituem-se, assim, em dispositivos culturais, que


possuem significados político, ético e histórico dentro da sociedade, pois a televisão, ao produzir
imagens, ao guardá-las e no trabalho ativo de preservá-las faz de seu arquivo e de sua própria
existência um lugar de memória, um espaço privilegiado da memória coletiva, social e cultural.
Resgatar sensibilidades a respeito das imagens televisivas, ou mesmo de fragmentos delas ou de
todo o processo que envolve sua constituição, produção e sua recepção, torna a emissora e seu
arquivo valiosos às lembranças e imprescindível para a memória cultural (ASSMAN, 2013) da
sociedade, em seus instantes de verdade (DIDI-HUBERMANN, 2012) e na sua identidade
(POLLAK, 1992).
Cabe ressaltar que, ainda, não houve a extinção da Fundação Piratini, desde a votação do
PL em dezembro de 2016, pois as mobilizações dos servidores (apoiados por seus sindicatos) e da
sociedade (inúmeros atos, manifestações públicas e cartas ao governo do Estado) levaram o
processo a várias instâncias do judiciário (TRT, MPE, Ministério Público de Contas, MPT, etc.), as
quais estão, juridicamente, estancando o processo, devido à inconstitucionalidade de alguns itens,
como a demissão em massa de quase 1200 servidores. Está tudo ainda em discussão e, assim, as
sensibilidades em relação à nossa comunicação pública só faz aumentar o apoio da sociedade à
preservação das emissoras de rádio e televisão públicas.

ANDRADE, Orestes Jr. Porto Alegre. 25/05/2017. Entrevistadora: Nádia Maria Weber Santos;
Marluce Dias Fagundes. Arquivo de áudio: 62 minutos.

ASSMANN, A. Espaços da recordação: formas e transformações da memória cultural.


Campinas: Ed. da UNICAMP, 2011.

CURY, Maria Cecília Andreucci. A gestão e o financiamento da TV pública: limites do público e


do privado na paisagem midiática. In: Revista da ESPM – julho/agosto de 2010. p. 118-123.

DIDI-HUBERMAN, Georges. Imagens apesar de tudo. Lisboa: KKYM, 2012.

DUTRA, Flávio. Porto Alegre. 11/05/2017. Entrevistadora: Nádia Maria Weber Santos; Marluce
Dias Fagundes. Arquivo de áudio: 32 minutos.

FUNDAÇÃO PIRATINI. Disponível em:


<http://www.fundacaopiratini.rs.gov.br/?model=conteudo&menu=81>. Acesso em :16/07/2017.

MEIHY, José Carlos Sebe. Os novos rumos da História Oral: o caso brasileiro. Revista de
História 155, v. 2, p. 191-203.

MILLANEZ, Liana. Skype Porto Alegre- São Paulo. 16/06/2017. Entrevistadora: Nádia Maria
Weber Santos; Marluce Dias Fagundes. Arquivo de áudio: 93 minutos.

MORAES, Luiz Fernando. Porto Alegre. 16/06/2017. Entrevistadora: Nádia Maria Weber Santos;
Marluce Dias Fagundes. Arquivo de áudio: 65 minutos.

OSÓRIO, Pedro. Porto Alegre, 15/12/2016. Entrevistadora: Nádia Maria Weber Santos. Arquivo
de áudio: 73 minutos.

PESAVENTO, Sandra Jatahy. Ressentimentos e ufanismo: sensibilidades no sul profundo. In:


BRESCIANI, Stella; NAXARA, Márcia. Memória e (res)sentimento. Indagações sobre uma
questão sensível. Campinas: Ed. da UNICAMP, 2001.
POLLACK, Michael. Memória e identidade social. Estudos Históricos, Rio de Janeiro, v. 5, n. 10,
p. 200-212, 1992.

SANTOS, N.M.W.; COIRO MORAES, A. L. (Org.). TVs Públicas: memórias de arquivos


audiovisuais. São Leopoldo: Oikos, 2016.

SARLO, BEATRIZ. Tempo passado: cultura da memória e guinada subjetiva. São Paulo: Cia das
Letras, 2007.

TORVES, José Carlos Oliveira. TVE-RS - governos x conselho deliberativo: um estudo das
operações ideológicas no comando da emissora. Dissertação de Mestrado. PPGCOM –
FAMECOS. PUCRS.2006.
Marcos Luiz Hinterholz

Nas pesquisas que venho realizando desde 2014, tenho procurado entender o ambiente
Casa do Estudante para além do seu caráter de moradia e assistência estudantil, lançando um
olhar que busca pela gama de relações presentes nestes lugares. O conceito de instituição
educativa foi fundamental neste processo de inscrição da temática no campo da História da
Educação, num movimento de complexificação destes espaços de sociabilidade, revelando-
os potentes para as pesquisas sobre movimentos estudantis universitários em um sentido
latu. Um pouco sobre a história de formação da CEUACA lançará mais luz sobre esta
perspectiva de abordagem. Embora as primeiras mobilizações em prol da “Casa do Estudante
Pobre”1 tenham iniciado em 1931, a CEUACA foi fundada em 1934, mesmo ano de criação
da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). Como uma de suas
principais características, temos sua autonomia e autogestão,2 constituindo-se e mantendo-se a
partir da articulação dos próprios estudantes, responsáveis pela captação de seus recursos
financeiros, bem como toda a administração. Sua localização estratégica no centro político,
econômico e cultural da cidade, bem como sua independência em relação à
Universidade, instigam o olhar para outras formas de organização estudantil. Trata-se de
um convite a ultrapassar os muros da Universidade e refletir a operacionalização deste
complexo sistema e suas implicações na formação dos sujeitos habitantes, especialmente pelo
viés das experiências vividas. Como tão bem nos lembra Justino Magalhães (2004), as
instituições educativas são organismos vivos, integrados a uma estrutura mais ampla.
Transmissoras e produtoras de culturas, possuem especificidades que lhes conferem
identidades históricas. Isto complexifica sobremaneira trabalho da História da Educação,
especialmente ao se lançar a lupa sobre uma organização de moradia estudantil, mirando
com atenção as representações dos sujeitos habitantes destes espaços.
A História Cultural nos autoriza este olhar sobre a CEUACA. Mas faz-se
importante lembrar que até o início dos anos 1970, a cultura não tinha, mesmo no campo das
ciências humanas e sociais, uma centralidade ou peso epistemológico que permitisse o
seu reconhecimento na estrutura empírica real. A virada se inicia, mais precisamente, na nova
a

* Mestrando em Educação/UFRGS. .
1 Em 1933, os estudantes do Diretório Acadêmico da Faculdade Livre de Direito de Porto Alegre criaram a
‘Caravana Pró-Casa do Estudante Pobre” que percorreu o interior do estado buscando recursos para a construção
da Casa. No entanto, quando a entidade foi fundada em 1934, não assumiu o adjetivo “pobre”, chamando-se
apenas “Casa do Estudante”.
2
Autogerida porque toda a gestão era feita pelos próprios estudantes. Autônoma porque eram também os
estudantes responsáveis pela captação dos recursos financeiros que mantinham a Casa, por meio da articulação
com o poder público, através de campanhas de arrecadação de fundos ou a realização das famosas reuniões
dançantes das décadas de 1960 e 1970.
relação estabelecida com a linguagem: ela passa a constituir os fatos, não apenas a relatá-
los. As coisas só têm significado quando inseridas dentro de um determinado sistema de
classificação ou jogo da linguagem. Esta ótica faz possível, através da metodologia da
História Oral, buscar e interpretar representações, identidades e discursos que se produzem
no interior das Casas de Estudante.
Chamada para este diálogo, Ecléa Bosi (2003) vem lembrar que, embora o tecnicismo
reinante busque nos convencer da inutilidade da memória e dos sentimentos nostálgicos, eles são
intrínsecos à condição humana. Os seres experimentam de diferentes formas uma mesma época e
as memórias nos fazem perceber o quanto ela vem carregada de sentidos e elaborações. Para a
autora, mais do que experiências individuais, as narrativas de memória podem nos dar a ver a
complexidade do acontecimento, na medida em que toda percepção está impregnada de
lembranças, possuindo a memória uma função decisiva na elaboração das representações. As
narrativas de memória dos atores que viveram e experiência da moradia estudantil na CEUACA e
no seu entorno, podem potencializar as leituras sobre educação no contexto 1963-1981.
Abastecido com estes pressupostos e com as narrativas de memória de oito antigos
moradores, parto para a análise prometida. Os entrevistados são homens que vivenciaram a
CEUACA, nas décadas de 1960 e 1970. O enfoque aqui será a presença feminina nesta Casa do
Estudante, pois, embora oficialmente admitidas somente a partir de 1987, as mulheres, já nas
décadas anteriores circulavam neste espaço, contrariando preceitos e normas escritas nos estatutos
que regiam a instituição. Seja como moradoras clandestinas, frequentadoras dos bailes que lá
ocorriam ou namoradas dos ceuacanos, as suas presenças vêm mostrando-se marcantes.
Neste ponto, contudo, faz-se importante destacar que, embora este estudo tangencie a
temática da ocupação do espaço público pela mulher, entre eles a universidade, esta é uma
abordagem complexa, na qual não será possível um aprofundamento na presente perspectiva de
análise. Os elementos convocados para esta discussão são bastante pontuais, podendo apenas
fornecer uma leitura mínima do contexto da época, especialmente pelo tipo de fontes utilizadas,
circunscritas às representações que emergiram das narrativas de homens que viveram esta
coletividade. O objetivo maior da pesquisa foi o de escrever uma história da CEUACA, como
instituição educativa, e a circulação das mulheres neste espaço foi construída como uma das
categorias de análise para compreender aquela dinâmica institucional.

Pensar o processo de ocupação do espaço público pela mulher requer que nos remetamos à
longa história de organização política e reivindicatória por direitos sociais, sem deixar de considerar
alguns protagonismos individuais e iniciativas pioneiras.
Para a discussão aqui pretendida, parto do diálogo com Manuel Carvalho Prata (2002),
para quem, de modo geral, é a partir do século XIX que os discursos sobre a necessidade de
educação da mulher são impulsionados, sobretudo pelo papel a ela atribuído no seio da
família, a procura pela mão de obra feminina e as demandas das classes médias, que
culminavam com a necessidade de incorporação destas pelo mercado de trabalho. No
entanto, o autor alerta sobre a cautela que se deve ter na análise do fenômeno, sobretudo
ao tentar fixar datas ou quaisquer tipos de marcadores mais precisos sobre a
escolarização do sexo feminino e a ocupação do espaço público pelas mulheres. São
movimentos complexos e multifatoriais, com características específicas em diferentes
países e regiões, além de constituírem-se em processos lentos e cheios de sobressaltos.
Em consonância com a proposta do texto, orientarei a discussão a partir das
concepções de Casas de Estudante e sua relação com o ingresso das mulheres nas universidades,
mais precisamente no contexto gaúcho. Numa visada para fontes como a imprensa diária
porto-alegrense da década de 1930, na busca por representações sobre o movimento dos
estudantes da Faculdade Livre de Direito de Porto Alegre,3 que daria origem à primeira Casa
de Estudantes do Rio Grande do Sul, será possível notar um silêncio revelador sobre este
tipo de assistência à estudante mulher.
O movimento pró-moradia estudantil encontrou espaço nos jornais locais para as
suas demandas, muito provavelmente dentro de uma lógica discursiva preponderante nos
periódicos das primeiras décadas do século XX, desejosa, conforme apontado por Raquel
Discini de Campos (2009), de um projeto de modernização do país,4 o que passava
necessariamente pela educação. Porém, nem aquele movimento em favor de uma Casa de
Estudantes (composto somente por homens), nem a imprensa, levantaram a questão de uma
moradia para as moças. Assim, o Correio do Povo, em edição de 1935, trazia que a finalidade
da Casa do Estudante era a de proporcionar,

[...] ao estudante pobre, o máximo de conforto e assistência, de sorte que o moço destituído
de recursos materiais que se abrigar à sombra protetora do seu teto possa, sem sacrifícios
heroicos, finalizar o curso superior iniciado. [...] Agora, mais do que nunca se impõe a
realização integral deste plano, como medida inadiável, pois, no seio da classe estudantina
existem moços que deixaram de renovar suas matrículas por não disporem dos recursos
financeiros necessários, o que, uma vez transformada a “Casa do Estudante” num instituto
eficiente de assistência completa, desaparecerá definitivamente.” (Correio do Povo,
19/03/1935).

3A partir de 1934 torna-se a Faculdade de Direito da Universidade Federal do Rio Grande do Sul.
4“Reclamava-se ─ ou estimulava-se ─ do avanço feminino sobre espaços públicos no mesmo ritmo em que se
generalizava a crença na resolução científica dos problemas sociais, na democratização das escolas primárias e
profissionalizantes para todos os brasileiros, na necessidade da formação de um grande contingente qualificado
de professores que se dispuseram a lecionar Brasil afora, e em tantas outras necessidades e certezas anunciadas
que podem ser enfeixadas, enfim, sob o signo de um desejo maior que sintetizava todos os outros: o da
modernização do País”. (CAMPOS, 2009, p. 51)
Percebe-se que toda a preocupação gira em torno do “moço destituído de
recursos materiais”. Também em 1935, podia-se ler na Revista do Globo, que “a ideia da
fundação d’esse estabelecimento honra a cultura rio-grandense (...)”5 ou ainda, “Pobre ou
afortunado, a Casa do Estudante recebe, sem distinção, qualquer universitário de
comprovado merecimento.”6 Este curioso excerto, que fala na possibilidade de acesso
também do estudante afortunado àquela moradia, tenta revestir de um sentido democrático a
instituição, ainda que só destinada a um dos sexos.
Há uma significativa lacuna, que impede uma leitura mais clara sobre a situação da
mulher no Ensino Superior brasileiro, na década de 1930. A despeito dos esforços
empenhados, não consegui localizar dados estatísticos que pudessem dar uma ideia da
representação do sexo feminino nesta modalidade de ensino. Os anuários estatísticos do
Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), para aquela década, embora
forneçam dados referentes ao número de matrículas, não fazem a discriminação destas por
sexo. O importante a observar, no entanto, é que, ao menos para o contexto gaúcho, a questão
da moradia estudantil feminina parecia ainda não estar posta nem sequer no plano discursivo.
É somente a partir da década de 1960 que as informações sobre a presença feminina
nos espaços acadêmicos começam a constar de forma mais clara nos censos universitários. É o
caso do trabalho intitulado "Caracterização Socioeconômica do Estudante Universitário”, uma
pesquisa do Centro Brasileiro de Pesquisas Educacionais, realizada ao longo de 1965 (publicada
em 1968), com estudantes dos primeiros anos, abrangendo todas as escolas superiores
sediadas nas capitais dos estados (desde que contassem com mais de 4.000 matriculados).
Considerando os dados da matrícula do ano letivo de 1964, nestas dez cidades se concentrava
90% da população universitária brasileira. Trata-se, portanto, de um levantamento bastante
representativo.
Numa mirada rápida sobre estes dados, tem-se que, para a década de 1960, em Porto
Alegre, 67,55% dos estudantes são do sexo masculino e 32,45% do sexo feminino.7
Mais uma vez é necessário muita cautela ao interpretar dados como este. Raquel
Discini de Campos (2009), nos faz atentar para o fato de que, se por um lado a emergência
de algumas novas profissões contribuiu na busca pela independência econômica e social
das mulheres mem uitos relação destesaos emprhomens, egos epor ram outro, percebidos
como uma extensão pública de papéis sociais historicamente atribuídos às mulheres, “pois
requeriam qualidades supostamente constitutivas do “sexo frágil”, como paciência, docilidade,
sensibilidade e disposição intrínseca à submissão”8 (CAMPOS, 2009, p. 83). Já as profissões
VVV
Revista..do..Globo,..a...7,..n...172,..2ª..quinz...nov/1935,..p...58.
5..
Idem.
6..
7 Fonte: Caracterização Socioeconômica do Estudante Universitário. Pesquisa do Centro Brasileiro de Pesquisas
Educacionais, promovida em 1965.
8 Esta análise de Raquel Discini de Campos refere-se às décadas de 1920 e 1930, quando estuda as representações
sobre a mulher na imprensa do interior paulista do período. Penso que a ideia continua potente para pensar as
décadas posteriores, visto o longo processo de conquista de independência econômica e social das mulheres, que se
faz sentir ainda no tempo presente.
mais rentáveis e socialmente valorizadas, continuavam sendo ocupadas predominantemente
por estudantes do sexo masculino.
A primeira Casa de Estudantes para mulheres no Rio Grande do Sul surgiu
tardiamente, estando relacionada à criação da Escola de Enfermagem de Porto Alegre, em
1950, que já em seu plano trazia prevista uma moradia, visto as alunas fazerem o curso em
regime de internato. A professora Maria de Lourdes Verderese, primeira diretora da Escola,
vinda de São Paulo para criar curso, destacou neste documento o que esta Casa deveria
oferecer. São destacados aspectos como cuidado que se queria ter para com estas moças,
buscando proporcionar-lhes uma vida em família, com “o necessário controle social.”9
Também estão presentes os sentimentos que deveriam fundamentar a residência: “doce
afeição” e “amizade”. Estas ideias corroboram com o debate sobre as lentas conquistas de
independência pelas mulheres, estando sua inserção nos espaços públicos não totalmente
despida da ideia do “sexo frágil”, mobilizando em torno de si toda uma rede de proteção e
um controle vigilante.
Já a segunda moradia estudantil feminina porto-alegrense foi fundada em 1º de agosto
de 1956, agora para abrigar mulheres de todos os cursos. A iniciativa pioneira partiu das
estudantes Maria Rosalina Fim e Gladys Campos (Odontologia), Dirce Caputo e Eloá Dias
(Medicina), Henriqueta Morais, Cecy Schimitz e Nina Rosa Wildner (Filosofia). A Casa da
Estudante Universitária do Rio Grande do Sul (CEURGS), como foi chamada, contou com as
mesmas dificuldades das demais Casas autônomas e autogeridas, com uma estrutura precária e
sucessivos despejos e mudanças de sede.10
Ao nos voltarmos para os registros nos primeiros documentos escritos produzidos por
estas moradoras, no âmbito da CEURGS, já é possível notar um discurso que remete a um
tabu em relação ao sexo masculino. Nos estatutos da Casa, lê-se determinações como a
proibição do “estacionamento das moradoras em frente da CEURGS quando acompanhadas de
pessoas do sexo masculino, mesmo parentes”11. Ao lado deste ítem do regulamento, uma
observação: “a norma refere-se a toda frente do edifício (SILVA, 2004).” Outros registros, em
atas das reuniões da Casa, também dão conta de preocupações neste sentido:

Fazendo uso da palavra a colega vive-presidente pediu a Diretoria tomar


providências no sentido de salvaguardar o bom nome da Casa, uma vez que houve
descaso por parte de moradoras neste particular, afim de evitar futuras possíveis
aglomerações nos arredores da Sede que venham desprestigiar a CEURGS. (Ata n.
10, 19 mar. 1957. Casa da Estudante Universitária. Apud. SILVA, 2004, p. 52).

9
Plano de Organização da Escola de Enfermagem, apud SILVA, 2004, p. 42.
10..
Em 1977, após os sucessivos despejos, a Universidade Federal do Rio Grande do Sul intervêm,
cedendo o prédio da Rua São Manuel, 573, encampando a CEURGS e tornando a um órgão da Universidade.
Após longas discussões em assembleias, com o apoio da União Nacional dos Estudantes e as demais Casas, em
1988 passou a admitir também moradores do sexo masculino.
11..
Casa da Estudante Universitária. Regimento, 1959, p. 9. Apud. SILVA, Ângelo Ronaldo Pereira da. (Org.). As
Casas de Estudante da UFRGS. Porto Alegre: UFRGS, 2004.
Percebe-se que esta vigilância não parte somente de uma moral externa, havendo
também um controle interno por parte das estudantes administradoras da Casa neste
sentido, visto serem igualmente perpassadas pelos valores de uma época. Além disso,
como se verá mais adiante, especialmente para as moradias autônomas, havia a
preocupação em manter uma “boa imagem” da Casa para a sociedade, de quem em certa
medida estas jovens mulheres dependiam para a captação de auxílios finaceiros,
mantenedores da instituição.
O apanhado histórico realizado até aqui, buscou compor um cenário sobre a
situação feminina no Ensino Superior, bem como fornecer elementos para a discussão que se
desenrolará a seguir, qual seja, o da circulação das mulheres no espaço destinado à moradia
masculina e suas implicações para a história da instituição CEUACA.

Ao retomar o eixo da análise, volto para o contexto da CEUACA, onde se pode


verificar uma estrutura administrava complexa, fruto da manutenção de uma ampla rede
de assistência fornecia aos estudantes, indo de Restaurante Universitárioaserviços
odontológicos. A manutenção deste sistema exigiu uma estrutura burocrática, com
estatutos para cada um dos seus 12 departamentos. Há que se considerar ainda, que a
convivência de cerca de 120 moradores em um espaço comum, também impunha formas de
regulação do convívio. Para além destes aspectos de organização doméstica da Casa, os
regimentos nos dão a ver valores e imagens que a instituição buscou construir ou manter de
si. Trata-se daquilo que Justinho Magalhães (2004) chamaria de uma “representação oficiosa”,
buscando assinalar uma imagem e um histórico “junto do poder central, da inspeção e do seu
público-alvo” (MAGALHÃES, 2004, p. 127).
Neste aspecto, a mesma vigilância sobre as estudantes universitárias discutida até
aqui, parece ter recaído também sobre a moradia estudantil masculina, com normas que
interditavam e puniam relações de proximidade com o sexo feminino. É o que se pode notar
no estatuto vigente na CEUACA, na década de 1960, em seu capítulo III, artigos 24 e 25,
onde se lê:
Art. 24 ─ Manter conversações com as empregadas, salvo em caso de estrita necessidade
ou em desempenho das próprias funções:
PENA: Suspensão do talão das refeições por um dia.
§ único – Se ficar provado que a palestra é de caráter libidinoso:
PENA: Suspensão do talão de refeições de um a dois meses.
Art. 25 – Manter relações libidinosas com as empregadas:
PENA: Expulsão de ambos da Casa do Estudante.
§ único – A denúncia do infrator, devidamente comprovada, poderá ser feita por
qualquer morador ou cooperativado ao Diretor Interno ou Presidente da Casa do
Estudante.12

Uma primeira mirada a este instigante excerto deve ter produzido no leitor sensações
parecidas com as que experimentei ao deparar-me com este documento, pois impressionam os
aspectos relativos ao detalhamento e rigidez das penalidades. O emprego da metodologia da
História Oral, no entanto, tem possibilitado a identificação de dissonâncias entre os preceitos as e
formalidades dos estatutos e as práticas que se desenrolavam no espaço da Casa, especialmente no
que diz respeito às relações com o sexo feminino. Uma das primeiras entrevistas que produzi para
a presente pesquisa foi com Nereu Lima. A questão em torno da não aceitação das mulheres como
moradoras surgiu de forma espontânea, elaborada da seguinte forma em sua narrativa:

Claro que ninguém é perfeito, e se existia algum pecado venial lá, era por nós não termos
avançado, na época, em relação ao “Clube do Bolinha”. Havia na CEUACA a vedação
de residência para mulheres. Eu fiquei muito contente quando mais tarde tomei
conhecimento de que elas conquistaram o direito de morar na Casa. (Nereu Lima.
Narrativa de memória produzida em 19/11/2015).

A partir da escuta atenta destas falas, um elemento figurou-se chave para a leitura de algumas
subversões à norma escrita: a autogestão. Ela parece ter permitido certas soluções negociadas para
problemas críticos com os quais os estudantes (e não estudantes também, como se verá a seguir)
deparavam-se. Como no início dos anos 1970, quando Flávio consegue convencer a direção da
CEUACA a admitir como moradora sua companheiraMarisa, não estudante e funcionária de uma
loja no centro de Porto Alegre. Se por um lado a Casa cometia o pecado venial de não abrir-se ao
ingresso das estudantes do sexo feminino, por outro, acabou mostrando-se acolhedora em
determinados episódios.
É assim que a autonomia e autogestão da CEUACA vão perpassando todas as categorias de
análise deste estudo, pois para além de mera característica administrativa, reverberam nas questões
atinentes aos costumes, engendrando um complexo jogo de representações, que a narrativa de Paulo
d’Ávila torna ainda mais evidentes:

E nós fizemos uma reunião com ex-moradores que estavam interessados em contribuir
financeiramente. Mas tinha um problema de costumes dentro da Casa, e nós alertamos os
moradores para que tivessem um certo cuidado. Só que eu acho que um dos moradores
não foi avisado desta reunião e entrou com uma moça dentro da Casa. Nós estávamos lá
na parte de baixo com estes ex-moradores e foi um estrago danado na nossa reunião. Eles
queriam contribuir financeiramente, mas queriam opinar sobre os costumes da Casa. E era
outra realidade, eles eram da década de 1950, nós estávamos na década de 1970. Eles

12 Estatuto da CEUACA que vigorava na década de 1960. Encontra-se junto ao acervo da


CEUACA, salvaguardado do Arquivo Histórico do Rio Grande do Sul.
achavam que se eles contribuíssem, certas coisas não poderiam ocorrer aqui na Casa. E aí
um conservador desses, colocou água na fervura, e o nosso projeto não andou.
(Paulo d’Ávila).13

Aqui percebe-se um pouco deste jogo entre as práticas no interior da instituição e a


autoimagem que esta parecia querer transmitir em determinados momentos, visando a obtenção do
que que Pierre Mayol (1997) chamou de “benefícios simbólicos”. Omitir que as mulheres
circulavam pela CEUACA visava, neste caso, comunicar uma ideia aos possíveis futuros
colaboradores financeiros da instituição, qual seja, a de que na Casa eram observados os preceitos
reativos aos “bons costumes”.
Ainda sobre o excerto acima transcrito, há um outro aspecto da fala de Paulo d’Ávila que
me parece candente para este estudo: o seu diagnóstico de que teriam sido as diferenças geracionais,
entre moradores das décadas de 1950 e 1970, as causadoras do imbróglio narrado. Havia de fato
todo um discurso de contracultura que questionava a autoridade do Estado e da família,
perpassando também a sexualidade. É neste sentido que se pode estabelecer uma ligação entre a
narrativa de Paulo d’Ávila com a de Edson Canabarro, morador da CEUACA entre 1968-1972,
hoje professor aposentado do magistério público estadual. Ao me receber para uma entrevista em
seu apartamento, numa quente tarde do março porto-alegrense, relata:

Eu acho que naquela época houve a revolução sexual. Já que estava sendo vencida a luta
política contra a Ditadura, pensamos: vamos fazer a revolução sexual! Foi também quando
apareceram as camisinhas e os anticoncepcionais. Naquela época era difícil conseguir; era
preciso ir até as farmácias da periferia para comprar. Eu acho que houve uma a revolução
sexual. O Reich (1968), filósofo do sexo era lido. Tem um livro chamado A Política do
Orgasmo[...] Eu li um livro dele que se chama Irrupção da Moral Sexual e Repressiva.
(Edson Canabarro. Entrevista em 08/03/2017).

A narrativa transparece, além de práticas de leitura, as estratégias necessárias para a vivência


deste contexto incipiente de liberdades sexuais, como o deslocamento até as periferias da cidade,
na busca por camisinhas e outros contraceptivos. Foram recorrentes nas memórias de antigos
moradores, menções à vivência da sexualidade naquele contexto, embora sempre de forma
impessoal, referindo-se ao coletivo CEUACA e reservando-se de revelar experiências pessoais.
“Ali acontecia tudo aquilo que você possa imaginar na relação entre homem e mulher”, contou-me
Paulo Guimarães. (Entrevista em 08/10/2015) “Nós não dispúnhamos de recursos para estar indo
para algum lugar, pagar um motel ou seja lá o que for, e esses relacionamentos íntimos, afetivos,
sexuais, tinham que acontecer em algum lugar”, relembra Nereu Lima (Entrevista em 19/11/2015).
Neste mesmo sentido, Nivaldo Cunha, morador entre 1976-1981, significa o papel da Casa para os

13
Fala de Paulo d’Áviladurante a cerimônia de comemoração dos 65 anos da CEUACA, em 1999. Disponível
para acesso em:<https://www.youtube.com/watch?v=LaDF3LdGfNs&t=881s>.
“ritos de passagem para a vida adulta”, e atribui ao espaço desta moradia, uma dimensão estratégica
para as liberdades de comportamento.

A Casa do Estudante e a Universidade eram quase um rito de passagem para as coisas da


vida, para a atividade sexual, o namoro, tudo isso. Neste aspecto, a Casa facilitava, porque
não havia restrição de entrada de pessoas do outro sexo. Então ali também era
normalmente a iniciação sexual do jovem que vinha do interior. Entravam como
adolescentes sem quase nenhum conhecimento da vida e depois de 4 ou 5 anos tornavam-
se adultos. [...] Eu convivi com as outras Casas de Estudante, as da UFRGS, que eram
divididas em femininas e masculinas, com um policial armado na portaria, que não
permitia a entrada das pessoas do outro gênero. Isso era muito rígido, com um
controlemuito forte da administração universitária. Mas a característica da nossa Casa do
Estudante [CEAUCA] era diferente. Embora a moradia não fosse mista, a entrada do
grupo feminino era permitida. O estudante morador poderia levar uma namorada para
dormir lá sem problemas. Nas outras Casas era proibido. (Nivaldo Cunha. Entrevista em
18/04/2017).

Quando Pierre Mayol (1997) discorreu sobre o morar no clássico A Invenção do Cotidiano,
pensou o papel do bairro para o controle, por meio de uma vontade coletiva, das práticas sexuais
individuais. Entre as suas considerações está a de que este, enquanto espaço público, “não dispõe
de nenhum poder de regulamentação ou de coerção para subordinar a uma vontade coletiva a prática
sexual efetiva dos seus frequentadores. [...] Ele [o bairro] só tem poder sobre o discurso, sobre
“aquilo que se diz do sexo” (MAYO, 1997, p. 62). Trazendo estas considerações para pensar as
tentativas de controle social representadas pelas regras instituídas, os guardas nas portas das Casas
de Estudante e as formas de subverter estes bloqueios, narrados por Nivaldo, nota-se que este
controle não pode ser total, estando, como qualquer norma, sujeita a toda sorte de transgressões.
Penso que seja mais importante, dentro da proposta do estudo, qual seja, o de construção de
uma história para a instituição CEUACA, nos voltarmos novamente para o seu caráter de autonomia
financeira e administrativa, central para a análise. Uma das consequências desta característica foi a
necessidade de realizar semanalmente as chamadas “reuniões dançantes”. Além de serem sua
principal fonte de arrecadação de recursos financeiros, conforme relatado por todos os
entrevistados, é o momento em que a Casa se abria de forma mais ampla para o mundo exterior,
dando entrada para uma outra rede de sociabilidades sobre a qual buscarei refletir a partir daqui,
iniciando pelo relato de Nivaldo, que conta:

Tratava-se de uma festa popular, um baile, com música mecânica. A boate ficava em cima
do restaurante da Casa do Estudante; era um espaço grande. E as pessoas que
frequentavam ali a gente via que eram empregadas domésticas, funcionárias do comércio.
O valor financeiro para entrar não era alto, porque na época haviam as boates da moda que
eram boates caras que isolavam pelo estrato social. E a festa era sempre lotada, sempre
cheia. (Nivaldo Cunha. Entrevista em 18/04/2017).
Especificamente quanto à circulação das mulheres por este espaço, o que apresentei foram
alguns aspectos, compostos a partir das memórias de oito homens. São matizes que julguei
importantes para o objetivo maior deste estudo. Tal perspectiva não deve, portanto, ser
absolutizada, sob pena de impedir que emerjam novas nuances deste jogo de relações. Sempre
novos sentidos podem ser apreendidos por meio de outras formas de incursão, outros olhares.
Enquanto estudante morador deste espaço plural chamado Casa do Estudante, há múltiplas formas
de colocar-se e perceber as ambivalências nele contidas e suas respectivas formas de significação.

Analisar a presença da mulher neste espaço de moradia destinado a estudantes do sexo


masculino permitiu perceber a complexidade das dinâmicas internas das instituições educativas. O
emprego da metodologia da História Oral potencializou o alcance de outros sentidos sobre a
vivência e funcionamento deste espaço-social, indo para além das “representações oficiosas”. Se
por um lado, a CEUACA possuía regimentos com normas rígidas, uma vez que era necessário
manter aos olhares de fora uma ideia de ordem, de institucionalidade sólida, de respeito aos bons
costumes, por outro, eram-lhe impostas outras contingências estudantis das quais precisava dar
conta. A realidade era sempre mais complexa do que seus estatutos poderiam prever.
Embora a Casa não esteja apartada do contexto universitário, político e social do período,
ela parece ter possibilitado experiências e vivências específicas a moradores, hóspedes, comensais,
funcionárias e a frequentadores em geral. A pesquisa vem demostrando ainda como pode ser
equivocada uma discussão em torno da chegada das mulheres à Universidade quando estas são
entendidas como uma categoria social homogeneizada e o quanto ainda há a ser estudado neste
aspecto, especialmente em relação àquelas oriundas das camadas populares.
Certamente, muitas das questões aqui levantadas merecem leituras mais detidas. Por hora,
talvez o movimento mais importante seja o de sinalizar a presença de outros matizes e
possibilidades para o estudo das organizações estudantis universitárias, compartilhando fontes e
possibilidades de interpretação, ainda que incipientes.

BOSI, Ecléa. O tempo vivo da memória: ensaios de Psicologia Social. São Paulo: Ateliê Editorial,
2003.

_____. Memória e sociedade: lembranças de velhos. 17ª ed. São Paulo: Companhia das Letras,
2012.
BURKE, Peter. O que é História Cultural? Tradução de Sérgio Goes de Paula. Rio de Janeiro:
Zahar, 2008.

CAMPOS, Raquel Discini de. Mulheres e crianças na imprensa paulista, 1920-1940: educação e
história. São Paulo: Ed. UNESP, 2009.

CERTEAU, Michel de. A invenção do cotidiano: 1. Artes de fazer. 2. ed. trad. de Ephraim F.
Alves e Lúcia Endlich Orth. Petrópolis, RJ: Vozes, 1996.

CERTEAU, Michel de; GIARD, Luce; MAYOL, Pierre. A invenção do cotidiano: 2. Morar,
cozinhar. trad. de Ephraim F. Alves e Lúcia Endlich Orth. Petrópolis, RJ: Vozes, 1997.

CHARTIER, Roger. A história: a leitura do tempo. Fronteiras do Pensamento. São Leopoldo: Ed.
UNISINOS, 2008. p.163-178

_____. A História Cultural: entre práticas e representações. Lisboa: DIFEL, 1990.

CUNHA, Maria Teresa Santos. Nas margens do instituído: memória/educação. In. História da
Educação. ASPHE/FaE/UFPel, Pelotas, v. 5, p. 23-28, abril de 1999.

FAUSTO, Bóris. História do Brasil. 14ª ed. São Paulo: Edusp, 2012.

HALBWACHS, Maurice. A memória coletiva. São Paulo: Centauro, 2003.

HINTERHOLZ, Marcos Luiz. Tácitas e marginais: memórias das Casas de Estudante autônomas
de Porto Alegre e as possibilidades para a História da Educação. In: História da Educação, v. 21,
p. 435-448, jan/abr. 2016.

HOLZMANN, Lorena. (Org.) Universidade e repressão: os expurgos na UFRGS / Associação de


Docentes da Universidade Federal do Rio Grande do Sul. 2. ed. Porto Alegre, RS: L&PM, 2008.

HOLZMANN, Lorena; PADRÓS, Enrique Serra. 1968: contestação e utopia. Porto Alegre: Ed.
da UFRGS, 2003.

KAUFMANN, Carolina. (Org.). Dictadura y educación. Tomo 1: Universidad y Grupos


Académicos Argentinos (1976-1983). Salamanca: Fahren House, 2017.

MACHADO, Otávio Luiz. Repúblicas Estudantis de Ouro Preto e Mariana: percursos e


perspectivas. Frutal: Prospectiva, 2014.

MARINHO, Nailda. O Fundo Federação Brasileira pelo Progresso Feminino: uma fonte múltipla
para história da educação das mulheres. Acervo, Rio de Janeiro, v. 18, p. 131-146, jan/dez. 2005.
MARTINS, Ana Paula Vosne. “Um lar em terra estranha”: a aventura da individuação feminina.
A Casa da Estudante Universitária de Curitiba nas décadas de 50 e 60. (Dissertação de Mestrado)
– Programa de Pós-Graduação em História da Universidade Federal do Paraná, Curitiba, 1992.

MACHADO, Otávio Luiz. Casas de estudantes e educação superior no Brasil. In. M. Zaidan
Filho & O. L. Machado (Org.), Movimento Estudantil Brasileiro e a Educação Superior. Recife:
Ed. Universitária. p. 191-208.

MOTTA, Rodrigo P. Sá. As universidades e o regime militar: cultura política brasileira e


modernização autoritária. Rio de Janeiro: Zahar, 2014.

MAGALHÃES, Justino Pereira de. Tecendo nexos: história das instituições educativas. Bragança
Paulista: Ed. Universitária São Francisco, 2004.

PESAVENTO, Sandra Janahy. Um dia, em um outro tempo. In: OLIVEIRA, Carmem Regina de;
LICHT, Flávia Boni. (Org.). UFRGS 70 ANOS. Porto Alegre: Ed. da UFRGS, 2004.

POLLAK, Michael. Memória e identidade social. Estudos Históricos. Rio de Janeiro, v. 5, n.10,
1992, p.200-212.

PRATA, Manuel Alberto Carvalho. Academia de Coimbra (1880-1926): contributo para a sua
História. Coimbra: Imprensa da Universidade de Coimbra, 2002.

RAGO, Elisabeth Juliska. A ruptura do mundo masculino da medicina: médicas brasileiras no


século XIX. Revista do Núcleo de Estudos de Gênero, Pagu, SP. v. 15, p. 199-225, dez. 2000.

REICH, Wilhelm. Revolução Sexual. Trad: Ary Blaustein. 8ª ed. Rio de Janeiro: Zahar, 1968.

RICOUER, Paul. A memória, a história, o esquecimento. Tradução de Alain François. Campinas,


SP: Ed. da UNICAMP, 2007.

SCHWARCZ, Lilia M; STARLING, Heloisa M. Brasil: uma biografia. São Paulo: Companhia
das Letras, 2015.

SOIHET, Rachel. História das Mulheres. In. CARDOSO, Ciro Flamarion; VAINFAS Ronaldo.
Domínios da História. Rio de Janeiro: Elsevier, 1997.
Cíntia Vieira Souto*

O presente trabalho tem como fontes orais doze entrevistas realizadas com membros do
Ministério Público do Rio Grande do Sul que atuam na área ambiental. As entrevistas foram
realizadas entre setembro e novembro de 2016 e publicadas em forma de livro em 2017. O objetivo
é resgatar a história da intervenção do Ministério Público do Rio Grande do Sul em matéria
ambiental, desde a década de 1970, quando o tema era quase desconhecido, passando pela
Constituição de 1988 e pela necessidade de aparelhamento e capacitação da instituição para a tarefa
e chegando na complexidade dos dias atuais.
O termo meio ambiente é, sem dúvida, um dos mais repetidos na contemporaneidade.
Reportagens, documentários, livros, artigos, Organizações não Governamentais ─ ONGs ─,
museus, etc., são dedicados ao tema. Nas campanhas políticas, no Brasil e no mundo, é uma das
matérias mais cobradas dos candidatos. Tragédias como a recente em Mariana, Minas Gerais, nos
recordam das consequências de negligenciá-lo. Essa ubiquidade nos faz esquecer o quão recente é
a atenção dada às questões ambientais. Foi na década de 1970 que a velocidade de exploração da
natureza e as primeiras grandes catástrofes decorrentes da utilização predatória de
recursos ensejaram preocupação internacional com o tema.1
A partir desse momento, os ordenamentos jurídicos dos diversos países passaram a dar
atenção à matéria. No Brasil, de acordo com Marchesan, Steigleder e Cappelli, o Direito Ambiental
aparece como ramo autônomo somente a partir de edição da Lei da Política Nacional do Meio
Ambiente em 1981. Até essa data, não havia um conceito amplo de meio ambiente, sendo ele
tratado “pelo direito privado, através do direito de vizinhança, ou de providências legais e
administrativas setoriais, tomando os bens ambientais de forma estanque, sem que entre eles
houvesse alguma concatenação” (MARCHESAN; STEIGLEDER; CAPPELLI, 2013, p. 18).
As autoras consideram que o período republicano brasileiro pode ser dividido em três
fases com respeito à tutela ambiental: a) 1889 a 1981: formação do Direito Ambiental; b) 1981-

* Historiadora do Ministério Público do RS, Doutora em Estudos Estratégicos Internacionais, Mestre em Ciência
Política
1 A Conferência de Estocolmo ocorreu na Suécia, entre 5 e 16 de junho de 1972, com a participação de 113
países debatendo problemas ambientais.
1988: consolidação do Direito Ambiental; c) a partir de 1988: fase contemporânea. No
período de formação, o meio ambiente era tratado por intervenção estatal no âmbito do direito
público ou por regras de direito privado. “Não se cogita de um direito difuso sobre um bem
pertencente a todos, mas vigora a ideia de que o meio ambiente é res
nullius” (MARCHESAN; STEIGLEDER; CAPPELLI, 2013, p. 26).
O período de consolidação iniciou com a publicação da Lei nº 6.938 de 31 de agosto
de 1981, Lei da Política Nacional do Meio Ambiente, uma lei marco, nas palavras de
Sílvia Cappelli (SOUTO; JUNG; CARRION, 2017, p. 262). Editada no período da ditadura
militar, a lei contemplava um instrumental inovador e descentralizador, estabelecendo
princípios e objetivos da Política Nacional do Meio Ambiente, o Sistema Nacional do
Meio Ambiente (SISNAMA) e os instrumentos da política ambiental. A lei define no inciso I
do artigo 3º meio ambiente como: “o conjunto de condições, leis, influências e interações
de ordem física, química e biológica, que permite, abriga e rege a vida em todas as suas
formas”, claramente superando a visão utilitarista do meio ambiente que predominava na
fase anterior. Conforme Suely de Araújo, a Lei adotou a ideia do desenvolvimento
sustentável e, de forma ainda mais inovadora, o princípio do poluidor pagador (ARAÚJO,
2008, p. 237). Além disso, previu a responsabilidade civil objetiva por dano ambiental e a
legitimidade do Ministério Público para a tutela do meio ambiente. O SISNAMA era
considerado confuso e, por muito tempo, não efetivado. A esse respeito, Ana Maria
Marchesan declarou que a Lei Complementar nº 40 de 2011:

organizou essa grande bagunça que era o Sistema Nacional de Meio Ambiente,
discriminando bem as competências da União, dos estados, do Distrito Federal e dos
municípios. Embora ainda haja várias ações envolvendo problemas nessa distribuição de
competências em matéria ambiental, a lei, em alguma medida, deu uma organizada
(SOUTO; JUNG; CARRION, 2017, p. 91).

Após, já no período da redemocratização, foi editada a Lei nº 7.347 de 24 de julho de


1985, Lei da Ação Civil Pública, predominantemente processual. Segundo Marchesan,
Steigleder e Cappelli, a Lei é:

ainda o principal instrumento processual civil utilizado para a tutela ambiental no Brasil e,
dentre cujos méritos, podem-se destacar a ampliação da legitimidade ativa para alcançar
as associações de proteção do meio ambiente, a possibilidade de tutela preventiva através
de liminares e cautelares, a coisa julgada erga omnes, o amplo objeto, consistente na
condenação do réu em obrigações de fazer, não-fazer ou indenizar (MARCHESAN;
STEIGLEDER; CAPPELLI, 2013, p. 29).

Na sequência veio a Constituição de 1988 que conferiu, pela primeira vez, capítulo
próprio ao meio ambiente. Diz o artigo 225:
Art. 225. Todos têm direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado, bem de uso
comum do povo e essencial à sadia qualidade de vida, impondo-se ao Poder Público e à
coletividade o dever de defendê-lo e preservá-lo para as presentes e futuras gerações.

O meio ambiente é considerado bem de uso comum do povo e como bem jurídico
autônomo, ou seja, diversos dos bens que o compõe. Há um enorme avanço em relação à
definição que consta na Lei da Política Nacional do Meio Ambiente. A Constituição estabeleceu
a obrigação do poder público e da comunidade de preservá-lo. O bem tutelado é o meio
ambiente ecologicamente equilibrado. Também foram constitucionalizadas a necessidade de
estudo de impacto ambiental para a instalação de obra ou atividade com potencial de
degradação do meio ambiente e a responsabilização de pessoas físicas e jurídicas nas esferas
civil, penal e administrativa de forma independente.
Os entrevistados foram quase unânimes em atribuir a esse tripé legislativo – Lei de 1981,
Lei da Ação Civil Pública e Constituição de 1988 – a mudança na atuação do Ministério Público
na tutela dos direitos difusos e coletivos em geral e do meio ambiente em particular. Silvia
Cappelli explica:

Antes de 1988, o Ministério Público exercia a autoria da ação cível e, claro, também no
processo penal, sendo dominus litis. Nenhum problema com relação a isso. Mas houve
uma transformação muito importante do Ministério Público, na esfera cível. Até a década
de oitenta, o Ministério Público era custos legis, ele era o fiscal da lei no processo civil e
só atuava nas ações de interesse público, seja pela natureza da lide, seja pela qualidade da
parte. Antes da década de 1980, um pouco antes de 1988, o Ministério Público era só
interveniente no processo civil. Falava depois das partes e falava só quando a Fazenda
Pública estivesse presente, ou um menor, ou em questões de direito de família. Era muito
restrita a atuação do Ministério Público no processo civil e era uma atuação, digamos
assim, subsidiária no processo. Porque ele falava para verificar a legalidade do
procedimento e se havia alguma parte que era considerada hipossuficiente, ele estava ali
para zelar pelos seus interesses, como no caso da curatela, da tutela do menor. Essa foi
uma grande transformação que aconteceu na década de 1980, um pouco antes da
Constituição Federal. Ela começa nessa lei da política nacional do meio ambiente e
continua com a lei da ação civil pública. Aí, Ministério Público se transforma radicalmente
e passa a ser protagonista de uma ação coletiva que é a ação civil pública. Então, ele muda
muito o seu perfil, o seu dia a dia; porque antes, no processo civil, ele recebia um processo
para dar um parecer. E aí ele se transforma enormemente e passa a ser o autor, em nome
de uma coletividade (SOUTO; JUNG; CARRION, 2017, p. 263-264).

Na fase contemporânea, ou seja, pós Constituição, houve uma grande evolução com o
Código de Defesa do Consumidor, Lei nº 8.078 de 1990, que criou o compromisso de
ajustamento de conduta com eficácia de título executivo extrajudicial, hoje denominado de
Termo de Ajustamento de Conduta (TAC). O TAC permite a solução de conflitos antes de sua
judicialização, desonerando o Poder Judiciário e promovendo a efetividade na resolução das
lides. Silvia Cappelli explica que o TAC é muito importante na área ambiental, pois uma ação
civil pública ambiental é complexa e demorada. O TAC é uma proposta de acordo sobre as
condições acessórias do cumprimento de uma obrigação, questões de tempo modo e lugar. “No
momento em que há consenso por parte do investigado, melhor resolver em acordo do que em
demanda. Consegue-se um resultado prático mais célere” (SOUTO; JUNG; CARRION, 2017,
p. 268).
Outra lei importante foi a Lei nº 9.605 de 1998, Lei dos Crimes e Infrações
Administrativas Ambientais. Essa lei sistematizou sanções administrativas e tipificou crimes
ambientais que se encontravam dispersos em outros diplomas legais. Uma novidade importante
é a previsão de responsabilidade penal da pessoa jurídica, único caso na legislação
infraconstitucional (MARCHESAN; STEIGLEDER; CAPPELLI, 2013, p. 30-31). Daniel
Martini ofereceu a primeira denúncia por crime ambiental contra pessoa jurídica no Estado do
RS (SOUTO; JUNG; CARRION, 2017, p. 170).
Infelizmente, não houve somente avanços legislativos. A lei nº 12.651 de 2012, Código
Florestal, é alvo de críticas. Ana Maria Marchesan declarou:

Costumo brincar que é o novo código antiflorestal, porque, se ele fosse florestal, ele se
preocuparia com a preservação das florestas. E, na verdade, ele abre uma série de portinhas
para destruir as florestas. E com o advento desse instrumento, hoje nós já estamos
convivendo com as queimadas de novo, infelizmente (SOUTO; JUNG; CARRION, 2017,
p. 83).

Cientistas e ambientalistas criticam o Código. Ele diminui a área de floresta desmatada


ilegalmente que deveria ser restaurada no país em 58%: de 50 milhões de hectares (500 mil km²)
para 21 milhões de hectares (210 mil km²). Além disso, a lei permite o desmatamento legal de
mais 88 milhões de hectares.2 Daniel Martini aponta o paradoxo de o Código Florestal de 1965,
do período da ditadura militar, ser mais protetivo do que o de 2012.
O maior desafio da fase contemporânea é a incorporação de um paradigma
antropocentrista mitigado no lugar do antropocentrismo clássico, segundo o qual os recursos
ambientais estão disponíveis em função dos seres humanos. Segundo Orci Teixeira Bretanha é
necessária “uma nova ética relacional homem-meio ambiente, que priorize a harmonização
entre os sistemas econômicos e a defesa ambiental, e atenda às necessidades das presentes e
futuras gerações” (TEIXEIRA, 2012, p. 7).
As inovações legislativas conferiram novas atribuições ao Ministério Público que, em
1988, não se encontrava ainda preparado para desempenhá-las. Assim, a história da atuação do
Ministério Público na área ambiental também é a história das mudanças institucionais feitas
para permitir essa atuação. Segundo Cappelli, “os Ministérios Públicos, especialmente os dos

2 Artigo da Science aponta avanços e retrocessos no novo Código Florestal. http://g1.globo.com/natureza/


noticia/2014/04/artigo-da-science-aponta- florestal.html. Acesso em 15 de fevereiro de 2017. avancos-e-
retrocessos-do-novo-codigo-
Estados, fizeram um investimento muito considerável para fazer frente a essa nova demanda”
(SOUTO; JUNG; CARRION, 2017, p. 264).
As Coordenadorias de Promotorias estavam previstas na redação original da Lei nº
7.669 de 17 de junho de 1982, Lei Orgânica do Ministério Público. Todavia, na lei estavam
somente previstas coordenadorias de promotorias cíveis e criminais. O Provimento 09/87, de
23 de dezembro de 1987, implantou as Coordenadorias das Promotorias de Defesa Comunitária
com atribuições relacionadas ao meio ambiente, ao consumidor e ao patrimônio cultural. O
artigo 15, do provimento, também estabelecia função de defesa comunitária nas comarcas do
interior ao 2º Promotor de Justiça, ao curador cível, onde houvesse ou ao segundo curador cível
onde houvesse mais de um curador. O primeiro Coordenador das Promotorias de Defesa
Comunitária no RS foi Ariovaldo Perrone.
Em outubro de 1991, pelo Ato nº 01/91- PGJ, foi criado o Centro de Apoio Operacional
das Promotorias de Defesa Comunitária, juntamente com outros Centros de Apoio. Orci Paulino
Bretanha Teixeira, o primeiro Coordenador do CAO de Defesa Comunitária recorda em seu
depoimento que foi o Procurador-Geral de Justiça Francisco Luçardo que implantou os centros
de apoio tendo como modelo o Ministério Público do Estado de São Paulo:

Fui o primeiro coordenador do Centro de Apoio das Promotorias de Defesa Comunitária


com atribuições da defesa do meio ambiente, do meio ambiente cultural e do consumidor.
Com outros colegas, implementamos os Centros de Apoio, atuando e divulgando as novas
atribuições outorgadas pela Constituição Federal de 1988. Os Centros de Apoio
integraram o Ministério Público com outras instituições, especialmente com a Brigada
Militar que sempre apoiou o Ministério Público na defesa do meio ambiente (SOUTO;
JUNG; CARRION, 2017, p. 264).

No ano 2000, o Provimento nº 07/2000, separou a área do consumidor da área ambiental,


criando um centro de apoio para cada uma delas. Daniel Martini, Coordenador do Centro de
Apoio Operacional de Defesa do Meio Ambiente ─ CAOMA ─ explica a sua função:

é, na estrutura administrativa do Ministério Público, o órgão que tem por atribuição pensar
a política ambiental na Instituição e também ser um órgão, como o nome diz, de apoio aos
colegas promotores de justiça. [...] Demanda uma constante atualização e permanente
interlocução com os órgãos estaduais e nacionais, sejam os órgãos legislativos, sejam os
administrativos. (SOUTO; JUNG; CARRION, 2017, p. 160).

A primeira coordenadora do CAOMA foi Silvia Cappelli. Sílvia Cappelli, no CAOMA,


iniciou um trabalho de realização de oficinas em Porto Alegre e no interior, já a partir do
ano 2000. Cappelli explica como eram organizadas essas oficinas:

[...] o Centro de Apoio buscava um parceiro público para o aprofundamento de um assunto


de atuação comum na gestão ambiental, ou seja, a Secretaria Estadual do Meio Ambiente
e o Ministério Público, ou também, a Secretaria Municipal do Meio Ambiente de Porto
Alegre. O Centro de Apoio organizava todo o material de legislação, doutrina e
jurisprudência existente a respeito daquele tema e convidava também alguns promotores
mais experientes na área da temática a ser debatida. Por outro lado, o órgão de gestão
também convidava os seus funcionários. Depois nós contatávamos com a Associação do
Ministério Público, com o procurador-geral e levávamos em conta a divisão espacial da
Associação do Ministério Público para definir as regiões em que nós íamos aplicar essa
oficina de trabalho. (SOUTO; JUNG; CARRION, 2017, p. 260).

A promotora acentua que a cada oficina de trabalho era perceptível, no Centro de Apoio, o
ingresso de mais ações, havia mais Termos de Ajustamento, ou seja, essas oficinas estavam
atingindo a sua finalidade.
Vários dos depoentes recordaram a importância das oficinas de trabalho. Paulo da Silva
Cirne recorda: “Para mim foi muito importante ter aquele contato com outros colegas, receber
aquelas informações, o que de certa forma facilitou o meu trabalho. A partir desse momento, percebi
a necessidade do entrosamento entre as instituições que atuam na área ambiental” (SOUTO; JUNG;
CARRION, 2017, p. 218).
Outra iniciativa importante do ano de 2000 foi a criação do Conselho de Defesa do
Meio Ambiente – CONMAN, no âmbito do Ministério Público.3 Formado pelo
coordenador do CAO Ambiental, pelos promotores atuantes nas Coordenadorias das
Promotorias de Defesa Comunitária na área ambiental, por promotores de defesa comunitária
de cidades importantes do Estado, etc., o CONMAN tem por objetivos elaborar enunciados
visando à harmonização da atuação, à realização de reuniões de promotores que atuam na
área, por regiões, e outros estabelecidos no seu regimento interno. A respeito do CONMAN,
Silvia Cappelli recorda:
Nós nos reuníamos uma vez por mês para debater temas comuns, importantes de interesse,
ou de dúvida, no Ministério Público. Por exemplo, iniciava-se uma nova atividade
econômica, ou havia algum problema jurídico que exigia aprofundamento, um estudo, um
debate e, principalmente, se fazia necessária a elaboração de um enunciado sobre aquela
matéria, nós deliberávamos dentro desse conselho, que se reunia mensalmente. [...]. Esses
enunciados nós enviávamos para a Corregedoria. Se a Corregedoria aprovasse, eles seriam
informados, sugeridos, como orientação para todo o Estado, senão, eles ficavam apenas
no âmbito do Conselho (SOUTO; JUNG; CARRION, 2017, p. 261-262).

Até hoje foram realizadas 62 reuniões4 com discussão e elaboração de enunciados


sobre os mais diversos temas.
Atuar na área ambiental implicava em entrar em contato com uma enorme quantidade
de temas não jurídicos. Hoje o Ministério Público conta com o Gabinete de Assessoramento
Técnico, onde profissionais das mais diversas áreas realizam vistorias, elaboram pareceres,

3
Provimento nº 09/2000.
4
As atas das reuniões, bem como os enunciados, podem ser consultados na página do CAOMA na intranet.
prestam consultorias, para a instrução de inquéritos cíveis e ajuizamento de ações civis públicas.
Mas, nem sempre foi assim. Claudio Bonatto explica como era o assessoramento:

[...] fizemos convênios com o CREA, na questão de engenharia; com o SIMERS, que é o
sindicato dos médicos, na área da saúde; com a CIENTEC, na área da segurança alimentar,
e tantos outros, para que os seus técnicos fizessem as vistorias e os laudos para nós, e,
depois, quando ingressávamos com as ações, pedíamos aos juízes que incluíssem, na
condenação dos réus, o pagamento dos honorários dos técnicos que nos assessoravam. Era
assim que funcionava (SOUTO; JUNG; CARRION, 2017, p. 144).

Pesquisando nos primeiros inquéritos civis e ACP existentes no Arquivo do Ministério


Público e no Arquivo Judicial é possível encontrar esse tipo de solução para a falta de técnicos
nos quadros do MP. Por exemplo, em inquérito instaurado para apurar a poluição atmosférica
que emanava da chaminé do Hospital Cristo Redentor, a promotora Silvia Cappelli solicitou a
perícia de um engenheiro nos termos de convênio feito com a Cooperativa dos Engenheiros do
Rio Grande do Sul em 8 de junho de 1993. Foi designado o engenheiro mecânico Ernesto
Bernardi. Com a possibilidade de realização de termo de ajustamento de conduta, denominado
na época de “termo de compromisso de adequação de atividade”, a promotora propôs ao próprio
hospital que pagasse os honorários do engenheiro. A proposta foi aceita e em dezembro de
1993, o engenheiro Bernardi recebeu o valor de CR$ 56.652,00 (cinquenta e seis mil
seiscentos e cinquenta e dois cruzeiros).5 Há muitos exemplos desse tipo de colaboração.
Foi somente no ano 2000 que foi criado o Serviço de Assessoramento pelo Provimento
nº 04/2000, ainda em termos muito genéricos. Em 20 de novembro de 2003, pelo Provimento
n°66/2003, o Serviço de Assessoramento passou a ser denominado de Divisão de
Assessoramento Técnico. E em 2015, recebeu o nome de Gabinete de Assessoramente Técnico
e passou a contar com um regimento interno.
Em fevereiro de 2008 foi dado mais um passo para melhorar a estrutura institucional
para o trabalho na área ambiental: a criação da Rede Ambiental. Conforme o artigo 2º
do Provimento nº 52/2010,6 a Rede Ambiental tem por finalidade promover a articulação e
a atuação das promotorias de Justiça com atribuição na área ambiental, propiciando a
atuação integrada, a troca de informações, o planejamento e a avaliação de ações. Ela é
integrada pelo CAO Ambiental e pelas promotorias de Justiça com atribuição ambiental,
sediadas em cada uma das bacias hidrográficas do Estado. Alexandre Saltz participou da
criação da Rede Ambiental:
Esse foi um projeto pelo qual tenho um carinho muito grande. Considero como se fosse
um filho porque participei junto com o pessoal do GAGI desde a concepção. Depois
implantamos 19 redes ambientais. A ideia era que cada bacia hidrográfica tivesse uma,
mas havia bacias que se sobrepunham, não tinha sentido em criar 3 ou 4 redes quando o

5
Arquivo do Ministério Público do Rio Grande do Sul. Inquérito Civil nº 003118/90.
6 A Rede Ambiental foi criada pelo Provimento n° 12/2008 de 22 de fevereiro de 2008, revogado pelo
provimento n° 52/2010.
promotor que iria tratar daquilo era o mesmo. Então, nós criamos um modelo, dividimos
o estado e criamos 19 redes ambientais, cada uma com um promotor coordenador e um
coordenador substituto. Cada rede deveria ter, no mínimo, dois inquéritos regionais,
tratando de questões que impactavam na região como um todo. Esse diálogo era feito com
a sociedade (SOUTO; JUNG; CARRION, 2017, p. 64).

Ximena Ferreira explica que “a ideia redes ambientais surgiu para enfrentar o problema
de uma forma regionalizada, pois o meio ambiente não respeita as fronteiras políticas”
(SOUTO; JUNG; CARRION, 2017, p. 282). Os problemas ambientais de uma comarca são os
mesmos da comarca contígua, de forma que o seu enfrentamento precisa ocorrer de forma
regionalizada. Segundo Daniel Martini, Coordenador do CAOMA, a Rede Ambiental foi um
dos principais avanços na organização da instituição na defesa do meio ambiente. Martini
explica que a rede evoluiu para as Promotorias Regionais Ambientais, projeto que ainda está
em fase de implementação (SOUTO; JUNG; CARRION, 2017, p. 163). De acordo com o §2º
do artigo 1º do Provimento nº 45/2016, que disciplina a atuação das Promotorias Regionais do
Meio Ambiente, o seu âmbito territorial é a bacia hidrográfica da região. Martini informou que
até agosto de 2016 havia duas promotorias regionais, a do Rio dos Sinos e do Gravataí. No
segundo semestre do ano foram implantadas mais três: do Caí, do Taquari/Antas e do Ijuí.
Os primeiros inquéritos civis e ações civis públicas ambientais foram instaurados e
ajuizados no final da década de 1980 e início da década de 1990. Em pesquisa no Arquivo do
Ministério Público e no Arquivo Judicial Centralizado foi localizada uma ação com data de 14
de setembro de 1990, a mais antiga de que se tem registro.7 A ação, da comarca de Carazinho
foi ajuizada contra o município de Carazinho, contra o Clube Carazinho de Caça e Pesca e
contra a Associação dos Funcionários da Caixa Econômica Estadual do Rio Grande do Sul pela
então promotora Marcia Leal Zanotto Farina. A base era um inquérito civil instaurado em 23
de novembro de 1988. A ação relata que o município de Carazinho celebrou contrato de
comodato em área do Parque Municipal da cidade, cedendo espaço ao Clube de Tiro e à
Associação dos Funcionários da Caixa. Também houve arrendamento por contrato verbal de
área do parque para exploração agrícola. Essas mudanças foram feitas sem nenhum estudo de
impacto e estariam comprometendo a vegetação do local, bem como uma das nascentes do rio
Várzea, localizada dentro das terras utilizadas pelo clube. Também se chamava a atenção para
a falta de segurança, já que o Clube de Tiro não havia cercado sua circunscrição. A promotora
solicitava que fosse deferida liminarmente a determinação para que o Clube de Tiro e a
Associação dos Funcionários cessassem as suas atividades e que um torneio de tiro que estava
programado fosse proibido, que os contratos de comodato fossem declarados nulos, que as
aéreas fossem devolvidas ao município e que o município fosse condenado a reparar a área. A
liminar foi deferida no sentido da suspensão do torneio de tiro, mas não para a cessação
completa das atividades do Clube. Com respeito à ilegalidade dos contratos, o juiz de primeiro

7
Não é possível saber se essa ação é a mais antiga ou se existe alguma anterior, pois nem todo o material
da época está identificado e registrado no Arquivo Judicial. É a mais antiga registrada. Agradecemos a
inestimável colaboração da Unidade de Gestão Documental do Ministério Público na pessoa do coordenador
Emiliano Medeiros, e do Arquivo Judicial Centralizado, onde contamos com a diligente ajuda da historiógrafa
Celeste de Marco.
grau os considerou legais, mas o Tribunal em agravo de instrumento do Ministério
Público afastou a decisão. Foi realizada prova pericial e inspeção judicial. O
Ministério Público apresentou um amplo e minucioso laudo mostrando as espécies
animais e vegetais existentes na área e de que forma as atividades do Clube as colocavam
em risco. Em 1º de março de 1999, a sentença judicial julgou a ação civil pública
improcedente quanto à ilegalidade dos contratos: “a ação da Prefeitura Municipal ao ceder
em comodato ao réu parcela do bem público descrita na inicial não caracteriza desvio de
finalidade, pois essa destinação especial estava previamente autorizada pelo Legislativo”.
Quanto aos danos ao meio ambiente, a juíza se fixou em todos os trechos que demonstravam
que a atividade do Clube de Tiro era distante da área de circulação de pessoas:

Desta forma, considerando a distância entre a área de tiro e a mata apontada como refúgio
da fauna de 1500 metros, o sentido contrário à mata dos disparos, a perda de intensidade
dos estampidos há 800 metros e, ainda, a perfeita visibilidade do local para o caso de
aparecimento de pessoas ou animais, mister concluir não esteja a atividade do réu
acusando danos ao meio ambiente.

A liminar concedida no processo cautelar foi revogada.


Quanto à Associação de Funcionários da Caixa Estadual, ela foi excluída do polo
passivo da ação por ter realizado acordo com a prefeitura e devolvido a área que tinha em
comodato.
Observa-se, ao ler a sentença, uma perspectiva um tanto reducionista por parte do
magistrado, que estava analisando as atividades danosas de um ponto de vista bastante pontual. Isso
foi corroborado nas entrevistas, no sentido de que o Ministério Público se aparelhou muito mais
cedo para a tutela ambiental do que a magistratura. Mas isso mudou. Em 2004, Ana Maria
Marchesan declarou que o Poder Judiciário não havia ainda despertado para a tutela dos interesses
difusos (SOUTO et alli, p. 59). Doze anos depois, a promotora comenta que já há muitos juízes
interessados e estudiosos do tema, ainda que mais na magistratura federal que na estadual. Annelise
Steigleder também vê progresso:

Na verdade, houve uma sensibilização do Poder Judiciário. De modo geral, dá para dizer
que eles também estão se preparando, estão se qualificando. Houve uma especialização
das Varas Judiciais, e isso faz com que os juízes ali classificados acabem começando a
lidar mais com as questões ambientais. Então, eu penso que melhorou muito desde quando
eu entrei (SOUTO; JUNG; CARRION, 2017, p. 131).

No curso das entrevistas, alguns temas relativos à atuação do Ministério Público gaúcho
na área ambiental se destacaram: a destinação dos resíduos sólidos, a proteção do bioma pampa,
o problema dos alagamentos e inundações, a defesa do patrimônio cultural, o uso desenfreado
de agrotóxicos, a mineração de areia no Lago Guaíba, a falta de saneamento urbano e a
contaminação hídrica.
Todos os temas destacados são considerados prementes para os promotores depoentes. Com
respeito a expectativas, alguns, como Alexandre Saltz, são otimistas “[...], pois, com respeito à
proteção ambiental hoje há um nível de consciência que não havia há alguns anos atrás” (SOUTO;
JUNG; CARRION, 2017, p. 75). Outros, como Annelise Steigleder, são pessimistas “Porque vejo
que, mesmo no Ministério Público, dependemos de uma determinação judicial, atuamos sempre
por amostragem, conseguimos identificar grandes temas e tentamos atuar. Mas é claro que não
conseguimos atuar na política” (SOUTO; JUNG; CARRION, 2017, p. 132).
Em termos de desafios para o futuro, muitos dos entrevistados apontaram o desenvolvimento
do já iniciado trabalho em rede. Ximena Cardozo Ferreira considera que é preciso ultrapassar o
âmbito institucional: “trabalhar em rede, mas não só em rede interna, trabalhar em rede externa,
interinstitucional, porque são inúmeros órgãos envolvidos na proteção ambiental” (SOUTO;
JUNG; CARRION, 2017, p. 301). Ana Maria Marchesan vê com otimismo a implantação das
promotorias regionais, mas considera que o cargo de promotor regional deveria ser único e não
cumulativo com outra promotoria: “[deveria se]criar com um cargo de promotor específico,
estrutura de servidores específica para isso, lugar, tudo” (SOUTO; JUNG; CARRION, 2017, p.
101).

ANTUNES, Paulo de Bessa. Direito ambiental. São Paulo: Atlas, 2016.

ARAÚJO, Suely Mara Vaz Guimarães de. Vinte e Cinco Anos da Lei da Política Nacional do
Meio Ambiente. Plenarium, v. 5, n. 5, p. 236-243, outubro de 2008.

FÉLIX, Loiva Otero. Rememorações para o futuro: histórias de vida do Ministério Público do
Rio Grande do Sul. Procuradoria-Geral de Justiça, Projeto Memória: Porto Alegre: 2001.

MARCHESAN, Ana Maria; STEIGLEDER, Annelise; CAPPELLI, Sílvia. Direito ambiental.


Porto Alegre: Verbo Jurídico, 2013.

SEIDEL, Juliana Matos. Um problema urbano – gerenciamento de resíduos sólidos e as


mudanças ambientais globais. Anais do V Encontro Nacional da Associação Nacional de Pós-
Graduação em Ambiente e Sociedade – ANPPAS. Florianópolis, 2010. Disponível em:
<https://goo.gl/ByA1Jq>

SOUTO, Cíntia Vieira; JUNG, Martha; CARRION, Raul (Org.). A atuação do Ministério
Público na área ambiental: histórias de vida do Ministério Público do Rio Grande do Sul. Porto
Alegre: Memorial do Ministério Público, 2017.
SOUTO, Cíntia Vieira; TORRE, Márcia de La; SANSEVERINO, Patrícia (Org.). Olhar
Feminino: histórias de vida do Ministério Público do Rio Grande do Sul. Porto Alegre:
Memorial do Ministério Público, 2004.

TEIXEIRA, Orci Paulino Bretanha. A fundamentação ética do estado socioambiental. (Tese de


Doutorado) ─ Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul. Programa de Pós-
Graduação em Filosofia. Porto Alegre, 2012, 149 p.
Cezar Karpinski
Leonardo Hermes Lemos

Ao fazer um trabalho relacionando História Oral, Museologia e Ciência da Informação (CI),


de início parece ser algo dificultoso. No entanto, essas três áreas estão relacionadas e interligadas
por um objeto de pesquisa em comum, a informação. A História Oral com sua metodologia de coleta
de fontes, cria em si própria conteúdos informacionais, que por sua vez incidem em pesquisas e
fazem a área crescer, mostrando que as fontes orais têm cada vez mais espaço para que novas formas
de ver nossa história, memória e sociedade sejam estabelecidas e discutidas.
A Museologia se relaciona diretamente com as fontes históricas, principalmente para
produzir pesquisas sobre os objetos dentro dos museus, verificando assim a autenticidade das
informações. No entanto, no momento em que há uma mudança de perspectiva na área
museológica, impulsionado pelo Movimento por uma Nova Museologia, os museus se abrem para
aspectos sociais de seu meio, não ficando atentos apenas à preservação e exposição, mas também à
reflexão sobre sua importância social. Nesse contexto, emerge uma nova tipologia de instituição
museológica, o ecomuseu, voltado para a comunidade localque passa a ser fundamental para o
desenvolvimento e trabalho dessa instituição.
O que interrelaciona a Ciência da Informação com essas outras duas áreas é o modo como
as informações contidas nas fontes orais podem ser transmitidas, preservadas e recuperadas. Ou
seja, a CI deve verificar e saber como trabalhar com as informações das fontes orais e como essas
se constituem como possíveis documentos. Para que essa relação seja possível nesta pesquisa,
dividiu-se o trabalho em quatro partes. A primeira busca historiar e conceituar o ecomuseu, para
que seja possível ser entendido o que essa instituição é e a sua diferença de um museu tradicional.
A segunda busca relacionar a informação com o ecomuseu, mostrando conceitos de informação que
melhor se relacionam com a História Oral, e como o ecomuseu pode ser considerado uma Unidade
de Informação (UI). Posteriormente é trabalhado como a metodologia da História Oral se relaciona
e pode ser utilizada em trabalhos da CI, e no que uma área contribui com a outra. E, por fim, mostra-
se alguns resultados preliminares da pesquisa de Mestrado em andamento no Programa de Pós-
Graduação em Ciência da Informação, o que faz ressaltar a importância da interrelação das áreas
para a produção de conhecimento.

* Universidade Federal da Integração Latino-americana (UNILA), Doutor em História.


** Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC), mestrando em Ciência da Informação.
A evolução da Museologia como área do conhecimento está ligada diretamente com o
desenvolvimento das instituições museológicas. Expor e preservar o bem musealizado são
atividades que estão presentes desde o surgimento dos museus. Entretanto, é fundamental expressar
o quão significativo foi o Movimento por uma Nova Museologia, criado no ano de 1984. A partir
de então, a Museologia passa a ser concebida como uma área voltada para ações sociais que os
museus devem desenvolver, buscando uma maior relação com a população, utilizando-se ainda dos
procedimentos técnicos da museologia. (DECLARAÇÃO, 1984).
Embora esse movimento tenha ganhado força em meados da década de 1980, as ideias
surgiram alguns anos antes e foram impulsionadas no ano de 1972, com a Mesa Redonda de
Santiago do Chile. Esse evento da área contribui para a definição dos princípios do museu integral,
o qual deveria ser uma instituição voltada para o desenvolvimento social humano.
Scheiner (2012) enfatiza que o documento criado no Chile faz os museus, por meio de seus
profissionais, serem abertos às pessoas, criando assim uma instituição que não apenas expõe e
preserva objetos pelo simples fato de colecionar. Dessa forma, os museus passam a ter um vinculo
social muito maior, preservando e expondo para o desenvolvimento das pessoas. Ao afirmar isso, a
mesma autora aborda a musealidade como um fenômeno presente na evolução da Museologia como
ciência e no museu como instituição. A musealidade ocorre pela relação e valor atribuído por grupos
humanos ao seu meio, tempo e memória, o que faz estarem ligados diretamente com suas culturas.
Assim, a musealidade muda conforme a necessidade humana de musealizar. Portanto, o museu
integral passa a fazer parte da área da Museologia, sendo que a principal tipologia ligada a esse
conceito é o ecomuseu.
A motivação desse novo tipo de museu tem vertente europeia, principalmente vindo da
França pós-colonial, onde se imaginava uma instituição que democratizasse a memória,
principalmente dos grupos marginalizados, que não participariam da história oficial, muitas vezes
encontrada nos discursos dos museus históricos tradicionais. (BRULON, 2015).
Nesse contexto, o ecomuseu passa a ser uma instituição de contracultura, mostrando que
grupos menores e excluídos também fazem parte da cultura nacional e passam a ser fundamentais
para entender a construção histórica da nação. Pode ser considerado como o primeiro ecomuseu o
Écomusée du Creusot Montceau-Les-Mines, França, idealizado por Marcel Évrard, que havia
trabalhado no Musée de l’Homme e também era colecionador de obras artísticas e etnológicas
(BRULON, 2015).
A partir do surgimento deste tipo de museu, houve mudanças significativas nos processos
museológicos (exposição, documentação, entre outros), antes feitos apenas pelos profissionais de
museus como historiadores, curadores, museólogos e conservadores. Esses processos começaram
a ter participação da comunidade na qual o ecomuseu estava inserido, ou seja, a definição da
instituição depende de um processo comunitário integrativo ao seu meio.
Para que essa nova instituição fosse possível Évrard buscou ajuda, sendo auxiliado por
Hugues de Varine, um dos teóricos e personagens fundamentais para o conceito de ecomuseu. Há
época, Varine estava à frente do ICOM (International Council of Museums) e propôs discussões
entre profissionais da área, para que a nova tipologia de museu fosse aderida no cenário
museológico internacional. Após toda essa movimentação trazida por Varine, seu antecessor no
cargo de presidência do ICOM, Georges Henri Rivière também aderiu à ideia, e ambos começaram
a discutir sobre o que seria esse novo museu, o que consideraram um conceito em constante
evolução. (BRULON, 2015).
Ora, se ao mesmo tempo a definição de ecomuseu está em constante mudança, a própria
instituição também está. Dessa forma, era preciso estabelecer diretrizes para que o ecomuseu fosse
considerado uma nova tipologia de museu dentro da área. Assim, todo o processo de musealização
deveria estar definido dentro do ecomuseu, já que ele quebrava paradigmas dos museus tradicionais.
Era necessário que ele revisse todos os princípios para que a musealidade acontecesse.
Os interesses da ecomuselogia foram respaldados pela definição de que o ecomuseu
trabalha com o patrimônio, uma comunidade e um território, e que os museus tradicionais estão
voltados para objetos (coleção), público e prédio. (CHAGAS, 2000). Portanto, ao se criar um
ecomuseu, este deve ter uma gestão participativa e comunitária, visando à representação da
comunidade para o desenvolvimento do território, por meio da preservação e da divulgação do
patrimônio cultural.
A partir do momento em que a comunidade é representada e se representa dentro da
instituição museológica, a construção do patrimônio cultural para aqueles que antes eram
descartados pela história oficial começa a ser construída e a questão do patrimônio começa a ser
revista. O que provavelmente acontece é a população ver seu próprio reflexo e perceber como o seu
meio e sua vivência influencia o desenvolvimento da sua cultura, o que faz enxergar que só há
sentido em expor e preservar, aquilo que faz sentido em estar representado.
Pedrosa (2013) afirma que o ecomuseu é um recurso a ser utilizado para o desenvolvimento
integrado e sustentável do território, sendo que sua população deve reconhecer-se para que isso seja
possível. Portanto, a comunidade envolvida no ecomuseu deve além de se representar, saber quais
os seus potenciais, podendo a instituição ser parte para que o desenvolvimento regional, tanto
econômico como social, aconteça.
Mesmo considerando isso como algo benéfico, Scheiner (2012) enfatiza e faz um
contraponto, mostrando que o ecomuseu de forma alguma deve ser uma ferramenta, pois isso
acarretaria a manipulação. O ecomuseu deve fazer parte do desenvolvimento social e cultural da
comunidade, mas não deve ser a única instituição que promova isso. Ele deve ser um dos elementos
que fazem uma comunidade se desenvolver e, principalmente, reconhecer sua cultura e seus
conhecimentos.
A caracterização da informação como um conceito fechado é algo que para a Ciência da
Informação é difícil de definir, pois muitos teóricos da área afirmam que a informação depende do
contexto em que ela está para que seja possível significá-la, e, por conseguinte conceituá-la.
Por isso utiliza-se aqui o conceito de informação definido por três autores, Capurro e
Hjorland (2003) ao considerarem a informação por três conceitos: físico, cognitivo e social; e o
conceito de Le Coadic (1994), o qual abre margem para a discussão com a História Oral.
Capurro e Hjorland (2003), ao discutirem a informação conforme três conceitos, abordam
o conceito físico da informação vinculado a um suporte informativo. Essa definição mostra que a
informação só pode ser organizada, representada, acessada e transmitida se estiver numa forma
física. As formas físicas podem ser das mais diversas, desde o documento tendo como suporte o
papel, até os dados que compõem um documento digital. Aqui a informação está ligada com a sua
materialidade.
O segundo conceito trabalhado pelos autores é o cognitivo. A informação neste conceito
visa cada sujeito isolado, considerando o estado de conhecimento. Seria a forma como cada
indivíduo tem acesso e processa a informação, fazendo com que isso se torne conhecimento.
(CAPURRO; HJORLAND, 2003).
Por último, Capurro e Hjorland (2003) trazem o conceito social da informação, expondo
que esta está vinculada ao meio social dos indivíduos. A informação só se constitui e só tem
significado se está representada na sociedade, só faz sentido se existe troca entre os indivíduos e,
consequentemente, isso leva à produção de conhecimento.
Os três conceitos abordados pelos autores têm origem de vertentes diferentes da CI. O
primeiro conceito está ligado ao da teoria matemática, onde é necessário a informação ter
materialidade para existir. O segundo é influenciado, principalmente, pela área da comunicação,
sendo abordados temas como linguística, semiótica, entre outros. Finalizando, o conceito social é
uma vertente mais nova, respaldando-se nas ciências sociais e humanas, mostrando que a
informação é um fenômeno e que, por isso, deve ser estudada por esse eixo também.
Portanto, a informação necessita de um suporte, para que seja possível o indivíduo recebê-
la, fazer o processo cognitivo, para que possa transmiti-la aos outros. Le Coadic (1994, p. 5) salienta
isso, ao afirmar que “a informação é um conhecimento inscrito (gravado) sob a forma escrita
(impressa ou numérica), oral ou audiovisual”. Essa afirmação denota o constante processo que a
informação vive, pois é necessário que se tenha conhecimento para que este seja transferido a um
suporte, para que a informação exista de fato.
Consideram-se aqui como suportes de informação, os documentos, pois são neles e nas suas
diversas formas que a informação é transcrita, consequentemente organizada, acessada e
disseminada. Todavia, um documento só é caracterizado como tal a partir de um processo. Esse
processo apresentado por Buckland (1991) mostra três características para que algo seja percebido
como um documento, sendo a materialidade, evidência e atitude fenomenológica. O documento
deve ter seu suporte material, para que seja possível perceber as evidências do que está registrado e
que isso parte de uma atitude fenomenológica, em perceber algo como documento.
Portanto, a criação ou o processo para que algo se torne documento está presente nas mais
diversas instituições, dos mais diversos meios como universidades, fóruns, bibliotecas, arquivos,
museus, entre outros. No momento, em que essas instituições passam a organizar e disseminar as
informações de seus documentos, elas podem ser caracterizadas como Unidades de Informação
(UI), que, segundo Buckland (1991), é uma unidade que coleta, trata, organiza e disponibiliza
informação.
As instituições museológicas são dentro da Ciência da Informação (CI) consideradas
Unidades de Informação (UI). Portanto, a partir do momento em que o ecomuseu se torna uma nova
tipologia de museu, ele passa também a trabalhar com a informação. Como mostrado na primeira
parte deste trabalho, o ecomuseu nasce com uma nova proposta de trabalho para a museologia.
Assim, ele também passa a ter uma nova forma de trabalhar com a informação.
O que antes era tido como trabalhos técnicos e que apenas profissionais dos museus faziam,
passa a ter colaboração da comunidade na qual o ecomuseu está inserido, tendo, principalmente,
trabalhos como inventários e curadorias participativas. Um exemplo disso é o Ecomuseu
Mocambeiro, em Minas Gerais, que desenvolve o Inventário Participativo da Instituição. Armond
(2012) explica que o inventário participativo é uma ação desenvolvida pelo ecomuseu para uma
discussão com a população local, para entender o que eles consideram como patrimônio e paisagem,
com o intuito de preservar. Isso se dá por meio do inventário, onde a população participa, trazendo
aspectos materiais e/ou culturais, naturais e/ou culturais.
Com a maior participação da comunidade e, consequentemente, do público, pode ser
percebido que a maior troca de informações é por meio da oralidade. Assim cabe à CI saber como
utilizar disso para suas pesquisas, e como tratar da informação dentro do suporte oral.

Ao estabelecer a conceituação sobre ecomuseu e informação, cabe agora relacionar estes


dois pontos com a História Oral, foco deste trabalho. De início, este trabalho já é um dos resultados
da pesquisa de Mestrado intitulada “Representação da Informação em Ecomuseus” que será
apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Ciência da Informação, da Universidade Federal
de Santa Catarina (PGCIN/UFSC).
Ao tratar desse tema, escolheu-se a metodologia da História Oral por se diferenciar de
entrevistas normais, a fim de colher melhores fontes para a pesquisa, o que possibilitaria maior
entendimento sobre as instituições pesquisadas: Ecomuseu do Ribeirão da Ilha – Florianópolis e
Ecomuseu Dr. Agobar Fagundes – Blumenau (EDAF) e sobre o objeto de estudo (Representação
da Informação).
Para a utilização da metodologia, foi seguido o livro Manual de História Oral, de Alberti
(2005). É importante salientar que o processo das entrevistas está em sua fase inicial e que se
encontram dificuldades para agendar o procedimento devido à especificidade do objeto de estudo.
Também, vale ressaltar, a preocupação para que a fonte oral se torne também um documento.
Conforme Turner (2012), é o documento oral que deve ser trabalhado na CI, e que os profissionais
da informação devem estar abertos a isso, para que as informações que são transmitidas, oralmente,
sejam propulsoras de produção de conhecimento, não focando os estudos documentais apenas aos
meios visuais, eletrônicos ou escritos.
Por isso, ao utilizar a História Oral buscou-se compreender como ela poderia auxiliar na
pesquisa em andamento. Dessa forma, foi necessário criar etapas para que fosse possível coletar os
dados, analisar as informações, selecionar o que será útil ao trabalho, para no final fazer a redação.
Para o desenvolvimento desta metodologia foram definidas quatro etapas: 1) Definição dos
entrevistados; 2) Definição do tipo de entrevista; 3) Definição das perguntas; e 4) Coleta de
informações e análise. A etapa um buscou identificar quais os personagens que deveriam ser
entrevistados, para que as informações obtidas fossem satisfatórias para a pesquisa. Por isso
definiu-se dois grupos de entrevistas: 1) equipe dos ecomuseus; e 2) Visitantes. As entrevistas do
primeiro grupo são relativas a aspectos mais técnicos das instituições. Já as do segundo, são relativas
ao modo como o público está obtendo as informações que os Ecomuseus querem passar.
Para a segunda etapa foi necessário definir o tipo de entrevista. Conforme Alberti (2005), a
metodologia da História Oral possuí dois tipos de entrevistas: 1) entrevista temática; ou 2) de
história de vida. Para este trabalho foi utilizada a entrevista temática, para buscar informações sobre
os ecomuseus e sua relação com a Representação da Informação.
Com a terceira etapa, definição das perguntas, observou-se que, por existir dois grupos para
as entrevistas, a condução das entrevistas deveria ser de modo diferente. Por isso, as perguntas para
o corpo técnico do EDAF e do Ecomuseu do Ribeirão da Ilha partiram de quatro pontos: 1) Criação
e contexto de fundação; 2) equipe das instituições; 3) ações desenvolvidas; e 4) relação do
ecomuseu com a comunidade.
Estes pontos deixam as perguntas abertas, com o intuito de obter o máximo de informações
possíveis sobre cada ecomuseu. Isso também pode ser feito em decorrência do tempo em que cada
pessoa poderia responder às perguntas, sendo que a maioria das entrevistas durou entre 45 a 60
minutos.
Já para o público, as perguntas foram mais específicas e diretas. As perguntas realizadas
para os visitantes foram quatro, como segue: 1) Como conheceu a instituição?; 2) As ações
desenvolvidas pela instituição passam as informações necessárias?; 3) Qual ação fez você obter
mais informações?; e 4) Como isso será útil em sua vida? A média de entrevistas com o visitante
durou entre 15 a 20 minutos.
A última etapa, coleta de informações e análise está em fase inicial. Até o momento foram
realizadas seis entrevistas, sendo possível já ter alguns resultados vantajosos na pesquisa. Esses
resultados preliminares mostram a forma como a Representação da Informação acontece nos
ecomuseus e como isso auxilia a CI, tanto na visão dos profissionais quanto do público.

Com a metodologia da História Oral foi possível verificar aspectos relevantes para a
pesquisa em Ciência da Informação, visto que com as entrevistas é notável que a Representação da
Informação acontece por diferentes ações nos ecomuseus como: documentação museológica,
exposições, ações culturais, palestras e outras atividades que fazem o público ter acesso às
informações.
Outro resultado bastante significante foi perceber que, até o momento, não houve respostas
negativas quanto ao acesso e recebimento de informações pelo público, o que reafirma as
instituições pesquisadas como Unidades de Informação.

Ao utilizar da metodologia da História Oral para a pesquisa, notaram-se como as fontes


orais são necessárias para responder algumas questõesque outras metodologias podem não ajudar.
Assim, ao fazer todos os procedimentos da metodologia, foi percebido que, além da informação ter
maior consistência e veracidade, pois se está frente a frente com a fonte, as fontes orais conseguem
interligar pontos que não poderiam ser percebidos senão feitos por esse método. Portanto, a História
Oral pode ser entendida como uma metodologia referencial para pesquisas que buscam entender o
funcionamento de um conceito na prática, caso da Representação da Informação nos ecomuseus.
Vale ressaltar que relacionar e utilizar essa metodologia na CI é um desafio, tanto para
pesquisadores como para a área, pois não é verificada na literatura qual a forma de trabalhar com
as fontes e com os documentos orais. O que se encontram são discussões sobre o que considerar
como suporte oral para que este seja considerado um documento. Portanto é mister a CI trabalhar e
produzir pesquisas tendo como objeto as fontes e documentos orais.
Trabalhar com História Oral possibilita enxergar um resultado com mais de um foco. Ao
fazer as entrevistas com as equipes e com os públicos das instituições, são notáveis as diferenças de
respostas, mas isso de forma alguma é prejudicial, pelo contrário, possibilita ter acesso ao que
muitas vezes poderia não ser percebido por uma única pessoa. Assim, as diferentes respostas
possibilitam novos olhares sobre a pesquisa, o que poderia não acontecer se o pesquisador apenas
observasse tudo acontecendo.
Portanto, a pesquisa iniciada é apenas um reflexo do que as três áreas, História – a partir da
metodologia da História Oral, a Ciência da Informação e a Museologia podem fazer uma pela outra,
mostrando que é cada vez maior a importância da interdisciplinaridade na produção do
conhecimento.
ALBERTI, Verena. Manual de História Oral. 3. ed. Rio de Janeiro: Ed. da FGV, 2005.

ARMOND, Márcia Andréa. Inventário Participativo para o Monumento Natural do Estado


Vargem da Pedra. 2012. Disponível em: <https://goo.gl/VfApt1>. Acesso em: 25 nov. 2012.

BRULON, B. A invenção do ecomuseu: o caso do Écomusée du Creusot Montceau-les-mines e a


prática da museologia experimental. Mana, [s.l.], v. 21, n. 2, p. 267-295, ago. 2015.

BUCKLAND, Michael. Information as a thing. Journal of the American Society of Information


Science, v. 42, n. 05, p. 351-360, 1991.

CHAGAS, M. S. Memória e poder: contribuição para a teoria e a prática dos ecomuseus. In.
Encontro Internacional de Ecomuseus, 2., 2000, Rio de janeiro. Encontro Internacional de
Ecomuseus (Preprints). Rio de Janeiro: Núcleo de Orientação e Pesquisa Histórica (NOPH),
2000. v. 1. p. 12-17.

DECLARAÇÃO de Quebec, princípios de base de uma nova museologia, 1984. Cadernos de


Sociomuseologia, [S.l.], v. 15, n. 15, june 2009. ISSN 1646-3714. Disponível em:
<http://revistas.ulusofona.pt/index.php/cadernosociomuseologia/article/view/342>. Acesso em: 09
sep. 2017.

LE COADIC, Y.F. A Ciência da Informação. Brasília: Briquet de Lemos, 1996.

PEDROSA, A. S. Os ecomuseus como elementos estruturantes de espaços culturais e


dinamizadores de estratégias de turismo local. Revista Colombiana de Geografia, Bogotá, v. 23,
n. 2, p. 203-219, 2014.

SCHEINER, T. C. Repensando o Museu Integral: do conceito às práticas. Boletim Museu


Paraense Emílio Goeldi, Belém, v. 7, n. 1, p.15-30, 2012.

TURNER, Deborah. Oral documents in concept and in situ, part I. Journal Of


Documentation, [s.l.], v. 68, n. 6, p.852-863, 12 out. 2012. Emerald. Disponível em:
<https://goo.gl/VMYmCh> Acesso em: 04 set. 2017.
Alessandra Izabel de Carvalho
Robson Laverdi

Esse texto resulta de uma prática de História Oral mais ampla. Trata-se de um projeto
desenvolvido como pesquisa em tecnologia social e extensão universitária vinculada à
Incubadora de Empreendimentos Solidários da UEPG (IESol/UEPG).1 O escopo da proposta
desenvolvida visou discutir a produção e a interpretação de narrativas orais com trabalhadores e
trabalhadoras da Associação de Recicladores de Porto Amazonas, localizada no município de
Porto Amazonas, região dos Campos Gerais, no Paraná. Esse coletivo chama a atenção de
estudiosos e agentes políticos ligados à inclusão social, em função da capacidade de se
constituir em grupo, a despeito de contradições inerentes ao processo de organização de sujeitos
provenientes de trajetórias com baixa experiência de participação política ou organizativa.
Localiza-se em um município de apenas 4.514 habitantes e com um índice de ocupação laboral
ativa de 24,1%, ocupando a 244ª posição no estado do Paraná (IBGE, 2015).
Essa organização de trabalhadores existe desde o ano de 2006 e resulta, inicialmente, de
esforços do projeto Rede Solidária: A reciclagem na cidade de Porto Amazonas. Foi elaborado
e desenvolvido pela IESol, utilizando-se de recursos da Fundação Banco do Brasil, com
construção de um barracão de triagem e a realização de um curso de formação em economia
solidária. No início eram apenas seis catadores de recicláveis. A ARPA conta, atualmente, com
um número intermitente de 20 trabalhadores, entre homens e mulheres, incluindo uma parcela
de jovens. A atividade consiste na separação e classificação de resíduos de acordo com a sua
qualidade de aproveitamento para reciclagem, que é comercializado em lotes, visando a sua
melhor valorização. Ainda que inicialmente o grupo tenha sido formado com catadores de rua, a
sua atividade atual é a de triagem, prensagem e pesagem de resíduos para o setor industrial de
transformação de recicláveis. O trabalho é realizado em baias, que se constituem em espaços de
aproximadamente 4mx4m, verdadeiros territórios onde trabalham individualmente ou em
família. Chama a atenção a apresentação estética desses espaços, que vão ganhando
caracterizações todas peculiares dos recicladores e expressam, através de objetos encontrados
em suas lidas diárias, toda uma pertença cultural. Em cada baia se vê peças e utensílios que

* Doutora em História pela UNICAMP, Professora do Departamento de História da UEPG.


** Doutor em História pela UFF, Professor do Departamento de História da UEPG.
1.Projeto Economia solidária, desenvolvimento territorial e tecnologias sociais no território da
Incubadora de Empreendimentos Solidários-IESOL da Universidade estadual de Ponta Grossa-PR (UEPG),
coordenado por Luiz Alexandre Gonçalves Cunha, com fomento do CNPq.
manifestam valores e gostos, a exemplo os religiosos e esportivos. Esse conjunto de elementos
espaciais e plásticos já seria suficiente para uma análise dos elementos ordinários da cultura
desses trabalhadores, que não caberia ao espaço reservado a esse texto, mas que precisa ser
observado como um elemento substantivo para a compreensão das narrativas que serão ao longo
do texto apresentadas. De outra via, aponta para a natureza iminentemente associativa e de
sociabilidades do grupo, mas que por certo intermediam também os resultados organizativos e
produtivos.
As atividades laborais dos recicladores acontecem na própria sede da ARPA, sob a
coordenação geral de Adalto Luiz de Freitas, um importante ator de aglutinação do grupo, haja
vista sua trajetória política no setor público e privado na área ambiental. Em termos objetivos,
não se pode falar do funcionamento da associação sem a menção ao papel de Adalto na história
do coletivo, ainda mais por seu conhecimento e capacidade de organização dos procedimentos
administrativos, de comercialização e representação institucional. Cumpre sublinhar que a sua
presença não substitui a organização administrativa interna desses trabalhadores, uma vez que
existe uma associação, nos termos de uma cooperativa de direito privado, em que há uma
diretoria eleita pelos pares. Quando da realização das entrevistas, o mandato da presidência era
de Maria Elizabete Nicolau, conhecida como Betinha, que é uma das trabalhadoras que está no
grupo desde o início.
Nos marcos da dinâmica de funcionamento da ARPA, cumpre lembrar que a renda
média desse trabalhador é de até 1 (um) salário mínimo mensal. Em termos absolutos, numa
avaliação mais ampla em termos comparativos, o valor pode até ser considerado baixo, todavia
esse dado tomado isolado precisa ser compreendido em outras direções, no mínimo duas
especialmente: a) a falta ou a baixa qualidade dos postos de trabalho no município, sobretudo
pela sazonalidade, uma vez que a sua atividade econômica é centrada na produção de feijão,
maçã e batata, que não emprega os trabalhadores durante o ano todo, mas apenas durante as
safras; b) o sentido de liberdade destacado pelos próprios trabalhadores, que diferenciaram
reiteradamente as atividades de campo da possibilidade deles próprios fazerem seus horários e
atuarem por produtividade no galpão. Isso lhes conferem justificativas ao trabalho na atividade
com resíduos, a despeito dos preconceitos que sofrem no dia-a-dia. Levar e buscar o filho na
escola, se dar ao “luxo” de poder ficar em casa num dia de indisposição de saúde ou mesmo
decidir-se pelo encontro com os amigos no trabalho, marcam muito um dado lugar de
positivação.
De toda forma, as condições precárias pregressas e atuais nas histórias de vida desses
trabalhadores, vividas na suscetibilidade econômica e social, assim como aquelas
experimentadas nas vias da marginalização e exclusão compõem o contexto da sua realidade.
A prática extensionista buscou atuar então para melhorar, através de narrativas compartilhadas,
a estruturação associativa e identitária dos participantes, pautada em um processo subliminar
de reconhecimento de experiências biográficas e de formação coletiva. Nessa direção articula-
se o direito à memória como um sentido de cidadania, inclusão, autoestima e empoderamento
dos envolvidos. Ao valorizar a cultura ordinária, no sentido atribuído por Raymond Williams
(2015), moveu-se esforços com a prática da História Oral para traduzir as muitas expressões de
pertencimento sociocultural desse empreendimento solidário, sobretudo para eles próprios.
Como em qualquer projeto de História Oral, não se pode deixar marcada a construção
metodológica da produção das entrevistas. Uma análise histórica usando narrativas orais precisa
de uma consciência dos elementos que compõem a construção do diálogo com nossos
entrevistados. No trabalho de produção das entrevistas com trabalhadores da ARPA estavam
dois propósitos básicos: a) constituir a economia solidária na prática, com objetivos de um
projeto ativo de organização desses trabalhadores; b) a formação de lideranças e
empoderamento dos participantes, de modo a compreender e superar os sentidos
marginalizadores e excludentes da atividade recicladora na imaginação social. Portanto, ao
interpretar as entrevistas, precisamos compreender que elas correspondem de algum modo ao
um conjunto de proposições mais amplas que envolvem a pesquisa/extensão em
desenvolvimento. Ao nosso olhar, isso não limitou sua potencialidade, mas não pode ignorar
na análise. A proposição foi a de registrar os conhecimentos lembrados pelos trabalhadores,
numa relação de troca de saberes e experiências com a equipe. A prática da História Oral desse
modo se mostrou um campo de possibilidades, permitindo não apenas a oportunidade de
promover diálogos com os envolvidos na incubação, como também a inscrição e o registro
documental de seus sentidos e significados sociais constituídos nessa experiência dialógica.
Um pouco diferente de pesquisas quantitativas focadas em dados da produtividade e
avaliação de resultados, abriu-se a possibilidade de produzir memórias desse empreendimento
solidário através da audição das vozes de seus protagonistas. Pretendeu-se a audição e o registro
de sentidos produzidos em trajetórias de vida na cultura ordinária comum, articulados entre a
memória e a experiência durante as entrevistas. A subjetividade apreendida nas narrativas não
é concebida como dimensão inferior ou menor da vida daqueles que vivem situações
econômicas de precariedade ou exclusão. Tomar como propósito a elaboração de subjetividades
junto a esses trabalhadores mostrou possibilidades de compreensão de bases culturais e
temporais das histórias de vida individuais na construção dessa coletividade. Permitiu também
conhecer a vivacidade das memórias desses sujeitos situadas no presente, em suas formas de
pertencimento sociocultural em face da vida desigual e contraditória que reconhecem no plano
de suas consciências individuais. Perceber a passagem dessas consciências individuais à
coletiva são o foco da interpretação das entrevistas.
As entrevistas foram realizadas sob uma forma adaptada de roda de memória, compostas
pela equipe maior da IESol e o entrevistado, criando espaços de interação entre os participantes.
A escuta coletiva visava criar um lugar para que todos pudessem ter reconhecidas e valorizadas
as suas experiências, contribuindo para a sedimentação da associabilidade proposta pela
incubadora. Daí o cuidado de compreender a natureza dessa prática metodológica. Na roda de
memória a produção da narrativa é o centro da prática. Isso porque é voltada para a
comunicação de experiências e audição de histórias primeiro para o próprio narrador. O registro
das memórias como História Oral acontece no processo, nem antes e nem depois. Autorizadas
em áudio e por escrito pelos participantes, as entrevistas foram gravadas e fotografadas. As
entrevistas aconteceram em dois momentos: o primeiro foi entre os meses de setembro e
novembro de 2014, tendo sido entrevistados 6 mulheres e 2 homens; o segundo em março de
2016. Nesta fase foram entrevistados 1 mulher e 5 homens. Nesse texto optou-se pela análise
de 3 entrevistas com mulheres que foram escolhidas pela história de maior tempo na associação.
Ademais as suas narrativas são portadoras de grande material para análise das consciências em
sua passagem do individual ao coletivo.
Para além do número significativo de histórias de vida gravadas, vale constar a riqueza
das sessões de entrevistas que foram realizadas na sede da associação. Para cada entrevista
realizada eram expostas as intenções e a metodologia, buscando deixar as pessoas à vontade,
ao mesmo tempo em que se buscava esclarecer os elementos da concessão gratuita dos direitos
autorais à IESol. Vale lembrar que o contato e a concessão das primeiras entrevistas não foi
algo fácil. Havia resistências, que poderiam ser compreendidas por várias razões que não se
pode precisar, da parada do trabalho e do rendimento, uma vez que as entrevistas implicavam
na paralisação temporária de uma manhã ou uma tarde do trabalho, ou mesmo pela consideração
de pouca importância que viam de sua trajetória. O trabalho continuado e de mais longa data
com o grupo facilitou a comunicação. Embora esse aspecto tenha sido observado, não se pode
deixar de registrar o fato de que a resistência preliminar não se relacione com o corpo das
contradições sociais experimentadas. Ao se recusarem ou dificultarem as entrevistas,
correspondiam assim de algum modo ao jogo das relações de poder que envolviam suas
existências naquele lugar, por sua vez permeado pela ausência de trabalho e itinerâncias
(LAVERDI, 2005), conforme se poderá compreender na interpretação das entrevistas.
Uma das grandes dificuldades de se trabalhar com sujeitos alijados da cidadania é o
risco da vitimização ou da heroicização. As narrativas de mulheres recicladoras chamam a
atenção pela memória viva de suas trajetórias e o concatenamento dos fatos experimentados.
Vencido o temor inicial e a inibição, as entrevistas se enchem de conteúdo de produção de
sentidos que precisam ser lidos para além da esfera individual. Afinal, é no coletivo que essas
experiências são recordadas. E não só, também são significadas. Não se pode tomar as
entrevistas destituídas de uma visão sistêmica, a partir da qual, os entrevistados cumpliciam e
modulam suas narrativas a partir das expectativas mais amplas que cercam sua existência no
coletivo. No caso dos trabalhadores da ARPA, é preciso considerar que eles falam a partir
também da leitura coletiva que construíram com outros sujeitos, no caso a própria IESol e
outros agentes públicos mobilizados, no caso ligados à assistência social da Prefeitura
Municipal de Porto Amazonas. Menos em relação ao institucional que elas representam, mas
em função de pessoas ou agentes, a exemplo, a da liderança de Adalto Luiz de Freitas, que
continua atuando com eles de modo efetivo.
A narrativa da Betinha, de 49 anos, presidente da ARPA, é um bom exemplo. Em sua
entrevista evidenciou a existência de um cotidiano de sociabilidades no interior da associação,
sobretudo valorizando a metodologia de triagem e separação de recicláveis que ali dentro
aprendeu. Essa construção argumentativa não se separa, em termos de consciência, de
evidenciar a importância que a atividade ocupou e ocupa em sua vida, sobretudo em relação
aos desalentos que vivera até seu pertencimento à ARPA. Depois de contar uma longa e difícil
trajetória biográfica, envolvendo a migração, o abandono, o trabalho infantil e a violência
marital, versou sobre um dado sentido terapêutico da atividade de recicladora. Em suas
palavras:
Eu sou assim, sabe? Se eu ficar sem vir reciclar, eu acho que fico doente (risos). Eu não
fico em casa mais, eu não consigo ficar em casa. Tem que tá reciclando. Porque é uma
terapia reciclar; (risos) é uma terapia! Tem uma moça que tava trabalhando com nós,
uma loira. Hoje, ela foi embora pra Campo Largo; diz que ela tá pra voltar de volta. Ela
tinha problema de pressão. Ela curou a pressão dela aqui dentro; ela curou! Porque é uma
terapia, na hora que você tá começando a reciclar. Lógico que você vê muita coisa suja,
nojenta; mas é uma terapia! Você adora ficar separando os reciclados, porque ali você
coloca caixinha, papel branco, misto... sabe, é tudo ali: sacolinha, cristal... Então, ali é
uma terapia. Você vai movimentando tua mente; eu acho que é uma terapia. Aqui,
reciclando é uma terapia. (BETINHA, 2014).

Esse trecho de sua narrativa apresenta muitas dimensões que precisam primeiro serem
lidas separadamente, para que depois possam ser relacionadas ao processo da experiência
coletiva que nos interessa nesse texto. A primeira delas parte da constatação, no plano da
consciência, da mudança que a prática da reciclagem imprimiu à sua vida. Enquanto narra, ela
se descobre uma outra, aquela que “[...] não consegue ficar mais em casa.” Ora, esse elemento
é crucial, pois é avaliado na relação social, uma vez que ela destacou esse aspecto a partir do
reconhecimento de uma trajetória comum, no caso de outra trabalhadora, “a loira”, que foi
embora, saído do coletivo, que teria se curado da hipertensão com o trabalho da terapia. Em sua
construção narrativa, ela não apenas fala dela mesma, ela vai se reconhecendo nas outras
pessoas que pertenceram ou pertencem ao mundo daquela sociabilidade.
Mas isso não é tudo. Ao mencionar como teria agido sua companheira de trabalho que
deixou ARPA, recobra o sentido de sua possível volta de Campo Largo, município localizado
na região metropolitana de Curitiba. Ela reconhece na trajetória da companheira “loira”, que já
teria anunciado a volta, um ponto de conexão com a própria experiência migratória. Ao falar
dessa colega que se foi e que voltará, buscou mostrar a sua opção pessoal de não abandonar a
ARPA, uma vez que a situação de itinerância é muito comum entre esses trabalhadores,
sobretudo os mais jovens.
Betinha relembrou da história da companheira de lida que abandonara a ARPA.
Utilizou-se dessa menção para fortalecer o argumento acerca do caráter terapêutico da
reciclagem. Cumpre enfatizar que a ênfase no aspecto terapêutico da reciclagem não emergiu
apenas em seu relato, mas também com outras entrevistadas, no caso mulheres. Na verdade,
esse aspecto não pode ser lido com simplismo, como uma dada realidade que existe em si
mesma. Sua percepção passa pelo reconhecimento de histórias entrecruzadas com outros
sujeitos, na forma da experiência coletiva, quando a partir desse lugar buscou mostrar sua
própria decisão de permanecer. Ao mesmo tempo, também permite uma leitura relacional, de
reconhecimento da atitude do outro como uma baliza de compreensão de sua permanência. O
fato de Betinha querer permanecer nesse trabalho deve ser lido não como uma acomodação, um
sintoma de cansaço, de desistência, mas uma resposta que se tornou possível diante de uma
exclusão que lhe impunha a própria impossibilidade de escolha. Se há um sentido terapêutico
para a reciclagem, a que Betinha reconhece, passa pela construção simbólica de elaborar
marcações distintivas da transformação, a partir de um outro, para e com ela incluída no
processo Não nos cabe valorar ou atestar o caráter terapêutico da reciclagem, porém é preciso
dizer que, na estrutura de sentimentos (WILLIAMS,1979) na qual participa como sujeito ativo
e relacional, a compreensão do papel da associação também recorre à superação de sentidos
comuns nas trajetórias que se encontram na ARPA, entre elas: a tristeza, o desalento, o
isolamento, a violência, o preconceito, a discriminação, a falta de perspectivas, as dores que
carregam no corpo, entre marcas da exclusão, da transitoriedade, da itinerância e, sobretudo, da
invisibilidade.
Separar recicláveis, conhecer e classificá-los em sua materialidade e importância, foi
algo a que a recicladora deu bastante ênfase. Afinal, a separação de recicláveis, ademais a
atenção que precisa ser colocada em sua execução, pressupõe o sentido pensante, o
conhecimento sobre a natureza e valor de mercado de cada um dos resíduos separados. Ora, ao
se mostrar detentora de um saber, de uma metodologia para seu trabalho, Betinha também
redesenha sua trajetória a partir do trabalho associativo. O incremento desse saber, de sua marca
consciente, se mostra no relato como um divisor de águas. Afinal, antes o trabalho era de
faxineira, de doméstica, de trabalhadora volante na colheita de feijão e maçãs na economia
local. Pois bem, o trabalho doméstico, intermitente e desvalorizado, não permite a expressão e
o domínio de si numa realidade. O trabalho sazonal, brutalizado pela rotina árdua no pleno sol
e o emprego de agrotóxicos, centrados na lógica do empresário do campo, lhe tira essa
capacidade de praticar seu conhecimento.
Em outro momento da entrevista, Betinha acrescenta outros elementos substanciais:

E eu agradeço a Deus por eu tá bem, em paz; por eu tá trabalhando num lugar que eu me
sinto bem. Às vezes eu venho trabalhá… às vezes eu digo que eu tô meio cansada de
alguma coisa. Eu falo: não! Tem que levantá a cabeça, tem que seguir em frente. Se eu
não tiver trabalhando, eu fico doente de eu ficar dentro de casa. Porque eu faço, faço o
serviço dentro de casa e não é a mesma coisa. Se eu não tiver lá no trabalho, se eu não
tiver ali, minha cabeça tá trabalhando, tá esquecendo dos problemas, esquecendo disso,
esquecendo daquilo.
É preciso mencionar o fato de que, ainda que buscasse mostrar seu empoderamento,
proveniente de um saber apreendido naquela coletividade, Betinha mostrou sua tomada de
consciência sobre as fronteiras entre o privado e público, sobretudo uma dada ruptura, como
mulher, dos enfadonhos afazeres domésticos com a vida de casa para um lugar onde pode
trabalhar “esquecendo dos problemas, esquecendo disso, esquecendo daquilo”. O relato oral
nos brinda com a possibilidade de perceber não apenas o fenômeno social de empoderamento,
mas conhecer também os sentimentos que ela vivencia nessa passagem. É como se fôssemos
convidados a conhecer a força deles na elaboração de sua consciência política de “levantá a
cabeça” e seguir em frente, já que o que há é “o serviço dentro de casa e não é a mesma coisa”.
Jociane do Rocio Lima, de 45 anos, inscreve significados comuns de experiências
diferentes de Betinha:

Esse reconhecimento que eu tive por causa da reciclagem; eu nunca imaginava. Porque
a primeira vez que eu entrei aqui, eu olhei assim [gesto de sobressalto], me assustei.
Porque o serviço que eu trabalhava lá era casa de família. Então, não era tanta as coisas
que eu vejo agora. Mas, depois eu falei: não é nada que eu não tenha passado. Mas, na
reciclagem que eu tô hoje, eu aprendi a dar mais valor às coisas que eu tô conquistando.
Porque tem muita coisa que eu falei: eu entrar no mercado ou numa loja e gastar tudo!
Tudo! Que nem hoje, eu sei que eu recebo bem… da minha profissão. Eu recebo e eu
não gasto. Eu não gasto o que eu gastava antes. Eu me admiro, porque eu trabalho aqui,
trabalho de segunda a sexta; no sábado também eu faço isso. E eu fico boba de ver. De
eu tá com dinheiro e eu posso comprar. Eu posso entrar numa loja, comprar, mas eu não
compro! Porque eu quero sempre tá comprando uma coisa que seja útil pra mim. É isso
que eu dou valor. É o que eu tô fazendo ali!

Reconhecer, trabalhar, imaginar, ver, surpreender, assustar, aprender, conquistar,


receber, gastar, comprar, valorizar, eis os verbos que informam atos de poder na narrativa de
Jociane. Na análise sobressai de todos, sem menor ou maior significado, o ato de se surpreender.
Essa mulher alegre e falante versa de seu reconhecimento das próprias novas atitudes em
relação ao coletivo. Há que se desacatar, dentre as muitas possibilidades de leitura, a
compreensão de alguns componentes de sua biografia contada. Nasceu no campo, filha de numa
família numerosa de trabalhadores rurais em regime assalariado, longe do urbano, que mais
tarde migrara para a cidade de São Paulo. Sem perder o fio desse trecho acima, podemos
recorrer a outro instante da narrativa para compreender a força de seu sobressalto consciente.
Tal argumento merece ser reconhecido no ritmo acelerado de suas próprias palavras:

Quando o meu pai…Como sempre bastante filho; nós somos… agora nós somos em dez,
mas, na época, quando moramos ali era em sete. Mas aquela vida meio sofrida no Haras.
Haras você sabe como que é? A gente só tem que morar… a gente só sai pra fazer
compra, quase não conhecia a cidade. Mal ia numa loja. Mal a gente ia no mercado,
porque o meu pai não tinha muita condição. Então, a gente tinha que ir no mercado só
quando a gente achava assim... Ah, hoje, o pai falou: hoje posso ir porque dá pra comprar
uma coisa diferente. Então a gente ia. Mas, não conhecia muito a cidade. Mas era só a
vida da fazenda; fazenda era tranquilo! A gente conhecia só a família, alguns amigos, e
nem todos eram próximos. Mas… eu morava na fazenda! Eu não saía da fazenda. Até
os meus 12 anos eu vivi só ali. Patrão a gente via quando eles vinham no final de semana
e mais nada. Os amigos eram aqueles de criação, que moravam perto da gente. Também
isso era, mais nada. Daí depois dos meus 12 anos que eu fui conhecer a cidade.

Para compreendemos a produção de sentidos trazidos pela experiência coletiva da


ARPA no relato de Jociane, precisamos relacionar os dois trechos. No primeiro excerto, acentua
o reconhecimento que obtivera em sua atuação, isso “porque o serviço que eu trabalhava lá era
casa de família. Então, não era tanta as coisas que eu vejo agora.” Tal como Betinha, Jociane
saíra do trabalho privado em casa de família, que foi apresentado por ela com depreciação.
Nesse caso, não há novidades, haja vista o conhecimento corrente acerca das mazelas da
discriminação e descumprimento dos direitos do trabalho doméstico no Brasil, ainda que esse
passasse por mudanças, sobretudo com a maior cobrança na sociedade pelo registro em carteira
e, mais importante, a vigência da Lei Complementar n.150, 1º de junho de 2015, que exige dos
empregadores o recolhimento do Fundo de Garantia por Tempo de Serviço (FGTS), o
pagamento de seguro e a antecipação de multa nos casos de demissão sem justa causa. Mas o
que mais é ressaltado por Jociane é a própria depreciação social. O trabalho fora dessa dinâmica
excludente resultou para ela numa espécie de amplitude compreensiva, alguma forma de
emancipação, pois “não era tanta as coisas que eu vejo agora.”
Uma outra percepção emancipadora teria sido gerada pela possível superação do vício
do consumo, algo que lhe perseguia há muito tempo. É possível inferir, cruzando os argumentos
que o consumo excessivo, ou seja, além da sua necessidade, tinha uma origem na solidão do
tempo rural, que teria sido amplificado pela vida na cidade grande, no caso São Paulo. Essa
migração, contada com detalhes na inteireza do relato, não teria sido bem-sucedida inclusive
por essa dependência psicológica por comprar. Não nos cabe o diagnóstico de ordem psíquica
das causas de sua compulsão, todavia sim os atributos sócios históricos de sua leitura da
migração. Nesse caso, a entrevistada confere grande valor ao trabalho na ARPA, pois “eu
aprendi a dar mais valor às coisas que eu tô conquistando.” Há uma nítida mudança de tom, da
dependência para um autocontrole, uma autovalorização, de doméstica para um sujeito cioso
de sua história, a despeito das contradições vividas, ao ponto até de afirmar: “eu me admiro”.
Retomando as narrativas de Betinha e Jociane, por um lado, não se pode deixar de incluir
os dissabores da atividade laboral, não permitindo que se sobressaíram aos significados que
passou a conferir à vida. Sobretudo aqueles que lhe foram negados antes de sua atuação nesse
trabalho. Por outro lado, deixou claro os termos de análise da realidade, que passa pela
discriminação e monotonia limitante da vida doméstica, com outras tensões, como a dupla
jornada de trabalho. A tomada de lugar em sua própria história não está dada, pois requer um
processo de luta permanente que implica sempre, como diz Betinha, “levantá a cabeça, tem que
seguir em frente.” Interessa destacar que a narrativa oral, lida no processo de consciência,
assevera o cuidado que se precisa tomar com a dinâmica social em movimento, algo que a
entrevistada reforça com o movimento da memória de estar “esquecendo disso, esquecendo
daquilo”.
Outra entrevistada, Terezinha de Vaz Carvalhães, hoje com 57 anos, acrescenta outros
sentidos políticos possibilitados pela prática associativa na ARPA, que lhe conferiu uma tomada
de consciência em contraposição às dimensões de sazonalidade e precariedade das condições de
trabalho experimentadas na região, sobretudo a itinerância. Ainda que o foco seja a partir de
sua narrativa, vale mencionar que parcela significativa dos entrevistados mencionou a falta de
oportunidades e precariedade nas condições de trabalho existentes, que os obrigavam a migrar
ou a se submeterem a atividades laborais de vínculos frágeis. No caso o trabalho em plantações
de feijão, batata e maçã da região. Quando não, a alternativa não tão atraente de emprego numa
empresa privada de reciclagem localizada no próprio bairro, a poucas quadras da sede da
ARPA. Assim narrou a entrevistada:

Eu trabalhava assim... fora. Trabalhava na lavoura, quando tem. Agora tem a época de
maçã, depois vem a colheita. E a gente ia, agora tá aqui. Mas antes quando não trabalhava
aqui ia lá, feijão. Agora batatinha não tem mais. Na colheita da maçã, daí eu falei pra
turma: aqui você tá debaixo da casinha. Você não tá tomando sol, não tá tomando veneno
na cara. Porque lá você tem bastante veneno, fruta tem veneno. Quanta gente tá morrendo
por causa de veneno que tão ponhando na fruta. Falei: lá fora vocês tão tomando veneno,
tão no sol, tão na garoa. Porque tem tempo que a colheita apura, você tem que trabalhá
com chuva. E aqui não, você tá embaixo da tua casinha, você não tá tomando veneno na
cara, não tá no sol, não tá na chuva. Falei pra turma: a gente tem que reconhecê aonde
que a gente tá trabalhando agora. Que não tá sugando aquele veneno que está lá,
trabalhando no sol. Às vezes, tem que trabalhá na chuva. Já trabalhei na chuva, lá fora.
Amanhã depois fica doente, o dinheiro que você ganhou lá, o quarentão que você ganhou
lá você gasta num vidro de remédio. Se é que compra um vidro de remédio hoje. Porque
tá caro, né? Quando tem no posto a gente pega, quando não tem, tem que pegá na
farmácia.

É possível perceber que no relato não há uma idealização da atividade de reciclagem,


mas uma compreensão relacional com outras dimensões lidas nessa realidade. Isso porque
“agora tá aqui”, dimensionando a situação do presente de estar na ARPA, algo que pode até
não perdurar, já que a experiência social lhe confere a leitura do real, limitada ao tempo atual.
Afinal, a transitoriedade é marca de sua lembrança. É preciso cuidado, portanto, de não
positivar demais tais melhorias nas condições de vida e trabalho que foram asseveradas. A
questão passa a ser a de compreender a tomada de consciência da falta de possibilidades que se
apresenta a realidade de sua existência social e material. A vida associativa incorporou uma
aprendizagem politizada acerca dessas condições a que estavam antes submetidos.
Mas há algo mais em seu relato. Terezinha mostrou-se atenta às deterioradas
condições de consecução de sua atividade laboral anterior à atuação na ARPA. No
primeiro instante, asseverou que o trabalho na lavoura, “quando tem”, acontece no período
das colheitas, por um curto período de tempo, entre os meses de fevereiro a maio de cada ano,
ou seja, por 4 dos 12 meses do ano. A suscetibilidade ganha palavras, “antes quando não
trabalhava aqui ia lá feijão,” e “agora batatinha não tem mais.” A batata inglesa e o feijão
são cultivares que ganharam maquinários de colheita, a prescindir da mão de obra desses
trabalhadores.
Importa observar que Terezinha, como fizera Betinha, minimiza os inconvenientes
da lida com materiais originários do descarte. Em suas falas, e essa recicladora não é exceção,
os trabalhadores relatam o fato de serem alvo de discriminações em razão de trabalharem com
a separação de materiais de reciclagem. Desse modo, se reposicionam em relação ao tema,
considerando que pior era quando trabalhavam na lavoura. Além de escassa, a atividade na
lavoura extensiva impunha piores condições de trabalho. Nesse sentido, mais do que valorizar
a troca na atividade, buscou considerar o fato de que a mudança de atividade, ainda que
melhor remunerada, lhe rendeu mais saúde e menos despesas.
Além de constatar a indeterminação como condição da vida que segue, Terezinha
parece não ficar submetida à constatação, pondo-se numa prática de conscientizar o outro,
afinal “eu falei pra turma”. A narrativa se mostra preocupada não apenas de compreender os
termos da transformação que está vivenciando, mas também de alertar aos outros
trabalhadores sobre suas descobertas. Nesse sentido, é interessante notar sua leitura das
péssimas condições ambientais em que se submetiam nas lavouras da região, de uso abusivo
de agrotóxicos nessas plantações, o que é domínio público, não é restrito a esse contexto. Os
números são de fato alarmantes. Para se ter uma ideia, conforme divulgado pelo Instituto
Nacional do Câncer (INCA), o brasileiro consome aproximadamente um galão de 5 litros de
agrotóxico por ano.
“Lá fora vocês tão tomando veneno, tão no sol, tão na garoa”, assim adverte
Terezinha aos companheiros sobre as condições precárias de trabalho nas lavouras da região
que são comparadas para se contrapor ao que experimentam na ARPA. Mais uma vez, o tom
da entrevistada não apenas era de constatar, mas de atuar a partir disso, para fazer chegar aos
demais essa compreensão. Noutro momento, esse aspecto ficou muito destacado:

Ah, cada um na sua casinha, às vezes a gente foge e vai lá. Aí o Adalto vem e fala: olha
aí, as reuniões! (risos). Daí eu vou lá falar com a dona Iva, depois com a Ana, que não
veio hoje. Aí você foge da casinha e vai na outra conversá um pouco. (risos). Eu entro
trabalha até o meio dia. Aí falei: como eu trabalho lá na roça, eu trabalho até a tarde,
deixo as crianças sozinhas. Porque eu não trabalho o dia inteiro aqui? Porque lá eu
trabalhava o dia inteiro. Tem que levar a marmita. Quando tem almoço, tem, quando não
tem, você tem que levar a marmita. Então, porque você não faz o dia inteiro aqui? Eu
pensei: mas porque eu não fico fazendo o dia inteiro? Se eu trabalho na roça, eu trabalho
dia inteiro; tem que deixar as crianças sozinhas? Então, vou fazer isso, vou trabalhar o
dia inteiro aqui, dá na mesma coisa. Que na roça você vai, mas não tem carro pra te
trazer. Na hora do almoço não tem, tem que ficar o dia inteiro. Não sabe como as crianças
tão, como foram na escola.

Nesse trecho da entrevista, o pensamento de Terezinha chega a seu ápice comparativo.


Se estamos pensando nos sentidos da organização coletiva desses trabalhadores, não podemos
deixar de perceber como a comparação é o cimento da percepção consciente. Muitos
elementos dessa construção coletiva são mostrados. O primeiro dele é o fato de que essa
organização não é assumida de igual maneira, de modo fácil, por todos. Há um processo de
tensão interna. Ora o responsável Adalto precisa advertir: “olha, as reuniões!” Nesse
momento, os risos da entrevistada denotam como a advertência é reveladora das dificuldades
de se assumir as reuniões semanais de organização como lugar comum a todos. Fica nítido
como as trajetórias individuais, sem uma experiência anterior de organização custam a
inscrevê-la na dinâmica da ARPA. Trata-se de um processo. Terezinha atende ao chamado de
Adalto para a importância das reuniões do grupo, ao ponto de ir lá “falar com a dona Iva,
depois com a Ana, que não veio hoje.” Nesse trecho temos algo mais a destacar. Não se trata
apenas de uma dificuldade interna para a organização, mas de uma leitura da entrevistada
sobre as razões dela existir.
Na ARPA, os trabalhadores fazem sua rotina, decidem, ainda que seja difícil dizer isso
em termos de autonomia, os seus horários e em que condições trabalham, já que trabalham
por produção. Por produção, esses trabalhadores podem, em alguns momentos, acreditar
estarem “perdendo” tempo com as reuniões. Não temos aí uma organização azeitada,
destituída de conflitos, uma vez que esses trabalhadores se mostram aprendizes da nova
dinâmica laboral coletiva. Na ARPA passaram também a experimentar as possibilidades que
a atividade lhes conferiu, como por exemplo se sentir livre para sair de seu território e se
socializar com outros trabalhadores, que “aí você foge da casinha e vai na outra conversar um
pouco”. Terezinha conta isso sob a forma de risos, o que mostra que há uma espécie de tensão
no ar, quanto a possíveis desencontros de perspectivas entre esses trabalhadores. Alguns deles
obstinados a uma produtividade, outros interessados em ver na coletividade uma forma de se
socializar, diferentemente daquilo que fora experimentado nas condições laborais anteriores,
sobretudo do trabalho volante e intermitente nas plantações.

Na ARPA, além da socialização nas baias, possuem o espaço de uma cozinha coletiva,
onde compartilham refeições e dividem as tarefas. A entrevistada, mais uma vez, acentua
a diferença em relação ao que vivia no trabalho na agricultura, que a limitava a ficar o
dia inteiro fora de casa, a ter uma alimentação condicionada à preparação de uma
marmita, “porque lá eu trabalhava o dia inteiro”. Há o registro positivo dessa mudança,
uma vez que além de ter que levar a marmita, “lá na roça, eu trabalho até a tarde, deixo
as crianças sozinhas”. Acompanhar a rotina dos filhos é um incremento à sua vida, algo
que o trabalho na ARPA passou a lhe proporcionar. Mas constatamos também que há
uma tensão gerada pela mudança, ao ponto de pô-la a refletir. Ou seja, ampliou o tempo
para a família, mas reduziu sua produção, no caso a sua renda. A narrativa dá conta da
tentativa de encontrar um lugar de existência nesse coletivo, afinal, “mas porque eu não
fico fazendo o dia inteiro?”, ainda que “não sabe como as crianças tão, como foram na
escola.”

Quando analisamos as experiências organizativas dentro da ARPA, sobretudo a partir


das mulheres entrevistadas, encontramos um universo em construção, um lugar coletivo de
reelaboração da existência social, não destituído de incertezas, dúvidas e elaborações
comparativas. Duas considerações gerais podem ser demarcadas nesse processo. A primeira
delas é a do rico processo de aprendizado da reciclagem, não como a solução final, ideal e
perfeita na história desses trabalhadores. Afina, foi preciso mudar de rumos, se especializarem,
se afirmarem diante de uma prática laboral e produtiva muito discriminada socialmente, enfim,
se empoderarem. A segunda, do aprendizado da vida associativa, vivendo dramas e percalços,
haja vista as vidas individuais pregressas, itinerantes e inconstantes. Em ambos os casos, o
contato com outros trabalhadores da reciclagem por meio dos encontros promovidos pelo
Fórum Estadual Lixo e Cidadania no Paraná foi de grande valia, conforme frisaram alguns
entrevistados. Boa parte dos trabalhadores entrevistados lembrou desses encontros como
momentos efusivos e enriquecedores. Sair de seu lugar, encontrar e compartilhar experiências
com “iguais” de outros lugares deixaram marcas conscientes de problemáticas comuns ao
grupo, mas também a possiblidade de viajar, de se divertirem e conhecerem outras paragens e
pessoas.
Se vistas num plano abstrato, presas a percepções ideais, a prática laboral de reciclar e
sua lida com os maus odores, as contaminações e outras condições insalubres, não podem
serem aceitas sem críticas. Ao desvendar novos significados atribuídos aos processos em que
os tornaram sujeitos, precisamos atentar para novos pontos de vista que merecem a valorização
do modo como eles próprios se sentiram intérpretes e atuantes dessa realidade.
É preciso compreender, por final, a dinâmica desalentadora da produção massiva de
resíduos que corresponde aos propósitos da exploração capitalista contemporânea, conforme
estudado por Antonio de Pádua Bosi (2008) e outros autores, que destacaram a participação
dos trabalhadores dessa cadeia como engrenagem da obtenção de lucros no processo produtivo
pela indústria da reciclagem e relacionadas. Não podemos deixar de reconhecer, entretanto, o
modo como esses trabalhadores constroem sua inscrição nessa dinâmica, mas não só nela.
Ainda que não hegemônicos, os sentidos atentados pelos trabalhadores da reciclagem
mostraram que é necessário complexificar o olhar sobre os processos vividos para além dessa
dinâmica produtiva em si mesma. Eles insistem também que são oriundos de outros tempos,
de práticas e exclusões constituídos na experiência cotidiana. Ademais, são pessoas portadoras
de perspectivas e aprendizados, também suscetíveis às descontinuidades do mundo do trabalho
e suas inerentes contradições.

BOSI, Antônio de Pádua. A organização capitalista do trabalho "informal": o caso dos


catadores de recicláveis. Revista Brasileira de Ciências Sociais, São Paulo, v. 23, n.67, p.
101-116, junho de 2008. Disponível em< https://goo.gl/PM3xc7>. Acessado em 23 de fev.

IBGE. CENSO 2015. Disponível em https://goo.gl/kw5fMF, acessado em 18 de fevereiro de


2018.

LAVERDI, Robson. Tempos diversos, vidas entrelaçadas: trajetórias de trabalhadores


itinerantes. Curitiba: Aos Quatro Ventos, 2005.

WILLIAMS, Raymond. A cultura é algo comum. In: Recursos da esperança. São Paulo: Ed.
da UNESP, 2015.

WILLIAMS, Raymond. Marxismo e literatura. Rio de Janeiro: Zahar, 1979.

CARVALHÃES, Terezinha de Vaz, Entrevista concedida a Alessandra Izabel de Carvalho, Robson


Laverdi et al. Porto Amazonas, 14 de outubro de 2014.

LIMA, Jociane do Rocio, Entrevista concedida a Alessandra Izabel de Carvalho, Robson Laverdi
et al. Porto Amazonas, 14 de outubro de 2014.

NICOLAU, Maria Elizabete, Entrevista concedida a Alessandra Izabel de Carvalho, Robson


Laverdi et al. Porto Amazonas, 9 de setembro de 2014.
Daniele Brocardo

Este texto vincula-se à pesquisa que está sendo desenvolvida para a elaboração de uma
tese na área de História. A partir dela, visa-se a abordar diversas percepções sobre as
transformações da/na paisagem que abrange o ecótono 1 da Floresta Ombrófila Mista-
FOMcom a Floresta Estacional Semidecidual-FES, na região que compreendia o
munícipio de Cascavel,2 no estado do Paraná, entre as décadas de 1950 e 1990. Essas
transformaçõesinvestigadas ocorreram a partir, principalmente, das ações de indústrias
madeireiras3 e daagricultura.
Neste trabalho dialogamos com duas entrevistas, realizadas com sujeitos que
trabalharam na agricultura e nas madeireiras, no período e espaço estudados. Espera-se,
com essas fontes, considerar algumas das memórias que esses sujeitos construíram
como trabalhadores e as percepções apresentadas sobre as mudanças na paisagem.
A partir do que Simon Schama (1996, p. 17) escreveu em seu livro Paisagem e
Memória é que delimitamos o conceito de paisagem:

[...], conquanto estejamos habituados a situar a natureza e a percepção humana em dois


campos distintos, na verdade elas são inseparáveis. Antes de poder ser um repouso para
os sentidos, a paisagem é obra da mente. Compõe-se tanto de camadas de lembranças
quanto de estratos de rochas.

* Doutoranda do Programa de Pós-Graduação em História da Universidade Estadual do Oeste do Paraná -


UNIOESTE, Linha de pesquisa Cultura e Identidades, bolsista CAPES.
1 Este conceito pode ser definido, de forma concisa, como: “transição entre dois ecossistemas diferentes e
tensão entre ambos.” (MILAN; MORO, 2016, p. 76).
2 A reocupação da área que hoje forma o município de Cascavel/PR iniciou na década de 1930, aliada a um
projeto de ocupação de fronteiras em âmbito nacional. Até o ano de 1951, permaneceu como distrito de Foz do
Iguaçu. A criação do município se deu por meio da Lei estadual 790/51, com sua efetivação em 14 de dezembro
de 1952. Inicialmente seu território foi delimitado, ao norte, pelo Rio Piquiri e, ao sul, pelo Rio Iguaçu, mas com
o decorrer dos anos o tamanho desse território foi reduzido devido à criação de novos municípios. Atualmente,
Cascavel possui 312.778 habitantes. Disponível em: <http://www.cascavel.pr.gov.br/noticia.php?id=26344>.
Acesso em: 23/03/2016.
3 Compreende-se aqui por indústria madeireira o setor da atividade industrial que trabalha com o processamento
da madeira. No período de 1950 a 1990, as madeireiras realizavam os seguintes processos, em sua maioria:
derrubada das árvores na floresta; transporte até os barracões; corte em tábuas de diferentes
centímetros;tratamento químico e transporte até o Porto Fluvial de Foz do Iguaçu/PR, onde eram exportadas para
a Argentina. O recorte desta pesquisa não pensa a ação de uma empresa madeireira em específico, mas a ação
dessas, como um todo.
A partir dessas colocações, a paisagem é aqui entendida como interação entre o meio e a ação
humana, sendo visualizada, sentida e ouvida, constituindo-se, dessa forma, em uma realidade
interpretada pela percepção humana. Tudo que dizemos, escrevemos ou fotografamos sobre o meio
natural passa por nossa percepção humana, pois a natureza não cria significados sobre ela mesma
(SCHAMA, 1996, p. 17).
Assim, se a paisagem é a junção do que uma pessoa pensa com o meio onde vive, também é
parte desta a vegetação que forma o espaço do estudo. Desse modo, cabe argumentar um pouco
sobre como a vegetação era antes dessas transformações. Composta pelo ecótono da Floresta
Ombrófila Mista - FOM com a Floresta Estacional Semidecidual - FES (ambas pertencentes ao
bioma da Mata Atlântica). A FOM é denominada, frequentemente, de Mata dos Pinheiros, pois é a
Araucaria angustifólia a espécie que caracteriza essa. Já a FES é constituída por espécies como:
Peroba-Rosa, Pau-Marfim, Cedro e Palmeiras.
As transformações dessa vegetação estão relacionadas ao período, que marcou as ações das
madeireiras e da agricultura de forma mais intensa: as décadas de 1950 a 1990. As duas primeiras
décadas – 1950 a 1970 – se constituíram em um período de maior atividade das madeireiras, que
atuavam em conjunto com a agricultura. Nas duas últimas décadas – 1980 a 1990 – ocorreu uma
intensificação da ação da agricultura, se consolidando como atividade econômica predominante em
relação outra.
Sobre a metodologia e fontes aqui utilizadas, cabe dizer que a História Oral permite
compreender que as percepções sobre o meio natural devem ser analisas levando em consideração
o tempo e o espaço em que o sujeito está inserido, no momento de sua ação, no passado, e no
momento de sua recordação, no presente.
Destarte, entende-se que as ações de transformações da paisagem são narradas conforme a
vivência de cada indivíduo. Porém, as narrativas, não operam como algo isolado do restante da
sociedade.
Procuramos estudar a fonte oral como escreveu Yara A. Khoury (2006, p. 31), em seu texto
O historiador, as fontes orais e a escrita da história. Assim, as fontes orais são pensadas para “além
das características informativas”, são consideradas a partir das “características interpretativas, por
meio das quais cada um se situa na realidade social; fomos tomando as narrativas como textos
impregnados de significados, [...]” dando sentido à vida, a partir da relação passado e presente.
Também, tentamos pensar as entrevistas como um diálogo, como escreveu a autora:

Caminhar nessa direção tem significado lembrar sempre que incorporar com legitimidade
a fala daqueles que entrevistamos, e considerá-las devidamente como atos interpretativos
da realidade que estudamos; é lembrar que as entrevistas orais, por sua própria natureza,
não se fazem com técnicas e, sim, com relações humanas em que estamos desejosos de
conhecer melhor como cada pessoa vive e constrói essa luta, ou mesmo se submete. Tem
significado, também, trazer essas narrativas para dentro de nosso texto numa relação de
igualdade (KHOURY, 2006 p. 32).
Mesmo sabendo que essa relação de igualdade não é tarefa fácil, é a partir dessas
considerações que pensamos a análise das entrevistas. Porém, cabe ainda descrever como
estudamos a memória, pois quando trabalhamos com a História Oral, esta também deve ser
considerada.
A partir de Pollak (1992, p. 201-203), entendemos a memória como “um fenômeno coletivo
e social”, que está “submetido a flutuações, transformações, mudanças constantes”, mas, também
como “fenômeno individual”. É ainda entendida como “fenômeno construído”, consciente ou
inconscientemente, fruto de um trabalho de organização e seleção.

Portanto, passamos para análise das entrevistas. A primeira entrevista foi realizada com Sady
José Baldo, em 13 de setembro de 2013, na cidade de Cascavel/PR, na sua residência e comércio,
no período da tarde.
Baldo nasceu no atual município de Erebango/RS, no ano de 1947, e mudou-se em 1963 para
o espaço do estudo. Ele é um ex-empregado da IMAPAR4 (Industrial Madeireira do Paraná),
mas também trabalhou em outras indústrias madeireiras, exercendo diferentes
atividades e, posteriormente, trabalhou como motorista de trator na agricultura. No
momento da entrevista, possuía um pequeno estabelecimento comercial próximo à BR 467.
A entrevista de Sady José Baldo possui certa unidade narrativa, que expressa uma visão
ambígua: positiva e negativa, sobre os seus trabalhos no passado. No início ficamos sabendo que
se mudara, junto a seus pais, para o espaço estudado e que já na adolescência trabalhava na indústria
madeireira.
Na narrativa é o trabalho que molda a paisagem: “[...] Os menores não podiam trabalhar, nem
aguentavam trabalhar com madeira pesada, como eu era. Primeiro era madeira mesmo, pinheiro
grande; então era a base de aproveitamento.” (BALDO, 2013, s/p.). Assim, relata seu cotidiano de

4
Industrial Madeireira do Paraná (IMAPAR), no ano de 1948, passou a atuar em Cascavel, a partir da
compra das serrarias (Central Lupion e São Domingos), pertencentes a Moysés Lupion, (Governador do estado
do Paraná, nos períodos de 1947 a 1951 e 1956 a 1961). Foi a maior empresa madeireira a se estabelecer no
município, tendo três serrarias, uma beneficiadora e operando também na exportação de madeira, com “depósitos
de embarque nos portos de Foz do Iguaçu, Antonina, Paranaguá e Porto Alegre. Diversifica nos anos 1970 suas
atividades, atuando também na agricultura e na pecuária”. Sendo uma destas propriedades agrícolas, a fazenda
Cajati que “era de propriedade da empresa Imapar-Cajati Reflorestamentos e Agricultura Ltda”. Atualmente, esta
terra encontra-se destinada à Reforma Agrária. A IMAPAR tinha sua sede situada anteriormente no município de
Caxias do Sul/RS e, depois em Foz do Iguaçu. Seus proprietários eram Renato Festugato e Florêncio Galafassi;
este permaneceu como sócio até o ano de 1963, depois organizou outra empresa madeireira. Essas informações
estão disponíveis em SPERANÇA, A.; SPERANÇA, C., 1980, p. 91-92 e no site: <http://www.incra.gov.br/
incra-compra-fazenda-cajati-em-cascavelpr>. Acesso: 19/12/2017. Porém, devido às informações disponíveis, a
partir das entrevistas desta pesquisa, é provável que a IMAPAR tenha atuado em mais setores com um número
maior de estabelecimentos.
trabalho o qual consistia no aproveitamento de madeira, produzindo cabinhos de
madeira, 5 serviço considerado menos árduo, já que poderia ser exercido por menores de idade.
Se na narrativa de Baldo (2013, s/p.) é trabalho que molda a paisagem, as mudanças
nesta estão associadas aos seus diferentes trabalhos. Desse modo, descreveu que trabalhou por
mais ou menos dois anos no aproveitamento de madeira e, posteriormente, passou para a
função de “pé de fita”, na qual era serrada a madeira. Depois passou a ser bitoleiro,6 por três
anos e, em seguida, foi trabalhar como serrador de madeira. Acrescentou ainda na sequência:
“[...] larguei mão e fui para o mato, daí fui puxar tora. Fui trabalhar com trator, dai fiquei
lá até terminar a serraria. ‘Acabou’ as madeiras, daí eles mudaram para São Miguel do
Iguaçu-PR”. Após isso, narrou que passou a trabalhar para outra empresa, a IMARIBA: “daí
eu fui trabalhar na roça dele ali na... como é que é? Lavoura, como é que é, era... Santa
Izabel... parece que é o nome da firma dele, [...] na agricultura”.
Assim, constrói sua trajetória, como um sujeito ativo, nos diferentes níveis do trabalho
nas madeireiras, do menor salário até um salário mais alto. Na construção de sua trajetória,
percebemos uma divisão do trabalho, a partir da experiência do trabalhador e da sua idade;
portanto se construía uma “carreira” na sequência profissional dentro da serraria.
Esta trajetória dos trabalhadores das madeireiras se finda com o término do que se
chamou no município de “ciclo da madeira”. Ou seja, quando não havia mais uma vegetação
considerável para exploração, as madeireiras mudavam para outros lugares, e seus
trabalhadores, se não as seguiam, iam trabalhar na agricultura, a qual foi possível a partir das
transformações geradas pelas ações das madeireiras.
No trecho a seguir, podemos analisar a ambiguidade na narrativa de Baldo (2013, s/p.), sobre
o período de seu trabalho nas madeireiras:

[...] a serragem ia tudo para o rio! O que não ia para o rio ficava num monte lá. Volta e
meia queimava aquilo lá, a e maioria foi tudo para o rio. A firma aí que fazia. Fazia na
beira do rio já pra poder levar a serra, aquilo lá matava peixe cara! Madeirama, sei lá, tinha
madeira que ela é venenosa, matava os peixes tudo. Tinha até um cipó que se você batesse
o cipó no meio da água aqui para baixo aí morria tudo [os peixes]. Era muito bom naquele
tempo! Mas era ruim também! Porque era só mato, aqui não adiantava você caçar bicho.
Você não precisava sair caçar com cachorro, se achava onde quer. Eu não era muito de
caça, mas tinha meu pai e os outros caras que gostavam e saíam cedo caçar [...]. Eu, o meu
era jogar bola, gostava de jogar bola, agora, caçar, não.

Nesse trecho que Baldo descreve o destino da chamada serragem (resto de madeira), é
demostrada a sua percepção sobre o período como bom e ruim; ruim porque era só “mato” e bom

5..Estes cabos de madeira são utilizados basicamente para a produção de rodos, vassouras e outros
materiais. .
6 Bitoleiro pode ser caracterizado como o funcionário dentro da serraria, responsável pela definição da
espessura da madeira e por transportar as toras de madeira até serrador.
porque era fácil de caçar. A caça, como o futebol, era vista como o lazer naquele período. Já o mato,
pode representar a ausência, talvez de um centro urbano, portanto mais pessoas, com escolas,
hospitais, pavimentação nas ruas e outros benefícios para a vida humana. Porém, o mato pode ser
ainda a existência, de algo incômodo, algo que se desejava eliminar, mas ambas as conotações são
complementares.
Todavia, é provável, ainda que rememore esses fatos em uma comparação passado/presente.
Deste modo, hoje existem poucos peixes nos rios, talvez por isso, conecte diretamente o trecho
sobre a abundância de peixes com a afirmação “era muito bom naquele tempo”, e logo em seguida,
fale da abundância de “caças”.
Também, podemos estudar a percepção de Baldo sobre a transformação da paisagem, quando,
no final da entrevista, foi questionado sobre a ação das madeireiras para o município de Cascavel.
A visão apresentada, a partir da pergunta, traz a interação entre os tempos: passado, presente e
futuro, em uma ordem linear, cronológica e ascendente. Para ele, foi necessária a ação das
madeireiras e sem elas não seria possível ter a agricultura, elemento descrito como central para a
economia do município: “hoje... o Cascavel hoje é agricultura. Então não adianta... Hoje tem o [Jacy
Miguel] Scanagatta, têm os mais velhos aí que são tudo rico, tudo eles tinham terra com pinheiro
em cima”. Suas queixas são no sentido do uso não racional dos recursos provenientes das florestas:

Eles tinham que desmatar, só que eles não aproveitaram. O certo seria eles cortarem menos
madeira, jogar menos fora; esse que é o problema. Não é só eles não, é em todo o país
nosso. Em todo país nosso, eles jogaram muita madeira fora; eles não pensavam no
amanhã, né? (Sady Baldo, 2013, s/p.)

Apesar de ser crítico ao uso não racional,7 por parte dos madeireiros, observou que
isso seria uma prática corriqueira, feita por todos. E como proprietários da terra, eles tinham o
direito de usufruir de tudo que nela estava. Desse modo, a crítica de Baldo não recai sobre o
desmatamento, mas sobre o não aproveitamento total, dentro de uma lógica do maior lucro
possível.
A segunda entrevista que será analisada é com Jeronimo Rodrigues. A entrevista foi
realizada na casa de sua filha, no mesmo dia e município da anterior, sendo esta no período da
noite.
Rodrigues nasceu no ano de 1949, no município de Canoinhas/SC, e mudou-se em 1968
para a região de Mato Queimado (atual município de Campo Bonito/PR). Seu primeiro
trabalho, no espaço do estudo, foi na agricultura, através do arrendamento de terras. Em
seguida trabalhou cerca de 6 anos, também na IMAPAR, até se casar, quando voltou a atuar
na agricultura. Após um tempo, voltou a trabalhar na indústria madeireira, em diversas
empresas, exercendo diferentes atividades.

7 A ideia de uso racional da natureza também é defendida por movimentos ambientais, como
conservacionista, corrente ideológica que surgiu no fim do século XIX, e defende a preservação da natureza
aliada ao usoracional e “manejo criterioso pela nossa espécie, executando um papel de gestor e parte integrante
do processo”. Tais ideias servem de base para movimentos atuais. Disponível: http://
mundoeducacao.bol.uol.com.br/biologia/preservacao-ambiental.htm. Acesso: 07/06/2017.
No período da realização da entrevista, declarou estar com dificuldades para se aposentar e
trabalhava ainda trabalhador rural.
Rodrigues (2013, s/p.) iniciou a sua narrativa descrevendo os motivos de sua mudança, junto
à sua mãe e irmãos, para o estado do Paraná. Deslocaram-se do estado de Santa Catarina devido às
dificuldades que passavam; no período tinha 18 anos. Ele descreveu sua trajetória de idas e vindas
do trabalho da agricultura para as madeireiras.
O trabalho na madeireira apareceu inicialmente como uma alternativa para quem não possuía
a propriedade da terra, como era o caso de sua família. Rodrigues demostrou que fora feito uma
ação de convencimento de que a empresa madeireira os oferecia melhores condições de trabalho
que como arrendatários de terra.
Em sua narrativa, é exaltada a sua a ação como um bom trabalhador ou como se reconhecia
na época: “operário”, mesmo recebendo um salário considerado por ele como uma “mixaria”, ou
insuficiente, ainda aguentando serviços cansativos. Neste sentido, ainda, argumentou:

[...] Industrial Madeireira. É foi uns dos que começou aí; então foi isso aí. A gente
trabalhou muito, em muito serviço pesado. Ah, hoje eu estou estourado. Não aguento mais
por causa disso, porque, nós pegávamos em dois pranchões de cinco metros e meio
banhado de água pra bater na altura daquilo ali (demonstra com as mãos comparando) [...].
Então, forçava tudo o que você tinha de força. Na realidade, a gente foi se machucando.
Eu mesmo tenho uns acidentes, tenho um par de acidentes. E depois quando voltei para
roça também levei uns acidentes. Daí eu aprendi a trabalhar com colheitadeira, com trator
de pneu, trator de esteira, porque eu ... o que me davam de chance... O cara falava: -“Você
quer trabalhar?” Não, falava. Você sabe, eles falavam. “Você quer?” Eu falava: “Eu
quero”. Entrava lá e dava conta; dei conta do recado. Graças a Deus! E eu, o serviço mais
pior que eu trabalhei em tudo, que eu me lembre que eu sofri muito, era cortar tora com
motosserra. Eu levei, eu escapei de muitos acidentes perigosos. Já era pra tá podre embaixo
da terra, quando eu trabalhei com o Sarolli [Madeiras]. Me pagou direito, me pagou. O
que eu ganhei eles pagaram, mas foi péssimo, péssimo mesmo. (Jerônimo Rodrigues,
2013 s/p).

Nesse trecho, além de reforçar sua imagem como um bom trabalhador, Rodrigues, apresentou
um pouco das condições de trabalho que enfrentou. Em toda a sua narrativa, são relatadas condições
semelhantes a essas, que geraram acidentes de trabalho, não só sofridos por ele, mas também por
seus colegas. Igualmente, relatou o frio, a geada, a comida fria e outras condições de trabalho na
agricultura e nas madeireiras, descritas por ele como sofrimento: “[...] a gente sofreu muito, muito
mesmo. Vou te dizer que não foi fácil [...]”. Junto a esse sentimento, há a constante menção ao seu
esforço para ser sempre um bom trabalhador, como: “[...] eu, toda vida, fui infernal no serviço [...]”.
O que também é observado a seguir:
[...] Todo o meu serviço que eu encarei, não é pra se gabar, mas todo o serviço que eu
encarei, eu encarei com aquela, de coração aberto, para fazer mesmo pra não deixar furo.
E em toda parte que eu fui, que eu trabalhei fui bem recebido, de onde eu saí, as pessoas
não queriam que eu saísse e então sei lá. Hoje estou aí, não recolhi para se aposentar. Eu
estou com 63 anos, 64 anos. Até hoje eu estava comentando com o vizinho aí, eu falei:
“eu vou esperar chegar aos 65 anos, depois eu vou correr atrás”. Porque não adianta agora,
não tem nada ainda porque tem que ser com 65, mas eu tenho certeza que, pelo o que eu
estou vendo hoje na nossa, nosso governador, nossas pessoas que dominam nós, o que a
gente tem visto ai é que acho que a gente trabalhou que nem cavalo e que nem cachorro,
ganhando as mixarias e a gente não vai ter valor, não vai ter valor nenhum! [...]. (Jerônimo
Rodrigues, 2013, s/p).

Rodrigues argumentou ter sido um bom trabalhador, mas se queixa das condições de trabalho
e das dificuldades para conseguir se aposentar. Aqui cabe consideramos o que Khoury (2006, p. 31)
escreveu em texto já citado:

Nas entrevistas estamos no espaço e no tempo de nossos entrevistados. Eles narram a partir
de seu próprio presente, trazendo experiências passadas. Nesse sentido, nosso exercício é
compreender não um passado dado, mas os significados atribuídos a esse passado no
momento presente dessas pessoas.

De tal modo, a narrativa de Rodrigues (2013, s/p.) esclareceu que suas dificuldades para
conseguir a aposentadoria, no momento da entrevista, decorrem do fato de ele ter, ao longo de sua
vida, trabalhado em diferentes empresas, sem terem recolhido os impostos destinados à
aposentadoria, além das mudanças de serviços. Isso ocorria porque acreditava nas propostas que os
proprietários faziam, de que se fosse trabalhar em suas empresas ganharia um salário maior. Porém,
por meio de um caso especifico, explicou que muitas destas promessas não eram cumpridas como
combinado, como se pode observar em sua fala: “me iludia e dava até dinheiro adiantado, eu pegava
e ia para lá e era assim”. Outra questão presente, no trecho acima da entrevista, é a desumanização.
Rodrigues comparou suas condições de trabalho às de animais irracionais.
No final da entrevista, como foi questionado a Baldo, Rodrigues foi interrogado acerca de
sua visão sobre a ação das madeireiras para o município de Cascavel. Ele disse:

Olha, minha filha, se eu te falar a pura verdade, eu não sei se eu estou mentindo ou falando
errado, mas eu acho que se essas madeireiras, esses caras, esses “tubarão”, se essas pessoas
pensar em um pouco mais, nós vamos morrer tudo queimado, nós vamos acabar morrendo
tudo queimado! Porque você está vendo o tipo que está vindo o calor, por que está vindo
esse calor? Porque não temos árvore para suportar, para resfriar o chão, que o calor tá
vindo do chão, você não nota? Você anda descalço aí na [inaudível] te cozinha toda a sola
do pé. Por quê? Porque não tem sombra! Você vê, tem uma árvore aqui mais lá por roda
não tem nada. Daí o que acontece: resseca aquela terra lá e vem ressecando até no pé da
árvore; a árvore chega a morrer. Então, se os “tubarões” não tiver um pouco mais de
piedade e no lugar de [inaudível] plantar umas árvores, eu não sei! Não sei, sei lá se a
gente, às vezes, pode; é que a gente não tem estudo. Então, a gente não pode se aprofundar
muito de querer falar muita coisa, que as vezes está falando coisa errada. Mas eu acho que,
no meu ver, porque no tempo, do tipo que eu entrei naquele tempo aí, chovia na hora certa,
dava mantimento, Nossa Senhora! E foi acabando, acabando e tá no que tá. Então não está
faltando água? Não está faltando água? Naquele tempo tinha água em abundância. Onde
é que você ia, nos matos lá onde nós morávamos, onde é a terra do meu sogro, onde quer
tinha uma mina de água, hoje não tem mais! Desmataram tudo, tiraram tudo, a sombra,
então. [...]. (Jerônimo Rodrigues, 2013, s/p).

Rodrigues, do mesmo modo que um dos entrevistados do artigo produzido por Alfredo R. S.
Lopes e Eunice S. Nodari (2012, p. 66), sobre a percepção da degradação da Lagoa de Sombrio/SC,
construiu seu “relato atentando para a magnificência da natureza em épocas passadas”, destacando
um “passado vivido, um passado perdido, mas não perdido no tempo, [...]. Esse passado está
perdido porque o meio ambiente se transformou, foi degradado”.
Contudo, apesar de ter uma visão crítica sobre as transformações da paisagem, Rodrigues se
sente bastante receoso em falar sobre o assunto. Talvez isso ocorra porque ele, como outros, é um
sujeito que pertence, ao que o autor português Boaventura de Sousa Santos (2009, p. 23) definiu
como “pensamento abissal”.
Esse é o pensamento moderno ocidental, que divide o mundo, entre os visíveis e os invisíveis,
através de uma linha, deste e daquele lado. Assim, um lado desaparece como realidade, tornando-
se inexistente de maneira radical.
O campo do conhecimento é uma das manifestações que melhor representa este pensamento.
Neste campo, a ciência moderna possui o monopólio da distinção entre o verdadeiro e o falso, entre
o científico e o não científico, em detrimento dos demais conhecimentos. Assim, podemos pensar
que Rodrigues tem e mantém o seu conhecimento sobre as transformações da paisagem. No outro
lado, no não científico, no qual “não há conhecimento real,” o que existe são crenças, opiniões,
magia. Neste lado, se encaixam os conhecimentos “populares, leigos, plebeus, camponeses, ou
indígenas”, conhecimentos que, dentro do pensamento abissal, só conseguiram, na “melhor das
hipóteses”, tornarem-se objetos ou matéria-prima para a investigação científica, o que,
conscientemente, fazemos aqui (SANTOS 2009, p. 25).
Assim, foi a partir das mudanças na paisagem que Rodrigues (2013, s/p) definiu o fim de sua
ação nas madeireiras. Primeiro, passou a trabalhar com o trator para “destocar”, retirando o restante
da vegetação que ficou na terra após a exploração das árvores, e argumentou: “outra coisa também
que acabou, o material, acabou o pinheiro. Se vocês pensarem isso aí acabou, tiraram tudo, os
pinheiros, a madeira de lei [...], os caras limparam, tiraram tudo”.
De tal modo, define que as madeireiras foram parando de operar no município, as pessoas
foram ficando desempregadas. Aqueles considerados por Rodrigues como os “com mais sorte”
foram trabalhar com as máquinas na agricultura, como foi seu caso: “veio para esse lado, se obrigou
a vir pra esse lado, obrigou-se, igual os outros falam, se não se explica de aprender ia começar a
passar fome”. Contudo, Rodrigues não vê como um processo tranquilo essas mudanças e refletiu
sobre quando começou a trabalhar com os tratores na agricultura:

[...] começou os tratores, começou a entrar, aí tinha o tal de “boia-fria”, que vocês sabem
muito bem disso aí. Aí, de repente, vem o veneno e acabou com os boias-frias também.
Primeiro eles acabaram com a agricultura, lá em baixo com a agricultura pequena, que era
feijão, milho e arroz, essas coisas. E aí os pinheiros também acabaram e saiu a agricultura
com trator, que é o plantio de soja, trigo essas coisas. E aí o que aconteceu? Aí a turma
começou vim. Aí o cara teve que se explicar, aí teve que pular naquele galho, aí é segurar
firme para não perder o emprego. (Jerônimo Rodrigues, 2013, s/p).

Rodrigues, a partir de suas memórias, vai descrevendo um processo de transformações da


paisagem e do trabalho. Tais elementos descritos se enquadraram no que ficou conhecido como
Revolução Verde, no âmbito mundial, e, no Brasil, como Modernização da Agricultura, ambas com
“acepção ideológica que contrapõe a modernização à Reforma Agrária”, e “acepção prática
da utilização crescente de máquinas, insumos químicos e sementes melhoradas”8
(ALENTEJANO, 2012, p. 480). Foram implantadas na região oeste do Paraná a partir da
década de 1960. De acordo com Davi Felix Schreiner (2002, p. 276):

O modelo agroquímico, também chamado “Plano da Revolução Verde”, que foi


idealizado e patrocinado pelo grupo Rockfeller, com sede em Nova Iorque, contribuiu para
a chamada modernização da agricultura em nosso País, a partir dos anos [19]60, momento
de expansão das fronteiras agrícolas, e intensificada pelos sucessivos governos militares.
Alguns fatores foram determinantes para o seu estabelecimento, com linha de crédito
concedido sob exigências do uso de um pacote tecnológico completo e criação de
instituição de pesquisa e extensão rural (Embrapa, Emater e centros regionais de pesquisa)
com o intuito de fornecer tecnologia para o sistema de produção deste modelo. Sua
expansão tem levado a uma degradação do meio ambiente e contribuiu para transformar
os pequenos agricultores em bóias-frias, agravou os conflitos entre grileiros e posseiros,
fazendeiros e índios, e concentrou ainda mais a propriedade da terra.

Dessa forma, Rodrigues observou esses efeitos nocivos da “modernização da


agricultura”, mesmo sem a nomear. Percebeu a degradação do meio natural, devido ao uso de
agrotóxicos e ao desmatamento de novas áreas para a plantação, sobretudo, de monoculturas,

8..Todas estas mudanças contribuíram para tornar o Brasil, “nos dias de hoje, o maior consumidor
mundial de agrotóxicos”, e o município de Cascavel, em primeiro lugar no Estado do Paraná. Fontes:
ALENTEJANO, 2012, p.480. Disponível: https://g1.globo.com/bemestar/noticia/brasil-e-o-pais-que-mais-
consome-agrotoxicos-no-mundo.ghtml. Acesso: 13/12/2017. DUTRA, Lidiane Silva; FERREIRA, Aldo
Pacheco. Associação entre mal formações congênitas e a utilização de agrotóxicos em monoculturas no
Paraná, Brasil. Saúde em Debate[online]. 2017, v. 41, n. spe2, pp. 241-253. Disponível em: <https://
doi.org/10.1590/0103-11042017S220>. ISSN2358-2898. https://doi.org/10.1590/0103-11042017S220. Acesso:
13/12/2017.
como soja e o milho, as quais contribuíram também para a diminuição da agricultura em
propriedade de pequeno porte.

As narrativas de Baldo e Rodrigues são compostas por pontos em comum, a exemplo: de ser
bom trabalhador e do esforço no trabalho pesado. De tal modo, podemos considerar o que escreveu
Pollak (1992, p. 205): “[...] a imagem que uma pessoa adquire, ao longo da vida, referente a ela
própria, a imagem que ela constrói e apresenta aos outros e a si própria, para acreditar na sua própria
representação, mas também para ser percebida da maneira como quer ser percebida pelos outros”.
Assim, a imagem que esses trabalhadores construíram sobre si durante as entrevistas é a imagem
que gostariam que tivéssemos, reelaborando suas memórias, construíram suas identidades.
Entretanto, apesar de existirem pontos comuns nas narrativas, há outros elementos que
são próprios das vivências de cada um dos entrevistados, como pareceu ser as percepções sobre
as transformações da paisagem.
Mas, no entanto, ambos, reelaboram essas percepções a partir da relação do passado com
o presente. Portanto, podemos pensar no que escreveu Thomson (1997, p. 57), em seu artigo
sobre a relação entre a História Oral e as memórias:

A memória “gira em torno da relação passado-presente, e envolve um processo contínuo


de reconstrução e transformação das experiências relembradas”, em função das mudanças
nos relatos públicos, sobre o passado. Que memórias escolhemos para recordar e relatar
(e portanto, relembrar), e como damos sentido a elas são coisas que mudam com o passar
do tempo.

Considerando, portanto, o caráter dinâmico da memória, devemos compreender as


narrativas sobre as transformações da paisagem como uma elaboração sobre o passado,
permeada pelas concepções que a sociedade atual apresenta sobre a exploração do meio natural.
De tal modo, enquanto Baldo destacou aspectos considerados positivos, causados pelas
transformações da paisagem, como o espaço gerado para a atuação da agricultura na economia,
Rodrigues descreveu questões negativas do passado, observadas a partir do pressente. Assim,
na sua narrativa: não se tem mais sombra, falta água, o calor é maior, os animais já não são
observados como antes e não têm o que comer.

ALENTEJANO, Paulo. Modernização da Agricultura. In: CALDART, Roseli Salete et al. (Org.).
Dicionário da Educação do Campo. Rio de Janeiro, São Paulo: Escola Politécnica de Saúde
Joaquim Venâncio; Expressão Popular, 2012. p. 479-483.
KHOURY, Yara A. O historiador, as fontes orais e a escrita da história. In: ALMEIDA, P. R. de;
KHOURY Y. A.; MACIEL, L. A. Outras histórias: memórias e linguagens. São Paulo: Olho d’
Água, 2006.

LOPES, Alfredo Ricardo Silva; NODARI, Eunice Sueli. O que é da natureza não se mexe:
memória e degradação ambiental na Lagoa de Sombrio/SC (1960-2010). História Oral, v. 1, n.
15, p. 55-80, jan-jun. 2012.

POLLAK, Michael. Memória e identidade social. Estudos históricos, Rio de janeiro, v. 5, n. 10,
1992.

SANTOS, Boaventura de Sousa. Para além do pensamento abissal: das linhas globais a uma
ecologia de saberes. In: _____; MENESES, Maria Paula (Org.). Epistemologias do Sul. Coimbra:
Almedina, 2009. p. 23-71.

SCHAMA, Simon. Paisagem e memória. São Paulo: Companhia das Letras, 1996.

SCHREINER, Davi Felix. Entre a exclusão e a utopia: um estudo sobre os processos de


organização da vida cotidiana nos assentamentos rurais. São Paulo, 2002, 461 p. Tese (Doutorado
em História) – Universidade de São Paulo.

SPERANÇA, Alceu; SPERANÇA, C. Pequena Historia de Cascavel e do Oeste. Cascavel: J.


S. Impressora Ltda. 1980.

THOMSON, Alistair. Recompondo a memória: questões sobre a relação entre a História Oral e as
memórias. Projeto História, São Paulo, 15, p. 51-84, abr., 1997.

Entrevista concedida por Sady José Baldo a Daniele Brocardo. Cascavel/PR, residência e comércio
de Sady José Baldo, em 13 de setembro de 2013.

Entrevista concedida por Jeronimo Rodrigues a Daniele Brocardo. Cascavel/PR, residência da


filha do entrevistado em 13 de setembro de 2013.
1

Rose Elke Debiasi*

Durante o I Congresso Nacional, realizado no ano de 1985, na cidade de Curitiba (PR),


o Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST) definiu seus princípios, a saber: a
luta pela reforma agrária, pelo socialismo e pela construção do próprio MST. Definiu,
também, a ocupação de terra como a principal forma de luta pela terra. Existia, durante os
primeiros anos de existência do MST, uma avaliação interna de que para se estruturar
nacionalmente ele deveria apostar na política de deslocamentos de militantes, pautando-se na
experiência organizativa e produtiva dos colonos da região Sul do país. O envio de
lideranças para regiões potencialmente conflituosas, porém com pouca organicidade, é um
dos eixos de atuação traçado pelo Movimento2 nascente.
Este artigo busca analisar os “choques culturais” entre os militantes sulistas vinculados
ao MST e os sem-terra dos estados nordestinos, justamente no processo de nacionalização do
MST. Discute, igualmente, os desafios e as expectativas presentes nas etapas da
migração e as transformações operadas na forma dos sulistas enxergarem os sertanejos,
após o convívio e a criação de laços políticos e afetivos.
O texto encontra-se organizado em três partes: a primeira delas problematiza a política
de deslocamentos do MST, pano de fundo para as questões abordadas ao longo do artigo; a
segunda debruça-se sobre os debates internos do MST e as formulações sobre o envio de
militantes para os estados nordestinos, bem como, as disputas e os conflitos decorrentes do
processo de migração; e, finalmente, a última parte, trata das formulações, adaptações e
acomodações realizadas no processo de estruturação do MST no Nordeste brasileiro, com
desdobramentos na forma de como os sulistas passaram a enxergar e compreender os
nordestinos.
As fontes utilizadas para essa pesquisa são as entrevistas temáticas, realizadas com os
atores desse processo, entre os anos de 2011 e 2016; os documentos internos e as publicações
do MST (Programas de Reforma Agrária, Plano Nacional do MST (1989); os Cadernos de
Formação e Cartilhas); o Jornal Sem Terra; e as Publicações da Igreja Católica e seus
organismos auxiliares. Ancorados na metodologia da História Oral (ALBERTI, 2005;
FERREIRA, 2002), realizamos sete entrevistas temáticas com militantes do MST que, durante
as décadas de 1980 e 1990, migraram da

1 Este artigo é, em grande medida, desdobramento de questões abordadas na pesquisa de doutorado defendida
em 2016, junto ao Programa de Pós-Graduação em História da Universidade Federal do Paraná, sob
orientação do professor Carlos Lima. .
*.Doutora em História.
2 Quando aparecer no texto a expressão Movimento, com a inicial maiúscula, estamos nos referindo ao MST; nos
casos em que estiver com inicial minúscula, trata-se de outros movimentos sociais.
região Sul para os vários estados nordestinos. Em geral, são jovens, filhos de pequenos agricultores
e com educação formal obtida nos organismos da Igreja Católica.
Rapidamente, apresentamos os/as entrevistados/as e a justificativa para cada escolha3:
A primeira militante é Fátima Ribeiro: natural do Espírito Santo (ES) iniciou sua atuação política
nas Pastorais e sindicatos do estado. Com apenas 19 anos de idade assumiu o desafio da migração.
Foi para o Ceará, lá permanecendo por onze anos, seguidos de mais dez anos no estado do Rio
Grande do Norte, onde desenvolveu funções organizativas e dirigiu instâncias do MST. Outro
militante é Carlos Bellé: oriundo do Oeste de Santa Catarina, filho de pequenos camponeses,
ingressou no seminário com a finalidade de estudar. Teve forte atuação no trabalho pastoral da Igreja
Católica, inclusive ocupando funções de direção na Comissão Pastoral da Terra (CPT) e no
assessoramento para o MST. Foi enviado para o estado do Maceió (AL), logo após seu casamento
com Zenaide. O depoimento de Bellé se ocupa em contextualizar as condições de vida e trabalho
dos trabalhadores rurais, estabelecendo quadros comparativos entre o camponês do Sul (seus
hábitos alimentares, sua relação familiar e sua relação com a terra) e os nordestinos do campo; os
elementos da formação teórica dos militantes e as diferentes versões acerca da acusação de
“interferência sulista” no Nordeste, sobretudo aquelas oriundas da Igreja.
A militante Zenaide Busanello, carinhosamente chamada por Zena, é do interior de Santa
Catarina. Ingressou em uma congregação religiosa motivada pela possibilidade de prosseguir seus
estudos. Aos poucos, começou a participar de atividades, as chamadas “vivências”, nas
comunidades rurais, onde foi possível sua aproximação com o MST. À medida que avançava seu
interesse, também estreitava seus vínculos, passando a assumir tarefas de solidariedade e logística
entre os movimentos sociais, sindicatos e Igreja na região do Oeste catarinense. O relato de Zenaide,
muito emotivo, permite-nos perceber o desconhecimento da realidade nordestina, bem como
estabelecer várias relações entre o modo de atuação do Sul e o perfil e as características dos
acampados no Nordeste.
Outro militante de destaque é Jaime Amorim: extremamente gentil e bem vestido, Jaime,
disponibilizou várias horas do seu tempo. Jaime atuou em vários estados e despontou como uma
liderança regional, transformando-se rapidamente num “quadro” nacional, devido às suas
características pessoais e seu carisma. Igualmente importante foi o depoimento de João Daniel.
Natural de São Lourenço do Oeste (SC), filho de pequenos agricultores, ingressou no seminário em
Santa Maria (RS) para dar continuidade aos seus estudos. Permaneceu por dois anos, precisando
abandonar devido às dificuldades financeiras da família. Assim como outros militantes, esteve à
disposição do MST e percorreu vários estados do País.

3 Utilizamos os nomes verdadeiros dos entrevistados por compreender que estamos lidando com pessoas
públicas, sendo comum encontrarmos seus nomes em publicações internas, no Jornal Sem Terra e na
imprensa falada e escrita dos seus respectivos estados. Essa escolha contou com o conhecimento e
consentimento dos entrevistados.
As duas últimas entrevistas foram realizadas com duas mulheres de muita fibra. A primeira
com Dilei Schiochet, em Lagoa Seca, na Paraíba. Natural de Joinville (SC), Dilei, ingressou na vida
religiosa na Congregação das Irmãs Catequistas Franciscanas, onde teve a oportunidade de
participar de algumas atividades com as comunidades rurais. Antes de fixar residência na Paraíba,
em 1997, Dilei atuou dentro de um formato de circularidade pelos estados nordestinos; dessa forma,
esteve presente nas primeiras ocupações de terra em praticamente todos os estados nordestinos. A
outra militante, Maria Izabel Grein, também do Norte catarinense, iniciou sua militância no Rio
Grande do Sul (RS), no convento vinculado à Ordem Franciscana, na cidade de Santa Maria (RS).
Não esteve diretamente no Nordeste. No entanto, ela selecionou, acompanhou, orientou e
viabilizou, em conjunto com a Direção Nacional do MST, a ida de vários militantes para lá. O
depoimento de Izabel auxilia na compreensão dos critérios adotados para a seleção dos militantes
migrantes, na visualização do contexto para a constituição de lideranças e no delineamento do perfil
delas.

Nos primeiros anos, o MST possuía uma linha de atuação particularista; sua plataforma
política abarcava exclusivamente os trabalhadores rurais, em especial, os sem- terra. A partir do
final da década de 1980, período de deslocamentos de militantes sulistas, seu horizonte de atuação
foi alargado. O MST apresenta um projeto de sociedade, o qual visa a superação do modo
de produção capitalista.4 Dialogando com a teoria marxista, o pano de fundo do projeto de
sociedade é baseado na transformação das relações sociais.
Nesse ínterim, estabeleceu uma política de alianças com sindicatos e demais movimentos
populares. Ao mesmo tempo, por meio de marchas e passeatas, buscou maior diálogo com a
sociedade e visibilidade no cenário nacional. Podemos acompanhar a transformação do MST e a
proposta de incorporação de outros setores a partir das palavras de ordem definidas nos seus
Congressos e Encontros Nacionais. Segundo Ariovaldo Oliveira (2001), um dos caminhos para
entendê-la é seguir a trilha desses eventos:

Quando ocorreu a formação do MST, na década de 80, o lema era Terra para quem nela
trabalha (1979-83). Quando começou a enfrentar resistência ao acesso à terra, um novo
lema surgiu: Terra não se ganha, terra se conquista (1984). Ao se fortalecer e avançar,
sobretudo durante o governo Sarney, percebendo que o Primeiro Plano Nacional de
Reforma Agrária não estava sendo implementado, os lemas passaram a ser: Sem Reforma
Agrária não há democracia (1985) e Reforma Agrária já (1985-86). Com o aumento da
violência, que não atingiu apenas os trabalhadores, mas lideranças, advogados, políticos,

4
No plano discursivo, o projeto de sociedade do MST sustenta-se na distribuição de renda, na eliminação das
desigualdades sociais, na hegemonia da classe trabalhadora, cujo eixo teórico é encontrado no socialismo.
religiosos etc., o MST mudou suas palavras de ordem: Ocupação é a única solução (1986),
Enquanto o latifúndio quer guerra, nós queremos terra (1986-87) e, por ocasião da
Constituinte, Reforma Agrária: na lei ou na marra (1988) e Ocupar, Resistir, Produzir
(1989), depois que os assentamentos começaram a ser conquistados. (OLIVEIRA, A.,
2001, p. 196).

Esse quadro demonstra como a linha política do MST foi constantemente reavaliada e
modificada durante o seu processo de constituição. Evidencia, também, suas ambições de
constituir-se nacionalmente e de gozar de maior representatividade política e social.
O I Congresso Nacional do MST serviu para o diagnóstico das realidades e potencialidades
regionais. Em paralelo, articulou uma rede de apoio e solidariedade, composta pelos Sindicatos dos
Trabalhadores Rurais (STRs), Pastorais e demais lideranças sociais, para o recebimento dos
militantes e o fornecimento de suporte (humano, físico e financeiro) para a viabilização das ações
propostas pelos sulistas nos estados nordestinos. No Jornal Sem Terra, durante todo o segundo
semestre do ano de 1985, observamos essa linha argumentativa, seja convocando as entidades para
atividades conjuntas, seja fornecendo-lhes espaço para expressar suas pautas e opiniões acerca da
conjuntura e/ou de um tema específico no seu jornal, ou denunciando as perseguições dos militantes
sindicais e religiosos.
Sobre os objetivos de expansão do MST, encontramos no I Programa de Reforma Agrária
(1984), item 6 dos “Princípios práticos”, uma parte das justificativas e motivações para o
deslocamento de militantes: “[...] ampliar o movimento nos municípios e regiões onde ainda não
está organizado” (STEDILE, 2005, p. 178). Já o Plano Nacional do MST, aprovado no ano de 1989,
traça metas para a expansão até o ano de 1993, incluindo a preparação para o II Congresso Nacional
do MST (1990). De forma elucidativa, apresentamos duas das resoluções presentes no documento.
A primeira determina no item 44: “ampliar a capacidade de organização, mobilização e ação, nos
estados onde predominam os trabalhadores rurais, especialmente no Nordeste”; e, a seguinte
diretiva no tópico 50: “Desenvolver uma política de organização massiva e de ampliação do
Movimento, segundo as regiões prioritárias e de maior concentração de trabalhadores rurais sem-
terra”. Ou seja, o Nordeste a partir da análise e do mapeamento realizado no I Congresso Nacional
apresenta-se como região prioritária e privilegiada para a estruturação do MST.
O fragmento, abaixo, da entrevista com João Daniel fornece-nos pistas sobre o processo de
avaliação interna do MST, as potencialidades da região nordestina e as articulações subsequentes –
as quais buscavam assegurar as condições para a militância do dirigente deslocado.

O Movimento, a nível nacional, tinha uma definição de crescer no Nordeste, e implantar


o Movimento no Nordeste. Pelos dados, a quantidade de camponeses, o Movimento era
muito fraco no Nordeste. Fraco em quantia, e com dificuldades. Então, foi amarrada essa
discussão e os estados ficaram de receber os dirigentes militantes que vinham pra ajudar.
E eu vim pra Sergipe, sozinho, para ajudar o Movimento. (Entrevista concedida por João
Daniel, 2015).

Já o depoimento de Dilei demonstra a compreensão acerca da nacionalização do MST, no


final dos anos 1980.
E que você precisava... se você quisesse construir algo maior, você tinha que ter lutas
articuladas a nível nacional. Então esse era o nosso desafio; de construir um movimento
articulado a nível nacional. Esse foi o principal desafio. Havia uma necessidade de a gente
expandir esse Movimento. E, da necessidade de ampliação do Movimento a nível
nacional. (Entrevista concedia por Dilei Schiochet, 2015).

Para o militante Jaime Amorim, existia apenas um caminho para pavimentar o processo de
nacionalização:
A saída era deslocar gente para ajudar a construir o movimento de massa no Nordeste. Foi
nesse momento, de 86/87 que vários militantes, principalmente de Santa Catarina, onde o
movimento se estruturou mais rápido em função de que havia uma organização de base
mais forte, principalmente das CEBs, eram militantes que estavam na Igreja, nas
Comunidades Eclesiais de Base, e que estavam na Pastoral da Terra, estavam no PT e
estavam no MST também. Então, por isso, também que no início o movimento de Santa
Catarina teve mais facilidade de formar quadros dirigentes, principalmente os advindos
daí das Comunidades Eclesiais de Base que precisavam ir também se constituindo como
dirigentes políticos [...]. E muitos deles foram convidados para vir ajudar a construir o
movimento no Nordeste. (Entrevista concedida por Jaime Amorim, 2013).

Com a preocupação de assegurar a expansão do MST, dentro do modelo de militância


desenvolvido no Sul do país, foi deliberado o envio de militantes para áreas marcadas pela
dificuldade de acesso à terra, pela manutenção dos trabalhadores no interior das propriedades rurais
e pela pobreza material. A expansão do MST, por sua vez, não deveria ocorrer de qualquer maneira.
Esse processo deveria ser monitorado e acompanhado por militantes já alinhados com as posições
teóricas da Direção Nacional. Para viabilizar tais deslocamentos, o MST se organizou em dois eixos
de funcionamento. Internamente, atuou como um partido político nos termos gramscianos
(SOUZA, 2008: DEBIASI, 2016); e, externamente como movimento de massas (aberto e plural).
Essa lógica de funcionamento interna assegurou o cumprimento do centralismo democrático e da
direção coletiva, permitindo, assim, que o MST assumisse os desafios da política de deslocamentos
de militantes.
O depoimento de Maria Izabel Grein, militante do Norte de Santa Catarina, sugere esse
trânsito:
O Movimento é um movimento social. Sempre, todos os dias tem gente entrando no MST.
Movimento social é eclético. Ele vai ter diversos pensamentos dentro dele. O que precisa
ser predominante para que ele seja um movimento social de luta, tem que ter um grupo
maior que entende a dialética, que possa ir ajudando esse pessoal, compreender a história
em movimento, compreender o mundo em movimento; lá na base compreende, no meio
da base nós temos o certo e o errado, o bem e mal. (Entrevista concedida por Maria Izabel
Grein, 2016).

Na prática, esse processo de migração impulsionado pelo MST deve ser analisado de
diferentes perspectivas. De acordo com a documentação interna e com as entrevistas realizadas,
percebemos um “desconhecimento” acerca da realidade nordestina, das organizações já instaladas
e de seus dirigentes. Carlos Bellé recorda, em terceira pessoa, os desafios para um militante
migrante, jovem e com um conhecimento circunscrito à sua comunidade, migrar para outras
regiões:
[...] apresentar a um filho de pequeno agricultor, que conhecia apenas os limites do
município, a possibilidade de construir o Movimento em outro lugar. Não tem como! Não
é uma aventura que você vai fazer. É uma prática desde que eu conheço o Movimento.
Ninguém vai para as atividades ou representações sem antes ter o mínimo de preparação.
(Entrevista concedida por Carlos Bellé, 2013).

Os militantes possuíam consigo grande disposição e desprendimento para atuar, mas


contavam com poucos elementos da realidade sociopolítica dos estados a que se destinavam.
Zenaide descreve: “Imaginava que o desafio seria muito grande, mas não tinha ideia que poderia
ser presa. A gente vai no escuro. Na época, a gente era muito jovem e quando a gente é jovem a
gente faz aventura” (Entrevista concedida por Zenaide Busanello, 2013). Zenaide havia atuado no
estado de Santa Catarina, na secretaria do MST e em outro movimento social. Aceitou a proposta
de ir para o Nordeste movida pelo espírito de aventura, mas sobretudo por se tratar de uma tarefa
que contribuiria na construção do Movimento no âmbito nacional. Não tinha noção do que
significara o Nordeste brasileiro, seus modos de vida e o grau de violência a que estavam
submetidos os camponeses e as lideranças agrárias da região. Menciona, na citação acima, a prisão
que ocorreu na Secretaria Regional do MST, em Alagoas. Depois de algumas horas na delegacia,
ela e outros militantes foram liberados devido à intervenção de deputados aliados do Movimento.
Como já mencionado, os militantes migrantes traziam consigo um conhecimento prévio da
militância do Sul do país. Depararam-se, todavia, com diferentes perfis de militantes e distintos
processos de luta pela terra nos estados nordestinos. Leonilde Servolo de Medeiros (2010) destaca
a diversidade de perfis de trabalhadores que se dispuseram a entrar na luta pela terra ao longo dos
anos de 1980. Isso se configurou em desafios para a recém-organização, que não almejava apenas
a expansão de uma forma de luta, mas dos princípios organizativos e de produção baseados nas
experiências dos “colonos do Sul”. O MST, portanto, precisava incorporar (rapidamente) as
distintas práticas organizativas e as particularidades dos sem-terra nordestinos concomitante ao seu
processo de constituição/estruturação.
Nos primeiros anos, a convivência entre os militantes sulistas e os camponeses nordestinos
resultava em choque, muitas vezes, devido à pouca bagagem metodológica dos primeiros para lidar
(e potencializar) a bagagem organizativa, as crenças, as memórias e a religiosidade dos sertanejos.
Após as primeiras experiências, as lideranças do MST perceberam que seria necessário conciliar os
elementos da religiosidade e da cultura popular na luta pela terra. Uma passagem da entrevista
concedida por Fátima Ribeiro demonstra as leituras e os pressupostos de um militante do Sudeste
e de um camponês da região de Canindé (CE).

Teve um momento lá, nós estávamos caminhando, tinha um companheiro de São Paulo
que também estava com a gente ajudando nesse processo; era um momento de romaria. E
tinha uns militantes nossos que não entendiam como eles iam de pau de arara, carregar
pedra na cabeça para ir lá em cima, na imagem de São Francisco. E alguns perguntaram:
vocês são doidos ir de joelhos, com pedra na cabeça. E o romeiro ainda respondeu: vocês
são mais doidos que nós, porque eu não tinha coragem de vir a pé de lá não sei aonde até
Fortaleza caminhando. (Entrevista concedida por Fátima Ribeiro, 2011).

Durante todo o ano, muitos romeiros e peregrinos se dirigem para a Basílica de São
Francisco de Chagas, em Canindé (CE), para realizar e pagar promessas. Observamos no
depoimento a existência de diferentes percepções sobre sacrifício e doação, resultado de uma
formação social, política e religiosa distinta. Abaixo, Carlos Bellé deixa claro que a continuidade,
o crescimento e a aceitação do MST dependiam dessa junção.

Em todos os lugares basicamente o elemento da religião se manifestou de uma


maneira acentuada. No Ceará, se você negasse o Padim Ciço5 tava sozinho (risos).
Não ia longe. Então, essas questões culturais, regionais [...] são partes que
integram; não é que incorporam, como eles são parte do cotidiano das pessoas
passam a fazer parte também do Movimento. (Entrevista concedida por Carlos Bellé,
2013).

São perceptíveis nos depoimentos as diferentes leituras (e as releituras, resultantes das


críticas e das autocríticas realizadas no MST) acerca da presença e do papel ocupado pela Igreja
Católica entre as comunidades sertanejas. A compreensão dos militantes migrantes conta com
distintas variáveis, como: as motivações para o ingresso e saída dos organismos da Igreja; as
facilidades, as dificuldades e/ou constrangimentos criados pelos integrantes da Igreja no Nordeste;
os níveis de controle e a patrulha ideológica sofrida por eles; o apoio e a solidariedade recebidos
pelos religiosos quando deslocados para outra região, entre outros motivos definiam (e definem) o
grau de reconhecimento e simpatia dos militantes migrantes pela Igreja Católica.

5
O militante refere-se ao padre Cícero Romão Batista, o padre Cícero. Possui influência política e religiosa
no Nordeste, com destaque para o Ceará.
Zenaide descreve as diferentes abordagens, os desafios e os choques culturais entre os
camponeses das comunidades nordestinas e os militantes sulistas.

A gente teve muita dificuldade, porque a gente tem um estilo totalmente diferente. O
pessoal do Sul quer mais impor as coisas. Eu acho, pelo menos, muito mais autoritário. E
a forma de a gente fazer as coisas no Sul é muito diferente do Nordeste. É gritante.
(Entrevista concedida por Zenaide Busanello, 2013).

Ocorreram acusações de interferência sulista, de não respeito à cultura local, entre outras.
Muitos depoimentos reconhecem que ocorreram excessos e inabilidades durante a chegada dos
militantes, na marcação e condução de reuniões, na organização das ocupações e demais atividades.
Os militantes deslocados do Sul estavam constituindo-se enquanto lideranças no fazer-se do
Movimento, ou seja, forjando-se enquanto quadros dirigentes, justamente no processo de
estruturação do MST. Por outro lado, recaía sob eles uma expectativa e a pressão por resultados
rápidos.
Em outra parte do depoimento, Zenaide reconhece os equívocos de condução dos militantes
sulistas e os compreende como parte de um processo de aprendizado, com destaque para a liderança
de Jaime.

Teve problemas, mas teve aceitação, e foi se construindo na verdade. O Jaime que eu acho
que o responsável por uma série de coisas boas que aconteceu no Nordeste. E que
entendeu essa questão de método, de como trabalhar isso, de não só impor, porque no
início a gente tinha que impor, tinha que impor mesmo, muito mais imposição para depois
começar a escutar as lideranças e o povo de lá. A gente foi meio que construindo junto
esse caminhar, que é muito diferente do Sul. O Sul é outro país. (Entrevista concedida por
Zenaide Busanello, 2013).

Percebendo isso, ocorreram mudanças no processo de seleção e envio de militantes para


outras regiões, principalmente para o Nordeste. A Direção Nacional passou a selecionar quadros
com mais atenção, percebendo o perfil do militante, as especificidades e as compatibilidades da
região para que ele destinava-se.

Nesta última seção abordamos fragmentos das entrevistas que demonstram o instrumental
analítico que os sulistas possuíam antes da migração e as mudanças decorrentes do relacionamento,
convivência e integração ao universo sertanejo.
Dilei descreve as transformações coletivas e individuais operadas antes, durante e após a
realização da marcha na Paraíba, no ano de 1997. Seu depoimento demonstra que a ocupação de
postos mais altos na Direção Nacional está diretamente relacionada com a expansão do próprio
MST na Paraíba; evidencia, também, a formação de novos espaços de sociabilidades; e, anuncia
uma nova abordagem na condução da luta pela terra, exemplificada pela alteração do método de
trabalho e na incorporação de distintas formas de luta.

Nós fizemos a marcha, 97, de um canto do estado a outro, de Cajazeiras a João Pessoa. E
essa marcha espalhou o MST no Estado todo. Nós pegamos 150 pessoas e fomos, acho
que 700 km. Foi uma loucura. Mas, foi uma marcha que acontecia em todos os estados do
Brasil. E essa marcha ouvia os problemas do povo, o que o povo queria e atrás ia um grupo
fazendo ocupação. E aí gente fez ocupação no sertão do Cariri. E aí a partir dessa marcha
que o MST começou a tomar o corpo de estado na Paraíba. Fiquei por aqui, fui
coordenando o Movimento, fui assumindo as instâncias, aí assumi a Direção Nacional.
Mas, assim...o MST antes era muito localizado numa região, e nós viemos e fomos
expandindo o Movimento. Essa foi minha tarefa na Paraíba. Foi cumprida. Como foi
cumprida a tarefa no Nordeste e consolidar o Movimento nos estados. Até aqui tarefa
cumprida. (Entrevista concedida por Dilei Schiochet, 2015).

Em outro momento do depoimento de Dilei, percebemos a transformação na forma de


enxergar os camponeses nordestinos. Se em determinados momentos da narrativa, a participação
dos sulistas aparece como a única possibilidade para alterar o quadro de miséria, por meio da
organização dos sem-terra nordestinos, agora, adquire outros contornos. Ela deixa claro que as
reflexões resultaram de um processo de desconstrução da visão do Nordeste como uma região
exclusivamente marcada pela pobreza material, povoada de “coitados” e “incapazes”.

Que também a gente tinha os relatos, não tanto por... eu acho que os relatos que a gente
tinha do semiárido, relatos da mídia que hoje eu desabono todos. Mas tudo bem. Se foram
aqueles relatos que me trouxeram até aqui e me ajudaram a construir um Movimento, e a
gente mudou a concepção hoje. Eu não vejo nenhum problema. Problema seria se você
mantivesse que os nordestinos são pobrezinhos, que, é... o semiárido é ruim. Hoje eu
tenho, a gente tem outra visão. (Entrevista concedida por Dilei Schiochet, 2015).

De maneira geral, os depoimentos rememoraram fatos desconhecidos pela sociedade, pelos


movimentos sociais e pelos próprios integrantes do MST. Todos os militantes migrantes
entrevistados tornaram-se lideranças nacionais, sendo utilizados como modelo ou referência de
militância para as novas gerações. Alguns afirmam que se sentem mais “nordestinos” do que
“sulistas”. Nas reuniões da Direção Nacional, Dilei, por exemplo, afirma que sai em defesa do
Nordeste e que desconhece a realidade do “MST do Sul”. Para os que permaneceram no Sul, como
Maria Izabel Grein, a sensação é de que os “seus” militantes, adotando o recorte geográfico,
transformaram-se em “nordestinos”, dessa forma, construindo uma leitura mais plural e diversa do
campesinato brasileiro. Ela diz:
E alguns dos nossos ficaram lá e se transformaram em nordestinos. Claro que a gente sabia
da miséria, da pobreza, mas ao mesmo tempo, como que esse povo que foi para lá, foi
entendendo e ajudando a pensar coisas diferentes. (Entrevista concedida por Maria Izabel
Grein, 2016).

Dito isso, intuímos que o processo de expansão do MST foi construído por meio de embates,
disputas, críticas e autocríticas; por outro lado, pelo convívio, experimentação, solidariedade e
trocas entre os distintos rurais no Brasil, possibilitando, assim, uma maior coesão e unidade do
Movimento. Percebemos, dessa forma, um alargamento no olhar do MST, em grande medida,
resultante da política de deslocamentos de militantes; alargamento esse, capaz de aliar diversas
experiências (organizativas, produtivas e religiosas) e diferentes percepções, significados e relações
com a terra, em um único instrumento de luta, chamado MST.

ALBERTI, Verena. Manual de História Oral. 3. ed. Rio de Janeiro: Ed. da Fundação Getúlio
Vargas, 2005.

AMORIM, Jaime. Entrevista Oral [gravada] realizada por Rose Elke Debiasi. Caruaru (PE), 02
ago. 2013. 2h23min.

ELLE, Carlos. Entrevista Oral [gravada] realizada por Rose Elke Debiasi. São Paulo (SP), 22 set.
2013. 2h15min.

BUSANELLO, Zenaide. Entrevista Oral [gravada] realizada por Rose Elke Debiasi. São Paulo
(SP), 23 set. 2013. 59 min.

DANIEL, João. Entrevista Oral [gravada] realizada por Rose Elke Debiasi. Nossa Senhora do
Socorro (SE), 21 mar. 2015. 2h16min.

DEBIASI, Rose Elke. Migração, memória e militância: a estruturação do MST no Nordeste


brasileiro (1985-1995). Tese (Doutorado em História) – Programa de Pós-Graduação em História,
Universidade Federal do Paraná. Curitiba, 2016, 313p.

FERREIRA, Marieta de Moraes (Org.). História Oral: desafios para o século XXI. In: JOUTARD,
Philippe. Desafios à História do século XXI. Rio de Janeiro: Ed. Fio Cruz/Casa de Oswaldo Cruz/
CPDOC – Fundação Getúlio Vargas, 2000. p. 31- 47.

GREIN, Maria Izabel. Entrevista Oral [gravada] realizada por Rose Elke Debiasi. Curitiba (PR),
mar. 2016. 1h57min.
MEDEIROS, Leonilde Servolo de. Movimentos sociais no campo, lutas por direitos e reforma
agrária na segunda metade do século XX. CARTER, Miguel (Org.). Combatendo a desigualdade:
o MST e a reforma agrária no Brasil. Tradução: Cristina Yamagami. São Paulo: Ed. UNESP,
2010. p. 113-136.

MOVIMENTO DOS TRABALHADORES RURAIS SEM TERRA (MST). I Programa de


Reforma Agrária (1984). In: STEDILE. J. P. (Org.). A questão agrária no Brasil: Programas de
Reforma Agrária (1946-2003). v. 3. São Paulo: Expressão Popular, 2005.

_____. Plano Nacional do MST (1989-1993). Caderno de Formação. n. 17. São Paulo: MST,
1989.

OLIVEIRA, Ariovaldo Umbelino. A longa marcha do campesinato brasileiro: movimentos


sociais, conflitos e Reforma Agrária. Estud. Avançados [online], v. 15, n. 43, 2001, p. 185-207.
Disponível em: <http://www.revistas.usp.br/eav/article/view/9831/11403>. Acesso em: 23 abr.
2015.

RIBEIRO, Fátima. Entrevista Oral [gravada] realizada por Rose Elke Debiasi. Vitória (ES), 07
out. 2011. 1h36min.

SCHIOCHET, Dilei. Entrevista Oral [gravada] realizada por Rose Elke Debiasi. Lagoa Seca (PB),
29 jun. 2015. 2h17min.

SOUZA, José Carlos Lima de. O Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST): o
moderno príncipe educativo brasileiro na história do tempo presente. Rio de Janeiro: UFF, 2008.
Roberta Barros Meira
Janaína Gonçalves Hasselmann

O presente artigo vincula-se ao desenvolvimento de um projeto de pesquisa intitulado


“Ancestralidade e Natureza: um estudo de caso sobre os saberes tradicionais de cosmovisão
africana do Nzo Inkise Nzazi”, em curso pelo PPG Mestrado em Patrimônio Cultural e Sociedade
oferecido pela Universidade da Região de Joinville - UNIVILLE. Considerando o estado inicial do
projeto, consideramos salutar esclarecer que o artigo conduzido ao evento IX Encontro Regional
Sul de História Oral, visa encaminhar nossas estratégias de pesquisa em andamento.

Nosso projeto de pesquisa parte da análise das discussões ensejadas no campo do


patrimônio cultural e as vivências religiosas de matriz africana, forjada no seio da sociedade
brasileira por agentes históricos específicos. Nações e etnias provenientes de diversos pontos do
continente africano traficadas pela Costa Atlântica e trazidas ao Brasil no contexto da escravidão,
trouxeram consigo visões de mundo que, gradualmente, foram confrontadas com as relações
societárias no novo continente. Através da observação de seus traços culturais, receberam
denominações mais generalizantes como jejês, iorubás, angolas e nagôs. E frente a uma certa
multiplicidade de práticas religiosas de matriz africana, que nosso projeto instituiu como norte de
pesquisa um estudo de caso sobre a relação entre Ancestralidade e Natureza, expressos em saberes
tradicionais de cosmovisão africana que se exercem no Inzo Inkise Nzazi. Justificamos essa
delimitação em razão de uma realidade de apagamento frente às outras religiões de origem africana;
sendo assim o candomblé angola se encontra à margem do metier patrimonial.
As nações de candomblé se configuraram mediante a organização de antigos terreiros na
Bahia, fundados por sacerdotes africanos, denominados angolas, congos, jejês e nagôs e iniciados
em suas religiões tradicionais. Embora reconhecida como a mais antiga nação de candomblé, a
maioria das visões bibliográficas apontam para uma pretensa inferioridade em relação aos

* Professora Drª. Docente do PPG Mestrado em Patrimônio Cultural e Sociedade da Universidade da Região
de Joinville - UNIVILLE.
** Mestranda no PPG Mestrado em Patrimônio Cultural e Sociedade da Universidade da Região de Joinville
-UNIVILLE.
candomblés de outras nações, em virtude, especialmente, da “mistura” que houve com indígenas e
ritos católicos.
À guisa de consideração, temos como foco de pesquisa as políticas culturais e patrimoniais
que partem do direito ao patrimônio presente nas comunidades de origem africanas. Cabe-nos
lembrar, que nas últimas décadas os espaços que evocam políticas públicas, sejam educacionais,
patrimoniais e/ou de saúde pública tornaram-se mediadores de discussões sobre searas como
multiculturalismo, direitos culturais e políticas de ações afirmativas, com escopo de reabilitação de
grupos sociais discriminados. A pertinência de tal expediente, no âmago das organizações culturais,
refere-se à premente necessidade de otimizar uma articulação entre educação patrimonial, educação
ambiental e a sociedade.
Acreditamos que nosso projeto possa ensejar o avanço das discussões sobre religiosidades
ou cosmovisões de matriz africana. Além disso, busca-se analisar a relação entre o patrimônio
religioso e o patrimônio ambiental. Nesse sentido, o projeto abrange os saberes populares que se
constituem no candomblé, que passa desde a coleta de folhas e raízes, a elaboração da cozinha
sagrada e os tradicionais cortes de bichos, especialmente através da História Oral.
A questão do respeito que as religiões de matriz africana possuem em relação à natureza
torna-se profundamente reveladora de patrimônios não oficiais salvaguardados por grupos
específicos da sociedade. Vejamos sobre isso, a fala do entrevistado Zamenga, para o trabalho de
Valdina O. Pinto:
A religião para um africano é antes de tudo vida, uma vida vivida no cotidiano. A sua
religião, ao menos a crença em um ser supremo, nasce da visão de mundo e reúne leis e
ligações que os vivos estabelecem entre o passado, os mortos, o presente e o futuro. Mas
também leva em conta as interações que se operam perpetuamente ou por intermitência.
Essas são as explicações que os membros duma sociedade dão ou tentam dar a todos os
acontecimentos da vida; são as ligações que os vivos estabelecem entre eles e os elementos
que os cercam. Esses elementos podem ser de natureza visível e invisível. Logo, a
concepção do mundo é feita da percepção do meio ambiente conforme o que se acha diante
do desconhecido ou inacessível. De saída, cada indivíduo ou grupo de indivíduos, leva em
conta o seu ambiente geofísico e cultural, com sua percepção, em consequência, sua visão
de mundo. Assim, os povos respectivos da savana, da floresta, das altas montanhas, das
regiões vulcânicas, das planícies, do litoral etc. têm cosmologia particulares. (PINTO,
2008, p.14).

A imanência do divino encontra-se intimamente ligada aos espaços sagrados, cuja


centralização no cosmos provém de significados e significações. Para as culturas denominadas
como autóctones e/ou arcaicas esses significados são pregressos à sua história enquanto grupo.
Complementando a narrativa de Zamenga, citemos Mircea Eliade:

Na geografia mítica, o sagrado é o espaço real por excelência, pois, como se


demonstrou recentemente, para o mundo arcaico, o mito é real porque ele relata
as manifestações da verdadeira realidade: o sagrado. É num total espaço que
tocamos diretamente o sagrado – quer ser ele materializado em certos objetos
(tchuringas, representações da divindade, etc.) ou manifestados nos símbolos
hierocósmicos (Pilastra do Mundo, Árvore Cósmica, etc.). Nas culturas que
conhecem a concepção das três regiões cósmicas – Céu, Terra, Inferno – o
centro constitui o ponto de intersecção dessas regiões. (ELIADE, 1991, p. 36).

Essa sincronicidade entre espaço sagrado e historicidade relatadas através do registro


bakóngo e de Mircea Eliade reflete em linhas gerais o locus da cosmovisão africana. Nesse caso,
vários grupos étnicos compartilharam seu ethos religioso, empregando novos contornos a partir da
necessidade de preservar a herança ancestral no contexto de um sistema escravista. É pertinente
ressaltar que a escravidão moderna compreendia um receituário de ações que controlavam as
subjetividades do ser humano.
O sujeito escravizado neste momento histórico constituía para além da qualidade de
mercadoria, um ser inominável subserviente à mentalidade de uma classe social, sem possibilidade
de ascender socialmente e de se exercer plenamente conforme seus próprios aportes histórico-
culturais. Logo, o processo de desenraizamento corrompeu (em certa medida) as percepções
sensoriais do africano ao seu mundo religioso. Diga-se, “em partes”, devido aos constantes litígios
contra o sistema opressor e ainda pelas estratégias de “maquiar” o panteão mitológico africano com
figuras cânones da liturgia católica. Contudo, descartamos quaisquer visões “líticas” e ad infinitum
que possam cristalizar os processos de interação humana com base exclusiva numa origem e/ou
passado público em comum. Entendemos que assim como as concepções contemporâneas de
cultura revelam um amálgama de referências – só possibilitando sua compreensão quando
contextualizadas no seu tempo –, os sistemas religiosos também se exercem dentro de um
espaço/tempo específico. Reside aí a necessidade de descortinarmos a gênese dos fenômenos e suas
especificidades, mas atentos à aglutinação de novos atores sociais e seu acervo patrimonial
articulado ao mundo moderno.
A escolha deste tema envolve ainda outros aspectos remissivos à construção dos saberes
históricos e à produção de novas formas de pensar patrimônio cultural e posicionar-se no atual
cenário político, marcado por contendas embandeiradas pelas frentes mais progressistas da
sociedade. Desta forma, não podemos deixar de relevar nessa análise as motivações intimamente
ligadas aos direitos humanos culturais. Aliás, soma-se a essas novas demandas, a falta de proteção
jurídica de patrimônios ameaçados diuturnamente por lobby político religioso, as invasões a
terreiros e as agressões aos que professam essa fé. Em que pese o alerta de Ulpiano Bezerra de
Meneses:
Quando as culturas saem do museu e a diferença cultural (e não mais apenas a diversidade
cultural) passa a ser um dos componentes ativos das tensões sociais, o encorajamento da
diversidade cultural se acompanha de mecanismos de contenção da diferença cultural.
Em outras palavras tem ocorrido, com os mesmos sujeitos, que a diversidade cultural
possa ser grandemente apreciada nos museus, embora rejeitada na interação social.
(MENESES, 2009, p. 38).
Pensando no campo patrimonial e sua dimensão política, cabe-nos refletir sobre a
formação do profissional da cultura, sua escuta sensível às desigualdades instituídas e à
autonomia auferida a ele em examinar com esmero a realidade da qual é partícipe. Nessa
perspectiva elegemos o Nzo Inkise Nzazi, como nossa principal fonte de pesquisa para
localizarmos os elementos que constroem a identidade de muitos afro-descendentes. O
candomblé angola congraça laços de pertencimento a partir de vieses linguísticos, musicais,
religiosos e históricos, mas sobretudo a relação entre ancestralidade e natureza dentro da
cosmovisão africana. Se faz mister todavia ratificar nosso compromisso com essa campanha
capciosa de estereotipação da cultura que se manifesta em todos os espaços sociais, das mídias
de massa, as concepções vulgares de cultura, passando ainda pela educação. Conforme Clifford
Geertz:
Compreender a cultura de um povo expõe sua normalidade sem reduzir sua
particularidade. (Quanto mais eu tento seguir os marroquinos, mais lógicos e
singulares eles me parecem). Isso os torna acessíveis: colocá-los no quadro de suas
próprias banalidades dissolve sua opacidade. (GEERTZ, 2008, p.10).

Validamos nossa proposta de pesquisa baseada na construção da alteridade com novas


abordagens teóricas, especialmente no campo interdisciplinar dos estudos patrimoniais.

Consideramos salutar esclarecer que nosso trabalho com o Nzo Inkise Nzazi teve como
proposta de captação de sentidos acerca dos saberes tradicionais, a metodologia da História
Oral. E em função dos terreiros se organizarem politicamente numa esfera hierárquica,
inclusive de produção, manutenção, e transmissão de saberes, nossos principais agentes são
suas lideranças.
Esses sujeitos são aqueles que possuem, por princípios religiosos, a autoridade de saber
e de ensinar, pois são eles, os responsáveis diretos na manipulação de ervas, banhos, chás,
infusões, cortes de animais, entre outros. Se faz mister reconhecer que estamos nos
relacionando com sujeitos que tiveram suas capacidades intelectuais, culturais e religiosas
reificadas por análises realizadas por espaços legitimados como nesse caso, a academia. À vista
disso, de toda historicidade que envolve o candomblé angola e sua posição “subordinada” ao
que se convenciou crer ser representativo de um patrimônio autêntico afro brasileiro, adotamos
como metodologia a História Oral.
Até então restrita à comunidade afetiva, as memórias de minorias geralmente
necessitam de frestas nas relações sociais e uma atmosfera favorável para se revelarem. Pollak
(1989) denominou esse tipo de memória como subterrânea. Em razão de um quadro inoportuno,
onde os discursos vigentes são deletérios a determinados grupos, as memórias são
compartilhadas somente no interior de grupos sociais, sejam eles, família, associações e núcleos
religiosos. Entrementes, essas memórias podem se expressar mediante novos horizontes de
expectativas. Conforme Pollak:

O longo silêncio sobre o passado, longe de conduzir ao esquecimento, é a resistência que


uma sociedade civil impotente opõe ao excesso de discursos oficiais. Ao mesmo tempo,
ela transmite cuidadosamente as lembranças dissidentes nas redes familiares e de
amizades, esperando a hora da verdade e da redistribuição das cartas políticas e
ideológicas. (Pollak,1989, p. 5).

Considerando assim o tratamento histórico destinado aos adeptos do candomblé angola,


buscamos localizar essa memória que atina na produção de saberes, que por sua vez, nos faz
conhecer seus aportes históricos e culturais que constróem sua identidade religiosa, através da
História Oral. Entendemos que “para poder relatar seus sofrimentos, uma pessoa precisa antes
de mais nada encontrar uma escuta.” (POLLAK, 1989, p. 5).
E é através da História Oral que podemos acessar memórias que dizem respeito não
apenas ao cotidiano do Nzo Nkise Nzazi, mas dos saberes que são transmitidos de geração para
geração e são compartilhados por outras comunidades de terreiro de denominação angola. E,
partindo do princípio que o Nzo Nkise Nzazi se vincula a uma nação, conforme colocado nesse
trabalho, seus depoimentos acionam memórias que não são exclusivas ao Nzo e suas
individualidades. Muito antes pelo contrário, seus depoentes ao falarem em de suas práticas
aludem à herança ancestral de um candomblé, que cultua inquices e encantados da natureza,
que possui um corpo doutrinário comum a outros nzo, e por forjarem uma grande nação,
aglutinadora de vários grupos étnicos.
Ainda faz parte de nossa metodologia de trabalho a aplicação de mapas mentais. Os
mapas mentais, desempenham papel fundamental referente à cartografia fenomenológica no
campo da Geografia Humana, constituindo uma ferramenta metodológica importante para
pensar as relações entre indivíduos e lugares, envolvendo planos, saberes, percepção,
experiência e avaliação individual e coletiva do ambiente. Nesse método, as pessoas serão
convidadas a registrar – em desenho – práticas ritualísticas que se inserem em espaços
específicos, como por exemplo, cachoeiras, encruzilhadas, pedreiras, entre outros que sejam
importantes e onde se estabeleçam relações de envolvimento com os espaços.
Pelas narrativas das lideranças do Nzo Inkise Nzazi, observamos que a história do Nzo
está relacionada à história de uma raiz, denominada massanganga de cariolé,1 remontando
especialmente aos seus primeiros iniciados. É uma vinculação ao passado que confere
legitimidade à história do Nzo Inkise Nzazi. Segundo Prandi (2005, p.19), esse passado remoto,
de narrativa mítica, é coletivo e fala do povo como um todo. Passado de geração a geração, por
meio da oralidade, é ele que dá o sentido geral da vida. Notamos assim uma relação de
continuidade, de evocação dos mais velhos, considerados sujeitos notáveis e os encargos
ancestrais a eles imbuídos. Aliás a tônica dominante em todas as narrativas alude ao passado,
não marcadamente cronológico, ao que foi “deixado”, mesmo quando a estrutura dos roteiros
de entrevistas aplicados dada venia de depoimentos mais localizados sobre a história do Nzo.
Sendo assim, seguimos nossas entrevistas reconhecendo e respeitando que as noções de
história, tempo, autoridade e saber são diferentes para aqueles grupos tributários de uma
cosmovisão africana.
Um conceito inerente à oralidade dos povos tributários de uma matriz religiosa africana
é a tradição. Quando se fala em tradição nos sistemas religiosos de matriz africana, nos
referimos a saberes herdados transmitidos pela oralidade. As narrativas das lideranças do Nzo
a respeito de como se organiza os saberes dentro de um candomblé angola é corolário a esse
argumento. Essa tradição não diz respeito à herança da estrutura físico-espacial das instituições
nativas africanas, mas de valores e princípios organizados a partir de uma diáspora. Então
quando pensamos nessa perspectiva de herança, devemos considerar a produção dessa cultura
na história de um povo, cujo tratamento dispensado a sua crença tenha sido constantemente
desvalorizado em função de seus testemunhos, passados de geração em geração, se pautarem
pela oralidade. Todo saber no candomblé é transmitido pela oralidade, não existindo cursos,
preleções ou ensinamentos que não se expressem através da palavra. Embora o senso comum
acredite que a oralidade esteja relacionada à ausência de escrita, é salutar compreender que a
oralidade faz parte de uma cosmovisão. Segundo Hampatê Bá:

Quando falamos de tradição em relação à história africana, referimo-nos a tradição oral,


e nenhuma tentativa de penetrar a história e o espírito dos povos africanos terá validade
a menos que se apoie nessa herança de conhecimentos de toda espécie, pacientemente
transmitidos de boca a ouvido, de mestre a discípulo ao longo dos séculos. Essa herança
ainda não se perdeu e reside na memória da última geração de grandes depositários de
quem se pode dizer são a memória viva da África. (BÁ, 1980, p.181).

1 Considerados como axé do pó. “O Pó a que se refere o título também chamado de Zorra era preparado com
raízes, folhas, e muitos ingredientes próprios para feitiço. A receita só era conhecida pelos mais velhos; não
ensinavam para ninguém. Muitos babalorixás ficaram famosos por serem Bom no Pó ou Bom de Pó. Disponível
em <https://raizmassanga.blogspot.com.br/2008/06/histria-da-raz.html> Data de acesso 06 ago 2017.
O escopo deste trabalho foi trazer a lume os elementos estruturantes que norteiam um
projeto de pesquisa na efervescência dos debates sobre patrimônio cultural, especialmente
aqueles marginalizados. Consideramos mister conceber que o estado em seus dispositivos
legais reconhece as religiosidades de matriz africana como patrimônio, e outras esferas do poder
público também ratificam seus pareceres. Todavia, pouco se produz sobre o assunto para então
entendermos as demandas desses grupos em relação às políticas culturais e patrimoniais.
Geralmente os estudos avançam mais na questão da violência e depredação, sem buscar
compreender que saberes, quais festejos, celebrações e experiências vividas em roças de
candomblé são formadoras de seus patrimônios.
Exploramos nesse trabalho algumas dimensões que permeiam os saberes que se exercem
dentro de um terreiro de candomblé angola de forma a recolhê-los como valorativos para a
humanidade. Buscamos compreender algumas particularidades desses saberes que compõem o
conjunto de bens patrimoniais do candomblé angola por meio de narrativas de seus agentes.
Entrementes, diligenciamos um trabalho que pudesse aproximar memórias, protagonismos,
saberes, num jogo de alteridade. Concordando com Hall (2003), acreditamos que a cultura é
uma produção dinâmica.

[...] não é uma questão do que as tradições fazem de nós, mas daquilo que nós fazemos
de nossas tradições. Paradoxalmente, nossas identidades culturais, em qualquer forma
acabada, estão à nossa frente. Estamos sempre em processo de formação cultural. A
cultura não é uma questão de ontologia, de ser, mas de se tornar (HALL, 2003, p. 44).

Ao trazer a lume certas narrativas de seus protagonistas encontramos elementos comuns


a outras nações de candomblé. Ao percorrer outras trajetórias, defrontamos com diferentes
patrimônios daqueles marcados como exemplos a serem seguidos. Os relatos das lideranças
entrevistadas no Nzo Nkise Nzaze, nos trazem em seu repertório, um pouco de seus princípios
civilizatórios marcado pelo “todo”, expressão recorrente nos depoimentos e na regulação das
coisas através da manipulação de elementos da natureza, que seria o aspecto mágico e espiritual.
E pensamos colaborar, sobretudo, com a ampliação de direitos humanos, visto que uma política
de direitos humanos é, basicamente, uma política cultural, através de narrativas produzidas pelo
povo de santo, representados pelo Nzo Inkise Nzazi.

ELIADE, Mircea. Imagens e símbolos: ensaio sobre o simbolismo mágico-religioso. São Paulo:
Martins Fontes, 1991.

GEERTZ, Clifford. A interpretação das culturas. Rio de Janeiro: LTC, 2008.


HALL, Stuart. Da diáspora: identidades e mediações culturais. Belo Horizonte: Ed. da UFMG,
2003.

HAMPATÉ BÂ, Hamadou. A tradição viva, em História Geral da África I. Metodologia e pré-
história da África. São Paulo: Ática; UNESCO, 1980.

MENESES, Ulpiano Toledo Bezerra de. O campo do patrimônio cultural: uma revisão de
premissas. In: I Fórum Nacional do Patrimônio Cultural, 2009, Ouro Preto. Anais... Brasília: Iphan,
2012. Disponível em: <https://goo.gl/cyta58>. Acesso em: 04 mar 2016.

PINTO, Valdina O. Educação para convivência pacífica entre religiões. Disponível em:
<https://goo.gl/1TXcmJ>. Acesso em 20 mar 2016.

POLLAK, Michael. Memória, esquecimento, silêncio. Estudos Históricos, n. 3. São Paulo:


Revista dos Tribunais Ltda, Vértice, 1989.
Fortunato Martins Filho

O nosso objeto de análise enquanto elemento que indica o ressignificado de cultura está
nos depoimentos de nossos narradores tendo como referência a construção e a ideia de
Flona. São a partir das "referências dadas", com a memória, história e oralidade que
os moradores da territorialidade da Flona rearticulam sua identidade seringueira.
A Floresta Nacional do Macauã foi criada pelo Decreto Federal de Nº 96.189, de 21
de junho de 1988. A lei estabelece sua administração, conselho gestor e manejo para a área de
173.475 hectares de sua extensão, localizada na Amazônia Ocidental, na regional do Purus,
no município de Sena Madureira, às margens do Rio Macauã. A Flona é composta de
19 famílias, todas nascidas na própria floresta. De acordo com Josué da Silva Santos
(2010), o povoamento do Rio Macauã ocorreu no período áureo da economia da
borracha e seu despovoamento está relacionado à sua estagnação. Durante esse período,
inúmeras famílias fizeram o fluxo migratório dos seringais para as cidades como Sena
Madureira e Rio Branco. E é importante destacar que a manutenção de cinco troncos
familiares foram fundamentais para o repovoamento daquela localidade, os quais são assim
conhecidos: Antônio Lino do Nascimento (Antônio Gordo), Olímpio Cosme de Oliveira
(Seu Bebé), Guiomar Ramalho de Oliveira, (Dona Guiomar), Anália Cirino de Lima (Dona
Mocinha) e Francisca Soares do Nascimento (Dona Moça) (SANTOS, 2010, p. 101).
A criação da Floresta Nacional do Macauã no Rio Macauã instituiu aos seus
moradores uma nova forma de se rearticular com o meio, na qual foram inseridos vários
elementos de controle como representação do Estado, que foram "incorporados" no
cotidiano dos moradores, agora floneiros.1 Apesar de a Flona ter sua criação oficializada em
21 de junho de 1988, pelo decreto federal 96.189, os moradores passaram a ter
conhecimento, de sua existência, somente, a partir do ano de 2002, com as primeiras
visitas de agentes do Estado, os quais, com intensos processos de negociações foram
"convencendo os moradores da realidade posta".
De outra forma podemos conhecer Macauã de acordo com as percepções de uma
antiga moradora, Dona Guiomar. Com seu jeito muito particular de falar, com o tom bem alto
e animado, neste caso com aspectos de saudosismo e indignação política, é possível
descrever Macauã, local de suas lutas e desafios, comparando com a sua atual vida na
cidade de Sena Madureira. A senhora Guiomar Ramalho de Oliveira e seu esposo senhor
Olimpio de Oliveira vivem na cidade em virtude de problemas com doenças enfrentadas
pelo senhor Olimpio, conhecido como seu Bebé. Seringueiro que trabalhou enquanto lhe
foi possível manter a força e saúde, mas quando precisou dos serviços das entidades oficiais
bbb
* Doutorando na Universidade Federal de Santa Maria/UFSM; Mestre pela Universidade Federal do Acre/
UFAC.
1 Pessoas que vivem em territorialidades de Flona com singularidade de identidade típica.
para recuperá-la teve que abandonar "o seu" Macauã. Tal situação os têm deixado muito
abatidos pela vontade de viver no local de suas origens pelo qual revelam grande
apreço e saudade.

Tanta plantação que foi deixada, banana, era banana que era as iraras é quem dava
conta ó, e aqui se o cara quer comer uma palminha de banana é um real, tem deles que
ainda faz um real, mais é dois reais ó, num dô de jeito nenhum...se o cara quer um
quilinho de macaxeira é dois reais...tanta macaxeira menino que a gente tinha,
quando eu me lembro do meu roçado! Hein Al! (Referindo ao seu esposo BeBe)
eu achava tão bom de manhazinha, aquela manhã de manhã fria limpava, limpava
aquela rocinha tinha aquele gosto de botar aquele basculhinho tudo pro fim da
rocinha, e onde tinha aquele caculão2,ah meu deus não gosto nem de falar, dá
saudade do meu canto as vertente, as vertente boa. .
Os meus fios, meus fios, eu tive onze, essa daqui é minha filha (apontando para
Ronilza) Ronilza, essa daqui mora na derradeira, na derradeira colocação, a derradeira
colocação e Monte Rizo, só que no Monte Rizo não tem mais ninguém, quem
morava lá era um cunhado dela, aí andaram se deixando e vieram pra cá, um filho
meu, irmão dela ainda morou lá, mas aí deixou e tá morando pra cá também, lá está
abandonado. E lá, só tem ela, mais abaixo tem uma tia dela, mais abaixo tem um
primo, outro primo, maisze abaixo tem outro primo (SILÊNCIO), olha, mas a vida lá
no Macauã é um canto bom, eu acho mas pra quem é idoso como nós é difícil, sabe
que fica difícil porquê só tem carro no verão e de canoa é cinco dias (GUIOMAR
RAMALHO, 2011).3

Não deixemos que o discurso se prenda ao tempo do passado e com ele se carregue o
elemento de saudosismo. Nossa depoente demonstra que está muito bem-disposta ao trabalho, mas
as impossibilidades postas aos idosos e aos trabalhadores rurais são as mais amplas, como os
serviços de saúde, que não chegam aos moradores das colocações, alternativas de locomoção, em
diferentes fases do ano para viabilizar as plantações, o comércio e a própria vida que os momentos
mais exigem. Interroga-se daqueles que os deixam lá, dos que não oferecem as condições para que
a vida continue tento o mesmo sentido, enquanto lhe corria o sangue da juventude. Como os idosos,
outros também foram abandonados e suas vidas assumem outra conotação. Seria essa a alternativa?
Deslocar os homens do campo para barateá-los na cidade ou transformá-los em trapos do sistema
de misérias?
Na continuidade da fala, observa-se que Dona Guiomar fica indignada com os direitos que
não foram assegurados à sua família, depois de tanto tempo de trabalho e sacrifícios nas florestas
para manter os interesses econômicos do Estado que, naquele momento, se faziam necessários ter
trabalhadores no interior da floresta explorando os seringais para viabilizar a economia local aliada

2 Terreno saliente provocado pela presença da raiz da planta.


3 Moradora do Rio Macauã, esposa do senhor Olimpio Cosme de Oliveira.
aos interesses externos. Em outra fala, um morador muito antigo na localidade, esposo de
dona Guiomar, que conversa pouco, em uma única frase disse-nos: Seu Bené: plantei seringa
25 anos.4
Talvez seu Bené se interrogue em alguns aspectos: de que valeu tanto esforço, se agora
na minha velhice não posso desfrutá-la onde mais gostaria? Evidente que faz também essa
afirmação com orgulho por ter mantido a família com a bravura do seu suor de extrativista em
uma atividade que muitos enaltecem, mas não reconhecem como deveriam.
Na pesquisa foi possível constatar que os moradores da Flona revivem suas histórias
através de suas identidades. Seus contos e suas histórias remetem um passado no qual
teve o papel preponderante do aprender ouvindo o que os mais velhos falavam também a
cerca de seu passado e de como era a vida no lugar. Denominar o endereço como colocação,
remete a uma herança da época em que esse território era dominado pela atividade do "corte
da seringa", porém hoje, numa outra relação, ainda presente no cotidiano e nas identidades
dos moradores, pois suas áreas de terra se caracterizam e são medidas pelas “estradas de
seringa”, caminhos que ligam uma seringueira a outra, as quais ainda recebem golpe da
faca de cortar. Embora desenvolvam atividades como agricultores, extrativistas, criadores,
caçadores, pescadores, entre outras, ser seringueiro é uma continuidade da vida, é uma
identidade. Denominam-se moradores do Macauã porque vivem nas margens do rio e ali
desenvolvem suas atividades de subsistência.

A minha colocação são oito estradas de seringa. Corto seringa, a gente tira, a gente tira
uma renda muito boa da borracha. Aliás passou até uns tempos assim fracassado, mas aí
conseguiram, até conseguir, subsídio pago pelo governo federal pra ajudar o seringueiro,
que trabalha na seringa nativa. Aí a borracha conseguiu ficar com um preço bem melhor.
Aí muita gente, a maioria do povo se animou pra cortar seringa (Raimundo
Rodrigues do Nascimento, 2011).5

Percebe-se que nosso depoente tem clareza do momento, em que a atividade do “corte da
seringa” retorna com certo grau de importância, com propósitos específicos, do governo federal do
Brasil, em valorizar o seringueiro e o fruto do seu trabalho. Apesar das contradições presentes no
projeto Flona, sua sensibilidade está voltada para as práticas marcantes que caracterizam o seu viver
na floresta. Está atento para as decisões oriundas das instituições e pessoas que valorizam seu ser
seringueiro e o trabalho que faz para a manutenção e preservação das árvores de seringa e seu
ecossistema. “Ajudar o seringueiro” lhe permite dialogar com seu universo florestal sempre
cobiçado pelos recursos disponíveis para atender interesses alienígenas; ao seringueiro importa a

4 Entrevista realizada em setembro de 2011 (Olimpio Cosme de Oliveira). Morador do Rio Macauã, na
colocação São Sebastião, residindo na cidade de Sena Madureira em virtude de problemas de doença.
5 Entrevista realizada em fevereiro de 2011 (Raimundo Rodrigues do Nascimento). Morador do Rio
Macauã, na colocação Poço. É Coordenador religioso da igreja católica e desenvolve atividades comuns aos
moradores das Flonas.
manutenção familiar, sempre numerosa, que exige esforços consideráveis, para atender o particular
alimentar.
Lá em casa a gente vive da caça, da mata mesmo; sempre tem, lá, digamos. Em casa não
falta arroz, o feijão, verdura sempre não falta, mas como a gente nasce aqui na mata é
considerado a alimentação a carne. Às vezes, lá na cidade é bem diferente. É, às vezes
considerado o feijão, arroz como alimentação e a carne é a mistura. Já pro seringueiro não:
a comida é a carne e o arroz e feijão que é a mistura. Aqui, então, eu caço bastante. A caça
é muito boa de carne, os rios são muito bons de peixe. Nessa época de inverno tem muita
espécie de peixe, é bom mesmo. Tem muitos lagos, bons de peixe e igarapé aonde a
gente pesca.6

Nessa fala observamos que o morador deixa claro a certeza de sua identidade de seringueiro
e seu particular com os aspectos da alimentação e cultivo de produtos alimentares, algo diferenciado
de outros momentos marcantes da extração do látex, como um profundo conhecedor dos rios e
lagos onde a alimentação é farta.

Se antes a identidade era construída através das relações de família, negócios,


comunicação via rádio, parentescos e vizinhanças, agora tem uma diversificação de
influências que necessariamente está carregada do discurso preservacionista ambiental.
Mas, é preciso que tenhamos a devida atenção para percebermos, de acordo com
Alessander Kerber (2007), que as referências das identidades “não são uma via de mão
única, mas negociadas”, aonde se pode perceber conflitos que "afloram" e que desaparecem
quando atendem o desejo de seu “público”.
Construir a identidade é caminhar em uma perspectiva ampla do que seja a vida do
ser humano. Por mais simples que nos possa parecer o seu cotidiano, iremos nos deparar com
inúmeras identidades em continua composição da sua identidade. Tal afirmação pode ser
constatada quando observamos o posicionamento de Bauman:

Receio que alegoria do quebra-cabeças seja parcialmente esclarecedora. Sim, é preciso


compor sua identidade pessoal (ou as suas identidades pessoais?) da forma como se
compõe uma figura com as peças de um quebra-cabeças, mas só se pode comparar a
biografia com um quebra-cabeça incompleto ao qual faltem muitas peças (e jamais se
saberá quantas) (2005, p. 54).

6 Entrevista realizada em fevereiro de 2011 (Raimundo Rodrigues do Nascimento). Morador do Rio Macauã, na
colocação Poço.
Nas entrevistas com os moradores foi identificado que a relação com o território envolve
duas situações que podemos considerar conflitantes. A primeira envolve o território enquanto
“poder de apropriação” e a segunda enquanto poder simbólico, “valor de uso que carrega as marcas
do vivido.” (LEFEBVRE, 1986). Estes elementos para o seringueiro que assumem, também, a
identidade de floneiro e para a Flona são determinantes na reconfiguração territorial e nas
identidades que são construídas. Quando o morador se posiciona sobre a criação da Flona é possível
identificar um sentimento de exclusão territorial, e interroga a si mesmo, se vale a pena ser um
protetor da floresta e de sua riqueza e, se na sua permanência, é possível a continuidade do seu
trabalho? De outra forma, também identifico outras interrogações presentes na única linha. Diante
do trabalho de gerações, que foi capaz de manter de certa forma, intocada a natureza e com ela
constituir famílias, com significado do seu ser e em ser do Macauã, haverá razão de continuar e de
estar aqui, mantendo a herança familiar, a luta pela vida e o futuro para outras gerações? E, afinal,
a quem pertence esta terra, seus bichos, suas árvores, suas paisagens, rios, lagos, igarapés e seus
encantos? “Porque se nós protegemos essa terra e não temos direito a nada de que
adianta?” (Gedeão Eduardo da Rocha, 2011).7
Identificamos ainda na fala do nosso narrador, Gedeão, que o conjunto de regras criadas
pelo ICM/BIO, com a “participação” dos moradores para as atividades do trabalho na Flona,
inviabiliza seu sentimento de liberdade e práticas tradicionais de seringueiro, caçador, pescador,
coletor, criador e lavrador da terra. Sua interrogação vai aos anos anteriores em busca dos esforços
de seus antepassados que ali derramaram o suor e, de forma muito direta, colaboraram e foram
responsáveis pela existência das conformidades de preservação ambiental ali encontradas. Assegura
em sua fala que a terra a ele pertence e também reconhece que a sua existência corre grande perigo
sem a garantia dessa relação; sente a ameaça da exclusão latente em seu suor e na vida de seus
filhos.
Na fala de outro morador, o mesmo diz da experiência inicial e das relações que se
estabelecem a partir da criação da Flona. Há um sentimento de frustração, de indignação, de não se
sentir participativo daquilo que sempre o identificou e pertenceu à vida de seus familiares. Sentem-
se como que presos pelas imposições oficiais que originaram a Flona, sem serem consultados ou de
alguma forma informados das pretensões que se tinham sobre suas áreas territoriais, os
desconsideraram como preservacionistas do meio ambiente. Observam as regras como elemento
controlador do território e das atividades por eles desenvolvidas, sem esta necessidade, visto que os
moradores já convivem com essas relações há tempos e que são características de suas vidas.

De início, a gente pensava que ela tinha sido criada, no caso que ela já tinha sido criada.
Bem, muito antes que eles vieram aqui conversar com a gente já tinham cercado a moita,

7Entrevista realizada em fevereiro de 2011 (Gedeão Eduardo da Rocha). Morador da Floresta Nacional do Macauã
na colocação Apuí.
eles falaram nos objetivos que a Flona ia tal, tal, ia criar. Mas a gente pensava que eles iam
criar a coisa, mas no caso eles já tinham criado. Então não teve esse sentimento de como
ia ser, e aí já depois de criado que eles vieram informar as regras de como que a gente
tinha que fazer, várias regras; ainda hoje ainda estão inventando regras. Por um sentido,
ela teve umas modificações mais sérias, mas, não, não tanto porque as pessoas, daqui de
dentro, nunca pessoas, nem eu e nem outro, nunca foram pessoas assim de desobedecer
como as regras de brocar, de queimar, de derrubar, tudo. Não tem o interesse de acabar,
tem o interesse de sobreviver, mais sem acabar com as matas, mas com as regras que eles,
que eles colocaram. A gente já estava quase no jeito por acaso que ninguém não tinha esse
interesse mesmo. Então eles colocaram as regras que não pode utilizar, acabar com tudo
aquilo. Mas o interesse nosso, nunca foi de acabar; se era de acabar já tinha acabado. A
gente já é morador daqui há muitos anos e nós nunca tivemos esse
interesse(Admilson Ramalho de Oliveira, 2011).8

No discurso de adequação de atividades com as regras "criadas", pela Flona, o morador


dissimula sua insatisfação, com a presença do Estado, e sua posição é uma forma escamoteada de
resistir às mudanças que se estabeleceram. Trabalha com a possibilidade de manutenção da sua
singularidade e do Estado qual seja a sua liberdade, pois o considera com poder desnecessário, o
que os incomoda: "ainda hoje ainda estão inventando regras". Essa afirmação coloca em evidencia
que as regras para o jeito de ser do Macauã são uma construção das experiências acumuladas, ao
contrário das instituições do Estado que as "inventam".
As "invenções" caracterizam-se como elementos limitadores de suas ações e que já fazem
parte das ações do dia-a-dia do seringueiro
Continuando com o mesmo morador, no decorrer de sua fala é possível perceber as variáveis
presentes na construção da identidade, pois esta tem sua particularidade de acordo com a realidade
posta.
Uns se sentiram oprimidos, mas vários se sentiram mais a vontade, porque aqui a situação
antes era meio ruim devido ao conhecimento que a gente não tinha; era um pessoal
privado. Nem vinha o conhecimento, nem a gente chegava lá. Depois da criação da Flona
é que o pessoal veio conhecer a realidade. E a vida mudou 100% depois da criação da
Flona, de melhoria... Eles trouxeram investimento pra pesquisar algumas coisas na mata e
nós ganhamos dinheiro com eles... Eles trouxeram o conhecimento de criarmos a
associação e isso melhorou nossa vida, porque antes a gente vivia na mão do patrão e
agora a gente vende e compra pra nós mesmos (Admilson Ramalho De Oliveira,
2011).9

Essa afirmação aponta para o significado do trabalho desenvolvido como os moradores da


floresta que foram capazes de preservar fauna, flora e um conjunto de recursos naturais de grande
valor de uso e que agora com a criação da Flona tomam outras dimensões, assim como suas vidas.
Nessa fala, o seringueiro também define o conhecimento da realidade sobre mudanças que se
8
Entrevista realizada em fevereiro de 2011 (Admilson Ramalho de Oliveira).
9 Entrevista realizada em fevereiro de 2011 (Admilson Ramalho de Oliveira).
estabelecem no território, onde sempre estiveram inseridos, transformando-o e sendo
transformados, em conjunto, com a paisagem e a importância que o território passa a ter para eles
e para as instituições do Estado. Na visão de Gedeão, a preservação ambiental não se realiza sem a
manutenção de algumas tradições advindas do trabalho, embora com algumas invenções advindas
da Flona:
A gente trabalhava, assim, na borracha. A borracha não tem preço. Aí passamos pra
agricultura, e a agricultura perdeu o valor. Aí o jeito que tem é agropecuária... Até tempo
passado eu cortei. Corto porque é uma cultura, mas que melhorar, não melhorou não. Aí
esse pessoal inventou um negócio duma copaíba, duma semente, dum negócio de semente;
eu pelo menos tenho dez quilos de semente lá em Sena Madureira, na minha casinha. Não,
não tem como. Então, como que a gente vive... Aí a gente tem que trabalhar, de uma
maneira que nós sobreviva e a floresta continue em pé. Nós precisamos queimar nossa
rocinha, nós precisamos queimar nosso roçadinho. Sem queimar como é que a gente vai
sobreviver? Nós não temos um trator. Além de não ter um trator, nós não temos condições
de pagar nem a diária de um trator, quanto mais o óleo. Aí como é que nós vamos limpar
uma terra? Imagina... Digamos assim, tem um lá no ICM/BIO falando. Eu digo: “olha,
pega aquele velhinho, que eu tenho televisão, eu tenho tudo lá em casa, que agora já
mudou.” Aquele velhinho que era o chefe do IBAMA em Brasília, como é o nome dele,
é... Eu esqueço como é... que tem até a cabeça pelada. Eu digo: “pegue ele, solte ele lá no
Cinco Lagos com um fardo de açúcar e uma caixa de óleo e um sabãozinho, umas
coisinhas, um arrozinho.” Diga assim: “dá o teu jeito, teu salário tá cortado tu vai
sobreviver agora em uma foice ou então que fosse um terçado que assim até ele batia
lá.” (Gedeão Eduardo da Rocha, 2011).10

A sobrevivência é uma questão que está diretamente ligada à organização do trabalho e


neste as atividades que são desenvolvidas para se chegar às condições ideais para a produção.
Entretanto, como seringueiro, o morador percebe que para manter ou voltar a praticar a queima do
roçado, como preparo da terra, terá que enfrentar o "processo negociado" com as instituições
representativas e fiscalizadoras do Estado. Estas mudanças se acentuam quando os mesmos tomam
consciência de que não são mais moradores, donos das colocações que habitam, e ao mesmo tempo
tentam retomar e se manter com direitos de domínio e com as mesmas práticas que os caracterizam.
A luta pela sobrevivência apresenta um sujeito novo – o Estado – que de maneira escamoteada, com
as regras aos seringueiros, vai consolidando o controle sobre a territorialidade e as atividades nelas
desenvolvidas. Derrubar, queimar, caçar, pescar, tirar árvores para a construção das casas e outras
formas de uso dos recursos presentes na Flona obedece aos critérios estabelecidos em documentos
que os moradores, embora ajudem a construir, têm por ele grande receio do que possa estar sendo
preparado para o futuro. Quando conversamos com nossos narradores sobre mudanças com a
criação da Flona, assim se posicionam:

10 Entrevista realizada em fevereiro de 2011 (Gedeão Eduardo da Rocha).


Mudou porque é assim. Era uma coisa que a gente era meio... O pessoal tocava assim por
conta; não tinha assim um controle, quer dizer, o controle só de preservar. A prova é tanto
que aí você chega na colocação dessa maneira. Então, o que mudou tem uns obstáculos
que são essas reuniões, que antes não tinha. É meio cansativo, mas é assim mesmo. Tem
hora que a palestra é até boa… Hoje em dia nós estamos num tempo corrido. Todo mundo
quer viver melhor, e ninguém quer o mau, porque nessa época era na época do tempo do
sapato de seringa. Hoje em dia, ninguém quer mais usar um sapato de seringa e até a
borracha ninguém quer mais mexer, porque perdeu o valor. (Gedeão Eduardo da Rocha,
2011).

No discurso destes dois narradores, percebe-se que as mudanças estão ocorrendo de forma
sistemática, influenciado comportamentos e favorecendo a reflexão da relação entre o passado,
presente e futuro e onde também podemos destacar a construção da identidade do floneiro.

Por um sentido ela teve umas modificações mais sérias, mas, não, tão réu porque as
pessoas daqui de dentro, as pessoas que nem nunca foram pessoas assim de desobedecer
às regras de brocar, de queimar, de derrubar tudo. Não tem o interesse de acabar; tem o
interesse de sobreviver, mas sem acabar com as matas. (Admilson Ramalho de Oliveira,
2011).11

É possível mencionar sobre os discursos desses seringueiros que mantêm uma


"posição conciliadora" com as instituições reguladoras do estado, embora percebam e admitam
que houve modificações na vida. Eles sustentam que é possível levar a vida sem que as
alterações possam afetar a singularidade das colocações.
Quando se projeta a vida para o futuro com possibilidades de explorações dos
recursos naturais, de forma mais intensa para viabilizar e tornar a "Flona auto-sustentável"12
há posições assim definidas:
Rapaz, eu acho que mudar pode não mudar pra mim, mas pode mudar pros meus filhos.
Eu tive um dia lá no Antimari né, e vi o pessoal reclamando esse negócio de exploramento
na mata. O madeireiro lá tirando madeira diz que agora é que o pescoço está acochado
mesmo né... pros moradores. A empresa entrou lá, tirou a madeira que tinha. A empresa
tirou tudo que até as caças foram embora. Eu acho que não seja bom não. Eu não sei quanto
tempo vou viver, porque eu tenho meus filhos que é o mesmo que ser eu; eu acho difícil,
assim como eles não liberam pra nós tirar. Vai vim gente lá de fora pra tirar, pra trazer
dificuldades pros meus filhos ou então pra mim mesmo. Chega rápido, eu posso alcançar
também. Em vez de ser pra nós, que preserva a reserva, vai ser pra outras
pessoas (Humberto Cirino de Lima, 2011).13

11 Entrevista realizada em fevereiro de 2012 (Admilson Ramalho de Oliveira).


12 Luis Fernando Scheffler é pesquisador e presta consultoria ao ICM/BIO. Apresentou durante a reunião
do Conselho das Flonas São Francisco e Macauã, palestra que trata sobre: “A viabilidade Econômica das Flonas
São Francisco e Macauã”. .
13 Entrevista realizada em fevereiro de 2011 (Humberto Cirino de Lima).
Nessa fala observamos que o morador se investe de experiências para constituir um
discurso, indicando uma situação que não seja aplicada na Flona Macauã, por suas preocupações
com os seus familiares, e também se forem criadas oportunidades de geração de renda que sejam
priorizados os próprios moradores.
Ainda é possível observar através em seu discurso, a sugestão de outra construção: que a
exploração possa ser avaliada, junto com os moradores, proporcionando melhor aproveitamento
dos recursos disponíveis.
Durante nossa estadia na Flona, tivemos a oportunidade de acompanhar, em dois dias de
reunião, parte do que vai se configurar como: Acordo e Regras de Uso dos Recursos Naturais e
Convivência Comunitária. Nesse intervalo, observamos o empenho e a luta dos moradores junto ao
técnico que presta serviço ao ICM/BIO, Edson Mendes que conduzia os trabalhos para que as regras
fossem as mais próximas possíveis de seus entendimentos e de suas realidades. Os moradores
fizeram várias observações, em propostas oriundas da coordenação da Flona, colocaram adendos,
retiraram itens, adicionaram, melhoraram aquilo que não concordavam. Houve grande mobilização
dos moradores. Vieram de suas colocações dispostos a se empenharem no processo. Trouxeram
mudas de roupa, redes para acomodação, mantimentos alimentares e a família. Adultos, jovens e
crianças estavam presentes na atividade. É claro que as crianças aos seus modos, como
observadoras, se reservando mais aos adultos e jovens a participação efetiva, tanto dos homens
como de mulheres.
É sempre um momento único, de difícil condução, conflitante, às vezes mais ríspido, de
consenso e também de conciliação. Todos se faziam presentes pela importância e o significado que
o documento assume após a homologação com as ideias oriundas da participação dos moradores.
Vale ressaltar que já existe um Plano de Uso, em vigor. Entretanto, o que coincidiu em
elaboração, durante nossa pesquisa, vem se adequar à legislação, pois foi elaborado antes do Plano
de Manejo. Portanto, precisa ser revisto e passar por aprovação dos moradores e do Ministério do
Meio Ambiente.
Entre seus objetivos, o Plano de Uso assegura: “Servir de guia para que eles exerçam suas
atividades agrícolas, florestais, pecuárias, extrativistas, pesqueiras e artesanais, respeitando a
cultura e tradições e, ao mesmo tempo, conservar os recursos naturais, garantindo com isso a
qualidade de vida dos moradores e das futuras gerações.” (Plano de uso das Flonas São Francisco
e Macauã, 2002, p. 01).
Tal propósito vem afirmar o que já se pratica durante várias gerações nas colocações do
Macauã: coloca-se ainda como norteador do trabalho e de uma educação ambiental que se pensa
possível.
Nos itens 7 e 8 que trata das Intervenções Extrativistas e Agropastoris, lê-se: “É
responsabilidade de o seringueiro zelar por suas estradas de seringa e pela castanheira; as
seringueiras e castanheiras não podem ser derrubadas. Devem ser evitadas as derrubadas e
queimadas que ameacem a sobrevivência das mesmas.” (Planos de Uso das Flonas São Francisco
e Macauã, 2002, p. 02).
As regras são os olhos e ouvidos da Flona; são parte de um conjunto de itens que compõem
o processo e a instituição. O comportamento dos moradores, baseados nos itens mencionados, é o
resultado de vida e em muitos casos, não se configura como imposição, mas é o que dá sentido ao
gerenciamento e à existência de um controle local. É o “poder simbólico” (BOURDIEU, 1989, p.
9) manifestado através da burocracia controlada pelas instituições oficiais.
É possível afirmar que as propostas de “desenvolvimento” e a manutenção da Flona
dificilmente seguirão o caminho de dentro para fora. Numa relação dos moradores para com as
instituições do Governo Federal, será prioritariamente de fora para dentro e nesse caminho que
exclui. Há um conjunto de situações que ainda ficam sem respostas tanto para os moradores como
para aos técnicos que desenvolvem atividades, definidas no plano de gestão, oriundas do Conselho
das Florestas Nacionais do Macauã e São Francisco.

Em outros termos, trata-se de "inventar" uma "economia da floresta", sem perder de vista
a questão mais ampla que se refere ao desenvolvimento da região não descurando da noção
de que este desenvolvimento deve ser conservacionista e não-excludente
(CAVALCANTI, 2002, p. 58-59).

De outra forma, na reunião do plano de uso14 da unidade que tem como objetivo
“assegurar a auto-sustentabilidade da Floresta Nacional do Macauã e Floresta Nacional
São Francisco, mediante a regulamentação da utilização dos recursos naturais e dos
comportamentos, a serem seguidos pelos moradores” ICM/BIO (2002), os mesmos com
suas sabedorias tentam manter algumas conquistas construídas ao longo da trajetória familiar
e antes da existência da Flona. Nesse espaço encontram alternativas para firmar algumas
lutas dos direitos conquistados e outras que possam ser garantidas no processo da
construção das identidades de seringueiro-floneiro na manutenção da vida.

A identidade local está em constante construção sendo influenciada e influenciando através


de seus inúmeros sujeitos que carregam as marcas únicas do território. A Flona do Macauã
continuará sendo local de memória e de história e, portanto, também, local de preservação da
identidade cultural acreana.
A Flona Macauã constitui-se local de história porque ali há construções de vidas e
acontecimentos, nos quais o ser social vive as suas transformações de acordo com as condições
estabelecidas no local.

14 Plano de Uso da Unidade: o Plano de utilização da unidade pelos moradores da Floresta Nacional.
Consideramos, também, que a Flona se constitui local de memória, haja vista que os sujeitos
locais guardam recordações, lembranças e pensamentos que dialogam com o universo singular
florestal.
A ressignificação cultural é um movimento que foi possível identificar com os depoimentos
colhidos junto aos moradores que são a princípio uma forma de enfrentamento com o processo
permanente de Flona. Continuará seu caminho de acordo com a leitura que o mundo proporcionar
aos moradores das colocações.

ALLEGRETTI, Mary Helena. A construção social de políticas ambientais: Chico Mendes e o


movimento dos seringueiros. Brasília. Tese de Doutorado em Desenvolvimento Sustentável,
UNB, 2002.

AQUINO, Terri Vale de. Índios Kaxinawá: de seringueiro caboclo a peão. Rio Branco: Sesc,
1982.

BACHELARD, Gaston. A filosofia do não: filosofia do novo espírito científico. 1938.

_____. A formação do espírito científico: contribuição para uma psicanálise do conhecimento.


Rio de Janeiro: Contraponto, 1996.

BAUMAN, Z. Globalização: as consequências humanas. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1999.

_____. O mal-estar da pós-modernidade. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1998.

BOSI, E. Cultura de massa e cultura popular: leituras de operárias. 2 ed. Petrópolis: Vozes, 1973.

BOURDIEU, Pierre. O poder simbólico: memória e sociedade. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil,
1989.

BRASIL. Presidência da República. Casa Civil. Subchefia para Assuntos Jurídicos. Lei nº 9.985,
de 18 de julho de 2000.

CASTELLS, Manuel. O poder da identidade. São Paulo: Paz e Terra, 2000.

CAVALCANTI, Francisco Carlos da Silveira. A política ambiental na Amazônia: um estudo sobre


as reservas extrativistas. Campinas: [s.n.], 2002.
FERNANDES, Marcionila. Desenvolvimento sustentável: antinomias de um conceito. In.
FERNANDES, Marcionila; GUERRA, Lemuel (Org.). Contra discurso do desenvolvimento
sustentável. Belém: Associação de Universidades Amazônicas, 2003. p.131-169.

CANCLINI, Néstor Garcia, Culturas híbridas: estratégias para entrar e sair da modernidade. 4.
ed. 5. reimp. São Paulo: Ed. da USP, 2011.

HAESBAERT, Rogério. Dos múltiplos territórios à multiterritorialidade. Porto Alegre: Ed. da


UFRGS, 2004.

_____. O mito da desterritorialização: do fim dos territórios à multiterritorialidade. Rio de


Janeiro: Bertrand Brasil, 2004.

HALL, Stuart. A identidade cultural na pós-modernidade. Rio de Janeiro: DP&A, 2006.

LENTINI, Veríssimo; SOBRAL. Marco. Fatos florestais da Amazônia. Belém: IMAZON, 2003.

MEIHY, José Carlos Sebe B; HOLANDA, Fabíola. História Oral: como fazer, como pensar. São
Paulo: Contexto, 2007.

MONTENEGRO, Antonio Torres. História Oral e memória: a cultura popular revisada. São
Paulo: Contexto, 1992.

NORA, Pierre. Entre memória e história: a problemática dos lugares. In: Projeto História. São
Paulo: PUC/SP. n. 10, p. 12, 1993.

ORTIZ, Renato. A consciência fragmentada. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1980.

PORTARIA 127/2009 do Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (IPHAN),


PLANO DE USO. Floresta Nacional do Macauã e Floresta Nacional do São Francisco, 2002.

RAFFESTIN, Claude. Repères pour une théorie de la territorialité humaine. In: REIS, Arthur
Cezar Ferreira. O seringal e o seringueiro. Manaus: Ed. da Universidade do Amazonas; Governo
do Estado do Amazonas, 1977.

_____. Por uma Geografia do Poder. São Paulo: Ática, 1993.

SANTOS, Josué da Silva, Florestas nacionais e concessões na faixa de fronteira amazônica. Rio
Branco: UFAC, 2011.
WOODWARD, Kathryn. Identidade e diferença: uma introdução teórica e conceitual. In: SILVA,
Tomaz Tadeu (Org.). Identidade e diferença: a perspectiva dos estudos culturais. Petrópolis:
Vozes, 2000, p. 7-72.
Cláudio Roberto Antunes Scherer Jr.

A Educação de Jovens e Adultos (EJA), da cidade de Florianópolis, funciona tendo a


Pesquisa como Princípio Educativo (PPE). Isso significa uma série de mudanças teóricas,
metodológicas e culturais daquilo que se convencionou como sendo um ambiente de
ensino e, principalmente, daquilo que se pensa sobre um professor1 em sala de aula.
Nesse ambiente de ensino, os estudantes são estimulados a produzirem pesquisas,
diretamente ligadas aos seus interesses pessoais, inexistindo separação de conteúdo por disciplinas
ou áreas científicas, e os professores atuam em conjunto, muitas vezes, todos dentro da sala de aula
ao mesmo tempo. O professor, além de ensinar, passa a ser um orientador dessas pesquisas.
Para a EJA, via PPE, funcionar é necessária uma vasta gama de mudanças na ação docente.
Ou seja, a prática desse professor, inserida nesse contexto específico da EJA, de Florianópolis, se
difere da exercida em outras escolas. Nesse contexto, que desestimula completamente o “aulismo”,
o professor se depara com situações e condicionantes, talvez, nunca antes encontradas em sua vida.
É, nesse momento de incertezas e dúvidas, que soluções, estratégias e saberes são acionados e/ou
desenvolvidos.
Este texto foi construído no primeiro semestre de 2016, como trabalho final para a
disciplina: Educação, História Oral e Memória, ministrada pela Professora Drª. Clarícia Otto. Foi
uma das produções iniciais, durante minha pesquisa de Mestrado em Educação, no Programa de
Pós-Graduação em Educação (PPGE), da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC).
Neste trabalho, a intenção foi dar os primeiros passos no intuito de compreender, a partir do
ambiente de ensino específico da EJA, de Florianópolis, algumas das nuances de mudanças
ocasionadas na prática de ensino, que enseja o acionamento/desenvolvimento de saberes docentes
na EJA. O pressuposto é de que a proposta com pesquisas construa uma cultura escolar peculiar,
com suas regras e normas próprias, com diferentes formas de ser/estar professor, com currículo e

* Mestrando em Educação/UFSC e Especialista em História e Cultura Afro-Brasileira, UNIASSELVI. Apoio


UNIEDU/FUMDES.
1 Ao longo do texto, utilizaremos a denominação professor e professores, no masculino, porém, enfatizamos
se tratar de professores e professoras, homens e mulheres.
conteúdos específicos, e, que esse ambiente diferenciado possibilite a produção de saberes docentes,
inseridos nas diversas formas de se realizar o trabalho dos professores.
Para este empreendimento, utilizarei os trabalhos de Tardif (2000; 2010) sobre saberes
docentes, e os textos de Julia (2001) e Viñao Frago (2006) sobre cultura escolar. Para realizar essa
análise, é utilizada como fonte, uma entrevista concedida por um professor de Espanhol, que atuou
na EJA em 2016. É a partir dessa fonte oral que teoria e prática são entrelaçadas, com o intuito de
compreender alguns aspectos da ação docente, presentes no ensino, via pesquisas da EJA de
Florianópolis.
Produzir fontes com base na oralidade pode acarretar uma série de dúvidas e perguntas.
Todavia, Portelli (1996; 1997a; 1997b) aponta algumas luzes interessantes sobre esse tipo de fonte.
Umas das questões, que apesar de há certo tempo superada, é com relação à subjetividade, como
controlá-la, como lidar com ela? Portelli (1996, p. 62) afirma que “se formos capazes, a
subjetividade se revelará mais do que uma interferência; será a maior riqueza, a maior contribuição
cognitiva que chega a nós das memórias e das fontes orais.” Essa percepção sobre a subjetividade
do entrevistado, faz com que seja possível pensar que numa entrevista, assim como em qualquer
outro tipo de fonte, as subjetividades podem nos ajudar mais do que aquilo que se mostra,
aparentemente, objetivo. O desafio reside em conseguir apontar o olhar de pesquisador para além
do aparente.
Nesse trabalho específico com fontes orais, é possível realizar o processo de obter
informações, ou seja, aprender sobre a ação docente no contexto da EJA em virtude muito mais
daquilo que ela significa e não, necessariamente, daquilo que ela nos apresenta, ou seja, “buscar
menos a reprodução do que a representação.” (PORTELLI, 1997b, p. 39).
Como este texto emerge de uma pesquisa de Mestrado, mais ampla, e em virtude da síntese
necessária, apenas o relato de um professor será utilizado. A partir de sua fala é possível enfatizar
momentos e situações que corroborarão com a proposta deste trabalho. Fazendo alusão à afirmação
de Portelli (1997b, p. 25) sobre outra situação, porém, com o mesmo intuito, esta pesquisa não
busca “estudar” os docentes da EJA, mas antes, “aprender” algo a seu respeito.
A seguir, o intuito é apresentar um pouco da cultura escolar da EJA, de Florianópolis, com
a especificidade gerada a partir da PPE. Após isso, a intenção é analisar alguns aspectos da formação
de saberes docentes, possibilitados pelas situações e condicionantes enfrentadas no cotidiano das
interações na EJA.

Cultura escolar, aqui entendida, se refere “a um conjunto de normas que definem


conhecimentos a ensinar e condutas a inculcar, e um conjunto de práticas que permitem a
transmissão desses conhecimentos e a incorporação desses comportamentos; normas e práticas
coordenadas a finalidades que podem variar segundo as épocas.” (JULIA, 2001, p. 10). Viñao Frago
(2000, p. 2-3. Apud. FARIA FILHO, 2004, p. 148) aprofunda mais a explicação sobre o que vem a
ser a cultura escolar:

Concepto de cultura escolar como un conjunto de teorias, ideas, princípios, normas,


pautas, rituales, inercias, hábitos y práticas – formas de hacer y pensar, mentalidades y
comportamientos – sedimentadas a lo largo del tiempo en forma de tradiciones,
regularidades y reglas de juego no puestas en entredicho y que proporcionan estrategias
para interactuar y para llevar a cabo, sobre todo en el aula, las tareas cotidianas que de cada
uno se esperan, así como hacer frente a las exigencias y limitaciones que dichas tareas
inplican o conllevan.

A EJA de Florianópolis, devido à Pesquisa como Princípio Educativo (PPE), apresenta uma
cultura escolar com peculiaridades, ou seja, possui algumas práticas, hábitos e rituais que
modificam a percepção naturalizada daquilo que acontece num ambiente de ensino, principalmente,
em relação à ação docente.
A base do currículo da EJA são as pesquisas. Os estudantes realizam pesquisas sobre
interesses pessoais, sobre aquilo que querem pesquisar. Essa parece ser uma das primeiras e
principais peculiaridades, que acarreta toda uma série de modificações nas normas e práticas
encontradas na EJA de Florianópolis.
A entrevista com o professor Pablo2 apresenta alguns aspectos dessas mudanças e
nos aponta outras significantes diferenças desse trabalho:

Ficamos mais tempo em grupo em cima de uma pesquisa só. [...] Costumamos conversar
bastante sobre as pesquisas, principalmente, durante as aulas em que a gente trabalha
pesquisas e nas orientações individuais com o grupo.
Nós somos oito professores. [...] Outra atividade que fazemos são as oficinas, que é para
ampliar algum conteúdo de uma pesquisa [...] A gente gosta de fazer oficinas de produção
escrita [...] E, além disso, tem o uso do caderno diário, que procuramos pedir para eles
escreverem. (Prof. Pablo, entrevista, 2016, p. 3).

Nesse relato podemos identificar algumas das estratégias, práticas e rituais da lógica da ação
docente na EJA, e, também, perceber que o professor Pablo sempre se refere ao grupo de docentes
na primeira pessoa do plural (nós), nunca no singular (eu), pois, todos juntos, são os responsáveis
por tudo; nada é feito ou decidido sozinho. A pesquisa é central nas atividades e as orientações
podem acontecer com mais de um professor, ao mesmo tempo, o que significa a atenção de dois ou
mais professores a um mesmo grupo, que, no geral, comporta cerca de três alunos. Essas orientações
se constituem em conversas sobre os temas escolhidos e prováveis modos de prosseguir com a
pesquisa.
Além das pesquisas que cada aluno realiza, com a orientação dos professores, outro aspecto
da metodologia do trabalho na EJA, relatado pelo referido professor, diz respeito às oficinas. As

2 O nome do entrevistado foi substituído por pseudônimo escolhido pelo próprio professor.
oficinas servem para aprofundar determinados aspectos de uma pesquisa, uma forma de
aproveitar assuntos extraídos das próprias pesquisas, e, podem resultar numa produção escrita.
Os cadernos de diário constituem-se em uma ferramenta de escrita sobre a vida dos
estudantes. Nele são feitas perguntas, relatos de situações reais ou fictícias, que geram a
resposta de algum professor, que tem a obrigação de estimular essa forma de conversa escrita.
Além do citado, o professor Pablo também comentou sobre a apresentação de filmes, às vezes
nas sextas-feiras, como “uma maneira de levar um conteúdo de uma forma interessante para
eles.” (Prof. Pablo, entrevista, 2016, p. 3).
O professor entrevistado citou um momento fundamental para os trabalhos na
EJA, a realização de formações – centralizadas e descentralizadas. As formações
centralizadas acontecem num encontro em que todos os professores e coordenadores dos
núcleos de EJA3 se reúnem, para uma formação sobre determinados assuntos pertinentes aos
seus trabalhos na escola. As formações descentralizadas, mais conhecidas como reuniões de
planejamento, acontecem entre os professores de um mesmo núcleo de EJA. Essas reuniões
acontecem as segundas e quartas no período da tarde. “Nessa reunião fazemos nossa
programação da semana. Nem sempre dá para fazer da semana inteira, mas a gente procura
fazer até a quarta-feira, que é o dia da próxima reunião.” (Prof. Pablo, entrevista, 2016, p. 2).
Nesses encontros, os professores, junto do coordenador do núcleo, falam do andamento das
pesquisas, sobre os caminhos e prazos para a apresentação final, conversam sobre os
estudantes, sobre algum problema de indisciplina e qualquer outra situação em que caiba
um posicionamento de todos os professores. Nela, também são decididas outras atividades: as
oficinas, os filmes, além de passeios e outras atividades pedagógicas. Todos os professores
participam dessas formações, eles podem opinar e levantar questões.
Existem algumas situações bem específicas, na EJA de Florianópolis, que
merecem destaque e que colaboram para a percepção de uma cultura escolar peculiar. A fala
do professor Pablo é elucidativa:

Na EJA [...] nossa relação com os alunos é muito mais próxima do que a do ‘ensino
regular’. Então, eu consigo trocar essas ideias com eles muito mais das 18h às 19h e
durante o intervalo que a gente janta junto; também às vezes eu procuro ficar no dia da
Educação Física. Gosto de agarrar no futebol com eles. Isso traz uma proximidade muito
maior e eu tenho muito acesso para conversar com eles. (Prof. Pablo, entrevista, 2016, p.
4).

O professor Pablo aponta momentos específicos de trabalho encontrado na EJA. O principal


destaque é em relação à proximidade com os alunos, que não acontece apenas nos momentos de
sala de aula. É possível notar que o professor entrevistado dá ênfase para momentos e situações
específicas, que geram resultados positivos nessa relação mais próxima com os estudantes. O
horário das aulas na EJA é das 19 às 22 horas. O momento entre as 18 e 19 horas, relatado pelo
professor Pablo, é para organizar as ações daquela noite, para dividir tarefas entre os professores,

3No ano de 2016, Florianópolis contava com nove Núcleos de EJA. Informação obtida do Departamento
de Educação de Jovens e Adultos (DEJA).
para responder os cadernos diários e não, especificamente, para conversas com os estudantes. Mas,
essas conversas acontecem e são indicadas como sendo situações de destaque na relação com os
discentes.
Uma situação, presente na fala do professor Pablo, que parece ser inerente ao trabalho na
EJA, é o fato de os professores, no intervalo, poderem jantar junto com os estudantes, comendo as
mesmas comidas servidas na escola, nas mesmas mesas. Esses momentos de alimentação
proporcionam uma interação única, uma partilha de um momento simples, porém, muito
significativos na construção e manutenção de vínculos e laços afetivos.
O último destaque nessa fala do professor é com relação ao momento da “Educação Física”,
em que alunos e professores participam das atividades de forma conjunta, fazendo desse momento,
não apenas uma relação de um professor, no caso o de Ed. Física, mas de todos os professores do
Núcleo. Isso porque, os dias reservados para a prática desportiva, contam com a participação de
todos os docentes, que interagem com os estudantes participando diretamente e compartilhando
momentos de pura interação.
Essas interações específicas corroboram para a manutenção de uma situação relacional mais
próxima. Essa proximidade gera um elo de amizade e respeito entre professores e alunos, facilitando
o dia-a-dia nos Núcleos e a manutenção das rotinas com as pesquisas e demais atividades. Lógico,
como nos adverte Viñao Frago:

Cada estabelecimiento docente tiene, más o menos acentuada, su propria cultura, unas
características peculiares. No hay dos escuelas, colegios, institutos, universidades o
facultades exactamente iguales, aunque puedan estabelecerse similitudes entre ellas.
(2006, p. 80).

Isso não é diferente com relação aos núcleos da EJA. Algumas práticas divergem entre os
núcleos, e, muitas vezes, nem mesmo existem. As observações de campo apontam esse fato. Porém,
essa relação de maior proximidade é uma situação que pode ser encontrada em todos os núcleos.
Muitas vezes, as situações que ocasionam essa proximidade podem variar, mas ela sempre acaba
acontecendo, de um modo ou de outro, às vezes mais intensa, às vezes menos.
Seria possível citar outras situações que podem ser apontadas como específicas da EJA de
Florianópolis, no que concerne a sua cultura escolar, como por exemplo: a sala de aula da EJA, a
interação de vários professores em sala ao mesmo tempo, a quase inexistente situação de “dar aula”,
entre outras. Mas, para a construção deste texto, os apontamentos feitos até aqui, servem para
mostrar um pouco dessas especificidades encontradas na EJA e auxiliam na continuação da
compreensão das possibilidades de ação docente inerentes a esse contexto de ensino.
O que é um saber? “Na verdade, ninguém é capaz de produzir uma definição do saber que
satisfaça todo o mundo, pois ninguém sabe cientificamente, nem com toda a certeza o que é um
saber.” (TARDIF, 2010, p. 193). Tardif apresenta alguns direcionamentos para pensar em saberes
docentes: “Pode-se definir o saber docente como um saber plural, formado pelo amálgama, mais
ou menos coerente, de saberes disciplinares, curriculares e experienciais.” (TARDIF, 2010, p. 36).
É nesse amálgama que se situa os saberes dos professores da EJA. Mas, quais seriam os saberes
mais determinantes e específicos presentes no contexto da EJA de Florianópolis? Para poder afirmar
algo mais coerente, convém partir da fala do entrevistado, o professor Pablo:

Na escola do ‘ensino regular’, se um aluno não está querendo te deixar dares aula, tu vais
mandar ele para sala da diretora, vai ter mais gente. Agora, no nosso Núcleo, às vezes,
estamos só entre professores, não tem para onde mandar, tu não podes mandar um aluno
pra a rua se ele é menor de idade. Tu não podes mandar para a sala da coordenadora se
ela, às vezes, está na outra escola do Núcleo. Temos uma professora remanejada que
trabalha na secretaria que está com um atestado bem longo, e, às vezes, estamos só entre
professores nas salas e a gente tem de lidar com essas situações de alunos que não querem
entrar, alunos que entram mas querem bagunçar. (Prof. Pablo, entrevista, 2016, p. 6, grifo
meu).

Essa fala contêm informações sobre os desafios da ação docente na EJA de


Florianópolis, e as situações e condicionantes cotidianas e inerentes aos trabalhos
específicos desse contexto. Tais situações podem ser compreendidas a partir de uma maior
autonomia docente, que leva a situações em que a improvisação dos professores é
fundamental. Essa improvisação, aqui tratada, não deve ser confundida com um desleixo,
ou mesmo uma justificativa para pensar e perceber a EJA de Florianópolis num fazer
espontaneísta, algo que não prevê uma preparação didático-pedagógica. Ela faz parte de
todo um aparato de modos de ação docente e nunca é totalmente desvinculada de processos
pedagógicos, ou seja, de uma teoria de ensino-aprendizagem. (TARDIF, 2010).
Num primeiro momento, essa autonomia, que leva a situações de improviso, pode
parecer algo positivo, um modo de fazer independente, uma forma de tomar decisões sem
ter de passar por um crivo superior imediato. Porém, os professores não estão habituados
a lidar com todas as situações inerentes a esse ambiente de ensino. Em outros contextos,
existe toda uma gama de profissionais responsáveis pelas tarefas escolares. E existe um
corpo administrativo nas instituições escolares formado por muito mais profissionais do que
os encontrados nos núcleos da EJA que, de forma geral, contam com: um coordenador,
uma professora auxiliar e nove professores (um de primeiro segmento e oito de segundo
segmento).4 Na fala anterior do professor Pablo, é possível visualizar uma situação comum
n
4 O primeiro segmento corresponde aos anos iniciais do Ensino Fundamental (alfabetização e letramento) e
conta com uma professora pedagoga. O segundo segmento faz referência aos anos finais do Ensino
Fundamental e conta com professores de Artes (Plásticas/Cênicas), Ciências (Biologia), Ed. Física, Espanhol,
Geografia, História, Matemática e Português.
no dia-a-dia da EJA; somente os professores lidando com as mais variadas situações com os
estudantes.
A princípio, considerando o amálgama, mais ou menos coerente, de saberes
disciplinares, curriculares e experienciais, apresentado por Tardif (2010), como sendo os
formadores dos saberes docentes, é possível afirmar que existe um peso maior na constituição
dos saberes docentes da EJA de Florianópolis ligado à experiência e à empiria de ser professor
nesse contexto.
Para sustentar mais essa ideia, outra fala do professor Pablo pode contribuir: “Tem
uma autonomia muito grande, e são as diversas tarefas que um professor da EJA tem que
exercer. [...] Então, é professor, é inspetor, é limpeza, é serviço social, é tudo. O professor
da EJA é a escola inteira.” (Prof. Pablo, entrevista, 2016, p. 5). Esse relato corrobora em dois
sentidos para pensarmos a especificidade da ação docente na EJA: 1) mostra o lado
multifacetado da atuação docente e 2) apresenta a autonomia (improvisação) e a importância
do grupo de professores como sustentáculos dessa proposta de ensino.
As diversas formas de ação docente na EJA, de Florianópolis, resultam na necessidade
de novas maneiras de pensar, ser e estar professor. Os indícios dessas formas de atuação
docente levam a problematizar as estratégias docentes, o esforço cognitivo de lidar, muitas
vezes, com situações inéditas em suas carreiras.
Para Tardif (2010, p. 49, grifo do autor):
No exercício cotidiano de sua função, os condicionantes aparecem relacionados a
situações concretas que não são passíveis de definições acabadas e que exigem
improvisação e habilidade pessoal, bem como a capacidade de enfrentar situações, mais
ou menos transitórias e variáveis. Ora, lidar com condicionantes e situações é formador:
somente isso permite ao docente desenvolver os habitus (isto é, certas disposições
adquiridas na e pela prática real), que lhe permitirão justamente enfrentar os
condicionantes e imponderáveis da profissão.

Essa afirmação está relacionada a contextos de escolas muito diferentes da EJA de


Florianópolis, pois, as pesquisas de Tardif estão concentradas, principalmente, no Canadá e nos
Estados Unidos. Ou seja, essas situações e condicionantes do cotidiano da função docente, devem
ser diferentes das enfrentadas na EJA. A grande colaboração dessa citação, para esse trabalho, está
centrada na afirmação de que enfrentar situações e condicionantes no dia a dia de sala de aula é
formador. Se isso é uma verdade em outras situações de ensino, no modelo disciplinar da
organização do ensino, ou seja, fora do contexto da EJA, o que dizer dentro dessa proposta da PPE,
com todas as mudanças e especificidades inerentes a isso?
Para avançar e ampliar as discussões que relacionam a experiência dos professores da EJA
com saberes docentes, mais uma fala do professor Pablo é pertinente:

O que mais tem marcado, para mim, é a importância da relação entre professor e aluno.
Na EJA, se não tiveres um bom relacionamento com os alunos, eles não vão te deixar
dares aula. Então, tu teres uma relação próxima, e até de amizade mesmo com eles, isso é
o mais importante na EJA. Eles não vão deixar dares aula se eles não quiserem que tu dês
aula. (Prof. Pablo, entrevista, 2016, p. 5).

A cultura escolar da EJA, ou seja, todas as nuances das práticas, hábitos e rituais
proporcionados pela PPE, que proporciona um maior contato, uma maior proximidade com os
estudantes, deixa evidente essa situação/condicionante apontada pelo professor entrevistado, isso
quer dizer, a importância da relação professor/aluno. Isso, logicamente, não é nenhuma novidade.
Porém, o diferencial do encontrado na EJA, se refere justamente às possibilidades de ampliar e
intensificar essa relação, pois, o professor além de ser um parceiro nos trabalhos com as pesquisas,
é também um aliado em outras diversas tarefas; chegando ao ponto de o professor entrevistado falar
em amizade.
Mas, poderia isso atrapalhar os processos de ensino-aprendizagem? Ou ser uma forma de ir
contra certa formalidade que se tenta dar a profissão docente? Aparentemente, a resposta é não,
pois, para Tardif (2010, p.118, grifo meu):

Ao entrar em sala de aula, o professor penetra em um ambiente de trabalho constituído de


interações humanas. As interações com os alunos não representam, portanto, um aspecto
secundário ou periférico do trabalho dos professores: elas constituem o núcleo e, por essa
razão, determinam, ao nosso ver, a própria natureza dos procedimentos e, portanto, da
pedagogia.

Tardif (2010, p. 130) diz ainda que: “Uma boa parte do trabalho docente é de cunho afetivo
e emocional. Baseia-se em emoções, em afetos, na capacidade não somente de pensar nos alunos,
mas, igualmente, de perceber e de sentir suas emoções, seus temores, suas alegrias, seus próprios
bloqueios afetivos.”
Seria impossível alcançar esse nível de percepção, em que é possível sentir as emoções dos
estudantes, sem uma maior proximidade, numa relação tão formal e distante. Os resultados disso
podem ser vistos, não apenas nos estudantes, mas também nos professores, mais especificamente,
na sua prática docente. Esse fator acaba sendo primordial para pensarmos seus aprendizados,
enquanto docente na EJA e também para além da proposta.
Tardif (2010, p. 181) afirma que:

A prática é como um processo de aprendizagem através do qual os professores e


professoras retraduzem sua formação anterior e a adaptam à profissão, eliminando o que
lhes parece inutilmente abstrato ou sem relação com a realidade vivida e conservando o
que pode servir-lhes, de uma maneira ou de outra, para resolver os problemas da prática
educativa.

Isso que é conservado de suas formações anteriores pode ser levado para contextos além da
EJA. Talvez, possam marcar sua trajetória profissional e possibilitar o ensejo de novas práticas
docentes, suscitadas pelos saberes adquiridos na sua experiência na EJA de Florianópolis.
A prática profissional não é vista, assim, como simples campo de aplicação de teorias
elaboradas fora dela, por exemplo, nos centros de pesquisa ou nos laboratórios. Ela torna-
se um espaço original e relativamente autônomo de aprendizagem e de formação para os
futuros práticos, bem como um espaço de produção de saberes e de práticas inovadoras
pelos professores experientes. (TARDIF, 2010, p. 286).

Essa afirmação pensada no contexto da EJA vai além do que o imaginado por Tardif. A
empiria docente encontrada na EJA, de Florianópolis, possibilita uma aprendizagem, talvez rara,
em nossos sistemas educativos. Porém, transpor a mera experiência e realmente inculcar um saber
ligado à prática, depende muito da maneira que o próprio docente irá encarar essa prática. É possível
dizer que a possibilidade de aprendizagem e de formação está caracterizada, porém, o modo como
isso será assimilado é mais difícil de ser mensurado.

Neste trabalho, a Pesquisa como Princípio Educativo (PPE) foi apenas uma menção, sem
maiores considerações. A cultura escolar da EJA, de Florianópolis, foi apenas “pincelada”, em
aspectos mais evidentes. E os saberes docentes foram trabalhados apenas sobre os vieses da relação
entre aluno e professor e da aprendizagem pela prática, sem levantar questões sobre currículo da
EJA, sobre a formação anterior dos professores, e nem sobre as demais formas de materialização
de saberes docentes ligados diretamente à ação dos profissionais professores.
Porém, mesmo com essas limitações, as falas do professor Pablo e a bibliografia consultada
auxiliaram em algumas conclusões que parecem pertinentes. Uma delas seria a especificidade da
cultura escolar vivenciada pelos sujeitos da EJA. Parece evidente que a PPE da EJA, de
Florianópolis, apresenta um conjunto de normas, condutas, práticas e espaços peculiares.
É possível afirmar também, que essa cultura escolar específica possibilita diferentes formas
de ação docente em sala de aula, desenvolvendo e mobilizando saberes e conhecimentos práticos e
teóricos também específicos. Essa ação, a partir dessa prática com pesquisas, da autonomia e
improvisação, da relação mais próxima com os estudantes e da relação com todo o grupo de
profissionais envolvidos nos núcleos, possibilita um tipo de formação mediada pela lida cotidiana
com situações e condicionantes impostas em seu ambiente de trabalho. Essa situação, entendida
como de formação, configura e mobiliza saberes específicos ligados a essa prática peculiar, nesse
ambiente de ensino distinto.

FARIA FILHO, Luciano Mendes de; VIDAL, D.G.; PAULILO, L. P. A cultura escolar como
categoria de análise e como campo de investigação na história da educação brasileira. Revista
Educação e Pesquisa. São Paulo, v. 30, n. 1, p. 139-159, jan/abr 2004.
JULIA, Dominique. A cultura escolar como objeto histórico. In: Revista Brasileira de História da
Educação, n. 1, p. 09-43, jan/jun 2001.

PORTELLI, Alessandro. A filosofia e os fatos: narração, interpretação e significados nas


memórias a nas fontes orais. Tempo. Rio de Janeiro, v.1, n. 2, p. 59-72, 1996.

_____. O que faz a história oral diferente. In: Projeto História, São Paulo, n.14, p. 25-39,
fev/1997a.

_____. Tentando aprender um pouquinho: algumas reflexões sobre a ética na História Oral. In:
Projeto História, São Paulo, n.15. p. 13-49, abr./1997b.

TARDIF, Maurice. Saberes docentes e formação profissional. Petrópolis: Vozes, 2010.

_____. Saberes profissionais dos professores e conhecimentos universitários: elementos para uma
epistemologia da prática profissional dos professores e suas consequências em relação à formação
para o magistério. Revista Brasileira de Educação, n. 13. p. 5-24, 2000.

_____. A profissionalização do ensino passados trinta anos: dois passos para frente, três para trás.
Educação & Sociedade. Campinas, v. 34, n. 123, p. 551-571, abr.-jun. 2013.

VIÑAO FRAGO, Antonio. Sistemas educativos, culturas escolares y reformas. Madrid: Morata,
2006.

WORCMAN, Karen; PEREIRA, Jesus V. (Coord.) História falada: memória, rede e mudança
social. São Paulo: SESC SP/ Museu da Pessoa; Imprensa Oficial do Estado de SP, 2006.

Professor Pablo. Entrevista concedida a Cláudio R. A. Scherer Jr. em 2016.


Maria Angélica Zubaran
Joice Mari Ferreira da Cruz

O presente artigo analisa os discursos e representações mais recorrentes sobre a diferença


racial e a branquitude em entrevistas narrativas de professoras da Educação Básica em Escolas
Municipais de Sapucaia do Sul/RS e os possíveis efeitos dessas narrativas na constituição de
subjetividades e identidades na escola. O objetivo central deste estudo é visibilizar a construção
discursiva da supremacia racial branca e dos privilégios brancos na escola e desnaturalizar
identidades raciais essencializadas, referenciadas na genética, na biologia e na natureza.
Este estudo parte da perspectiva teórica dos Estudos Culturais em Educação, que enfatizam
o caráter histórico e construído das identidades raciais e que entendem que as identidades são
construídas na cultura, discursivamente, através de representações culturais, e que resultam de um
processo histórico e relacional de construção da diferença. Conforme destacam Wortamann, Costa,
Ripoll e Bonin, o campo dos Estudos Culturais oferece múltiplas possibilidades de abordagem
temática, entre elas o estudo de questões raciais e narrativas orais, relacionadas à constituição e à
transformação de subjetividades e identidades, além de problematizar “representações
naturalizadas, estereótipos e preconceitos implicados no posicionamento desigual dos sujeitos”
(2015, p. 12). Nessa direção, são discutidos conceitos e discussões propostos pelos seguintes
autores: Stuart Hall, Sueli Carneiro, Nilma Nilo Gomes, Lia Schucman e Lourenço Cardoso.
A relevância desta pesquisa está relacionada à urgência da análise do que significa “ser
branco” em nossa sociedade, marcada pela desigualdade de oportunidades entre brancos e não
brancos, contribuindo, assim, para desafiar o racismo na sociedade brasileira e, particularmente, na
educação. A importância desta análise vincula-se também ao contexto da emergência de políticas
de ações afirmativas, em especial, das leis 10.639 e 11.645, que incentivam o estudo da história e
da cultura dos povos indígenas e afro-brasileiros, e que valorizam as diferenças raciais e culturais
na educação.
É a partir da minha posição como mulher, branca, pesquisadora e professora atuante nos
anos iniciais do município de Sapucaia do Sul, que me sinto desacomodada com diversas situações
que se estabelecem no ambiente escolar, advindas das pluralidades de classe, raça, gênero e
orientação sexual, além das necessidades educativas especiais. No caso particular deste estudo,

* Pós-Doutora em História no Birkbeck College, Londres. Professora Universitária da Pós-Graduação


Stricto Sensue e da graduação em História ambos da Universidade Luterana do Brasil – campus Canoas/RS,
Brasil.
** Mestranda do Programa de Pós-Graduação da Universidade Luterana do Brasil (PPGEDU/ULBRA), Canoas/
RS, Brasil. Bolsista Capes/Prosup.
questiona-se a constituição de identidades raciais e o lugar hegemônico da branquitude, a partir do
qual se produz e se exerce o racismo, pelo entendimento de que tal discussão é perpassada por
conflitos e disputas de representação e de significado, que, construídas ao longo do tempo, foram
posicionando de forma superior alguns indivíduos em relação a outros e estabelecendo múltiplas
formas de violência e desigualdades nas relações sociais.
Lourenço Cardoso (2008) destaca a importância de o pesquisador branco refletir sobre o
conflito entre sua posição racial e a luta antirracista, a fim de empreender uma autocrítica sobre
como sua identidade atua na sua produção intelectual, reconhecendo, dessa forma, que o
conhecimento produzido pode ser também autoconhecimento. Também Lia Schucman (2012, p.
27) salienta que determinados conteúdos podem ser ditos ou omitidos em uma entrevista individual,
dependendo da familiaridade entre entrevistador e entrevistado. A pesquisadora argumenta que a
pertença racial do entrevistado pode interferir implicitamente na abordagem de determinados temas,
podendo encontrar maior acolhimento em entrevistadores de mesma pertença. Além disso,
Schucman (2012, p. 52) destaca que a entrevista entre pessoas conhecidas, que possuem capitais
culturais e simbólicos semelhantes, pode ser um facilitador na relação dialógica do processo de
entrevista. Nessa perspectiva, é possível que a relação profissional entre pesquisadora e
entrevistadas funcione de forma positiva na interpretação das narrativas orais.
Em termos metodológicos, os dados empíricos que serão analisados resultam de pesquisa
qualitativa organizada através de entrevistas individuais e semiabertas com cinco professoras de
escolas da Rede Pública Municipal de Sapucaia do Sul, situada na região metropolitana de Porto
Alegre/RS. Busco, assim, construir reflexões acerca das relações raciais, bem como desestabilizar
representações naturalizadas, além de atentar sobre as práticas cotidianas no ambiente escolar.

Para um melhor entendimento das entrevistas narrativas, estabelece-se uma interlocução


com pesquisadoras que têm discutido pesquisas qualitativas e entrevistas. Entre elas, destacam-se:
Rosália Duarte (2004), Rosa Hessel Silveira (2007) e Sandra dos Santos Andrade (2012).
Segundo Rosália Duarte (2004, p. 214), a utilização de entrevistas depende do tipo de
pesquisa que se quer realizar, servindo, principalmente, para as investigações que se propõem a
analisar “práticas, crenças, valores e sistemas classificatórios de universos sociais específicos”,
como é o caso desta investigação acerca das marcas da branquitude junto aos professores da
Educação Básica. Conforme Duarte (2004, p. 215-216), as entrevistas narrativas constituem-se no
principal método capaz de proporcionar um conhecimento profundo sobre os sujeitos entrevistados
e a forma como cada um compreende e dá significado à realidade à qual pertence. Dessa forma,
elas fornecem informações ao pesquisador que lhe possibilitam “descrever e compreender a lógica
que preside as relações” estabelecidas naquele grupo. Para Duarte, ainda que as entrevistas
demandem menos tempo na fase preparatória, se comparadas a outros métodos, podem ser muito
eficazes se aplicadas de forma rigorosa, pois oferecem material empírico importante como fonte de
investigação. A entrevista narrativa, como sugere Duarte (2004, p. 220), é sempre uma troca, na
qual entrevistador e entrevistado têm a oportunidade de refletir sobre si mesmos, ressignificar
percursos biográficos e pensar sobre a cultura. Para Duarte:

Quando realizamos uma entrevista, atuamos como mediadores para o sujeito


apreender sua própria situação de outro ângulo, conduzimos o outro a se voltar
sobre si próprio; incitamo-lo a procurar relações e organizá-las. Fornecendo-nos
matéria-prima para nossas pesquisas, nossos informantes estão também refletindo
sobre suas próprias vidas e dando um novo sentido a elas. Avaliando seu meio
social, ele estará se autoavaliando, se autoafirmando perante sua comunidade e
perante a sociedade, legitimando-se como interlocutor e refletindo sobre questões
em torno das quais talvez não se detivesse em outras circunstâncias. (DUARTE,
2004, p. 220).

A partir dos estudos de Rosa Hessel Silveira (2007) e de Sandra dos Santos Andrade (2012),
busca-se melhor compreender as entrevistas narrativas na perspectiva pós-estruturalista. De acordo
com Silveira (2007), as entrevistas na pesquisa em educação, desde a virada linguística nas Ciências
Humanas e do entendimento da linguagem como constituidora de verdades, deixaram de ser vista
como “espelho” translúcido de ações culturais anteriores. Para a pesquisadora, a entrevista deve ser
concebida:
Como um evento discursivo complexo, forjado não só pela dupla
entrevistador/entrevistado, mas também pelas imagens, representações,
expectativas que circulam – de parte a parte – no momento e situação de realização
das mesmas e, posteriormente, de sua escuta e análise. (SILVEIRA, 2007, p. 120).

Silveira questiona as formas tradicionais das entrevistas como “partejadoras” de dados


confiáveis e demonstra, através da própria experiência de pesquisa, as particularidades envolvidas
em um entendimento mais contemporâneo da mesma. Para a autora, a entrevista deve considerar o
contexto amplo de interação entre entrevistador e entrevistado, as subjetividades, os jogos de
representação, além de negociações e saídas estratégicas que podem ocorrer nesse ato. Silveira
(2007) chama a atenção para as estratégias que ocorrem no ato discursivo, pontuando que perguntas
e respostas não são neutras e sim perpassadas pela relação dialógica entre entrevistador e
entrevistado, que coproduzem a entrevista.
Já Andrade (2012) aborda a entrevista narrativa a partir do material empírico de sua tese de
doutorado, em que empreendeu uma análise dos processos de evasão e retomada de jovens que
migram do ensino regular para a educação de jovens e adultos. A autora argumenta em sua pesquisa
de cunho etnográfico, que os jovens, através da entrevista narrativa, ressignificavam o presente e as
experiências vividas, reconstruindo suas trajetórias ao narrarem a si próprios. Portanto, a entrevista
narrativa para Andrade (2012), constitui-se como um modo particular de construir novos sentidos,
sem a pretensão de revelar verdades acerca dos fatos narrados, mas no sentido de produzir uma
interpretação, ainda que provisória, das circunstâncias em que se encontram os sujeitos. Assim
como Silveira (2007), Andrade (2012) enfatiza que a entrevista narrativa permite “a instabilidade
de não ter certezas” e a provisoriedade dos dados, além da impossibilidade de neutralidade e de
encontrar verdades. A autora afirma que considerou as várias vozes que constituem os sujeitos da
pesquisa, constituídos histórica e socialmente, procurando apresentar resultados provisórios e
contingentes, em que as interpretações são sempre parciais. Silveira (2007) e Andrade (2012)
referenciam seus entendimentos das entrevistas narrativas nas análises da conversação, da
sociolinguística interacional, da Antropologia e dos Estudos Culturais, tomando as entrevistas
narrativas como formas de reflexão sobre as interações e situações de trocas em que ambas as partes,
entrevistador e entrevistado, exercem papéis de destaque na produção do material empírico, onde
ambos abandonam os pressupostos iluministas da verdade, objetividade e neutralidade, propondo
novos olhares e múltiplas dimensões de análises e entendimentos acerca das implicações envolvidas
nesse ato.
Destaca-se ainda, que este projeto de pesquisa foi cadastrado na Plataforma Brasil e
submetido à apreciação pelo Comitê de Ética em Pesquisa em Seres Humanos da ULBRA, obtendo
a aprovação no mês de dezembro de 2016, sob o número de registro do CAAE
61512716.1.0000.5349.

Para facilitar a compreensão das análises e respeitando o que foi previamente combinado
com cada uma das entrevistadas, utilizei pseudônimos para nomeá-las. As entrevistas serão
apresentadas e analisadas por meio de excertos das falas das professoras, que serão dispostas neste
artigo através de caixas de texto. Na análise que segue, destaco alguns discursos e representações
mais recorrentes que atravessaram essas narrativas e que marcaram as posições que pesquisadora e
entrevistadas foram tecendo ao longo das entrevistas.
Antes de iniciar cada entrevista, exibi dois curtas-metragens. O primeiro, intitulado “Cores
e Botas”, com duração de quinze minutos e dirigido por Juliana Vicente. Foi produzido em 2010 e
conta a história de Joana, uma menina negra de uma família de classe média, que sonha em ser
paquita e que participa de um concurso na escola. O filme discute os padrões estéticos estabelecidos
pela mídia e sua influência na formação das identidades infanto-juvenis.
O segundo curta-metragem, intitula-se “Pode me chamar de Nadí”, com duração de vinte
minutos e escrito e dirigido por Déo Cardoso, em 2013, na UNILAB. Apresenta a história de uma
menina moradora da periferia que esconde seus cabelos crespos com um boné. Alguns meninos da
vizinhança pegam seu boné e, na busca para recuperá-lo, a menina conhece Laila, uma modelo
negra, com a qual descobre outros significados sobre seu cabelo e sobre sua própria beleza. Ambas
as narrativas fílmicas foram utilizadas como disparadores do tema da branquitude e de seus efeitos
na construção de subjetividades e identidades.
Conforme argumenta Duarte (2000), em seu estudo “A pedagogia da imagem fílmica:
filmes como objeto de pesquisa em educação”, o discurso fílmico surge de configurações
significantes construídas em linguagem cinematográfica, pela articulação de muitos suportes
sensoriais. A autora argumenta que as imagens fílmicas são responsáveis por muitas de nossas
formas de ver e interagir com a realidade, pois se constituem em importantes fontes de produção de
significados.
Na realização das entrevistas, agrupei as perguntas em eixos temáticos. O primeiro eixo
temático, sobre os curtas-metragens, tratou da diferença racial e da branquitude.
Na primeira entrevista, realizada com Laura, quando perguntada sobre o potencial
pedagógico dos curtas-metragens, ela respondeu tecendo comparações entre os dois curtas:

[...] os dois filmes têm famílias com rendas diferentes né. A primeira tu vê que ela é de
uma periferia, que ela é mais... pobre ah... e no segundo tu vê uma família de classe média
alta, com todos os recursos financeiros e não é isso que tá impedindo de sofrer o
preconceito, não é a questão da renda. Porque são rendas diferentes né, tem um outro
padrão, tem alguma outra coisa que tá impedindo o acesso delas. No caso, o segundo
filme é bem mais claro. O que tá impedindo o acesso da menina ao objetivo dela, que é
ser paquita, não é o dinheiro. O dinheiro dos pais não tá influenciando nisso ou não teria
como influenciar naquele momento. Acho que dá pra ter um debate bem legal, sobre
inclusive meritocracia né? (Grifo meu).

A comparação elaborada por Laura remete a uma construção discursiva que, durante muito
tempo, marcou as discussões sobre a questão racial no Brasil e que argumenta que o problema da
desigualdade racial no país resulta das desigualdades econômicas e sociais da população. A partir
dessa perspectiva, o tema racial é subsumido à categoria de classes sociais, tida como mais
importante do que a categoria de raça na explicação das desigualdades sociais na sociedade
brasileira. Contudo, conforme destaca Lilia Moritz Schwarcz (2012, p. 76), estudos mais recentes
têm demonstrado que somente a análise econômica não explica as desigualdades sociais em nossa
sociedade, que são também raciais. Nesta direção, o sociólogo Antônio Sérgio Guimarães (2002, p.
51) considera que as desigualdades não são apenas de classe e que, no Brasil, a cor pressupõe
desigualdades e discriminações efetivamente raciais.
Observa-se ainda, no excerto que segue, que Laura refere-se também ao desejo de discutir
em sala de aula as representações da meritocracia, quando diz que: “[...] é uma coisa que na nossa
sociedade se discute muito né e se acredita... tem gente que acredita muito na meritocracia cega
sem pensar em outros valores que a gente tem e que influenciam em todas essas ascensões sociais.”
Acredito que tais “valores”, que Laura sugere que atravessam a vida do brasileiro e que
contribuem para ascensão social de sujeitos, podem ser encontrados no que Schucman e Cardoso
(2014) definem como privilégios raciais simbólicos e materiais, ou seja, características que
posicionam alguns indivíduos em lugar elevado na hierarquia racial, com o poder de classificação
sobre outros, e que resulta em exclusões e discriminações. Essas classificações/exclusões, conforme
aponta Cardoso (2010), constituem o privilégio racial branco. O autor exemplifica as diferentes
formas que, sutilmente, constituem o privilégio racial, citando o texto de Peggy McIntosh, uma
norte-americana, feminista e ativista contra o racismo, que listou alguns dos privilégios de pessoas
brancas:

Eu posso estar segura de que meus filhos vão receber matérias curriculares que
testemunhem a existência de sua raça.
Se eu usar cheques, credit cards ou dinheiro, eu posso contar com a cor da minha pele
para não operar contra a aparência e confiança financeira.
Eu não preciso educar os meus filhos para estarem cientes do racismo sistêmico para a sua
própria proteção física diária.
Eu nunca sou pedida para falar por todas as pessoas de meu grupo racial.
Eu tenho bastante certeza de que se eu peço para falar com a ‘pessoa responsável’, eu vou
encontrar uma pessoa de minha raça.
Eu posso voltar para casa da maioria das reuniões das organizações às quais pertenço,
sentir-me mais ou menos conectada, em vez de isolada, fora de lugar, não ouvida, mantido
à distância ou ser temida.
Eu posso me preocupar com racismo sem ser vista como autointeressada ou interesseira.
Eu posso escolher lugares públicos, sem ter medo de que pessoas de minha raça não
possam entrar ou vão ser maltratadas nos lugares que escolhi.
Eu posso ter certeza de que se precisar de assistência jurídica ou médica, minha raça não
irá agir contra mim. (MCINTOSH, 1989, Apud CARDOSO, 2010, p. 56).

Quando questiono se a aparência, a cor da pele e do cabelo podem ser fatores de exclusão
de pessoas da sociedade em geral, e na escola em particular, é consenso entre as entrevistadas que
as características físicas são fatores que levam à exclusão na sociedade. Entretanto, três das cinco
entrevistadas constroem argumentos ambíguos, que demonstram como a ideia de democracia racial
e da meritocracia ainda são marcadores potentes que atravessam a construção de subjetividades e
identidades no Brasil. Ao mesmo tempo, elas afirmam que brancos têm privilégios, e relatam
situações que demonstram a crença na igualdade de oportunidades e na ascensão social mediante o
esforço individual. Amanda, por exemplo, relata a situação de seu sobrinho, que, segundo ela, sofre
preconceito por ser loiro de olhos azuis:

Porque eles dizem, pra ti é tudo mais fácil. Só que ele estuda muito, ele é dedicado, só que
ele sofre preconceito. Eles dizem: “tu é lindo, tu é loiro; pra ti é tudo mais fácil.” Só que
não é, nesse caso não. Pode ser que sim, que abra mais portas pra ele sim, só que ele
também... Se ele é esforçado, só que tem isso né, as pessoas acham isso porque é isso.
No final de seu relato, Amanda afirma que “as pessoas acham isso, porque é isso”,
demonstrando que apesar de defender que o esforço individual pode garantir o sucesso, compreende
que a condição de branco facilita a ascensão social, desmistificando a ideia de meritocracia
apresentada no início de seu relato.
No caso da narrativa de Sara, ela dá destaque à ideia de democracia racial, apontando a
inexistência do preconceito na sua escola, mas reconhecendo que existem preconceitos em outras
escolas ao seu redor:
[...] aqui no nosso contexto não vejo isso, não percebo isso né... Não sei se é porque a
escola... o trabalho que é feito aqui né... não se consegue observar isso. Existe assim uma...
igualdade. Os professores no geral, assim... tratam os alunos nesse sentido assim... no
mesmo patamar né... em relação a cor, ou até a própria... Economicamente né, falando...eu
acho que isso não existe, aqui, pelo menos eu não percebo. Outras escolas que eu trabalhei,
que eu passei, eu já percebi isso, mas aqui não.

Observa-se nos relatos de Sara e Amanda o reconhecimento do preconceito, mas de um


preconceito que está longe, e que identificamos como “não disseminado por nós”, estratégia que
permite que nos isentemos de qualquer responsabilidade pelas desigualdades raciais. Sua fala
encontra amparo nos argumentos de Cardoso (2010, p. 51), que se apropria de Florestan Fernandes
para salientar que “o brasileiro possui preconceito de ter preconceito”, destacando a dificuldade que
temos em assumir o preconceito racial.
Por outro lado, Lia Schucman (2012, p. 75-76) argumenta que a ambiguidade é uma das
características da branquitude e pode ser uma das formas de manutenção dos privilégios brancos,
contribuindo para a continuidade do racismo e para a negação e invisibilidade dos privilégios
brancos. Também Nilma Nilo Gomes aponta a ambiguidade como sendo “uma das formas ardilosas
do racismo brasileiro se manter e se expressar” (2007, p. 100).
Na perspectiva dos Estudos Culturais, nossas concepções são construídas de forma
compartilhada na cultura por meio de sistemas de representação e significação que vão constituindo
nossos modos de ser e agir nos mais variados espaços sociais em que estamos inseridos, por
exemplo, no espaço escolar. Conforme pontua Nilma Nilo Gomes, “é na cultura que aprendemos a
classificar, hierarquizar e atribuir valor aos corpos, bonito, feio, lábios grossos, lábios finos, cabelos
lisos, cabelos crespos” (GOMES, 2007, p. 20).
Também perguntei às entrevistadas como se autodefiniam em termos de cor e como
pensavam que os outros as definiam. Três das cinco entrevistadas se definiram como brancas e
afirmaram que acreditavam que os outros também as enxergavam dessa maneira. A entrevistada
Sara se autodefiniu como parda, mas acredita que os outros a definam como branca, enquanto Elis
disse considerar-se branca, mas ressaltou que aos olhos dos outros pode ser considerada “morena
clara”. Pode-se observar, conforme salientam as Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação
das Relações Étnico-Raciais e para o Ensino de História e Cultura Afro-Brasileira e Africana (2004,
p. 15) que, no Brasil, a construção da identidade racial é um processo complexo. Pelo menos duas
construções discursivas interferem na forma como, em geral, as pessoas desenvolvem seus
pertencimentos raciais no Brasil: o discurso da mestiçagem e o da democracia racial. Sobre o
discurso da mestiçagem, destaca-se que, durante muito tempo, afirmou-se na escola e em diversos
artefatos culturais que os brasileiros são o resultado da mistura de três raças: a indígena, a branca e
a negra, que teria produzido, como síntese cultural única, uma identidade mestiça e homogênea em
que todos desfrutariam das mesmas condições de igualdade. E sobre o discurso da democracia
racial?
No excerto que segue, observa-se que Sara atribui a sua cor parda à mistura racial e que
compartilha de significados hegemônicos essencializados sobre a branquitude, quando refere que
não é “branca pura”, como se existisse uma cor branca essencial livre de misturas. Essa narrativa
contribui para reforçar noções do “racismo científico”, além de comprometer a construção da
autoestima das pessoas negras.

Joice: Agora a gente passa então para as questões relacionadas à branquitude e padrão de
beleza e de comportamento. Então, eu já te perguntei, vou repetir. Como tu te autodefine
em termos de cor e como tu acha que os outros te definem?
Sara: Os outros acham que eu sou branca.
Joice: E tu te definiu como parda.
Sara: Isso. Até porque na minha família tem pessoas de cor negra também. Então existe já
uma miscigenação racial aí né. Então, não posso ser identificada como branca, branca pura
né... então.

Edith Piza e Fúlvia Rosemberg (1999) destacaram as dificuldades envolvidas nos processos
de autoatribuição de cor no país, ressaltando que no Brasil os aspectos fenotípicos são
predominantes no processo de construção do pertencimento racial. As pesquisadoras (p. 127)
salientam que em países como o nosso, de população multirracial, a variação do pertencimento
racial no grupo de pardos é ampla e frequentemente marcada pelos significados sociais relacionados
ao discurso da mestiçagem. Portanto, quando Sara refere que “existe já uma miscigenação racial aí,
né” e que entre seus familiares há pessoas negras, o que dificultaria sua identificação como branca,
demostra tanto a potencialidade dos discursos da mestiçagem como da branquitude na construção
de seu pertencimento racial.
Já a professora Elis, no excerto que segue, diz considerar-se branca, porém acha que a
maioria das pessoas pode defini-la como morena clara:

Joice: Como tu te autodefine em termos de cor e como tu acha que os outros te definem?
Elis: Eu me defino como branca...mas acho que a maioria das pessoas vão dizer que sou
morena clara, que é ... As pessoas têm uma tabelinha de cor parece na cabeça delas, então...
você é morena clara.
Quando a professora Elis afirma que “as pessoas têm uma tabelinha de cor na cabeça delas”,
observa-se novamente a presença do discurso da mestiçagem, amplamente disseminado na cultura
brasileira, de que somos um povo miscigenado e de que a cor varia de acordo com múltiplas
variáveis, entre elas, classe social, condição econômica, cargos de prestígio, condição intelectual,
que podem aproximar ou afastar um indivíduo da cor branca ou preta.
Para Sueli Carneiro (2001, p. 64), essas múltiplas cores com as quais os brasileiros se
autodeclaram estão também vinculadas às políticas de branqueamento e à negação da identidade
negra entre aqueles indivíduos miscigenados que não querem se autodeclarar/assumir como negros.
Conforme Carneiro, a miscigenação mostra-se eficaz no embranquecimento da população
brasileira, pois aproxima indivíduos não brancos e, além disso, parece explicar as múltiplas
expressões utilizadas, como “moreno-escuro, moreno-claro, moreno-jambo, marrom-bombom,
mulato, mestiço, caboclo, mameluco, cafuzo, ou seja, confusos, de tal maneira que acabam todos
agregados na categoria oficial do IBGE: pardo!” (CARNEIRO, 2016, p. 67).
Em seguida, ao serem questionadas a respeito do que acham sobre ser branca no Brasil e
sobre as imagens que lhes vêm à cabeça quando pensam acerca do significado dessa classificação,
além das situações cotidianas nas quais ser branca pode ajudar, todas as entrevistadas associaram a
ideia de branquitude a situações positivas e de prestígio social. As expressões que aparecem em
suas narrativas são: vantagem, alívio, melhores oportunidades, poder, limpeza, prioridade, elitizado
e aceitação.
Em seu relato, Laura argumenta que as representações mais recorrentes na mídia e na
sociedade brasileira em geral são brancas. A professora reconhece seus privilégios e vantagens no
cotidiano como pessoa branca, descrevendo situações em que os privilégios atuam em seu favor no
mercado, nas lojas e na sua defesa contra os abusos policiais, conforme se observa a seguir:

Joice: O que tu pensas sobre ser branca? Que imagens vêm na tua cabeça quando tu pensas
o que significa ser branco no Brasil? Tu achas que os brancos têm privilégios na sociedade
brasileira? Em que situações do dia-a-dia ser branca ajuda?
Laura: Muito assim... quando eu penso em ser branco no Brasil, eu penso em ser ...olha
só, maioria. Eu sei que não é, mas eu penso que essa ideia é mais de maioria pelo que a
gente mais vê né, relacionado a tudo, à mídia, aos locais que a gente frequenta, a locais
que eu frequento hoje em dia né. Não na minha infância, porque na minha infância eu fui
criada em vila, em periferia. Então, não era a maioria, mas hoje em dia, sim, porque moro
mais pro centro e... Mas sim o privilégio, ele é constante. Acho que em tudo e eu dou isso
de exemplo pros alunos quando eu to falando sobre cor e questão de racismo. Eu brinco,
mas falando sério. Eu digo assim: “quantas vezes vocês acham que eu fui perseguida
dentro das lojas hein?” [...] (grifo meu).

A narrativa de Laura remete aos questionamentos elaborados por Liv Sovik (2009, p. 36-
37), quando argumenta sobre a hegemonia branca nos meios de comunicação e refere o fato de que
os mais brancos se encontram representados de forma desproporcional na sociedade brasileira,
produzindo um modo de ser que passa a ser lido e tido como “ideal”, sem que isso cause qualquer
constrangimento.
Para explorar possíveis significados e sentidos atribuídos a comportamentos associados ao
branco na sociedade brasileira, as entrevistadas foram questionadas se existiam comportamentos
típicos de brancos. Três das cinco professoras disseram não perceber diferenças no comportamento
dos indivíduos de acordo com a pertença racial. Laura respondeu que achava difícil falar sobre o
comportamento dos brancos, mas que poderia falar sobre atitudes de pessoas negras.

Laura: (silêncio) Bah Joice, não sei se eu consigo responder essa questão, não me vem
nada à cabeça... Se tu... olha só a loucura, se tu perguntasse ao contrário, eu diria que sim,
sem titubear.
Joice: Qual seria o contrário?
Laura: Se tu perguntasse se tem um estilo das pessoas negras? Eu diria que sim e ... olha
só...
Joice: É mais fácil, talvez?
Laura: É, é mais fácil, mas também não sei se é porque a gente não enxerga né?

Schucman, apoiada em Ruth Frankenberg e Edith Piza, argumenta que quando a hegemonia
branca está muito enraizada, os indivíduos brancos não percebem sua identidade racial e tampouco
se enxergam como grupo racializado. Essa situação, por muito tempo, foi explicada pelo termo
invisibilidade, que, posteriormente, foi problematizado por Piza, quando demonstrou que não se
tratava apenas da invisibilidade da cor e dos privilégios dos brancos, mas da intensa marcação das
diferenças raciais naqueles não brancos.
É interessante que Laura, após refletir sobre a questão proposta, declare que: “talvez isso
seja só uma forma da gente como cultura hegemônica olhar o outro como o diferente”, como
“exótico”. Neste sentido, Schucman sublinha que se trata de marcar o outro como diferente,
enquanto a identidade branca permanece como se fosse neutra (SCHUCMAN, 2012, p. 24).
Já a entrevistada Elis respondeu que o principal comportamento dos sujeitos brancos era o
racismo:
Joice: Sim... você acha que existem alguns comportamentos que são próprios de pessoas
brancas?
Elis: Sim, o racismo (risos) ...
Joice: Além desse?
Elis: Próprios de pessoas brancas? ... eu acho que as pessoas brancas, às vezes, ficam um
pouco mais alienadas, assim. Nós que trabalhamos dentro da periferia... nós temos uma
tendência a ser menos alienados, porque a gente vê a pobreza mais de perto. A gente não
sabe o que que é, porque a gente come bem, a gente dorme numa cama, aquela coisa toda,
mas a gente não tem assim... uma alienação. Quando eu falo assim sobre como é pros
meus amigos que não são professores, eles ficam muito espantados com tudo que eu falo.
Então, eu acho que eles vivem assim numa redoma protetora.
O relato da professora Elis parece aproximar-se do que Lourenço Cardoso (2014, p. 2)
chama de branquitude crítica, uma posição que reconhece e desaprova publicamente o racismo na
sociedade brasileira. Além disso, Elis refere que muitos brancos vivem em uma redoma, pois
desconhecem a pobreza. Esses argumentos encontram amparo nas contribuições de Sueli Carneiro
(2011, p. 57-58), quando afirma que em nosso país a pobreza tem cor e que, definitivamente, não é
branca. Para Carneiro, é preciso uma “estratégia global” a fim de modificar positivamente as
condições de vida das populações não brancas, que, além do preconceito e do racismo pautado em
características físicas, vivenciam também as exclusões pautadas pela intersecção entre a raça e a
pobreza, que, para Carneiro, permanecem interligadas.

As narrativas das professoras e nossas próprias posições provocam reflexões acerca dos
mecanismos cotidianos de produção e disseminação de desigualdades no trato das diferenças no
ambiente escolar. As análises realizadas demonstram que nossas narrativas são atravessadas por
discursos e representações que nos constituem enquanto sujeitos e que acionamos cotidianamente
na Educação Básica, contribuindo na constituição das subjetividades e identidades de nossos alunos
(as). Entre esses discursos, os mais recorrentes foram: o discurso do racismo científico, da
democracia racial, da mestiçagem e da branquitude.
Essas análises contribuíram, também, para demonstrar a importância de pensarmos em
intervenções pedagógicas que trabalhem com as diferenças de forma positiva e que contribuam para
desnaturalizar discursos e representações raciais estereotipadas e negativas, que, de tão arraigados
na cultura, são tomados como verdades, e que contribuem para discriminações, exclusões e para a
baixa autoestima de alunos.
Contudo, como afirma Stuart Hall (2016), os sentidos e significados que são compartilhados
na cultura são produzidos por sistemas de representação atrelados às relações de poder, que estão
em permanente disputa e deslocamento e, portanto, são móveis e instáveis. Nesse sentido, parece
possível contestar e desconstruir representações racializadas e estigmatizadas, que continuam
marcando sujeitos considerados fora da norma, de forma a revertê-las e ressignificá-las, fazendo
circular formas alternativas e positivas de representação das diferenças sociais, raciais, de gênero e
sexualidade na escola.
As narrativas aqui analisadas foram produzidas a partir de entrevistas com professoras que,
majoritariamente, se auto definiram como brancas, portanto a produção de significados se deu a
partir desse recorte racial, não sendo possível dimensionar a multiplicidade de outros
atravessamentos que poderiam se apresentar, caso o perfil das entrevistadas fosse mais abrangente.
ANDRADE, Sandra dos Santos. A entrevista narrativa ressignificada nas pesquisas educacionais
pós-estruturalistas. In: MEYER, Dagmar Estermann; PARAÍSO, Marlucy Alves (Org.).
Metodologias de pesquisas pós-críticas em educação. Belo Horizonte: Mazza, 2012.

BRASIL. Resolução CNE/CP nº 1, de 17 de junho de 2004. Institui Diretrizes Curriculares


Nacionais para a Educação das Relações Étnico-Raciais e para o Ensino de História e Cultura
Afro-Brasileira e Africana. Conselho Nacional de Educação, Brasília, DF. 2004. Disponível em:
<https://goo.gl/6LzKGd> Acesso em: 06 ago.2017

CARDOSO, Lourenço. O branco ante a rebeldia do desejo: um estudo sobre a branquitude no


Brasil. (Tese de doutorado) – Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho. 2014.

_____. O branco-objeto: o movimento negro situando a branquitude. In: Instrumento: R. Est.


Pesq. Educ. Juiz de Fora, v. 13, n. 1, jan/jun. 2011.

CARNEIRO, Sueli. Racismo, sexismo e desigualdade no Brasil. São Paulo: Selo Negro, 2011.

COSTA, Marisa Vorraber; SILVEIRA, Rosa Hessel; SOMMER, Luis Henrique. Estudos
Culturais, Educação e Pedagogia. In: Revista Brasileira de Educação. n. 23, maio/jun/jul/ago,
2003.

DUARTE, Rosália. A Pedagogia da imagem fílmica: filmes como objeto de pesquisa em


Educação. In: Cadernos de Antropologia e Imagem, Rio de Janeiro, v. 10, n. 1, p. 103-124, 2000.

GOMES, Nilma Lino. Diversidade étnico-racial e Educação no contexto brasileiro: algumas


reflexões. In: _____ (Org.). Um olhar além das fronteiras educação e relações raciais. Belo
Horizonte: Autêntica, 2007, p. 97-109.

GUIMARÃES, Antonio Sergio Alfredo. Classes, raças e democracia. São Paulo: Fundação de
Apoio à Universidade de São Paulo: Ed. 34, 2002.

HALL, Stuart. Cultura e representação. Rio de Janeiro: Ed. PUC- Rio; Apicuri, 2016.

SCHUCMAN. Lia Vainer. Entre o “encardido”, o “branco” e o “branquíssimo”: raça, hierarquia


e poder na construção da branquitude paulistana. (Tese de doutorado) – Instituto de Psicologia da
Universidade de São Paulo, 2012.

SCHWARCZ, Lilia Moritz. Nem preto nem branco, muito pelo contrário: cor e raça na
sociabilidade brasileira. São Paulo: Claro Enigma, 2012.
SILVEIRA, Rosa Maria Hessel. A entrevisa na pesquisa em educação: uma arena de significados.
In: COSTA, Marisa Vorraber (Org.). Caminhos Investigativos II: outros modos de pensar e fazer
pesquisa em educação, 2 ed., Rio de Janeiro: Lamparina, 2007.

SOVIK, Liv. Aqui ninguém é branco. Rio de Janeiro: Aeroplano, 2009.


Viviane Adriana Saballa
Lisiê Coelho de Souza

A presente pesquisa1 vislumbrou a possibilidade de contribuir para a ressignificação


de parte da compreensão da História da Dança na cidade de Pelotas, através de um estudo
sobre as memórias das mulheres negras2 frequentadoras do clube cultural Fica Ahí pra ir
Dizendo. A produção é direcionada aos interessados em conhecer este importante espaço de
sociabilidade do município. O intuito foi contribuir para a valorização da história, cultura e
identidade negra, bem com o reconstituir a trajetória da dança nesta associação. O
período norteador deste estudo compreendeu entre as décadas de 1950 e 1980, determinado
a partir da definição da época em que as senhoras ficainas, sujeitos desta pesquisa,
frequentaram assiduamente o Fica Ahí.
Uma relevância do que aqui é apresentada se estabeleceu na valorização da memória
de mulheres negras como agentes históricos da cidade de Pelotas. Esta memória,
enquanto materialidade, preservada por sujeitos que compõem a História da Dança em
Pelotas, necessita de espaço e meio de manifestação sedimentada na oralidade, cujo
registro garante e documenta conhecimentos. Destacamos, então, a importância de
sistematizar tais informações, entendendo que: “Os bens culturais são transmitidos de
gerações a gerações, portanto são o patrimônio de uma sociedade, que se afiança através do
exercício da memória, que recupera dados do seu fazer histórico.” (SABALLA, 2012, p.
04).
Outra das razões que deve ser considerada como justificativa para esta pesquisa
é a valorização do clube cultural Fica Ahí pra ir Dizendo como patrimônio3 do estado do Rio
Grande do Sul (IPHAE, 2012). Surgido como um cordão carnavalesco (1921), passou a
representar um espaço de referência para a etnia e elite negra da cidade pelotense. Nesse
sentido, o Fica Ahí pra ir Dizendo que reunia famílias de situação financeira favorável,
ofertava eventos sociais mensais que incluía bailes, festas e é claro, muita atividade
carnavalesca.

* UFPel – Doutora em História / UFRGS.


** UFPel – Licenciada em Dança. .
1 Este estudo é parte constituinte do Trabalho de Conclusão de Curso (TCC) em Dança-Licenciatura,

intitulada Memórias da Dança das mulheres negras frequentadoras do Clube Cultural Fica Ahí pra ir Dizendo na
cidade de Pelotas entre as décadas de 1950 e 1980, da autora Lisiê Coelho de Souza.
2 Foram, ao total, onze depoentes. .
3 O clube cultural Fica Ahí pra ir Dizendo, foi tombado em 2012, no âmbito estadual por representar um espaço

de memórias da cultura afro-brasileira no Rio Grande do Sul (Instituto de Patrimônio Histórico e Artístico –
IPHAE).
Segundo Loner e Gill, este espaço era considerado uma entidade negra “mais exigente em
seus estatutos e que contava com uma estrita vigilância por parte da diretoria sobre a moral e o
comportamento de seus membros” (2005, p. 4). Este clube, como as demais associações negras,
tinha um papel fundamental na agregação desta comunidade no município, na socialização das
crianças e jovens dentro dos elementos culturais e sociais significativos para este grupo étnico e no
estabelecimento de estratégias matrimoniais. E, ainda hoje, é uma tradicional entidade social de
Pelotas, composta por parcelas significativas da comunidade negra.
A cidade de Pelotas foi edificada material e culturalmente com forte contribuição dos
negros, mesmo assim, sua invisibilidade ainda é uma realidade na sociedade. Ao mantermos contato
com esta tradicional instituição social, revisitaremos um passado carregado de historicidade, no
qual buscamos encontrar a dança inserida neste espaço de sociabilidade e convivência. Acreditamos
que esta linguagem artística possa ter contribuído para o desenvolvimento da construção identitária
de um grupo étnico, representada nas memórias das mulheres negras frequentadoras do clube
cultural Fica Ahí pra ir dizendo. Queremos recordar este conhecimento construído e inserido na
cultura pelotense.
Ao estudarmos a cultura negra, se torna indispensável salientarmos a importância da
aprovação da Lei 10.639, de 2003, que tornou obrigatório o ensino de História e Cultura africana e
afro-brasileira nas escolas de todo o país (PEREIRA, 2011). Essa Lei possui potencial para propiciar
a elaboração de uma prática docente que questione preconceitos e que seja conduzida pelos
princípios da pluralidade cultural e do respeito às diferenças.
A escola é um lugar de construção, não apenas de conhecimento, como também de
identidade, de valores, de afetos, ou seja, é onde o sujeito deve ser instruído a colaborar com o
desenvolvimento de uma sociedade igualitária (GOMES, 2005, p. 41). Em vista disso, este estudo
pretende, em alguma medida, reverberar na prática docente dos professores de Dança, ofertar
contato com essas experiências e com a História da dança na cidade de Pelotas, agregando
conhecimento aos processos pedagógicos que serão desenvolvidos no âmbito escolar, dialogando
sobre a história africana e cultura afro-brasileira com os alunos.
Através destes desejos surge o problema de pesquisa deste trabalho: “qual o papel da dança
no processo de construção identitária negra das mulheres frequentadoras do clube cultural Fica Ahí
pra ir dizendo, nas décadas compreendidas entre 1950 e 1980 na cidade de Pelotas? ”
Para o desenvolvimento desta investigação, foi utilizada a metodologia de caráter
bibliográfico-documental, quanti-qualitativa, com abordagem da História Oral. Entrevistas
semiestruturadas foram empregadas como instrumento de coleta de dados. A realização do estudo
previu as seguintes etapas metodológicas: coleta, leituras, fichamentos e análise bibliográfica. Em
seguida, foram elaboradas questões referentes às entrevistas, e concomitantemente listamos nomes
de possíveis depoentes. Posteriormente, foi feito o registro e a transcrição dos depoimentos
coletados e os dados foram analisados. Após essa etapa, partimos para coleta e análise das fontes
documentais (estatutos, atas, convites e fotografias). Na sequência, nos debruçamos sobre os
materiais encontrados.
Trabalhando com memórias, lidamos diretamente com nosso objeto de estudo e temos que
ter a sensibilidade necessária para acessar e conhecer experiências trazidas nessas recordações. A
História Oral foi o caminho a ser seguido para revisitar as memórias da dança dessas mulheres
negras frequentadoras do clube cultural Fica Ahí pra ir Dizendo. Em relação à História Oral, a
autora Delgado aponta que:

A História oral é um procedimento metodológico que busca, pela construção de fontes e


documentos, registrar, através das narrativas induzidas e estimuladas, testemunhos,
versões e interpretações sobre a História em suas múltiplas dimensões: factuais, temporais,
espaciais, conflituosas, consensuais. Não é, portanto, um compartilhamento da história
vivida, mas sim, o registro de depoimentos sobre essa história vivida (DELGADO, 2010,
p. 15).

Ao estudar as memórias das mulheres negras e suas relações com a identidade, a História
Oral nos parece direção apropriada por se tratar de acesso a informações pessoais de sujeitos que
fizeram parte deste contexto.
A História Oral é um conjunto de procedimentos, bem como a soma articulada, planejada
de determinadas atitudes organizadas em conjunto (MEIHY, 2013, p. 15); é um processo transitório,
que segue sempre em movimento. As entrevistas que investigam os meios empregados por um
sujeito para se recordar do passado vivenciado podem ser enriquecedoras para o pesquisador, pois
se configuram como um exercício valioso de saber lidar com histórias de vida, assim como, com
memórias individuais que se tornaram coletivas por se tratarem de um grupo de mulheres que
tiveram experiências em um mesmo espaço social.
Nesse seguimento, a História Oral é um procedimento, um meio, um caminho para a
pesquisa do conhecimento histórico e científico. Segundo a autora Delgado:

A época enfocada pelo depoimento – o tempo passado, e sobre a época na qual o


depoimento foi produzido o tempo presente. Trata-se, portanto, de uma produção
especializada de documentos e fontes, realizada com interferência do historiador e na qual
se cruzam intersubjetividades (DELGADO, 2010, p. 16).

A autora reflete sobre a análise do passado. O pesquisador ao se dedicar ao estudo sobre a


História Oral se depara com outro tempo, diferente do qual está inserido. Nessa trajetória, realiza-
se uma fusão peculiar que se caracteriza por se deparar com as singularidades temporais; “trata-se
do encontro da História já vivida com a história pesquisada, estudada, analisada, enfim narrada”
(DELGADO, 210, p, 34).
Conforme o autor Brandão, ao estudarmos as histórias de vida dialogamos com:
O que escapa às estatísticas, às regularidades objetivas dominantes e aos determinismos
macrossociológicos, tornando acessível o particular, o marginal, as rupturas, os interstícios
e os equívocos, elementos fundamentais da realidade social, que explicam por que é que
não existe apenas reprodução, e reconhecendo, ao mesmo tempo, valor sociológico no
saber individual (BRANDÃO, 2007, p.10).

Essas histórias de vida atuam como fontes ricas na reconstrução de ambiente, pensamentos
de épocas, modos de vida, hábitos e costumes de distintas naturezas. Então, podem acessar
detalhadamente as marcas do tempo, relacionadas às experiências culturais e sociais.
Nas sociedades tradicionais, a memória social partida de vivências, mantendo-se por seguir
a tradição e os costumes, garante assim, uma ida regular ao passado (NORA, 1993, p. 25). São
lugares de memória encarregados de desempenhar o papel de manutenção dos parâmetros sociais,
buscando fugir do esquecimento. Em vista disso, a memória individual ganha sentido na História
Oral quando se insere em um conjunto de memórias sociais, constituindo identidades próprias e
coletivas através de suas transformações e permanências. Conforme o autor Halbwachs nas
memórias coletivas de um grupo social se destacam:

[...] as lembranças dos eventos e das experiências que dizem respeito à maioria de seus
membros e que resultam nessa de sua própria vida ou de suas relações com os grupos mais
próximos, os que estiveram mais frequentemente em contato com ele (HALBWACHS,
2003, p. 51).

O uso da História Oral, portanto, deve ser aplicado “onde os documentos convencionais
não atuam, revelando segredos, detalhes, ângulos pouco ou nada prezados pelos documentos
formalizados” (MEIHY, 2013, p.197). Sendo assim, é a partir da percepção do narrador, que os
lugares, as memórias e os acontecimentos serão descritos (OLIVEIRA, 2015, p. 21). Na História
Oral, os elementos que são esquecidos ou, até mesmo, ignorados virão à tona, propiciando novos
significados para a memória.
Ao refletirmos, percebemos que as narrativas das histórias de vida contribuem em grande
valia para a constituição da memória e construção identitária. Estudar as questões referentes à
identidade, a partir de interpretações das histórias e experiências de vida, nos permitir colocar em
destaque a pluralidade e a transição destas ao longo da vida. A utilidade da oralidade se disponibiliza
para a apreensão de registros a partir das experiências de pessoas e grupos que aceitam dar
testemunhos, aos que são convidados pelas suas falas, com a finalidade de transformar suas
vivências em produções escritas. Entre os aspectos que interferem na oralidade estão o cotidiano e
a cultura material das pessoas e grupos envolvidos (PORTELLI, 1997, p. 27). Segundo Alberti
(2000, p.11), na “história oral a memória é vista como fato, como algo que pode incidir sobre a
realidade e causar mudanças” A partir da oralidade é possível aprender e identificar conhecimentos
que ainda não foram acessados e preservados em recordações do passado dos sujeitos que o
vivenciaram.
Nesse sentido, as mulheres pesquisadas são portadoras da memória viva deste espaço, pois
suas experiências de vida se entrelaçam com as vivências do clube. Há uma relação familiar que,
em muitos casos, vem desde a infância, passando de geração à geração, ou seja, fazem parte da
história de um patrimônio da sociedade pelotense, pois ao recordarem suas vivências no clube,
revisitam suas experiências pessoais, que remetem a um tempo e espaço, reativando assim o diálogo
do presente com o passado (DELGADO, 2010, p. 17).
As pesquisas que tratam sobre memória, lidam com estudos que abrangem temáticas
envolvendo recordações, emoções e momentos do passado que se relacionam a um assunto e/ou
lugar com foco nos acontecimentos históricos, culturais e sociais. Visitando autores que escrevem
sobre memória, encontramos Delgado (2010), Kiefer (2005), Saballa (2006), Zubaran (2008) e
Soares (2012), que compactuam das mesmas percepções ao se referirem à ela. Discutem sobre a
relação das memórias coletivas e individuais e a questão da reafirmação de identidade dos
protagonistas das memórias.
A memória é uma reconstrução constante atualizada do passado, onde encontramos com as
nossas raízes, nossos ancestrais, acessamos novamente as experiências, lembranças e etapas
vividas. De acordo com Félix (2004, p. 39), ela “liga-se às lembranças das vivências e esta só existe
quando laços afetivos criam o pertencimento ao grupo, e ainda os mantêm no presente”.
Conforme Delgado, a história, o tempo e a memória são termos que estão interligados:

Todavia, o tempo da memória ultrapassa o tempo da vida individual e encontra-se com o


tempo da História, visto que nutre, por exemplo, de lembranças de família, músicas,
filmes, tradições, histórias escutadas e registradas. A memória ativa é um recurso
importante para a transmissão de experiências consolidadas ao longo de diferentes
temporalidades (DELGADO, 2010, p. 17).

Abrangemos a importância da memória não apenas como um depositário de fatos, mas


também como um processo ativo de criações e significados. Além se preservar o passado, busca
dar sentido a ele e formar as vidas dos envolvidos neste contexto.
A memória se constitui de um passado interpretado, está sempre em processo de construção
e reconstrução através de experiência de fatos que aconteceram no passado e que são ressignificados
no presente (KIEFER, 2005, p. 23). Ao ler Zubaran (2008), percebemos que as identidades não são
fixas e estão longe de terem esta característica. Estão sujeitas a mudanças devido à história, cultura
e poder existentes e herdados de longa data, que ainda são transitórias.
A retenção de informações, a partir das memórias, pode ser obtida através de nomes,
pessoas, fotos, documentos, lugares, acontecimentos, entre outros fatores que possibilitem e
incentivem seu acionamento, promovendo, assim, o resgate das sensibilidades do passado
(SOARES, 2012, p. 17).
O autor Kiefer (2005) traz apontamentos sobre a identidade e a memória, indicando que
ambas são resultado de interações contínuas entre o indivíduo e o coletivo. É necessário pensar em
como, ambos, interferem nas relações temporais e sociais que fazem parte de uma cidade.
A construção das identidades possui forte influência dentro dos grupos sociais, pois ambos
estabelecem relações entre si, bem como a memória desempenha um papel fundamental no
processo de formação identitária do coletivo (SOARES, 2012, p. 21), fazendo com que,
primeiramente, os sujeitos se conheçam e, depois, se reconheçam pertencentes a um processo
histórico que segue sempre inacabado. Assim sendo, a identidade é representada em vista da
interação entre o “eu” e a sociedade, pois o indivíduo se prende a uma estrutura social. De acordo
com Kiefer (2005, p. 20), o sujeito “[...] coordena as questões subjetivas com a posição que ele
ocupa no mundo social e cultural construindo sua identidade e contribuindo para a formação de
uma identidade coletiva”.
Uma formação identitária coletiva depende da visibilidade de como a própria imagem se
constrói através da visão do outro, e como se é visto pela sociedade, perante o outro (SOARES,
2012, 21). Isto interfere na memória coletiva criada a partir de aspectos culturais e sociais. Com
base nisso, as construções identitárias tomam forma dentro dos grupos sociais, nos quais os
significados criados por esse coletivo estabelecem relações entre si. Dessa forma, ao lidarmos com
os elementos de representação dos sujeitos, estamos trabalhando com memórias, experiências e
vivências, que geram relações e, como consequência, formam as identidades individual e coletiva.
Neste estudo, abordaremos memórias de um grupo de mulheres negras, – memórias estas
individuais em certos momentos – e, por vezes, memórias coletivas. Recordações carregadas de
historicidade em relação às suas vidas, suas vivências no clube e, consequentemente relacionada à
história da cidade de Pelotas. Destacamos, nesta proposta da pesquisa, a importância de abordar a
identidade negra, por se tratar de um trabalho que lida com as memórias de mulheres negras, agentes
históricas, de um clube negro; recordações estas que preservam trajetórias de suas vidas, relações e
vivências que ocorreram no clube cultural Fica Ahí pra ir Dizendo.
Nas leituras realizadas sobre identidade negra, destacamos autores como Munanga (1988;
2006), Gomes (2005; 2006) e Silva (2012) que abordam o conceito de identidade negra, na
relação com diversidade, etnia, gênero, “raça”4 e miscigenação. Esses assuntos promovem
discussões que se referem à democracia racial.
Ao pensarmos no contexto histórico em que a discussão sobre identidade negra está inserida
em nosso país, temos que levar em consideração que ela não surge apenas de uma diferença de tom

4 O termo “raça”, neste trabalho, será mencionado entre aspas como uma forma de alusão e referência ao
racismo, considerando os vestígios da escravidão e as imagens que construímos sobre “ser negro” e “ser
branco” no Brasil (GOMES, 2005, p. 09). A raça é o termo que expressa melhor a discriminação contra os
negros, transmite o que é o racismo e afeta as pessoas negras da nossa sociedade. Por conseguinte, o
conteúdo da raça é social e político, pois para o biólogo ou o geneticista humano a raça não existe (MUNANGA,
2006, p. 52); encontra-se apenas na cabeça e na prática dos racistas.
ou de uma diferença biológica entre sujeitos negros, brancos ou amarelos. Conforme Munanga, a
identidade negra:
[...] resulta de um longo processo histórico que começa com o descobrimento, no século
XV, do continente africano e de seus habitantes pelos navegadores portugueses,
descobrimento esse que abriu o caminho para as relações mercantilistas com a África, ao
tráfico negreiro, à escravidão e enfim à colonização do continente africano e de seus povos
(MUNANGA, 1988, p. 35).

Sob esta ótica, é importante pensar que é construída a partir de um processo histórico, social,
político e plural, ou seja, em meio a uma série de fatores que se diferencia de uma cultura para outra.
Para Gomes (2006), a identidade negra é um processo que não acontece apenas quando se lança o
olhar sobre si mesmo, pois envolve a interação com o outro, um olhar de fora, com uma perspectiva
diversificada.
Gomes (2006, p. 03) destaca ainda que, para haver a construção da identidade, é necessário
que haja uma interação, essa troca com o outro, que vai além da própria auto-percepção, do “eu”,
visão própria de si, ao se deparar com interpretação do outro. A partir desta troca entre os sujeitos,
pode haver a formação de uma identidade coletiva.
Seguindo nesta linha de pensamento, Gomes (2005, p. 39) aponta que a identidade negra se
constrói gradativamente, em um movimento que envolve diversas variáveis, causas e efeitos.
Implica a relação com o outro: como se é visto pelo outro, a visão de mundo, a cultura e as trajetórias
de vida de cada sujeito que interferem no julgamento da imagem. A identidade não é algo nato;
refere-se a um modo de ser, de se portar perante os outros, em relação à sociedade. Ela está ligada
à cultura de um povo étnico e ao conjunto de suas práticas culturais. São representadas como
referência para grupos sociais (GOMES, 2005, p. 41).
Dessa forma, é de extrema importância que o sujeito encontre um fio condutor que relembre
sua história e contexto, para revisitar seus aspectos culturais e conseguir extrair destas variantes
uma afirmação identitária, do seu lugar no mundo. Em relação à noção de pertencimento do negro
de seu “lugar” no mundo, o autor Munanga (1988) destaca:

A identidade consiste em assumir plenamente, com orgulho, a condição de negro [...]. A


palavra foi despojada de tudo o que carregou no passado, como desprezo transformando
este último numa fonte de orgulho para o negro (MUNANGA, 1988, p. 41).

Por esse ângulo, percebemos que a identidade está sempre em desenvolvimento, lutando
por uma reconstrução de afirmação negra positiva, buscando superar a discriminação racial que
ainda hoje acontece e muito, com intuito de que a sociedade avance em relação ao reconhecimento
e valorização do negro. Sendo assim, a identidade é um fator que desempenha papel importante na
criação das redes de relações e de referências culturais dos grupos sociais. Aponta ainda aspectos
culturais, no qual se expressam através de festivais, bailes, religiosidade, comportamentos,
gastronomia e tradições populares.
Ao ler Silva (2012), encontramos ideias referentes aos espaços de sociabilidade dos negros,
como por exemplo os clubes, no qual a identidade negra é concebida como uma identidade de base
racial. Reconhecer-se em uma identidade pressupõe corresponder afirmativamente a uma
interpretação e estabelecer uma noção de pertencimento a um determinado grupo social como
referência (MUNANGA, 2006, p. 52); nisso temos o clube cultural Fica Ahí pra ir Dizendo.
O Fica Ahí foi fundado em 27 de janeiro de 1921, na Praça da República, que veio a se
tornar a Praça Coronel Pedro Osório, local em que um grupo de amigos estava reunido. O Cordão
Carnavalesco, como nasceu, desfilava no Carnaval de rua pelotense. Junto aos foliões saía um
conjunto de músicos tocando marchinhas carnavalescas e alegrando os participantes do cordão.
Esta entidade se constituiu como um espaço reservado aos negros. Em 1948, o Cordão
Carnavalesco passou a Clube Carnavalesco.
Ainda em 26 de maio de 1953, o clube passou de carnavalesco para cultural, enriquecendo
assim um dos primeiros objetivos da associação, que era – entre outros – desenvolver manifestações
culturais em seu espaço (LIMA, 2009, p. 02). A partir deste ano, os membros teriam um lugar
próprio para aprimoramento e valorização da cultura negra, através de ações realizadas em
comemoração ao Dia da Consciência Negra e criação de um coletivo de Dança e Teatro
denominado Grupo Jovem, que teve como intuito abordar a temática negra através dessas
linguagens artísticas.
No acesso aos propósitos que o Clube Fica Ahí, tinha, averiguamos o desejo de promover
festas oficiais “para o deleite dos seus associados, tais como: reuniões dançantes, picniks, excursões
e bailes de Carnaval quando, então, é coroada a rainha” (ESTATUTO de 1971, p. 01). Ainda
aconteciam outros eventos além dos bailes do Fica Ahí, como desfiles de moda e penteados,
reuniões dançantes, chás das coroas (chá de senhoras) e bingos. Nele eram praticados alguns
esportes, como pingue-pongue, ginástica e futebol. Também eram organizadas, pela direção do
clube, excursões dos sócios para o Carnaval de Porto Alegre e para o de Rio Grande.
Uma demanda apresentada era em relação às vestimentas nas festividades. Dependendo do
tipo de baile, os trajes deveriam ser sociais: nos Bailes da Primavera, por exemplo, que eram das
debutantes, era obrigado o uso de smooking, para os cavalheiros, e vestidos ou conjunto de tailleur
e saias cumpridas, para as damas. As questões referentes à moral e aos bons costumes, também
eram levadas em consideração para a vinculação à associação.
A função da mulher, em um primeiro momento dentro da associação, era de acompanhante
do marido. Havia as conhecidas como as esposas dos membros da diretoria e do conselho, como os
cargos de presidente, vice-presidente, tesoureiro entre outros. Ou seja, “as primeiras damas” tinham
status e possuíam uma visibilidade dentro do clube. Com o passar dos anos, as mulheres foram
criando atribuições; eram elas que se encarregavam de organizar os eventos festivos. Também
ficavam responsáveis pela parte dos quitutes oferecidos nas festas, que eram feitos por elas. Ainda
realizavam a decoração e providenciavam, junto com a diretoria oficial do clube, a música ao vivo,
com bandas nos bailes de carnaval adultos.
Para as mulheres, comumente, na sociedade, era destinada a função de cuidado do lar e da
família. Mas nas associações negras o trabalho delas era “um dos principais pilares de sustentação
destes clubes” (LONER; GILL, 2012, p. 17). Desempenhavam um papel importante, de modo que
auxiliavam no desenvolvimento da associação, através, por exemplo, de eventos beneficentes que
organizavam no Clube Fica Ahí, com intuito de arrecadarem fundos para melhorias no espaço. Com
o tempo, foi criada uma diretoria de mulheres, com o propósito de auxiliar na administração oficial
do clube, e na organização das festas oficiais e não oficiais. Com esta criação, conquistaram uma
representação nas reuniões da direção e, com árduo trabalho e dedicação, foram construindo seus
espaços dentro do Fica Ahí.
Conforme o Estatuto de 1989 (p. 27), os objetivos dessa gestão de mulheres eram: promover
reuniões artísticas, dançantes, chás e jantares beneficentes, além de momentos com teatro, folclore
e demais atividades referentes ao meio social. E também participar das formações de comissões
constituídas para atividades em benefício do clube, e representá-lo, diante de outros espaços de
sociabilidade, sempre que fosse necessário e oportuno, mediante a gestão oficial.
Ao tratarmos das recordações das senhoras ficaianas sobre o universo constituinte do clube,
estaremos acessando um “mundo social” (BOSI, 1994, p. 82) desconhecido para nós, o qual possui
uma riqueza e diversidade ampla de vivências individuais e compartilhadas, onde podemos ter
contato com esse conhecimento através da memória dos mais velhos. Momentos “perdidos” dessa
vida que podem ser entendidos por quem não os presenciou, enriquecendo, assim, a história que
vai sendo contada e revivida pelos personagens que viveram um contexto.
A memória está compreendida nesta pesquisa enquanto materialidade, preservada por
sujeitos que compõem a história do clube cultural Fica Ahí pra ir Dizendo, que necessitam de
espaço e meio de manifestação sedimentada na oralidade, cujo registro garante e documenta um
conhecimento popular, no qual a “narrativa oral está tomada de detalhes que apenas quem conta
consegue expressar” (OLIVEIRA, 2015, p. 15). Em vista disso, ao reconstruirmos as trajetórias que
as senhoras ficaianas percorreram no clube cultural Fica Ahí pra ir Dizendo, através de suas vozes,
sendo elas protagonistas deste local, queremos acessar suas percepções com o intuito de criar
relações entre as partes envolvidas e a visão do coletivo sobre a presença da dança neste ambiente.
Ao destacarmos as memórias sobre a dança, nesta pesquisa, refletimos que ela possibilita a
compreensão e apresentação das práticas culturais em um espaço de sociabilidade, recreação e lazer.
Assim, promove o encontro dos associados do clube, com as suas histórias, demonstrando dessa
forma o quanto estão ligados, resgatando e atribuindo novos sentidos à sua vida.
Através da dança as pessoas mantinham contato, se relacionavam, formando laços de
amizade, namoros e até possíveis casamentos, pois na dança o homem e a mulher “conversam
corporalmente” e a partir disso, interagem/ se comunicam. Era um modo de se socializar nos clubes
e conhecer pessoas novas. Esta manifestação artística envolvia os associados e promovia interações
sociais, neste espaço de sociabilidade frequentado pelas senhoras ficaianas. A linguagem da dança
dialoga com nuances particulares da cultura negra nesta associação, acionando dimensões
identitárias em seus fazeres culturais, sociais e artísticos vivenciados pelas suas frequentadoras. As
festividades promoveram a valorização da cultura étnica negra contribuindo para o auto-
conhecimento de seus associados, principalmente para as mulheres negras nos momentos em que
dançavam com seus pares nos bailes do Fica Ahí.
Observamos que a dança inserida em um espaço de sociabilidade negra frequentado por um
amplo quadro de sócios, era praticada e refletia um senso identitário coletivo pelos sujeitos que
experimentavam um processo de interação e integração. O clube era o ambiente em que os
frequentadores agregam construções e vivências sociais através do ato de dançar, entre outras
formas, com seus amigos e familiares.
Chama a atenção, pela fala das senhoras, que este momento de organizar os blocos, e definir
e produzir as fantasias, era algo preparado com muita antecedência. Quando chegava o carnaval, os
sócios da instituição estavam em alvoroço, empolgados com as festividades. Os bailes eram
instantes de confraternização e alegria entre os sócios. Através das danças de casais ou indivíduos
formavam uma roda dançando o samba e as marchinhas carnavalescas, principalmente. Notamos
que essa linguagem artística criava laços entre aqueles que estavam reunidos, acolhia estes sujeitos
étnicos que haviam sofrido discriminação racial e que foram impedidos de frequentar os espaços
públicos em que a população branca circulava; transmitiam pela dança, liberdade de expressão. A
dança mobilizava toda uma organização do espaço e dos sujeitos que estavam presentes,
promovendo a partir dessa prática, construções de identidade que se propagavam no
desenvolvimento dos aspectos social, cultural, política e ideológica (GOMES, 2006, p. 20).
Outro acontecimento que gerou repercussão positiva em relação à contribuição para uma
construção de identidade negra no Clube Fica Ahí, foi a criação de um Grupo Jovem, na década de
1980. Com a criação deste grupo, constatamos um interesse maior por parte dos sócios e também
do clube, pela valorização da cultura negra, com a intenção de promover a sua valorização.
Sua formação representou um símbolo identitário para o clube, por ter sido criado dentro
desta associação negra, formada pelo coletivo, por jovens negros que tinham vontade de manifestar
a sua cultura através da dança e do teatro. Para os negros, que em um período não muito distante
não podiam nem ter um espaço próprio para se socializarem, a construção do Grupo Jovem
promoveu a sua valorização. À vista das ações desenvolvidas por ele, podemos destacar que a
dança contribuiu para definições de identidade nesta associação projetadas através das ações
culturais e artísticas do Grupo Jovem.
Ao longo de seus depoimentos, as senhoras ficaianas citam alguns eventos que aconteceram
no clube. Mas dentre os mencionados por elas, percebemos que a comemoração ao Dia da
Consciência Negra era o que mais dava visibilidade à cultura negra, valorizando as origens dos
associados, bem como saudando seus antepassados e aos que muito se dedicaram ao clube. Neste
jantar, o salão era todo decorado com elementos africanos e havia comidas típicas e apresentações
de danças afro. Devido a todos estes fatores, constatamos o quanto era importante esta festa, levando
em consideração que era uma associação negra e que essas atividades propiciavam um reforço
identitário aos sócios que participavam.
No contexto africano, o corpo, a sua ornamentação e a vestimenta enunciam o indivíduo às
identidades grupais. Ressalte-se assim, a importância para eles de celebrar o Dia da Consciência
Negra, evento este em que os elementos citados acima eram representados, bem como as origens
de sua ancestralidade. Além dos sócios jantarem nestas festividades as comidas típicas da cultura
negra, eles apreciavam manifestações artísticas que seguiam a vertente africana. As histórias das
artes corporais representadas a partir da dança do Grupo Jovem revelam um dos mais significativos
indicadores da dinâmica social e da influência cultural negra.
Sobre as memórias das senhoras ficaianas acerca da dança, relacionadas às experiências
sociais que tiveram, na narrativa do sentido de pertencimento etnicorracial e fortalecimento da
identidade estabelecida por elas, no clube, constatamos que as experiências que estas mulheres
tiveram com a dança propiciaram um sentimento de “libertação,” uma vez que essa linguagem
artística respeita as vivências corporais de suas participantes, além de ensinar as mesmas a
aceitarem seu corpo e o corpo do outro; ou seja, entendendo e considerando as suas diferenças
(SILVA, 2013, p. 08). A partir disso, compreendemos que a dança foi um dos fatores que influenciou
nas definições identitárias destas mulheres nos momentos vividos por elas dentro do clube, bem
com as práticas culturais e artísticas oferecidas pelo Grupo Jovem.
Após nos atermos às memórias e às reflexões pessoais das senhoras ficaianas, percebemos
que a dança esteve presente ao longo de suas vivências no clube, fez parte de vários momentos
como: nos Bailes de Debutante, quando algumas delas debutaram; nos Bailes Infantis com as
Duquesinhas; nas comemorações aos Aniversários do Clube; nos Blocos e Bailes Carnavalescos
com as rainhas e suas cortes; no Grupo Jovem, entre outros. Dentro ou fora do clube, a dança em
algum momento de suas histórias de vida apareceu conforme as suas memórias. Percebemos que a
dança contribuiu para suas identidades sociais enquanto cidadãs, identidades de gênero enquanto
mulheres e identidade negra por frequentarem este clube negro que valorizava seus antepassados,
suas origens e a cultura africana através das imagens, dos movimentos e dança.

ALBERTI, Verena; FERNANDES, Tania Maria; FERREIRA, Maneta de Morais. História Oral:
desafios para o século XXI. Rio de Janeiro: Ed. Fiocruz, 2000. 204p. Disponível em: <
http://static.scielo.org/scielobooks/2k2mb/pdf/ferreira-9788575412879.pdf>. Acesso em: 19 out.
2015.
BRANDÃO, Ana Maria. Entre a vida vivida e a vida contada: a história de vida como material
primário de investigação sociológica. Braga, Portugal: Centro de Investigação em Ciências
Sociais, Universidade do Minho, 2007.

BOSI, Ecléa. Memória e sociedade: lembranças de velhos. 3. ed. São Paulo: Companhia das
Letras, 1994

DELGADO, Lucilia de Almeida Neves. História Oral: memória, tempo, identidades. 2 ed. Belo
Horizonte: Autêntica, 2010.

Estatuto do Clube Cultural Fica Ahí pra ir Dizendo. Pelotas, 1989.

Estatuto do Clube Cultural Fica Ahí pra ir Dizendo: 7 de dezembro de 1971. Pelotas,1971.

GOMES, Nilma Lino. Alguns termos e conceitos presentes no debate sobre relações raciais no
Brasil: uma breve discussão. In: OUANE, Adama; MELO, Alberto; SHEPARD, Dalila et al.
Educação anti-racista: caminhos abertos pela Lei Federal n° 10. 630/03. In: Brasília: Ministério
da Educação, Secretária de Educação Continuada, Alfabetizada e Diversidade. 2005. 39-62.
Disponível em: <https://goo.gl/V2H2M9>. Acesso em: 05 mai. 2015.

_____. Sem perder a raiz: corpo e cabelo como símbolos da identidade negra. Belo Horizonte:
Autêntica, 2006.

HALBWACHS, Maurice. A memória coletiva. São Paulo: Centauro, 2003. 224p.

Lei Federal n° 10. 630/03. In: Brasília: Ministério da Educação, Secretária de Educação
Continuada, Alfabetizada e Diversidade. 2005. 39-62. Disponível em: <https://goo.gl/Hp4Xi2>.
Acesso em: 05 mai. 2015.

KIEFER, Marcelo. Cidade: memória e contemporaneidade. Ênfase: Porto Alegre – 1990/2004.


2005. 138f. (Dissertação de Mestrado em Arquitetura) – Universidade Federal do Rio Grande do
Sul. Porto Alegre, 2005. Disponível em: <https://goo.gl/XQf1HE>. Acesso em: 25 abril. 2015.

LIMA, Jorge dos Santos; LUCENA, Francisco Carlos de. Ser negro: um estudo de caso sobre
“identidade negra”. Saberes, Natal/RN, v. 1, n. 2, p. 33-51, 2009. Disponível em:
<https://goo.gl/K5JWZd>. Acesso em: 05 out. 2015.

LONER, Beatriz; GILL, Lorena Almeida. Clubes carnavalescos negros na cidade de Pelotas.
Estudos Ibero-Americanos, Porto Alegre, v. 35, n. 1, p. 01-08. 2005. Disponível em:
<https://goo.gl/cNBoRL>. Acesso em: 10 mai. 2015.
_____. Clubes carnavaleros afrobrasileños en Pelotas: la memoria más allá de la samba.
Universidade Federal de Pelotas, 2012. p. 01-23.

MEIHY, José Carlos Sebe Bom; HOLANDA, Fabíola. História Oral: como fazer, como pensar.
2. ed. São Paulo: Contexto, 2013.

MUNANGA, Kabengele. Negritude: usos e sentidos. São Paulo: Ática, 1988. 88p.

_____. Algumas considerações sobre “raça”, ação afirmativa e identidade negra no Brasil:
fundamentos antropológicos. Revista USP, São Paulo, n. 68, p. 46-57, 2006. Disponível em:
<http://www.usp.br/revistausp/68/05-kabengele-munanga.pdf>. Acesso em: 16 out. 2015.

NORA, P. Entre a memória e a história: a problemática dos lugares. São Paulo: Projeto História,
1993.

OLIVEIRA, Vanessa Rocha de. Memórias e narrativas: protagonistas do ballet clássico na cidade
de Rio Grande/ RS. 2015. 208f. Trabalho de Conclusão de Curso (Licenciatura em Dança) –
Curso de Licenciatura em Dança, Universidade Federal de Pelotas, Pelotas/RS, 2015.

PEREIRA, Amicar Araujo. A Lei 10.639/03 e o movimento negro: aspectos da luta pela
“reavaliação do papel do negro na história do Brasil”. Cadernos de História, Belo Horizonte,
v.12, n. 17, 2º sem. p. 25-45. 2011. Disponível em: <https://goo.gl/nk5h6S>. Acesso em: 23 mai.
2015.

PORTELLI, Alessandro. O que faz a história oral diferente? Projeto de História. São Paulo, 1997,
15p. Disponível em: <https://goo.gl/2yAEhp>. Acesso em: 20 out. 2015.

SABALLA, Viviane Adriana. Patrimônio e cultura: compromisso social da universidade na


preservação da Memória. Revista Diálogos. Centro Universitário La Salle. n.8. p. 173-186, 2006.
Disponível em: <https://goo.gl/m1pqFs>. Acesso em: 15 jun. 2015.

_____. Relatos e registros sobre a história da dança em pelotas. Projeto de Pesquisa. Pelotas,
2012. 15p.

SILVA, Fernanda Oliveira de. Contribuições historiográficas sobre cor, raça e identidades negras
na perspectiva da diáspora africana: afrodescendentes ao sul do Atlântico negro – Rio Grande do
Sul (RS) e Uruguai (UY) (1905-1950). Rio Grande, 2012. 9p. Anais XI Encontro Estadual de
História. Universidade do Rio Grande (FURG). Disponível em: <https://goo.gl/aBkBhK >.
Acesso em: 17 mai. 2015
SILVA, Eveline Pena da. Cia. de Dança afro euwá-dandaras: um estudo sobre a corporeidade de
jovens negras através da dança afro. Seminário Internacional Fazendo Gênero 10 (Anais
Eletrônicos), Florianópolis, 2013. p. 01-10. Disponível em: <https://goo.gl/8Zfx3d>. Acesso em:
14 nov. 2015.

SOARES, Luciane Silveira. Memórias em movimento: histórias do grupo de dança da UFRGS.


2012. 88f. Dissertação de Mestrado em Ciências do Movimento Humano – Escola de Educação
Física, Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Porto Alegre, 2012. Disponível em:
<https://www.lume.ufrgs.br/bitstream/handle/10183/67162/000872632.pdf?sequence=1>. Acesso
em: 27 mai. 2015.

ZUBARAN, Maria Angélica. Comemorações da liberdade: lugares de memórias negras


diaspóricas. v. 15, n. 27, p. 161-187, jul. Porto Alegre, 2008. Disponível em:
<http://www.ufrgs.br/ppghist/anos90/27/27art5.pdf>. Acesso em: 23 mai. 2015.
Raquel de Melo Giacomini

Este artigo apresenta parcela dos resultados da pesquisa de Mestrado intitulado “O


Sistema Educacional Família e Escola na Rede Municipal de Florianópolis: estratégias de
governamento de professores” (GIACOMINI, 2013), sobre o Sistema Educacional
Família e Escola (SEFE). Especificamente, analisa-se como esse sistema de ensino privado
traça estratégias de governamento para normatizar práticas docentes por meio do seu
currículo, em vinte escolas da rede municipal de ensino (RME) de Florianópolis (2009-2012).
O SEFE foi formado pela união da Editora Base e das Faculdades Integradas do Brasil
(Unibrasil), ambas de Curitiba (PR), em 2006.1 O pacote do SEFE possui um conjunto de
material didático, formação de professores e consultorias.2
A compra do SEFE pela Secretaria Municipal de Educação (SME) insere-se nas
políticas de parcerias público-privadas. No caso específico, a parceria público-privada foi
iniciada em 2009, na gestão do prefeito Dário Elias Berger (2005-2012), sendo o secretário de
educação, na época, Rodolfo Pinto da Luz. A primeira escola da RME a utilizá-lo foi a Escola
Básica Municipal Donícia Maria da Costa, localizada no bairro Saco Grande. Essa escola
aceitou a proposta da empresa para usar o material, de forma experimental, no segundo
semestre desse ano. No ano seguinte, a SME começou a abrir licitação pública no início de
cada ano letivo para a compra de um sistema de ensino, sendo o SEFE o vencedor nos três
anos (2010, 2011, 2012). Segundo os responsáveis da SME pelo SEFE, as escolas não são
obrigadas a aderir ao Sistema, por isso não são todas as escolas da Rede que utilizam o
material do SEFE. Muito embora se anuncie acerca da autonomia das escolas, há uma
progressiva adesão das escolas ao SEFE. No ano seguinte de sua experimentação, em 2010,
das 35 que contemplam os anos iniciais, treze estavam utilizando o material do SEFE; em
2011, eram dezesseis e; em 2012, vinte escolas.
Em notícia divulgada no site da Prefeitura Municipal de Florianópolis, em 2010, a
SME afirmou que “o SEU foi criado para contribuir com a melhoria do ensino público, por
meio de parceria estabelecida com as secretarias municipais de Educação”. Além disso, diz
que ele “será responsável pela formação dos profissionais que trabalham nestas escolas”. A
justificativa para a compra do material é a seguinte: “o objetivo da implantação do SEU é
unificar o sistema de educação da rede municipal”, pois “ajudará quando algum aluno
precisar mudar de escola”.
* SME de Florianópolis/UFSC, Mestre em Educação, apoio CAPES. .
1 Até 2011, o SEFE tinha o nome de Sistema Educacional Unibrasil (SEU), sendo o Instituto Unibrasil sua
empresa mantenedora.
2..Ressalta-se que o Ministério da Educação (MEC) não realiza uma avaliação dos serviços e
materiais disponibilizados pelo SEFE.
Outro motivo para a compra do material, segundo o Secretario de Educação, é que o
uso de um sistema apostilado contribui para a melhoria da qualidade da educação, tendo em
vista o aumento nas notas das escolas da RME de Florianópolis no Índice de Desenvolvimento
da Educação Básica (Ideb),3 de 2011 (Rodolfo, Entrevista, 2012).
Dessa maneira, pode-se entender que o SEFE é o currículo concebido por um determinado
grupo – no caso em foco uma empresa privada –, uma vez que é tal empresa quem determina qual
conteúdo se deve ministrar e como o deve ser. Sabendo disso, Adrião et al. (2009, p. 810)
argumentam que, a tentativa de padronização dos projetos pedagógicos e do trabalho realizado nas
escolas é a principal justificativa dos dirigentes municipais de Educação para a realização de
parcerias com sistemas de ensino privados. Buscam instaurar nas redes municipais uniformidade
nos processos pedagógicos, alegando evitar ‘desigualdades’ entre as escolas. Se tal motivação
revela uma preocupação com a possibilidade de que ações diferenciadas gerem qualidade também
diferenciada, por outro lado, incide sobre a autonomia de escolas e docentes frente à organização
do trabalho pedagógico ao retirar-lhes, como assegura a LDB, a possibilidade de organizarem suas
práticas a partir de necessidades locais ou iniciativas próprias.
Os autores sinalizam para “a necessidade de reflexão apurada sobre as consequências
decorrentes das novas formas de inserção da lógica privada na educação pública” (ADRIÃO et al.
2009, p. 813), uma vez que a entrada dos sistemas apostilados empreende mudanças significativas
nos processos educacionais, especialmente, no fazer do professor.
O estudo teve como aporte teórico o conceito de governamento numa
perspectiva foucaultiana.4 As produções de Foucault sobre as práticas de governo
possibilitaram a compreensão das estratégias do SEFE como uma maneira de exercer o poder.
Veiga-Neto (2011, p. 123) esclarece que “o poder diz respeito menos ao enfrentamento e
ao afrontamento entre adversários do que ao governamento de si e dos outros”.
Nessa linha de pensamento, Marshall (1994, p. 12) mostra que para
Foucault governo/governamento são práticas mobilizadas para a condução de condutas “ou
a forma de atividade dirigida a produzir sujeitos, a moldar, a guiar ou afetar a conduta das
pessoas de maneira que elas se tornem pessoas de um certo tipo; a formar as próprias identidades
das pessoas de maneira que elas possam ou devam ser sujeitos”. Ou seja, Focault entende “o
‘governo’ em seu sentido mais amplo, como a estruturação do campo possível de outras
pessoas” (PETERS, 1994, p. 215). Dessa maneira, compreende-se que as estratégias de
governamento exercidas pelo SEFE têm o intuito de modificar as condutas dos professores.

3 O Ideb é um indicador de qualidade da educação básica, calculado com base no fluxo escolar e médias de
desempenho nas avaliações nacionais. Por meio de seus resultados, são traçadas metas para serem alcançadas
pelas escolas, com o intuito de melhorar a qualidade da educação do
país. .
4 Compreendemos que governamentalidade diz respeito a questões governamentais referentes ao surgimento do
Estado Moderno, isto é, ao governo político. E, governamento, refere‐se à condução de condutas (VEIGA‐
NETO, 2002).
Saraiva e Veiga-Neto (2009) apresentam algumas mudanças ocorridas na racionalidade
governamental, em razão das transformações ocorridas na sociedade, sobretudo, proporcionadas
pelo neoliberalismo. O SEFE traça estratégias de governamento que possuem características de
uma governamentalidade neoliberal, como estímulo à competição, busca pela eficiência e
qualidade, cumprimento de metas e práticas de meritocracia. Ao mesmo tempo, outras estratégias
de governamento com o caráter disciplinar também são exercidas, como a homogeneização das
condutas dos professores por meio de normas e vigilância. Mas, não se trata de disciplinar o corpo
dos sujeitos, como bem descreveu Foucault em “Vigiar e Punir”, e sim, de disciplinar e controlar a
alma deles, suas subjetividades.
É nessa direção que Saraiva e Veiga-Neto (2009, p. 195) argumentam sobre uma
reorganização do diagrama de poder da sociedade contemporânea, isto é, essa mudança de
configuração do poder cria um novo tipo de poder: o noopoder. O noopoder exerce sua força, não
mais sobre o corpo do sujeito, como acontecia no caso do poder disciplinar, mas sobre a alma,
formando as sociedades de controle. De tal modo, “ainda que o noopoder não faça desaparecer as
outras modalidades de poder, ele parcialmente as recobre e as modifica” (SARAIVA; VEIGA-
NETO, 2009, p. 195).
Saraiva e Veiga Neto (2009, p. 196) apresentam, ainda, o papel que as empresas ocupam
nessa nova configuração de poder, tendo em vista que a governamentalidade se redistribui. Assim
sendo, pode acontecer de o Estado ter um papel menor do que a função das empresas na sociedade
contemporânea. Com isso, entende-se a implementação do SEFE, em algumas escolas da RME de
Florianópolis, como uma forma de noopoder.
Sobre as mudanças ocorridas nas formas de exercer o poder, Menezes (2011, p. 28)
apresenta que, por volta da metade do século XX, ocorreu uma “descontinuidade histórica no
quadro das tecnologias educacionais situadas nas diferentes órbitas das diferentes práticas de poder
características da sociedade disciplinar e daquelas próprias da sociedade de controle”. O autor tem
como objeto de estudo as práticas pedagógicas que possuem o caráter de normatização, por isso,
sua questão central gira “em torno dos dispositivos de normalização, as novas tecnologias e práticas
educacionais pelas quais os indivíduos são constituídos sujeitos”. Portanto, compreende-se o SEFE
como instrumento de normatização, que busca controlar o modo como os professores pensam e
agem, isto é, uma nova tecnologia pedagógica, própria da sociedade contemporânea.
Além dessas categorias, o conceito de estratégia cunhado por Certeau (2008) auxilia a
compreender os modos como os professores são governados pelo SEFE. Ao tratar sobre uma
espécie de jogo, de atritos entre grupos – de um lado os fortes e de outro os fracos –, Certeau (2008,
p. 97-102) diz que a estratégia é a arte dos fortes, dos sujeitos instalados em um lugar de poder e de
querer imprimir ações em outros, ou seja, a um outro que se torna o alvo de intenções. A
metáfora do lugar é utilizada pelo autor como indicativo de instâncias de poder que oferecem um
tipo de saber. Os lugares podem ser tanto físicos quanto centrados nos discursos.
Em termos metodológicos André (1995) forneceu subsídios para se trabalhar com uma perspectiva
etnográfica. A autora destaca que dentre as características da pesquisa etnográfica, está a “interação
constante entre o pesquisador e o objeto pesquisado”. Em outras palavras, “o pesquisador é o
principal instrumento na coleta” das fontes (ANDRÉ, 1995, p. 28). Com isso, realizaram-se três
procedimentos associados à etnografia: observação participante em cursos de formação de
professores do SEFE, entrevista intensiva com oito professores que utilizavam o SEFE e uma com
o secretário municipal de educação e análise de documento.
Autores, como Alberti (2005), Worcman e Pereira (2006), e Portelli (1997), forneceram
subsídios teóricos para o trabalho de realização das entrevistas, ou seja, da produção de fontes orais.
Dessa maneira, elas foram gravadas em forma de áudio e transcritas (procedimento
de transformação do conteúdo oral para a forma escrita).5

O conteúdo está no SEFE. Se eu vou fazer qualquer coisa eu vou andar rumo àquele
conteúdo. Para que eu vou fazer uma coisa diferente? Eu preparo minhas aulas a partir da apostila,
os extras, os projetos, as atividades, tudo isso. Eu não fico inventando outra coisa, até porque nem
dá tempo (Profª. Hortência, Entrevista, 2012).
A fala da professora Hortência demonstra o quanto o SEFE, por meio da coleção
“Caminhos”, traça estratégias para normatizar as práticas pedagógicas dos professores. Entende-se
a coleção “Caminhos” como o carro chefe de tal sistema de ensino. Ela é o instrumento concreto
presente nas escolas para normatizar tanto a conduta dos professores, quanto os conteúdos. Desse
modo, a Empresa considera que facilita o trabalho dos professores na medida em que determina
tudo o que tem de ser ensinado.
O Edital de licitação para a compra do sistema de ensino estabelece que ele precisa ter uma
proposta interdisciplinar (FLORIANÓPOLIS, 2012, p. 15). O parecer que aprova a compra do
SEFE afirma que esse Sistema possui tal proposta metodológica (Parecer nº 01, 2012). No site do
SEU é destacado sobre sua abordagem interdisciplinar. Da mesma forma, nos cursos de capacitação
e em conversas realizadas tanto com representantes da SME, quanto com os professores que usam
o SEFE, a metodologia interdisciplinar da coleção “Caminhos” era sempre uma questão pontuada.
Todavia, na apostila do professor não há o termo “interdisciplinaridade” citado. Apenas na capa da
apostila destinada aos alunos consta: “Projeto interdisciplinar para o Ensino Fundamental”.
Segundo Fazenda (1993, p. 51), “a ‘interação’ seria condição necessária para a
interdisciplinaridade”. A autora argumenta o seguinte:
Delimitando mais rigorosamente o conceito de interdisciplinaridade, conclui-se que esta seria um
passo além dessa integração, ou seja, para que haja interdisciplinaridade deve haver uma ‘sintonia’

5 Com o intuito de preservar a identidade dos entrevistados, neste texto serão utilizados nomes fictícios.
e uma adesão recíproca, uma mudança de atitude frente a um fator a ser conhecido. Enfim, o nível
de interdisciplinaridade exigiria uma ‘transformação’, ao passo que o nível de integrar exigiria
apenas uma ‘acomodação’ (FAZENDA, 1993, p. 51).
Sabendo disso, ao analisar a coleção “Caminhos” percebeu-se que ela não possui uma
interação que possibilite uma transformação no modo de ensinar as áreas de conhecimento, uma
vez que não muda a forma de trabalhar as disciplinas. Elas apenas são organizadas alternativamente
ao longo das apostilas, produzindo um sentido de manual, no qual o professor possui a tarefa de
seguir sua prática de acordo com o estabelecido e na mesma sequência proposta pelo SEFE.
Por isso, essa forma de organização da coleção proporciona a acomodação dos conteúdos e
também da ação docente, uma vez que foi comum os professores nos cursos de capacitação
comentarem que “as apostilas são o próprio planejamento”. Igualmente, os oito professores
entrevistados corroboram com essa opinião. Desse modo, ao utilizar a coleção “Caminhos”, não é
mais necessário que o professor planeje sua prática diária, tendo em vista que a apostila já se
encarrega disso. Ou, de outra maneira, como se observou nos cursos: o planejamento se resume a
planejar em que dia será usada determinada página da apostila.
A fala da professora Margarida contribui para entender como a coleção Caminhos colabora
para a acomodação: o SEFE “facilita a vida do professor meio malandro. Então o professor pega a
apostila vai seguindo, xeroca o começo da apostila e entrega como planejamento” (Profª.
Margarida, Entrevista, 2012). Da mesma forma, a professora Hortência diz que “cômodo é muito.
Agora, eu não sou uma pessoa cômoda. Para comodidade é perfeito!” (Profª. Hortência, Entrevista,
2012). Com isso, pode-se inferir que qualquer pessoa, desprovida de formação específica até, pode
chegar à sala de aula, abrir a apostila na página onde parou na aula do dia anterior e continuar os
conteúdos. Também, nem é preciso se preocupar em como e quando trabalhar as diferentes áreas
de conhecimento, já que estão distribuídas alternativamente na apostila.
Quando questionados sobre as alterações na prática de planejar usando o SEFE, percebeu-
se um discurso homogêneo sobre o planejamento. Seguem alguns fragmentos dos relatos dos
professores:
É que o SEFE direciona teu planejamento. Não dá para abrir muita coisa. Ele tem as
atividades, tem os conteúdos, tu vai antecipar um e ir além. E aí ele direciona teu planejamento
para determinada coisa. Já na outra escola que eu trabalhei que não era, eu tinha que inventar tudo
(Profª. Gérbera, Entrevista, 2012).
Mudou porque agora, praticamente, eu não preciso planejar. Não tem que planejar porque com o
SEFE o planejamento já vem praticamente pronto, os eixos a serem trabalhados, os objetivos. A
gente fica seguindo o livro (Profº. Lírio, Entrevista, 2012).
Como se pode constatar, o SEFE e, mais especificamente, a coleção “Caminhos”,
proporciona mudanças significativas na ação de planejar, uma das ferramentas principais que
caracteriza a profissão docente. Da mesma maneira, o professor fica preso ao material didático,
sendo ele, senão o único, o principal material a ser consultado. Isso, além de propiciar uma
homogeneização das práticas, leva também à fragmentação do conhecimento. A professora Violeta,
ao mostrar as mudanças ocasionadas pelo SEFE em seu planejamento, expressa muito bem tal
questão:
Porque antes eu me sentia mais como pesquisadora. Quando eu pegava o currículo dos
alunos, ‘o que os alunos do terceiro ano precisam?’ A gente pegava, elaborava todos aqueles
conteúdos de todas as disciplinas e, em cima daqueles conteúdos, tu buscavas os textos. Eu acho
que eu me sentia mais pesquisadora; ficava o tempo todo planejando. A partir do momento que veio
essa apostila, eu até planejo, mas já tá tudo aqui dentro ‘na página tal vamos trabalhar esse texto’.
Então está tudo muito pronto, os textos estão vindo prontos, as fábulas já estão aqui, vamos dizer,
o gênero textual receita e já está aqui (Profª. Violeta, Entrevista, 2012).
O que a professora Violeta fala está relacionado com o cerceamento das
liberdades individuais dos professores. Nesse sentido, compreende-se que o governamento
do SEFE tem o objetivo de normatizar as práticas pedagógicas por meio da coleção
“Caminhos”, isto é, os professores renunciam às suas vontades para seguir regradamente a
coleção. Assim, questiona-se como um material que padroniza conteúdos e métodos para vinte
escolas da Rede pode produzir a lógica da interdisciplinaridade que “é a da invenção, da
descoberta, da pesquisa, da produção científica, porém gestada num ato de vontade, num
desejo planejado e construído em liberdade”? (FAZENDA, 2001, p. 19, grifo nosso). A
professora Rosa fala a respeito do controle do tempo, isto é, ter de usar a apostila para dar
conta de terminá-la e assinala para a possibilidade de acarretar prejuízos no ensino, dado que
não sobra tempo para realizar um trabalho diferenciado com o aluno que possui dificuldades.
Tenho quinze anos de magistério, mas é a primeira vez que eu trabalho com material
pronto e eu não gostei. Porque o que tu tem que fazer? Você tem que interferir naquilo que
eles não estão aprendendo, na verdade. Se você está fazendo seu planejamento, você vê que
o aluno não está conseguindo, você vai fazer uma intervenção ali. E com o material todo
pronto, a gente tem que dar conta. Então, você não tem tempo para ficar parando para dar
atenção para aquele déficit, ali no momento. Entendeu? Para aquela dificuldade do aluno.
(Profª. Rosa, Entrevista, 2012).
Desse modo, percebe-se o quanto o controle do tempo articulado ao material didático é
uma estratégia para normatizar e padronizar as práticas pedagógicas e, ao mesmo tempo, os
conteúdos. Isso é entendido como uma forma de exercer o poder, pois o SEFE e a SME não
dizem que não se pode usar outros tipos de materiais, mas criam estratégias que fazem com
que se use somente a coleção “Caminhos”. Vale dizer, o poder perpassa as relações e provoca
a ação. Focault (2011, p. 8) argumenta que,
se o poder fosse somente repressivo, se não fizesse outra coisa a não ser dizer não, você
acredita que seria obedecido? O que faz com que o poder se mantenha e que seja aceito é
simplesmente que ele não pesa só como uma força que diz não, mas que de fato ele
permeia, produz coisas, induz ao prazer, forma saber, produz discurso. Deve-se considerá-
lo como uma rede produtiva que atravessa todo o corpo social muito mais do que uma
instância negativa que tem por função reprimir.

Entretanto, a coleção “Caminhos” por si só não é capaz de ser um instrumento eficiente


para normatizar as condutas dos professores. Por isso, o SEFE possui outras estratégias de
governamento com a finalidade de fazer com que seja usada da maneira estabelecida pelo Sistema.
Tais estratégias são compreendidas como uma rede de vigilância e controle, ou seja, são técnicas
que incitam os professores a exercer sua ação docente conforme é instituído pelo SEFE, uma forma
de exercer o poder.
Essa vigilância, muito embora tenha o caráter disciplinador, não se trata daquela descrita
por Foucault em “Vigiar e Punir”, na qual “a arquitetura seria um operador para a transformação
dos indivíduos” (FOUCAULT, 2011a, p. 166), sendo o panoptismo a expressão cunhada pelo autor
ao se referir ao modo como a vigilância atua sobre os corpos em uma sociedade disciplinar
(FOUCAULT, 2011a, p. 186-214). A maneira como o SEFE exerce a vigilância dos professores
direciona-se para suas almas, e isso se configura como uma forma do noopoder (SARAIVA;
VEIGA-NETO, 2009). Sendo assim, vigilância de tal Sistema atua de três modos: pelos cursos de
formação, pelas consultorias e pela supervisão escolar.
Os cursos de formação de professores, no qual os professores são convocados a
participarem, são entendidos como uma espécie de vigilância individual e grupal, uma forma de
controle em razão das normas determinadas pelo SEFE.
O momento “Caminhando juntos”, realizado nos cursos do 1º ano, é uma forma de checar
se na prática os professores estão seguindo as normas do SEFE, uma vez que solicita-se para eles
contarem as experiências vivenciadas com o SEFE na escola a partir do planejado na capacitação
anterior (na “Hora do planejamento”). Com isso, as perguntas “em qual volume vocês estão?”, “em
que páginas vocês estão?”, “já fizeram tal atividade?”, “quantas páginas faltam para chegar em tal
conteúdo?”, eram frequentes. A professora Violeta corrobora com essa visão: “A própria secretaria
nos encontros de formação (controla). Geralmente, quando eles vêm com alguma formação era
dentro de um assunto, dentro em uma determinada página. Há esse controle! Meio velado, mas há
esse controle” (Profª. Violeta, Entrevista, 2012). Dessa forma, entende-se que os assessoramentos
são momentos importantes para o SEFE “vigiar” o desenvolvimento de sua proposta pedagógica.
Outros professores dizem que as capacitações não contribuem, porque servem apenas para
mostrar como usar as apostilas: “Eles mostram como usar o material. É prático. Como usar a
apostila. Ele escolhe uma aula, ‘vamos trabalhar essa aula, como deveria ser dada essa aula’. Uma
coisa que para a gente não vai alterar em nada” (Profª. Lírio, Entrevista, 2012).
Nessa direção, o SEFE elabora um material pronto e acabado para o professor usar,
disponibiliza cursos para ensinar a como usá-lo, com o intuito de diminuir os prejuízos e aumentar
a eficiência de tal material na prática pedagógica. Bittencourt (2010, p. 561) chama a atenção sobre
os prejuízos da utilização de sistemas de ensino, falando, especificamente, de um Sistema usado
em São Paulo:
Uma proposta de política educacional cujas consequências podem ser desastrosas a
longo e médio prazo. O professor da rede pública não precisa mais pensar, nem sequer preparar
aulas, nem sequer saber se o que está ensinando está certo ou errado. Tudo está previamente
contido no Caderno do Professor e, igualmente, tudo está preparado para os alunos responderem
no Caderno do Aluno. A tarefa do professor é a de comparecer na escola, fazer a chamada e ler o
Caderno com os alunos. E, creio que cabe a pergunta: serão necessários cursos de formação de
professores? Compreende-se a pertinência do que a autora apresenta e, caso se for pensar no
SEFE, a resposta seria a de não haver mais necessidade de curso de formação de professores, uma
vez que o sistema de ensino se encarrega de fazer o papel do professor ao determinar os
objetivos, os conteúdos, os métodos e as formas de avaliação.
Outra estratégia de vigilância é o serviço de consultoria do SEFE. A própria descrição do
edital sobre o que é esse serviço dá indicativos para entendê-lo dessa maneira: as consultorias
são “visitas técnicas realizadas nas escolas por uma pedagoga do Sistema, com o objetivo de
verificar o desenvolvimento da proposta educacional, avaliando resultados das ações e viabilizar
ações..que..venham..a..contribuir..para..a..melhoria..constante..de..sua..implementação” (FLORI
ANÓPOLIS, 2012,p. 17, grifo do original). Ou seja, esse serviço atua no sentido de fazer com
que os professores usem apostila e não atrasem os conteúdos nela contidos, caso contrário
algumas estratégias para o professor e, consequentemente, para os alunos, adaptarem-se ao
Sistema vão ser implementadas. Sendo assim, há uma vigilância por parte do SEFE, a qual faz
com que os próprios professores se tornem vigias de si, como avaliou a professora Margarida:
“Acho que a cobrança maior acaba sendo nossa” (Profª. Margarida, Entrevista, 2012). Essas
visitas feitas pelas consultoras do SEFE, geralmente, são acompanhadas pelas representantes da
SME. A professora Dália descreveu tal visita:
Tanto as assessoras da prefeitura junto com as do SEFE. Eu tive umas duas reuniões
assim, que elas me pediram todo o material para olhar, ver se eu estava preenchendo o caderno
de registro, o caderno dos alunos para ver aonde que eu estava. No ano passado teve uma
cobrança bem mais rígida. É meio esquisito. Parecia bem controle mesmo. Foi avisado, ‘Olha!
Bota o livro em dia, que vão vir aqui na semana que vem para olhar se está tudo certinho’, sabe?
Se tivesse tudo certinho você ganhava mil elogios, se não tivesse ‘Ah! Por que tu não está
fazendo’! Tinha bastante cobrança, sem querer saber a realidade da escola, a realidade da turma,
o que você pensava de trabalhar com aquele material. Elas não queriam saber isso! Elas queriam
saber se você estava usando, como que estava, em que parte você estava. Diziam que tinha que
usar, que era assim, assim, assado, sabe? Uma coisa bem assim, impositiva (Profª. Dália,
Entrevista, 2012).
Portanto, pode-se compreender que as visitas são uma das estratégias para garantir a
utilização efetiva do material pelos professores. Os gestores escolares também têm um papel
fundamental nessa rede de vigilância, uma vez que são eles que estão cotidianamente nas escolas
supervisionando a utilização do material do SEFE. Inclusive, os gestores escolares também
recebem capacitações específicas para “o desenvolvimento de suas atribuições e acompanhar
efetivamente a utilização do material e o desenvolvimento das ações sugeridas nos
assessoramentos que o sistema oferece no município” (FLORIANÓPOLIS, 2012, p. 17, grifo do
original). Usar todas as apostilas, na sequência proposta pelo material é uma meta a ser
cumprida.
Pode-se constatar que, dependendo da escola, há uma menor ou maior pressão para
seguir regradamente o uso das apostilas do SEFE. Desse modo, os gestores são figuras centrais
para se entender isso. Por exemplo, três professores que trabalham em uma mesma escola,
na qual a supervisora controla, cobra, vigia o uso das apostilas do SEFE, demonstram que sua
prática é muito mais delimitada pelo SEFE:
Então, assim Raquel, eles fazem o curso de formação para estar explicando como
que a gente trabalha, coisa e tal, mas há essa cobrança também. Segundo eles, a secretaria
municipal, quando a gente faz curso, não há cobrança, mas existe uma cobrança, sim, porque
essa cobrança vem seguindo a escala, vem lá de cima até chegar na supervisora da escola, aonde
a gente tem que sentar (com ela). Ela vai, pega a apostila: ‘Aonde vocês estão?’. A gente tem
que dar conta (Profª. Rosa, Entrevista, 2012).
O controle que eles fazem é cronológico. Saber que aula tu tá, que aula tu deu. Em que
apostila está (Profª. Lírio, Entrevista, 2012). (A supervisora) faz sim, faz esse controle e bem
periódico e fala mesmo se tiver problema que peça ajuda, mas que dê conta e que faça (Profª.
Hortência, Entrevista, 2012).
Essas falas fornecem indicativos para entender que, para o SEFE, importa a quantidade
de atividades a serem cumpridas. Enfim, A Supervisão Escolar é mais uma das estratégias do
SEFE para disciplinar os professores, com o intuito de eles realizarem suas ações de maneira
“eficiente”.

Considerando o que foi exposto, anteriormente, compreende-se que o Sistema define tudo
o que deve ser ensinado por meio da coleção “Caminhos”. Ao professor, basta apenas executar o
que foi previamente determinado. Dessa forma, neste item será apresentada a abordagem da
temática indígena presente na coleção, com o intuito de expor a concepção acerca da história dos
povos indígenas presente no material.
Santomé (2010) é eleito como base para a análise da abordagem da coleção “Caminhos”
acerca dos indígenas. O autor argumenta que a instituição escolar “tem a responsabilidade social de
educar, pode e deve desempenhar um papel muito mais activo como espaço de resistência e
denúncia dos discursos e práticas que [...] continuam a legitimar práticas de marginalização”
(SANTOMÉ, 2010, p. 24). Entretanto, o autor afirma que a escola é um lugar que ainda legitima
práticas de marginalização, sendo o currículo uma de suas ferramentas principais. Sendo assim,
Santomé (2010, p. 25) lista algumas estratégias curriculares consideradas inadequadas ou
incorretas. As estratégias de exclusão e infantilização ajudam a pensar no tema dos indígenas que
estão presentes no material didático do SEFE.
Conforme o autor, a exclusão ocorre quando o currículo omite as diferentes culturas
presentes na sociedade, como se vivesse em uma sociedade monocultural (SANTOMÉ, 2010, p.
37). Sobre a referida questão, pode-se dizer que a coleção “Caminhos” dá a ideia de que os grupos
indígenas não vivem na sociedade atual, tendo em vista que majoritariamente eles são representados
na ocasião do descobrimento do Brasil.
Ademais, o assunto sobre os indígenas é trabalhado por meio de itens tradicionalmente
contemplados na História do Brasil e da América, ou seja, apresentando as populações indígenas
no passado, por intermédio de fatos históricos – os descobrimentos – e, em seguida, o
processo de colonização.6 Dessa forma, são privilegiados as datas e nomes dos personagens
europeus que participaram desses episódios da História, conforme a apostila do 3º ano:

Pedro Álvares Cabral, nobre português, recebeu o comando de 13 caravelas, com a


missão de explorar os mares [...]. Ao amanhecer do dia 21 de abril de 1500, após uma
longa e difícil viagem de quase dois meses, Cabral e seus marinheiros viram folhas
flutuando no mar. Era sinal de que estavam próximos a terra. Na manhã do dia 22 de
abril, a expectativa aumentou ao perceberem muitas aves no céu. E, no fim da tarde,
avistaram um monte. Deram-lhe o nome de Pascoal (porque era semana da Páscoa)
[...] (GABARDO, 2011, p. 306).

Ao analisar essa temática, percebeu-se que a coleção privilegia uma abordagem


da disciplina de História. 7 Interessante notar sobre o que diz a coleção “Caminhos”
acerca da contribuição da disciplina de História: “Contribui para a compreensão da
realidade enquanto ciência explicativa das origens, da formação e transformação da
sociedade. (GABARDO, 2011, p. 11, grifo nosso).
Desse modo, ao longo da coleção, por meio do trabalho com os indígenas, é enfatizada a
questão da busca das “origens” do Brasil. Isso pode ser visto, por exemplo, na página 187 da apostila
do terceiro ano com a questão: “Você sabe como tudo começou?”, ou com a seguinte orientação
destinada ao professor, na página 305 da mesma apostila: “é importante recordar, com os alunos,
fatos sobre o início do Brasil que já foram trabalhados nos bimestres anteriores”. Dessa forma, em
certos momentos, a origem do Brasil é direcionada para os indígenas, pois a coleção mostra que
eles foram os primeiros habitantes do Brasil. Em outros momentos, parece que a História do Brasil
teria começado com o descobrimento. Um exemplo está na apostila do 5º ano, na página 167, com
canção que expõe o seguinte sobre a chegada dos portugueses: “O Brasil vai começar”
(GARBADO, 2011).
As ilustrações da coleção “Caminhos” possuem um caráter estereotipado, concebendo os
indígenas sempre com tangas, penachos, pinturas, lanças, vivendo na floresta em ocas e em conflito

6 Em alguns momentos, ao longo da coleção, é exposto o termo “descobrimento” entre aspas, mas não é
explicado nem para o professor, nem para o aluno o porquê disso. Entende-se que usar tal palavra entre aspas
infere uma visão crítica sobre esse acontecimento histórico; todavia, a coleção apresenta uma visão tradicional.
7 Dos trinta títulos que trabalham com o tema dos indígenas, em quinze é abordada a disciplina de História.
com os portugueses (Figura 1). E reforçam o fato histórico do descobrimento, por meio de uma
visão positivista e eurocêntrica.

Figura 1 – Representação dos indígenas na coleção “Caminhos”

Fonte: GARBADO, 2011.

Essas imagens, entre outras, vão ao encontro da indicação de Santomé (2010, p. 69, grifo
do autor), no sentido de contribuir para se pensar sobre essa questão quando diz se tratar de uma
estratégia curricular inadequada, pois infantilizadora, que representa “as diferentes culturas, as
minoritárias, recorrendo a desenhos, semelhantes aos que são usados nas séries de televisão de
desenhos animados ou livros cósmicos”. (Grifo meu).
Dessa forma, corrobora-se com o que é exposto pelos Parâmetros Curriculares Nacionais
(PCN) sobre a pluralidade cultural, ao afirmarem que “materiais didáticos desempenharam papel
crucial, tanto por veicularem explicitamente noções erradas quanto de maneira velada e implícita,
por exemplo, em ilustrações que insistiram em passar estereótipos que aprisionavam grupos étnicos
a certos papéis sociais” (BRASIL, 1997, p. 67).
Em relação às políticas públicas curriculares, pode-se compreender que a coleção desconsidera o
que é proposto pelos Parâmetros Curriculares Nacionais (PCNs) e a proposta curricular do
município de Florianópolis em relação ao ensino de tal temática. Igualmente, em nenhum momento,
a coleção “Caminhos” faz referência à Lei nº 11.645/2008, que normatiza sobre os currículos
oficiais escolares para trabalharem, obrigatoriamente, a história da cultura afro-brasileira e
indígena, de forma a se ensinar acerca dessas etnias “na formação da sociedade nacional,
“resgatando” as suas contribuições nas áreas social, econômica e política, pertinentes à história do
Brasil” (BRASIL, 2008). Sendo assim, embora essa temática apareça pontualmente na coleção, a
forma como é abordada não atende às perspectivas atuais atinentes às discussões sobre a diversidade
e relações étnico-raciais.
Além disso, parecem desconhecer estudos e pesquisas sobre o ensino de História numa
perspectiva atual, como apontam Bittencourt (2004), Schmidt e Cainelli (2009), Otto (2012), Rossi
e Zamboni (2005), entre outros, os quais indicam que, muito mais do que ensinar datas, nomes de
grandes personagens, fatos históricos e buscar as “origens” é levar as crianças a compreender como
a história é produzida, por meio da aprendizagem de noções temporais e conceitos (como tempo,
fato, fonte, sujeito). Assim, elas estarão em um processo gradual de desenvolvimento do
pensamento histórico.
Considerando o que foi dito sobre os indígenas, corrobora-se com a opinião de Santomé
(2010, p. 37): “nos manuais escolares que circulam nas instituições educativas, as vozes e as
representações dos ‘outros’ são inexistentes ou, na melhor das hipóteses, uma anedota”. Por isso,
ressalta-se a necessidade de se considerar os saberes dos professores para não se reproduzir projetos
curriculares excludentes e discriminatórios.

As estratégias de governamento do SEFE são ferramentas que atuam dissimuladamente, no


sentido de tolher a autonomia dos professores, de retirar sua capacidade de busca de conhecimento,
seu potencial criador e de reflexão. É possível inferir que para tal Sistema o professor pode ser
qualquer pessoa desprovida de formação pedagógica, desde que execute o publicado no material,
da maneira que foi aprendido no curso de formação continuada de professores.
As narrativas dos professores mostram o papel central ocupado pela coleção “Caminhos”
nos seus fazeres docentes, sendo ela um instrumento normatizador do currículo escolar e das suas
práticas. Além disso, os oito entrevistados relatam acerca das outras estratégias de governamento
que buscam fazer com que a coleção seja utilizada como o Sistema estabelece, quais sejam: cursos
de formação continuada de professores, as consultorias e supervisão escolar. Essas estratégias
buscam vigiar e controlar as condutas dos professores.
A análise da temática sobre a história dos povos indígenas permitiu compreender que a
coleção apresenta estereótipos e estratégias curriculares que excluem e infantilizam esse grupo
étnico. Tendo presente que os saberes docentes não são considerados pelo SEFE, é importante
refletir sobre o que Santomé (2010, p. 23) ressalta:

Construir um sistema educativo justo e atento à diversidade, comprometido com projectos


curriculares antidiscriminação, obriga, entre outros aspectos, a prestar muita atenção às
políticas de recursos didácticos, de materiais curriculares, de modo a que não funcionem
como Cavalos de Tróia.

Diante disso, entende-se que o professor tem um papel ativo fundamental no sentido de
fazer uma leitura e utilização crítica de todo e qualquer material didático, ou seja, não tomá-lo como
“um presente de grego”, tal como ocorreu com os troianos. Para tanto, os gestores possuem papel
central na valorização e respeito aos saberes docentes, o que pode contribuir para a apropriação
crítica e analítica das políticas curriculares, especialmente dos sistemas de ensino privados.
ADRIÃO, Theresa; GARCIA, Teise; BORGHI, Raquel; ARELARO, Lisete. Uma
modalidade peculiar de privatização da educação pública: a aquisição de “sistemas de ensino”
por municípios paulistas. Revista Educação e Sociedade. Campinas, v. 30, n.108, p. 799-818,
out. 2009. Disponível em: <https://goo.gl/PBp8ew>. Acesso em: 5 out. 2012.

ALBERTI, Verena. Manual de História Oral. 3. ed. Rio de Janeiro: Ed. da FGV, 2005.

ANDRÉ, Marli Elisa Dalmazo Afonso de. Etnografia da prática escolar. Campinas: Papirus,
1995.

BITTENCOURT, Circe. Ensino de História: fundamentos e métodos. 2. ed. São Paulo:


Cortez, 2004.

_____. Livros didáticos de história: práticas e formação docente. In: DALBEN, Ângela
Imaculada Loureiro de Freitas et al. (Org.). Convergências e tensões no campo da formação
e do trabalho docente: currículo, ensino de Educação Física, ensino de Geografia, ensino
de História, escola, família e comunidade. Belo Horizonte: Autêntica, 2010.

BRASIL. Parâmetros curriculares nacionais: pluralidade cultural. Brasília: MEC/SEF, 1997.

_____. Lei nº 11.645/2008. Disponível em: <https://goo.gl/bfHFUA>. Acesso em: 16 maio


2013.

CERTEAU, Michel de. A invenção do cotidiano: artes de fazer. Tradução Ephraim Ferreira
Alves. 15. ed. Petrópolis: Vozes, 2008.

FAZENDA, Ivani (Org.). Dicionário em construção: interdisciplinaridade. São Paulo:


Cortez, 2001.

_____. Integração e interdisciplinaridade no ensino brasileiro: efetividade ou ideologia.


São Paulo: Loyola, 1993.

FOUCAULT, Michel. Microfísica do poder. Tradução Roberto Machado. 29. ed. Rio de
Janeiro: Graal, 2011.

_____. Vigiar e punir: nascimento da prisão. Tradução Raquel Ramalhete. 39. ed.
Petrópolis: Vozes, 2011a.

GIACOMINI, Raquel de Melo. O Sistema Educacional Família e Escola na Rede Municipal


de Florianópolis: estratégias de governamento de professores. 2013. Dissertação
(Mestrado em Educação) – Universidade Federal de Santa Catarina, 2013.
MARSHALL, James. Governamentalidade e educação liberal. In: SILVA, Tomaz Tadeu da
(Org.). O sujeito da educação: estudos foucaultianos. Petrópolis: Vozes, 1994.

MENEZES, Antonio Basílio Novaes Thomaz de. Foucault e as novas tecnologias


educacionais: espaços e dispositivos de normalização na sociedade de controle. In:
ALBUQUERQUE JÚNIOR, Durval Muniz de; VEIGA-NETO, Alfredo; SOUZA FILHO,
Alípio de (Org.). Cartografias de Foucault. 2. ed. Belo Horizonte: Autêntica, 2011.

OTTO, Clarícia. Nos rastros da memória. Florianópolis: NUP/CED/UFSC, 2012.

PETERS, Michael. Governamentalidade neoliberal e educação. SILVA, Tomaz Tadeu da


(Org.). O sujeito da educação: estudos foucaultianos. 5. ed. Petrópolis: Vozes, 2002, p.
211-224.

PORTELLI, Alessando. Tentando aprender um pouquinho. Algumas reflexões sobre a ética


na História Oral. In: Projeto História. São Paulo, n. 15, p. 13-49, abr. 1997.

Prefeitura Municipal de Educação de Florianópolis/ notícia sobre o SEFE. Disponível


em: <https://goo.gl/PH5rhW>. Acesso em: 4 mar. 2012.

ROSSI, Vera Lúcia Sabongi de; ZAMBONI, Ernesta (Org.). Quanto tempo o tempo tem. 2.
ed., Campinas: Alínea, 2005.

SANTOMÉ, Jurjo Torres. O cavalo de Troia da cultura escolar. Tradução João M.


Paraskeva e Isabel Vasconcelos Costa. Portugal: Pedagogo, 2010.

SARAIVA, Karla; VEIGA-NETO, Alfredo. Modernidade líquida, capitalismo


cognitivo e educação contemporânea. Educação & Realidade, v. 34, n. 2, p. 187-201,
maio/ago. 2009. Disponível em: <https://goo.gl/jZZkmV>. Acesso em: 5 fev. 2013.

SCHMIDT, Maria Auxiliadora; CAINELLI, Marlene. Ensinar História. 2. ed., São


Paulo: Scipione, 2009.

Sistema Educacional Unibrasil (SEU). Disponível em: <https://goo.gl/GxBYTk>. Acesso em:


22 fev. 2013.

VEIGA-NETO, Alfredo José da. Coisas de governo. In: RAGO, Margareth; ORLANDI, Luiz
B. Lacerda; VEIGA-NETO, Alfredo José da. Imagens de Foucault e Deleuze:
ressonâncias nietzschianas. Rio de Janeiro: D&A, 2002.

_____. Foucault e a educação. Belo Horizonte: Autêntica, 2011.


WORCMAN, Karen; PEREIRA, Jesus Vasquez (Org.). História falada: memória, rede e mudança
social. São Paulo: SESC; Museu da Pessoa; Imprensa Oficial do Estado de São Paulo, 2006.

Entrevista concedida por Dália, a Raquel de Melo Giacomini. Florianópolis, 23 de novembro de


2012.

Entrevista concedida por Gérbera, a Raquel de Melo Giacomini. Florianópolis, 23 de novembro de


2012.

Entrevista concedida por Hortência, a Raquel de Melo Giacomini. Florianópolis, 22 de novembro


de 2012.

Entrevista concedida por Lírio, a Raquel de Melo Giacomini. Florianópolis, 22 de novembro de


2012.

Entrevista concedida por Margarida, a Raquel de Melo Giacomini. Florianópolis, 3 de dezembro


de 2012.

Entrevista concedida por Rosa, a Raquel de Melo Giacomini. Florianópolis, 29 de novembro de


2012.

Entrevista concedida por Violeta, a Raquel de Melo Giacomini. Florianópolis, 3 de dezembro de


2012.

Entrevista concedida pelo secretário municipal de educação, Rodolfo Pinto da Luz, a Raquel de
Melo Giacomini. Florianópolis, 4 de dezembro de 2012.

FLORIANÓPOLIS. Edital Pregão Presencial n. 024/SMAP/DLC/2012. 2012.

GARBADO, Carmen Lucia et al. Caminhos: fundamentação correspondente aos livros 1º a 5º anos
– livro do professor. Curitiba: Base, 2011.

Parecer n. 01/2012, da Comissão de Avaliação do material do SEFE, submetido ao Edital do


Pregão Presencial n. 024/SMAP/DLC/2012. Aprovado em 14 de fevereiro de 2012.
Carlos Alberto Lourenço Nunes

Este trabalho tem por finalidade o exercício reflexivo do uso de testemunhos como fonte.
Para tal, utilizaremos uma entrevista efetuada pela historiadora Marlene de Fáveri em 19 de julho
de 1999, na elaboração da sua tese de doutoramento intitulada “Memórias de uma (outra)
guerra: cotidiano e medo durante a Segunda Guerra em Santa Catarina”. (Esta entrevista foi-me
gentilmente cedida pela Dr.ª Marlene de Fáveri para a produção deste artigo). A interlocutora é uma
senhora de origem germânica de 77 anos, que chamaremos de Nair. Ela foi professora da Escola
Normal em escolas isoladas na década de 1930, e casou-se aos 27 anos, em 1954. A entrevista
contém 25 perguntas e foi motivada pelo interesse de conhecer os impactos da política nacionalista
do governo Vargas, principalmente no período entre 1942 e 1945, sobre a população de origem
alemã através dos testemunhos. Conhecendo a produção da professora Dr.ª Marlene de Fáveri
(2005), atentar-me-ei sobre a questão da identidade (este tema é abordado no capítulo II de sua
tese), posto que, também, esta questão é a mais evidente em todas as perguntas nesta
entrevista. A desconstrução dessa identidade1 germânica era um dos objetivos da campanha
nacionalista do governo Vargas:

Baseado no diagnostico de total ausência de integração nacional propiciadas pelas práticas


liberais degeneradoras vigentes na República Velha, o novo regime justificou a
intervenção do Estado em todos os domínios da produção, difusão e preservação de bens
culturais, postos que nacionalizar era sinônimo de unificar o decomposto, e representava
a busca da homogeneização da língua, costumes, comportamentos e ideias. (História Geral
do Brasil, 1990, p. 344).

* Universidade do Estado Santa Catarina/UDESC. Mestrando em História pelo PPG em História. Bolsista do
Programa CAPES.
1 Para apontar o conceito de identidade, aqui referido, nos valemos do conceito descrito por Seyfert sobre o
termo Deutschtum, onde se baseia em três formas: Pela herança de sangue, fundamentada na jus sanguinis, que
exclui critérios geográficos; pelo local de nascimento de uma pessoa, baseada no jus solis; ou pela combinação
destas duas coisas. Esta última alternativa levou a uma dualidade de nacionalidades, principalmente entre grupos
de imigrantes estabelecidos fora de seu país de origem, gerada pela confusão em torno do conceito de pátria,
cidadania e nacionalidade. Por exemplo, na ideologia pangermanista divulgada no sul do Brasil, qualquer
descendente de alemães teria direito à nacionalidade alemã, enquanto que a cidadania estava restrita aos
nascidos na Alemanha. Com isso, as noções de cidadania e nacionalidade são diferentes, ou seja,
nacionalidade está vinculada ao direito de sangue, enquanto que a cidadania está vinculada ao Estado. Portanto,
não importando onde tenha nascido o alemão será sempre alemão, pertencendo a uma unidade nacional, sem
se constituírem, necessariamente, em traidores dos Estados dos quais são cidadãos.
Mas, antes de examinarmos a entrevista em si, discutiremos alguns aspectos do uso da fonte
oral na História do Tempo Presente. Porém, desde já, cabe ressaltar que, apesar das vicissitudes, o
uso de testemunhos, como método de pesquisa, tem alçado voos cada vez mais altos, rendendo
excelentes frutos, como coloca Philippe Joutard: “Estamos persuadidos de que a História Oral não
está mais em suas primícias. Chegou já à primavera e é cada vez mais reconhecida e compreendida
nos círculos acadêmicos mais tradicionais. Os que contestam a fonte oral travam combates
ultrapassados”. (ALBERTI; FERNANDES; FERREIRA, 2016).
A História do Tempo Presente2 exige rigor igual ou maior que o do estudo de
outros períodos, pois “enfatizar a disciplina, a higiene intelectual e as exigências de probidade
parece ter conquistado seu espaço adquirindo seu reconhecimento como segmento histórico a
ser estudado, agregando a si tanto rigor teórico-metodológico como outras áreas da história”.
(RÉMOND. 1998). E uma das fontes utilizadas para problematizar e formular operações de
pesquisa e análise, visando interrogar e compreender processos e eventos do século XX e
do início deste século XXI é o testemunho. A oralidade se constitui uma ferramenta
formidável neste campo, principalmente, mas não somente; quando há falta de informação
documental suficiente para cruzamento de dados que possibilitem uma visão mais ampla do
objeto de pesquisa.
Vale relembrar que a História do Tempo Presente não é um fenômeno novo. Na
Antiguidade clássica, a história recente era o ponto central da inquietação dos
historiadores. Heródoto e Tucídides consideravam a história como um repositório de
experiências que deveriam ser preservados, e o trabalho do historiador era expor os fatos
recentes atestados por testemunhos diretos. Não havia, portanto, nenhum impedimento ao
estudo dos fatos recentes, e as testemunhas oculares eram fontes privilegiadas para a pesquisa.
Todavia, foi desqualificado pela historiografia na segunda metade do século XIX, e os
historiadores se afastaram da História do Tempo Presente, criando entraves para justificar tal
afastamento.
A afirmação da concepção da história como uma disciplina que possuía um método de
estudo de textos que lhe era próprio, que tinha uma prática regular de decifrar documentos,
implicou a concepção da objetividade como uma tomada de distância em relação aos
problemas do presente. Assim, só o recuo no tempo poderia garantir uma distância crítica.
Se se acreditava que a competência do historiador devia-se ao fato de que somente ele
podia interpretar os traços materiais do passado, seu trabalho não podia começar
verdadeiramente senão quando não mais existissem testemunhos vivos dos mundos
estudados. Para que os traços pudessem ser interpretados, era necessário que tivessem sido
arquivados. Desde que um evento era produzido, ele pertencia à história. Mas, para que se
tornasse um elemento do conhecimento histórico erudito, era necessário esperar vários

2 Consideramos a História do Tempo Presente um campo de estudos rico e amplo, que sugere
continuamente novas problematizações e induz a operações de pesquisa e análise para interrogar e compreender
processos e eventos do século XX e do início deste século XXI.
anos, para que os traços do passado pudessem ser arquivados e catalogados. (FERREIRA,
2000).

A História do Tempo Presente só começou a ressurgir no pós-guerra. Pieter Logrou, no seu


texto A História do Tempo Presente na Europa depois de 1945, escreve sobre a criação Instituições
ou Comitês, por parte dos Estados, com a missão de restabelecer suas imagens, diante de uma
comunidade nacional, reunindo e resguardando e produzindo materiais que mostrassem a
resistência destes países, e a ideologia/ocupação dos nazistas em seus territórios. A maioria dos
historiadores, que compunham o quadro de profissionais destes institutos, não era oriunda das
universidades e a maior parte dos intelectuais da história continuava distante do novo campo que se
abria.
Apesar de todos estes problemas, principalmente o papel exercido pelos institutos na criação
de uma história oficial aos moldes dos interesses governamentais, foi este o início da movimentação
acadêmica para a História do Tempo Presente e a busca de formas de se fazê-la diante dos problemas
teórico-metodológicos que vinham à tona. Um dos dilemas foi lidar com situações em que os
agentes envolvidos nos acontecimentos não gerassem um conflito ou despertasse reações que se
queria evitar a todo custo no pós-guerra; em outras palavras, dar palavra às testemunhas. Afinal,
havia a possibilidade concreta da menção da participação ou conivência de pessoas que agora
compunham o novo cenário político nos episódios traumáticos que notabilizaram o período.
Algumas das críticas do uso da memória resultam da soma de suas características
constitutivas: a memória autobiográfica, a memória histórica, a memória seletiva, a memória
compartilhada, a memória simulada, as lembranças reconstruídas, o trauma, o esquecimento, etc.
Como coloca Enzo Traveso, “a memória jamais está fixada. Ela se assemelha melhor a uma obra
por terminar que está em transformação permanente 3 ”, tornando-se, desta maneira, alvo de
desconfiança. Uma das alegações possíveis seria: a cada depoimento, o entrevistado pode
reformular sua versão, uma vez que ao lembrar-se do acontecido novos elementos surgem na sua
memória, o que não impede o usa desta como fonte, porém. Segundo Halbwachs, relacionadas a
elaboração e a interposição de elementos que participam do constructo da memória requerem do
historiador um cuidado meticuloso na percepção de sua complexidade constitutiva. O historiador
deve estar consciente que a memória é o que ela pode ser. Isso tem que ser levado em conta depois
do tempo ocorrido, onde um determinado tempo já se passou e a memória sofreu alterações devido
às inúmeras influências sobre a memória. Os elementos citados participam conjuntamente da
elaboração e reelaborarão continua da memória do indivíduo, o que torna ainda mais complexo a
formulação de um método que possibilite ao historiador fazer uso dessa ferramenta. Além disso,
existem as complexidades envolvidas entre o historiador e seu interlocutor como coloca Daniéle
Voldman:

3FRANCO, Marina; LEVÍN, Florencia. (Comp.). Historia reciente: perspectivas y desafíos para un campo en
construcción. Buenos Aires: Editorial Paidós, 2007. p. 5. Acessado em: 29 de novembro de 2016.
Primeiramente, de modo mais ou menos pacífico, a entrevista é um jogo de esconde-
esconde entre o historiador e seu interlocutor. O primeiro, instalado numa posição de
inquisidor, se representa como “aquele que sabe” ou que saberá, porque sua missão é
estabelecer a verdade. O segundo, intimado a fornecer informações que permitirão essa
operação, frequentemente é forçado a ficar na defensiva, de tão evidente que é a suspeita
do entrevistador, enquanto ele próprio sente que possui a força da convicção “daquele que
viveu”. Assim, enquanto método referente aos documentos escritos declarados consiste
em praticar uma dúvida sitemática, da qual somente o cruzamento com outras informações
permite sair. O historiador que ouve a palavra-fonte expressa uma dúvida sobre a dúvida,
pois duas subjetividades imediatas se conjugam, tanto para esclarecer quanto para
confundir as pistas. Em segundo lugar, o historiador tem que navegar na crista de uma
onda sempre prestes a arrebentar, seja na beira da memória reconstituida ou firmemente
construida por motivos diversos (preservação de uma identidade coletiva ou de um mito,
proteção pessoal da vida passa, risco de ter de mudar de modo de representação de sua
própria existência), seja no curso de uma empatia participante que certos sociólogos, por
seu turno, manipulam conscientemente, julgando estar assim ajudando a construir ou
afirmar a identidade das pessoas solicitadas. Até agora negligenciou-se o desconforto, as
dificuldades e os riscos que podem representar para um individuo sua solicitude em
responder às perguntas de um pesquisador. Pois é natural para o historiador ir buscar na
melhor fonte sua melhor informação, para o depoente – muito mais amiúde do que o
historiador – isso custa muito. (FERREIRA; AMADO, 2006, p. 37-38).

O testemunho não deve ser usado como única fonte para confirmar um acontecimento
histórico – apesar se reconhecermos que alguns acontecimentos só possuem o testemunho como
“prova” da sua existência – antes, contudo; o historiador deve fazer uso de fontes materiais, fazer
um cruzamento de dados, e através deste cruzamento “eliminar” as partes incongruentes do objeto
estudado. Há os que questionam de onde viria a melhor compreensão do acontecimento: vem da
experiência (testemunha) ou do afastamento (historiador) dela? Compartilhamos da ideia que venha
dos dois.
A sacralização da memória4 é outro desafio enfrentado pela história do tempo
presente. Isso decorre, em muitos casos, da seleção, eleição e criação de uma memória
coletiva no intuito de atender a demandas sociopolíticas, mesmo que este processo, muitas
vezes, aconteça de forma inconsciente. Cria-se, assim, uma tradição, um passado mítico
ao redor do qual se constroem práticas ritualizadas dirigidas a reforçar estereótipos e
coesão social de uma comunidade, dando legitimidade a certas instituições através do
alvitramento de determinados valores nesta sociedade ou grupo. Some-se, ainda, o fato do
historiador estar vivendo neste mesmo tempo e sofrer em si as pressões e demandas
sociais, partilhar de ideias e suposições do seu tempo. Mas, não

4 François Hartog faz uma análise mais ampla e detalhada deste tema em “Regimes de historicidade:
presentismo e experiências do tempo” (capítulo IV).
necessariamente impede o historiador de realizar um estudo profícuo das questões do presente.
Segundo Henry Rousso,

Fazer a história do tempo presente é, ao contrário, postular que o presente possui espessura,
uma profundidade, que ele não se reduz a uma soma de instantaneidades que
compreenderá repentinamente. Como toda boa história, trata-se de restituir uma
genealogia, de inserir o acontecimento em uma duração, de propor uma ordem de
inteligibilidade que tenta escapar à emoção do instante, ou, para usar um vocábulo
lacaniano, que tenta instituir um pouco de símbolo onde o imaginário invadiu tudo: é uma
das tarefas essenciais da história, e uma das missões mais importantes da história do tempo
presente. [...]. A Contemporaneidade deve ser pensada como a relação com o tempo
quanto com o espaço, com a questão crucial para o historiador de situar o lugar dos mortos,
nesse conjunto, ou ainda o lugar encerrado. Trabalhar com história próxima é tomar
permanentemente a medida da distância, constantemente variável em relação ao objeto
estudado, [...]. O historiador do tempo presente não é um historiador do instante e não tem
a vocação de correr atrás da atualidade. [...]. A História do Tempo Presente, a história de
um passado não encerrado, a história, portanto, contemporânea no sentido mais exato do
adjetivo, não deve ter senão obrigações de calendário e rememorações artificiais, uma vez
que recusa por definição as fronteiras e os fechamentos, [...]. No argumento é a constatação
de que os historiadores de tempo presente são primeiramente historiadores, trabalhando,
portanto, com durações significativas e não querendo estar sujeitos à tirania ou às modas
do imediato e da atualidade. O desafio do historiador do tempo presente consiste em criar
distancia com a proximidade. (ROUSSO, 2016).

Parafraseando Réne Rémond, a História do Tempo Presente exige rigor igual ou maior que
o do estudo de outros períodos. Neste campo, devemos enfatizar a disciplina, a higiene intelectual
e as exigências de probidade, uma vez que o historiador é agente participante do período que está
estudando, e isso, evidentemente, se aplica à utilização de fontes orais. Ou, como nos coloca
François Hartog, “o importante é, inicialmente, – o entre posicionar-se entre história e memória,
não opô-las, nem confundi-las, mas servir-se de uma e de outra –, apelar à memória para renovar e
ampliar o campo da história contemporânea.” (HARTOG, p. 161).

A lógica de pertencimento dos imigrantes/descendentes alemães é orientada pelos símbolos


e referências da pátria deixada na Europa. Como requerer deste homem ou mulher a identificação
repentina do ser brasileiro, uma vez que, este ou esta se enxergam pertencentes a uma “cosmologia”
diferente? Há um choque de identidade! Surge a dificuldade de se localizar e compreender essa
nova lógica. A imposição da língua portuguesa é a principal barreira enfrentada, pois o
desenvolvimento das estruturas vocais, necessárias à pronuncia das palavras da nova língua
imposta, fica prejudicado pela fonética consolidada da língua prima.
As Forças Armadas constituíram um instrumento decisivo na efetivação dessa política.
Além das medidas de repressão, investiu-se em “tentativas de unificar e integrar descendentes de
estrangeiros a referenciais de brasilidade para forjar uma identidade homogênea para a população
do país” (FROTSCHER, 2003). A política nacionalista de Vargas foi um período de medo e trauma
para essa população. Neste sentido, acreditamos que o medo continua sendo um elemento
inconsciente agindo sobre a memória; afinal lembrar é reviver. E ao reviver essas memórias,
expondo-as na posição de testemunha, podemos perceber alguns traços e vestígios das estratégias
adotadas por estas pessoas para resistir àquele período traumático. E o que saltou aos nossos olhos
foi a adoção do discurso de brasilidade de Nair, durante a entrevista, como se ainda administrasse
o conflito. Suas respostas, por vezes, são contraditórias, pois em um trecho reponde, “eu não tinha
medo”, em outros “eu tinha muito medo”.
O medo girava em torno de muitas situações que poderiam ocorrer: prisões, surras,
extorsões, denúncia, humilhações, confisco, etc. Quando perguntada se houvera algum problema
com pessoas do local onde morava, Nair respondeu: “É, eles davam óleo cru, né a polícia da época”.
Dar óleo cru era uma forma que a policia utilizava para humilhar essas pessoas em público, pois ao
ser ingerido, rapidamente os efeitos eram sentidos e a pessoas faziam uma longa jornada até as suas
moradias cobertas por excrementos. Para um “alemão” – segundo Nair, “o grau de vida dos alemães
era bem superior que os brasileiros, economicamente, moralmente e intelectualmente também, né”
– ser humilhado desta maneira por pessoas que o grupo considerava como “inferior” foi algo muito
traumático, pois, no final das contas, isto estava intrinsecamente ligado ao valor depositado na
identidade germânica que possuía, mas que, ao mesmo tempo, procura disfarçar ao longo da
entrevista como se os acontecimentos passados pudessem acontecer novamente.
Outro aspecto de identidade era relativo à religião, por exemplo: “A senhora é brasileira e
seu marido é alemão? Nair – Meu marido era luterano, eu era luterana, meus antepassados também
eram.” Os indícios encontrados na entrevista sugerem que essa identidade era importante na
constituição social na qual Nair estava inserida. Ser luterana era um elemento de identificação
social, era ser protestante, era pertencer a um grupo, num país predominantemente católico; era
mais um indicativo de que era de origem alemã. Não que não existissem alemães católicos; pelo
contrário. Porém era um aspecto distintivo entre os próprios alemães, motivo inclusive de
discórdias, como ela relata num trecho sobre o casamento entre um luterano e um católico: “Acaso
eu não sou mãe de uma evangélica? Eu não sou mãe igual a você. Você é mãe de um católico e eu
sou mãe de evangélica, e nós podemos entrar num acordo.” Aí resolveram que eles iam casar só no
civil, mas os padres diziam que não era casamento; os padres ainda metiam fogo”. Neste pequeno
trecho já encontramos vestígios de que a memória do período não está marcada apenas pela
repressão político-social que o caracterizou, mas também por divergência e disputas entre os
próprios descendentes de alemães advindos da identidade religiosa. Segundo a historiadora Marlene
de Fáveri, muitas das denúncias contra os alemães às autoridades nacionais não eram feitas apenas
por brasileiros, mas pelos próprios alemães. E esses traços são perceptíveis em outros trechos “eu
nunca namorei católico, nunca conversei, nem tentei”.
Voltando à questão da brasilidade, em outro texto ao relatar algumas brincadeiras que faziam
para aliviar o cotidiano, estava a de dizer: “Heil Getúlio... daí nós passávamos pela outra e ‘Heil
Getúlio’ uma pra outras. Nós levávamos na brincadeira, né, mas todas com muito espírito, muita
nacionalidade”. Ao mesmo tempo em que Nair afirma “foi muita humilhação para nós que não
éramos brasileiros!” Em outro se reconhece como brasileira: “Eu não ligava porque eu já sabia que
era brasileira. Eu amo a Alemanha; um país maravilhoso. Amo mesmo aquele país. Meus filhos
têm dupla nacionalidade, mas eu sou brasileira!” Segundo a fonte, esse conflito de identidade é
constantemente mediado pela memória de Nair. Ela precisa dar conta de um sem número de
informações que lhe vem à memória que se chocam entre si, como se ainda precisasse se proteger
de uma possível ação contra a sua segurança. Num momento em que afirma “Na Barra só tinha
gentinha; naquele tempo era uma coisa.” E depois perguntada sobre os “sofrimentos” advindos do
preconceito contra a religião que professava e sobre a sua ascendência responde: “Sofrer não porque
nós éramos de educação superior, porque os alemães já criavam os filhos com outra educação, outro
pensamento, né. Então, a gente sabia quem a gente era, né”.
Sobre o paradoxo de identidade contidos na fala de Nair é importante ressaltarmos que a
memória é o que ela pode ser. Conforme Enzo Traverso, “a memória se declina sempre no presente
e este determina suas modalidades: a seleção de eventos que a lembrança deve guardar e
testemunhar, um ouvir, sua leitura, suas escolhas”. Em outro trecho Traverso nos adverte que
estejamos atentos de que a memória deve ser entendida como “representações coletivas do passado,
como foi forjada na estrutura atual das identidades sociais, inscrevendo uma continuidade histórica
e dando um sentido, isto é, um significado e uma direção”.
Se aceitarmos as reflexões de Traverso pertinentes, o que podemos concluir sobre esse
exercício é que além das críticas que o historiador deve fazer à fonte oral como faz à fonte escrita,
ele deve estar atento à experiência pela qual seu interlocutor passou. Deve ser sensível ao trauma,
se esse for o caso, e reconhecer que, muitas vezes, esses testemunhos não conseguem atingir
coerências na fala, o que não significa que a testemunha esteja inventando aquilo que relatou ao
historiador. Os lapsos de memória, contradições, desencontros, silêncios, enganos, etc. são todos
elementos que constituem a memória e que, por ofício, o historiador deve, de antemão, saber disso
para que o seu trabalho possa ser exercido da melhor maneira possível. O trabalho não pára apenas
no recolhimento de testemunhos. Ele continua no entrecruzamento de informações e dados que
serão recolhidos com fontes documentais (quando houver), e analisados em conjunto pelo
historiador. E só depois de um trabalho meticuloso de análise de todo material é que se fará o
encadeamento das informações, cabendo ao historiador, no seu dever ético, construir uma narrativa
verossímil com base teórica e metodológica, de modo que todo profissional ao ler os resultados da
pesquisa possa refazer os caminhos utilizados para chegar a tal conclusão. O que é necessário dizer,
o trabalho não necessariamente resultará na concordância da conclusão chegada pelo pesquisador.
Colocando numa visão mais positiva, ele resultará na abertura de outras possibilidades não
percebidas, enriquecendo, pelo menos no nosso ponto de vista, a pesquisa e o debate sobre a forma
e a utilização de tais fontes na e pela história.
O testemunho de Nair nos possibilita a prática do exercício do uso da oralidade por conter,
exatamente, elementos controversos sobre a sua identidade. Estes elementos nos remetem à
construção de uma memória que passou por várias fases: a de negação, a do esquecimento, a da
valorização, a do compartilhamento, etc. Cada uma destas etapas nos remete a m momento de
(re)construção de uma memória que nos ajuda a analisar elementos que, muitas vezes, não podem
ser apreendidos na documentação “tradicional”, mas que tem muito a dizer da formação
sociocultural do nosso presente. Um dos constructos das identidades passa justamente pelo uso da
fala como meio de difusão de símbolos e representações que sustentam esses discursos. Por que
não, então, não se fazer uso deste mesmo recurso, agora transformado numa memória, para estudar
esse fenômeno e a forma como foram assimilados e entendidos por estas pessoas?

ALBERTI, V.; FERNANDES, T. M.; FERREIRA, M. M. (Org.) História Oral: desafios


para o século XXI. Rio de Janeiro: Editora Fiocruz, 2000. p. 33. Acessado em 29 de
novembro de 2016. Disponível em <http://static.scielo.org/scielobooks/2k2mb/pdf/
ferreira-9788575412879.pdf.>

FARGE, Arlette. Do sofrimento. In: _____. Lugares para a história. Belo Horizonte:
Autêntica, 2011.

FÁVERI, Marlene de. Memórias de uma (outra) guerra: cotidiano e medo durante a Segunda
Guerra em Santa Catarina. 2.ed. Florianópolis: Ed. da UFSC; Itajaí: Ed. da Univali, 2005.

FERREIRA, Marieta de Moraes; AMADO, Janaína. Usos & abusos da historia oral. 8. ed. Rio
de Janeiro: Ed. da FGV, 2006.

FRANCO, Marina; LEVÍN, Florencia. (Comp.). Historia reciente: perspectivas y desafíos


para un campo en construcción. Buenos Aires: Editorial Paidós, 2007. Acessado em: 29 de
novembro de 2016. Disponível em: <https://clarrobla2.files.wordpress.com/2011/07/
ilh_traverso_unidad_5.pdf>.

FROTSCHER, Méri. Da celebração da etnicidade teuto-brasileira à afirmação da


brasilidade: ações e discursos das elites locais na esfera pública de Blumenau (1929-1950).
Disponível em:
<https://repositorio.ufsc.br/bitstream/handle/123456789/85390/191344.pdf?sequence=1>.

HALBWACHS, Maurice. A memória coletiva. São Paulo: Centauro, 2004.

LINHARES, Maria Yedda Leite; CARDOSO, Ciro Flamarion S. (Org.). História Geral do
Brasil. 9. ed. Rio de Janeiro: Campus, 2000.

POLLAK, Michel. Memória, esquecimento, silêncio. Estudos Históricos, Rio de Janeiro, v. 2, n. 3,


p. 3-15, 1989.

SEYFERT, Giralda. Nacionalismo e identidade étnica: a ideologia germanista e o grupo étnico


teuto-brasileiro numa comunidade do Vale do Itajaí. Florianópolis: Fundação Catarinense de
Cultura, 1981.
Claricia Otto
Suellen de Souza Lemonje

Ao considerar a docência como objeto de pesquisa e os saberes docentes como


fundamentais na constituição da identidade profissional, tomamos como foco deste artigo, as
práticas de dois professores da Escola Waldorf Anabá, em Florianópolis (SC). Sendo assim,
optamos por dar ênfase às reflexões advindas da produção de fontes orais, tendo em vista a sua
relevância na pesquisa educacional.
O trabalho de análise e reflexão sobre a série documental de que dispõe, seja com as fontes
orais ou qualquer outro tipo de fonte, e a consequente crítica interna e externa a essas fontes é que
possibilita ao historiador construir seu trabalho historiográfico, ou seja, é a atividade profissional
do historiador que cria as condições para a construção de uma história com base nas fontes orais e
não a fonte por si só como sugere o termo história oral. (SELAU, 2004, p. 226).
Evidenciamos a necessidade da interação entre fontes escritas e fontes orais, pois é
determinante para o pesquisador “ter claro que qualquer tipo de fonte pode suscitar dúvidas e que
é justamente o seu trabalho de reflexão e crítica sobre as fontes de que dispõe é que possibilitarão
o encontro de evidências com as quais poderá produzir o seu trabalho historiográfico”. (PIMENTA
apud SELAU, 2004, p. 222).
A produção e utilização de fontes orais consistiram na realização de entrevistas gravadas
com sujeitos professores que rememoraram seus modos de vida, as instituições que frequentaram,
as conjunturas sociais e políticas que viveram, os acontecimentos que lhes marcaram e, nesse caso,
o relato de suas práticas e opções metodológicas durante o ensino da disciplina de História. Foram
entrevistados uma professora de classe do 6º ano e um professor de História do 9º ano do Ensino
Fundamental. O roteiro de entrevistas teve como eixo central a categoria saberes docentes, pois,
segundo Monteiro (2007, p. 14),

[...] a categoria ‘saber docente’ é utilizada por pesquisadores que buscam investigar e
compreender a ação docente, tendo por foco as suas relações com os saberes que dominam
para poder ensinar e aqueles que ensinam, expressos muitas vezes como saberes práticos
e que são considerados fundamentais para a configuração de uma identidade e de
competências profissionais, implicando reconhecimento de subjetividades e apropriações.

* UFSC, Doutora em História.


** UFSC, Mestra em Educação, apoio Capes.
É importante compreender o ofício do professor de História, bem como os conhecimentos
históricos que foram produzidos no processo de ensinar e aprender, a fim de perceber as formas
como esses sujeitos “mobilizam os saberes que dominam para lidar com os saberes que ensinam,
formas essas nas quais são articulados saberes disciplinares, saberes curriculares, saberes
pedagógicos e saberes da experiência, numa criação própria e significativa para seus alunos”
(MONTEIRO, 2007, p. 15).
Antes de realizar a entrevista, os entrevistados foram informados sobre as condições da
pesquisa por meio da leitura e assinatura do Termo de Consentimento de Livre Esclarecimento
(TCLE), haja vista que o Projeto já tinha sido aprovado pelo Comitê de Ética da UFSC.
Salientamos, também, o interesse demonstrado pelos entrevistados durante a investigação, a
disponibilidade de horário para conversar e a boa vontade em compartilhar material, indicar
bibliografias sobre a Pedagogia Waldorf e sugerir palestras e pessoas que pudessem responder aos
nossos questionamentos.
Atualmente, há uma diversidade de formas de ensinar e aprender História. Essa realidade é
perceptível pela pluralidade de concepções teóricas, metodológicas, ideológicas e políticas
presentes em publicações e debates acadêmicos. Contudo, é possível encontrar perspectivas
comuns que se entrecruzam na História ensinada. Essa, por sua vez, vai muito além do prescrito no
currículo, dos projetos políticos pedagógicos e do conteúdo dos livros didáticos. Segundo Fonseca
(2003, p. 244),

[...] os saberes históricos, os valores culturais e políticos são transmitidos e reconstruídos


na escola por sujeitos históricos que trazem consigo um conjunto de crenças, significados,
valores, atitudes e comportamentos adquiridos nos vários espaços. [...] Como sabemos, a
formação se dá ao longo da história de vida dos sujeitos, nos diversos tempos e espaços e,
sobretudo, na ação, na experiência do trabalho docente. É na ação que os saberes do
professor são mobilizados, reconstruídos e assumem diferentes significados.

A articulação entre saberes e práticas é produzida em diferentes espaços de vivências, tendo


em vista que antes de atuar como profissional da Educação, todo professor teve, aproximadamente,
dezesseis anos de experiência no contexto escolar. Desde as vivências na educação básica até a
formação acadêmica, os professores constroem aprendizados que os acompanham e estão presentes
em sua personalidade e no seu saber-fazer pedagógico.
Portanto, para compreendermos a identidade desses profissionais é preciso levar em conta
não somente sua formação acadêmica e curricular formal, mas também o contexto social em que
esse sujeito histórico vivenciou suas experiências, suas crenças, valores, comportamentos, entre
outros aspectos. Nesse conjunto encontram-se os saberes da formação profissional, os saberes das
disciplinas, os saberes do currículo e os saberes da prática docente, esses últimos como parte
dos saberes da experiência, que é constituído por meio da amálgama desses saberes.
Na experiência prática da sala de aula, o professor tem a oportunidade de ressignificar
os saberes de sua experiência escolar, social e cultural na comunidade, os saberes das
disciplinas escolares e acadêmicas e os saberes curriculares dos cursos que frequentou. O
professor é sujeito ativo nesse processo de construção de saberes, haja vista que ele
vive essas categorias, simultaneamente. Contudo, durante a prática pedagógica cotidiana
há ações que não foram vivenciadas em sua formação docente, nem nos currículos das
instituições, como: a escolha da intervenção pedagógica com uma turma específica; a
organização do seu trabalho de acordo com o currículo da escola em que foi contratado; o
controle do tempo da aula; a seleção de temáticas; a elaboração de um plano de ensino anual
e a integração com outros profissionais de ensino que também irão compartilhar e agregar
os seus saberes profissionais e pessoais com os deles. Ou seja, os professores, diante do saber
da experiência, são ao mesmo tempo produtores e sujeitos desse processo. O professor
sistematiza e vivencia os saberes adquiridos, tanto ao longo de sua formação como sujeito
quanto ao longo de sua prática docente.
Durante as entrevistas, igualmente buscamos compreender como os professores da
Escola Waldorf Anabá construíram sua identidade profissional, como rememoram a
experiência vivida ao iniciar as atividades como docentes na escola e quais as opções
metodológicas e estratégias didáticas no cotidiano das aulas de História. Quando
questionada sobre sua formação inicial, a professora do 6º ano emitiu sua opinião:
Eu acho que toda formação inicial de cada um, tudo aquilo que a gente faz, contribui, o
que você é como ser contribui, o fato de eu ter sido católica e ter participado e ido na igreja
e ter um conhecimento, por exemplo, da Bíblia, e ter dado catequese, ter ido na missa,
várias vezes, isso fez eu ser quem sou. Independente de se agora eu acredito, ou não
acredito naquilo. Esse conhecimento que o mundo faz, como é o mundo, serve para minha
sala de aula, serve para eu trabalhar com meus alunos. (Professora do 6º ano. Entrevista,
2015, p. 6).

Não apenas a formação escolar e profissional ajuda a constituir um profissional professor,


mas todas as suas experiências, crenças, valores, contribuem na formação. A formação se dá ao
longo da história de vida, nos diversos tempos e espaços, somada às formações pelas quais se opta
na carreira profissional. Ainda, na entrevista, a professora do 6º ano (2015, p. 2) indica:

Toda ciência, todo o pensamento filosófico, todo o pensamento construtivo do ser eu vou
encontrar no meu caminho pelo mundo. [...] Esse ser professor que está ali diante desses
alunos com essa qualidade de mestre, não tanto de professor, ele vai mostrar para os alunos
aquilo que ele concebeu ou aquilo que ele conseguiu construir no seu processo de vida.
Então, esse professor que vai acompanhar os alunos do 1º até o 8º ano do Ensino

1Para aprofundar o estudo do conceito de saberes docentes, indicamos a leitura de Tardif (2001); Tardif; Gauthier
(1996) e Monteiro (2007).
Fundamental, ele não precisa ser um especialista em nada, a princípio. O que ele precisa?
Ele precisa ser um ser humano que se interessa por todas as áreas do conhecimento, que
tem um grande interesse pelo mundo e que vai em busca de todo esse conhecimento para
transmitir para os seus alunos. Todo ser humano que chegou a uma universidade, ele
passou por um ensino fundamental e um ensino médio e nesse caminho ele aprendeu tudo
o que ele precisava para chegar lá. Então, é esse ‘tudo que eu aprendi’ que eu tenho que
transmitir. [...] É esse interesse por esse ser que está em formação, que cria um professor
de classe, não é a formação.

De acordo com essa profissional Waldorf, parece mais importante o caminho que o ser
humano percorre ao longo da sua vida, as experiências que agrega no seu processo individual, a sua
curiosidade por todas as áreas do conhecimento, do que a formação profissional e institucional.
Embora reconheça que ambas sejam benéficas e válidas para a construção do ser humano, afirma
que para tornar-se um “mestre” e para “transmitir” conhecimento, não é preciso ser um
especialista, mas é preciso viver experiências.2 Segundo essa entrevistada, o professor na
escola Waldorf é muito prestigiado e homenageado, pela relação afetiva que constrói com a
sua turma ao longo de oito anos e pela curiosidade pelo mundo que inspira nos alunos.
Pela memória, o professor recorda o seu passado, reconstrói sua identidade docente e se
constitui diariamente como professor. Cada ser humano é único e percorre um caminho que legitima
a sua trajetória pessoal e profissional. Por esse motivo, consideramos relevante a análise do
envolvimento desses professores com a Pedagogia Waldorf.

Eu quis ser professora depois que eu entendi esse caminho do ser humano. [...] Na verdade,
eu tinha feito o magistério no meu Ensino Fundamental, na minha época, e me decepcionei
com a educação, porque era uma coisa muito chata e não queria. Fiz jornalismo como
profissão, trabalhei nessa área, tive meus filhos e vim para a escola Waldorf, e quando eu
cheguei aqui é que entendi a educação de outra forma. Eu voltei, fui fazer Pedagogia e fui
me preparar para ser professora Waldorf, porque isso respondeu à necessidade do que é
educação de verdade, não aquilo que eu tinha. Então, a escolha foi bem pela pedagogia
Waldorf, mesmo, não pela educação em geral. Eu tenho dois filhos hoje professores
Waldorf, também aqui na escola, trabalhando aqui conosco e percebo que também nos
ajudam. Então, é assim, a família veio junto, eles estudaram aqui, se formaram na escola
e hoje estão dando aula. (Professora do 6º ano. Entrevista, 2015, p. 5).

Com frequência, é possível perceber os professores enaltecendo a Pedagogia Waldorf como


um modelo encantador, cativante e verdadeiro, como, por exemplo, a professora do 6º ano:
“educação de verdade, não aquilo que eu tinha”. Segundo ela, os cursos de Magistério e de
Pedagogia estavam muito focados na escola, nas regras, no formalismo, e a formação Waldorf
ampliou-lhe a perspectiva do que é ser professor, visto que no curso de fundamentação, eles

2 Atualmente, não cabe mais o uso do termo “transmitir conhecimento”, visto que o professor não é o único
detentor de saberes a serem ensinados. Levando em consideração o aluno como sujeito atuante nesse processo de
ensino e aprendizagem, torna-se mais adequado o uso da expressão “construir conhecimento”. Segundo Freire
(2002, p. 12), “Ensinar não é transferir conhecimento, mas criar as possibilidades para a sua própria produção ou
a sua construção”.
encontram a base do trabalho antroposófico: a constituição humana, como o ser humano é formado,
os corpos que constituem o ser e também o ambiente anímico em que vive. Do seu ponto de vista,
uma abordagem mais completa e significativa.
O professor de História do 9º ano relata que não escolheu a profissão docente, mas foi a
docência que o escolheu. Relata que o curso de fundamentação Waldorf foi muito especial e
surpreendente para entender melhor a Antroposofia e o envolvimento dos professores, pois, como
aluno não tinha essa noção. Para ele, a pedagogia Waldorf é muito completa, embora haja outros
modelos pedagógicos que admira. Afirma que se tivesse um filho, ele estudaria em uma escola
Waldorf:
Eu entrei em 2010 e daí me sugeriram [fazer o curso de formação de professor Waldorf],
mas não falaram que era obrigatório. [...] Na época, isso veio mais como um peso para
mim, porque ia ter que pagar, porque eu dava pouca aula aqui. Então, se fosse ver assim,
economicamente falando, nem valia a pena [...]. Só que me falaram bem e eu resolvi tentar.
Na época foi a melhor coisa que eu fiz, porque justamente eu estava em crise com o mundo
acadêmico e eu estava buscando outras coisas e foi muito bom eu ter feito. Apesar de eu
ter estudado em escola Waldorf e achar que eu já sabia muita coisa, foi bem diferente,
porque daí com leitura, [adquiri] outra consciência do que eu já tive quando pequeno.
(Professor do 9º ano. Entrevista, 2015, p. 3).

Importante refletir a distância entre a academia e a formação Waldorf, quando o professor


diz que estava cansado da abordagem e do modelo acadêmico e que na formação de professor
Waldorf encontrou outra perspectiva, mais abrangente, vivencial e espiritual.

Esses cursos dentro da Antroposofia, incluindo o próprio de Pedagogia Waldorf, que na


verdade é uma formação de quatro anos, são interessantes, porque tem muita coisa
vivencial. E quando alguém me pergunta do curso, é muito difícil de falar. Porque é aquela
coisa, a experiência é um pouco... É intransponível. [...] Para mim foi uma surpresa o curso
de Pedagogia Waldorf. Eu não esperava, fui surpreendido positivamente pelas atividades
artísticas. Depois, a gente vai vendo como isso mexe com a gente, de um jeito meio difícil
de explicar. [...] Depois de dois anos dessa formação bem ampla, bem cheia de artes e
música, eles começam a formar o professor para dar aula das diversas disciplinas.
(Professor do 9º ano. Entrevista, 2015, p. 4-5).

Os dois entrevistados estavam insatisfeitos com seus cursos formais, o Magistério e a


Academia, e encontraram no curso de formação de professores Waldorf aquilo que buscavam. Em
alguns momentos, a fala deles deu a impressão de que a Antroposofia é um dogma, uma filosofia
de vida, cujo seguidores tendem a enaltecer todos os seus aspectos, expressando infinitos elogios à
escola e à abrangência da Antroposofia. Portanto, a formação profissional desses professores
induziu e contribuiu no processo de constituição de sua identidade, que se encontra embevecida
pelos ideais de Steiner e da filosofia antroposófica, constantemente reforçados nas suas falas.
O professor do 9º ano não é formado em História, mas em Ciências Sociais, e só iniciou o
curso de fundamentação antroposófica quando já estava atuando em sala de aula. O fato de ter sido
aluno Waldorf e conhecer a metodologia específica desse tipo de instituição escolar contribuiu para
sua a contratação, somada a ementa que autoriza professores de sociologia ministrarem aulas de
História.

Eu apareci num momento em que eles estavam precisando de alguém para dar aula de
História. E a professora que estava lecionando também era formada em Ciências Sociais.
E quando eu fiz o curso em 2003, tinha na ementa que quem era formado em Ciências
Sociais poderia dar aula de História, de Geografia, de Sociologia, até de Filosofia. Então,
veio essa herança de que eu poderia dar aula de História. Só que depois eu fui à secretaria
e me informaram diferente, que não podia mais. Se eu fosse continuar como professor de
História do Ensino Médio aqui, em algum momento eu ia precisar fazer uma licenciatura
em História e eu estava até me programando para isso. (Professor do 9º ano. Entrevista,
2015, p. 6).

Essa fala demonstra que a contratação do professor pela Escola Waldorf Anabá tem pré-
requisitos que estão de acordo com as exigências legais. No entanto, são maleáveis, haja vista que
os professores buscam atender essas determinações de acordo com a disponibilidade de horário e
tempo.
Nenhum dos profissionais participantes desta pesquisa é especialista na área de História,
mas todos mobilizam saberes para lecionar essa disciplina. A visão da professora do 6º ano sobre a
disciplina de História para o Ensino Fundamental é a seguinte:

Nós precisamos caracterizar para o aluno as épocas culturais, as épocas históricas do


mundo. Então, eu não preciso ficar contando para ele todos os eventos históricos ou ter
um livro dessa grossura com um monte de acontecimentos. Mas, eu preciso caracterizar
uma época da humanidade. Então, o que essa época da humanidade trouxe para o homem
do que permanece até hoje no nosso processo? Porque olhar para a história é você ter um
chão onde você vai construir o teu futuro. A história é isso, assim, caminhar para um futuro
sem olhar para o passado, é caminhar no escuro, é tentar sempre um novo, sem ter
nenhuma base. Então, a história ela traz justamente essa possibilidade de você enxergar
cada era da humanidade, do próprio desenvolvimento. Então, a gente começa lá muito na
antiguidade até nos primeiros seres, na criação do mundo, nos primeiros anos, inclusive
antes de começar história propriamente dita, nós começamos com as mitologias, e a
mitologia hindu, a mitologia grega mesmo, a mitologia nórdica, a mitologia indígena, dos
nossos índios, a mitologia dos américos. Todos eles têm a história de criação do mundo e
essas histórias elas até se assemelham. Mesmo de continentes diferentes elas têm coisas
que se repetem, têm caos inicial, têm uma luz que começa, têm um dilúvio quando tudo
não está certo; então, todas as mitologias repetem. (Professora do 6º ano. Entrevista, 2015,
p. 10).

Não somente nas aulas de História, mas também nas entrevistas estão presentes as
concepções de “evolução”, “progresso” e “verdade”. No trecho anterior é possível identificar a
reafirmação da concepção de História proposta por Lanz (2005), de que há uma meta-história
marcada pela noção de evolução, quando coloca que “é preciso caracterizar o que a humanidade
trouxe para o homem hoje” como se o “progresso da humanidade” estivesse legitimado pela
História. Além disso, é possível identificar a referência ao currículo escrito por Richter (2002),
quando a professora reafirma a separação entre mitologia e História, como se à História coubesse a
ideia de “verdade”. Quando aponta que existem os “verdadeiros conceitos históricos”, denota que
existem os não verdadeiros, que no caso seriam as mitologias. A função das mitologias, para a
professora entrevistada, consiste num alimento para a alma da criança:

Como o ser humano chegou à terra? Como estamos vivendo aqui? De que jeito? Aí nós
podemos pegar só o viés científico e falar da evolução; a ciência está trazendo,
bombardeando isso. Mas esse alimento da alma, de preencher ou perceber que o ser
humano sempre teve essa busca, sempre quis saber e ele encontrou histórias ou criou
histórias ou sonhou histórias ou vivenciou histórias para explicar tudo isso, isso é um
alimento fantástico para a criança dessa idade. Então a gente tem essa possibilidade de dar
esse alimento para eles. E a gente trabalha na forma de mitologias; são mitos. E assim
todos os mitos, inclusive o mito judaico-cristão que também é um mito criacionista.
(Professora do 6º ano. Entrevista, 2015, p. 11).

Ao contrapor a ciência versus o alimento da alma (a religião), essa professora reproduz


o pensamento inicial de Steiner, quando desenvolveu a filosofia antroposófica e a pedagogia
Waldorf. Para o precursor desse modelo educacional, a Antroposofia é uma ciência espiritual
que se propõe a ampliar o conhecimento obtido pelo método científico convencional por
meio de preceitos espiritualistas. Esse alimento consiste na imaginação, por meio do
conto de mitologias que justificam as respostas que a humanidade desenvolveu para suas
questões existenciais, da qual a ciência não consegue explicar.
Interessante mencionar que a professora considera a história de Jesus Cristo apenas um
mito criacionista e não uma “história-verdade”. Embora no calendário da escola haja
datas em comemoração aos festejos cristãos, podemos supor que essas pessoas apropriaram
esse mito como verdade.
Quando a entrevistada diz que todos esses mitos repetem a história de criação do
mundo, seja a mitologia nórdica, a mitologia hindu, a mitologia grega e “a mitologia americana
e a mitologia indígena”, percebemos que ela inclui conteúdos que não foram
mencionados nos currículos redigidos por Stockmeyer (2011) e Richter (2002).3 Ou seja,
apesar de o saber curricular operar conteúdos eurocêntricos, é por meio da articulação dos
saberes da formação e da prática que essa professora mobiliza conteúdos os quais considera
relevantes para a construção das suas aulas de História. É o seu interesse pela temática, sua
formação pessoal e a sua iniciativa que legitimam esse processo. Ela conta como abordou as
mitologias indígenas quando sua turma estava no 4º ano: Tem vários caminhos que você pode
fazer isso. Eu comecei contando para eles a mitologia indígena; então, os tupis guaranis, os carijós, na
verdade, dos que viviam aqui na ilha. Comecei a contar como é que eles viviam, o que eles

3 O primeiro currículo elaborado para as escolas Waldorf não é proveniente de um documento


publicado com essa finalidade. A primeira escola recebeu seu currículo definitivo em 1919, por meio de
conferências e seminários pedagógicos proferidos por Rudolf Steiner, que foram gravados e seu conteúdo
compilado, posteriormente. A intenção de compilar os dados das conferências de Steiner não foi a de formar
um currículo dogmático, mas é possível perceber que, praticamente, não há alterações em relação à proposição
inicial, ou seja, seus compiladores não ousaram adaptar e/ou modificar o currículo de acordo com a
configuração educacional atual e as necessidades locais de cada escola. (STOCKMEYER, 2011, p. 8-16).
acreditavam, e vem uma outra mitologia que explica a criação do mundo, mas é um povo que você
não tem estudo tão registrado como tem a saga do povo judeu. Mas, hoje em dia, se consegue, através
de pesquisas, bastante informação sobre esse povo. [...] Muitas vezes, quando nós falamos ‘tempos
antigos’, nos referíamos à pós-colonização. Toda a História do Brasil só se fala pós-colonização e o
índio como um enfeite, um elemento a parte, como se antes de 1500 não existisse nada. E isso é uma
tarefa que eu me pus já há algum tempo, dentro do nosso próprio currículo, da nossa pedagogia,
porque nós também não tínhamos isso; nós usávamos a própria história. [...] E eu tenho trabalhado nos
seminários com as pessoas, justamente para trazer esse conteúdo, dessa forma, porque eu acho que
nutre mais a criança. (Professora do 6º ano. Entrevista, 2015, p. 24).
Ao afirmar que essa é uma tarefa que ela se incumbiu há algum tempo, é porque a sua
formação profissional esteve ligada a essa temática, haja vista que seu trabalho final da formação
de professores Waldorf foi sobre “mitologias indígenas”.

Na época em que eu fiz a minha formação, eu trabalhei a questão das mitologias indígenas
porque isso é uma coisa que eu sempre trago, pois a escola Waldorf dava ênfase às
mitologias europeias e a meu ver faltava um pouco do nosso entorno aqui. Então, eu trouxe
alguma coisa para incluir as mitologias indígenas da América dentro do currículo; foi esse
o meu trabalho... Eu gosto muito de História. Na verdade, não é à toa, que História é a
disciplina que eu tenho uma paixão, apesar de eu também amar a Física, eu amo a
Química... Professor de classe é assim. (Professora do 6º ano. Entrevista, 2015, p. 10).

Portanto, essa é uma iniciativa pessoal, resultante da sua formação e atuação no curso
de formação de professores Waldorf, no qual ministra o curso específico da disciplina de
História sob a perspectiva da Antroposofia. Suas propostas de inclusão dessa temática no
currículo ainda não são formalizadas, mas pudemos constatar na entrevista que não tem
correlação com a Lei 11.645/08 que institui a obrigatoriedade do ensino de História Indígena
nas escolas do Brasil. Ao questioná-la sobre os outros professores, ela afirmou que vai de cada
um incluir, ou não, esse conteúdo que a escola não exige a temática como cumprimento da
Lei. É possível afirmar que cada professor administra os saberes docentes de forma única e
singular.
Caracterizamos a professora do 6º ano como uma professora reflexiva, porque em
diferentes momentos refletiu acerca de seu papel na escola e na sala de aula e, também, sobre si
mesma, dentro do seu processo de constituição como professora de História na Escola
Waldorf Anabá, propondo e praticando novas abordagens. 4
Para ser um professor reflexivo é preciso compreender e contextualizar sua
realidade, dialogar com outras perspectivas e analisar sua prática docente, colocando para
si mesmo as questões do cotidiano como situações novas, ao mesmo tempo em que as
vivencia. Consideramos que as experiências docentes não são homogêneas; cada professor e
cada contexto permite que do 6º ano teceu uma crítica à obra espontaneamente, apontando os
bbbbbb

4 Desde 1990, a expressão “professor reflexivo” tomou conta do cenário educacional, confundindo a
reflexão enquanto adjetivo, como atributo próprio do ser humano, com um movimento teórico de compreensão
do trabalho docente. (PIMENTA, 2012, p. 22).
aspectos marcadamente europeus nuna abordagem da História, presentes nas publicações
sobre a pedagogia Waldorf:
Tem um livro não sei se você conhece, é “Passeios através da História”. Já viu? Esse é
bem legal, bem interessante. Apesar de ter algumas coisas naquele livro que eu não gosto. O
geral, a ideia da História na Pedagogia, eu acho ainda muito focado na Europa. E eu sinto
falta desse olhar, inclusive, alguma crítica, nesse sentido, e eu não acho saudável isso naquele
livro. É europeu. Teria que alguém do Brasil escrever um livro mais ou menos nesse sentido.
Ele é interessante, mas precisa incluir mais História das Américas, Ásia, inclusive. Ele está
focado demais na Europa. Claro, “Passeios através da história Europeia” tudo bem, tem
navegações, essas coisas, mas eu sinto falta de um olhar para o resto do mundo; ficou um
pouco no umbigo. Eu sou crítica a tudo que esquece que a gente faz parte da história do
mundo. E isso não é privilégio da pedagogia Waldorf. Em todos os livros de História que eu
pesquiso no Brasil, falta. (Professora do 6º ano. Entrevista, 2015, p. 16).
Em diferentes momentos, os dois entrevistados indicaram o livro de Rudolf Lanz
(1995), intitulado “Passeios Através da História”, por considerarem-no uma referência para
pesquisadores e estudiosos da pedagogia Waldorf, principalmente no que concerne ao ensino
de História sob o viés antroposófico. Na fala dessa professora é possível identificar o
descontentamento com as obras que permanecem embevecidas pelos pressupostos
eurocêntricos das publicações de Steiner. Além de se dar conta de que isso não acontece
apenas em escolas Waldorf, ainda sugere que se ampliem as publicações brasileiras sobre a
temática, a fim de incluir a História do continente americano e asiático. Embora essa
professora esteja comprometida com a orientação curricular Waldorf, é a sua formação e os
seus saberes docentes que possibilitam um diálogo tangencial entre o discurso
antroposófico e o discurso acadêmico contemporâneo, que critica a abordagem eurocêntrica,
tanto na literatura, quanto em livros didáticos. Para finalizar, a professora entrevistada afirma:
Esse caminho que a pedagogia nos oferece de fazer História dessa forma e que está em
todas as pedagogias, o que acontece é que, às vezes, as pessoas se fixam tanto no ‘tem que
ser essa data, esse nome, essa hora, essa coisa’ e esquecem que a criança nem precisa nada
disso, porque ela não tem que saber nenhuma data decorada, nem nada. Isso ela vai poder
decorar mais tarde, se ela quiser, se ela precisar. (Professora do 6º ano. Entrevista, 2015,
p. 13).

Cientes de que a História não está mais presa a fatos e datas, concepção proveniente do atual
debate teórico-historiográfico acadêmico da Nova História, há momentos em que os professores se
contradizem em relação à teoria e à prática em sala de aula.

A primeira vez eu fiquei meio assustado, porque o currículo de História do 9º ano em uma
época só é pouco para dar aula de atualidades, dos séculos XIX e XX, na verdade,
principalmente, o século XX, História Mundial e História do Brasil. Mas na minha
concepção de História, não dá para eu começar o século XX falando de 1901. Eu preciso
fazer um apanhado do que estava acontecendo antes. E, a minha tendência é sempre dar
um passinho atrás para poder falar: “isso é consequência disso, isso é consequência
daquilo”. Nas minhas aulas, isso fica bem claro porque eu tento traçar sempre essa
continuidade da História. Que História não é só uma data, não são várias datas e nomes. É
lamentável encarar História dessa forma. Então, eu sempre tento mostrar para os alunos
como uma coisa vai influenciando a outra. (Professor do 9º ano. Entrevista, 2015, p. 10).

O professor do 9º ano demonstra estar ciente que já caiu em desuso a concepção da História
como um “relato fiel de fatos verídicos vivenciados pelos grandes heróis” e que hoje o conteúdo
histórico é abordado por meio do estabelecimento de relações entre as rupturas e continuidades.
Identifico em seu discurso o contraponto entre o método positivista e os métodos da História Nova.

Então, eu conto a História de como estourou uma guerra, ou quem foi Luiz Carlos Prestes
ou Olga Benário Prestes ou Getúlio Vargas. E a biografia é muito importante no 9º ano
para que eles se vejam mais uma vez dentro da História e saibam que quem faz a História
são pessoas; isso é importante que eles percebam. Então, Getúlio Vargas que ficou tantos
anos no poder, a vida pessoal dele tinha tudo a ver com a vida política. Ainda mais ele que
no final saiu da vida para entrar na História. Uma biografia mostra como é a vida pessoal
deles, e que a História é feita por seres humanos. (Professor do 9º ano. Entrevista, 2015,
p. 14).

Assim, coexistem metodologias e abordagens históricas, pois além de narrar biografias de


pessoas importantes para a história da humanidade, também solicitou à turma relatos de pessoas
comuns da família que sobreviveram ao nazismo ou à ditadura militar, para que os alunos percebam
que fazem parte da história:

Um professor muito experiente de Botucatú me disse algumas coisas; uma delas, é como
uma coisa vai influenciando a outra. [...] Ele me falou que é bem importante para a História
dentro da Pedagogia Waldorf, especialmente, no Ensino Médio, mostrar essas influências,
essa continuidade, essa relação e que a História é complexa, e também fazer com que eles
percebam que eles fazem parte da História. [...] Uma coisa que eu adoro pedir para eles,
na verdade como tarefa, é fazer um relato da família. Então, hoje mesmo no final da aula
eu li um relato, e solicitei que eles pesquisassem alguém da família deles ou um amigo do
avô. Enfim, alguém distante da família, ou alguém bem próximo que viveu lá no nazismo
ou que viveu num campo de concentração, ou que teve o primo do tio, que foi preso na
ditadura no Brasil e eles se dão conta que a História não é uma coisa lá do museu, morto,
mas a escola, a História tem que estar viva. Então, é isso, o ensino na Pedagogia Waldorf
é o ensino vivo. Isso é até um conceito que se utiliza bastante, assim, ensino vivo. Que não
é aquele ensino só intelectual do livro didático, mas sim que o aluno se perceba no
conhecimento. (Professor do 9º ano. Entrevista, 2015, p. 11).

Ao aprimorar o saber da prática de outro professor de escola Waldorf, o entrevistado


demonstra que os saberes docentes vão sendo constituídos também por meio da troca de
experiências entre profissionais. Os saberes experienciais são os saberes baseados no trabalho
cotidiano e no conhecimento de seu meio, e brotam da experiência individual e/ou coletiva do
saber-fazer pedagógico. Na entrevista, o docente comentou que os professores trocam materiais,
assistem às aulas um dos outros, com o intuito de aprender e/ou ensinar. É importante destacar que
não é apenas por meio de uma atividade com relatos orais que o estudante se percebe como sujeito
histórico; há outras abordagens que fazem o aluno construir esse pensamento crítico-consciente.
Contudo, é interessante perceber a preocupação dos dois professores em despertar essa percepção
nos alunos nas aulas de História, para que não permaneça passivo ao conteúdo, mas que faça
relações com o seu presente. A questão do discurso de “ensino vivo” só foi mencionado pelo
professor do 9º ano.
Nas entrevistas pudemos identificar dois “professores-pesquisadores”, pois em nenhum
momento eles se colocaram como prontos, mas demonstraram-se dispostos a aprimorar novas
abordagens e metodologias, tanto que o professor do 9º ano manuseia novas fontes documentais
nas aulas de História, muito embora, apenas como recursos didáticos. Em relação à pesquisa no
dia-a-dia da escola, a professora do 6º ano afirma:

Eu pesquiso todo o dia, muitas vezes, a partir de perguntas deles. Eu preparei a minha
época, eu sei o que tenho que dar. Mas, quando surgiu uma questão, por exemplo, das
mulheres: ‘ah, professora, e as mulheres?’. Quando eu fui dar os nomes para eles fazerem
uma pesquisa, eu fui atrás, pesquisei todas as mulheres que tiveram alguma relevância
para a época estudada. (Professora do 6º ano. Entrevista, 2015, p. 14).

A temática de gênero é uma conquista legítima e legal e deve ser incorporada nos bancos
escolares. No entanto, percebi que a professora só incorporou o debate em suas aulas, mediante a
proposição das estudantes. Poderia ser uma temática recomendada por ela mesma, em virtude dos
debates da mídia e a necessidade de trabalhar não apenas o papel das mulheres nas escolas, mas
também a temática de gênero e diversidade. No entanto, sabemos que são mudanças a serem
materializadas com o tempo. Os professores ainda estão em processo de aprimorar novos debates e
perspectivas de História para suas aulas.
Para finalizar, o docente responsável pelas aulas de História do 9º ano coloca o seu ponto
de vista sobre seu esforço de ter se tornado um professor-pesquisador:

Os alunos não têm ideia o quanto a gente se prepara, o quanto a gente se dedica; em cursos,
em palestras e durante a aula. Você viu minha época? Então dá para ver como é suado,
como é o esforço de estar aqui tão cedo. Enquanto aluno eu não tinha ideia. Para minha
vida foi muito bom ter sido professor, assim, porque eu sei que qualquer professor de
qualquer escola tem que se dedicar muito e aqui a gente se auto-cobra muito. Não é que o
professor Waldorf é melhor, não é isso. Todos os professores de várias escolas são muito
dedicados, exigem muito. Mas aqui eu vejo que os próprios alunos têm uma expectativa
da aula. (Professor do 9º ano. Entrevista, 2015, p. 7).

Aqui cabe a reflexão de que na Academia os futuros professores não lidam com os saberes
da prática, como a preparação da aula, a preocupação com o horário, o planejamento do plano de
ensino, a avaliação da turma, a formação continuada em palestras e cursos, seja em escolas públicas
ou privadas, com ou sem método específico. Não se trata de reduzir tudo à prática, nem tampouco
desvalorizar a teoria, “Trata-se de um espaço e um tempo que devem assegurar e possibilitar as
condições necessárias para o exercício da relação entre os aspectos teóricos e práticos da formação.”
(FONSECA, 2003, p. 247).

Pela experiência e narrativas dos dois professores entrevistados, podemos concluir que a
academia não é o único polo do saber. Existem outros espaços de conhecimento tão legítimos
quanto o saber acadêmico, como o saber da experiência, o saber da prática, o contato com o campo
profissional e as diferentes vertentes de ensino provenientes de outras tendências, como o próprio
campo da Pedagogia Waldorf. Nessa, é possível identificar aspectos científicos e espirituais que
englobam saberes considerados legítimos por seus seguidores e praticantes. Há aspectos que
contribuem no processo de ensino e aprendizagem, como o vínculo e a afetividade entre professor
e aluno e, para que esse processo se materialize, a cultura escolar específica da Escola Waldorf
Anabá é um dos elementos-chave.
Nem todo conhecimento para tornar-se professor é adquirido no ambiente acadêmico ou em
cursos de formação oferecidos por outras instituições de ensino. É a soma dos saberes da formação,
dos saberes curriculares, dos saberes disciplinares e dos saberes da experiência que compõem a
identidade desse profissional docente, somado ao contexto social em que esse sujeito histórico
vivenciou suas experiências, suas crenças, valores, comportamentos, entre outros aspectos
subjetivos. Suas estratégias didáticas, seu discurso e suas escolhas em sala de aula são resultados
das experiências pessoais e não tão somente das prescrições curriculares.
Concluímos que, muito embora os dois professores estejam comprometidos com a
orientação curricular Waldorf, é a formação acadêmica e os saberes docentes que possibilitam um
diálogo tangencial entre o discurso antroposófico e o discurso acadêmico contemporâneo. Este
critica a abordagem eurocêntrica, tanto na literatura quanto em livros didáticos, bem como a
necessidade de atualização do currículo Waldorf e a inserção, no material pedagógico, de temáticas
e perspectivas que correspondam ao debate atual do campo do ensino de História. A título de
exemplo, podemos indicar a obrigatoriedade do Ensino de História da África, da História Indígena
e da temática de gênero.

BRASIL. Lei 10639/2003. Disponível em <https://goo.gl/W2EK2L> Acesso em: 23 nov. 2015.

BRASIL. Lei 11645/2008. Disponível em <https://goo.gl/Ednqjp> Acesso em: 23 nov. 2015.


CAVALCANTI, Francisca Maria Barbosa. Saberes do professor de classe de uma escola Waldorf:
práticas musicais em contexto. Dissertação. (Mestrado em Educação) – Florianópolis,
Universidade do Estado de Santa Catarina, 2014.

FONSECA, Selva Guimarães. Didática e prática de ensino de História: experiências, reflexões e


aprendizados. Campinas: Papirus, 2003.

FREIRE, Paulo. Pedagogia da autonomia: saberes necessários à prática educativa. 25. ed., São
Paulo: Paz e Terra, 2002.

LANZ, Rudolf. A Pedagogia Waldorf: caminho para um ensino mais humano. 9. ed., São Paulo:
Antroposófica, 2005.

_____. Noções básicas de Antroposofia. 4. ed., São Paulo: Antroposófica, 1997.

_____. Passeios através da História: à luz da Antroposofia. 2. ed. São Paulo: Antroposófica,
1995.

MONTEIRO, Ana Maria. Professores de História: entre saberes e práticas. Rio de Janeiro:
Mauad, 2007.

PIMENTA, Selma Garrido. Professor reflexivo: construindo uma crítica. In: _____; GHEDIN,
Evandro (Org.). Professor reflexivo no Brasil: gênese e crítica de um conceito. 7. ed., São Paulo:
Cortez, 2012.

RICHTER, Tobias. Objetivo pedagógico e metas de ensino de uma Escola Waldorf. São Paulo:
Federação das Escolas Waldorf, 2002.

SELAU, Mauricio da Silva. História Oral: uma metodologia para o trabalho com fontes orais. In:
Esboços, n. 11, Florianópolis: UFSC, 2004.

SETZER, Valdemar. Meios eletrônicos e Educação: uma visão alternativa. São Paulo: Escrituras,
2001.

SETZER, Valdemar. Rudolf Steiner 1861-1925. In: PALMER, Joy A. (Org.). 50 grandes
educadores: de Confúcio a Dewey. 2008. Disponível em: <https://goo.gl/acaCKd> Acesso em: 28
jan 2016.

SITE OFICAL DA ESCOLA WALDORF ANABÁ. Disponível em: <http://www.anaba.com.br/>


Acesso em: 20 nov. 2015.
SITE OFICIAL DA FEDERAÇÃO DAS ESCOLAS WALDORF. Disponível em:
<http://www.federacaoescolaswaldorf.org.br/ Perguntas-Frequentes.php> Acesso em: 20 nov.
2015.

STOCKMEYER, Karl. Currículo de Rudolf Steiner para as escolas Waldorf. Reproduzido do


original para os professores das Escolas Livres Waldorf. [1ª edição: 1976]. Centro de Pesquisa
Pedagógicas da Associação das Escolas Livres Waldorf, 2011.

TARDIF, Maurice; GAUTHIER, Clermont. O saber profissional dos professores: fundamentos e


epistemologia. In: _____ (Org.). Seminário de pesquisa sobre o saber docente. Fortaleza: UFCE,
1996.

TARDIF. Maurice. Saberes docentes e formação profissional. Rio de Janeiro: Vozes, 2001.

Entrevista concedida pelo professor do 9º ano a Suellen de Souza Lemonje. Florianópolis,


15/09/2015 e 23/09/2015 (1h25min94s. 29 páginas).

Entrevista concedida pela professora do 6º ano a Suellen de Souza Lemonje. Florianópolis,


9/03/2016 e 5/04/2016. (52min52s e 2h55min55s. 42 páginas).
Elison Antonio Paim

O verdadeiro lembrar, a rememoração salva o passado, porque procede não só a sua


conservação, mas lhe assina-la um lugar preciso de sepultura no chão do presente,
possibilitando o luto e a continuação da vida. [...]. Somente este trabalho de rememoração
e de narração, sob a égide da morte e do túmulo, possibilita [...] que se possa esculpir uma
outra imagem, a do futuro. (GAGNEBIN, 2012, p. 35).

Inspirados na epigrafe extraída do capítulo Apagar os rastros, recolher os restos de Jeanne


Marie Gagnebin, construímos este capítulo como um fragmento de lembranças integrantes do
projeto de pesquisa Escola e patrimônio cultural: entretecendo memórias da/na ilha de
Santa Catarina1 apresentado pelo grupo de pesquisas Patrimônio, Memória e Educação –
PAMEDUC à Chamada Pública/Edital Universal 001/2014 da Fundação de Pesquisa de
Santa Catarina – FAPESC, por meio do qual fomos contemplados com financiamento.
Dito isso, apresentamos, inicialmente ao leitor, alguns aspectos teórico-metodológicos
fundantes das ações de pesquisa e produção escrita. No segundo momento apresentamos um recorte
das narrativas de professores no tocante ao debate sobre a cidade realizado em aulas de História em
Escolas Públicas de Florianópolis/SC.

* Professor Permanente do Programa de Pós-graduação em Educação (PPGE) e do Mestrado Profissional em


Ensino de História (Profhistória) da Universidade Federal de Santa Catarina. Coordenador do projeto Escola
e patrimônio cultural: entretecendo memórias e histórias da/na ilha de Santa Catarina.
1 O projeto foi apresentado, inicialmente, pelos professores Elison Antonio Paim (Coordenador), Andréa
Ferreira Delgado, Claricia Otto, Mônica Martins da Silva e, posteriormente, se integraram as professoras Joana
Vieira Borges e Karen Cristine Rechia. Da mesma forma se integraram ao projeto, a Bolsista de Iniciação
Científica pelo CNPq Isadora Nunes Tavares, o Pós-doutorando Nilton Mullet Pereira, os doutorandos Pedro
Mülbersted Pereira, Patricia Magalhães Pinheiro, Josiane Beloni de Paula, Ana Paula da Silva Freire, os
mestrandos Giovanna Santana, Guilherme Braunsperger de Lima Vieira, Guilherme Dunchatt Zettermann,
Odair de Souza, Silena Ribeiro Calderaro Oliveira, Tatiana de Oliveira Santana e Valdemar de Assis Lima.
O campo da Formação de Professores se constituiu, no âmbito da educação
brasileira, a partir de uma grande contradição: a exaltação dessa profissão tanto nos
discursos cotidianos como nos discursos políticos e nos discursos especializados, e, ao
mesmo tempo, a sua extremada desvalorização em termos sociais concretos, por exemplo,
em termos salariais. Tradicionalmente, a formação de professores, sobretudo para a educação
básica, é vista como responsabilidade das Instituições de Ensino Superior – IES que atuam
como agências formadoras. As escolas, por conta disso, costumam esperar que os
docentes das IES, supervisores de estágios, “visitem” os estagiários em sala de aula,
procedendo as “correções” necessárias para o bom andamento de suas aulas. Geralmente, à
escola e ao professor titular da turma de estágio cabe apenas entregar ao estagiário a lista dos
conteúdos e orientações de como proceder para o bom desempenho das atividades. Com isso, a
relação estabelecida entre a universidade e a escola formalmente “desobriga” a instituição
escolar em relação à formação daqueles que serão seus prováveis futuros profissionais.
Dessa forma, reafirma-se a necessidade de articulação entre as dimensões teóricas e
práticas de uma formação profissional.
É nesse cenário que propusemos uma atuação que integre ações de pesquisa e de
ensino. E, para isso, elaboramos o projeto Escola e patrimônio cultural: entretecendo
memórias da/na ilha de Santa Catarina. Procuramos compreender como são realizadas as
aulas, especialmente de História, no tocante às questões da cidade, memória e patrimônio a
partir do estudo dos documentos oficiais e das experiências dos professores das escolas de
educação básica. Trabalhamos, preferencialmente, com escolas campo de atuação dos
professores de Estágio Supervisionado e licenciandos em História da Universidade Federal
de Santa Catarina/UFSC.
Nesse sentido, a proposta de pesquisa foi inteiramente integrada às ações e
proposições do grupo de pesquisa Patrimônio, Memória e Educação – PAMEDUC, que, desde
sua constituição em 2010, pela linha de pesquisa Patrimônio cultural, história local e
educação, tem investigado as interfaces entre história local, história regional, patrimônio e
memória de forma articulada com a formação inicial e continuada de professores, bem como
com o desenvolvimento de projetos de extensão, visto que os docentes que o integram
desenvolvem sistematicamente atividades de pesquisa, ensino e extensão.
Os integrantes do PAMEDUC realizaram atividades de pesquisa relacionadas ao
ensino de História, memória e patrimônio cultural. No ensino, os pesquisadores trabalharam
nos últimos anos com o componente curricular Seminário de Pesquisa em Ensino de
História, Metodologia do Ensino de História e Estágio Supervisionado em História I e II,
todas vinculadas ao Curso de História, e História, Infância e Ensino no curso de Pedagogia,
todos na Universidade Federal de Santa Catarina. No âmbito da pós-graduação há
experiências em cursos Latu Sensu e Strictu Sensu no Programa de Pós-Graduação em
Educação e no âmbito da educação básica, no Colégio de Aplicação da UFSC.
A relação com o ensino das temáticas da pesquisa se intensificou com a
criação e implementação do Curso de Mestrado Profissional em Ensino de História –
Profhistória, cuja implementação, em agosto de 2015, ocorreu durante o desenvolvimento da
pesquisa na qual estão envolvidos diretamente os pesquisadores Mônica (Coordenadora),
Elison, Andréa e Karen.
O Mestrado Profissional em Ensino de História tem como foco de pesquisa as
condições de formação do estudante e do professor e o exercício do ensino de História na
escola, pensada como lugar de produção e transmissão de conteúdos, que atende a
formas de organização e de classificação do conhecimento histórico por meio do currículo.
Esse último, compreendido como conhecimento historicamente constituído, uma forma de
regulação social e disciplinar. Desenvolve ainda investigações sobre a produção e
aprendizagem da História, fora do espaço escolar como em museus, teatro, centros culturais e
o espaço urbano citadino. Identificando a história como prática sociocultural de referência, o
foco recai sobre as variadas formas de representação e usos do passado no espaço público, com
características distintas daquelas observadas na escola, a saber: o turismo de caráter histórico,
os monumentos, as festas cívicas, as exposições, entre outras.
A perspectiva da pesquisa Escola e patrimônio cultural: entretecendo memórias da/na
ilha de Santa Catarina foi integrar estudos da memória, patrimônio, cidade, história,
formação de professores, história da educação, saberes docentes e práticas pedagógicas; os
elementos da cultura escolar como o espaço escolar, os professores, os gestores da escola, os
alunos e suas famílias, os planos de trabalho, a sala de aula, o currículo da escola, os
materiais didáticos, a política educacional, os documentos oficiais oriundos do Ministério
da Educação e das Secretarias da Educação.
Foi nesse emaranhado de relações entre escolas e universidade que investigamos como
o patrimônio, a memória, a cidade e a educação patrimonial estão ou não presentes nas
Escolas de Educação Básica e Núcleos de Educação de Jovens e Adultos nas redes públicas
municipal, estadual e federal na porção insular do município de Florianópolis ou Ilha de
Santa Catarina. Para tanto, pesquisamos as relações existentes entre a apropriação desses
saberes pelos professores e a produção do conhecimento histórico escolar, enfatizando
a utilização de recursos didáticos referentes às questões propostas.
Considerando esse contexto, nossos questionamentos referem-se a como as questões
da memória e patrimônio estão presentes nas aulas, especialmente as de História, da educação
básica e de jovens e adultos? O que as propostas oficiais apresentam como definições e como
sugerem ou não o trabalho com as memórias e os patrimônios na Ilha de Santa Catarina? O
que, como e quando são trabalhadas? São trabalhados na forma de temáticas, projetos
próprios ou na forma de complementos a determinados temas de História Geral ou do
Brasil? Quais experiências esses professores já desenvolveram sobre as temáticas? Quais as
necessidades desses professores para aperfeiçoar suas aulas quanto às temáticas propostas?
Em quais atividades e temas gostariam que as atividades de estágio contribuíssem? Que
tipo de atividades envolvem com os alunos nos diferentes espaços de memória? Como a
universidade pode contribuir para a efetivação de práticas escolares que deem ênfase à
Educação Patrimonial?
O estudo foi realizado a partir de dados coletados nas escolas públicas da Ilha de
Santa Catarina, campos de estágio do curso de História da UFSC e das atividades de
PIBID, a saber, Colégio de Aplicação da UFSC, escolas Batista Pereira, no Ribeirão da
Ilha, José Amaro Cordeiro, no Morro das Pedras, e Dilma Lucia dos Santos, na Armação do
Pântano do Sul.
As questões da Educação Patrimonial estão em constituição concomitante com a
afirmação do Ensino de História como campo de pesquisa. Nos encontros nacionais e
internacionais Pesquisadores do Ensino de História, Perspectivas do Ensino de História,
encontros nacionais e regionais da Associação Nacional de História (ANPUH-Brasil),
Encontro Nacional de Didática e Prática de Ensino (Endipe), Encontro Nacional de
Museologia, encontros da Sociedade Brasileira de Arqueologia (SAB), Encontro Nacional e
Encontros Regionais de História Oral, entre outros, têm sido uma constante os grupos de
trabalho, simpósios temáticos, mesas redondas e conferências abordando temáticas como:
cidade, história local, patrimônio, memória, lugares de memória, experiências de atividades
educativas em espaços escolares e não escolares. Todos esses eventos têm relacionado
diretamente as atividades educativas relativas às questões do patrimônio, sendo denominada
com algumas variações de Educação Patrimonial, Educação Museal, Educação das
Sensibilidades.
Tais pesquisas e relatos de experiências educativas evidenciam que, muitas vezes,
acontece uma dicotomia entre o trabalho educativo realizado nos espaços de memória e o
trabalho da escola como se eles fossem concorrentes ou, em outros casos, como se os espaços
de memória devessem trabalhar aquilo que a escola não trabalha. Por outro lado, alguns
professores realizam visitas aos espaços de memória para ilustrar o que trabalham ou o que
está nos livros de História.
Procurando minimizar essas dicotomias, a própria legislação educacional a partir do
Parecer CNE/CES 492/2001, ao explicitar as diretrizes para os cursos de História, ao tratar
dos estágios, preconiza que: “As atividades acadêmicas complementares (estágios, iniciação
científica, projetos de extensão, seminários extra-classe [sic], participação em eventos
científicos) poderão ocorrer fora do ambiente escolar, em várias modalidades que deverão
ser reconhecidas, supervisionadas e homologadas pelos Colegiados/Coordenações dos
Cursos”. Ou ainda, no tocante às competências e habilidades no item 2, na alínea e afirma-se
que o acadêmico de História deverá “Desenvolver a pesquisa, a produção do conhecimento e
sua difusão não só no âmbito acadêmico, mas também em instituições de ensino, museus, em
órgãos de preservação de documentos e no desenvolvimento de políticas e projetos de gestão
do patrimônio cultural”.
Nos contatos com as escolas campo de Estágio Supervisionado em História, em
projetos de extensão e no PIBID, percebemos que os documentos oficiais e boa parte dos
livros didáticos têm negligenciado as questões da cidade, do patrimônio e da memória, uma
vez que as escolas com as quais trabalhamos estão localizadas em espaços visitados por
muitos turistas devido aos conjuntos arquitetônicos e os diversos aspectos do patrimônio
imaterial presentes nos saberes e fazeres dos moradores dos arredores dessas escolas. Assim,
as experiências didáticas com tais temáticas são ainda tímidas, pontuais e de iniciativa de
alguns professores que procuram integrar atividades de educação patrimonial em suas
propostas de trabalho. Portanto, fica evidenciada a necessidade de realização de pesquisas
sobre memória, cidade e o patrimônio na relação com o ensino, especialmente o de
História,
História, para que possamos aprofundar as discussões e práticas de educação patrimonial.
O objetivo central da pesquisa foi: investigar os diferentes saberes, fazeres e
experiências amalgamadas na produção do conhecimento escolar identificando como a
cidade, a memória e o patrimônio são agenciados nas práticas docentes para a produção
dos saberes escolares em instituições de educação básica na Ilha de Santa Catarina.
O estudo foi de natureza qualitativa, desenvolvida principalmente pelo emprego da
análise documental e coleta de narrativas orais, conforme os procedimentos apropriados no
tratamento das fontes. As observações feitas e as narrativas do vivido permitiram, como
lembra Thompson, a auscultar os silêncios, bem como as vozes dos sujeitos envolvidos na
pesquisa.
A todos os sujeitos da pesquisa foi solicitado que autorizassem sua participação mediante
assinatura de Termo de Consentimento Livre e Esclarecido – TCLE, conforme preconiza a
Resolução 196/96 do Ministério da Saúde. O contato inicial e a identificação dos sujeitos narradores
ocorreram a partir de informações coletadas nas escolas e nos contatos prévios dos pesquisadores
com os professores, especialmente durante as atividades de estágio.
Trabalhamos concomitantemente em diferentes frentes para a coleta das informações
documentos e entrevistas. Uma delas foi com os documentos e Políticas Públicas de Educação que
expressassem as orientações para o trabalho com as temáticas cidade, memória, patrimônio e
questões étnicorraciais como a Proposta curricular para a rede pública estadual de ensino de Santa
Catarina, a Proposta Curricular para a rede municipal de ensino de Florianópolis e as Diretrizes para
a Educação de Jovens e Adultos da Secretaria Municipal de Educação de Florianópolis.
Entre os meses de fevereiro e abril de 2017 entrevistamos duas professoras e quatro
professores das escolas Batista Pereira, José Amaro Cordeiro e Colégio de Aplicação da
Universidade Federal de Santa Catarina. Os professores entrevistados foram Camilo Buss Araújo,
Ricardo Pinho, Bruno Zilliotto, André Zanotto e as professoras Glaucia Dias da Costa e Karen
Cristine Rechia. Nossos agradecimentos a todos eles.
As narrativas orais dos professores foram coletadas por meio de entrevistas
semiestruturadas no intuito de conhecer as práticas pedagógicas dos docentes, em especial àquelas
relacionadas com as temáticas cidade, memórias, patrimônios e questões étnicorraciais. Portanto,
para a coleta de todas as narrativas orais foi construído um roteiro, composto de questões-chave,
com a finalidade de estimular a narração, possibilitando que os narradores expusessem livremente
o que entendessem como necessário e pertinente para cada abordagem proposta, com ênfase nas
questões centrais de pesquisa.
Partimos do princípio de que memórias e experiências são únicas e, portanto, cada narrador
tem uma forma única de rememorar. Entretanto, como não podíamos coletar um número infinito de
narrações, entendemos que as seis realizadas possibilitam a realização de cruzamentos,
comparações, análises para a produção e divulgação de reflexões.
Teoricamente nos pautamos em conceitos e autores que problematizam as relações entre
memória, patrimônio, cidade, educação patrimonial e relações étnicorraciais. Trazemos de forma
breve alguns destes conceitos.
Ao rememorar acionamos dimensões conscientes e inconscientes despertadas no presente
de quem rememora. Memórias, para Benjamin (1994), são plenas de conhecimentos e de
sensibilidades, relacionam-se com o vivido. É também esquecimento, apaziguamento com o
passado. A (re)memória é sempre relacionada com o presente, já que é um entrecruzamento de
tempos, espaços, vozes; não é uma autobiografia no sentido clássico. É uma memória que não é só
racional, é de um sujeito inteiro. Memória é vida, possibilidade da experiência vivida. Na
rememoração, amplia-se a possibilidade de vida.
Benjamin explicita como a modernidade capitalista apaga as memórias, as experiências.
Para fugir das ruínas em que a modernidade capitalista se assenta, o autor propõe que descubramos
o sentido da vida por meio da rememoração. Para ele, os mortos, os esquecidos, os que foram
apagados da história, são redimidos quando alguém os traz à tona pela narrativa.
Trabalhar com narrativas de memórias numa perspectiva dialogal possibilita que os
narradores percebam que muitas das respostas que buscam estão presentes nas suas experiências
vividas e nas memórias. Portanto, memórias e experiências vividas não podem ser jogadas fora,
como até então vem acontecendo em grande parte dos cursos de formação de historiadores, de
professores, na produção de conhecimentos histórico-educacionais e mais diretamente no ensino de
História, visto que “A tarefa interminável da humanidade é a de restaurar o sentido da narrativa, em
que a linguagem não mais se esgote nos clichês de uma língua morta”. (KRAMER, 2002, p. 70).
Dialogar com Benjamin instiga a pensar como as memórias e o ato de rememorar podem
contribuir para o fazer-se dos sujeitos (THOMPSON, 1981) – perguntamos de que forma as
memórias de formação escolar, de experiências vividas no mundo da escola, e para além dele,
podem contribuir para o fortalecimento dos narradores? Portanto, nessa perspectiva estamos diante
de um desafio. Como o trabalho com memórias na relação com o ensino de História podem
contribuir para que as memórias e as experiências vividas pelos estudantes e professores sejam
consideradas no ensino de História?
Por sua vez a palavra patrimônio é compreendida como o conjunto de bens pertencentes ao
pater, utilizada no sentido de herança, legado, isto é, aquilo que o pai deixa para os filhos. Ou um
“Conjunto de bens produzidos por outras gerações, ou seja, os bens resultantes da experiência
coletiva que um grupo humano deseja manter como perene. [...] uma marca, um vestígio que
individualiza os homens em momentos temporal e culturalmente distintos. (MACHADO, 2004, p.
10, apud CHAGAS, 2006).
Nas últimas décadas, as discussões sobre patrimônio ampliaram-se, desembocando em
definição integrada à noção de patrimônio cultural, definido na constituição de 1988, no artigo 216,
como “os bens de natureza material e imaterial, tomados individualmente ou em conjunto,
portadores de referência à identidade, à ação, à memória dos diferentes grupos formadores da
sociedade brasileira”
Conforme expresso por Delgado (2013, p.10), a política de patrimonialização abrange
“tensões, conflitos e disputas tanto internos ao campo do patrimônio quanto presentes na conjuntura
política brasileira de democratização pós-redemocratização. [...] constitui, portanto, um pressuposto
para a compreensão do movimento de valorização do patrimônio cultural”.
Na segunda década do século XX iniciaram os grandes debates e preocupações em construir
na população brasileira o entendimento do patrimônio como um legado que deve ser apropriado e
defendido pelos habitantes deste país. Porém, as ações educativas acabaram acontecendo, quase
que exclusivamente, nos espaços concebidos como lugares da memória, passando ao largo ou não
dialogando com as atividades desenvolvidas nas escolas.
Mais recentemente, passou a existir maior diálogo entre os espaços de memória e as escolas.
Assim, as questões da memória e do patrimônio, aos poucos, estão sendo incorporadas aos
currículos escolares. Deste modo, o patrimônio passou a contribuir “[...] potencialmente na
formação histórica, visto que permite dar consistência às informações e abstrações dos textos
históricos e porque constrói a percepção e a visão histórica do território e do mundo. O escopo é
gerar o sentido, o conhecimento e o respeito ao patrimônio.” (MATOZZI, 2008, p. 149).
No diálogo com o pensamento educacional de Paulo Freire, quando defende que o ser
humano é um ser educável, percebemos a necessidade de entender que, para proporcionar uma
efetiva educação patrimonial, precisamos compreender que “o homem compreende a realidade,
pode levantar hipótese, sobre o desafio dessa realidade e procurar soluções [...] assim, pode
transformá-la e com seu trabalho pode criar um mundo próprio: seu eu e suas circunstâncias”.
(FREIRE, 1997, p. 30).
As pessoas só respeitam, admiram, preservam e se identificam com aquilo que, embora,
muitas vezes, de maneira superficial, conhecem. Para que ocorra a identificação com os bens
patrimoniais faz-se necessário pensar e construir possibilidades de educação patrimonial, para que
as pessoas conheçam e sintam-se pertencentes aos espaços, às discussões, lugares de guarda e
preservação dos diferentes bens patrimoniais. Portanto, para que efetivamente ocorra uma educação
para o patrimônio, não basta falar em ou sobre patrimônio é preciso viver com o patrimônio.
Para cumprirmos a tarefa de despertar as crianças e os jovens para as questões da memória
e patrimônio como forma de constituição de identidades, nosso papel enquanto educadores deve
ser o de mediadores do processo. Como mediadores, o professor e a professora têm “o privilégio
de mediar as relações entre os sujeitos, o mundo e suas representações, e o conhecimento [...] As
linguagens são constitutivas da memória social e coletiva” (FONSECA, 2003, p.164).
Geralmente em nossas cidades, bairros, vilas, comunidades rurais, tribos, enfim onde tiver
um grupo de pessoas temos alguns marcos da memória coletiva desse que podem ser expressos de
forma material em monumentos, construções, praças, igrejas, terreiros, casas de moradia,
fotografias, imagens de santos, objetos de cerâmica, madeira, pedra, tecido ou ferro. Ou de forma
imaterial em danças, rezas, cantigas, advinhas, benzeduras, histórias orais, receitas, diferentes
modos de fazer...
Os espaços de guarda de memória, como museus, arquivos, centros de documentação,
centros de memória, cada um deles apresenta diferentes possibilidades de trabalho para desenvolver
com os alunos conforme o tipo de objetos que lá estão expostos. Nesse sentido, é bom lembrar que
nem sempre o patrimônio pode vir até a escola. Nesses casos, “é a escola que tem que ir até o
património, torná-lo objecto específico de estudo, estabelecer diálogo entre a comunidade escolar e
o meio envolvente, valorizar as realidades patrimoniais no contexto ambiental que se inserem”
(MANIQUE; PROENÇA, 1994, p. 57).

As narrativas originais foram recortadas e remontadas construindo mônadas,2 a partir


da concepção do filosofo alemão Walter Benjamin (2007). A forma de apresentar as narrativas
procura romper com a linearidade, pois são dispostas de forma que o leitor poderá acessá-las
de forma independente e construir suas versões sobre as formas de trabalhar com a cidade nas
aulas de História conforme os narradores e narradoras nos apresentaram. Cada mônada tem a
intenção de expressar uma ideia completa. Por isso foram desenhadas de forma ampla numa
perspectiva que expressem um todo que se pretende completo conforme a sequência narrativa
de cada um.

Certo. Olha, como eu te falei, eu comecei a trabalhar mais, dar uma importância maior –
não sei a palavra é essa, “né”, “dar uma importância maior” – mas comecei a trazer história
local com mais ênfase para as minhas aulas bem recentemente. Isso data, aí, do período de
2012 para 2013 com o projeto PIBID. [...]. Então, ficou muito restrito ao bairro. Eu fiz,
nesse período, uma saída com eles aqui para o centro, para o centro da cidade. Foi um
roteiro do Santo Afro, “Viver de quitandas”. A gente fez esse roteiro com duas turmas do
oitavo ano. Então, o trabalho com história da cidade, basicamente, foi esse aí; e, fora isso,
assim, em alguns momentos nós fizemos… olha, foi… isso aconteceu em 2013, o assunto
era a participação dos africanos e descendentes de africanos na sociedade florianopolitana
no período imperial. Então, aí, primeiro, de novo, a contextualização, com uma leitura de
textos; geralmente a minha prática é assim, ás vezes, varia, mas a prática em geral é assim.
É um texto que seja mais geral, tentando contextualizar, fazendo uma espécie de…
delineando o tempo histórico em que a gente está. Depois, uma variedade de textos que eu
gosto de trabalhar bastante em grupos – às vezes, em duplas, às vezes, em grupos maiores,

2Walter Benjamin defende que “A ideia de mônada, isto significa, em suma, que cada ideia contém a imagem
do mundo. A representação da ideia impõe como tarefa, portanto, nada menos que a descrição abreviada do
mundo”. (2007, p. 69). O conceito poderá ser ampliado a partir de Galzerani (2013) e França (2015).
isso vai depender sempre da turma – em que cada dupla ou cada turma (não
necessariamente um para cada dupla, “né”); mas, assim: escolho, sei lá, cinco ou seis
textos, às vezes um pouco mais, às vezes, menos. E distribuo entre os grupos; que eles
façam leituras diferentes, “e tal”. A gente faz algumas atividades, de apropriação, de
interpretação. Quando é possível passar algumas imagens, coloco algumas imagens. [...].
Então, após esse período, a gente vai fazer uma visita ao centro, em alguns locais
históricos. E aí tinha no projeto Santo Afro, tinha um monitor, dois monitores – uma
monitora e um monitor – que levava a turma em diferentes pontos da cidade e conversava
com eles. Levava imagens, também; mostrava o que era no passado e como está no
presente, o que mudou. E aí eu pedia para eles fazerem, quem pudesse fazer foto. Hoje,
quase todo mundo tem, todos eles têm um celular com câmera. Então, eles fazem as fotos.
E a gente chega em sala de aula, a gente conversa a respeito, e elabora, pensa uma forma
de apresentação em que eles possam comparar o passado com o presente. E aí essa
atividade, geralmente… é sempre feita em grupo. (Prof. 1).

Assim… Curricularmente, se olhar, por exemplo, no plano de ensino, não terá. Mas a
gente toca quando a gente discute, por exemplo… está falando sobre, por exemplo,
ditadura, protestos, manifestações, mobilizações, a gente começa a falar sobre questões de
mobilizações contemporâneas. Invariavelmente, surgem… [...] Como eu te falei: às vezes,
eu estou lá, trabalhando com… a questão de fonte histórica, eu trago fotos da cidade para
pensar a cidade. A cidade em si eu vou trabalhar lá no final do ano, quando eu penso
quando surgiram e se organizaram os primeiros povos em torno de alguma coisa. E aí é
um... eu trago para eles como é a nossa cidade, como ela se constituiu, como uma cidade
marítima. E aí a gente vai, a gente desenha o centro, né? Ali, o Mercado, a relação entre
igreja e o mar, o mar que não está mais, ali hoje, mas que já esteve presente. Por que a
igreja fica mais no altinho; que relação que se estabelecia com o mar, que precisava que a
igreja fosse mais alta; que prédios que surgiram, prédios públicos que foram construídos
junto da igreja; por que a relação entre igreja, prédio público – que é a questão das trocas,
né? A gente acaba falando muito dessas trocas. Mas, acho que mais dessa maneira, assim.
(Prof. 2).

A gente trabalha cidade na Antiguidade! Mas, para trabalhar cidade na Antiguidade eu


preciso trabalhar cidade. Primeiro, a cidade hoje, o que caracteriza uma cidade, hoje; e aí
eu, os últimos anos, eu até tenho trabalhado com, o que dispara essa discussão urbana da
cidade, hoje, é aquela música do Chico Science, “A cidade não para, a cidade não cresce...”
E aí eu comparo essa cidade, que é a cidade do Recife, uma cidade recifense, com a nossa
cidade: o que tem em comum; que mangue é esse; onde é que está o mangue lá, deles;
onde é que está o nosso mangue, aqui; é possível criar relação? Ele fala de polícia; essa
polícia lá, age como a nossa polícia, daqui? Enfim, o que é camelô, onde é que ficam os
nossos camelôs? Pensando na música, também. E aí a gente parte da nossa cidade, atual,
aqui, uma configuração de cidade que a gente constrói junto, para uma cidade antiga. Mas,
como surgiram as primeiras cidades? O que, qual é o fator que une a cidade? Porque a
gente vai falar depois dos rios, as cidades que vão surgir junto dos rios… e aí “Mas será
que é só rio?”; por isso que eu faço essa relação com o mar, assim. E com o mar e com
outra, porque Florianópolis não é uma cidade antiga, é uma cidade colonial. Então essa
relação com a colonização; como é que os colonizadores, como é que circulavam, como é
que iam e vinham; a questão do transporte marítimo [...]. Então, no final, lá no último
trimestre, é quando a gente vai entrar na questão urbana e eu trago questões específicas
sobre Florianópolis. Desenhos antigos, têm traçados antigos, assim; eu trago algumas
imagens de viajantes. Mas, para eles pensarem, para eles fazerem a relação entre cidade
atual, cidade colonial, e a cidade antiga. (Prof. 3).

Agora eu me lembrei de uma experiência, que, assim, foi bem legal [...] para mim isso
ainda passa muito batido, sabe? Em termos de, como conteúdo, mesmo, nunca… não tive
essa oportunidade de fabricar um material específico para isso, embora tenha participado
de uma saída de campo… saída de estudo, visita, experiência, com a EJA do Anísio
Teixeira em projeto, [...] organizado pelo IFSC, ou, por egressos do IFSC, não sei agora o
nome… está fugindo aqui a memória… exatamente! Ah! Acho que era um curso de
formação de guias de turismo do IFSC! Alguma coisa assim. Nossa, isso foi muito legal!
Foi fantástico ter passeado pela... feito um circuito ali, muito bacana, as pessoas…
Realmente, as pessoas descem no terminal, vão em uma loja, compram um treco e vão
embora, e a cidade, é isso, né? Tu parar, é difícil, mas nenhum… [ninguém] fica andando
filosofando e pensando a toda hora, né? [...]. E daí, teve o circuito. Ele passou… daí eles
relembraram, o antigo nome do rio, como é que ele era, parar embaixo de uma placa para
dizer que antes da República aquela rua tinha outro nome. [...] então, teve essa relação com
as toponímias, com as mudanças dos nomes dos locais, de rio, de rua, ou de função de
nome, em função de uma… uma casa; tipo, acho que a gente parou ali na antiga FAED
[...] paramos na praça, também. Tem a historinha que a praça era cercada; então, por que
Praça XV, a mudança de nome; tem essas ressignificações… Eles eram muito… gostei
muito deles! Eles eram muito … não sei se é a palavra: didáticos? [...] a gente parou na
escadaria da igreja. Daí tem a lembrança que faz da escravidão, uma série de coisas. (Prof.
4)

É, por exemplo: a gente teve uma parceria, durante um tempo (porque o projeto deles
acabou, como extensão) com o Santa Afro Catarina. Acabou, enquanto extensão; mas nós
estivemos com eles uns dois, três anos; e eu fiz muita questão que fosse no 1º Ano,
justamente para a gente pensar essa questão dos africanos, dos libertos aqui em Desterro,
porque eu queria trazer um pouco para a questão da cidade – é óbvio que a gente trabalha,
pode trabalhar as questões com vários tipos de documento, [...] Mas, eu tinha um pouco a
necessidade de tentar fazê-los olhar um pouco para esse entorno, para que eles
percebessem que as simbologias estão por aí né? [...] E aí a gente tentava fazer um trabalho,
mudando… os três anos foi diferente. Cada ano a gente fez diferente. Vocês sabem como
é que funcionava: a gente ia para o centro [de Florianópolis] com eles, e lá eles passavam
por lugares de africanos, africanos libertos, enfim, na cidade de Desterro. Então a gente
fazia, às vezes, um preparo antes; e a gente pediu uma coisa diferente. Teve um ano que a
gente pediu narrativas históricas com personagens. Teve um ano que a gente fez uma
exposição com as imagens; então eles tinham que tirar imagens, bater foto, e escolher duas
imagens, justificando aquelas duas imagens, pensando no passado e no presente. Então,
como é que as duas imagens podiam pensar, um pouco, na história, a partir do presente
daquele lugar. Com tudo o que eles ouviram, mas, aquele lugar na cidade, hoje. Então,
atualizar, um pouco, essa memória do passado; e ver como é que ela está constituída, ali,
em cima de uma materialidade, em cima desses indícios. As narrativas foram um processo
de invenção, em cima das narrativas que eles faziam com a gente no Santa Afro, de alguns
documentos, mas eram narrativas ditas fictícias, mas com esse suporte histórico – tinha
que ter essas questões históricas balizando, ali, nesse personagem do século XIX. Então,
ele tinha um contexto. É mais ou menos isso. A cidade acaba sempre estando presente, um
pouco, na questão dos conteúdos, quando a gente puxa as questões do próprio conteúdo
do século XIX, eu gosto de trabalhar várias outras questões, de literatura, e tal. Mas,
enfim… a cidade enquanto espaço físico. (Prof. 5).

As narrações evidenciaram que trabalhar com a cidade acontece em algumas inserções


esporádicas. Portanto, as problemáticas da cidade não são um ponto de partida, ou seja, não estão
presentes nos planejamentos iniciais dos professores.
As incursões que consideraram a cidade de Florianópolis como histórica e digna de ser
abordada nas aulas de História dependeu de projeto externo à escola e aos planejamentos de cada
professor. Dentre os cinco professores que fizeram referência a algum trabalho com a temática
cidade, quatro citaram o Programa Santa Afro Catarina, o qual constitui-se em programa de
extensão da Universidade Federal de Santa Catarina, que dentre outras atividades
desenvolve atividades com professores e estudantes da Educação Básica.3

3 O Programa de Educação Patrimonial sobre a Presença de Africanos e Afrodescendentes em Santa


Catarina (Santa Afro Catarina) nasceu para “promover a identificação, a valorização e a difusão do patrimônio
cultural associado à presença dos africanos e afrodescendentes em Santa Catarina. O programa articula ações
de educação patrimonial em dois níveis. Por um lado, prevê a elaboração de narrativas temáticas e de
roteiros de visita sobre a história dos africanos e afrodescendentes em Santa Catarina baseados em pesquisa de
arquivo sob a perspectiva da História Social e, por outro lado, prevê o desenvolvimento de atividades de
educação patrimonial associadas ao ensino de História, dando ênfase à articulação entre patrimônio e história
local”. Dentre as ações desenvolvidas, entre o fim de 2011 ao início de 2015, ofereceu mensalmente visitas
guiadas alternando quatro roteiros históricos e visitas agendadas para grupos. Em 2013 foi lançado o livro
História Diversa: africanos e seus descendentes na Ilha de Santa Catarina. Em 2014 realizou o Curso
Educação Patrimonial e Patrimônio Cultural - Desafios Contemporâneos. Desde 2015, a equipe se concentrou na
finalização do conteúdo para o website, que agora está no ar, com o conteúdo sendo alimentado gradualmente.
Para maiores informações o leitor poderá acessar http://santaafrocatarina.blogspot.com.br/
Destaca-se que os professores ficaram no papel de acompanhantes das atividades
desenvolvidas pelos monitores durante as atividades, tanto do Programa Santa Afro Catarina quanto
dos estudantes de turismo do Instituto Federal Catarinense – IFSC. Algumas narrativas enfatizam
atividades anteriores ou posteriores às atividades monitoradas, seja como preparo e pontuação de
conhecimentos prévios dos estudantes ou como problematização/produção de reflexões do que foi
vivido durante as atividades.
De modo geral as narrativas ressaltam como e quanto os estudantes se envolveram com as
atividades, e como sentiram-se em proximidade com a cidade ou determinados locais dela, sendo
possível inferir a necessidade de aproximação ou tomar como ponto de partida aquilo que está
próximo da vida cotidiana dos estudantes; neste caso, a cidade.
Os professores narradores percebem e defendem a necessidade de um envolvimento mais
coletivo dos demais professores, e ressaltam a necessidade de parcerias para desenvolver atividades
fora do espaço escolar, ou seja, atividades que tomes a cidade como espaço educativo.
Percebemos de forma quase unânime, as atividades que remeteram às comparações com
outras cidades e outros tempos ao tomar a cidade como um complemento ou exemplo para aquilo
que esta convencionado como conteúdo ensinável, quer em livros didáticos, quer em programas
oficiais de ensino, projetos pedagógicos das escolas e planejamentos dos professores.
Conforme ensinou Maria Carolina Bovério Galzerani “A experiência é um caminho aberto
à continuidade”. Nesse sentido, ressaltamos a importância das experiências educativas vividas por
nossos narradores, juntamente com os estudantes de suas diferentes turmas para que continuem
provocando olhares diferenciados para a cidade, os bairros, as comunidades em que vivem e, assim,
continuem se fazendo professores na relação com as experiências vividas na, para e com a cidade.

ARAUJO, Camilo Bus. Entrevista concedida a Elison Antonio Paim. Florianópolis: Colégio de
Aplicação da Universidade Federal de Santa Catarina, 16 de fevereiro de 2017.

BENJAMIN, Walter. Experiência e Pobreza. In: BENJAMIN, Walter. Magia e técnica, arte e
política. 7. ed. São Paulo: Brasiliense, 1994. p. 114-119. (Obras Escolhidas, v. 1).

BENJAMIN, Walter. O narrador. In: BENJAMIN, Walter. Magia e técnica, arte e política. 7. ed.
São Paulo: Brasiliense, 1994. p. 197-221. (Obras Escolhidas v. 1).

BENJAMIN, Walter. Passagens. Belo Horizonte: Ed. da UFMG, 2007.


BRASIL, Constituição da República Federativa do Brasil, 1988.

CABRAL, Magaly. Educação Patrimonial. Digitado, 2007.

CHAGAS, Mario de Souza. Há uma gota de sangue em cada museu: a ótica museológica de
Mário de Andrade. Chapecó: Argos, 2006.

COSTA, Glaucia Dias da. Florianópolis: Colégio de Aplicação da Universidade Federal de Santa
Catarina, 15 de fevereiro de 2017.

DELGADO, Andréa Ferreira. Santa Afro Catarina: Educação Patrimonial e a presença de


africanos e afrodescendentes na Ilha de Santa Catarina, digitado, 2012.

FONSECA, Selva Guimarães. Didática e Prática de Ensino de História. Campinas: Papirus,


2003.

FRANÇA, Cyntia Simioni. O canto da Odisseia e as narrativas docentes: dois mundos que
dialogam na produção de conhecimento histórico-educacional. 2015. 349fls.Tese (Doutorado em
Educação) – Universidade Estadual de Campinas, Campinas, 2015.

FREIRE, Paulo. Pedagogia da Autonomia. São Paulo: Paz e Terra, 1997.

GAGNEBIN, Jeanne Marie. Apagar os rastros, recolher os restos. In: SELDMAYER, Sabrina;
GINZBURG, Jaime (Org.). Walter Benjamin: rastro, aura e história. Belo Horizonte: Ed. da
UFMG, 2012.

GALZERANI, Maria Carolina Bovério. Escola e Conhecimento de História e Geografia: uma


disciplina acadêmica e a educação das sensibilidades. Revista Antíteses, Londrina, v. 6, n.12, p.
126-147, jul./dez. 2013.

GALZERANI, Maria Carolina Bovério. Imagens que lampejam: contribuições de Walter


Benjamin para a produção de conhecimentos históricos. Encuentro de Saberes. Luchas populares,
resistências Y educación, Buenos Aires-Argentina, v. 1, 2013.

KRAMER, S. Por Entre as Pedras: arma e sonho na escola. 3. ed. São Paulo: Ática, 2002.

MANIQUE, Antônio Pedro; PROENÇA, Maria Cândida. Didáctica da História- Patrimônio e


História Local. Lisboa: Texto Editora, 1994.
MATTOZZI, Ivo. Currículo de História e Educação Para o Patrimônio. In: Educação em revista.
Belo Horizonte – MG: Universidade Federal de Minas Gerais/Faculdade de Educação, 2008. p.
135-155.

PINHO, Ricardo. Florianópolis: Sala 400 do Bloco D do Centro de Educação da Universidade


Federal de Santa Catarina, 15 de fevereiro de 2017.

RECHIA, Karen Christine. Entrevista concedida a Elison Antonio Paim e Pedro Mülbersted
Pereira. Florianópolis: Colégio de Aplicação da Universidade Federal de Santa Catarina, 17 de
abril de 2017.

THOMPSON, Edward Palmer. A miséria da teoria: ou um planetário de erros. Rio de Janeiro:


Zahar, 1981.

ZANOTTO, André. Entrevista concedida a Elison Antonio Paim. Florianópolis: Sala 621 do
PPGE da Universidade Federal de Santa Catarina, 15 de março de 2017.
Janete Leiko Tanno

A metodologia da História Oral mostra-se extremamente relevante para se conhecer


experiências de vida de pessoas e grupos que sempre foram marginalizados pela história oficial.
Desde a década de 1960, período da História Oral “militante”, diversos pesquisadores privilegiavam
as entrevistas com trabalhadores e camponeses, fazendo a chamada História “vinda de baixo”.
Apesar das críticas pertinentes pela forma acrítica com que as fontes orais foram tratadas na época,
em virtude do seu uso sem rigor e sistematização metodológica, o que importa assinalar aqui, é que
a História Oral, desde o início, abriu novas perspectivas de pesquisas pela faculdade de poder ouvir
e registrar os relatos dos mais diversos grupos sociais, desde as elites, passando pelas classes
médias, os pobres, os miseráveis, os excluídos de toda ordem. Nesse sentido, possibilita uma
história mais diversa, profunda e complexa por permitir conhecer os mais diversos temas sob
diferentes pontos de vista, seja social, étnico, de gênero, político e econômico (ALBERTI, 2010).
Partindo de tais pressupostos, os grupos sociais que costumeiramente, não deixaram
registros de seu passado, em especial, os marginalizados, como os negros, as mulheres pobres, as
trabalhadoras rurais, as prostitutas, os mendigos, os moradores de rua, etc. podem a partir da
metodologia da História Oral produzir suas fontes orais, deixar os relatos sobre seu passado e de
seus antepassados, de si e de seu grupo.
Lembro que, registrar, guardar e preservar os relatos orais das minorias são formas de
manutenção de memórias importantes para as formações identitárias das pessoas, para geração de
sentimentos de pertencimento a um grupo ou comunidade e ainda para que nas disputas políticas,
sociais e culturais pela memórias da sociedade mais ampla, todos possam estar munidos com as
memórias de seus grupos e garantir que sobrevivam ou, pelo menos, não sejam soterradas pelas
memórias de outros setores sociais, economicamente, culturalmente e politicamente mais fortes.
Enfim, garantir a preservação do passado e das memórias dos grupos minoritários é um direito das
pessoas pertencentes a estes, ao pleno exercício da cidadania numa sociedade que se quer igualitária
e democrática (PAOLI, 1992).
Nessa perspectiva, o presente texto discute o processo de constituição de um acervo de
História Oral, vinculado ao Centro de Documentação e Pesquisa da Universidade Estadual do Norte
do Paraná – UENP/Campus Jacarezinho, voltado para a preservação das memórias das minorias
desta cidade, indicando a importância do Centro de Documentação no processo de construção de

* Universidade Estadual do Norte do Paraná – UENP/Campus Jacarezinho, doutora em História.


uma sociedade mais democrática, na qual o direito e o acesso ao patrimônio cultural de seu grupo
e da sociedade mais ampla estejam garantidos a todos.
Sabemos que na sociedade brasileira a plena democracia está para ser construída, e,
atualmente, enfrenta inúmeras dificuldades diante do avanço do autoritarismo de grupos políticos e
sociais elitizados e de classe média, do aumento do racismo e dos preconceitos contra mulheres,
LGBTS, índios e negros. Assim, urge repensarmos a atuação dos lugares de memória – museus,
centros de documentação, centros de memória e arquivos, e refletirmos sobre quem decide o que
guardar e com que fins, pois devemos sempre lembrar dos usos políticos e simbólicos dos
documentos, dos monumentos, como afirma Le Goff, (2013). Enfim, a preservação do patrimônio
cultural de uma sociedade não é um fim em si mesmo, se por um lado pode indicar a diversidade
cultural, étnica e social de um país, pode igualmente, revelar, as suas exclusões, a permanência de
certos grupos no poder, em detrimento de outros. Enfim, documentos e memórias são instrumentos
de poder e sofrem manipulações de toda ordem, de acordo com Le Goff.

[...] Tornarem-se senhores da memória e do esquecimento é uma das grandes


preocupações das classes, dos grupos, dos indivíduos que dominaram e dominam as
sociedade históricas. Os esquecimentos e os silêncios da história são reveladores desses
mecanismos de manipulação da memória coletiva (LE GOFF, 2013, p. 390).

Se documentos e memórias são instrumentos de poder, instituições de guarda e preservação


do patrimônio documental de uma cidade, estado ou país, possuem outros papéis, além de zelar
pelos documentos e dar acesso à informação. Tais instituições exercem também funções políticas,
simbólicas e de representações de determinados valores e códigos ao legitimar por meio da escolha
ou patrimonialização, certos acervos, em detrimento de outros.
Nesse sentido, a constituição do acervo de História Oral nasceu da constatação de que as
coleções e fundos do Centro de Documentação e Pesquisa da Universidade Estadual do Norte do
Paraná, reuniam somente as memórias e histórias das elites da região nordeste do Paraná, visto que
ele se originou a partir de doações de herdeiros de antigos fazendeiros locais. Aliado a isso, o fato
da instituição, vinculada a uma universidade pública do estado, aceitar guardar e preservar tais
documentos, configura uma importância dada, não somente aos documentos do acervo, mas ao
próprio grupo e suas memórias que serão perpetuadas. Enfim, tornar-se-ão monumentos, de acordo
com Le Goff (2013).
Assim, a proposta de constituição de um acervo de História Oral vinculado ao mesmo
Centro de Documentação e Pesquisa, adquire grande significado ao privilegiar grupos excluídos e
marginalizados da mesma região, como os herdeiros e frequentadores de terreiros de umbanda e
candomblé, aos trabalhadores rurais, os pobres da periferia, das favelas, os grupos LGBTs, os
negros, enfim, os excluídos de toda ordem.
A escolha de Jacarezinho deve-se ao fato do Centro de Documentação estar situado nessa
cidade, mas, principalmente, por esta ter sido formada sob os auspícios da Igreja Católica, que foi
a responsável pelas primeiras instituições de ensino na cidade por meio da implantação do Colégio
Imaculada Conceição, em 1930, destinado às mulheres, e o Colégio Cristo Rei, em 1935, para os
homens. Além dessas duas escolas religiosas, a cidade contava somente com o Grupo Escolar
Custódio Raposo, de Ensino Primário leigo, que em 1938 foi transformado em Escola Normal da
Jacarezinho.
A cidade, desde 1926, era sede de Bispado e sob o comando do bispo D. Geraldo de
Proença Sigaud1, que esteve à frente da Diocese de Jacarezinho no período entre 1947 e 1961,
ganhou o primeiro seminário – o Seminário Menor – construído em uma fazenda comprada
pela instituição a fim de promover o sacerdócio, em decadência nos anos 1950, e também uma
formação católica e conservadora de acordo com os cânones da Igreja aos seus alunos e
familiares.
A diocese sob o comando de D. Geraldo ganhou contornos acentuadamente
conservadores e excludentes, visto que sua opção foi pelos setores mais enriquecidos da
sociedade. À época da vinda de D. Geraldo Sigaud, em Jacarezinho, segundo Silva Junior, a
região e a cidade tinham grandes fazendeiros, receptivos às ideias do bispo.

O Norte do Paraná ainda estava em processo de ocupação e a cidade de Jacarezinho havia


se tornado uma das rotas de entrada para as nascentes regiões cafeeiras. Fundada em 1900,
Jacarezinho, dentre as cidades da região, já contava com algumas famílias tradicionais, a
maioria de origem mineira, latifundiários e descendentes de coronéis que, na república
velha, disputavam a hegemonia política local. Era uma comunidade que seria bem
receptiva às ideias do Bispo Sigaud no tocante a questões políticas e sociais [...] (SILVA
JUNIOR, 2006, p. 42).

Silva Junior, ao comentar sobre uma carta pastoral do Bispo direcionada à comunidade
religiosa, indica a posição deste frente à diocese: “[...] seu texto procurará ‘defender’ os princípios
da neocristandade e da romanização, mostra ainda uma visão de mundo tomista e medieval
condenando veementemente o comunismo entendido como um reflexo dos males da modernidade.”
(SILVA JUNIOR, 2006, p. 43).
Como parte desta empreitada extremamente conservadora e elitista, foi fundada a primeira
faculdade para receber os filhos da elite local e da região, a Faculdade de Filosofia e Letras,
em 1960,2 para fazer frente ao avanço das ideias e comportamentos liberais promovidos pelos
Estados Unidos da América e ainda contra as ideologias comunistas e de esquerda em voga no
Brasil (SILVA JUNIOR, 2006).

1 Dom Geraldo de Proença Sigaud era representante da ala conservadora do clero, anticomunista e cofundador,
com Plínio Correa da TFP (Tradição, Família e Propriedade). .
2 Em 2008, a faculdade seria encampada pelo governo do estado do Paraná e faria parte da Universidade Estadual
do Norte do Paraná - UENP/Campus Jacarezinho.
A partir desses apontamentos, verifica-se que a cidade esteve sob a égide do
catolicismo desde o início de sua formação,3 configurando-a como uma sociedade
conservadora, elitista e excludente.
Uma sociedade assim formada, ainda revela, nas relações pessoais cotidianas, o poder de
certos grupos e famílias, que apesar de não possuírem mais riquezas materiais, preservam os
símbolos e representações do poder e lutam para manter a hierarquia entre os diversos setores
sociais e a submissão que advém disso. Nesse tipo de sociedade, além das exclusões sociais,
econômicas, culturais e étnicas, a que certos grupos são submetidos, há ainda as exclusões e
apagamentos de suas memórias, de suas histórias, de suas experiências de vida e trabalho, como se
não fizessem parte da construção da história da cidade.
Esse fato é muito comum e fácil de ser percebido nas memórias escritas sobre inúmeras
cidades do país, nas quais sobressaem os “pioneiros”, os “desbravadores”, os “bandeirantes”, enfim,
os “heróis”, vistos como responsáveis pela fundação e desenvolvimento dos municípios. E não é
por acaso que somente as pessoas participantes das elites e setores médios são lembrados, em
detrimento dos pobres, dos trabalhadores, das mulheres, dos índios, dos negros. Este últimos são,
geralmente, apagados da história da construção das cidades. Com relação à cidade de Jacarezinho,
não foi diferente. Ao longo das décadas, por meio dos relatos jornalísticos, memorialísticos e
históricos, corroborou-se a mesma ideia, isto é, de um grupo – os pioneiros – que fundaram e foram
os responsáveis pelo crescimento da cidade.
Diante da tal realidade, as instituições responsáveis por coletar, guardar, preservar e dar
acesso ao patrimônio documental da sociedade têm um papel fundamental e dentre eles, os centros
de documentação e pesquisa, que em geral, são ligados às universidades com a função primordial
de preservação dos documentos locais e regionais nos lugares onde estão instalados (CAMARGO,
2003).
Tal função, também, foi encampada pelo Centro de Documentação e Pesquisa da
Universidade Estadual Norte do Paraná, e em relação ao seu acervo de História Oral, já definiu
algumas diretrizes fundamentais que lhe trouxe um perfil adequado de acordo com a linha de acervo
adotada. É o que veremos a seguir:
O acervo será constituído de relatos orais a partir da seguinte temática estabelecida:
Experiências de vida, trabalho, cultura e religiosidade de populares na região nordeste do Paraná.
A abrangência do tema, justifica-se, segundo Alberti, “[...] porque marca a linha do acervo e
constitui a identidade institucional”. (ALBERTI,1999, p. 32). Assim, o intento é que o acervo enseje
a implantação, posterior, de um Programa de História Oral que seja permanente e reconhecido, entre
os pesquisadores, por sua temática envolvendo os relatos de populares na região privilegiada.
Como as entrevistas serão realizadas para uso de futuros pesquisadores, alguns cuidados
foram tomados, como inserir um cabeçalho antes de cada entrevista com dados gerais sobre o

3 Jacarezinho tornou-se município em 1900, porém os memorialistas da cidade localizam sua fundação em
1888, quando ali chegaram os primeiros mineiros que passaram a explorar as terras.
entrevistado. Este deve conter informações suficientes que possam dar ao pesquisador condições
de saber quem está falando e de que lugar social fala (ALBERTI, 1999).
A autorização de uso das entrevistas está sendo solicitada a todos os entrevistados, visto que
o acervo será aberto a todos os interessados. O pesquisador ao utilizar as entrevistas deverá também
assinar um termo de responsabilidade, como garantia de uso adequado e ético da mesma. A
princípio, as entrevistas não serão transcritas.
Diante da temática escolhida para o acervo de História Oral, convidamos colegas de outras
áreas afins para fazer parte do projeto. Assim, o grupo reúne pesquisadores e entrevistadores,
historiadores, sociólogos, jornalistas e literatos, além de alunos de graduação do curso de História.
Dessa maneira, buscamos refletir a partir de pontos de vista de diferentes áreas o tema privilegiado.
Outra questão fundamental que ainda necessita ser melhor definida, diz respeito ao acesso
à informação. Quais instrumentos de pesquisa são os mais adequados para esse tipo de fonte? Quais
informações devem conter os instrumentos de pesquisa que facilite o acesso do pesquisador ao tema
que lhe importa?
Os dois primeiros grupos escolhidos foram os herdeiros e frequentadores de terreiros de
umbanda e candomblé, e as trabalhadoras rurais, moradoras do Jardim Aeroporto, localizados na
cidade de Jacarezinho. Tais escolhas partiram das pesquisas que estão sendo realizadas por alunos
do curso de História que fazem parte do Grupo de Pesquisa: “Preservação dos Bens Culturais:
História, Memória, Identidade e Educação Patrimonial (PEBEC)”, coordenado por mim. A
iniciativa de constituição do acervo nasceu das discussões do grupo acerca da metodologia da
História Oral, das questões ligadas à memória e da necessidade de preservação do patrimônio
documental de Jacarezinho, visto que muito pouco da história da cidade foi registrado em
memórias, jornais, revistas e trabalhos acadêmicos e o que existe, diz respeito aos setores
economicamente mais privilegiados ou à história da religião católica e sua influência, assentada na
implantação da Diocese de Jacarezinho e, ainda, aos murais pintados por Eugênio de
Proença Sigaud na catedral diocesana.4
Além dessas constatações, por meios de alunos, moradores na cidade descobriram várias
histórias e figuras interessantes referentes aos setores populares, como os inúmeros terreiros de
umbanda e candomblé que já existiram e ainda persistem numa cidade com forte influência da
religião católica; a existência de um senhor chamado Pato que atraía centenas de pessoas,
diariamente, vindas de diversas cidades da região do Paraná e de outros estados, em carros e
caravanas de ônibus, em busca de cura para inúmeras doenças; contos populares, lendas sobre a

4 SILVA JUNIOR, Alfredo Moreira. Catolicismo, poder e tradição: um estudo sobre as ações
do conservadorismo brasileiro durante o bispado de Dom Geraldo Sigaud (1947-1961). Assis, 2006. Dissertação
(Mestrado em História). Faculdade de Ciências e Letras/UNESP; SANTOS, Elton Alves dos. Reorganização
eclesiástica e questões patrimoniais na ordem republicana: um estudo histórico da criação e do estabelecimento
da Diocese de Jacarezinho – Pr. (1926-1940). Rio de Janeiro: Multifoco, 2011; EVANGELISTA Luciana de
Fátima M. O artista e a cidade: Eugênio de Proença Sigaud em Jacarezinho (1954-1957). Londrina, 2012.
Dissertação (Mestrado em História) – Universidade Estadual de Londrina.
origem da cidade, artistas plásticos e poetas do povo. À exceção da história do Pato, nada disso foi
registrado e está passível de ser perdido.
Assim, dois objetivos principais estão presentes na criação do acervo de História Oral. O
primeiro, é o de coletar as histórias e experiências de vida, trabalho, cultura e religiosidade dos
populares e, consequentemente, uma história da cidade que vai além daquela contada por
memorialistas com ênfase nos “pioneiros”, no crescimento econômico, nas ações da Igreja católica
e buscar as histórias e as memórias dos moradores e da cidade nos relatos de pessoas ordinárias,
que podem ser reveladoras, em alguns casos, de personagens que fogem ao senso comum, surreais,
lendárias, presentes no imaginário popular, e colocar tudo à disposição da população e dos
pesquisadores. Outro objetivo, tem um caráter social e político, visto que as entrevistas podem
proporcionar, por meio do processo de rememoração, um repensar dos entrevistados enquanto
sujeitos, com direitos plenos de ter sua história e de seu grupo preservadas para que tanto eles quanto
as gerações futuras conheçam e tenham acesso.
Assim, mais do que apenas coletar, guardar e preservar as memórias e histórias de setores
populares da sociedade local, importa, restabelecer memórias e identidades desses grupos, a fim de
que se percebam também como construtores e agentes da história da cidade. É dar a todos o direito
ao passado, às memórias, ao patrimônio cultural, enfim, ao pleno exercício da cidadania.
Preservar o patrimônio documental dos setores populares da cidade, configura-se ainda, na
mesma perspectiva política, como uma forma, de minimamente, estes grupos terem condições de
disputas de memórias em suas lutas cotidianas e nos embates políticos e sociais, por espaços e
direitos na sociedade local, para que eles se recordem, por meio das memórias registradas, que
também são sujeitos construtores do lugar que habitam e trabalham e que têm direito a ele, e à
cultura, ao patrimônio da cidade e do seu grupo social, étnico, de gênero, e, é claro, de estar no
poder.
Com o processo de constituição do acervo de História Oral, por meio da produção das
entrevistas, documentos em outros suportes também serão requisitados aos entrevistados para que
façam parte do acervo, posteriormente, mas que sirvam também como meios de afloramento de
memórias durante as entrevistas. Assim, além das fontes orais produzidas, pretende-se a
constituição de um acervo mais amplo e diversificado que englobe documentos iconográficos, atas,
cadernos de anotações, cartas, etc., enfim, documentos que atestam a presença e a contribuição dos
negros e negras, dos pobres, dos trabalhadores e das trabalhadoras rurais, dos poetas populares na
formação da cidade de Jacarezinho, constituindo assim parte do patrimônio documental do
município e da sua população.
Ao tratarmos do patrimônio documental brasileiro, é explícito, os inúmeros instrumentos
que asseguram a sua preservação. Desde a Constituição de 1988 que no Artigo 23, inciso terceiro,
afirma: “É competência comum da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios:
proteger os documentos, as obras e outros bens de valor histórico, artístico e cultural, os
monumentos, as paisagens naturais notáveis e os sítios arqueológicos [...]” (grifos meus), passando
pelas ações do Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (IPHAN), que cumpre
suas funções de preservação do patrimônio documental, desde 1937 (FONSECA, 2005).
Em 2007, por meio do Comitê Nacional do Brasil do Programa Memória do
Mundo, o patrimônio documental ganhou mais um aliado, nomeando dezenas de arquivos
como referências da memória coletiva nacional (DUARTE, 2013). Completando essa
importante lista de instituições e leis que asseguram para as futuras gerações as memórias da
sociedade, em 1991, o governo federal por meio da lei n. 8.159, que criou o CONARQ
estabeleceu uma política nacional de arquivos públicos e privados, e a partir do instrumento
“declaração de interesse público e social”, foi possível a salvaguarda do patrimônio
documental público e privado no país (MOLINA, 2013).
Apesar das atuações desses órgãos, a destruição ou as perdas dos documentos públicos
em todas as esferas de atuação do governo federal, estadual e municipal, é uma realidade; em
especial, nos municípios onde, na maioria dos casos, não existe um arquivo municipal. E
em relação aos acervos particulares, as perdas são ainda maiores pois a manutenção adequada
de documentos em diversos suportes exigem investimentos de alto custo.
Diante desse quadro, dificilmente, os setores populares de qualquer lugar do Brasil,
teriam condições de constituírem instituições onde pudessem preservar seu patrimônio
cultural e, nesse sentido, os centros de documentação vinculados às universidades têm podido
contribuir ao realizar ações dessa natureza.
Entretanto, é necessário que os centros de documentação não se apresentem
como portadoras da salvação das histórias e memórias dos grupos sociais diversos, mas
busquem incentivar e oferecer meios para que as pessoas dos setores minoritários
reflitam sobre essa necessidade e sobre quais memórias gostariam de deixar para a
posteridade. Portanto, as memórias preservadas devem partir dos interesses e preocupações
dos seus protagonistas e não somente das expectativas e demandas dos pesquisadores.
Concluindo, diante do quadro apresentado de perdas de histórias e memórias dos
setores minoritários da sociedade brasileira e as consequências disso, consubstanciadas na
exclusão desses mesmos grupos de direitos ao seu passado, ao seu patrimônio cultural e às
disputas políticas e ideológicas com igualdade de forças, a História Oral é um grande aliado
como metodologia que possibilita coletar e preservar o patrimônio documental dos setores
populares como uma das garantias de pleno exercício da cidadania.

ALBERTI, Verena. História Oral e arquivos. IN: SILVA, Zélia. L. (Org.) Arquivos, patrimônio e
memória: trajetória e perspectivas. São Paulo: Ed. da UNESP; FAPESP,1999. p.31-39.
_____. Histórias dentro da história. IN: PINSKY, Carla B. (Org.). Fontes históricas. São Paulo:
Contexto, 2010. p.155-202.

CAMARGO, Célia. Centros de documentação e pesquisa histórica: uma trajetória de três décadas.
IN: CPDOC 30 anos. Rio de Janeiro: Ed. da FGV/CPDOC, 2003. p.21-44.

DUARTE, Renato Crivelli. A patrimonialização do arquivo pessoal: análise dos registros


memória do mundo, do Brasil, da UNESCO. 2013.222f. Tese (Doutorado) – Programa de Pós-
graduação em Ciência da Informação, Universidade Estadual Paulista (UNESP), Marilia.
Disponível em: <https://goo.gl/v3g7EV>

FONSECA, Maria Cecília Londres. O patrimônio em processo: trajetória da política federal de


preservação no Brasil. 2 ed., Rio de Janeiro: Ed. da UFRJ; MINC /IPHAN, 2005.

LE GOFF, Jacques. Documento/monumento. In: História e Memória. Campinas, SP: Ed. da


Unicamp, 2013.

MOLINA, Talita dos Santos. Arquivos privados e interesse público. Caminhos da


patrimonialização documental. Acervo, Rio de Janeiro. v. 26, n. 2, p. 160-174, jul/dez.2013.

PAOLI, Maria Célia. Memória, história e cidadania: o direito ao passado. In: São Paulo (cidade).
Secretaria Municipal de Cultura. Departamento do Patrimônio Histórico. O direito à memória:
patrimônio histórico e cidadania. São Paulo: DPH, 1992.

SILVA JR. Alfredo Moreira. Catolicismo, poder e tradição: um estudo sobre as ações do
conservadorismo católico brasileiro durante o bispado de D. Geraldo Sigaud em Jacarezinho
(1947-1960). Assis, 2006. Dissertação (Mestrado em História) – Faculdade de Ciências e
Letras/UNESP.
Ricardo Figueiró Cruz

O carnaval é considerado uma das maiores festas do Brasil. Caracterizada pela


multiplicidade de suas manifestações, trata-se de um evento nacional, mobilizando comunidades
de Norte a Sul do país. Inserida em meados do século XVII no Brasil, as comemorações agitam
desde os centros urbanos às pequenas vilas com diversas formas de manifestações culturais.
Desta forma, em Guaíba não é diferente. Durante a formação e composição social da
Sociedade Recreativa e Esportiva Império Serrano, são percebidas as formas educativas e culturais,
perante uma comunidade que podemos considerar de camadas baixas, nesse sentido a agremiação
apresenta-se como parte integrante dessa comunidade, destacando-se culturalmente pelo carnaval.
Este estudo tem como objetivo analisar como a Sociedade Recreativa e Esportiva Império
Serrano, se coloca perante a sociedade através de suas ações pedagógicas, proposta por Tramonte
(2001), em sua análise em uma Escola de Samba do Rio de Janeiro, neste sentido ela observa essas
ações em seis ações educativas sendo elas: Pedagogia da Ação Social; Pedagogia da Ação Política;
Pedagogia dos Valores Éticos e Morais; Pedagogia da Ação Escolar; Pedagogia da Ação Cultural;
Pedagogia da Arte.
O artigo está dividido em duas partes, sendo eles: a primeira parte intitulada ‘Império
Serrano’ – buscar compreender, de forma sucinta, a história da Sociedade Recreativa e Esportiva
Império Serrano; e a segunda parte recebe o nome de ‘Processos Pedagógicos’, vai abordar dentro
da ideia de Tramonte, as ações pedagógicas, que estão presentes dentro da organização da
agremiação.

A Sociedade Recreativa e Esportiva Império Serrano é considerada a entidade carnavalesca


mais antiga em funcionamento, do município de Guaíba, como mostra os inventários abaixo:

Tabela 1 – Inventário de Blocos e Cordões Carnavalescos de Guaíba/RS


BLOCO OU CORDÃO FUNDAÇÃO CLUBE BAIRRO OBSERVAÇÃO
1 APACHES 1954

* Mestrando em Processos e Manifestações Culturais – Universidade FEEVALE/RS, sob orientação da


professora Drª Ana Luiza Carvalho da Rocha. Bolsista: Concessão de Incentivo Interno – FEEVALE.
2 AZ DE OUROS VETERANOS ERMO
3 CARA DE PAU
4 CARA SUJA
5 COMANCHES VETERANOS ERMO
6 CUSTOU MAIS SAIU JANEIRO/1975 CENTRO
7 DÁ NO PÉ JANEIRO/1956 ITAPUÍ CENTRO
8 GENTE BEM
9 JACARÉ TE ABRAÇA DÉCADA DE 50 VETERANOS ERMO PARA CASAIS
10 MADUREIRA MADUREIRA VILA NOVA
11 MANDA CHUVA DA FOLIA
12 MANDINS DÉCADA DE 40 MANDINS CENTRO
13 NAQUELA BASE
14 OS BATUTAS
15 OS GAMADOS
16 OS INVASORES
17 OS PIRATAS VETERANOS
18 PILANTRAS
19 PRISIONEIROS 1967
20 ÚLTIMA HORA DÉCADA DE 50 VETERANOS ERMO
21 UNIDOS DO MORRO
22 VAI QUEM QUER
23 ZUERA DEZEMBRO/1974 COMÉRCIO CENTRO
Fonte: elaborado pelo autor.

Tabela 2 – Inventário das Escolas de Samba de Guaíba/RS


ESCOLAS DE FUNDAÇÃO BAIRRO DESFILES TÍTULOS OBSERVAÇÃO
SAMBA
1 ADMIRADORES
DO RITMO
2 COHAB/SANTA DEZEMBRO/2008 COHAB/STA 9 7 - EM
RITA RITA DESFILES TÍTULOS ATIVIDADE
3 ESTADO MAIOR MAIO/1993 COLINA - EM
DA COLINA ATIVIDADE
4 FAMÍLIA REAL
5 FIGUEIRA
6 IMPÉRIO NOVEMBRO/1971 ERMO 11 23 - EM
SERRANO DESFILES TÍTULOS ATIVIDADE
7 INTEGRAÇÃO
8 SAI DA FRENTE MAIO/1982 CENTRO
9 TRADIÇÃO 1989 FATIMA
10 TREVO DE OURO
11 UNIÃO DA VILA
12 UNIDOS DA
COLINA
Fonte: elaborado pelo autor.

Ao analisar os inventários podemos perceber que existiu uma diversidade grande de blocos
e cordões carnavalescos, assim como Escolas de Samba; muitas tinham um curto período de
existência, outras tinham um tempo mais longo. As entidades em destaque são as que terão mais
destaque durante os anos 70, e consequentemente ganharem destaque no jornal.
Podemos pensar a formação do Império Serrano através do bairro, Ermo, onde está
localizado. Essa formação vai ver por uma população majoritariamente negra, e afastada do centro
da cidade, que se desloca para uma zona mais alta e periférica da região central, onde estava
centrada a parte comercial da cidade.

Figura 1 – Mapa de localização da Sociedade Recreativa e Esportiva Império Serrano

Fonte: imagem do Google Maps.

Sendo assim, para Selau (2004), a técnica de História Oral como metodologia, contribui
para o desenvolvimento de uma série de técnicas e procedimentos metodológicos que auxiliam a
produção do conhecimento em história.
Para François (2006), a História Oral poderia distinguir-se como um procedimento
destinado à constituição de novas fontes para a pesquisa histórica. Ainda segundo François (2006),
fazer História Oral significa, portanto, produzir conhecimentos históricos, científicos, e não
simplesmente fazer um relato ordenado da vida e da experiência dos “outros”.
Em depoimento,1 as senhoras Maria da Conceição e Marieta (2015) relatam que o
Império Serrano surgiu por volta do ano de 1969, na saída de três dos seus fundadores,
Liberato Garcia, Jairo dos Santos e Irajá Silvério, do clube Academia do Samba. Ao fundar
a Escola de Samba Império Serrano, na mesa de um bar, escolhem esse nome por gostarem
da agremiação de mesmo nome do Rio de Janeiro, mas o registro oficial da escola foi
realizado em 30 de novembro de 1971.
Como forma de investigar esse passado, devido à falta de documentação
recorremos à metodologia de História Oral, revisitando memórias para assim traçar sua história.
O preenchimento das lacunas criadas na história do objeto em análise é o que se busca
revisitar, onde partes desses “não-ditos” não caiam no esquecimento, como nos evidência
Pollak (1989): “as fronteiras desses silêncios e "não-ditos" com o esquecimento definitivo
e o reprimido inconsciente não são evidentemente estanques e estão em perpétuo
deslocamento”.
Embora na maioria das vezes esteja ligada a fenômenos de dominação, a clivagem entre
memória oficial e dominante e memórias subterrâneas, assim como a significação do
silêncio sobre o passado, não remete forçosamente à oposição entre Estado dominador e
sociedade civil. Encontramos com mais frequência esse problema nas relações entre
grupos minoritários e sociedade englobante. (POLLAK, 1989, p. 5).

Para Halbwachs (1990), o indivíduo que lembra é sempre um indivíduo inserido e habitado
por grupos de referência; a memória é sempre construída em grupos, mas é também, sempre, um
trabalho do sujeito. Pois o sujeito para Halbwachs (1990) é um sujeito atrelado ao coletivo, logo
não há memórias individuais, mas coletivas.
Com isso elaboramos um contraponto com a área do conhecimento da Antropologia, na
qual observamos a memória como na fala dos parceiros de pesquisa. Sendo assim, podemos pensar
a perspectiva de História Oral, sendo uma propulsora de fonte oral.

[...] o método etnográfico encontra sua especificidade em ser desenvolvido no


âmbito da disciplina antropológica, sendo composto de técnicas e de
procedimentos de coletas de dados associados a uma prática do trabalho de campo
a partir de uma convivência mais ou menos prolongada do(a) pesquisador(a) junto
ao grupo social a ser estudado. (ECKERT; ROCHA, 2008, p. 9).

Pedagogia da Ação Social


A Pedagogia da Ação Social das escolas de samba desenvolve-se em duas vertentes: a
primeira delas, o ato de viver em comunidade. A segunda, o desenvolvimento de sua vida em
comunidade em constante interação com o social, conforme apresenta Tramonte (2001).

1 Depoimentos recolhidos por mim, no dia 14/06/2015, na sede da Sociedade Recreativa Império Serrano. Maria
da Conceição da Silva Garcia (63 anos), esposa do fundador Liberato Garcia (falecido) e Marieta Ribeiro Almeida
(71 anos), amiga da família Garcia.
Tenho um sonho de montar uma biblioteca numa salinha lá dentro do Império. Porque às
vezes as crianças querem fazer um trabalho, e tem que ih no centro na Biblioteca do
Município, então quero fazer uma aqui, para facilitar. (Andréa, 13/04/17).

Abaixo, está disponível a planta baixa do espaço de sociabilidade que se apresenta a


biblioteca, como narrado pela Andréa.

Figura 2 – Planta baixa do espaço de sociabilidade

Fonte: elaborado pelo autor.

Pedagogia da Ação Política


Como aponta Tramonte (2001), neste sentido, a Pedagogia da Ação Política das escolas de
samba subdivide-se em dois níveis: trabalhar o consenso em níveis interno e externo e conviver
com diferenças político-partidárias, atrelando e mantendo a autonomia da escola.

To bem, to aqui fazendo esse coelho. Porque depois que as gurias descobrem que a
‘perereca’ não é só para mijar, elas não fazem mais nada, não adianta nem pedir. Só
querem colocar aquelas roupas apertadas, que arrebitam a bunda, e sair por aí rebolando.
(Tia Bete, 16/04/17).

Pedagogia dos Valores Éticos e Morais


Como apresenta Tramonte (2001), em torno de “salvar e manter a boa imagem do Carnaval”
organiza-se um processo educativo de elaboração de um código de ética e moral válido para todo o
Mundo do Samba.

Antes era assim, na época do Liberato [um dos fundadores da Escola de Samba, faleceu
em 1991] o Império não dava fantasia, a gente cobrava pela fantasia. Mas, o Edinho é
coração bom não cobra, quer dar. Então agora temos dividas com costureiras. Eu e a
Marieta [irmã da Maria da Conceição], costuramos um pouco, mas só nós duas não damos
conta. Aí contratamos pessoas de fora. (Maria, 13/04/17).

Pedagogia da Ação Escolar


A montagem de um desfile das escolas de samba, uma verdadeira “ópera popular” como
comumente se define, desenvolve nos organizadores e participantes importantes processos
pedagógicos. Além do processo pedagógico em si, há uma relação intrínseca de aprendizado dos
conteúdos que poderiam mesmo adequar-se aos currículos das escolas formais, como elucida
Tramonte. (2001). “Olha, esse aqui é o carnaval de 2018! Eu: - Hummm, sobre a Semana de Arte
Moderna de 22.” (Edison, 17/06/17).

Pedagogia da Ação Cultural


A Pedagogia da Ação Cultural é apresentada para Tramonte (2001), como o principal
aspecto da ação cultural das escolas de samba é a valorização da raiz afro-brasileira, denominada
“negritude” no Mundo do Samba. “Queriam fazer sobre o Bará esse ano, mas não quis fazer porque
esse enredo a gente consegue mais patrocínios.” (Edison, 17/06/17).

Pedagogia da Arte
Além das áreas ligadas à História, Literatura e outras, que formam parte dos currículos
escolares, no processo de organização dos desfiles desenvolvem-se noções de artes plásticas, como
apresenta Tramonte. (2001). “Ricardo, o Tamanca constrói essas esculturas tudo, desses carros
[aponta para o material que está no barracão]. Ele é muito bom com isso; pena que se perde na
bebida..” (Andréa, 13/04/17).

Levando em considerações esses aspectos, podemos perceber que as relações dos


componentes da Escola de Samba com as ações pedagógicas, são consideradas como partes
importantes de uma estrutura social que é o carnaval. Todo o formato de preparação de uma
agremiação carnavalesca, é objetivado dentro desse formato.
Além disso, o carnaval ainda é percebido, vulgarmente, como uma festividade marginal,
segregado por diversas camadas políticas, que buscam eliminar os concursos de carnaval, assim
como os de trios elétricos, com o corte de verbas, deixando à margem as escolas que objetivam
muito mais que a festividade do carnaval, mas a forma que ela trabalha ao longo de um ano de
montagem da escola.
O espaço do carnaval, ainda é considerado como resistência das comunidades negras, pois
elas que ocupam esse espaço de forma majoritária, destinando muitas vezes seus temas como foi
apontado em uma das falas.
Sendo assim, temos que investir e considerar as agremiações como espaço de sociabilidade
pedagógica, onde as instituições trazem uma referência social, muitas vezes cumprindo papeis que
seriam de posição do Estado.

CANDAU, Joel. Memória e identidade. São Paulo: Contexto, 2011.

ECKERT, Cornelia; ROCHA, Ana Luiza Carvalho da. Etnografia: saberes e práticas. In: PINTO,
Céli Regina Jardim; GUAZZELLI, César Augusto Barcellos. (Org.). Ciências Humanas: pesquisa
e método. Porto Alegre: Ed. da UFRGS, 2008.

FERREIRA, Marieta de Moraes. História, tempo presente e História Oral. Topoi. Rio de Janeiro:
p. 314-332, dezembro de 2002.

LEOPOLDI, José Sávio. Escola de Samba, ritual e sociedade. Petrópolis: Vozes, 1977.

PESAVENTO, Sandra Jatahy. História & História Cultural. Belo Horizonte: Autêntica, 2005.

TRAMONTE, Cristiana. O samba conquista passagem. Petropolis: Vozes, 2001.

Maria da Conceição da Silva Garcia – entrevista realizada por Ricardo Figueiró Cruz, no dia 14
de junho de 2015, na sede da Sociedade Recreativa Império Serrano.

Marieta Ribeiro Almeida – entrevista realizada por Ricardo Figueiró Cruz, no dia 14 de junho de
2015, na sede da Sociedade Recreativa Império Serrano.

13/04/17 – Visita

16/04/17 – Festa de Páscoa

17/06/17 – Entrevista Dona Maria da Conceição


Camila Martins Braga*

Foi na faculdade de Direito de Pelotas, a segunda instituição de ensino de Direito instalada


no Rio Grande do Sul, que, em 1939, aos 24 anos de idade, formava-se o advogado Antônio Ferreira
Martins. Com poucos recursos financeiros para abrir um escritório que captasse a elite pelotense, o
filho do operário Manoel Rodrigues Martins e da dona de casa Rosalinda Ferreira Martins viu no
Direito do Trabalho a oportunidade de lançar sua carreira profissional, entrelaçando retorno
financeiro aos seus ideais políticos por meio do atendimento ao proletariado.
Para a captação de clientes, Martins propagava sobre os direitos dos trabalhadores em cima
de um caixote no horário de saída das empresas, visando a informar a classe trabalhadora.
Motivando-os a pleitearem por seus direitos.
A construção deste artigo ocorreu por meio das narrativas do próprio advogado e de seus
dois filhos, Aires e Daniel.
As entrevistas foram realizadas com apoio da metodologia da História Oral. Tratamos a
subjetividade que a metodologia carrega, como parte integrante da entrevista (PORTELLI,1997).
Consideramos cada entrevista utilizada como uma construção da verdade histórica. O conceito de
memória de Joel Candau (2011) nos guiou para analisar o processo de lembrança de cada
entrevistado. “Porque a memória organiza os traços do passado em função dos engajamentos do
presente e logo por demandas do futuro” (CANDAU, 2011, p. 63). O objetivo não foi buscar uma
coerência linear e fechada sobre a vida de Martins, mas notar a construção/apresentação deste
personagem pelos entrevistados.
Apesar deste trabalho não ser um estudo biográfico (devido ao seu recorte temporal e à
escolha das fontes, entre outras razões), a pesquisa utiliza algumas ferramentas teóricas e
metodológicas da biografia. Benito Schmidt (2000) afirma que a biografia permite ao pesquisador
investigar espaços de exercício da liberdade possíveis de uma determinada sociedade.
Diferentemente da biografia tradicional, buscaremos fugir do modelo apologético, considerando o
advogado Martins como via de acesso para a compreensão das lutas entre operários e patrões
pelotenses dentro do âmbito jurídico. “Por muito tempo a biografia foi vista como o modelo de
história tradicional, mais propensa à apologia do que à análise, mais preocupada com os fatos do
que com as grandes estruturas socioeconômicas, políticas e culturais.” (SCHMIDT, 2000, p. 49).
Atualmente, há um número crescente de estudos históricos biográficos. Essa volta da
biografia está ligada à mudança na escala de observação, na qual o foco não são mais as grandes

* UNISINOS, doutoranda em História, apoio CAPES.


estruturas mas as particularidades e estratégias dos grupos sociais, comportamentos familiares e a
ação de sujeitos no mundo.

[...] percebe-se que o retorno da biografia, pelo menos no âmbito da história, não significa
simplesmente a retomada de um gênero velho, mas está inserido em um processo de
profunda transformação das bases teórico-metodológicas da disciplina, com um
consequente repensar de questões clássicas como: a relação indivíduo/sociedade, as
formas narrativas do conhecimento histórico, entre outras.” (SCHMIDT, 2000, p. 51).

A relevância de um estudo biográfico se dá pela singularidade do personagem. A grande


diferença da biografia tradicional para a nova biografia está no enfoque dado ao biografado, isto é,
a qual objetivo o trabalho se propõe. As biografias tradicionais se preocupavam em louvar ou
denegrir os personagens enfocados, exemplificando-os como modelos de vida positivos ou
negativos para os leitores. Já a nova biografia tende a fugir desse modelo apologético,
“considerando seus personagens como via de acesso para a compreensão de questões e/ou contextos
mais amplos.” (SCHMIDT, 2000, p. 63).
Outro fator que deve ser pautado quando se trata de biografia são as diferenças
metodológicas entre os biógrafos. Ao abordar estudos biográficos, historiadores e jornalistas se
aproximam da literatura. Essa aproximação “implica uma incorporação do elemento ficcional e a
adoção de determinados estilos e técnicas narrativas.” (SCHMIDT, 1997, p.8). Apesar desta
semelhança, o tratamento que os biógrafos dão às fontes marca as diferenças dos campos que
utilizam a biografia. Apesar das inúmeras mudanças no campo da historiografia, a crítica (interna e
externa) às fontes se perpetua.

[...] nos trabalhos históricos, os momentos de invenção precisam ser sempre sinalizados
ao leitor através da utilização de expressões “provavelmente, “talvez”, “pode-se
presumir”, [...] Ou seja, assim como o romancista ou cineasta, o historiador também pode
utilizar-se da imaginação, desde que essa seja explicitada ao leitor enquanto tal e balizada
pelas fontes. (SCHMIDT, 2000, p. 67-68).

Para não cair nas “armadilhas” de simplificação e coerência ao personagem, ao utilizar das
ferramentas da biografia, o historiador deve ser cauteloso em suas afirmações. Pierre Bourdieu
(2006) afirma que se deve ter cuidado ao falar do biografado. Expressões como “sempre” ou “desde
pequeno” devem ser evitadas, pois as mesmas indicam a busca da coerência na trajetória do
biografado. Benito Schmidt (2000) diz que expressões como “através”, “por intermédio”, mostram
a preocupação dos autores em fugir do voluntarismo individualista e estabelecer conexão entre a
trajetória estudada e os contextos onde ela se encontra.

[...] quero defender a ideia de que os biógrafos não devem se fixar na busca de uma
coerência linear e fechada para a vida de seus personagens, mas que precisam sim
apreender facetas variadas de suas existências, transitando do social ao individual, do
inconsciente ao consciente, do público ao privado, do familiar ao político, do pessoal ao
profissional, e assim por diante, sem tentar reduzir todos os aspectos da biografia a um
denominador comum. (SCHMIDT, 2000, p. 63).

Em seu artigo “Grafia da vida: reflexões sobre a narrativa biográfica”, Benito Schmidt
(2004), diz que fazer a biografia de um indivíduo está longe de poder escrever uma vida, pois seria
pretensioso imaginar que as “linhas de um texto seriam cabíveis para expressar descontínuos e
contraditórios fios de um destino pessoal” (SCHMIDT, 2004, p. 64). Nessa mesma perspectiva,
Pierre Bourdieu (2006) ressalta que, ao analisar a “história de vida” de um indivíduo, o pesquisador
deve atentar para a análise do contexto que este indivíduo está inserido e sua relação com outros
agentes.
Tentar compreender uma vida como uma série única e por si suficiente de acontecimentos
sucessivos, sem outro vínculo que não associação a um “sujeito” cuja constância
certamente não é senão aquela de um nome próprio, é quase tão absurdo quanto tentar
explicar a razão de um trajeto de metrô sem levar em conta a estrutura da rede [...] não
podemos compreender uma trajetória [...] sem que tenhamos previamente construído os
estados sucessivos do campo no qual ela se desenrolou e, logo, o conjunto das relações
objetivas que uniram o agente considerado [...] ao conjunto dos outros agentes envolvidos
no mesmo campo e confrontados com o mesmo espaço dos possíveis. (BOURDIEU,
2006, p. 189).

Apesar deste trabalho não ser um estudo biográfico de Antônio Ferreira Martins, esta autora
se apoia em algumas “ferramentas” que a metodologia oferece, pois ao optar por analisar a atuação
do referido advogado, torna-se possível analisar uma construção estrutural que lhe ultrapassa
(AVELAR, 2010). Neste sentido, analisar a atuação profissional de Martins, torna-se relevante para
compreender as relações entre trabalhadores, empregadores e Justiça, durante a década de 1940.
Isto levando em consideração que, durante sua atuação no Direito, esse personagem tenha sofrido
por algumas mudanças no que se refere ao caráter identitário.

A escolha desse enfoque [...] não significa conferir às biografias dos personagens uma
identidade estável, um sentido linear e uma conferência ex post, aquilo que Pierre
Bourdieu chamou de “ilusão biográfica”. Significa sim, priorizar multifacetadas
trajetórias. (SCHMIDT, 2004, p. 26).

Assim, a trajetória de Martins se entrelaça na história dos trabalhadores pelotenses, na


história do Direito de Pelotas e na história do Direito do Trabalho no Brasil.
Ao optarmos por pesquisar sobre a atuação do advogado Antônio Ferreira Martins,
pretendemos escapar da armadilha de traçar um perfil de um profissional “heroico”, defensor
incondicional das minorias, ou por outro lado, um “charlatão” que utilizava seu capital intelectual
para usurpar os trabalhadores. Nossa intenção é, seguindo Schmidt, analisar as diferentes facetas
do personagem e a forma como se apresenta e é apresentado pela sociedade.
Através da análise dos papéis desempenhados por este advogado, é possível conhecer quais
eram os conflitos entre trabalhadores e empregados, quais direitos as empresas
cumpriam/descumpriam, qual a relação das indústrias com os sindicatos, quais eram as estratégias
utilizadas pelos advogados dos empregadores, quais eram as posturas dos magistrados no período;
assim, abrindo um leque de informações sobre trabalhadores e operadores do direito na fase
incipiente da Justiça do Trabalho; o que torna essa pesquisa extremamente relevante para a história
social do Brasil.
Por trabalharmos com fontes orais, consideramos importante a reflexão acerca da memória
na historiografia. Nos anos 1980, Pierre Nora apresentou o que considerava as diferenças entre
história e memória. De acordo com o autor:

Memória, história: longe de serem sinônimos, tomamos consciência que tudo opõem a
outra. A memória é a vida sempre carregada por grupos vivos e nesse sentido ela está em
permanente evolução, aberta à dialética da lembrança e do esquecimento, inconsciente de
suas deformações sucessivas, vulnerável a todos os usos de manipulações, suscetível de
longas latências e de repentinas revitalizações. A História é a reconstrução sempre
problemática e incompleta do que não existe mais. A memória é um fenômeno sempre
atual, um elo vivido no eterno presente; a história uma representação do passado. [...] A
memória se enraíza no concreto, no espaço no gesto, na imagem, no objeto. A história só
se liga às continuidades temporais, às evoluções e as relações das coisas. A memória é um
absoluto e a história só conhece o relativo. (NORA, 1980, p. 9).

Através da afirmação do autor, levanta-se a dúvida para o historiador sobre como trabalhar
com um elemento tão mutável como a memória? Apesar de até hoje permear discussões acerca do
antagonismo entre história e memória, a perspectiva de Nora mostra que, com o auxílio das
narrativas é possível contar parte da história de um personagem – no caso, o advogado Martins, que
construiu sua memória como uma espécie de precursor do Direito do Trabalho no Brasil.
Trabalhar com a memória é trazer para a pesquisa a voz de pessoas que se dispuseram –
seja qual for a motivação ─ a compartilhar momentos de suas vidas, seus anseios, alegrias,
experiências. Apesar do entrevistador guiar o depoente ─ por intermédio das perguntas ─, este deve
entender que seu entrevistado está naquele momento constituindo sua identidade.

Quando um indivíduo constrói sua história, ele engaja uma tarefa arriscada consistindo em
percorrer de novo aquilo que acredita ser a totalidade de seu passado para dele se apropriar
e, ao mesmo tempo, recompô-lo em uma rapsódia sempre original. O trabalho da memória
é, então, uma maiêutica da identidade, renovada a cada vez que se narra algo. (CANDAU,
2011, p. 76).
Alessandro Portelli (1997) afirma que, apesar da memória ser social, ela é um fenômeno
construído individualmente. Esta construção se dá através do entrelaçamento das memórias
individuais (construídas de forma consciente ou inconsciente) com o meio social que o indivíduo
se encontra inserido.
[A memória] Ainda que esteja moldada de diversas formas pelo meio social, em última
análise, o ato e a arte de lembrar jamais deixam de ser profundamente pessoais. A memória
pode existir em elaborações socialmente estruturadas, mas apenas os seres humanos são
capazes de guardar lembranças. Se considerarmos a memória um processo, e não um
depósito de dados, poderemos constatar que, à semelhança da linguagem, a memória é
social, tornando-se concreta apenas quando mentalizada ou verbalizada pelas pessoas. A
memória é um processo individual, que ocorre em um meio social dinâmico, valendo-se
de instrumentos socialmente criados e compartilhados. (PORTELLI, 1997, p. 16).

Através deste processo de construção da memória, surge o sentimento de identidade com


base em três elementos: unidade física, continuidade e sentimento de coerência.

Se podemos dizer que, em todos os níveis, a memória é um fenômeno construído social e


individualmente, podemos também dizer que há uma ligação fenomenológica muito
estreita entre a memória e o sentimento de identidade. Aqui o sentimento de identidade
está sendo tomado no seu sentido mais superficial, mas que nos basta no momento, que é
o sentido da imagem de si, para si e para os outros. Isto é, a imagem que uma pessoa
adquire ao longo da vida referente a ela própria, a imagem que ela constrói e apresenta aos
outros e a si própria, para acreditar na sua própria representação, mas também para ser
percebida da maneira como quer ser percebida pelos outros. [...] Podemos portanto dizer
que a memória é um elemento constituinte do sentimento de identidade, tanto individual
como coletiva, na medida em que ela é também um fator extremamente importante do
sentimento de continuidade e de coerência de uma pessoa ou de um grupo em sua
reconstrução de si. (POLLAK,1992, p. 215, grifo da autora).

Através dos critérios de aceitabilidade, admissibilidade e de credibilidade (POLLAK,


1992), o indivíduo irá constituir sua identidade, pois ela se produz com referência aos outros. Já
Candau, observa que “[...] é no mesmo movimento dialético que a memória vem confortar ou
enfraquecer as representações identitárias, e estas vêm reforçar ou enfraquecer a memória” (2011,
p. 78).
A reflexão sobre a memória é essencial para o trabalho com fontes orais a partir da História
Oral. Da mesma forma, é notável o crescimento de pesquisas relacionadas à história dos
trabalhadores em todo Brasil. O aumento de pesquisadores interessados em participar da construção
da história social do trabalho não é só dos historiadores, mas, igualmente de outras áreas das
Ciências Humanas. No entanto, muitos ainda esbarram no problema das fontes, seja de ordem
metodológica ou por conta da disponibilidade da documentação nos acervos. Em nossa pesquisa,
as entrevistas dialogam com os processos do acervo da Justiça do Trabalho, sendo assim possível
obter respostas subjetivas que esses documentos não trazem. De acordo com Vânia Lopes (2012):

[...] o ato de rememorar também é subjetivo, sendo uma criação constante por parte do
depoente/entrevistado, reagindo de acordo com os fatores sociais do presente que estão
agindo sobre ele, trazendo em seu discurso a sua verdade, a sua visão do fato ocorrido,
considerando o seu lugar ocupado no interior do grupo e das relações mantidas com outros
meios sociais, ainda que encubra o que realmente aconteceu (LOPES, 2012, p. 2).

A cada entrevista é construída uma verdade da história. Se excluirmos a subjetividade


dessas narrativas, corremos o risco de distorcer os fatos narrados (PORTELLI, 1996). Por isso,
quando estamos trabalhando com relatos orais, é preciso entender a subjetividade da História Oral
como parte integrante da entrevista, que deve ser respeitada como ponto de vista e ter sua
especificidade. Também se faz necessário não se deixar “seduzir” pela narrativa do entrevistado,
mas entender que através desta metodologia é possível conhecer diferentes verdades sobre o mesmo
objeto.
A História Oral pode ser compreendida a partir de três gêneros distintos: história oral de
vida, tradição oral e história oral temática; sendo a última citada, a base para a construção das
narrativas desta pesquisa. “Por partir de um assunto específico e preestabelecido, a história oral
temática se compromete com o esclarecimento ou opinião do entrevistado sobre algum evento
definido.” (MEIHY, 1998, p. 51). Optamos por esta metodologia por ela direcionar a fala dos
entrevistados a um tema específico, no caso, a atuação profissional de Martins através das memórias
do próprio advogado e de seus filhos (Aires e Daniel).
De acordo com Verena Alberti, ao utilizar da metodologia da História Oral, o pesquisador
acaba construindo sua própria fonte. Para a autora:

A História Oral é uma metodologia de pesquisa e de constituição de fontes para o estudo


da história contemporânea, surgida em meados do século XX, após a invenção do
gravador a fita. Ela consiste na realização de entrevistas gravadas com indivíduos que
participaram de, ou testemunharam, acontecimentos e conjunturas do passado e do
presente. Tais entrevistas são produzidas no contexto de projetos de pesquisa, que
determinam quantas e quais pessoas entrevistadas, o que como perguntar, bem como que
destino será dado ao material produzido (ALBERTI, 2005, p.155).

Cabe mencionar, que o objetivo do recolhimento desses depoimentos não é de se chegar a


uma verdade absoluta sobre a vida de Martins, mas saber suas particularidades.

A História Oral tende a representar a realidade não tanto como um tabuleiro em que todos
os quadrados são iguais, mas como um mosaico ou colcha de retalhos, em que os pedaços
são diferentes, porém, formam um todo coerente depois de reunidos. (PORTELLI, 1997,
p. 16).
Seguindo a linha de pensamento de Alessandro Portelli (1997), neste artigo utilizamos os
relatos dos entrevistados como um aporte para estudarmos acerca da construção dos perfis
identitários de Martins.
A primeira narrativa analisada foi a do filho mais velho de Martins, Aires Roberto Veiras
Martins.Durante a entrevista, notamos a preocupação do entrevistado em construir uma identidade
“exemplar” do advogado Martins.

Como o escritório de meu pai tinha uma linha de advocacia, não vou dizer exemplar, mas
uma linha correta, como em tudo na vida dele. O que aconteceu? Eu comecei a ser
procurado por empresas [...] Como eu trabalhava no escritório do meu pai eu tinha
experiência no Direito do Trabalho, então eu comecei a ser procurado por empresas. Meu
pai me retirou do escritório dele e ficamos dois anos sem nos falar” (MARTINS, 2014, p.
4, grifo da autora).

Partindo das noções teóricas de Portelli (1996), consideramos a subjetividade uma


característica predominante na História Oral. Percebemos que a narrativa de Aires visa construir
uma identidade homogênea para seu pai, como um exemplo de virtude.
A segunda entrevista é de Daniel Veiras Martins, filho caçula do advogado. “Meu pai era
comunista até o final. ‘Ele tinha esse princípio de ajudar os pobres, os trabalhadores, os
prejudicados’. Ele dizia que a CLT foi a melhor legislação que existia sobre trabalho no mundo
[...]” (MARTINS, 2015, p. 4).
Assim como a fala de Aires, a narrativa de Daniel atribui a Martins adjetivos positivos que
constroem um personagem idealista, que faz uso da sua profissão em prol da defesa dos interesses
da classe operária.
A última entrevista analisada foi construída com o próprio advogado. “Eu já saí brigando.
Eu tive uma vida profissional muito intensa quando eu era jovem. Creio que eu ajudei o Direito do
Trabalho a se espalhar por Pelotas e por municípios vizinhos.” (MARTINS, s/d, p. 2). Por meio
deste trecho da fala de Antônio Martins, observamos que o advogado atribuía a si o título de
propagador do Direito do Trabalho na região sul do RS.
A imagem que objetivamos repassar de nós, é pré-construída pelo que somos no momento
da evocação (Candau, 2011). A narrativa dos dois filhos de Martins mostra a existência de um
núcleo memorial, construído de lembranças relativamente estabilizadas.

Em resumo, podemos definir a totalização existencial como um ato de memória que


investe de sentido os traços mnésicos, por vezes subitamente como no caso dos “acessos
de memória”. Em função de objetivos e relações no presente, esse ato de memória organiza
os traços mnésicos deixados pelo passado: ele os unifica e os torna coerentes a fim de que
possam fundar uma imagem satisfatória de si mesmo. Este trabalho nunca é puramente
individual.A forma do relato, que especifica o ato de rememoração, “se ajusta
imediatamente às condições coletivas de sua expressão”, o sentimento do passado se
modifica em função da sociedade. (CANDAU, 2011, p. 77).

Conforme Candau, um indivíduo jamais poderá ser totalmente rememorado, sua identidade
é uma forma de apresentação. Constatamos que os dois filhos entrevistados optaram por exaltar os
valores morais do personagem pesquisado, apresentado-o como um indivíduo exemplar para a
sociedade.
Ao descrever sobre sua atuação profissional, Martins salientou a ideia de uma vida linear
baseada em princípios de justiça social. Neste sentido, buscou emprestar coerência à sua trajetória.

[...] o fato de dotar de coerência sua trajetória de vida satisfaz uma preocupação que
podemos qualificar como estética: permite ao narrador transformar a seus próprios olhos
a narrativa de si próprio em uma “bela história”, quer dizer, uma vida completa, rica em
experiências de toda natureza. Nesse sentido, todo aquele que recorda, domestica o
passado e, sobretudo, dele se apropria, incorpora e coloca sua marca em uma espécie de
selo memorial que atua como significante da identidade. (CANDAU, 2011, p. 74).

No decorrer das narrativas, percebemos a produção de uma ilusão biográfica (BOURDIEU,


2006) que objetiva unir e justificar atitudes tomadas durante a vida do personagem. Concluímos
que as três entrevistas consideram que o advogado atuou com veemência na luta pelos direitos da
classe operária pelotense. As narrativas mostraram as multifaces de Martins. Ele foi um oportunista
no sentido de aproveitar a oportunidade de um novo campo que se instalava no Direito, foi idealista
devido a sua militância comunista e foi um profissional que conseguiu entrelaçar suas concepções
de justiça social com o retorno financeiro.

MARTINS, Antônio Ferreira. Atuação profissional do advogado Antônio Ferreira Martins.


Entrevista de História Oral Temática, concedida a LONER, Beatriz Ana. [?] Disponível em:
Laboratório de História Oral da UFPel.

MARTINS, Aires Veiras. Atuação profissional do advogado Antônio Ferreira Martins. Entrevista
de História Oral Temática, concedida a BRAGA, Camila Martins, 2014.

MARTINS, Daniel Antônio Veiras. Atuação profissional do advogado Antônio Ferreira Martins.
Entrevista de História Oral Temática, concedia a BRAGA, Camila Martins, 2015.
Marlise Regina Meyrer

Foi somente nas últimas décadas que a historiografia sofreu mudanças mais significativas
no que diz respeito à valorização das diferentes linguagens, que por sua vez se expressam em
diversos suportes/fontes da pesquisa histórica. Esse movimento tem possibilitado o
desenvolvimento de abordagens teórico-metodológicas inovadoras que ampliam o entendimento
sobre as dinâmicas sociohistóricas, rompendo definitivamente com uma visão homogênea e
absoluta dos fenômenos históricos.
Nessa trajetória, a emergência e consolidação da História Cultural, ou Nova História
Cultural, que atualmente concentra a maioria das produções historiográficas, contribuiu para a
ampliação das possibilidades metodológicas na medida em que expandiu o campo da História num
diálogo profícuo com outras áreas do conhecimento como a Antropologia, Sociologia, a Filosofia,
a Linguística, o campo das artes, entre outros. Novos conceitos, como o de representação e
imaginário social, bem como a atenção aos aspectos simbólicos das relações sociais, abriram
caminho para a exploração de diversificadas linguagens nos processos de construção do
conhecimento histórico, o que tem permitido acessar diferentes discursos e representações sociais
que, por sua vez, revelam sujeitos com distintas práticas e visões de mundo.
Essas considerações fundamentam a proposta do Laboratório de Memória Oral e Imagem
(LAMOI-UPF), vinculado ao curso de Graduação em História e ao Programa de Pós-Graduação
em História da Universidade de Passo Fundo, que tem como finalidade o desenvolvimento de
pesquisas a partir da organização da memória oral, visual, audiovisual e escrita da região norte do
Rio Grande do Sul. A problemática fundamenta-se na questão da memória, horizonte esse que se
liga ao conceito de identidade, pois as memórias produzidas, historicamente pelos diferentes grupos
(sociais, étnicos e de gênero), construíram representações de identidade que podem ser acessadas a
partir de fontes diversas e passam a ser entendidas como registros das experiências humanas ao
longo do tempo e que, na ação de rememorar, unem passado e presente, num processo de
manutenção e reforço dos laços identitários dos grupos.
A memória, individual ou coletiva, constitui-se a partir das experiências vividas, mantendo
uma linha de continuidade temporal com o presente através da história. O conceito de memória
coletiva, desenvolvido por Maurice Halbwachs, orienta nossa proposta de estudar a memória de um
grupo. Para esse autor, toda memória se funda em identidades de grupo, nossas lembranças
vinculam-se a experiências numa vida em grupo – família, vizinhos, fábrica, escola, etc. Todo o

* UPF, Drª em História. Projeto com apoio da FAPERGS. (Pesquisador Gaúcho, 2014).
social está inscrito na memória individual como vice-versa. A memória é entendida, assim,
enquanto construção social.
Para Ricoeur (2007), a relação entre a memória individual e coletiva se dá através da
narrativa. Construída sobre as experiências vividas, a memória funda-se na linguagem. É a
linguagem cotidiana com todas as suas nuances que permite aos grupos exteriorizar a memória em
forma de narrativa. A linguagem torna-se, assim, a portadora da memória, fortalecida através das
narrativas coletivas. Neste aspecto, entendemos que a memória contada oralmente pelos membros
das comunidades adquire um sentido específico, tornando cada membro da comunidade sujeito de
sua própria história.
Entre as fontes privilegiadas pelas pesquisas ligadas ao LAMOI, estão a fotografias e os
depoimentos orais, ambas consideradas fontes de memória. As histórias de vida que emergem
dessas fontes acabam por criar uma identidade entre as pessoas, na medida em que as mesmas
partilham diferentes estratégias e saberes diante de uma mesma realidade, conformando o que
Maurice Halbwachs define como memória coletiva.
Apresentamos aqui, uma das pesquisas desenvolvidas pelo LAMOI, dentro da proposta
descrita acima. Trata-se do estudo de um espaço específico da cidade de Passo Fundo/RS, a rua
Quinze de Novembro. O local foi um espaço caracterizado por abrigar estabelecimentos e práticas
entendidas como marginais na sociedade passo-fundense da época. Na cidade de Passo Fundo,
observa-se a permanência deste espaço no imaginário da cidade como um submundo, um local
proibido do qual fala-se muito. Nesse sentido, a rua Quinze e seu entorno, pode ser entendida como
lugar de memória, reconhecido pela comunidade enquanto parte da memória da cidade,
independente da conotação positiva ou negativa que carrega. Como a memória é feita de lembranças
e esquecimentos, é uma memória que alguns querem esquecer e outros rememorar.
Adequando-se à proposta do LAMOI, a pesquisa utilizou-se de diferentes fontes,
explorando a leitura de diferentes linguagens e/ou formas de fazer e pensar a história. Fotografia,
imprensa, caricatura, pintura, oralidade e textos literários foram consideradas como possibilidades
de leitura e interpretação do mundo social em uma perspectiva histórica. Buscamos explorar a
diversidade de linguagens também na produção dos resultados da pesquisa. Assim, o artigo aqui
reproduzido é um dos produtos textuais da pesquisa sobre a rua Quinze de Novembro. Além desse,
produzimos um pequeno documentário sobre o tema e um programa de rádio com trechos das
entrevistas feitas para o estudo.
Metodologicamente gravamos, em vídeo, dez entrevistas com pessoas que tiveram alguma
relação histórica com a rua Quinze de Novembro, com perguntas abertas. As entrevistas foram
transcritas e arquivadas, constituindo-se em acervo de fontes para esta e outras pesquisas futuras.
As imagens editadas e transformadas em um documentário que vem sendo apresentado em eventos
acadêmicos e da própria comunidade de Passo Fundo. Desse material, foram selecionados
pequenos trechos de áudio e editados em MP3, resultando no programa de rádio: A Escuta da
memória, Passo Fundo e suas histórias, veiculado pela rádio UPF em pequenos spots, três vezes
ao dia.
O programa “A escuta da memória: Passo Fundo e suas histórias” divulga diferentes
realidades e experiências que constituem a memória local, visando romper com o distanciamento
entre a memória popular produzida nas comunidades e a oficial ligada a instituições. Com a
finalidade de valorizar a riqueza da fala dos sujeitos, essas memórias são contadas na rádio UPF,
para serem ouvidas pela comunidade passo-fundense em toda a riqueza da narrativa oral. Assim, as
pausas, os risos, choros, emoções, sotaques, impossíveis de serem traduzidos para o formato do
texto na íntegra, completam e muitas vezes revelam o sentido da narrativa, pois oralidade carrega
esse “no que me diz respeito”, repleto de vivências subjetivas, mas que trazem consigo a memória
coletiva da comunidade, não descurando do fato de que esta memória particular está integrada a
uma rede de relações sociais e culturais, configurando a memória local e regional.
O rádio, como veículo de fala e escuta dessa memória, através dos programas de entrevistas
produz, assim, documentos históricos sonoros, cuja função é, sobretudo, a de (re)memoração da
história de Passo Fundo. Essa ação é potencializada pelo caráter abrangente e popular do veículo,
cuja escuta permeia o cotidiano de um grande número de pessoas, especialmente nas localidades
mais afastadas dos grandes centros. Em muitas comunidades, a escuta radiofônica constitui-se num
hábito que persiste de geração em geração. Esse potencial do rádio, de educar, mobilizar, aglutinar,
sensibilizar, conversar com a comunidade é, dessa forma, explorado para produzir uma forma de
narrativa historiográfica.
Destacamos que a História Oral é um dos principais instrumentos utilizados nas pesquisas
do projeto descrito acima, na medida em que nos valemos dos depoimentos orais dos moradores
das diferentes comunidades a fim de conhecer sua própria narrativa sobre a história local. Não
queremos aqui compactuar com a ideia generalizada de que a História Oral sirva especificamente
para contar a história dos menos favorecidos, atribuindo a este grupo uma teórica incapacidade de
produzir sua própria história. Entretanto, esta metodologia de fato significou uma maior
possibilidade de escrever a história dos excluídos, na medida em que as fontes escritas sobre estes
grupos são escassas.
Cientes dos questionamentos que envolvem a História Oral, especialmente no que diz
respeito a sua carga de subjetividade, o entendimento dos relatos, enquanto documentos históricos
sonoros, precisam ser entendidos a luz de referências bibliográficas sobre o contexto em questão,
pois concordamos com Janoti (2010) quando ela aponta para a necessidade de se recorrer a fontes
múltiplas, lembrando que o testemunho do depoente não é apenas um relato do que viu e ouviu,
mas uma construção de um determinado discurso sobre o fato. Além disso, a autora chama a atenção
para a necessidade metodológica de se levar em consideração os objetivos do entrevistador, nesse
caso o historiador, que domina todo um aparato teórico que orienta a entrevista e irá influenciar na
construção do discurso.
Entendemos que a articulação entre as narrativas individuais nos possibilita vislumbrar a
perspectiva histórica do grupo, ou seja, um mesmo olhar do presente sobre o passado, revelando
reflexões sobre si e a história do grupo, enfatizando o caráter reflexivo dos processos de memória,
que nos remete a ideia de identidade. As histórias de vida assim, acabam por criar uma identidade
entre as pessoas, na medida em que partilham diferentes estratégias e saberes diante de uma mesma
realidade.

A Rua Quinze de Novembro em Passo Fundo concentrou, ao longo dos anos 1940 e 1950,
uma série de estabelecimentos voltados para atividades e práticas, consideradas marginais pela
sociedade tradicional da cidade. Dancings, cassinos, bares e pensões, que alugavam quartos para a
prática da prostituição, compunham o cenário do local, que também era um espaço de sociabilidade,
onde parte da elite masculina fechava negócios e fazia política. Um desses estabelecimentos se
sobressaiu, ganhando fama nacional: o Cassino da Maroca, ou Cassino Palácio.
O Cassino recebia a elite local, visitantes de fora da cidade e mesmo do Estado. Era
considerado inacessível para a maioria da população. Mulheres bem vestidas, vindas dos países
vizinhos como Uruguai e Argentina, orquestras e mesas regadas a champanhe fazem parte do
imaginário da cidade sobre o Cassino. Os anos áureos da movimentação da Rua Quinze foram os
da década de 1940 até meados de 1950. Em 1955, com a proximidade das comemorações do
centenário da cidade, alguns membros da sociedade de Passo Fundo, com apoio das autoridades
locais promoveram, através do jornal O Nacional, uma intensa campanha para retirada da zona do
meretrício daquele local, que ficava praticamente no centro da cidade. Lugar maldito para alguns,
de prazer para outros, a rua compõe o imaginário da cidade e pode ser considerada como um lugar
de memória do município, conforme acepção de Nora (1993, p. 25), para quem a “memória
pendura-se em lugares como a história em acontecimentos.
As discussões sobre o tombamento do prédio onde se situava o Cassino da Maroca, “
símbolo da boemia e da diversão das noites de Passo Fundo” (ROHRIG, 2016) evidenciam uma
disputa pela memória do município, envolvendo a construção da identidade dos passo-fundenses.
Uma ação do Ministério Público sobre o tombamento do prédio do antigo Cassino da Maroca, na
rua Quinze de Novembro, permanece aberta desde 2007, quando foi julgada improcedente pelo
Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul. O prédio foi adquirido por dois empresários em 2010,
sendo que um deles, Igor Loss da Silva, deu a seguinte declaração no jornal O Nacional
(10/11/2010: “[…] a Justiça considerou que não foi determinado o valor histórico do imóvel por ter
sido uma casa de prostituição […]”. A reportagem diz, ainda, que o sobrado não é considerado
legalmente um imóvel histórico para a cidade.
As disputas entre o memorável e o imemorável em relação à rua Quinze de Novembro, nos
leva a considerá-la como um espaço de fronteiras; fronteiras da (in)tolerância. Espaço de fronteiras,
a Rua Quinze de Novembro pode ser estudada a partir da categoria de análise da relação
estabelecidos – outsiders, conforme Elias (2000), na medida em que era considerada como o espaço
do outro, dos excluídos da sociedade formal. Seria o que Elias (2000) definiu como um grupo
considerado inferior diante de outro que detém o monopólio do poder e o estigmatiza. Para o autor,
entre os estigmas impostos aos outsiders está a visão do grupo estabelecido de que eles são “
indignos de confiança, indisciplinados e desordeiros”. (p. 27).
Este conceito, segundo o autor pode ser utilizado para o entendimento de muitos contextos
sociais para identificar como se constroem as diferenças entre os grupos, sejam elas sociais, étnicas,
de gênero, entre outras. No caso da Quinze de Novembro buscamos identificar, através dos
depoimentos orais e da memória jornalística, os elementos que separam esse espaço e seus
ocupantes da sociedade formal de Passo Fundo. E também entender de que forma os atributos
negativos sobre a rua e os positivos sobre a sociedade formal/legal vão sendo construídos e
reconhecidos como naturais. Para Elias (2007), isso só é possível devido ao desequilíbrio de poder
existente entre os grupos: “um grupo só pode estigmatizar o outro com eficácia quando está bem
instalado em posições de poder das quais o grupo estigmatizado é excluído”. (p. 23).
Um grupo outsider é visto comumente pelos estabelecidos como não cumpridores das
regras e por não respeitar os tabus da sociedade formal, colocando em risco a estabilidade dessa
sociedade. Por outro lado, os inseridos no grupo dominante, precisam constantemente estar atentos
ao cumprimento de tais regras, para permanecerem como membros do grupo. Nesse sentido, o
contato com os outsiders pressupõe um rígido controle sobre as fronteiras entre os grupos.
As narrativas dos entrevistados sobre a rua evidenciam essa situação de fronteiras entre o
lícito e o ilícito; o tolerado e o intolerado; a ordem e a desordem. A primeira situação limite
observada refere-se à identificação da rua, ora como espaço marginal, ora como local de ostentação
e luxo, representado, principalmente pelo Cassino da Maroca. A memória dos frequentadores,
homens, retém de um lado, as lembranças de uma boemia glamorosa e luxuosa com belas mulheres
bem vestidas, músicos estrangeiros noitadas regadas a champagnes e muito dinheiro. De outro, as
recordações da violência e da marginalidade daquele espaço.
A partir das narrativas, podemos dizer que até início dos anos 1950, havia um certo
equilíbrio e interação necessários entre esses dois mundos. Os homens de bem da sociedade passo-
fundense frequentavam os bordéis/cassinos da Quinze, onde socializavam tanto com seus pares
frequentadores, quanto com os outros daquele espaço, onde as fronteiras não eram tão rígidas.
Depois voltavam para o mundo legal e, muitas vezes, empreendiam batalhas morais contra a zona
do meretrício frequentada e mantida por eles, como foi o caso das campanhas deflagradas pelo
principal jornal da cidade para retirada dos bordéis do centro da cidade.
Ao tratar do imaginário da cidade, Sandra Pesavento (2000) assinala que, embora os grupos
sociais produzam um ideal de cidade, permeado pelos ideais de progresso e civilidade, a zona do
meretrício tem um papel fundamental na constituição do espaço urbano, pois funcionam como
“válvula de escape” às normas de convívio estabelecidas na cidade “legal”. A Zona do Meretrício
aparece, assim, como mal necessário e marcador social entre o lícito e o ilícito; o certo e o
errado; “estabelecidos e outsiders”, como podemos observar na narrativa do sr. Walter1:

Tinha um vereador muito polêmico em Passo Fundo que defendia a Maroca lá em plena
Câmara de Vereadores. E ele dizia com palavras a boca cheia que as mulheres da zona
preservavam suas filhas, e preservavam eles de terem guampa. Então, havia, assim, que a
prostituição era um mal necessário. E elas tinham escolhido aquele caminho e deviam ser
respeitadas. E ele era contra aquele tratamento que davam como fichar a mulher como
meretriz; ele achava muito pejorativo. E daí tinha um outro na época que gozava: são
ajudantes do lar. Então, no final, virava um motivo de gargalhada esses comentários.

Este e outros depoimentos encontram justificativa no pensamento de parte das autoridades


brasileiras do início do século que, entendendo a sua necessidade para aliviar as tensões libidinosas
das cidades (RAGO, 1991, p. 112), insistia na regulamentação da prostituição, sobretudo, através
de medidas sanitárias e vigilância sobre as zonas de meretrício. Assim, “a prostituição deveria ser
tolerada, porém controlada e subjugada ao império da violência policial” (RAGO, 1991, p.112).
O Cassino da Maroca foi o mais famoso dos estabelecimentos da Quinze de Novembro,
mas existiam outros igualmente requisitados, como o Cassino Royal. Eles surgiram num
período de desenvolvimento econômico da cidade de Passo Fundo na década de
1940, com o desenvolvimento da indústria madeireira e depois com o contrabando de
pneus,2 realizado no período da Segunda Guerra Mundial. Nas narrativas dos entrevistados,
a lembrança da zona do meretrício associa-se ao desenvolvimento da cidade:

[…] É a vida. E havia muito dinheiro naquela época, do contrabando de pneu, e da madeira
que era exportada para a Argentina. O pessoal levava daqui a Porto Alegre de caminhão,
entende? Era isso, mais ou menos o que tinha na época. E o mulherio, como diz os caras,
era de montão, e funcionavam as casas de mulheres. E tinha o Cassino da Maroca na
esquina, e a casa verde aquela que estão mexendo. E aquilo era engraçado, porque a pista
não era maior que isso aqui (se referindo à sala em que estávamos). Agora o que acontecia
com o pessoal? O mulherio tomava muito champanhe, naquele tempo; a bebida que elas
tomavam era champanhe. (Sr. Aldo).

Os testemunhos são unânimes em apontar para o luxo de tais estabelecimentos que recebiam
a elite local, das cidades vizinhas e até de outros estados.

1Todos os nomes dos entrevistados foram substituídos por nomes fictícios.


2Segundo diversos depoimentos orais e textos veiculados nos jornais locais, entre 1939 e 1945, período da
Segunda guerra Mundial, a cidade foi uma rota importante do contrabando de pneus brasileiros para
Argentina. Muitos cidadãos da cidade teriam enriquecido com comércio ilegal. https://nexjor.atavist.com/nos-
embalos-do-cassino-da-maroca; NASCIMENTO, M., 2003, p. 126-127.
No Cassino! Sargento da Brigada não podia entrar; eles impediam. Soldado raso não
entrava na zona, nem pagando. Era só mais elevado, e começou a funcionar na base do
dinheiro. Então, o mulherio se vestia bem. Eu sei porque eu tinha loja e vendia para elas.
E a costureira delas era a dona Jurema Dinarte. [...] no meio dessa quadra, no prédio onde
tem aquela loja de confecção, do lado da cantina Nápoles, era ela que costurava para elas.
Então, você conhecia, eu sabia quando tinha china nova na cidade; elas vinham comprar
aqui! (Sr. Aldo).

O luxo, entretanto, não tornava aquele espaço integrado à sociedade tradicional passo-
fundense. Esta memória da boemia elegante da cidade não desfaz a representação de um lugar à
margem, espaço do outro, da anomia. Para muitos, este era um local proibido, lugar de mistério,
sobre o qual contavam-se muitas histórias, despertando a curiosidade e especulação da população.
Maria assim sintetizou o imaginário sobre a rua: “a Quinze de Novembro, para mim, foi uma rua
proibida.”
A fronteira a que se refere Maria, na época uma adolescente, é aquela que separava as
mulheres honestas das mulheres “da vida” ou as do lar e as da rua. As primeiras foram preparadas
para o pleno exercício, das tarefas do lar, os cuidados com filhos e marido e, sobretudo, para serem
responsáveis pela manutenção da moralidade da família. Seu espaço por excelência era a casa, a
Igreja e, em alguns casos, os salões da alta sociedade, quando também eram responsáveis pelo status
da família. Sua sexualidade estava restrita ao casamento com objetivo de procriar. Já as segundas
têm sua referência na sexualidade mercantilizada, na sua capacidade sedutora que se constitui em
ameaça à família e aos “bons costumes” (RAGO, 1991, p. 41). Ainda Maluf e Mott (2006) afirmam
que, nas primeiras décadas do século XX, a sociedade criava estratégias para “ assegurar os limites
entre as mulheres ‘honradas’ e a libertinagem de mulheres de ‘conduta duvidosa’ que desfilavam
pelos teatros e cafés da cidade” (p. 392). A fala de Maria evidencia esta situação:

[...] ela era sim uma rua mais afastada porque o centro, geralmente como toda cidade
pequena é a avenida né? Então, uma quadra que se avance né, já se achava assim que
estava invadindo um território promíscuo né? Era da época né? […]. Não recomendavam
e o pai, principalmente, ia ficar muito brabo. A mãe já era mais condescendente. “Ah, mas
porque que foi? Aonde que se viu” aquela coisa toda. “Lá não presta”. Mas, o pai tá louco,
“lá só tem gente que não presta”, essas coisas... É isso aí [...]. (Grifo meu).

Na sociedade moderna, a prostituta passou, então, a simbolizar a alteridade, a mais radial e


perigosa” (RAGO, 1991, p. 26); por isso a necessidade de demarcar o espaço. Não é outra a razão
das queixas na coluna intitulada “O que o povo reclama” do jornal O Nacional de Passo Fundo: “
Moradores das vilas Schell e Luiza protestam contra o alastramento do meretrício para seus bairros,
saindo da “zona demarcada da rua Quinze de Novembro” (12/01/1949, p. 2).
A Rua Quinze de Novembro com seus cassinos, dancings, bares e pensões era também
descrita pela sociedade formal como um lugar de violência e de desordem, adjetivos comumente
atribuídos às zonas de prostituição. A imprensa, enquanto mediadora das relações sociais, reforçava
esse imaginário. No caso de Passo Fundo, o jornal O Nacional cumpria efetivamente esse papel. O
periódico foi protagonista de uma acirrada campanha para retirada da Zona do Meretrício da região
central da cidade. Durante a campanha, as frequentes notícias sobre a violência daquele espaço
ajudaram a construir a representação da Quinze como um lugar de violência. O jornal passou a
publicar inúmeras denúncias sobre a rua, na já citada coluna “O que o povo reclama”. Títulos como:
tragédias na Zona do Meretrício (13/01/55, p. 1); nova cena de sangue na zona (11/02/55, p. 1);
desferiu oito facadas no crânio da mulher (29/03/52, p. 4); Tentativa de estupro na zona do
meretrício (23/0151, p. 4), entre outros, são exemplos dessas divulgações.
Essa imagem da violência também aparece nos relatos dos entrevistados, embora essas
narrativas apresentem, às vezes, aspectos contraditórios, especialmente nas falas de antigos
moradores da rua, que carregam também a memória de seus pais, parentes e vizinhos mais antigos.
As narrativas expressam tanto a memória da experiência vivida naquele espaço, quanto
àquela construída, sobre o mesmo local, pelos “de fora”. Assim, a rua Quinze aparece ora como
espaço de relativa tranquilidade, ora como de violência. Nesse sentido, pode-se questionar o quanto
este estigma da rua, enquanto local de violência, foi construído pelos grupos dominantes da
sociedade formal e assumido pelo grupo outsider da Quinze, na construção de sua própria
autoimagem, ou seja, a aceitação de uma autoimagem negativa.
Dois antigos moradores da rua nos anos cinquenta, quando já estava em andamento a
campanha para retirada da zona da Quinze, ao serem perguntados sobre a existência de violência
no local, deram os seguintes relatos:

[Era] tranquilo. Não tinha nada. Alguma encrenca dava, por causa de amante de mulher
com amante e amante de outro. Senão, briga, assim, por nada, não tinha briga. A troco de
nada, não tinha briga, que nem hoje, que qualquer coisa tão se matando. Por qualquer
coisinha tão se matando. Que nem esse guri que eu vi – se é verdade eu não sei – que
matou outro guri por causa de uma janela que estava aberta. Não sei se é verdade isso...
agora essa semana. Naquele tempo não tinha. Por nada, não brigavam. Às vezes se
‘pegavam no cacete’, se enchiam de tapa e depois saíam abraçados: “vamos tomar um
trago”. (Sr. Vitor).

Eram tempos muito difíceis; inclusive ele tinha que trabalhar armado [pai]. Ele tinha dois
revólveres, por incrível que pareça. Um ele usava na cintura e o outro do lado do caixa.
Nem era caixa, era tipo umas gavetas onde guardava o dinheiro. Então, na época, quase
todo mundo andava armado. Noventa por cento da população tinha um revolver em casa.
O pai tinha dois: […] que ele dizia que era o melhor. Eu me criei vendo aquelas armas,
que felizmente ele nunca precisou usar. Se lidava com todo o tipo de pessoas aqui. Vinham
pessoas de toda a parte do Brasil por causa do Cassino. Vinham os bons e vinham os maus,
também né? Como tinha os bons, aqui na cidade, então tinha que trabalhar prevenido. (Sr.
Freitas).
Se a zona do meretrício marca a fronteira entre o mundo organizado e desorganizado, no
interior desse espaço o controle da desordem era atribuído à polícia do mundo externo. Os policiais
que eram, muitas vezes, clientes das casas, acabavam sendo os principais promotores da violência,
porque detentores de um poder de força desigual em relação aos demais. Na Quinze de Novembro
atuava uma patrulha policial, responsável pelo policiamento do local. Tanto os relatos orais, quanto
as notícias no O Nacional, informam sobre atos violentos da Patrulha, desde espancamentos de
elementos suspeitos até a responsabilidade por algumas mortes na zona.
Além de abrigar as casas luxuosas frequentadas pela elite masculina da cidade, na mesma
rua havia outras, de nível inferior, que atendiam uma diversidade social mais ampla. Entretanto,
todos os estabelecimentos integravam o espectro marginal da cidade, o espaço não formal, no qual
indivíduos masculinos cruzavam frequentemente a fronteira entre o lícito e o ilícito, constituindo-
se num lugar que Nascimento (2003) chamou de alternativo, onde eram permitidos excessos,
negados no mundo legal. A presença de representantes dos grupos dominantes da cidade neste
espaço, demandava ainda mais a presença da Polícia, cuja função, muitas vezes, era a de proteger
e encobrir certas situações e personagens.
A rua tinha suas fronteiras internas, que podem ser descritas pela distribuição geográfica
dos estabelecimentos na rua. Conforme Nascimento (2003), existiam na Quinze de Novembro e seu
entorno, aproximadamente 41 casas de prostituição, desde as mais sofisticadas às mais simples. A
partir de depoimentos orais, registros da Polícia e imprensa, Nascimento (2003) elaborou um mapa
da rua e adjacências, a partir do qual, podemos extrair algumas referências. No centro da Quinze de
Novembro (próximo à rua Independência) encontrava-se a “Casa da Olívia” - descrita como uma
das maiores casas de prostituição da época - a da “Maria Varga”, a da” Maria Preta” e o “Cassino
Palácio”. Na quadra seguinte haviam três casas, chamadas de “Pensão da Elpídia”, usadas pelos
frequentadores do “Cassino Royal” (NASCIMENTO, 20003, p. 38). Ao lado dessas vinham as
casas da “Velha Maria” e a pensão da “ Chicha”. Mais adiante, funcionaria uma casa de travestis e,
em seguida, a casa de prostituição “ Pé de Porco” e o prostíbulo “Toca da Onça”. No final da mesma
quadra estava a casa da “Maria Italiana” e a do “Joani”, estas de muito baixo nível. As diferenças
hierárquicas entre esses estabelecimentos são descritas pela maioria dos entrevistados, com o que
segue:
Ah! O Pé-de-Porco era uma briga. Aí ficava mais pesado o ambiente, porque bom mais
ou menos era o Cassino, até a Independência. Ali tinha umas casas mais ou menos.
Passando da Independência, tinha a Elpidia, a Maria Vargas. Essas casas que tinham ali,
depois subia até o Cassino, é o que tinha de bom. Mulher que se vestia bem, que se pintava
bem, etc. e tal. E depois, da esquina da General Osório para baixo, tinha o Royal, que era
meia boca, entende? (Sr. Aldo).

A relação dos nomes desses estabelecimentos revela a presença majoritária de mulheres


como proprietárias e/ou como administradoras do negócio. Entretanto, pode-se dizer que a Quinze
era um espaço público voltado para uma clientela masculina, voltada para atender os prazeres
masculinos. Porém, era também um espaço de manifestação do poder feminino. As “donas
de casas”3 mantinham a ordem e estabeleciam as regras dos estabelecimentos e mesmo da
rua. Nesses espaços, os homens se submetiam às suas regras, mesmo que o fim último fosse a
obtenção de seu próprio prazer. A zona, funcionava como um microcosmo da sociedade –
masculina – porém lá, organizada por elas. Os relatos enfatizam o empenho dessas mulheres
em manter a ordem e seu poder,

Por isso que diziam que passava uma menina, como eu já vi. Passavam duas, três meninas
e elas [donas das casas] saiam na rua e diziam: “Ó, isso aqui não é lugar para moças. Vocês
vão lá por cima, pela outra rua, porque aqui não é lugar pra vocês, não é lugar pra moças”.
Então, eles usavam do respeito. E eu vivia aqui, aí no meio deles. Para lá, para cá, Dona
Olívia, eu ia comprar coisas para ela. A Dona Eupídia, eu ia comprar coisas para ela. Era
assim. Entrava nas casas de todas, sem problema nenhum. (Sr. Vitor).

As cafetinas parecem boas administradoras de seus negócios para o qual era necessário
habilidades “diplomáticas no relacionamento com os fregueses: sutileza, absoluta descrição,
informações sobre os homens e suas preferências, jogo de cintura no seu relacionamento com as
“pensionistas” (RAGO, 1991, p. 174), sobre as quais mantinha uma relação de controle e
exploração. Diferente das outras mulheres, ela participava do mundo público dos negócios, onde
“se relacionava com homens influentes, dos quais conhecia segredos íntimos” (RAGO,1991, p.
176). O maior exemplo do poder exercido por essas mulheres, em Passo Fundo, é a fama atribuída
a Maroca, identificada como Isaldina Rodrigues.

Então, ela trazia essas mulheres e ela condicionava o gerente dela, ou a gerente, ou o
gerente, ali do cassino, que as mulheres tinham que beber [...]. Mas ela impunha, veja a
ideia, que elas não podiam ficar bêbadas. […] Quando chegava determinado ponto, elas
chegavam: ‘olha, seu filho não tá passando bem senhora, tão te chamando lá em casa’,
para ela se retirar para não dar vexame. […]. Então essa casa começou a se tornar famosa
dessas mulheres que ela trazia, da França, do estado de São Paulo. Então, essas mulheres
ficavam nas mesas ou chegavam na mesa, onde tinha um ou dois rapazes sentados, pediam
licença, sentavam e de cara já perguntava ‘um uisquezinho, e ela assim e tal. Então, não
tinha uísque coisa nenhuma. Tinha água mineral ou guaraná, mas o preço era cinquenta
pila, cinquenta reais a dose. Então, quer dizer, o lucro dela na realidade, era das moças
bonitas, vistosas, boa aparência e boa conversa. Elas selecionavam, nesse sentido, tinham
um grau de cultura do médio para cima. Então, quer dizer, ela não era simplesmente uma
prostituta. Então, lá dentro era respeitado, o cara ficava aguçado e pagava a ida né? E
depois chegavam lá, pagava a casa, também o quarto. Então virou um negócio realmente
e realizou-se. Então, começaram a aparecer concorrência né? (Giovane).

3 Expressão utilizada pelos entrevistados para definir as cafetinas, donas dos bordéis e que tinham o controle
sobre as prostitutas.
Nesse sentido, podemos dizer que, na Quinze de Novembro, as fronteiras
entre os papéis sociais tradicionalmente atribuídos aos gêneros feminino e
masculino também eram frequentemente ultrapassados, evidenciando a tolerância da
sociedade nesses espaços, pois geográfica e socialmente demarcados por outros
critérios, ou seja, a exclusão já era dada a priori: em relação às mulheres
“desonestas” que o habitam ou a sua localização geograficamente demarcada na
cidade. Esses pressupostos encontram respaldo nas teorias positivistas de Lombroso,4
no..início..do..século,..que..consideram..a..prostituição o lado feminino da criminalidade
(RAGO, 1991, p. 146). Estando sua sexualidade destituída do sentimento materno,
considerado natural, elas automaticamente encontravam-se no espectro da anormalidade. A
essas mulheres era permitido o exercício de papéis negados às mulheres da sociedade
tradicional, pois elas não eram consideradas “normais”, mas portadoras de uma “loucura
moral” (RAGO, 1991, p. 160). Esse estigma, imputado pelos grupos dominantes,
mantinham demarcada a fronteira entre o universo masculino e feminino nas zonas de
prostituição.
As fronteiras de gênero não se limitavam ao binarismo feminino/masculino. As
fronteiras da heteronormatividade também eram frequentemente atravessadas. Aqui
encontramos os maiores esforços no sentido de apagamento da memória. Se a zona era um
mal necessário para salvar a honra das filhas e cultivar a masculinidade, porém mantendo
sempre a distância adequada da boa sociedade, o homossexual seria uma ameaça ao cultivo
dessa mesma masculinidade. A manutenção da fronteira entre o masculino e o feminino
aparece na figura do homossexual como uma ameaça.
A maioria dos relatos sobre a Quinze negam a existência de casas específicas e/ou
de homossexuais que se prostituíssem naquela zona. Entretanto, um personagem é lembrado
em todos os relatos, porém como uma figura isolada e estereotipada. Sua sexualidade não
aparece nas memórias, mas, sim, suas qualidades masculinas, “apesar de...”. O Flores foi, por
muito tempo, o gerente e o apresentador dos shows do Cassino Palácio. Segundo relatos, ele
forjava um sotaque espanhol para apresentar com efeito cenográfico os espetáculos da noite.
Era também uma espécie de segurança do Cassino. Ex-sargento é descrito como alto e forte
que mantinha os desordeiros e bêbados afastados, usando, se necessário, a força. Essas
informações podem ser extraídas dos relatos dos entrevistados, conforme abaixo:

Olha, na época o homossexual era uma raridade. E o Flores não era o único; tinha mais
um. Como era o nome dele... mas era de categoria [sinal para baixo]. O Flores, ele era um,
o que melhor se vestia dentre todos os homens. Ganhava até do prefeito, de se trajar,
naqueles trajes brancos de linho, sapato branco, aquelas gravatas bem vistosas […]. Ele
vinha aqui no centro e almoçava, e todo mundo conversava: “Ó, o Flores” e tal e ele fazia
questão de cumprimentar um vereador, cumprimentar um médico, e isso e aquilo. Ele se
dava muito valor, mesmo sendo homossexual. No caso, né, ele se dava muito valor e ele

4 Criminologista positivista italiano do século XIX, cujas ideias tiveram muita influência na Europa e no
Brasil. Associava características físicas aos perfis mentais dos criminosos. Seus estudos também foram
usados para definir as prostitutas, na medida em que estas eram consideradas criminosas.
não andava escondido porque era um escândalo, na época, Deus o livre! Não, ele andava
aberto, e se tornou tão famoso como a própria rua Quinze […]. Ele dava também uma de
policial, assim, porque ele era … “Opa”, o pessoal tinha um medo dele, ele era boxeador,
né? E quando ele via lá, que tinha algum rapaz, alguma coisa, se excedendo na bebida e
querendo pegar meio forçado e a mulher não aceitando tudo, ele chegava: “Vem cá, sai,
sossega e deixa essa mulher” e pá e pá. Quando eles viam que era o Flores, todo mundo
se entregava. (Marcos).

As histórias contadas sobre o Flores, em geral, não comprometem o mundo masculino.


Alguns narradores relatam que o Flores auxiliava na conquista das mulheres, servindo, muitas
vezes, de “isca”. Essa sua função, declarada nos depoimentos, serve de justificativa para a livre e
frequente circulação que parece ter tido este personagem, mesmo entre a elite masculina passo-
fundense, conforme visto nos depoimentos: […]. Eu, quando ía a Porto Alegre, eu saia com ele. Ele
chamava a atenção do mulherio. Era um cara, na época, grisalho, cabelo crespo bem arrumado,
sempre na pinta. Ah, eu saía, eu não saía sem levar ele de isca, entende? (Aldo).
Embora, conforme afirmado acima, a maioria dos entrevistados digam desconhecer a
existência de uma casa frequentada por homossexuais e travestis, o cruzamento dos depoimentos
com as fontes jornalísticas indicam a existência na rua Quinze de Novembro de, ao menos, uma
casa destinada ou frequentada por travestis e homossexuais. É o que nos informa Nascimento
(2003), que entrevistou um antigo comerciante da rua que afirma que alugava uma casa para os
“rapazes alegres” (p. 30) que “se vestiam de mulher”. Segundo o entrevistado, a casa era “ocupada
por rapazes que se vestiam para sair e fazer festa ou para receber amigos”. (p. 30).
A ameaça representada pela presença destes elementos, no entender do grupo dos
estabelecidos, pode ser atestada pelo fato da sua existência ter se tornado uma das justificativas para
os defensores da retirada da zona do meretrício do centro da cidade, como podemos observar nos
discursos do jornal O Nacional:

Os dancings Popular e Guarany, situados na chamada zona do meretrício, vinham se


sobressaindo, ultimamente pelas cenas indecorosas [...]. Pode comprovar, a polícia
imperava nos mesmos a prática do homossexualismo, e compartimentos superiores e
especiais, constituindo fonte perene de escândalos. Tratava-se de elementos vindos de
Porto Alegre, diretamente a esta cidade, que se entregavam desbragadamente à prática
perversa, manchando negramente o bom nome da cidade. Comprovando a existência
desses escândalos, o delegado de Polícia, Joaquim Germano Melgaré determinou o
fechamento dos dancings Popular e Guarany […]. (O Nacional, 03/02/1955, p. 4).

“[...] não satisfeitos com a frequência das meretrizes, mandarem vir elementos da escoria
porto-alegrense, dados ao homossexualismo, para melhor satisfazerem aos apetites dos
enfermos sexuais e tarados de toda a espécie, transformando ditas casas em antros
nauseabundos e infames. Damos, por isso, todo o nosso apoio à medida do sr. Joaquim
Germano Melgaré. [...]. (O Nacional, 04/02/1955, p . 4).
Entendemos que a rua Quinze de Novembro, em Passo Fundo, se mostrou um espaço no
qual diferentes fronteiras eram frequentemente ultrapassadas e/ou confrontadas. Fronteiras sociais,
de gênero, geográficas e culturais. Onde as fronteiras são testadas é também onde elas se reforçam,
no próprio jogo de adaptação e transformação que as mantém. Os estigmas são reafirmados nesse
embate constante entre os estabelecidos e os outsiders que, em última análise, conforma a
permanência dos estigmas em relação aos grupos de menor poder e prestígio social e, neste caso, o
estigma se mantém na atualidade em reação ao próprio espaço geográfico da rua Quinze na cidade.
O Sr. Vitor, sempre morou naquela rua, desde os anos de 1950, sendo que ainda permanece no local,
ao lado do antigo Cassino da Maroca. Sobre a rua nos dias atuais ele diz:

A nossa rua sempre foi assim. Do jeito que vocês viram, sempre foi assim. É uma rua
quase esquecida pelo prefeito. O policiamento de vez em quando passa. Sempre foi uma
rua – não sei se por causa da Zona ou se tem alguma assombração, pesada. Uma rua
pesada. Não que tenha assalto, roubo, mas a gente sente que é uma rua pesada. (Vitor).

ELIAS, Norbert; SCOTSON, John L. Os estabelecidos e os outsiders: sociologia das relações de


poder a partir de uma pequena comunidade. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2000.

HALBWACHS, Maurice. A memória coletiva. São Paulo: Centauro, 2004.

JANOTTI, Maria de Lurdes M. A incorporação do testemunho oral na escrita historiográfica:


empecilhos e debates. História Oral, v. 13, n. 1, p. 9-22, jan-jun.2010.

KANNEMBERG, Vanessa; COSTA, Fernanda da. Tombamento de imóveis particulares acende


polêmica sobre o patrimônio histórico do Estado. In.: Clic RBS, 20/09/2-13. Acesso em 20 de
outubro de 2016.

MALUF, Marina; MOTT, Lúcia. Recônditos do mundo feminino. In.: NOVAES, Fernando A.;
SEVEVCENKO, Nicolau (Org.). História da vida privada do Brasil. v. 3. São Paulo: Cia das
Letras, 2006.

NASCIMENTO, Márcia. Prazer marginal e política alternativa: a zona de meretrício em Passo


Fundo (1939-1945). 2003. 156 f. Dissertação (Mestrado em História) – Universidade de Passo
Fundo. Passo Fundo, 2003.

NETO, Francisco Linhares Fonteles. Vigilância: impunidade e transgressão: face da atividade


policial na capital cearense (1916-1930). Fortaleza: Ceará, 2005.
NORA, Pierre. Entre memória e história: a problemática dos lugares. In: Projeto História. São
Paulo, n. 10, p. 7-28, dez. 1993.

O NACIONAL, 03. fev. 1955.

O NACIONAL, 07. fev. 1955.

O NACIONAL, 10. nov.2010.

O NACIONAL, 11. ago.1953.

O NACIONAL, 16 . fev.1955.

PESAVENTO, Sandra J. O imaginário da cidade. Porto Alegre: Ed. da UFRGS, 2000.

RAGO, Margareth. Os prazeres da noite: prostituição e códigos da sexualidade feminina em São


Paulo (1890-1930). Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1991.

RICOEUR, Paul. A memória, a história, o esquecimento. Campinas, SP: Ed. da UNICAMP,


2007.

ROHRIG, Daniel. Nos embalos do Cassino da Maroca: um pulo de 60 anos no passado para
reviver a época de ouro das noites de Passo Fundo. Passo Fundo: Nexjor - FAC- UPF, 2016.
https://nexjor.atavist.com/nos-embalos-do-cassino-da-maroca. Acesso em 10 de outubro de 2016.

Aldo. Entrevista concedida em Passo Fundo/RS em 15/12/2015.

Freitas. Entrevista concedida em Passo Fundo/RS, em 12/12 2015.

Giovane. Entrevista concedida em Passo Fundo/RS, em 15/11/2015.

Marcos. Entrevista concedida em Passo Fundo/RS em 03/03/2016.

Maria. Entrevista concedida em Passo Fundo/RS, em 23/11/2015.

Vitor. Entrevista concedida em Passo Fundo/RS, em 15/12/2015.

Walter. Entrevista concedida em Passo Fundo/RS, em 10/12/2015.


Giovanna Santana*
Valdemar Lima de Assis**

Este trabalho integra-se ao projeto de pesquisa Escola e patrimônio cultural:


entretecendo memórias e histórias da/na ilha de Santa Catarina, subsidiado pela Fundação de
Amparo à Pesquisa e Inovação do Estado de Santa Catarina (FAPESC), e se ocupa das
relações dialógicas entre memória, patrimônio e História Local nas narrativas de professores
das escolas públicas na cidade de Florianópolis. Buscamos compreender – por intermédio de
entrevistas com docentes das redes municipais, estaduais e federais de educação básica – de que
maneira as questões da memória e do patrimônio estão ou não presentes nas aulas,
especialmente as de História. Questionamos o que, como e quando esses patrimônios e
memórias são trabalhados nas aulas de História. Quais experiências estes professores e
professoras já desenvolveram sobre as temáticas? Quais as necessidades destes professores
e professoras para aperfeiçoar suas aulas quanto às temáticas propostas? E ainda, como a
universidade pode contribuir para a efetivação de práticas escolares que deem ênfase à
Educação Patrimonial? As informações selecionadas para o desenvolvimento do projeto,
sejam elas provenientes de análise documental ou de depoimentos, foram coletadas e
tratadas numa perspectiva qualitativa conforme os procedimentos específicos para cada tipo
de fonte. Desta forma, para o trabalho com as entrevistas adotamos os procedimentos de
pesquisa com fontes orais desenvolvidos por Alessandro Portelli (1997) concebendo-as
enquanto fontes narrativas. Na interpretação das memórias utilizamos a perspectiva de
Walter Benjamin (1987; 1994), ao lidar com rememorações como construções do passado a
partir do olhar do presente (PAIM; TAVARES, 2015). Assim, elaborou-se um percurso que
esboce da colonialidade do patrimônio ao patrimônio decolonial, refletindo também
sobre as implicações dessas concepções no campo do ensino de História por meio da
ccccc
* Mestranda junto à linha de pesquisa Sociologia e História da Educação (SHE) no Programa de Pós-
Graduação em Educação (PPGE) da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC) sob orientação de Elison
Antonio Paim, e bolsista do Conselho Nacional de Desenvolvimento à Pesquisa (CNPq). Graduada em História
pela Universidade Federal de Santa Catarina e membra dos grupos de pesquisa Pameduc (UFSC) e Rastros (USF).
** Professor Auxiliar II do Curso de Museologia da UFSC. Especialista em Arte Educação pela Escola de Belas
Artes da Universidade Federal da Bahia (UFBA). Mestrando junto à linha de pesquisa Sociologia e História
da Educação (SHE) no Programa de Pós-Graduação em Educação (PPGE/UFSC), sob orientação de Elison
Antonio Paim. Membro dos grupos de pesquisa Pameduc (UFSC), Rastros (USF).
1 Os estudos decoloniais, descoloniais ou também pós-coloniais – apesar de conterem diferenças nítidas no
que se refere ao referencial teórico-metodológico – propõem, de modo geral, uma reestruturação epistêmica nas
localidades historicamente exploradas pela colonização. O fundamento comum reside na evidência de aspectos
remanescentes do processo civilizador, manifestos nas formas de pensar, agir e fazer referenciados
primordialmente em uma cultura eurocêntrica. O projeto decolonial está pautado num diálogo epistêmico com os
conhecimentos além da academia, agregando outros saberes negados pela colonialidade imposta. Para uma
incursão introdutória às correntes de pensamento, ver Ballestrin (2013).
Educação Patrimonial (AMARAL, 2015).1 Partindo desses pressupostos ouvimos nas
entrevistas de professores e professoras a rememoração sobre o seu trabalho e seu possível
diálogo com a Educação Patrimonial. Podemos perceber que os trabalhos escolares
próximos à Educação Patrimonial acontecem, ainda que não haja uma plena apreensão do
conceito de patrimônio. Tal qual como elucidado na recordação do professor:

Olha, eu fui começar a trabalhar com patrimônio, utilizar o conceito de patrimônio, a partir
de 2013, quando eu recebi – nós tivemos uma parceria com a professora Mônica, com o
projeto PIBID [Programa Institucional de Bolsa de Iniciação à Docência]. Então, através
deste projeto PIBID, eu entrei em contato com o conceito de patrimônio, e comecei a
pensar em função disso. Mas, antes disso já trabalhava com patrimônio, sem usar o
conceito. Trabalhei… a minha vida toda trabalhei com música popular; especialmente a
história da música popular brasileira: desde o período colonial com batuques, umbigadas
“e tal”, no período do Império com choros, lundus, maxixes, “e tal”, e depois, a história
do samba, no século XX. Enfim, tenho trabalhado bastante isso. (p. 2017).

A partir do relato docente propusemo-nos a investigar o que vem a ser hoje pensar em
função do patrimônio. Assumimos que uma plena apreensão do conceito é indissociável da sua
contemplação histórica, e ainda que muitos dos desafios presentes na Educação Patrimonial
mantêm estreita relação com os conflitos no entorno da sua conceitualização. Diante de
transformações, contradições e disputas políticas de memória buscamos uma definição de
patrimônio que indique “no terreno de hoje, local e posição em que é conservado o velho”
(BENJAMIN, 1987, p. 239).

No tempo presente podemos afirmar que vivenciamos uma expansão dos estudos
patrimoniais, o que por um lado acarreta no aumento das possibilidades de abordagens do tema, e,
por outro, amplifica o seu grau de complexidade. A condição anterior deve-se ao fato de que a
democratização em torno da questão patrimonial implicou no alargamento dos seus usos e
significados. Portanto, entende-se que é preciso estar ciente do processo de democratização da
questão patrimonial para uma abordagem adequada do patrimônio e, ainda, que se faz cada vez
mais necessário demarcar a noção de memória vinculada ao conceito, levando em consideração a
colonialidade característica das definições anteriores.
O conceito de patrimônio é oriundo do pensamento moderno europeu e foi introduzido no
corpo jurídico brasileiro através da organização do Estado nacional. Em conformidade com a
pesquisa de Fonseca (1996), dois modelos de ação patrimonial se consolidaram durante o
século XIX na Europa, os quais variam segundo as concepções de arte e história, e em
especial, de cultura política de cada país. De modo sucinto, estruturou-se o modelo anglo-
saxão fundamentado na visão humanitária da cultura, posteriormente exportado para os
Estados Unidos. Já a tendência patrimonial francesa priorizou o perfil nacionalista
centrado no Estado, concepção que mais tarde foi herdada na América Latina bem como
nas colônias africanas em razão do processo colonizador. Na tradição francesa do século
XIX, o estudo da memória coletiva, no âmbito das relações sociais, preocupava-se, sobretudo,
com a coesão social e o modo como as comunidades, os grupos e as instituições sociais
atuavam no processo de formação das memórias comuns. A origem do conceito memória
coletiva é atribuída a Halbwachs, sociólogo francês da escola durkheimiana, que entendia a
nação como a forma mais coesa de um grupo e a memória nacional como manifestação
mais integrada da memória social.
Do modo como observou Pollak (1989, p. 3), tratava-se de “[...] uma memória
estruturada com suas hierarquias e classificações, uma memória também que, ao definir o que
é comum a um grupo e o que o diferencia dos outros, fundamenta e reforça os sentimentos de
pertencimento e as fronteiras socioculturais”. Com ênfase na força institucional, na duração,
na continuidade e na estabilidade, tal concepção restringiu-se à memória oficial e encobriu de
forma significativa histórias e narrativas divergentes do plano patriótico. Por intermédio dos
projetos nacionais e aliado à tradição da memória coletiva, o patrimônio assumiu a denotação
de propriedade individualizada, visto que oficializava o reconhecimento de uma característica
singular a qual conferia identidade à determinada forma de vida em um lugar histórico
específico. O conceito de patrimônio nacional e a noção de memória coletiva inscreviam-se
numa narrativa do tempo histórico, em que a luz da racionalidade moderna anunciava o fim
da tradição em virtude do progresso.
No Brasil, a discussão do patrimônio no século XIX, e com maior força no século XX,
legitimou a tendência francesa. Segundo indica a pesquisa de Amaral (2012), durante os
primeiros anos de atuação do Serviço do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional
(SEPHAN) foi concedida prioridade aos denominados bens de pedra e cal, compreendidos na
arquitetura civil, religiosa e militar portadora de valores estéticos europeus.2 Até a década de
1960, Fonseca (1996, p. 159) argumenta que predominaram nas instituições de política
cultural as representações dos modos de vida autóctones, afro-brasileiros e camponeses do
ponto de vista etnográfico e folclorizante, sob a perspectiva de que a cultura popular deveria
ser conservada “do mesmo modo como peças de um museu”. Ainda, menciona que a
justificativa dada pelo SEPHAN para a exclusão dessas culturas nas políticas de preservação
ccc
2 Parte dos autores brasileiros defendem que o início das ações patrimoniais brasileiras se iniciam durante o
Estado Novo em 1937, dada a criação do SPHAN, que ao longo da sua trajetória “[...] passa a ser chamado
Departamento do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (DPHAN) de 1946 a 1970; Instituto do Patrimônio
Histórico e Artístico Nacional (IPHAN) de 1970 a 1979, quando é dividido em SPHAN (Secretaria), na condição
de órgão normativo, e na Fundação Nacional Pró-Memória (FNPM), como órgão executivo. Em 1990, ambos são
extintos e dão lugar ao Instituto Brasileiro do Patrimônio Cultural (IBPC) que, em 1994, assume definitivamente
a alcunha de Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (IPHAN)” (PEREIRA, 2016, p. 17).
ocorria “[...] pelo fato de não haver, no Brasil, testemunhos materiais significativos da cultura
desses grupos sociais, e por estarem esses bens em geral, imersos em uma dinâmica de
uso que inviabilizava o tombamento” (FONSECA, 1996, p. 159). Em suma, perdurou
desde os anos 1930 o preconceito com as culturas não modernas e com as tradições
fundadas na oralidade, encaradas genericamente como “testemunhos de um tempo
imemorial, marcado pelo ritmo dos fenômenos naturais” (FONSECA, 1996, p. 160).
Por conseguinte, esse entendimento de patrimônio subsidiou uma Educação Patrimonial
civilizatória ou também colonizadora da memória, na medida em que negava do plano
da História experiências divergentes do projeto nacional. A pesquisa em referência
com recorte no Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (IPHAN) – e,
em particular, na trajetória de Rodrigo Melo Franco de Andrade – mapeou o início de
mudanças significativas no que diz respeito à preservação do patrimônio no Brasil, que se
inicia a partir de 1960 e se estende aos anos autoritários de ditadura-civil-militar
(1964-1985). Na política institucional, essas transformações aparecem testemunhadas
pela criação de órgãos envolvidos com o patrimônio e pelo aumento do número de
tombamentos oriundos de proposições da sociedade civil.3 .

ccccDentre os atos de reformas institucionais, Fonseca menciona a colaboração da


Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (UNESCO) para com
o até então, Departamento do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (DEPHAN), fato que
evidenciou tanto a necessidade de integrar o Brasil aos novos parâmetros internacionais de
preservação dos bens culturais, como também o intercâmbio de ideias acerca do
patrimônio ambiental e arqueológico. No ano de 1973, integrado ao SPHAN ocorreu a
criação do Programa das Cidades Históricas (PCH), projeto que visava a
descentralização por meio da criação de Conselhos Estaduais e Municipais de Cultura
com a proposta de cada estado constituir acervos onde estivessem reunidos arquivos,
bibliotecas e exposições de arte. Segundo Marins e Nascimento (2016, p. 12), o PCH
desenvolveu-se em forte aliança com o mercado do turismo podendo ser rotulado como
“Programa de Reconstrução das Cidades Históricas do Nordeste para fins turísticos”. É
necessário compreender esse quadro de mudanças imerso num projeto de modernização
conservadora, que promoveu a descentralização da ação patrimonial ao mesmo passo que
fomentou a ampliação do conceito de patrimônio. Sobre este último aspecto, Fonseca (1996)
destaca em 1975 a criação do Centro Nacional de Referência Cultural (CNRC), cujo trabalho
buscou revisar ao nível conceitual a definição de patrimônio.
A diferença do SPHAN “heroico” dos anos 30-40, e que centrou sua atuação na salvação
dos remanescentes da arte colonial, o CNRC se voltava para o referenciamento da cultura

3 Segundo a pesquisadora: “A consideração do conjunto de processos abertos na década de 1970 a 1980 indica
que o sinal mais visível de uma mudança em relação às décadas anteriores, no sentido do envolvimento da
sociedade brasileira com a questão do patrimônio, é um aumento considerável no número de processos abertos
a pedido de pessoas, grupos ou instituições externas ao IPHAN. Não só proprietários de imóveis, como também
prefeituras, Assembleias Legislativas, e até mesmo grupos que se expressam através de abaixo-assinados entram
com pedidos de tombamento federal. Outro traço significativo é a diversidade de bens que são
apresentados para o tombamento.” (FONSECA, 1996, p. 157).
“viva”, sobretudo daquele enraizado no fazer popular como forma de tornar mais
“nacional” e mais “plural” a representação da cultura brasileira. [...] O trabalho realizado
pelo CNRC (integrado, a partir de 1979, à Fundação Nacional Pró-Memória) representou,
sem dúvida, um passo importante no sentido de ampliar a noção de patrimônio cultural no
Brasil [...]. Somente a partir dos anos 80 essa preocupação foi traduzida no discurso oficial
como necessidade de “efetiva participação da comunidade nas decisões e no trato dos
problemas afetos à produção e preservação cultural (FONSECA, 1996, p. 156, grifo meu).

O que interessa ressaltar aqui é o fato da revisão do patrimônio corresponder, em


larga medida, às pressões de movimentos sociais no âmbito nacional e internacional, como é o
caso de ideias provenientes dos movimentos afro-americanos por direitos civis nos Estados
Unidos e as lutas pela descolonização na África. Também é importante considerar que para
além dos interesses do Estado em ampliar o acervo da cultura nacional segundo padrões
universais, a mobilização conjunta dos movimentos afro-brasileiros estabelecia outra
expectativa em relação ao patrimônio. De acordo com a autora, tratava-se menos do
reconhecimento do bem em si mesmo pelos órgãos oficiais, e mais do potencial de
repercussão simbólica e política que a inclusão do patrimônio étnico-africano representava
na cultura brasileira.4 Acrescenta, ainda, o caso de nessas lutas estar presente a exigência da
inscrição dos bens tombados por seu valor histórico – e não somente etnográfico como
vinham sendo feitas até o momento – critério que explicita a disputa acirrada pelo direito à
memória e inclusão desses grupos na história. Pode-se dizer que esse paulatino conjunto de
transformações culmina nos atos de promulgação da Constituição de 1988, garantindo
legalmente o reconhecimento dos bens de natureza material e imaterial portadores de
referência à identidade, à ação e à memória dos grupos formadores da sociedade brasileira. E,
mais tarde, na expedição do Decreto 3.551/2000 que promoveu a criação de um Programa
Nacional do Patrimônio Imaterial, regulamentando o direito constitucional à memória.
Se nos períodos anteriores as ações do patrimônio imbricavam numa demanda federal e
se restringiam às instituições de preservação histórica, a partir da década de 1980 os debates
perderam oescopo da nacionalidade e a intervenção patrimonial assumiu relativa autonomia
perante o poder estatal. Por uma série de mudanças na configuração social brasileira e
internacional, a sociedade civil reconhece a importância do debate patrimonial e passa a
intervir diretamente nas questões de patrimônio, sobretudo, na luta pelo reconhecimento e pela
identidade. Outro aspecto que vale aqui mencionar é que o envolvimento civil na disputa pela
memória traz à tona temas sensíveis e traumáticas comumente evitados pelo Estado. Da forma
como pontua o texto de Ferraz e Scarpelli (2008), a abertura de arquivos da ditadura civil-
militar depende muito mais de ações civis do que da política governamental de preservação e
arquivamento.5 Dada a reconfiguração do campo patrimonial com a participação de novos
atores
4 A afirmativa está fundamentada nas experiências de tombamento dos primeiros bens da cultura afro-brasileira: o
Terreiro da Casa Branca em Salvador e a Serra da Barriga em União dos Palmares.
5 Para os autores, essa relação fica explicita quando comparado o Arquivo Edgard Leuenrothh, Centro De Pesquisa
e Documentação social da Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP) com os Arquivos do Departamento
de Ordem e Política Social (DOPS), subsidiado pelo Arquivo do Estado do Rio de Janeiro. É interessante observar
que o DOPS, enquanto, espaço de forte repressão e violência durante o regime, é aberto para visitação em 2002
sob a nomenclatura “Memorial da Liberdade”. Contestado pelas vítimas e familiares passou a ser chamado
Memorial da Resistência.
atores a partir da década de 1980, a concepção de patrimônio expandiu-se para também
abarcar suas formas imateriais. Como falam os autores Pereira e Roza (2012), esta
proposta traz consigo novos desafios, que não apenas dizem respeito à tarefa de rever meios
de preservação dos bens, artefatos ou edificações, mas implicam em um novo olhar sobre o
patrimônio, concernente ao sentimento de compromisso coletivo por manter essas práticas
culturais ativas e presentes na história. Por isso, os meios de preservação e salvaguarda
contemporâneos voltam-se primordialmente aos papeis sociais dos detentores e transmissores da
tradição. Na medida em que estes sujeitos vêm sendo positivados na memória e na cultura tem sido
estimulado o debate acerca dos problemas gerados pela museificação e pelo o olhar turístico/exótico
sobre os respectivos patrimônios. Esse quadro de problemáticas inevitavelmente repercute no
campo da Educação Patrimonial como um todo, e aqui destacamos a sua incidência nas aulas de
História, que se organizam através uma dinâmica particular. Conforme marca o final da fala de um
professor da rede municipal de Florianópolis, acerca do seu trabalho com o patrimônio por meio
dos detentores da tradição, esses debates “vão acontecendo”, tanto nos momentos formais de
aprendizagem como a partir da problematização de diálogos cotidianos.

Mas, a gente também trabalha patrimônio no sentido de patrimônio imaterial, também.


Essa questão do saber-fazer, “e tal”, a gente também trabalha. Por exemplo: a nossa
comunidade é muito… existe uma frequência grande de alunos que são filhos de
pescadores e maricultores; e que, quando… É fácil você identificar ele porque os colegas
ficam dizendo “Ô, tainha!”, “Ô, pescador”, “Ô, cheiro de peixe!”. Então, às vezes, quando
você nota isso, aí você vai puxar: “Espera aí! Por quê?” E daí você puxa o saber daquela
família como um saber importante, como um saber que tem, sim, uma valorização, mas,
às vezes, ela não é uma valorização nem monetária, ou não chega ali naquele espaço
escolar porque outras coisas são valorizadas hoje em dia. É que os exemplos acontecem…
a aula é uma questão muito dinâmica, as coisas vão acontecendo…’ (Z., 2017).

Nos estudos de Pereira e Roza (2012) sobre o uso político e pedagógico da memória, há o
prognóstico de que as ações para incluir grupos marginalizados no currículo escolar resultam, por
ora, de esforços isolados de alguns professores e professoras que se identificam com as causas das
ações afirmativas. No entanto, ressaltam que as agendas dos movimentos sociais pela expansão da
cidadania, com destaque nas pautas antirracistas, têm sido eficientes em pressionar as escolas no
intuito de promoverem uma educação para o bom convívio entre diferenças; e evidente que não
livre de contestações. Desse modo, a escola – essencialmente o ensino de História – constitui-se
como palco privilegiado de disputas pelo dever de memória, cujas pressões não apenas exigem dos
docentes domínio atualizado sobre a disciplina, mas também clareza das proposições políticas
intrínsecas à forma e ao conteúdo.
Com vistas a traçar um panorama da Educação Patrimonial nas escolas públicas de
Florianópolis ouvimos de professores e professoras da rede municipal, estadual e federal como
estão sendo trabalhadas atualmente as questões do patrimônio: quais atividades estão sendo
propostas e de que forma elas aparecem ou não integradas à disciplina de História. Observamos,
conforme anteposto, que em determinados casos subsiste a discussão indireta do patrimônio, tal
qual aponta a narrativa do professor:

É, eu reconheço que a minha discussão, tanto sobre memória e, sobretudo, quanto ao


patrimônio, ela é muito simplória. Não tenho uma leitura densa sobre nenhum dos dois
assuntos. Mas, de alguma forma, eles entram, mas assim, nesse contexto… Memória, o
conceito de memória não uso explicitamente, mas a gente discute muito. Patrimônio,
talvez, menos (A., 2017).

Embora num primeiro momento sobressaia o tom de modéstia do professor acerca do seu
domínio sobre os temas questionados (o que pode guardar relação com o contexto no qual esteve
dialogando com um entrevistador vinculado à Educação Patrimonial), noutro tempo da narrativa,
ele nos apresenta com mais elementos a condução do seu trabalho indireto com memória, junto ao
estudo da ditadura civil-militar.

Então, uma das coisas que a gente discute com os alunos, e a gente trabalha, é um pouco
isso. É de que forma que a gente constrói uma história, e traz uma memória deste período
do regime militar no Brasil, que, de alguma forma – não é que nos autoriza, mas, assim,
não nos permite que a gente faça um enfrentamento, de fato, com esse acerto de contas
com os torturadores, que até hoje não foram punidos. Então, assim… com base em uma
interpretação da Lei da Anistia, de 1979, até hoje, o Brasil não fez um acerto de contas,
muito diferente, por exemplo, da Argentina (A., 2017).

Com fundamento na recordação do professor podemos presumir que grande parte da sua
discussão permeia as ações de direito à memória e à história, as quais remontam as pautas dos
movimentos sociais na década de 1980. O que em nossa análise torna essa abordagem da memória
relevante para o ensino é o quanto ela deixa explícito o espaço de disputa política na dimensão
narrativa da história. Portanto, ressaltamos o potencial desta discussão no que se refere a fornecer
um contraponto discursivo à história tradicional, que ancorada na tríade nação, datas
comemorativas e heróis é indiferente aos demais componentes da vida como o trauma, o
silenciamento e as dívidas sociais.
Outros trabalhos promovidos pela professora de História da mesma instituição federal de
ensino têm priorizado a referência direta à memória. Durante a sua entrevista, a educadora expôs
seu programa do estudo da memória dentre as diferentes séries.
[...] a memória é um conceito trabalhado no sexto ano, porque no sexto ano a gente está
falando como que a História é construída. E aí a gente tem uma história que vai ter a cultura
escrita como suporte, mas a gente tem toda uma história que foge do código escrito…
então quando a gente vai falar... No sexto ano, a gente fala primeiro como que era a história
antes de a história existir, assim. E aí, a questão, por exemplo, da oralidade, e da
importância da memória coletiva para um grupo, é fundamental; e a gente acaba falando
disso. [...] No oitavo ano tem um conteúdo que é o conteúdo sobre Roma, que a gente
acaba levando a questão de como que a memória é construída, uma memória sobre o
passado, e a diferença entre memória e história. E aí a gente pega bastante a questão da
construção de um passado [...] A construção de um passado mitológico, e como esse
passado mitológico é importante para afirmar o império, por exemplo… a memória do
que vai vir, lá no mito (C., 2017).

Em certa medida, podemos afirmar que a proposta da professora estabelece relação com a
metodologia de trabalho que aqui também empregamos, quando observamos que ambas procuram
demarcar como a memória serve de instrumento para construção da narrativa da história e contém
potencial para legitimar/deslegitimar organizações políticas e modos de viver. Não diretamente
vinculada à memória, as questões patrimoniais ainda podem ser trabalhadas intrínsecas ao estudo
da cultura, do modo como apareceu no primeiro relato trazido ao texto – sobre a música popular de
choros, lundus, maxixes – e da maneira como foi contemplado pela professora:

[...] questão do patrimônio negro, aqui em Florianópolis, não trabalho, Elison; nunca
trabalhei, assim. Mas, sim com Brasil, a questão de que… o que é a cultura brasileira.
Então, eu acabo falando, inclusive, da questão de que, porque não se conhece África e
porque, agora, a gente está começando a estudar um pouquinho, um pouquinho mais a
importância de se estudar isso. A gente problematiza isso a partir da questão brasileira,
sim [...]. Assim, faz muita falta para a gente até formação. A gente não tem formação
continuada acessível. Por exemplo, o que eu te falei: eu me formei em um curso de história
que negou história indígena e negou história de África e de afrodescendentes. Eu preciso
disso. E eu só consigo estudar isso porque eu trabalho em um Colégio de Aplicação;
estudar por minha conta porque eu trabalho em um Colégio de Aplicação. É muito difícil
chegar essa formação pra gente (C., 2017).

A despeito de não haver um momento adequado para os professores e professoras


revisitarem as suas práticas de ensino, tornam-se comuns abordagens na Educação Patrimonial que
promovem um olhar turístico e exótico sobre as culturas de grupos marginalizados. Estamos de
acordo com os pesquisadores Pereira e Roza (2012) quando afirmam ser insuficiente a inserção de
outras narrativas na história dissociadas de novas abordagens. A tentativa de enquadrar diferentes
culturas em modelos explicativos eurocêntricos, sempre acaba por simplificar a complexidade de
todo um modo de vida a sistemáticos estágios de produção ou organizações políticas hierárquicas.
Na mesma linha de pensamento, compreende-se que não se trata de inserir grupos marginais na
narrativa da história, senão no ato de reconhecer sua própria forma de narrar o tempo
histórico. Portanto, como salientaram os autores, estamos diante de demandas pela reescrita
da história, que não somente dizem respeito ao seu conteúdo, mas acima de tudo, são
referentes a sua forma. Para aqueles, cujos trabalhos dedicam-se à superação da experiência
dominante do nosso tempo, no que diz respeito à estrutura social capitalista, faz-se
imprescindível a ação primária de reconhecer nas diversas formas de ler o mundo um
potencial legítimo de resistência. São inúmeros os entraves que nos impedem de pôr em
prática esse exercício contínuo de restruturação epistêmica, o que para nós reside,
fundamentalmente, naquilo que Santos e Meneses (2009) nomearam por epistemicídio.6 Em
nossa opinião, é neste aspecto que esbarram as contribuições de Pereira e Roza (2012) e
expõem de forma representativa nossas limitações contemporâneas.7
No que a proposta do texto “O ensino de história entre o dever de memória e o direito
à história” não avança é no sentido de apresentar projetos que superem a condição do
multiculturalismo hoje.8 Convêm dizer que este propósito não se encontra elencado pelos
autores no estudo, mas remete ao fato de ambos se posicionarem em favor da
reestruturação do currículo escolar, que segundo suas análises cotidianamente
apresenta manifestações colonialistas comuns a outros contextos educacionais. Em
conformidade com o pensamento dos autores, entende-se que não se trata apenas de uma
tarefa interna à disciplina da História, mas de um compromisso social, que pode se dar
articulado em função do conceito de patrimônio; desde que adote a condição de revisão
permanente do conceito proporcionada pelos movimentos sociais. Neste aspecto, estamos
propensos a agir pedagogicamente segundo a interculturalidade crítica,
entendendo-a como ferramenta de promoção da decolonialidade no currículo e na
Educação Patrimonial.9 Posto o carácter holístico do projeto decolonial, é pretendido
delinear algumas contribuições finais no que toca à área do ensino de História (WALSH, 2009).

6 Ao longo da modernidade, a constituição da ciência figurou-se como modelo universal de superioridade


epistêmica, impedindo a emergência de outras formas de compreender e se relacionar com o mundo. Esse
processo, nos termos de Santos e Meneses (2009) promoveu um epistemicídio, na medida em que o critério
da razão pura europeia monopolizou os princípios do conhecimento sobre a vida. .
7 Aqui deixamos nosso agradecimento aos estudantes e professores envolvidos no Seminário Especial sobre os
temas sensíveis no campo da educação: questões de ética e estética, promovido pelo PPPGE-UFSC no primeiro
semestre de 2017, pelas inúmeras contribuições trazidas por meio da leitura referida, sem as quais essa crítica não
seria possível. .
8 De acordo com Catherine Walsh (2009), nos anos 1990 é possível identificar um conjunto de políticas
emergentes emtodos os países latino-americanos a nível de reforma constitucional, no sentido de consolidar
práticas de carácter pluricultural e multiétnico reconhecendo a existência de várias identidades. Em grande
medida, essas políticas remetem à luta dos movimentos sociais indígenas e afrodescendentes pelo
reconhecimento e respeito à cultura. No entanto, no escopo de uma política neoliberal, o período ficou
conhecido por multiculturalismo constitucional e implicou na inserção destes grupos sociais, principalmente, na
esfera do mercado. .
9 A interculturalidade crítica é uma perspectiva pedagógica advogada por Catherine Walsh (2009) com
inspiração no pensamento freiriano. Divergindo da interculturalidade funcional e relacional, a perspectiva crítica
dá ênfase a estrutura-colonial-racial, o que implica em ir além do reconhecimento da identidade, da diferença e
da inserção na sociedade, atingindo a problematização da episteme eurocêntrica bem como questionando a
colonialidade na hierarquização dos saberes de culturas marginalizadas.
Hoje pensamos em função de um conceito de patrimônio que dialogue com a experiência
da História Local, e por meio das memórias valorize outras percepções de tempo e espaço não
reconhecidas pela história tradicional. Propomos um debate abrangente de patrimônio que
considere diversos modos de vida e maneiras de ler o mundo, inserindo-as na narrativa oficial da
história. Posto isso, convêm expor em alguns parágrafos como o nosso olhar decolonial sobre
patrimônio se fundamenta numa noção específica da memória, em especial, a rememoração
em Walter Benjamin.10 Ao concebermos memória como rememoração, nos posicionamos para
que o ensino da História dialogue com as experiências vividas na comunidade dos estudantes
e subsidie a educação sensível do olhar de todos os atores envolvidos. O que por ora
gostaríamos de acrescentar como reflexão aos estudos que partilham preocupações
semelhantes no campo do ensino da História diz respeito ao potencial de desestabilizar a
história tradicional que uma abordagem do local cuidadosa pode oferecer. No ensino da
história tradicional brasileira é nítido o primado de um recorte que se limita aos grandes
centros, urbanos ou econômicos, com a tendência de posicionar a História Local como
adendo a uma pretensa história universal. Isso não se deve apenas ao colonialismo
institucionalizado pelo currículo escolar e universitário, como guarda relação com a
economia do tempo e a sobrecarga do trabalho docente, conforme rememora o professor:

A História Local é uma coisa que também eu negligenciei por muito tempo. A partir desse
projeto PIBID é que eu comecei, também, a ter essa… a trazer essa História Local. Porque
era um conteúdo que ficava sempre para o final. [...] Só que nunca dava tempo de chegar
naquele ponto. Então, foi a partir desse projeto PIBID também que eu comecei a trabalhar
de forma mais intensa, a dar uma atenção mais especial para a História Local. (p. 2017).

Tendemos a perceber que esse esquecimento da experiência local, como uma imagem
verdadeira daquele que se recorda, transparece a dificuldade de se situar adequadamente na
narrativa da história; como se protagonismo não fosse concebível. Nesse aspecto, relevamos o
modo como a aproximação da escola com a universidade em torno da Educação Patrimonial pode
gerar benefícios recíprocos a partir da correspondência entre essas duas lógicas de produção de
conhecimento distintas. Hoje, os trabalhos do campo de Educação Patrimonial da Universidade
Federal de Santa Catarina têm se dedicado a pensar a História Local no intuito de superar

10 Quando dialoga com o poeta Baudelaire, Benjamin (1994) explicita como a modernidade capitalista apaga as
memórias e as experiências. Para fugir das ruínas em que a modernidade capitalista se assenta, o filósofo nos
propõe que descubramos o sentido da vida por meio da rememoração [Eingedenken]. A (re)memória é, então, um
entrecruzamento de tempos, espaços e vozes. Na rememoração, amplia-se a possibilidade da experiência vivida.
Para o autor com ascendência judaica, os mortos, os esquecidos, os que foram apagados da história, são
redimidos quando alguém os traz à tona.
abordagens comuns ao currículo de História. No que se refere a tais colaborações entre escolas
públicas, universidade e comunidade, surgiram melhorias em certos aspectos:

Bom… A gente teve um ganho interessante nessa… Assim, elas chegam na aula de
História quando a gente trabalha o ensino de História local. Mas, ela teve um ganho
interessante, essas propostas de patrimônio justamente com o – você tinha citado o PIBID,
antes, “né”? – coma troca que a gente teve com o PIBID, por exemplo. Porque a gente, aí,
teve outras pessoas envolvidas trabalhando junto. [...] E, apesar de eu pegar o ano final do
projeto, deu para sentir como aquilo teve um ganho interessante. Por que? Porque a gente
produzia material didático; eles produziam material didático, principalmente os alunos
bolsistas – entrevistas, [...] que tiveram um ganho interessante, de pensar patrimônio do
Ribeirão da Ilha. Então, acho que esse foi um momento forte de inflexão, da questão de
patrimônio (Z., p. 2017).

De modo geral, o momento de inflexão que mencionou o professor ocorreu no âmbito do


projeto “Educação Patrimonial e formação de professores: relação entre comunidade, escola e
Universidade”, em que foram trabalhadas temáticas próprias à história das comunidades e seus
espaços de experiência. Sobrepujando a mudança em detrimento da conservação, o professor
recorda que houve várias contribuições para o ensino de História a partir da parceria entre escolas,
comunidade e universidade, que vão desde a quebra da rotina escolar com a chegada dos bolsistas
PIBID e permeiam o processo de confecção do material didático para o trabalho como fonte. Desse
modo, o estudo da memória local intermediado pelo patrimônio possibilitou o fortalecimento da
subsistência do passado no presente. Com a pretensão de estimular revisitas ao ensino de História,
continuamos contribuindo para positivar experiências como as de Delgado e Silva (2014) e as de
Pereira e Roza (2012), cujos trabalhos buscam a convergência entre os locais de fala e as narrativas
da História.

Neste trabalho considerou-se que a realização de pesquisas sobre memória na relação com
o ensino de História aprofunda as discussões e práticas de Educação Patrimonial. Trabalhamos no
sentido de traçar um panorama das escolas públicas em Florianópolis e mapear as mudanças
qualitativas para a educação a partir da iniciativa dos professores em estabelecer um diálogo entre
universidade, comunidade e escola. A despeito de não haver um pleno domínio dos pressupostos
teórico-metodológicos sobre o patrimônio, é notável a atuação dos professores e estudantes nas
escolas no que diz respeito ao desenvolvimento de práticas que dialogam com esse campo.
Entendemos que uma lente decolonial sobre o patrimônio possibilita superar a ordem cronológica
linear, e junto do rememorar é possível dar visibilidade à subsistência do passado no presente. Ao
concebermos memória como rememoração, nos posicionamos para que o ensino da História Local
dialogue com as experiências vividas da comunidade e subsidie a educação sensível do olhar de
todos os atores envolvidos. Não basta reconhecermos que muitas culturas foram subtraídas ou
soterradas, como diz a analogia de Benjamin (1987), sem antes admitir que elas se relacionam com
o saber científico na sua complementaridade. Construindo conhecimento receptivo às formas
subalternas de ler o mundo, a universidade ao lado dos movimentos sociais pode contribuir para
uma revisão conceitual. Mas são nas práticas de Educação Patrimonial – e aqui destacamos as ações
nas escolas públicas – que encontramos uma devolutiva acerca do potencial que esses debates têm
sobre as formas de pensar e de agir sobre o mundo.

A., C. B. Entrevista concedida a Elison Antonio Paim. Florianópolis: Colégio de Aplicação da


Universidade Federal de Santa Catarina, 16 de fevereiro de 2017.

AMARAL, João Pereira do. Da colonialidade do patrimônio ao patrimônio decolonial. Rio de


Janeiro, 17 dez. 2015. 150 p. Dissertação (Mestrado Profissional em Preservação do Patrimônio
Cultural) – IPHAN.

BALLESTRIN, Luciana. América Latina e o Giro Decolonial. Revista Brasileira de Ciência


Política, n.11. Brasília, maio/agosto de 2013, p. 89-117.

_____. Escavar e recordar. In: _____. Obras Escolhidas II. Rua de Mão Única. Trad.
Rubens Rodrigues Torres Filho e José Carlos Martins Barbosa. São Paulo: Brasiliense, 1987.

BENJAMIN, Walter. O narrador. In: _____. Magia e Técnica, Arte e Política. 7. ed. São Paulo:
Brasiliense, 1994. p. 197-221. (Obras Escolhidas, v. 1).

C., G. D. Entrevista concedida a Elison Antonio Paim. Florianópolis: Colégio de Aplicação da


Universidade Federal de Santa Catarina, 15 de fevereiro de 2017.

DELGADO, Andréia Ferreira; SILVA, Mônica Martins da. A investigação histórica acerca do
Patrimônio Cultural do Sul da Ilha de Santa Catarina e a construção de uma proposta de
Educação Patrimonial. Anais do XV Encontro Estadual de História 1964-2014: Memórias,
Testemunhos e Estado, Florianópolis: UFSC, 11 a 14 de agosto de 2014.

FERRAZ, Joana D’Arc; SCARPELLI, Carolina Dellamore Batista. Ditadura Militar no Brasil:
desafios da memória e do patrimônio. Anais Eletrônicos do XIII Encontro de História e
Identidades. Rio de Janeiro: ANPUH/Rio, 2008.
FONSECA, Maria Cecília Londres. Da modernização à participação: a política federal da
preservação nos anos 70 e 80. Revista do Patrimônio Histórico e Artístico. n. 24, p. 153-163,
1996.

MARINS, Paulo César Garcez; NASCIMENTO, Flávia Brito do. Dossiê o PCH, Programa de
Cidades Históricas: um balanço após 40 anos. Anais do Museu Paulista. São Paulo, v. 24, n.1,
p. 11-14, jan./abr. 2016.

P, R. Entrevista concedida a Elison Antonio Paim. Florianópolis: Universidade Federal de


Santa Catarina, 15 de fevereiro de 2017.

PAIM, Elison. TAVARES, Isadora Nunes. Patrimônio e Educação patrimonial: os acervos das
universidades catarinenses. In: XXVIII Simpósio Nacional de História: ANPUH BRASIL,
Florianópolis, v.1, p. 1-15, 2015.

PEREIRA, Júnia Sales; ROZA, Luciano Magela. O ensino de história: entre o dever de
memória e o direito à história. Revista História Hoje, v. 1, n. 1, p. 89-110, 2012.

PEREIRA, Pedro Mülbersted. O processo de patrimonialização da fortaleza de Santa Cruz


de Anhatomirim: Discursos, restauro, usos (1970-1992). Centro de Ciências da Educação,12
ago. 2016. 225p. Dissertação (Mestrado em Educação) – UFSC.

POLLAK, Michael. Memória, Esquecimento, Silêncio. In. Estudos históricos, Rio de Janeiro,
v. 2, n. 3, 1989.

PORTELLI, Alessandro. O que faz a história oral diferente. In. Projeto História, São Paulo,
1997, p. 25-39.

SANTOS, Boaventura de Sousa; MENESES, Maria Paula (Org.) Epistemologias do Sul.


Coimbra: Almedina, 2009.

WALSH, Catherine. Interculturalidad crítica y educación intercultural. Seminario


Interculturalidad y Educación Intercultural. La Paz: Instituto Internacional de Integración del
Convenio Andrés Bello, 9 a 11 de marzo de 2009.

Z., B. Entrevista concedida a Elison Antonio Paim. Florianópolis: Museu da Escola


Catarinense, 20 de fevereiro de 2017.
Milena Costa Mascarenhas

A ponte liga, conecta, alia, associa, une, vincula e relaciona, servindo para aproximar,
acessar, desobstruir e/ou desviar. Propicia passagem sobre obstáculos, serve para beneficiar ou
combater uma sociedade e liga as pessoas ou as distancia, dependendo dos seus objetivos. Pode-se
aproximar povos ou dominá-los a partir da apropriação do trajeto, estabelecendo tributos, pedágios
e impostos.
Pontes existem desde de que o homem se deu conta da sua capacidade de construir e facilitar
sua vida. A ponte também tem relação com a comunicação, pois de uma forma latu sensu, a palavra,
nada mais é do que uma ponte que liga o emissor ao receptor.
O estreitamento fronteiriço entre dois países pode se dar através de uma ponte, demarcando
a fronteira, mas também tornando-a mais acessível.
A Ponte Internacional da Amizade é um importante patrimônio na região fronteiriça Brasil-
Paraguai, compreendida como algo que une, diminui barreiras, facilita o acesso, aumenta o trânsito,
facilita migrações, intensifica o comércio, atrai o ilícito e oculta inúmeras outras práticas, ou seja,
uma intensa vida com milhares de pessoas que frequentemente fazem o seu uso. Demarcando a
fronteira entre Brasil e Paraguai, une e distancia em muitos contextos. Representa uma complexa
rede de interesses políticos, econômicos, sociais e culturais. Ou seja, o traço da união, ligando povos
e culturas também liga contradições e multiplicidades de memórias e significados em torno desta
obra.
A pesquisa, ainda insipiente, é um estudo sobre a construção das memórias em torno da
Ponte Internacional da Amizade, inaugurada em 1965 na fronteira entre as Ciudad Del Leste,
Paraguai e Foz do Iguaçu, Brasil. Propõe-se estudar como a ponte foi compreendida pelos
moradores foziguaçuenses que faziam a travessia da fronteira Brasil e Paraguai, antes da construção
da ponte, e os impactos dessa prática após sua construção, buscando analisar quais foram os
mecanismos e dinâmicas afetados ou facilitados e como estas vêm formando as suas memórias.
Para tanto, estudamos não só as memórias desses moradores, mas também, como a memória
institucionalizada sobre a ponte se apresenta e apresentou e como vem sendo construída na cidade.
A partir da perspectiva teórica da História Cultural procura-se compreendê-la sob um
enfoque que vai além do dito ou escrito nas fontes ditas “oficiais”.

* UNIOESTE, Doutoranda em Interdisciplinaridade, mestre e graduada em História.


Nesta etapa do trabalho, levantou-se a bibliografia referente ao tema, pretendendo
apresentar os aspectos geopolíticos, econômicos e sociais que demandaram a construção da Ponte
da Amizade, articulando e contrapondo o posicionamento político de ambos os países.
Posteriormente, em uma segunda etapa da pesquisa, pretende-se investigar, a partir da História Oral,
as informações relacionadas aos sujeitos que a utilizam no seu cotidiano, procurando analisar as
diferentes memórias em torno da Ponte Internacional da Amizade.

Pode-se olhar a Ponte Internacional da Amizade como um patrimônio, ou seja, uma herança
do passado, estabelecida nas fronteiras Brasil-Paraguai, contribuindo para a formação de uma
identidade local. Conforme Klauck e Skekut (2012), a cidade de Foz do Iguaçu, por exemplo, é
marcada pela ideia de diversidade de grupos, sendo construído um discurso do multiculturalismo.
E, da mesma forma, a Ponte da Amizade forjou um discurso de união, também utilizada para a
construção da identidade local; de certa forma, encena um passado no presente (CANDAU, 2016).
Quantas lembranças e significados existem sobre esse patrimônio? Memória dos que
construíram, dos que vivenciaram a construção da ponte e/ou vivem cotidianamente o seu entorno,
memórias essas muitas vezes silenciadas, pouco valorizadas ou escondidas nos discursos e
narrativas oficiais.
E quais são as memórias e significados construídos pelos grupos populacionais que se
estabeleceram nesse espaço e que fazem o constante uso, a exemplo de taxistas, mototaxistas,
transportadores, trabalhadores, estudantes, contrabandistas, consumidores entre outros sujeitos que
protagonizam ou vivenciam esse espaço.
A Ponte da Amizade não tem somente uma história, tem várias, e pode ser contada de
diferentes formas e maneiras. Pode-se contar uma história do ponto de vista paraguaio, do ponto de
vista do brasileiro ou do ponto de vista de quem se sentiu mais vigiado, ou mais distante dos amigos,
após sua construção. E, procurando andar na contramarcha de uma história oficial, entendida como
uma versão autorizada dos acontecimentos, propõe-se construir uma outra história, dando
visibilidade e audibilidade àqueles que protagonizam outras memórias (FENELON, 2004, p. 5-13).
Geograficamente, o Brasil com a extensão territorial de 8.515.767 km2 (IBGE, 2015),
quinto maior país do mundo e o maior da América do Sul, faz fronteira com dez países, compondo
nove tríplices fronteiras. Com o Paraguai possui 1.339 quilômetros de fronteira, compondo entre as
cidades de Foz do Iguaçu (Brasil), Ciudad del Este (Paraguai) e Puerto Iguazú (Argentina); a tríplice
fronteira com o maior contingente populacional das fronteiras sul-americanas.
E, do ponto de vista político, pode-se dizer que a ponte se tornou um símbolo da geopolítica
brasileira e paraguaia a partir das décadas de 1950, pois a obra materializou as intenções políticas,
econômicas, sociais e culturais do Brasil e Paraguai.
Vale ressaltar que a cidade de Foz do Iguaçu1 faz fronteira também com a Argentina,
por isso a preocupação do Brasil, desde 1888, em estabelecer certa “vigilância”, no caso,
através da colônia militar e políticas de ocupação, garantindo a integridade do território
brasileiro. As políticas, mais efetivas de ocupação no Oeste Paranaense, iniciaram na década
de 1930 estabelecendo um contingente populacional que servisse aos propósitos
relacionados à Segurança Nacional e estabelecimentos de fronteiras, adotadas no governo
de Getúlio Vargas.
Além disso, havia grande interesse em aumentar as relações com os países
fronteiriços, em especial com o Paraguai. E com a ascensão de Stroessner, o Brasil
percebeu uma excelente oportunidade de ampliar a influência no país vizinho a partir da
expansão territorial, a chamada “marcha para o oeste”, investindo capital brasileiro além
de se beneficiar com os inúmeros incentivos fiscais proporcionados pelo Paraguai (LAINO,
1979, p. 8).
Para o governo paraguaio, principalmente a partir da década de 1950 com a ascensão
do general Stroessner, via golpe de Estado, e a consolidação de novas diretrizes do Estado em
relação aos seus vizinhos no Cone Sul, em particular ao Brasil, a ligação fronteiriça sobre o
rio Paraná tornou-se fundamental, pois representava uma nova rota de comércio exterior e
uma possibilidade de se tornar independente do Porto de Buenos Aires, Argentina. Para
isso, aproveitando a boa relação com o Brasil e o recíproco interesse, solicitou a construção
de uma ponte entre o Rio Paraná que ligasse os países. O pedido foi acatado pelo governo
brasileiro concordando em assumir todos os encargos de tal obra (MORAES, 2000, p. 96-97).
Para compreender a política adotada pelo Paraguai, depois da década de 1950, é
necessário conhecer de maneira mais profunda o homem/personagem responsável por estreitar
a relação com o Brasil, a frente do jogo político estabelecido nesse período, ou seja, o general
Alfredo Stroessner. Considerando ser impossível compreender a totalidade do processo
histórico partindo de um indivíduo isolado, vamos estudá-lo no sentido de compreendê-lo
“[...] dentro da sociedade de acordo com a sua gênese e o seu caráter social [...]” (SCHAFF,
1967, p. 54).
Apelidado de “El Supremo”, Alfredo Stroessner, de descendência alemã, nasceu e
cresceu em Encarnación no Paraguai. No ano de 1929 entrou na Escola Militar, participou da
Guerra do Chaco (1932-1935), fez curso de artilharia no Brasil, dedicando-se à carreira militar
no Paraguai. Participou da guerra civil de 1947 e de dois golpes de Estado em 1948, foi
perseguido e perseguiu, assumiu cargos importantes aumentando a influência política,
respeito entre os militares e visibilidade internacional nos EUA, Argentina e Brasil.
Filiado ao Partido Colorado, aproveitou a grave crise política no qual passava o país e,
no dia 5 de maio de 1954, Stroessner, com o apoio dos militares, deu o golpe de Estado,
assumindo a presidência da República no dia 15 de agosto. O Estado foi organizado para
que as forças de segurança e a burocracia trabalhassem e servissem aos seus interesses e
propósitos ditatoriais.

1 Foz do Iguaçu passou a ser chamada, assim, a partir de 1918. O município foi elevado à essa condição em 1914,
pela lei nº 1383, quando foi criada a Vila Iguaçu.
Internamente, a ditadura de Stroessner (1954-1989) iniciou e se manteve baseada no medo,
instaurando várias práticas repressivas, conforme discorre Laino (1979, p. 87-89) e mesmo
Chiavenato (1980, p. 65-66). A primeira fase iniciada em 1958 eliminou companheiros do próprio
Partido Colorado com o objetivo de permanecer no poder, instituindo práticas de assassinatos,
torturas e perseguições sob a justificativa de um combate comunista, pelo menos assim era vendido
para a comunidade internacional.
Além da forte repressão, também se estabeleceu o chamado pyrague ou soplón, que
significava o “dedo duro”, gerando um ambiente ainda mais apreensivo com a vigilância anônima,
ficando a mercê de qualquer um ser chamado a investigaciones e submeter-se às usuais torturas. O
aparelho da repressão estava nas estruturas públicas, mantendo inclusive a oposição vigiada, até
cercá-los, isolá-los e destituí-los (CHIAVENATO, 1980, p. 14).
A corrupção paraguaia também se institucionalizou tornando-se a base de sustentação do
sistema ditatorial. O mecanismo de controle permitia a assinatura de decretos para beneficiar
amigos e familiares, a exemplo do enriquecimento de Stroessner e sua família através do monopólio
dos jogos (do jogo do bicho aos cassinos) e do general Andrés Rodriguez, que controlava o tráfico
de drogas (CHIAVENATO, 1980, p. 40-41).
Essa aproximação com os brasileiros iniciou com Getúlio Vargas em 1941, assinando dez
acordos de natureza comercial, cultural e econômica (MENEZES, 1987, p. 43) e se intensificou
com Juscelino Kubitschek, presidente do Brasil, entre 1956-1961, ao materializar as intenções do
Paraguai ter uma saída em direção a leste, assinando o acordo de construção da Ponte da Amizade
em 1956, além disso, “[...] A relação pessoal entre os dois presidentes foi muito boa. Stroessner
elogiava Juscelino por seu pan-americanismo e cooperação, assim também como o “grande nome
da união Paraguaia-Brasileira” (MENEZES, 1987, p. 44, grifo meu).
Em 1956, o presidente brasileiro Juscelino Kubitschek e o presidente do Paraguai General
Alfredo Stroessner assinaram o acordo e no dia 06 de outubro do mesmo ano, em um ato simbólico,
se encontraram no lugar onde seria construída a ponte, chancelando o projeto que se tornou de
importância fundamental para ambos os países, marcando a história das relações Brasil-Paraguai
“o telegrama de Stroessner para Juscelino dizia que os acontecimentos do dia 06 de outubro era a
melhor prova da união americana sonhada por Bolívar. A resposta de Juscelino dizia que os novos
fatos, incluindo aquela ponte, representavam o ideal da união americana e da parceria entre
brasileiros e paraguaios” (MENEZES, 1987, p. 53).
Os aspectos econômicos e políticos empurraram o Paraguai para o estreitamento da relação
com o Brasil, que também estava indo ao encontro dos interesses paraguaios, pois havia um
empenho de conquistar novos mercados para os seus produtos, principalmente de industrializados.
Para manter a relação, o Brasil apoiou fortemente a ditadura de Stroessner, inclusive ignorando sua
existência.
No dia 27 de março de 1965 foi inaugurada a Ponte Internacional da Amizade pelos
respectivos presidentes Castelo Branco e Alfredo Stroessner. Segue abaixo, uma descrição da ponte
elaborada pela Agência Nacional em 1965, demonstrando um discurso conciliador entre os dois
países e, ao mesmo tempo, ufanista e enaltecedor do Brasil.

A Ponte da Amizade, colosso de concreto, orgulho da engenharia brasileira, construída


pelo Departamento Nacional de Estradas e Rodagens. Essa estupenda obra de arte é a
maior do mundo em vão livre e tem mais de meio quilômetro de comprimento. A
SOTEGEL sua construtora mereceu o reconhecimento mundial pela elevada técnica
empregada na sua realização. Material e mão de obra do Brasil sob a direção de
engenheiros brasileiros resultaram nesse verdadeiro monumento e é um marco novo ao
unir duas nações vizinhas e a inspirar a consolidação da amizade entre os povos
latinos americanos.2

No dia da inauguração, discursos exaltavam a importância da obra, estabelecendo novas


relações com o Brasil, segundo discorreu Stroessner:

Mi Patria, ExcelentísimoSeñor, festeja alborozada esta inauguración, y mi


Gobiernoasociándose a éste júbilo legítimo, ha tenidolasatisfacción de decretar feriado
nacional, para que elpuebloparaguayorindaasísuhomenaje sincero al
acontecimientomemorable que nos tieneaquí congregados, enun solo haz de corazones y
enununánimesentimiento patriótico que perdurara ennuestrosanales republicanos lo que
dure esta magnífica estructura de acero y de cemento. Me cabe elorgullo de proclamar que
hemosllegado desde Asunción hasta este histórico monumento erigido a laconfraternidad
de dos países, por laruta que mi Gobierno ha construido, puestasuvoluntad al servicio de
los altos intereses de la Nación abriendoen plena selva, una nuevavía para elprogreso
y locivilización.3

As relações políticas, os interesses econômicos e alguns resultados de tal aproximação


foram possíveis de serem acessadas através de bibliografias específicas, constatando nas fontes,
como disse Ginzburg um estímulo e um limite, já prevendo a necessidade de aprofundar a pesquisa
exigindo uma análise dos rastros deixados pelo estabelecimento da ponte, sejam eles voluntários ou
involuntários, ao “ler os testemunhos históricos a contrapelo, [...] contra as intenções de quem os
produziu – embora, naturalmente, deva-se levar em conta essas intenções [...]” (GINZBURG, 2007,
p.11).
A ponte ligou fisicamente os dois países mudando a estrutura urbana, principalmente
das cidades limítrofes de Foz do Iguaçu, Brasil e Ciudad del Leste,4 Paraguai, intensificando o
tráfego, comércio e as migrações.

2 Cinejornal Informativo n. 5 (1965). Disponível em: <https://www.youtube.com/watch?v=VnyWeEVzg7U>.


Acesso em 02 de março de 2017. .
3 Disponível em:<https://goo.gl/UFgS8P> Acesso 07 de julho de 2017.
4 O Decreto Presidencial no 24.634 de 3 de fevereiro de 1957 criou a Ciudad Puerto Presidente Stroessner
atualmente denominada Ciudad del Este.
A multiplicidade existente de memórias em torno de um patrimônio histórico de extrema
relevância para a região fronteiriça, traz a necessidade de serem mapeadas, pesquisadas e relatadas,
dando voz àqueles que nunca foram sequer consultados sobre sua instalação e manutenção,
impactando na sua forma de organização e relação que até tinham ou estabeleciam com os amigos
e parentes do país vizinho.
Busca-se com isso, o acesso ao caráter vivo da memória na construção histórica,
compreendendo-a como um campo minado pelas lutas sociais, de verdades que se impactam através
das disputas entre diversos sujeitos históricos, produtores de diferentes interpretações e versões
(FENELON, 2004, p. 6-12).

A Ponte Internacional da Amizade demarca a fronteira entre os países Brasil e Paraguai, os


unindo e distanciando-se em muitos contextos. A ponte representa uma complexa rede de interesses
políticos, econômicos, sociais e culturais. O traço da união, ligando povos e culturas também liga
contradições e multiplicidades de memórias e significações em torno dessa obra.

ALBUQUERQUE. José Lindomar. A dinâmica das fronteiras: os brasiguaios na fronteira entre o


Brasil e o Paraguai. São Paulo: Annablume, 2010.
BURKE, Peter. O que é história cultural? Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2005.
CANDAU. Joël. Memória e Identidade. São Paulo: Contexto, 2016.
CHIAVENATO, Julio José. Stroessner: retrato de uma ditadura. São Paulo: Brasiliense, 1980.
CODAS, Gustavo (Org.). O Direito do Paraguai à soberania. São Paulo: Expressão Popular, 2008.
FENELON, Déa Ribeiro; MACIEL, Laura Antunes; ALMEIDA, Paulo Roberto de; KHOURY,
Yara Aun. (Org.). Muitas memórias, outras histórias. São Paulo: Olho D’Água, 2004.
LE GOFF, Jacques. História e memória. Campinas, SP: Ed. da Unicamp, 2003.
LAINO, Domingo. Paraguai: fronteiras e penetração brasileira. São Paulo: Global, 1979.
MASCARENHAS, Milena. Poeira X Unicon: confrontos e contrapontos entre expropriados e
Itaipu. 2011. Dissertação (Mestrado) – UNIOESTE.
MENEZES, Alfredo da Mota. A herança de Stroessner: Brasil e Paraguai (1955-1980). Campinas,
São Paulo: Papirus, 1987.
Ministério das Relações Exterior do Brasil. Disponível em: <https://goo.gl/pUwDbG>Acesso em
02 de maio de 2016.
MORAES, Ceres. Paraguai: a consolidação da ditadura de Strossner (1954-63). Porto Alegre:
Edipucrs, 2000.
PADRÓS, Enrique Serra. O Paraguai de Stroessner no Cone Sul da Segurança Nacional.
Disponível em:<https://goo.gl/AEjH4G>
SCHAFF, Adam. O marxismo e o indivíduo. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1967.
Cinara Isolde Koch Lewinski

Este artigo pretende explicar o processo de difusão da história ferroviária no Rio


Grande do Sul pelo Preserve/FE, na década de oitenta, por intermédio de vários projetos
oferecidos aos escolares no Centro de Preservação da História Ferroviária do Rio Grande
do Sul. A instituição referida estava inserida em um contexto que a definição de patrimônio e
de museus estava em um processo de mudanças. No séc. XX, houve transformações na
concepção do que era considerado patrimônio histórico no Brasil devido a vários fatores,
dentre eles, as medidas da Carta de Veneza (1964) e da Mesa Redonda de Santiago de Chile
(1972). O governo federal passou a ajustar as suas decisões com uma definição de patrimônio
ampliada, pautando-se nos “referenciais culturais dos povos, pela percepção dos bens
culturais nas dimensões testemunhais do cotidiano”. (FUNARI; PELEGRINI, 2006, p. 32).
Dessa forma, “essa abertura temática permitiu que construções menos prestigiadas ou mais
populares, como moinhos, mercados públicos ou estações de trem, fossem reconhecidas
como patrimônio”. (FUNARI; PELEGRINI, 2006, p. 32). As transformações da
perspectiva positivista de História1 por pesquisas, ressaltando as construções e
apropriações cotidianas de fenômenos sociais, alargaram os bens compreendidos como
patrimônio, os quais passaram a vincularem-se a sujeitos comuns e demais objetos do
cotidiano. Então, com a incorporação de novas concepções nas práticas de tombamento,
por meio da democratização da cultura, o patrimônio da ferrovia no Brasil passou a
pertencer ao inventário dos bens a serem preservados. Assim sendo, a ferrovia, que por
mais de um século era símbolo de modernidade e progresso, estava sendo ressignificada
como patrimônio cultural,2 onde grupos sociais passaram a buscar uma representação de sua
memória coletiva.3

* Mestranda em História/UNISINOS. Bolsista pela CAPES/


1PROSUP Concepção que se desenvolvia em torno das grandes narrativas que destacavam fatos liderados pelas
elites da nação e de seus heróis. .
2 Atualmente, a Constituição Federal do Brasil, de acordo com o art. 216. “[...] considera patrimônio cultural
brasileiro os bens de natureza material e imaterial, tomados individualmente ou em conjunto, portadores de
referência à identidade, à ação, à memória dos diferentes grupos formadores da sociedade brasileira, nos quais se
incluem: I - as formas de expressão; II - os modos de criar, fazer e viver; III - as criações científicas, artísticas
e tecnológicas; IV - as obras, objetos, documentos, edificações e demais espaços destinados às manifestações
artístico-culturais; V - os conjuntos urbanos e sítios de valor histórico, paisagístico, artístico, arqueológico,
paleontológico, ecológico e científico”. (BRASIL, 1988a). .
3 “A memória coletiva é frequentemente o produto de um empilhamento de estratos memoriais muito
diversos, podendo essas camadas sedimentares ser alteradas quando das perturbações de memória. Dessa
forma, podemos admitir que Les lieux de mémoire, [...], nos falam realmente de algumas modalidades de
memória coletiva (memória real, memória-Estado, memória-nação, memória-cidadão, memória-patrimônio).
Os lugares são, na maior parte das vezes, a condensação de memórias plurais mais ou menos antigas,
frequentemente conflituosas e interagindo umas com as outras. ” (CANDAU, 2011, p. 91-92, grifo do autor).
No entanto, começou-se a pensar efetivamente numa política patrimonial sobre os
bens ferroviários no Brasil, a partir do momento em que a RFFSA4 foi incluída no Programa
Nacional de Desestatização.5 Logo, todo o patrimônio ferroviário não operacional constituído
a partir de meados do séc. XIX, no Brasil, passou a ser responsabilidade do IPHAN,6 que
conferiu aos bens históricos da ferrovia um destaque no patrimônio cultural brasileiro
devido a sua importância socioeconômica para a sociedade. Antes disso, vários museus
ferroviários foram criados no Brasil, durante a execução dos projetos do Preserve/FE,7 entre a
década de 1980 e início dos anos 1990. Então, inicialmente, o governo federal conduziu a
patrimonialização8 do acervo ferroviário por intermédio do programa preservacionista do
governo federal com organização, normas e diretrizes próprias, que determinaram os
critérios de seleção dos objetos ferroviários que deveriam ser salvaguardados.
O Preserve/FE implantou núcleos e centros de preservação da história dos
transportes em vários estados do país e, por meio deles, divulgou um discurso construído a
partir do espólio dos modais. Sendo assim, os centros de preservação constituídos pelo
programa federal, que conservaram o patrimônio ferroviário, conceberam valores e sentidos
que deixaram marcas profundas na percepção desse acervo.
Os profissionais do Centro de Preservação da História Ferroviária do Rio
Grande do Sul, a partir da rotina de marcar e registrar uma memória, atribuíram
significado aos materiais históricos da ferrovia. Os objetos da ferrovia, ao serem
incorporados ao acervo da instituição, perderam os vínculos com seus contextos de origem e,
passaram a ser vistos como vestígios portadores de informação. Apesar da aparência
socialmente descompromissada das atividades museológicas nos centros de preservação, elas
jamais foram concebidas sem intenções pré-estabelecidas. Contudo, as instituições criadas
pelo Preserve/FE acompanharam as mudanças funcionais dos museus que ocorreram através
dos tempos e “[...] talvez possam ser compreendidas como uma trajetória entre a abertura de
coleções privadas à visitação pública ao surgimento dos museus na acepção moderna, como
instituições a serviço do público”. (JULIÃO, 2002, p. 27).

4 Rede Ferroviária Federal Sociedade Anônima. .


5..A partir da leitura da Lei nº 9.491, de 9 de setembro de 1997, sobre o Programa Nacional de
Desestatização (PND), podemos perceber que promoveu várias mudanças para tornar as malhas
ferroviárias atrativas para as concessionárias. Dentre as ações governamentais implantadas, pelo referido
plano, estava a destinação dos bens operacionais para o DNIT e dos bens não operacionais para diversos órgãos
ou entidades, como o IPHAN. .
6 Art. 9 Caberá ao Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional - IPHAN receber e administrar os bens
móveis e imóveis de valor artístico, histórico e cultural, oriundos da extinta RFFSA, bem como zelar pela sua
guarda e manutenção. (BRASIL, 2007). .
7 Como Matos (2015), seguiremos a mesma estratégia utilizando o termo Preserve/FE, sempre que citarmos o
programa, pois o Preserve foi criado em 1980 pelo Ministério dos Transportes, mas a partir de 1986 deixou de
ser ministerial e passou a ser denominado como Preserfe, atuando somente na preservação do patrimônio
ferroviário por intermédio da RFFSA. .
8 Segundo Chuva, o ato de patrimonialização consiste em selecionar um bem cultural (objetos e práticas) a
partir da atribuição de valor de referência cultural por um grupo de identidade. Então, uma nova trajetória se
impõe aos bens instituídos como patrimônio, que passam a ser submetidos a uma nova ordem jurídico-legal,
bem como a condições de existência diferenciadas, marcadas por essa singularidade. (CHUVA, 2012, p.
73-74).
No Guia dos museus do Brasil, organizado por Carrazzoni 9 (1978), encontra-se
a definição de museu preconizada na época: “O ICOM reconhece a qualidade de museu a
qualquer instituição permanente que conserve e apresente coleções de objetos de caráter
cultural ou científico, para fins de estudo, educação e satisfação”. (CARRAZZONI, 1978, p.
08). Essa acepção recomendada pelo ICOM, na década de oitenta, foi o resultado dos debates
que se intensificaram em torno do papel dos museus nas sociedades contemporâneas em
vários eventos, dentre os quais estão a IX Conferência realizada em Paris e Grénoble, em
1971, e a Mesa Redonda de Santiago do Chile, em 1972. A nova museologia que, surgiu das
discussões, passou a propor um museu que deveria estar a serviço dos homens. “Em vez do
museu ‘de alguma coisa’, o museu ‘para alguma coisa’: para a educação, a identificação, a
confrontação, a conscientização, enfim, museu para uma comunidade, função dessa mesma
comunidade.” (JULIÃO, 2006, p. 25). De certo modo, o movimento de renovação dos
museus ecoou no Brasil, nos anos setenta e oitenta, com empreendimentos que
buscaram revitalizar várias instituições, adaptando-as aos parâmetros recomendados pelo
comitê internacional. Pode-se ver a repercussão dos debates no Brasil por meio de
publicações, como a notícia do Globo publicada em 1971, onde Carrazzoni apresenta as suas
conclusões sobre o IX Congresso Internacional de Museus para os leitores:

[...] que uma das principais conclusões dos congressistas foi justamente a de que é preciso
esquecer o conceito tradicional de que o museu serve, apenas, para perpetuar os valores
ligados à preservação da herança cultural e natural do homem, pois no mundo
contemporâneo os museus têm, cada vez mais, um importante papel educativo.
(CARRAZZONI, 2001, p.122).

Sendo assim, os museus são instituições de seu tempo e constituídas e mantidas com
objetivos distintos. E, portanto, o Preserve/FE absorveu algumas das concepções da nova
museologia, sobretudo os assuntos que concernem à implantação de serviços educativos. Com isso,
este artigo tem o intuito de investigar os discursos construídos por meio da Educação Patrimonial
promovida pelo programa preservacionista do governo federal e, para atingir os objetivos foram
acolhidos depoimentos de pessoas que conheceram o trabalho de difusão da história ferroviária no
Centro de Preservação da História Ferroviária do Rio Grande do Sul. Então, por meio de
entrevistas, foi possível constituir os subsídios para o estudo a partir de diferentes olhares sobre o
mesmo assunto. Sendo assim, para cumprir a proposta utilizou-se como embasamento teórico e
metodológico, a História Cultural, juntamente com História Oral e, desse modo, a pesquisa se
concentrou em dois focos: a pesquisa documental e as fontes testemunhais produzidas
especialmente para o estudo de caso. Tendo em vista que “documento algum é neutro, e sempre
carrega consigo a opinião das pessoas e/ou do órgão que o escreveu” (BACELLAR, 2005, p. 63),
buscou-se analisar as fontes como produções humanas e conforme Bacellar (2005), “[...] ser
9 Coordenadora do projeto Preserve/FE.
historiador exige que se desconfie das fontes, das intenções de quem as produziu, [...]”.
(BACELLAR, 2005, p. 64). Dessa maneira, procurou-se examinar tanto as fontes documentais
como as fontes testemunhais, de forma crítica e com a correta contextualização das mesmas. Para
utilizar as fontes testemunhais, adotamos a sugestão de Meneses (1992) que propõe não somente o
estudo do conteúdo (as representações) sob o ponto de vista da crítica da ideologia, mas também
das estruturas e dos processos a ele articulados. No entanto, para estudar as estruturas e os processos
articulados foi utilizada a definição de representação proposta por Chartier (1990). Segundo o autor
mencionado, pode-se ter um duplo entendimento das representações: tanto ela pode tornar presente
o ausente; quanto pode dar-se por intermédio dos modos de exibição da própria presença, pois a
representação “[...] está associada a um certo modo de ‘ver as coisas’, de dá-las a ver, de refigurá-
las”. (BARROS, 2011, p. 48). Por isso, “as representações são variáveis segundo as disposições dos
grupos ou classes sociais; aspiram à universalidade, mas são sempre determinadas pelos interesses
dos grupos que as forjam”. (CHARTIER, 1990, p. 17).

O Centro de Preservação da História Ferroviária do Rio Grande do Sul é considerado como


um lugar de memória, que difunde a história da estrada de ferro, e foi analisado por meio de
entrevistas para o levantamento de fontes sobre o trabalho educativo que foi feito na instituição pelo
Preserve/FE na década de oitenta. Com base nos livros de Meihy (1998) e de Alberti (2005), foi
organizada uma estrutura, considerando os seguintes procedimentos da metodologia:

História oral é um conjunto de procedimentos que se iniciam com a elaboração de um


projeto e continuam com a definição de um grupo de pessoas (ou colônia) a serem
entrevistadas, com o planejamento da condução das gravações, com a transcrição, com a
conferência do depoimento, com a autorização para o seu uso, arquivamento e, sempre
que possível, com a publicação dos resultados que devem, em primeiro lugar, voltar ao
grupo que gerou as entrevistas. (MEIHY, 1998, p. 24).

Desse modo, no primeiro momento foi realizada a pesquisa em fontes


bibliográficas e documentais sobre a função dos museus na década de oitenta e,
também, sobre os projetos executados pela instituição nesse período. Logo após, foi feito
um levantamento dos nomes das pessoas a serem entrevistadas. Ao todo, foram
acolhidos dez depoimentos, dos quais três entrevistas foram consideradas para a análise
sobre a Educação Patrimonial. No primeiro contato com os entrevistados foi realizada uma
pré-entrevista em que se registraram os principais temas, lugares e objetos relacionados à
experiência de vida dos entrevistados. Na coleta de dados, deu-se a preferência pelo uso da
narrativa nas entrevistas; porém, houve situações em que a distância impediu que fosse
feita a entrevista presencial. Nesses casos, foram aplicados vários questionários em dias
alternados. Portanto, foram analisadas três entrevistas de pessoas que possuíam diferentes
tipos de interação no Centro de Preservação da História Ferroviária do Rio Grande do Sul:
duas ex-funcionárias da RFFSA que desenvolveram diferentes tipos de atividades e um
morador da comunidade leopoldense que fez trabalho voluntário na instituição.

As entrevistas presenciais ocorreram na residência das pessoas que forneceram os seus


depoimentos. A primeira entrevista foi com uma jornalista que trabalhava na comunicação social
da RFFSA e participava do Preserve/FE. Seu envolvimento com o Centro de Preservação da
História Ferroviária no Rio Grande do Sul ocorria nos eventos que a instituição promovia na década
de oitenta. Segundo relato, foram feitos vários trabalhos em conjunto, entre a comunicação social e
o museu e, em especial, no período em que a museóloga Clarissa Oliveira de Carvalho atuava na
instituição. Contou que muitas atividades eram realizadas no museu e todas elas foram repassadas
para a comunicação social da RFFSA e divulgadas pelo departamento, naquele período.
Informações como visita de autoridades, eventos e o número de visitantes recebidos mensalmente
no Centro de Preservação da História Ferroviária foram repassados e amplamente divulgados para
a imprensa. Conforme as lembranças da jornalista, vários foram os eventos que foram
comemorados na instituição e difundidos nos meios de comunicação. No entanto, ela rememorou
e citou o dia da bandeira, o dia 7 de setembro, o dia da árvore e o dia da criança. Além disso,
relembrou alguns momentos dessas datas festivas. Sobre o dia 7 de setembro, quando foi realizada
a atividade Pinte o 7 no dia 7, recordou que os filhos dos ferroviários participaram da atividade de
pintar os muros no Museu. Outra data festiva que rememorou foi o dia da árvore. De acordo com a
jornalista, nessa ocasião, escolares foram convidados para plantar árvores no Museu do Trem.
Também foi feita a mesma atividade na Sede da RFFSA em Porto Alegre.

Figura 1 - Plantio de árvores na solenidade com autoridades locais e da RFFSA10

Fonte: Museu do Trem de São Leopoldo (1987).

10 As árvores foram plantadas pelas crianças de várias escolas do município de São Leopoldo,
juntamente com o Secretário de Obras e Viação Paulo Koch, Profº Telmo Lauro Müller, além de outras
autoridades.
A entrevistada também recordou que, durante o período do mês de outubro, os funcionários
do museu fizeram muitas atividades com crianças. Quando indagada sobre a participação da
comunidade, a entrevistada comentou sobre a Associação dos Amigos do Museu do Trem.
Conforme relato, a comunidade participava, por intermédio dela, de projetos alusivos a datas
comemorativas, já citadas anteriormente. Também relatou que sempre foi feito um trabalho
integrado entre a instituição e a comunicação social, porém, no período Collor, as atividades
culturais foram desprestigiadas por falta de recursos financeiros destinados para as áreas, e os
museus ferroviários foram repassados para as prefeituras municipais. Segundo a jornalista da
RFFSA, foi nesse momento que a comunicação social perdeu a ingerência junto ao Museu.
O segundo entrevistado foi um morador de São Leopoldo que fez trabalhos voluntários no
Centro de Preservação da História Ferroviária do Rio Grande do Sul. Conforme o seu depoimento,
o objetivo da instituição era reconstituir um pouco da história da ferrovia e a memória ferroviária
do Estado do Rio Grande do Sul. Acredita que a ideia principal do espaço museológico foi mostrar
o tipo de material usado para construir uma ferrovia, e tudo que era usado na estação em épocas
anteriores. Com relação ao trabalho de Educação Patrimonial, relembrou que houve o interesse em
inserir a comunidade ao interligar a história da ferrovia com a história da imigração alemã, pois a
estação ferroviária de São Leopoldo foi a primeira estação ferroviária gaúcha a ser inaugurada, e a
estrada de ferro foi extremamente importante para o desenvolvimento de toda a riqueza da região.
Já o terceiro depoimento deixou mais evidente o papel educativo que o museu pretendia
exercer. A funcionária da RFFSA que trabalhou por vários anos no Centro de Preservação da
História Ferroviária do Rio Grande do Sul, fazendo o trabalho de recepção do público, respondeu
várias perguntas por e-mail sobre o assunto. Conforme a fonte testemunhal, as visitas guiadas
tinham como escopo passar para o público a ideia da importância da ferrovia na construção do país.
A entrevistada recordou que, durante os finais de semana, havia um público diversificado, enquanto
que durante a semana recebiam mais escolares. Relembrou que existiam projetos para atender
escolares nos vagões em frente ao depósito, onde eram organizadas exposições temporárias. Ela
também lembrou que existiam três pessoas para atender as várias escolas que vinham durante a
semana; que uma ficava dentro da exposição permanente, outra conduzia as turmas ao longo do
pátio, explicando o funcionamento de cada objeto, e a museóloga que contava a história da ferrovia
dentro dos carros de passageiros. Com relação à inserção da comunidade, relatou que algumas
histórias eram contadas por grupos de pessoas que moravam no entorno da estação quando crianças.
Segundo a funcionária, os visitantes elogiavam tanto o trabalho de recepção, como a
exposição e os objetos distribuídos. Quando foi questionada a respeito dos objetos que mais
chamavam a atenção na exposição de longa duração, pela ordem de preferência do público em
geral, ela listou da seguinte forma: miniatura de locomotiva a vapor, miniatura de locomotiva,
escafandro, galo de ouro, maquete de ponte, máquina fotográfica, telefone, telégrafo, sinos e farol
farroupilha. Diante desses dados, buscou-se averiguar como o público selecionava os objetos mais
apreciados. E, para obter informações sobre o assunto, foram feitas perguntas para a ex-funcionária
da instituição, propondo dois grupos de visitantes (escolares e ferroviários), com o intuito de
caracterizar melhor o seu perfil. A partir das respostas concluiu-se que entre os objetos preferidos
pelos ferroviários sobressaíram-se aqueles que faziam parte do seu cotidiano, pois destacavam “[...]
as lembranças dos eventos e das experiências que dizem respeito à maioria de seus membros e que
resultam de sua própria vida [...]”. (HALBWACHS, 2006, p. 51). Nesse sentido, para os ex-
funcionários da ferrovia, os objetos em exposição tinham um sentido de rememoração e não de
espetacularização como no grupo de escolares. Portanto, Chartier (1990) já sugeria em suas obras,
que há diferentes apropriações do público que são “[...] socialmente determinadas de maneiras
desiguais, segundo costumes, classes, inquietações: diferenças também dependentes de princípios
de organização e diferenciação socialmente compartilhados”. (CARVALHO, 2005, p. 157).

A utilização da História Oral, como metodologia, ofereceu a oportunidade de conhecer a


memória das pessoas que vivenciaram o acontecimento, considerando as “[...] representações da
realidade que cada um de nós se faz e são evidências de que agimos muito mais em função dessas
representações do real que do próprio real [...] ”. (JOUTARD, 2000, p. 34). A partir desse trabalho,
foram surgindo novos caminhos e outras possibilidades de análise do trabalho educativo, realizado
na década de oitenta pelo programa preservacionista. Observando essas atividades, por meio dos
dados coletados por intermédio das entrevistas, percebeu-se que a instituição administrada pelo
Preserve/FE seguiu o calendário de datas comemorativas oficiais: Independência do Brasil, Dia da
Árvore, etc., com a finalidade de atrair a população para visitar o espaço museológico. Sendo assim,
“a Rede toma para si a competência de eleger datas e fatos entre o manancial de referências do
passado, construindo uma memória a partir da hierarquia de objetos, eventos e personagens do
passado”. (CARVALHO, 2010, p.105).
Com relação à prática das atividades educativas, o Centro de Preservação da História
Ferroviária do Rio Grande do Sul adotou a proposta das práticas pedagógicas escolares do período.
Sendo assim, as ações de atendimento aos escolares, na instituição museológica, transformaram o
museu em apêndice da escola, ou seja, promoveram uma escolarização do museu (RAMOS, 2004).
Conforme Ramos (2004) e Santos (1993), o museu sempre teve um caráter pedagógico. Os agentes
do Preserve/FE tinham consciência disso, tanto é que as atividades foram organizadas de forma
didática, porém, como “[...] parte dos aparelhos ideológicos do Estado criados para gerir a crise da
cultura e produzir práticas novas em conformidade com essa lógica”. (COELHO, 1988, apud
RAMOS, 2004, p. 75).
Além disso, ao realizar as entrevistas percebeu-se a importância desse trabalho, pois a
difusão da história da ferrovia pelas práticas educativas foi um assunto que potencializou a
reconstrução da trajetória da inserção da comunidade no espaço museológico. A partir desse artigo,
foi possível conhecer um pouco mais sobre os projetos educativos e com eles, alguns elementos
que só vieram à tona com as entrevistas: como a recepção do público e os trabalhos de rotina na
busca de levar a comunidade para dentro da instituição. Acredito que com o trabalho de História
Oral consegui reconstituir uma parte da trajetória do Centro de Preservação da História Ferroviária
do Rio Grande do Sul, na década de oitenta e, com ela surgiu a preocupação de expandir o projeto
sobre o estudo das memórias das pessoas que vivem/viviam em seu entorno. Portanto, o Sítio
Histórico do Museu do Trem-SL é um grande evocador de memórias, tanto do período em que o
espaço abrigava a estação ferroviária de São Leopoldo, como do momento que passou a ser um
espaço museológico. Sendo assim, não se pode desprezar a sua trajetória e, especialmente, a
pesquisa sobre os programas educativos por ela implementados no passado, pois a inclusão da
comunidade foi e é fundamental para ter sentido à preservação e à manutenção do museu.

ALBERTI, Verena. Tratamento das entrevistas de história oral no CPDOC. Rio de Janeiro:
CPDOC, 2005,11f. Disponível em: <http://cpdoc.fgv.br/>. Acesso em: 16/08/0215.

_____. Ouvir contar: textos em História Oral. Rio de Janeiro: FGV, 2004.

_____. Histórias dentro da história. In: Pinsky, Carla Bassanezi. Fontes Históricas. São
Paulo: Contexto, 2005, p. 155-202.

BACELLAR, Carlos. Uso e mau uso dos arquivos. In: PINSKY, Carla Bassanezi (Org.).
Fontes históricas. São Paulo: Contexto, 2005, p. 23-80.

BARROS, José D’Assunção. A nova história cultural – considerações sobre o seu universo
conceitual e seus diálogos com outros campos históricos. Cadernos de História, Belo Horizonte,
v. 12, n. 16, p. 38-63, 1 sem. 2011.

BRASIL. Ministério dos Transportes/ Rede Ferroviária Federal S.A. Superintendência Regional
de Porto Alegre. Centro de Preservação da História da Ferrovia no Rio Grande do Sul. Porto
Alegre: Metrópole, 1985.

BRASIL. Lei nº11483, de 31 de maio de 2007. Dispõe sobre a revitalização do setor ferroviário.
Disponível em: <https://goo.gl/LyE61P>. Acesso em: 23 de ago. 2015.

CANDAU, Joël. Memórias e amnésias coletivas. In: CANDAU, Joël. Antropologia da memória.
Lisboa: Instituto Piaget, 2013, p. 83 - 122.

CARRAZZONI, Maria Elisa. Guia dos Museus do Brasil. 2. ed. Rio de Janeiro: Expressão e
Cultura; AGGS - Indústrias Gráficas, 1978.
CARVALHO, Maria Cecília de Alvarenga. Memória social e patrimônio ferroviário em Além
Paraíba. 2010. 175 f. Dissertação (Mestrado em Ciências Sociais) – Pontifícia Universidade
Católica de Minas Gerais, Belo Horizonte, 2010. Documento em PDF.

CHARTIER, Roger. A História Cultural: entre práticas e representações. Lisboa: DIFEL, 1990.

CHUVA, Márcia. Preservação do patrimônio cultural no Brasil: uma perspectiva histórica, ética e
política. In: CHUVA, Márcia; NOGUEIRA, Antonio Gilberto Ramos. Patrimônio cultural:
políticas e perspectivas de preservação no Brasil. Rio de Janeiro: Mauad X: FAPERJ, 2012, p.
67-78.

FUNARI, Pedro Paulo Abreu; PELEGRINI, Sandra de Cássia Araújo. Patrimônio histórico e
cultural. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2006.

HALBWACHS, Maurice. A memória coletiva. São Paulo: Centauro, 2006.

JOUTARD, Philippe. Desafios à História Oral do século XXI. In: FERREIRA, Marieta de
Moraes; FERNANDES, Tânia Maria; ALBERTI, Verena (Org.). História Oral: desafios para o
século XXI. Rio de Janeiro: Ed. da FGV, 2000, p. 31-45.

JULIÃO, Letícia. Apontamentos sobre a história do museu. In: Caderno de diretrizes


museológicas 1. 2 ed., Brasília: Ministério da Cultura / Instituto do Patrimônio Histórico e
Artístico Nacional/ Departamento de Museus e Centros Culturais, Belo Horizonte: Secretaria de
Estado da Cultura/ Superintendência de Museus, 2006, p.17-30.

MATOS, Lucina Ferreira. Memória ferroviária: da mobilização social à política pública de


patrimônio. 2015. Tese (Doutorado em História, Política e Bens Culturais) – Fundação Getúlio
Vargas, Rio de Janeiro, 2015. Documento em PDF.

MEHY, José Carlos Sebe. Manual da História Oral. São Pailo: Loyola, 2000.

MENESES, Ulpiano T. Bezerra. A História, cativa da memória? Para um mapeamento da


memória no campo das Ciências Sociais. Revista Instituto de Estudos Brasileiros, SP, n. 34, p. 9-
24, 1992.

_____. Do teatro da memória ao laboratório da História: a exposição museológica e o


conhecimento histórico. In: Anais do Museu Paulista. São Paulo. N. Ser. v. 2 p. 9-42 jan./dez.
1994.

MUSEU do Trem recebe 100 pessoas por dia. Jornal VS, São Leopoldo, 20 mar. 1985, p. 4.
RAMOS, Francisco Régis Lopes. A danação do objeto: o museu no ensino de história. Chapecó:
Argos, 2004.

REDE FERROVIÁRIA FEDERAL (RFFSA) (Brasil). Relatório do CPHFRGS (Período de


março a junho de 1985). [Documento administrativo]. São Leopoldo, 1985. Documento não
paginado.

RÚSSIO, Waldisa. Cultura, patrimônio e preservação. In: ARANTES, Antonio Augusto (Org.).
Produzindo o passado: estratégias de construção do patrimônio cultural. São Paulo: Brasiliense,
1984, p. 59-78.

SANTOS, Myrian Sepúlveda dos. Museu e políticas de Memória. In: Cadernos de


Sociomuseologia, n. 19, p. 115-137, 2002.
Eduarda Borges da Silva*

Thomas Malthus (1766-1834), economista e pastor da Igreja Anglicana, acreditava que a


população crescia mais rápido que os meios de subsistência. Ele “defendia a ideia de que a
população crescia em ritmo geométrico, enquanto que a produção de alimentos crescia em ritmo
aritmético”. (PEDRO, 2010, p. 142). As altas taxas de crescimento demográfico na segunda metade
do século XX eram explicadas por “[...] uma mortalidade em queda num quadro de elevadas taxas
de fecundidade”. (CORRÊA; JANUZZI, 2003, p. 31).
As décadas de 1950 e 1960 apresentaram uma “explosão populacional” servindo como
justificativa para as políticas de redução da fecundidade, como a neomalthusiana. A maioria dos
países do Terceiro Mundo em 1974, na Conferência de Bucareste, defendeu a natalidade elevada,
argumentando que era um sinal de afirmação nacional, diante dessa postura dos países ricos em
controlar a natalidade, intrometendo-se na soberania dos países pobres. “A posição defendida pela
delegação da Índia – ‘o desenvolvimento é o melhor contraceptivo’ – pode ser tomada como uma
síntese das resoluções da conferência.” (CORRÊA; JANNUZZI, 2003, p. 32, grifo meu).
Os anos de 1980 foram marcados pela noção de saúde integral da mulher. O movimento
feminista aliou-se ao da reforma sanitária, e em 1983 foi criado no Brasil o Programa de Assistência
Integral à Saúde da Mulher (PAISM). As mulheres reclamavam que os programas somente as
percebiam na condição da maternidade, “[...] negligenciando os problemas de saúde relacionados
às demais fases da sua vida: problemas da adolescência e da menopausa, doenças sexualmente
transmissíveis, esterilidade, contracepção, entre outros”. (MESQUITA, 2010, p. 15).
Embora as discussões sobre sexualidades e reprodução se tangenciem é importante
compreender que são esferas diferentes da vida humana e que, muitas vezes, os debates sobre
procriação têm o intuito de regular/controlar as sexualidades. Este texto não trata dos direitos
sexuais, mas dos reprodutivos, ou seja, sobre a autonomia de decidir procriar ou não.

No que diz respeito à esfera pública, implica a restrição, tanto a qualquer tipo de controle
coercitivo da natalidade quanto a qualquer tipo de imposição natalista que implique a
proibição de uso de métodos contraceptivos. No mundo privado, respeitar os direitos

* UFRGS, Doutoranda em História, apoio CAPES.


reprodutivos implica que maridos e companheiros, esposas e companheiras, familiares e
redes comunitárias não obriguem alguém a engravidar, a usar métodos anticoncepcionais,
a não abortar, ou a realizar um aborto forçado. Os direitos reprodutivos significam que
toda pessoa tem liberdade de escolha para definir como, quando e quantos filhos quer ter
(incluindo não ter filho algum, isto é, o direito “não-reprodutivo”), além de poder contrair
matrimônio de maneira livre e com o pleno consentimento de ambas as pessoas.
(CORRÊA; JANNUZZI, 2003, p. 48).

As conquistas tecnológicas na área da reprodução trouxeram um dilema: ser ou não ser


mãe? A pílula contraceptiva garantiu um controle eficaz da fecundidade, aceito socialmente. Apesar
disso, ela não é uma conquista acessível a todas as mulheres e devido às muitas contraindicações,
na atualidade se discute se o seu uso não representa um retrocesso à saúde das usuárias. A própria
difusão dos métodos contraceptivos foi diversa:

[...] seja como conquista de uma luta feminista (o caso da França), seja como objetivo das
políticas demográficas (o caso do Brasil) – indicam a existência de inúmeras contradições
nesse processo. Destaca-se entre estas, os limites da livre escolha marcados: pelas
contradições de classe, raça/etnia; pelos impactos da utilização de métodos contraceptivos
pesados, como a esterilização feminina no Brasil; pelos danos que os métodos
contraceptivos, sem acompanhamento médico, podem causar à saúde das mulheres; pelas
desigualdades sociais relacionadas com o uso dos métodos contraceptivos (SCAVONE,
2001, p. 51-52).

Joana Pedro (2010), em seu artigo “A trajetória da pílula anticoncepcional no Brasil (1960-
1980)”, afirmou que o destino dos contraceptivos era diminuir as numerosas famílias pobres sob
um recorte racial. Contudo, as mulheres das camadas médias “apresentaram uma vertiginosa queda
na fecundidade e mudaram sensivelmente as relações de gênero” (PEDRO, 2010, p. 141). O medo
de uma explosão populacional que se via na mídia até os anos de 1980 era “uma preocupação
eminentemente racista. A questão é o crescimento da população não-branca” e pobre. (PEDRO,
2010, p. 142).
Malthus propunha que as pessoas se abstivessem das relações sexuais. Já os
neomalthusianos, no final do século XIX, propuseram métodos que separavam a sexualidade da
procriação. Responsabilizando os pobres por sua própria pobreza, surgiram as ligas
neomalthusianas, muitas comandadas por mulheres que trabalhavam na área da saúde. Dentre os
argumentos para defender o uso dos contraceptivos estavam: “[...] capacidade dos contraceptivos
de proporcionar a felicidade do casal, e, especialmente, na possibilidade de melhoria da qualidade
da raça, redução dos gastos com assistência social e, consequentemente, com impostos”. (PEDRO,
2010, p. 143).
Nos Estados Unidos, a pílula foi liberada para comercialização em 1960, e, no Brasil em
1962. “Em 1970, no Brasil, foram vendidas 6,8 milhões de cartelas de pílulas anticoncepcionais e,
em 1980, este número subiu para 40,9 milhões.” (PEDRO, 2010, p. 146). Para Pedro (2010, p. 147),
“o investimento no controle da natalidade, no Brasil e nos demais países da América Latina, teve
relação direta com a Revolução Cubana de 1959”. Os governantes capitalistas acreditavam que o
crescimento da população latino-americana poderia servir de aliado à revolução comunista. Já na
Europa, “a quantidade de mortos da Segunda Guerra Mundial, da mesma forma como ocorrera na
Primeira Guerra, provocava a adoção de políticas públicas fortemente natalistas”.
Ao invés de uma revolução comunista como alardeavam, o Brasil viveu a ditadura militar.
De um lado, estavam os antinatalistas, e, do outro, os anticontrolistas, os quais “[...] com a teoria
geopolítica de “ocupação de espaços vazios”, encontravam entre os militares nacionalistas fortes
aliados. Estes argumentavam que a soberania nacional dependia da presença de brasileiros em todas
as regiões do País”. (PEDRO, 2010, p. 149).
Diferentemente do modo como ocorreu na Inglaterra e na França, onde os movimentos
feministas lutaram por informações e gratuidade dos métodos anticonceptivos para todas, no Brasil
não houve luta coletiva. O acesso aos métodos não foi “[...] resultado de reivindicação, luta coletiva,
e, portanto, não poderia estar na memória das mulheres como tendo forte significado para a
autonomia do conjunto das mulheres”. (PEDRO, 2010, p. 154).
As fontes deste artigo foram elaboradas a partir da História Oral Temática (MEIHY;
HOLANDA, 2007). Essa modalidade possibilita que o diálogo gire em torno de um tema, utilizando
um roteiro flexível de questionamentos. Para a pesquisa de Mestrado, foram construídas doze
entrevistas, sendo dez com parteiras que atuaram a domicílio na zona rural e urbana e hospitais da
região sul do Rio Grande do Sul; uma com um médico e outra com uma auxiliar de Enfermagem.
Contudo, neste artigo se utilizam oito entrevistas das parteiras: Cecília dos Santos, Dalva Luçardo,
Erci Maria da Rosa, Eulália Sória, Hilda Macedo, Maria Basilícia Soares, Teresa Machado e Vera
Maria Venske da Silva.
As narrativas foram realizadas e cedidas nas residências das narradoras, entre os anos de
2012 e 2015, e versam sobre os saberes e as transformações do ofício de parteira e as relações de
gênero que se estabeleciam entre as parteiras e as comunidades que atendiam. A riqueza destas
fontes, além do seu ineditismo, pois, nenhuma das entrevistadas havia cedido um relato
anteriormente, deve-se ao fato de que existem poucos documentos sobre a assistência informal aos
partos e a saúde da mulher nesta região do Estado.
As narradoras desta pesquisa compreendem que os métodos contraceptivos não devem ser
incumbências só da mulher. Teresa (2015), contou que muitas parturientes reclamavam que não
conseguiam comprar ou ir ao Posto de Saúde para adquirir um anticoncepcional por morarem em
zonas rurais, por falta de dinheiro, e até por vergonha, e enfatizou o fato da maioria dos maridos se
recusar a usar preservativos. Há uma resistência dos homens com relação aos contraceptivos
masculinos e um desinteresse da ciência em desenvolvê-los ou divulgar os estudos já realizados
(SCAVONE, 1985).
Ondina Leal (1994, p. 132), pesquisando no RS, indicou que a lógica de preparo dos chás
abortivos é a mesma para os chás que evitam a gravidez, não havendo uma distinção entre aborto e
contracepção. “[...] a própria noção de prevenção não se faz presente no domínio da reprodução:
pode-se desfazer apenas aquilo que está feito. O sangue que conforma o feto é o sangue que, não
tendo ocorrido fecundação, seria fluido menstrual.”
Teresa (2015) para referir-se aos abortos chamou-os de “descontos”. Contou sobre os
abortos, possivelmente espontâneos, de sua mãe.

A minha mãe tinha muitos filhos. Ela ganhava de dois em dois anos um, de dois em dois
anos outro. Ela teve nove filhos! Nove que nasceram; fora os descontos. Que assim, às
vezes estava num trabalho pesado. [...] Ela perdeu [...] no início da gravidez com dois
meses por aí, três meses. [...] Por causa do trabalho, as panelas muito grandes, ela era
cozinheira [...].

Depois, Teresa (2015) referiu-se aos seus dois “descontos”:

Não nasceu com tempo, fora de tempo; dois descontos. Uma guriazinha que nasceu de um
ataque de nervos que me deu. Me deu o ataque e dali três dias na criança. Me deu um
ataque de nervos de ver um irmão esguelhando a mulher. E eu comecei a gritar, gritar e
me botei nele. Ainda lutei um pouco com ele. [...] Com oito meses, quase nove. E ela
botou uma perninha pra fora; o corpo já estava morto. Depois que deu aquela agitação
botou a perna pra fora, mas morreu. Aí eu mandei chamar uma vizinha do lado e disse:
‘Dê uma olhada aqui pra mim vizinha, o nenê botou a perna pra fora’. E eu sentia uma
coisa que parecia que pulava. E o outro que eu perdi era pouquinho tempo. Estava na horta
capinando, senti o sangue correndo na perna. Fui olhar e sabia já que ali não tinha mais.
Tinha uns três, quatro meses por aí.

Chama-se a atenção para a diferença entre o aborto do feto que carregava há quase nove
meses e o que ela gestou por pouco tempo. O primeiro, o feto tinha uma “perninha” que colocou
para fora do seu corpo e ele próprio tinha um “corpo” que estava “morto”; era em suas palavras,
um “nenê”. O outro feto, de poucos meses, se desfez, como ela disse: “ali não tinha mais, quando
o sangue escorreu pela perna.” Há uma oposição entre o feto que possui um corpo sólido e o feto
líquido. Poderia se dizer que este é, nesse sentido, mais sangue que gente. Além disso, é notável
que tanto esse último aborto quanto os de sua mãe, gestações de poucos meses, são justificados em
razão do trabalho. Teresa estava capinando e sua mãe carregando pesadas panelas (TERESA, 2015).
As parteiras entrevistadas confirmaram que os chás são um recurso abortivo. Entretanto,
disseram desconhecer quais têm essa indicação e como devem ser preparados e ingeridos, apesar
de muitos deles terem seus efeitos conhecidos popularmente. Leal (1994) dissertou sobre o tema:

O uso destas poções não restringe-se ao uso oral, talvez por isto sejam chamadas de
chapueradas e não de chá. Neste caso, de uso não tão difundido, são usadas como ducha
ou intravaginalmente, associadas com outros procedimentos abortivos. As chapueradas,
que são uma combinação de diversas ervas, erva-de-passarinho, canela, folha de
bergamoteira, ou fervura de vinho, caldo-de-feijão e cachaça—as receitas e os
procedimentos variam em diferentes regiões — têm em comum o fato de que são
ministrados quentes (fervendo), associados a alimentos fortes e medicamentos, também
classificados como fortes, comprados em farmácia. Os medicamentos empregados são
aspirinas ou similares, ingeridos em grande quantidade, ou uma cartela inteira de
contraceptivos orais, ou ainda, Cytotec (medicação para úlcera de verificada eficácia
abortiva) ou outras medicações para o coração. Quanto mais restrita for a venda da
medicação, e quanto mais difícil de consegui-la, mais identificado como forte ele será, e
isto torna-se também uma medida da eficácia do preparado a ser ingerido. (LEAL, 1994,
p. 133, grifo meu).

O fato de ingerir ervas, nem sempre é compreendido como aborto, ainda mais, se for
realizado no princípio da gestação. O aborto, propriamente dito, inclui a intervenção de outra
pessoa, médico/a, parteira ou um/a “especialista” em abortos (SCAVONE, 1985).
Michelle Perrot (2008, p. 70) explicou que até os séculos XVIII e XIX “a morte de uma
criança era considerada uma fatalidade. O bebê ainda não é uma pessoa. O que não quer dizer que
a mãe não sofra com sua morte.” Essa concepção que torna o infanticídio um crime é recente: “[...]
a própria visão do feto, que outrora não tinha nenhuma existência, pela ecografia, torna ainda mais
dolorosa a decisão do aborto.”
Até a Primeira Guerra Mundial, quando começaram as campanhas natalistas na Europa, em
decorrência do grande número de mortos, o aborto era mais tolerado.

O recurso do aborto era muito mais tolerado, pois o feto não representava nada. Parteiras,
curandeiros, médicos clandestinos, prestavam-se a tal prática, mas o faziam às ocultas e
em condições sanitárias quase sempre deploráveis, ligadas à clandestinidade. Era
praticado não somente por mulheres que não eram casadas, mas também por mães de
famílias multíparas que viam no aborto o único meio de limitar o tamanho de uma família
que elas consideravam já suficientemente numerosa. [...] Após a hecatombe da Primeira
Guerra Mundial, as leis de 1920 e 1923 reforçam uma repressão que visa não somente
coibir o aborto, mas também a propaganda anticoncepcional, que tem muita dificuldade
em se fazer ouvir. (PERROT, 2008, p. 71)

“O Segundo Sexo” de Simone de Beauvoir é uma obra que no pós Segunda Guerra Mundial
questionou a maternidade, abordando temas como o aborto e a liberdade sexual. Em sua visão,
poucos assuntos demonstraram tanta hipocrisia da sociedade burguesa quanto o aborto. Abordou a
postura contraditória dos conservadores que tanto falam contra o aborto, mas nada fazem diante a
condição de crianças, quando os pais não conseguem as alimentar e/ou que se tornam vítimas de
um sistema assistencialista falho.
A maternidade forçada leva a deitar no mundo crianças doentias, que os pais serão
incapazes de alimentar, que se tornarão vítimas da Assistência Pública, ou crianças
mártires. Cabe observar, ademais, que a sociedade tão encarniçada na defesa dos direitos
do embrião se desinteressa da criança a partir do nascimento; perseguem as praticantes do
aborto ao invés de procurarem reformar essa escandalosa instituição que chamam
Assistência Pública; deixam em liberdade os responsáveis que entregam os pupilos a
verdugos; fecham os olhos a horrível tirania que exercem "em casas de educação" ou em
residências privadas os carrascos de crianças; e, se recusam admitir que o feto pertence à
mulher que o traz no ventre [...]. (BEAUVOIR, 1967, p. 249).

Para esta autora, os motivos levantados contra a legalização do aborto têm “[...] razões
morais, reduzem-se ao velho argumento católico: o feto possui uma alma a que se veda o paraíso,
suprimindo-o antes do batismo.” Contra argumenta a autora afirmando que a Igreja autoriza e
encoraja a morte de “homens feitos”, quando os encaminha para guerrear, principalmente na luta
contra os infiéis. (BEAUVOIR, 1967, p. 250).
Desde a infância, as brincadeiras estimuladas e tidas como femininas são as bonecas e as
casinhas, para treinar as tarefas de cuidar dos filhos e do lar. A maternidade, assim, é expressa como
um privilégio e uma missão. Mas, quando o homem pede ou ordena que a mulher realize o aborto,
alegando que seu futuro está em jogo, as cartas são reveladas. “O filho não é mais um tesouro
imensurável: engendrar não é mais uma função sagrada: essa proliferação torna-se [...], importuna
[...]. O aborrecimento mensal da menstruação apresenta-se, [...] como abençoado [...].”
(BEAUVOIR, 1967, p. 256).
O recurso ao aborto e às práticas contraceptivas, principalmente, as feitas de modo seguro
são vividas de modos diferentes de acordo com a classe social, tanto na França como abordou
Beauvoir, quanto no Brasil atual.

[...] a existência do banheiro torna sua aplicação mais fácil do que entre os operários e
camponeses privados de água corrente; as moças da burguesia são mais prudentes do que
as outras; [...] A mulher burguesamente casada ou confortavelmente sustentada, [...] leva
grande vantagem; primeiramente obtém muito mais facilmente uma licença para um
aborto "terapêutico"; se necessário, tem os meios de pagar uma viagem à Suíça onde o
aborto é deliberadamente tolerado; nas condições atuais da ginecologia, é uma operação
benigna quando executada por especialista, com todas as garantias da higiene e, se preciso,
os recursos da anestesia. Na ausência da cumplicidade oficial, ela encontra ajudas oficiosas
igualmente seguras: conhece bons endereços, tem bastante dinheiro para pagar cuidados
conscienciosos e sem esperar que a gravidez se ache adiantada: tratá-la-ão com
consideração (BEAUVOIR, 1967, p. 251-252).

O aborto é um tema tabu entre as parteiras. As entrevistadas negam ter atendido abortos
provocados, somente os espontâneos. Cecília mencionou a história de Catarina, parteira que
realizava abortos.
A Catarina era parteira e lá naquele Terceiro [localidade] as moças solteiras ganhavam os
filhos e ela era parteira, mandavam ela matar e ela matava e botava fora. [...] Já morreu há
muitos anos. E ela morreu quando morreram seis crianças. [...] Depois que ela deixou de
ser parteira, ela ganhou seis, tudo num tamanhozinho assim. Seis crianças numa vereda, e
ganhou mortos, todos os pobrezinhos mortos. Fui eu que passei com ela. E ela olhando
pras crianças dizia: ‘é verdade meus filhinhos todos mortos’. Eu disse: ‘isso são as crianças
que tu matava que Deus te deu agora tudo morto’. E fechou os olhos e morreu. Foi
sepultada com as seis crianças. [...] As moças solteiras às vezes ganhavam família e
mandavam ela matar; ela matava e botava fora. (CECÍLIA, 2013, grifo meu).

A fala de Cecília demonstrou repúdio à postura de Catarina e às moças que abortavam. Em


nenhum momento se referiu aos homens que as engravidaram e como isto ocorria, com
consentimento ou estupro. Não pensou na atitude de Catarina como um socorro às jovens que
estavam naquela situação. Em seu entendimento, as mulheres eram culpadas pela gravidez e pelo
aborto.
Vera (2015) narrou que os abortos, geralmente, não eram atendidos no hospital. Eram
encaminhados para o Pronto Socorro e de lá, quando verificado que havia sido provocado, a mulher
era levada para a delegacia.

Quando era aborto a gente atendia só se estava saindo ali, se não ficava na maca mesmo e
já ia pro PS. Aborto não era lá com nós, porque a gente não sabia se era espontâneo,
provocado, não sabia o que tinha acontecido, porque aí contamina tudo. Se foi um aborto
provocado, muitas chegavam e diziam assim: ‘fulana meteu uma agulha de tricô’. Aborto,
a gente não atendia. Só se tivesse saindo que tivesse que tirar ali o fetinho, mas mesmo
assim não ficava com nós. Com nós só feto a partir do 5º mês. Senão, mistura muito, cria
muita polêmica, esse negócio de aborto. [...] Se o aborto fosse provocado, se denunciava
a mulher, mas isto era feito lá no PS. O médico, a assistente social de lá que faziam.
Complicado! (VERA, 2015, grifo meu).

Ao afirmar que o aborto “cria muita polêmica”, Vera está evidenciando que atestá-lo como
espontâneo ou intencional era muito difícil, exceto quando alguém contava, mesmo assim, ficava
mais no âmbito das palavras do que da prova. A denúncia era feita pelo médico ou pela assistente
social, conforme dito. Isto pode indicar que a denúncia possivelmente era acolhida, já que provinha
de profissionais legitimados. Cabe questionar porque as parteiras não realizavam a denúncia?
Talvez, por não ter o prestigioso patamar moral dos médicos ou se negavam em sororidade ao
momento vivido por aquelas mulheres que praticaram o aborto.
Outro ponto importante a ser mencionado é a esterilização feminina, popularmente
conhecida por laqueadura ou ligadura de trompas, como um método praticamente irreversível de
contracepção. É um procedimento que visa tornar a mulher infértil, cortando ou amarrando as
trompas, para evitar que óvulo e espermatozoides se encontrem. No Brasil, tornou-se um processo
rotineiro durante a cesariana, quando as mulheres decidem romper com a possibilidade de uma
nova gestação. Conforme Lucila Scavone (2001, p. 52), “a esterilização se tornou a solução das
mulheres brasileiras (e latino-americanas) para optarem pela não-maternidade”, o que junto
também reforça “o caráter social da maternidade e sua não determinação biológica”.
Dalva (2013) relatou ter feito a laqueadura junto à cesariana por sugestão do médico. “[...]
na segunda [gestação] o doutor fez laqueadura que eu era imperfeita dos ossos. Não abria, não
adiantava esperar pra ganhar e eu já estava com muita idade, aí ele fez laqueadura.” Erci (2012)
também relatou ter optado pela cesariana para junto realizar a ligadura das trompas. Queria evitar
uma nova gestação, pois considerava ter uma idade avançada, 38 anos.
O médico insere-se na vida familiar tornando-se uma espécie de conselheiro respeitável.
“Ao tornar-se um aliado da mulher nos assuntos relativos aos filhos, o médico teve acesso a outros
assuntos específicos às mulheres como a gravidez, o parto, o puerpério e as queixas ginecológicas”
(MARTINS, 2005, p. 652). Todavia, cada vez mais as mulheres estão questionando o controle
médico invasivo/abusivo no parto. “Esta inquietação remeteu, implicitamente, a uma postura
positiva diante da maternidade: uma experiência feminina importante, cujo controle não deveria
escapar às mulheres” (SCAVONE, 2001, p. 53).
Vera contou sobre o abuso dos médicos estagiários que mutilavam a genitália feminina para
estudar no corpo da parturiente:

Quando os residentes examinavam muito, ficava uma vagina que dava pena de ver. É uma
parte muito sensível. Vem um examina, vem o outro examina, vem o outro... Eles ficavam
praticamente estudando no corpo. Isso é uma coisa que eu sempre fui contra. A mulher na
hora do parto, não é um boneco de exposição (VERA, 2015).

Já a parteira Hilda (2015) advertiu que examinava a vulva da parturiente somente para
acompanhar a dilatação, e que ao fazer o exame usava os dedos, por ser uma forma menos invasiva
do que usando ferramentas: “Examinava com os dedos pra pessoa não sentir. Não ia com
estupidez.”
Segundo Ana Paula Vosne Martins (2005, p. 659), os “exames obstétricos são
procedimentos clínicos fundamentais para a transformação do corpo feminino em objeto do saber
e alvo do poder”. O corpo durante esses procedimentos tornava-se um objeto de análise, “[...]
passível de manipulações que só podiam ser realizadas pelo médico”.

O corpo da parturiente devia ser manipulado pelas mãos do médico para que fossem
conhecidas as posições, o que exigia da mulher adotar certas posições e permanecer
imóvel, o que nem sempre ocorria, pois muitas mulheres não aceitavam o toque vaginal e
preferiam movimentar-se quando sentiam as contrações. Alguns médicos aceitavam esses
comportamentos, mas a tendência foi convencer a parturiente de que quanto mais ela
colaborasse com o médico, deixando-se examinar, melhor seria o atendimento e mais
seguros os resultados. (MARTINS, 2005, p. 662).
A mulher, durante os exames, deve evitar expressões, de dor ou prazer. O ideal seria manter-
se imóvel para auxiliar no trabalho do médico e para não comprometer sua moralidade. Caso não
conseguisse manter-se assim, por conta própria, deveria ser imobilizada.
A forma como o parto pode ser conduzido de modo rotineiro, intervencionista e
desrespeitoso, assusta. Este tema, atualmente é uma discussão presente no âmbito da saúde, no
movimento de humanização do parto e tem se tornado pauta política no país a partir do projeto de
Lei nº 7.633, de 2014, que dispõe sobre a humanização da assistência à mulher e ao neonato, durante
o ciclo gravídico-puerperal. Trata-se de um projeto apresentado pelo Deputado Federal Jean Wyllys
(PSOL/RJ).
Várias definições estão sendo criadas para o conceito de violência obstétrica. Simone Grilo
Diniz et al. apontou que a proposição da Venezuela foi a pioneira:

Entende-se por violência obstétrica, a apropriação do corpo e dos processos reprodutivos


das mulheres por profissional de saúde que se expresse por meio de relações
desumanizadoras, de abuso de medicalização e de patologização dos processos naturais,
resultando em perda de autonomia e capacidade de decidir livremente sobre seu corpo e
sexualidade, impactando negativamente na qualidade de vida das mulheres. (República
Bolivariana de Venezuela, 2007, p. 30 apud DINIZ et al., 2015, p. 3).

Durante a realização da pesquisa de opinião, “Mulheres Brasileiras e Gênero nos Espaços


Público e Privado”, divulgada em 2010, 25% das mulheres entrevistadas relataram ter sofrido
violência obstétrica. Isso significa que uma em cada quatro brasileiras foi de alguma forma violada,
durante o momento de dar à luz. Os itens questionados foram: a realização de um exame de toque
doloroso; se foi negada medicação para acalmar a dor; se foi informada sobre os procedimentos;
negação de atendimento; assédio sexual; gritos; xingamentos e outras humilhações (Fundação
Perseu Abramo, 2010).
De acordo com Diniz et al. (2015, p. 4), há uma proporção entre vulnerabilidade da mulher
e violência obstétrica. “Assim, mulheres pobres, negras, adolescentes, sem pré-natal ou sem
acompanhante, prostitutas, usuárias de drogas, vivendo em situação de rua ou encarceramento estão
mais sujeitas à negligência e omissão de socorro”.
Cabe ressaltar que essa pesquisa não ignora o fato de que algumas parteiras também não
respeitavam as escolhas das parturientes. Elas impunham seu poder de parteira e, muitas vezes, a
experiência de “parideira”, principalmente, com as mulheres que estavam fazendo sua “primeira
viagem”. Conforme indicou Maria Basilícia:

Olha, tu sabe, que as mães de primeiro parto, muitas e muitas eram melhores que aquelas
velhas de quinto, sexto parto. [...] porque já tinham conhecimento, mas eu gostava mais
de atender paciente do primeiro parto. Que tu conversava com elas, tu explicava e elas
faziam aquilo que tu pedia e as velhas não, já eram acostumadas a fazer assim e ficavam.
(MARIA BASILÍCIA, 2013).
Contudo, a autora não se referirá a essa imposição de poder das parteiras para com as
parturientes como violência obstétrica, por compreender que esta é uma violência
institucionalizada, legitimada pelo saber acadêmico e pelas relações de gênero. Nas palavras de Ana
Colling (2014), o discurso médico permanece como no tempo de Aristóteles e Hipócrates servindo
para justificar um lugar de submissão à mulher. “[...] comprova-se novamente a teoria, ainda hoje
aceita, de que o homem é a medida de todas as coisas; [...] a anatomia feminina vista como
interior e a masculina como exterior, mais perfeita”. (COLLING, 2014, p. 78-80).
A Rede Parto do Princípio elaborou o dossiê intitulado “Violência Obstétrica: parirás com
dor” para a CPMI da Violência Contra as Mulheres em 2012. Neste material citaram algumas das
frases ouvidas pelas pacientes:

Na hora que você estava fazendo, você não tava gritando desse jeito, né?
Não chora não, porque ano que vem você tá aqui de novo.
Se você continuar com essa frescura, eu não vou te atender.
Na hora de fazer, você gostou, né?
Cala a boca! Fica quieta, senão vou te furar todinha. (Rede Parto do Princípio, 2012, p.
2).

Para Scavone (1985), a falta de diálogo entre o médico e suas pacientes, a ausência de
informação e a forma de examiná-las é a causa do descrédito e desconfiança das mulheres para com
os médicos.
Um assunto pouco abordado, e que não é compreendido no âmbito da saúde como um
direito reprodutivo, é a quarentena. Soraya Fleischer (2007), pesquisando em Melgaço, Pará, contou
sobre uma de suas saídas de campo e suas experiências com esse tema.

Numa das vezes em que avistamos Filó, D. Dinorá me explicou: “Ih, minha filha, o marido
dessa daí deu muito nela quando ela estava quarentando. Não respeitou ela. Aí, o parto
subiu para a cabeça. Aí ela ficou doida”. Filó, negra, muito magra e relativamente baixa,
era uma das três moças que eu via vagar pela cidade, banhar-se no rio, remexer as latas de
lixo. Ela não conseguiu quarentar, descansar, ficar dentro de sua rede amamentando seu
recém-nascido. Provavelmente, logo teve que se levantar para arrumar a casa, cozinhar,
atender aos pleitos sexuais do marido. Provavelmente, à beira de dores e exaustão, em
algum momento, negou-se a atender alguma dessas tarefas e recebeu safanões e pontapés
como resposta. (FLEISCHER, 2007b, p. 82, grifo meu).

A quarentena é um período de quarenta dias de repouso à parturiente logo após o parto. Em


alguns casos, também é chamado de puerpério, período pós-parto. Para os adeptos desta última
definição, geralmente, não há um estabelecimento de dias de repouso. O que definirá o fim do
período é o reestabelecimento da mulher. Para algumas parteiras, a quarentena era fundamental e
pediam ao marido e às parentas mais próximas que auxiliassem.
Eulália (2013) afirmou que pedia a quarentena e fez um interessante adendo: “Sim, guri
homem é quarenta dias, guria mulher pode ser nos trinta dias”. A parteira está se referindo
especificamente ao retorno as atividades sexuais. Quando questionada sobre a diferença, não soube
relatar. Dalva (2013), também fez a mesma observação: “Não sei se era impressão das mais antigas
que eram acostumadas... elas sempre diziam que quando é menino a pessoa tem que se cuidar, ainda
mais, que a guria não é tanto.”
Algumas parteiras relataram que os bebês do sexo masculino eram maiores e, por vezes,
tornavam a passagem para o nascimento mais complicada. Possivelmente, reside aí a diferença de
dias a mais da quarentena para quando o recém-nascido é “menino”.
As parteiras afirmaram que sabiam se o marido estava respeitando o resguardo e se a
comunidade falava mal do homem que não obedecia ou apressava o término da quarentena. O
cálculo era bastante simplificado; bastava saber o período entre os nascimentos dos filhos. Não se
levava em conta o fato de nascimentos prematuros ou o período da concepção. Sendo que cada
parto mobilizava a comunidade inteira, os vizinhos, as comadres, os parentes sabiam e socializavam
a notícia da chegada do recém-nascido para aqueles mais afastados.
Todavia, a parteira (que ia a domicílio, tanto a rural quanto a urbana) era quem detinha a
convicção e o poder moral de apontar se a quarentena havia sido burlada, pois durante o puerpério
fazia visitas periódicas, muitas vezes, diárias à casa da parturiente. Observava a genitália e mesmo
que não o fizesse só o “clima” entre marido e esposa era suficiente para saber se já haviam retomado
as relações sexuais.
Cabe enfatizar que o não respeito à quarentena era considerado um erro e uma violência do
homem. Mesmo que a mulher tivesse interesse em retomar a atividade sexual, por desejo próprio
ou por medo de “perder” o marido ou por necessidade de trabalhar, isto não era considerado. A
violação da quarentena é percebida como uma violência de gênero, praticada pelo homem.
Portanto, as parteiras exerciam, de certa forma, uma autoridade moral, competente e
reconhecida pela comunidade para avaliar as condutas sociais, tanto das mulheres que praticavam
abortos, quanto dos homens que violavam a quarentena de suas companheiras. Mesmo que, por
vezes, provocassem um distanciamento social das outras parteiras, “as aborteiras” e das mulheres
que recorriam à prática do aborto, entendiam que tinham uma missão de zelar pela saúde das
mulheres.

BEAUVOIR, Simone. O segundo sexo: a experiência vivida. Rio de Janeiro: Nova Fronteira,
1967, v. 2.
COLLING, Ana Maria. Tempos diferentes, discursos iguais: a construção do corpo feminino na
história. Dourados, MS: Ed. UFGD, 2014.

CORRÊA, Sonia; ALVES, José; JANNUZZI, Paulo. Direitos e saúde sexual e reprodutiva: marco
teórico-conceitual e sistema de indicações. UNFPA-Brasil, ABEP e IBGE. Rio de Janeiro,
setembro de 2003. Disponível em: <https://goo.gl/8zYt06>Acesso: 21 nov. 2016.

DINIZ, Simone Grilo. et. al. Violência obstétrica como questão para a saúde pública no brasil:
origens, definições, tipologia, impactos sobre a saúde materna, e propostas para sua prevenção.
Journal of Human Growth and Development. v. 25, n. 3, São Paulo, p. 1-8, 2015.

FLEISCHER, Soraya Resende. Sangue, leite e quarentena: Notas etnográficas sobre o puerpério
na cidade de Melgaço, Pará. Campos, 8 (2), p. 81-97, 2007.

FUNDAÇÃO PERSEU ABRAMO. Pesquisa de opinião: “Mulheres Brasileiras e Gênero nos


Espaços Público e Privado”. 2010. Disponível em: <https://goo.gl/hkgnBv> Acesso em: 09 jan.
2017.

LEAL, Ondina. Sangue, fertilidade e práticas contraceptivas. In: ALVES, Paulo Cesar;
MARTINS, Ana Paula Vosne. A ciência dos partos: visões do corpo feminino na constituição da
obstetrícia científica no século XIX. Estudos feministas, 13 (3), p. 645-665, 2005.

MEIHY, José Carlos Sebe Bom; HOLANDA, Fabíola. História oral: como fazer, como pensar.
São Paulo: Contexto: 2007.

MESQUITA, Cecília Chagas de. Saúde da mulher e redemocratização: ideais e atores políticos
na história do PAISM. 157 f. Dissertação (Mestrado em História das Ciências) – Fundação
Oswaldo Cruz, FIOCRUZ, Rio de Janeiro, 2010.

PEDRO, Joana Maria. A trajetória da pílula anticoncepcional no Brasil (1960-1980). In:


PERROT, Michelle. Minha história das mulheres. São Paulo: Contexto, 2008.

REDE PARTO DO PRINCÍPIO. Violência obstétrica: “Parirás com dor”. 2012. Disponível em:
<https://goo.gl/mFjSJ9> Acesso em: 09 jan. 2017.

SCAVONE, Lucila. Maternidade: transformações na família e nas relações de gênero.


Interface - Comunic, Saúde, Educ, v.5, n. 8, p.47-60, 2001.

______. As múltiplas faces da maternidade. Cad. Pesq., São Paulo (54), p. 37-49, 1985.
Cecília dos Santos. Parteira. Entrevista concedida a Eduarda Borges da Silva. Realizada na casa
da entrevistada, Piratini, 2012.

Dalva Luçardo. Parteira. Entrevista concedida a Eduarda Borges da Silva. Realizada na casa da
entrevistada, Piratini, 2013.

Erci Maria Rosa. Parteira. Entrevista concedida a Eduarda Borges da Silva. Realizada na casa da
entrevistada, Pelotas, 2012.

Eulália Sória. Parteira. Entrevista concedida a Eduarda Borges da Silva. Realizada na casa da
entrevistada, Piratini, 2013.

Hilda Macedo. Parteira. Entrevista concedida a Eduarda Borges da Silva. Realizada em Pelotas,
2015.

Maria Basilícia Soares. Parteira. Entrevista concedida a Eduarda Borges da Silva. Realizada na
casa da entrevistada, Piratini, 2013.

Teresa Machado. Parteira. Entrevista concedida a Eduarda Borges da Silva. Realizada na casa da
entrevistada, Pelotas, 2015.

Vera Maria Venske da Silva. Parteira. Entrevista concedida a Eduarda Borges da Silva. Realizada
na casa da entrevistada, Pelotas, 2015.
Cristina Furlan Zabka

O trabalho apresentado, a seguir, integra a tese de doutorado intitulada Memória e


Caminhos do Centro de Extensão Universitária da PUCRS, que se propõe a estudar a construção
narrativa acerca do Centro ao longo da sua existência, através do uso de fontes orais.
Nesta discussão, procura-se demonstrar a existência de uma identidade individual
ideológica, através das narrativas dos profissionais do Centro em relação à sua implantação e
manutenção de suas atividades até o presente, identidade essa alinhada com o ideal da missão
marista que caracteriza a instituição. Cabe aqui lembrar que a História Oral institucional combina
interesses internos e externos das corporações. E isso se dá não apenas por arrolar etapas do
desenvolvimento da entidade, mas também por possibilitar a definição da compatibilidade entre o
projeto institucional e a identidade dos participantes (MEIHY, 2011).
A identidade ideológica, no entanto, não será o único objeto da análise. Aprofundando a
discussão sobre a construção narrativa dos profissionais no aspecto da relação entre memória e
identidade, percebe-se que algumas representações construídas sobre o passado apresentam pontos
de divergência em relação à identidade dos indivíduos com a ideologia institucional. Na relação
entre indivíduo e instituição, sabe-se que, em grande parte, as ações atribuíveis aos indivíduos não
são feitas por eles na qualidade de indivíduos, mas na medida em que cumprem um papel
institucional. Inversamente, para compreender ações atribuíveis a indivíduos, é preciso fazer
referência aos fatos institucionais no interior dos quais elas se exercem (RICOEUR, 1994).
Os depoimentos aqui utilizados correspondem a duas fontes orais, que são a do diretor do
Centro, que participou do projeto de implantação do mesmo, em 1980, e a de uma professora, que
trabalha no local, desde 1983.
Na dinâmica da produção de documentos orais, a questão das identidades adquire, portanto,
uma dimensão especial, traduzida pelo reconhecimento das similitudes e das diferenças, mediante
o afloramento de lembranças e a construção das representações sobre o passado (DELGADO,
2010).
Como a narrativa da fonte oral representa uma construção a partir das nossas percepções e
lembranças, precisamos ter sempre em mente que as memórias que escolhemos para recordar e
relatar (e, portanto, relembrar), e como damos sentido a elas, são coisas que mudam com o passar
do tempo (THOMPSON, 1997).

* Médica de Família e Comunidade do Centro de Extensão Universitária Vila Fátima/PUCRS; professora da


Escola de Medicina da PUCRS;doutoranda do PPG de História da PUCRS.
Assim, começa-se pela origem do Centro de Extensão, uma vez que esse aspecto precisa
ser destacado porque auxilia na compreensão da construção narrativa acerca da identidade
individual, segundo a missão marista e os modos de adesão e permanência dos profissionais que
integram o Centro. A identificação dos profissionais com a instituição está representada em
narrativas que, encadeadas de forma coerente e estruturada, centram-se em uma temática
eminentemente social.
Ideologicamente, a extensão integra o marco referencial da PUCRS de maneira a
estabelecer, “como uma de suas missões essenciais, os serviços de extensão universitária,
especialmente aos mais necessitados, visando à promoção humana [ ]”. (PUCRS, 1990).
O enfoque social da missão institucional pode ser reforçado através da noção de que “a
nossa preferência deve ser pelos excluídos da sociedade e por aqueles que, por causa da sua pobreza
material, não têm acesso à saúde, a uma vida familiar equilibrada, à escolarização e à educação nos
valores” (Comissão Interprovincial de Educação Marista, 2003).
Dessa forma, a primeira experiência em extensão da universidade acontece junto ao Projeto
Rondon, a partir de 1972, quando a PUCRS iniciou suas atividades no Campus Avançado Alto
Solimões, no Estado do Amazonas (TOALDO, 1977). Ainda na década de 1970, entretanto, já se
iniciava a discussão em relação a uma obra social que envolveria a comunidade universitária, em
uma vila popular próximo ao Campus central. Esse projeto, chamado Campus Aproximado Vila
Nossa Senhora de Fátima, foi concretizado em agosto de 1980 (BERGAMASCHI, 1998).
Aqui, começa-se a examinar a construção narrativa das fontes orais a respeito do início do
projeto, ficando evidente a identificação dos dois depoentes com o aspecto social da proposta.

Quando eu comecei, eu fui convidado para dar aula na PUC, na Faculdade de Medicina,
em 1980. Existia um grupo na Reitoria, com representantes de diversas unidades, que se
reunia para implementar um programa de extensão, junto à uma comunidade
desfavorecida de Porto Alegre. Tendo em vista que a universidade já atuava no Alto
Solimões, lá no Amazonas, e eles queriam então trazer a universidade para atuar em uma
comunidade próxima, também. Então, eu fui designado pela Faculdade de Medicina, para
fazer parte desse grupo. E eu tinha alguma experiência nesse tipo de atividade e propus,
elaborei um projeto e apresentei para o grupo. [Diretor].

Eu vim para cá porque quem pensou a Pediatria no Centro de Extensão foi a doutora Hebe
Torino, talvez uma das poucas pessoas no Brasil que trabalhava com Pediatria Social. Eu
fui aluna dela na UFRGS, sempre gostei dessa área, e fui monitora dela. Então, quando
surgiu uma oportunidade, ela me convidou para trabalhar aqui. Sempre me identifiquei
muito com o projeto aqui. Então, comecei a me envolver mais do que a carga horária que
eu tinha como professora. [Professora].
Nesses trechos dos depoimentos, passagens como “eu tinha alguma experiência nesse tipo
de atividade” e “Sempre me identifiquei muito com o projeto aqui”, entre outras, demonstram uma
construção narrativa que relaciona a identidade do indivíduo com o aspecto social do projeto
institucional. Recorrendo a Pollak (1992), temos que a memória é um elemento constituinte do
sentimento de identidade, tanto individual como coletiva, na medida em que ela é também um fator
extremamente importante do sentimento de continuidade e de coerência de uma pessoa ou de um
grupo em sua reconstrução de si. A construção de si, permeada por uma questão de identidade
ideológica, reflete a construção de uma narrativa coerente com tal aspecto, extraindo da memória
os elementos necessários à estruturação da narração.
Alberti (2008) também relaciona a construção de uma identidade ligada a contextos
históricos e culturais e a trajetórias individuais, se constituindo como resposta a uma experiência.
A identidade não está dada de antemão, ela constrói-se ao longo do tempo. E o tempo torna-se
tempo humano, na medida em que está articulado de modo narrativo (RICOEUR, 1994).
Assim, temos nesses trechos dos depoimentos, construções narrativas estruturadas em
lembranças que remetem à identificação dos indivíduos com a ideologia institucional, de traços
marcadamente sociais, influenciando o modo de adesão dos profissionais ao projeto.
A memória mobilizada nas fontes orais pode constituir-se, dessa maneira, como
fundamento de processos identitários, referindo-se a culturas, comportamentos e hábitos coletivos,
uma vez que o relembrar individual – especialmente aquele orientado por uma perspectiva histórica
– relaciona-se à inserção social e também histórica de cada depoente. O que talvez possa-se atribuir
a essas duas narrativas é que as identidades são representações coletivas contextualizadas e relativas
a uma instituição. Dessa forma, a identidade materializa-se em expressões e formas originais e
específicas, aqui neste caso, ideológica. Identidades, representações e memórias encontram-se
interrelacionadas. Por meio da memória, os coletivos e os indivíduos podem, por exemplo, resgatar
identidades ameaçadas e construir representações sobre sua inserção social e sobre sua cultura
(DELGADO, 2010).
A identidade, como espaço de construção do indivíduo, parece ser um lócus privilegiado
onde pode-se observar o funcionamento do paradigma narrativo em termos de negociação de
significados entre os acontecimentos e o modo como o indivíduo os significa. (VIEIRA;
HENRIQUES, 2014).

Além de considerar-se o aspecto relacional entre memória, narrativa e identidade, pode-se


observar uma dupla representação na construção narrativa dos depoentes. A primeira representação
relaciona-se ao enfoque social “de ajuda aos necessitados” e “preferência pelos excluídos”. Os
seguintes trechos dos depoimentos devem demonstrar tal constatação:
A população era muito descrente desse tipo de proposta, porque já havia acontecido outras
tentativas, e não tinham sido levadas adiante, porque as dificuldades eram imensas. Dá
para imaginar? Essa população não tinha recolhimento de lixo, não tinha água, sabes o que
é isso? Não tinha água. A água só chegava de noite numas bicas que existiam nas ruas.
Eram quatro ou cinco bicas, então imagina. Não tinha recolhimento de lixo. Então as
dificuldades eram imensas. (Diretor).
Nós tínhamos muita desnutrição, muito desnutrido. Tanto é que depois surgiu o Centro de
Reabilitação Nutricional para isso, um projeto que surgiu em 1986 ou 1987, com a LBA,
que tinha uma proposta que era de entrega de leite, porque, naquela época, se amamentava
pouco, e se alimentava as crianças com leite artificial. (Professora).

A segunda representação relaciona-se ao enfoque educacional que visa “a promoção


humana”, e que considera os que “não têm acesso à saúde [...] e à educação”.

[A LBA também tinha] uma proposta educacional, que aqui a gente conseguiu fazer de
um jeito muito bom. Se conseguiu reabilitar muitas crianças, envolvendo a mãe e fazendo
ela entender que a desnutrição é uma doença geradora de outras doenças. Morria muita
criança de complicação, de pneumonia, etc. [Têm fotos dessas ações]. Era um grupo
semanal, com uma estagiária da Nutrição e supervisão de uma nutricionista. A estagiária
era da LBA, era uma estudante de Nutrição. A minha mãe trabalhava aqui junto, como
voluntária, ela era educadora sanitária, que, na verdade, é a primeira versão de atendimento
em casa, da década de 1940. Buscavam as crianças em casa, faziam vacinas, faziam
mamadeiras para as crianças.
(Professora).
Bom, nós fizemos ‘n’ cursos, na nossa história de capacitação profissional, ‘n’ cursos.
Depois alguns até conseguiram empregos (Diretor).
Foi o primeiro curso que a gente fez [o de formação de agentes de saúde]. Nós fizemos aí
vários sábados, a gente veio aí trabalhar com eles. Ensino em relação a lixo, a controle de
vetores. (Professora).

Usa-se aqui o termo representação no sentido dado por Candau (2012) que, ao admitir o
uso pouco rigoroso, metafórico, da identidade (cultural e coletiva), a considera certamente uma
representação. De maneira constantemente renovada, os indivíduos percebem-se membros de um
grupo e produzem diversas representações quanto à origem, história e natureza desse grupo. Os
trechos dos depoimentos anteriores são exemplos de como a construção narrativa, nos dois casos,
representa a natureza de auxílio social e educacional do projeto e, indiretamente, da instituição.
A relação entre representação e narrativa merece aqui algumas considerações.
A narrativa é uma das ferramentas utilizadas pelos indivíduos para construir suas
representações do mundo. Filosoficamente falando, a narrativa é construtivista – uma visão que tem
como premissa que a principal função da mente é a construção do mundo, quer seja através das
ciências ou das artes. A representação de nossa experiência de vida é, portanto, uma narrativa, e nós
utilizamos a narrativa como uma ferramenta, a fim de organizar nosso contato com o mundo em
termos de uma experiência inteligível. História e linguagem são dois elementos fundamentais à
construção narrativa da identidade. É através da narrativa que o sujeito dá significado à sua história
e planeja suas ações futuras. Cada indivíduo ocupa determinadas posições históricas ou
desempenha determinados papéis ao longo de sua história, os quais se organizam em um processo
de desenvolvimento que delimita o campo interpretativo de seu entendimento e define a sua versão
narrativa da história de vida. Essa dialética entre indivíduo e contexto historicamente situado parece
ser fundamental para a compreensão de como o sujeito constrói significados a partir da realidade
vivida (VIEIRA; HENRIQUES, 2014).
Não que o projeto do Centro de Extensão não tenha outros aspectos que possam merecer
atenção, além das ações social e educacional. A questão é que essas duas são representações sobre
o passado expressas nas construções narrativas dessas fontes orais específicas, provavelmente
porque tais representações ainda conferem sentido para a narrativa presente dos depoentes
(lembrando que ambos aderiram ao projeto na sua origem).

Como foi dito no início desta análise, a construção narrativa das fontes orais, aqui
exploradas, constituem, até certo ponto, uma identidade individual em consonância com a da
instituição. Como no coloca Connerton (1993), no que diz respeito, em particular, à memória social,
constatamos que as imagens do passado legitimam geralmente uma ordem social presente.
Entretanto, alguns aspectos dos depoimentos parecem dissonantes da construção narrativa das
fontes apresentadas até aqui.
Considere-se os seguintes trechos dos depoimentos:

E aí, com as instalações maiores, nós conseguimos trazer mais unidades acadêmicas, que
vinham desenvolver seu currículo. Nós sempre cuidamos que as atividades fossem
curriculares. Não eram voluntárias. Sabe como é, começa e não dá sequência. (Diretor).
Foi a época [o início do projeto] que mais se trabalhou com voluntariado. Porque também
voluntariado aqui para nós nunca foi uma grande experiência, porque as pessoas vinham
e achavam: “Ai, que bom fazer alguma coisa pelos pobres” e tal, mas aí achavam outra
coisa para fazer e iam embora. (Professora).

Nesse ponto, é possível considerar que há uma divergência na construção narrativa em


relação à identificação com a ideologia da instituição. Até aqui, viu-se uma narrativa perpassada
por diversos pontos de convergência entre as identidades individual e institucional. No entanto,
paradoxalmente, a construção narrativa das fontes orais demonstra o que parece ser uma descrença
em relação ao trabalho voluntário, como se esse representasse uma certa ameaça à permanência e à
continuidade do projeto de extensão. Tal descrença diverge, em parte, da identidade institucional,
que tem no voluntariado uma das prerrogativas de sua atuação. Pode-se observar, além disso, que
está ausente na narrativa a percepção de que houve uma institucionalização da extensão ao torná-la
curricular, atitude que poderia representar um fortalecimento do projeto ou mesmo sua legitimação.
Um último ponto da construção narrativa de uma dessas fontes ainda merece destaque.
Observe-se os seguintes trechos:

A relação com a comunidade sempre foi boa. Mesmo naquela época, a gente conhecia
mais as pessoas do que conhece hoje, conhecia mais as famílias. Nada aqui era asfaltado,
era terra, a gente vinha de Kombi, de vez em quando atolava. E tinha uma resistência maior
dos alunos do que a gente tem hoje. Os alunos vinham da universidade, do hospital, e
achavam que isso aqui era de última. E tinha um movimento assim, uma coisa que as
pessoas diziam que quem trabalhava em unidade básica de saúde é porque sabia menos,
era de menor qualidade, então isso de alguma maneira perpassava para os alunos. Claro
que depois eles chegavam e viam que a gente gostava de estar aqui e as coisas
melhoravam. Mas, o primeiro momento era de resistência, coisa que agora não acontece
de jeito nenhum, pelo contrário, eles fazem questão de vir para cá. Mudou muito. O estágio
sempre foi obrigatório, mas, mesmo assim, tinha resistência. Não queria sair porque ia
sujar o sapato, achava que tudo que era pobre era ladrão, merecia ganhar umas esmolas,
para se proteger. Ideologicamente era mais complicado, eu acho, agora não, as pessoas
gostam, os alunos gostam, a gente criou uma tradição. (Professora).

Eu acho que é uma virtude do serviço, é que só fica gente que gosta, né. As pessoas
achavam sempre que isso aqui podia ser um trampolim para ir para dentro do hospital, e
isso acabou. Ou a pessoa gosta e fica ou I’m sorry, não dá. E os alunos reconhecem isso.
A gente não vem de costas, a gente não quer empurrar os pacientes para rua, não quer
diminuir as fichas, a gente vem e fica, e faz, e trabalha, enfim, e tem uma relação boa, e
ninguém se sente explorado. (Professora).

Analisando cuidadosamente tais construções narrativas, deve-se concordar com Ricoeur


(1994) a respeito de que seguir uma história, com efeito, é compreender as ações, os pensamentos
e os sentimentos sucessivos enquanto apresentam uma direção particular (directedness). Que
pensamentos e sentimentos, então, mobilizam uma narrativa de exaltação do serviço de maneira
que “agora [os alunos] fazem questão de vir para cá” se, a partir do momento em que uma atividade
torna-se curricular, ou seja, obrigatória, o real interesse ou gosto pela atividade perde, em parte, sua
relevância?
Pode-se pensar que, sem qualquer poder de alteração do que passou, o tempo, entretanto,
atua modificando (no caso dessa construção narrativa) ou reafirmando o significado do que foi
vivido e a representação individual ou coletiva sobre o passado (DELGADO, 2010). Em um
depoimento que exprime que “as pessoas diziam que quem trabalhava em unidade básica de saúde
é porque sabia menos, era de menor qualidade, então isso de alguma maneira perpassava para os
alunos. Claro que depois eles chegavam e viam que a gente gostava de estar aqui e as coisas
melhoravam”. Construir uma narrativa que expressa uma ideia de aprovação modifica, de fato, o
significado da vivência passada, sendo o passado representado como uma dificuldade que foi
vencida. O segundo trecho do depoimento reforça tais aspectos: “os alunos reconhecem isso, a gente
não vem de costas, a gente não quer empurrar os pacientes para rua, não quer diminuir as fichas, a
gente vem e fica, e faz, e trabalha”.
No que se refere à memória em geral, podemos observar que a experiência do presente
depende em grande medida do conhecimento do passado. Entende-se o mundo presente num
contexto que se liga causalmente a acontecimentos e a objetos do passado e que, portanto, toma
como referência acontecimentos e objetos que não se vive ao viver-se o presente. E se viverá o
presente de forma diferente de acordo com os diferentes passados com que se pode relacioná-lo.
Daí a dificuldade de extrair o passado do presente: não só porque os fatores presentes tendem a
influenciar – alguns diriam mesmo distorcer – as recordações do passado, mas também porque os
fatores passados tendem a influenciar, ou a distorcer, a vivência do presente (CONNERTON, 1993).

Entre memórias e representações, os indivíduos constituem sua identidade. E é essa


identidade que funcionará, com efeito, como matriz para a construção narrativa desses indivíduos
acerca de sua vida cotidiana, suas relações, suas experiências.
Pôde-se analisar aqui a construção narrativa de duas fontes orais em relação ao seu modo
de adesão a um projeto de extensão, algumas representações presentes nessas narrativas que
reforçam a identidade de origem e também alguns aspectos divergentes na narrativa, quando se fez
necessário modificar o significado do que foi vivido e a representação individual (mas não
institucional) sobre o passado.
Assim, no trabalho com fontes orais, o interesse está na representação da construção
narrativa e sua relação com memória e identidade, mais do que na verdade dos fatos ou na tendência
de valores do que foi narrado.

ALBERTI, V.; PEREIRA, A. A. Possibilidades das fontes orais: um exemplo de pesquisa. Anos
90, Porto Alegre, v. 15, n. 28, p. 73-98, dez. 2008.

BERGAMASCHI, J. F. Histórico do Campus Aproximado. In: Uma realidade revisitada: II


diagnóstico de comunidade e avaliação do Campus Aproximado da Vila Fátima. Porto Alegre:
PUCRS, 1998.

Comissão Interprovincial de Educação Marista (1995-1998). Missão educativa marista: um


projeto para nosso tempo. São Paulo: SIMAR, 2003.
CANDAU, J. Memória e identidade. São Paulo: Contexto, 2012.

CONNERTON, P. Como as sociedades recordam. Oeiras: Celta, 1993.

DELGADO, L. A. N. História Oral: memória, tempo, identidades. Belo Horizonte: Autêntica,


2010.

MEIHY, J. C. S. B. Guia prático de História Oral: para empresas, universidades, comunidades,


famílias. São Paulo: Contexto, 2011.

POLLAK, M. Memória e identidade social. Estudos Históricos, Rio de Janeiro, v. 5, n. 10, p. 200-
212, 1992.

RICOEUR, P. Tempo e narrativa. Campinas, SP: Papirus, 1994, t. 1.

THOMPSON, A. Recompondo a memória: questões sobre a relação entre a História Oral e as


memórias. Projeto História, São Paulo, v. 15, p. 51-84, 1997.

VIEIRA, A. G.; HENRIQUES, M. R. A construção narrativa da identidade. Psicologia: reflexão e


crítica, 27(1), p. 163-170, 2014.

Entrevista realizada por Cristina Furlan Zabka, com o diretor do CEUVF/PUCRS José Francisco
Bergamaschi, no dia 11 de maio de 2016.

Entrevista realizada por Cristina Furlan Zabka, com a professora Brasília Ache, no
CEUVF/PUCRS, no dia 30 de maio de 2016.
Janete da Rocha Machado*

Todo o curso d’água, por pequeno que seja, é, geralmente, usufruído para a recreação dos
moradores de suas proximidades. E foi assim com o Lago Guaíba e a população que habitava as
margens dele em tempos passados. Mesmo distante mais de cem quilômetros do oceano, a cidade,
emoldurada por belas praias, tornou-se uma opção prazerosa e prática para o recreio da população,
nos meses mais quentes do verão. O Guaíba apresentava, entre o final do século dezenove, e a
primeira metade do século vinte, condições favoráveis ao banho, ao lazer e ao descanso.
Entre as famílias que buscavam lazer à beira do lago estão aquelas oriundas de imigrantes
alemães. Eram comerciantes, industriais, médicos, advogados, políticos, entre outros, que
compunham esse grupo, apreciador dos veraneios nos balneários do Arrabalde da Tristeza, Zona
Sul de Porto Alegre. Desta forma, a ascensão social dessas famílias, aliada às novas práticas de
lazer, permitiu, ao longo dos anos, não só usufruir as férias em lugares aprazíveis, mas também a
concretização do sonho da casa de verão. As chácaras de lazer, muito utilizadas neste período,
configuraram-se, também, em um espaço de sociabilidades, ou seja, de encontros e reuniões de
negócios.
Os grupos buscavam recreação em suas propriedades, proporcionada não só pelas águas
límpidas do Guaíba, mas também pela natureza bastante preservada. Entre as atividades recreativas,
destaca-se a de andar a cavalo, caçar, pescar, velejar e tomar banhos no Guaíba. Os encontros de
famílias estimulavam as relações sociais e de negócios. Alguns balneários eram espaços elitizados,
pois seus ocupantes faziam parte de uma classe privilegiada da sociedade Porto-Alegrense da época.
Uma elite, não apenas econômica, mas também política e intelectual.
Para este grupo estar em uma estação balneária por um determinado tempo pressupunha
variadas experiências. Havia aqueles que vinham em busca apenas do descanso e sossego, pois o
ambiente representava um intervalo em suas vidas. O objetivo era, portanto, o reequilíbrio do
organismo, uma vez que promovia uma interrupção na rotina profissional, marcada pelas exigências
do dia-a-dia. Era a certeza de descansar e também se refrescar na estação do calor e usufruir do
local. A permanência nos balneários da Zona Sul por alguns dias ou semanas levava, desta forma,
ao esquecimento do mundo urbano.
E foi nesses locais encantadores e pitorescos onde ocorreram as reuniões ocasionais de
pessoas que se conheciam ou se queriam conhecer, surgindo aí as aproximações familiares, os
casamentos e os encontros profissionais e políticos. Pois, conforme Azevedo, “[...] a busca de

* PUCRS, Doutoranda em História, apoio CAPES.


repouso, da cura orgânica e psicológica, da variação e do convívio insípido no dia-a-dia eram
procurados pelos estamentos superiores da sociedade, pelos profissionais e altos funcionários
públicos” (1988, p. 34). E esse hábito, mais conhecido por veraneio, acontecia, em povoações
afastadas dos centros das grandes cidades, durante o período de férias escolares, prolongadas por
cerca de três meses, de dezembro a fevereiro. Exatamente era o que se vivenciava nas primeiras
décadas do século vinte à beira do Lago Guaíba.
É importante salientar que muitas dessas famílias, com o passar do tempo, deixaram suas
residências fixas no Centro de Porto Alegre, e instalaram-se em definitivo na casa de veraneio.
Vários foram os fatores que motivaram esse deslocamento, entre eles, certamente, foi, já na época,
a busca por ares mais saudáveis. Sobrenomes conhecidos da Sociedade Porto-Alegrense neste
período, como Bier, Bins, Blessmann, Dreher, Bromberg, Ritter, entre outros, são lembrados, na
região, pelas suas magníficas chácaras de verão à beira do lago Guaíba. O Balneário da Pedra
Redonda tornou-se conhecido pelas propriedades com praia particular, marinas e ancoradouros.
Desta forma, ocuparam o espaço na região, pessoas influentes, não só na política, mas também, em
outras áreas, como comércio e indústria.
Igualmente, surgem, neste cenário, os profissionais liberais, como os médicos e advogados.
Todos eles terão por hábito passar temporadas de verão nos balneários da Zona Sul da cidade. Entre
essas personalidades, destaca-se a do médico e cirurgião geral Dr. Luiz Francisco Guerra
Blessmann.
Médico formado pela Faculdade de Medicina e Farmácia de Porto Alegre (1911), professor
da mesma Universidade, diretor em duas gestões, de 1935 a 1938, e de 1944 a 1956, Luíz Francisco
Guerra Blessmann foi também um importante provedor da Santa Casa de Misericórdia entre os
anos de 1931 e 1933. Destaque na área médica pela fundação da Escola de Enfermagem da
Universidade Federal, a qual possibilitou a formação de um considerável número de enfermeiras.
Como deputado estadual, Guerra Blesmann foi durante um curto espaço de tempo presidente da
Assembleia Legislativa do Estado do Rio Grande do Sul. Em 1960, pela importante trajetória
acadêmica, foi agraciado com o título de professor emérito da Faculdade de Medicina de Porto
Alegre.
Figura 1─ Dr. Blessmann (centro), médicos e enfermeiras. Santa Casa (1948)

Fonte: FRANCO, 2003.


A chácara do Dr. Blessmann na Zona Sul, serviu, inicialmente, para o descanso e o lazer
da família. Guerra Blessmann e Maria, sua primeira esposa, tiveram três filhos: Júlia, Gelsa e
Jorge Olavo. Com a chegada dos netos José Luiz, Maria Isabel, Antônio Carlos, Maria Inês,
Maria Luiza, Maria Beatriz, Maria Lúcia, Maria Alice, Maria e Luiz Francisco, Guerra sentiu
necessidade de estreitar os laços familiares. A relação de afeto vivida com a terceira geração fez o
médico aproveitar melhor os espaços da sua propriedade às margens do Guaíba.
Especialmente nos meses de verão (de dezembro a março), todos costumavam reunir-se
na orla para usufruir da estação mais quente. Lembrando que Maria, a primeira esposa, não
chegou a aproveitar a chácara, pois faleceu muito jovem. Ela também não conheceu
nenhum neto. Nas lembranças da neta podem-se delinear esses momentos preciosos de lazer e
diversão em companhia da família: “Vovô usava o Guaíba, não tanto como nós. Às vezes, nós
insistíamos, e aí ele entrava no rio. Ele entrava, e quando chegava lá no fundo, tirava os óculos,
mergulhava, colocava os óculos novamente e saía. Era esse o banho dele” (KOWARICK,
2017).
Com o passar dos anos, Guerra Blessmann resolveu transformar o local, à beira do
Guaíba, em sua residência fixa. Provavelmente, a busca por tranquilidade e um ar mais puro
tenha sido o motivo da mudança. A questão é que ele gostava muito da Zona Sul. Viúvo
em 1935, casou novamente em 1945 com Elsa Duque Estrada. Elsa foi sua companheira até
a morte em 1972. Sempre residindo na Pedra Redonda, que na época pertencia ao Bairro
Tristeza, foi com a segunda esposa que vivenciou os momentos bons em família e também as
dores de perdas de entes queridos.
A aquisição da chácara ocorreu nos anos de 1940, porém, somente em 1950, após
acidente aéreo1 que vitimou sua filha mais velha, Dr. Blessmann resolveu mudar-se para a
Zona Sul, levando junto com ele parte da família. “Quando a tia Julinha morreu em julho, nós, os
netos, fomos morar com ele, um mês na chácara. A família achou que isso era muito bom.
Nós achamos maravilhoso porque adorávamos ir para lá, e ele também achou” (KOWARICK,
2017).
Com o objetivo de residir na chácara, o médico realizou uma grande reforma, tornando a
propriedade mais confortável e sofisticada. “Lembro-me da casa antes de 1950 que era a casa
antiga de veraneio. Depois o vovô arrumou porque decidiu morar lá, então fez uma casa mais
confortável” (KOWARICK, 2017). E para a reforma tão desejada, Guerra contratou alguns
profissionais de renome em Porto Alegre, naquele período. Um deles foi o engenheiro.
Novamente percebe-se, nas lembranças das netas, a importância daquele período em suas
vidas. “Tudo era meio mágico pra nós. Até o engenheiro que chegava, o Deodoro, num Ford
Bigode Preto com motorista. A chegada dele era uma coisa importante. Ele descia daquele
carro, e o vovô ficava na escada, o esperando” (KOWARICK, 2017).
As lembranças da outra neta não deixam dúvidas sobre os encantos da moradia: “Era
uma casa maravilhosa, com todo o conforto. Tinha um muro com grades e um portão muito
bonito.

1 O acidente aéreo que vitimou a filha mais velha, o genro e o neto também mais velho do médico
Guerra Blessmann ocorreu em 28 de julho de 1950. Mais informações disponíveis no site: https://
pt.wikipedia.org/wiki/Voo_Panair_do_Brasil_099.
bonito. E se via, ao fundo, a casa. Tinha uma alameda. Era uma casa lindíssima. Lareiras de
mármore eram duas e tinha calefação central” (BLESSMANN, 2017). Assim, com a
finalidade de hospedar a todos – familiares e amigos, o médico não poupava esforços
na implementação de melhorias na propriedade. “No andar de cima tinha cinco quartos e
embaixo tinha só o quarto dele. Havia uma sala de jantar com uma mesa imensa, onde
todos sentavam para os almoços em família” (KOWARICK, 2017).

Figuras 1 e 2 ─ Residência na Tristeza - Zona Sul (1950)

Fonte: acervo de Maria Blessmann.

Ele gostava, especialmente, do convívio com os netos, os quais estavam sempre juntos com
ele. “Nos domingos, a família toda almoçava na chácara. No sábado, vovô nos buscava, cada neto
na sua casa, e levava todos para dormir lá. E, no domingo, nossos pais nos buscavam. Então, era
uma convivência com os primos e com ele” (KOWARICK, 2017).
O relacionamento afetuoso com a família, portanto, era uma constante na vida do médico.
Ele amava muito os netos e havia também admiração das crianças por ele. “Foi uma convivência
muito íntima. Vovô vivia sempre rodeado pelos netos. Era uma pessoa que a gente achava muito
importante. Nós o valorizamos sempre, não só como avô, mas como homem público”
(KOWARICK, 2017).
Muitas vezes, os momentos de brincadeiras na chácara com as crianças remetiam ao ofício
de médico ou de professor universitário: “Eu me lembro de quando ele era diretor da Faculdade de
Medicina, e a gente era pequena. Ele colocava uma toga para fazer a entrega dos diplomas, no fim
do ano” (KOWARICK, 2017).
Os natais em família, vividos na chácara, também são lembrados com carinho pelas netas.
Todos os anos, Guerra Blessmann fazia questão de receber em sua casa, não só familiares, mas
também amigos e colegas de trabalho. “Para os natais, o vovô convidava sempre gente que estava
aqui, professores, estudantes, por estarem longe de suas famílias. Eu me lembro que teve um ano
que foram alunas do curso de Enfermagem criado pelo vovô.” (KOWARICK, 2017).
E as comemorações costumavam acontecer sempre em dois momentos: na véspera com um
jantar, e, no dia seguinte, com o tradicional almoço de natal. Desta forma, os jantares e os almoços
natalinos costumavam atrair familiares e amigos em torno da mesa principal da sala de jantar da
chácara, reforçando assim o espírito de confraternização daquela data tão especial. Assim,
conforme relembra Maria Luiza Kowarick, os natais eram celebrados como um ritual: “Os natais
na casa do vovô tinham todo um ritual. É um capítulo à parte. A gente ajudava a arrumar a árvore
de natal. O natal para mim é isso, um sentimento de congregação” (KOWARICK, 2018).

Figura 3 ─ Família reunida. Natal de 1962

Fonte: acervo de Maria Blessmann.

No bairro Tristeza já era tradição a floricultura Winge.2 Muitos recorriam aos serviços
da Família Winge para a entrega do “pinheirinho” (natural) de natal. “O pinheiro chegava no
dia 23 de dezembro. O Walter Winge entregava. Eu sinto até hoje o cheiro da casa com
o pinheiro” (BLESSMANN, 2017). Assim, o espírito natalino imperava na chácara,
envolvendo a todos. “E aí nós arrumávamos tudo com o presépio. E no dia de natal nós
fechávamos a sala, fazíamos uma fila por ordem de idade, e só ficava iluminado o pinheiro.
Aí a gente entrava na sala para receber os presentes” (KOWARICK, 2017). E o papai noel
que era uma tradição natalina sempre aparecia na noite de natal. “Tem outra coisa do Natal
que eu acho importante. É que tinha papai noel que era ele mesmo, o vovô” (KOWARICK,
2017).
Dr. Guerra era um homem muito admirado pela família e pelos amigos, não só
pela importância da Medicina que desempenhava, mas também por sua conduta séria e
personalidade forte. Alguns colegas de trabalho o chamavam de “Berra Blessmann”,
referindo-se aos momentos em que o médico atuava de forma mais enérgica. “O vovô como
médico era uma pessoa muito exigente e ele tinha um pavio um pouco curto. E alguns
médicos da época apelidaram ele de Dr.

2A floricultura Winge foi fundada em 1886, quando Joseph Winge, um juiz alemão aposentado, se mudou para
Brasil em busca de um clima mais ameno. Junto com a família, ele se instalou em um pedaço de terra da zona
Sul de Porto Alegre e iniciou um viveiro de frutíferas. Sem nenhuma formação na área, porém com uma visão
empreendedora, o alemão foi aprendendo as técnicas agrícolas de forma autodidata, por meio de livros.
Atualmente, a floricultura esta na quarta geração da família Winge. Fonte: Site da floricultura. Disponível
em: www.floriculturawinge.com.br Acesso: 28 ago. 2017.
“Berra Blessmann”, porque ele ficava furioso e gritava” (KOWARICK, 2017). Porém, com os
netos essa energia sempre se transformava em carinho e atenção. E isso era percebido por
eles. “Eu me lembro de que conosco ele nunca fez isso. Sempre foi muito
carinhoso” (KOWARICK, 2017).
A ética profissional sempre o acompanhou. Não gostava de interferir quando o assunto
era saúde dos netos e filhos. Quando havia doença, deixava sempre (ou quase sempre) para os
médicos da família resolver. “Quando eu tinha sete anos tive uma congestão pulmonar. Eu
tinha muito resfriado. Quando a gente ficava doente e a mamãe ligava para o vovô, ele
sempre dizia: elas não têm pediatra? Então chama o pediatra.” (KOWARICK, 2017). Porém,
ele não se furtava de dar sua opinião médica sempre que solicitado. “Quando a gente
perguntava, ele dava opinião médica, mas ele não se metia” (KOWARICK, 2017).
Em algumas situações mais sérias, o Dr. Blessmann agia com determinação:
“Quando pequena tinha o pé chato. Aí apareceu um japonês em Porto Alegre. Ele queria me
operar. O vovô ficou furioso e disse que não tinha japonês nenhum que ia enfiar a mão em
mim. Não vai fazer cirurgia coisa nenhuma” (BLESSMANN, 2017). Em outras situações,
agia simultaneamente como avô e médico amoroso. “Mas eu me lembro de que quando eu
tive doente, eu tinha que tomar uma injeção que doía muito. Então ele me dava a injeção,
porque eu ficava sentadinha e ele dizia que não doía tanto e eu acreditava nele e ficava tudo
bem” (KOWARICK, 2017).
Luiz Francisco Guerra Blessmann aparece como um dos precursores da cirurgia
na Faculdade de Medicina de Porto Alegre, e também, no Rio Grande do Sul. A busca por
novos conhecimentos na área o fez viajar para a Europa na década de 1920. O aperfeiçoamento
no exterior em 1927 trouxe inovações também para a Santa Casa, onde trabalhou durante
muitos anos. “O vovô passou um ano na Europa. Levou os filhos, toda a família e até a
empregada. Ele foi estudar em Paris e Berlim. E lá ele estagiou em diversos hospitais.
Falava alemão fluente” (KOWARICK, 2017).
É fato que, durante muitos anos, Dr. Blessmann foi um grande colaborador da Santa
Casa de Misericórdia. A inauguração do Hospital São Francisco, uma homenagem as irmãs
franciscanas que já atuavam na instituição, no ano de 1930, ocorreu no final da gestão de
Aurélio de Lima Py e início da administração de Guerra. Na solenidade esteve presente o
então Presidente do Estado, Getúlio Vargas. É interessante salientar que o momento político
era de extrema indefinição para o presidente, o qual se achava envolvido com a preparação do
movimento revolucionário de 1930.3 Dr. Blessmann viveu até quase os 81 anos de idade.
Faleceu em junho de 1972, no Hospital Moinhos de Vento, após ter sofrido um acidente
vascular cerebral em sua casa na Zona Sul. Após uma longa e profícua trajetória na área
médica do País e do Estado, fica o legado e, principalmente, as lembranças das descendentes,
sem as quais não seria possível essa recuperação de parte de sua história.

3 A revolução de 1930 foi o movimento armado iniciado no dia 3 de outubro de 1930, sob a liderança
de Getúlio Vargas e sob a chefia militar do tenente-coronel Góis Monteiro, com o objetivo imediato de derrubar
o governo de Washington Luís e impedir a posse de Júlio Prestes, eleito presidente da República em 1º de março
anterior. O movimento tornou-se vitorioso em 24 de outubro e Vargas assumiu o cargo de presidente provisório a
três de novembro do mesmo ano (Fonte: FGV/CPDOC).
E isso se confirma nos estudos de Ecléa Bosi, pesquisadora da memória e das
lembranças dos mais velhos. Segundo essa autora, “há um momento em que o homem
maduro deixa de ser um membro ativo da sociedade, deixa de ser um propulsor da vida
presente do seu grupo. Nesse momento de velhice social resta-lhe, no entanto, uma função
própria: a de lembrar” (BOSI, 1994, p. 63). Assim, aos velhos, ou “guardiões do passado”
é dada a função social de lembrar, pois para esses grupos, a lembrança é a sobrevivência
do passado, o qual se conserva no espírito de cada ser humano, aflorando a consciência
na forma de imagens e de lembranças. “O vovô até morrer vivia cercado de gente.
Nós gostávamos de conversar com ele. Os palpites que ele dava, os conselhos eram
importantes. E ele gostava muito da Pedra Redonda” (KOWARICK, 2017), finaliza a neta
Maria Luíza, emocionada pelas lembranças.

Acervo de fotografias antigas da Família Blessmann (Maria).

Acervo do Arquivo do Centro Histórico-Cultural Santa Casa.

AZEVEDO, Thales de. A praia, espaço de socialidade. Salvador: Universidade Federal da Bahia;
Centro de Estudos Baianos, 1988.

BLESSMANN, Maria. Depoimento cedido à autora em 22 de junho de 2017.

BOSI, Ecléa. Memória e sociedade: lembranças dos velhos. São Paulo: Cia das Letras, 1994.

DUMAZEDIER, Joffer. Sociologia empírica do lazer. São Paulo: Perspectiva, 1979.

FRANCO, Sérgio da Costa; STIGGER, Ivo. Santa Casa 200 anos: caridade e ciência. Porto
Alegre: Ed. da ISCMPA, 2003.

HASSEN, M. Fogos de bengala nos céus de Porto Alegre: a Faculdade de Medicina faz 100
anos. Porto Alegre: 1998.

JANETE & PORTO ALEGRE. Blog. Disponível em: <http://janeterm.wordpress.com/>.

KOWARICK, Maria Luiza. Depoimento cedido à autora em 22 de junho de 2017.

MACHADO, Janete da Rocha. O veraneio de antigamente: Ipanema, Tristeza e os contornos


de um tempo passado na Zona Sul de Porto Alegre. (Dissertação de Mestrado) – PUCRS,
2014.
Ronaldo Bernardino Colvero
Juliani Borchardt da Silva **

A prática dos benzimentos reflete vários aspectos de uma sociedade, em especial daquelas
pessoas que a detém simbolicamente, perpassando pela necessidade de cura física, espiritual ou
simplesmente proteção e benção, demonstrando características da cultura, religiosidade, saberes e
imaginário daqueles que benzem e também das pessoas que os procuram. Seu objetivo fundamental
está na obtenção de cura, porém na história, o diálogo entre práticas não científicas de medicina e
profissionais formados na área sempre causou embates e conflitos, exaltando as diferenças, forças
e potencialidades de cada sujeito. Para Boltanski, a primeira diferença que separa a medicina das
classes populares é o vocabulário.

É em primeiro lugar uma barreira linguística que separa o médico do doente das classes
populares, pois a utilização pelo médico de um vocabulário especializado redobra a
distância linguística, devido ao mesmo tempo a diferenças lexicológicas e sintáticas, que
separam a língua das classes cultas das classes populares. (1989, p. 44).

Dessa forma, o benzedor utilizaria uma forma mais fácil e compreensível para explicar e
justificar as doenças àqueles que o procuram, explicando inclusive através de suas representações
a solução para tais problemas, havendo assim uma proximidade muito maior das classes populares
com este tipo de prática, a qual se assemelha a seu público, diferentemente do médico que possui
um perfil (e vocabulário) distinto dos seus pacientes, o que pode acarretar inclusive um
distanciamento entre as partes envolvidas no processo de diálogo e de cura.
Valorizada e respeitada por muitos, desconsiderada e desqualificada por outros, a história
mostra que os conflitos nesse campo sempre foram intensos. Medicina ‘oficial’, caracterizada pelos
profissionais que possuíam diploma superior na área passou a competir espaço com pessoas que,
até então, eram as únicas responsáveis pela cura da população: barbeiros, sangradores, curandeiros,
parteiras, benzedores, mateiros, etc. – figuras importantes e representativas em uma sociedade
carente de estrutura médica e de pessoas qualificadas para o tratamento de doenças complexas.
Weber lembra que:

* Doutor em História pela PUCRS. Prof.º Adjunto da Universidade Federal do Pampa - UNIPAMPA -
Campus São Borja. Professor Efetivo do Programa de Pós-Graduação em Memória Social e Patrimônio da
Universidade Federal de Pelotas.
** Doutoranda em Memória Social e Patrimônio Cultural da Universidade Federal de Pelotas.
Nos vestígios que chegaram até nós, percebemos que os envolvidos nessas práticas não
estavam apenas reagindo aos procedimentos impostos pela Medicina científica. Muitas
delas eram construções dos grupos sociais com os elementos aos quais tinham acesso,
segundo as crenças e rituais tradicionalmente conhecidos por eles. (1999, p. 179).

Para o autor, estas práticas de cura seriam resultado de construções e negociações culturais
e simbólicas destes grupos, refletindo o meio onde viviam, os materiais dos quais tinham acesso e
a religião (ou expressões religiosas) por eles praticada. Todos esses itens seriam determinantes para
justificar e entender estas formas de cura e a resistência por um método de tratamento ‘oficial’ – o
qual teve início no Brasil nos últimos dois séculos com a introdução dos primeiros cursos de
Medicina. Alves reforça e complementa esta ideia afirmando que:

É explicável a indignação frente a esta “exploração da credulidade popular”. Fenômenos


culturais, entretanto, não crescem no vazio. Eles são tentativas de interpretar e resolver
problemas concretamente vividos. Por detrás da opção popular pela “cura divina” se
encontra o desespero quanto à cura humana: a inacessibilidade dos agentes de saúde, o
alto custo dos serviços médicos e dos medicamentos, as barreiras burocráticas que se
interpõem entre o doente e a cura. (ALVES apud VALLE; QUEIRÓZ, 1984, p. 116).

Na carência e inacessibilidade de recursos na área da saúde, resta às comunidades carentes


e sem condições de bancar esses serviços apelar e utilizar os elementos mais disponíveis em seu
cotidiano. Misturam-se, assim, aspectos reais e religiosos na tentativa de compreender e solucionar
os problemas que se apresentavam perante estes grupos. Sendo os benzimentos uma manifestação
explicitada no município de São Miguel das Missões,1 surge a necessidade de uma análise e reflexão
sobre os possíveis conflitos junto aos profissionais da medicina oficial na atualidade. Para isso,
utilizaram-se relatos orais coletados através de entrevistas realizadas com ambas as partes, o que
proporcionou um panorama mais qualificado sobre os aspectos que limitam e aproximam esses
atores sociais, suas fronteiras de negociação e resistências.
No Brasil, o desenvolvimento da Medicina foi gradual ao longo de sua história, sendo
escassos os que possuíam cursos superiores na área, o que abria possibilidades de surgimento de
várias profissões alternativas que tinham como objetivo suprir esta demanda – em especial para as
classes populares e menos favorecidas economicamente. A coroa portuguesa barrou ao máximo a
constituição de universidades em suas colônias justamente para manter uma dependência
tecnológica com a sede, atrasando o desenvolvimento destes cursos e a formação de profissionais
da área médica em território brasileiro. Para Weber,

1São Miguel das Missões, município situado na região noroeste do Estado do Rio Grande do Sul. Possui suas
origens no antigo povoado de São Miguel Arcanjo, datado de 1687, tendo como possível fundador o Padre
Jesuíta Cristóvão de Mendonza. Compôs um dos sete povoados missioneiros construídos no que hoje é Brasil
durante o chamado segundo ciclo missioneiro.
Nesse período, 1806, havia apenas 16 médicos e cirurgiões inscritos em toda a região da
província (Rio Grande do Sul). O atendimento, em caso de doença, era realizado por esses
poucos médicos nas residências dos pacientes. A maior parte da população não tinha
nenhum local ou forma de assistência terapêutica oficializada. Assim, a legislação
estabelecia que eram “permitidos curandeiros” nos lugares que não dispusessem de outros
“cultores da arte de curar”, cuja presença era vista como uma espécie de complemento ou
alternativa à presença dos clínicos diplomados. (1999, p. 182).

Por haverem poucos médicos, nem toda população tinha acesso a estes por questões
financeiras, se tornando um serviço elitizado. Para suprir a demanda da falta de profissionais
emergiram os mais diversos tipos de profissões e sujeitos que se colocavam a serviço da
comunidade para sanar seus problemas de saúde. Neste sentido, Pimenta afirma que “Assim, os
curandeiros continuavam a ser considerados o recurso de que dispunham os pobres. Eram pessoas
de camadas subalternas que tratavam de miseráveis, os quais não teriam mesmo condições de pagar
a visita de médicos diplomados.” (PIMENTA, apud CHALHOUB, p. 321, 2003).
O serviço prestado por essas pessoas servia de alento e conforto para as classes
economicamente menos favorecidas, sendo, muitas vezes, o único recurso disponível para tentarem
solucionar seus males de saúde. Com a vinda da família real portuguesa ao Brasil no ano de 1808,
foi necessário modernizar e estruturar minimamente a colônia – que passaria a ser sede do governo
e da coroa – surgindo aos poucos os primeiros cursos superiores de Medicina no território brasileiro.
Entretanto, a escolha de atuação desses profissionais era nos capitais e grandes centros – o que
deixava o interior e as pequenas cidades desassistidas. Leite lembra ainda que

[...] com a criação da Faculdade de Medicina do Rio e a de Salvador em 1832 e a imigração


de doutores estrangeiros para o Brasil, desencadeou-se nas suas grandes cidades um
processo de expansão da oferta de médicos. Esses, de um modo geral, foram se
comportando cada vez mais com intolerância em relação à prestação de serviços
terapêuticos por leigos, à medida que o seu campo de conhecimento foi se
institucionalizando. (LEITE, apud EUGÊNIO, 2012, p. 202).

Com o desenvolvimento de universidades (e seus respectivos cursos na área médica), a


reação contra os curandeiros foi imediata, motivada pelo anseio dos médicos graduados em criar
um monopólio da medicina, gerando estratégias de retaliação, banimento e desqualificação de
qualquer prática diferente daquela difundida pela academia como correto e científico. Passaram a
cobrar dos órgãos públicos uma legislação que fiscalizasse e coibisse os ‘charlatães’ através de uma
junta específica para este fim, conforme conta Leite

Essa solicitação foi mais uma das que estavam sendo feitas como forma de cobrar do
Estado um órgão fiscalizador do exercício da medicina, o qual as atendeu criando em
1850, a Junta de Higiene Pública (posteriormente, em 1851, rebatizada e regulamentada
como Junta Central de Higiene Pública) para cumprir essa e outras funções. Não obstante,
até a adoção de leis no final do século 19 que tornaram crime tal exercício sem a devida
habilitação, muitas pessoas sem formação acadêmica continuaram prestando serviços
relacionados a esse campo de conhecimento, sobretudo no vasto interior do país onde a
fiscalização dificilmente conseguia chegar. (LEITE, apud EUGÊNIO, 2012, p. 204).

As práticas de cura que não fossem realizadas por profissionais graduados eram
consideradas crimes, o que resultou na clandestinidade das pessoas que as utilizavam
tradicionalmente, tendo em vista que a grande maioria não as abandonaria facilmente – pois já fazia
parte de seu cotidiano e de sua cultura. Holzer critica as mudanças e a desvalorização dos saberes
populares no que tange a busca pela cura, dizendo que:

A abordagem do curador parece um pouco estranha ao homem ocidental, que sofreu uma
lavagem cerebral com a abordagem tecnológica da cura e a aceitação muito limitada por
parte da medicina ortodoxa de tudo que não pode ser produzido, dissecado, ou
reconstruído em experiências de laboratório. (1987, p. 17).

Para o autor, as formas alternativas de cura dariam às pessoas um cuidado e atenção além
do físico, onde o ser humano é compreendido em sua totalidade corpo-alma, esquecidas e não
consideradas em sua amplitude na medicina oficial. Para estes profissionais, o que não pudesse ser
justificado, compreendido, dissecado e produzido em laboratório não representaria a ciência e sua
verdade. Provavelmente pelo fato destas formas alternativas espirituais não poderem ser explicadas
e compreendidas, o caminho mais fácil era desqualificá-las e colocá-las num status e condição de
marginalidade e clandestinidade. Tais práticas valorizam as relações e os saberes tradicionais
milenares, repassados e reproduzidos ao longo das gerações, que apesar de todo o combate contra,
jamais deixou de existir nas mais diversas localidades.
Cabe ressaltar, também, que a pressão desenvolvida pela mídia (especialmente por jornais)
foi fundamental no processo de repressão aos curandores, conforme relata Weber.

[...] O jornal A Noite empreendia uma verdadeira campanha contra eles, havendo caso de
pelo menos um processo aberto devido a denúncia do jornal. A Gazeta do Commercio
fazia, sistematicamente, campanha contra a “imperícia” desses profissionais, denunciando
parteiras, cartomantes, benzedores, curandeiros, etc. Porém, os jornais não expressavam,
necessariamente, as preocupações da população, que, afinal, procurava essas práticas –
caso contrário, as denúncias não seriam tão frequentes. É importante que interpretemos
essas denúncias e críticas como a opinião de intelectuais ou de setores ligados aos próprios
médicos formados. Expressavam um grupo social que tinha maiores possibilidades de
acesso ao saber formal e tinham uma visão sobre a “civilização”, estado ideal que devia
ser atingido e do qual curandeiros não faziam parte. Aliás, consideravam que a população
que se utilizava dos seus serviços devia ser educada e regenerada por intermédio da
denúncia para evitar que outros seguissem o mesmo caminho. (1999, p. 194).
Weber alerta para o objetivo destas perseguições pela imprensa, que representavam as elites
e seu discurso carregado de interesses sociais e econômicos, não considerando os motivos pelos
quais as pessoas buscavam estes profissionais – os quais eram mais acessíveis que os médicos – e
que, na realidade, não os deixariam de procurar, apesar de todas as campanhas contra realizadas,
pois já faziam parte da vida e do cotidiano das camadas sociais menos favorecidas. Ambas não
poderiam coexistir, havendo espaço apenas para uma ser a correta, digna e eficaz. Ainda, neste
sentido, Sampaio afirma que:

[...] Em oposição a esta figura hostil, ia sendo construída a identidade do médico, portador
da ciência. Assim, os médicos usavam o título de charlatão para assinalar em todos os seus
‘outros’ uma mesma visão negativa. [...] Para caracterizar o charlatão, um recurso era
bastante utilizado: narravam-se casos de erro [...]. Assim, curandeiros, espíritas,
sangradores, parteiras, ervateiros, farmacêuticos que produziam remédios e não revelavam
suas fórmulas, enfim, qualquer diferente era igualmente um perverso charlatão, que agia
sempre de má fé, enganando as pessoas para enriquecer. (2001, p. 53).

O discurso introduzido e reproduzido pelos médicos, focando aspectos negativos e


desqualificados referentes aos curandores, tinha como objetivo amedrontar a população para
possíveis erros cometidos por estes, na busca pela autonomia e monopólio da cura, constituindo
assim a identidade da classe médica no Brasil. Obviamente que erros eram cometidos, tanto por
curandores quanto por médicos graduados, porém, sem a ampla divulgação e perseguição dos meios
de comunicação.
Em entrevista junto aos benzedores de São Miguel das Missões, surgiram algumas
narrativas interessantes, que de forma subliminar e indireta dão referências de como se dá a
relação entre benzedor e médico. Alzira de Oliveira Leite,2 quando questionada sobre curas
em seus atendimentos conta que

[...] Tem um senhor, o nome dele é Valdomiro, lá da Colônia Vitória, estava no hospital
acamado e o doutor apartou ele dizendo que estava com meningite e tinha uma vala na
cabeça dele. A esposa dele veio aqui e eu curei ele em dois dias. Meningite não é qualquer
um que cura, só benzedor mesmo, doutor não cura. (2013).

A entrevistada, em uma narrativa que busca legitimação e aceitação social, conta que há
doenças que cabe apenas aos benzedores curarem. Assim como os médicos buscam narrativas

2 Alzira de Oliveira Leite, 79 anos. Nasceu na comunidade Pasta Guerrera, interior de São Miguel das
Missões onde morava com a mãe e mais quatro irmãos. Sua mãe, Angelina Alves de Oliveira, era natural de
Jaguari/RS e criança ainda veio morar no interior de São Miguel, onde era católica e benzedeira, faleceu com 112
anos de idade. É casada a 62 anos com o Sr. Dorcino da Costa Leite (83 anos) com quem teve 10 filhos (8
homens e duas mulheres). Mora há mais de 30 anos na zona urbana de São Miguel das Missões. É católica e
aposentada como agricultora.
compartilhadas para se legitimarem (ou desqualificarem o outro), a prática dos benzimentos
necessita desses casos de cura contados e recontados, e transmitidos socialmente para serem aceitos
e até mesmo procurados pela comunidade em momentos de precisão. Alzira narra ainda que:

As ervas plantadas desde a origem do mundo são remédio. Não existe uma árvore que não
seja remédio pra uma coisa ou outra. Todas as árvores que dão fruto são remédio. Eu
indico e ensino. Tenho muitas aqui na horta e quando pedem eu dou. Pode ser pra dor, pra
massagem. (2013).

O uso de plantas e ervas medicinais é comum entre os benzedores, que além de benzerem,
indicam e até mesmo fornecem as plantas e ervas para a comunidade, que as utiliza – o que pode
contrariar interesses de farmácias e laboratórios farmacêuticos, os quais mantêm o monopólio desta
área. Compartilham também mudas destas plantas, que serão cultivadas e utilizadas quando
preciso, mantendo vivo assim este hábito na comunidade. Em entrevista, a benzedeira Laídes
Dutra3 diz que:
Esses dias eu não andava comendo e minha cunhada disse pra ir no médico fazer uns
exames de sangue e não sei mais lá o que, porque podia ser tireoide e tal. Vocês acham
que eu tenho medo de tirar sangue? Não tenho. Há dezoito anos eu fiz os mesmos exames
de hoje e não tinha nada, nem tireoide, colesterol, glicose e essas coisas. Não gosto nem
de falar em médico porque até me ataco dos nervos quando vejo um médico. (2013).

Obviamente a entrevistada, por ser benzedeira, busca solucionar seus problemas de saúde
através de formas alternativas, deixando o recurso médico em última opção. Faz questão de exaltar
que possui uma ótima saúde – justificando isso em sua narrativa pelo fato de ter feito os mesmos
exames há 18 anos e não ter problemas com sua saúde. Por não ser habituada a ir ao médico, sente
medo e repulsa, como se este representasse uma situação ruim. Isso se deve, provavelmente, pelo
fato de tradicionalmente estas pessoas procurarem um serviço médico especializado apenas em
momentos graves, cabendo aos pequenos problemas métodos simples e alternativos como ervas,
chás e benzimentos. Narra ainda, um episódio de uma mulher que a procura

Ontem mesmo teve uma mulher aqui dona de loja e me disse: “ah guria eu não aguento
mais, mandei arrumar um dente e me dói”. E eu disse: “a tua fé que tá pouca, eu vou te
benzer e tu vai sair daqui boa”. E eu benzi a mulher e ela já saiu boa. E tinha ainda que
viajar pro Paraguai hoje e saiu na porta dizendo que estava boa do dente. E meta antibiótico
só pra estragar o sangue. Coitada, só faltava Jesus no costado dela. Eu benzi em Nome de
Jesus; tudo o que eu faço é em nome dele. (2013).

3 Laídes Dutra da Silva, 63 anos. Nasceu na comunidade de Rincão dos Morais, interior de São Miguel
das Missões, onde morava com os pais e mais 09 irmãos. Analfabeta, benzedeira há 29 anos, solteira, devota
de São Jorge, aposentada pela agricultura e moradora da zona urbana de São Miguel das Missões.
Laídes fala em nome da mulher que a procura para curar uma dor de dente, que segundo ela
é motivada pela falta de fé em Jesus. O benzimento seria a solução: e assim acontece (segundo ela).
Após o benzimento, ela já não sente mais dores, estando assim com seu problema resolvido. Alzira
representaria um canal de fé junto a Jesus, colocando-o na vida das pessoas. Para a entrevistada, o
uso de antibióticos serve apenas para ‘estragar o sangue’, onde a fé é capaz de salvar e curar tudo.
Deixa claro a sua intransigência aos remédios industrializados. Conta também que:

[...] Agora que eu fiz meus exames, o doutor se apavorou como é que eu tinha um sangue
bem forte e me perguntou o que eu comia. Eu disse: “doutor, a minha comida é leite, feijão,
arroz, ovo, salada – eu como muito pouco –, fruta, sardinha e pão”. Eu não gosto muito de
carne. Se eu faço um carreteiro, eu engulo o arroz e deixo a carne. Hoje eu fiz carne de
galinha e não comi. Não sou carnífera. Eu gosto de comer feijão, arroz, mandioca, ovo,
leite; essas são minhas comidas preferidas. Prova é que meu sangue estava limpinho. Eu
disse pro doutor “que quero saber que sangue eu tenho”. Ele disse: “mas com um sangue
forte desse não precisa nem ficar sabendo que sangue é. Eu nunca vi sangue igual a esse
teu. Se metade do povo de São Miguel tivesse esse teu sangue aí, eu desistia de ser doutor”.
(2013).

Mesmo a entrevistada demonstrando certo medo e resistência em ir a um médico, em


sua narrativa cita uma consulta realizada, bem como a bateria de exames feitos, o que
demonstra uma espécie de negociação entre saber popular e medicina oficial. O mesmo
deve ocorrer com a população em geral (ou parte dela), que mesmo procurando um
médico não deixa de ir a um benzedor (e vice-versa) ou tomar um chá de ervas por eles
receitado, a fim de ‘garantir’ a cura.
O médico entrevistado, Evandro Varaschini Dalla Roza,4 quando questionado sobre
se já havia tido contato com os benzedores, narra que:

São meus pacientes, consultam comigo como qualquer outro paciente, mantenho bom
relacionamento, não tenho nenhum tipo de preconceito com eles e eles comigo. São
geralmente idosos com patologias de base como hipertensão e alguma outra doença
cardiovascular e usam medicamentos como qualquer outro paciente e também fazem
exames quando solicitado. São pessoas que agem com muito respeito com o médico, que
valorizam o trabalho do médico. (2013).

Sua resposta vem ao encontro do exposto anteriormente e, segundo ele, os benzedores o


procuram como qualquer outro paciente, necessitando igualmente de seus cuidados médicos, bem
como no uso de medicamentos. O entrevistado exalta o respeito que os benzedores teriam com ele
e sua profissão, em uma tentativa de apaziguar e exaltar essa relação. Perguntado sobre como a
medicina visualiza a prática de cura realizada por estas pessoas, o entrevistado diz que:

4 43 anos de idade. Médico formado, desde 1995, pela Universidade Católica de Pelotas (Pelotas/RS). Reside
em São Miguel das Missões, desde 1997.
Com descrédito, quem conhece a ciência, a fisiologia e a fisiopatologia do corpo humano
tem dificuldades em acreditar em coisas empíricas. [...] Aqui os benzedores respeitam
muito a conduta médica, e não há conflitos. [...] São Miguel ficou com a fama por causa
do encontro dos benzedores, mas é pouco acreditada por aqui. Nos dias de hoje não se
houve falar que alguém veio de outro município para se benzer. No passado acredito ter
sido mais acreditada. Percebo que as pessoas que benzem têm poucos pacientes nem em
todos os dias. Soube de uma paciente recente que tem câncer de mama avançado que se
benzeu esta semana, mas veio consultar dizendo que não adiantou nada. (2013).

Já neste ponto, o entrevistado se mostra enfático ao desacreditar os resultados da prática do


benzimento como uma forma de cura efetiva. Em sua opinião, todas as atenções dadas aos seus
praticantes decorre da fama adquirida ao longo do tempo, porém hoje estaria desacreditada. Relata
também, o caso de uma paciente que disse ter se benzido e de nada adiantou em sua cura contra o
câncer. Esse caso contado (igualmente aos benzedores) serve de estratégia para reforçar uma ideia
na tentativa de criar um status ou opinião sobre determinado assunto – sendo de extrema
importância em cada um dos entrevistados para legitimar cada um o seu ponto de vista. O benzedor
utiliza de casos e histórias de cura para se afirmar e legitimar como tal, ao contrário do médico que
também as utiliza para afirmar que as mesmas não funcionam, desacreditando-as. Ao mesmo tempo
em que o médico ameniza as relações com os benzedores, desqualifica-os enquanto seres dotados
de um dom (ou conhecimentos) para a cura – provavelmente por serem de áreas e visões de mundo
completamente diferentes (cultura popular x medicina-ciência). As realidades culturais destes
entrevistados são muito distintas, não havendo, provavelmente, um contato assíduo entre as partes,
sendo que a opinião dada por cada um é relativa às visões e estereótipos construídos de um para o
outro, e devem ser compreendidas como elementos fundamentais nas percepções narradas por eles.
De forma subliminar, há um conflito entre medicina e benzedores, onde se disputam noções
em áreas distintas – cultura e ciência –, onde conforme interesses de legitimação há negociações
entre as partes, que através de suas narrativas buscam seu espaço e sua verdade perante o grupo que
pertencem. No meio disso tudo fica a população, que conforme seus objetivos, crenças e
necessidades escolhe o que lhe convém no momento. Esse conflito não se dá por dinheiro, mas sim
por status e referência, sendo impossível que ambos se entendam completamente por se tratar de
linguagens e percepções distintas de cura. Um mesmo território, duas práticas de cura distintas
coexistem simultaneamente. Em tempos de globalização, onde tudo se pasteuriza e padroniza, a
existência da diversidade apenas enriquece as relações sociais. O conflito existente e as disputas
por legitimação fará com que os benzedores continuem (assim como fazem, desde sempre) se
reinventando e adaptando aos desafios, a fim de continuarem existindo e levando seu ofício aos que
acreditam.
CHALHOUB, Sidney et al (Org.). Artes e ofícios de curar no Brasil. Campinas, SP: Ed. da
Unicamp, 2003.

EUGÊNIO, Alisson. Arautos do Progresso: o ideário médico sobre a saúde pública no Brasil na
época do Império. Bauru: Edusc, 2012.

HOLZER, Hans. Além da Medicina: as curas alternativas e tratamentos psíquicos não-ortodoxos.


Rio de Janeiro: Record, 1987.

SAMPAIO, Gabriela dos Reis. Nas trincheiras da cura: as diferentes medicinas no Rio de Janeiro
Imperial. Campinas/SP: Ed. da Unicamp, 2001.

WEBER, Beatriz Teixeira. As artes de curar: medicina, religião, magia e positivismo na


República Rio-Grandense (1889-1928). Santa Maria: Ed. da UFSM; Bauru: EDUSC, 1999.

Alzira de Oliveira Leite

Evandro Varaschini Dalla

Roza Laídes Dutra


Egiselda Brum Charão

Os relatos de mulheres procedentes de outros países nos permitem fazer uma viagem ao
passado, pois elas guardam na memória as lembranças das experiências vivenciadas ao longo do
tempo. Neste sentido, as mulheres são indicadoras para os estudos da história da imigração no
Brasil. Com base nesse princípio, o estudo verte para a imigração feminina na cidade de Porto
Alegre, Rio Grande do Sul, no período entre 1930 e 1955, quando passou por picos de intensificação
e quase estagnação em decorrência da guerra e da crise econômica europeia. Através das falas das
mulheres, pretende-se conhecer aspectos relativos ao comércio, à guerra e às relações sociais por
elas estabelecidas. É importante entender os diferentes olhares e percepções da cidade, levando em
conta a origem de cada uma das imigrantes e confrontando as formas distintas de relações à medida
que se integravam à nova realidade.
Pesquisar a imigração, a partir das mulheres, se justifica porque seus relatos fornecem pistas
para entender os meandros e os artifícios utilizados por elas para se adaptarem e construírem
identidades contraditórias e diversificadas. Sabe-se que os indivíduos imigravam de várias regiões
da Itália, através de arranjos que configuravam as relações familiares e de trabalho. Eram essas
relações que determinavam os locais onde fixavam moradia e trabalhavam. Geralmente eram locais
e espaços comuns. Por exemplo, os moraneses se fixaram onde hoje é a Cidade Baixa, e os sicilianos
se fixaram no 4º distrito. Os imigrantes oriundos de outras regiões da Itália, se dispersaram para
outros bairros da capital gaúcha, como Menino Deus, Gloria, São João, Partenon, Azenha, Vila
Conceição, etc.
Desse modo, pensar o universo das mulheres imigrantes é pensar as diferenças de origem
regional que estabelecem fronteiras evidentes e, ao mesmo tempo, cogitar que, em sua maioria, as
mulheres integraram um projeto coletivo que não é vivido de modo totalmente homogêneo pelas
pessoas que o compartilham (VELHO, 1994, p. 41). Por exemplo, o grupo calabrês, considerado
até a década de 1990 como um grupo coeso, apresenta diferenças e divergências internas, tanto de

* Doutoranda do Programa de Pós-Graduação em História/PUCRS. Financiada pela CAPES.


aspectos culturais como políticos e sociais, manifestadas nos depoimentos dos indivíduos
que vieram no pós-Segunda Guerra Mundial.1
A pesquisa é pertinente porque ressalta a função social da História Oral2 e da
memória viabilizando a inclusão de grupos minoritários e excluídos, neste caso, as mulheres
idosas que não têm armas para lutar (BOSI, 1983, p. 39). Nesta lógica, a metodologia ajuda os
idosos a conquistar dignidade e autoconfiança, pois propicia o contato e a compreensão entre
classes sociais e gerações (THOMPSOM, 1992, p. 44).
Serão apresentadas no texto mulheres imigrantes inseridas na estrutura familiar e no espaço
sociocultural da cidade de Porto Alegre. As estruturas familiares pressupõem relações hierárquicas
em diferentes níveis de complementaridade e de contradição que se combinam e estão integradas
em unidade maior (DUMONT,1997, p. 372). A partir desse ponto de vista, se torna possível
examinar questões humanas variadas, suas relações de dependência e implicações sob a forma das
referências fundamentais. De um lado, permite uma compreensão global sobre as hierarquias e, do
outro, questões relativas ao individualismo a partir dos quais os valores se diferenciam, o que
permite a relativização dos modelos éticos idealizados.

No que tange às questões relacionadas com a História Oral, se buscou suporte nas obras de
Portelli (2010) e Thompson (1992), que elucidam sobre os procedimentos teórico-metodológicos
relativos ao uso das fontes orais pelo historiador, e, também, chama a atenção para a função social
da oralidade de uma narrativa de vivências. Quanto ao social, esses autores, já citados, priorizaram
em seus estudos os grupos ou classes sociais locais de minorias que viviam em determinadas
comunidades. As narrativas dizem de um grupo composto por indivíduos que compartilham
experiências e fatos vividos. Portanto, eles também desenvolvem relações de amizade ou trabalho
(THOMPSON, 1992, apud FREITAS, 1992, p.19). Entretanto, os indivíduos se inserem
socialmente em níveis de realidades e fenômenos relacionados que estão em permanente tensão.
Isso pode ser percebido nos relatos das suas trajetórias porque

Os indivíduos modernos nascem e vivem dentro de culturas e tradições particulares, como


os seus antepassados de todas as épocas e áreas geográficas. Mas, de um modo inédito,
estão expostos, são afetados e vivenciam sistemas de valores diferenciados e heterogêneos.
Existe uma escala material e simbólica sem precedentes em sua escala e extensão
(VELHO, 2003, p. 39).

1 Depoimentos de imigrantes calabreses depositados no Laboratório de Pesquisa em História Oral/LAPHO do


PPG História/PUCRS. .
2 Metodologia de pesquisa que consiste na coleta e transcrição de depoimento que resulta na produção de
fonte ou documento para investigação histórica.
Em se tratando de História Oral, memória e imigração, o embasamento foi encontrado nas
investigações de Núncia Santoro de Constantino (2004, 2006, 2008). Essa historiadora define
imigração como “um deslocamento de diferentes pessoas em diferentes tempos e espaços,
qualificados em muitos sentidos, isto é, econômica, política e culturalmente.” Portanto, é uma
“viagem que pressupõe três momentos: a partida, o trânsito e a chegada.” (LEED, 1992, apud,
CONSTANTINO, 2006, p. 65). No mesmo texto, a autora discorre sobre a evolução da História
Oral, chamando a atenção para a necessidade de abordagens interdisciplinares relacionadas com a
psicologia, sociologia, antropologia, neurologia e outros campos científicos. Tratando-se de
pessoas, grupos de convívio e espaço, o conhecimento das referidas áreas fornecerá sustentação
para a construção do conhecimento.
Pertinente é, também, o tratamento dispensado aos depoentes, porque “somente aqueles que
criam ou fazem alguma coisa, podem entendê-la melhor do que os observadores, porque os homens
constroem sua própria história” (VICO, 1994, apud, CONSTANTINO, 2006, p. 69). Nesse sentido,
as depoentes são pessoas que indicam caminhos para conhecer o todo porque seus relatos
possibilitam a partir do micro conhecer o macro trazendo um conteúdo permeado de subjetividade
e abstração. Quando Constantino (2006) escreve sobre memória individual e coletiva, ampara-se
na psicanálise da neurociência, buscando elucidar os mecanismos de repressão e extinção da
memória, porque entende que historiador ajuda trazer à superfície aquilo que estava esquecido
(IZQUIERDO, 2004; HALBWACHS, 2004).
A autora chama atenção para aspectos da memória presentes na narrativa oral que tanto se
apoia nas “memórias que são narrações de quem vivenciou processos socioculturais, quanto em
memória, no singular, que é entendida como a capacidade de reter fatos, ideias, impressões e
retransmiti-las através de diferentes suportes, como a escrita ou a voz” (CONSTANTINO, 2006, p.
69). Embora recordar seja uma característica do indivíduo, salienta-se que ele pertence a um
determinado grupo com o qual compartilha sua memória. Nesse viés, os escritos das sociedades
que têm sua história baseada na oralidade permitem compreender os processos de dominação a
partir das recordações de grupos constituídos socialmente (NORA, s/d, p. 472, 476).

Entre os grupos destaca-se a esfera familiar, a rede de parentesco, compadrio e amizade.


Dentro da casa, se é uma pessoa, um ser dividido e relacional, cuja existência social se
legitima pelos elos que mantenho com outras pessoas num sistema de transitividades e
gradações (DAMATTA, 1985, p. 77).

No caso, as imigrantes elencadas para este estudo possuem uma idade superior a 70 anos e
formam uma espécie de ligação entre a sua unidade de sobrevivência, com uma unidade maior, ou
seja, a narrativa de cada uma representa:

A resistência do indivíduo à fusão de sua unidade de sobrevivência com uma unidade


maior – ou ao desaparecimento dela nessa unidade – sem dúvida se deve, em grande parte,
a um sentimento determinado: o de que, ao se extinguir ou desaparecer uma tribo ou
Estado com entidade autônoma, ficaria sem sentido tudo o que as gerações passadas
realizaram e sofreram no contexto e em nome dessa unidade de sobrevivência. (ELIAS,
1987, p. 181).

As pessoas mais velhas, por suas experiências e vivências, se tornam a memória da família,
do grupo e da sociedade, que pode ser percebida nas construções representativas que as pessoas
elaboram de si e do outro quando se relacionam cotidianamente. Essas construções se manifestam
nas práticas culturais recorrentes em determinados espaços de convivências que são limitadas de
formas visíveis ou invisíveis (BHABHA, 1998, p. 70-104). Nesse ângulo, o trabalho aponta que as
lembranças das mulheres imigrantes possibilitam a leitura de dados que se ligam através de rede de
funções, onde as pessoas desempenham relações umas com as outras.

As personagens deste texto chegaram a Porto Alegre em datas diversas, vindas de Morano
Calabro e da Sicilia, no Sul da Itália. Dalva Di Martino chega em 1948, com 14 anos; Maria Di
Gesú, em 1947, com 19 anos; Amala Morelli Aita em 1950, com 17 anos; Angelina Sanzi Ferraro
em 1937, com 22 anos. Elas imigraram da Calábria. Vicenza Nani em 1955, com 14 anos e Maria
Vinciprova Mancuso, em 1955, aos 26 anos, elas imigraram da Sicilia. Os parentes das imigrantes
arroladas estavam residindo em Porto Alegre, desde antes da II Guerra, é o que cada uma
informa nos respectivos depoimentos.3
As imigrantes não sabem dizer exatamente a data da chegada dos familiares porque tiveram
que suportar anos de separação e a cronologia da memória afetiva tem seus mistérios (BRUM,
2009, p.166). E não apenas esse fator concorre para que haja uma imprecisão ou esquecimento do
período que os parentes imigraram para Porto Alegre. Na época da vinda para Porto Alegre, as
imigrantes eram crianças e, na infância, a noção de tempo e espaço exige pensamento concreto e
racional, algo que nessa fase da vida a criança não tem, porque vive no mundo do “faz de conta”.
Abaixo, se apresenta a fotografia das italianas que colaboram com os depoimentos para produção
de fontes de pesquisa sobre imigração. A finalidade da foto e a elaboração mental da fisionomia das
mulheres produzindo um referente e dando visibilidade às vozes das italianas, portanto, é a de
representação.

A representação faz ver uma ausência, o que supõe uma distinção clara entre o que
representa e o que é representado; de outro, é a apresentação de uma presença, a
apresentação pública de uma coisa ou de uma pessoa. Na primeira acepção, a
representação é o instrumento de um conhecimento mediato que faz ver um objeto ausente

3Depoimentos das personagens encontram-se depositados no Acervo do Laboratório de História Oral do PPG
de História/PUCRS.
substituindo-lhe uma "imagem"capaz de repô-lo em memória e de "pintá-lo" tal como é.
(CHARTIER, 1991, s/p).

A imagem é a um só tempo uma substituição metafórica, uma ilusão de presença, e,


justamente por isso, uma metonímia, um signo de sua ausência e perda.

Figura 1 – Mulheres italianas imigrantes: protagonistas da pesquisa4

Fonte: ALAPHO5

O caminho traçado para a pesquisa e a elaboração do texto, inicialmente, foi o estudo


bibliográfico dos contextos, seguido da seleção dos depoimentos com escolha e identificação dos
diálogos complementados pela pesquisa em jornais e na web. Os tópicos não seguem uma ordem
cronológica pré-determinada, porque não existe lógica no ato de narrar o que está sendo lembrado.
O texto se divide em duas partes: o primeiro discorre sobre as casas de comércio em Porto Alegre,
mencionadas na historiografia; e o segundo fala sobre o comércio e os comerciantes italianos
mencionados nos depoimentos das mulheres.

Os comerciantes italianos estiveram atuando no Rio Grande do Sul, desde 1891. Em


Porto Alegre essa presença é marcante, conforme informa o Almanaque6 comemorativo dos
cinquenta anos da Imigração italiana. O comércio 7 italiano era visivelmente acentuado
em meio às

4 Seus nomes, da esquerda para a direita: Vicenza Nani, Amalia M. Aita, Maria Di Gesù, Maria Vinciprova e
Dalva Di Martino. .
5 O Acervo do Laboratório de História Oral será referenciado com a sigla (ALAPHO).
6 Texto compilado do Almanaque comemorativo dos Cinquenta anos da Colonização Italiana no Rio Grande do
Sul. Cinquantenario della Colonizzazione Italiana Nello stato del Rio Grande del Sud: 1875-1925. Porto Alegre:
Globo; Roma: Ministero degli Affari Esteri dItalia, 1925, p. 13.
7 "Comércio", "Casa de negócios", "armazém de secos e molhados", "venda", "loja comercial", "taberna",
“botequim” são algumas das denominações para referir-se a um estabelecimento que promovia transações
comerciais, compra e venda de produtos diversificados, encontros para discutir sobre política, religião e falar
sobre a vida dos vizinhos. [...] podiam ser tanto um espaço de sociabilidade, na qual ocorriam jogos de carta,
troca de ideias, bailes; como um local de conflito, motivado, algumas vezes, pela ingestão excessiva de algum
tipo de bebida por alguns frequentadores, resultando em xingamentos, brigas ou desordens (VON MÜHLEN,
2014, apud AMADO, 2002, p. 52-53; SPERB, 1987, p 17-18; MARTINY, 2010, p. 238).
em meio às transformações. Em 1895, a Rua da Praia, no centro de Porto Alegre, era o local
onde havia maior concentração de estabelecimentos comerciais. Dos 286 estabelecimentos
registrados, 161 eram identificados com segurança por seus proprietários com sobrenome
estrangeiros; destes, 78 estabelecimentos que estavam registrados eram de origem italiana
(CONSTANTINO, 1998, p. 151).
As informações dos registros e crônicas dão conta de um número expressivo de
comerciantes italianos participando ativamente da sociedade no inicio do século XX, em Porto
Alegre. Os italianos eram proprietários de casas de negócios na Rua dos Andradas, entre as Ruas
Bento Martins e Senador Florêncio Igartua. A zona era conhecida como quadra dos italianos e
alguns estabelecimentos possuíam nomes que sugeriam a procedência e a condição de seus
proprietários (CENNI, 2003, p. 171). Há que se reiterar que registros frisavam a presença de
peninsulares, indicando que estes apresentavam atividades comerciais diversificadas e onde
estavam radicados na capital. As informações mencionadas dão conta de um período específico
relacionado à grande migração. Entretanto, poucos anos antes, em 1890, o censo apontava para o
fator de que em torno de 10% da população porto-alegrense era composta por
italianos, o equivalente a seis mil habitantes; um percentual que através de projeções8 se
estende até 1915 (CONSTANTINO, 1987, p. 61, apud BORGES, 1993, p. 27).
A pesquisa de Nuncia Santoro de Constantino (1987), fundamentada em uma gama
diversificada de fontes, inclusive aquelas ligadas à administração municipal, como relatório anual
de recolhimento de impostos, constatou o predomínio e a ascensão social dos calabreses em
determinados nichos comerciais. Recentemente, a pesquisa de Leonardo Conedera (2012) também
evidenciou a presença siciliana caracterizada por uma imigração qualificada no pós II Guerra
Mundial. O autor observa, em sua investigação, que os sicilianos constituem o terceiro maior grupo
do contingente italiano em Porto Alegre, no período, sendo que parte deles dedicou-se ao comércio
de pequeno e médio porte, como tavernas, cafeterias, açougues, alfaiatarias sapatarias, armazéns,
entre outros.

Entretanto, há muito que conhecer a respeito dos comércios de imigrantes italianos que se
fixaram em Porto Alegre, antes e depois da II Guerra, dedicando-se ao comércio. Os imigrantes que
se deslocaram, nesse período, caracterizam-se por fluxos espontâneos oriundos de pequenas áreas
da Itália e estimulam uma experiência de mobilidade, relacionada, principalmente, à atividade dos
pequenos comerciantes e dos artesãos, alcançando significativa contribuição à construção das
modernas redes urbanas (DE RUGGIERO, 2012, p. 179).

8 Consultar a obra de Stella Borges: Italianos: Porto Alegre e trabalho. Porto Alegre: EST, 1993, p. 30.
É precisamente neste período que as personagens desta investigação estão inseridas, num
momento intermediário entre o primeiro fluxo que vem para a cidade, antes da II Guerra, e o
segundo que se inicia quando termina a II Guerra. As mulheres fornecem informações sobre os
deslocamentos, sobre as atividades e as localizações dos estabelecimentos. Dalva (2010) relatou
que veio em 1948 para Porto Alegre. Além disso, expôs que não via o seu pai, desde “pequenina”,
em decorrência da guerra. O seu pai tinha comércio, um pequeno restaurante. “Ele (o pai) conta,
porque eu não sei... Era na Santa Casa. Tinha aqueles vários lugares embaixo para entrar, que agora
já não sei se tão usando.” Dalva exprime suas lembranças de uma forma particular, das quais se
vislumbram aspectos da memória e da cidade.
O local, mencionado por Dalva, se refere ao conjunto das denominadas “casinhas” de
propriedade da Santa Casa de Misericórdia de Porto Alegre, localizadas na Rua Independência e na
Rua Sarmento Leite. As edificações foram construídas para serem alugadas com a finalidade de
ajudar a manutenção do hospital. Algumas casas destinavam-se à moradia de famílias e outras eram
utilizadas como estabelecimentos comerciais onde, ao que indica o depoimento de Dalva, se
localizava o restaurante do seu pai.

Figura 2 – Antigas casas de aluguel pertencentes à Santa Casa (atual Centro Histórico-Cultural)

Fonte: www.ufrgs.com.br

Observa-se que a evocação não pertence à sua memória; são lembranças que o seu
pai compartilhou com a família. Elas constituem uma memória familiar denominada memória
herdada, ou seja, são as memórias transmitidas de geração para geração, dentre as quais os
familiares são as principais e são importantes fontes de conexão entre memória e identidade.
(POLLAK, 1992, p. 5). Prossegue dizendo que: “depois o pai colocou um armazém, mas
sempre na parte comercial. Era onde é o gasômetro,9 próximo às margens do Guaíba” (DI
MARTINO, 2010). Provavelmente, o

9 Antiga usina brasileira de geração de energia localizada na capital gaúcha, que apesar do nome usina era movida
a carvão mineral. Adenominação "Gasômetro" fazia referência à área onde hoje está a Usina, chamada de Volta
do Gasômetro. O prédio da Usina do Gasômetro foi inaugurado no final da década de 1920 para abrigar a
Companhia Brasil de Força Elétrica, subsidiária da Eletric, Bond & Share Co., empresa com sede nos Estados
Unidos, que gerou a eletricidade e o transporte elétrico de Porto Alegre até a metade da década de 1950.
MARTINO, 2010). Provavelmente, o estabelecimento se localizava próximo ao gasômetro,
mais especificamente onde persistem até hoje alguns antigos armazéns e bares.
Por sua vez, Maria Di Gesù recorda que quando chegou a Porto Alegre, em 1947, foi
morar na Rua Avaí, onde já residiam outros italianos próximos: “na Demétrio Ribeiro e na
Rua Espírito Santo, tudo mais ou menos no mesmo lugar [...].” Era um espaço ocupado pelos
italianos da “velha guarda calabresa”, rastreados nas pesquisas anteriores. Maria prossegue
dizendo que o pai e os irmãos eram sócios no restaurante Bela Vista; este se localizava na
Rua Washington Luiz, esquina com a Rua Espírito Santo. “Naquele tempo, o restaurante
ficava ao lado da Associação Cristã de Moços. O trem ainda passava por ali quando
chegamos da Itália.” (DI GESÙ, 2010). A foto panorâmica retrata o local, onde estava
localizada a Associação, que está marcada por um círculo, e o restaurante, provavelmente,
localizava-se em um dos pontos assinalados pelas setas.
Figura 3– Sede da Associação Cristã de Moços em Porto Alegre - Rua Washington Luiz, 1955

Fonte: www.flikr.com

Percebe-se na localização do negócio, uma estratégia de inserção social e econômica porque


no local acorriam os moradores da região e os trabalhadores da Usina. Enquanto serviam as
refeições travavam relações, tanto com os trabalhadores, como com os moradores do bairro. A
experiência de imigração, respaldada no e pelo comércio, adquire significado justamente nas
possibilidades de emprego e socialização encontradas pelo imigrante, uma vez que este passa a ser
instruído no interior de um circuito social-étnico mais seguro e dinâmico (FRANKLIN, 2015, p.
175).
Amalia lembra que:

[...] ao chegarmos à cidade de Porto Alegre, em 1950, fomos morar na Vila São Luiz, no
Jardim Botânico. O marido fazia comércio. Primeiro vendia bilhetes de loteria, depois de
um tempo resolveram montar um negócio na Rua Tomas Flores; um negócio de açougue
e fiambreria. (MORELLI AITA, 2012).

No primeiro momento, o marido vai comercializar bilhetes de loteria, pela facilidade


encontrada de se inserir no negócio que era dominado pelos meridionais. Com esses serviços já
estabelece um relacionamento de solidariedade que possibilita juntar um pequeno capital a curto
prazo e investir no próprio negócio. “Eu trabalhava junto com eles, na frente, vendendo bilhetes.
Também alugamos a peça ao lado e montamos uma sapataria.” (MORELLI AITA, 2012).

Figura 4 – Açougue e Fiambreria Itália

Fonte: ALAPHO

Recorrendo aos depoimentos de todas as personagens, se percebe que os negócios


familiares predominaram entre os imigrantes italianos. Era um expediente que asseverava
credibilidade, oportunizando inserção social e possibilitando auxiliar àqueles que haviam ficado na
Itália. Nesse sentido, ao longo dos anos e nos diferentes fluxos, a capital gaúcha continuava
representando uma terra de promissão para aqueles que se lançavam na aventura de atravessar o
oceano.
Todavia, houve casos nos quais o percurso para a constituição de um negócio próprio
tornava-se lento, se o imigrante não detivesse capital, como resume em poucas palavras Angelina,
que imigrou em 1937. “Meu marido trabalhou cinco anos de verdureiro” (SANZI FERRARO,
2006). Nessa atividade, o percurso do marido da depoente assemelhava-se a outro italiano, Rocco
Vitolla, que veio para o Brasil em 1934, mesmo ano que entrou em vigor a
constituição estabelecendo as primeiras restrições migratórias.10
Rocco partiu da Itália com o filho Leonardo Vitolla. Este foi trabalhar em uma sapataria, e
Rocco comprou uma carroça para comercializar verduras, carnes e peixes. Cinco anos depois, o
filho de Rocco, Francisco Vitolla, que havia ficado na Calábria, veio com a mãe Filomena para
Porto Alegre. Em 1939, a família juntou as economias e investiu em um negócio que
compreendia bar, mercadinho e restaurante.11 Dez anos depois,

[...] em 1949, Francesco Spina, outro imigrante italiano, entrou para a sociedade. Quatro
anos mais tarde, Biaggio Sanzi também passou a integrar o grupo. Este efetuara o trajeto
Itália - Brasil, em 1945, quando a Europa vivenciava o desfecho da Segunda Guerra
Mundial. (Jornal do Comércio).

Retornando à narrativa de Angelina, ela prossegue dizendo que o marido veio da


Itália, atendendo ao chamado de seu pai em 1937.12 O sogro de Angelida vendia bilhetes, e
quando seu marido veio para Porto Alegre se associou a ele na mesma atividade.

Trabalhou um tempo com o pai depois se estabeleceu na capital como verdureiro.


Conduzia pelas ruas da cidade a carroça de verduras que garantia o sustento da família.
Depois, trabalhou mais doze anos no armazém, mais tarde investiu em uma agência de
loteria, na Rua Doutor Flores. (SANZI FERRARO, 2006).

Conversando com as depoentes, se entende os atrativos que a venda de bilhete exercia sobre
eles. Primeiro, porque era uma atividade onde se ganhava muito dinheiro. Segundo, porque a língua
não era entrave, pois a atividade era exercida nos espaços públicos onde atuavam muitos italianos.
Terceiro, porque a circulação dos imigrantes favoreceu à inserção e socialização em um espaço de
tempo menor; logo aprendiam a falar o português rapidamente. Contudo, após a II Guerra, a venda
de bilhetes deixou de exercer atração devido a nova característica da imigração. Para entrar no

10 A constituição instituiu o sistema de cotas, vedando a concentração de imigrantes em qualquer ponto


do território nacional. Pelo sistema de cotas impedia-se que cada corrente imigratória excedesse 2% do número
total de nacionais, daquele país, que haviam entrado no Brasil, durante os últimos cinquenta anos. Estabelece que
a corrente imigratória anual de cada pais estava limitada em dois por cento sobre o número total dos respectivos
nacionais fixados no Brasil, durante os últimos cinquenta anos. Tinha por finalidade regular a seleção,
localização e assimilação do alienígena (Constituição de 1934).
11 Após o falecimento de Leonardo Vitolla, o foco do negócio da família se transformaria no restaurante de
comida italiana chamado Restaurante Copacabana.
12 Angelina imigrou para o Brasil no mesmo ano que a lei restritiva de imigração foi dilatada, fixando como
competência exclusiva da União legislar sobre migração limitando raças ou origens. Um ano depois foi
vedado aos estrangeiros exercerem atividades políticas no Brasil. Traz por completo a lista de pessoas que
não mais seriam admitidas em solo brasileiro e deu ao Governo o poder de limitar, por motivos econômicos e
sociais, a entrada de indivíduos de determinadas raças ou origens (Constituição de 1937).
Brasil, era necessária a tutela de um familiar ou a carta de chamada para trabalho. Em decorrência
disso, os imigrantes ficavam limitados a longas horas de esforço em espaços fabris.
Dentro dessa nova possibilidade se enquadra Maria Vinciprova (2011), que imigrou com o
marido, a filha, a mãe, um irmão e uma irmã para Porto Alegre em 1955. Todos os membros da
família vieram com a “carta de chamada” e emprego garantido. O Brasil já estava em um período
de expansão com a política de imigração mais flexível em decorrência da necessidade de mão de
obra direcionada para a indústria. Maria foi trabalhar por indicação da irmã na Arrozeira Brasileira.
Foi nessa mesma época que adquiriram um terreno. Apesar disso, o salário do marido não alcançava
as necessidades para construir a casa e manter a família. Todos que trabalhavam lá eram italianos.
Tinha inclusive uma italiana que morava há sete anos na Av. Ceará. “Na época que entrei foram
contratados junto comigo cento e quarenta pessoas, e a gerente do meu setor era uma italiana
chamada Conceição.” (VINCIPROVA, 2011).
Ignazio, o marido de Maria, trabalhou seis anos em uma siderúrgica ou laminação de ferro
localizada na Av. Sertório; depois passou a encarregado. Havia período que Ignazio chegava a ter
cinquenta empregados sobre o seu comando aumentando a produção. Maria recorda que o marido
comentava: “comprei a casa, comprei caminhão, comprei tudo! E até uma casinha na praia.”
(VINCIPROVA, 2011). No período da vinda de Maria, os imigrantes italianos constituíam um
grupo com características distintas daqueles que imigraram antes da guerra, porque estavam
dispersos no espaço geográfico e social da capital gaúcha.
Entretanto, na memória coletiva dos que estavam na capital e dos que ficavam aguardando
o chamado em seus locais de origem, persistia o imaginário do enriquecimento, e a ideia de não ter
patrão e ser dono do próprio negócio. Nessa perspectiva, a aquisição de bens, como a casa, tornava
o indivíduo visível e a estabilidade financeira dava-lhe credibilidade. A condição aparente abria
portas para o crédito e o investimento no próprio negócio.
Deve-se considerar que o imigrante que vem após a II Guerra não é o mesmo decorrente da
imigração subsidiada, nem da espontânea ou induzida; esse imigrante possui características
diferentes. A intenção, a opção e a motivação podem ter sido semelhantes, mas os fatores podem e
foram diferentes porque estão conectados com o cenário global em transformação.

Os depoimentos coletados instigam a reflexão sobre a frequência do englobamento do


contrário, seja do estranho demonstrando a existência de tensões em todas as formas de convivência
social. Estas tensões estão implícitas e somente através dos relatos se constata sua existência nas
instâncias públicas, em associações e órgãos oficiais; nos espaços públicos de sociabilidades, nos
espaços privados, ou seja, no interior das residências em suas dinâmicas cotidianas. É possível
descobrir nas falas, alguns imigrantes com elementos em comum, como pobreza familiar e carestia
na guerra, trazendo as mulheres para a dimensão social do trabalho. Outro elemento importante foi
a persistência no imaginário daqueles que imigram de encontrarem a riqueza. Isso de fato prevalecia
nas mentalidades desde os primeiros fluxos, onde se inseriam os negociantes e donos de casas de
comércio.
As falas das mulheres revelam os lugares e os contextos de onde elas falam, suas condições
econômicas dentro da sociedade, seu papel dentro da família, seu condicionante psicológico e o
papel social desempenhado por ela na sociedade. Aquelas que vieram fora do contexto da “velha
guarda”, trazem na bagagem o contexto diferenciado. Elas vêm de um país que está se recuperando
da guerra e buscando se afirmar enquanto nação dentro de seu espaço geográfico, que guarda
singularidades geográficas, sociais e econômicas expressadas nos depoimentos de cada uma.
Durante a Guerra houve uma diminuição do movimento migratório, o que não se configurou
em estagnação porque os imigrantes, continuaram entrando no Brasil de maneira esporádica.
Quando são retomadas as migrações, os imigrantes encontram suporte justamente nos comerciantes
e seus comércios, que retomam seus negócios, viagens e transações. Percebe-se que houve uma
mudança significativa das condições originárias dos primeiros fluxos de deslocamentos. O novo
fluxo se assenta nessa velha estrutura, mas os sujeitos que o integram detém um capital para investir
fora do país de origem. O capital pode ser material conformado em espécie ou imaterial como
qualificação, modo de fazer, credibilidade e prestígio, que começa a ser engendrado antes mesmo
da partida e vai oportunizar sua inserção novo contexto.
Foram os mesmos comerciantes e imigrantes que vieram antes da guerra que fizeram a
intermediação da vinda e auxiliaram os novos imigrantes, orientando sobre as necessidades da
comunidade e, ao mesmo tempo, indicavam locais onde havia a necessidade de determinado
negócio, como armazém, açougue, fruteira e restaurante. Eles também deram subsídios aos parentes
e amigos, como trabalho e dinheiro para que efetuassem a travessia até Porto Alegre. Nesse viés,
tanto as abordagens de Constantino e Leonardo como esta, convergem para a inserção dos
imigrantes no comércio da capital gaúcha. No entanto, se observa que tais fluxos de deslocamento
foram, em grande parte, constituídos por correntes imigratórias diversificadas ocorridas em
momentos históricos distintos.
As depoentes calabresas, inseridas no contexto da “velha guarda”, ressaltam a característica
comercial do pai. Claro, ao lançar o olhar sobre essa questão fundamental, deve-se levar em conta
as tensões existentes no espaço urbano, pertinente não somente aos habitantes locais, mas também
aos antigos imigrantes. Os primeiros temiam que os recém-chegados ocupassem seus locais de
trabalho. Aos antigos imigrantes recebiam os novos imigrantes com desconfiança porque embora
tivessem efetuado o mesmo percurso, não eram vistos com “bons olhos”. Imigraram por diferentes
motivações, não falavam a mesma língua e não tinham os mesmos costumes dos primeiros grupos,
portanto, não comungavam a mesma identidade.
Os locais de onde as mulheres narram suas lembranças carregam símbolos materiais que
sugerem vínculos com o passado, determinando a existência de uma memória histórica que sustenta
suas narrativas. Em alguns casos, esses vestígios estão pendurados nas paredes, guardados nos
álbuns de fotografias, em recortes de jornais, em documentos antigos guardados nas gavetas ou
emoldurados nas paredes. Muitas vezes, eles atestam a existência de uma história que precede suas
próprias existências.

AMATTA, R. Cidadania: a questão da cidadania num universo relacional. In: _____. A casa e a
rua. São Paulo: Brasiliense, 1985, p. 71-102.

BHABHA, Homi K. O local da cultura. Belo Horizonte: Ed. da UFMG, 2005.

BORGES, Stella. Italianos: Porto Alegre e trabalho. Porto Alegre, EST: 1993.

BOSI, Ecléa. Memória e sociedade. São Paulo: T. A. Queiroz, 1983.

BRUM, Rosemary Fritsch. Uma cidade que se conta: imigrantes italianos e narrativos no espaço
social da cidade de Porto Alegre nos anos 20-30. São Luis/MA: EDUFMA, 209.

Cinquantenario della Colonizzazione Italiana Nello stato del Rio Grande del Sud: 1875-1925.
Porto Alegre: Globo; Roma: Ministero degli Affari Esteri dItalia, 1925.

CENNI, Franco. Italianos no Brasil “andiano in merica...”. São Paulo: EDUSP, 2003.

CHARTIER, Roger. O mundo como representação. Estud. Av. v. 5 n.11 São Paulo jan./abr. 1991.
Disponível em: <https://goo.gl/RY1zZy>. Acesso 22 set., de 2017.

CONEDERA, Leonardo de Oliveira. A imigração italiana no pós-guerra em Porto Alegre:


memórias, narrativas, identidades de sicilianos. 2012. 156 f. Dissertação (Mestrado em História)
– Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas, Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do
Sul, Porto Alegre. 2012.

CONSTANTINO, Núncia Santoro de. Espaço urbano e imigrantes: Porto Alegre na virada do
século. In: Estudos Ibero-Americanos. Porto Alegre: PUCRS, v. 23, n. 1, p. 149-164, jun.
1998.

_____. Nas entrelinhas da narrativa: vozes de mulheres imigrantes. In: Estudos Ibero-Americanos.
Porto Alegre: PUCRS, v. 32, n.1, p. 1-225, junho de 2006.

DUMONT, L. Homo hieráquicus: o sistema de castas e suas implicações. São Paulo: EDUSP,
1997.
ELIAS, Norbert. The retreat of sociologists into the present. Theory, Culture and Society, v. 4, n.
2, p. 223-247, 1987.

FRANKLIN, Ruben Maciel. Imigração, fronteiras culturais e identidade étnica: conceitos para um
debate interdisciplinar. In: Outras Fronteiras, Cuiabá, v. 2, n. 2, jul/dez. 2015.

HALBWACHS, Maurice. A memória coletiva. São Paulo: Centauro, 2004.

HELER, Agnes. O cotidiano e a História. São Paulo: Paz e Terra, 2008.

IZQUIERDO, Iván. A arte de esquecer: cérebro e memória. Rio de Janeiro: Vieira e Lent,
2010.

LE GOFF, Jacques. História e memória. Campinas: Ed. da UNICAMP, 1996.

LEI DAS COTAS. Constituição da República dos Estados Unidos do Brasil, promulgada a 16 de
julho de 1934; a “lei de cotas” foi mantida no artigo 151 da Constituição dos Estados Unidos do
Brasil, decretada a 10 de novembro de 1937. Constituições do Brasil. São Paulo: Atlas, 1979.

POLLAK, Michael. Memória e identidade social. In: Estudos Históricos. Rio de Janeiro: Ed. da
UFRJ, v. 5, n. 10, p. 200-212, 1992.

PORTELLI, Alessandro. Entrevista com Alessandro Portelli. In: Historiar. Universidade Estadual
Vale do Acaraú. v. 3. n. 4, jan./jun. 2011. Disponível em:
<http://www.uvanet.br/historiar/index.php/1/issue/view/4>.

THOMPSON, Paul. A voz do passado: História Oral. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1992.

VELHO, Gilberto. Projeto e metamorfose: Antropologia das sociedades complexas. RJ, Zahar,
1994.

VON MÜHLEN Caroline. “Levantou-se dentro da sala forte barulho seguido de gritos e
choro…”: a venda como espaço de transações comerciais e desentendimentos (São
Leopoldo/1846-1865). Disponível em: <https://goo.gl/hm9ZtK> Acesso em 10 de set. de 2014.

Antigas casas de aluguel (atual Centro Histórico-Cultural da Santa Casa). Disponível em:
<https://goo.gl/VuujVt>. Acesso 22 de maio de 2017.
Jornal do Comércio. Historias do Comércio e dos Serviços. Copacabana presencia a história
gaúcha ser feita. Noticiada edição impressa de 19/03/2012. Disponível em:
<https://goo.gl/xvwsMP>. Acesso em 22 de ago. de 2017.

Rua Waschgton Luiz. (foto 1955) Disponível em:


<www.flickr.com/photos/fotosantigasrs/11017137975>. Acesso 25 de jun. de 2017.

AITA, Amalia Morelli. [História de vida] Transcrição do depoimento oral. Acervo. Laboratório
de Pesquisas em História Oral, Programa de Pós-Graduação em História, PUCRS, Porto Alegre,
25 out. 2012, p. 01-12.

CASSARÁ, Dalva Di Martino. [História de vida] Transcrição do depoimento oral. Acervo.


Laboratório de Pesquisas em História Oral, Programa de Pós-Graduação em História, PUCRS,
Porto Alegre, 2010, p. 01-12.

DI GESÚ, MARIA. [História de vida] Transcrição do depoimento oral. Acervo. Laboratório de


Pesquisas em História Oral, Programa de Pós-Graduação em História, PUCRS, Porto Alegre,
Porto Alegre, 06 nov. 2013, p. 01-11.

NANI, Viceza. [História de vida] Transcrição do depoimento oral. Acervo. Laboratório de


Pesquisas em História Oral, Programa de Pós-Graduação em História, PUCRS, Porto Alegre,
2011, p. 01-09.

FERRARO, Angelina Sanzi Ferraro. [História de vida] Transcrição do depoimento oral. Acervo.
Laboratório de Pesquisas em História Oral, Programa de Pós-Graduação em História, PUCRS,
Porto Alegre, 2006, p. 01-09.

VINCIPROVA Maria (Mãe). [História de vida] Transcrição do depoimento oral. Complemento


de informações e coleta de imagens. Acervo. Laboratório de Pesquisas em História Oral,
Programa de Pós-Graduação em História, PUCRS, Porto Alegre, 2011, p. 01- 16.

AÇOUGUE e Fiambreria Itália e Sapataria Bela Roma. Imagem Acervo. Laboratório de


Pesquisas em História Oral, Programa de Pós-Graduação em História, PUCRS, Porto Alegre,
2015.
PROTAGONISTAS: Vicenza Nani, Amalia M. Aita, Maria Di Gesù, Dalva Di Martino, Maria
Vinciprova. Imagens. Acervo. Laboratório de Pesquisas em História Oral, Programa de Pós-
Graduação em História, PUCRS, Porto Alegre, 2010-2015.

SALVATORE Aita. 1943. Imagem. Acervo. Laboratório de Pesquisas em História Oral, Programa
de Pós-Graduação em História, PUCRS, Porto Alegre, 2015.
Vania Beatriz Merlotti Herédia*
Guilherme Griebler**

A cidade de Caxias do Sul conta com um museu especial que trata da presença da Força
Expedicionária Brasileira, na Segunda Guerra Mundial. O museu foi criado por iniciativa de um
ex-combatente, que decidiu socializar a experiência que teve na guerra, junto com outros pracinhas,
e criar um espaço dessa memória. A criação do museu materializou o desejo de reunir fragmentos
de uma história que nem todos conheciam, bem como ter um local de referência, que pudesse
garantir a manutenção de uma série de fontes sobre o evento.
O museu da FEB, em Caxias do Sul, foi criado em 1976 por iniciativa de Alberto Arioli e
companheiros de luta, envolvendo muitas famílias que tiveram seus familiares na guerra. O objetivo
do museu foi reunir artefatos, fotografias, jornais, materiais de guerra, vestimentas e uniformes que
pudessem estimular o imaginário dos visitantes sobre o evento, num viés histórico, político e social,
e permitissem visualizar situações que os pracinhas enfrentaram. O estudo faz uso da História Oral
e utiliza uma entrevista de um dos principais protagonistas do museu da FEB em Caxias do Sul,
que se chama Alberto Arioli.
De acordo com Portelli (1997, p. 31), “a subjetividade do expositor” é um elemento precioso
que auxilia a esclarecer os eventos e seus significados. O autor postula que “a importância do
testemunho oral pode se situar não em sua aderência ao fato, mas de preferência em seu afastamento
dele, como imaginação, simbolismo e desejo de emergir”. (PORTELLI, 1997, p. 32). Neste estudo,
a memória coletiva é tratada segundo a concepção de Halbwachs (2004, p. 32). Esse autor postula
que para compreender uma recordação é necessário que seja “contemporaneamente reconhecida e
reconstruída”. A condição é estar vinculado a um quadro social que possa ser uma referência para
esse reconhecimento. Evidencia que, “no primeiro plano da memória de um grupo se destacam as
lembranças dos acontecimentos e das experiências que concernem ao maior número de seus
membros e que resultam, quer de sua própria vida, quer de suas relações com os grupos mais
próximos”. (2004, p. 49). Quando Halbwachs (2004, p. 38) se refere à memória de apenas um
indivíduo, comenta a necessidade de o mesmo estar vinculado a uma “comunidade afetiva”, que
lhe permite recordar. Essa memória, que é individual, também é coletiva, já que compartilha os
mesmos sentimentos que unem esses indivíduos por meio dessas lembranças. Nesse sentido, os
depoimentos sobre a participação dos pracinhas, que constituem uma memória coletiva, agrupam

* Doutora em História, apoio UCS.


** Mestrando em História pela UCS.
sentimentos comuns que os mesmos vivenciaram, envolvendo, desde o alistamento, a preparação,
a viagem, a luta e suas consequências, e o retorno.

O presidente Getúlio Vargas, durante seu período de governo ditatorial, conhecido como
Estado Novo, criou uma grande campanha nacionalista aliada a uma política intervencionista,
visando o crescimento econômico-industrial do País. A campanha foi marcada por ideais de
patriotismo e civismo, com o objetivo de que o Brasil se tornasse uma nação consolidada em nível
de unidade política, fortalecendo-o como governante. Capelato completa:

O Estado Novo se constituiu em decorrência de uma política de massas que se foi


definindo no Brasil a partir da Revolução de 1930, com a ascensão de Getúlio Vargas no
poder. Esse tipo de política, voltada para as classes populares, desenvolveu-se, no período
entre as guerras, a partir das críticas ao sistema liberal, considerado incapaz de solucionar
os problemas sociais. Nesses anos manifestou-se na Europa, e em outras partes do mundo,
uma crise do liberalismo: os impactos da Primeira Guerra e da Revolução Russa
provocaram, segundo inúmeros autores, uma crise de consciência generalizada que, por
sua vez, resultou em críticas à democracia representativa parlamentar. (CAPELATO,
2007, p.109).

Com a eclosão da Segunda Guerra Mundial, o Brasil procurou não se envolver diretamente
no conflito. Havia interesses econômicos por parte do governo, em ambos os lados. Por simpatizar
e haver semelhanças com os sistemas de governo alemão e italiano, Vargas continuou negociando
com os países do Eixo, mesmo estando sempre mais ligado social e economicamente aos Estados
Unidos. Os jornais da época, que eram os principais meios de divulgação de informações sobre o
que estava acontecendo no “velho continente”, também traziam diretrizes do governo, como, por
exemplo, a proibição de comentários sobre o conflito europeu na época, enquanto o Brasil
mantinha-se neutro. Como é o caso do jornal A Época, que circulava na cidade de Caxias do Sul e,
na ocasião da invasão da Polônia pelos nazistas, trouxe a seguinte notícia:

NEUTRALIDADE! Vinte e cinco anos e dias após, voltam a ribombar os canhões e a ser
derramado o sangue de outra geração, em uma nova conflagração europeia. Esgotadas, ao
que parece, todas as tentativas para a solução pacifica dos problemas [...]. [...] o Brasil terá,
indiscutivelmente, com a atual guerra, influências determinantes em sua economia interna
e externa. [...] Livres, portanto, estamos para mantermos uma política que nos convier,
política essa que salvaguardando os brios de nossa nacionalidade e princípios humanos
que nos têm orientado até hoje, deverá se firmar em bases econômicas. Impõe-se-nos,
entretanto, para que as consequências não nos resultem funestas como em 14, ou mais,
que se adote intransigentemente a política da neutralidade. Mantendo uma neutralidade
até quanto a nossa honra de povo livre e nossos interesses no-lo permitam e lutando com
lealdade e com todas as nossas energias para esse mesmo alheiamento material da grande
hecatombe que está a destruir países irmãos, alimentemos a nossa fé e segurança nos
destinos de nossa pátria, confiantes e serenos, ainda, e que os nossos governantes, mais
uma vez, saberão compreender o seu povo e manter sua integridade moral e material
lutando com todas as forças até o inevitável. Caxias, 02/09/39 (B. NETTO, 1939, p.1).

Já em meados dos anos de 1940, sendo vítima de um “erro diplomático” e nazista, de


afundar qualquer navio mercante que circulasse no oceano Atlântico, juntamente com outras
motivações de cunho político, inclinaram o País a abandonar a neutralidade assumindo uma posição
ativa.
Duroselle observa:

No Brasil de 1942, a pulsão da coletividade em apoiar a participação brasileira na guerra


se formou a partir da cólera, da aceitação de riscos e do estouro da violência, após o ataque
alemão aos navios mercantes brasileiros. Ao analisar a relação intrínseca entre pulsão e
pressão, veremos que a pressão para a participação efetiva na guerra fazia parte do projeto
político-ideológico do governo, que aproveitou a situação como forma de fortalecer a
unidade nacional. A partir da criação de aparatos próprios para a difusão ideológica —
Departamento de Imprensa e Propaganda (DIP), por exemplo — o governo foi capaz de
difundir a imagem do Estado Novo, e, a partir de 1942, conscientizar e mobilizar a
sociedade brasileira a favor da participação brasileira na Segunda Guerra Mundial.
(DUROSELLE, 2000, apud SANTOS, 2006, p.14).

Duroselle percebe a entrada do Brasil na Segunda Guerra Mundial e, consequentemente, o


envio de tropas ao “teatro” de operações, como uma junção das forças que ele entende como pulsão
e pressão. A primeira seria quando o fato em si não tem nenhuma relação com o organizado, ou
seja, ele é característico por ser um movimento externo, que não depende daqueles que geralmente
sofrerão com a sua ação; neste caso, a atitude da Alemanha em relação ao Brasil, e os constantes
ataques sofridos pelos seus submarinos. Já a pressão é entendida como os meios que nos cercam,
por exemplo, a imprensa e as demandas eleitorais. (DUROSELLE, 2000, apud SANTOS, 2006,
p.15).
Além disso, Vargas percebeu a oportunidade que tinha nas mãos. Não de poder juntar-se
aos aliados, mas de alinhar interesses com os Estados Unidos. Escolhendo um lado, e atuando
ativamente no conflito, o presidente sabia que poderia elevar a condição diplomática do Brasil,
tornando-o mais influente na América Latina, sem contar os avanços tecnológicos prometidos pelos
americanos.
Com as contínuas notificações de ataques nazistas a navios brasileiros, começou a
inflamar-se um sentimento patriótico que tomava conta de toda a Nação. Tal sentimento foi tão
intenso, que as forças armadas nem mesmo foram consultadas sobre a entrada oficial na guerra.
Naquele momento, começou a ser elaborada a Força Expedicionária Brasileira, que, dentre os seus
mais de vinte e cinco mil soldados, que a compuseram, enviados à guerra na Europa, 121 saíram de
Caxias do Sul: 12 eram civis que se alistaram como voluntários. O País teve grande dificuldade
para organizar o efetivo de guerra, treiná-lo e também equipá-lo. O lema da “cobra fumando”
refletia a improbabilidade de adesão ao conflito por questões econômicas e também diplomáticas.
Somente dois anos depois da declaração de guerra aos países que compunham o Eixo, é que chegou
à Europa o primeiro contingente brasileiro, que iria atuar no centro-oeste da Itália. Esse contingente
de soldados chegou em meados de 1944, com o objetivo de fazer com que os nazistas
retrocedessem. Mesmo com dificuldades de equipamentos, a FEB conseguiu realizar uma efetiva
ação, logrando algumas vitórias estratégicas para os planos dos Aliados. Além disso, destacou-se
pela sua ação com os moradores das cidades com as quais tinham contato, dividindo até mesmo
refeições com eles, uma vez que, estando em guerra, a circulação de suprimentos ficava
extremamente escassa, e era comum a população enfrentar necessidades.
Henriques elucida:

A FEB transformou-se [...] em algo mais humano, mais vivo, mais real. E os seus
componentes, em atores de uma intensa representação onde houve de tudo: o humor, o
erro de organização, o temperamento do chefe, a dor, a alegria, o medo da morte, a
coragem irrefletida, a inquietação, etc. Representação em que o homem, com o seu
coração e o seu psique, se revelou por inteiro. (HENRIQUES, 1959, p. 9).

O histórico de vida de muitos dos brasileiros que compuseram a Força Expedicionária era
de sofrimentos e privações no Brasil. E quando estes chegaram à Europa, e viram a situação do
povo que ali vivia, naturalmente se sensibilizaram com a causa. Muitas homenagens foram
realizadas, inclusive, com monumentos, museus, em algumas cidades por onde a FEB esteve na
Itália, e também no Brasil.
Durante a investida brasileira na Europa, Vargas intensificou sua política nacionalista,
proibindo o uso de línguas e dialetos derivados do alemão, italiano ou japonês. Além disso, houve
a substituição de nomes de ruas, praças e avenidas, que fizessem alusão a figuras estrangeiras, para
nomes que caracterizassem identidades nacionais. Há relatos de pessoas, descendentes de italianos,
por exemplo, geralmente mais velhos que mal sabiam falar português, que tinham medo de sair de
casa pela possibilidade de serem presos por irem ao mercado comprar mantimentos falando algum
tipo de dialeto.

Os italianos natos foram perseguidos e suas liberdades pessoais foram controladas,


incluindo os da primeira geração. Nas repartições públicas, principalmente as federais e
estaduais, colocavam cartazes com dizeres vistosos: “Aqui é proibido falar em italiano.”
Outros “Tire o chapéu, fale português.” [...] O morador da colônia tinha medo de vir para
a cidade porque o ambiente estava pesado. Diziam que existia a “polícia secreta” em todos
os cantos. (ARIOLI, 2012, p. 51, grifo dos autores).
Além dos homens e das mulheres enviados, o País fornecia matérias-primas como minerais
e borracha, alimentos e, também, produtos industrializados, como munições. A luta dos brasileiros
foi dentro e fora dos campos de batalha, pois um grande esforço de guerra foi articulado no País,
onde várias empresas passaram a produzir para o Exército. E algumas delas, devido também às
grandes exigências de produção, vieram a sofrer acidentes com vítimas fatais.

Alberto Arioli é o protagonista desta história. Foi voluntário e participou da guerra de forma
espontânea. Neto de imigrante italiano, chamado Tommaso Arioli, de Reggiolo, Provincia de
Reggio Emilia, seu pai nasceu em Bento Gonçalves, antiga Colônia Dona Isabel. Trabalhava como
funileiro quando foi convidado pela metalúrgica Abramo Eberle para fazer parte do corpo de
funcionários. Casou-se com a filha de um professor que vivia em Caxias do Sul, da família Pezzi.
Alberto Arioli conta que tomou conhecimento das notícias sobre a guerra por meio de um jornal
que passava no cinema antes do começo dos filmes, denominado Jornal da UFA. Esse jornal tinha
preferências por eventos militares, e Adolf Hitler era um símbolo apreciado. Mas, houve um
momento em que as notícias da guerra passaram da tela do cinema para o centro da praça da cidade,
e este espaço tornou-se um lugar de discursos políticos. Esses comícios datam de 1942. Os mais
fortes e alarmantes ocorreram quando os navios brasileiros foram atacados, e o governo brasileiro
rompeu com a Alemanha, Itália e Japão e assumiu apoio aos ingleses, americanos e franceses.
A guerra não era um fato novo, e sabia-se dos resultados do que havia ocorrido vinte e oito
anos antes, quando declarada a Primeira Guerra Mundial. Mas, em 22 de agosto de 1942, o Brasil
declarou guerra, e essa decisão política significava que o conflito mundial afetaria nosso País.
Criou-se um clima contra os italianos, uma vez que o Brasil havia se colocado do lado contrário ao
da Itália. Para a colônia italiana, era difícil entender todas as exigências que a guerra traria, ou seja:
mudanças de hábitos, perseguições, discriminação, problemas de natureza política, que afetariam a
vida na cidade.
Arioli comenta, que com a queda de “Mussolini, a Itália voltou a ser nossa aliada, e os
ânimos foram apaziguados em nossa região. Os italianos natos e os seus descendentes começaram
um novo amanhã”. (ARIOLI, 2012, p. 59). Arioli descreve como o Brasil comprou um navio
mercante, denominado “Cabedelo”, para participar da guerra em 1942, navio que foi afundado por
um submarino italiano, antes mesmo de o Brasil declarar guerra.

Até o dia 18 de agosto de 1942, os submarinos alemães torpedearam mais de 18 navios


mercantes brasileiros. Após a declaração de guerra do Brasil contra os países do Eixo,
foram afundados 15 navios, totalizando 33. Todos os navios estavam desarmados. No
total, 975 pessoas morreram entre tripulantes e passageiros civis. (ARIOLI, 2012, p. 67).
Os detalhes da descrição feita por nosso protagonista evidenciam que a forma dos ataques
criou um sentimento de desforra, no sentido de retribuir o que haviam feito com os que morreram
pelo Brasil. Quando foi criada a Força Expedicionária Brasileira, acreditava-se que seria possível
dar uma resposta militar ao que acontecera anteriormente. Em 9 de agosto de 1943, por meio da
Portaria Ministerial 4.744, foi criada a FEB, que se constituiu na “1º Divisão de Infantaria
Expedicionária e órgãos não divisionários” (MOREIRA, 2017), que eram a esquadrilha de
reconhecimento e o esquadrão de caças. Pode-se dizer que foi pensada segundo modelo americano.
Quando Alberto Arioli se alistou para a Infantaria, tinha apenas 19 anos e seu alistamento não foi
obrigatório, o fez espontaneamente, pois julgava que era um dever participar da guerra.
Os brasileiros lutaram aliados ao Exército americano. Quando a FEB foi estruturada, o
treinamento de guerra foi feito nos Estados Unidos. Havia um acordo com os Estados Unidos, após
a vinda do presidente Roosevelt ao Brasil, em fevereiro de 1943 (MOREIRA, 2017). O campo de
batalha dos soldados brasileiros foi no território italiano, com a missão de impedir o avanço alemão
para a França. A citação abaixo pontua as vitórias brasileiras que foram contextualizadas para situar
o pensamento do protagonista desta história.

Na Itália, a FEB uniu-se às tropas do V Exército norte americano - integrante do X Grupo


de Exércitos Aliados. Nesse momento, o objetivo das tropas aliadas ali sediadas era
impedir o deslocamento alemão para a França, onde se preparava a ofensiva final aliada.
Era necessário, assim, manter o exército alemão sob constante pressão. As primeiras
vitórias brasileiras ocorreram em setembro de 1944, com a tomada das localidades de
Massarosa, Camaiore e Monte Prano. No início do ano seguinte, os pracinhas participaram
da conquista de Monte Castelo, Castelnuovo e Montese. O conflito, no entanto, não se
estendeu por muito mais. A 2 de maio, o último corpo do exército alemão na Itália assinou
sua capitulação, e a 8, a guerra na Europa chegava ao fim, com a rendição definitiva da
Alemanha (MOREIRA, 2017).

Seu Arioli conta que uma parte da história começou com a compra de um navio mercante
por parte do governo brasileiro, que era chamado de Cabedelo, quando o Brasil entrou de forma
efetiva na guerra. Cabedelo é também o nome que Arioli dá ao livro que escreve sobre a sua
participação na guerra. Quando fala de Cabedelo, lembra que seu comandante era o “Capitão Pedro
Veloso da Silveira” e narra como o navio foi destruído por um submarino italiano; esse fato foi
conhecido apenas após a guerra.

O navio partiu da Filadélfia com destino a Cabedelo, no nordeste brasileiro, no dia 14


de fevereiro. Porém, jamais chegou a seu destino, pois foi torpedeado durante o trajeto.
Na época, após um mês de sua partida, o Itamarati se preocupou e enviou vários
telegramas à Embaixada Brasileira, em Washington, para saber do paradeiro do navio.
Ninguém soube informar qualquer coisa a respeito do destino dos 54 tripulantes.
(ARIOLI, 2012, p. 66).
Segundo nosso protagonista, os tripulantes que morreram nem haviam ainda entrado na
guerra. Em seu livro (ARIOLI, 2012, p. 67), diz: “Uma incongruência histórica, que vitimou os
primeiros brasileiros, que morreram em uma guerra que, sequer, naquela data, havia começado para
o Brasil.” Descreve ainda que 33 navios foram afundados, sendo que “no total, 975 pessoas
morreram entre tripulantes e passageiros civis.” (p. 67).
Arioli comenta que o local, onde estava instalado o Exército americano e inglês, não era
distante do lugar de combate. Nesse campo, foram feitos treinamentos para os brasileiros em julho
de 1944 e os mesmos foram para combate apenas em setembro daquele ano: “eram integrantes do
primeiro escalão do Sexto Regimento de Infantaria, e deram início às operações de combate no
setor do Rio Arno, ao sul da cidade de Pisa, na Toscana, onde se obteve importantes vitórias, como
a de Camaiore.” (ARIOLI, 2012, p. 70).

O serviço militar para os jovens no Brasil é uma regra estabelecida por lei. O alistamento
não significa que o jovem será incorporado às Forças Armadas. A instituição do serviço obrigatório
remete à Lei 1.860, de 1908, que “instituiu o serviço militar obrigatório, extinguiu a figura do
soldado profissional e estabeleceu que a convocação se faria por sorteio.” (LEAL, 2007, p. 6).
A Lei 1.860, de 4 de janeiro de 1908, regula o alistamento e sorteio militar e reorganiza o
Exército.1 É apenas em 1915 e 1916, por meio de uma campanha liderada por Olavo Bilac,
que essa norma é incorporada à legislação com fins práticos.
Entretanto, quando Alberto Arioli se alistou para participar da FEB, tinha convicção de que
seria convocado. Havia lido, no jornal da cidade A Época, que estavam recrutando civis para
participarem da FEB. A obrigatoriedade do serviço para os jovens não implicava ir para a guerra.
São Leopoldo, para Alberto Arioli, foi a primeira etapa do deslocamento. Os inscritos em Caxias
para participarem do movimento bélico eram 12, incorporados ao Oitavo Batalhão de Caçadores
de São Leopoldo e o número de envolvidos para o treinamento armado foi de 500 homens. Segundo
Arioli:
A unidade recebeu gente do interior (estes convocados), pessoas da colônia alemã que não
sabiam falar português. Dava pena, eram pessoas humildes, da colônia, mas tínhamos
alguns sargentos que falavam alemão, por serem da região e, isto, facilitava bastante. O
nosso comandante, muito rígido, resolveu mandar colocar no braço desses soldados, uma
fita preta, com a recomendação de que somente poderia sair do quartel quando soubessem
um português razoável. (ARIOLI, 2012, p. 87).

Ver Serviço Militar obrigatório em: <http://www2.camara.leg.br/legin/fed/lei/1900-1909/lei-1860-4janeiro


1..
-1908-580934-publicacaooriginal-103780-pl.html>. Acesso em: 3 agosto de 2017.
Depois de São Leopoldo, a segunda etapa de deslocamento foi Rio de Janeiro, e a terceira
o embarque para o campo de batalha no Exterior. Em São Leopoldo, ficaram quase seis meses e,
no Rio de Janeiro, quinze dias, e na viagem mais quinze. O desembarque foi em Nápoles. Arioli
narra que, quando chegou a Nápoles, conheceu o vulcão que marcava aquela paisagem.

Enfim, chegávamos ao roteiro final: Nápoles. Neste dia, recordo que me perguntaram
como eu sabia em que cidade estávamos, afinal, eu nunca estivera lá. Contei-lhes, então
que assistira a um filme chamado Os últimos dias de Pompéia, em que Vesúvio era o
personagem principal. O dito vulcão tinha destruído a cidade fundada pelos gregos,
chamada de Pompeia, com suas lavas e seus gases. (ARIOLI, 2012, p. 92).

De Nápoles, os pracinhas brasileiros foram transportados para o acampamento, próximo ao


campo de batalha, onde receberam treinamento específico sobre o armamento que usariam. “Foi
um mês de treinamento intensivo, marchas de dia, de noite, aprendizados com metralhadoras
pesadas, submetralhadoras, fuzis Garand, Springfield, bazucas, tiros diretos com tanques de guerra
desativados.” (ARIOLI, 2012, p. 94).
O relato desse voluntário que foi lutar pela nação, numa pátria desconhecida, onde seus
antepassados tinham uma história comum, mostra a coragem e o despreendimento no
enfrentamento do perigo da guerra. Descreve Monte Castelo, um local montanhoso, como a mesma
foi conquistada por eles e o número de mortos brasileiros naquele ataque contra os alemães, em que
foram vitoriosos.

Com o ataque, os alemães fugiram, possibilitando, assim, a entrada de todo o elemento


bélico motorizado, como tanques, em direção a Bologna, Veneza, Módena, Parma e outras
cidades. Foi uma vitória sofrida, extraordinária, creditada ao 1ºRegimento de Infantaria do
Rio de Janeiro, o famoso Sampaio. Unidade brasileira que patrocinou aquela importante
vitória com o custo pesado da morte de mais de 300 soldados nossos. (ARIOLI, 2012, p.
97).

Após essa vitória, novo alvo havia sido traçado pelos estrategistas da guerra. Estávamos
próximos do fim da guerra, mas os soldados ainda não tinham essa dimensão. O alvo era a cidade
de Montese, que se localizava atrás de Monte Castelo, onde os alemães haviam se instalado. Após
essa cidade, continuou o avanço das tropas. Antes da derrubada de Mussolini do poder, os italianos
conviviam com os alemães de forma espontânea, mas depois se tornaram inimigos. A rendição dos
alemães estava prestes a acontecer.

O retorno ocorreu de forma muito rápida. Logo depois da rendição da Alemanha,


começaram os embarques de volta para casa. Nosso protagonista lembra detalhes dos últimos dias
na Itália, passando por Bologna e Parma, de como eram recebidos nas cidades pelas quais
passavam, com sentimentos de heróis da época. Lembra que a população italiana os chamava de
nostri libertatori e os recebiam com flores e alegrias. Os últimos lugares de operação de guerra
foram Collecchio e Fornovo di Taro, na Província de Parma, na região da Emília Romanha e tem
limite com Collecchio, Medesano, Sala Baganza, Solignano, Terenzo e Varano de Melegaro.
A batalha de Fornovo di Taro foi uma das últimas lutas que o Exército brasileiro enfrentou
na guerra. Contam que um vigário teria conversado com os alemães sobre a possibilidade de
rendição e que foi solicitado um documento sobre o pedido e que, após a entrega, o oficial teria
consultado seus superiores. O documento deveria expressar as condições da rendição. Eram “nada
menos de 14.779 alemães e italianos que se tornaram prisioneiros em dois campos próximos
instalados pelos brasileiros. O General Otto Freter Pico, comandante da 148ª Divisão de Infantaria
e o General Mario Carlon, por meio dos generais brasileiros Zenóbio e Falconiere,
entregam o comandante alemão e italiano ao 5º Exército norte-americano2”. Arioli (2012)
recorda que parecia uma procissão a saída dos alemães que se rendiam a eles.
Arioli (2012) relembra ainda que tinha quase consciência de que estava acabando a guerra
e que algo muito importante ocorreria. As marcas da guerra estavam em todos os detalhes da
paisagem: destruição de casas, de pontes e muitas mortes no caminho. Numa das últimas noites,
foram dormir num cemitério que se localizava no alto da pequena cidade. A vista desse lugar
permitia dominar o horizonte. De lá, conseguiram visualizar o movimento dos inimigos. O lugar
era privilegiado e permitiu o domínio de todo o ataque que foi favorável aos brasileiros que ali
estavam. Os alemães estavam cercados. “Era o nosso dia de desforra e que durou cerca de uma
hora, sempre com o coração palpitando, os olhos esbugalhados e a adrenalina em seu limite
máximo. Indescritível. Era o momento máximo do terror, do medo.” (ARIOLI, 2012, p.109).

Figura 1 – Pracinhas da FEB em Caxias do Sul/RS 3

Fonte: Arquivo Histórico Municipal João Spadari Adami.

.Disponível em: <https://goo.gl/BV1joX >. Acesso em: 3 agosto de 2017.


2 .
3Pracinhas da FEB, na praça central de Caxias. Imagens cedidas por Alexandre Milesi de seu avô Maximiliano
Zattera, ex-combatente da FEB.
Figura 2 – Pracinhas da FEB em Caxias do Sul/RS 4

Fonte: Arquivo Histórico Municipal João Spadari Adami.

Figura 3 – Pracinhas da FEB em Caxias do Sul/RS 5

Fonte: Durval Junior.

A guerra foi duplamente dificultosa para os homens, como seu Arioli. Participar de um
conflito mundial, em um Exército que enfrentou toda a sorte de problemas e precariedades,
enquanto seus amigos e familiares sofriam as duras repressões por parte do governo, não foi uma
empreitada fácil.
A história destes nossos heróis, ainda não é clara para todos. Os brasileiros não têm
consciência da verdadeira participação do seu País no conflito. Nem os italianos, apesar de grande
parte da população presente naquelas regiões de guerra ter tido contato com os soldados da FEB,
não são ensinados sobre a participação do Brasil na libertação do seu povo.
O que traz à tona essa “história não contada” são os relatos de seus protagonistas, pequenas
histórias que não foram esquecidas. Fontes que, muitas vezes, por traumas de guerra, não puderam

4 Despedida dos pracinhas da FEB, com desfile na praça central de Caxias. De onde partiram para Porto Alegre,
rumo ao Rio de Janeiro,embarcando no navio a vapor com destino à Itália, para juntarem-se aos soldados das
forças aliadas na Segunda Guerra Mundial. Imagens cedidas por Alexandre Milesi de seu avô Maximiliano
Zattera, ex-combatente da FEB. .
5 Uma companhia do III Batalhão do 11ºRegimento de Infantaria da Força Expedicionária Brasileira na
Segunda Guerra Mundial. Disponível em: <https://goo.gl/qKcX4z>. Acesso em: 30 julho de 2017.
ser tão exploradas. O que nos resta, então, é resgatar essa história. As lembranças, as fotografias, os
relatos são possibilidades de explicitar esses fatos. Todas essas fontes devem ser exploradas. Um
relato, além de nos trazer uma informação, pode nos mostrar um pouco mais daquilo que sabemos,
pode permitir “passear” pela História, por meio de experiências narradas, que revelam detalhes que,
de outra forma, talvez passassem despercebidos.
Arioli (2012, p. 97) faz uma declaração do que entende por heróis e explica que a sociedade
banalizou esse conceito. Para ele, o herói é “aquele que deixou marcas indeléveis, deixando o seu
currículo de vida acima de todas as circunstâncias normais e transcendendo o eterno. É aquele que
deixou sua vida como um símbolo, sem manchas, que nem mesmo as palavras podem definir”.

ARIORI, Alberto. Cabedelo: a odisseia de uma vida. Caxias do Sul: Quatrilho, 2012.

BANTI, Alberto Mario. L’età contemporanea: dalla grande guerra a oggi. Bari: Laterza, 2009.

CAPELATO, Maria Helena. O Estado Novo: o que trouxe de novo? Rio de Janeiro: Record,
2007.

DUROSELLE, Jean Bapstiste. Todo império perecerá. Rio de Janeiro: Ed. da FGV, 2000.

FRANZINA, Emílio. A história (quase verdadeira) do soldado desconhecido. São Paulo:


Martins Fontes, 2016.

HALBWACHS, Maurice. A memória coletiva. São Paulo: Centauro, 2004.

HENRIQUES, Major Elber de Mello. A FEB doze anos depois. Rio de Janeiro: Biblioteca do
Exército, 1959.

LEAL, Alberto. Serviço militar obrigatório: a alternativa adequada. Diretoria de Serviço Militar.
Brasília, 2007. Disponível em: <https://goo.gl/WHRJAz>. Acesso em: 3 ago. 2017.

MOREIRA, Regina da Luz. Fatos & Imagens > 1944: O Brasil vai à guerra com a FEB.
Disponível em: <http://cpdoc.fgv.br/producao/dossies/FatosImagens/FEB>. Acesso em: 05 set.
2017.

NASCIMENTO, Luiz Augusto Rocha do. Serviço militar obrigatório no Exército brasileiro:
(re)formando o cidadão. Juiz de Fora: UFJF, 2007. Disponível em: <https://goo.gl/r4YFrg>.
Acesso em 4 ago. 2017.

NETTO, João Brusa. Neutralidade. In: A Época. Caxias do Sul, a. 1. n. 49, 3 de set.de 1939.
PORTELLI, Alessandro. O que faz a história oral diferente. Projeto História. Revista do
programa de Estudos pós-graduados de História. São Paulo, v.14, p. 25-39, fev.1997.

SANTOS, Luciana Ibarra dos. Há algo de novo no front: a participação do Brasil na Segunda
Guerra Mundial. 2006. Dissertação (Mestrado em História) – PUCRS, Porto Alegre. Disponível
em: <https://goo.gl/J9nPYE>Acesso em 04 de agosto de 2017.
Caroline Beskow Quintana*

O presente artigo foi elaborado com base no terceiro capitulo da minha monografia,
intitulada “Hotelaria em Pelotas na década de 1940: proprietários alemães ou descendentes”. O
trabalho também se insere no projeto de pesquisa “A história da hotelaria em Pelotas na primeira
metade do século XX”, financiado pelo edital MCTI/CNPq nº 14/2014.
O objetivo deste artigo é analisar os impactos da II Guerra Mundial nos hotéis cujos
proprietários eram alemães ou descendentes, analisando o “quebra-quebra” de agosto de 1942, na
cidade de Pelotas. Para isso foram identificados 5 hotéis que estavam em funcionamento em 1942,
cujos proprietários eram alemães ou descendentes, e que tiveram seus estabelecimentos atacados
em agosto do mesmo ano, durante o “quebra-quebra” ocorrido em Pelotas.
Foi aplicada a História Oral, utilizando a narrativa de quatro entrevistados. As entrevistas
foram gravadas e transcritas. A História Oral é “uma pratica de apreensão de narrativas feita através
do uso de meios eletrônicos e destinada a: recolher testemunhos, promover analises de processos
sociais do presente, e facilitar o conhecimento do meio imediato.” (MEIHY; HOLANDA, 2011, p.
18). Este método de pesquisa permite “recuperar aquilo que não encontramos em documentos de
outra natureza: acontecimentos pouco esclarecidos ou nunca evocados, experiências pessoais,
impressões particulares.” (ALBERTI, 2005, p. 22).
Na pesquisa, utilizou-se também fontes bibliográficas, como as listas telefônicas do Guia
de Assinantes da Companhia Melhoramento e Residência e os Almanaques de Pelotas, onde
obteve-se os endereços dos hotéis pesquisados, bem como seus proprietários e as fontes
jornalísticas, principalmente o jornal Diário Popular, para a busca de datas, como fundação dos
hotéis, entre outras informações.
As informações foram analisadas de forma qualitativa, descritivamente, utilizando as falas
dos entrevistados, as quais, em determinadas situações, foram transcritas literalmente.
Pelotas recebeu imigrantes alemães durante todo o século XIX, mas principalmente na
segunda metade, após o término da Revolução Farroupilha, em 1845. A região serrana da cidade
foi destinada ao assentamento de imigrantes europeus, entre eles, alemães e italianos, o que
aconteceu, basicamente por capitais particulares (ANJOS, 2000).

* Universidade Federal de Pelotas, mestranda em História/PPGH; trabalho vinculado ao projeto de pesquisa


“A História da Hotelaria em Pelotas na primeira metade do século XX”, financiado pelo edital MCTI/CNPq Nº
14/2014.
As colônias alemãs no sul do Brasil, segundo Fachel (2002, p. 34), “serviram para valorizar
as terras não ocupadas pela pecuária, produzir alimentos para o mercado interno brasileiro e
contrabalancear o poder político da elite latifundiária frente ao governo central.”.
Durante a segunda metade do século XIX e o início do século XX, alemães e seus
descendentes abriram hotéis em Pelotas, contribuindo para o desenvolvimento desta atividade na
cidade. Alguns desses hotéis foram alvos do “quebra-quebra” em agosto de 1942, durante a II
Guerra Mundial. De acordo com Fachel (2002), o “quebra-quebra” ocorreu em estabelecimentos
comerciais e residências de alemães e seus descendentes na cidade de Pelotas.

A década de 1940 foi marcada pela II Guerra Mundial, fato que afetou a economia de todo
o mundo, incluindo o Brasil, que entrou na guerra em agosto de 1942. Nesta data, os imigrantes
alemães e seus descendentes residentes no Brasil sofreram com a violência causada pelos
brasileiros. Neste contexto, Pelotas também foi atingida, tendo vários estabelecimentos atacados,
saqueados, queimados e/ou fechados. Assim, se faz necessário realizar uma breve descrição do
contexto da II Guerra Mundial.
Serão analisados, de forma breve, alguns acontecimentos anteriores à II Guerra Mundial,
quando, em 1930, Getúlio Vargas chegou à presidência do Brasil.

Vargas inicia um período da história brasileira marcada pelo crescente intervencionismo


federal em assuntos de diversas esferas da sociedade, pela centralização do poder nas mãos
do presidente e pela tentativa de unidade nacional. Essas características do governo de
Vargas atingem seu auge em 1937 com a promulgação da nova Constituição e a
implantação do Estado Novo (1937-1945), que apresentava o corporativismo e a
promoção da harmonia social dos diferentes grupos do país gerando a integração para a
unidade nacional. (BONET, 2008, p. 2).

De acordo com Vianna (1939, apud BONET; ABREU, 2009):

O período conhecido na história nacional como Estado Novo teve seu início no dia 10 de
novembro de 1937, quando o Congresso Nacional foi fechado e uma nova Constituição
foi promulgada. Sob o comando de Getúlio Vargas, essa nova forma de governo foi
imposta e justificada como a mais adequada para a realidade e para as necessidades do
país (VIANNA, 1939, apud BONET; ABREU, 2009 p. 1).
Sobre a nova Constituição, Bonet e Abreu (2009, p. 1) afirmam que “a nova Constituição
centralizava o poder nas mãos do presidente, fortalecia a intervenção estatal na economia e
estimulava a organização sindical em moldes corporativistas.”
Em 1º de setembro de 1939, quando invadiu a Polônia, a Alemanha entrou oficialmente na
II Guerra Mundial (BONET; ABREU, 2009). E, segundo esses autores, os Estados Unidos e a
Alemanha lutavam por um posicionamento do Brasil. O Brasil representava para os Estados Unidos
e para a Alemanha um grande mercado fornecedor de matérias-primas e consumidor de produtos
manufaturados. Enquanto isso, Vargas negociava vantagens comerciais com os dois países.
Segundo Fachel (2002), um dos motivos do posicionamento de Getúlio Vargas foi:

Sob pressão econômica e militar dos Estados Unidos, precisando de financiamentos para
a construção da Siderúrgica de Volta Redonda, da manutenção das exportações para os
aliados e na eminência de sofrer uma ocupação no nordeste brasileiro, Vargas foi coagido
a se definir. Ao lado da cedência de bases no Rio Grande do Norte e da posterior
subordinação da FEB aos norte-americanos, o governo brasileiro, num aparente absurdo,
decretou violenta repressão aos nazi-fascistas [sic] ligados aos governos do eixo.
(FACHEL, 2002, p. 37).

Segundo Bonet (2008), em janeiro de 1942, ocorreu a Reunião dos Chanceleres na capital
do Brasil, onde:

O governo estadunidense cobrou o cumprimento dos acordos de solidariedade continental


firmados anteriormente. Dias antes dessa reunião, Getúlio Vargas escreveu em seu diário:
“das minhas conversas, do que observo, fico apreensivo. Parece-me que os americanos
querem nos arrastar à guerra, sem que isso seja de utilidade, nem para nós, nem para eles.”
Apesar dessas divagações de Vargas, no dia 28 de janeiro, no encerramento da
Conferência, foi anunciada oficialmente a decisão de romper relações diplomáticas com o
Eixo. Apenas Argentina e Chile não aderiram ao acordo. Getúlio Vargas, mais uma vez
em seu diário, aponta a forte pressão estadunidense para essa tomada de decisão: “A
maioria dos países americanos que adotaram essas soluções de declarar guerra ou romper
relações não o fez espontaneamente. Foram coagidos pela pressão americana”. (BONET,
2008, p. 4, grifos do autor).

Segundo Fachel (2002), para mostrar que o posicionamento do Brasil era firme e
demonstrar sua nova fé, “a polícia do Estado Novo passou a perseguir todas as manifestações
culturais dos alemães, italianos e japoneses ou de seus descendentes.” (FACHEL, 2002, p. 37).
De acordo com o mesmo autor, o governo brasileiro havia decretado uma violenta repressão
aos países ligados aos governos do eixo, e, com a política do Estado Novo, passaram a perseguir
todas as manifestações culturais de alemães, italianos e japoneses incluindo os seus descendentes,
mostrando uma confusão entre o nazismo e a identidade cultural destes imigrantes, o que acarretou
a indignação brasileira ao povo alemão. Essa confusão não começou quando o Brasil entrou
oficialmente na Segunda Guerra Mundial, como apontado por Fachel (2002):

Os litígios e os preconceitos contra os teuto-brasileiros foram evidenciados durante a


Primeira Guerra Mundial, quando ainda não havia a justificativa de combate à “Quinta
Coluna” ou ao nazismo. A destruição de estabelecimentos comerciais da etnia alemã e
preconceitos raciais ocorreram em Porto Alegre e na zona sul do Estado, demostrando que
as violências que serão estudadas não foram novidade ou problemas limitados à região de
Pelotas ou à conjuntura da Segunda Guerra. (FACHEL, 2002, p. 35).

Porém, foi com a entrada oficial do Brasil na Segunda Guerra Mundial que a violência
contra os “teuto-brasileiros” se acentuou.

E por coincidência foi sob um governo ditatorial, de nacionalismo exacerbado, guerra


comercial, informações e propagandas manipuladas nos “meios de comunicação de
massa”, que ocorreu a Noite dos Cristais (9-10/11/1938), quando as lojas dos judeus foram
destruídas, seus templos incendiados e confinados em guetos e em prisões na Alemanha.
Os dias dos “cristais”, para os teuto-brasileiros, ocorreram em agosto de 1942, quando
suas lojas foram saqueadas e destruídas em várias cidades brasileiras. Pelotas e Porto
Alegre são dois exemplos. Algumas igrejas queimadas, as duas que existiam em Pelotas
(paradoxalmente de religiões distintas), e segregados nas colônias, de onde não podiam
sair sem expressa licença policial. (FACHEL, 2002, p. 35).

Ainda, segundo Pinheiro (1995):

Após o rompimento de relações diplomáticas em janeiro, seguido de crescente


colaboração à causa aliada, o torpedeamento de vários navios brasileiros por submarinos
alemães levou o governo Vargas a, finalmente, declarar guerra à Alemanha e à Itália com
amplo apoio da população. [...] A Conferência de Chanceleres do Rio de Janeiro (III
Reunião de Consulta dos Ministros das Relações Exteriores das Repúblicas Americanas,
15-28 de janeiro de 1942) consolidou a colaboração latino-americana com os Estados
Unidos. (PINHEIRO 1995, p. 2).

Segundo Perazzo (2003), de 1942 a 1945, alemães, japoneses e italianos foram presos,
confinados, por serem “súditos do Eixo” no que denominamos de Campos de Concentração. No
sul do país, a comunidade teuto-brasileira foi “rotulada com a expressão “súditos do Eixo”, aplicada
até mesmo a brasileiros descendentes de alemães, que chegavam a ser presos por causa de questões
culturais (língua, tradições, etc.).” (PERAZZO, 2003, p. 3). E, segundo a autora:
A vigilância e a repressão estenderam-se a todos os estrangeiros do Eixo, mas variavam
de intensidade de grupo para grupo. Os alemães foram os mais visados pelas perspectivas
nacionalistas do governo Vargas e, consequentemente, os mais atingidos pelas medidas
governamentais. Somando o maior número de cidadãos encarcerados, eles representavam
uma dupla ameaça: enquanto grupo étnico que insistia em supervalorizar sua cultura e
atuar politicamente nos moldes de um regime estrangeiro, colocando em risco o projeto
nacionalista interno e, como súditos de um chefe com ambições imperialistas, como era o
caso de Hitler, representavam um perigo internacional. (PERAZZO 2003, p. 2).

No dia 18 de agosto de 1942 foi noticiado em jornais que três navios mercantes brasileiros
foram afundados por submarinos do “Eixo” no litoral brasileiro. Essa notícia desencadeou uma
onda de revolta contra a comunidade germânica em diferentes regiões do Estado (FACHEL, 2002).
No dia em que o Brasil entrou na II Guerra Mundial, contra os países do eixo (Alemanha, Itália,
Japão e países satélites), conforme anunciada pelos jornais Opinião Pública e Diário Popular, se deu
início a uma passeata no centro da cidade de Pelotas, conhecida como o grande “quebra-quebra”,
tendo como alvos os estabelecimentos comerciais e residências de alemães e italianos que residiam
em Pelotas.
As manifestações e depredações na cidade deram início às 48 horas de saques, queimadas
e invasão aos estabelecimentos e residências dos teuto-brasileiros. Entre estes estabelecimentos
estavam os hotéis cujos proprietários eram alemães ou descendentes. Obtive informações de que
cinco hotéis foram atacados durante o “quebra-quebra” em Pelotas, em 18 e 19 de agosto de 1942.
Foram atacados os seguintes hotéis: o Hotel América, o Hotel do Comercio, o Hotel Gloria, o Hotel
F. Treptow e o Hotel Fiss e Tessmann.

À noite, à medida que a exaltação popular aumentava, uma multidão incalculável,


vibrando de revolta, apedrejou diversas casas comerciais alemãs, num ímpeto incontido
de vingar a infâmia dos assassinatos nazistas que não se apiedam nem as crianças, nem as
mulheres indefesas e inocentes. Indomável e fiel aos seus propósitos de também colaborar
na defesa da nação, o povo atacou os Hotéis do Comércio e América, de propriedade de
alemães, a residência do dentista Tochtrop, a ferragem Nieckele, Palmeira e Cia, Monti
Knabe e mais outras firmas germânicas. (DIÁRIO POPULAR, 19.08.1942, p. 2).

Na notícia acima, do jornal Diário Popular, é relatado que a multidão apedrejou diversas
casas de alemães, entre elas o Hotel do Comércio e o Hotel América. Ressalta-se aqui a confusão
comentada por Fachel (2002) entre a identidade cultural dos alemães e o nazismo, pois não foram
os nazistas atacados na cidade e sim os imigrantes alemães e descendentes de alemães.

Foram em grande número as casas comerciais e residências, pertencentes a súditos do


eixo, depredadas, ontem, durante a tarde: Hotel América, Hotel do Comércio, Ferragem
P. H. J. Marxen, Fotografia Santos, Igreja São João, Cortume Júlio Hadler, Armazém Fiss
e Tesmann, dr. Tochtropp, Alfaiataria Caprio, G. Keil, Willy Petzold (banca de frios no
Mercado e residência), F. Treptow e Cia., Luiz Gutchow, residência de J. Guadalajara e
algumas outras, cujos proprietários não foi possível a reportagem identificar, em virtude
da confusão reinante no momento. (DIÁRIO POPULAR, 20.08.1942, p. 2).

Nesta notícia, é relatado que um grande número de casas comerciais foi depredado no dia
19 de agosto, no período da tarde, dentre eles: o Hotel América, o Hotel do Comércio, que foram
citados na notícia anterior, o Armazém Fiss e Tessmann e o Hotel de F. Treptow e Cia.
O “quebra-quebra” não foi um fator isolado da cidade de Pelotas, pois, conforme Fachel
(2002), aconteceram depredações em Porto Alegre e outras cidades do Sul do estado. O autor
também esclarece que não foi apenas com a entrada do Brasil na II Guerra Mundial, mas que a
partir da I Guerra estes incidentes já ocorriam. Porém, em agosto de 1942, estes ataques ocorreram
de forma acentuada. “Os dias dos “cristais”, para os teuto-brasileiros, ocorreram em agosto de
1942, quando suas lojas foram saqueadas e destruídas em várias cidades brasileiras. Pelotas e Porto
Alegre são dois exemplos.” (FACHEL, 2002, p. 35).
O Hotel América foi incendiado em 1942, durante o “quebra-quebra”, como mostram as
Figura 1 e a Figura 2. Após os ataques, o proprietário não abre mais o hotel. Porém, no mesmo local
é aberto outro hotel, cujo proprietário não era alemão ou descendente, mas com o mesmo nome.
Assim, em 1947 estava em funcionamento o Hotel América, na rua Félix da Cunha, nº 604, de
propriedade de Florentino Vieira F. (COMPANHIA, 1947).

Figura 1 – Incêndio ao Hotel América

Fonte: Acervo Pelotas Memória.


Figura 2 – “Quebra-quebra” no Hotel América

Fonte: Acervo Pelotas Memória.

O Hotel do Comércio também foi atacado. E segundo a entrevistada, Erna (2005), em 1942
o hotel fechou, pois, o proprietário foi preso durante o “quebra-quebra”, não abrindo novamente
com o mesmo proprietário. Em 1943 foi aberto no local o “Novo Hotel do Comércio”, pelo ex-
proprietário do Hotel Rego (Diário Popular, 11.07.1943, p. 6).
Segundo Perazzo (2003), os teuto-brasileiros foram rotulados com a expressão “súditos do
Eixo”, e esta era aplicada até mesmo a brasileiros descendentes de alemães, que eram presos por
questões culturais como língua e tradições.
A entrevistada Erna relata o que aconteceu no dia que atacaram o hotel:

Aí houve aquelas quebras e queimas por causa da Guerra Mundial, da II Guerra Mundial.
Aí uma noite, eles vinham pela Sete de Setembro e foi tudo assim um movimento. Havia
assim de gente, com pedras nas mãos e começaram até a atirar pedra nas janelas no
segundo andar. Aí quebrou vidro e não tinha hóspede quase, assim durante a noite; não
tinha muitos. Muita gente usava aquele hotel para vir fazer compras, para consultar de São
Lourenço, Camaquã, assim de Morro Redondo; paravam durante o dia. Também pediam
um quarto, e no momento que aquelas pessoas saíam, aí tinha que ser tudo já... Trocada a
roupa para não... E aquela noite o que que a gente fez? De repente... Tinha o porteiro e o
porteiro não queria deixar entrar ninguém. Eles queriam entrar e atirar tudo para a rua; aí
não deixou o porteiro velho. Seu Julio era o nome dele. Aí veio um soldado e pedia
bandeira brasileira. Aí eu que guardava a bandeira junto em um armário de guarda roupa,
eu dei a bandeira para o soldado e ele hasteou a bandeira. Aí eles bateram palma, aqueles
invasores. Aí eles foram embora e o que que nós tinha que fazer no outro dia? Limpar toda
vidraça quebrada. Tinha ali uns viajantes, mas foram embora para outro hotel; ficaram
com medo. Quando era meio dia, quando a comida estava pronta, embaixo era as
cozinheiras, e eu a camareira, nós trabalhávamos em cima... (Erna Schüller Weirich,
2005).
A partir da fala da entrevistada pode-se afirmar que a multidão que praticou os ataques no
“quebra-quebra” eram pessoas da cidade, cidadãos comuns, acompanhadas de guardas, que
chegaram atirando pedras e pedindo para hastear a bandeira do Brasil, como símbolo de patriotismo,
negando a identidade alemã dos proprietários.
Segundo Perrazzo (2003), a repressão se estendia a todos os estrangeiros do Eixo, mas
variava de intensidade de acordo com o grupo, sendo os alemães os que mais sofreram com os
ataques: “Os alemães foram os mais visados pelas perspectivas nacionalistas do governo Vargas e,
consequentemente, os mais atingidos pelas medidas governamentais”. (PERAZZO 2003, p. 2).
A entrevistada Erna continua com o seu relato sobre o “quebra-quebra”:

Os quartos eram em cima e eu trabalhava, ajudava na lavação de roupa e nós duas


trabalhávamos em cima; ela já é falecida agora. Aí [quando] a gente não tinha ainda
almoçado. Mas aí vieram turma de gente de Pelotas mesmo, e aí eles invadiram, eles
atiraram as panelas com comida quente no meio da rua, na rua Sete de Setembro. E aí o
que que nós tínhamos para fazer? Nós fomos bem para o fundo. Tinha até uma pessoa
com duas crianças. Ela se tratava da... Ela estava doente, mas não queria ficar no hospital;
então ela ficava hospedada lá. Aí eu não aguentei mais a barulhada. O que vinha pela frente
era jogado na rua, aí eu passei num muro, assim do lado do hotel que não era tão alto, tinha
até uma caixinha. Mas depois que eu passei do muro era bem alto para eu [...] eu não
aguentei, [...] a gente ouvia a barulhada, as quebras, atiraram as camas, guarda roupa, bidê,
tudo para a rua. Lá naquele tempo já era com tudo, com pia, quebrando os canos, não ficou
um prato, não ficou um garfo, eu acho, lá dentro da cozinha. Tudo, tudo, tudo, a mesa, as
cadeiras e [o] fogo. E os bombeiros molhando as paredes da casa dos outros, para não
arder o incêndio e o dono do hotel foi preso. (Erna Schüller Weirich, 2005).

O hotel foi atacado duas vezes. Na primeira pediram apenas para hastear a bandeira do
Brasil, mas voltaram no segundo dia de “quebra-quebra” para destruir, queimar e saquear o hotel,
levando os pertences de quem estava hospedado e dos funcionários do hotel. Segundo a
entrevistada, “não ficou um garfo no hotel, tudo foi levado e destruído e por fim o dono do hotel
foi preso.” (Erna Schüller Weirich, 2005).
Ainda, conforme a entrevistada Erna, o senhor Germano Bunde, dono do hotel, era natural
da Alemanha. Sobre a mulher do Germano, também chamada Erna, “a dona não estava [...] nós
tínhamos uma governanta com nós no lugar da patroa. Aquela pobre coitada já velha, aquela acho
deixaram sair pela porta da frente [...]” (Erna Schüller Weirich, 2005). A esposa do senhor Germano
não se encontrava no hotel no momento dos ataques.
A entrevistada Erna retornou ao hotel na tarde do ataque para tentar recuperar os seus
pertences e relata:
Mas aí depois de tarde, eu e a outra guria que trabalhava lá, – ela já era de mais idade –, aí
nós fomos lá. Vamos ver se já sobrou alguma coisa! Mas estava só água pingando, um
alagamento e tinha, acho que era um PM com o despertador na mão, o despertador do
hotel. E eu disse assim para a Emília: “olha o despertador do Seu Germano!” E ele disse:
“Não, você não tem nada que ver aqui”. E eu disse: “como não? Nos trabalhamos aqui,
temos só a roupa do corpo.” Mas, olha, aquilo foi uma tristeza. Quem podia levar, levava,
roubava. Quem queria roubar, pegava. Aí quando nós fomos, tinha duas mulheres sentadas
em cima dos colchões, no pátio embaixo. Aí nós descemos pela escada dos fundos e ela
disse: “Isso aqui é meu, isso eu vou levar.” E eu disse: “Pode levar. Nós vamos ver se tem
alguma coisa nossa.” [...] Aí tu não achava mais nada na cozinha. Ai... coisa mais triste.
Eles tinham até uma caixa d’água por cima, em um enorme fogão. Aquecia pelo fogão a
lenha, aquecia aquela caixa para lavar louça, e até aquilo quebraram, mas não tinha nada,
nada, nada. Aquelas mesas tudo com coisa branca, tudo lascado. Então, tu não achou mais
nada. (Erna Schüller Weirich, 2005).

Segundo a entrevistada, tudo foi perdido e o público que atacou o hotel recebia apoio
policial. Foi afirmado por Erna (2005) que a PM (Polícia Militar) estava presente nos ataques.
Alguns anos depois, o senhor Germano e a senhora Erna foram encontrados por colegas da
entrevistada Erna. “Depois eu já estava casada e aí as outras minhas colegas encontraram eles. Eles
vieram e foram presos; eu não sei foram para Porto Alegre. Aí queriam me ver, nos gratificar, que
a gente foi tanto tempo, como é que diz... [Empregado].” (Erna Schüller Weirich, 2005).
O Hotel Gloria também foi atacado em 1942, cujo proprietário era Carlos Bernardo
Neutzling. A entrevistada Luiza Brauner morou neste hotel, como afirma em entrevista “e eu
morava no hotel que eles era Neutzling, eles eram alemães [...]” (Luiza Del Grande Brauner, 2005).
A Luiza morou no hotel por dois anos, com seu filho e marido, e saiu quando aconteceu o “quebra-
quebra”, como relata.

Foi quando eu saí; foi coisa horrível. Queriam quebrar tudo, mas não quebraram porque o
meu irmão estava junto. Um dos meus irmãos e o sobrinho estava junto. Não aqui vocês
não vão fazer nada. Aqui tem meu sobrinho, e outra minha irmã não tem nada que ver com
isso. Não fizeram nada, porque se não estava tudo na rua, muito mal feito né. (Luiza Del
Grande Brauner, 2005).

Como foi relatado pela entrevistada, ela estava no hotel no momento do “quebra-quebra” e
só não teve seu quarto atacado, pois o seu irmão estava no grupo que participou do ataque e disse
que ninguém deveria fazer nada com sua irmã e sobrinho, o filho de dois anos de Luiza.
O Hotel F. Treptow também sofreu com as atrocidades do “quebra-quebra”. Em agosto de
1942, o hotel foi invadido e saqueado. A família saiu correndo e fugiu para a colônia, como foi
relatado por Fritold (2016) “chegaram lá de repente assim [...] chegaram lá para destruir tudo,
saquearam, roubaram o que podiam”, e queimaram a casa.

Levaram ele. A minha esposa, a Selma pegou ele, o Gilberto, de dois anos, e saiu correndo
com ele. Aí eles fugiram, eles fugiram e foram lá para a chácara de um tio. Eles pegaram
lá e foram lá. Aí esse que eu estava falando antes, o capitão Souto, ele do quartel, ele estava
em casa. Aí ouviu aquilo e ele pegou do quartel meia dúzia de soldados que estavam lá de
serviço. Estava de folga e foi lá tomar conta e disse: “Quem não se vai eu vou mandar
matar todo mundo.” E ele era corujão e assumiu lá. Botou todo mundo a correr. Botaram
fogo no depósito. E eu sei que naquele dia, eles tinham recebido 200 sacos de linhaça, de
torta de linhaça e estava na garagem. Ele chegou, ele pegou... o forro queimou uma parte
grande, do forro assim. Mas eles salvaram e lá no deposito grande, a madeira já foi
salpicada com fogo, mas conseguiram apagar também e aí o soldado: “O capitão tomo
conta” e disse: “olha, aqui nem entra e nem sai ninguém.” Aí eu entrou e ele mesmo tranco
com soldado e guardou... Aí o teu pai e não sei quem é que foi [...] chegaram lá e ele disse:
“Não, eu entrego e vocês vão toma conta. Agora é de vocês. Qualquer coisa vocês me
chamam.” E aí ficaram lá. Aí depois [começaram] a devagarzinho indo novamente.
(Fritold Rutz, 2016).

Em agosto de 1942, a família Treptow fugiu para casa de parentes na zona rural de Pelotas,
com medo dos ataques. O prejuízo só não foi maior para a família porque conseguiram fugir a
tempo e receberam auxílio do “capitão Souto” do Quartel Militar. Porém, quando o capitão chegou,
já haviam botado fogo no depósito da família, depósito este que estava cheio de linhaça, o que fez
com o fogo se espalhasse rapidamente.
Depois disso, a família voltou e retomou o hotel e o armazém. Em 1979, recebeu um
ressarcimento da guerra, pago pelo Estado, mas, que, segundo Fritold e Gilberto, não valia a pena
retirar, pois o valor não era corrigido.
O Armazém Fiss e Tessmann, que segundo Fritold (2016) possuía hotel nos fundos do
armazém, foi atacado no “quebra-quebra” e o prédio foi totalmente queimado. Depois disso, a
família não retomou o negócio, pois teve perda total e o prédio permaneceu abandonado, em ruinas,
por muitos anos (Fritold, 2016).
Em agosto de 1942, a cidade de Pelotas encontrava-se em meio ao caos e a violência. Os
estabelecimentos e residências de alemães e descendentes foram invadidos, saqueados e
incendiados. Entre estes estabelecimentos estavam cinco hotéis: Hotel América, Hotel do
Comércio, Hotel Gloria, Hotel Treptow e Hotel Fiss e Tessmann. Estes hotéis foram invadidos
fazendo com que os hóspedes fossem embora, seus empregados e proprietários fugissem e, em
alguns casos, seu proprietário fosse preso.
As lembranças destes dois dias estão presentes na fala dos entrevistados e marcados na sua
memória, como na fala da Luiza.

Foi horrível! Vocês não têm... Eu vi, eu vi com meus olhos, o que eles fizeram [...] Todas
casas de alemães, tudo que era alemão, hotel e família, tudo voava, tudo voava. Esse hotel
que tu falas foi a coisa mais triste do mundo. Triste, triste... Eu não vi, mas contaram lá do
sobrado que aquela coisa... da casa... mas que voava. Era coisa horrível, não deviam ter
feito isso. (Luiza Del Grande Brauner, 2005).
A entrevistada repete que foi muito triste o que aconteceu: “a coisa mais triste do mundo”,
que era “coisa horrível” e que “não deviam ter feito isso”.

Nos dias 18 e 19 de agosto de 1942 ocorreu o “quebra-quebra” na cidade de Pelotas, tendo


vários estabelecimentos comerciais atacados, saqueados e queimados, incluindo hotéis, como o
Hotel Treptow, o Hotel do Comércio, o Hotel América, o Hotel Fiss e Tessmann e o Hotel Glória.
O Hotel Treptow reabriu cerca de um ano depois dos ataques do “quebra-quebra”; o Hotel
Gloria também continuou funcionando posteriormente aos ataques, com o mesmo proprietário.
O Hotel do Comércio foi fechado, pois o seu proprietário foi preso e não reabriu. Em 1943
foi aberto o “Novo Hotel do Comércio”, no mesmo endereço, mas com outro proprietário.
O Hotel América reabriu em 1947 com o mesmo nome e no mesmo endereço, porém, com
outros proprietários. O Hotel Fiss e Tessmann teve todo o prédio queimado e nunca mais voltou a
funcionar, pois o estabelecimento foi totalmente destruído no ataque.
Portando, dos cinco hotéis atacados apenas dois voltaram a funcionar com os mesmos
proprietários, ressaltando o impacto que as 48 horas de saques e queimas tiveram para os
estabelecimentos de alemães.

ALBERTI, Verena. Fontes Orais. História dentro da História. In: PINSKY, Carla Bassanezi
(Org.). Fontes Orais. São Paulo: Contexto, 2005, p. 155-202.

ANJOS, Marcos Hallal dos. Estrangeiros e modernização: a cidade de Pelotas no último


quartel do século XIX. Pelotas: Ed. da UFPel, 2000.

BONET, Fernanda dos Santos; ABREU, Luciano Aronne de. O envolvimento do Brasil na II
Guerra Mundial através das páginas da revista ‘Cultura Política’. IV Mostra de Pesquisa da Pós-
Graduação. Anais... Porto Alegre: PUCRS, 2009.

BONET, Fernanda Santos. O discurso oficial brasileiro durante a II Guerra Mundial: o Brasil se
une para a Guerra. In: IX Encontro Estadual de História, 2008, Rio Grande do Sul. Vestígios do
Passado: a história e suas fontes, Anais... Rio Grande do Sul: IX Encontro Estadual de História -
ANPUH-RS, 2008.

COMPANHIA Melhoramento e Resistência. Guia de Assinantes n. 13. Pelotas: Echenique &


Cia., 1947.
DIÁRIO POPULAR, Pelotas, 11.07.1943, p. 6.

DIÁRIO POPULAR, Pelotas, 19.08.1942, p. 2.

DIÁRIO POPULAR, Pelotas, 20.08.1942, p. 2.

FACHEL, José P. G. As violências contra alemães e seus descendentes, durante a Segunda


Guerra Mundial, em Pelotas e São Lourenço do Sul. Pelotas: Ed. UFPel, 2002.

MEIHY, José Carlos Sebe B.; HOLANDA, Fabíola. História oral: como fazer, como pensar.
2.ed., 1ª reimpressão. São Paulo: Contexto, 2011.

PERAZZO, Priscila Ferreira. Prisioneiros de Guerra: a reclusão dos imigrantes indesejáveis


(Brasil: 1942-1945). Proin: Projeto integrado, Arquivo Público do Estado e Universidade de São
Paulo. Seminários – n.3 Crime, Criminalidade e Repressão no Brasil República, 2003. Anais...
São Paulo: Proin: Projeto integrado, Arquivo Público do Estado e Universidade de São Paulo,
2003.

PINHEIRO, Leticia. A entrada do Brasil na Segunda Guerra Mundial. Revista USP, São
Paulo (26), 108-119. Julho/agosto 1995.
Júlio Cesar Bittencourt Francisco

Embora a maioria dos sírios e libaneses que chegaram ao Brasil fosse formada por
agricultores, a estrutura fundiária do país, baseada nas grandes propriedades e na monocultura, a
carência de terras disponíveis a baixos preços e os parcos recursos financeiros trazidos por eles
inviabilizaram sua fixação no meio rural. Como esses imigrantes também não se enquadraram na
categoria de operários urbanos, ficaram à margem do perfil idealizado pela política imigratória
brasileira.
Esses imigrantes, que chegaram de forma espontânea, concentraram-se nos centros urbanos,
neles desenvolvendo atividades relacionadas ao comércio, ou primeiramente como ambulantes
(mascates), ou, mais tarde, em negócios regularmente estabelecidos. Contudo, sua atuação
profissional não estava restrita somente às cidades, uma vez que a população rural representava um
importante contingente de consumidores a serem atendidos (ALMEIDA, 2000, p. 87). Desse modo,
eles deram uma importante contribuição ao processo de ocupação do território nacional,
funcionando como elementos dinamizadores dos mercados local e regional, integrando regiões até
então isoladas do mercado consumidor (NUNES, 1986, p. 62). Nos primeiros anos de atividade, os
mascates, em visita às cidades interioranas e, principalmente, às fazendas, levavam apenas
miudezas e bijuterias. Mas, com o passar do tempo e o aumento do capital, começaram também a
oferecer tecidos, lençóis, roupas prontas, entre outros artigos. Conforme acumulavam os ganhos,
os mascates contratavam um ajudante ou compravam uma carroça; o passo seguinte era estabelecer
uma casa comercial. Foram eles que introduziram as práticas da alta rotatividade e da grande
quantidade de mercadorias vendidas, das promoções e das liquidações.

Porto Alegre começou a receber imigrantes sírio-libaneses, em maior quantidade, a partir


de 1890, conforme verificamos nas crônicas e no comércio local. Comerciantes mais antigos
recebiam mercadorias no porto da cidade, vindas de São Paulo ou do Prata, e repassavam aos
mascates, que as vendiam pelo interior. No início do século XX, quando os imigrantes sírios e
libaneses já circulavam pela capital em maior número, seu núcleo residencial e comercial era a Rua

* Professor da FABICO/UFRGS, mestre em Memória Social e Documento (UNIRIO), especialista em História do


Direito no Brasil (UNESA) e doutorando em História (PUCRS).
General Andrade Neves, no centro histórico da capital. O padrão de ocupação e concentração
não era diferente do de outras capitais ou cidades brasileiras, como a Rua 25 de Março, em São
Paulo, ou a Rua da Alfândega, no Rio de Janeiro.
Nessa época, a maioria dos árabes eram mascates e saíam, a pé ou de carroça,
vendendo frutas, legumes e miudezas pelos arrabaldes da cidade e outros municípios do estado,
onde recebiam pedidos de mercadorias. Eles voltavam ao mercado da capital para adquirir os
produtos e tornavam a viajar levando as encomendas. Corbinos (1983, p. 82) descreve, assim,
seus locais de residência: “Viviam inicialmente em cortiços, moradias populares com
cômodos para alugar, onde se aglomeravam famílias inteiras em um reduzido espaço”.
Era peculiar o comércio praticado em longos trajetos percorridos como vendedores
ambulantes de sotaque tão característico.1
A presença dos sírio-libaneses na capital foi registrada por viajante alemão que esteve
em Porto Alegre em 1904. Hans Ramelow declara, em suas memórias, o que viu na capital: “[os
árabes] ocupam-se com predileção do comércio varejista e ambulante, uma vez que parecem
especialmente adequados, justamente para este tipo de venda de mercadoria. Por sua condição
comercial insistente e apregoadora, eles são concorrentes que pouco agradam ao comércio
alemão” (NOAL FL. 2004, p. 110). Dois outros viajantes que estiveram em Porto Alegre, em
1903, também observaram a presença desses imigrantes. O alemão Wilhelm Lacman, em suas
memórias, descreve, assim, um passeio pelo centro de Porto Alegre:

A rua dos Andradas é a principal via de circulação de Porto Alegre, repleta de


vida colorida. Negros e mestiços com negros de todos os matizes (sic), luso-
brasileiros, italianos e alemães misturam-se aqui, uns com os outros. Aqui e ali,
também encontramos rostos orientais. Isto porque Porto Alegre possui uma boa
quantidade de lojistas sírios, os quais dispõem até de um jornal próprio, redigido em
idioma árabe. (NOAL FL, 2004, p. 96).

Outro viajante, o padre belga Thomas A. Schoenaers, hospedou-se, no mesmo ano de


1903, no “hotel árabe Abdallah-Ben-Alli, com intuito de permanecer neste local por um mês”.
Sabemos, porém, lendo Noal F.º (2004, p.103), que o religioso belga, depois de um dia,
trocou suas acomodações por recomendação de um patrício seu. Mesmo assim, ele indica, em
suas memórias, a presença de empreendimentos árabes em Porto Alegre (NOAL, 2004, p.103).

1Sem falar na matraca que muitos sacolejavam enquanto caminhavam, chamando atenção paras si e suas
mercadorias.
Pesquisamos no Arquivo Público do Estado (APERGS), com mais detalhes, o ambiente
seminal dessa comunidade de imigrantes na capital gaúcha, no fim do século XIX e início do século
XX. Vimos que muitos sírios e libaneses se instalavam na rua Gen. Andrade Neves, ou rua Nova,
onde se concentravam, tanto para residência quanto para aquisição de mercadorias, nas lojas dos
patrícios ali estabelecidos, mercadorias essas que depois revendiam pelas ruas da cidade e pelo
interior do estado. Nessa época, os sírios contavam com pouco mais de trinta estabelecimentos
comerciais no centro da cidade. Verificamos, no Arquivo Histórico Moysés Vellinho, que, no 1º
distrito de Porto Alegre (centro), entre 1899 e 1905, as ‘lojas’ dos árabes eram em número de 24,
somente na Andrade Neves. Havia ainda mais quatro estabelecimentos na rua Voluntários
da Pátria2 e quatro no Mercado Público,3 além de um comércio que localizamos na rua
Vigário José Ignácio, do árabe Calili Nedir.4
As lojas de ‘miudezas’ que encontramos na pesquisa do Arquivo Público poderiam ser
atacadistas, repassando mercadorias aos mascates para venda de maneira ambulante, ou também
poderiam ser estabelecimentos para comercialização de bugigangas feitas de material barato, como
pentes, lâminas de barbear, cigarros, fósforos, enfeites, bibelôs para casa ou bijuterias
e, principalmente, armarinhos,5 isto é, produtos como linhas e fios para costura, agulhas,
ilhoses, rendas etc. Na lista de comerciantes que disponibilizamos, vários membros da família
Bechara,6 por exemplo, aparecem, em diversas ocasiões, trabalhando com vários produtos
e segmentos comerciais distintos.
No quadro I, observamos que o ramo de tecidos já aparece em segundo lugar na preferência
dos patrícios estabelecidos em Porto Alegre.

Quadro I – Relação de Comerciantes (1900-1902) – Dados do imposto ‘valor locatício’


Sobrenome Tipo de Comércio Ano R. Andrade Neves Imposto pago
R. Vol. da Pátria
Elias, José Buere Armarinho 1900 Nº 119 $50.000
Demétrio, Jorge Miudezas 1900 Nº21 $40.000

2 Por volta da década de 1930, já não havia senão vestígios dos árabes na Andrade Neves, tendo a maioria
das lojas desses levantinos se transferido para a rua Voluntários da Pátria, mais próxima ao porto e à
estação ferroviária, onde desembarcavam (e embarcavam) mercadorias.
3 Em relação aos quatro estabelecimentos que aparecem no Mercado Público, na verdade, trata-se de quiosques
montados na praça em frente ao mercado, para que os quitandeiros pudessem vender suas mercadorias.
4 Fundo Valor Locatício. Arquivo Histórico de Porto Alegre, Moysés Vellinho. Pesquisas em 06/2013 e 03/2014.
5 Quando o comércio é de ‘armarinho’ pode significar que é uma loja pequena, porém que pode vender, além
de aviamentos, roupas feitas,entre outros artigos, como perfumes, bordados e lã. (CAMPOS, 1987).
6 Encontramos registros da família Bechara, (Bichara ou Bixara) entre Santo Ângelo, Ijuí, Rio Grande e Santa
Maria, desde 1895. (Fonte: APERGS; pesquisa online sobrenome Bechara: <http://www.apers.rs.gov.br/portal/
index.php?menu=aap>.)
Manayel, Jorge Miudezas 1900 Nº23 $75.000
Bechara, Moysés Botequim 1900 Nº25 $50.000
Buchain, José João Miudezas 1900 Nº76 $40.000
Jorge Siadi&irmãos Miudezas 1900 Nº55 $40.000
Bechara, Jorge Miudezas 1900 Nº65 $60.000
Sarquis, José Jorge Miudezas 1900 Nº17 $70.000
Bechara, Aear Botequim 1900 Nº75 $50.000
José, Jorge Funilaria 1900 Nº67 $40.000
Jorge Monaiar Fazendas 1902 Nº23 $80.000
Bechara Capsa Fazendas 1902 Nº65 $40.000
Miguel Jorge Fazendas 1902 Nº67 $35.000
Abrahão Elias Fazendas 1902 Nº139 $80.000
José Amim Fazendas 1902 Nº70 $35.000
Fonte: Arquivo Público Moysés Velhinho. Porto Alegre.

De acordo com Sérgio da Costa Franco (1983), o ano de 1901 é caracterizado por crise e
recessão econômica em consequência da política anti-inflacionária do Presidente Campos Sales –
houve dificuldades para a coleta da tributação, o que corrobora a precariedade e a falta de
continuidade na coleta do imposto retratadas aqui. Por outro lado, conforme mostra o autor, os
grandes comerciantes da capital solicitavam aos políticos que resolvessem os problemas de logística
e estrutura de escoamento de mercadorias que tanto encareciam os produtos gaúchos os quais
chegavam ao norte do país (p.106). Outro problema que afligia os comerciantes da capital, durante
a Belle époque, era o contrabando. Ainda de acordo com Franco (p.107), quase não havia
fiscalização, e a praça da capital formulava repetidas reclamações aos políticos e às instituições da
República visando à sua repressão.
Adriana Dorfman (2009, p. 136) relata que “desde que os mascates abasteciam-se
contrabandeando, a semente ‘grelou’ e o contrabando fez-se cada vez mais volumoso”. De acordo
com a autora, já, naquele momento, observa-se a relação entre o câmbio e o contrabando, a busca
do necessário, bem como do mais barato. Cinara Alves (2014, p.15), analisando o desenvolvimento
econômico e a cultura árabe, descreve o mascate como um tipo de agente econômico que realiza
poupança e que se vincula a uma rede comunitária de outros imigrantes árabes como meio de
potencializar suas atividades. Peters (2006) caracteriza as famílias de comerciantes sírios como
sendo unidas entre elas, possuindo uma rede de relacionamento intensa e, ainda dentro da própria
família, dividindo tarefas administrativas e comerciais, estas ficando muito mais a cargo dos
homens, e reservando-se às mulheres os assuntos domésticos e familiares.
Gráfico I – Comércio árabe em Porto Alegre – Diversidade (1899-1905)

14
12
12
10
10

4
2 2 2 2
2 1 1

0
comercio

fazendas miudezas hotel armarinho

botequim açougue sapataria funilaria

Fonte: Arquivo Histórico de Porto Alegre Moysés Vellinho. Fundo valor Locatício (1899-1905).

Truzzi (1997) classifica o comerciante de origem sírio-libanesa como um sujeito que


enfrenta condições adversas (viagens, comércio em locais desconhecidos, possibilidades de perda
de mercadorias, etc.) em nome de uma melhora futura em suas condições econômicas, mas que,
sobretudo, possui uma ética de valorização do trabalho. Em termos de diversidade comercial, o
gráfico I mostra a variedade do comércio desses imigrantes nos primeiros anos do século XX, em
Porto Alegre. Os ramos de tecidos e armarinhos, além do de miudezas, já despontam como os
segmentos pelos quais os imigrantes levantinos têm preferência na comercialização.
Claudia Musa Fay e Antônio de Ruggiero (2014 p.10) lembram que, neste sentido, Simmel
aponta o estrangeiro como produtor de diferenças – introduzindo mentalidades e ideias novas que
o autóctone não possui –, mas que as produz utilizando-se de elementos locais, sem, contudo, ter
de pertencer à cultura do lugar ou participar integralmente desta, no que eles consideram como um
misto de proximidade e distância. Werner Sombart, conforme lembram os autores, foi o primeiro a
propor a questão problemática da valorização do imigrante como empreendedor capitalista no final
do século XIX. Sombart identifica, no imigrante estrangeiro, o vetor e a base de qualquer mudança
social.
Gráfico II – Comércio árabe em Porto Alegre – Diversidade (1924)

Fazenda taverna armarinho calçados


barbeiro depósito roupas feitas quitanda
sapateiro restaurante cigarraria

14
15

10
7
4
5
2 2
1 1 1 1 1 1
0
Comércio

Fonte: Dados do imposto ‘valor locatício’ (1924). Arquivo Público Moysés Velhinho.

Acima, o Gráfico II mostra que o comércio árabe de Porto Alegre já se distribuía com
mais diversidade de segmentos, porém também indica uma crescente fixação, com abertura de
lojas, dos que deixavam a mascateação.
Na pesquisa realizada no conteúdo das fichas cadastrais dos imigrantes árabes
depositadas no Arquivo Nacional do Rio de Janeiro (ANRJ), referentes aos anos entre 1939 e
1949, verificamos que, dos 753 nomes selecionados, 436 residiam em Porto Alegre, ou seja,
cerca de 58% do total de imigrantes que se cadastraram em todo o estado. Do conjunto de 436
residentes, 146 se fixaram no centro de Porto Alegre, ou seja, por volta de 33%. Observando
este universo, percebemos que o centro da cidade concentra mais de duas vezes o número de
sírios do que o vizinho bairro Floresta, local onde muitos também se fixaram e onde
contamos 55 pessoas. Esta concentração de árabes nos bairros Centro e Floresta explica-se,
talvez, por esses imigrantes residirem em seus locais de comércio, pois a rua Andrade Neves
localiza-se no centro, e a Voluntários da Pátria, começando no centro, atravessa toda a
extensão do bairro Floresta. Os demais bairros da cidade a contar com maior número de
imigrantes árabes, conforme ilustra o gráfico abaixo, são os seguintes:
Gráfico III – Distribuição dos 436 Imigrantes sírios e libaneses – Bairros de Porto Alegre (1939-1949)

Centro
Floresta
São João
7 36
C.Baixa
10
Azenha 8
10
Glória 10
146
Independência
11
Menino Deus
13
São Geraldo
17
Santana
Teresópolis 18
Auxiliadora
20
Petrópolis
Higienópolis 37 55
outros 38

Fonte: Prontuários cadastrados na Polícia Federal entre 1939 e 1949. ANRJ.

Importante pontuar, novamente, que, de acordo com o recorte temporal estabelecido pela
coleta de dados da pesquisa, muitos patrícios, na década de 1940, continuavam a residir nos mesmos
locais em que possuíam comércio, especialmente nas ruas Voluntários da Pátria, Cristóvão
Colombo, Benjamin Constant e rua da Azenha, entre outras. Eram geralmente sobrados, em cujo
primeiro piso ficava o armazém e cujo andar superior, ou os fundos da casa, servia como residência
da família.
Cabral (1996, p. 45) atribui esse processo às consequências do capitalismo, que provocou
um aumento populacional “sem precedentes” nas cidades, e descreve este novo arranjo, muito em
voga desde o fim do século XIX, como “rua comercial”, que consistia numa sucessão de lojas
delimitadas, total ou parcialmente, pela calçada, estando ou não localizadas sob edificações
destinadas para outros fins quaisquer, inclusive o de residência. De acordo com a autora, “a rua
comercial inclui o espaço público, e, necessariamente, se limita com esse, quer seja resolvido como
espaço unicamente pedestre, quer como espaço destinado a pedestres e veículos” (p. 45).

Vemos que, nas primeiras décadas do século XX, a comunidade árabe da cidade era mais
complexa e organizada, formada não só por imigrantes, mas também por seus descendentes, que
podiam ser filhos de árabes com pessoas de diversas origens. Ao mesmo tempo, o ramo de fazendas
e têxteis se consolidava, sendo o nicho comercial que contava com maior número de representantes
da comunidade – e o que mais pagava impostos ao estado, conforme observado nos livros de
tributos que investigamos.
Tal preferência indica uma estratégia mais elaborada entre os ‘patrícios’, os quais se
articulavam com fornecedores, principalmente outros sírio-libaneses de São Paulo, onde adquiriam
crédito e prazo para pagamento, habilitando-os a fazer frente à concorrência com outros
estabelecimentos tradicionais de Porto Alegre.

Meu pai ia duas ou três vezes por ano a São Paulo para adquirir mercadorias, além da
visita dos viajantes, que iam lá na loja com outros comerciantes, mas tínhamos que sempre
ir ao mínimo duas ou três vezes por ano a São Paulo para comprar diretamente das fábricas,
porque as indústrias têxteis, de confecção, são até hoje quase todas pertencentes a
descendentes de árabes. (Entrevista com Habib Abduch).

A imigração árabe, em Porto Alegre, encontrou, na capital do início do século XX, um


ambiente de negócios bastante competitivo e sofisticado, em função da forte concorrência já
estabelecida quando de sua chegada, mas também devido a uma clientela exigente e informada,
que, se por um lado era pequena e disputada, por outro contava com poder aquisitivo e bom nível
sociocultural. O crescimento da cidade e os investimentos feitos na sua estrutura, durante a primeira
metade do século, foram aproveitados por esses imigrantes, servindo de base para a projeção
social de algumas famílias.7
Em relação ao negócio de tecidos, a perda de espaço deste comércio, antes exclusivo,
começou a se verificar com a industrialização de confecções e a entrada no mercado das microfibras
e lojas de roupas prontas, por volta da segunda metade da década de 1940. Mesmo assim, a demanda
pelo varejo continua até hoje. O conhecimento sobre o produto, os fornecedores, o preço obtido por
metro depois de livrados os custos, e, sobretudo, o atendimento aos clientes dentro da loja são
importantes diferenciais para cativar a freguesia, e, no fundo, determinam o êxito do
empreendimento.

Meu pai, Raphael Dabdab, chegou ao Brasil em 1925, diretamente da Antióquia, na Síria.
(Hoje, território da Turquia). Ele veio para comunicar ao irmão, que já estava no Brasil, a
morte de nosso avô. Em Porto Alegre, nosso primeiro comércio foi aberto na rua da
Ladeira (General Câmara). No final dos anos de 1940 viemos para a Voluntários [da
Pátria]. Em 1952, chegamos à esquina desta mesma rua, onde estamos até hoje. Posso
dizer que comecei no ramo dos tecidos aos cinco anos, acompanhando meu pai, mas aos

7 Essa projeção se verifica na participação desses imigrantes emergentes nas instituições sociais formais da
etnia, e também fora dela, quando, através de doações, as patrocinavam e promoviam.
14 anos comecei a frequentar diariamente a loja. Eu aprendi identificar tecidos pelo toque
das mãos, mas também pelo caimento da roupa. (Entrevista com Elias Dabdab).
A trajetória do pai de nosso entrevistado, Raphael Dabdab, indica que alguns desses
imigrantes já chegaram ao Brasil com conhecimento e capital. De fato, quando Raphael chegou ao
Brasil, seus irmãos já eram médios proprietários em São Paulo e no Rio de Janeiro. Com o
estabelecimento da loja no Sul, os empreendimentos formaram uma rede de cooperação,
importando juntas mercadorias exclusivas da Europa que eram oferecidas aos seus clientes nas três
capitais.
Meu pai ajudou muitos patrícios recém-chegados. Ele contou que, uma vez, deu uma
carroça para um patrício trabalhar como ambulante, mas, debaixo do banco, havia um
buraco no qual ele escondia as mercadorias. Passou meu pai pra trás... (Entrevista com
Rafik João).

Ivo Nesralla, filho de um imigrante que veio da Síria8 para Porto Alegre com o irmão,
no começo do século XX, nos conta que seu pai, no início, foi mascate, mas depois juntou
capital e abriu uma “pequena lojinha no centro de Porto Alegre, e foi progredindo”. Habilidoso
nos negócios, o pai do cirurgião logrou educar seus filhos no Colégio do Rosário, uma das
melhores instituições de ensino da capital na primeira metade do século XX. Porém, nem
todos tiveram a mesma sorte.

Quando meu pai9e o irmão dele chegaram, em 1910, além de não falarem uma
palavra de português, não conheciam ninguém. Foi graças à família Asmuz, que
ajudava muitos patrícios, que eles conseguiram mercadorias e ajuda para começar
suas vidas aqui em Porto Alegre. Depois de mascatear uns dez anos, ele montou um
pequeno comércio de venda de tecidos na esquina da rua Demétrio Ribeiro, ali
onde é o Cinema Capitólio, depois passou para a rua dos Andradas e, por último,
uma loja bem maior, onde ele vendia seda, a loja Internacional, na rua Mal. Floriano.
(Entrevista com Ivo Nesralla).

O quadro II mostra a diversidade do comércio árabe em Porto Alegre, no início da década


de 1930, mas também uma concentração importante no ramo do comércio de produtos têxteis.
Chama atenção, no entanto, a boa quantidade de barbearias, um setor típico de empreendedores
individuais ou daqueles que trabalham por conta própria. Aqui, eles colocaram suas barbearias
próximas a áreas comerciais e populares. Assim, através da comunicação oral com o povo,
prestando serviços, o imigrante árabe exerceu seu mister individualmente. Há presença de comércio
de imigrantes árabes e seus descendentes em diversos bairros; no entanto, devemos registrar que os

8 O território, no Oriente Médio, onde nasceram Abrahão e José Elias Nesralla, pertencia à Síria, porém, com o
Mandato Francês, aquela porção da Síria se tornou parte do “Grande Líbano”. .
9 De acordo com prontuário do ANRJ, Abrahão Nesralla, nascido em 1895, no Líbano, chegou em 1910, com
oirmão mais velho, Elias JoséEm 1939, Abrahão era residente na rua Demétrio Ribeiro, 997 e proprietário de
comércio na rua dos Andradas, 1411. Em 1943, mudou sua loja para a rua Mal. Floriano, 290, no Centro de Porto
Alegre.
.
livros a que tivemos acesso mostram a cobrança, primordialmente, no 1º distrito (centro da cidade
de Porto Alegre).

Quadro II – Relações de Comerciantes sírio-libaneses (1930-1931)


Sobrenome Tipo de Comércio Ano R. Andrade Neves Imposto pago
R. Vol. Da Pátria
Bijalda, Antônio Sapateiro 1930 Rua Dr. Flores, nº307 $25.000
Zogbi, Salomão Tabacaria 1930 Rua Dr. Flores, nº18 $192.000
Chalub, Elias Botequim 1930 Rua Duque de Caxias, $264.000
nº706
Kalil, Elias Bar 1930 Rua D. de Caxias, $264.000
nº1.174
Zaka, Rosa Casa de Pasto 1930 Rua Gal. Paranhos, $78.000
nº157
Jorge, J. Armazém 1930 Rua Gal. Paranhos, $52.000
nº159
Cecchin, Luiz Armazém 1930 Rua Cabral, nº185 $54.600
Maluf & Cia. Arm. e Fazendas 1930 Nº433 $720.000
Buchabiqui&Cia. Arm. e Fazendas 1930 Nº445 $600.000
Simon. Jorge Fazendas 1930 Nº645 $390.000
Moysés, Pedro Fazendas 1930 Nº1.105 $195.000
Nasrallá, Abdalla Armazém S&M 1930 Nº1.283 $156.000
Maluf, Ayub Cury Arm. e Fazendas 1931 N º433 $150.000
Buchabiqui& Cia. Fazendas 1931 Nº445 $445.000
Seadi, Antônio Fazendas 1931 Nº455 $76.000
Nasrallá, Abdalla Armazém S&M 1931 Nº1.283 $180.000
Jalfim, Rosa Fazendas 1931 Nº1.099 $163.000
Andre, Miguel Armazém S&M 1931 Mercado Público nº9- $252.000
10
Neme & Seade Bar 1931 Mercado Público nº99 $792.000
Buchain, Jorge J. Barbearia 1931 Rua Moura Azevedo $78.000
nº267
Maluf, Jorge Representações 1931 Rua XV de novembro $100.000
nº131
Fonte: Imposto Valor Locatício no início da década de 1930. Arquivo Histórico Moysés Vellinho.
No início da década de 1930, observa-se maior diversidade de locações comerciais sírio-
libanesas fora do centro da cidade, especialmente nas avenidas Benjamin Constant e Sertório, assim
como na rua Dona Leopoldina e na avenida Germânia, atual Cairu, todas no bairro São João,
4º distrito de Porto Alegre.10 Contudo, o centro da cidade continua sendo o maior centro
comercial de Porto Alegre. Curiosamente, alguns comerciantes sírios ou libaneses contrariam a
crença popular de que os árabes só vendem produtos baratos, de qualidade duvidosa.
Abrahão Nesralla, estabelecido com loja de seda fina no centro de Porto Alegre desmente
esse mito. Ivo Nesralla, lembra assim do pai:

Nas férias, quando era guri, meu pai, com medo que eu me extraviasse, fazer bobagem,
me obrigava a ficar na loja. Eu fazia a arrumação dos tecidos e, no fim do dia, o livro da
féria. Eu via os vendedores mostrando a mercadoria e ficava fascinado. Costumo dizer à
minha mulher que, se não fosse cirurgião cardíaco, eu seria vendedor de tecidos!
(Entrevista com Ivo Nesralla).

É oportuno destacar, no Gráfico IV, o final do período estudado, quando se observa a


presença de duas pequenas fábricas de roupas (camisas e meias) e de dois armarinhos atacadistas,
estes ativos desde o início do período estudado, ou seja, fins do século XIX, o que evidencia a
importância dos atacadistas de miudezas na base e formação do comércio popular, mas também na
criação de lojas especializadas em fazendas e tecidos. Por fim, conforme verificamos no gráfico IV,
embora o ramo têxtil se destaque como majoritário na preferência de comércio dos árabes, esses
imigrantes dedicaram-se a uma grande diversidade de segmentos, a maioria constituída de
pequenos negócios nas áreas centrais da cidade,11 observando-se um grande incremento nos
negócios entre 1924 e 1931.

Tirei o científico em Porto Alegre. Depois eu fiz o vestibular e passei para Engenharia
Química. Na UFRGS, Engenharia Química. Em Porto Alegre, eu conhecia os amigos de
meu pai, que era gente de muito dinheiro e de muita importância lá. Eles eram árabes
mesmo, da comunidade. Eram atacadistas de tecidos muito fortes. Eu tirei o curso muito
novo. E quando eu me formei, tinha 21 anos. Engenheiro Químico. (Entrevista com
Muhamed Baccar)
.
Os grupos de imigrantes árabes que foram chegando à cidade, vindos do Oriente Médio no
início do século XX, sem muito capital, e que trabalharam à sua maneira, como ambulantes,

10 Suzana Schilling (2007, p.17) nos traz a informação de que, no fim da década de 1920, os irmãos
Selaimen lotearam, para seus patrícios que viviam no centro, um grande terreno adquirido na década
anterior. Com a transferência de muitos deles ao local, onde construíram suas casas, o arrabalde de São João,
no 4º distrito da cidade, passou a abrigar boa parte da comunidade libanesa de Porto Alegre.
11 Não estão computados aí os bairros da Azenha e da Cidade Baixa, dois locais com razoável presença de
comerciantes de origem e língua árabe estabelecidos com lojas.
mascates ou pequenos lojistas, sucederam outros grupos étnicos migratórios chegados
anteriormente à cidade, entre a metade do século XIX e a última década deste.

Gráfico IV – Comércio Árabe: tributos

Fonte: Arquivo Histórico Moysés Velhinho. Imposto Locatício (1899 a 1931).

O gráfico IV mostra que a imigração sírio-libanesa na capital dos gaúchos foi, além de tudo,
um fator econômico importante. Nos primeiros trinta anos, eles ali trabalharam, fornecendo
mercadorias, vendendo bens e produtos, transportando, atendendo a clientes e pagando impostos.
Apesar da estagnação de alguns que nunca passaram do pequeno comércio, uma parte desses
imigrantes, embora não tenham enriquecido, conseguiram manter um padrão de vida que talvez não
tivessem na origem, indicando que o comércio e os negócios foram, para aqueles que decidiram
ficar no país, veículos de ascensão social. Contudo, não devemos esquecer que o grau de motivação
pessoal não pode ser generalizado entre eles, restando, na vida real, falta de simetria entre os
comerciantes exitosos e aqueles que não conseguiram estabelecer exatamente um bom padrão,
conforme lembra Rafik João:

O velho morreu pobre e doente e só deixou um terreno na [Avenida] Cascata. Acho que
ele não tinha muita paciência e não era tão atencioso como os outros patrícios. No seu caso
foi diferente, teve comércio, mas não prosperou, e acabou como mascate, vendendo
mercadorias para armazéns. Eu mesmo não estudei, trabalhei com patrícios em lojas e
confecções, mas perdi tudo que ganhei porque jogava, diferente do meu irmão Paulo, que
se formou em Direito e foi Procurador do Estado. (Entrevista com Rafik João).

Em Porto Alegre, a partir da década de 1930, assim como em outras cidades e lugares da
diáspora sírio-libanesa, verificou-se acentuada fragmentação entre diferentes grupos dentro da
colônia de imigrantes e descendentes. Apesar de se perceber uma clara tendência à tribalização de
grupos étnicos levantinos, especialmente entre os sírios e libaneses, essas duas nacionalidades se
separaram, formalmente, tornando mais claras as fronteiras étnicas, as diferenças confessionais,
políticas e ideológicas, embora as exceções, nesses casos, possam ser inúmeras. Essas mudanças
também ocorriam no Oriente Médio, com a estabilização do Mandato Francês e a [primeira]
independência do Líbano, em 1926. Em Porto Alegre, a marca dessa legitimação é a ruptura através
da criação do Clube Sociedade Libanesa, em 1936, marcando o fim do Clube Sírio-libanês, criado
em 1922.

O lugar ocupado pelos árabes dentro da Nação Brasileira continua sendo paradoxal. O
nacionalismo sírio levou muitos sírios e libaneses a assumir posições cada vez mais
públicas. O Brasil viria a desempenhar papel crucial na criação de uma Síria independente.
(ALFARO-VELCAMP, 2007 p. 133).

A atividade laboral e a localização geográfica onde este trabalho era exercido marcou as
identidades dos diversos grupos de imigrantes no Rio Grande do Sul. Os sírios e
libaneses, precisamente por serem de origem semita,12 de língua e cultura árabe,
frequentemente eram vistos pejorativamente como ‘turcos’. Além da cor da pele, comumente
mais ‘brejeira’ que a da maioria dos imigrantes europeus, a fala estranha e gutural acabava
denunciando a diferença. É, contudo, razoável pensar que as fronteiras entre os grupos são
tanto menos permeáveis quanto mais a organização das identidades étnicas esteja ligada à
divisão diferencial das atividades do setor econômico. Conforme preconiza Streiff-Fenart
e Poutignat (1997, p.155), a fronteira étnica sobrepõe-se à fronteira social quando uma
reforça a outra.
A ascensão social pelo comércio marcou a imigração árabe na capital, formando
uma espécie de barreira que amenizava o preconceito e protegia esses imigrantes.
Além disso, proporcionou-lhes a inserção na sociedade gaúcha, facilitando a transposição
da identidade de comerciantes para uma nova imagem adquirida por seus descendentes,
que, como profissionais liberais, criaram novos espaços dentro da sociedade porto-
alegrense, o que poderia ser apenas sonhado pelo imigrante estabelecido na cidade no
início do século XX. “A loja do meu pai era muito frequentada. Até hoje, alguns pacientes
com mais idade que vêm aqui [ao Instituto de Cardiologia] me falam: ‘Eu fiz meu enxoval
na loja do seu pai.’” (Entrevista com Ivo Nesrsalla).

Os libaneses e os sírios, em Porto Alegre, passaram de meros figurantes – inseridos em uma


espécie de gueto étnico da rua Andrade Neves – a protagonistas ao longo da primeira metade do
século XX. Na capital do estado, eles montaram uma pequena rede de comércio que, apesar das
dificuldades iniciais, possibilitou a alguns comerciantes manterem um bom padrão de vida.
Oportuno destacar que, em Porto Alegre, os libaneses lograram organizar seu próprio clube e
instituições sociais na década de 1930, trazendo, posteriormente, um templo católico maronita, fruto
12 Guarda certa semelhança com os latinos mediterrâneos (espanhóis, sicilianos, calabreses e portugueses) e é
um tanto diferente do fenótipo germânico e dos italianos do vêneto ou “tiroleses”, como costumavam ser
chamados muitos italianos do Norte daquele país, majoritários no Rio Grande do Sul.
da iniciativa de um grupo unido em torno da ideia de um Líbano cristão, representante de pessoas
de cultura e língua árabe na capital, mas também aberto a todos.
No entanto, foi através da atividade mercantil, exercida em um ambiente onde muitos eram
parentes e se auxiliavam mutuamente, que, em um número considerável de casos, apesar das crises
e situações adversas verificadas nos processos de falência que investigamos nos arquivos, educar
seus filhos nas melhores escolas da capital sempre foi a meta da comunidade de imigrantes
levantinos. Esse processo criava as condições adequadas para que a geração subsequente se
inserisse mais profundamente na sociedade gaúcha. Assim, a geração posterior à dos imigrantes,
que nasceu brasileira, pôde exercer outras atividades que não as do comércio, dedicando-se,
principalmente, às profissões liberais e chegando, em alguns casos, à representação política em
todos os níveis da organização institucional da República.
Analisando a inserção e a assimilação dos sírios em um ambiente dominado por
comerciantes de diversas etnias, principalmente as europeias, com predominância da alemã,
observamos que, certamente, isso representou um desafio para esses imigrantes, pois, como
sabemos, a maioria chegou sem muito estudo ou capital. Mesmo assim, percebemos que alguns
empreendimentos comerciais por eles estabelecidos no início do século XX ainda persistem na
paisagem do centro de Porto Alegre, como as Lojas Raphael Dabdab, de tecidos finos, e a Antiga
Casa X, de roupas prontas e tecidos femininos, ambas localizadas no coração da cidade e
permanecendo nas mesmas famílias de seus fundadores, administradas pelos descendentes. Como
justifica Jeff Lesser (2001, p. 25), a etnicidade não se refere apenas à cultura social, mas também à
cultura econômica. Sob este aspecto da cultura urbana, de acordo com Rosemary Brum (2009, p.
170), os imigrantes se encaixam em novas categorias socioeconômicas, nas quais o estrangeiro
também é visto como o homem diante da metrópole moderna, que forja uma cultura urbana, onde
ele vai tecendo relações e se inserindo na vida política e econômica da sociedade.

ALFARO-VELCAMP, Theresa So far from Allah, so close to México: Middle Eastern


Immigrants. In: Modern México. University of Texas Press, Austin, 2007.

ALMEIDA, Ludmilla Savry. Sírios e libaneses: redes familiares e negócios. IN: BORGES, Celia
Maria (Org.) Solidariedades e conflitos: histórias de vida e trajetórias de grupos em Juiz de Fora.
Juiz de Fora: Ed. da UFJF, 2000, p. 183-219.

ALVES, Cinara Neumann. Cultura árabe e desenvolvimento econômico em regiões fronteiriças


do sul do Brasil: a presença árabe no comércio de Santana do Livramento (Brasil) e Rivera
(Uruguai). (Dissertação) – PPG Desenvolvimento Regional, UNISC, 2014.
BRUM, Rosemary F. Uma cidade que se conta: imigrantes italianos e narrativas no espaço social
da cidade de Porto Alegre nos anos 20-30. São Luiz: EDUFMA, 2009.

CABRAL, Claudia. Tipologias comerciais em Porto Alegre: da rua comercial ao shopping center.
Porto Alegre: PPG Arquitetura e Urbanismo (Dissertação de Mestrado) – UFRGS, 1996.

CORBINOS, L. Agar El comportamento urbano de los imigrantes árabes em Chile. EURE. v. 9,


n. 27, Santiago, 1983.

DORFMAN, Adriana. Contrabandistas na Fronteira Gaúcha: Escalas Geográficas e


Representações Textuais. (Tese) – PPG Geografia UFSC, Florianópolis, 2009.

FAY, Claudia Musa; RUGGIERO, Antônio de (Org.). Imigrantes empreendedores na História do


Brasil: estudos de casos In. FAY, Claudia Musa; RUGGIERO, Antônio de. Introdução Porto
Alegre: EDIPUCRS, 2014.

FRANCO, Sérgio da Costa. Porto Alegre e seu comércio. Porto Alegre: Associação Comercial de
Porto Alegre, 1983.

LESSER, Jeffrey. A negociação da identidade. São Paulo: Ed. da USP, 2001.

NOAL FILHO, Valter Antônio; FRANCO, Sergio Costa. Os viajantes olham Porto Alegre. Porto
Alegre: Anaterra, v. 2, 2004.

NUNES, H. A imigração árabe em Goiás: 1880-1970. (Dissertação de Mestrado) – Instituto de


História/Universidade de São Paulo: USP, 1986.

PETERS, Roberta. Imigrantes palestinos, famílias árabes: um estudo antropológico das tradições
através das festas e rituais de casamento. (Dissertação de Mestrado) – PPG Antropologia Social,
UFRGS, 2006.

SCHILLING, Suzana Porcello. Sociedade libanesa de Porto Alegre: uma história a ser lembrada.
Porto Alegre: Via Norte, 2007.

TRUZZI, Oswaldo M.S. Patrícios: sírios e libaneses em São Paulo. São Paulo: Hucitec, 1997.

_____. Sírios e Libaneses e seus descendentes na sociedade paulista. In: FAUSTO, Boris (Org.)
Fazer a América. São Paulo: EDUSP, 1999.

POUTIGNAT, P.; STREIFF-FENART, J. Teorias da etnicidade. São Paulo: Ed. da UNESP, 1997.
Jaqueline da Silva de Oliveira*

Para trabalhar as questões relacionadas com a História Oral, inicialmente se buscará apoio
nos textos tradicionais de Thompson, que tratam dos procedimentos da teoria e metodologia, do
uso das fontes orais pelo historiador, bem como da sua função social relacionada à oralidade de
uma narrativa de vivências. Sendo social, as narrativas priorizam um grupo composto por
indivíduos que partilham experiências e fatos vividos, portanto, eles também desenvolvem relações
de amizade ou trabalho.
Neste sentido, o método da escolha dos entrevistados deriva de indicações em que o
entrevistado vai indicar outro nome para entrevista, e, sendo assim, o critério de seleção é aleatório
e depende da relação entre entrevistado e entrevistadores, sendo chamado de “bola de neve”.
Amparada nos estudos de Thompson, Sonia Maria de Freitas (1992), no prefácio da edição
brasileira, afirma “que a História Oral pode dar grande contribuição para o resgate da memória
nacional, mostrando-se um método bastante promissor para a realização de pesquisas em diferentes
áreas” (1992 apud THOMPSON, 1992, p. 19), pois, segundo ela, “é preciso preservar a memória
física e espacial, como também descobrir e valorizar a memória do homem. A memória de um pode
ser a memória de muitos, possibilitando a evidência de fatos coletivos” (FREITAS, 1992 apud
THOMPSON, 1992).
Quanto ao social, Thompson priorizou os grupos ou classes sociais locais de minorias que
viviam em determinadas comunidades. Eles apontam para as relações sociais de grupos, espaços e
tempos definidos, ao mesmo tempo em que levantam questões relacionadas aos cuidados com o
material produzido (narrativa oral, transcrição, formas de armazenamento e divulgação e, por fim,
a interpretação), que deve levar em conta na escrita final ou na produção científica, a subjetividade
do indivíduo, as entrelinhas, os gestos, as expressões etc.
Por outro lado, Gabriele Rosenthal em seu livro “Pesquisa Social Interpretativa: uma
introdução” (2014, p.19), em um primeiro momento trata de diferenciar a metodologia da pesquisa
social interpretativa, onde está inserido o método de análise narrativa, dos outros métodos de
pesquisa qualitativa comumente utilizados na Sociologia. A autora chama atenção para o
“pressuposto de abertura do procedimento”, onde:

Ao invés de se chegar a uma padronização dos instrumentos, alcança-se um modo de


proceder que orienta observações ou entrevistas – seja em entrevistas individuais, seja em

* Doutoranda no Programa de Pós-Graduação em História da PUCRS.


discussões em grupo – pelas especificidades e relevâncias dos próprios entrevistados ou
observados, dando-lhes maior espaço possível para a configuração da situação.
(ROSENTHAL, 2014, p. 20).

A metodologia desenvolvida por Rosenthal baseia-se nos princípios teóricos da Sociologia


de Alfred Schütz (teoria da relevância), a partir da abordagem da elaboração de narrativas
biográficas proposta por Fritz Schütze (SANTOS; OLIVEIRA; SUSIN, 2014, p. 374).
Alguns aspectos que a autora aponta como sendo possibilitados pelo uso da pesquisa social
qualitativa são: investigar o novo e o desconhecido; aprender o sentido subjetivamente visado;
reconstruir a complexidade de estruturas de ação a partir do caso particular; desenvolver teorias e
hipóteses empiricamente fundadas. O método não permite, no entanto, “conclusões a respeito da
dispersão e representatividade de seus resultados” (ROSENTHAL, 2014, p. 34).

Em se tratando de História Oral, memória e imigração, o trabalho apoia-se nas investigações


de Núncia Santoro de Constantino (2004; 2006; 2008). A historiadora define imigração como “um
deslocamento de diferentes pessoas em diferentes tempos e espaços, qualificados em muitos
sentidos, isto é, econômica, política e culturalmente” (CONSTANTINO, 2006, p. 65), sendo,
portanto, uma “viagem que pressupõe três momentos: a partida, o trânsito e a chegada” (LEED,
apud CONSTANTINO, 2006, p. 65).
Quando Constantino (2006, p. 70) escreve sobre “memória individual e coletiva”, ampara-
se na psicanálise da neurociência. Por meio desses campos científicos, a autora busca elucidar os
mecanismos de repressão e extinção da memória, pois entende que historiador ajuda a trazer à
superfície aquilo que estava esquecido. Nesse sentido, é possível afirmar que “memórias são
narrações de quem vivenciou processos socioculturais, enquanto memória, no singular, pode ser a
capacidade de reter fatos, ideias, impressões e retransmiti-las, através de diferentes suportes, como
a escrita ou a voz”.
Quando se pensa em história e memória, o olhar se volta para Le Goff (1996) e Brum (2003;
2006). O primeiro aborda o ofício de historiador e sua relação com os documentos, tendo em vista
a diversidade de documentos históricos. As reflexões de Le Goff (1996) levantam questionamentos
contemporâneos que surgem à medida que ocorrem os chamados embates históricos, ou seja,
divergências de pontos de vista entre historiadores. O autor ressalta que esses embates nortearam o
processo evolutivo metodológico e científico do fazer histórico que perpassou da história universal
e tradicional para uma história nova voltada para as minorias. Esta história nova tem como ponto
de partida o indivíduo e as implicações do fato histórico em seu meio social e seu modo de vida.

[...] cita três tipos de memória que pode ser entendida como a base sobre a qual se
inscrevem os encadeamentos de atos: a memória específica, a étnica e a artificial. A
primeira define a fixação dos comportamentos de espécies animais. A segunda
assegura a reprodução dos comportamentos nas sociedades humanas. A terceira é a
memória eletrônica, pois reproduz os atos mecânicos encandeados. (LERROI-
GOURHAN, apud LE GOFF, 1996, p. 427).

Quanto à memória coletiva, o autor a define como “o que fica do passado vivido dos grupos,
ou o que os grupos fazem do passado” (NORA apud LE GOFF, 1996, p. 472). Entretanto, Le Goff
(1996) salienta que a memória coletiva age como um instrumento e objeto de poder. Nesse viés, os
escritos das sociedades que têm sua história baseada na oralidade permitem compreender os
processos de dominação a partir das recordações de grupos constituídos socialmente.

“A memória, onde nasce a história, que por sua vez a alimenta, procura salvar o
passado para servir o presente e o futuro. Devemos trabalhar de forma que a memória
coletiva sirva para a libertação e não para a servidão dos homens.” (LE GOFF, 1996,
p. 477).

Já Rosemary F. Brum (2003; 2006) trata as nuances da história e da subjetividade, ou seja,


da memória que imagina. A autora procura entender o compartilhamento e a solidarização
tramando um diálogo interdisciplinar com a neurociência. Nesse diálogo pertinente à função
cognitiva1 da imaginação na constituição da memória, a autora retoma as origens da narrativa
que se configuram nos textos literários. Brum (2006) alerta o historiador para as inúmeras
maneiras de distinguir entre memória e imaginação: elas se manifestam e podem ser
percebidas nos gestos corporais, nas entonações vocais e nas expressões faciais. Outra forma
de manifestação aparece através da força narrativa, pois a fala porta um relato testemunhal
que pressupõe uma veracidade e, assim, o depoimento deve ser entrecruzado com outros
documentos.
Imaginação preenche os abismos que aparecem na narrativa, ou seja, imaginação é a
habilidade de interligar elementos e eventos separados por espaços vazios. Essa
habilidade caracteriza-se como um ato de memória transmitida culturalmente pela
oralidade. (BRUM, 2006, p. 76).

Nesse viés, pode-se afirmar que “na História Oral se apresenta a memória coletiva, impressa
de subjetividade nos ritmos e nas imagens que ultrapassam o conteúdo. “A história narrada existe,
quando a memória se manifesta, seleciona motivos para esquecer ou reter novas impressões.”
(BRUM, 2006, p. 83).
Na perspectiva da análise narrativa, “a reconstrução do trabalho biográfico, [...] esclarece
não apenas a particularidade do caso, mas evidencia, antes, o social mesmo, em seu surgimento e
em suas implicações para a ação” (ROSENTHAL, 2014, p. 224). Ou seja, essa metodologia torna

1 Nesta perspectiva, a cognição pode ser entendida como o processo pelo qual o ser humano interage com os
seus semelhantes e com o meio em que vive.
menos provável que “aspectos essenciais” da relação indivíduo e sociedade se percam no trabalho
do pesquisador.
Biografia individual e a história social – realidade subjetiva e realidade coletiva – se
implicam mutuamente; a biografia, em seu processo concreto de desenvolvimento, mas
também quando reexaminada pelo entrevistado a partir do momento presente, é sempre
dual, produto ao mesmo tempo individual e coletivo. (ROSENTHAL, 2014, p. 224).

Evidencia-se aqui um ponto de contato e ao mesmo tempo de distinção entre as duas


abordagens, pois embora ambas considerem o sujeito e o coletivo, a análise narrativa se mostra
mais objetiva, enquanto a História Oral acaba abrindo espaço para “preenchimentos” e
subjetividades, tanto por parte do narrador quanto do pesquisador.
Importante salientar que a construção da narrativa também tem uma lógica diferenciada na
análise narrativa. Ao contrario do que usualmente acontece na História Oral, aqui não utiliza-se a
análise de conteúdo no processamento do material coletado, mas sim a reconstrução biográfica,
numa lógica sequencial, ou seja, são interpretados pequenos trechos da narrativa considerando sua
cronologia. Segundo Rosenthal “se analisa a estrutura temporal da historia de vida, tenha ela sido
narrada ou vivenciada” (2014, p. 225), ou seja, será considerado tanto aquilo que o narrador
interpreta sobre o que vivenciou como o que ele narrou objetivamente sobre essa vivencia.
A entrevista, portanto, não será enquadrada em categorias pré-definidas, ao contrario disso
é somente após a análise dos dados biográficos “vivenciados” pelo entrevistado que serão
desenvolvidas as primeiras hipóteses e serão traçadas possíveis trajetórias para o sujeito. Segundo
Santos et. al. (2014, p. 375):

Importante, nesse passo de análise, é vislumbrar quais opções estariam à disposição dos
entrevistados, considerando, evidentemente, os constrangimentos e configurações
biográficas, além do contexto em que está inserido o/a entrevistado(a). Procedendo desta
maneira, evidenciam-se as escolhas possíveis no horizonte do/a entrevistado/a e o percurso
vivenciado ao longo da vida, descartando-se o pressuposto de que haveria algum tipo de
determinismo na trajetória de vida.

Rosenthal (2014, p. 235) alerta, ainda, para a necessidade temporária de suspender o


problema de pesquisa, que, segundo ela afirma, “dependendo da disciplina de origem do
pesquisador, pode já sugerir alguns modelos visando à generalização teórica”.
A autora apresenta todos os passos necessários para proceder a análise de dados da
reconstrução de caso, sendo o primeiro a análise dos dados biográficos (dados relativos a
acontecimentos), seguido pela análise do campo temático e do material textual (vida narrada),
reconstrução da história do caso (vida vivenciada), análise detalhada de passagens textuais,
contraste da história de vida narrada com a vivenciada e, por fim, a construção tipológica
(ROSENTHAL, 2014, p. 226). A construção de tipos seria a ultima etapa, explicando brevemente
o que seria essa construção. É possível afirmar que os tipos não estão vinculados aos sujeitos
narradores, podendo o mesmo narrador estar categorizado em mais de um tipo, tampouco são as
características objetivas que determinam os tipos, não importando gênero ou idade, por exemplo.

Por fim entende-se que muito embora sejam procedimentos metodológicos e teóricos
distintos e bem definidos, não há grandes contradições ou prejuízos no uso do método de análise
narrativa em detrimento da História Oral em um contexto de pesquisa histórica relativa à imigração.
Enquanto a História Oral possibilita a comprovação ou não de hipóteses previamente estabelecidas
ou ao menos pré-supostas, a análise narrativa demanda um maior desprendimento do pesquisador,
visto que a própria pesquisa proporcionará hipóteses, sendo impossível lançá-las anteriormente.
Por um lado, com a análise narrativa obtém-se resultados muito mais exatos, mediante o
uso de uma metodologia mais rígida e bem estruturada. A História Oral possibilita mais
flexibilidade nos procedimentos metodológicos e múltiplas possibilidades de processamento dos
dados coletados, o que também acarreta um menor nível de exatidão nos resultados obtidos. Em
ambos os casos, o pesquisador desempenhará um papel importante na produção e resultado da
pesquisa, porém entende-se que na História Oral a necessidade do pesquisador de “se colocar” no
resultado final do trabalho acaba sendo muito maior, pois dele dependerá também a interpretação e
complementação (e muitas vezes confirmação) dos dados obtidos nas entrevistas. Assim, a escolha
da melhor metodologia dependerá tanto do resultado que se objetiva no trabalho, quanto do
processo metodológico mais acessível ao pesquisador.

BARROS, José D’Assunção. História e memória: uma relação na confluência entre tempo e
espaço. Mouseion, Canoas, v. 3, n. 5, p. 35-67, jan./jul. 2009.

BOSI, Ecléa. Memória e sociedade. São Paulo: T. A. Queiroz, 1983.

BRANDÃO, Carlos Rodrigues. Identidade e etnia: construção da pessoa e resistência cultural.


São Paulo: Brasiliense, 1986.

BRUM, Rosemary Fritsch. História e memória: a soldadura da imaginação. Revista de Estudos


Íbero-Americanos, Porto Alegre, v. XXXII, n. 1, p. 75-84, jun. 2006.

_____. Tempos narrados: os espanhóis em Porto Alegre. Porto Alegre: Animal, 2014.

_____. Uma cidade que se conta: imigrantes italianos e narrativas no espaço social da cidade de
Porto Alegre (1920-1937). 2003. 432 f. Tese (Doutorado em História) – Pontifícia Universidade
Católica do Rio Grande do Sul, Pós-Graduação em História. Porto Alegre, 2003.

CERTEAU, Michel de. A cultura no plural. Campinas: Papirus, 1995.

CONSTANTINO, Núncia Santoro de. Caixas no porão: vozes, imagens, histórias. Porto Alegre:
Biblos, 2004.

_____. Nas entrelinhas da narrativa: vozes de mulheres imigrantes. Estudos Íbero-Americanos,


Porto Alegre, v. XXXII, n. 1, p. 63-73, jun. 2006.

_____. O italiano da esquina: imigrantes meridionais na sociedade porto-alegrense. 2. ed. Porto


Alegre: EST, 2008.

FENELON, Déa Ribeiro et al. (Org.). Muitas memórias, outras histórias. São Paulo: Olho
d’Água, 2004.

FERREIRA, Marieta de Moraes (Coord.). Entre-vistas. Rio de Janeiro: Fundação Getúlio Vargas,
1994.

GOFF, Jacques Le. História e memória. Campinas: UNICAMP, 1996.

HALBWACHS, Maurice. A memória coletiva. São Paulo: Centauro, 2004.

MARINAS, José Miguel; SANTAMARINA, Cristina. La historia oral: métodos y


experiencias. Madrid: Debate, 1993.

MEIHY, José Carlos Sebe Bom; HOLANDA, Fabíola. História Oral: como fazer, como
pensar. São Paulo: Contexto, 2007.

MONTENEGRO, Antonio Torres. História Oral e memória. São Paulo: Contexto, 1992.

MORAIS, Roque; GALIAZZI, Maria Do Carmo. Análise textual discursiva. Ijuí: UNIJUÍ, 2007.

POLLAK, Michael. Memória e identidade social. Revista de Estudos Históricos, Rio de Janeiro,
v. 5, n.10, p. 200-212, 1992.

PORTELLI, Alessandro. Ensaios de História Oral. São Paulo: Letra e Voz, 2010.

ROSENTHAL, Gabriele. Pesquisa Social Interpretativa: uma introdução. Porto Alegre:


EDIPUCRS, 2014.

SANTOS, Ermílio; OLIVEIRA, Patrícia; SUSIN, Priscila. Narrativas e pesquisa biográfica na


sociologia brasileira: Revisão e perspectivas. Civitas. Porto Alegre, v. 14, n. 2, p. 359-382, maio-
ago. 2014.

THIESEN, Icléia; BARROS, Luitgarde Oliveira Cavalcanti; SANTANA, Marco Aurélio


(Org.). Vozes do Porto: memória e História Oral. Rio de Janeiro: DP&A, 2005.

THOMPSON, Paul. A voz do passado: História Oral. São Paulo: Paz e Terra, 1992.
Eliana Rela
Cláudio da Costa

Todo e qualquer tipo de pesquisa, principalmente a pesquisa histórica, parte de um


problema inicial, que vai gerando outros subsequentes. De acordo com o teor das
indagações, surge a aproximação do pesquisador com o objeto de estudo. Este trabalho, mais
do que entender acerca da imigração polonesa e seus desdobramentos no RS, propõe-se
examinar a organização do acervo pessoal de André Hamerski e sua esposa, Vanda Stolarski
Hamerski, a fim de preservar o patrimônio (i)material produzido ao longo de suas trajetórias de
vida.
Objetiva-se registrar algumas das memórias que contribuíram na formação das
identidades do casal, como lembranças de seus antepassados e outros tantos polônicos.1
Igualmente, quer-se compreender como eles preservaram e ressignificaram tais
representações de identidade. 2 Estabelecer-se-á uma lógica organizacional para os acervos
textuais/iconográficos e a confecção de um inventário, na forma de arranjo documental, que
consistui em produto final de dissertação com amostras das coleções documentais, eleitas com
o auxílio do casal, como representativas para suas construções de identidade.
O presente trabalho busca, por meio da escrita, contextualizar historicamente,
pequenos recortes espaço/temporais, que identificam algumas das relações estabelecidas
pelo casal, nas vivências da juventude, formação acadêmica, atividade profissional, atuação
política e cultural, ligadas à identidade polônica. Na necessidade de um ponto de partida para
a investigação, elegeu-se sr. André como personagem principal, já que suas ações refletem
uma maior visibilidade pública que as de sua esposa, dona Vanda, consequentemente tendo
gerado mais documentos. Ele possui atribuições como correspondente de organizações
internacionais, como a Wspólnota Polska,3 além de integrar o corpo diretor da BRASPOL –
* Licenciada em História/UCS, Doutora em Informática na Educação/PUCRS. Professora
orientadora do Programa de Pós-Graduação em História PPGHIS/UCS.
** Graduado e Mestre em História/UCS.
1 Em busca de uma distinção entre poloneses – imigrantes, polacos – cidadãos da Polônia – de brasileiros de
origem polonesa, propõe-se por esse último grupo chamá-los de polônicos, terminologia difundida entre os
participantes do movimento étnico-polonês. Por polônico, também entende-se, aquela pessoa que ressignifica as
práticas culturais, legadas como memória coletiva das comunidades polonesas de que são egressos. No caso
específico do Brasil, este estudo propõe ainda entender o termo polônico por aquela pessoa que, indiferentemente
de ligação sanguínea, atual ou passada, com a Polônia, atua como militante da causa polônica, que acredita no
valor da cultura, política, história e outras manifestações de identidade do povo polonês.
2 Cf. CHARTIER (2011).
3 Stowarzyszenie Wspólnota Polska – Organização da Comunidade Polonesa. Órgão que fomenta ações
deintegração entre os polônicos espalhados pelo mundo e a Polônia. A organização promove atividades de
ensino, dentre elas: cursos de língua, danças, história e capacitação de profissionais para lecionarem em língua
polonesa, entre outros. Tradução livre do pesquisador. Mais informações em: http://wspolnotapolska.org.pl/ -
acessado em 10/07/2017.
Representação central da comunidade brasileiro-polonesa do Brasil, como vice-presidente
nacional. Ela desenvolve ações de ensino de língua e cultura polonesa em diversos núcleos
da BRASPOL, além de outras tarefas de organização e suporte, como a exemplo do
grupo folclórico de danças polonesas – Kalina, da cidade Nova Prata/RS.
Refletindo sobre as possibilidades metodológicas, a chance de se trabalhar com
os testemunhos de História Oral abre o leque do pesquisador, pois consegue
proporcionar peculiaridades que o trabalho exclusivo com outras fontes, por vezes, deixa a
desejar.

[...] testemunho é todo o discurso que se enuncia como tal e se submete ao julgamento da
história. É, portanto, o contrato firmado entre o historiador e a testemunha que dá ao
discurso desta última o status de testemunho, o que implica igualmente a sua consciência
de ter que depor e, para o primeiro, de ter que consignar e conservar tanto quanto utilizar
(VOLDMAN, 2005, p. 256).

Não se tem o objetivo de atestar uma superioridade em relação a outros tipos de


testemunhos, mas sim legitimar seu uso através da preservação de algo mais humano
(MEIHY, 1998). A aproximação do leitor com algumas das experiências vivenciadas pelo
casal, pode ser enquadrada em discussões mais amplas, como por exemplo: O ressurgimento
do movimento polônico no Brasil, após década de 1970, com as lutas de classe pela soberania
na Polônia, como do movimento “Solidarnóść”? Como André e Vanda vivenciaram esse
processo, e que recordações lhe evocam? Acredita-se que a História Oral aliada ao
inventariamento dos acervos proporcione minimamente compreender algumas das relações
estabelecidas entre as culturas polonesa e brasileira.
Entende-se que pela investigação do ato de lembrar e de representar, se
possibilite estabelecer uma rede de relações entre identidade e memória, servindo de ponte
para o ensino e pesquisa de História, Geografia, Artes e outros tantos saberes. Por meio
dessa investigação corroborar com os estudos da memória (HALBWACHS, 1990).
O casal reside na cidade de Nova Prata/RS, em uma casa que é réplica de uma
edificação da Polônia – inclusive nos menores detalhes –, construída no modelo arquitetônico
da região dos Alpes Poloneses, Zakopiański. É a réplica mais fidedigna esteticamente que se
tem conhecimento na região. Vista do lado de fora – um cartão postal da cidade de Nova
Prata, por dentro – a casa abriga a “Polônia” do casal.4 André e Vanda, estando ambos na
”melhor idade”, relatam que há cerca de 50 anos vêm coletando e gerando documentos, que
referem-se aos desdobramentos da imigração polonesa no Brasil e da relação entre o Brasil e
a Polônia, principalmente em questões de cunho cultural. Foram guardados documentos que
nn

4Casa do montanhês em Nova Prata/RS: http://www.superprata.com.br/guia/2015/wp- content/uploads/2015/05/


polonesa.jpg - acessado em 05/01/2016 às 15h40min.
atestam a vitalidade da comunidade polônica brasileira, em especial dos últimos 30 anos
(1987-2017), além de objetos/lembranças das inúmeras viagens do casal ao país dos
antepassados, os quais decoram e abarrotam os armários da residência.5
O acervo da “Casa do Montanhês” é composto por um compêndio de publicações,
como livros, periódicos, documentos – impressos e manuscritos –, fotos, audiovisuais,
mobiliário, entre outros, que até o presente momento integram as “coleções pessoais”. Estes
acervos carecem de processamento técnico. Cabe fazer essa ressalva, pois é de desejo do
casal que tais documentos sejam reconhecidos, acessados e preservados de alguma forma no
futuro, vindo a servir de suporte para pesquisa e ensino. Mais do que colecionadores, André e
Vanda são defensores do patrimônio, creditando ao mosaico cultural brasileiro, a
contribuição da cultura de origem polonesa (CANCLINI,1994).
Acredita-se que a acessibilidade e divulgação, mesmo que de parte dos documentos,
será uma contribuição às futuras produções historiográficas sobre o movimento polônico
no Brasil (BELLOTTO, 2006). No Rio Grande do Sul, há dois exemplos de preservação e
acesso de coleções documentais que espelham o presente trabalho. Um deles é o do
engenheiro-memorialista – Edmundo Gardolinski, que reuniu documentos coletados e
gerados em vida, de caráter público e privado, contendo uma grande coleção de fotografias
(WENCZENOVICZ, 2011). As coleções de Gardolinski foram postumamente doadas pela
família à Universidade Federal do Rio Grande do Sul, estando atualmente sob custódia do
núcleo de pesquisa em História.6 O outro exemplo é o acervo de Frei Alberto Stawinski, com
coleções de documentos gerados por suas atribuições na Ordem dos Frades Menores
Capuchinhos (OFM-CAP). Reuniu vasto número de correspondências com amigos no
exterior, religiosos e leigos, principalmente dos Estados Unidos e Polônia, além do material
fruto de suas pesquisas sobre imigração polonesa. Trata-se de documentos que atestam as
atividades de historiador, linguista e memorialista. Os acervos encontram-se
preservados e disponíveis para pesquisa pelo MUSCAP - Museu dos Capuchinhos do Rio
Grande do Sul.7
Cada um dos exemplos contribuiu a seu modo para o leque de fontes sobre o tema.
Devido à brevidade das exposições, este artigo não irá aprofundar as questões de organização,
mas, sim, acerca da relevância da História Oral no presente trabalho. Esse texto explanará
como se deram os relatos e a convivência com o objeto de estudo.

5 Cabe esclarecer que cultura polonesa é aquela vivida e produzida na Polônia, de cultura polônica: aquela
produzida e vivida pelos núcleos de descendentes poloneses, e suas formas de expressão distintas (SIUDA-
AMBROZIAK, 2011).
6 Maiores detalhes em: http://www.ufrgs.br/nph/acervo/fundo-arquivo-edmundo-gardolinski/ - acessado em
10/07/2017 às 11h40min.
7 Maiores detalhes em: http://capuchinhos.org.br/muscap - acessado em 12/07/2017.
Durante o trabalho de campo, de organização dos acervos e realização das entrevistas com
o sr. André e dona Vanda Hamerski, foi permitido ao pesquisador acessar, não somente o arquivo
documental, mas também as muitas belezas espalhadas pela residência.
As dificuldades que se apresentaram ao longo do trabalho de pesquisa foram muitas. a
primeira delas foi a de trabalhar constantemente com diversas línguas estrangeiras. Devido a
escassez de bibliografia em língua portuguesa, foram consultados títulos e documentos em polonês,
alemão, italiano, espanhol e inglês, com primazia à língua polonesa, que tem seu alfabeto único e
de rica expressividade linguística. Para executar o presente trabalho foi necessário treinar a escuta,
para compreender expressões em polonês fluente, trocadas entre o casal. Outra dificuldade
percebida ao longo do trabalho de pesquisa, foi a de trabalhar com a História do Tempo Presente,
sentindo “os cravos e os louros”, como coloca Chartier (2005):

Para o historiador modernista, a história do tempo presente, pelo menos como ele a
imagina, desperta um mau sentimento: a inveja. Antes de tudo, inveja de uma pesquisa
que não é uma busca desesperada de almas mortas, mas um encontro com seres de carne
e osso que são contemporâneos daquele que lhes narra as vidas (p. 215).
Inveja, enfim porque o historiador do tempo presente é contemporâneo de seu objeto e,
portanto, partilha com aqueles cuja história ele narra as mesmas categorias essenciais, as
mesmas referências fundamentais. Ele é pois o único que pode superar a descontinuidade
fundamental que costuma existir entre o aparato intelectual, afetivo e psíquico do
historiador e o dos homens e mulheres cuja história ele escreve. Para os historiadores dos
tempos consumados, o conhecimento histórico é sempre uma difícil operação de tradução,
sempre uma tentativa paradoxal: manifestar sobre o modo de equivalência um afastamento
irredutível. Para o historiador do tempo presente, parece infinitamente menor a distância
entre a compreensão que ele tem de si mesmo e a dos atores históricos, modestos ou
ilustres, cujas maneiras de sentir e de pensar ele reconstrói (p. 216).

O presente trabalho conseguiu “capturar”, apenas uma pequena parte do compartilhamento


tido entre pesquisador e pesquisados. Acredita-se que a História Oral facilitou chegar às categorias
do arranjo organizacional:

Como pressuposto, a história oral implica a percepção do passado como algo que tem
continuidade hoje e cujo processo histórico não está acabado. A presença do passado no
presente imediato das pessoas é a razão de ser da história oral. Nessa medida, a história
oral não só oferece uma mudança para o conceito de história, mas mais que isso, garante
sentido social à vida de depoentes e leitores que passam a entender a sequência
histórica e sentir-se parte do contexto em que vivem (MEIHY, 1998, p. 13).

Buscou-se registrar na primeira entrevista experimental, uma das conversas tidas com sr.
André, sobre religiosidade. Após essa primeira gravação, constatou-se que as entrevistas
subsequentes deveriam ter menor duração, pois a densidade das informações e a exaustão do
trabalho de lembrar, foi sentida em avaliação após a atividade de registro (transcrição). A primeira
entrevista também serviu para familiarizar-se com o ritmo e a forma do entrevistado se expressar,
com duração de aproximadamente 120 minutos. As entrevistas subsequentes duraram pouco mais
de 30 minutos e as horas de trabalho de campo ultrapassaram 180 horas. André, como militante de
longa data, não só na polonidade, mas inclusive como político-partidário, possui uma oratória
aprimorada e irreverência única, que por meio da convivência constatou ser seu modo natural de
ser:
Para os militantes, sejam eles sindicalistas, políticos ou feministas, testemunhar, dar uma
versão e uma visão do passado, formar para a história um ponto de vista sobre os fatos e
permitir estabelecer a sua veracidade também é controlar a posteridade, ter domínio
sobre a imagem que será legada à eternidade: em suma, deter ou acreditar deter a
legitimidade de todo o movimento (VOLDMAN, 2005, p. 258).

Um segundo estranhamento foi o de se trabalhar imerso em uma atmosfera, única, que é a


da casa do montanhês em Nova Prata. Os que a conhecem pessoalmente podem entender melhor o
que está sendo dito; aos que ainda não a conhecem, está posto o convite.
Inicialmente houve o vislumbre, pois meu guia dentro do ambiente de trabalho foi sr. André.
Este acompanhou o trabalho de perto, ajudando na organização e redescobrindo tesouros perdidos
dentro da própria casa. Cada objeto da residência – quadros, livros, móveis, discos, tudo lhe
despertava memórias, repletas de discursos simbólicos de polonidade:

Porque nos apegamos aos objetos? Porque desejamos que não mudem, e continuem a nos
fazer companhia? Afastamos toda consideração de comodidade ou de estética. Nosso
entorno material leva ao mesmo tempo nossa marca e a dos outros. Nossa casa, nossos
móveis e a maneira segundo a qual estão dispostos, o arranjo dos cômodos onde vivemos,
lembra-nos nossa família e os amigos que víamos geralmente nesse quadro
(HALBWACHS, 1990, p.131).

A casa é a materialização das memórias, inseridas em um quadro espaço/temporal


específico. A casa-obra foi representada ao modo brasileiro, construída de acordo com um saber-
fazer empírico, e com os materiais disponíveis, edificou-se a releitura artística de Witkiewicz.

Nos templos, cemitérios, praças e avenidas das cidades, ao longo de estradas até “o mais
profundo da montanha, na grande solidão”, as inscrições acumulavam-se e obrigavam o
mundo greco-romano a um esforço extraordinário de comemoração e de perpetuação da
lembrança. A pedra e o mármore serviam na maioria das vezes de suporte a uma
sobrecarga de memória. Os “arquivos de pedra” acrescentavam à função de arquivos
propriamente ditos um caráter de publicidade insistente, apostando na ostentação e na
durabilidade dessa memória lapidar e marmórea (LE GOFF, 1996, p. 432).
O casal destaca que a residência não foi construída com toda a arte que Witkiewicz
apresentou em suas obras. Esclarecem que só não fizeram melhor, pois desconheciam a região
montanhosa da Polônia quando construíram a casa. A casa-obra enquanto expressão histórico-
artística, posta-se como um patrimônio que demonstra a todos que visitam a cidade de Nova Prata,
as contribuições do imigrante polonês ao Brasil e os ideais poloneses de liberdade e independência
na transição do séc. XIX para o séc. XX; um exemplar único que mescla as culturas brasileira e
polonesa.
O objetivo inicial da pesquisa era a salvaguarda das contribuições de André Hamerski para
a comunidade polônica. Porém, com o andamento do trabalho, percebeu-se também as
contribuições de dona Vanda, que vão desde os simbólicos bordados e tecidos, que adornam a
residência, à preparação das aulas de língua e canto, bem como das idas e vindas à costureira por
razão das roupas do grupo Kalina. André em entrevista conferida à revista polonesa Przegląd
Oponiarski - Revisão do Pneu8, comenta que sua esposa Vanda sempre atuou mais do que ele
na causa da polonidade.
A militância de dona Vanda se apresenta de forma mais silenciosa, e somente por meio da
convivência foi possível chegar à percepção de seu papel fundamental, como base operacional da
polonidade. Dona Vanda relata que foi educada para ser dona de casa, e que em sua juventude era
cobrado da mulher uma formação exemplar – costurar, cozinhar, cuidar da casa, além de ser uma
pessoa culta; era o mínimo que se esperava. Conta que durante a juventude nunca chegou a trabalhar
fora de casa, mas que desde os sete anos (1952), ajudava a mãe nos afazeres domésticos, tendo logo
assumido a responsabilidade de fazer o almoço para o pai, a mãe e os dois irmãos. Ela lembra que
as primeiras receitas foram um desastre. Humildemente complementa dizendo que com o passar do
tempo aprendeu a cozinhar. Recorda com carinho da mãe, operária em fábrica de tecelagem, e do
pai, mecânico e marceneiro, que apesar de bastante severo, sempre foi bondoso.
Lembra ainda que, quando era “dia de comprar sapatos”, seu pai sempre lhe presenteava
com dois pares, enquanto que só um aos irmãos, dizendo que dessa vez ela poderia escolher dois.
Dona Vanda deduz que a generosidade do pai se dava pelo fato dela ajudar em casa e se esforçar
nos estudos, por isso que todas as vezes o pai repetia a generosidade. Ao leitor de hoje em dia,
inserido em um crescente pensamento de consumo, comprar dois pares de sapato pode parecer a
coisa mais comum do mundo, mas em uma leitura contextual comprar dois pares de sapatos nas
décadas de 1950-1960, podia ser considerado um luxo.

Ainda que muitas vezes a existência de depoimentos colhidos no tempo presente seja
usada como contribuição para preencher vazios documentais, lacunas de informações e
complementar ou promover o diálogo com outras fontes já conhecidas, é importante

8 PUTKIEWICZ, Władysława. O polonii w Brazylli w rozmowie z inż. Andrzejem Hamerskim: Polskmaa


sowim sercu. Przegląd Oponiarski, n. 4, p.35, 2005. Tradução livre do pesquisador.
ressaltar que se pode assumi-la isoladamente, com valores próprios. Fala-se também da
validade de se considerar a história oral por si mesma. Ela é relevante também para facilitar
o entendimento de aspectos subjetivos de casos que, normalmente, são filtrados por
racionalismos, objetividades e neutralidade esfriadas pelas versões oficiais ou dificultadas
pela lógica da documentação escrita que encerra um código diverso do oral (MEIHY,
1998, p. 21).

Retomando o pensamento de Voldman (2005) sobre os militantes, este texto acredita


que mais do que controlar o passado, André demonstra uma preocupação natural,
compartilhada não só por parte das pessoas de mais idade do movimento polônico, mas dos
velhos de um modo geral, que é a necessidade de compartilhar, as dificuldades e êxitos que
teve ao longo de sua vida. Em um grupo social familiar, qual é o desejo dos integrantes de
mais idade quanto a suas memórias? É natural acreditarem que os mais jovens do grupo as
preservem, mesmo que não permaneçam com eles para sempre, mas que sirvam para
enriquecer o seu conhecimento (HALBWACHS, 1990).
O casal não possui filhos, mas isso não significa que não tem para quem deixar o
seu patrimônio. Este trabalho permitiu ao casal, em “especial” ao sr. André, realizar o anseio
de dividir com um público maior, um pouco de sua história pessoal, onde enlaçam-se
memórias de ancestralidade,9 com o trabalho de militância cultural ainda desenvolvido. A
preocupação de legar uma formação cultural aos jovens brasileiros que encontram-se
inseridos no movimento polônico no Brasil, ficou evidente durante o estudo para composição
do arranjo documental. A dedicação de dona Vanda às artes visuais, folclóricas e líricas, assim
como de ensino da língua e cultura polonesa ao grupo polônico brasileiro, são encarados
como positivos e necessários para oportunizar aos entusiastas da causa polônica um
futuro melhor, por meio do enriquecimento cultural. São igualmente passados valores
como: o respeito e tolerância cultural, o espírito associativo, a resiliência, a
solidariedade, a fé, etc. .
Graças à convivência com o objeto de estudo, foi possível conhecer
melhor a vivência cultural do sr. André. Lembra que quando jovem foi bailarino folclórico,
participando do grupos da JOPOL10 e da Sociedade Polônia, época em que conheceu
dona Vanda. No final da década de 1960, envolveu-se em um acidente de trânsito, onde
lesionou um dos joelhos, tendo que se afastar do cargo de bailarino. A beleza dos passos e a
representatividade das roupas folclóricas o fascinava, trocando o empecilho de não poder
mais dançar pela ocupação de organizador cultural, trabalho este que executa até hoje. A
construção da casa do montanhês no final da década de 1980, em Nova Prata, exacerba o
mecenato sobre as artes. O papa era polonês e o reconhecimento foi posto a prova. Por
meio da análise documental, a dedicação à diplomacia se fez evidente, como tradutor/
interprete, organizador de atividades de intercâmbio – Brasil/Polônia, representante da
comunidade polônica no Brasil. Fez trabalhos que permitiram-no chegar à competência de
conselheiro do senado polonês para questões dos poloneses fora da Polônia, na gestão de
2008-2011,
9Seleção de memórias que fizeram de seus antepassados, como esses são lembrados – representações pessoais.
10 Conjunto Folclórico Jovem Polônia – JOPOL. Fundado em 1963, mantém suas atividades até hoje
vinculado à Capelania Polonesa de, Monte Claro - Igreja Polonesa de Porto Alegre.
2008-2011, como correspondente no Brasil acerca da polonidade.
André declara que sua aproximação com o país dos antepassados se intensificou a
partir da primeira viagem a Polônia, em 1980, quando foi em busca de aprimoramento
profissional: “Polônia me deu proficiência, conhecimento. De certa forma, tudo o que eu e a
mulher corremos com essa gurizada é porque queremos retribuir isso. Oportunizar que essa
turma veja como a Polônia é bonita!” Referiu-se à organização dos grupos de jovens
brasileiros que irão participar da colônia de férias, Pobyt Edukacyjny Dzieciom i Młodziec
ońm -
Estada Educativa para Crianças e Adolescentes, a ser realizada no final deste ano (2017), na
Polônia. A preocupação reflete:

A criança recebe do passado não só os dados da história escrita; mergulha suas raízes na
história vivida, ou melhor, sobrevivida, das pessoas de idade que tomaram parte na sua
socialização. Sem estas, haveria uma competência abstrata para lidar com os dados do
passado, mas não a memória. Há dimensões da aculturação que, sem os velhos, a educação
dos adultos não alcança plenamente: o reviver do que se perdeu, de histórias, tradições, o
reviver dos que já partiram e participam então de nossas conversas e esperanças; enfim, o
poder que os velhos têm de tornar presentes na família os que se ausentaram, pois deles
ainda ficou alguma coisa em nosso hábito de sorrir, de andar (BOSI, 2003, p.73-74).

Tendo em conta as percepções de ancestralidade polonesa do casal, e a relevância de tais


fatores na formação de suas identidades e memórias, assim como do trabalho cultural desenvolvido,
cabe lembrar as disposições de alguns historiadores da imigração polonesa como: Wachowicz
(1970), Stawinski (1976), entre outros, quando estes postulavam sobre a manutenção da identidade
polônica no Brasil, pelo ensino da língua e religiosidade. A historiografia regional, do local do
objeto de estudo - Nova Prata, esclarece que: “Entre as contribuições das etnias que compuseram a
população local sobressaem, entre os valores poloneses, a educação e a religião” (XERRI, 2004, p.
48).
Considerando que ambas famílias do casal, assim como grande parte dos imigrantes
poloneses vindos ao Brasil, entre 1880 e 1940, eram adeptos da religião católica, alguns
delineamentos da composição familiar são traçados. Deve-se considerar a inexistência de uma
unicidade de modelo familiar, porém exemplos permaneceram:

A família, para os emigrantes, foi o grupo de apoio, de proteção, que trouxe na sua
experiência uma série de valores humanistas, porque acreditava ser a responsável pela
transmissão de conceitos e de valores sociais, bem como por integrar o indivíduo à
sociedade pelos ensinamentos das normas mínimas de convívio coletivo, mesmo que fosse
pela coerção social (HERÉDIA; PAVIANI; 2003, p. 60).

Pontuando a linearidade de socialização do indivíduo, do interior – grupo familiar, para o


exterior – sociedade, a família seria o primeiro grupo responsável pela manutenção da memória
coletiva polônica, a educação que introduz a criança no meio social e passa as primeiras
representações de um passado (HALBWACHS, 1990).

À medida em que a criança cresce, e sobretudo quando se torna adulta, participa de


maneira mais distinta e mais refletida da vida e do pensamento desses grupos dos quais
fazia parte, inicialmente, sem disso aperceber-se (HALBWACHS, 1990, p. 71).

Nesta pesquisa, notou-se que a religião católica era introduzida no seio do lar, sendo
costurada ao reconhecimento de uma identidade de raiz polonesa. Cabe recapitular, que a forte
conexão entre os poloneses e a igreja tem raiz histórica, pois na Polônia ocupada (1795-1918), a
igreja era um dos únicos redutos de participação política das populações (WACHOWICZ, 1970;
STAWINSKI, 1976; WENCZNOVICZ, 2007; 2010).
No caso em específico dos antepassados de André, emigrados entre 1883-1884 da
Pomerânia (norte da Polônia), vieram ao Brasil motivados pela Kulturkampf:

Quando Bismarck declarou a sua KulturKampf – a guerra às tendências católicas e


regionalistas no Império –, os deputados polacos encontraram novos aliados nos católicos
da Baviera e da Vestefália. A equiparação do catolicismo ao ‹‹estrangeirismo›› levou os
católicos alemães que viviam na Posnânia e na Pomerânia a identificarem-se com os
Polacos. Do mesmo modo, camponeses pomerânios que nunca tinham perguntado a si
próprios se eram polacos ou alemães, mas que se sabiam inequivocamente católicos,
declararam-se polacos, pois ser polaco tornara-se sinónimo de ser católico (ZAMOYSKI,
2010, p. 244).

A historiografia de Nova Prata complementa que nos núcleos de poloneses do município:


“O valor dado à educação é responsável pela manutenção do idioma e pela preservação de traços
de sua cultura original, imprescindíveis à integração entre os descendentes e a comunidade na qual
estão inseridos” (XERRI, 2004, p. 51). Os de origem polonesa representam aproximadamente 8%
da população do município, porém evidenciado o valor concedido à educação para a manutenção
cultural, buscou-se mapear como se deu partes desse processo com o casal. André relata que:

A minha língua materna é polonesa, o português não é materno para mim, materna foi a
polonesa. Depois aprendi o português, logo que eu cresci. Com minha mãe e com meu
pai, nunca falei em português... com o pai um pouquinho... mas de um modo geral, era em
polonês... Quando o pai queria me xingar, ele me xingava em polonês... porque eu entendia
melhor o polonês que o português... Mas meu pai e mãe também falavam bem o português,
escreviam também... (Mas tu aprendia só falando! Ou se escrevia, lia-se alguma coisa!)
Eu aprendi a falar em polonês, mas não fui alfabetizado em polonês. Eu acabei
lendo e escrevendo mais tarde por conta própria (HAMERSKI, 2015).11

O cenário rural de Guarani das Missões/RS, local de crescimento de André, destoa da capital
Porto Alegre, onde dona Vanda cresceu; distintos cenários, ambos na década de 1950.
Dona Vanda relata que, desde criança, participou da Sociedade Polônia de Porto Alegre, já
que seus pais eram sócios, assim como frequentava a Igreja Polonesa, próxima à referida sociedade.
Lembra que começou a participar ativamente da Sociedade Polônia aos seis (06) anos de idade,
frequentando as aulas de canto, atividade que cultiva até hoje, há mais de 65 anos. Esclarece que
fez parte da ala jovem da Sociedade Polônia, que, na década de 1960, era composta pelos jovens e
pelos adultos. Frequentou o grupo da JOPOL e da referida sociedade, ingressando no grupo de
danças folclóricas da sociedade sob a direção da sra. Janina Figurska. Conta que seu pai instituiu
que em casa só era permitido falar em polonês, para forçá-los – ela e os irmãos –, a aprenderem a
língua polonesa: “Ele dizia que se não aprendêssemos em casa a língua, um dia iria fazer falta... e
que em todos os outros lugares usaríamos o português”. Dona Vanda aos 72 anos coloca
agradecimentos póstumos ao pai, dizendo que: “se não soubesse a língua polonesa não teria feito
muita coisa”. Conta que em 1990 foi sozinha a Polônia para fazer um curso de Etnografia, e, que,
graças à fluência em língua polonesa pode trocar as aulas de idioma pelas de folclore, que confessa
ter aproveitado mais.

A língua, sendo um fenômeno cultural, como tal é também concretizadora, formadora,


divulgadora, criadora de valores culturais que se efetivam por meio, tanto da educação
formal (escola) quanto da informal (família, sociedade). As questões da língua têm a ver
com o saber e o conhecer humanos, habilidades adquiridas naturalmente, por processos de
interação familiar e social e, sistematicamente, por intervenções educacionais. No plano
do saber, todo cidadão, inclusive o analfabeto, sabe falar e comunicar-se na língua
materna; porém, no plano do conhecer, não a conhece de forma sistemática, porque não
domina todas as formas de uso dessa língua, tais como as habilidades de ler e de escrever
(HERÉDIA; PAVIANI, 2003, p. 88).

Os relatos, cada qual são únicos e pessoais. E marcam um tempo em que a educação, nos
lares, devia formar culturalmente: “através da língua vão passando de pais para filhos os
sentimentos de simpatia e admiração para com o povo polonês” (STAWINSKI, 1976, p. 149). Os
depoimentos mostram os esforços empreendidos no ensino da língua polonesa, e atestam a
convivência entre línguas de raízes distintas – uma eslava e a outra latina; o uso destas demarca
igualmente o público e o privado.

11 Trecho de depoimento oral. As transcrições estão em posse do pesquisador. Entre parênteses, intervenção
do pesquisador.
Uma das manifestações mais importantes da identidade coletiva é a língua. Falar a mesma
língua, ou variedade de língua, que uma outra pessoa é uma maneira simples e eficiente
de indicar solidariedade; falar uma língua diferente ou variedade de língua é uma forma
igualmente eficiente de distinguir-se entre outros indivíduos ou grupos (BURKE, 1995, p.
94).

Este texto buscou expor as vivências de um casal de brasileiros, que acredita na riqueza
cultural do Brasil, e que tiveram suas vidas marcadas pela luta cultural, como exemplos da
contribuição polônica ao mosaico cultural brasileiro.

Porque esse agudo contraste de atitude para com o passado em diferentes culturas? Diz-
se, muitas vezes, que a história é escrita pelos vencedores. Eles podem dar-se o luxo de
esquecer, enquanto os perdedores não conseguem aceitar o que aconteceu e são
condenados a remoê-lo, revivê-lo, refletir sobre como poderia ter sido diferente. Outra
explicação para isso poderia em termos de raízes culturais. Quando se têm essas raízes,
pode-se considerá-las como certas, mas quem não as tem sente necessidade de procurá-
las. Os irlandeses e os poloneses foram desarraigados, e seus países divididos. Não
surpreende que pareçam obcecados pelo passado (BURKE, 2000, p. 83).

No Brasil, em alguns casos essa memória social se manifesta, essa polonidade está viva,
mesmo que pareça desatinada no espaço e tempo. Para os polônicos no Brasil, recomenda-se o
conhecimento da Polônia atual, para uma melhor organização e reconhecimento da parcela cultural
que foi e é legada ao Brasil, nomeando-se polonesa. Se o reconhecimento é esperado, que ao menos
seja usado o termo correto: polônico:

Bem, mas afinal de contas a Polônia atual não são os desenhos recortados ou os trajes da
Pomerânia, ou talvez seja muito mais do que isso. É a excelente música, é um dos melhores
cinemas do mundo, são os festivais de cultura brasileira na Varsóvia coberta pela neve, é
a Grande Orquestra da Festiva Ajuda, continuando a mostrar a solidariedade de uma
grande nação no contexto do etos do “Solidariedade” que aos poucos vai definhando nessa
nação. A Polônia e o polonismo são os assuntos diários, os problemas e as eleições, em
que a vida agitada nos faz mergulhar, perdendo-nos, muitas vezes, na normalidade e nos
afazeres diários – se a segunda linha do metrô deve ir a Targówek ou a Bermowo, se o
preço da gasolina pode chegar a 6 zlótis o litro e se o livre mercado é o remédio para tudo,
até para a especulação... Mas essa Polônia e esse polonismo não podem deixar de ser
percebidos no Sul do Brasil, onde algumas vezes a farmácia da esquina se chama “Jeszcze
Polska nie Zginęła” (“A Polônia ainda não pereceu” – palavras iniciais do Hino Nacional
polonês), da qual até hoje guardo uma etiqueta promocional para mostrá-la aos que
duvidam. E a residência da família Hamerski em Nova Prata/RS é uma casa de madeira
no estilo dos montanheses da Polônia, cercada de pinheiros e com uma bandeira branca e
vermelha tremulando na varanda. (SIUDA- AMBROZIAK, 2011, p. 98-99).

Esse texto buscou valorizar fragmentos da contribuição da cultura polonesa no Brasil. Em


uma leitura pessoal da obra de Witkiewicz, destaca-se a luta pelo étnico-regional, górale, de um
espaço (Polônia) e tempo (1851-1915) determinados. A mensagem que se extrai pela leitura do
presente trabalho, é lembrar a todos os brasileiros, que estes lutem pelo que acreditam ser, mesmo
que para os olhos estrangeiros lhes pareça, por vezes, ininteligível. Como educadores acreditamos
que por meio da educação e democratização do conhecimento, pode ser superado o desafio que foi
posto ao Brasil, o de comportar as incontavéis expressões culturais que abriga. Quem dera se todos
um dia pudessem ser representados!
Ao casal, em especial, agradeço por terem me acolhido solidariamente e acreditarem na
seriedade do trabalho, e de por meio da convivência terem compartilhado um pouco de suas
memórias. Igualmente agradeço por deporem sobre suas trajetórias de militância em prol da cultura
polonesa e polônica, sobre a memória social do grupo, assim como sobre fatos da história. Sentimo-
nos lisonjeados por terem nos confiado a responsabilidade de didatizar para um público maior, parte
de suas memórias. Ao casal André e Vanda, o nosso bardzo dziękuję – muito obrigado!

BELLOTTO, Heloísa Liberalli. Arquivos permanentes: tratamento documental. 4 ed., Brasília:


Ed. da FGV, 2006.

BOSI, Ecléa. Memória e sociedade: lembranças dos velhos. 10 ed., São Paulo: Companhia das
Letras, 2003.

BURKE, Peter. A arte da conversação. São Paulo: Ed. da UNESP, 1995.

_____. Variedades de História Cultural. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2000.

CANCLINI, Néstor García. O patrimônio cultural e a construção imaginária do nacional.


Revista do Patrimônio - Cidade. Brasil, IPHAN, n. 23, 1994.

CHARTIER, Roger. Defesa e ilustração da noção de representação. In: Fronteiras: Dourados/MS,


v.13, n. 24, p. 15-29, jul./dez. 2011.

_____. A visão do historiador modernista. In: AMADO, Janaina; FERREIRA, Marieta de


Moraes (Org.). Usos & abusos da história oral. 7 ed., Rio de Janeiro: Ed. da FGV, 2005, p.
215-218.

GRZESZCZUK, Andrzej. Polonia w Brazylii. Wspólnota Polska: Warszawa, 2012.


HALBWACHS, Maurice. A memória coletiva. Paris: Vértice, 1990.

HERÉDIA, Vania Beatriz Merlotti; PAVIANI, Neires Maria Soldatelli. Língua, cultura e valores:
um estudo da presença do humanismo latino na produção científica sobre imigração italiana no
Sul do Brasil. Porto Alegre: EST, 2003.

LE GOFF, Jacques. História e memória. São Paulo: Ed. da UNICAMP, 1996.

MEIHY, José Carlos S. B. Manual de História Oral: São Paulo: Loyola, 1998.

POLLAK, Michel. Memória, esquecimento, silêncio. Estudos Históricos, Rio de Janeiro, v. 2, n.


3, p. 3-15, 1989.

_____. Memória e Identidade Social. Estudos Históricos, Rio de Janeiro, v. 5, n. 10, p. 200-212,
1992.

PUTKIEWICZ, Władysława. Korrespondencja własna z Brazylii: Nova Prata Vipalem Stoi.


Przegląd Oponiarski, Toruń, n. 2, p. 33, 2005.

_____. O polonii w Brazylli w rozmowie z inż. Andrzejem Hamerskim: Polskę ma w sowim


sercu. Przegląd Oponiarski, Toruń, n. 4, p. 35, 2005.

SIUDA-AMBROZIAK, Renata. A comunidade polônica brasileira e a sua visão da Polônia e do


polonismo. Polonicus - Revista de reflexão Brasil-Polônia. Missão Católica polonesa no Brasil,
Curitiba; a. 02, n. 3, jan./jun. 2011.

STAWINSKI, Alberto Victor. Primórdios da imigração polonesa no Rio Grande do Sul (1875-
1975). Porto Alegre: EST; Caxias do Sul: Universidade de Caxias do Sul, 1976.

VOLDMAN, Danièle. A invenção do depoimento oral. In: AMADO, Janaina; FERREIRA,


Marieta de Moraes (Org.). Usos & abusos da História Oral. 7 ed., Rio de Janeiro: Ed. da FGV,
2005, p. 405-430.

XERRI, Eliana Gasparini. Nova Prata: uma incursão na história. Caxias do Sul: EDUCS, 2004.

WACHOWICZ, Ruy Christovam. As escolas da colonização polonesa no Brasil. Anais da


comunidade brasileiro polonesa. Curitiba: Superintendência do centenário da imigração polonesa
no Brasil, v. 2, 1970.

WENCZENOVICZ, Thaís Janaina. Luto e silêncio: doença e morte nas áreas de colonização
polonesa no Rio Grande do Sul (1940-1945) – Tese de doutorado em História. Instituto de
Filosofia e Ciências Humanas. Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul. Porto
Alegre, 2007.

_____. Pequeninos poloneses: cotidiano das crianças polonesas (1920-1960). S.1: s. n.

2010. _____. Edmundo Gardolinski: um engenheiro memorialista. Porto Alegre:

UERGS; Erechim: Graffoluz, 2011.

ZAMOYSKI, Adam. História da Polônia. Lisboa: Ed. 70, 2010.

HAMERSKI, André. Entrevista realizada com André Hamerski em 24/12/2015.


Raul Felix Barbosa
Maria Cristina Dadalto

Refugiados1 e migrações forçadas são um tema delicado, que revelam múltiplas


conexões e envolvem equilíbrios de interesses de várias naturezas. A imagem estereotipada e a
perversidade da chamada ‘linguagem humanitária’ (HARREL-BOND, 2005; VAN AKEN,
2005) conduzem a uma questão política internacional. A categoria do refugiado é, de fato,
primeiramente de natureza jurídica e administrativa: fundamenta-se em uma avaliação do
percurso histórico do indivíduo e na sua relação com o país de origem. Neste sentido, a
condição de refugiado é definida na relação com o Estado de acolhimento e os direitos desta
conexão.
O contexto específico no qual se encontra o refugiado é condicionado hierarquicamente
pelas decisões políticas em nível internacional, nacional e local. Cada grau dessa escala de poderes
será definido até chegar à situação concreta do ator individual, caracterizada por uma série de
vínculos. A disciplina internacional em matéria de asilo constitui o primeiro âmbito relevante, que
delineia um horizonte comum de referência em condição de propor algumas precondições à ação
do Estado.
A Convenção de Genebra sobre o estatuto dos refugiados da Organização das Nações
Unidas de 1951 é a mais notória. Contudo, nos últimos anos se desenvolveram outras de caráter
mais regional, que divergem, principalmente, sobre as características consideradas necessárias para
o reconhecimento do status de refugiado. Assim, pode acontecer que uma pessoa reconhecida como
refugiado em um país, não o seja em outro. Um exemplo é a definição da OUA de refugiado,
adotada por países africanos, que compreende também que refugiados podem ser aqueles que saem
da própria pátria por invasões estrangeiras ou por sérios problemas de ordem pública, casos não
contemplados pela definição da ONU.
A integração entre os refugiados, as instituições e a sociedade de acolhimento não ocorrem,
entretanto, em um ‘abstrato’ território nacional, como expõem os acordos. Excluindo os países que
oferecem o acolhimento interno em campos de refugiados, é principalmente nas cidades, ou

* UFRGS, Doutorando em Sociologia, apoio CAPES. .


** UFES, Doutora em Ciências Sociais.
1 O termo refugiado será utilizado nesse estudo para indicar os titulares de qualquer tipo de proteção
internacional.
especificamente nas sociedades locais, o palco para tais encontros2 (CAPONIO, 2006;
JACOBSEN, 2006).
O governo local e os entes públicos e privados assumem, uma relevância central: isto porque
são os responsáveis pela elaboração e implantação de políticas, interpretando e integrando as
normas legislativas nacionais, delineando um conjunto preciso de vínculos e oportunidades
(PALMARY, 2002; LANDAU, 2005). No processo de integração dos refugiados também estão
correlacionadas as condições socioeconômicas gerais do contexto, bem como as reações da
sociedade civil e da opinião publica para questões de migração em geral, e dos refugiados em
particular (PORTES, 1995).
Neste sentido, considera-se que o contexto estrutural no qual os refugiados se inserem é
fortemente comprometido. E, no entanto, os refugiados permanecem como atores sociais. Isto
porque situações, vinculadas e limitadas, não os priva da capacidade e da possibilidade de agir. De
modo que em um mesmo contexto, os recursos adotados, as estratégias postas em prática e os êxitos
atingidos se diferenciam de acordo com os indivíduos e suas trajetórias.
Assumimos neste artigo o que Bakewell (2008) define como uma perspectiva ‘oblíqua’ que
vai além de uma identidade única para compreender de forma mais ampla os atores sociais. Dois
pontos de vista em particular destacam a importância da operação de análise do refugiado. Primeiro,
entender que sob o rótulo de refugiado, incluem-se indivíduos, com histórias, experiências e
características próprias em realidades multiformes e multifacetadas. As características necessárias
para o reconhecimento do status de refugiado mudam de país para país. Um segundo aspecto está
conectado à imagem padronizada vinculada ao senso comum e à comunicação midiática, bem
como, alguns cenários políticos e de intervenção humanitária.
De um lado, os refugiados são frequentemente considerados como um conjunto indistinto
e homogêneo, privados de qualquer caracterização social, cultural ou histórica. Ou seja, são vistos
como um tipo de representação da humanidade em seu estado simples (MALKKI, 1995a). Por
outro, representações que também os colocam como vítimas indefesas, incapazes de agir e reagir
em frente a seu próprio destino de desventura. Portanto, indivíduos necessitados de caridade e
compaixão e que devem ser gratos por cada ajuda recebida (HARRELL-BOND, 2005;
MARCHETTI, 2006).
Nossa argumentação parte da compreensão que o refugiado é um ator social situado, capaz
de agir estrategicamente, considerando e utilizando os recursos à sua disposição e às oportunidades
para a integração na sociedade de acolhimento; tanto no contexto próprio da sociedade brasileira
contemporânea, como em um contexto global.
Avaliamos, a partir de Bakewell (2008), que o uso indiscriminado, por parte da academia,
da categoria refugiado, como base analítica, é suscetível de confirmar e legitimar representações
que vitimizam e padronizam os seus diferentes conteúdos. Assim, tais representações produzem

2 Segundo o ACNUR (2009), mais de 50% da população refugiada está estabelecida em áreas urbanas.
uma junção de categorias analíticas e políticas, que retornam ciclicamente ao centro das discussões.
A exemplo, os estudos produzidos por Malkki, (1995b); SCHMIDT, (2007) e BAKEWELL,
(2008).
A este respeito, destaca-se a concentração de pesquisas em questões consideradas típicas da
experiência dos refugiados, tais como o impacto da ajuda humanitária na construção identitária e
na interação com organizações internacionais (BAKEWELL, 2008). Ou ainda, a tendência para
situar grande parte das análises em locais como campos de refugiados, apesar do crescimento
contínuo de refugiados urbanos (POLZER, 2008). Como resultado, corre-se o risco de marginalizar
os segmentos da população refugiada. É preciso evitar “uma aproximação reducionista, incapaz de
acolher os componentes intencionais e a capacidade de agency daqueles atores sociais que vêm
vexando na categoria dos refugiados” (AMBROSINI, 2008, p.17).

Esta seção é baseada em uma pesquisa empírica realizada na cidade do Rio de Janeiro,
Brasil, buscando compreender as estratégias, as dificuldades e os percursos de integração de
refugiados originários da República Árabe da Síria. Neste contexto, foi adotada uma metodologia
qualitativa, usando entrevistas de História Oral, acompanhadas de conversas de caráter mais
informal. Duas entrevistas se desenvolveram com refugiados juridicamente reconhecidos
pelo governo brasileiro.3 A decisão de entrevistar apenas refugiados juridicamente
reconhecidos, se deve ao propósito de um relato em primeiro grau mais heterogêneo.
Os refugiados selecionados para a entrevista são de nacionalidade síria – cristãos ortodoxos
–, que chamaremos nesse estudo de Bassam. Aos 42 anos, originário da cidade de Aleppo,
farmacêutico, é residente no Brasil desde janeiro de 2015. E Ibrahim, 59 anos, é originário de
Damasco, formado em administração e residente no Brasil, desde março de 2014. Os dois
entrevistados declaram apoio ao regime de Bashar Al-Assad. Os entrevistados revelaram um
profundo sentimento de pertencimento à sociedade síria e à religião cristã ortodoxa.
O tamanho da amostra e o processo não probabilístico na escolha dos entrevistados
possibilita que façamos algumas reflexões e pressupostos analíticos sobre as maneiras pelas quais
a realidade é por estes refugiados gerida, bem como, sobre os percursos efetuados por estes
indivíduos observados, mas que não comporta generalizações.
Os dois entrevistados estão inseridos numa rede com origem no Líbano, mas cuja
centralidade no Brasil está situada na cidade do Rio de Janeiro, Brasil, e é mediada pela Sociedade
Ortodoxa de São Nicola – uma instituição religiosa ligada ao Patriarcado Greco-Ortodoxo de

3 A pesquisa foi desenvolvida entre janeiro e fevereiro de 2016, na cidade do Rio de Janeiro, Brasil.
Foram entrevistados dois refugiados sírios de origem cristã ortodoxa.
Antioquia. A sociedade foi fundada em 1917 por imigrantes sírio-libaneses, e agora recebe
refugiados sírios fugidos da guerra civil.
A oportunidade de realizar esta pesquisa em uma conjuntura própria dos refugiados sírios,
imersos em sua comunidade e envoltos em suas tradições étnicas e religiosas, nos permitiu perceber
a relevância do quadro social especifico e a contínua negociação de recursos e pertencimento
identitário, instrumental para a construção de um percurso de integração no Brasil.
A crise na Síria fez com que os sírios se tornassem a principal nacionalidade de
refugiados no Brasil – são 2.077 refugiados reconhecidos.4 Existem, ainda no país, 389
refugiados libaneses reconhecidos pelo governo brasileiro. O Comitê Nacional para os
Refugiados (CONARE), órgão governamental responsável pela analise dos pedidos de
refúgio, esclarece que apesar de o Líbano não ser um país em guerra ou situação de conflito, o
país sofre reflexos do que ocorre na vizinha Síria.
Apesar do crescimento no número de solicitações e de refugiados reconhecidos, Barbosa
(2015) argumenta que a capacidade brasileira de receber refugiados é muito superior, devido às
condições culturais e espaciais do país; opinião com a qual concorda o Alto Comissário para
Refugiados das Nações Unidas no Brasil, Andrés Ramirez (BARBOSA, 2015). Para ele, o Brasil
está na vanguarda dos direitos refugiados, com uma legislação moderna e uma população receptiva.
O Brasil é signatário da Convenção de Genebra de 1951, e também dos protocolos
posteriores e declarações regionais. Portanto, está no seleto grupo de países signatários de todos os
instrumentos jurídicos internacionais de proteção aos refugiados. Contudo, somente em 1997, o
país criou um instrumento jurídico interno, direcionado exclusivamente ao solicitante de asilo e
refugiado no Brasil: a Lei 9474/97, conhecida como Estatuto do Refugiado (ACNUR, 2016).
Desde o processo de redemocratização, iniciado na década de 1980, e o subsequente
compromisso do país com os direitos humanos no país e no exterior, as atividades brasileiras para
proteção dos refugiados evoluíram consideravelmente. Com a lei 9474/97, e mais recentemente as
iniciativas de reassentamento em seu território, o Brasil passou a ser considerado como um modelo
para a proteção de refugiados na América Latina, segundo o ACNUR (JUBILUT, 2006).
Jubilut (2006) argumenta que ao Brasil se deve a liderança regional na América Latina em
relação à defesa dos direitos do refugiado, devido ao Estatuto do Refugiado e também à importância
política e econômica desenvolvida pelo Brasil na América do Sul. Para Jubilut, o país deve ser
considerado um modelo jurídico e de proteção ao refugiado na América do Sul.
Devido à situação generalizada de agressão aos direitos humanos na Síria, o Brasil
implementou, desde 2013, através do Ministério da Justiça, e dos órgãos correspondentes como a
Polícia Federal (que realiza o papel de polícia de migrações) e o CONARE, a emissão de vistos
humanitários para cidadãos sírios que buscam refúgio. A concessão de um visto especial a pessoas
afetadas pelos conflitos armados na Síria e região, que desejem chegar ao Brasil buscando refúgio,

4..Em janeiro de 2016, existiam aproximadamente 13 mil solicitações de asilo em análise pelo governo
brasileiro e 8.500 refugiados reconhecidos, de mais de 70 nacionalidades diferentes.
é estendida também à família dessas pessoas deslocadas. Somente no primeiro dia em que o visto
humanitário entrou em vigor, 27 solicitações foram feitas (ACNUR, 2013).
Segundo registros do Ministério da Justiça, é crescente o número de pessoas do Oriente
Médio que buscam se refugiar no Brasil. Para o CONARE, isto demonstra a tradição de
sensibilidade do governo brasileiro. Originalmente, com validade de dois anos (2013-2015), a
emissão de vistos humanitários para cidadãos atingidos pelo conflito na Síria, foi prorrogada por
mais dois anos. Diante do agravamento da crise humanitária na Síria, o governo brasileiro decidiu
prorrogar a medida que flexibiliza o ingresso de refugiados daquele país no Brasil. A regra que
facilita a concessão de vistos para refugiados sírios fez com que o Brasil se tornasse uma opção à
tradicional rota de fuga dessa população, que, em sua maioria, ruma à Europa (BRASIL, 2015).
A Síria, desde março de 2011, passa por uma série de conflitos armados. São conflitos entre
o regime que está no governo, desde 2000, representado por Bashar Al-Assad. São grupos
oposicionistas, reconhecidos internacionalmente como a legítima oposição ao regime de Al-Assad
e ainda organizações terroristas como o Estado Islâmico da Síria e Iraque (ISIS). No conflito, que
é considerado sectário, Bashar Al-Assad é acusado de privilegiar algumas minorias. Como os
alauítas da qual faz parte, os drusos residentes, principalmente nas Colinas de Golã – constituem
um grupo considerado essencial para a segurança nacional por serem fiéis ao regime e residirem
em uma área em disputa com Israel – os cristãos, que são cerca de 10% da população síria, divididos
em ortodoxos, siríacos e melquitas e ainda uma minoria muçulmana xiita (PHILLIPS, 2015).
Apesar dessas minorias serem consideradas privilegiadas pelo regime, elas também se
tornaram refugiadas. O conflito na Síria se assemelha, nesse ponto, ao conflito armado
desenvolvido na Colômbia, onde o perseguido pode ter sido em algum momento o perseguidor.
Essa realidade dialética implica nas relações entre os refugiados que vivem no refúgio, dado que
sírios cristãos evitam o contato com compatriotas muçulmanos e também o contrário.
Tal sentimento está presente na fala de Ibrahim5:

[...] tenho muitos amigos refugiados. Convivo com eles, porque assim é uma forma
de recordar a vida na Síria. [...] Eu conheço alguns iraquianos e também libaneses
que são muçulmanos e convivo com eles. Faço negócios com eles também. Mas
quando é de origem síria, eu prefiro que seja ortodoxo, como eu. Porque a gente
nunca sabe, ele pode ter saído da Síria por ser contra o governo Assad. E seria
complicado manter uma amizade harmoniosa nessas condições.

Durante as entrevistas realizadas, os refugiados sírios no Rio de Janeiro admitiram se


relacionar com outros refugiados sírios, mas apenas sírios cristãos pertencentes ao mesmo grupo
étnico e religioso, relembrando a história do conflito na Síria, alegando intolerância religiosa por
parte de outros grupos.

5 Entrevista concedida em 2016.


A crise política na Síria gerou uma crise humanitária e um deslocamento forçado sem
precedentes no Oriente Médio. Estimativas do ACNUR (2016) revelam que os conflitos geraram
cerca de 9 milhões de sírios deslocados, sendo 4,5 milhões de refugiados. Três países são
responsáveis por absorver, de imediato, esse contingente de refugiados. A Turquia acomodava até
o final de 2015, 1,9 milhões de refugiados sírios, especialmente em campos de refugiados. A
Jordânia recebeu, no mesmo período, cerca 250 mil refugiados, enquanto o Líbano recebera 1,2
milhões de sírios (ACNUR, 2015).
O cenário libanês, durante essa crise, é especial para esse estudo, pois os dois refugiados
entrevistados tiveram seu primeiro assentamento no Líbano, país reconhecido internacionalmente
por ser o principal destino de refugiados palestinos. O Líbano possui grandes campos de
refugiados, sírios e palestinos.6 Estimativas calculam que, em janeiro de 2016, existia um
refugiado no país para quatro cidadãos libanês (BERTI, 2015), proporção que causa conflitos
internos entre libaneses e refugiados.
Apesar de possuir campos de refugiados, Beirute, Trípoli e Tiro se tornaram polos de atração
e cenário de encontros entre refugiados, instituições e sociedade, o que segundo Palmary (2002),
deveria impulsionar um papel central do Estado na gestão e proteção dos migrantes forçados.
Contudo, no caso libanês, essa passagem de responsabilidade institucional não é, formalizada, razão
pela qual nenhum nível de governo detém a tutela dos refugiados dentro de suas responsabilidades.
Oficialmente, o único dever estatal é conduzir o procedimento administrativo das solicitações de
refúgio e reconhecimento do status de refugiado. Constrói-se um vazio institucional, no qual se
inserem as atividades das organizações não governamentais de assistência, que atuam na projeção
de integração em longo prazo.
As características do Líbano, com uma população de 6.1 milhões de habitantes (CIA, 2016),
se inserem em um contexto regional, com diferenças étnicas e religiosas, altos níveis de violência
em determinadas áreas, desigualdade econômica e forte segregação espacial. Há registros de
confrontos e uma notória hostilidade entre e a população local e os refugiados, tanto com sírios,
quanto com palestinos. Essas tensões resultam ciclicamente em episódios de violência e segregação,
especialmente em regiões de campos de refugiados (BERTI, 2015).
O governo libanês não dispõe nem de fundos, nem de projetos voltados para a população
refugiada, da qual, de fato, se ocupa o setor associativo e a sociedade civil. O ACNUR e outras
organizações internacionais, como a Cruz Vermelha e a Anistia Internacional, possuem projetos de
responsabilidade para essas populações refugiadas. Mas é importante lembrar que, assim como
qualquer outra organização internacional, essas instituições dependem de um orçamento originário
nos Estados.
Segundo relatam Bassam e Ibrahim, apesar de aspectos culturais similares aos da Síria, o
Líbano não apresenta boas condições de integração de refugiados à sociedade:

6 Em 2015, eram 12 campos de refugiados palestinos e 2 de refugiados sírios (RAINEY, 20150.


O Líbano é um país muito parecido com a Síria, sabe? E os sírios muito parecidos
com os libaneses. Lá tinha a facilidade do idioma. [...].ser refugiado no Líbano
significa ser inferior. Significa que eu não conseguiria um bom emprego, ou que
eu conseguiria um emprego. Existe muita discriminação. Não tem problema
se você é um estrangeiro. O problema é se você for um refugiado.7
[...] o Líbano é um bom país para viver. O problema maior seria viver no Líbano
como refugiado, porque lá, não é como no Brasil: o refugiado não tem os mesmos
direitos que o cidadão libanês. O refugiado é sempre um cidadão de
segunda categoria. Eu não culpo os libaneses.8

Isso porque, para a Bassam e Ibrahim, a sociedade libanesa marginaliza os refugiados,


criando um estigma sobre essa categoria de imigrante. Em condições como as apresentadas no
Líbano, o processo de interação do refugiado com a sociedade libanesa se percebe como
comprometido, desde o momento em que o solicitante de asilo é encarado com preconceito pela
sociedade de acolhimento.

A presença de uma rede comunitária étnica e religiosa na sociedade de acolhimento pode,


potencialmente, desempenhar um papel importante na recepção e assentamento dos refugiados. A
rede pode oferecer proteção contra o preconceito externo, oportunidades econômicas, uma
identidade de grupo e uma rede de relacionamentos e associações (STEIN, 1981; PORTES, 1995),
com base na cultura compartilhada, etnia, religião e língua.
Uma vez que os refugiados passam a experimentar o ambiente de convivência da Sociedade
Ortodoxa de São Nicolau, no Rio de Janeiro começam a interagir social e economicamente com
outros indivíduos, não refugiados, mas da mesma etnia e religião, de modo que eles podem
melhorar o nível da linguagem local e acessar informações sobre formas de melhorar suas vidas no
Brasil.
Posteriormente, a aquisição da língua portuguesa e o acesso à informação podem constituir
recursos valiosos que, teoricamente, podem iniciar o processo de sua participação socioeconômica
na sociedade brasileira. Entende-se que o conhecimento da língua fornece aos refugiados
oportunidades sociais e econômicas (a exemplo, para capitalização humana, educação, formação e
emprego); oportunidades fora dos limites da sua rede social étnica e religiosa.
A rede social de uma comunidade étnica e religiosa pode ser geralmente descrita como um
grupo de pessoas com um grau de conhecimento mútuo e de reconhecimento. Eles estão conectados

7
Entrevista com Bassam, 2016.
8 Entrevista com Ibrahim, 2016.
em relações que possam ser baseadas na convivência, amizade e/ou parentesco, e apoiar uns aos
outros. Boyd (1989) argumenta que as redes sociais são base para a análise central de imigração,
pois se tornam o elo entre o envio e recebimento de países e podem explicar a continuação da
migração.
Alexander e seus colegas (2004, 2007) destacam que, para algumas comunidades de
imigrantes, o termo comunidade é construído em torno da rede de familiares, amigos e da rede
social étnica, que pode atuar como o principal recurso para o apoio social. De acordo com Portes
(1995), uma rede social pode ser uma fonte para a aquisição de meios escassos, como o capital
financeiro e informação, e pode ligar indivíduos dentro e entre as comunidades e organizações.
Mais importante, ela pode influenciar os objetivos dos indivíduos.
É amplamente reconhecida a importância do papel das redes no âmbito migratório: a sua
relevância é registrada principalmente em três momentos da experiência migratória. 1) no processo
de decisão, antes de partir; 2) na escolha do destino e 3) na integração na sociedade de acolhimento
(KORAC, 2001). Podemos falar da função seletiva para os dois primeiros momentos e de função
adaptativa para o terceiro (ZANFRINI, 2004).
Embora a função seletiva das redes seja geralmente menos significativa para os refugiados
do que na migração econômica (KORAC, 2001; AMBROSINI, 2008), as entrevistas realizadas
destacam como as redes também trabalham para os solicitantes de refúgio, ou pelo menos parte
deles, na seleção do país e da cidade para qual ir. Bassam, bem como Ibrahim admitem que
chegaram ao Brasil por intermédio da rede que se inicia no Líbano. Eles acreditam que não teriam
vindo para o Brasil, caso não existisse o apoio da rede étnica e religiosa:

E ele [um amigo do entrevistado] falou que algumas Igrejas Ortodoxas no Brasil
estavam recebendo e dando apoio aos sírios que queriam ir para lá. [...]. Não, de
forma de nenhuma eu teria vindo para cá sem ter algum conhecimento, sem ter
ajuda. [...] Eu vim para o Brasil com os meus recursos, mas só vim porque essas
pessoas me ajudaram, me receberam e receberam a minha família. Aqui, essas
pessoas me apresentaram outras pessoas, imigrantes ou não, que hoje são meus
amigos e elas me ajudam. Eu acho que, por isso, eu tenho a obrigação de ajudar
os outros.9
De forma nenhuma [o entrevistado viria para o Brasil sem conhecimento]. O
Brasil é um país muito hospitaleiro, muito agradável. Mas chegar aqui sem
ajuda, sem conhecimento, sem amigos, pode se tornar uma aventura. Na
verdade pode se tornar um grande desastre, porque é um país muito diferente
do nosso, com muitas peculiaridades.10

9
Entrevista com Bassam, 2016.
10
Entrevista com Ibrahim, 2016.
Tal situação revela a função seletiva das redes sociais, também no caso das migrações
forçadas. Durante a pesquisa, identificamos dois canais, fontes dos recursos utilizados pelos
refugiados: a oferta institucional e as relações étnicas e religiosas. O primeiro faz referencia aos
apoios fornecidos pela Sociedade Ortodoxa de São Nicolau. O segundo está relacionado com o
suporte e os recursos acessados pelos refugiados com base em relações pessoais, de parentesco ou
amizade, ou ainda em virtude do seu pertencimento a um grupo, definido pela origem comum ou
por um pertencimento étnico, um compartilhamento de identidade.
No contexto analisado, os entrevistados sírios mostram uma propensão a confiar mais,
sempre que possível, nos recursos obtidos através de sua rede étnica e religiosa, demonstrando um
melhor relacionamento com outros cristãos ortodoxos. Tais redes são acessadas não somente em
virtude do conhecimento pessoal prévio, mas de acordo com a pertença a um grupo, identificado
pela população síria e reforçada pelo pertencimento à religião ortodoxa e da afiliação étnica.
Apesar das diferenças étnicas e religiosas com os demais grupos de refugiados sírios no Rio
de Janeiro, os entrevistados revelam um forte discurso nacionalista e de defasa ao regime sírio no
poder. Por vezes revelando uma simpatia ao nacionalismo árabe presente no discurso baatista, o
que revela como estes laços transcendem o status de beneficiário de proteção internacional.
Esse sentimento de pertencimento, mesmo a milhares de quilômetros de distância, pode ser
explicado por Bourdieu (1998, p. 11-12), onde o imigrante não encontra seu lugar, pois, segundo o
autor, “o imigrante é atopos, sem lugar, deslocado, inclassificável”. Mesmo estando no Rio de
Janeiro, os refugiados sírios se sentem pertencentes a um contexto específico sírio, comum a
Damasco ou Aleppo, mas esta pode ser uma condição passageira. Ou ainda se enquadram na
definição de Glick Schiller (2005, p. 570) sobre o nacionalismo a longa distância, que diz que: “a
set of identity claims and practices that connect people living in various geographical locations to a
specific territory that they see as their ancestral home”.
O sucesso econômico dos entrevistados é bem recebido por todos, inclusive pela
comunidade local. Bassam iniciou com a ajuda da rede um pequeno comércio que se expandiu para
fora dos limites étnicos e religiosos. Ibrahim, por sua vez, empreendeu uma empresa de navegação
marítima, com o know-how trazido de experiências anteriores na Síria, e teve apoio jurídico do
advogado cedido pela Sociedade Ortodoxa.
Os entrevistados descreveram um percurso migratório denso e fechado, que fornece
suporte material, cognitivo e emocional, permitindo ao refugiado recém-chegado alcançar
gradualmente a autonomia econômica através do trabalho; em alguns casos amparados por um
dos tantos exercícios comerciais geridos por um dos seus compatriotas. Nenhum dos
entrevistados se dirigiu alguma vez a organizações do terceiro setor, como a Caritas
Arquidiocesana do Rio de Janeiro.11 O surgimento de nichos étnicos no local de trabalho é,
eeee
11 A Cáritas Arquidiocesana do Rio de Janeiro é uma associação ligada à Igreja Católica Romana,
mas que desenvolve um importante trabalho no acolhimento e apoio a refugiados de todo mundo,
independentemente de credo ou etnia. Alguns dos trabalhos desenvolvidos pela instituição são o amparo jurídico
e os cursos de língua portuguesa.
por outro lado, um efeito emergente relacionado à centralidade de redes compatriotas de
inserção no mercado de trabalho (PORTES, 1995).
Por outro lado, devemos lembrar como os recursos obtidos por meio do uso do capital
social existente dentro das redes, embora possam aparecer ‘gratuito’ terá um custo final
(Portes, 1993; 1995). Podemos, portanto, supor que, além dos benefícios, a adesão a uma rede
tão densa e coesa pode ter efeitos negativos em longo prazo (RYAN et al.; 2008;
ZANFRINI, 2004). Neste caso, deve-se enfatizar que o ímpeto que a rede parece dar a seus
membros vai em direção à separação do resto da sociedade, ao invés de promover uma
integração gradual à sociedade do país de acolhimento.
Os entrevistados mostram-se ainda desconfortáveis ao desenvolver relações com
brasileiros fora da rede étnica e religiosa:

Eu não consigo conviver – socializar é a palavra certa –, com um brasileiro


da mesma forma com que eu converso com outro árabe, seja ele
cristão ou muçulmano. Eu sinto uma barreira entre mim e os brasileiros, isso
tem a ver com a cultura? Porque eu percebo que não é apenas em relação ao
idioma. Não é só isso; tem mais coisas envolvidas.12
A minha rede de amizade, de amigos, é menor. É restringido basicamente a
pessoas da Igreja, da Sociedade Ortodoxa, alguns ainda do trabalho.
Mas, eu acho interessante, porque essas pessoas com quem eu me
relaciono de forma não profissional, os amigos, não são brasileiros. São
outros sírios, libaneses, iraquianos, egípcios, ou, se são brasileiros, são
filhos e netos de imigrantes, pessoas que compartilham comigo uma mesma
cultura. [...].Eu e a minha mulher gostamos dos brasileiros, porque eles são
muito solícitos, são humildes, pessoas que gostam da vida e respeitam os
outros, mesmo que sejam diferentes. Mas sentimos uma barreira,
principalmente em relação à cultura na hora de criar uma amizade. É muito
mais cômodo para nós, principalmente para mim, restringir as minhas
amizades a essas pessoas que te falei, estrangeiros e descendentes.13

De acordo com estas narrativas, não existe na sociedade brasileira uma visão estereotipada
e marginalizada dos refugiados sírios, assim como ocorre no Líbano. Também não foram reportados
casos de xenofobia ou qualquer tipo de agressão ou preconceito gerado pelo fato dos refugiados
serem imigrantes. Bassam e Ibrahim admitiram ter dificuldades de interação e integração com a
comunidade local por diferenças culturais, mas, principalmente linguísticas. Apesar dessa falta de
interação entre imigrantes e nativos, os refugiados destacaram seu apreço pelo Brasil, pela cultura
brasileira e pelo povo brasileiro, que segundo ambos, é muito receptivo.

12
Bassam, entrevista realizada em 2016.
13 Ibrahim, entrevista realizada em 2016.
A pesquisa traz à luz aspectos importantes para a análise teórica e empírica sobre refugiados,
em geral e de forma específica – os sírios ortodoxos refugiados no Brasil. Por um lado, os requisitos
para ser capaz de aspirar a mudança de status de país para país, e por outro, os direitos ligados a
ele, a legislação, as intervenções públicas ou privadas e a reação do público podem ser muito
diferentes, com o resultado que serve de referência ao mesmo termo criado em um quadro
absolutamente diferente de restrições e oportunidades.
Para os entrevistados é evidente que ser um refugiado no Brasil é diferente de ser um
refugiado no Líbano. Alterando o contexto específico, os recursos disponíveis e as dificuldades a
serem enfrentadas, também variam as estratégias e os modos de ação e interação. No Brasil, o
refugiado não recebe apoio estatal. O governo brasileiro se compromete apenas com a aceitação
legal dos sírios. Contudo, através das redes sociais e do uso do capital social, o refugiado assentado
no Brasil possui capacidade de agency, de agir em causa própria e também da comunidade em que
está inserido.
A identidade de refugiado pode ser central, auxiliar ou unicamente instrumental, a depender
do refugiado ou da situação. Existem aqueles que contam apenas com redes de apoio de
compatriotas, como os sírios, no Rio de Janeiro. Outros, com os serviços oferecidos pelas
autoridades locais, organizações e associações, como os refugiados atendidos pela Cáritas em
algumas regiões do Brasil ou os que recebem algum apoio de governos na Europa, como
alimentação e moradia. Em todas as situações, o refugiado não perde a capacidade de agente.
A fuga do próprio país e a constrição dentro de esquemas rígidos e imperativos não priva o
indivíduo da possibilidade de agir, ou remover as suas características sociais, culturais ou o capital
humano construído ao longo de uma vida, ou torná-lo parte de um conjunto indefinido e uniforme.
Contudo, devemos esquecer que o refugiado permanece sempre um ator social, e que sua situação
pode ser mais bem compreendida, considerando-se as redes e contextos de interação em que as
variáveis são inseridas.
No que corresponde ao contexto nacional brasileiro para refugiados, podemos assumir uma
posição confiante. Apesar de problemas na estrutura de recepção, acolhimento e integração dos
refugiados, o Brasil mantém uma postura humanista e proativa em defesa dos direitos humanos e
tem se mostrado favorável ao recebimento de novos refugiados do conflito sírio. Mas, devemos
ainda ponderar que os custos do deslocamento entre a Síria e o Brasil são elevados, muitas vezes
tornando a fuga inviável.

ACNUR. Emergencia en Siria. 2015. Disponível em: <http://www.acnur.org/que-hace/respuesta-


a-emergencias/emergencia-en-siria/>. Acesso em: 26 ago. 2016.
ACNUR. O ACNUR no Brasil. 2016. Disponível em:
<http://www.acnur.org/portugues/informacao-geral/o-acnur-no-brasil>. Acesso em: 20 ago. 2016.

ACNUR. Sírios terão visto humanitário para entrar no Brasil. 2013. Disponível em:
<http://www.acnur.org/portugues/noticias/noticia/sirios-terao-visto-humanitario-para-entrar-no-
brasil>. Acesso em: 20 ago. 2016.

ALEXANDER, Claire; EDWARDS, Rosalind; TEMPLE, Bogusia. Contesting Cultural


Communities: Language, Ethnicity and Citizenship in Britain. Journal Of Ethnic And Migration
Studies, [s.l.], v. 33, n. 5, p. 783-800, jul. 2007.

ALEXANDER, Claire; EDWARDS, Rosalind; TEMPLE, Bogusia. Access to Services with


Interpreters: User View. Londres: Joseph Rowntree Foundation, 2004.

AMBROSINI, Maurizio. Dopo i diritti umani: rifugiati e migranti forzati in un mondo globale. In:
AMBROSINI, Maurizio; MARCHETTI, Chiara. Cittadini possibili: Un nuovo approccio
all’accoglienza e all’integrazione dei rifugiati. Milão: Franco Angeli, 2008. p. 323-357.

BAKEWELL, O. Research Beyond the Categories: The Importance of Policy Irrelevant Research
into Forced Migration. Journal Of Refugee Studies, [s.l.], v. 21, n. 4, p. 432-453, 23 nov. 2008.

BARBOSA, Raul Felix. Reassentamento solidário e políticas públicas para refugiados no


Brasil. Universitas: Relações Internacionais, [s.l.], v. 13, n. 2, p. 17-23, 17 dez. 2015.

BERTI, Benedetta. The Syrian Refugee Crisis: Regional and Human Security
Implications. Strategic Assessment, [si], v. 4, n. 17, p. 41-53, jun. 2015.

BOURDIEU, Pierre. Um analista do inconsciente. In: SAYAD, Abdelmalek. A imigração ou os


paradoxos da alteridade. São Paulo: Edusp, 1998. p. 9-12.

BOYD, Monica. Family and Personal Networks in International Migration: Recent Developments
and New Agendas. International Migration Review, [s.l.], v. 23, n. 3, p. 638-670, 1989.

BRASIL. Brasil fecha acordo com a ONU para ampliar vistos para sírios. 2015. Disponível em:
<http://www.brasil.gov.br/cidadania-e-justica/2015/10/brasil-fecha-acordo-com-a-onu-para-
ampliar-vistos-para-sirios>. Acesso em: 15 ago. 2016.

CAPONIO, Tiziana. Città italiane e immigrazione. Bologna: Il Mulino, 2006.


CIA. The World Factbook: Lebanon. 2016. Disponível em:
<https://www.cia.gov/library/publications/the-world-factbook/geos/le.html>. Acesso em: 15 ago.
2016.

HARRELL-BOND, Barbara. L’esperienza dei rifugiati in quanto beneficiari


d’aiuto. Antropologia, Milão, v. 1, n. 5, p.15-48, jun. 2015.

JACOBSEN, K.. Refugees and Asylum Seekers in Urban Areas: A Livelihoods


Perspective. Journal Of Refugee Studies, [s.l.], v. 19, n. 3, p. 273-286, 10 ago. 2006.

JUBILUT, L. L.. Refugee Law and Protection in Brazil: a Model in South America? Journal Of
Refugee Studies, [s.l.], v. 19, n. 1, p. 22-44, 1 mar. 2006.

KORAC, Maja. Cross-ethnic networks, self-reception system, and functional integration of


refugees from the former Yugoslavia in Rome. Journal Of International Migration And
Integration / Revue de L'integration Et de La Migration Internationale, [s.l.], v. 2, n. 1, p.1-26,
mar. 2001.

LANDAU, Loren. Discrimination and development? Immigration, urbanisation and sustainable


livelihoods in Johannesburg. Development Southern Africa, [s.l.], v. 24, n. 1, p. 61-76, mar. 2007.

MALKKI, Liisa H.. Refugees and Exile: From. Annual Review Of Anthropology, [s.l.], v. 24, n. 1,
p. 495-523, out. 1995.

_____. Purity and exile. Chicago: Chicago Univesity Press, 1995a.

MARCHETTI, Chiara. Un mondo di rifugiati: Migrazioni forzate e campi profughi. Bologna:


Emi, 2006.

PALMARY, Ingrid. Refugees, safety and xenophobia in South African cities. 2002. Disponível
em: <http://www.csvr.org.za/docs/foreigners/refugeessafteyand.pdf>. Acesso em: 15 ago. 2016.

PHILLIPS, Christopher. Sectarianism and conflict in Syria. Third World Quarterly, [s.l.], v. 36, n.
2, p. 357-376, fev. 2015.

POLZER, T.. Invisible Integration: How Bureaucratic, Academic and Social Categories Obscure
Integrated Refugees. Journal Of Refugee Studies, [s.l.], v. 21, n. 4, p. 476-497, 23 nov. 2008.

PORTES, Alejandro. The economic sociology of immigration. Nova York: Russell Sage
Foundation, 1995.
PORTES, Alejandro; SENSENBRENNER, Julia. Embeddedness and Immigration: Notes on the
Social Determinants of Economic Action. American Journal Of Sociology, [s.l.], v. 98, n. 6,
p.1320-1350, maio 1993.

RYAN, Louise et al. Social Networks, Social Support and Social Capital: The Experiences of
Recent Polish Migrants in London. Sociology, [s.l.], v. 42, n. 4, p. 672-690, ago. 2008.

SCHILLER, Nina Glick. Long-Distance Nationalism. Encyclopedia Of Diasporas, [s.l.], p. 570-


580, 2005.

SCHMIDT, A.. 'I know what you're doing', reflexivity and methods in Refugee Studies. Refugee
Survey Quarterly, [s.l.], v. 26, n. 3, p. 82-99, 1 jan. 2007.

STEIN, Barry N.. The Refugee Experience: Defining the Parameters of a Field of
Study. International Migration Review, [s.l.], v. 15, n. 1/2, p. 320-330, 1981.

VAN-AKEN, Mauro. Il dono ambiguo: modelli d’aiuto e rifugiati palestinesi nella valle del
Giordano. Antropologia, Milão, v. 5, n. 5, p. 103-120, jan. 2005.

ZANFRINI, Laura. Sociologia delle migrazioni. Roma: Laterza, 2004.


Leonardo de Oliveira Conedera

Neste texto visa-se analisar a trajetória do imigrante italiano, Carmine Motta, em Porto
Alegre. Carmine encontra-se dentre os vários peninsulares que se deslocaram para o Rio Grande
do Sul, depois do final da Segunda Guerra Mundial. O estudo pretende colaborar com os estudos
produzidos sobre a imigração italiana, detendo-se na fase do pós-guerra.
Então, por meio do percurso de um imigrante proveniente da Calábria, propõe-se
contextualizar a imigração italiana no período do pós-guerra (1946-1976), na capital gaúcha. Além
disso, visa-se observar a profissão de alfaiates desempenhada pelos italianos no espaço dos centros
urbanos do Rio Grande do Sul, que se caracteriza por uma imigração qualificada. Por último,
pretende-se tratar as questões referentes ao associativismo e ao transnacionalismo, verificados na
trajetória sociocultural do imigrado, já mencionado.

A emigração, na Itália, reiniciou após o final da Segunda Guerra Mundial. Os problemas


políticos, econômicos, sociais e infraestruturais presentes no país, após o final conflito, favoreceram
o reinício das partidas.
Nos anos de 1946 a 1976, abandonaram a península, aproximadamente, 7.447.370 de
indivíduos. O êxodo ocorreu, primeiramente, nas regiões do Norte do país (sobretudo,
no Triveneto1). Posteriormente, o fluxo começou, de forma intensa também, no Mezzogiorno2,
que havia os Estados mais populosos da Itália (DE CLEMENTI, 2010, p. 4).
A partir de 1945, principiou a progressiva erosão dos impérios coloniais na Ásia e na África.
Esse acontecimento ocasionou novos deslocamentos populacionais. Os primeiros movimentos
foram estimulados pelo retorno de europeus para os seus países de origem (CORTI, 2007, p. 79).
As consequências do novo contexto mundial, a partir da metade do século XX, com o
processo de descolonização, desencadearam várias movimentações de populações inteiras e um
excessivo número de emigrantes, devido a três fatores, que permaneceram constantes nas dinâmicas
de vários movimentos migratórios no panorama contemporâneo. O primeiro foi a dissolução das

* Doutor em História/PUCRS. .
1 Triveneto refere-se às três regiões italianas, a saber: Veneto, Friuli-Venezia Giulia e Trentino-Alto Adige,
situadas no nordeste do país.
2 Mezzogiorno refere-se ao Sul da Itália.
velhas potências; posteriormente, o paralelo surgimento de novos Estados; o último, a explosão
demográfica transcorrida nos países subdesenvolvidos (CORTI, 2007, p. 84).
É pertinente referir, também, a reabertura das fronteiras de diversos países no período do
pós-guerra, que impeliu o alvorecer de um novo ciclo migratório, mormente, no ocidente. Não se
pode negligenciar que, da Europa, entre 1947 e 1951, partiram 460.000 emigrados, dos quais
218.000 deixaram a sua própria pátria de maneira espontânea; enquanto que 242.000 seguiram
direcionados pelas organizações internacionais de refugiados; entretanto, estas acabaram extintas
em 1951 (CORTI, 2007, p. 84).
As direções seguidas pelas novas ondas migratórias aliaram-se a algumas tendências
alicerçadas em deslocamentos anteriores. A maioria dos emigrantes da Europa Setentrional
transferiram-se para países de cultura anglo-saxã, como Estados Unidos, Canadá e Austrália; em
contrapartida, os provenientes dos países meridionais foram, especialmente, para países da América
Latina, como: Argentina, Brasil, Uruguai, Venezuela entre outros (CORTI, 2007, p. 85).
O crescimento industrial foi bastante relevante, sobretudo, na Argentina, no Brasil e no
Uruguai, graças à expansão registrada no período da Segunda Guerra Mundial, e mantida depois
através de uma maciça intervenção dos Estados Unidos nas economias destes países. Contudo, a
diferença do passado é que os novos fluxos não se direcionaram somente para os maiores países de
imigração, como assim se espalharam por toda a área latino-americana. A Argentina, o Brasil e o
Uruguai seguiram sempre o papel predominante próprio, pelo peso que estes assumiram em razão
da sua produção industrial (CORTI, 2007, p. 84).
Entrementes, o fato mais significativo da década de 1950 foi que alguns países da Europa
Centro-Setentrional não recuperaram apenas as posições econômicas precedentes à Guerra, mas
ainda registraram um crescimento que os colocou a níveis superiores aos resultados industriais
alcançados pelos EUA, tornando-se indiscutíveis protagonistas na economia mundial. Diversos
acontecimentos contribuíram para o crescimento: a estabilidade monetária, que foi finalmente
alcançada após os altos picos inflacionários do pós-guerra; os estímulos na industrialização, que
foram oferecidos pelas políticas econômicas nacionais e pelos auxílios internacionais; e a positiva
influência exercida pelo nascimento do mercado econômico europeu (CORTI, 2007, p. 90).
Em síntese, os italianos, cuja meta foram os países distantes do continente europeu,
caracterizaram-se por uma migração de caráter definitivo. Já aqueles que se endereçaram para os
Estados europeus evidenciaram uma permanência temporária. A proximidade de emigrados com as
suas cidades e o fato de se deslocarem desacompanhados de suas famílias favoreceram para que a
sua mobilidade tivesse uma curta duração – aqui se registrou grande número de repatriados.

O Brasil recebeu, aproximadamente, 12,6 % dos peninsulares que imigraram para a


América Latina no período do pós-guerra. Angelo Trento (1989, p. 408) elucida que “o fluxo de
emigrantes da Itália teria podido ser mais consistente, especialmente durante os primeiros anos
posteriores à guerra, se um acordo emigratório entre os dois países tivesse sido firmado a tempo”.
No campo da diplomacia entre Brasil e Itália, a questão da imigração era um tema assíduo
nas tratativas entre dois países. Os dois governos pretendiam providenciar tratados para promovê-
la; não obstante, um acordo tardou muito para se efetivar. Assim, a via diplomática pouco
influenciou para a mobilidade de italianos para o território brasileiro nos anos do pós-guerra.
Sabe-se que, nos Censos das décadas de 1940 e 1950, os peninsulares figuravam como a
etnia com a maior quantidade de estrangeiros radicados na sociedade brasileira. A maioria dos
italianos viviam nos Estados das Regiões Sudeste e Sul do país (ZAMBERLAM, 2004, p. 59).
No Rio Grande do Sul, havia cerca de 24.549 e 15.003 peninsulares, respectivamente,
de acordo com os registros dos Censos de 1940 e de 1950.3 Os dados informam que os
imigrantes da península eram os de maior contingente de estrangeiros presentes no
Estado. Nos Censos ulteriores, os italianos permaneceram com números expressivos na
comparação com os demais estrangeiros; no entanto, acabaram superados pelos
contingentes de uruguaios e alemães (CONEDERA, 2012, p. 71).
É importante lembrar que a grande parte dos desembarques dos peninsulares em território
brasileiro, assim como dos demais indivíduos de outras nacionalidades, acontecia nos portos de
Santos e do Rio de Janeiro. De 1953 até 1958, o porto de Santos foi o local onde desembarcaram
mais de 50% dos estrangeiros que chegavam ao país, enquanto o Rio de Janeiro recebeu pouco
mais de 30%; o restante espalhava-se entre os portos de Porto Alegre e Paranaguá, entre outros
locais (DIÉGUES JUNIOR, 1964, p. 310-311).
O caminho percorrido por vários peninsulares até Porto Alegre era realizado de trem.
Contudo, o deslocamento para a capital gaúcha, também, poderia ser feito através do transporte
marítimo e aéreo. Normalmente, Os parentes e amigos aguardavam os imigrantes nos locais de
desembarque na cidade, a fim de recepcioná-los bem ao novo destino. Assim, muitos dos imigrantes
que vieram, neste período, referem o momento da chegada como um momento de forte emoção e
confraternização.
A maioria dos imigrantes que se inseriram nos centros urbanos brasileiros, praticaram uma
imigração espontânea que era promovida, com muitas oportunidades, pelos próprios conterrâneos
residentes no Brasil. O motor das emigrações, repetidas vezes, é motivado pela própria emigração.
Franco Ramella (2002, p. 143) aponta que “a ativação por parte dos indivíduos e das famílias como
elos mais ou menos selecionados pelas redes sociais que são a parte reguladora do movimento, o
organiza, o canaliza para certas direções e não a outras”.
É importante lembrar que os imigrantes chegaram perante um cenário promissor, visto que
havia uma enorme demanda de mão de obra, especialmente a qualificada. Na primeira metade do

3 Vale lembrar que inúmeros italianos radicados no Brasil, dentre as décadas de 1930 e 1940,
pleitearam e conseguiram as suas naturalizações junto ao governo brasileiro. Logo, os dados dos Censos
referem apenas aqueles que permaneceram com a nacionalidade italiana.
século passado, a capital gaúcha demonstrou um grande crescimento urbano associado à ampliação
do seu parque industrial, vinculada à rede de transportes de médios e longos trajetos (ferrovia,
navegação fluvial e aviação civil). O distrito industrial – formado, primeiramente, pelos
bairros Navegantes e São João,4 e que com o tempo englobou toda a Zona Norte da cidade –
concentrou a expansão populacional de Porto Alegre nesta fase (FORTES, 2004, p. 31).
No começo dos anos de 1940, a capital iniciou a transição para a moderna metrópole. O
crescimento demográfico, de 1940 a 1950, foi de 45 %. Isto é, neste arco temporal, a população
recrudesceu de 272.000 para 394.000 habitantes (SILVA, 1996, p. 53-54).
O princípio da Segunda Guerra viabilizou a aceleração do desenvolvimento em Porto
Alegre, cujo resultado manifestou-se na década de 1950. A impossibilidade da importação de bens
de consumo, que acabaram eliminados em consequência do conflito, possibilitou o nascimento de
novas indústrias na cidade (CONEDERA, 2012, p. 81). O município foi o maior núcleo de
desenvolvimento industrial no Estado do Rio Grande do Sul. Assim, a capital atraiu o maior
contingente de operários do Estado (SINGER, 1968, p. 172).
Em 1940, Porto Alegre possuía mais de 270 mil habitantes. A capital era a quinta cidade
mais populosa do país. Paulo Roberto Rodrigues Soares (2007, p. 300) destaca que:

A imigração internacional no século XX (de alemães, italianos, portugueses, espanhóis,


sírio-libaneses, judeus, ingleses, poloneses) trouxe ao estado número significativo de
comerciantes industriais, profissionais liberais e operários qualificados, dos quais muitos
se constituíram em importantes agentes empreendedores e inovadores em terrenos
econômicos, sociais e culturais.

Os municípios de Porto Alegre, Rio Grande, São Leopoldo, Caxias do Sul e Pelotas
detinham as principais casas comerciais, industriais, manufaturas, o comércio de exportação e
importação, e uma grande parcela da construção civil (edifícios, prédios e habitações de luxo)
ligados ao trabalho e à atuação de imigrantes (SOARES, 2007, p. 300).
Os postos de trabalho, advindos do crescimento industrial na Zona Norte da capital,
favoreceu a atração do fluxo migratório internacional e do interior do Estado. Alexandre Fortes
(2004, p. 39) frisa que:

[...] as levas de alemães e italianos e para a intensificação da vinda de cidadãos dos mais
variados países do Leste europeu. [...] Os trabalhadores trazidos à capital em função dos
trabalhos de expansão na Viação Férrea. Estabelecendo moradia próxima às fábricas,
abrindo as ruas e loteando as antigas chácaras, a fixação desses migrantes levou à

4 Os bairros Navegantes e São João foram criados pela Lei nº 2022, de 07/12/1959. Entrementes, o primeiro
arruamento das imediações do Navegantes data de 1870. Ulteriormente, a inauguração da primeira Estação
Navegantes, em 1886, interligando Porto Alegre-Novo Hamburgo, favoreceu a dinamização e ocupação da
região. Em 1895, a Empresa Territorial Porto-Alegrense implementou um grande loteamento nas áreas do bairro,
incentivando a sua habitação. (FRANCO, 1988. p. 284-285).
integração, na paisagem urbana de Porto Alegre, de um bairro operário multiétnico: o
Navegantes-São João, que logo viria a ser administrativamente definido como núcleo do
Quarto Distrito da cidade.

Inúmeros peninsulares, que aportaram em Porto Alegre neste período, instalaram-se na


Zona Norte do município e, muitos deles, continuaram residindo no mesmo bairro.
Os italianos inseriram-se também no Centro, Cidade Baixa, Bom Fim, Partenon e em zonas
mais ao Sul da cidade (Bairros Glória e Guarujá). Entre o final do século XIX e o início do XX,
Núncia Santoro de Constantino (2000, p. 68) destaca que “havia grande número de imigrantes que
ocupava parte do bairro Cidade Baixa, que acabou sendo, por definição, o Bairro Italiano”.
Sabe-se que, no período do pós-guerra, os italianos transitavam, principalmente, nas áreas
centrais do município e nas imediações da Zona Norte, pois nestes lugares localizavam-se as suas
habitações e locais de trabalho (CONEDERA, 2012, p. 83).
O desenvolvimento ocorrido em Porto Alegre, entre as décadas de 1940 e 1970, permitiu a
ampliação do sistema viário. Aconteceram aterramentos no Guaíba, a área urbana expandiu-se em
superfície. O progressivo aumento dimensional acarretou uma corrida imobiliária. Os loteamentos
dos operários próximos das fábricas colaboraram para o crescimento do setor da construção civil
(SILVA, 1996, p. 56).
A cidade, também, deu início ao seu processo de verticalização com as construções de
grandes espigões. As obras viárias foram concretizadas com a finalidade de promover a circulação
de um maior número de veículos motorizados que aumentavam, gradativamente, no perímetro
urbano (SILVA, 1996, p. 57).
O aumento demográfico registrado, a partir do decênio de 1950, no Rio Grande do Sul
começou a se aglutinar nas áreas urbanas. A Tabela 1 apresenta as transformações ocorridas nos
cenários urbano e rural.

Tabela 1 – Evolução da população urbana e rural no Rio Grande do Sul (1940-1980)


Ano Urbana (%) Rural (%) Total
1940 1.034.395 31,15 2.286.294 68,85 3.320.689
1950 1.421.980 34,14 2.742.841 65,86 4.164.821
1960 2.418.969 44,89 2.969.690 55,11 5.388.659
1970 3.553.006 55,31 3.111.885 46,69 6.664.891
1980 5.250.940 67,55 2.522.897 32,45 7.773.837
Fonte: IBGE. Censos Demográficos (Obs.: 1940 e 1950 com população urbana e suburbana).
Como se observa na Tabela 1, gradualmente, a população urbana começou a recrudescer,
ao mesmo tempo que a rural decrescia. Todavia, só no Censo de 1970, o número de habitantes
habitando nas cidades superou a quantidade que vivia nas áreas rurais.
Portanto, a partir dos anos 1940, Porto Alegre prosseguiu crescendo em população e
infraestrutura para se adequar ao aumento populacional causado pelas migrações internas e aquelas
internacionais. Os migrantes vislumbravam maiores e melhores perspectivas de trabalho, já que os
setores industriais, comerciais, de serviços, entre outros, proporcionavam uma elevada demanda
em detrimento ao período de transformação e progresso que a capital atravessava.

Carmine Motta nasceu em 1942, em Morano Calabro, província de Cosenza, localizada no


Norte da Calábria. Carmine vivenciou os anos do pós-Segunda Guerra, na Itália, um período
complicado, onde a Itália apresentava a realidade de um país que sofreu fortes perdas e dificuldades
entre os anos do conflito.
Apesar das adversidades existentes, Carmine conseguiu terminar seus estudos, desde o
ensino primário até concluir seu percurso escolar no Liceu Clássico. Ao longo da sua adolescência
tornou-se aprendiz de um reconhecido alfaiate da sua cidade, Natale Rizzo, que foi seu grande
mestre, e com quem aprendeu a arte da alfaiataria. Ainda, previamente, à sua partida da Itália,
completou sua formação fazendo um curso de corte na Scuola del Taglio Ligas de Turim.
Em 1961, o jovem Carmine Motta decidiu emigrar para o Brasil. O destino escolhido foi a
cidade de Porto Alegre, onde ele encontraria seu irmão que, primeiramente, transferiu-se para a
capital gaúcha. Carmine comenta que:

O meu irmão veio em 1951, logo depois, quando terminou a guerra. Porque toda a família
da minha mãe estava aqui (Porto Alegre). [...] E enquanto eu crescia, eu já tinha esta ideia
de vir para Porto Alegre na cabeça, porque éramos só dois irmãos. E eu queria ficar junto
com o meu irmão. Então, quando cresci, eu decidi que eu vou para Porto Alegre!

Como descreve o entrevistado, Porto Alegre era já um lugar conhecido através das histórias
que escutava em sua casa, comentadas por familiares e pelos amigos e pessoas de Morano Calabro.
É importante mencionar o estudo de Constantino (2008, p.15), “O Italiano da Esquina”, que informa
que a maioria dos italianos que se radicaram em Porto Alegre, desde o último quartel do século
XIX, era proveniente do Mezzogiorno, e, em particular da cidade de Morano Calabro.

5 Realizou-se, no dia 2 de agosto de 2017, uma entrevista com o senhor Carmine Motta. A entrevista ocorreu nas
dependências da alfaiataria do depoente. Elaborou-se uma entrevista com um roteiro seguindo os pressupostos
da História Oral temática com a finalidade de saber sobre a sua experiência migratória no Brasil.
Carmine Motta, como vários patrícios de seu paese6 de origem, empreenderam
uma imigração espontânea, seguindo uma cadeia migratória. Segundo a tipologia do
Antropólogo Charles Tilly, a modalidade de imigração em cadeia caracteriza-se por “envolver
o deslocamento de indivíduos motivados por uma série de arranjos e informações
fornecidas por parentes e conterrâneos, já instalados no local de destino” (TILLY, apud.
TRUZZI, 2008, p. 200).
As relações entre os imigrantes peninsulares encontravam relacionados a redes
sociais7 sustentadas por relações de solidariedade e confiança. Rotineiramente, a família
constituía-se na base da rede de solidariedade, já que ela representa o grupo social do sujeito
(CONEDERA, 2017, p. 39).
A partir do emprego dos termos “cadeia” e “rede” propõe-se ressaltar a condição da
qual diversos imigrantes deslocavam-se após se certificarem, com antecipação, sobre as
oportunidades e dificuldades com aqueles que já experimentaram, anteriormente, a
imigração para saber informações acerca do destino escolhido (TRUZZI, 2008, p. 203).
Vale dizer que, durante os anos do pós-guerra (1946-1976), a maioria dos
peninsulares presentes em Porto Alegre prosseguia sendo constituída por indivíduos
oriundos da Itália meridional. O grupo calabrês mantinha-se como a parcela,
quantitativamente, mais representativa, sendo acompanhada em menor medida por imigrantes
da Campania (principalmente da província de Salerno) e Sicília (especialmente das províncias
de Enna e Catania) (CONEDERA, 2012, p. 72).
Carmine Motta foi recebido por seu irmão e familiares que já moravam no lugar da
sua meta de imigração. Estes sugeriram ao jovem alfaiate de trabalhar no comércio de
produtos alimentícios. Nos anos do pós-guerra, os italianos em Porto Alegre continuaram
inserindo-se, majoritariamente, no comércio. Sabe-se que a atividade comercial caracterizou
os emigrados de Morano Calabro, bem como o investimento neste tipo de ramo por
meridionais de outras Regiões da península, desde o final do oitocentos na capital
gaúcha. Algumas famílias moranesas especializaram-se em determinados ramos, como
do tecido, dos açougues, calçados, secos e molhados, casas lotéricas, entre outros
(CONEDERA, 2012, p. 92).
Contudo, Carmine rejeitou a proposta de trabalhar com seus parentes, porque desejava
se dedicar, no Brasil, à sua formação de alfaiate. Inicialmente, começou a trabalhar como
funcionário em uma alfaiataria que prestava serviços para as lojas Renner, que durante os
anos de 1950 e 1970 oferecia aos seus clientes ternos sob medida. Sobre esta fase, o depoente
narra:

Fiquei trabalhando ali por 3 anos. E eu sempre com aquela ideia de montar uma sartoria
[alfaiataria] própria. No meio tempo, fiz uma economiazinha e montei a minha alfaiataria.

6 Paese refere-se à pequena cidade, que se encontra no interior da Itália.


7
.Rede social é um campo de relações entre indivíduos que pode ser definido por uma variável pré-
determinada e se referir a qualquer aspecto de uma relação. Uma rede social não é um grupo bem definido e
limitado, senão uma abstração que se usa para facilitar a descrição de um conjunto de relações em um espaço
social dado. Cada pessoa é o centro de uma rede de solidariedade e, ao mesmo tempo, é parte de outras redes
(LOMNITZ, 2009, p. 18).
Eu comprei uma lojinha na [Rua] Olavo Bilac e abri a minha alfaiataria. E isso foi em
1966! No dia 7 de setembro de 1966. E depois de abrir a minha sartoria posso dizer que
sou um alfaiate bem conceituado e reconhecido em Porto Alegre. A maioria das pessoas,
ainda hoje me prestigiam.

Após inaugurar o seu próprio negócio, Carmine Motta prosperou, gradualmente, como
também aumentou a sua clientela na sociedade porto-alegrense. Carmine pertence ao
grupo de imigrantes italianos qualificados8 que se inseriram no Brasil, alcançando êxito em
sua atividade profissional nos anos do pós-guerra. Diversos peninsulares, que
desembarcaram em território brasileiro, e através do seu trabalho alcançaram
reconhecimento e sucesso nas suas respectivas profissões.
Carmine, quando abriu sua própria alfaiataria na capital gaúcha, especializou-se na
confecção de ternos sob medida. O entrevistado explica:

Bem, para fazer um terno inteiro tem um ditado italiano que diz: “Il tuo corpo è unico al
mondo. E solo lo sarto lo sa!” [O teu corpo é único no mundo. E somente o alfaiate sabe
disto!] Então, para fazer um terno inteiro precisa se ter um domínio do corte. Eu fiz um
curso de corte na Scuola di Taglio Ligas di Torino. E isso foi um aspecto muito importante
para mim! Porque este curso me deu a base técnica para desenvolver a alfaiataria sob
medida. Isto é, que era, ao mesmo tempo, cortar e confeccionar uma roupa.

Como Carmine expôs na sua fala, o fato de possuir um domínio na técnica de cortar tecido
permitiu-lhe de fazer trajes masculinos sob medida para seus fregueses. Vale lembrar que esta
prática do corte de tecido não era uma formação que todos os alfaiates tinham. Logo, como outros
colegas de profissão – que dominavam a técnica do corte – o imigrante de Morano Calabro oferecia
um diferencial em sua atividade.
A partir da sua atividade profissional, Carmine também constituiu muitas amizades. Em
uma ocasião, o alfaiate recebeu o convite de um amigo e cliente para comparecer a sua festa de
casamento onde conheceu a senhora Carmelina com quem, depois de alguns anos, casou-se e teve
um casal de filhos.
É preciso referir que desde que chegou a capital do Rio Grande do Sul, o alfaiate sempre se
manteve integrado com o grupo dos seus compatriotas oriundos de Morano Calabro. Como outros
conterrâneos, Carmine participava das festas e bailes organizados pela Sociedade Principessa Elena
di Montenegro (atual Sociedade Italiana do Rio Grande do Sul) que reunia grande parcela da
coletividade de peninsulares residentes na capital gaúcha.

8 Imigração qualificada refere-se ao deslocamento de imigrantes portadores de uma formação superior


(como médicos, farmacêuticos, arquitetos, engenheiros, advogados, professores) ou aqueles que detinham uma
instrução técnica (de caráter artesanal e artística).
O imigrante ao longo de sua trajetória na sociedade porto-alegrense dividiu seu tempo entre
seu trabalho e vida associativa. Desde o final dos anos 1970, iniciou a contribuir para a visibilidade
da coletividade de seus patrícios na capital gaúcha. O entrevistado lembra que em meados dos anos
de 1980,

[...] não tínhamos uma sílaba escrita sobre a presença calabresa de Porto Alegre. E a partir
daí uma série de intelectuais começou a escrever como o Dr. Dante de Laytano, a Núncia
com o seu livro, O Italiano da Esquina, o professor Coeiro e outros e outros... Fiore
Marrone, a professora Maria Feoli Guaragna. A professoressa Maria Feoli Guaragna foi
muito, muito importante! E a Núncia! Eu tinha a ideia do que fazer, mas não tinha os
meios.

Como refere o imigrante calabrês, no transcorrer do decênio de 1980, inúmeros estudos e


publicações de pesquisadores acadêmicos e diletantes começaram a ser divulgados e salientar a
presença significativa dos italianos no Estado do Rio Grande do Sul, como também o grupo calabrês
que se inseriu na capital.
Carmine Motta, logo que chegou a Porto Alegre, começou a conviver com a coletividade
italiana existente no município. Na metade dos anos 1970, o alfaiate foi convidado para exercer o
cargo de Diretor Social da Sociedade Italiana do Rio Grande do Sul. A respeito da sua entrada na
Sociedade Italiana, o depoente refere que:

Desde que eu cheguei, comecei a participar da Sociedade Italiana. Até quem me convidou
para frequentar a Sociedade Italiana, foi o então presidente Januario Severino. Ele, que foi
presidente da Sociedade Italiana, foi por um tempo para a Itália, e ele ficou morando
próximo da casa onde estava morando a minha mãe; assim ele fez amizade com a minha
mãe. E quando ele voltou, ele me procurou, porque a minha mãe lhe disse que eu estava
aqui [Porto Alegre]. Ele me encontrou e me convidou para participar da Sociedade
Italiana. Então, eu me associei, e depois eu sou um cara que sou muito crítico, e então eu
comecei a criticar algumas coisas.... Até o dia que eu fui em uma reunião da diretoria para
criticar algumas coisas, então me convidaram para ser o Diretor Social [risos] E a partir
daí eu sempre participei.

Como aconteceu com Carmine, seguidamente, os imigrantes recém-chegados eram


chamados por parentes e amigos, já inseridos na capital gaúcha, para frequentar os espaços de
convivência do grupo italiano presente em Porto Alegre.
Vale lembrar que, o fato de Carmine Motta advir de Morano Calabro facilitou a sua entrada
no centro urbano, visto que a comunidade moranesa radicada na capital do Rio Grande do Sul era,
quantitativamente, significativa. As famílias calabresas ainda mantinham fortes contatos com os
parentes que permaneciam no paese de origem.
No entanto, a atuação do alfaiate não se limitou somente à sociedade italiana, no contexto
da década de 1980, no Rio Grande do Sul. Surgiram uma série de novas associações italianas que
eram incentivadas por representantes e financiamentos das administrações das Regioni e provincie
da Itália. Então, neste momento, foi criado um grande número de novas agremiações. Assim, o
grupo de imigrantes e descendentes calabreses organizou-se para formar a sua associação. Logo,
Carmine com o apoio de outros conterrâneos, reuniram-se para constituírem o Centro Calabrês.
Todavia, neste processo de elaboração do Centro Calabrês, o entrevistado revela que houve
uma série de tensões no interior da comunidade. Carmine, que já era um membro reconhecido
dentro da coletividade, sofreu resistência por parte de alguns patrícios, que segundo o alfaiate, ele
não seria a pessoa indicada para liderar o grupo calabrês.
Carmine confessa que este momento de animosidades o fez repensar sua participação no
contexto associativo italiano. Mas, através da influência e apoio de amigos que o defendiam no
interior da comunidade calabrês, prosseguiu participando das associações italianas, tanto do Centro
Calabrês, como da Sociedade Italiana do Rio Grande do Sul.
Além das dificuldades que o depoente elencou que recebeu com reprovações na sua
trajetória dentro das associações italianas de Porto Alegre, Carmine também narrou que

Desde o início de quando eu cheguei comecei a conviver com a comunidade calabresa. A


comunidade calabresa teve um problema! Aqueles que vieram antes da guerra [II Guerra
Mundial], eles evoluíram economicamente, socialmente, culturalmente. E havia uma certa
discriminação, eu diria, com aqueles que vieram depois. [...] maioria dos calabreses que
vieram antes, os filhos estudaram e alcançaram cargos importantes, e se afastaram da
comunidade, já que se encontravam em outro patamar da sociedade porto-alegrense e se
afastaram da comunidade de origine. [...] E teve um momento que dentro da Sociedade
Italiana, isso não aconteceu comigo, mas me disseram que aconteceu com outros nos anos
50 e 60, que quando vinha aqueles imigrantes, os pais moraneses não deixavam as filhas
nascidas aqui dançar com aqueles que vieram de lá [Morano Calabro]! Teve uma certa
ocasião que, quando eu cheguei para frequentar a sociedade italiana tinha este tipo de
problema.

A narrativa do entrevistado revela um conflito social e geracional que existiu no seio da


coletividade moranesa de Porto Alegre nos anos do pós-guerra. Tal incidente não foi uma ocorrência
peculiar da comunidade dos calabreses da capital do Rio Grande do Sul. Trento (1989, p. 421)
sublinha que
O emigrante do pós-guerra não se parecia em nada com o de décadas atrás; ele era portador
de exigências bem diferentes e tinha consciência de seus direitos e uma dignidade humana
totalmente desconhecida dos trabalhadores que abandonaram a pátria no início do século.

Carmine e outros patrícios – que vieram para o Rio Grande do Sul nos anos do pós-guerra
– traziam uma bagagem diferente (como uma formação e mentalidade distinta) daquela que seus
compatriotas que imigraram outrora da península. Além disso, a questão social fora um aspecto que
repartiu os grupos, a saber: aqueles que já estavam estabelecidos com seus descendentes possuíam,
muitas vezes, uma condição econômica confortável, diferentemente, dos recém-chegados que
vinham em busca de sucesso no Novo Mundo.
A partir do seu envolvimento na esfera associativa, Carmine Motta tornou-se um nome
conhecido na comunidade italiana de Porto Alegre e do Rio Grande do Sul, pois integrou uma série
de iniciativas sociais e culturais da coletividade italiana existente no Estado mais ao Sul do Brasil.
Assim, o seu trabalho para com a sociedade italiana e porto-alegrense rendeu-lhe
reconhecimentos por parte dos governos italiano e brasileiro. Da sua pátria de origem, Carmine foi
homenageado com: Cavaliere dell´Ordine al Mérito della Repubblica Italiana (1990) e Cavaliere
Ufficiale dell´Ordine al Mérito della Repubblica Italiana (2004). Da cidade de Porto Alegre,
recebeu o título de Cidadão Honorário de Porto Alegre (1992). Depois de exercer diversos cargos
e funções em diferentes associações brasileiras e italianas, Carmine Motta atua hoje como um dentre
os 7 consultores da Regione Calabria na América do Sul.
As experiências e os reconhecimentos, que Carmine vivenciou no país de imigração,
exemplificam como muitos imigrantes italianos foram atores capazes de criar e preservar laços
entre dois mundos diferentes. O depoente fala que

O imigrante italiano tem uma coisa boa! Ele se adapta ao país onde ele vai, e se integra.
Ele tem essa facilidade italiana de se integrar. Agora eu, quando vou para a Itália, eu sou
brasileiro! Porque se alguém fala mal do Brasil, Deus me livre! Eu brigo. Se alguém fala
mal da Itália aqui, eu também brigo! Então, eu me integrei, como se integraram todos,
pode ver os filhos [dos imigrantes]!

A narrativa do imigrante calabrês dialoga com as considerações da pesquisadora Donna


Gabbacia (2003, p. 27), que aponta que o fenômeno emigratório italiano “difundiu
o transnacionalismo 9 como uma dimensão normal de vida para muitas famílias italianas
de trabalhadores”.

A trajetória do alfaiate moranês não se restringiu apenas a sua vida profissional e familiar.
Carmine constitui-se em um ponto de referência e liderança de uma coletividade de imigrantes de
sua Regione de origem. Em seu percurso, Carmine demonstra como os imigrantes italianos foram
atores capazes de circular por diversos espaços da sociedade porto-alegrense.

9 De acordo com Maurizio Ambrosini, na perspectiva da Antropologia, entende o transnacionalismo


como o processo pelo qual os imigrantes constroem campos sociais que unem o país de origem e aquele de
acolhimento. (AMBROSINI, 2009, p. 7).
Nos anos do pós-guerra, os peninsulares prosseguiram, como um grupo significativo, no
interior da capital gaúcha. Como Carmine, muitos foram os profissionais qualificados que
ingressaram no mercado brasileiro.
Então, como vários peninsulares, que imigraram para o Brasil nos anos do pós-guerra
(1946-1976), Carmine Motta permanece interligado, tanto culturalmente, como profissionalmente,
a dois mundos (aquele italiano, onde nasceu, e aquele brasileiro para o qual imigrou).

AMBROSINI, Maurizio. Intraprendere fra due mondi: Il transnacionalismo economico degli


immigrati. Bologna: Il Mulino, 2009.

CONEDERA, Leonardo de Oliveira. A imigração italiana no pós-guerra em Porto Alegre:


memórias, narrativas, identidades de sicilianos (1946-1976). 156f. Dissertação (Mestrado em
História) – Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas, Pontifícia Universidade Católica do Rio
Grande do Sul, Porto Alegre, 2012.

_____. Músicos no Novo Mundo: A presença de musicistas italianos na Banda Municipal de


Porto Alegre (1925-1950). 278f. Tese (Doutorado em História) – Escola de Humanidade,
Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul, Porto Alegre, 2017.

CONSTANTINO, Núncia Santoro de. Nas entrelinhas da narrativa: vozes de mulheres


imigrantes. Revista Estudos Ibero Americanos, Porto Alegre, v. 32, n. 1, p. 63-73, 2006.

_____. O italiano da esquina: meridionais na sociedade porto-alegrense e permanência da


identidade entre moraneses. Porto Alegre: EST, 2008.

_____. O italiano na cidade. Passo Fundo: Ed. da UPF, 2000.

CORTI, Paola. Storia degli migrazioni internazionali. Bari: Laterza, 2007.

DE CLEMENTI, Andreina. Il prezzo della ricostruzione: le emigrazione italiana nel secondo


dopoguerra. Bari: Laterza, 2010.

DE RUGGIERO, Antonio. Emigrati Toscani nel Brasile Meridionale 1875-1914. 2011. 272 f.
Tese (Dottorato in Storia) – Dottorato di ricerca in Studi Storici per l‟età Moderna e
Contemporanea, UNIFI, Firenze, 2011.
DIÉGUES JUNIOR, Manuel. Imigração, urbanização e industrialização: estudo sobre alguns
aspectos da contribuição cultural do imigrante no Brasil. Rio de Janeiro: Instituto Nacional de
Estudo e Pesquisa Educacional, 1964.

FORTES, Alexandre. Nós do quarto distrito: a classe trabalhadora porto-alegrense e a era Vargas.
Caxias do Sul: Garamond, 2004.

FRANCO, Sérgio da Costa. Porto Alegre: guia histórico. Porto Alegre: Ed. da UFRGS, 1988.

GABACCIA, Donna. Emigranti: diaspore degli italiani dal medievo a oggi. Torino: G. Einaudi,
2003.

LOMNITZ, Larissa Adler. Redes sociais, cultura e poder. Rio de Janeiro: E-papers, 2009.

MOTTA, Carmine. Imigração para Porto Alegre. [ago. 2017]. Entrevistador: Leonardo de
Oliveira Conedera. Porto Alegre. 2017

RAMELLA, Franco. Reti sociali, famiglie e strategie migratorie. In: BEVILACQUA, Piero; DE
CLEMENTI, Andreina; FRANZINA, Emilio (Org.). Storia dell'emigrazione italiana: Partenze.
Roma: Donzelli, p. 143-160, 2002.

SILVA, Márcia Andréa Schmidt da. Uma comunidade eslava ortodoxa: russos e ucranianos em
Porto Alegre: 1948. 1996. 134 f. Dissertação (Mestrado em História) – Faculdade de Filosofia e
Ciências Humanas, Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul, Porto Alegre, 1996.

SOARES, Paulo Roberto Rodrigues. Do rural ao urbano: demografia, migrações e urbanização.


In: GERTZ, René E. (Org.). História Geral do Rio Grande do Sul. República: da Revolução de
1930 à ditadura militar (1930-1985). Passo Fundo: Méritos, 2007. v. 4. p. 291-313.

TRENTO, Angelo. Do outro lado do Atlântico: um século de imigração italiana no Brasil. São
Paulo: Nobel, 1989.

TRUZZI, Oswaldo. Redes em processos migratórios. In: Tempo Social: Revista de Sociologia da
USP, v. 20, n. 1, p.199-218, 2008.

ZAMBERLAM, Jurandir. O processo migratório no Brasil: e os desafios da mobilidade humana


na globalização. Porto Alegre: Pallotti, 2004.
Ana Maria Greff Buaes
Martha de Leão Lemieszek

Nas entrevistas de história oral de vida, as perguntas devem ser amplas, sempre colocadas
em grandes blocos, de forma indicativa dos grandes acontecimentos [...] a riqueza de
detalhes favorece uma gama enorme de temas que, em conjunto, enriquecem a percepção
da vida social brasileira. (MEIHY, 1996, p. 48).

No mundo de hoje, onde as transformações são rápidas e a comunicação é instantânea,


busca-se o que se pode chamar uma “ancoragem”, na tentativa de estancar o tempo, evitando assim
que o passado se perca.
Um sintoma dessa conjuntura em que a memória se tornou uma preocupação social e
cultural é a constituição de espaços, instituições de preservação e celebração dos vestígios do
passado mediante a proliferação de museus, bibliotecas, centros de documentação e memoriais.
Há o desejo de tudo guardar, conservar documentos, fotos, objetos e entrevistar a todos que
tenham histórias a contar.
As entrevistas de História Oral são tomadas como fontes para a compreensão do passado e,
ao lado de memórias, documentos escritos, imagens e outros tipos de registro, permitem
compreender como indivíduos experimentaram e interpretaram acontecimentos em suas vivências
numa sociedade.
Daí a importância da História Oral, como metodologia, desenvolvida no último quarto do
século XX em caráter renovador. Trata-se de um trabalho sistemático de recuperação e registro da
memória. Ao explicitar o método indiciário, Ginzburg já afirmava que pequenos indícios podem
funcionar como chaves para o conhecimento de realidades históricas e ainda que um sujeito, por si
mesmo, pode ser pesquisado como se fosse um microcosmo de uma camada social inteira, num
determinado período histórico (GINZBURG, 2006)
Assim, utilizando como metodologia a História Oral, o presente trabalho foi pautado pelas
técnicas preconizadas por Thompson e Meihy, com a finalidade de obter não só a história de vida
de Nicole Louise Marguerite Trouiller Thomé, como também o modo de vida numa cidade de

* Graduada em Odontologia/UFRGS e História/PUCRS. Pesquisadora voluntária do Laboratório de História Oral


da PUCRS.
** Bacharel em Direito e História/PUCRS. Atuou na Procuradoria do IPERGS, como advogada. É
pesquisadora voluntária do Laboratório de História Oral da PUCRS.
colonização italiana na década de 1950, quando da sua chegada ao Brasil e na década de 1980,
quando assumiu a presidência da fábrica George Aubert (THOMPSON, 2002).

Nicole nasceu em Valence, cidade ao sul da França em 1943, sendo filha única do casal
Gilbert Trouiller e Odette Eugenie Victoria Gremeaux.
Quando tinha sete anos, seu pai ─ que ela define como um aventureiro ─ resolveu tentar a
vida em outro país. Gilbert vinha de uma família de comerciantes, mas estava insatisfeito com essa
condição e resolveu que iria tentar a vida em outro lugar que poderia ser o Canadá, Chile, Argentina
ou Brasil. Através do jornal local anunciou sua vontade de montar um negócio fora da França.
Conseguiu a adesão de três investidores.
Como havia estudado no colégio dos maristas em Valence, na dúvida do que fazer
exatamente, foi aconselhar-se com os padres quanto ao ramo de negócios que poderia, juntamente
com os outros investidores, desenvolver fora da França. Nessa ocasião, fazia noviciado naquela
cidade, o Irmão José Otão, natural de Garibaldi. O encontro foi decisivo para definir como destino
o Brasil, especificamente a cidade de Garibaldi, terra natal do religioso que, posteriormente, foi
Reitor da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUCRS).
Gilbert não era vinicultor, mas deixou-se guiar pelo espírito aventureiro. Tudo acertado com
os demais investidores e com o apoio dos irmãos maristas, vendeu seus pertences na França e
adquiriu todo o maquinário necessário para a montagem da fábrica de champanhe.

Garibaldi, situada a 110 quilômetros de Porto Alegre, na região de colonização italiana, foi
instalada como colônia em 1870, ainda no Império. Recebeu a denominação de Colônia Conde
D’Eu, elevada à condição de município e desmembrada de Bento Gonçalves em 1900,
passou a chamar-se Garibaldi1.

1 www.garibaldi.rs.gov.br. Acesso em 14/08/2017.


Figura 1 ─ Rua Buarque de Macedo em 1900: na ocasião da fotografia, Garibaldi
ainda era denominada como Colônia de Conde D'Eu

Fonte: Disponível em: <https://pt-br.facebook.com/Garibaldi-Fotos-Históricas>

Figura 2 ─ Rua Buarque de Macedo em 1900: na ocasião da fotografia, Garibaldi ainda era
denominada como Colônia de Conde D'Eu

Fonte: Disponível em: <https://pt-br.facebook.com/Garibaldi-Fotos-Históricas>

As colônias italianas no Rio Grande do Sul foram fundadas sob o regime da pequena
propriedade e o trabalho era executado pela mão de obra familiar.
A produção agrícola das colônias sempre foi diversificada, mas com o passar do tempo a
implantação das vinhas e o respectivo progresso da vinicultura tornaram-se um nicho de mercado
bastante lucrativo, acelerando a economia a ponto de tornar-se uma cultura permanente e principal
produto comercial da região. (HERÉDIA, 2014, p. 127).
Anteriormente à chegada dos investidores franceses em Garibaldi, já estavam instaladas na
região a fábrica de bebidas Dreher, em Bento Gonçalves, a Peterlongo, fundada em 1913 em
Garibaldi, que também, dentre outras bebidas, produzia champanhe, além de outros pequenos
fabricantes, especialmente de vinhos.
Em outubro de 1950 chegava a Garibaldi o grupo de franceses com o objetivo de montar
uma fábrica de champanhe que em breve entraria em operação. Estabeleceram os sócios que a
empresa levaria o nome de um deles, Georges Aubert, pois o nome do sócio majoritário, Gilbert
Trouiller era de difícil pronúncia para os brasileiros.
Como a fábrica de bebidas Dreher não produzia champanhe, os novos empreendedores
fizeram contato com a Dreher para que os representantes comerciais daquela empresa os pudesse
representar também em outros estados do território nacional, visto que inexistia concorrência de
produto. Tal iniciativa foi importante e resultou em agilidade na comercialização e distribuição da
nova champanhe que chegava ao mercado.
O processo de fabricação da champanhe Georges Aubert e da região de um modo geral, era
o chamado “charmat”. O vinho-base era levado a fermentar a uma temperatura de 13 a 15 graus
centígrados em recipientes de aço inox, as chamadas autoclaves, com capacidade de 5 a 10 mil
litros para depois ser engarrafado e distribuído.

Em 1950, quando da chegada das quatro famílias de franceses a Garibaldi, Nicole era ainda
uma criança de sete anos e tudo que sabia sobre o Brasil era o que seu pai contara: que era um país
onde fazia muito calor e de natureza exuberante, com muitas florestas, animais, inclusive muitos
macacos. A narrativa encantou a menina que sonhava em ter seus próprios macacos.
Justamente por ser abordada sob a ótica de uma criança, a narrativa de Nicole é rica em
detalhes que marcaram sua chegada ao país. As reminiscências permanecem vivas em sua memória
e rica em detalhes, pois aos olhos infantis foram muitas as descobertas que, ao fim revelam como
era a vida da cidade na década de 1950.
Na chegada, as quatro famílias instalaram-se no hotel de Garibaldi onde, relata Nicole, não
havia água encanada, os banhos eram “de lata” como chamou. Explicou que latas grandes eram
penduradas na parede, furadas na parte de baixo e, por cima, era colocada a água quente para os
banhos. Nos quartos havia bacias para lavar o rosto e as mãos. A água usada dessas bacias era
simplesmente jogada da janela para a rua e Nicole lembra que um hóspede, menos cauteloso, virou
a sua bacia sem olhar para baixo, acertando em cheio a cabeça do cônsul francês que entrava no
hotel.
Lembra ainda, que aos domingos, as famílias da cidade, depois da missa, costumavam
passar pela frente do hotel “para ver os franceses”. Era o programa dominical, já que despertavam
muita curiosidade. Como seu pai era um homem comunicativo e educado, juravam que ele era um
nobre.
Figura 3 ─ Gilbert Trouiller em Garibaldi (esquerda) e o passaporte da menina Nicole (direita),
que, na época, tinha a foto do pai junto no passaporte da filha porque era menor de idade

Fonte: do acervo da família

Garibaldi tinha um colégio de freiras, o São José, e lá Nicole iniciou seus estudos regulares.
A hora do almoço era dedicada ao aprendizado de português, já que o colégio tinha algumas freiras
francesas. O surpreendente na narrativa é que a entrevistada afirma não se lembrar de um dia não
ter falado português.
Recorda que as coleguinhas a tratavam muito bem e todos os dias voltava para casa com os
chamados “santinhos” comemorativos e outras gentilezas. Assim, a inserção e adaptação de Nicole
ao novo ambiente aconteceram de forma rápida e tranqüila, o que não ocorreu com sua mãe que
sentia muitas saudades da França e da mãe que lá deixara.

Figura 4 ─ Colégio São José: escola onde Nicole estudou em Garibaldi. Fundado em 11 de fevereiro
de 1901, com a chegada das irmãs Azélia Diorcet, Clotilde Zabrer e Dorothée Pachod, além da madre Paula
Dunand, vindas da comunidade de Moutiers, na França

Fonte: do acervo da família


Pouco depois da chegada a Garibaldi, dois investidores franceses desistiram de prosseguir
no Brasil, retornando à França. Deram continuidade ao projeto Gilbert Trouiller, na condição de
sócio majoritário e Georges Aubert que havia emprestado seu nome ao produto.
A atenção era voltada para a produção de champanhe, mas a empresa fabricava também,
com sucesso, conhaque e anis, bem aceitos pelo mercado. Em seu apogeu, a Georges Aubert
contava com, aproximadamente, noventa funcionários e, por vinte e um anos liderou a venda de
champanhe em todo território nacional.
Nas festas de fim de ano, os pedidos por champanhe aumentavam, significativamente, e,
em consequência, a produção tinha de aumentar para atender à demanda. A matéria prima para
fabricação do produto, a uva, era abundante na região, então, não havia problema de abastecimento.
Existiam inúmeros fornecedores que concorriam entre si.

Figura 5 - Exemplar de champanhe

Fonte: acervo da família.

Durante todo esse período, Nicole acompanhou de perto a empresa, observando o


funcionamento entre autoclaves, garrafas de champanhe e rolhas, sempre na companhia do pai. Na
entrevista concluiu: - “Meu pai foi um homem exitoso”.
Na afirmação de Halbwachs “À medida que a criança cresce, e, sobretudo quando se torna
adulta, participa de maneira mais distinta e mais refletida da vida e do pensamento desses grupos
dos quais fazia parte, inicialmente, sem disso aperceber-se (HALBAWACHS, 1990, p 71).
Figura 6 ─ Nicole e o pai

Fonte: acervo da família.

A vida seguia seu curso. Aos dezesseis anos, Nicole fora mandada para França para conviver
durante um ano com parentes; talvez fosse pensamento de seus pais que ela não cortasse
definitivamente suas raízes com o país natal.
De volta ao Brasil, foi cursar Secretariado em Porto Alegre e, posteriormente, contraiu
núpcias com um médico, indo residir próximo a Garibaldi, em Carlos Barbosa.

Figura 7 ─ A família de Nicole

Fonte: acervo da família.


Entretanto, precocemente, aos sessenta anos, Gilbert Trouiller veio a falecer no ano de 1981,
de forma repentina. Nicole já tinha três filhos, mas mesmo nesse momento de dor, sabia que na
condição de sócia majoritária e única filha, cabia a ela assumir o comando da empresa. O sócio
Georges Aubert que viera para o Brasil com certa idade, já havia falecido. Agora a fábrica contava
com alguns sócios minoritários. Cabia a ela assumir a condição de presidente da Georges Aubert, o
que fez com determinação. Não havia alternativa e Nicole desejava muito, não só cuidar do legado
de seu pai, mas, também, transmiti-lo aos seus filhos.
Percebera com clareza na vida adulta que seu pai a havia preparado para aquela passagem
durante toda sua vida. Quando pequena, o acompanhava na fábrica e, mais tarde, quando, de forma
casual comentava os problemas da empresa e de como os resolvia.

Figura 8 e 9 ─ Nicole na presidência da Georges Aubert

Fonte: acervo da família.

Nicole foi eleita presidente em assembleia com os sócios minoritários, e daquele momento
em diante, a Georges Aubert estava sob seu comando. Nas palavras de Nicole: “Nesta época não
havia nenhuma mulher no ramo de vinhos por aqui e havia certa dificuldade das pessoas da colônia
em lidar com uma mulher empresária, mas sempre fui respeitada. Penso que o fato dos homens me
respeitarem nos negócios tinha muito a ver com o nome que meu pai tinha deixado”.
Na verdade, em toda entrevista Nicole referiu-se ao pai como um homem carismático,
extremamente sociável e bem quisto na colônia.
Afirmou que o tratamento com os representantes comerciais de outros estados era mais
fácil, principalmente com aqueles que vinham de cidades grandes como Rio de Janeiro e São Paulo.
Quanto aos problemas da fábrica em si, disse que eram resolvidos na medida em que
surgiam em conjunto com os outros sócios, sem maiores embates. O ambiente, disse ela, era
agradável. Cita na entrevista alguns percalços, como, por exemplo, em véspera de fim de ano, com
muitas encomendas, as rolhas vieram com defeito e começaram a estourar durante o transporte.
Mas, disse: “isso não foi um grande problema, pois foi logo resolvido.”
Outro problema inevitável era com os funcionários que gostavam de beber. Com eles, sim,
as medidas tinham de ser enérgicas, pois não podiam continuar a trabalhar numa fábrica de bebidas.
Por outro lado, não tinha problema de abastecimento, pois a matéria prima era abundante na região.
Assim, a empresa que seu pai legara continuava a funcionar sob sua direção.
Ocorre, entretanto, que a partir de 1987 com a inflação em alta no Brasil, os negócios
começaram a ficar difíceis. Nicole não tinha capital para investir na empresa.
Em 1990, assumia a presidência do Brasil, Fernando Collor que lançou um conjunto de
reformas e planos com a finalidade de estabilizar a economia no país combalida pela inflação.
Segundo o economista Joal Azambuja de Rosa, Diretor Técnico da América Estudos e
Projetos Internacionais e ex-presidente da Fundação de Economia e Estatística do Rio Grande do
Sul, tais medidas, entretanto vieram a prejudicar determinados setores da economia, especialmente
a indústria e o comércio de determinados ramos. As principais medidas para estabilização da
inflação foram acompanhadas de programas de reforma de comércio externo, a “Política Industrial
e de Comércio Exterior”. Essa política, dentre outras medidas de ordem econômica, afetou
diretamente a maioria das pequenas e médias empresas, como era o caso da Georges Aubert. Collor
reduziu as restrições sobre as importações, as chamadas barreiras tarifárias e com isso aumentou a
concorrência o que tirou muitas empresas domésticas do mercado.
Esse tema é controverso entre os economistas, proteger ou não a indústria nacional. Existem
economistas que defendem que deveria existir uma política industrial, senão por razões conceituais,
pelo fato de que a experiência está a mostrar que depois da Primeira Revolução Industrial na
Inglaterra, todos os países hoje desenvolvidos que protegeram e protegem suas indústrias, como foi
o caso da Alemanha, Estados Unidos e determinados países asiáticos, tiveram êxito.
Em vários países vinícolas como a França, a Itália e Portugal, a produção das pequenas
empresas é muito importante. O que as mantêm na competição é a qualidade e o modo artesanal de
produção que é protegido por políticas públicas. No Brasil não houve este cuidado.
Com a nova política, as fábricas nacionais, de um modo geral, começaram a sentir a
concorrência das multinacionais e os negócios ficaram cada dia mais difíceis.
A Georges Aubert tornou-se inviável para Nicole sem dinheiro para investir. Tomou então
a decisão de vender sua parte que foi adquirida por um grupo paulista, contrariando o desejo de
legar a seus filhos a fábrica. Esse grupo não demorou a sentir as mesmas dificuldades e faliu. O
prédio da Georges Aubert foi levado a leilão, tendo sido arrematado pela fábrica Tramontina que o
demoliu, construindo em seu lugar um depósito.
Hoje, Nicole Trouiller Thomé vive em Porto Alegre, levando uma vida social muito ativa,
fazendo parte de vários grupos e são muitos seus interesses como viajar, jogar baralho, saborear um
bom vinho, herança talvez de seu passado quando aprendeu muito sobre vinicultura. Faz parte
também de uma associação de mulheres, cujo objetivo é degustar novos vinhos harmonizando com
bons pratos.
Figura 10 ─ Foto atual de Nicole

Fonte: acervo da família.

GARIBALDI FOTOS HISTÓRICAS. Fotos de Garibaldi. Disponível em:


<https://goo.gl/UuNW4a> Acesso em 10/08/2017

GINZBURG, Carlo. O queijo e os vermes. São Paulo: Companhia do Bolso, 2006.

HALBAWACHS, Maurice. A memória coletiva. São Paulo: Vértice, 1990

HEREDIA, Vania. O empreendedorismo na economia imigrante no Sul do Brasil. In Imigrantes e


empreendedores na História do Brasil. Porto Alegre: EDIPUCRS, 2014, p. 127.

MEIHY. José Carlos Sebe Bom. Manual de História Oral. São Paulo: Loyola, 1996.

PREFEITURA MUNICIPAL DE GARIBALDI. Informações do Município de Garibaldi.


Disponível em: <www.garibaldi.rs.gov.br> Acesso em 14/08/2017.

THOMPSON, Paul. A voz do passado: História Oral. São Paulo: Paz e Terra, 2002.
Tiago Arcanjo Orben

A entrevista analisada foi realizada com o casal de agricultores Arcanjo e Maria do Prado,
no dia 06 de julho de 2011, como parte do projeto de extensão intitulado: Memórias da terra: modos
de viver, lutas e resistências camponesas no Oeste e Sudoeste do Paraná. Ambos possuem
significativas vivências agrícolas enquanto arrendatários e empregados temporários e, no momento
da entrevista, residiam em uma Vila Rural (nessa vila possuem um lote de terra de 0,5 hectares) no
munícipio de Verê-PR. Arcanjo continua trabalhando como empregado temporário em
propriedades agrícolas da região, e Maria, eventualmente, acompanha o marido, mas, geralmente,
trabalha nos afazeres domésticos. Ganha destaque em suas vivências as diferentes ocupações
experimentadas ao longo de suas trajetórias, ao mesmo tempo em que expõem de que maneira
diferentes dinâmicas regram a estrutura agrária e fundiária recente do Sudoeste do Paraná.
Para compreender as experiências experimentadas por Maria e Arcanjo do Prado, serão
considerados o aporte metodológico da História Oral e o teórico da memória, vistos, aqui, como
matéria prima para os pesquisadores que se utilizam de tal metodologia na análise histórica. Nesse
sentido, será dado destaque para os aspectos relacionados à subjetividade que essa metodologia
suscita ao historiador.
A partir desta conjuntura, o texto está organizado em três momentos: no primeiro, são
discutidos alguns aspectos relacionados à memória e à História Oral, com destaque para o aspecto
subjetivo que a utilização dessa metodologia nos expõe; na sequência, são apresentadas as
experiências de Arcanjo e Maria do Prado, com ênfase para seus deslocamentos enquanto
trabalhadores rurais sem-terra, além de enfatizar, durante a entrevista, a condição que lhes era
apresentada; por fim, procura-se concluir o texto percebendo em que medida as vivências dos
entrevistados dialogam com a atual conjuntura agrícola brasileira, com destaque para os processos
que regram a organização agrária e fundiária no Brasil.

* Doutorando em História pelo Programa de Pós-Graduação em História – PPGH/PUCRS. Bolsista


CAPES. Orientador: Prof. Dr. Luis Carlos dos Passos Martins.
Quando nos referimos às potencialidades da História Oral, logo em seguida nos são
apresentadas inúmeras questões que podem ser consideradas na aplicação/utilização desta
metodologia no campo histórico. Porém, ao mesmo tempo em que podemos nos referir a
“potencialidades”, também se sobrepõem os limites que ela apresenta ao pesquisador e, nesse ponto,
muitas vezes, acabamos passando, literalmente, por cima de muitos preceitos fundamentais da
História Oral junto à prática histórica.
Assim, não há dúvida de que um dos aspectos basilares da metodologia da História Oral é
o conceito de memória, que aparece enquanto elemento ativo na construção das fontes orais. Mas,
além deste, a subjetividade também deve ser vista como um aspecto fundamental para as questões
que se busca compreender com base na História Oral. Nesta seara, Benito Bisso Schmidt, ao dar
atenção à utilização do termo “subjetividade” junto às fontes orais, salienta que “uma das primeiras
bandeiras da História Oral foi justamente a possibilidade de trazer à tona a subjetividade dos
agentes”, sobretudo “suas emoções e sentimentos, de inserir nas explicações históricas a dimensão
subjetiva dos processos sociais” (SCHMIDT, 2012, p. 84).
A argumentação de Schmidt é que, apesar do enorme potencial que o aspecto subjetivo
apresenta ao pesquisador, por meio da metodologia da História Oral, ainda “estamos mal equipados,
em termos teóricos e metodológicos, para dar conta dessa dimensão”. A crítica do autor recai sobre
a maneira como os historiadores buscam analisar os depoimentos orais, com atenção para “os ditos”
e “os não ditos”, ao passo que se associam tais questões à noção de “trauma”. Ou seja, para Schmidt,
procura-se analisar as emoções do entrevistado e, a partir disso, aplicar o aspecto subjetivo ao que
o depoente relaciona ao descrever sua narrativa.
Evidentemente que Schmidt nos coloca uma questão importante e questionadora sobre a
subjetividade dos depoimentos orais. Assim, o primeiro ponto que devemos considerar é que,
muitas vezes, acabamos por considerar a subjetividade do depoimento oral como algo negativo,
enquanto um problema que precisa ser superado pelo pesquisador/historiador, tanto quando da
realização do depoimento, quanto no momento de análise dessa fonte, já que sua validade estaria
sendo perdida se não fosse considerada tal variável.
Essa forma de aplicar e analisar uma narrativa oral acaba por desarmar um dos seus
principais atributos, o qual, notadamente, é a utilização do aspecto subjetivo para a análise do
depoimento de forma mais ampla, não se restringindo apenas ao relato narrado a partir da
conjuntura exposta ao entrevistador. Isso significa que a subjetividade, como fruto do movimento
produzido pela memória no momento da exposição de sua vivência, aparece como elemento
diferencial na análise histórica e isso significa que ela não só pode trazer um aspecto diferencial à
fonte oral, como também pode fazer desta fonte um elemento ativo na construção de determinado
conhecimento histórico.
Todavia, é preciso que fique claro que só conseguiremos perceber a subjetividade como ato
performativo da memória após muita experiência com fontes orais. Isso significa que dificilmente
conseguimos, em uma primeira experiência com a metodologia da História Oral, identificar as
subjetividades do entrevistado e relacioná-las com os aspectos que lhe são expostos a partir de suas
memórias. Nesse ponto, Schmidt nos empresta mais algumas considerações em relação a esses
aspectos:

O que procuro ressaltar com essas considerações é que a noção de subjetividade não deve
ser pensada, sobretudo para nós historiadores, como uma figura ou uma dimensão a-
história ou trans-histórica, uma essência de todo ser humano, uma matéria alojada no
coração ou na mente dos homens, algo natural e que pode ser resgatado e analisado pelos
praticantes da História Oral; ela é, sim, resultado de múltiplos percursos históricos que
convergiram, não sem tensões, para a fabricação do indivíduo moderno, aquele que
“possui” uma determinada subjetividade (SCHMIDT, 2012, p. 87).

Tais considerações nos instigam a pensar em que medida a subjetividade é vista como um
aspecto isolado, feita somente a partir das emoções do entrevistado, enquanto seria mais
conveniente encará-la como reflexo do que é apresentado ao entrevistado no momento da
entrevista. O ponto que quero chegar é que talvez seja mais interessante observar esse aspecto da
narrativa a partir da conjuntura que é apresentada ao entrevistado, isso significa que os
direcionamentos e subjetividades que, por ventura, possam surgir no transcorrer da entrevista,
estejam muito mais relacionados às conjunturas que lhe são apresentadas pelo mediador da
entrevista.
Evidentemente que algumas subjetividades podem ser elaboradas a partir de “traumas” e
experiências singulares na trajetória do depoente. Entretanto, devemos ter consciência de que a
entrevista é produzida como uma experiência de diálogo e, nessa conjuntura, não é possível nos
colocarmos como sujeitos neutros. Conforme menciona Schmidt, a subjetividade é muito mais
resultado dos “múltiplos percursos históricos” e de suas “tensões” do que uma dimensão deslocada
da história. Neste interim, a figura do pesquisador/historiador exerce função primordial para
entendermos os direcionamentos que o uso dessa metodologia pode nos apresentar (SCHMIDT,
2012, p. 87).
Afora estas questões, a colaboração de Schmidt para o debate envolvendo a subjetividade
nas fontes orais deve ser destacada, principalmente no que se refere à “inocência” com que vemos
esse aspecto. O autor nos alerta sobre o fato de, na qualidade de pesquisadores, não podermos olhar
a subjetividade com a “inocência” que, comumente, conferimos a ela e isso significa,
primordialmente, uma maneira diferente de enxergá-la, sobretudo quando há colocações, nas
indagações, que podem ser consideradas a partir da memória.
Além dessas questões, ao falarmos de memória coletiva, ou simplesmente do caráter
coletivo da memória individual, evidentemente, não podemos deixar de citar as contribuições de
Maurice Halbwachs. Sua forma de perceber a memória, seja a partir do individual, seja a partir da
coletividade, despertaram nas ciências humanas e sociais inúmeros elogios e críticas. Algumas
destas questões podem ser verificadas no trabalho de Regina Weber e Elenita Malta Pereira, as
quais, inicialmente, dão-nos uma noção da maneira como Halbwachs concebe a memória coletiva:

Halbwachs expõe sua teoria sobre a memória, esperando comprovar, através de uma série
de exemplos, o fundo social, coletivo, de praticamente todas as nossas lembranças.
Narrando em primeira pessoa, o autor cita acontecimentos de sua vida particular, tais como
passeios, viagens, visitas, que provocaram recordações posteriores. Entretanto, ao
lembrar-se desses eventos, afirma não estar sozinho, pois em pensamento, situava-se
“neste ou naquele grupo” (WEBER; PEREIRA, 2010, p. 107).

As autoras expõem uma excelente explanação em relação à maneira como Halbwachs


percebe a memória coletiva e, em grande medida, destacam como o autor nos faz notar nossas
lembranças a partir de coletividades. Dessa maneira, em seus exemplos, Halbwachs procura
destacar em que medida suas lembranças possuem um fundo social que as constituem na
coletividade, assim, reflete a respeito das experiências compartilhadas: “em todos esses momentos,
em todas essas circunstâncias, não posso dizer que estava só, que refletia sozinho, já que em
pensamento eu me deslocava de um tal grupo para outro” (HALBWACHS, 1990, p. 26).
Halbwachs se remete, neste ponto, aos grupos sociais com os quais conviveu em
determinado momento de sua vida e que teriam a capacidade de constituir o substrato social de suas
lembranças, numa interação entre o individual e o coletivo da memória. De acordo com Weber e
Pereira, em Halbwachs, para “a permanência da lembrança, é preciso que ainda façamos parte do
grupo. Lembramo-nos dos eventos, enquanto as pessoas envolvidas estejam fazendo parte de nosso
contexto” (WEBER; PEREIRA, 2010, p. 107-108). Mesmo que esses indivíduos não se façam
presentes no momento em que recordamos determinada lembrança à qual os relacionamos, para
Halbwachs, a lembrança somente acontece a partir do vínculo que ainda mantemos com o grupo a
que ela nos remete.
Assim, se nos afastarmos de determinados indivíduos, dos grupos sociais aos quais
fazíamos parte, o esquecimento por desapego do grupo poderá acontecer. Evidentemente que, na
visão de Halbwachs, outros indivíduos podem lembrar-se de acontecimentos que viveram
coletivamente conosco e fazer com que nossa própria lembrança nos pareça estranha (1990). Isto
é, o esquecimento por desapego ao grupo pode acontecer somente em nossa memória, já que não
determinamos o que os outros indivíduos devem lembrar ou esquecer.
Afora estas questões, voltamos nosso olhar às considerações de Weber e Pereira. Segundo
as autoras, em relação às críticas e diálogos que o conceito de memória coletiva de Halbwachs
suscita aos historiadores, Marc Bloch apresenta-se como um dos principais expoentes em relação a
isso. Assim, o “conceito de memória coletiva é questionável para Bloch porque, em muitos casos,
podemos estar usando erroneamente o termo em questões que envolvem apenas a comunicação
entre os indivíduos” (WEBER; PEREIRA, 2010, p. 110).
Bloch refere-se, neste ponto, à maneira rasteira como o referido conceito é tratado,
limitando a discussão em torno da memória em si, ou mesmo, a partir do seu viés coletivo, a
questões que envolvem “apenas a comunicação entre os indivíduos”. Creio que Bloch esteja
referindo-se à forma como os historiadores apropriam-se das considerações de Halbwachs sobre a
coletividade das lembranças individuais, como uma expressão maior e acabada da memória
coletiva. Ou seja, não podemos somente usar tais exemplos como expressão maior da memória
coletiva, enquanto único suporte de nossas considerações. Evidentemente que as considerações de
Halbwachs são importantes e de muita validade para nossas ponderações, mas Bloch nos questiona
em que medida apenas as usamos enquanto referência para nossas análises históricas.
Tais questões têm importância significativa quando colocadas ao lado das vivências
privilegiadas a partir da História Oral. Nesta seara, outro “argumento de Bloch é que a memória,
tanto a coletiva como a individual, não conserva exatamente o passado, ela o reconstrói
incessantemente, partindo do presente”. Para Bloch, a memória acontece muito mais enquanto
“esforço”, já que “só pode ser elaborada no presente, a partir de um passado repensado, re-
significado, ao longo do tempo, por um indivíduo, ou uma coletividade” (WEBER; PEREIRA,
2010, p. 111).
Nesses termos, Bloch nos adverte que para nós, historiadores, é de suma importância
considerar a memória. Todavia, não podemos percebê-la como uma expressão inequívoca do
passado, já que ela “não conserva exatamente o passado”, mas sim, é re-elaborada no presente, com
vistas ao passado re-significado. No presente, quando nos remetemos a determinado fato passado,
olhamo-lo a partir das significações do presente, pois nossa memória não tem o poder de armazenar
o passado tal como aconteceu e nos reproduzi-lo sempre que solicitado. A memória acontece muito
mais enquanto significação. Isto é, quando buscamos determinada lembrança em nossa memória,
reconstruímo-la a partir das conveniências do presente, analisamos as conjunturas do presente e a
expomos da melhor forma possível, para que possamos ouvir, nós e nosso receptor, o que nos for
mais cômodo.
Para finalizar este item, não podemos deixar de mencionar Alessandro Portelli, considerado
um dos principais expoentes da utilização das fontes orais e do diálogo que tais fontes suscitam
com a memória. No Brasil, um dos seus principais artigos é “A filosofia e os fatos: narração,
interpretação e significado nas memórias e nas fontes orais”, que é constantemente relembrado
quando se busca refletir sobre a memória e os significados que podem ser atribuídos aos “fatos”,
sobretudo, quando apresentados a nós, pesquisadores, em trabalhos que se utilizem da metodologia
da História Oral.
Nesta conjuntura, indicamos como Portelli nos adverte sobre a narrativa e a maneira como
devemos perceber a subjetividade:

[...] a motivação para narrar consiste precisamente em expressar o significado da


experiência através dos fatos: recordar e contar já é interpretar. A subjetividade, o trabalho
através do qual as pessoas constroem e atribuem o significado à própria experiência e à
própria identidade, constitui por si mesmo o argumento, o fim mesmo do discurso. Excluir
ou exorcizar a subjetividade como se fosse somente uma fastidiosa interferência na
objetividade factual do testemunho quer dizer, em última instância, torcer o significado
próprio dos fatos narrados (PORTELLI, 1996, p. 60).

Portelli nos expõe aspectos fundamentais para o trabalho com fontes orais junto ao
significado que as memórias podem apresentar quando alçadas à contemporaneidade por meio da
memória. Dessa maneira, considera que narrar nada mais é que expressar o “significado” da
“experiência” por meio “dos fatos”; esse movimento feito pela memória já é uma “interpretação”.
Neste interim, para Portelli, a subjetividade se expressa na maneira como os sujeitos constroem e
significam suas vivências, como os indivíduos elaboram sua própria experiência e identidade. Em
sua visão, não podemos tratar a subjetividade apenas como uma questão “fantasiosa” na busca por
uma suposta “objetividade”, mas sim, nos atentarmos como a memória é reconstruída a partir dos
processos, das conjunturas que cercam as experiências do entrevistado na contemporaneidade.

A partir das questões expostas, em relação aos aspectos metodológicos das fontes orais e
teóricas, em vista da relação estabelecida com a memória, serão apresentadas a seguir algumas
experiências e vivências experimentadas por Arcanjo e Maria do Prado, ao longo de suas vidas
como trabalhadores rurais. Neste aspecto, ganham especial destaque os espaços sociais onde os
entrevistados construíram suas vivências agrícolas, na maioria das vezes, na condição de
empregados temporários e vivendo sob a égide de relações patronais de submissão, na qual as
relações de trabalho estabelecidas é que os faziam detentores de moradia e alimentação.
Conforme foi elencada, anteriormente, a entrevista foi realizada no dia 06 de julho de 2011
como parte do projeto de extensão intitulado: Memórias da terra: modos de viver, lutas e
resistências camponesas no Oeste e Sudoeste do Paraná. Este projeto de extensão tinha como
intenção privilegiar memórias, modos de vida, lutas e resistências pela terra nas regiões Oeste e
Sudoeste do Paraná. A partir dessa conjuntura, no Sudoeste do Paraná procurou-se priorizar as
memórias de remanescentes dos levantes sociais ocorridos em outubro de 1957. Entretanto, o
projeto acabou por absorver outras contradições sociais que se mostraram evidentes nessa região,
sobretudo aquelas ligadas às questões que envolvem a posse da terra e os sujeitos envolvidos nos
modos de vida e nas diferentes vivências agrícolas observadas naquele espaço.
Dada esta conjuntura, o casal Arcanjo e Maria do Prado foi entrevistado por terem
significativas vivências em relação ao trabalho agrícola. Ambos possuem expressivas experiências
agrícolas enquanto arrendatários e empregados temporários. No momento da entrevista, residiam
em uma Vila Rural1 no munícipio de Verê-PR. Arcanjo continua trabalhando como
empregado temporário em propriedades agrícolas da região, e Maria, eventualmente,
acompanha o marido, mas geralmente trabalha nos afazeres domésticos.
Nesse sentido, iniciamos a análise dos depoimentos de Arcanjo e de Maria, salientando a
maneira como expõem suas experiências em relação à agricultura. Assim, sobre as vivências de sua
família, enquanto trabalhador rural, Arcanjo destaca:

É, a turma dava os pedacinhos; até aquela época era a maior parte era mato. Daí eles
pegavam e aonde tinha a turma, dizia lá, tu faz uma casinha, pode pegar aquele pedaço e
plantar. Então, ele ia lá e fazia um ranchinho, lá no meio do mato, e lá eles plantavam e
viviam assim. [...] mas eles plantavam de tudo um pouquinho para se viver (PRADO, A.,
2011, p. 2).

Antes de darmos atenção ao trecho elencado, é preciso salientar que Arcanjo do Prado
quando da realização da entrevista, no ano de 2011, estava com 47 anos e tinha três filhos. Assim,
salienta, em seu depoimento, a maneira como a família de seu pai construiu sua trajetória de vida
em relação à agricultura. Nesse sentido, inicialmente, destaca que seu avô paterno, quando migrou
para a região, “conseguiu ter” um pedaço de terra, mas que, após seu falecimento, o pai de Arcanjo
decidiu vender essa propriedade, pois, de acordo com o entrevistado, seu pai achou que “comprava
mais fácil, só que bem no fim fico sem” a terra.
Conforme fica evidente, a trajetória inicial da família de Arcanjo do Prado se assemelha à
de muitos agricultores que migraram para a região nas décadas de 1940 e 50, com a compra de
posses. Todavia, esse caminho sofre modificações quando o pai de Arcanjo decide desfazer-se da
propriedade que possuía. Isso fez com que sua numerosa família começasse a trabalhar em
propriedades da região, como empregados temporários – os populares “bóias-frias”. Essa passou a
ser uma característica marcante da família de Arcanjo; ele, seu pai e irmãos ficaram conhecidos nas
redondezas como “Os Prados”. Desta maneira, eram reconhecidos como sujeitos bons de serviço,
que trabalhavam por dia ou de agregado, além de ser uma família numerosa, o que fazia com que a
empreitada rendesse mais e satisfizesse aqueles que os contratavam.
Tais questões clareiam muitos aspectos do depoimento de Arcanjo apresentado
anteriormente. Arcanjo destacou que nas roças que improvisavam em terras cedidas por
agricultores, donos de grandes e médias propriedades, aproveitavam algum espaço da sua
propriedade para alocar à família dos “Prados”; assim, até cediam algum espaço para plantar e
construir uma “casinha”. “Dizia: ‘lá tu faz uma casinha, pode pegar aquele pedaço e plantar’”
(PRADO, A., 2011, p. 4). Esse sistema facilitava a mão de obra do empregador, já que tinha sua
força de trabalho próximo de si e a baixo custo. Outro aspecto interessante é que, o fato de residirem

1 O Programa Vilas Rurais do Estado do Paraná foi desenvolvido pelo ex-governo Jaime Lerner no ano de
1995. Entendido e apresentado como um programa de Reforma Agrária para o estado acabou por ocasionar uma
espécie de urbanização do espaço rural, ao considerar que a maioria dos lotes de terra não possuía mais de 0,5
hectares.
em determinada propriedade não excluía a possibilidade dos “Prados” trabalharem por dia para
outros agricultores.
Com vistas a esta conjuntura, Arcanjo salienta de que maneira ele e sua família sobreviviam
na região: “É, fazia empreitadinha, empreitadinha fazia com a turma, que por dia quase não
aguentava o serviço; era muito novo. Empreitava uns pedacinhos pra fazer, empreitava com todo
mundo uns pedacinhos naquela época lá, que fazia a maior parte de enxada e tudo o que é coisinha”
(PRADO, A., 2011, p. 4). O entrevistado nos expõe alguns aspectos sobre suas experiências em
relação à agricultura em sua juventude. Neste sentido, destaca que começou a trabalhar com seu pai
e irmãos com aproximadamente 13, 14 anos e que nessa idade preferiam trabalhar por empreitada,
já que neste sistema o trabalho era feito coletivamente, juntamente aos irmãos, ao considerar que,
nessa forma de trabalho, tinham menos desgaste físico em comparação ao trabalho feito “por dia”.
Na empreitada, era feito um acordo entre o patrão – proprietário agrícola – e os
trabalhadores. Ficava acertado que determinada área – de feijão, por exemplo – deveria ser colhida
até determinado dia e pelo valor acordado. Enquanto que o trabalho por dia, além de gerar certa
pressão do patrão para com o trabalhador, era feito o pagamento individual; cada trabalhador
ganhava pelos dias de trabalho. Por esse motivo, a experiência de Arcanjo em sua juventude está
mais ligada ao trabalho em empreitada, juntamente a seu pai e irmãos.
O contexto apresentado por Arcanjo e Maria refere-se às décadas de 1970, 80 e início
2
de 90. Nesse período, viveram sua infância e juventude como filhos de trabalhadores rurais
sem terra, tanto é que se conheceram dessa forma. As famílias de Maria e Arcanjo
trabalhavam para o mesmo patrão, no município de Verê, e isso fez com que se
aproximassem e, posteriormente, construíssem uma relação juntos. Nesse contexto, Maria
nos expõe alguns aspectos de como se apresentava a organização agrária da região, naquele
período, salientando que seu pai trabalhou para vários proprietários de terra e que, nessas
propriedades, as culturas agrícolas mais presentes eram a soja e o milho, conforme se refere a
uma propriedade em que trabalhavam no município de Dois Vizinhos: “plantava soja,
plantava milho. Ele precisa bastante pião, por que ele destocava bastante [...]”, “Precisava
bastante pião pra ajuntá as raízes que eles destocavam e para limpar as plantas” (PRADO, M.,
2011, p. 5).
O processo de destoca adveio com o avanço da agricultura na região. Isso aconteceu
após a exploração madeireira, que ocorreu de forma massiva nas décadas de 1950 e 60.
Assim, para que a terra pudesse ser plantada, era necessário arrancar os tocos das árvores
derrubadas ou mesmo derrubar algumas parcelas de capoeira remanescentes. Esse processo
de “limpeza” da terra ficou conhecido como “destoca”. Nas regiões Oeste e Sudoeste do
Paraná, esse procedimento é característico da modernização da agricultura, isto é, foi
uma etapa importante para o desenvolvimento de culturas e técnicas agrícolas vinculadas
ao processo de tecnificação do meio rural brasileiro.
2 Arcanjo do Prado nasceu no ano de 1963, enquanto Maria em 1970.
Nesses termos, se, para os agricultores que possuíam propriedade agrícola, esse processo
foi essencial para a modernização e ampliação da produção agrícola, para os trabalhadores rurais
sem terra, ele se apresentou enquanto uma ação que não modificou suas condições de vida no
campo. Ou seja, manteve-os como trabalhadores rurais sem terra e sem perspectiva de mudar de
condição, já que as políticas agrícolas daquele período – sobretudo durante o regime civil militar –
não privilegiavam este grupo social.
Outra consequência desse processo é que, como na região Sudoeste do Paraná não existiam
muitas grandes propriedades, os trabalhadores rurais sem terra, como Arcanjo e Maria, precisavam
se deslocar constantemente em busca de trabalho, situação que os fazia migrar com frequência.
Maria do Prado destaca que, por sua família ser muito pobre, seu pai migrava regularmente em
busca de trabalho e isso afetou diretamente seus estudos, já que estudou apenas até o segundo ano
do primário. A prioridade de sua família era conseguir alguma renda para suprir as primeiras
necessidades com alimentação e vestuário. Isso fez com que Maria começasse a trabalhar muito
jovem como diarista e babá.
As migrações e a necessidade de renda para a família também obrigaram Arcanjo a
abandonar seus estudos; assim, como não possuíam escolarização, Arcanjo e Maria destacam que
foi na agricultura que construíram seu modo de viver. Sobre a realidade recente, enquanto
trabalhadores rurais, Arcanjo destaca os seguintes aspectos: “Ah, eu trabalho por tudo, onde quer,
tudo o que lugar que tivé serviço, eu estou indo, é empreitada, por dia. Hoje, aqui tá na média de 40
[reais] por dia. Plantar, roçar, carpir, plantá fumo, colher” (PRADO, A., 2011, p. 8).
Conforme conseguimos notar, a mudança de Arcanjo e Maria do Prado para a Vila Rural,
onde residiam no momento da entrevista, não modifica suas relações de trabalho, já que continuam
trabalhando como empregados temporários, “por dia” ou por “empreita”, para alguns agricultores
da região. Isso acontece em razão da conjuntura que lhes é apresentada. Apesar de residirem em
uma Vila Rural e terem um lote de terra, não conseguem produzir nesse lote o suficiente para
viverem do campo, tendo que se submeter às relações de trabalho, como empregados, para
conseguirem satisfazer suas necessidades.
Isso corrobora com a tese de que a criação de vilas rurais no Estado do Paraná foi muito
mais um projeto de urbanização do espaço rural, do que propriamente um programa de Reforma
Agrária, como foi divulgado no seu lançamento, na década de 1990. Além disso, os lugares
“estratégicos”, onde estão localizadas essas vilas – próximas a sedes dos municípios ou dos distritos
– confirmam a ideia de que esse projeto serviu apenas para alocar mão de obra barata para o setor
agrícola e agroindustrial.
Conforme se evidenciou no desenvolver do artigo, este texto teve como objetivo primordial
privilegiar as memórias e experiências de vida de Arcanjo e Maria do Prado. Deste modo, por meio
da metodologia da História Oral, foi possível perceber os deslocamentos experimentados por tais
sujeitos ao longo de suas vidas, com destaque para as vivências junto ao espaço rural, sempre como
trabalhadores rurais sem terra. Evidentemente que os deslocamentos experimentados pelos
entrevistados são fruto das conjunturas apresentadas à agricultura brasileira nas últimas décadas.
Creio que tais elementos mereçam maior atenção em outra produção, ao considerar que a realidade
social que encontramos no meio rural brasileiro acontece como reflexo das conjunturas políticas e
econômicas, historicamente impostas a este espaço.
Esse cenário nos mostra que a forma como é abordada a questão agrária e fundiária no
Brasil, em nada se modificou ao longo dos anos. Isso significa que os grupos que estão no poder e
possuem influência política e econômica continuam a ver a questão agrária sob a ótica dos
latifundiários. Mesmo que exista resistência, que grupos de luta pela terra consigam colocar seus
representantes no poder, a bancada ruralista – como são chamados os grandes proprietários e
latifundiários no Congresso Nacional – não permite que nada que venha contra os interesses de seu
grupo ocorra em relação ao meio rural brasileiro.

HALBWACHS, Maurice. A memória coletiva. São Paulo: Vértice, 1990.

ORBEN, Tiago Arcanjo. A Revolta dos Colonos de 1957, interpretações,apropriaçõe s e


memórias. Dissertação (Mestrado em História) – Pontifícia Universidade Católica do Rio
Grande do Sul, Porto Alegre, 2014.

PORTELLI, Alessandro. A filosofia e os fatos. Narração, interpretação e significado nas


memórias e nas fontes orais. In: Tempo. Rio de Janeiro: UFF, v. 1 n. 2, dezembro de 1996.

SCHMIDT, Benito Bisso. Do que falamos quando empregamos o termo “subjetividade” na prática
da História Oral? In: LAVERDI, Robson (Org.). et al. História Oral: desigualdades e
diferenças. Recife: Ed. da UFPE, 2012.

WEBER, Regina; PEREIRA, Elenita Malta. Halbwachs e a memória: contribuições à


história cultural. In: Revista Territórios e Fronteiras. Cuiabá: UFMT, v. 3, n. 1, jan/jun, 2010.
PRADO, Arcanjo do. Entrevista concedida ao Projeto de Pesquisa: Memórias da terra: Modos de
viver lutas e resistências camponesas no Oeste e Sudoeste do Paraná. Por Francieli Pinheiro, Paulo
José Koling e Tiago A. Orben. Perímetro rural. Verê/PR: 06 de julho de 2011, duração: 37min.
53segs.

PRADO, Maria do. Entrevista concedida ao Projeto de Pesquisa: Memórias da terra: Modos de
viver lutas e resistências camponesas no Oeste e Sudoeste do Paraná. Por Francieli Pinheiro, Paulo
José Koling e Tiago A. Orben. Perímetro rural. Verê/PR: 06 de julho de 2011, duração: 37min.
53segs.
Daniel Lopes Saraiva*

Nas últimas décadas, diversas pesquisas foram realizadas a respeito da memória sobre a
repressão, durante o período de vigência do golpe civil-militar instaurado no ano de 1964. Algumas
ações governamentais foram feitas para tratar não apenas do conhecimento da história, como
também da violação dos direitos humanos durante o período ditatorial. Nesse ponto, a Comissão da
Verdade foi a maior dessas ações. Instalada oficialmente em 2012, ouviu mais de uma centena de
vítimas e testemunhas de ações de regimes repressivos entre 1946 e 1988.
Neste artigo, trabalhamos em duas frentes: a primeira é o cerceamento da liberdade de
expressão artística durante o regime civil-militar; a segunda é trabalhar com a memória de três
artistas que tiveram grande relevância nas décadas de governo militar, mas que tiveram suas
memórias a respeito do assunto trabalhadas tardiamente e de forma discreta, e, muitas vezes, não
trabalhadas. São eles Jerry Adriani (1947-2017), Carlos Capinan (1941) e Geraldo Azevedo (1945).
O primeiro artista foi ligado pelos críticos musicais à Jovem Guarda; o segundo à Tropicália e o
terceiro à Nova canção Nordestina. Abordaremos, então, a memória desses artistas em relação à
realidade impingida pelos militares. Foram feitas entrevistas com os cantores supracitados, entre os
anos de 2012 e 2014, usando a Metodologia da História Oral. Essas entrevistas foram amplas, e
abordamos diferentes pontos de suas carreiras. Aqui destacamos apenas a relação dos pesquisados
com o cerceamento e a censura impostas pelo governo civil-miliar instaurado em 1964.
Pretendemos, a partir das memórias, observar um pouco de como cada um dos artistas enfrentava
o momento político, como constroem suas trajetórias, como lidam com a censura e como
conduziam suas carreiras no período; pensando também a memória como fonte importante, mas
não detentora da verdade absoluta.

* Doutorando em História/UDESC. Bolsista Capes. Vinculado ao Laboratório de Imagem e Som.


Segundo a autora Heloísa Buarque, entre 1964 e 1969, o Brasil viveu uma efervescência
cultural Mesmo com um golpe militar direitista, a cultura do país era hegemonicamente esquerdista.
As manifestações culturais não eram impedidas; mas, segundo a autora, sofria um bloqueio em seu
acesso às classes populares. A produção engajada continua sendo referência, entretanto o público
por ela atingido era a classe média universitária. Essa produção engajada – disco, filme, teatro –
já estaria no “sistema” de produção/consumo (HOLLANDA, 1980, p. 30).
Essa efervescência cultural era herdeira direta do Centro Popular de Cultura (CPC) que, no
fim da década de 1950 e começo de 1960, promoveu diversas ações cujo objetivo era levar a arte
ao “povo”. Segundo a historiadora Miliandre Garcia, esse “povo” não seria sinônimo de massa,
como poderíamos pensar, “mas o conjunto de diferentes grupos, camadas e classes sociais que
assumia o compromisso de lutar pela libertação do país e romper com a submissão que caracterizava
todo processo histórico brasileiro” (GARCIA, 2007, p. 43).
Em relação à censura, um marco da pouca presença desta no início do governo recém-
instaurado sobre os setores culturais pode ser observado no Livro Sinal Fechado, de Alberto Moby
da Silva. Ao abordar a censura na música popular, durante os governos autoritários, o autor trabalha
com o período de 1937-1945, que corresponde à ditadura varguista; e de 1969-1978, período de
vigência do AI-5 (Ato Institucional número 5), deixando fora de sua análise os anos iniciais do
regime civil-militar (SILVA, 2008). Isso não significa que o governo deixava de acompanhar os
artistas, pois diversos dossiês foram feitos, nesse período, sobre as suas atividades artísticas.
Entretanto, naquele primeiro momento, não seria adequado perseguir esses agentes culturais.
Primeiro, porque eles faziam parte de um projeto de valorização do nacional. Mesmo sem esse
intuito, os artistas acabavam contribuindo com o governo ao abordar o nosso país em seus trabalhos.
Segundo, porque perseguir uma figura de destaque que não estivesse atrelada à política, poderia
arranhar a imagem do governo recém-instaurado. (NAPOLITANO, 2014, p. 98).
O historiador Marcos Napolitano tenta relativizar o termo ditadura “branda”, mas destaca
que a cultura foi o calcanhar de Aquiles, durante o regime militar, sendo expressão de grandes
impasses e contradições durante o período. Segundo ele, se a direita golpista tinha tecnocratas
brilhantes e magistrados respeitados, faltavam-lhes humanistas. Há de se ressaltar que na década de
1960 houve um aumento de jovens nas universidades. A classe média começava a ter acesso a bens
de consumo, como vitrola, televisão, o que aumentava o mercado de consumo. As obras de esquerda
abasteciam o mercado. O crescimento da televisão e do mercado fonográfico incentiva ainda mais
a produção desses artistas que tinham como seu público a classe média intelectualizada. Para
Napolitano:

Por isso, talvez intuitivamente, talvez propositalmente, os militares não se preocuparam


tanto quando os artistas de esquerda foram para o mercado (editorial, fonográfico,
televisual). Conforme historiografia já apontou, esta “ida ao público” (consumidor de
cultura) preferível à “ida ao povo” (os circuitos culturais ligados aos movimentos sociais,
instituições e partidos de esquerda). A sensação de uma “hegemonia cultural” da esquerda
entre 1964 e 1968 era plausível, pois, junto aos circuitos massivos e mercantis da cultura,
os artistas de esquerda passaram a ser altamente valorizados comercialmente e legitimados
socialmente, o que não é pouco. (NAPOLITANO, 2014, p. 98, grifo do autor).

Para a antropóloga Santuza Cambraia Neves, é nesse período que a ideia de MPB (Música
Popular Brasileira) vai surgindo com uma carga política e estética elaborada, com a simbiose de
vários temas, como sertão, morro e vida do trabalhador. A imagem artística de nosso país surgia da
interação equilibrada de elementos estéticos e poéticos. Música e letra tratavam, então, de diversos
aspectos da nossa cultura (NAVES, 2010, p. 41).
É nesse período que diversos artistas se tornariam referência dentro da sigla MPB, gravando
seus primeiros discos, Nara Leão (1964), Chico Buarque de Holanda (1966), Caetano Veloso
(1967), Gilberto Gil (1967), Geraldo Vandré (1964), dentre outros. Mesmo fazendo parte da classe
média brasileira, esses artistas se tornaram referência ao cantar o cotidiano do povo, ao protestar
contra o governo em canções, em entrevistas e em apresentações. Por ter relativa “liberdade”,
durante os primeiros anos do governo ditatorial, esses artistas tornaram-se uma espécie de porta-
voz de uma parte da sociedade e, por diversas vezes, clamaram por um governo democrático, foram
a passeatas e criaram manifestos. O sucesso alcançado servia a eles como “escudo”, uma vez que
prender um artista popular poderia gerar uma repercussão desagradável com a população, em
especial com a classe média que, no primeiro momento, deu apoio ao governo militar.
Se até a publicação do Ato Institucional Número 5 (AI-5), as manifestações de artistas não
eram consideradas muito perigosas, e, muitas vezes, até contavam com certa permissividade, depois
elas passaram a ser reprimidas com intransigência (GARCIA, 2012, p. 121). Não é de se estranhar
que, após o decreto do AI-5, todos esses artistas citados deixaram o país, seja porque foram
obrigados pelo governo, seja porque estavam sendo ameaçados por ele.
Caetano Veloso e Gilberto Gil foram expulsos do país e se exilaram na Inglaterra. Chico
Buarque partiu para Itália, Nara Leão para França, Geraldo Vandré vai primeiro para o Chile e
depois segue para a temporada. Esses artistas estavam entre os mais citados quando os assuntos
eram a censura e a repressão, durante o período ditatorial. Mas houve outros artistas que sofreram
com a privação da liberdade para compor, gravar, e até mesmo se colocar em determinado grupo.
Paulo César Araújo, no livro Eu Não Sou Cachorro Não, cita que a partir do período do AI-
5, o ato de cantar e compor teria efetivamente tornado caso de polícia. Destaca, também, que artistas
como Chico Buarque, Milton Nascimento e Gonzaguinha são citados em diversos textos, tanto na
mídia, quanto em obras de acadêmicos sobre a mutilação que sofreram. Já artistas como Odair José,
Luiz Ayrão, Waldik Soriano, entre outros, não seriam sequer mencionados nesses textos. Para ele,
isso ocorre porque há uma cristalização no campo da música de uma memória que liga a canção
popular a cantores vinculados à sigla MPB, gênero musical vinculado à classe média, de onde saem
a maior parte dos pesquisadores e jornalistas que escrevem sobre a cultura popular (ARAÚJO,
2010, p. 53).
Concordamos que alguns artistas têm seus papeis cristalizados e recontados em diversos
textos sobre seu cerceamento, durante a ditadura militar. Entretanto, destacamos que mesmo artistas
vinculados à sigla MPB, por diversas vezes, não têm suas trajetórias recontadas e ouvidas.
Buscamos aqui, então, partindo da Metodologia da História Oral remontar a trajetória de três
artistas, e suas vivências sobre o período de repressão no Brasil.

Nascidos em diferentes anos da década de 1940, e em diferentes estados, os artistas Jerry


Adriani, Carlos Capinan e Geraldo Azevedo têm em comum a carreira musical. Todos três já viviam
nos grandes centros culturais, na década de 1960, e já trabalhavam com música.
Jerry Adriani nasceu em 1947 no bairro do Brás em São Paulo. Cantor e compositor, lançou
em 1964 Italianíssimo, seu primeiro Long Play e apresentou o programa A Grande Parada na TV
Tupi. (ALBIM, 2006, p. 6). O artista, em entrevista para a pesquisa, cita que participou poucas vezes
do programa Jovem Guarda, cujos apresentadores eram Roberto Carlos, Erasmo Carlos e
Wandérlea, muito em função de ter seu próprio programa. Jerry Adriani esteve nas paradas de
sucesso, durante a década de 1960. Mesmo não tendo participação frequente no programa, o artista
teve até o fim de sua vida a imagem atrelada ao movimento musical.
Sobre o movimento da Jovem Guarda, Marcelo Fróes afirma que foi uma das nossas mais
férteis vertentes musicais dos anos 1960. Ele situa o período oficial do movimento ou “momento”,
como ele mesmo refere, entre 1965 e 1968. Cita a infinidade de talentos que a Jovem Guarda
semeou e gerou diversas tendências na nossa cena musical. (FRÓES, 2000, p. 13)
O movimento era considerado alienado pela esquerda por falar de temas amenos, enquanto
uma ditadura ia cerceando os direitos políticos e a liberdade de expressão da população.
Carlos Capinan nasceu em 1941, na cidade de Esplanada na Bahia. Mudou para Salvador
no início da década de 1960, onde foi cursar direito. Na faculdade aproximou do Centro Popular de
Cultura (CPC), onde conheceu Tom Zé. Após o golpe civil-militar foi morar em São Paulo, onde
conheceu Gianfrancesco Guarnieri, Geraldo Vandré, Augusto Boal, que o aproximaram do meio
cultural de São Paulo. (ALBIM, 2006, p. 148).
O poeta foi um dos nomes do movimento Tropicalista. O compositor é um dos artistas que
aparece na capa do disco Panis Et Circenscis de 1968, junto com Nara Leão, Gal Gosta, Gilberto
Gil, Caetano Veloso, Torquato Neto, Tom Zé e Os Mutantes. Com duração de menos de dois anos,
o movimento foi cristalizado na história da música brasileira. Para Capinan “O Tropicalismo quis e
conseguiu ser uma chuva de verão que alagasse infinita enquanto durasse” (CALADO, 2004, p.
297)
O movimento que antes era visto com maus olhares pelos defensores da música brasileira
de raiz, sem influências americanas, foi depois incorporado à sigla MPB. Mas, mesmo sendo um
movimento cristalizado na memória e nos trabalhos sobre a música, na maior parte, apenas alguns
de seus participantes são citados. A fala de Capinan, por exemplo, é por muitas vezes colocada
como coadjuvante em algumas pesquisas.
O terceiro artista aqui pesquisado é Geraldo Azevedo, nascido na cidade de Petrolina,
Pernambuco, em 1945. O cantor muda na década de 1960, para Recife, com intuito de fazer
vestibular e estudar. O artista, entretanto, acabou seguindo a carreira artística, e, no fim da década,
foi convidado pela cantora Eliana Pittman para fazer parte de sua banda. A partir disso, Geraldo
Azevedo começou a morar no Rio de Janeiro. (ALBIM, 2006, p. 54-55).
O artista fez parte do que se convencionou chamar de movimento da nova música
nordestina, que ocorreu nas décadas de 1970 e 1980, quando um grande número de artistas oriundos
da região Nordeste chegou ao eixo Rio-São Paulo para dar seguimento às suas carreiras iniciadas
em seus estados natais. Alguns desses artistas são: Fagner, Ednardo, Elba Ramalho, Jorge Mello,
entre outros.

Trabalhamos aqui com a memória dos artistas em relação ao período ditatorial. Foram feitas
perguntas aos três sobre quais problemas eles tiveram com o governo militar e com a censura. Sobre
trabalhar com memória, cabe ressaltar o que afirma Daphne Patai:

Do imenso depósito de memória e reações possíveis evocadas pela situação da entrevista,


o entrevistado seleciona e organiza temas, episódios e lembranças, então comunicando de
maneira particular. Sem dúvida, a memória em si é gerada e estruturada de maneira
específica, em função da oportunidade de contar uma história de vida e das circunstâncias
que isso acontece. Em outro momento de vida, ou diante de outro interlocutor, é provável
que surja uma história bem diferente, com ênfases diferentes. (PATAI, 2010, p. 30).

A ideia deste trabalho é mobilizar diferentes memórias e discursos de artistas que, muitas
vezes, não tiveram a oportunidade de dizer sobre problemas que enfrentaram durante a vigência do
regime autoritário, não pensando a memória como um elemento estático, mas, sim observar como
essas memórias são construídas e recontadas para a pesquisa. Ana Rita Fonteles Duarte ressalta que
muitas memórias sobre o período são cristalizadas e consideradas oficiais, enquanto outras são
relegadas ao esquecimento e acabam sendo apagadas.

As imagens e discursos sobre o período ditatorial pós-64, na história brasileira, são quase
sempre relacionados ao terror e repressão que tomaram a cena pública, calando
movimentos sociais, institucionalizando tortura e os desrespeitos aos direitos civis,
acelerando a opção pela luta armada por diversos grupos de esquerda. E compreensível
que assim seja, posto que, para alcançar a estabilidade institucional, o regime autoritário
usou amplamente da força para coagir e eliminar opositores. Mas na construção das
narrativas sobre o período, alguns grupos ou personagens acabam sendo mitificados e
outros simplesmente desaparecem, sob o mandato das memórias oficiais ou daquelas com
tais recursos para tornarem-se hegemônicas. (DUARTE, 2012, p. 253).

Optamos aqui por citar três momentos da entrevista com os artistas, nos quais eles
relacionam seus problemas e a forma como viam o regime militar. Carlos Capinan ao ser
questionado se teve alguma letra censurada diz:

É provável, mas eu não sei dizer. Agora a letra que mais poderia ser alvo de uma censura,
ela hoje, por exemplo, nos Estados Unidos eles pensam que ela é uma louvação aos
Estados Unidos. Que é Soy Loco por ti América. E, então, ela tinha metáforas e formato
muito pouco traduzível. Eu nunca fui um autor de poemas de protesto. Embora sempre
perto da faixa de política. Sempre meus poemas e minhas canções são muito... mas nunca
nada direto. Nunca nenhum hino de protesto, com aquelas clássicas letras de contestação.
(Capinan, 2014)

Destacamos aqui um trecho da canção Soy Loco por ti America:

El nombre del hombre muerto


Antes que a definitiva
Noite se espalhe em Latino América
El nombre del hombre
Es pueblo, el nombre
Del hombre es pueblo”
(Gilberto Gil e Capinan, 1968).

É evidente que a letra faz a crítica ao regime vigente no Brasil. O homem morto que seria o
povo e a noite que se espalha pela América Latino estão diretamente ligadas aos regimes autoritários
que se instalavam em diversas partes do continente. Talvez, por estar em espanhol, a letra não
passou pelos cortes dos censores. Cabe destaque aqui que, muitas vezes, os censores trabalhavam
quase como parceiros dos artistas nas canções, cortando palavras, frases, trechos e, algumas vezes,
sugerindo substitutos. Muitas vezes, as modificações das canções eram negociadas por artista e
censor, que chegavam a um denominador comum.

Cheguei a ser interrogado no inquérito policial militar daqui da Bahia. Eu vim para uma
seção coletiva e sentei ao lado de vários contemporâneos que não estavam satisfeitos com
o Brasil e sua situação social, econômica e política, e sentei no banco dos réus.
Interrogatório, mas eu nunca fui preso. Sempre tive medo de ser preso e sempre consegui
ficar fora, embora tivesse levado uma surra em Ipanema por conta de uma canção de um
festival em Cataguazes. (Capinan, 2014).

O artista cita o inquérito que participou, e ainda que apanhou de um grupo que se dizia
policial, além do medo de ser preso, perigo constante entre os opositores do governo vigente.
Durante as pesquisas, foi achado no Arquivo Nacional de Brasília um documento que traz um dossiê
de diversos artistas do período, narrando, ano a ano, as ações consideradas subversivas. Entre os
artistas no dossiê temos: Caetano Veloso, Chico Buarque, Gilberto Gil, Nara Leão e Carlos Capinan.
O poeta é citado em duas páginas, e as atividades cobrem o período de 1964 até 1968.
Originário do serviço nacional de informações, agência Rio de Janeiro, ele tem o carimbo de
“confidencial”. No documento são elencados os manifestos assinados por Capinan, sua relação com
o CPC, nomina o poeta de comunista e cita que a música Soy Loco por ti America fazia uma
apologia a Che Guevara e ridicularizava os governantes da América Latina. Fica evidente, então,
que, mesmo que a música não tenha sofrido cortes, posteriormente o governo tomou conhecimento
do seu conteúdo crítico e contestatório. O artista cita no fim da entrevista que, após a pressão da
censura e das ameaças, ele resolve voltar com a família para Salvador, onde acreditava estar mais
seguro.
Enquanto Capinan sofreu ameaças e chegou a ser agredido em uma praia, Geraldo Azevedo
foi preso e torturado por duas vezes. A respeito desse episódio, a primeira citação do ocorrido
ocorreu em entrevista ao programa do Jô Soares no ano de 2011. Na ocasião, o cantor narrou que
foi preso duas vezes, nos anos de 1969 e 1975. O artista narra o acontecimento de maneira bem
parecida para a pesquisa.

E aí aconteceu uma coisa, eu fui preso em 1975. E, durante a prisão, eu me lembro que
eles descobriram que eu tinha uma música em uma novela. Aí na hora da novela
normalmente eles me tiravam da cela – “chama o artista.” E era uma coisa, porque a gente
só ficava encapuzado, nu. E eles ficavam: “Canta para a gente.” Eram os torturadores, e
eu: “que é isso? Que é isso?”, “Canta, porra.” E porrada. E aquela coisa toda. E terminava
cantando timidamente com capuz na cara. Dança. E eu estou falando estas coisas, mas era
muito humilhante. E dança, e era porrada na cara. E aí eu balançava o corpo assim e até
que chegou um cara e falou: “O que é que este cara está fazendo ai? Bota ele na cela.” Era
um cara que tinha uma autoridade maior do que os outros. Numa das torturas, eu estava
sendo torturado e eu e mais dois e um dos caras morreu; o Armando Frutuoso, está até na
lista. Armando Frutuoso morreu nas torturas. Estava eu e o Gildásio (Westin Consenza),
que, na época, era cunhado do Henfil. Eu não conhecia ele, não. Vim a conhecer ele
depois, mas ele estava preso junto comigo por alguma razão; eu não conhecia ele. E então
eu digo que foi importante porque eu tinha este disco que eu gravei. Este primeiro disco
eu já tinha uma concepção do disco todinho na minha cabeça como seria o disco. Com
aquela coisa que eu vi o cara morrer, eu preso pela segunda vez... Se eu não morrer, eu
acho que vão matar a gente todinha aqui. Mas, se eu não morrer, eu ficar preso, eu vou
fazer uma obra na cadeia e quando eu sair eu vou ter muito material. Assim, pensamento
positivo. E aí o terceiro pensamento: se eu for solto eu vou gravar um disco e vou ficar
famoso, porque eu não quero mais ser preso do jeito que eu fui preso. Era sequestrado,
eles pegavam a gente e colocavam um capuz e colocava dentro do carro. Quero ficar igual
Chico Buarque que é intimado. (Geraldo Azevedo, 2014)

O depoimento de Geraldo Azevedo é atordoante. Ele descreve detalhes da tortura, o que nos
faz repensar o discurso de alguns pesquisadores, que dizem que os artistas brasileiros teriam sido
poupados das torturas. O que podemos dizer, e a fala do artista também colabora, é que os artistas
já consagrados teriam menos chance de serem sequestrados e torturados, pois a fama seria uma
forma de resguardar sua integridade física. O artista rememora o momento em que pensou os rumos
da sua carreira, como faria seu disco. O período de prisão serviu, então, como referência para
organizar e traçar seus planos. Ao mesmo tempo, o depoimento traz a esperança de sair vivo e os
horrores enfrentados pelo preso. Agressão, humilhação, medo da morte, todos esses elementos nos
faz repensar o que foi a repressão militar. O artista cita ainda a morte de um preso, evidenciando
que qualquer um dos que ali estavam poderiam ter o mesmo fim.
Diferente do discurso de Geraldo Azevedo e Carlos Capinan, que sentiram a repressão na
pele, com agressões, perseguições ou necessidade de fuga, Jerry Adriani traz outros elementos em
sua entrevista. Ressalta os horrores do período, a necessidade de luta contra o governo golpista,
mas, também destaca a polarização e a forma com que os artistas que não se enquadravam na linha
politizada eram tratados. A fala dele corrobora com a fala de Paulo César Araújo, quando destaca
que cantores de outros gêneros e movimentos sofreram com a repressão, mas isso é pouco
ressaltado.
Independente de reclamar que era uma bandeira deles, que era uma coisa, eu, por exemplo,
não fui chamado nunca para nada, porque eu não participava dos Diretórios Estudantis e
essa coisa toda; era um outro caminho, uma outra coisa. Chegou na minha mão uma vez
um manifesto contra a censura e eu não me neguei a assinar. Eu assinei, e poderia ter sido
preso ali por isso, qualquer coisa então. Eu não me neguei como ser humano, digamos
como cidadão brasileiro. Veja bem, eu enalteço e acho super válido e o Brasil deve muito
a essa galera que realmente “chiou”, reclamou, fez música. Eles merecem todo o apoio,
mas não precisava a carga contra a Jovem Guarda. Fazia uma outra jogada mais
desprendida, mas que não deixava de ser, como É Proibido Fumar, por exemplo, não
deixava de ser um protesto, digamos uma música. (Jerry Adriani, 2012).

Jerry Adriani destaca a importância da música engajada, mas destaca que não era necessária
a carga negativa que a Jovem Guarda sofreu da esquerda por ser considerada alienada e da direita
por ser considerada transgressora em roupas e costumes. Portanto é outro olhar sobre os
acontecimentos da época, o olhar de quem não estava envolvido de forma direta, mas que acabou
sendo condenado pelos dois lados.
O artigo de Ricardo Santhiago ao abordar a História Oral no mundo das artes, nos ajuda
elucidar o entendimento dos discursos e da elaboração das memórias:
Documentos de processo feitos a posteriori, independente da natureza oral ou escrita,
devem ser entendidos como narrativas sobre as quais incidem a percepção do próprio
artista acerca do seu processo de trabalho; acerca do resultado do trabalho, quando
distanciado de quem o gerou; acerca da recepção do trabalho no intervalo de tempo entre
sua produção e o instante de criação do registro da memória. O que o artista relata a
respeito de seu processo criativo deve ser tomado como a representação que ele faz de
uma parte de si mesmo. (SANTHIAGO, 2013, p. 172).

Essa mesma visão de representação pode ser usada para a forma que os artistas constroem
sua relação com o período ditatorial no Brasil e como eles sofreram isso e de que forma reelaboram
essa experiência e trazem em suas entrevistas.

Para Alessandro Portelli, os narradores articulam a memória, avaliação e relatos em


diálogos com entrevistadores que estão tentando reconstruir uma estrutura mais ampla”, fazendo o
convite para que seja focalizado o encontro entre a história e suas vidas, entre o mundo geral e
privado (PORTELLI, 2010, p. 186).
Os três artistas do trabalho são reconhecidos em âmbito nacional e estão acostumados a
serem entrevistados por diferentes tipos de mídia. Ao se dispor a dar o depoimento para uma
entrevista acadêmica é claro que há uma seleção da memória e das respostas, que pode ser feita de
forma voluntária ou não.
Os trechos das entrevistas citados estão dentro de entrevistas mais amplas, que duraram em
média uma hora cada. Algumas vezes, as respostas eram quase iguais às respostas já dadas em
outras entrevistas, mas como historiadores da memória cabe entender o porquê da cristalização de
determinado trecho ou mudança ao comparar respostas anteriores com atuais.
Os três entrevistados tiveram suas vidas marcadas pela ditadura civil-militar. Geraldo
Azevedo foi torturado e preso por duas vezes, além de ter tido letras censuradas. Carlos Capinan
também teve letras censuradas e voltou para Salvador, fugindo de uma possível prisão por parte do
Exército que já o investigava. A memória de Jerry Adriani é que traz uma diferença, uma vez que,
diferentemente dos outros artistas, não teve sua integridade física ameaçada, mas sofreu a patrulha
do “politicamente correto” dos dois lados.
Para concluir, os três depoimentos nos ajudam a observar a pluralidade da memória, além
de observar o depoimento de diferentes artistas sobre o período de cerceamento da liberdade no
país. Considero que, ao abordar a trajetória de diferentes artistas de diferentes grupos sobre um
determinado momento da história do país, é possível iniciar a construção de um mosaico das
diferentes memórias e trajetórias.
ALBIN, Ricardo Cravo. Dicionário Houaiss Ilustrado Música Popular Brasileira. Rio de
Janeiro: Paracatu, 2006.

ARAÚJO, Paulo César. Eu não sou cachorro, não: música popular cafona e ditadura militar. Rio
de Janeiro: Record, 2002.

CALADO, Carlos. Tropicália:a história de uma revolução musical. São Paulo: Ed. 34, 2004.

DUARTE, Ana Rita Fonteles. Jogos da memória: o movimento feminino pela anistia no Ceará
(1976-1979). Fortaleza: INESP; UFC, 2012.

FRÓES, Marcelo. Jovem Guarda em ritmo de aventura. Rio de Janeiro. Ed. 34, 2000.

GARCIA, Miliandre. Do teatro militante à música engajada: a experiência do CPC da UNE


(1958-1964). São Paulo: Ed. Fundação Perseu Abramo, 2007.

_____. Contra a censura, pela cultura: a construção da unidade teatral e a resistência cultural à
ditadura militar no Brasil. ArtCultura (UFU), v. 14, p. 103-121, 2012.

HOLLANDA, Heloísa Buarque de. Impressões de viagem CPC: vanguarda e desbunde


(1960/70). Rio de Janeiro: Rocco, 1980.

NAPOLITANO, Marcos. 1964 - História do Regime Militar Brasileiro. São Paulo: Contexto,
2014.

NAVES, Santuza Cambraia. Canção Popular no Brasil. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira,
2010.

PATAI, Daphne. História Oral, feminismo e política. São Paulo: Letra e Voz, 2010.

PORTELLI, Alessandro. Ensaios de História Oral. São Paulo: Letra e Voz, 2010.

SANTHIGO, Ricardo. História oral e as artes: percursos, possibilidade e desafios. In: História
Oral. v. 16, n.1, 2013.

Entrevista concedida por Jerry Adriani a Daniel Saraiva, na cidade de Itaúna, em 05 de maio de
2012.
Entrevista concedida pelo cantor e compositor Geraldo Azevedo a Daniel Saraiva, na cidade de
Belo Horizonte, em 03 de abril de 2014.

Entrevista concedida pelo compositor José Carlos Capinam a Daniel Saraiva, na cidade de
Salvador, em 26 de maio de 2014.

Arquivo Nacional de Brasília: arquivos da Força Área Brasileira, da Polícia Federal e do Serviço
Nacional de Informações.
Carla Simone Rodeghero

O presente texto é recorte de um trabalho sobre a participação feminina no movimento


estudantil brasileiro do começo dos anos 1960 até a primeira metade da década de 1970, o qual tem
como fonte testemunhos de mulheres, produzidos a partir de entrevistas de História Oral. Sua meta
é ressaltar a participação feminina nas lutas estudantis contra a ditadura, refletir sobre as
particularidades de cada conjuntura específica e dar a ver as possibilidades para a participação
política da juventude e das mulheres.
Essas reflexões foram compartilhadas com colegas oralistas participantes do simpósio
temático História e memórias das ditaduras na América Latina: contribuições da História Oral,
coordenado pela autora e pela professora Alessandra Gasparotto e realizado no âmbito do IX
Encontro Regional Sul de História Oral, no Centro Histórico Cultural da Santa Casa, em Porto
Alegre, em agosto de 2017. Ainda no segundo semestre daquele ano, uma versão mais completa do
trabalho – em coautoria com o professor Vanderlei Machado, do Colégio de Aplicação da UFRGS
– foi publicada na revista História Oral, com o título “Mulheres em movimento: militância
estudantil e luta contra a ditadura” (RODEGHERO; MACHADO, 2017a). Nas páginas que
seguem, serão sumarizadas as reflexões contidas no artigo mencionado, bem como apresentados
alguns elementos novos.
O estudo aqui apresentado dialoga com dois projetos de pesquisa. O primeiro deles é o
projeto Marcas da Memória – História Oral da Anistia no Brasil, coordenado na UFRGS pela
autora, o qual explora entrevistas de História Oral concedidas por pessoas que foram vítimas da
repressão da ditadura e/ou que tiveram militância contra o regime. Durante os anos de 2011 e 2012,
foram realizadas mais de cem entrevistas por equipes sediadas na UFRGS, na UFRJ e na UFPE,
num convênio entre as universidades e a Comissão de Anistia do Ministério da Justiça (ARAÚJO;
MONTENEGRO; RODEGHERO, 2012). Parte dessas entrevistas serviu de base para o presente
texto. O segundo projeto chama-se A História das mulheres que os livros didáticos não contam: as
lutas femininas contra a ditadura militar no Brasil, coordenado pelo professor Vanderlei Machado
e que conta com a participação da autora. O projeto tem se preocupado em analisar as
representações femininas divulgadas pelos livros didáticos de história do Ensino Médio, nas partes
que se referem à ditadura civil-militar (MACHADO; RODEGHERO, 2010 e 2017b).
Entre os resultados do projeto Marcas da Memória podem ser listados um estudo sobre as
concepções das pessoas entrevistadas em torno da Lei de Anistia de 1979 e das políticas mais

* Doutora em História, professora do Departamento e do PPG em História da UFRGS.


recentes ligadas ao conceito de justiça de transição (RODEGHERO, 2012); uma reflexão sobre
como a militância contra a ditadura e a repressão do regime afetavam o ambiente doméstico
(RODEGHERO; BERTÉ, 2012); e ainda, a mencionada análise dos indícios da participação
feminina no movimento estudantil (MACHADO; RODEGHERO, 2017a). O último trabalho,
como se viu acima, dialoga com a pesquisa relativa às representações sobre as mulheres nos livros
didáticos, a qual tem indicado a presença de tímidas referências nos manuais escolares à
participação das mulheres em lutas específicas contra a ditadura, como na campanha pela anistia e
no movimento estudantil (MACHADO; RODEGHERO, 2010 e 2017b). Ao mesmo tempo, foi
constatado o crescimento do número de estudos acadêmicos e de publicações voltadas a um público
mais amplo que tratam dos temas em questão e que exploram a atuação feminina. Uma das
intenções da pesquisa, então, passou a ser a de construir subsídios para tornar mais visível o
protagonismo das mulheres na luta contra a ditadura. Para dar conta desse propósito, os registros
produzidos por meio da História Oral se mostraram bastante fecundos. Isso tornou possível estreitar
o diálogo entre os dois projetos de pesquisa.
Para a elaboração do presente texto, foram utilizadas entrevistas feitas por diferentes
pesquisadore/as ligado/as ao projeto Marcas da Memória, e que dão conta de experiências de
mulheres que viveram em várias cidades brasileiras. Das 20 mulheres entrevistadas pela equipe da
UFRJ, sete se referiram à sua participação no movimento estudantil, tendo sido seis destes relatos
aqui contemplados. Cinco mulheres foram entrevistadas pela equipe da UFRGS, sendo que três
delas indicaram participação nas mobilizações estudantis. O testemunho de uma delas foi
selecionado para análise. Entre as nove mulheres entrevistadas pela equipe da UFPE, cinco
indicaram participação no movimento estudantil e duas delas serão mencionadas aqui. Ou seja, num
total de 104 entrevistas, 34 foram concedidas por mulheres, das quais 15 indicaram participação no
movimento estudantil. Entre elas, nove tiveram suas falas contempladas neste texto. Os critérios
para a seleção foram: contemplar a diversidade das experiências e a atuação em diferentes partes
do país; apresentar experiências distribuídas ao longo do tempo, de modo a contemplar diferentes
conjunturas e, também, respeitar o limite de páginas da publicação. Foram, ainda, utilizados na
confecção do presente texto registros de experiência de três outras mulheres durante a ditadura,
retirados do livro Mulheres e militância: encontros e confrontos durante a ditadura militar de Ingrid
Gianordoli-Nascimento, Zeidi Trindade e Maria de Fátima Santos (2012), o qual também se baseou
em entrevistas.
Tendo em vista que a publicação mais completa dos resultados desse estudo pode ser
encontrada no artigo Mulheres em movimento, optamos por desenvolver aqui dois tópicos: no
primeiro apresentaremos uma síntese das características da militância estudantil nas conjunturas de
1961-1968, ao longo do ano de 1968 e no início dos anos 1970; e, na segunda parte,
atentaremos para constrangimentos específicos relacionados à presença feminina nos meios
estudantis.1

Nos referiremos ao movimento estudantil, ora como “política estudantil”, ora como
“lutas estudantis” ou como “militância estudantil”. Procuraremos captar, a partir das
entrevistas e da produção acadêmica, as dimensões subjetiva e coletiva das ações,
considerando o protagonismo de entidades e de suas lideranças, mas tendo como enfoque
central as formas como as experiências foram vivenciadas e, mais recentemente,
rememoradas por um grupo de mulheres. Por causa desse recorte, a atenção não se
concentrará nas correntes políticas, diretorias e congressos da União Brasileira de
Estudantes Secundaristas (UBES), da União Nacional de Estudantes (UNE) e das entidades
estaduais, metropolitanas ou municipais a elas ligadas, temas já bastante tratados pela
bibliografia pertinente.2 Da mesma forma, não daremos visibilidade ao conjunto da
experiência de vida das mulheres entrevistadas, já que nosso enfoque será sua militância nos
meio estudantis. É importante lembrar que em poucas entrevistas a participação no movimento
estudantil foi o centro dos relatos. Na maioria delas, ocupou apenas os momentos iniciais das
conversas.
Para dar conta da conjuntura que vai do Movimento da Legalidade à decretação do
AI-5, passando pelo golpe de 1964, nos apoiaremos nos relatos de Rita Sipahi, que começou a
estudar Direito em 1960, em Fortaleza; de Victória Grabois que ingressou no curso de
Ciências Sociais no Rio de Janeiro em 1963; de Ana Bursztyn e de Dulce Pandolfi, que
estudaram desde 1967, nos cursos de Farmácia no Rio de Janeiro e de Ciências Sociais no
Recife, respectivamente.
Rita relatou a mobilização dos estudantes universitários em Fortaleza para dar
divulgação à Campanha da Legalidade, encabeçada pelo governador gaúcho Leonel Brizola e
que visava garantir a posse de João Goulart na presidência da República, quando da renúncia
de Jânio Quadros, em agosto de 1961. Na oportunidade, foi constituída a “Rede da
Legalidade”, à qual se juntaram mais de cem emissoras de todo o país, para divulgar os
discursos de Brizola.3 Rita explicou:
A gente pegou as mesas de xadrez, de jogos, de pingue-pongue, e pusemos tudo na rua e
fizemos uma cancela de um lado e do outro impedindo a passagem dos ônibus, e depois
conseguimos liberar uma parte pros ônibus, [risos] eu lembro. Pusemos a Rádio

1 Chamo a atenção para as considerações acerca do uso de entrevistas feitas por outrem, que podem
ser encontradas no artigo Mulheres em movimento (MACHADO; RODEGHERO, 2017a), bem como sobre
obras que tratam da militância feminina contra a ditadura no Brasil.
..
2 Análises que tratam, entre outras coisas, da trajetória da UNE e das correntes políticas que
influenciavam o movimento estudantil podem ser encontradas em: Araujo (2007b) e Martins Filho (2007). Para
a década de 1970, ver: Pellicciotta (2008), Müller (2010), Araujo (2007a), Bortot; Guimaraens (2007), Della
Vecchia (2011) e Dienstmann (2016). .
3 Sobre o tema, ver Grijó (2011).
Farroupilha dando para a rua na renúncia do Jânio [...]. Toda aquela [história da] posse
do Jango e todas aquelas coisas no Sul [...]. (RITA SIPAHI, 2012).4

Na mesma oportunidade, vale lembrar, a União Nacional dos Estudantes (UNE)


transferiu simbolicamente sua sede para o Palácio Piratini, em Porto Alegre, de onde o
governador Leonel Brizola comandava a campanha pela posse de Goulart.5 Em seu relato,
Rita nos informa ainda do engajamento junto ao Diretório Central dos Estudantes (DCE), de
sua universidade, como vice-presidente, bem como da participação em ações regionais e
nacionais da UNE. Ela recordou, entre outras coisas, que “[...] o Conselho da UNE vai para o
Ceará e decreta a greve” (SIPAHI, 2012), referindo-se a uma ação marcante de meados de
1962, que ficou conhecida como a Greve do 1/3. O movimento visava alterar a forma de
composição dos órgãos dirigentes das universidades e teve amplitude nacional (ARAUJO,
2007 b, p. 105).
Em 1964, Rita mudou-se para o Recife. Sobre esse período, ela falou em tom
entusiasmado: “A gente tinha o movimento estudantil todo, forte, tinha o governo
[Miguel] Arraes, que era fantástico. No Recife, eu vivi um momento de muita euforia
política, de muita densidade, de conquistas” (RITA SIPAHI, 2012).
A forma como Rita se referiu ao período de Arraes se aproxima daquela como
Victória Grabois caracterizou, em sua entrevista, o governo Goulart (1961-1964): “[...] a
gente acordava democracia, dormia democracia, almoçava e jantava
democracia” (VICTÓRIA GRABOIS, 2011). Mais especificamente sobre as lutas
estudantis, a entrevistada destacou sua participação na campanha pela retirada do diretor
da faculdade, Eremildo Viana, a suspensão recebida pelos envolvidos e envolvidas e a
revogação da medida pelo próprio presidente João Goulart.6
Ana Bursztyn, por sua vez, frequentava o Colégio de Aplicação no Rio de Janeiro, e
por conta de amigos mais velhos, tinha conhecido o trabalho do Centro Popular de Cultura
(CPC) da UNE: “Eu me lembro muito bem que aprendi as canções do CPC, do Centro
Popular de Cultura da UNE: Cidadão sem compromisso”. (ANA BURSZTYN, 2011).7 A
partir de 1967, iniciou o curso superior de Farmácia. Para aquele momento, seu relato
destacou a importância do diretório acadêmico, visto por ela como uma “brecha”. O mesmo
entusiasmo que captamos nas falas de Rita e de Victória pode ser encontrado na de Ana,
apesar da última estar se referindo a um período posterior ao do golpe de 1964: “[...] a
gente estava em plena ebulição social, cultural, política, e começamos a discutir formas de
organização para tentar resistir à ditadura e resistir ao modelo econômico que estava em
vias de ser implantado” (ANA BURSZTYN, 2011).
Dulce Pandolfi, da mesma forma que Ana, ingressou no curso superior em 1967, mas
relatou em sua entrevista experiências anteriores ao golpe: “[...] foi um momento muito rico e

4
A emissora que esteve à frente da rede foi a Guaíba e não a Farroupilha.
5
Sobre o tema, ver Trindade (2011).
6
O caso do diretor Eremildo Viana é mencionado em Ferreira (2013).
7 Sobre o CPC da UNE, ver Araujo (2007b).
que eu acho que produziu muitos efeitos em mim: esta preocupação com o social, essa
vontade de participar, eu lembro das eleições, das campanhas, como aquilo me mobilizava,
assim como o próprio governo Arraes” (DULCE PANDOLFI, 2011).
Sobre a mobilização estudantil, por sua vez, a entrevistada destacou o ambiente geral de
discussão. Segundo Dulce,

no pátio da escola à noite, acontecia de tudo, reuniões de todos os agrupamentos


partidários. A gente fazia muitas feiras de livros, cineclub, tudo menos estudar. [...] Eram
só atividades extraclasse. Aí eu já fui eleita representante de turma, logo no início.
(DULCE PANDOLFI, 2011).

Ao fazer um balanço do que foi apresentado, constata-se que as experiências localizadas no


período de 1961 a 1964 dialogam com o protagonismo político da UNE e das entidades estudantis
a ela ligadas na luta pelas reformas de base, sua atuação cultural por meio do CPC e outras
iniciativas que colocavam os estudantes em contato com os trabalhadores e com realidades que
extrapolavam os muros das universidades. Nos dias que se seguiram ao golpe, no entanto, a sede
da UNE, na Praia do Flamengo, no Rio de Janeiro, foi incendiada, lideranças foram perseguidas e
presas, muitas entidades estudantis foram fechadas ou receberam interventores, as universidades
foram atingidas por expurgos no corpo docente e por expulsões de estudantes. No final do ano, a
Lei Suplicy impôs nova estrutura para as entidades.
As lembranças das mulheres entrevistadas também se referiram aos anos de 1967 e de 1968.
Depois de um descenso nas possibilidades organizativas e de protesto dos estudantes (universitários
e secundaristas), iniciou-se a “fase áurea” do movimento, marcada pelas lutas contra o projeto de
reforma universitária, contra os acordos MEC-USAID, pela incorporação dos excedentes
(estudantes aprovados no vestibular, mas sem vagas nos cursos), pela melhoria na qualidade do
ensino, pela alimentação estudantil, pelo direito de funcionamento dos grêmios etc. É de 1967 o
Decreto nº 228, que serviu de base para a dissolução de entidades que promovessem manifestações
políticas. A conjugação entre as pautas estudantis mais específicas e as demandas mais amplas
contra a ditadura, a repressão, a censura e a violência do regime marcaram o ano de 1968,
momento em que a revolta jovem explodiu em diversos lugares do mundo.8
Conforme nos revelaram as entrevistadas, atividades recreativas, culturais e políticas
mesclavam-se no dia a dia do movimento estudantil, para o qual as entidades ainda eram de
fundamental importância. Também é perceptível a mescla entre as preocupações específicas do
campo da educação e aquelas de ordem mais geral, relativas ao apoio a projetos políticos de
esquerda, antes do golpe (menções a Brizola, Goulart e Arraes) e depois dele, com a busca de
alternativas ao regime imposto. Não desenvolveremos esse tópico, mas boa parte das mulheres

8 Sobre esse contexto, ver Ridenti (2009).


entrevistadas concluiu sua participação no movimento estudantil com a adesão ou o apoio a alguma
organização clandestina de esquerda. Trajetórias parecidas são analisadas nos estudos de Elizabeth
F. Xavier Ferreira (1996), Mulheres, militância e memória; de Ana Maria Colling (1997), A
resistência da mulher à ditadura militar no Brasil, e de Ingrid Gianordoli-Nascimento, Zeidi
Trindade e Maria de Fátima Santos (2012), Mulheres e militância: encontros e confrontos durante
a ditadura militar.
O ano de 1968 foi de intensa atuação estudantil e de repressão do regime contra as ações do
movimento. Quatro exemplos da concomitância entre o ápice da luta e o reforço da repressão foram
a morte do secundarista Edson Luís, em março, no Rio de Janeiro; a invasão da UnB, em agosto; o
incêndio da Faculdade de Filosofia da USP, quando do confronto de seus estudantes com os da
Universidade Mackenzie, em outubro; e, no mesmo mês, a prisão dos/as participantes do 30º
Congresso Nacional da UNE, em Ibiúna, no interior de São Paulo. Os casos de Edson Luís e do
congresso foram comentados nas entrevistas selecionadas para o presente texto.
Lilia Gondin, que teve intensa atuação no movimento estudantil secundarista no Recife,
avaliou os efeitos da morte – por ação policial – do estudante carioca, num protesto em frente ao
restaurante Calabouço, no Rio de Janeiro, ao comentar a Passeata dos Cem Mil, ocorrida alguns
dias depois na mesma cidade. Segundo Lilia, “[...] a população começou a ver que podia ser
qualquer um, não era apenas um comunista [...]. Foi um filho de qualquer pessoa, podia ser meu
filho” (LILIA MARIA PINTO GONDIM, 2011).
Sobre o Congresso da UNE em Ibiúna, em outubro de 1968, Ana Burzstyn comentou como
parecia surreal fazer o evento na clandestinidade:

A gente já foi para o interior e tinha que saltar no meio do nada, num caminhão com uma
lona preta em cima, a gente saltou no meio de duas estradinhas [...]. Tinha uma casinha
onde um monte de gente entrou lá [...]. Aquilo tudo para mim era meio surreal: eu não
estava fazendo guerrilha! Eu estava indo para um congresso estudantil! [risos].

A entrevistada foi levada para o Presídio Tiradentes, junto com centenas de colegas
participantes do evento. Dois meses depois foi decretado o Ato Institucional n. 5. Ele concedia
poderes ao presidente da República para fechar o Congresso Nacional, cassar mandatos eletivos,
suspender direitos políticos dos cidadãos, demitir funcionários públicos, decretar estado de sítio,
proibir que o Judiciário apreciasse recursos impetrados por pessoas acusadas com base no ato,
suspender a garantia de habeas corpus em casos de crimes contra a segurança nacional. No que diz
respeito ao movimento estudantil, é importante lembrar que o recurso do habeas corpus era uma
segurança nos casos de prisão – bastante comuns – que deixou de existir depois de 13 de dezembro
de 1968.
Uma das entrevistadas, Vera Vital Brasil, que ingressou no curso de Farmácia, no Rio de
Janeiro, em 1967, assim se manifestou sobre o AI-5:
[...] foi para mim de grande impacto porque mudou, mudou... O movimento estudantil,
que já sofria repressão, a partir de 1968 passou a sofrer uma grande repressão, as lideranças
estudantis passaram a adotar medidas de clandestinidade (VERA VITAL BRASIL, 2011).

Da mesma forma, relatou Nilce Cardoso. Ela havia acabado de concluir o curso de Física
na USP, tendo morado no CRUSP (Casa do Estudante, daquela universidade). Em 17 de
dezembro de 1968, o CRUSP foi invadido por homens do Exército e da Polícia Militar.9 A
entrevistada contou que “todo mundo que estava no CRUSP foi preso” (NILCE CARDOSO,
2011). Havia uma “lista de todo mundo, e aí todo mundo estava sendo procurado”, inclusive
ela (NILCE CARDOSO, 2011). A respeito do impacto causado pelo AI-5, a entrevistada
avaliou: “A ditadura estava tomando outro aspecto, ditatorial mesmo, mais forte, ir atrás dos
militantes. Então eu, nesse momento, que acontece? Eu sou empurrada, eu acho, eu fui
empurrada pela ditadura, para uma clandestinidade” (NILCE CARDOSO, 2011).
As últimas entrevistas mencionadas ajudam a compor o quadro marcado pela intensa
repressão, pela inviabilidade de dar continuidade às ações levadas adiante até então, pelo
movimento estudantil como reuniões, passeatas, congressos, reorganização das entidades, etc. Os
relatos indicam que o caminho que se abriu a estas mulheres e a muitas lideranças estudantis foi
majoritariamente o da clandestinidade. A partir desses indícios, teríamos a fase áurea do movimento
estudantil sendo substituída pela fase do descenso, por uma espécie de “deserto”, como indicou a
entrevistada apresentada sob o pseudônimo Renata, na obra Mulheres e militância
(GIADORNOLI-NASCIMENTO; TRINDADE; SANTOS, 2012).
Ainda que esta afirmação possa se sustentar em boa parte das entrevistas analisadas e na
bibliografia consultada, um olhar mais atento permite captar outras estratégias colocadas em prática
por estudantes que chegaram às universidades brasileiras, no período que ficou conhecido como
“anos de chumbo”. Queremos, nesse ponto, mostrar que as trajetórias de outras mulheres – um
pouco mais novas que as que conhecemos acima – nos trazem indícios interessantes sobre as
maneiras de fazer política estudantil após o AI-5. Faremos, dessa forma, a caracterização do último
período que nos interessa, aquele do início dos anos 1970.
Do conjunto das entrevistas do projeto Marcas da Memória, apenas a concedida por Heloísa
Greco traz elementos sobre essa conjuntura. Heloísa recuperou, entre outras questões, sua trajetória
como estudante universitária entre 1970 e 1975, no curso de História, na Universidade Federal de
Minas Gerais:

Essa primeira metade da década de 1970, o movimento estudantil tinha características


muito peculiares, que não tinha mais aquela luminosidade que a geração imediatamente
anterior teve, que foi o pessoal de 1968 nas ruas, e tudo. E também não foi aquela

9 Sobre a repressão na USP, ver Silva e Visotsky (2017).


militância aberta, que depois da geração imediatamente posterior, a quem a gente deve a
reconstrução [da UNE]. (HELOÍSA GRECO, 2011).

Segundo a entrevistada, sua geração teve o papel de “reconstruir as entidades de base”,


como os centros de estudos, os diretórios acadêmicos e o DCE, bem como de investir na “luta para
a modificação daquele currículo que era absolutamente engessado” e de promover o enfrentamento
com “toda a burocracia universitária, desde o reitor, passando pela direção da escola, até
professores”, poucos dos quais apareciam como parceiros dos estudantes. No que se refere às
discussões sobre a reconstrução da UNE, Heloísa contou: “[...] eram absolutamente clandestinas.
Um negócio assim, complicado” (HELOÍSA GRECO, 2011). Ela concluiu lembrando que coube à
geração posterior à sua assumir a reconstrução da UNE, o que de fato aconteceu em 1979.
Do livro Mulheres e militância, resgatamos excertos das entrevistas concedidas por
mulheres identificadas pelos pseudônimos de Raquel e Rita (GIANORDOLI-NASCIMENTO;
TRINDADE; SANTOS, 2012, p. 155). Raquel, nascida num município do interior do Espírito
Santo, mudou-se para Vitória para fazer um curso pré-vestibular e ingressou na universidade em
1970. Em seu relato, destacou o papel do diretório acadêmico como “espaço de socialização dos
alunos” e a politização resultante da publicação de jornais estudantis (GIANORDOLI-
NASCIMENTO; TRINDADE; SANTOS, 2012, p. 155). Segundo as autoras de Mulheres e
militância, “foi a partir dos jornais que Raquel começou a se identificar com a militância política
presente no meio universitário” (GIANORDOLI-NASCIMENTO; TRINDADE; SANTOS, 2012,
p. 155). As reuniões de estudantes e os grupos de estudo costumavam acontecer em um bar que era
muito frequentado pela juventude da época, posto que, de acordo com o relato da entrevistada, “se
corria risco em estar em grupo dentro da universidade” (GIANORDOLI-NASCIMENTO;
TRINDADE; SANTOS, 2012, p. 155). Ações clandestinas não mais restritas ao espaço
universitário, como as pichações de “Abaixo a ditadura”, passaram a ser realizadas. Ao mesmo
tempo, Raquel relatou que dirigentes do movimento estudantil começaram a ser presos. Ela e o
namorado – que era uma liderança – fugiram para o Rio de Janeiro e passaram a viver na
clandestinidade até o momento da prisão de ambos.
Rita, assim como Raquel, mudou-se do interior capixaba para Vitória ao ingressar na
universidade, em 1970. No relato sobre sua vida acadêmica, destacou o centro acadêmico, as peças
encenadas pelos estudantes, os jogos universitários e a presença policial nas manifestações na
universidade. Ela também se referiu – da mesma forma que Raquel – ao fato de sua militância
estudantil tê-la aproximado de um partido clandestino, no caso, o Partido Comunista do Brasil
(PCdoB).
Nos dois relatos acima e também no de Heloísa Greco mantém-se a menção à repressão e
também às ações clandestinas, mas o que nos chama a atenção são os indícios das atividades que
estavam sendo levadas adiante pelo movimento estudantil: Raquel, em sua entrevista, falou do
papel do diretório acadêmico na “socialização dos estudantes” e se referiu à confecção de jornais,
à leitura de textos políticos e à participação em grupos de estudo; Rita mencionou peças de teatro,
jogos universitários, polícia infiltrada na universidade, contato com organização clandestina por
meio de um colega. Heloísa, por sua vez, lembrou a importância da reconstrução das entidades de
base e dos centros de estudos, a luta pela modificação do currículo e o enfrentamento da burocracia
universitária. Ou seja, temos aqui vários indícios de que depois do AI-5, o movimento estudantil
não deixou de existir para só ser retomado no final dos anos 1970.
Sobre a militância estudantil nos anos 1970, Mirza Pellicciotta (2008, p. 181) lembra que o
enfrentamento ao regime se deu “na redefinição dos currículos, na recusa do caráter técnico e
especializado de conhecimento, na repolitização do espaço acadêmico e na retomada de uma
perspectiva social da Universidade”. Para a autora, na primeira metade da década, as
movimentações se deram em torno das condições de ensino; a partir de 1975, o esforço foi voltado
à recomposição das estruturas de representação estudantil, o que teve seu coroamento na
reorganização das Uniões Estaduais de Estudantes e, em 1979, da UNE (PELLICCIOTTA, 2008,
p. 189).
Angélica Müller (2016), por sua vez, explica que no contexto pós-AI-5, o “movimento
estudantil universitário organizou ações, que conviviam com a avaliação da derrota da luta armada
e com as novas configurações do ensino superior, resultantes da implantação da reforma
universitária. A militância passou a se dar em organizações pequenas, dentro de cada universidade
e “sem a concentração física de massa” (MÜLLER, 2016, p. 5). A autora destaca os encontros de
cada curso, as atividades culturais, como “grupos de teatro, dança, shows, campeonatos esportivos
e cineclubes proliferaram nas universidades do país” (MÜLLER, 2016, p. 11). A produção de
jornais, murais, cartazes e panfletos também foi estratégia de recrutamento e de conscientização
estudantil. Em alguns momentos pontuais, ainda segundo a autora, as estratégias de protesto mais
aberto se fizeram presentes, como nas reações à visita de Nelson Rockfeller ao Brasil, em 1969, e
no culto ecumênico depois do assassinato do estudante de Geologia da USP, Marco
Aurélio Vannucchi Leme, em 1973.10

Como se viu acima, a partir de um mosaico de relatos femininos foi possível reconstituir
momentos marcantes e diferenciados das lutas estudantis, desde o início dos anos 1960. Quisemos
reforçar as práticas relativas ao período posterior ao AI-5, dando valor às experiências vivenciadas
por outro/as protagonistas que não apenas os/as que se engajaram em organizações clandestinas a
partir de dezembro de 1968 e, dessa forma, dialogamos com estudos como os de Piliciotta e de

10 Não trataremos aqui do período do final dos anos 1970, caracterizado nos meios estudantis pela retomada das
manifestações de rua, pela reorganização das entidades, pela refundação da UNE (1979) e pelo intenso
envolvimento dos estudantes nos movimentos sociais.
Müller que apresentam preocupações correlatas às nossas. Ao mesmo tempo em que quisemos
mostrar que a partir de relatos femininos pode-se chegar ao entendimento de processos mais amplos
– ao contrário de uma história centrada nos registros das entidades e das lideranças majoritariamente
masculinas – quisemos captar os significados da militância estudantil nas trajetórias das mulheres
entrevistadas. A esse último ponto, daremos mais substância nos próximos parágrafos.
Sustentamos que a militância política contra a ditadura (e no meio estudantil, neste caso)
interferiu – em termos individuais e coletivos – na forma como as mulheres vivenciaram ou
romperam os papéis de gênero do seu tempo. Alguns indícios disso permearam entrevistas já
apresentadas e alguns outros serão aqui. Rita Sipahi mencionou a entrada no movimento estudantil
como a possibilidade de romper com certo tipo de proteção que recebia da família e que considerava
repressora; Ana Bursztyn se referiu a temas que eram discutidos em sua época de universitária
(como sexo antes do casamento, uso de pílula anticoncepcional, o melhor momento para sair de
casa); Vera Vital Brasil avaliou que a entrada na universidade e no movimento estudantil permitiram
romper com uma “maneira acrítica de viver”. Além disso, ao longo do conjunto dos relatos
estudados, foi possível vislumbrar situações de socialização das quais essas moças participaram,
seja o contato com certas leituras, com atividades culturais, com moradias coletivas, a possibilidade
de viajar (para participar de um congresso, por exemplo) etc.
Duas entrevistadas no projeto Marcas da Memória, uma com militância no movimento
secundarista e outra no universitário, trouxeram elementos ricos para a discussão. A conquista de
autonomia e a descoberta de um mundo diferente daquele de casa aparecem no relato da
pernambucana Lilia Gondin (2011). Para cursar o Científico – porque queria estudar Medicina –
em 1966, saiu da escola católica onde estudava em Olinda e passou a frequentar o Colégio Estadual
do Recife, que era público. Começou a andar de ônibus de linha, “a ter contato com a realidade de
verdade”; a “ter contato mais de perto, realmente, com a vida, de como é, o que acontece (...) e
também comecei a ter contato com o pessoal do Grêmio Estudantil”. (LILIA GONDIN, 2011).
Logo passou a integrar a diretoria do Grêmio, o que implicava, por exemplo, em entrar nas salas de
aula para discutir temas do interesse dos estudantes. Aos poucos, começou a participar de reuniões
fora da escola, com colegas ligados à Ação Popular. Quando a família descobriu que a jovem estava
envolvida no movimento estudantil e que tinha sido aberto um inquérito para investigar todo o
pessoal do Grêmio, seus movimentos começaram a ser controlados. “Me proibiram de sair de casa”,
contou a entrevistada. Como reação, Lilia fugiu e foi para a casa de uma amiga. A ruptura brusca
teve efeito positivo, pois o pai foi procurá-la, pediu que voltasse para casa e aceitou sua atuação
política. Na entrevista, o fato foi assim avaliado: “e aí, me liberei em casa. Dei meu grito de
independência em casa” (LILIA GONDIN, 2011). Um pouco mais tarde, Lilia foi presa, ao
participar de uma pichação contra a presença de Nelson Rockfeller no Brasil. No DOPS, relatou
não ter sofrido tortura física, apenas psicológica, “agressão tipo palavrões, chamavam a gente de
prostitutas [...]. Perguntavam pelos homens da gente [...]” (LILIA GONDIN, 2011). Numa segunda
prisão – na ocasião, Lilia estava grávida – foi sequestrada na rua e levada ao DOI-CODI. A cena
foi assim descrita na entrevista: “quando você chega lá, eles tiram toda a sua roupa, deixam você
só de calcinha, chão molhado, fio aqui, fio aqui, fio aqui [...], máquina de choque, [...] muita
porrada” (LILIA GONDIN, 2011). Naquela situação, teve dúvida se devia ou não informar que
estava grávida. Se revelasse, os policiais poderiam força-la a abortar ou poderiam estuprá-la. Foram
três dias de “pancada e interrogatório, pancada e interrogatório, pancada e interrogatório” (LILIA
GONDIN, 2011).
Socorro Ferraz, que vivia em Caruaru, quis fazer vestibular em Recife, onde seu irmão já
estudava, na metade dos anos 1960 (FERRAZ, 2011). Logo depois de sua chegada à capital
pernambucana, ela se aproximou da Juventude Comunista. Lembrou, em sua entrevista, que o PCB
organizava células nas universidades, nos colégios, entre operários; que participou de discussões
sobre a situação geral do país, além das questões internas do âmbito estudantil, como os acordos
MEC-USAID; que havia alianças sempre tensas entre os comunistas e os cristãos e também
contatos e disputas com o grupo liderado por Francisco Julião, que estava à frente das Ligas
Camponesas. O pai de Socorro não gostou da ideia da mudança dela para a cidade grande porque
“uma filha sair de casa para vir estudar no Recife sozinha significava que ele estava desmoralizado”
(SOCORRO FERRAZ, 2011). No “mundo do Sertão”, segundo Socorro, “os pais tinham o poder
de vida e morte sobre os filhos, de dizer do destino, de tudo sobre os filhos. Eu tive toda a minha
adolescência sob esse poder”.
Depois que a filha passou no vestibular, o pai acabou ficando orgulhoso com o feito, mas
houve um novo risco aos planos da moça, que queria morar na “casa da universitária” e não com
uma tia. As desconfianças do pai foram aplacadas quando ele viu que a presidente da casa era filha
de um conhecido seu, de uma “família muito tradicional”. Segundo Socorro, o pai percebeu “que
isso não era nenhuma forma das mulheres quererem se tornar independentes para fazer o que
quisesse sexualmente, moralmente” (SOCORRO FERRAZ, 2011). Viu que o ambiente era
reservado só às mulheres e que os rapazes não entravam na casa. A entrevistada conseguiu, assim,
morar na casa da universitária, experiência que, muitos anos mais tarde, avaliou como sendo crucial
para sua vida: “aí começou realmente a vida como pessoa, como indivíduo, entendeu? Como pessoa
que pensa, que estuda, que pode ter a sua liberdade de ir, de voltar” (SOCORRO FERRAZ, 2011).
A entrada no movimento estudantil, nos dois casos, foi a porta para a conquista da
autonomia das jovens mulheres, rompendo as barreiras que as impediam de viver a vida “como
pessoa, como indivíduo”. Os enfrentamentos da luta estudantil contribuíram para o
amadurecimento pessoal e para desafiar a repressão não apenas da ditadura, mas também aquela
que vinha de dentro da própria casa. Essa repressão se relacionava, entre outras coisas, com os
papéis admissíveis para mulheres e para homens, para jovens e para adultos. O contato com a
repressão da ditadura, no relato de Lilia, por sua vez, indica as expectativas em relação aos mesmos
papéis. Numa das prisões, encontramos a insinuação de que as jovens presas fossem prostitutas. Na
outra, a entrevistada relata o medo de que a condição de grávida fosse utilizada pelos algozes como
fator adicional para a sua punição. Tais situações dialogam com a literatura que trata
das particularidades da resistência feminina à ditadura.11

Nas páginas anteriores, construímos uma narrativa sobre as idas e vindas, pautas, desafios
e dificuldades do movimento estudantil e da luta contra a ditadura a partir de depoimentos
femininos. Com isso, quisemos sustentar a presença e o protagonismo das mulheres neste universo,
os quais não têm sido suficientemente levados em conta em estudos que se baseiam nos registros
produzidos pelas entidades, os quais enfatizam a atuação das diretorias (nas quais as mulheres
tiveram pouco espaço), as correntes políticas e seus documentos, as disputas durante os congressos,
a produção de jornais e panfletos e de atividades culturais.
Ao mesmo tempo, quisemos marcar as diferentes possibilidades de engajamento estudantil
nas décadas de 1960 e 1970: uma efervescência política muito grande até o golpe; a continuidade
da atuação política entre estudantes até 1968, ano que comportou uma “militância aberta” contra a
ditadura; o reforço da repressão ao longo de 1968 e o seu coroamento com o AI-5. Resgatamos,
ainda, o choque representado pela medida, com o fechamento das possibilidades de crítica ao
regime e de trabalho de massas; buscamos, finalmente, indícios do que foi possível continuar
fazendo no movimento estudantil no começo dos anos 1970. Nesse momento, uma nova geração
adentrava a universidade enquanto parte da anterior estava envolvida com a luta armada e sendo
alvo da repressão.
Frente ao exposto, queremos defender a fecundidade da História Oral para captar
experiências diversificadas no que toca ao engajamento nas lutas estudantis, bem como para
sustentar o argumento de que na reconstituição do movimento estudantil, certos protagonistas – as
mulheres – e certas ações – aquelas mais circunscritas ao ambiente universitário, levadas adiante
no contexto pós-AI-5 – ainda não receberam a devida visibilidade e valorização.

ARAUJO, Maria Paula. Lutas democráticas contra a ditadura. In: FERREIRA, Jorge; REIS
FILHO, Daniel Aarão (Org.). Revolução e democracia (1964-...). Rio de Janeiro: Civilização
Brasileira, 2007a. (As Esquerdas no Brasil, 3). p. 231-253.

11Sobre o tema, ver PEDRO, Joana Maria; WOLFF, Cristina (Org..). Gênero, feminismos e ditaduras no Cone
Sul. Florianópolis: Editora Mulheres, 2010; JOFFILY, Mariana. Violências sexuais nas ditaduras militares
latino-americanas: quem quer saber? Sur: Revista Internacional de Direitos Humanos, v. V, p. 1, 2016.
_____. Memórias estudantis: da fundação da UNE aos nossos dias. Rio de Janeiro: Relume-
Dumará; Fundação Roberto Marinho, 2007b.

ARAÚJO, Maria Paula; MONTENEGRO, Antônio T.; RODEGHERO, Carla S. (Org.). Marcas
da Memória: História Oral da Anistia no Brasil. Recife: Ed. da UFPE, 2012.

BORTOT, Ivanir José; GUIMARAENS, Rafael. Abaixo a repressão: movimento estudantil e as


liberdades democráticas. Porto Alegre: Libretos, 2007.

COLLING, Ana Maria. A resistência da mulher à ditadura militar no Brasil. Rio de Janeiro:
Record; Rosa dos Tempos, 1997.

DELLA VECCHIA, Renato da Silva. O ressurgimento do movimento estudantil universitário


gaúcho no período da redemocratização: as tendências estudantis e seu papel (1977/1985). Tese
(Doutorado em Ciência Política) – UFRGS, Porto Alegre, RS, 2011.

DIENSTMANN, Gabriel. A luta pela democracia em foco: fotojornalismo e movimentos sociais


no Rio Grande do Sul (1977-1979). Dissertação (Mestrado em História) – UFRGS, Porto Alegre,
RS, 2016.

FERREIRA, Elizabeth F. Xavier. Mulheres, militância e memória. Rio de Janeiro: Ed. da FGV,
1996.

FERREIRA, Marieta de Moraes. O lado escuro da força: a ditadura militar e o curso de


História da Faculdade Nacional de Filosofia da Universidade do Brasil (ENFi/UB). História
da Historiografia, Ouro Preto, n. 11, p. 45-64, abr. 2013.

GIANORDOLI-NASCIMENTO, Ingrid Faria; TRINDADE, Zeidi Araujo; SANTOS, Maria de


Fátima de Souza. Mulheres e militância: encontros e confrontos durante a ditadura militar. Belo
Horizonte: Ed. da UFMG, 2012.

GRIJÓ, Luiz Alberto. A “Legalidade” na imprensa. In: NOLL, Maria Izabel et al. O Movimento
da Legalidade: Assembleia Legislativa e mobilização política. Porto Alegre: Webprint, 2011. p.
29-60.

JOFFILY, Mariana. Violências sexuais nas ditaduras militares latino-americanas: quem quer
saber? Sur: Revista Internacional de Direitos Humanos, v. 13, n. 24, p. 165-176, dez. 2016.

LIBRENZA, Isadora R. História oral da militância feminina no movimento estudantil: a trajetória


de entrevistadas do Projeto Marcas da Memória (1964-1969). Trabalho de Conclusão de Curso
(Licenciatura em História) – UFRGS, Porto Alegre, RS, 2014.
MACHADO, Vanderlei; RODEGHERO, Carla Simone. A história recente nos livros didáticos de
história: a ditadura militar e a questão da anistia no Brasil. Cadernos do Aplicação, Porto Alegre,
v. 23, n. 1, p. 165-198, 2010.

_____. Mulheres em movimento: militância estudantil e luta contra a ditadura. In: História Oral,
Rio de Janeiro, vol. 20, n. 2, jul.-dez., 2017a, p. 33-57.

_____. Os livros didáticos e a história da participação das mulheres no movimento estudantil.


Fonteiras: Revista Catarinense de História, Florianópolis, n. 29, p. 28-49, 2017b.

MARTINS FILHO, José Roberto. O movimento estudantil dos anos 1960. In: FERREIRA, Jorge;
REIS FILHO, Daniel Aarão (Org.). Revolução e democracia (1964-...). Rio de Janeiro:
Civilização Brasileira, 2007. (As Esquerdas no Brasil, 3). p. 183-197.

MÜLLER, Angélica. A resistência do movimento estudantil brasileiro à ditadura militar e a luta


pelas liberdades democráticas nos anos 1970. Caderno de Estudos em Sociologia Política, v. 1, n.
1, p. 30-54, 2016.

_____. A resistência do movimento estudantil brasileiro contra o regime ditatorial e o retorno da


UNE à cena pública (1969-1979). Tese (Doutorado em História) – USP, São Paulo, SP, 2010.

_____. O Congresso de Ibiúna: uma narrativa a partir da memória dos atores. In: FICO,
Carlos; ARAUJO, Maria Paula (Org.). 1968 – 40 anos depois: história e memória. Rio de
Janeiro: 7Letras, 2009. p. 63-77.

PEDRO, Joana Maria; WOLFF, Cristina (Org.). Gênero, feminismos e ditaduras no Cone Sul.
Florianópolis: Mulheres, 2010

PELLICCIOTTA, Mirza Maria Baffi. Mobilizações estudantis nos anos 1070. In: GROPPO, Luís
Antonio; ZAIDAN FILHO, Michel; MACHADO, Otávio Luiz (Org.). Juventude e movimento
estudantil: ontem e hoje. Recife: Ed. da UFPE, 2008. v. 1, p. 179-213.

PORTELLI, Alessandro. O que faz a história oral diferente. Projeto História, São Paulo, n.
14, p. 25-39, fev. 1997.

RIDENTI, Marcelo. A época de 1968: cultura e política. In: FICO, Carlos; ARAUJO, Maria Paula
(Org.). 1968 – 40 anos depois: história e memória. Rio de Janeiro: 7 Letras, 2009. p. 81-90.

RODEGHERO, Carla Simone. Anistia, esquecimento, conciliação e reconciliação: tensões no


tratamento da herança da ditadura no Brasil. In: RODEGHERO, C. S.; MONTENEGRO, A. T.;
ARAÚJO, M. P. (Org.). Marcas da memória: História Oral da Anistia no Brasil. Recife, 2012, v.
1, p. 97-136.

RODEGHERO, Carla Simone; BERTÉ, Isabela. A ditadura “dentro de casa”: experiências de


militância e de perseguição entre a política e a vida doméstica. In: RODEGHERO, C. S.;
MONTENEGRO, A. T.; ARAÚJO, M. P.. (Org.). Marcas da Memória: História Oral da Anistia
no Brasil. Recife, 2012, v. 1, p. 177-200.

RODEGHERO, Carla Simone; DIENSTMANN, Gabriel; GUAZZELLI, Dante. Não calo, grito:
memória visual da ditadura civil-militar no Rio Grande do Sul. Porto Alegre: Tomo Editorial,
2013.

SILVA, Matheus Cardoso; VISOTSKY, Jessica. Universidades y terrorismos de Estado: dos


estudios de caso en Argentina y Brasil. Revista del Cisen Tramas/Maepova, v. 5, n. 1, p. 99-117,
2017.

TRINDADE, Hélgio. A Legalidade e o movimento estudantil brasileiro. Anos 90, Porto


Alegre, v. 18, n. 33, p. 129-164, jul. 2011.

BRASIL, Vera Vital. [set. 2011]. Entrevistadores: Helena Rossi, Izabel Silva e Renato Pais. Rio
de Janeiro, RJ, 12 set. 2011.

BURSZTYN, Ana. [jul. 2011]. Entrevistadoras: Cecília Matos, Izabel Silva e Maria Paula Araujo.
Rio de Janeiro, RJ, 7 jul. 2011.

CARDOSO, Nilce. [maio 2011]. Entrevistadora: Carla Simone Rodeghero. Porto Alegre, RS, 18
maio 2011.

FERRAZ, Socorro. [mar. 2011]. Entrevistador: Antonio Torres Montenegro. Recife, PE, em 25
mar. 2011.

GONDIM, Lilia Maria Pinto. [out. 2011]. Entrevistadores: Suzane Araújo e Tasso Araújo. Recife,
PE, 31 out. 2011.

GRABOIS, Victória. [nov. 2011]. Entrevistadora: Izabel Silva. Rio de Janeiro, RJ, 18 nov. 2011.

GRECO, Heloísa. [nov. 2011]. Entrevistadoras: Maria Paula Araujo, Izabel Silva e Fernanda
Abreu. Belo Horizonte, MG, em 25 nov. 2011.
PANDOLFI, Dulce. [maio 2011]. Entrevistadoras: Cecília Matos, Desirree Reis e Izabel Silva.
Rio de Janeiro, RJ, 25 maio 2011.

IPAHI, Rita. [jan. 2012]. Entrevistadoras: Cecília Mattos, Desirree Reis e Izabel Silva. São Paulo,
SP, 29 jan. 2012.

Para as entrevistas registradas sob os pseudônimos de Renata, Raquel e Rita, a fonte é Giardonoli-
Nascimento, Ingrid; Trindade, Zeidi Araújo & Santos, Maria de Fátima de Souza. Mulheres e
Militância:encontros e confrontos durante a ditadura militar. Belo Horizonte: Ed. da UFMG,
2012.
DÉCIO FREITAS: MEMÓRIAS PARTICULARES DA DITADURA MILITAR NO BRASIL

Alessandro Bracht*

A crítica mais contundente que habita o campo da produção histórica com o uso de fontes
orais refere-se ao fato de que, em geral, a memória que produz as revelações sofre com influências
que invariavelmente transformam de maneira significativa os eventos narrados. Em sua origem, a
História Oral fez de pessoas de idade avançada os seus documentos primordiais. E, como é sabido,
o avançar do tempo e a subjetividade têm a capacidade de alterar os dados da memória. Como
afirma Peter Burke, a memória opera como uma reconstrução do passado; lembrá-lo e escrever
sobre ele não são atividades ingênuas e inocentes. Daí que as narrativas podem conter enganos,
seletividades, recriações e invenções – voluntários ou não. Com o crescimento do campo de ação,
as pessoas-fonte deixaram de ser apenas as idosas e qualquer faixa etária tornou-se passível de ser
explorada oralmente – entra em cena a História do Tempo Presente. Nesse sentido, o desejo do
depoente de só trazer à luz aquilo que lhe interessa passou a ser a grande armadilha, já que as
carências no campo da lembrança deixaram de ser o problema. Dito e repetido, caberia, nesse
cenário, ao historiador usar de sua responsabilidade profissional e do método para driblar os
referidos perigos das fontes orais. Segundo Matos e Sena:

Há alguns aspectos críticos que envolvem a utilização da fonte oral. Críticas quanto à
confiabilidade da fonte, pois muitos dizem que os depoimentos orais são fontes subjetivas,
relativas à memória individual, às vezes falível ou fantasiosa. Paul Thompson argumenta
que nenhuma fonte está livre da subjetividade, seja ela escrita, oral ou visual. Todas podem
ser insuficientes, ambíguas ou até mesmo passíveis de manipulação. Apesar da
subjetividade a que a fonte oral está sujeita, em seu livro “A voz do passado,” o autor
defendeu o uso da metodologia da história oral ao afirmar que “a evidência oral pode
conseguir algo mais penetrante e mais fundamental para a história. [...] transformando os
‘objetos’ de estudo em ‘sujeitos’” (THOMPSON, 1992, p. 137). No processo apontado
por Thompson de transformação dos objetos estudados historicamente em sujeitos, é
preciso haver cuidado na entrevista e transcrição, de forma a constituir precisão no relato
oral. Da mesma forma, deve ser feito no decorrer da pesquisa um paralelo e diálogo entre
a documentação escrita já existente e a fonte oral. O importante é que o historiador perceba
o que a testemunha quer expressar e quais seus motivos para o que relatou (SILVEIRA
MATOS; KIVANSKI DE SENNA, 2011, p. 102).

* Mestre em História e professor na Rede Pública Estadual de Ensino (Seduc/RS).


Não que sejam apenas essas as barreiras a serem transpostas. Outras tantas foram trazidas à
tona, desde o princípio dos anos 1990, por autores referenciais como o já citado Paul Thompson e
a pioneira da prática no Brasil, Verena Alberti. Mas, para o presente trabalho, são elas que
interessam. Isto porque, a despeito da História Oral ter como convenção dar voz àqueles que
geralmente não a tem, o objeto de estudo aqui representado é Décio Freitas, um historiador que
produziu à margem da academia e por essa e outras razões habitou um universo marcado pela
controvérsia. Se for possível resumir sua trajetória profissional na história, ela tem pontos em
comum com a de outros tantos, acadêmicos ou não. De forma bem simplificada, pode-se dele dizer
que produziu por duas décadas sob a égide do marxismo, rompeu com o mesmo, diretamente
influenciado pela dissolução do socialismo real e, a seguir, afirmou que a história era uma vertente
da literatura. Suas últimas obras – ‘O maior crime da Terra’ (1996) e ‘O homem que inventou a
ditadura no Brasil’ (1998) – revelaram seu credo na prática. Em uma das entrevistas, que é usada
como fonte para o presente artigo, o próprio Décio Freitas falou:

[...] de uma maneira geral, eu deixei de acreditar na História, que era uma paixão para mim.
Não era uma disciplina acadêmica, era uma paixão. E hoje verifico que eu não estou sozinho.
[...] Sinto hoje pela História um interesse que eu qualifico de âmbito literário, acho que é
uma fonte literária interessantíssima. É uma fonte de prazer intelectual. Acho que manusear
documentos antigos é uma espécie de aventura, uma aventura de descobrimentos e que
permite entrever, apenas entrever, nesgas do passado, mas nunca em absoluto há a
reconstituição do passado. Sobretudo porque cheguei a conclusão de que não há nem
neutralidade, nem objetividade em História. O historiador, cada fato, cada documento, ele
aprecia segundo suas perspectivas filosóficas, ideológicas [...]. Acho que o homem não faz
sua história, ele é feito pela história e é um processo irracional, que não está sujeito a leis,
como nós pensávamos. A minha geração acreditava que havia leis gerais, que
predeterminavam o curso da evolução das sociedades. Então, não estou inclinado a escrever
história. Estou com vontade de escrever a história de um caso de canibalismo que houve em
Porto Alegre, em 1864 (Depoimento oral, 1992)

Entretanto, a questão da “armadilha” ainda não foi devidamente esclarecida, ou seja, porque
o perigo aqui inscrito diz respeito à questão da memória individual ser falível e fantasiosa. Num
caso específico, como o de Décio Freitas, um intelectual popular e reconhecidamente vaidoso, a
aceitação pura e simples de suas narrativas pessoais não parece o caminho mais recomendável. Dito
isso, fica claro que faltou algo na pesquisa desenvolvida no final dos anos 1990, capitaneada pela
historiadora Ieda Gutfreind sob o título de ‘Décio Freitas: um historiador do seu tempo’. A missão
aqui é, portanto, resgatá-la em sua incompletude e trazer seus resultados novamente à luz, com
ênfase nos relatos do exílio de Freitas por força de sua cassação em 1964, quando exercia o cargo
de Procurador Geral da República, e fazê-los passar por um filtro que os coloque na perspectiva da
História Oral enquanto metodologia de grande valia, mas também enquanto produto que se verá
perenemente cercado, como já foi dito, de arapucas, especialmente quando elas vêm de um homem-
personalidade, a quem se costuma dar crédito por vezes de forma incondicional, algo que aconteceu
na pesquisa que apoiei enquanto bolsista em Iniciação Científica. Como afirmou Marc Bloch há
muitas décadas:

Seria pueril pretender enumerar, em sua infinita variedade, as razões que podem levar
alguém a mentir. Mas os historiadores, naturalmente levados a intelectualizar em excesso
a humanidade, agirão sensatamente ao lembrar que todas essas razões não são sensatas.
Em certos seres humanos, a mentira, embora em geral associada, aí também, a um
complexo de vaidade ou de recalcamento, torna-se quase, segundo a terminologia de
André Gide, um “ato gratuito” (BLOCH, 2001, p. 98).

A suspeita de que Freitas floreou seus relatos do exílio excessivamente surgiram a partir dos
escritos do historiador Cláudio Pereira Elmir, pesquisador e professor de longa data na Universidade
do Vale do Rio dos Sinos – Unisinos. No livro ‘Odiosos homicídios – O Processo 5616 e os crimes
da Rua do Arvoredo’, publicado no ano de 2010, em parceria com outro historiador da mesma
instituição, Paulo Roberto Staudt Moreira, Elmir questiona, de forma notável e responsavelmente
embasada, as informações documentais oferecidas por Freitas no já referido ‘O maior crime da
Terra’. De tudo que ele escreve sobre o livro de Freitas, ficam adjetivos nada elogiosos (mas que
tampouco são ofensivos) e a certeza, diante da investigação minuciosa, de que o chamado
“historiador dos oprimidos” inventou grande parte do que consta em ‘O maior crime da Terra’. Se
ele tivesse assumido tratar-se de uma obra meramente literária, não haveria problema. Mas não foi
o que aconteceu. Segundo Pereira Elmir:

Algumas das principais fontes documentais utilizadas por Décio Freitas n’O maior crime
da terra têm origem incerta. Mais rigorosamente falando, elas são insondáveis. Dos três
processos criminais que o autor diz haver, relacionados aos crimes da Rua do Arvoredo,
só conhecíamos um até então – ao que tudo indica, na íntegra (o que trata da morte de
Carlos Claussner, o açougueiro) – e pequena parte de outro (o que respeita às mortes de
Januário e José Inácio), e que agora, no seu todo, é objeto da presente publicação. Sobre
um terceiro processo, citado pelo autor, inúmeras vezes, e que diria respeito a seis outras
mortes (os chamados “crimes da linguiça”), não há qualquer referência, a não ser a do
próprio autor, que teria tido acesso a ele ainda nos anos 1940, e que teria desaparecido do
Arquivo Público do Estado, naquela mesma ocasião.
A maior parte dos detalhes trazidos pela narrativa de Freitas, quer sobre as circunstâncias
dos crimes, quer sobre a vida pregressa de José Ramos e Catarina Palse, foram urdidos
tendo como referência um suposto depoimento oferecido por Catarina – por escrito e
oralmente – ao Chefe de Polícia depois da condenação de ambos em 1864. A tradução da
confissão escrita estaria, ainda segundo o autor, aposta ao terceiro processo – desaparecido
– e do qual ele manteria cópia. [...] São inúmeras as evidências periféricas de que disponho
que refutam a veracidade das informações resgatadas nestas supostas fontes. Não há
dúvida, penso eu, de que Décio Freitas inventou boa parte dos detalhes que tornam a
história espetacular. Inclusive tomando emprestado alguns destes da narrativa ficcional de
Luiz de Antonio de Assis Brasil, no romance Cães da Província (1987) (PEREIRA
ELMIR, 2010, p. 300-301).

Que fique claro que o presente trabalho não tem a pretensão de desqualificar um intelectual
do peso, como Décio Freitas, acusando-o de mero inventor de fatos; longe disso. Por ocasião de seu
falecimento em 2004, ele foi homenageado por gigantes da produção intelectual no Brasil. Gente
do tamanho de Tau Golin, Sérgius Gonzaga, Juremir Machado da Silva e Voltaire Schilling
manifestaram seu pesar por conta da perda de Freitas (nas palavras de Schilling, “uma verdadeira
faculdade de ciências humanas” (2004, p.15)). No que tange às suas entrevistas, não há maneira de
comprová-lo ou desmenti-lo imediatamente, se é que é possível fazê-lo. Os méritos em seu papel
de formador de opinião são inquestionáveis. Mas trabalhar a partir do benefício (ou malefício) da
dúvida não deve ser evitado. Em suma, mais que criticar Freitas, trata-se de uma autocrítica a um
grupo de pesquisa que se deixou levar pela capacidade de Freitas em fornecer, com o poder de sua
retórica, dados que pareciam inquestionáveis diante da credibilidade pública do depoente.

Para além das dúvidas impostas por Pereira Elmir, uma das passagens da entrevista
concedida ao programa “Histórias”, da extinta TVCOM (a data da veiculação do programa não foi
possível localizar até o presente momento, tendo em vista que o mesmo está sendo trabalhado a
partir de uma transcrição feita em 1998), é aquela que mais impõe dúvidas a respeito de sua
veracidade, já que ela em momento nenhum é citada nas duas entrevistas concedidas a Gutfreind.
É curioso que isso tenha acontecido tendo em vista que suas memórias do exílio em Montevidéu se
mostram as mais vívidas. E esta diz respeito a um encontro com Che Guevara na capital uruguaia,
evento que ele não data e, pela sua negação em citar uma terceira personalidade envolvida sob pena
de ver sua versão desmentida pela outra testemunha viva dos acontecimentos, coloca a narrativa
em dúvida quanto a sua veracidade:

Eu era conhecido pelo fato de que eu contestava a guerrilha como método eficaz e único
de mudar as coisas no Brasil. Então eu fui qualificado de conciliador porque eu era contra
a guerrilha. Mas a guerrilha era um dogma. E quem não aceitasse a guerrilha era um
conciliador. E eu era muito ligado ao Jango, nesta época, embora eu também mantivesse
melhores relações com o Brizola. E isso [a posição contrária à guerrilha] era público e
notório entre os exilados. Então, essa personagem política me procura no meu
apartamento, que era na calle Rio Negro, há poucos metros de distância da 18 de julho. E
me chamou essa personagem ao seu apartamento e me disse que no dia seguinte, à hora
tal, chegaria a Montevidéu o companheiro fulano de tal, que era o Che Guevara, e se eu
podia – ele vinha incógnito – hospedá-lo, já que eu estava morando sozinho. Então ficou
combinado de que eu iria recebê-lo. O Che Guevara desembarcou de um trem na estação
central de Montevidéu. Não sei de onde ele vinha. Também, ele não se identificou para
mim. Eu é que o reconheci. Embora ele estivesse sem barba e estivesse gordo. Na verdade,
a gordura eram reservas que ele estava acumulando para a aventura ou a tragédia da
guerrilha. Eu hospedei ele, então, e lá passamos uma noite conversando, durante a qual
finalmente houve a identificação. E realmente estabelecemos uma relação muito boa. Mas
uma coisa que me causou muito espécie é que no dia seguinte eu fui convidado por essa
personagem para ir com o Che Guevara a um apartamento na avenida Agraciada. E, neste
apartamento, a personagem abriu um mapa onde mostrou, a fronteira do Brasil com a
Bolívia, e colocou vários alfinetes coloridos nos lugares onde tinha, bases guerrilheiras já
implantadas, brasileiras. E o Che fez várias perguntas sobre isso. Aproximadamente, ele
queria saber quantos homens, que tipo de armamento, como é que podia se articular a ele...
Eu fiquei assombrado com o que eu via porque eu, em primeiro lugar, achei que todo
mundo sabia entre os partidários da guerrilha. Eu fiquei espantando de coisas que estavam
sendo feitas e eu não sabia. Só que, em determinado momento, eu comecei a me perguntar:
“Mas, por que eu fui convidado para testemunhar esse encontro e essa demonstração, se
eu tenho posição contra a guerrilha?”. Tanto assim que eu não sabia absolutamente nada
daquilo. Eu cheguei a uma conclusão: a de que eu fui convidado porque eu não sabia que
aquilo não era verdade. Quem estava por dentro, sabia que aquilo não existia. Eu não sabia.
[Estavam enganando o Che Guevara] porque havia sobre os exilados mais radicais de
Montevidéu uma pressão muito grande, tanto de exilados como também de brasileiros que
iam lá, ou que nem iam lá; estavam aqui, no sentido da guerrilha. De Cuba tinham chegado
recursos para isto. Foi um milhão de dólares que veio em três partidas. Eu deveria ir buscar
a primeira, mas à última hora eu não quis fazer isso. Não quis porque eu teria que fazer
isso com um passaporte falso, que eu comprei em Buenos Aires. E comecei a pensar que
podiam me prender por crime comum, de passaporte falso. E quem foi buscar essa
primeira partida foi o Darcy Ribeiro. De sorte que esta explicação para o Che, de certo
modo, era uma forma de justificar o dinheiro. Eu perguntei [onde esse dinheiro foi parar]
muitas vezes e me foi dito que tinha sido empregado, em primeiro lugar, no pagamento de
viagens de brasileiros para Cuba, para treinar guerrilha, e em despesas de todo o tipo,
manutenção de exilados e assim por diante (Transcrição de entrevista concedida ao
programa História da TVCOM, 1998).

Antes do improvável encontro, é preciso acessar as narrativas de Freitas a respeito de sua


chegada ao exílio em Montevidéu, cidade em que morou durante oito anos e, segundo ele, conviveu
constantemente com personalidades políticas da esquerda brasileira. Eis o que ele conta sobre a
origem dessa vivência em terra estrangeira, ou seja, os eventos dos quais tomou parte no dia do
golpe militar de 1964:

No dia 31 [de março de 1964], à tarde, eu saí da Rodrigues Alves, da imprensa oficial,
com vários exemplares do Diário Oficial debaixo do braço com a minha nomeação para
Marselha. Eu entro pela avenida Rio Branco, vejo uma casa de câmbio e resolvi ver como
estava o câmbio, tanto mais que eu teria que ir para o exterior; já estava tudo preparado
para minha viagem. E vi que o dólar tinha dado um salto, um pulo tremendo e pensei
comigo: 'Acho que está acontecendo alguma coisa muito grave. Foi quando eu liguei para
o Correio da Manhã e um amigo me disse que tinha sido iniciado um movimento militar
em Minas Gerais, em Ouro Preto, que era o movimento do general Mourão. E eu soube
que o Jango estava no Rio e, como sempre que estava no Rio, ele despachava no Palácio
das Laranjeiras. Eu me dirigi para lá e fiquei o resto da tarde, a noite toda até o dia seguinte,
depois do meio-dia. O Jango ficou no Palácio das Laranjeiras num andar de cima.
Embaixo tiraram os móveis, ficou um salão imenso onde estavam lá conversando
políticos, deputados, os ministros dele. Assim se varou a noite, em debates febris. O porta-
voz de imprensa era o Raul Riff, que tinha sido meu companheiro de tradução de telegrama
do Correio do Povo e também meu companheiro de Partido Comunista. Em determinado
momento, o Riff me mandou um recado, queria conversar comigo. Eu subi. Ele queria me
perguntar algo. Até que toca o telefone, o Riff atende e passa o telefone para ele [Jango].
Era um telefonema do general Amauri [Kruel], de São Paulo, comandante do Segundo
Exército, em que ele disse ao Jango que garantia a manutenção dele na presidência se ele
dissolvesse a UNE, a Frente de Mobilização Popular, a CGT e aquela organização dos
marinheiros. E o Jango respondeu, isto eu ouvi: “Olha, Amauri, eu para ficar na
presidência não vou repudiar as minhas bases”. E assim que foi selada a sorte do Jango
(Depoimento oral, 1992).

Foi na capital uruguaia que Décio afirma ter se aproximado da História. O encontro com a
referida ciência humana se deu, de acordo com Freitas, por força de uma conspiração
contrarrevolucionária que jamais foi posta em prática. O curioso desse período é que ele se diz o
único a perceber que ditadura teria vida longa e que a contrarrevolução nunca aconteceria, em uma
demonstração de ceticismo pouco usual em tempos de fé na luta armada como meio de derrubar
um poder ilegalmente constituído.

Olha, eu passei a me ocupar de História posso dizer que casualmente por acidente da vida
política. Em 1964 eu morava em Brasília, onde eu era Procurador Geral, presidente em
exercício de uma fundação federal e com o golpe eu fui dar com os costados em
Montevidéu onde vivi oito anos, de 64 a 1972 (Depoimento oral, 1992).

Porque o seguinte: durante algum tempo, em Montevidéu, se acreditou nos meios culturais
brasileiros que seria possível, – sobretudo o Brizola acreditava nisso –, seria possível
organizar um contragolpe já que ainda restavam bases importantes das forças vencidas. E
havia sinais nesse sentido, inclusive visitas de militares de alta patente, coronéis para
conversar lá, sigilosamente. Então havia a convicção de que seria possível um contragolpe.
Então se resolveu que, ao entrar no Brasil, seria lançado um manifesto, no qual se diriam
as razões do movimento. E se resolveu dividir o manifesto em duas partes; uma parte
histórica, na qual nós nos propunhamos como continuadores de todas as lutas populares
brasileiras, e esta parte foi atribuída a mim, ao Aldo Arantes e o Betinho, que eram
dirigentes e líderes da AP. O Aldo Arantes foi recrutado do PC do B. E a parte política
ficou entregue ao deputado Marques da Costa dos Santos e mais não me lembro quem...
Então, [...] nós falávamos em lutas populares, mas não sabíamos bem o que era isso. Então
fomos pros livros, principalmente eu, na Biblioteca Nacional de Montevidéu, muito boa,
com uma Brasiliana excelente, além do que o público brasileiro era recebido muito bem.
Então eu, sobretudo, me debrucei na História do Brasil, mas veio, sobretudo, a
interrogação sobre o Brasil: Por que que tinha acontecido aquilo ali? Foi quando eu
deparei, no Varnhagem, com doze ou quinze linhas sobre Palmares que foi citada. E me
lembro de que ninguém tinha ouvido falar naquilo e que era citado no manifesto, entre
outros movimentos populares. Acontece que o contragolpe não saiu e o manifesto ficou
no papel. Só que eu, em determinado momento, percebi que não ia haver absolutamente
nenhuma mudança. Eu na verdade já era cético. E quando eu cheguei a Montevidéu, eu
fui visitar o Darcy Ribeiro, que estava num hotel ali na Rambla, o hotel Libertador San
Martin; e quando vou entrando no hotel tá saindo dele o Jango. Tá saindo o Jango
apressado e disse: “Olha, o Darcy tá lá em cima”. E, conversando, me despedi e
conversando com o Darcy, o Darcy, eu disse: “Olha, Darcy, aquilo, no Brasil, veio pra
ficar muito tempo, viste?” E ele disse: “Tu estas completamente cego. Dentro de seis
meses o Jango vai voltar nos braços do povo!”. O Brizola também acreditava nisso: “Coisa
de meses!”. O mais cético era o Jango. Bom, o fato é o seguinte: eu então cheguei à
conclusão de que não ia haver nada. Falava-se em guerrilha, etc. Eu dizia: nada daquilo
não vai acontecer (Depoimento oral, 1998).

O passo seguinte nos anos de exílio seria o de conhecer o Brasil em termos populares já
que, para Freitas, era um elemento que faltava. A história do país era eminentemente contada em
tintas heroicas e a partir da visão da elite – para não usar o jargão do “vencedor”. Daí, ele teria
retornado clandestinamente ao Brasil para produzir seu primeiro livro, ‘Palmares – a guerra dos
escravos’, publicado em 1971. Essa passagem da vida de Décio Freitas, é no mínimo bastante
pitoresca:
[...] finalmente, eu ingressei clandestinamente no Brasil para pesquisar. E é preciso saber
que havia dois IPMs contra mim e uma prisão preventiva decretada. É claro que se eles me
encontrassem no Brasil jamais acreditariam que eu tinha entrado para pesquisar, eles jamais
aceitariam isso. Mas, veja que eu chupei e suguei tudo que havia no Instituto Histórico e
Geográfico, me foi muito útil. Claro, depois, fui ao Rio de Janeiro, pesquisei muito na
Biblioteca Nacional, voltei a Montevidéu, trabalhei, fiz uma primeira versão do meu texto
de Palmares. [...] E entrei uma segunda vez no Brasil, mas, então, porque eu queria pesquisar
no Arquivo do Recife. Do Recife eu fui a Maceió, onde trabalhei no Arquivo de Maceió;
quis ver de perto o local onde havia existido durante um século na Serra da Barriga [...].
Depois do Recife, depois de Maceió, voltei via Rio de Janeiro e na minha volta eu achei que
estava sendo seguido, e tive virtualmente a certeza disso. Então eu achei que não devia
cruzar a fronteira de novo, que era perigoso e resolvi me esconder em Porto Alegre. Só que
era muito difícil porque eu tinha familiares aqui. Na casa dos meus familiares era onde eu
primeiro seria procurado; os amigos tinham medo disso aí. E veja que coisa curiosa, foi aí
que uma irmã minha, com quem eu me encontrava às escondidas, teve uma ideia. Eu, no
meu tempo de advogado, eu tinha feito um inventário de uma senhora suíça que havia sido
casada com um italiano; era um técnico em papel celulose, desta fábrica em Guaíba, e havia
morrido. Eu tinha feito o inventário; é uma coisa banal em advocacia. Ela supervalorizou
esse meu trabalho, e contraiu uma gratidão imensa para comigo. Essa senhora, [...] tinha
ainda uma filha que morava na mesma rua, do outro lado da casa dela, casada com um
brasileiro, e ela vivia sozinha nesta casa. Ela ia todos os anos à Itália, voltava dizendo que a
Itália estava desgraçada, a tal de democracia, porque ela era uma fascista assumida e
consciente, muito mais que um filho dela, um rapaz de dezoito anos. Ele tinha se engajado
naquela milícia do Mussolini e foi capturado pelos partigiani nas proximidades do lago de
Como, foi fuzilado e teve o seu corpo jogado no lago de Como. Ela não acreditava na morte
do filho e achava que ele iria aparecer vivo e isso era o motivo pelo qual ela continuava fiel
ao fascismo e odiava a democracia italiana. Então, veja que a minha irmã sugeriu que eu
fosse me esconder na casa dessa senhora fascista, uma coisa que todo mundo tinha medo de
fazer; sobretudo a Dona Eliza, conhecendo como conhecia as minhas ideias. Mas
consultada, ela concordou prontamente e fez mais uma coisa: organizou toda a sua vida de
modo a me proteger e me resguardar. Por exemplo, despediu a empregada e me colocou
num quarto que ela tinha sempre pronto e preparado para a eventual volta do filho. Esse
quarto era cheio, na parede, de fotografias do filho e do Duce.
[...] E eu fiquei cinco meses escondido ali. Ela mudou totalmente a sua vida. A filha vinha
vê-la, falar com ela, almoçar com ela e nunca ficou sabendo, na época, que eu estava lá. Só
que eu, para passar o tempo, eu consegui um máquina de escrever por intermédio da minha
irmã. Para passar o tempo eu comecei a escrever, e escrevi o livro ‘Palmares’. A questão é
que era uma mesinha e quando, às vezes, parava para descansar eu levantava os olhos e via
o retrato do Duce. Tanto que eu escrevi um depoimento para um livro do José Luís Werneck
da Silva – “A Deformação da História” intitulado “Sob as vistas de Mussolini”. Escrevi
como eu escrevi esse livro sob às vistas de Mussolini. O fato é que voltei a Montevidéu e aí
o livro foi publicado primeiro em língua espanhola. (Depoimento oral, 1998).

A partir do sucesso de Palmares, Décio Freitas passou a publicar incessantemente, sendo


destacado antes mesmo da anistia geral e irrestrita a palestrar sobre a questão do escravismo
brasileiro, apoiado financeiramente por órgão de fomento do próprio governo ditatorial. A passagem
a seguir diz ele ter ocorrido no ano de 1977.

Foi um modismo na Universidade brasileira discutir o problema do negro e, pra tanto, se


realizavam simpósios generosamente financiados pelo governo e com viagens de um
extremo ao outro do Brasil, hospedagens em hotéis de cinco estrelas, generosos cachês e,
mais ainda, a babação muito grande de negros intelectualizados, esse debate todo; e então,
realmente, eu comecei a achar muito estranho aquilo. Comecei a indagar, até que
finalmente eu descobri que a ideia também tinha sido do [general] Golbery [do Couto e
Silva]. O Golbery ‘tava impressionado com o que acontecia nos Estados Unidos, o
movimento negro norte-americano, estava com medo que se repetisse aquilo aqui. [...] O
negro nunca conseguiu criar um movimento de massa no Brasil. Então, o medo do
Golbery era este. Daí a ideia dele de canalizar pra área do debate acadêmico, dar um lastro
acadêmico. E deu certo, funcionou. Ele era um homem muito inteligente. (Depoimento
oral, 1992).
Com a anistia de 1979, ele retornou ao Brasil, mas não se afastou da militância contra a
ditadura, ainda que ela desse claros sinais de enfraquecimento. Segundo afirma, mesmo tendo
recuperado seu cargo na esfera pública, passou a lutar pela anistia de outros cassados a partir de
1964. Entretanto, cansado da batalha, entregou seu cargo e foi viver daquilo que afirmou amar,
mesmo que esse amor tenha se esgotado com a crise causada pela dissolução do socialismo real.

[...] a anistia saiu em 79. Foi em 80 efetivada a anistia. E, então, eu reassumi o cargo e
exerci algum tempo. Foi quando eu (ingressei como presidente) do Comitê Nacional de
Anistia, porque se lutava por uma segunda anistia, já que a primeira tinha beneficiado
unicamente aqueles que haviam sido atingidos por Atos Institucionais. Aqueles que
haviam sido demitidos de empresas estatais ou de outros cargos públicos, sem ser por Atos
Institucionais, ficaram de fora da primeira anistia. Então, o movimento foi para uma
segunda, que acabou sendo feita e que beneficiou outros não punidos por Atos
Institucionais. Então eu fui envolvido como presidente no Comitê Nacional de Anistia.
Nessa condição viajei por todo o Brasil, me reunindo com anistiados e sendo que me
lembro de conseguir que alguns poucos ministérios estatais concedessem
espontaneamente a anistia antes de vir a lei; e era muito interessante que o primeiro
ministério que espontaneamente anistiou os funcionários da Petrobrás – eram em número
de mais de seis mil – foi o Aureliano Chaves, no Ministério de Minas. Eu tive problemas
com os ministros progressistas (Depoimento oral, 1998).

No cenário anteriormente descrito, encerra-se o período em que Décio Freitas viveu entre o
exílio e a clandestinidade. A partir daí, tornou-se um intelectual multifacetado e, como indicado
anteriormente, marcado pela controvérsia mas também pela admiração de outros intelectuais e do
público em geral. Seu falecimento em 2004 deixou lacunas abertas e, em princípio, insolúveis. Sua
resolução exigiria um aprofundamento para o qual não há espaço aqui. Mas devido à sua
significância na produção do conhecimento no Brasil, abre-se caminho para que a pesquisa
finalizada há aproximadamente duas décadas encontre novos rumos e coloque Décio Freitas não
no panteão ao qual foi alçado, mas no lugar dos seres humanos, todos eles evidentemente falíveis.
Afinal, as dúvidas que aqui foram apresentadas no que tange à veracidade das narrativas
habita momentaneamente o campo da especulação e foram motivadas por revelações que nada têm
que ver com a História Oral propriamente dita. Não se pode negar que ela tem peculiaridades que
a tornam um campo de investigação muito específico. Se o respeito já foi conquistado pelo método
e pela seriedade dos que com ela trabalham, vale ressaltar que não existe conquista perene na
história por ela ser uma fonte de conhecimento que não se esgota. Todo conhecimento histórico
construído está sujeito a revisões. Se na história não existe ponto final, são as reticências que não a
deixam esquecer.
ALBERTI, V. História oral: a experiência do CPDOC. Rio de Janeiro: Fundação Getúlio
Vargas, 1990.

BURKE, P. História como memória social. In: _____. Variedades de História Cultural. Rio
de Janeiro: Civilização Brasileira, 2000.

FREITAS, D. Décio Freitas:depoimento [ago. 1992]. Entrevistador: Ieda Gutfreind. Porto


Alegre: 1992. 2 cassetes sonoros. Entrevista concedida ao Laboratório de Pesquisa em
História Oral do Instituto de Filosofia e Ciências Humanas da Universidade Federal do Rio
Grande do Sul.

_____. Décio Freitas:depoimento [set. 1998]. Entrevistador: Ieda Gutfreind. Porto Alegre:
1998. 2 cassetes sonoros. Entrevista concedida ao Núcleo de Estudos e de Integração de
Pesquisas em História Oral no Programa de Pós-Graduação em História da Unisinos.

_____. DécioFreitas: Porto Alegre: 1998. Transcrição de entrevista concedida ao


programa Histórias (TVCOM).

_____. O maior crime da terra. Porto Alegre: Sulina, 1996.

PEREIRA ELMIR, Cláudio. Razões ardilosas: das formas de devorar a História. In:
______; STAUDT MOREIRA, Paulo Roberto (Org.). Odiosos homicídios: o Processo 5616 e
os crimes da Rua do Arvoredo. São Leopoldo: Oikos, 2010.

SCHILLING, V. A morte de um indignado. Zero Hora, 10 mar. 2004, p. 15.

SILVEIRA MATOS, J.; KIVANSKI DE SENNA, A. História Oral como fonte:


problemas e métodos. Historiæ, Rio Grande, v. 2, n. 1, p. 95-108, 2011.

THOMPSON, Paul. A voz do passado. São Paulo: Paz e Terra, 1992.


Virginia Vecchioli*

Este trabalho tem como objetivo apresentar uma reflexão sobre as experiências de uso
de dispositivos interativos digitais na recriação dos centros clandestinos de detenção,
tortura e extermínio1 que funcionaram durante a última ditadura militar (1976-1983) na
Argentina. Quais são as implicâncias da criação destas ferramentas na construção do
passado recente? Estes dispositivos virtuais utilizam recursos em três dimensões, modelos
em escala, animação, objetos e materiais audiovisuais como forma de recriar o
funcionamento passado dos CCDs. Estes “documentários interativos” fornecem ao
usuário uma realidade imersiva, fazendo possível percorrer virtualmente o CCD ao tempo
que recriar as experiências do cativeiro das vitimas a partir da incorporação do testemunho
daquelas que sobreviveram. São recursos que têm o potencial de serem utilizados por um
público massivo, dada a sua disponibilidade online. Aos mapas, fotografias e objetos agregam-
se também testemunhos das vitimas, sendo o resultado um tipo de animação com um alto
conteúdo emocional.
Formulados sobre esta base, estes dispositivos acarretam um interessante desafio
para as ciências sociais que parecem colocar-se em um espaço de fronteira entre a realidade e a
ficção, entre passado e presente, entre a evidencia e a invenção, abrindo múltiplos
interrogantes para a exploração. Se a história como disciplina utilizou tradicionalmente a
imagem produzida no passado como evidência válida para reconstruí-lo (BURKE, 2016),
qual seria o estatuto da evidencia produzida por estes dispositivos virtuais para a
reconstrução do passado ditatorial?
A gente se depara com uma imagem que não é uma evidencia que vem do passado e
que ainda não tem existência real, mas que é produzida no presente e chega até nós através do
recurso à hiper-realidade. Ao mesmo tempo que invenção no presente, estes dispositivos
contêm o relato testemunhal dos sobreviventes dos CCD sobre o passado. Os usuários têm
acesso à informação sobre o que aconteceu através da voz da própria vítima no próprio
território onde se desenvolveu a repressão. Os documentários interativos são eles mesmos
produzidos sobre a base de múltiplos testemunhos convergentes sobre o CCD. Seriam então
fontes históricas? São equiparáveis a atos de testemunho ocular? As imagens dos objetos
incluídos no dispositivo poderiam ser consideradas indícios do passado? Os relatos
compilados nos documentários fazem destes dispositivos uma forma de arquivo histórico?
* Departamento de Ciências Sociais/CCSH – Universidade Federal de Santa Maria. Dr.ª em Antropologia Social
(PPGAS. Museu Nacional, UFRJ). .
1 A expressão Centro Clandestino de Detenção será resumida como CCD.
De que maneira estes dispositivos produzem verdade sobre o passado da ditadura? Qual seria o
lugar desta inovação em termos da Historia Oral?
Na literatura existente sobre a história social da tecnologia, Anderson (1993) já nos advertiu
sobre o impacto do surgimento do capitalismo de imprensa na produção de uma imaginação
nacional. Benjamin (1994) destacou o impacto da fotografia na redefinição da experiência artística.
A invenção do gravador e a fita teve também uma importância decisiva para o desenvolvimento da
própria História Oral segundo reconhece Da Silva Silveira (2017). Se voltarmos nosso olhar para a
produção destes dispositivos que se propõem trazer uma experiência mais vivida sobre o horror da
ditadura, poderíamos concluir que a memória da repressão será afetada pelo surgimento dessas
novas tecnologias de realidade virtual. Em que medida estes suportes tecnológicos redefinem a
memória do passado? Qual será seu impacto na imaginação histórica de nossos contemporâneos?
Se a realidade virtual permite colocar estes “museus virtuais” ao alcance dos dispositivos digitais
de uso massivo, como uma tablet ou um celular, qual será o impacto destas tecnologias na produção
de memórias? São estes documentários interativos novos “lugares de memória”, no sentido
outorgado ao termo por Pierre Nora (1997)?
O propósito deste trabalho não é fornecer uma resposta exaustiva e conclusiva a todos e a
cada um destes interrogantes. Meu interesse é colocar estes interrogantes em debate e começar a
desenhar alguns caminhos possíveis a percorrer na compreensão do que está envolvido na
introdução desta invenção tecnológica que combina ficção com relato testemunhal para o campo
da historia e da memória sobre o passado recente. Para isso, vou começar adotando a recomendação
de Peter Burke para quem “planeje utilizar o testemunho da imagem”, de iniciar o trabalho
“estudando os diferentes propósitos dos realizadores destas imagens” (2016, p. 22). A seguir, vou
apresentar os diferentes recursos utilizados na reconstrução dos CCD na Argentina, assim como
também um perfil dos produtores destes dispositivos e um dos principais contextos de uso destes
documentários, a cena judicial. Através desta estratégia interessa refletir sobre o lugar destes
dispositivos na produção de conhecimento sobre o passado. Os dados apresentados aqui são
resultado de entrevistas realizadas a alguns dos realizadores destes dispositivos, de entrevistas
realizadas a sobreviventes, a funcionários vinculados às políticas de memória sobre a ditadura, da
pesquisa de fontes documentais, de materiais audiovisuais de audiências orais e do fato de ter
produzido e coordenado eu mesma uma destas iniciativas no contexto de um projeto de
extensão universitária.2 Este texto é produto de uma pesquisa em andamento.

2 O Projeto “Museo Virtual Campo de Mayo" foi eleito ganhador entre as alternativas em disputa para
o programa de orçamento participativo da Universidade Nacional de General Sarmiento (UNGS) 2014.
Coordenado por mim e pelo antropólogo Francisco Suárez incluiu uma equipe de aproximadamente 20
pessoas entre antropólogos, sociólogos, museólogos, especialistas em realidade aumentada e desenho gráfico.
A reconstrução deste CCD foi feita em parceria com a equipe Huella Digital com sede na Universidade de
Buenos Aires.
As Forças Armadas que assumiram o controle do país a partir do Golpe de Estado em 1976,
instituíram como método principal de luta contra o chamado “inimigo subversivo” um sistema
generalizado e clandestino de desaparecimento de pessoas. A sequência prototípica do mecanismo
repressivo "sequestro, cativeiro, tortura e desaparecimento" requereu de instâncias materiais para a
sua implementação. Para isso, as Forças Armadas fizeram uso de instalações tão diversas como
residências de oficiais, quartéis de soldados, hospitais, casas particulares, escolas, estádios,
delegacias, oficinas mecânicas, etc., que adaptaram para os novos fins. Alem de centros de tortura
e extermínio, alguns desses locais funcionaram também como agencias de inteligência,
maternidades clandestinas, espaços de trabalho escravo, enfermarias e depósitos dos bens roubados
aos próprios detentos. Em muitos casos, não desapareceram somente os corpos daqueles que eram
considerados inimigos do regime, mas também desapareceram os mesmos centros clandestinos.
Estes foram destruídos, demolidos ou transformados, a fim de remover as provas do exercício
do terror de Estado.3
O recurso à produção visual teve um lugar chave, desde os inícios do movimento pelos
DDHH, quando, as mães percorriam as dependências de governo, hospitais e delegacias policiais
com as fotografias dos “detenidos-desaparecidos”. Mais tarde, estas fotografias se converteram em
cartazes a serem exibidos na Praza de Maio trazendo a presença do desaparecido e parafraseando a
Barthes, dizendo “esta pessoa existiu” (BARTHES. In: LONGONI, 2010). Chegada a democracia
(1983) trechos das audiências públicas do Julgamento aos mandos militares responsáveis pelas
violações aos DDHH foram televisadas para o pais tudo.
Quatro décadas depois do início da ditadura existem hoje quatro plataformas interativas
públicas que reconstroem vários dos CCD: a associação “Memória Abierta”, uma aliança
de associações de direitos humanos 4 que desenvolveu estas ferramentas virtuais como
parte de muitas outras atividades; “Huella Digital”, uma iniciativa acadêmica desenvolvida em
parceria com uma agencia de Estado e as outras duas iniciativas que têm a sua origem no
jornalismo, “Periodismo Modelado” e “Todo Noticias” (TN), um canal de notícias 24h
integrado a um conglomerado mediático equivalente à Rede Globo no Brasil.
Memória Aberta, a partir da iniciativa do arquiteto Gonzalo Conte, irmão de um
desaparecido e filho de Augusto Conte, uma importante liderança do movimento pelos DDHH,
fundador do Centro de Estudios Legales y Sociales (CELS, 1979) começou a reconstruir o espaço
dos CCD através de ferramentas digitais. Memoria Abierta criou a plataforma "topografias da
memória", com o objetivo de fazer um levantamento de dados, sistematizar e produzir
documentação sobre os locais, edifícios e espaços que foram usados como CCD em todo o território

3 Estes são os casos dos CCD, conhecidos pelos apelidos "El Campito", "Club Atlético", "Vesúvio" e "Mansión
Sere", entre muitos outros.
4 A expressão direitos humanos será sintetizada como DDHH.
nacional.5 Cada um desses sítios foi incorporado a um mapa do território nacional. O usuário
pode percorrer o mapa e identificar a totalidade dos CCDs que existiram no pais. Eles criaram
também o recurso interativo Audiovisual de Representação Territorial, um projeto
financiado pela Comunidade Econômica Europeia, que combina texto, mapas, registro
audiovisual e provas documentais e que procura explicar o funcionamento de diferentes
CCDs. Fragmentos do relato das testemunhas acompanham as imagens.6
Em 2008, a equipe de Huella Digital, conduzido pelo especialista em animação por
computador Martín Malamud e com sede na Universidade de Buenos Aires, começou a fazer um
trabalho pioneiro de reconstrução 3D dos CCDs, localizados na cidade de Buenos Aires em parceria
com o “Instituto Espacio para la Memoria (IEM)”, liderado pela sobrevivente do CCD Club
Atlético, Ana Maria Careaga, pela sua vez, filha de uma mãe de Praza de Maio que foi desaparecida
pela ditadura quando procurava por Ana María. Huella Digital reconstruiu os CCD
Esma, Automotores Orletti e Club Atletico.7 A experiência audiovisual imersiva é produzida a
partir da associação dos espaços reconstruídos com tecnologia digital com as descrições dadas
pelos próprios sobreviventes dos campos. Os testemunhos audiovisuais dos sobreviventes têm
uma importância chave em suas histórias e as experiências são incluídas no dispositivo e
acompanham o tour virtual interativo. O usuário do dispositivo cria o seu próprio itinerário,
selecionando o conteúdo de acordo com os seus interesses. Atualmente trabalha na
reconstrução de um dos maiores CCD do pais, El Campito.8
Periodismo Modelado criou uma plataforma de realidade aumentada que permite a imersão
no CCD Masión Seré, destruído durante a ditadura. Apenas restaram as bases do prédio,
identificadas a partir de trabalho arqueológico. Os jornalistas que integram este equipe Ariel
Moyano e Juan Charovsky têm como interesse mais amplo o de contar histórias através da realidade
virtual. Eles criaram o dispositivo em 3 dimensões do CCD Mansión Sere, como uma maneira de
"ganhar experiências em primeira mão", é eles entendem que o usuário pode
mergulhar completamente na realidade passada do CCD.9
O sinal de televisão “Todo Noticias” criou um percurso 360 do CCD Virrey Ceballos. O
dispositivo traz o relato de um sobrevivente falando da sua experiência enquanto percorre o local.
Este recurso está disponível para os usuários tanto na web quanto no celular. O canal de notícias
explica que criou este dispositivo como uma forma diferente de recordar a ditadura na ocasião da

5 Disponível em: <http://www.memoriaabierta.org.ar/ccd/index.html>.


Registros Judiciales Audiovisuales. Disponível em: <https://goo.gl/PGkga1>.
6.. .
7 www.centrosclandestinos.com.ar.
8 “O Campito” funcionou dentro de uma guarnição militar, desde 1976, e foi destruído em 1978. Estima-se
que mais de 3.000 pessoas passaram por este lugar, das quais apenas sobreviveram aproximadamente 40. A
reconstrução deste CCD foi realizada sobre a base do relato oral de varias testemunhas, do relato de
testemunhas já falecidas em sede judicial, em foros de denuncia internacional, dos relatos produzidos em
forma de livro autobiográfico, etc. .
9 Periodismo Modelado. Mansión seré. Em: http://periodismomodelado.herokuapp.com/index.html
comemoração dos 40 anos do golpe de Estado em 2016. A pesquisa documental foi realizada
pela jornalista Miriam Lewin, ela mesma sobrevivente dos campos de detenção da ditadura.10

Quadro 1 – Dispositivos digitais sobre os CCD


Produtores Produtos Recurso tecnológico
Memoria Abierta Topografias Registro Mapas, documentos, material
Audiovisual Audiovisual audiovisual,
Judicial georreferenciamento
Huella Digital CCD Esma 3D
+ Automotores
IEM Orletti
Club Atlético
El Campito
Periodismo CCD Mansión Seré Realidade aumentada
Modelado
TN – Canal de CCD Virrey Ceballos Imagem 360º
noticias
Fonte: tabela realizada pela autora, 2017.

Todos estes dispositivos utilizam elementos tecnológicos comuns, tais como recursos em
duas ou três dimensões, vistas desde o exterior e interior dos CCD, modelos em escala de edifícios,
animação, objetos da época e materiais audiovisuais. O usuário dispõe de várias vias possíveis para
se deslocar e percorrer o campo de detenção. Entre estes materiais, se destaca o testemunho dos
sobreviventes que vão narrando as suas experiências, a medida que o usuário percorre o campo de
forma que ele tem a possibilidade de descobrir de primeira mão as vivencias do sobrevivente-
testemunha.
Na realização destes dispositivos, a entrevista aos sobreviventes dos CCDs se configura
como o principal instrumento (ou técnica) de trabalho em tanto ela fornece os dados chaves que
vão permitir recriar em formato virtual o CCD já desaparecido ou recriar o funcionamento passado
de locais que hoje existem, mas que não funcionam mais como CCDs. É preciso levar em conta a
dificuldade deste trabalho porque os sobreviventes ficaram, a maior parte do tempo, de olhos
cobertos e quase sem nenhuma chance de interagir uns com os outros. Muitos dos que estiveram a
cara descoberta não sobreviveram. Portanto, os dados são fragmentários, parciais e subjetivos.
Como relata uma testemunha, “dadas as condições de sigilo, nada era real dentro do campo, os

10 40 años del Golpe. Virrey Ceballos en 360º http://tn.com.ar/sociedad/el-horror-en-pleno-montserrat-


asi-funcionaba-el-centro-clandestino-de-detencion-virrey-cevallos_661066
algozes utilizavam apelido e os detentos eram chamados por um número.” Portanto, "a reconstrução
se faz literal e metaforicamente às cegas" (Careaga, entrevista com a autora, 2017).
Nestes documentários interativos, tenta-se reconstruir a unidade perdida da experiência da
detenção clandestina através da multiplicação do relato dos sobreviventes-testemunhas. A
totalidade da experiência do CCD é produzida e recriada através dos fragmentos vividos no campo
e trazidos ao presente pelas vítimas e integrados no dispositivo virtual. O relato dos sobreviventes
é fragmentado pelo realizador do dispositivo com o sentido de acompanhar as imagens. A verdade
do acontecido busca ser construída na vinculação dos relatos e não em função de cada testemunha
individual.
Na reconstrução do sistema de concentração, os relatos dos sobreviventes – articulados
entre si – são articulados pela sua vez ao espaço, aos sons próprios da época que eram escutados
pelas vítimas como partidas de futebol transmitidos pelo rádio, sons rotineiros próprios da
vizinhança onde estava localizado o CCD, como a passagem de um trem, às imagens da época
como um jornal, uma bandeira de um partido político, etc. Ao percorrer estes dispositivos
evidencia-se uma preocupação pelo detalhe: a cor da parede, a quantidade de luz do ambiente, a
forma de distribuição dos detentos dentro do campo, etc., detalhes que procuram servir de vínculo
entre o público e o privado, entre a realidade histórica e a ficção virtual.
Estes dispositivos interativos estão criados para que o usuário possa viajar virtualmente
através do CCD, escolher diferentes rotas, tomar decisões sobre o tempo de uso e seleção de
conteúdo. De isso tudo resulta que a navegação do site virtual cria uma espécie de "realidade
performativa", pois se oferece tanto à contemplação quanto a manipulação. Neste sentido podemos
dizer que ocupam um espaço de fronteira. Ao fazer uso do hiper-realismo pretende-se que o usuário
perceba o espaço interativo como real. Através de manipulação da imagem se procura que o
espectador participe, ficticiamente, das histórias dos desaparecidos e conheça a experiência de
terrorismo de Estado.

Um dos principais usos destes dispositivos é no contexto dos processos por crimes contra a
humanidade. Memoria Abierta desenvolveu recursos digitais em resposta à demanda feita pelos
próprios tribunais. Assim criaram os Registros Audiovisuais Judiciais que permitem reconstruir a
experiência de inspeção ocular das testemunhas quando visitam os CCD. Através de fotografias,
testemunhos audiovisuais, desenhos e cópias de registros judiciais, se apresenta ao usuário uma
reconstrução da visita que realizam ao campo os sobreviventes, os operadores judiciais e a equipe
de Memória Aberta.
O trabalho consiste em fazer visíveis as estruturas dos prédios utilizados para a detenção e
tortura das vítimas e recuperar a sua funcionalidade e espacialidade, tal como foram utilizados
durante a ditadura (nos casos em que os prédios não foram destruídos, mas têm outros usos). Os
registros combinam o plano arquitetônico do CCD com o testemunho de sobreviventes. No
relato a vítima reafirma as provas da sua presença no local na época da ditadura. Assim,
é possível observar como uma sobrevivente vai individualizar a cela onde ela esteve detida.
Este relato se acompanha da reprodução de trechos do expediente criminal e fotografias atuais
do que foi outrora a cela. Gonzalo Conte, um dos diretores deste projeto, enfatiza a
importância desses recursos já que segundo ele permite "olhar as evidencias" tal como elas se
apresentam no contexto de processos por crimes contra a humanidade.
No caso de dispositivos interativos feitos por Huella Digital/IEM, estes foram
utilizados no espaço das audiências orais como ferramenta de apoio audiovisual ao relato
da testemunha e também como uma apojatura do trabalho dos promotores e da alegação dos
advogados da acusação. Na perspectiva dos realizadores e das vítimas, o uso de imagens
facilita a compreensão do relato pela audiência. Para Martín Malamud, a reconstrução dos
CCDs exigiu solicitar informações aos sobreviventes para que dessem testemunho de
como foi a sua passagem pelo lugar, mas, principalmente, para coletar todo tipo de
detalhe espacial e ambiental que fizesse possível reconstruir os prédios, a modalidade de
uso dos prédios e as modalidades em que os prisioneiros eram mantidos detidos, etc. O
objetivo é reconstruir da forma mais rigorosa possível o local onde só temos a ausência no
presente (Malamud, entrevista com a autora, 2017).
Inicialmente pensado para ser utilizado no contexto judicial, o primeiro
dispositivo funcionava em “stand alone”. Quer dizer, seu uso era limitado ao computador
do produtor do dispositivo e continha apenas a reconstrução do espaço, tanto na sala da
audiência se adicionava o relato da testemunha11. Para conseguir que a imagem e a voz
trabalhassem juntas, sobreviventes e integrantes de Huella Digital treinaram previamente a
possibilidade de se acompanhar um ao outro. Na entrevista com Ana María Careaga, ela
descreveu como nestes encontros prévios à audiência, o dispositivo foi se adaptando
conforme as necessidades do relato da testemunha. Perante as dificuldades praticas
surgidas no momento da audiência oral, na segunda re-elaboração do documentário se
adicionadas as vozes dos sobreviventes. Um segundo motivo de ter produzido as entrevistas
foi a intenção de preservar o testemunho da fragilidade da vida humana, já que com o passou
do tempo alguns sobreviventes tinham falecido (Malamud).
O testemunho apresentado perante o cenário judicial tem as suas exigências e
encontra-se amplamente determinado pelo destinatário como reconhecem Pollak e Heinich
(2006): ele se restringe a “um número limitado de acontecimentos em resposta a perguntas
precisas. A pessoa da testemunha tende a desaparecer por trás de certos fatos, já que trata-se
de restituir a verdade perante um interlocutor que [...] é um profissional da
representação jurídica do corpo social. Os depoimentos levam consigo a marca dos
princípios da administração da prova jurídica: limitação ao assunto do processo, eliminação
de todos os elementos considerados alheios.” (2006, p. 62).

11
Martim Malamud em entrevista com a museóloga Dolores Tezanos Pinto, integrante da equipe do projeto El
Campito, 2017.
Este contexto que impõe suas determinações em todo processo, apresenta singularidades na
hora de tratar com o testemunho que resulta da experiência de ter sobrevivido ao CCD. Como foi
colocado acima, os relatos são fragmentários, parciais, incompletos dadas as condições de
encerramento. Passados quarenta anos dos acontecimentos que são tratados no contexto dos
processos judiciais, às vezes acontece que as testemunhas não se lembram de todos os detalhes que
são demandados pelos operadores judiciais, enquanto outros sobreviventes, nem tem
disponibilidade para depor perante os tribunais em função de diversas coerções morais. Dadas as
condições de clandestinidade da detenção, não existem registros administrativos sobre o
funcionamento dos CCDs. A ausência desta prova documental deve ser suprida pelo relato
dos sobreviventes que, como já se explicitou, se compõe de fragmentos dispersos.12 No
mesmo texto Pollak e Heinich (2006) destacam como “os princípios de administração da prova
jurídica eliminam do testemunho as emoções” ao ponto de transformar os depoimentos das
vítimas em uma coação a sua memória em forma de interrogatório (2006, p. 64).
Portanto, assim como acontece na realização dos dispositivos virtuais, também no contexto
das audiências por crimes contra a humanidade, a prova apresentada perante aos tribunais é o
produto da reconstrução coletiva feita pelos sobreviventes: é a partir de micro elementos aportado
por cada um deles como se reconstroem os planos completos dos CCD, os nomes dos repressores,
a relação entre os apelidos dos repressores e seus nomes verdadeiros, a relação entre estes nomes e
a imagem fotográfica deles, os apelidos ou número de identificação dos detidos que passaram pelo
campo com seus nomes reais, etc. Perante a requisitória judicial, a necessidade de dar respostas
conclusivas à pergunta dos magistrados “mas, como você sabe disto?”, os sobreviventes, que em
forma individual não conseguiam fazê-lo, mas assim que se organizaram em “Comissões”
conseguiram aportar dados concretos, provas conclusivas na reconstrução da sua
experiência individual no CCD.13 (Careaga).
No âmbito da justiça, as evidências visuais encontradas nas inspeções oculares, as
fotografias, as imagens produzidas por câmeras de vídeo, os registros audiovisuais produzidos pela
televisão, todos estes elementos participam deste espaço como prova de autenticidade do relato da
testemunha, como prova “objetiva” do relato “subjetivo” da testemunha. Neste contexto, o uso dos
documentários interativos na cena judicial emerge como um elemento inovador. Se, como coloca
Roland Barthes, as imagens contribuem à produção do “efeito de realidade” (em Burke, 2016:36)
qual lugar ocupam estes documentários interativos quando o espectador pode experimentar a vivida
impressão de estar percorrendo ele mesmo o CCD?

Para uma reflexão mais em profundidade das dificuldades da produção de testemunhos em


12..
sobreviventes de experiências de concentração, ver Pollak, 2006.
13 Como seria o caso da Comissão de Trabalho e Consenso do Ex CCD Clube Atlético que produziu uma base de
dados sobre a informação obtida de entrevistas com sobreviventes, familiares das vítimas, companheiros de
militância, nesta base constam os nomes, sobrenomes, idades, profissão ou ocupação e militância das pessoas
que foram vistas ou ouvidas no campo.
O que é muito interessante é que no processo de produção de verdade, estes dispositivos
participam da cena judicial enquanto “prova”. Este é o tratamento dado pelos tribunais a estes
dispositivos. Memoria Abierta realiza ser trabalho na sua condição de peritos da Justiça. Portanto,
tudo o que acontece durante as inspeções oculares aos CCDs, todo o material fotográfico,
audiovisual e arquitetônico produzido nesse contexto, participa como prova nos processos por
crimes contra a humanidade. No caso dos documentários interativos realizados por Huella Digital
e utilizados nos contextos das audiências orais, eles são apresentados pelos promotores do caso
como prova e, são incorporados ao processo nesta condição.

A realização destes documentários interativos confronta-nos perante o paradoxo da


representação de um período traumático da história caracterizado pela clandestinidade. O segredo,
a ocultação e o desaparecimento que emergem no presente e se faz visível a partir da imaginação
técnica que recria essa experiência passada. Qual o impacto destas ferramentas para cientistas
sociais “digitalmente analfabetos”? Que uso fazer destes dispositivos? Considerados como
evidencia no contexto dos julgamentos por crimes contra a humanidade, estes documentários
interativos fornecem indícios para o trabalho do historiador? E possível pensar que nosso senso de
conhecimento histórico será afetado pela introdução destes dispositivos digitais?
Trata-se de produtos que participam de uma condição ambígua ou hibrida que se coloca
entre o registro que arquiva e documenta uma época histórica e o uso da imaginação técnica que
recria essa época traumática a partir da produção de uma evidencia virtual. Do gênero
documentário, estes dispositivos trazem a sua modalidade de representação realista da realidade.
Do meio digital, estes dispositivos trazem as possibilidades da navegação e interação com as
diversas opções que apresentam a tecnologia, permitindo que cada usuário crie seu próprio percurso
dentro do CCD sobre a base dos seus interesses.
Estes dispositivos se propõem tramitar imaginariamente, desde a contemporaneidade, uma
leitura do passado ditatorial (MARTIN, 2016). Em toda a sua novidade técnica, eles se mantêm
próximos da tradição realista da construção de um relato sobre o passado, centrando seu foco no
relato em primeira mão das vítimas, respondendo aos imperativos da construção de verdade no
espaço jurídico. Se a sedução de tomar uma imagem pela realidade é grande quando confrontados
com fotografias ou documentários, este efeito se potência exponencialmente, quando o que se olha
não é uma reprodução analógica, mas uma imagem digital em três dimensões.
Porém, é imprescindível reconhecer que pelo fato de terem sido realizados, inicialmente,
com o propósito central de serem utilizados no contexto dos processos por crimes contra a
humanidade, eles carregam com as exigências da construção da prova no espaço jurídico. Os relatos
das testemunhas têm uma função centralmente informativa. É neste contexto que se entende a
fidelidade que estes dispositivos mantêm à forma tradicional de documentário que traz uma
representação realista da realidade e que coloca em destaque os trechos do relato dos sobreviventes
da experiência de concentração que servem na cena judicial como evidencia. Da mesma forma que
se constrói a prova no cenário judicial, assim acontece também no processo de realização do CCD,
onde o relato está determinado amplamente pero interesse do produtor do dispositivo. Esta nova
imaginação técnica se coloca à disposição da Justiça e da História, pretendendo funcionar em ambos
os casos como evidencia.
Esta função informativa fica evidenciada na forma em que são apresentadas as narrativas
dos sobreviventes nos documentários interativos: enquanto as experiências vividas no CCD foram
marcadas pelo caos, desordem, ausência de lógica e improvisação do cotidiano, os relatos aparecem
apresentados como organizados segundo um relato coeso que parece mais próprio das exigências
da produção de verdade no âmbito da Justiça e da História. Quando olhados do ponto de vista da
Sociologia ou da Antropologia e não da Justiça, o problema do relato adquire outra dimensão já que
a questão da verdade é substituída pelo problema do sentido do relato. Autores como Nordstrom e
Robben (1995) têm refletido especificamente sobre o impacto da violência nas vidas das pessoas,
sublinhando, precisamente, a dificuldade que elas têm para outorgar sentido ao caos que tem
transformado as suas vidas em morte, destruição e sobrevida e advertindo sobre os riscos de
introduzir uma ordem alheia no relato destas experiências de devastação. No limite, eles se
interrogam se a produção destes relatos coesos e lógicos não envolve uma nova violência sobre as
vítimas ao desconhecer as condições especificas de produção de relatos sobre experiências limites
de violência.
No uso destes dispositivos, no âmbito acadêmico, é imprescindível contextualizar estes
documentários para poder entender as coerções que operam sobre estes dispositivos que têm a ver
com as formas legitimas de “apresentação do eu” (GOFFMAN, 2002) de aquilo que é considerado
dizível do ponto de vista do sobrevivente e do ponto de vista dos parentes das vítimas. Isto significa
que até as convenções realistas têm a sua própria retórica que pode ser analisada com o intuito de
compreender o ponto de vista desde o qual é apresentado o passado. Assim é possível identificar,
por exemplo, que várias dimensões controvérsias da experiência de concentração não são incluídas
nestes dispositivos e estas dimensões não aportam ao processo de produção de prova jurídica, nem
se configuram como um conteúdo plausível de ser colocado em público do ponto de vista dos
sobreviventes.
Reivindicando a importância do uso destes dispositivos para a cena judicial, reivindicando
as demandas de verdade e Justiça próprias do movimento pelos DDHH, considero que estes
dispositivos virtuais constituem inovações importantes que atravessam o espaço da Justiça e da
História. Ao se integrar ao cenário judicial, eles contribuem significativamente à produção de
verdade jurídica e histórica. Ao mesmo tempo, é imprescindível situar estes dispositivos em seus
contextos de produção para poder identificar como eles expressam também um senso da época.
Neste sentido, mais do que um reflexo transparente da realidade vivida nos campos, eles permitem
identificar indícios das economias morais que organizam o campo dos direitos humanos na
Argentina contemporânea.

ANDERSON, B. Comunidades Imaginadas: reflexiones sobre el origen y la difusión del


nacionalismo. México: Fondo de Cultura Económica, 1993.

BENJAMIN, W. “A obra de arte na era de sua reprodutibilidade técnica” Em Magia e Técnica:


ensaios sobre literatura e história da cultura. São Paulo: Brasiliense, 1994, p. 165-196.

BURKE, P. Testemunha Ocular: o uso de imagens como evidencia histórica. São Paulo: Ed.
da UNESP, 2016.

CONTE, G. A topography of memory: reconstructing the architectures of terror in the


Argentine dictatorship. In: Memory Studies 2015, v. 8, n. 1, p. 86-101, 2015.

DA SILVA SILVEIRA, É. 2007. “História Oral e memória: pensando um perfil de historiador


etnográfico” In: Mtéis: história & cultura. v. 6, n. 12, p. 35-44, jul./dez. 2007.

GOFFMAN, E. A representação do eu na vida cotidiana. Petrópolis.: Vozes, 2002.

LONGONI, A. Photographs and Silhouettes: Visual Politics in Argentina. In: Afterall Journal. n.
25, Autumn Winter, 2010.

MARTIN, N. Ejercicios de la memoria en dos obras Low-Tech. In: Anales del IX Seminario
Internacional Políticas de la Memoria. Argentina: Centro Cultural Conti, 2016.

NORA, P. (Dir). Les lieux de Mémoere. Paris: Gallimard. 1997.

NORDOSTROM, C; ROBBEN, A. (Eds.). Fieldwork Under Fire: Contemporary Studies of


Violence and Survival. Berkeley: University of California Pres, 1995.

POLLAK, M; HEINICH, N. El testimonio. In: _____. Memoria, olvido, silencio: la producción


social de identidades frente a situaciones límite. La Plata: Al Margen, 2006, p. 53-112.
Marcelo Hansen Schlachta

A Comissão Nacional da Verdade (CNV) desenvolveu intensos trabalhos no que tangencia


as memórias que foram suprimidas acerca do período militar. Nesse sentido, o objetivo deste
trabalho consiste em pensar o modo pelo qual se estrutura a construção dessa memória, tomando
por base os relatórios Nacional e Estadual, tendo por foco o Oeste do Paraná. Trata-se, pois, de
proceder metodologicamente uma análise das representações acerca das noções de verdade,
esquecimento, mentira e outras, que orientam os trabalhos das Comissões (Nacional e Estadual),
situando historicamente o debate acerca da articulação dessas memórias no lugar material que lhes
são correspondentes, bem como pensando a estruturação de alguns depoimentos em relação à
estrutura montada nas audiências públicas ocorridas em Cascavel/PR.
Esta etapa consiste numa fase inicial de um projeto mais amplo, o qual consiste em revisitar
os depoentes das audiências da CNV realizadas em Cascavel, produzindo novas entrevistas e
adentrando em percepções ligadas às suas trajetórias de vida, cotejando as mesmas às experiências
testemunhadas com relação à ditadura civil-militar brasileira.
Entendemos que a entrevista é uma construção intersubjetiva na qual se delineia uma
relação entre um indivíduo, que a partir de suas concepções permeadas de subjetividade lança
questionamentos, e outro que a partir de suas percepções responde a estas indagações. Assim,
dialogamos com a perspectiva de Beatriz Sarlo ao delinear que:

a memória permite a relação do corpo presente com o passado e, ao mesmo tempo, interfere
no processo “atual” das representações. Pela memória, o passado não só vem à tona das
águas presentes, misturando-se com as percepções imediatas, como também empurra,
“desloca” estas últimas, ocupando o espaço todo da consciência. A memória aparece como
força subjetiva e ao mesmo tempo profunda e ativa, latente e penetrante, oculta e invasora
(SARLO, 2007, p. 93).

Por meio desta perspectiva levantamos algumas questões: Como a CNV percebe essas
relações entre passado e presente na construção dos depoimentos prestados? De que maneira a
construção das entrevistas e do próprio ambiente das audiências influência nos depoimentos? De
que modo as narrativas coletadas são transportadas para os relatórios finais? E seria preciso
esquecer algo para lembrar? Entre outras perguntas. Para tanto, dialogamos com Michel Pollak ao

* Professor do IFPR/Instituto Federal do Paraná – Campus Cascavel, Doutorando do Programa de Pós-


Graduação em História da Unioeste –Universidade Estadual do Oeste do Paraná.
pontuar a necessidade do pesquisador posicionar-se frente à memória, haja vista que, muitas vezes,
o indivíduo silencia acerca do passado, talvez como uma espécie de proteção, por crer que é o
melhor naquele momento – o que não representa necessariamente um ato de esquecimento. Nesse
sentido, não devemos visualizar a memória como sendo indissociável da organização social da vida,
uma vez que possibilita alguns a falarem sobre determinado fato em detrimento de outros.
Na obra O Tempo Passado, Beatriz Sarlo pondera sobre a maneira como as Comissões da
Verdade delineiam ambientes propícios para um determinado modelo de narrativas, as quais
privilegiam testemunhos que se pautam nas violações de direitos, estimulam narrativas
vitimizadoras e, por vezes, desconsideram suas trajetórias de vida em relação à ditadura,
impossibilitando uma plena reconciliação dos sujeitos com o seu passado. Assim, cotejando estas
ideias com as perspectivas de Alessandro Portelli, que visualiza a subjetividade presente nas
narrativas orais como algo que, se analisado de modo mais complexo, revelará mais que realidades
objetivas, uma vez que “a maior riqueza, a maior contribuição cognitiva que chega a nós das
memórias e das fontes orais. [...] não temos, pois, a certeza do fato, mas apenas a certeza do texto:
o que nossas fontes dizem pode não haver sucedido verdadeiramente, mas está contado de modo
verdadeiro.” (PORTELLI, 1996, p. 4).
A experiência narrada pelo sujeito traz em si possibilidades de tornar o passado presente,
aflorar sensibilidades, sentimentos, opiniões, que permitem ao pesquisador lançar olhares sobre as
diversificadas possibilidades acerca da vida humana. Assim, as subjetividades são reinventadas no
ato de narrar a si próprio. Paul Ricoeur pontua que o historiador deve ter como preocupação central
não a constituição de uma história que se pretenda objetiva, mas uma história nutrida por uma boa
subjetividade.
Nesse sentido, a relação entre História e memória é desenhada a partir de um conjunto de
aproximações e distanciamentos, debates sobre imparcialidade e neutralidade, especialmente no
que concerne ao ofício do historiador no trato com as memórias. Portanto, questiona-se: Os
trabalhos desenvolvidos pelas Comissões da Verdade conseguem promover um modelo pleno na
constituição de uma memória das vítimas da ditadura? As ações até então desenvolvidas contribuem
no processo de reconciliação dos sujeitos consigo mesmo, com o seu passado e com os outros? Os
diálogos entre presente e passado são interpretados de que modo pela Comissão? Estas são algumas
perguntas que demarcam os primeiros passos deste trabalho.

O atual cenário político nacional é marcado por uma série de tensões e manifestações contra
o governo do Partido dos Trabalhadores (PT). Desde 2014, de maneira mais direta, mobilizações
tomam as ruas do país e expressam sua inconformidade e oposição à presidente reeleita Dilma
Rousseff, ao ex-presidente Lula e, de modo geral, abarcam uma rejeição aos projetos políticos de
esquerda. Não raro se verificou, nessas manifestações, a presença de cartazes, faixas e outros que
defendam a intervenção militar e a volta da ditadura. O imaginário social de determinados grupos
identifica no governo militar um meio de evitar a expansão do “esquerdismo” que se alastra pela
América Latina – na visão de muitos, visto como parte de um projeto bolivariano arquitetado pelo
“Foro de São Paulo” – e enaltecem a ditadura, as perseguições, o cerceamento e até mesmo a tortura
e torturadores, como um meio necessário para garantir a ordem no país.
Nesse sentido, devemos observar que, nos últimos anos, o tema do militarismo e das ações
desempenhadas durante a ditadura, ganhou maior evidência, em grande parte, em função dos
trabalhos da Comissão Nacional da Verdade (CNV), criada no ano de 2011, por intermédio da lei
nº 12.528, sancionada pela então presidenta Dilma Rousseff. É válido observar que outras
comissões foram estabelecidas por outras instituições em diferentes lugares do país. Os trabalhos
dessas comissões objetivavam uma ampliação nas pesquisas, descobertas e esclarecimentos dos
graves crimes e violações perpetradas contra a humanidade durante o período ditatorial.
A CNV guarda como uma de suas principais finalidades o exame e esclarecimento da
violência utilizada durante o Estado de exceção, que se serviu de perseguições, desaparecimentos,
mortes, torturas, entre outros, que denotam o que se pode classificar como Terrorismo de Estado.
Assim sendo, as comissões da verdade buscam superar a negligência do Estado brasileiro que por
anos sucessivos ignorou o passado autoritário do país. Faz-se importante mencionar que as
comissões não possuem poder punitivo. Ou seja, independente das descobertas, conclusões ou
identificação de crimes e autores, elas não possuem autoridade para sua punição. Mesmo destituída
de um caráter penal, podemos asseverar que a CNV intenta promover um julgamento do ponto de
vista da história e da memória, sendo um importante momento para permitir que o passado
realmente passe.
A CNV deve ser visualizada dentro de um panorama histórico o qual traz em si uma
série de organizações atreladas aos direitos humanos e aos familiares de vítimas da Ditadura,
conforme assinala a tese de doutorado de Glenda Mezarobba: “Um acerto de contas com o
futuro: a anistia e suas consequências: um estudo do caso brasileiro (2006)”, onde conseguimos
observar as ações da Comissão Especial de Mortos e Desaparecidos Políticos (1995), da
Comissão de Anistia (2002), bem como do Projeto Memórias Reveladas (2009). Neste ínterim,
após a criação da CNV, devemos observar que esta contou com o apoio e a criação de uma
série de outras comissões e grupos de trabalho, como, por exemplo, as Comissões Estaduais
da Verdade (CEV).
1 A justiça de transição é conceituada como o conjunto de abordagens, mecanismos (judiciais e não judiciais) e
estratégias para enfrentar o legado de violência em massa do passado, para atribuir responsabilidades, para
exigir a efetividade do direito à memória e à verdade, para fortalecer as instituições com valores democráticos e
garantir a não repetição das atrocidades (conforme documento produzido pelo Conselho de Segurança da ONU -
UN Security Council- The rule of law and transitional justice in conflict and post-conflict societies) in:
<http://escola.mpu.mp.br/dicionario/tiki-index.php?page=Justi%C3%A7a+de+transi%C3%A7%C3%A3o>
Outrossim, podemos assinalar que, no Brasil, embora a aplicação de tais medidas seja mais adequada quando
realizadas no quadro de experiências históricas em que se situam, a aplicação dessas ações não se processou, de
fato, no momento em que a transição ocorria, ainda que a experiência brasileira exija o uso desse termo com
ressalvas, pois sua aplicação é mais adequada para experiências históricas que se dão, de fato, no momento em
que a transição ocorre, o que não é bem o caso brasileiro – embora, cumpre lembrar, não sejam as únicas ações
encaminhadas pelo Estado e por outros segmentos organizados da sociedade civil (no sentido de contribuir com
atos de reparação àqueles vitimados pela ditadura).
da Verdade (CEV). Podemos asseverar que estas comissões se afixaram como importante
elemento do que se considera como sendo “justiça de transição”.1 Uma gama de controvérsias
e polêmicas que perpassam a atuação dessas comissões são reveladoras dos limites e
desafios que os trabalhos para uma efetiva justiça de transição enfrentam no Brasil, para
promover, de modo mais eficiente a luta pela verdade, pela memória e pela justiça, muitas
vezes se referendando nos exemplos chileno e argentino.
Ao pensarmos as ações desenvolvidas durante o período da ditadura civil-militar, entre
as décadas de 1960 e 80, investigando e reconhecendo este ínterim como traumático para as
vítimas de um Estado autoritário e formador de uma “cultura do medo”, devemos voltar nossos
olhares para o modo pelo qual múltiplas dimensões temporárias coexistem e como embora
tenha chegado o fim do governo ditatorial e ocorrida a transição para a democracia, uma série
de continuidades e reminiscências continuam a persistir, como assinala a historiadora
Carolina Silveira Bauer:

A ditadura civil-militar brasileira realizou sua transição política desativando


paulatinamente – por vezes, somente em parte – as estratégias de implantação do terror.
No entanto, as mudanças institucionais e políticas não possuem o mesmo ritmo que as
transformações nas relações sociais e no cotidiano dos cidadãos, que correspondem a
processos mais lentos, decorrentes da necessidade de adaptar-se às novas realidades.
(BAUER, 2015, p. 117).

O que a pesquisadora busca pontuar é que o encerramento desses regimes não representa o
fim do terror e a superação dos traumas. Que na memória traumática, o passado não é passado de
modo tão simples, podendo continuar vivo no nível experiencial. A autora atenta ainda para o fato
de como ao longo deste processo forjou-se uma “ideologia da reconciliação”, que procurou a
equiparação entre a violência do Estado e da esquerda armada, objetivando uma responsabilização
geral e contribuindo, em conjunto com a neutralização moral consequente da Lei da Anistia (1979),
para uma diluição das responsabilidades, para o esquecimento, para a desmemoria e o silêncio.
(BAUER, 2015, 118-9).
Tendo em vista que os conflitos e contradições não se fecham com a comutação de um
regime político autoritário para a democracia, a seara em que a CNV se propõe a transitar perpassa
o problema do convívio com uma situação-limítrofe, um passado de experiência traumática, em um
presente democrático e que expõe a fragilidade das temporalidades delimitadas por marcos
históricos matematizados e que, muitas vezes, orientam dimensões do direito e da política.
Diante desse breve cenário, este trabalho consiste em uma análise do relatório final das
Comissões Nacional e Estadual da Verdade, procurando acenar para reflexões no que tange a
verdade, a memória, as temporalidades e os direitos humanos. Estas formulações fazem parte de
um trabalho mais amplo, que se volta para o cotejamento destes relatórios com os depoimentos
prestados em audiências públicas promovidas pela CNV, na cidade de Cascavel/PR, e bem como
com entrevistas realizadas com depoentes nestas audiências, procurando compreender como se dá
a construção das memórias desses sujeitos e pela própria comissão.

O Sr. Waldemar Torres Rosin, agricultor, residente na linha Pavão, zona rural no
município de Capanema, sudoeste do Paraná, que juntamente com os irmãos participou do
chamado Grupo dos Onze,2 foi uma das pessoas ouvidas na audiência da CEV-PR em
Cascavel. Por uma série de circunstâncias, seu depoimento é bastante breve, tendo duração de
menos de 3 minutos, cercado de nervosismo, entre outras reações por falar para um
auditório cheio e para membros de uma comissão que assume o papel de autoridade sobre
o tema, bem como pela própria condição de agricultor, homem simples o qual passou
praticamente toda sua vida no trabalho no campo. Em essência, o depoimento traz o breve
relato da ida de policiais até a casa, onde morava com a família, à procura por armas e agindo
com alguns excessos de força, relatados deste modo pelo depoente:

Aquele dia que eles bateram lá em casa, lá no meu irmão, atiraram bastante, não atingiram
em nenhum dos homens, mas atingiram uma vaca do vizinho lá em cima. Bem, no fim a
vaca morreu também. E daí chegaram lá em casa, e começaram a pedir armamento e tudo.
E foi, e foi, e foi, e a mãe deixou eles entrar em tudo, reviraram colchão, quarto por quarto,
e isso e aquilo, pedindo o armamento, mas a gente não tinha! Que armamento vai ter né?
E daí passaram dali, passaram pra debaixo da casa, e daí tinha uma tuia de feijão lá, eles
abriram a tuia de feijão... Pedindo o armamento... Derramaram tudo lá; não tinha nada.
Daí eu tava lá embaixo tratando os porcos, e vieram e pediram de novo: “onde tá o
armamento?” Digo: “Mas armamento não tem.” Daí chegou um policial e me botou o fuzil
no peito. Aí fiquei quieto e saí. Pediu de novo, de novo e revistaram minha casa tudo. E
depois, mais tarde, outro tempo depois, teve uma missa lá na localidade. Daí o padre
chamou a família Rosin de comunista. Isso foi o que nos doeu pra nós. E nós somos em
onze irmãos, irmã, e nenhum não trocou de religião até hoje. É isso aí. (ROSIN, 2016,
A/A).

Na sequência, Aluizio Palmar, membro da comissão, pontua que passou um tempo em


Capanema, em busca de companheiros desaparecidos e que ficou sabendo que o Sr. Waldemar havia

2 Os chamados Grupos de Onze Companheiros, simplificadamente, Grupos dos Onze ou Gr-11, e


também conhecidos como Comandos Nacionalistas foram concebidos por Brizola no fim de 1963. Tomando
por base a formação de um time de futebol, imagem de fácil assimilação e apelo popular, Brizola pregava a
organização de pequenas células – cada uma composta de onze cidadãos, em todo o território nacional – que
poderiam ser mobilizadas sob seu comando. Era um grupo de esquerda, porém não socialista, era nacionalista e
apoiava abertamente as políticas de base de Jango, dentro do contexto de radicalização política do período
histórico (cf. Wikipédia).
sido muito torturado, e incisivamente perguntou que tipo de tortura sofreu, onde e se o olho de vidro
que ele possui é fruto da violência sofrida. De modo breve, o depoente assim se posicionou:

Não. Esse eu tinha mais ou menos 26 anos quando eu perdi.


Palmar: O senhor chegou a ser preso e foi torturado onde?
Sr. Waldemar: Não, não, não.
Palmar: Você foi torturado?
Sr. Waldemar: Só aquela uma, né.
Palmar: qual?
Sr. Waldemar: Aquela que ele bateram, né.
Ivete Caribé: Quando o senhor menciona uma, o senhor chegou a ser preso uma vez, ou
mesmo não tendo sido preso, foi torturado e ameaçado. O que aconteceu?
Sr. Waldemar: Não, não... eu não fui preso, né. Mas os meus irmãos foram, porque eu
fiquei com a mãe, né, daí a mãe ficava sozinha.
Ivete Caribé: Sim, e o senhor foi ameaçado pelo Exército, pela Polícia?
Sr. Waldemar: Não, foi só aquele policial que eu tava dando água pros porcos, né.
Ivete Caribé: Tá certo! Muito bem. (Audiência CEV-PR).

Diante do depoimento prestado e das questões colocadas pelos membros da Comissão, até
mesmo de modo insistente, tem-se uma impressão de que os mesmos procuram o relato da violência
sofrida em sua forma material, isto é, a tortura, a violência física, dando pouca atenção ao sujeito e
suas experiências. Interessante mencionar que nenhum trecho do depoimento do Sr. Waldemar
aparece nos relatórios da CNV ou CEV-PR, talvez por não trazer o tipo de informação o qual a
Comissão buscava.
O Sr. Waldemar foi o primeiro depoente da audiência pública de Cascavel que conseguimos
contato. Embora tendo em mãos o endereço e o telefone do mesmo, optamos por procurar um
mediador que já tivesse amizade com ele, como forma de construir um ambiente de maior segurança
para a entrevista futura. Através de uma aluna, cujo pai, o Sr. Feltrin, era amigo do Sr. Waldemar,
iniciei os contatos, indo os três para uma primeira conversa, num domingo à tarde, no sítio da
família Rosin, na linha Pavão, interior de Capanema. Naquela tarde fomos apresentados. Conheci
a esposa do Sr. Waldemar, a casa, a área da propriedade, tomamos chimarrão e comemos pipoca
enquanto conversamos sobre vários assuntos.
Realizei uma segunda visita, numa segunda-feira, após meu expediente de trabalho, quando
mais uma vez conversamos sobre diferentes assuntos enquanto tomávamos chimarrão na área
externa da casa. Estas visitas prévias e a intermediação feita pelo Sr. Feltrin foram fundamentais
para uma aproximação maior com o entrevistado. Apesar da timidez perante o gravador, o Sr.
Waldemar ficou à vontade durante a entrevista realizada no dia 26 de março de 2016.
O Sr. Waldemar encontrava-se mais solto por estar em sua casa, ao lado de sua esposa e
assim nosso diálogo ocorreu de modo mais fluído e intenso, o que se observa na segurança e na
entonação de voz que ele empregava. Partindo das noções e compromissos éticos pontuados por
Alessandro Portelli (1997, p. 13-33), procurei me colocar na condição de quem estava “tentando
aprender um pouquinho”, procurando me despir da posição de pesquisador e professor,
reconhecendo e transferindo para Waldemar o empoderamento de quem era o detentor de um
conhecimento de que eu precisava.
Com a transcrição da entrevista em mãos, a condição de pesquisador é a que deve
prevalecer. Assim, ao leiturizar a mesma, percebemos o modo como os entrevistados são
suficientemente perspicazes para discernir o que o entrevistador quer, e quais suas intenções entre
outras. Iniciamos nossa entrevista pedindo para o Sr. Waldemar narrar sua trajetória de vida, suas
origens, infância, trabalho e afins, sendo assim respondido:

Tudo bem. Eu vim de Criciumal, com... 12 anos. Chegamos aqui e até agora estamos aí
ainda. E aquela de 64, dai nós tava aqui, morava lá embaixo e deu tiroteio em tudo aquela
ali. Foi indo, foi indo, escaparam, pegaram só um e... Daí o Antônio escapou, ficou dentro
do riozinho, da valeta ali, e o Lídio ficou ali em cima dum pé de banana lá, e nós tava aí.
O meu irmão lecionava aqui, tinha a escola aqui, aquela vez: tava cheio de aluno. Era umas
nove e meia, dez horas, quando bateram aí. A polícia daí foi, foi, retiraram e pegaram o
Antônio. Daí vieram revistar a casa ali embaixo. Tava só eu e a mãe ali né. Naquela época
era colchão de palha. Não sei se o senhor lembra disso, do colchão de palha. Daí eles
queriam saber o armamento. Foram revirando pra cá, foram revirando lá né, mas não tinha
nada. A única coisa que tinha é essa espingarda que tá ai hoje (risos). Tinha só dois
cartuchinhos carregados (risos) de passarinho ainda. Daí não acharam armamento. Foi e
foi e aí foram embaixo do porão. Tinha uma tuia de feijão... “É aqui que tá o armamento.”
Pegaram, abriram e derramaram o feijão no chão... feijão do manguá, batido a pau naquela
época né, 64. Não tinha arma, não tinha nada, batia pau, não tinha armamento, não tinha
nada. Aí me judiaram bastante lá embaixo, no chiqueiro dos porcos, diziam que eu sabia
do armamento. Sabia e sabia que o armamento tava aqui, com duas latas d’água, e foi isso
(ROSIN, 2016, A/A).

O entrevistado sabia que meu interesse em função de minha pesquisa se voltava para seu
depoimento prestado na CEV-PR. Assim, logo de início ele conduz sua fala para o acontecimento.
De modo bem mais fluído e a vontade, percebemos uma reprodução da ideia narrada na audiência,
no ano de 2014, mas com uma pulsação de sentidos e detalhes bem maiores. O Sr. Waldemar
acenava e apontava para os lugares onde ocorreu o tiroteio, onde era a escola, onde se esconderam,
onde era o chiqueiro, os detalhes da moradia, como o colchão de palha, entre outros. Os detalhes
narrados eram acompanhados de sorrisos e expressões que denotavam uma maior segurança do
entrevistado.
Não podemos afirmar se era apenas a percepção de meus interesses ou se havia uma
necessidade de falar sobre o assunto, de narrar o passado, de se fazer ouvido. Todavia, podemos
perceber o movimento que Alistair Thomson (1997, p. 56) classificou como “composição das
memórias”. Isto é, nossas memórias são compostas na relação entre passado e presente, entre
memória individual e coletiva. Nossas reminiscências são compostas de modo a dar sentido à nossa
vida, no passado e no presente, utilizando linguagens e significados conhecidos de nossa cultura.
Nesse sentido, o depoimento na CEV-PR se faz presente ao longo de sua entrevista, sendo
um elemento importante na construção de sua identidade. Não sabemos se era isso antes, mas faz
parte da atuação do Sr. Waldemar durante a entrevista, bem como do processo de construção e
composição da sua memória. Destarte, podemos perceber como se tece uma memória da memória,
e não do fato em si, isto é, da última vez em que ele lembrou do fato. Para Alistair Thomson,
memória e identidade se encontram em uma relação de grande proximidade:

Nossas reminiscências também variam dependendo das alterações sofridas por nossa
identidade pessoal, o que me leva a um segundo sentido, mais psicológico, da composição:
a necessidade de compor um passado com o qual possamos conviver. Esse sentido supõe
uma relação dialética entre memória e identidade (THOMSON, 1997, p. 57, grifo meu).

Embora na audiência não tenha mencionado com clareza o tipo de agressão sofrida, na
entrevista essa memória é composta de maneira mais organizada, dizendo que “Ai me judiaram
bastante lá embaixo no chiqueiro dos porcos, diziam que eu sabia do armamento”. Ao falar que
“judiaram bastante” as memórias de Sr. Waldemar já estão sistematizadas com maior clareza e a
partir de sua experiência na Comissão da Verdade. A reivindicação e a exposição da violência
sofrida já ocupam um espaço na narrativa do agricultor que relata com maior perceptibilidade o
acontecimento: “Meteram o fuzil no peito, me derrubaram e depois me deram uns coices, ainda”
(ROSIN, 2016, A/A).
Nesse sentido, a própria entrevista faz parte desse processo constante de composição das
memórias. O Sr. Waldemar reagiu às minhas perguntas de modo mais tranquilo e inteligível, até
mesmo se posicionando quanto ao modo como o ocorrido re-significou o presente em suas
lembranças: “Claro que marca né... quando que o senhor sai ferido e vai esquecer? Nunca mais na
vida... nunca mais esquece. Essa mancha fica pra sempre” (ROSIN, 2016, A/A), me levando a
compreender que a composição das experiências nunca se finda, ela é constantemente relembrada
e retrabalhada.
Na esteira desse entendimento, A. Thomson pontua que:

As imagens e linguagens disponíveis usadas pelo público nunca se encaixam


perfeitamente às experiências pessoais e há sempre uma tensão que pode ser manifestada
através de um desconforto latente, da comparação ou da avaliação. Portanto, os relatos
coletivos que usamos para narrar e relembrar experiências não necessariamente apagam
experiências que não fazem sentido para a coletividade. Incoerentes, desestruturadas e, na
verdade, ‘não-lembradas’, essas experiências podem permanecer na memória e se
manifestar em outras épocas e lugares – sustentadas talvez por relatos alternativos – ou
através de imagens menos consistentes. Experiências novas ampliam constantemente as
imagens antigas e no final exigem e geram novas formas de compreensão. A memória
‘gira em torno da relação passado-presente, e envolve um processo contínuo de
reconstrução e transformação das experiências relembradas’, em função das mudanças nos
relatos públicos sobre o passado. Que memórias escolhemos para recordar e relatar (e,
portanto, relembrar), e como damos sentido a elas são coisas que mudam com o passar do
tempo”. (THOMSON, 1997, p. 56-57).

Outro elemento importante a ser observado na fala do agricultor é a dimensão da violência


simbólica em torno da sua memória e identidade. O episódio descrito ao final do depoimento, na
audiência da CEV-PR, traz o posicionamento do padre da comunidade construindo o rótulo de
“comunista” à família Rosin: “mais tarde, outro tempo depois, teve uma missa lá na localidade. Daí
o padre chamou a família Rosin de comunista. Isso foi o que doeu pra nós. E nós somos em onze
irmãos, irmã, e nenhum não trocou de religião até hoje. É isso aí” (ROSIN, 2016, A/A).
O julgamento da comunidade e a rotulação é um tipo de violência simbólica, mas nem por
isso ela é menos real ou menos violenta que outras formas de violência. Podemos até mesmo
arriscar a dizer que, na ocasião da audiência pública, a fala do Sr. Waldemar demonstrava mais
inquietação com essa situação do que com a coronhada que lhe fora dada pelo policial na altura do
peito.
Em nossa entrevista, retornei a este assunto, perguntando como havia sido o episódio, que
foi assim descrito:
Isso aconteceu até aqui. O padre de Capanema veio rezar uma missa aqui, na comunidade
aqui e taxou nós de comunista. E depois que o Antônio voltou, ele tinha um gadinho aí.
Daí ele doou uma novilha pra festa da matriz, sempre em maio né. Daí o padre, “ah, mas
foi engano” e isso e aquilo “não é família comunista.” Uma novilha pagou daí.
Marcelo: E como vocês se sentiam sendo tratados, taxados como comunistas?
Valdemar: Pois é, mas o que se vai fazer? O pessoal daqui não, mas os outros falavam...
Esses aqui sabiam que nós não era... Íamos na igreja todos os domingos né; era difícil um
domingo que não ia. Depois não fomos mais. (ROSIN, 2016, A/A).

Observamos que a participação no Grupo dos Onze, a troca de tiros com a Polícia, o
episódio de violência ocorrido em sua propriedade, para além da coação física, atuam em seu caráter
simbólico, na forma de danos morais e psicológicos. Tal situação pode ser potencializada pelo fato
de envolver o padre e a igreja local. Nesse sentido, devemos analisar o papel desempenhando pela
religião, principalmente em comunidades agrárias, como um elemento que garanta uma coesão
entre o grupo social.
Para Durkheim, uma das principais características da religião é sua capacidade de unir um
determinado grupo social a partir de um sistema de crenças comuns. Já o sociólogo e teólogo Peter
Berger pontua que o “nomos estabelecido é entendido como um escudo contra o terror” (BERGER,
1985, p. 35), tecendo uma relação entre o indivíduo e a sociedade, acenando para o fato de que a
religião oferece ao indivíduo uma maneira de diferir o mundo do “pesadelo da anomia” e conservar-
se seguro.
O episódio narrado demonstra como os reflexos da ação policial e do posicionamento do
padre local mergulham a família temporariamente numa situação anômica, sendo reparado somente
após um dos irmãos, Antônio, doar um novilho para a festa da Igreja e o padre reparar a situação.
Outro ponto significativo acerca dessa questão é quando interpelado sobre o que significava
ser comunista, em meio a risos, o entrevistado assim se coloca: “Comunista, nem sei o que é”.
Diante dessas reflexões sobre os relatos do Sr. Waldemar e pensando a proposição e as
finalidades da CNV em garantir o direito à memória, a dúvida de como estas memórias foram e
serão inseridas em uma proposta mais ampla se faz presente. Outro questionamento é: que tipo de
restituição, os depoentes como o Sr. Waldemar e tantos outros têm em relação ao testemunho
prestado? Como esse trabalho se volta para eles? Será possível pensar que o depoimento prestado
permitiu ao Sr. Waldemar um processo de individuação, subjetivação ou, até mesmo, perlaboração?
Ainda na esfera dos questionamentos, pergunta-se sobre o desejo de reparação material que
aparece na entrevista concedida pelo agricultor e que parece ter sido proposto pelos membros da
CEV-PR que o procuraram:

Ah, o Elias veio aqui, né, ele e mais um; não sei qual era o outro. Me entrevistaram aqui e
aí comunicaram pra ir lá. Daí eu só falei se o rapaz ia junto e se eles iriam vir me pegar
aqui. Dai eles vieram me pegar aqui e levaram. Aí meu irmão tava junto lá em Cascavel
[...]. Mas olha, ficou certo pra eles trazer né. Tem até os papeis aí tudo, mas até hoje não
apareceu.
Mas quem deixou o papel?
Valdemar: Lá da Comissão da Verdade.
É? Eles falaram em reparação, em ressarcimento?
Valdemar: Sim, em seis meses era pra receber, e até agora... (ROSIN, 2016, A/A).

Ademais, em se tratando de uma proposta de reparação de natureza financeira, outro


questionamento que se abre é: Até que ponto esta proposição influencia nos testemunhos dados nas
audiências? Como o ambiente construído nas audiências da CNV podem influir no sentido de um
discurso de vitimização? Quem é realmente o sujeito da CNV? Várias questões se abrem e
começam a delinear caminhos os quais a pesquisa deve trilhar.

O debate contemporâneo acerca da CNV, no Brasil, deve ser compreendido em uma


perspectiva mais ampla, uma vez que, assim como em outros países da América Latina, o
estabelecimento desta Comissão se deu a partir de reivindicações de muitos atores sociais,
principalmente pessoas atingidas pela ditadura, familiares de vítimas, grupos sociais que sofreram
algum tipo de violação, entre outros. Contudo, também devemos evidenciar que, por se instalar
quase um quarto de século após o final da ditadura militar, as experiências de outras comissões –
principalmente latino-americanas – puderam ser tomadas como referências na elaboração de seus
procedimentos. Todavia, isso não exclui a ocorrência de divergências acerca da realização, dos
procedimentos e finalidades da mesma.
Em vários momentos, o Relatório Final da CNV faz menção às experiências das Comissões
na Argentina, no Chile, Paraguai, Peru, bem como da África do Sul, entre outras. Nesse sentido,
depreende-se que um grande arcabouço metodológico e procedimental deva ter servido como
referência, como forma de refletir acerca dos problemas enfrentados e elaborar novas respostas,
assim como orientar-se por práticas as quais se apresentaram de maneira eficiente.
Tomando por exemplo o caso argentino, com o fim da ditadura militar, em 1983, este país
acaba por desenvolver um conjunto de práticas que passam a tecer uma luta política, jurídica e
simbólica contra o esquecimento das cerca de 30 mil vítimas do terrorismo de Estado (1976-83).
Uma luta pelos Direitos Humanos passou a ser travada, objetivando a criminalização do regime
militar e a punição dos envolvidos. Nesse sentido, as tessituras de uma série de ações foram bastante
fecundas. E, embora a lei de Anistia tenha sido decretada pelo presidente Carlos Menen (1990), a
articulação de uma memória social acerca do passado ditatorial ainda se percebe com bastante
clareza em diferentes posturas políticas e movimentos sociais na contemporaneidade.
O historiador alemão, Andreas Huyssen, ao analisar o caso argentino, postula que:

A memória da ditadura foi crucial para o sucesso da transição para a democracia na


Argentina. Podemos dizer que a Argentina de hoje, apesar de suas dificuldades
econômicas, tem os mais intensos debates sobre a memória entre os países latino-
americanos que foram atormentados pelas campanhas militares de repressão, tortura e
assassinatos nas décadas da Guerra Fria posteriores aos anos 1960 – mais intensos que os
do Brasil, Uruguai, Chile ou Guatemala. Esse ‘sucesso’ certamente foi um dos fatores que
mantiveram os militares nos quartéis durante a queda livre econômica e social do país,
desde 2001 (HUYSSEN, 2014, p. 161).

Findado o período de governo militar na Argentina, quase que imediatamente, iniciou-se a


articulação de uma série de ações que visavam instaurar a punição de envolvidos em torturas,
assassinatos, desaparecimentos e vários outros tipos de violência perpetrados pelo Estado de
exceção. Neste ínterim, ao analisar a consolidação de uma determinada memória acerca das vítimas
e do próprio regime político, Huyssen acena para um conjunto de situações nas quais o
esquecimento público atrelou-se a um discurso politicamente desejável da memória, tornando-se
necessário para que uma série de reivindicações culturais, jurídicas e simbólicas pudessem ser
consolidadas. Assim, o autor assevera que “Na Argentina, foi uma dimensão política do passado –
a saber, as mortes causadas pela guerrilha urbana armada da década de 1970 – que teve de ser
‘esquecida’ (silenciada, desarticulada) para permitir um consenso nacional da memória em torno da
figura vitimada dos desaparecidos.” (HUYSSEN, 2014, p. 160).
A partir dos diálogos teóricos estruturados pelos apontamentos de Andreas Huyssen, bem
como outros autores, uma série de questões, operadas num plano comparativo à realidade brasileira
pós ditadura militar (1964-85) começaram a surgir: seria preciso esquecer algo para lembrar? Quem
foram as vítimas da ditadura e quais suas trajetórias de vida? Como as mesmas lidaram com sua
situação ao largo desse período?
O caminho trilhado até o momento e as questões acima listadas acenam para os
direcionamentos futuros que esta pesquisa deve tomar. Nesse sentido, o enfoque se voltará para a
produção de novas entrevistas com os depoentes nas audiências da CNV, com o objetivo de
compreender de modo mais amplo, tanto seus testemunhos como o trabalho da própria comissão.
Uma leitura inicial dos relatórios e depoimentos dá a impressão que o foco principal dos trabalhos
centrou-se numa absolutização dos testemunhos, atribuindo a estes um estatuto de verdade
histórica, bem como, em alguns momentos “pinçando” ideias e informações que se adequem à
memória que se objetiva construir e nos levando a questionar quem realmente é o sujeito da
Comissão Verdade: os indivíduos, o Estado, os militares, a violência?
Nesse sentido, procuramos compreender como e se as ações desenvolvidas pela CNV em
seus trabalhos conseguem dar conta de promover um processo de individuação e subjetivação,
permitindo que os depoentes, na perspectiva de Alain Touraine, se tornem sujeitos e promovam
uma reflexão de si para si e na relação para com o outro. Pois somente nos tornamos plenamente
sujeitos aceitando como ideal reconhecer-nos – e fazer-nos reconhecer enquanto indivíduos –
tornando-nos seres individuados, que lutam, protegem e constroem sua singularidade, dando
sentido a sua existência através de seus atos de resistência.
Não obstante a esse processo de individuação e subjetivação, tem-se uma dimensão
contemporânea da memória e do passado como elementos promotores de uma práxis que promova
os direitos humanos no presente, questionando estruturas sociais e políticas que primam pela
manutenção de desigualdades e injustiças, bem como violações contemporâneas, nas palavras do
próprio Touraine:
Não vejo porque a defesa dos direitos humanos, sociais e culturais de cada indivíduo, que
só podem ser defendidos coletivamente, implicaria a indiferença quanto à situação dos
outros. [...], eu especifico que a defesa dos direitos pessoais, como sempre, alimenta a ação
coletiva contra todos os privilégios, [...]. Não tenho qualquer razão para me distanciar da
tradição secular que uniu o respeito do indivíduo com as lutas por todas as liberdades
coletivas.” (TOURAINE, 2009, p. 191)

Conforme a concepção do autor faz-se necessário que os sujeitos resguardem sua memória,
mas que a possam atrelar ao pensamento racional, à liberdade e identidade cultural. Pois, assim, a
democracia conseguirá garantir o respeito às diferenças individuais e à pluralidade, bem como a
práticas participativas e colaborativas sociais e políticas.
Por fim, devemos pensar a memória a partir da necessidade de problematizar a experiência
humana em tempos de violência e crise. Muitas narrativas visualizadas até o momento trazem
consigo a memória, mas também o esquecimento e uma forte tendência retórica, as quais parecem
ser analisadas sob uma única perspectiva nos trabalhos da CNV. Nesse sentido, não está em jogo
apenas o que é lembrado e o que é esquecido, mas o trabalho de seleção do que pode ou não ser
lembrado, bem como a maneira pela qual isso deve ser lembrado e narrado, fazendo com que
experiências de privação, violação, perdas, mortes e outras, assumam sentido, justificando sua
trajetória e legitimando aquilo que se reivindica.

BAUER, Caroline S. O debate legislativo sobre a criação da Comissão Nacional da Verdade e as


múltiplas articulações e dimensões de temporalidade da ditadura civil-militar brasileira. In: Anos
90, Porto Alegre, v. 22, n. 42, p. 115-152, dez. 2015.

BERGER, Peter Ludwig. O dossel sagrado: elementos para uma teoria sociológica da religião.
trad. J. C. Barcellos, S. Paulo: Paulinas, 1985

Brasil. Comissão Nacional da Verdade. Relatório / CNV – Recurso eletrônico. – Brasília: CNV,
2014. v. 1, 2 e 3 (in: http://www.cnv.gov.br/).

CONRADI, Carla N. Memórias do Sótão: vozes de mulheres na militância política contra a


ditadura no Paraná (1964-1985). (Tese de Doutorado) – UFPR, Curitiba, 2015.

FICO, Carlos. Versões e controvérsias sobre 1964 e a ditadura militar. In: Revista Brasileira de
História, v. 24, n. 47. São Paulo, 2004.

HARTOG, François. Regimes de historicidade: presentismo e experiências do tempo. Belo


Horizonte: Autêntica, 2013.

_____. Tempo e Patrimônio. Varia História, Belo Horizonte, v. 22, n. 36, p. 261-273, jul/dez
2006.

HUYSSEN, Andreas. Culturas do passado-presente: modernismos, artes visuais, políticas da


memória. Rio de Janeiro: Contraponto; Museu de Arte do Rio, 2014.

MEZAROBBA, Glenda. Um acerto de contas com o futuro: a anistia e suas consequências:


um estudo do caso brasileiro. São Paulo: Humanitas; Fapesp, 2006.

POLLAK, Michael. Memória, esquecimento e silêncio. Estudos Históricos, Rio de Janeiro, v. 2,


n. 3, 1989, p. 3-15. Disponível em:
<http://www.uel.br/cch/cdph/arqtxt/Memoria_esquecimento_silencio.pdf.> Acesso em
06/05/2017.

PORTELLI, Alessandro. A filosofia e os fatos. In: Revista Tempo, Rio de Janeiro, v. 1, n. 2, p. 59-
72, 1996.

Relatório da Comissão Estadual da Verdade Teresa Urban. Relatório / CEV – Recurso eletrônico.
– Paraná: CEV-PR, 2014.

RICOEUR, Paul. A memória, a história, o esquecimento. Campinas: Ed. da Unicamp, 2007.

SARLO, Beatriz. Tempo passado: cultura da memória e guinada subjetiva. São Paulo: Companhia
da Letras, 2007.

THOMSON, Alistair. Recompondo a memória: questões sobre a relação entre a história oral e as
memórias. Revista do Programa de Estudos Pós-Graduados em História do Departamento de
História da PUC/SP, São Paulo, n.15, p.51-84, abr. 1997.

TOURAINE, Alain. Pensar outramente: o discurso interpretativo dominante. Rio de Janeiro:


Vozes, 2009.

ROSIN, Valdemar. Entrevista realizada em 26 de março de 2016. Arquivo do Autor (A/A).


Julia Gallego Gomez*

Me propuse como objetivo de este trabajo estudiar y comprender las historias de luchadores
sociales del Uruguay, ex presos políticos de la dictadura cívico-militar; cómo los acontecimientos
durante la dictadura y la cárcel influenciaron en sus vidas y cuales fueron los mecanismos de
superación activados para sobrellevar esas adversidades extremas. Tuve la oportunidad de
encontrarme con estos protagonistas y oír sus historias de vida, personas especiales, que siendo de
una generación anterior tienen mucho para enseñarnos. A través de una escucha sensible y
utilizando la entrevista narrativa como instrumento, registré las particularidades de estas memorias.
Busqué una forma más objetiva y amplia para analizar estos relatos y a partir del concepto de
resiliencia, fueron identificados factores protectores que accionados en los procesos de vida, pueden
dar pautas para posibles acciones e intervenciones que ayuden a otras personas que vivan
situaciones de extrema violencia.
Es en ese sentido que la sociedad necesita hablar y revisar su historia. En el discurso de
cierre del 2º Encuentro Latinoamericano por Memoria, Verdad y Justicia, es reconocida la
importancia de buscar la justicia para validar las democracias que surgieron después de las
dictaduras. Sin la memoria, la verdad y la justicia no se consigue una democracia “entera”
(GUTIERREZ GALVEZ, 2012), y es una responsabilidad nuestra y de toda la sociedad civil
buscarlas. Los Latinoamericanos estamos juntos en esta historia de tragedia y tenemos un deber en
conjunto de exigir justicia y reparación histórica. “Debemos tener el coraje para asumir el pasado”
(GUTIERREZ GALVEZ, 2012, p. 127). Y conseguir así un presente y un futuro donde “nunca más
sucedan” esos tipos de hechos, lo que solo se consigue conociendo, comprendiendo y elaborando
el pasado.
La recuperación del pasado histórico y la defensa de los Derechos Humanos hace parte del proceso
de construcción de la memoria, factor relacionado con la identidad social y colectiva (ALETTA de
SYLVAS, 2011).
En ese sentido este trabajo también hace parte de la memoria social que, contada por los
propios protagonistas, será la base para la búsqueda de un presente y de un futuro donde las
generaciones edifiquen sus historias. Será un puente entre generaciones, siendo de esa forma de un
carácter eminentemente pedagógico.
Para Halbwachs, la fuerza y la duración de la memoria colectiva se basa en la multiplicidad
de recuerdos, recuerdos individuales que en su conjunto hacen al grupo. Siendo la intensidad del

* UFRGS, Doctoranda en Educación, apoyo CAPES.


recuerdo diferente para cada uno de los individuos, “cada memoria individual es un punto de vista
sobre la memoria colectiva”. (HALBWACHS, 2006, p. 69).
También para este autor la memoria individual está condicionada al contexto social,
influenciada por factores como la familia, la escuela, la comunidad, la profesión, los grupos de
convivencia y de referencia de cada uno.
En ese sentido, Aletta de Sylvas nos trae la importancia del “diálogo e interacción” entre la
memoria individual y la colectiva (ALETTA de SYLVAS, 2008, p. 140). Esta autora cita Ricoeur y
nos habla de la “manipulación ideológica de la memoria”, muchas veces impuesta por la historia
oficial, existiendo verdaderas guerras por su apropiación, construyéndose un espacio de disputas,
donde los regímenes autoritarios intentan imponer un control absoluto sobre la memoria y el
pasado. (GROPPO, apud ALETTA de SYLVAS, 2008)
Según Halbwachs “La historia no es todo el pasado, ni tampoco no es lo que resta del
pasado, o por así decir, al lado de una historia escrita, hay una historia viva, que se perpetúa y se
renueva a través del tiempo.” (HALBWACHS, 2006, p. 100) Para este autor los medios sociales
funcionan como puente para el contacto con el pasado vivido, más de que el pasado aprendido por
la historia escrita, donde se asienta la memoria. (HALBWACHS, 2006, p. 86).
Trabajé con las memorias y las percepciones, tomando en cuenta que en la memoria hay
una selección, de lo recordado a lo olvidado. Se recuerda a partir de un “hoy”, una realidad diferente
del momento en que fue vivido. Otras experiencias y emociones hacen parte del acervo de la
persona y se activan, es “el pasado en el presente de cada ser humano.” (RICOEUR, apud ALETTA
de SYLVAS, 2008, p. 143) definen así la identidad personal y la continuidad del yo en el tempo.
En ese sentido Halbwachs señala el carácter abierto y espontáneo de la memoria,
reconstruyendo, rehaciendo, repensando el pasado, lo vivido, desde un hoy con su proprio contexto
y realidad. Todavía se podría hablar que la memoria es trabajo “La memoria es una imagen
construida por los materiales que están ahora a nuestra disposición en el conjunto de las
representaciones que prueban nuestra consciencia actual.” (BOSI, 1994, p. 55).
“Memoria que trabaja sobre el pasado mirando para adelante, orientada al futuro.”
(ALETTA de SYLVAS, 2008, p. 145).
Tomando en cuenta eso, podemos decir que existen tantas memorias como personas, como
momentos de recordar, y el pasado ni siempre aparece tal como fue, sino como es construido en
este momento, por ese sujeto.

Utilicé como herramienta de investigación la entrevista narrativa, con ella conseguí


instrumentar un escuchar sensible que valorizó, no solo lo hablado, sino también el lenguaje del
cuerpo, las expresiones, los gestos y los silencios. El proceso de busca por las personas a entrevistar
me llevó a conocer a Nibia, Stella, Chela, Ivonne y Baldemar, militantes sociales que hasta ahora
están, de alguna forma, trabajando en ese objetivo que se trazaron; el de ayudar a los otros. Escuché
sus narrativas en relación a su vida y a los hechos vividos durante la dictadura militar y cómo esos
acontecimientos fueron y son determinantes en sus vidas.
Flick (2004), nos propone este tipo de entrevistas como un instrumento eficaz, sobre todo,
cuando se busca la biografía de los investigados. Para este autor el cambio social trae nuevos
desafíos para el investigador, debiéndose aspirar a desarrollar una visión con nuevas sensibilidades
y dando una “perspectiva de procesos a los métodos utilizados”. Para él “la investigación cualitativa
estudia a partir de casos concretos en sus particularidades temporal y local, partiendo de las
expresiones y actividades de las personas en sus propios contextos” (FLICK, 2004, p. 28).
Para Minayo, Deslandes, Neto e Gomes, la investigación cualitativa responde a las
particularidades de los niveles de realidades que no pueden ser cuantificados, de acuerdo con estos
autores: “La investigación cualitativa trabaja con un universo de significados, motivos,
aspiraciones, creencias, valores y actitudes, que corresponden a un espacio más profundo de las
relaciones, de los procesos y de los fenómenos que no pueden ser reducidos a manejo de variables”.
(MINAYO, DESLANDES, NETO, GOMES, 1998 p. 22).
Percibí ya en las primeras aproximaciones, como esos temas eran delicados y difíciles de
tratar, por eso, fue necesario respetar el tiempo de las personas y crear la confianza para poder hablar
sobre esos asuntos. Los valores éticos fueron contemplados, explicándose detalladamente el
objetivo de la investigación, y los entrevistados firmaron el libre consentimiento para publicar el
producto de sus entrevistas.

Los entrevistados son uruguayos, pequeño país al Sur del Brasil, que con un territorio es de
176.000 km², alberga actualmente en torno de 3.500.000 habitantes (Censo 2011), Al norte tiene
frontera con La República Federativa del Brasil y al Este con Argentina. Las fuentes de ingresos
más importantes del Uruguay son la agricultura, y sobre todo, la ganadería. Esta última favorecida
por el relieve plano y de pampa suave, con muchas fuentes de agua, tiene relación directa con la
historia de sus habitantes, entre ellos indios y gauchos. Estos últimos, como sabemos presentes no
solo en lo que hoy es Uruguay, sino también en el Sur de Brasil y en la Argentina.
En este marco general, la historia presenta sus particularidades, como en cualquier sociedad.
El Uruguay, país con tradición democrática, vive actualmente en ese régimen, con dos Cámaras: el
Senado y la Cámara de Diputados. También atravesó procesos dictatoriales y caracterizándose por
un bipartidismo histórico con luchas entre caudillos. Eso todo no impidió el crecimiento social y
económico, el desarrollo cultural y político, que le dió al país características particulares en América
Latina. El Uruguay fue uno de los primeros países que legalizó el voto de las mujeres, que colocó
en práctica los derechos de los trabajadores y se caracterizó por una enraizada participación popular
a lo largo de su historia. Es un pueblo que ya desde el comienzo del siglo pasado, presenta un alto
nivel de instrucción de la población en general, con un bajo índice de analfabetismo. Sin embargo,
la crisis gradual que tuvo inicio en las décadas del 50 y 60, llevó a una crisis económica que fue
marcada por conflictos y luchas sociales que precedieron al Golpe de Estado del año 1973.
El país pasa por un proceso de militarización, que llevó a las Fuerzas Armadas a intervenir
en todas los aspectos de la vida civil. Los Derechos Humanos fueron violados de diversas formas,
se implementaron leyes y decretos que prohibían y reprimían cualquier actividad política, se
eliminaron las independencias de los poderes Legislativo y Judicial, se instauró la justicia militar y
la civil fue extinta.
Las prácticas de terrorismo de estado comenzaron en Uruguay antes del período de la
dictadura militar, pero fueron profundizadas y exacerbadas durante ésta última. Prisiones masivas
y prolongadas fueron características de ésta dictadura.
La justicia militar procesó más de 6000 personas en el recorrer de aquellos años, otras
fueron interrogadas en los centros de detención bajo el régimen de Medidas Prontas de Seguridad.
Las torturas, tanto físicas como psicológicas fueron prácticas cotidianas en estos centros de
reclusión. Las fuerzas represivas del “Plan Cóndor” organizadas por los Estados Unidos orientaba
y mantenía en contacto las acciones militares de varios países, como lo eran: Argentina, Brasil,
Uruguay, Paraguay y Chile. Lo que significó la persecución y muerte de uruguayos en otros países.
Según los datos correspondientes al año 2009, en las pesquisas de la Comisión para la Paz,
se confirmaron 168 uruguayos desaparecidos, de los cuales 32 fueron en Uruguay, 125 en la
Argentina, 9 en Chile, 1 en Bolivia y 1 en Colombia (RICO, 2009).
66 personas murieron en las cárceles uruguayas, las muertes fueron causadas por las torturas
recibidas, por la falta de atención médica y por suicidio. Además de eso, 22 uruguayos fallecieron
en enfrentamientos con las Fuerzas Armadas y otros 13 fueron secuestrados y asesinados en
Uruguay y en la Argentina.
En 1985, después de 12 años de dictadura militar, Uruguay retorna a la democracia. El día
14 de marzo, salen de las cárceles los que fueron los últimos presos políticos de la dictadura militar
uruguaya, con más de 10 años de cárcel, se enfrentaban a un Uruguay diferente del que conocieran.
El miedo, la violencia, la crisis económica, los “valores” militares habían mudado al país. Después
de haber vivido torturas físicas y psicológicas, la mayoría de los presos políticos se enfrentaría, en
la salida de la cárcel, con diferentes grados de dificultad en su reinserción en la sociedad.
Comienza un proceso de reconstrucción del país, de lucha por conquista de Memoria,
Verdad y Justicia. Proceso que todavía hoy resulta doloroso, más que es una responsabilidad y esos
valores un legado que debemos a nuestros hijos y nietos.

El concepto de “resiliencia” es utilizado primeramente en las ciencias exactas y describe la


propiedad o característica de algunos metales, que al ser sometidos a factores extremos de calor,
frío, o presión, se adaptan y vuelven al estado anterior sin tener cambios en su composición original.
En el Diccionario de la Real Academia Española es definido este concepto como: “Capacidad de
un material, mecanismo o sistema para recuperar su estado inicial cuando ha cesado la perturbación
a la que había estado sometido.”
Concepto adoptado en las ciencias humanas, la resiliencia representa la capacidad del ser
humano que al pasar por situaciones de riesgo consigue superarlas, continuando en frente con su
vida. Según el mismo diccionario resiliencia es: “Capacidad de adaptación de un ser vivo frente a
un agente perturbador o un estado o situación adverso.”
Varios autores trabajaron con el concepto de resiliencia, por ejemplo para Rutter, la
resiliencia es aquella dinámica que permite al individuo salir fortalecido de las adversidades, y es
un fenómeno que engloba factores ambientales y personales (RUTTER, 1985). Cyrulink nos habla
de la capacidad de rehacer la vida y desarrollarla positivamente, de manera socialmente aceptable
después del estrés de una adversidad que haya sido de grave riesgo (CYRULNIK, 1999). Según
Ojeda, que estudió la resiliencia social, ésta no es un fenómeno individual sino social, son las
condiciones sociales, las relaciones colectivas y los aspectos culturales y valorativos de cada
sociedad que están involucrados en este proceso. (OJEDA, 2005).
Rutter (1987), afirma que la resiliencia es una variación individual en respuesta al riesgo,
pudiendo este ser vivido de forma variada por distintas personas.
Para Couto (2007) se puede afirmar que factores de riesgo son aquellos factores, que
pudiendo ser de naturaleza personal, social o ambiental facilitan o aumentan las probabilidades de
los individuos de padecer enfermedades o disfunciones. “Factores de riesgo se relacionan con toda
suerte de eventos negativos de vida y que, cuando presentes, aumentan la posibilidad del individuo
presentar problemas físicos, sociales o emocionales.” (YUNES & SZYMANSKI, 2002, p. 24). Los
factores estresantes, si bien a veces tienen consecuencias positivas, se configuran, para la mayoría
de las personas, como potenciales factores de riesgo, siendo la resiliencia la mediadora en este
proceso, que permitiría su enfrentamiento y la disminución de su impacto. (Couto, 2007).
En relación a los factores de protección las autoras Yunes & Szymanski definen los
mecanismos de protección como “aquellos que, en una trayectoria de riesgo, acaban por cambiar el
curso de vida de la persona para un “final feliz’” (2002, p. 39). Según sus estudios, los “sistemas de
protección”, son traídos por los investigadores del tema, como aquellos que aseguran la
preservación y el desarrollo frente a crisis y a situaciones adversas. “Los sistemas de protección
actúan en diferentes puntos del desarrollo y en diferentes contextos.” (YUNES & SZYMANSKI,
2002, p. 37).
Grodberg (2005, p. 16 e 17) identifica factores resilientes, organizándolos en cuatro
categorías diferentes: -yo tengo (apoyo), yo soy y yo estoy (fuerza intra-psíquica); y yo puedo
(adquisición de habilidades interpersonales y resolución de conflictos). Según Cyrulnik (2001) los
factores de protección son características de las personas o del ambiente que atenúan el impacto
negativo de las situaciones y condiciones estresantes, habiendo factores internos tanto como
ambientales y externos.
Masten & Garmezy (1985, apud COUTO; KOLLER; NOVO, 2006), proponen tres factores
de protección identificados en sus estudios: 1- Factores individuales; atributos como la autoestima,
2- Factores familiares; apoyo familiar y ausencia de conflictos, 3-Factores de soporte;
disponibilidad de redes de apoyo social que ayudan al individuo a enfrentar adversidades.
En esta investigación fueron analizadas la presencia de estos factores en las historias de vida
narradas por los sujetos del estudio, para identificar su presencia y como eso ayudó a la superación
de las situaciones de violencia que vivieron.

Conociendo a los entrevistados a través de sus historias de vida, pude apreciar como el
proceso de resiliencia se hizo presente en el recorrer de las diferentes realidades. Las dificultades y
el grado de estrés que ellos sufrieron quedaron estampados en sus discursos. La dictadura militar y
el terrorismo de estado influenciaron a todas las personas que los vivieron, tanto dentro como fuera
de la prisión. De todo ese universo, elegí para este trabajo, personas que fueron militantes políticos
y que pasaron por la situación de clandestinidad y cárcel. Buscando asi comprender las diferentes
percepciones y significados de estas experiencias, tanto como los factores de resiliencia activados.
Después de la lectura atenta de las entrevistas transcritas, aparecieron varios elementos en
común que pueden dar contribución para reflexiones sobre el proceso de resiliencia. Estos son: -
Motivación para la lucha social, - Experiencia de persecución y cárcel política, - Tortura: ¿cómo
aguantaron? y - El después de la cárcel y su reinserción en la sociedad.
En este trabajo analizaremos la experiencia en la cárcel y el enfrentamiento con la tortura.

La experiencia de vivir preso resultó definitiva en la vida de todos los entrevistados:

[...] influenció en todos los aspectos de mi vida, porque además después que salimos,
nosotros seguimos militando.... Y yo, toda la experiencia que hice de diferentes tipos en la
cárcel, como toda experiencia de vida, la aplico, en mi vida cotidiana, en la militancia, y
en su práctica. (Nibia).

Nibia estuvo presa por 11 años, entrando con 19 años y saliendo con 30, vivió muchas
experiencias y no hace separación de lo aprendido en el recorrer de su vida:

[...] y bueno, también aprendimos... a mí me marcó mucho el tema de los valores, que uno
reforzó y también aprendió adentro. Toda la vida colectiva, el ser solidarias [...]. (Nibia).
Chela también cree que la cárcel la marcó para siempre, habla de la importancia de los
compañeros:
[...] yo creo que te marca para siempre, primero te digo, que antes que nada están mis
compañeros... que vivieron lo mismo. A veces no precisa ni palabras, solamente con un
gesto ya sabemos lo que queremos decir, y eso a mi me marcó para siempre, para siempre
[...]. (Chela).

Para Ivonne existe un antes y un después de la cárcel:

Hay un antes y un después de todo eso. Creo que uno en la vida, no se termina de conocer
hasta que no pasa una experiencia traumática... Bueno, entonces, el máximo, el extremo
mayor, del intento de otro ser humano contra ti... yo empecé a ver muchas cosas diferentes.

Para Baldemar, las secuelas, tanto psicológicas como físicas quedaron, de alguna forma, en
todos los que sufrieron la cárcel y la represión. Relata casos de compañeros que no consiguieron
superar la situación y se suicidaron.

Todos llevamos, raya más o raya menos, como le decimos, todos llevamos las secuelas,
que se cuelan en nosotros, no? Muchos con problemas psicosomáticos... muchos en
tratamiento psiquiátrico o compañeros que tenían que estar medicados y salieron, y les
costó readaptarse porque las secuelas de eso te quedan. (Baldemar).

En relación a la tortura, los entrevistados mostraron como fue y todavía es difícil hablar de
ese tema. Muchas personas solo consiguieron hablar de eso más de 10 años después de haber vivido
ese estrés extremo. Algunas hasta hoy prefieren no hablar.
Los entrevistados pertenecen al grupo de los ex presos políticos que se movilizan
activamente por Verdad y Justicia, haciendo denuncias en todos los ámbitos que la sociedad abrió
para eso, a nivel nacional e internacional.
Cuando fueron cuestionados sobre la fuerza que los ayudó a aguantar la tortura, todos ellos
dijeron que tanto la familia como el colectivo fueran fundamentales en la voluntad de continuar
viviendo. Además de su propia historia de vida y de su ideología. Nibia nos contó como su
embarazo fue importante para sustentarse frente a la tortura:

En ese momento era lo que me seguía uniendo al afuera, lo que me seguía uniendo a pensar
en un futuro, lo que te seguía motivando frente a tanto dolor, a tanta derrota... a tanto, tanto
golpe [...] Entonces para mí fue un milagro mantener el embarazo, que se me hubiera
mantenido. (Nibia).
Para Chela también la familia y la hija fueron importantes:

Bueno, a mí, desde que me agarran, me ponen, no solamente, capucha, sino algodón,
venda y capucha. Después de ahí yo ya no supe quien era, porque ellos lo que tratan de
hacer es que vos pierdas tu identidad, que vos no seas quien sos. Y hacen todo para que
vos enloquezcas... y ahí vos apelás a todo, a todo lo que vivístes, lo que es tuyo y lo que
vos podes en ese momento. Por eso yo digo que a mí, los compañeros cañeros, este... junto
a mi hija y junto a mis viejos, me sostuvieron en los momentos más difíciles. (Chela).

En el caso de Ivonne, tanto los compañeros como la ideología fueron importantes, más en
último caso fue la familia y la madre que se hicieron presentes en su interior para conseguir
sobrellevar ese momento:

Yo siempre lo dije primero pensas en tus compañeros, en tus convicciones políticas. En


última instancia, cuando ya no das más, es la familia, la cara de mi madre, mi familia. Mi
compañero también, pero más mi madre, más mi madre y mi padre. Mi madre sobre todo,
porque era una persona que tenía problemas de salud, y... yo decía -no me puedo morir
porque la mato a ella, eso era lo que yo pensaba [...]. (Ivonne).

Los compañeros de lucha fueron de lucha fueron primordiales para ellos en el


enfrentamiento de esos momentos.

A mí los factores que me ayudaron a pasar los momentos más difíciles, fue el saber que
tenía compañeros y compañeras, gente que me apoyaba, que no estaba sola y nunca iba a
estar sola... el saber que era parte de un colectivo, de una parte importante de la sociedad
que queríamos lo mismo. (Nibia).
Nuestras estrategias pasaban mucho por... ubicarnos en que nosotros estábamos de un lado
de la reja y los milicos del otro. Entonces teníamos que recomponernos entre nosotras para
enfrentar esa política de represión... Siempre sintiéndonos militantes, siempre sintiendo
como frente de lucha también adentro de la cárcel, planteando conductas de resistencia.
(Nibia).
La historia de vida de cada uno fue una herramienta en los peores momentos, así como su
ideología.
Me ayudó mi propia, elemental ideología, mi conciencia de clase... También lo que fui
aprendiendo, la generosidad, el tema de la solidaridad de las personas, el saber que podés
contar con ellas, el afecto, los valores. (Nibia).
Lo que me ayudó, para mí el hecho de yo haber vivido con tantas carencias, viendo el
sufrimiento de mis padres, ya no había cosa tan difícil, y además de eso yo estaba
convencida de lo que estaba haciendo. (Chela).
Entonces, la historia fue quererse a si mismo, y decir... a pesar de todo, ellos no pueden
ganar porque ahí si es un desastre total. Y bueno, capaz que mi granito de arena es tratar
de sobrevivir. Eso es una primera parte y tiene que ver con la vida, con la familia. (Ivonne).
[...] vos tenés muchas cosas que te ayudan a sobrevivir: recordando momentos... o
creándote un mundo como hizo un compañero... Cada uno tiene formas para aguantar, vas
creando formas [...]. (Baldemar).
Los factores que me ayudaron a pasar por eso, yo creo que lo ideológico es fuerte, en lo
interno de uno, después los factores externos son la familia, que pesa mucho, tener una
compañera, tener un hijo, el haber podido reconstruir todo eso... y el apoyo de la familia.
También la comunidad, el haber tenido amistades también. Eso es lo de más valor.
(Baldemar).

Lo que ellos llamaron de “instinto de supervivencia”, fue clave en los peores momentos, a
pesar de que a veces sentir voluntad de morir.

Te aferrás a la vida en esos momentos, aunque no pensaras eso, en los hechos lo hacés...
luchas por sobrevivir... es el instinto de sobrervivencia que tenemos. (Baldemar).
[...] pensás que no vas a aguantar, pero tu instinto de conservación se magnifica, se
engrandece y lográs sostenerte frente a situaciones que nunca imaginabas que ibas a
aguantar. (Nibia).

A partir de las entrevistas realizadas y de la teoría estudiada puedo valorizar como la


resiliencia se manifestó en los entrevistados a través de procesos en que participaron importantes
características, como por ejemplo en el reconocimiento de sus propias fortalezas, como la
autoestima y la autoconfianza, o en el poder de ayudar a los otros y el participar de una ideología.
Los entrevistados, en sus narrativas presentaron relatos subjetivos de autoconfianza y autoestima,
relacionado a la concepción de la fuerza en si mismo y en sus ideales. Partiendo del motivo de la
militancia política cuando relatam:
“así no me iba permitir vivir”, “yo creía que tenía que cambiar la realidad y estaba haciendo
para eso [...]”, “[...] la sociedad injusta podría ser cambiada [...]”, “es bueno saber que se puede
ayudar a los otros [...]”. O, en el caso de la cárcel y de la tortura, “[...] mis ideas no me las iban a
sacar por más que me torturasen [...]”, “[...] yo estaba convencida de lo que estaba haciendo.”
Por otro lado, las relaciones familiares cumplieron un factor esencial para el desarrollo de
la resiliencia, asi como aportan: “fueron muchos los factores que me ayudaron, más saber que tenía
una familia, un hijo esperándome afuera, fue especial para mí.”. “[...] en la última instancia fue la
familia, mi padre, mi madre. Yo sabía que si yo me moría, mi madre se moría también, tenía que
vivir.”
Este trabajo nos muestra la importancia de la afectividad como base para la resiliencia.
Saberse querido, acompañado, contenido por personas afectivamente próximas fue considerado por
ellos un factor de máxima importancia.
El colectivo fue y sigue siendo otra circunstancia que todos ellos nombraron en sus
entrevistas como indispensable. Sentirse parte de un grupo de personas que tuvieran visiones
parecidas de la realidad, vivencias y propósitos en común es, hasta hoy, un movilizador para la
resiliencia en sus vidas. Todos fueron y son parte de organizaciones o instituciones, participando de
forma activa, incitando a otros a la solidaridad, la empatía, la creatividad y el protagonismo.
Apreciándose así como la participación es un elemento que aporta valides al proceso de resiliencia,
conquistando el poder de ser y hacer de las personas.
Se observó a través de este trabajo como la resiliencia, siendo un proceso, es dinámico y es
conformado de múltiples expresiones. Proceso donde se colocan y relacionan características
personales, más también del entorno familiar y social. Esas características resilientes pueden pasar
por momentos en los que están más o menos fortalecidas. La importancia de construcción colectiva
es primordial en el proceso de resiliencia, permitiendo la creación de alternativas a las adversidades
vividas. La afectividad también es un factor contribuyente de resiliencia, creando base para que
otros factores se desarrollen. La educación, entendida como la procura por el conocimiento, el arte,
la expresión de las ideas y de las emociones, asi como la participación social activa también son
factores que ayudan a construir el proceso de resiliencia.
Reflexionando sobre las posibles acciones que ayudarían a desarrollar la resiliencia en las
personas, la divulgación de las historias de vida de personas resilientes es un buen comienzo para
señalar la importancia de factores como los nombrados anteriormente: afectividad, autoestima,
fuerza del colectivo y participación social como instrumentos para aumentar la resiliencia.
Información y estímulo en ese sentido y a través de políticas sociales trabajarían a favor de
multiplicar esos factores.
La educación se presenta como un instrumento para cultivar los factores protectores, de ahí
la importancia de fomentarla. Pensando que las personas con acceso a más conocimientos podrán
construir mejores posibilidades para enfrentar las adversidades. También, y tomando en cuenta la
importancia de la autoestima, de la afectividad, de la inclusión social, de la participación y la fuerza
del colectivo, se podrá trabajar en ese sentido para ayudar a los seres humanos a ser más plenos y
pasar por situaciones de estrés con mejores recursos.

ALETTA de SYLVAS, Graziela. 2008. Memorias para armar. Revista a Contra-corriente, v. 8,


n. 3, p. 140-162, Spring 2011. Disponível em:
<http://www.ncsu.edu/acontracorriente/spring_11/articles/Aletta_de_Sylvas.pdf> Acesso em: 03-
05-2017.
BOSI, Ecléa. Memória e sociedade: lembranças de velhos. São Paulo: Cia das Letras, 1994.

COUTO, Maria Clara Pinheiro de Paula; KOLLER, Silvia Helena; NOVO, Rosa Ferreira.
Resiliência no Envelhecimento: risco e proteção. In: FALCÃ
O, Deusivania Vieira da Silva;
DIAS, Cristina Maria de Souza Brito (Org.). Maturidade e velhice: pesquisas e intervenções
psicológicas. São Paulo: Casa do Psicólogo, 2006.

COUTO, Maria Clara Pinheiro de Paula. Fatores de risco e de promoção de resiliência no


envelhecimento. (Dissertação de Mestrado) – Programa de Pós-Graduação em Psicologia.
UFRGS, Porto Alegre, 2007.

CYRULINK, Boris. La Résilience: un espoir inattendu. In POILPOT, P. (Org.). Souffrir et se


Construire. Remonville: Èrès, 1999, p. 13-24.

CYRULNIK, Boris. La Maravilla Del Dolor: el sentido de la resiliencia. Barcelona: Granica,


2001.

DICCIONARIO DE LA REAL ACADEMÍA ESPAÑ OLA. Disponible en:


<http://dle.rae.es/?id=STayfGw>. Acceso en: 30-04-2017.

FLICK, Uwe. Uma introdução àpesquisa qualitativa. Porto Alegre: Bookman, 2004.

GARMEZY, Norman. Reflections and commentary on risk, resilience, and development,


Cambridge. England: Cambridge University Press, 1994.

HALBWACHS, Maurice. A memória coletiva. São Paulo: Centauro, 2006.

INSTITUTO NACIONAL DE ESTADÍSTICAS- INE. Censos 2011. Disponível em:


<http://www.ine.gub.uy/censos2011/index.html>. Acesso en 15-04-2017.

MELILLO, Aldo; SUAREZ OJEDA, Elbio Néstor. Resiliência, descobrindo as próprias


fortalezas. Porto Alegre: Artmed, 2005.

MINAYO, Maria Cecilia de Souza; DESLANDES, Suely Ferreira; NETO, Otávio Cruz;
GOMES, Romeo. Pesquisa social: teoria, método e criatividade. Petrópolis: Vozes, 1998.

RICO, lÁvaro (Coord.). Investigación histórica sobre la dictadura y el terrorismo de estado.


1973-1985. Montevideo: Ed. Cruz del Sur, UdelaR. CSIC- CEIU. 2009. Disponivel en:
<http://www.presidencia.gub.uy/comunicacion/informes/investigacion-historica-sobre-detenidos-
desaparecidos>. Acceso en: 10-03-2017
RUTTER, Michael. Resilience in the Face of Adversity: protective factors and resistanceto
psychiatric disorder. In: British Journal of Psychiatry. 1985, 147, 598, 611.

RUTTER, Michael. Resilience Reconsidered: conceptual considerations, empirical findings and


policy implications. In: SCHONKOFF, Jack P; MEISELS, Samuel J (Org.). Handbook of Early
Childhood Intervention. Cambridge University, 2000.

YUNES, Maria Angela Mattar; SZYMANSKI, Heloísa. Resiliência: noção, conceitos afins e
considerações críticas. In: TAVARES, José (Org.). Resiliência e Educação. São Paulo: Cortez,
2001.

YUNES, Maria Angela Mattar. Psicologia positiva e resiliência: o foco no indivíduo e na família.
In: Psicologia em Estudo, Maringá, v. 8, n. esp., p. 75-84, 2003.

YUNES, Maria Angela Mattar; SZYMANSKI, Heloísa. Entrevista Reflexiva & Grounded
Theory: estratégias metodológicas para compreensão da resiliência em famílias. In: Revista
Interamericana de Psicología. v. 39, n. 3, 2005. Disponível em
<http://www.psicorip.org/Resumos/PerP/RIP/RIP036a0/RIP03950.pdf>. Acesso em: 03-05-2017.
Renata Santos Maia*

Na América Latina, cada vez mais mulheres cineastas vêm lançando luz sobre questões
relacionadas à violência, à desigualdade de gênero e à sexualidade. Nomes como Anna Muylaert,
Lucía Puenzo, Lucrecia Martel e Claudia Llosa estão ganhando uma maior projeção por abordar
em seus filmes problemas sociais dos seus países.
Claudia Llosa, cineasta cuja obra foi selecionada aqui para ser estudada, nasceu em Lima,
no Peru, no ano de 1976. Diretora, roteirista e produtora, ela iniciou sua carreira cinematográfica
com o longa-metragem Madeinusa (2006). Seu segundo filme, La teta asustada (2009), que será
discutido a seguir, conquistou o Urso de Ouro e o prêmio FIPRESCI (Federação Internacional da
Imprensa Cinematográfica) no Festival de Berlim, em 2009. No ano seguinte, Llosa dirigiu El
niño pepita (2010). Em 2011, foi a vez do curta-metragem Loxoro, também premiado no Festival
de Berlim (com o troféu Teddy Bear). Seu trabalho mais recente é o longa-metragem No llores,
vuella (2014).
Na elaboração da maior parte dos seus filmes é perceptível a influência do neorrealismo
italiano com temas ligados ao cotidiano, a constante presença de atores não profissionais e a
escolha de locações reais para a gravação das cenas; há também denúncias envolvendo a
realidade social peruana com ênfase em questões como o abuso sexual, a opressão e a violência
contra as mulheres e LGBT’s. Esses elementos do neorrealismo somam-se a aspectos
do realismo fantástico1 que aparecem em algumas cenas de La teta asustada e serão
ressaltados em partes do texto.
O objetivo deste trabalho é, portanto, pensar as implicações das relações de gênero na
construção social da memória sobre um momento dramático na vida da mãe de Fausta (personagem
principal do filme La teta asustada), interpretada pela atriz Magaly Solier, e como a questão
geracional atuou na transmissão e manutenção dessa memória.
Para além dessa questão norteadora, este trabalho busca ainda problematizar a persistência
da cultura do estupro nas práticas da sociedade latino-americana; pensar os feminismos e as
resistências na América Latina a partir dos debates sobre pós-colonialidade e decolonialidade;

* UFSC, doutoranda em História, apoio CAPES.


1 O realismo fantástico ou mágico é considerado uma corrente literária latino-americana nascida nos anos
em que predominaram na parte sul do continente os governos ditatoriais. O conceito mistura as críticas sociais da
escola realista a elementos fantásticos ou irreais no cotidiano das personagens. Esse modelo narrativo funciona
como instrumento de contestação diante de uma miríade de situações opressoras que sufocam e silenciam a
população latina. Está presente em obras de escritores como o peruano Mario Vargas Llosa, o colombiano Gabriel
Garcia Márquez, os argentinos Jorge Luis Borges e Julio Cortázar, o venezuelano Arturo Uslar Pietri, o brasileiro
Murilo Rubião, entre outros.
entender de que forma as emoções e os afetos são utilizados pelas figuras femininas do filme, como
ferramentas de resistência diante da opressão masculina e/ou para justificar suas escolhas e posturas
assumidas; e, por fim, refletir sobre os desafios da produção cinematográfica latino-americana,
dirigida e protagonizada por mulheres e com temáticas relacionadas aos estudos de gênero.
A metodologia aplicada no desenvolvimento deste estudo é a revisão bibliográfica, apoiada
nas discussões teóricas sobre as categorias gênero e memória e os estudos feministas,
principalmente na perspectiva de estudiosas latinas; análise e historicização da narrativa fílmica;
análise do discurso a partir das falas das personagens do longa-metragem; e algumas ferramentas
de abordagem da História Oral para examinar entrevistas de Claudia Llosa e Magaly Solier.

O filme La teta asustada originou-se do contato de Claudia Llosa com o trabalho


da antropóloga norte-americana Kimberly Theidon, Entre prójimos2, um livro com diversos
relatos de mulheres que sofreram violações na época do conflito no Peru, denominado de
terrorismo, e que geraram filhas e filhos com um suposto mal ligado ao medo e à solidão.
A narrativa fílmica traz a história de Fausta e sua mãe, Perpetua, personagem inspirada nos
depoimentos coletados por Theidon, que foi estuprada durante os conflitos protagonizados pelo
governo peruano e o grupo de guerrilha Sendero Luminoso nos anos 1980, onde grande parte da
população sofreu com os embates entre a resistência armada e as forças militares do Estado.
Apesar de ter conquistado grande apoio popular utilizando estratégias de integração ao
universo camponês, os senderistas quiseram abolir, de forma autoritária, muitos dos costumes dos
habitantes locais (como as feiras semanais), e isso foi recebido como uma afronta. Além disso, os
guerrilheiros criaram códigos de conduta próprios e passaram a perseguir qualquer pessoa que se
opusesse aos seus comandos, resultando em massacres e na violência brutal que atingiu essa
população.
A Comissão da Verdade e Reconciliação peruana constatou que o Sendero Luminoso foi
responsável por 54% das vítimas fatais durante o período conflituoso (THEIDON, 2004). O grupo
atuou no país até os anos 2000, quando foi definitivamente sufocado pelo governo; possuía
orientação maoísta e defendia o uso da violência e a luta armada para se alcançar uma sociedade
livre das mazelas provocadas pelo imperialismo e pelo capitalismo.
Nesse período, muitas mulheres sofreram abusos sexuais, tanto por parte dos
guerrilheiros quanto pelos soldados do exército, principalmente na zona rural. Essa situação fez
surgir a crença indígena, segundo a qual as crianças nascidas de mulheres vítimas de violência

2 O título do livro remete para o absurdo que foi o conflito interno no Peru, onde os assassinatos começaram
a ocorrer “entre próximos”, entre vizinhos, entre amigos. A temática discutida nesse livro se desdobrou na
pesquisa desenvolvida por Kimberly Theidon, pela Universidade de Harvard, intitulada La teta asustada: una
teoria sobre la violencia de la memoria.
sexual adquiriam, através do leite materno, um mal a que chamavam de “la teta asustada”. Tal
moléstia era caracterizada, de acordo com o mito indígena, pelo medo, pela reclusão e pela
ausência da alma que, em função do trauma sofrido, teria se escondido sob a terra. Esse
misticismo que participa da emergência e manutenção no inconsciente coletivo desse
fenômeno, faz lembrar os surtos que atormentavam a comunidade fictícia de Macondo, como
a peste de insônia e esquecimento que atingiu o vilarejo descrito em Cem anos de Solidão3, e
tanto o caso literário quanto a abordagem desse fenômeno social no filme podem ser
considerados aspectos do realismo fantástico.
As “memórias tóxicas” e a incapacidade de alimentar a vida que geraram fizeram com que
essas mulheres se constituíssem em uma corporificação histórica do sofrimento, como afirma
Theidon:
Quando me lembro das muitas mulheres que temiam dar de mamar a seus bebês e lhes
passar seu “leite de pena e preocupação” — me parece que nos oferecem um exemplo
eloquente de como as memórias dolorosas se acumulam no corpo e como alguém pode
literalmente sofrer os sintomas da história. Reitero que as memórias não apenas se
sedimentam nos edifícios, na paisagem ou em outros símbolos desenhados para propiciar
a recordação. As memórias também se sedimentam em nossos corpos, convertendo-os em
processos e lugares históricos. (THEIDON, apud SELEM, 2009, p. 5).

Fausta, afetada indiretamente pela referida violência, percebe o mundo de forma hostil,
especialmente a figura masculina em função do medo que lhe foi imputado pelas lembranças
transmitidas pela mãe. E foi justamente por temer ser estuprada que a moça introduziu na vagina
uma batata que, no decorrer do tempo, começa a germinar e lhe causar dores e inflamações no útero
- fato que só é revelado à família quando ela é levada às pressas para o hospital depois de sofrer um
desmaio e ter sangramentos no nariz.
A batata, destaque já no cartaz de divulgação do filme, possui nessa história múltiplos
sentidos. Originária do Peru e símbolo de prosperidade, ela foi um dos principais alimentos das
populações andinas, desde a civilização Inca, tendo sido não só levada para a Europa e incorporada
à sua dieta, mas também apropriada pela cultura colonizadora promovendo um apagamento da
memória de sua origem, tanto que muitos a denominam de “batata inglesa”, em um paradoxo
lamentável.
Para Fausta, o tubérculo representa proteção, como ela mesma expressa, diante da
incompreensão familiar do seu gesto, na frase: “O tio não me entende, mamãe; eu levo isto como
proteção. Eu vi tudo de seu ventre; o que lhe fizeram, senti sua aflição. Por isso levo isto, como um
escudo de guerra, como um tampão. Porque só o asco detém os asquerosos”. Na imagem que

3 O livro Cem anos de Solidão é um romance escrito por Gabriel Garcia Márquez, ganhador do Prêmio Nobel
de Literatura, que utiliza o realismo fantástico para construir uma narrativa que envolve conflitos, medo e
solidão na feitura da história de uma estirpe, os Buendía, que pode ser interpretada também como a história
genealógica da própria América Latina.
ilustra o cartaz do longa-metragem, Fausta está imersa até os ombros entre as batatas que
transmitem a sensação de defesa, mas também de sufocamento, como se fossem tragá-la para o
seu interior. Esse vegetal assume, assim, na narrativa, a conotação de extraordinário, como se
fosse ele próprio também uma personagem, embora seja, ao mesmo tempo, algo incorporado ao
cotidiano de Fausta como parte de seus cuidados genitais, tanto que ela se põe a podar os brotos
como uma tarefa rotineira.
Para Claudia Llosa, a batata
tem toda uma simbologia que a relaciona com as raízes, que luta por não perecer, por se
manter vivo, creio que a batata significa isso, porém ao mesmo tempo é um estorvo, esse
passado que não passa, que não nos permite avançar, que não nos permite evoluir, e
acredito que isso é a paródia da história, que somos o que somos porque temos a história
em nossas entranhas, que a história e seus conflitos precisam renovar-se senão não nos
deixam avançar livremente, não nos deixam revolucionar. (Visiones femeninas: Claudia
Llosa y la representación de la mujer en el cine”. Entrevista em CAMON, Caja
Mediteráneo, apud SELEM).

A diretora afirma, ainda, que ao inserir no roteiro o detalhe da batata, denominada


coloquialmente no Peru de papa, atentou-se para o jogo de sentidos da palavra que, ao mesmo
tempo em que refere-se a uma semente, é também uma gíria peruana para designar as partes
íntimas de uma mulher (EL PAÍS, 2009).
Os diálogos entre Fausta e a mãe, que morre logo no início da trama, acontecem
através de melodias inventadas pelas duas e cantadas na língua quéchua,4 contando partes da
triste história da vida de ambas. Essa comunicação cantada foi provavelmente inspirada na
informação que Theidon traz em seu livro sobre o qarawi, uma forma de expressão
poética e musical, muito utilizada pelas viúvas dos povos nativos, para externar as
intimidades da alma, as memórias passadas que não querem esquecer, o lamento pelos
mortos e durante os ritos sagrados.
É por meio de uma canção, por exemplo, que tomamos conhecimento, na introspectiva
cena inicial, de como se deu a violência sofrida por Perpetua que, além de estuprada, foi
obrigada a tragar o pênis sujo de pólvora arrancado de seu marido Josefo. Sempre que narra a
experiência passada, a matriarca reconstrói as imagens de sua dor, como ressalta a própria
Fausta: “Cada vez que se lembra, quando chora, mãe, suja sua cama com lágrimas de pena e
de suor”.
Nota-se, a partir dessa situação, que a dor dessas mulheres, mesmo sendo particular, se
tornou um trauma instaurado na memória coletiva nacional, tanto que fez surgir uma explicação
transcendental para um mal-estar generalizado que foi repassado de mães para filhas/os, reiterando
o que Maurice Halbwachs (1990, p. 49) defende quando diz que “os acontecimentos de nossa vida

4 O quéchua é uma língua indígena, oriunda do Império Inca, e reconhecida oficialmente como idioma peruano.
É falada também por grupos étnicos do Equador, Bolívia, Chile, Colômbia, e em menor escala também na
Argentina.
que estão sempre mais presentes são também os mais gravados na memória dos grupos mais
chegados a nós”, por isso “cada memória individual é um ponto de vista sobre a memória coletiva,
que este ponto de vista muda conforme o lugar que ali eu ocupo, e que este lugar mesmo muda
segundo as relações que mantenho com outros meios.” (HALBWACHS, 1990, p. 51). O mesmo
movimento dá-se com Fausta, que toma como sua uma memória que pertence à mãe, quando afirma
ter visto todo o suplício de Perpetua de dentro do ventre materno.
O relato da genitora serve não só como um alerta para a filha, para que o mesmo não lhe
aconteça, como é também uma necessidade de que a experiência dolorosa por ela vivida não caia
no esquecimento, já que permaneceu impune, como se percebe na fronha do travesseiro em que
está apoiada. A imagem é emblemática, tanto pelo apelo que traz no bordado: “no me olvide” (“não
me esqueça”), quanto pelo fato de ser o local onde se repousa a cabeça e metaforicamente também
as lembranças.
Essa luta contra o esquecimento, que Perpetua teme ocorrer com o fim iminente da sua vida,
é reiterada em sua fala, quando Fausta tenta convencê-la a se alimentar: “Comerei se cantar para
mim, e regar esta memória que se seca. Não vejo minhas lembranças, é como se já não vivesse”.
Percebe-se aqui o que argumenta Michel Pollak (1989, p. 5) a respeito do processo de resistência
operado pela memória de uma sociedade civil que, impotente diante do silêncio imposto a algum
acontecimento traumático do passado, “transmite cuidadosamente as lembranças dissidentes nas
redes familiares e de amizades, esperando a hora da verdade e da redistribuição das cartas políticas
e ideológicas”.
Existe nessa transmissão de lembranças entre Perpetua e Fausta, além da marca do gênero
– já que são duas mulheres atormentadas pelo medo de um crime que atinge sobretudo o feminino
–, o peso da relação geracional, de mãe e filha. Essa situação vai ao encontro da assertiva de
Alejandra Oberti ao lembrar que “los lazos que unen la sucesión de generaciones son el vehículo
de transmisión de historias, tradiciones e creencias, así como también el lugar donde se producen
identificaciones y se crean identidades.” (OBERTI, 2006, p. 73).
A forte ligação entre mãe e filha faz com que esta não rompa o elo nem após a morte da
mãe. E a determinação de sepultá-la na terra natal leva ao desenrolar da trama. Com o firme
propósito de cumprir o que considera ser um último desejo de Perpetua, além de ser também um
aspecto importante no rito fúnebre dessa cultura sepultar os mortos no local em que nasceram,
Fausta, juntamente com outras mulheres da comunidade em que vive, embalsama o corpo da mãe
e o guarda debaixo da própria cama, enquanto vai em busca de um emprego que lhe permita garantir
o valor necessário para o enterro.
A respeito dessa cena, Maria Célia Orlato Selem (2013, p. 223) assinala que esse momento
de sociabilidade “traz à tona o papel das mulheres da comunidade: o cuidado do corpo-memória”,
já que no período dos conflitos armados, as pessoas assassinadas precisavam ter seus corpos
conservados para servir como prova, diante das autoridades, das atrocidades cometidas pelos
militares e pelos guerrilheiros. De forma análoga, “o corpo de Perpetua perdura na narrativa,
portanto, como o signo da memória que é imobilizadora, mas que, pela força do aconteci-
mento vivido, não pode ser apagada.”.
A melancolia e o pavor que se abateram sobre uma geração de crianças, fruto do
terror, não eram provavelmente transmitidos pelo leite (ou pelo menos não só por ele), e
sim, pelas lembranças de suas mães que, com o recurso da emoção,5 imprimiram na
memória delas, ainda que de forma involuntária, essa dor desde a infância. Mesmo
cogitando a possibilidade de que esse leite materno fizesse realmente mal aos bebês, já que
os corpos produzem e excretam substâncias específicas quando estão submetido a situações de
estresse ou perigo, teriam sido de toda forma as emoções sentidas por essas
mulheres, as responsáveis por manifestar, através do referido líquido, os sentimentos
de aflição, tristeza e desgosto percebidos nas suas crias.
Diante da impossibilidade de uma ação política efetiva, que levasse à punição
dos agressores, restou a essas mulheres o uso de suas próprias emoções e lembranças como
formas de resistência, culminando na criação desse mito que passou a ser um fenômeno
estudado na Antropologia, no cinema e também na historiografia. Ou seja, essas mulheres
encontraram uma agência, uma maneira de subversão, para tornar público um incômodo que
estava antes somente na esfera privada.
Outro aspecto determinante na narrativa de Perpetua é o fato de ser ela uma pessoa
idosa, estágio da vida em que ser humano assume “uma função própria: a de lembrar. A de ser a
memória da família, do grupo, da instituição, da sociedade” (BOSI, 1994, p. 63). Por isso, “ao
lembrar o passado, ele/ [ela] não está descansando, por um instante, das lides
cotidianas, não está se entregando fugitivamente às delícias do sonho: ele/ [ela] está se
ocupando consciente e atentamente do próprio passado, da substância mesma da sua
vida.” (BOSI, p. 60).
Enquanto Perpetua insiste na manutenção da sua memória, várias mulheres
entrevistadas por Theidon (2004) acreditavam não valer a pena remexer nos traumas do
passado, temendo, ao recordar o que lhes aconteceu, martirizar novamente seu corpo. De
acordo com a antropóloga, há nessas comunidades uma “divisão do trabalho emocional” a
partir do gênero em que são as mulheres as responsáveis por incorporar a dor e o luto,
especialmente em anos difíceis.
Por causa disso, criou-se no registro das histórias de guerra uma heiroicização
masculina e uma vitimização feminina, apesar de elas terem participado das patrulhas
camponesas e, ainda, atuado em posições de comando no combate à dominação senderista e
também à violência militar. Nas próprias aldeias, há relatos de como as mulheres saíram em
defesa das suas comunidades, suas famílias e de si mesmas. Outra forma de atuação feminina,
nesse período, foi a submissão de seus corpos em troca da vida de entes queridos, pois, não
raro, pessoas dos povoados eram acusadas de serem terroristas por membros do Exército e,
para serem liberadas, era exigido em troca o sexo forçado com suas filhas, esposas, irmãs ou
vvv

5 “Os estudos sobre emoções e afetos e sua influência na sociedade, na cultura e na política têm
emergido recentemente como um novo campo, que para alguns constitui um giro afetivo ou giro emocional
[...]. Trata-se de focar o olhar nas emoções, afetos, sentimentos, como parte da experiência humana, de procurar
uma compreensão do social que inclua essa dimensão nos estudos.” (WOLFF, 2015, p. 977).
mães. Mesmo assim, elas acabaram invisibilizadas no discurso oficial. Até na Comissão da
Verdade e Reconciliação essa dicotomia se fez presente, tanto que nas audiências públicas
nenhuma mulher testemunhou, e quando chegaram a estar presentes, foram pejorativamente
chamadas de “choronas” (THEIDON, 2004).

O filme aborda várias críticas sociais, e a mais explícita delas é a exploração dos indígenas
pelos descendentes europeus, mostrando como os resquícios da colonização espanhola ainda estão
fortemente entranhados na sociedade peruana, como acontece ainda hoje também em outros países
da América Latina.
Um dos momentos em que essa situação pode ser percebida se dá na relação estabelecida
entre Fausta e sua patroa, Aída, uma mulher branca da elite que explora a mão de obra da doméstica,
pagando um valor irrisório pelo serviço prestado. Além disso, antes mesmo de ser contratada,
Fausta é inspecionada da mesma forma que se fazia com os negros quando comercializados como
escravos até o século XIX: tem seus dentes avaliados, e orelhas, mãos e pescoço também são
examinados para averiguar sua limpeza. Depois de estabelecida a relação contratual, a patroa, que
é pianista, se apropria das canções da doméstica em troca das contas de um colar de pérolas, que
vão sendo dadas às prestações, conforme as melodias são ensinadas, em uma espécie de escambo
contemporâneo.
Em outra cena, o piano aparece jogado no quintal, depois de ter sido arremessado através
da janela pela encolerizada Aída. Mesmo completamente despedaçado, o instrumento continua a
emitir sons melódicos – mais um toque de realismo fantástico, produzindo a ideia de que também
as opressões e subalternidades continuam a ecoar, desde o período da colonização até a
contemporaneidade, na vida das populações latinas.
Essa relação de exploração remete ao que Aníbal Quijano chama de “colonialidade do
poder”, em que mesmo com o fim do colonialismo permaneceram resquícios dessa dominação
europeia na América Latina. Para ele, “a estrutura de poder foi e ainda segue estando organizada
sobre e ao redor do eixo colonial”, sendo que essa estrutura continua exercendo seu domínio contra
a democracia, a cidadania e o Estado-nação moderno, atingindo de maneira cruel a população
formada por índios, negros e mestiços. (QUIJANO, 2005, p. 136).
É nesse sentido que foi cunhado também o termo “decolonial”, historicizado por Luciana
Ballestrin (2013) como um conceito que sintetiza a permanência da colonialidade em diferentes
níveis da vida pessoal e coletiva e com dimensões imperialistas relacionadas ao ser, saber e poder,
uma crítica a uma situação que não foi completamente superada e que continua a gerar formas de
subordinação.
Por causa dessa permanência dominadora emanada desde a exploração colonial é que Anne
McClintock problematiza os termos “pós” e a ideia de superação do colonialismo, sinalizando
também para o neocolonialismo exercido pelos Estados Unidos, que tem assumido diversas facetas
(militar, política, econômica e cultural). Para ela, o termo pós-colonial ajuda a perpetuar a oposição
binária entre colonial/pós-colonial, e por isso, também, ela tece uma crítica à falta de multiplicidade
no uso deste termo, pois cada país que já foi colônia experimentou essa condição de formas
peculiares e diversas. E mais, “orientar a teoria em torno do eixo temporal colonial–pós-colonial
torna mais fácil não ver e, portanto, não teorizar, as continuidades nos desequilíbrios internacionais
em termos de poder imperial.” (MCCLINTOCK, 2010, p. 33).
Nesse ponto, McClintock insere uma questão de gênero, pois o termo se torna ainda mais
instável em relação às mulheres, já que elas vivem uma desigualdade bem mais cruel, onde “a
militarização global da masculinidade e a feminização da pobreza asseguraram que as mulheres e
homens não vivam o pós-colonial da mesma maneira, nem partilhem a mesma condição pós-
colonial singular.” (MCCLINTOCK, 2010, p. 34). No mesmo sentido, María Luisa Femenias
(2007) sinaliza para a dupla inferiorização que sofrem as mulheres das etnias subjugadas na
América Latina: ante a seus próprios companheiros étnicos, e em relação aos homens e mulheres
brancos em geral.
Esse traço do gênero fica impresso com maior força ainda em períodos de conflito civil
como o ocorrido no Peru, onde os corpos femininos são reificados e passam a ser símbolos de
conquista e demarcação do poder masculino dentro do território. É nesse contexto que proliferam
os casos de estupro, já que “tem sido constitutivo da linguagem das guerras, tribais ou modernas,
que o corpo da mulher anexe-se como parte do país conquistado. A sexualidade investida sobre o
mesmo expressa o ato domesticador, apropriador, quando insemina o território-corpo da mulher.”
(SEGATO, 2005, p. 278-9).
Rita Laura Segato assinala que o estupro, como ato de dominação física e moral do outro,
tem como intenção aniquilar a vontade da vítima, sendo alimentado por uma necessidade dos
agressores de reafirmarem a sua virilidade continuamente e assegurarem o controle desses corpos.
Por isso, muitas vítimas de violações no caso do terrorismo no Peru, ao contrário de seus
companheiros, permaneceram vivas como meio de reafirmar a marca do poder masculino. Ao
mesmo tempo, como também ocorreu com Perpetua, aplica-se, além do abuso físico, também a
tortura psicológica, pois “é por sua qualidade de violência expressiva mais que instrumental –
violência cuja finalidade é a expressão do controle absoluto de uma vontade sobre a outra – que a
agressão mais próxima do estupro é a tortura, física ou moral.” (SEGATO, 2005, p. 271).
Os casos de estupro coletivo passaram a ser sistemáticos durante esse período de guerra no
Peru, criando uma espécie de fraternidade letal entre os soldados, principais perpetradores desse
tipo de crime na época, que forjou laços de brutalidade e banalizou a violência. Havia ainda a
necessidade de tornar mais explícitas as violações aplicadas por eles, por isso as mulheres vítimas
tinham seus cabelos cortados para que não restasse, diante da comunidade, dúvida alguma do ato
cometido. Para Theidon (2004, p. 122), “el acto de violación fue una manera de establecer jerarquías
de poder entre los grupos armados y la población, y también dentro de las fuerzas armadas mismas.
Fue común el forzar a los hombres de una comunidad a observar mientras los soldados violaban a
sus esposas, hijas o hermanas.”
As mulheres violadas, durante o conflito interno peruano, sofreram múltiplas formas de
violência além da sexual, pois passaram a carregar o estigma da vergonha, sendo alvo de falatório
dentro das suas comunidades; várias foram abandonadas pelos companheiros e tiveram que criar
sozinhas os filhos e filhas nascidos dessa violência.
Esses crimes, como explicitam o filme de Llosa e o trabalho antropológico de Theidon,
atingem principalmente mulheres de etnias massacradas e de classes exploradas ao longo da história
latino-americana, e são resultantes do cruel predomínio dos valores patriarcais e da misoginia. No
caso peruano, as maiores vítimas foram as indígenas residentes no perímetro rural e que ainda
aguardam por justiça e por alguma reparação.
Esses casos de violência sexual, assim como em outros países latinos, principalmente nos
períodos de ditadura, só vieram a público depois que as mulheres sobreviventes decidiram revelar
os suplícios que sofreram, por isso é tão importante não deixar que essas histórias sejam silenciadas
ou esquecidas, mesmo porque a cultura do estupro continua a ser um grave problema social e de
gênero a ser enfrentado em todo o continente americano.

Com um cinema engajado, crítico e autoral, Claudia Llosa, em suas entrevistas, fala do
compromisso, como cineasta, com a história do seu país, sua cultura e sociedade,
principalmente ao tratar de um tema que possui tantas arestas e pontos de vista. Atenta para o
potencial do cinema e sua magnitude para colocar em evidência o país, ela acredita que ainda é
muito tímido o investimento do Estado nesse campo, que carece também de reconhecimento
pela conquista de prêmios como o do Festival de Berlim.
Perguntada sobre o cerne desse seu filme, a diretora afirma que ele intenta falar sobre a
complexidade do país, a coexistência e o distanciamento entre a capital, Lima, e o mundo
andino e o quão difícil é a convivência entre esses universos distintos. Ao tocar nessa ferida
aberta, Llosa aponta que as vítimas do terrorismo “não só não foram compensadas ou
consoladas, mas, ao contrário, sofreram uma marginalização porque, para a sociedade, eram
uma recordação da barbárie. Nesse sentido, La teta asustada também fala da dificuldade de
enterrar o passado” (MUJERES EN RED, 2009). Entretanto, antes de ser um filme de denúncia,
Claudia Llosa o entende como uma tentativa de entendimento, reconciliação e perdão.
Mesmo sendo um drama, Llosa insere na obra pitadas de irreverência ao longo da
história, como na cena em que Fausta é cortejada, durante o noivado de sua prima, por um dos
convidados. O incauto rapaz, tentando demonstrar seu interesse, solta a seguinte cantada: “se
vermelho for a cor da paixão, banha-me com a sua menstruação”, ao que Fausta afasta-se
horrorizada com a insólita declaração.
Outro aspecto jocoso é o empreendimento comercial da família de Fausta: um buffet
móvel contratado por noivos que não dispõe de muito dinheiro, e que por isso não dá direito
aos convidados desfrutarem da comida – que na maioria das ocasiões é mesmo cenográfica,
servindo apenas para aparecer nas fotos e sendo recolhida na sequência.
Apesar do sobrenome ilustre que a liga ao tio, o escritor Mario Vargas Llosa, e que
poderia ser interpretado como um facilitador do seu trabalho no país, a cineasta possui uma
difícil relação política em função das suas críticas. Para ela, o Peru rico se esconde
hipocritamente sob os muros erigidos para separar os bairros das classes abastadas.
Claudia Llosa e Magaly Solier se conheceram enquanto a diretora procurava locações
para rodar seu primeiro longa-metragem, Madeinusa (2006). Depois de trabalharem juntas, as
duas tornaram-se amigas e Solier sublinha o decisivo incentivo que recebeu de Claudia para
estudar música formalmente e gravar seu próprio disco. Vale ressaltar que Magaly não era atriz
antes de enveredar pelos caminhos do cinema.
Além de protagonizar dois grandes sucessos fílmicos de Claudia Llosa, Magaly Solier é
também cantora e ativista social, através de projetos pessoais envolvendo música, e como
representante da Unesco em defesa da cultura e da paz e contra a violência que sofrem milhares de
mulheres peruanas. De origem indígena e nascida em Ayacucho, região bastante atingida pelo
terrorismo, ela viveu de perto o drama retratado no filme que protagonizou.
Em entrevista ao El País, Solier fala do cotidiano violento em que nasceu e cresceu e da
falta de apoio do governo peruano ao cinema. Através de seus relatos fica claro que não é só a
violência urbana que atravessa a vida dos peruanos, mas também a institucional. Magaly conta que
aos quatorze anos de idade teve os ossos dos quadris quebrados como castigo por ter se atrasado
para um desfile da escola em que estudava. Foi quando, impossibilitada de desempenhar as
atividades antigas, por conta da recuperação, dedicou-se de forma mais intensa à música.
Outro ponto forte na entrevista é a referência ao momento em que discursou no idioma
quéchua na premiação de La teta asustada em Berlim. Com essa atitude, a atriz deixou claro o
compromisso da sua arte e a quais interlocutores/as era direcionada a sua fala. Para ela, essa atitude
foi importante para estabelecer uma conexão com os antepassados a fim de manter viva a sua
identidade cultural:

No Peru, é triste ver que crianças da atual geração já não falam quéchua por culpa do
terrorismo, porque as pessoas que falavam a língua eram tachadas de terroristas ou
simplesmente porque são discriminadas [...]. Amo o quéchua e quando falei e cantei em
Berlim era porque queria fazer esse prêmio chegar a todos os peruanos que falam o meu
idioma. (EL PAÍS, 2016).

Ser mulher na América Latina e buscar através da arte e da cultura ter voz e se expressar
não é tarefa fácil. Apesar disso, Claudia Llosa e Magaly Solier são exemplos do que é capaz a
obstinação de duas mulheres que dedicam o seu trabalho ao resgate da história de seu país.
Os estudos desenvolvidos sobre a América Latina, sejam eles cinematográficos, literários
ou historiográficos, apontam para a persistência das violências incididas, sobretudo, sobre os corpos
femininos, e ao mesmo tempo, para um esquecimento das marcas que essas violências deixaram e
a prevalência da impunidade.
A trajetória de Fausta, essa lúgubre figura que vive atormentada pelo espectro do estupro,
representa o estigma que passou a perseguir as pessoas nascidas das violações, e evidencia o quanto
esse crime é temido pelas mulheres, especialmente na América Latina, mas que é, ao mesmo tempo,
um problema social enfrentado em todo o mundo, conforme dados da ONU, que apontam que a
cada dez mulheres, pelo menos uma já foi vítima de estupro até os vinte anos.
A atuação de um grupo que espalhou o terror e, junto com o próprio Estado, massacrou e
coagiu milhares de pessoas mostra o quão frágil é a democracia e a aplicabilidade da lei no país.
Esse quadro é agravado pela impunidade, pelo preconceito e a vergonha que envolvem as vítimas
dos crimes de violência sexual e seus descendentes.
As questões abordadas neste trabalho remetem a temas muito enraizados na sociedade e,
por isso mesmo, fazem parte dos estratos mais profundos, altamente naturalizados, cuja
ultrapassagem demanda tempo e esforço. Há ainda um longo caminho a percorrer em busca de uma
sociedade menos desigual e com mais empatia, onde o medo e a dor não sejam sentimentos a
martelar na memória das pessoas.

BALLESTRIN, Luciana. América latina e o giro decolonial. In: Revista Brasileira de


Ciência Política. n. 11, p. 89-117, maio/ago, 2013.

BELINCHÓ N, Gregorio. El pasado no debe olvidarse, pero tampoco puede frenarnos.


Disponível em: <https://goo.gl/mz8gqE>.

BOSI, Ecléa. Memória e sociedade: lembranças de velhos. 3 ed. São Paulo: Cia das Letras, 1994.

FEMENIAS, María Luisa. Esbozo de un feminismo latino-americano. In: Revista Estudos


Feministas, v. 15, n.1, p. 11-25, jan/abr, 2007.

HALBWACHS, Maurice. Memória Coletiva. São Paulo: Vértice, 1990.

MCCLINTOCK, Anne. Couro imperial: raça, gênero e sexualidade no embate colonial.


Campinas: Edunicamp, 2010.
MORAES, Camila. Magaly Solier: A arte é a única arma contra a violência que esmaga a
autoestima dos latino-americanos. Disponível em: <https://goo.gl/KyAUun>

OBERTI, Alejandra. La memoria y sus sombras. In: JELIN, Elizabeth; KAUFMAN, Susana.
(Comp.) Subjetividad y figuras de la memoria. Buenos Aires: Siglo XXI Editora Iberoamericana;
Nueva York: Social Science Research Council, 2006. p. 73-110.

POLLAK, Michael. Memória, esquecimento e silêncio. In: Revista Estudos Históricos, Rio de
Janeiro, v. 2, n. 3, p. 3-15, 1989.

PORTILLO, Zoraida. La película "La teta asustada" revive en Perúel debate sobre la violencia
sexual durante subversión. Disponível em: <https://goo.gl/Qvx6vg>.

QUIJANO, Aníbal. Colonialidade do poder, eurocentrismo e América Latina. In: LANDER,


Edgardo (Org). A colonialidade do saber: eurocentrismo e ciências sociais. Perspectivas latino-
americanas. Buenos Aires: CLACSO, 2005. p. 117-142.

SEGATO, Rita Laura. Território, soberania e crimes de segundo Estado: a escritura nos corpos das
mulheres de Ciudad Juarez. In: Revista Estudos Feministas, v. 13, n. 2, p. 265-285, maio/ago
2005.

SELEM, Maria Célia Orlato. Políticas e poéticas feministas: imagens em movimento sob a ótica
de mulheres latino-americanas. Tese (Doutorado em História) – Programa de Pós-Graduação em
História do Instituto de Filosofia e Ciências Humanas, Universidade Estadual de Campinas,
Campinas-SP. 2013.

THEIDON, Kimberly. Entre prójimos. El conflito armado interno y la política de la reconciliación


en el Perú. Lima: IEP, 2004.

WOLFF, Cristina Scheibe. Pedaços de alma: emoções e gênero nos discursos da resistência. In:
Verista de Estudos Feministas, v. 23, n. 3, p. 975-989, set/dez 2015.

La teta asustada, de Claudia Llosa (Peru/Espanha, 2009).


Micaele Irene Scheer
Evandro Machado Luciano

As pesquisas relacionadas com a História Social do Trabalho são muitas, porém poucas
contemplam o período da Ditadura Civil-Militar no Brasil. Defronte essa avaliação, propomos uma
discussão a partir da análise de entrevistas feitas com base na metodologia de História Oral, com
dois trabalhadores e ex-membros do Sindicato dos Trabalhadores na Indústria do Calçado, de Novo
Hamburgo, Rio Grande do Sul. Essas fontes foram produzidas a partir de pesquisas individuais com
questões diferentes, mas complementares, que se cruzaram. O resultado desse encontro foi o
compartilhamento de leituras e de fontes, entre essas, as entrevistas com trabalhadores das
indústrias de calçados e com sindicalistas do setor. O período privilegiado pelos encontros foram
os anos de 1970 e 1980. Apesar das perguntas não serem dirigidas especificamente para o tema, a
distinção entre “o novo e o velho sindicalismo” esteve presente de modo significativo no processo
de rememoração desses sujeitos.
Tendo em vista esta “unidade narrativa” (ALBERTI, 2004) nas entrevistas, mesmo que não
seja o objetivo principal das pesquisas em andamento, decidimos compartilhar impressões e
analisar a importância desse período para os entrevistados. Buscamos observar a memória como
um processo e entender como os narradores constroem a distinção e as aproximações entre as
gerações de sindicalistas que estiveram à frente do Sindicato dos Trabalhadores do Calçado de Novo
Hamburgo. Consideramos que o “velho” não é substituído repentinamente pelo “novo”, mas é o
resultado de uma significativa transição histórica, marcada por tensões.
Eder Sader (1988, p. 17) inicia sua análise sobre as “novas configurações sociais assumidas
pelos trabalhadores da Grande São Paulo no curso da década de 70”, alertando que essas não são
extensivas “ao conjunto dessa classe [a trabalhadora], mas, antes, a uma parcela, que constitui
movimentos sociais, com novos padrões de ação coletiva” e a “emergência de novos sujeitos
políticos”. Portanto, não consideramos que a leitura dos nossos entrevistados seja compartilhada
por todos os trabalhadores, mas com um número menor de sujeitos que se engajaram na luta
sindical.
As entrevistas foram realizadas nas casas de Carlos Gilberto Koch e de Gilnei Andrade.
Ambos construíram uma trajetória intensa no movimento sindical da cidade. Atualmente estão
aposentados, depois de anos trabalhando em parceria junto à Câmara de Vereadores de Novo
Hamburgo e ao Partido dos Trabalhadores (PT), Carlos como vereador e Gilnei como seu assessor;

* UFRGS, Doutoranda em História. Apoio CAPES.


** UFRGS, Mestrando em História. Apoio CAPES.
esse último também é formado em História. Portanto, são narradores acostumados com entrevistas
e já foram convidados a compartilhar essas reflexões em outros momentos. Condição que deve ser
considerada na análise aqui proposta, pois como Pollak (1992, p. 206) argumenta, é possível o
enquadramento da “própria memória em si. Ou seja: cada vez que uma memória está relativamente
constituída, ela efetua um trabalho de manutenção, de coerência, de unidade, de continuidade, da
organização”, mas há “pontos relativamente invariantes” e muitos desses pontos são consolidados
ao serem revisitados com frequência.
Essa condição explica, também, o formato dessas narrativas, que são organizadas e
coerentes, que buscam dar uma coesão e justificativa. Um colaborador da História Oral raramente
é mentiroso, como provou Janaína Amado (1994). Antes é alguém que constrói uma amálgama bem
estruturada de histórias e de leituras de mundo, que quando confrontadas com o trabalho de
historiadores, podem apresentar dissonâncias, mas dissonâncias que devem ser compreendidas em
termos de rememoração, com todas as referências epistemológicas que o termo possa acarretar.

Nesse período dos anos 70, então, movimento algum nós conseguimos enxergar aqui em
Novo Hamburgo?

CARLOS: Não, imagina! Por exemplo assim, as grandes greves, os grandes movimentos,
eles se dão a partir dos anos 80, as grandes greves. Antes disso, não tinha.

A entrevista de História Oral é o resultado de um encontro. As perguntas e as respostas


constroem essas fontes. Na entrevista com Carlos, pode-se observar que o desejo de perguntar do
pesquisador não estava harmonizado com a narrativa elaborada previamente pelo entrevistado, e
por fim, como deve acontecer, o entrevistado conduziu. Questionado sobre a década de 1970, Carlos
apresenta um movimento sindical de Novo Hamburgo amorfo, sem mobilização, sem participação
política autônoma e sem uma preocupação com o trabalhador. As razões para essa ausência de
participação do movimento operário nos embates diretos da luta de classes que compõem a
lembrança do sindicalista são diversas, mas destaca: “não tinha organização sindical mais aberta,
efetiva, por causa da ditadura militar”. Meses depois, ao entrevistarmos Gilnei, também notamos
que, para ele, não havia uma atuação do movimento operário na categoria dos sapateiros, nesse
período:

O movimento sindical em Novo Hamburgo era um movimento sindical profundamente


ligado aos patrões. [...]. Era um pequeno sindicato, não deu pra ter uma percepção mais
clara do que era. O sindicato, naquele momento, era um local em que tu ia procurando
algum benefício, algum tipo de atendimento, algumas, era mais ligado à assistência.
Se, por um lado, a fala de Carlos nos aproxima da ideia de que o Sindicato dos
Trabalhadores na Indústria do Calçado de Novo Hamburgo não foi ativamente militante em prol de
causas operárias mais urgentes por conta da repressão política do Estado, por outro, a fala de Gilnei
nos faz pensar em uma direção sindical que se preocupava com a assistência social, muito mais do
que com a luta por direitos. Mais do que isso, havia uma relação direta com os patrões.

Em alguns momentos eles produziram movimentos localizados, quando lhes interessava.


Mas, eles sempre conseguiam mais na conversa e na negociação direta com o sindicato
patronal. Eles chantageavam, no sentido de dizer: “olha, eu tenho dificuldade com aquele
pessoal, com aquela fábrica, se vocês não me derem isso”... E ele quase se colocava como
alguém a serviço da produção, a serviço da harmonia. “Se vocês não me ajudarem, eu não
sei se eu consigo segurar”. (Grifo nosso).

Na História Social do trabalho no Brasil, há uma forte relação entre os sindicatos e a


Ditadura. Por algum motivo, foi construído o ideário de que, durante a Ditadura Civil-Militar, os
sindicatos foram desmontados, e o que se viu após isso foi uma rearticulação política que
valorizasse a ordem e o progresso. Consideramos importante tensionar essas relações políticas entre
sindicalistas e patrões ou setores da burguesia brasileira dos anos de 1970. Como foi analisado por
Luciano (2016), é considerável o aumento de trabalhadores associados aos sindicatos representantes
das categorias de trabalhadores da indústria de transformação, durante aquela década. Ainda no
início de 1970, o número de sindicalizados no Rio Grande do Sul chegou a contabilizar 152 mil
pessoas, algo que se tornou maior ainda em 1974, com 224 mil pessoas sindicalizadas, e que se
tornaram quase 350 mil ao final da década. Boa parte desse aumento de associados se deve,
justamente, ao papel social dos sindicatos.
O assistencialismo sindical foi um mecanismo importante para a manutenção da ordem nos
grandes núcleos industriais. No caso de Novo Hamburgo, e que certamente nos ajuda a pensar no
restante do país, a Prefeitura Municipal jamais teve uma preocupação central nos problemas de
saúde, habitação ou mesmo de lazer destes trabalhadores, durante a década de 1970. Lembramos
que, nesse período, chegaram, com o objetivo de trabalhar nas fábricas de calçados, muitos
migrantes, o que exigiu ainda mais da estrutura da cidade. Assim, Gilnei comentou que:

O sindicato de calçado era um sistema vinculado ao sistema de saúde da época,


com vários profissionais da área da saúde atendendo, com vários gabinetes
odontológicos, vários gabinetes médicos, com ambulância, uma estrutura
assistencial e de saúde grande pra época, maior que a do município com certeza.
A indústria em Novo Hamburgo nunca se preocupou com habitação, nunca
deram casa para trabalhador morar. As pessoas vêm trabalhar aqui e vão se virar
com a habitação; elas têm um salário pequeno e têm o atendimento e uma garantia
de saúde porque, ter saúde garante que tu venhas trabalhar no dia seguinte.
A “solução” para esse aumento populacional foi a alocação em áreas quase inabitáveis.
Carlos lembrou do caso da Vila Palmeira, que “antes era só banhado” mas que chegou a abrigar
centenas de famílias. Essas narrativas também nos alertam para a tentativa do Estado brasileiro em
responsabilizar os sindicatos e indústrias pelas políticas sociais. Assim, a empresa e o sindicato
deveriam dar condições para a “manutenção” da mão de obra. É interessante pensar que essa
configuração também infere na compreensão por parte dos trabalhadores sobre o papel do Sindicato
dos Trabalhadores, esses, que não podem ser compreendidos através de uma imagem de classe
homogeneizada e disposta ao enfrentamento. Pelo contrário, encontramos trabalhadores de
diferentes etnias, gênero, gerações e com visões diferentes sobre o trabalho, como bem lembra
Carlos: “Por que Novo Hamburgo sempre foi... até hoje é uma cidade muito difícil de trabalhar
ela... É uma cidade que pegou muito a questão da educação da Alemanha, de trabalhar, na questão
da discriminação.”
A cidade de Novo Hamburgo foi emancipada em 1927, mas, anteriormente, pertencia como
município à cidade de São Leopoldo, considerada como berço da colonização alemã do Brasil, onde
algumas levas de imigrantes chegaram a partir de 1824. Sobre a valoração da participação imigrante
no trabalho brasileiro é possível encontrar alguns aspectos importantes para nosso enfoque aqui. O
documento encomendado pela Prefeitura dizia que o imigrante, graças ao seu trabalho,
revolucionou a vida econômica do Estado, sendo que o principal “traço cultural” atrelado à
imigração alemã é “o valor-trabalho que, desde cedo, é incutido nas crianças. Assim sendo, a ideia
do próprio amor ao trabalho teria sido uma incorporação realizada a partir da importação de
culturas europeias. Ou seja, podemos sugerir que essa representação do trabalho deve ser
considerada na problematização do setor na cidade, e que boa parte dos trabalhadores buscavam
uma boa via com um bom trabalho e isso que estava em jogo, mais do que derrubar o regime político
ou se organizar coletivamente para contestar o patronato. O Sindicato não era pressionado a agir,
antes era esperado que oferecem assistência médica e jurídica. A interpretação que os narradores
fazem desse período também faz parte de outro processo, o identitário, tendo em vista que eles
querem se afastar desse modelo de gestão, do qual foram oposição. Esses eram os “velhos”,
enquanto que Carlos e Gilnei fizeram parte do “novo” sindicalismo.
Durante a entrevista com Carlos, foi perguntado sobre espaços de lazer para fora da fábrica.
A sua expressão mudou. Parecia ser uma outra história, ancorada em outros aportes da memória:

Bem interessante... É... Bom! A gente se emociona e começa a falar um pouco


da nossa luta, mas esse fato é muito importante.[...] É que na época tinha o
campeonato do SESI, organizado pelo Sesi, na época da Ditadura ainda. Como
tu não podia se organizar para reivindicar salário, tu jogava futebol. Era isso. [...]
As pessoas conviviam mais junto, até por falta de um outro espaço. [...] Então,
essa amizade era muito grande entre os trabalhadores. Quando começa lá no
início dos anos 80, que tu sai das grandes greves, é disso. Eles te enxergam como
uma liderança que vai conseguir organizar os trabalhadores.
Ao longo de nossos trabalhos, temos encontrado cada vez mais evidências de que o futebol
se mostrava um espaço de sociabilidade muito importante para a constituição do chamado “novo”
sindicalismo e não foi diferente em Novo Hamburgo. Assim, através do esporte, nos parece que
algumas barreiras foram sendo quebradas e novos atores sociais foram sendo incrementados na
disputa política dentro do sindicato. E aqui fica claro que a participação dos campeonatos esportivos
organizados pelo Serviço Social da Indústria do Rio Grande do Sul (SESI) tinha como foco um
grupo bem específico de trabalhadores: homens que performavam a masculinidade normativa.
Noutros termos, quando Carlos cita que os “trabalhadores” o enxergavam como liderança nos anos
de 1980, ele se refere a um grupo restrito de trabalhadores, entre esses aqueles que chegaram na
direção do Sindicato nos anos seguintes.
É nesse espaço de lazer que se formam as lideranças sindicais dos anos 1980. Formação
que está relacionada a um conjunto de eventos históricos, no final dos anos 1970, e que marcam o
processo de reestruturação do modelo sindical. Na cidade de Novo Hamburgo, a Greve de 1979
parece ser caracterizada como um marco.

Nesse momento, ele [Orlando Muller] realmente não consegue segurar, as fábricas
realmente param! Algo semelhante já havia acontecido no final dos anos 70, acho que a
greve de 1979 é ainda maior. Ela paralisa toda a cidade - uma cidade com 30, 40 mil
trabalhadores, de um setor só localizado em poucos locais, vinte, trinta, quarenta
fábricas… Essa categoria parando paralisa toda a cidade. Existem registros, eu não tenho
lembranças da greve de 1979. Mas ela é dita pelos trabalhadores como a grande greve dos
sapateiros. Tu vai achar registros nos jornais, e isso muito pela versão patronal. Pela versão
da tentativa da conciliação de classes. Mas ela é uma greve tão grande que não tem como
ser dita que não aconteceu. (ANDRADE, 2017, grifo nosso).

“Não consegue segurar”. Gilnei e Carlos interpretavam essa greve como espontânea e que
Orlando Muller, presidente do Sindicato e os demais membros da direção não tiveram escolha, a
não ser apoiar o movimento instaurado na cidade. Depois dessa manifestação, há uma sequência de
mudanças nas diretorias dos sindicatos da cidade, iniciando com os metalúrgicos e que alteraram o
modelo de luta e a relação com a classe patronal nos anos seguintes, como podemos observar
através da entrevista de Carlos.

E ali começou com os Sapateiros em 87, 86,87, assumiu a direção cutista de verdade, que
antes era uma máscara que tinha, não era na realidade... Por exemplo assim, as grandes
greves, grandes movimentos, eles se dão a partir dos anos 80, as grandes greves. Antes
disso, não tinha. Por exemplo, em 88, quando já presidente Milton Rosa, parou quase 20
mil trabalhadores sapateiros em Novo Hamburgo! Metalúrgico, cinco mil, pararam. Então
tinha essa organização. (KOCH, 2017, grifo nosso).

Para além do evento local, a formação do PT e da Central Única dos Trabalhadores (CUT)
foram fundamentais. Gilnei foi bastante ativo nesse movimento. Recorda com saudosismo o
período em que se desvinculou do movimento estudantil e começava a se organizar junto aos
trabalhadores, período em que passa a viver em Novo Hamburgo e começa a trabalhar nas fábricas
de calçados e também da metalurgia.

Eu dizia, como é que é... um retiro, “Eu tinha um retiro pra fazer” e às vezes eu saía na
sexta, sábado e domingo e ia pro retiro. O retiro era lá nos metalúrgicos de Porto Alegre,
naquelas primeiras atividades alí. O que depois vira comissão pró-CUT... 78,79,80. Um
militante estudantil que está passando a ser um militante sindical, embora não fosse do
sindicato.
Os sindicatos aqui, os metalúrgicos que a gente tinha ganho em 80 e os sapateiros que o
pessoal estava se aproximando da turma do Orlando Muller estavam na formação da CUT.
Tinha uma oposição dos comerciários que também estava lá. Acho que Novo Hamburgo,
São Leopoldo e Canoas... tinha um ônibus que tinha ido pra lá. E a gente participou daquele
ato. A gente foi naquele congresso de fundação da CUT, onde o Meneghelli se elegeu
presidente da CUT. Tinha sido criado, foi criado também nesse momento a CUT do Vale,
que era o… O João Machado, era presidente dos Metalúrgicos e o Haubert era secretário,
parece. Era liberado da direção também. O Primeiro Presidente da CUT do Vale é o Paulo
Halbert e a CUT funcionava em São Leopoldo, no sindicato dos metalúrgicos de São
Leopoldo. Esse é um momento, a partir de 83, 84, de muita mudança sindical. De muita
oposição sindical. (ANDRADE, 2017, grifo nosso).

Orlando Muller é lembrado como membro do PDT, mas foi filiado à ARENA, mas mesmo
nesse período contratava advogados do MDB. Essa postura, aparentemente pouco rígida, fez com
que o maior sindicato da cidade levasse anos para ser assumido pelos “novos”, apenas em 1986.
Nas entrevistas é possível observar que não houve uma ruptura, mas um processo lento e de
negociação entre o “novo” e o “velho”.

Eles [Orlando/“velhos”] colocam pra dentro do sindicato estruturas de assessorias que


eram ligadas à CUT e ao novo movimento que surgia. [...] Aí voltando pra 1983. Em 83
teve essa greve, teve um pessoal nosso entrando no sindicato, não para a direção, porque
não teve eleição, teve talvez uma dezena de pessoas que foi trabalhar dentro do sindicato:
os advogados, o pessoal que fazia o boletim, o pessoal da... motorista da ambulância, um
pessoal que entra pra ajudar. Pra ajudar, porque? Porque o Orlando tem algum grau de
afastamento de um setor do PDT, o Orlando nunca foi ligado à turma do Carlos Araújo,
que era um deputado e que [...] era um deputado de esquerda com atuação sindical que
profissionalizava e que tinha nos seus quadros gente trabalhando em várias cidades
(ANDRADE, 2017).
O texto que apresentamos pouco pode servir ao pesquisador que busca aqui uma teoria
explicativa de acontecimentos do período ditatorial recente; tampouco serve como exemplo de um
trabalho finalizado e com hipóteses respondidas. Consideramos que esta experiência de estudo que
uniu dois trabalhos com temas próximos, como um início de investigação que se pretende desdobrar
em outros pontos. Outrossim, apresentamos aqui, para não desapontar totalmente o leitor, algumas
interpretações que nortearam nossos levantamentos, e que entendemos como importantes, por
resultarem deste trabalho de coesão.
Conforme referenciado ao longo do texto supra, percebemos nas narrativas dos
entrevistados, construções de identidades sociais que apontam para caminhos interessantes e dignos
de desvelo. A contraposição nós-eles, sendo o primeiro o grupo do novo sindicalismo e o segundo,
o dito velho sindicalismo, nos remete a elementos de uma memória enquadrada e contada através
de lembranças cristalizadas, no interior do discurso sindical que se tornou hegemônico ao longo das
duas últimas décadas do Novecentos. Entendemos, aqui, que esse ponto merece maior
reconhecimento por parte de uma historiografia que mergulhou no discurso do novo sindicalismo
e que não aproveitou o “visível” para descobrir o que há por trás dele. Assim, nos comprometemos
em avançar nesse debate e investigar com maior zelo estes pontos.
Conseguimos alcançar a percepção de unidades narrativas ao longo das falas de nossos
entrevistados, que nos contaram histórias repetidas, histórias dentro da história, em processos muito
parecidos e que se entrelaçavam no andamento de suas falas. A esses processos narrativos que se
tornam próximos em diferentes depoimentos, nos detivemos com bastante cuidado, no sentido de
propor tensões nos discursos.
Por fim, mas não menos digno de análise, entendemos a necessidade de reforçar aqui algo
que foi dialogado ao longo de nosso texto: a questão de quem tem a voz. Durante muito tempo, os
trabalhos de História Oral se detiveram no ponto de falar por aqueles que nunca tiveram voz.
Passamos por um período em que somente falar pelos excluídos não cabe ao papel de historiadores,
precisamos ouví-los. No entanto, este estudo que apresentamos, por mais que se dedique a olhar
para a história dos trabalhadores brasileiros, tem como fonte principal a memória de dois militantes
sindicais, que originalmente já são encarados por seus pares como narradores oficiais. Ainda mais
por conta de suas profissões após a contribuição no movimento de classe – Carlos como Vereador
e Gilnei como Historiador. Resta agora ouvir outros depoimentos de outros trabalhadores, que
também têm muitas histórias a contar.
Esperamos ter contribuído para o debate que se dá ao entorno da História do Trabalho
brasileira e esperamos unir cada vez mais estes estudos no campo da História das Ditaduras na
América Latina.
ALBERTI, V. Ouvir contar: textos em História Oral. Rio de Janeiro: Ed. da FGV, 2004.

AMADO, J. O grande mentiroso: tradição, veracidade e imaginação em História Oral.


Projeto História, São Paulo, n. 14, 1996.

LUCIANO, E. M. Classe operária: perspectivas, balanço e possibilidades de estudo em


Novo Hamburgo (1969-1979). Trabalho de Conclusão de Curso (Licenciatura em
História) – Universidade FEEVALE, Novo Hamburgo, RS, 2016.

_____. Memória e identidade social. Estudos históricos, Rio de Janeiro, v. 5, n. 10, p. 200-212,
1992.

POLLAK, M. Memória, esquecimento, silêncio. Estudos históricos, Rio de Janeiro, v. 2, n. 3,


p. 3-15, 1989.

PORTELLI, A. O que faz a história oral diferente. In: Projeto História, São Paulo, n. 14, p.
25-39, fev. 1997.

SADER, E. Quando os novos personagens entraram em cena. São Paulo: Paz e Terra, 1988.
Dante Guimaraens Guazzelli

Os alemães e o cachorro dedicavam-se a uma


operação militar que tinha um nome divertido e
de fácil explicação. Uma empresa humana
raramente descrita em detalhe, cujo nome
apenas, quando relatado como notícia ou
reportagem, dava a muitos entusiastas de guerra
uma espécie de satisfação pós-coital. Na
imaginação dos fãs do combate, são as carícias
divinamente desanimadas que se seguem ao
orgasmo da vitória. Chama-se de “operação de
limpeza”.
Kurt Vonnegut – Matadouro 5

Este trabalho visa apresentar diferentes percepções do golpe civil-militar de 1964,


partindo, para isto, das memórias dos advogados gaúchos, de presos políticos – Omar
Ferri, Werner Becker e Eloar Guazzelli.1 Parto do pressuposto que o golpe civil-militar
de 1964 foi percebido de forma diferenciada por cada pessoa, dependendo de sua posição
política e social, profissão, além de outros fatores. Ao mesmo tempo, considero que o golpe
e a ditadura que ele instaurou afetaram a vida de muitas pessoas, modificando o
cotidiano, interrompendo planos e forçando mudanças. Nas vidas de Eloar Guazzelli, Omar
Ferri e Werner Becker é perceptível o impacto que o golpe teve.
O golpe e a ditadura que o seguiu tinham como um dos fatores de mobilização e
legitimação, a oposição a um governo que existia no Brasil. Assim, antes de mais nada era
uma reação a um governo que, segundo o discurso dos golpistas, iria instaurar uma “ditadura
sindicalista”, na qual haveria a participação de grupos comunistas. O golpe, como procurarei
demonstrar, teve dimensões anticomunista, antitrabalhista e antissindicalista, que podem ser
representadas na trajetória de cada um dos personagens aqui retratados.
Antes de passar à análise das entrevistas de História Oral e outros relatos biográficos,
farei uma breve reflexão teórica a respeito da memória e, em especial, da questão da
proximidade do historiador. No caso específico deste trabalho, esta problematização é vital,
visto que sou neto de um dos advogados estudados.

* UFRGS, Doutorando em História, Professor da Rede Municipal de Porto Alegre. .


1 Este texto traz os resultados parciais, realizados em minha pesquisa de Doutorado com o título provisório
de: “Os advogados de presos políticos gaúchos e o surgimento da bandeira dos direitos humanos, durante a
ditadura civil-militar brasileira (1964-1982)”, sob a orientação da Prof.ª. Dr.ª Carla Simone Rodeghero.
Dois pontos de partida para reflexões de historiadores a respeito da memória provêm de
pensadores de fora do âmbito da História. A primeira é proposta pelo filósofo Henri Bergson, que
afirma que toda memória, ainda que indício de um passado, está articulada ao presente da ação de
lembrar (1999). Já o psicólogo social Maurice Halbwachs vê a dimensão social da memória: para
ele, esta é um fato social e está vinculada aos grupos. (1990). A memória individual é, para
Halbwachs, derivada da intersecção dos diferentes grupos aos quais pertencemos ao longo da vida.
Estas contribuições têm grande impacto na história, em especial na História Oral, uma vez que
fazem, por um lado, que pensemos na memória articulada com o presente da rememoração e, por
outro, a vinculemos aos grupos nos quais foi “gestada”.
Ao trabalhar com História Oral, pesquisadores começaram a propor novas teorizações a
respeito da memória. Este é o caso do sociólogo Michael Pollak: enquanto que Halbwachs vê
estabilidade na memória coletiva, Pollak procura analisar os processos pelos quais a memória dos
grupos passa na construção de um discurso unificado que contribui para a identidade. Os interesses
do sociólogo são, assim, os conflitos, as disputas e as coerções que ocorrem neste processo.
(POLLAK, 1989, p. 4).
Estas reflexões auxiliam-me a pensar nos relatos de meus entrevistados: de início, pude
perceber que os advogados não formam um grupo unificado, e, desta forma, não “lembram juntos”
dos eventos, isto é, aparentemente não fazem parte da mesma memória coletiva. Por outro lado, sua
atuação durante a ditadura tomou um papel importante na formação de suas identidades, tanto do
ponto de vista profissional quanto político.
A discussão sobre a relação entre a memória e os grupos é vital para meu estudo, já que sou
neto de um dos advogados, Eloar Guazzelli, e, por esta razão, tomo parte de uma memória familiar
que tem em Eloar um personagem importante. O “Velho Guazzelli”, como era conhecido, é uma
figura fundamental dentro da identidade de minha família. Ao sair de Vacaria, tornar-se advogado
e, especialmente, “um homem de esquerda”, ele criou um modelo para a família. A partir dele, seus
descendentes viram nele um exemplo, em especial aqueles membros que optaram pelo Direito
ou por serem homens e mulheres “de esquerda”.2 Dentro desta memória familiar, a atuação
dele durante a ditadura civil-militar é um fator central. Tanto a defesa de presos políticos
quanto suas outras atividades são definidoras da memória e da identidade do grupo familiar.3

2A marca da trajetória do patriarca é percebida, por exemplo, em um livro de 2015 de meu tio, Eloar Guazzelli
Filho, intitulado Apocalipse Nau. .
3 Deve-se dizer que este fascínio sobre a figura dos advogados de presos políticos não é privilégio dos
familiares. Recentemente foram feitos trabalhos voltados ao grande público que tratam do tema como o livro:
Coragem – a advocacia criminal nos Anos de Chumbo, de 2014, organizado pela seccional de São Paulo, da
Ordem dos Advogados do Brasil, e o documentário Os advogados contra a ditadura: por uma questão de
justiça – livro de Silvio Tendler, também de 2014. Outro indício deste fenômeno é o fato de haver na
telenovela da Rede Globo, Babilônia, uma personagem mencionada como defensora dos direitos humanos,
tendo ela sido “advogada de presos políticos”, durante período da ditadura militar brasileira.
Ao deixar clara minha relação, busco mostrar em que meio me insiro. Penso que este é o
primeiro passo rumo a um distanciamento crítico, condição necessária para o trabalho histórico.
(BORGES, 2009, p. 203). Como afirma o filósofo Paul Ricoeur, em seu A memória, a história, o
esquecimento, o “conhecimento histórico implica a correlação entre subjetividade e objetividade,
na medida em que relaciona, por iniciativa do historiador, o passado dos homens de outrora e o
presente dos homens de hoje”. (2007, p. 349). A proximidade e a subjetividade de minha posição
em relação aos objetos não impossibilita o trabalho histórico; a subjetividade sempre está presente
no trabalho do historiador.
Ao tratar da “volta” da biografia histórica, a historiadora Vayy Pacheco Borges afirma que,
recentemente, passou-se a aceitar a subjetividade existente no ofício do biógrafo e do historiador.
(BORGES, 2009, p. 228). A biografia histórica, nesta nova abordagem, tem como objetivo, não
glorificar ou mitificar, como fazia a de inspiração positivista, mas sim compreender. A autora afirma
que “entender uma pessoa é aceitá-la, é desculpá-la, é (quase) dela gostar”. (BORGES, 2001, p.
299).
Por outro lado, reconhecer a subjetividade da História não significa abandonar a busca pela
objetividade. O historiador, ainda segundo Vavy Pacheco Borges, “assim como o psicólogo e o
psicanalista, deve procurar garantir sua objetividade pelo aperfeiçoamento constante de seu
domínio das teorias e das técnicas de sua profissão, em uma longa, contínua e interminável
formação”. (BORGES, 2009, p. 233).
Em busca da objetividade, o pesquisador, em especial aquele que está “próximo” de seu
objeto, deve estar atento aos procedimentos fundamentais de sua disciplina, como o
aprofundamento teórico, diálogo com a bibliografia e a crítica das fontes. Somente assim é possível
que ele, ao invés de ser um “guardião da memória”, um memorialista, seja um estudioso da
memória.
Além disso, os pesquisadores que estudam as memórias de um passado sensível e
traumático (como é o caso da memória do holocausto e das vítimas das ditaduras latino-
americanas), devem ter em mente as advertências feitas por pensadores como o filósofo e linguista
Tzvetan Todorov (2000) e a literata Beatriz Sarlo (2007), que afirmam que há, por parte da
memória, uma desconfiança, que pode chegar a se transformar em veto, em relação à análise. Da
mesma forma, há uma tendência de “sacralizar” ou “banalizar” o passado. Em um caso, o passado
fica isolado não se relacionando com o presente, enquanto que, no outro, o presente seria a repetição
do passado. (FERREIRA, 2006, p. 199). Frente a estes movimentos, a historiadora Marieta de
Moraes Ferreira afirma que para termos outra relação com o passado “em vez de uma militância
pela memória, seria necessário pensar em um trabalho sobre a memória”. (2006, p. 200).
Estas questões permitem-me elaborar uma forma de aproximação e análise de meu objeto.
Além de deixar clara minha relação, faz-se necessária uma problematização desta memória familiar.
Com isto não pretendo fazer de minha tese um exercício de “auto psicanálise”, mas sim abordar
esta memória da mesma forma que faço com as memórias dos outros advogados abordados. Afinal,
há uma tendência da memória à sacralização, o que ocorre em relação aos advogados de presos
políticos. Um exemplo disso é o fato de que os três advogados em entrevistas de caráter mais
“público” do que aquelas realizadas para minha pesquisa (Jornal da OAB/RS, Memorial do
Judiciário e Zero Hora), procuraram mostrar-se como “o que mais defendeu” presos políticos ou
“um dos únicos defensores dos direitos humanos”. Uma vez que pretendo fazer uma pesquisa de
História e não um livro memorialístico, trabalhar a memória de Eloar Guazzelli é algo vital para
meus esforços. O estudo das três trajetórias permite-me aprofundar o assunto através da
comparação.
Por outro lado, este esforço de “estranhar o familiar”, de “desnaturalizar noções,
impressões, categorias, classificações que constituíam” a sua visão de mundo é facilitado pelo que
o antropólogo Gilberto Velho chama de “multipertencimento”, presente dentro das sociedades
contemporâneas. (2003, p. 15-18). O antropólogo, assim como o historiador e qualquer outro
indivíduo em nossa sociedade, pertence a diferentes grupos e redes ao longo da vida:

[...] esse multipertencimento que permite ao antropólogo pesquisar sua própria sociedade
e, dentro dela, situações com as quais ele tem algum tipo de envolvimento e das quais
participa. O fato de não ser englobado por nenhum grupo exclusivo – somado às próprias
características e à formação do antropólogo, que, em princípio, produz e valoriza uma
certa distância – permite o movimento de estranhamento crítico diante do próximo.
(VELHO, 2003, p. 18).

O fato de pertencer a diferentes grupos, com diferentes memórias e identidades, permite-


me “estranhar meu familiar”. Da mesma forma, a identidade que acesso ao pesquisar, não é a minha
identidade de neto, e sim a de historiador. Como tal devo proceder de forma mais rigorosa possível,
atendo-me aos limites e posturas requisitadas pela comunidade historiográfica.

Dos três personagens aqui abordados, Guazzelli certamente foi o menos afetado pelo golpe
e pela instauração da ditadura civil-militar. Ele já vinha exercendo a advocacia, desde a década de
1940, e havia aberto sua banca no ano anterior. Diferentemente de Ferri e Becker, ele não foi
diretamente perseguido pela repressão, não sendo preso ou obrigado a mudar de profissão. Isto fez
de Eloar uma exceção, inclusive dentro dos advogados comunistas: Antônio Pinheiro Machado
Netto e Júlio Teixeira, por exemplo, foram presos nos primeiros momentos do golpe. A justificativa,
muitas vezes apontada pela memória familiar, é a de que ele não havia sido preso devido a
intervenção de lideranças conservadoras de Vacaria, cidade natal de Eloar e na qual ele havia
residido até 1963. De acordo com tal narrativa, o cacique político vacariano teria impedido a prisão
de Eloar e de outros potenciais presos da cidade ao afirmar que “de meus comunistas cuido eu”. Da
mesma forma, deve-se lembrar que seu tio, Samuel Guazzelli, era uma liderança política da cidade,
e seu primo, Sinval Guazzelli, vinha firmando-se como jovem político da UDN, no cenário do
estado.
Nesta narrativa, pode-se perceber algumas questões importantes a respeito da relação entre
a repressão e a resistência. Há a necessidade de justificar o fato de Eloar não ter sido preso: afinal,
por que ele teria saído incólume de um sistema repressivo tão implacável? Outros advogados
comunistas haviam sido presos. Por que não Eloar? Existia a possibilidade de surgirem suspeitas
a respeito da retidão político-ideológica dele, dando a entender que o fato de não ter sido alvo de
uma perseguição direta poderia constituir um estigma, um atestado de culpa frente a seus
correligionários. É possível pressupor que Eloar sentia este potencial estigma, esta culpa; isto
explicaria seu rápido engajamento na defesa de presos políticos.
Pode-se traçar um paralelo com a análise de Elisabeth Jelin sobre a questão das vozes dos
sobreviventes do aparato repressivo argentino, dentro da memória da resistência. (2007). Como
afirma a autora, mesmo que estas vozes tivessem sido escutadas, especialmente no âmbito do
julgamento de ex-comandantes das juntas militares em 1985, “su posición en la escena pública no
había sido muy sencilla o fácil [...]. El hecho de haber sobrevivido al horror generaba en muchos
un halo de sospecha. A menudo, rondaba la pregunta acerca del por qué”. (JELIN, 2007, p. 51).
De acordo com Jelin, havia suspeita e desconfiança em relação aos sobreviventes, derivada
das razões de seu “privilégio”: teria sido colaboração, delação, traição?4 (2007, p. 51).
Ao mesmo tempo, a explicação dada traz elementos importantes para analisar o
funcionamento da repressão. Pode-se pensar que esta narrativa afetava menos a imagem de Eloar
enquanto um resistente: ele não havia sido preso por ter sido “fraco” frente à repressão, mas, sim,
devido a uma peculiaridade das elites vacarianas. Seu pertencimento a uma família “tradicional” da
cidade o teria ajudando. Este pertencimento à elite não é privilégio de Guazzelli, mas pode ser visto
em outros casos analisados a seguir.
O impacto do golpe na vida pessoal de Eloar foi mais sentido de forma subjetiva, através
do medo do anticomunismo. Isto pode ser percebido através das narrativas presentes na memória
familiar sobre o golpe de 1964: dentro dela, este período é lembrado como um momento de temor,
de medo de uma vinculação com o comunismo ou com símbolos relacionados a este. Há uma
anedota familiar que narra que logo após o golpe, Lizabel, a esposa de Eloar, escondeu livros, discos
ou imagens que tivessem alguma relação com a União Soviética, como discos do Coro do Exército
Vermelho ou um retrato do cosmonauta Iuri Gagarin.
Mais do que um simples relato, esta narrativa mostra como este momento foi assimilado
pela memória familiar: o golpe foi um momento de perseguição, de temor, que está relacionado
diretamente à Guerra Fria. Uma vez que o golpe mostrava-se como anticomunista e antissoviético,
havia a preocupação de desvincular-se dos símbolos do “outro lado da cortina de ferro”. Ter
símbolos da cultura soviética era, assim, um indicativo de “ser comunista”. E “ser comunista” era

4 De acordo com a autora, houve uma mudança disto a partir de 2004, com a eleição de Néstor
Krischner, momento em que os sobreviventes passavam a ter uma posição mais central dentro desta narrativa.
ser alvo de prisões. Este caso mostra o clima de “caças as bruxas” que se instaurou imediatamente
após o golpe. Provavelmente, o fato de não ter sido atingido por esta “inquisição” levou Guazzelli
a engajar-se, logo no início do regime, na defesa de perseguidos pela ditadura. Já que ele não havia
sido preso, tinha o dever de envolver-se na defesa daqueles que o foram.

Já Omar Ferri, nas entrevistas que concedeu, destaca sua forte atuação política, antes do
golpe. Ele havia iniciado sua militância no PTB, seguindo os passos de seu pai. Ingressou na Ala
Moça do partido, além de participar da corrente trabalhista no movimento estudantil da PUC do
Rio Grande do Sul. (FERRI, 2013b, p. 26). De acordo com suas entrevistas, o jovem Ferri era muito
atuante na política de sua cidade natal, Encantado. Em 1956, ao mesmo tempo em que iniciava sua
prática profissional, era secretário do Prefeito da cidade, mostrando que estas duas atuações
andavam lado a lado. (Dr. Omar Ferri, 2004, p. 3). Suas falas sobre este período denotam que Omar
era uma liderança dentro do PTB encantadense, sendo reforçado por ele que, quando lançou
candidatura a vereador em 1958, não fazia campanha para si, mas para seus correligionários de
cada região específica do município. (FERRI, 2013b, p. 26). Ferri reforçou ainda que, apesar
disso, foi o..vereador mais votado, sendo eleito com 804 votos de um total de 8780
votantes.5 Brasília para trabalhar na Fundação Brasil Central (FBC), em julho de 1963,
durante o governo de João Goulart. Ele havia passado em uma prova para o cargo e, de acordo
com sua entrevista, havia trabalhado na administração, muito próximo à presidência da
fundação. (FERRI, 2013a). Durante esse período, ele afirma ter transitado em diversos meios
políticos, realizando um trabalho “de político da época”, mesmo sendo, segundo o próprio, de
“pequena expressão”. (FERRI, 2017).
De acordo com o relatado por Ferri ao Memorial do Judiciário do Rio Grande do Sul,
ele foi levado ao cargo de procurador desta fundação para auxiliar seu presidente, Pedro
Tassis Gonçalves:
[Gonçalves], vendo que estava rodeado por adversários – a rigor, por inimigos – políticos,
e falando com alguns políticos importantes do Rio Grande do Sul, alguns Deputados
Federais, lembraram-se de mim. Ele, então, pediu que um deles fizesse um contato comigo
para ver se eu aceitava sair de Encantado para ir para Brasília. Obviamente, aceitei ser
Procurador.(Dr. Omar Ferri, 2004, p. 4).

Durante o período no qual foi procurador da FBC, Omar Ferri viajou a Cuba, entre
dezembro de 1963 e janeiro de 1964, por ocasião do quinto aniversário da revolução. Em sua volta,
ele teria dado “duas entrevistas meio pesadas contra as forças conservadoras e até contra o próprio
Exército Brasileiro, chamado por mim de reacionário e contrário aos interesses do povo brasileiro”.

5 Esta afirmação é comprovada pela documentação do TRE-RS disponível em <http://


www.tre-rs.gov.br/upload/40/Municipais_Encantado19591.pdf>.
(Dr. Omar Ferri, 2004, p. 5). Nestas ocasiões, ele teria afirmado que, diferente do brasileiro, o
Exército cubano estava identificado por aspirações nacionalistas e sociais do povo. (FERRI, 2017).
O impacto da viagem à ilha caribenha deu-se, principalmente, por Omar ver lá algo que imaginava
que poderia acontecer também no Brasil.
Nesta narrativa, Ferri se apresenta como jovem político trabalhista inserido em um projeto
maior, relacionado ao nacionalismo desenvolvimentista. Fosse em Encantado ou em Brasília, ele
estava envolvido com a causa trabalhista. Além disso, em seus relatos, o advogado reforça seu
protagonismo nesta luta, reforçando seus atos e posicionamentos.
Na eleição de 1962, Omar Ferri candidatou-se a deputado estadual, na qual ficou com a 44ª
colocação do PTB, com 4954 votos, sem se eleger, portanto. (TRE-RS, 1962, p. 18). É digno de
nota que esta eleição só surge de forma passageira ou indireta em sua narrativa, em especial, quando
ele menciona que, em alguns momentos após o golpe, ele, enquanto suplente, assumia na
Assembleia Legislativa do Rio Grande do Sul. O silêncio a respeito deste fato talvez se deva a uma
sensação de derrota em um momento em que sua carreira política vinha ascendendo. Neste contexto
é possível que sua indicação ao FBC tenha surgido visando aplacar tal frustração.
Com um histórico de proximidade ao governo Goulart e de visita a Cuba, não seria de
estranhar que ele fosse perseguido, logo após o golpe de 1º de abril de 1964. Omar Ferri relatou
que, durante os meses anteriores ao golpe, em Brasília sentia-se “uma anormalidade no ar, na
atmosfera política” que, inevitavelmente, levaria a um golpe. Durante o golpe, ele teria voltado a
Porto Alegre em um voo da FAB e presenciado o comício realizado em frente à prefeitura, que
teria ocorrido em 1º de abril, ao lado de Terezinha Irigaray, esposa do prefeito Sereno Chaise.6
(FERRI, 2013a) De acordo com ele, a partir da fala de encerramento de Sereno, “se sentiu que
o golpe tinha levado a melhor”. (FERRI, 2013a).
O relato de Ferri sobre o golpe é interessante devido a dois fatores principais. Inicialmente,
a percepção que ele, enquanto trabalhista e participante do governo de João Goulart, tinha da
“anormalidade no ar”: pode ser uma visão teleológica do fato, porém em outras fontes é possível
perceber estes ventos carregados na política nacional. (MOTTA, 2006). Por outro lado, em sua
narrativa, ele dá a entender que logo após o golpe, havia uma percepção de “normalidade” em
relação aos trabalhistas: ele cita que Chaise teria dito que as pessoas presentes no comício deveriam
“voltar tranquilos para casa” e que a primeira-dama municipal teria dito que “agora tudo vai se
acalmar e o Sereno vai continuar a administrar”. (FERRI, 2013a). Algo semelhante seria a reação
da sogra de Omar, que, segundo ele teria dito naquele momento “graças a Deus, terminou tudo”, ou
seja, teriam terminado os confrontos. (FERRI, 2013b, p. 3). Frente a estas duas declarações, Ferri
teria rebatido de forma a afirmar que, de acordo com sua visão, naquele momento é que “tudo” iria
“começar”.

6 Sobre o golpe em Porto Alegre ver: RODEGHERO; GUAZZELLI; DIENSTMANN, 2013, p. 31-33.
Mesmo assim, quando questionado sobre sua impressão da duração do golpe, ele afirmou
que achava, naquele momento, que “não duraria um ano”. (FERRI, 2017). Pelo que se depreende
das movimentações realizadas pelos trabalhistas no exílio, havia uma ideia de que logo o contexto
mudaria e eles voltariam ao poder. (RODEGHERO; GUAZZELLI; DIENSTMANN, 2013, p. 49-
52). Esta perspectiva dá uma dimensão da experiência vivida no golpe, pelo menos naquele dia 2
de abril. Logo, esta visão por parte dos trabalhistas mudaria devido à perseguição.
Omar afirma que, naquele ponto, ele já percebia que haveria perseguições aos trabalhistas
no governo. Mesmo assim, ele retornou a Brasília nos dias seguintes. De acordo com a
documentação mencionada por ele em diferentes entrevistas, ele foi expurgado da FBC no dia 20
do mesmo mês. Apesar de achar que ele tinha “pouca expressão” para que a repressão se
preocupasse com ele, Ferri apontou que passou os meses seguintes ao golpe, como clandestino no
Rio de Janeiro e em São Paulo. (Dr. Omar Ferri, 2004, p. 6; FERRI, 2013b, p. 17-18). Ele acabaria
por voltar ao Rio Grande do Sul devido a questões familiares, fixando-se em Porto Alegre, onde
atuaria como advogado e, eventualmente, como deputado.
Assim, nos seus relatos, o golpe representa a quebra de uma emergente carreira política. Ele
realizara investimentos há anos, e já estava colhendo os frutos deste trabalho. Isto é perceptível na
própria forma como Ferri fala, que é marcada por uma impostação e oratória características de
alguém preparado para os palanques.
De acordo com Ferri, “em um determinando momento houve um Golpe Militar e acho que
quem pensava como eu caiu em desgraça política. Eu não me adaptei nunca ao tipo de política que
era necessário que se fizesse ao tempo da ditadura ou pós-ditadura”. (FERRI, 2013b, p. 26). A ideia
de quebra de um projeto de carreira está presente em um diálogo relatado à Comissão Estadual da
Verdade, Ferri relatou que o Cel. Bermudez, Secretário de Segurança do Rio Grande do Sul, o havia
questionado sobre como ele poderia defender os “subversivos”. A isto Ferri respondeu que “eu sou
advogado[,] tenho um diploma e tenho que trabalhar na minha profissão pra sobreviver[,] porque
eu fui expurgado pelo seu Governo”. (CEV-RS, 2014, p. 72).
Com a ruptura representada com a saída da FBC, ele se transferiu para Porto Alegre
“pelado, com dois filhos, três filhos, empregada, sogra e aluguel. E eu pelado”, ou seja, sem recursos
financeiros. (FERRI, 2013a). Ferri afirmou, em outra entrevista, que o expurgo ou a cassação “muda
completamente a vida, o estilo de vida, a atmosfera familiar”, que o atingido “sofre o baque de uma
mudança radical”. (FERRI, 2013b, p. 26). Nesta situação, Omar Ferri iniciou seu trabalho na capital
com a ajuda de colegas que o abrigaram em seu escritório, atuando principalmente no
direito trabalhista, no criminal, civil e administrativo.7

7Ainda buscando novas fontes de renda após o golpe, Ferri inscreveu-se no concurso para o Ministério
Público, tendo, segundo ele, sua inscrição impugnada por razões políticas. (Dr. Omar Ferri, 2004, p. 18).
Apesar de contar com somente vinte e nove anos, Werner Becker já havia tido uma carreira
profissional variada no momento do golpe. Ele iniciou o curso de Direito, mas abandonou-o, indo
trabalhar como secretário do deputado petebista Temperani Pereira, na Assembleia Legislativa e,
posteriormente, a partir de 1959, na Câmara dos Deputados. (BECKER, 2017).
Ele afirma não ter gostado de viver no Rio de Janeiro e ter voltado a Porto Alegre, indo
trabalhar no gabinete do prefeito Loureiro da Silva. (BECKER, 2017). Becker estava, assim,
vinculado a um setor do trabalhismo crítico de Brizola, Loureiro da Silva, por exemplo,
deixou o PTB devido a dissidências com este líder indo para o Partido Democrata Cristão
(PDC).8 Nos anos seguintes, Werner deixou de trabalhar na política e passou a atuar
na publicidade e, posteriormente, em rádio e televisão. (BECKER, 2017).
No Diário de Notícias, de Porto Alegre, de 8 de março de 1964, era anunciada uma
reformulação do “Grande Jornal Ipiranga”, noticiário da TV Piratini, Canal 5, filiada à Rede Tupi.
(“O Grande Jornal Ipiranga do Canal-5 em nova fase”, 1964, p. 5). Entre as inovações apontadas,
surge o nome do redator Werner Becker.
Assim, ele iniciava o ano de 1964, como um jovem profissional em uma nova área de
atuação: a televisão. Ao mesmo tempo, ele era vice-presidente do Sindicato dos Radialistas, em
uma chapa em que Lauro Hagemann era o presidente. Durante seu mandato, em setembro de
1963, eles teriam organizado a primeira greve dos radialistas.9
Em 1965, ele passaria a atuar na Rádio Gaúcha; posteriormente, seria afastado do trabalho por suas
posições políticas, mas sem ser demitido, já que possuía mandato sindical. E foi neste momento de
“limbo” profissional que ele iniciou seu trabalho como solicitador acadêmico, enquanto retomava
o curso de Direito. (BECKER, 2017). Para ele, esta situação demonstrava o caráter “artesanal”,
“semilegalizado” da repressão nestes primeiros momentos: ao mesmo tempo que o impediam de
trabalhar, não podiam demiti-lo (BECKER, 2012, p. 6).
Foi então que Becker foi preso, devido, “como diz o Candido Norberto, ‘por causa de
uma bofetada privada’” (BECKER, 2012, p. 6).10 Ele teria tido discussões com o
responsável pela perseguição política na imprensa, quando teria pedido para diminuir as
demissões, visto que estas afetavam a vida das pessoas (BECKER, 2012, p. 6; CEV/RS, 2014,
p. 65). Após a demissão de um colega, o sindicalista, ao ver o algoz andando na Rua da Praia,
no Centro da capital, atingiu-o nas costas. Como Becker relatou à Comissão Estadual da
Verdade (CEV/RS): “Eu cheguei pelas costas dele, dei uma porrada e um joelhaço no... na
fenda, entende e pegou bem porque ele se retorceu e

8 Apesar disto, ele afirmou que o prefeito Loureiro apoiou a Campanha da Legalidade. Por esta razão que Becker
teria presenciado a gravação do célebre discurso de Brizola na Rede da Legalidade. .
9..Após a greve, ele entrou com um processo na justiça contra seus empregadores por não lhe darem
aumento: Werner afirma que este foi um momento em que viu que poderia gostar de advogar (BECKER, 2017).
10 Aparentemente, isto foi proferido em discurso na Assembleia Legislativa.
gritou: “Covarde, pelas costas.” Eu digo: ‘Vem cá, mas torturador tem ética agora?’ E foi que bom.
Aí tudo bem, aí eu fui preso. (CEV/RS, 2014, p. 65).
A narrativa de Werner Becker traz uma dimensão mais cômica e irônica sobre os
acontecimentos. Este caso, por exemplo, poderia ser relatado de uma forma a mostrá-lo como um
resistente, alguém que se impôs, fisicamente até, ao arbítrio e à repressão. Ele poderia ter reforçado
o caráter coletivo de sua agressão: ele, como representante de uma categoria, frente às injustiças, ia
de encontro ao agente da repressão. Apesar de trazer alguns elementos disto, ele opta por pintar o
caso com cores picarescas, tratando como “uma bofetada privada”, dada pelas costas.
Ao mesmo tempo, Werner Becker ressaltou esta dimensão “privada” da agressão, pois ela
foi a motivadora de sua prisão. A agressão, de acordo com ele, deveria ser resolvida em uma esfera
privada e não na pública. Assim, ele foi preso sem motivo, segundo Becker, junto de seu colega e
amigo, Ibsen Pinheiro. Sobre a prisão, ele relatou dois episódios que refletem o tom da narrativa de
Becker. Ao ser preso, ameaçou seus algozes:

Olha, vocês se me baterem, quem toca a mão em mim, eu quando sair daqui eu vou dar
um tiro na cabeça. E se baterem encapuzados, eu vou dar um tiro em ti! [referindo-se a um
torturador]”. Daí o cara disse, “Mas por que em mim?” Eu disse: “porque eu te sorteei, tá.
Agora te fode, bate que tu vais morrer, quando me tirarem daqui de dentro. (BECKER,
2012, p. 5, grifo meu).

Em outro momento, Becker e Pinheiro ouviram em uma cela próxima um uruguaio preso
por contrabando, clamando pela presença de um advogado, que teria recebido a resposta de Ibsen
afirmando que havia dois. (BECKER, 2012, p. 5)
Posteriormente, eles foram soltos, sob protestos de Werner, já que “não me explicaram
porque eu fui preso, e agora eu vou ser solto [,] eu não sou fechecler o que é isso? [...] Vão achar
que eu estou dedurando alguém e tal, que história é essa?” (CEV/RS, 2014, p. 65-66). De forma
mais explícita do que no caso de Guazzelli, percebe-se no relato o temor da vinculação à traição.
Da mesma forma que a memória familiar do advogado vacariano, Becker afirma que foi liberado
da prisão por ter “muitas relações”, ou seja, a partir de seus contatos. (BECKER, 2012, p. 6).
Nestes relatos, Becker busca mostrar o caráter intermediário da repressão no momento. Por
outro lado, vemos duas características muito frequentes na narrativa do advogado: ao mesmo tempo
em que ele ressalta a dimensão cômica, ele se mostra como alguém de temperamento explosivo.
Comparando seu relato com os relativos de Eloar e Omar, temos que o golpe foi um momento no
qual o jovem estava buscando encaixar-se na vida profissional.

ALBERTI, Verena. Ouvir contar: textos em história oral. Rio de Janeiro: Ed. da FGV, 2004.
BERGSON, Henri. Matéria e memória. ensaio sobre a relação do corpo com o espírito. São
Paulo: Martins Fontes, 1999.

BORGES, Vavy Pacheco. Desafios da memória e da biografia: Gabrielle Brune-Sieler, uma vida
(1874-1940). In: BRESCIANI, Stella; NAXARA, Márcia (Org.). Memória e (res)sentimento:
indagações sobre uma questão sensível. Campinas: Ed. da UNICAMP, 2001.

_____. O 'eu' e o 'outro' na relação biográfica: algumas reflexões. In: BREPOHL, Marion;
MARSON, Izabel; NAXARA, Márcia (Org.). Figuraçõ es do outro. Uberlândia: EDUFU, 2009.

BOURDIEU, Pierre. O poder simbólico. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2007.

FERREIRA, Marieta de Moraes. Oralidade e memória em projetos testemunhais. In: LOPES,


Antonio Herculano; VELLOSO, Monica Pimenta; PESAVENTO, Sandra Jatahy (Org.). História
e linguagens: texto, imagem, oralidade e representações. Rio de Janeiro: 7 Letras, 2006.

GUAZZELLI, Dante Guimaraens. A lei era a espada: a atuação do advogado Eloar Guazzelli
na Justiça Militar. Dissertação (Mestrado em História) – UFRGS, Porto Alegre, 2011.

HALBWACHS, Maurice. A memória coletiva. São Paulo: Vértice, 1990.

JELIN, Elizabeth. Víctimas, familiares y ciudadanos/as: las luchas por la legitimidad de la


palavra. In: Cadernos Pagu, Campinas, n. 29, p. 37-60, jul/dez. 2007.

MOTTA, Rodrigo Patto Sá. Jango e o golpe de 1964 na caricatura. Rio de Janeiro: Jorge
Zahar, 2006.

ORDEM DOS ADVOGADOS DO BRASIL/SECCIONAL SÃO PAULO. Coragem – a


advocacia criminal nos Anos de Chumbo. Brasília: Brasil, 2014.

PADRÓS, Enrique Serra. Os desafios na produção do conhecimento histórico sob a perspectiva


do Tempo Presente. In: Anos 90. Porto Alegre, PPG em História - UFRGS, v. 11, n. 19/20, jan/
dez, 2004.

POLLAK, Michael; HEINICH, Natalie. El testimonio. In: POLLAK, Michael. Memoria,


olvido, silencio: la producción social de identidades frente a situaciones limite. Buenos Aires,
La Plata: Al Margen, 2006.

POLLAK, Michael. Memória e Identidade Social. In: Estudos Históricos. Rio de Janeiro,
CPDOC/FGV, v. 5, n. 10, 1992. Disponível em:
<http://www.cpdoc.fgv.br/revista/arq/104.pdf>.
_____. Memória, Esquecimento, Silêncio. In: Estudos Históricos. Rio de Janeiro:
CPDOC/FGV, v. 2, n. 3, 1989. Disponível em: <http://www.cpdoc.fgv.br/revista/arq/43.pdf>

PORTELLI, Alessandro. O massacre de Civitella Val di Chiana (Toscana: 29 de junho de


1944): mito, política, luto e senso comum. In: FERREIRA, Marieta de Moraes; AMADO,
Janaína (Org.). Usos & abusos da História Oral. Rio de Janeiro: Ed. da FGV, 1996.

_____. A filosofia e os fatos. In: Tempo. Rio de Janeiro: UFF, n. 2, dezembro de 1996b.

RICOEUR, Paul. A memória, a história, o esquecimento. Campinas: Ed. da Unicamp, 2007.

RODEGHERO, Carla S.; GUAZZELLI, Dante G.; DIENSTMANN, Gabriel. Não calo, grito:
memória visual da ditadura civil-militar no Rio Grande do Sul. Porto Alegre: Tomo Editorial,
2013.

SARLO, Beatriz. Tempo passado: cultura da memória e guinada subjetiva. São Paulo:
Companhia das Letras, 2007.

TODOROV, Tzvetan. Los abusos de la memoria. Barcelona: Paidós, 2000.

TRIBUNAL REGIONAL ELEITORAL DO RIO GRANDE DO SUL. Resultado verificado no


pleito de 7 de outubro de 1962. p. 18. Disponível em: <https://goo.gl/1yyXAy>

VELHO. Gilberto. O desafio da proximidade. In: KUSCHNIR, Karina; VELHO, Gilberto


(Org.). Pesquisas urbanas: desafios do trabalho antropológico. Rio de Janeiro: Jorge Zahar,
2003.

BECKER, Werner. Entrevista concedida a Dante Guimaraens Guazzelli em Porto Alegre no dia
25 de setembro de 2012.
BECKER, Werner. Entrevista concedida a Dante Guimaraens Guazzelli em Porto Alegre no
dia 24 de maio de 2013.

BECKER, Werner. Entrevista concedida a Dante Guimaraens Guazzelli em Porto Alegre no dia 3
de junho de 2017.

FERRI, Omar. Entrevista concedida a Dante Guimaraens Guazzelli em Porto Alegre no dia 28 de
fevereiro de 2013(a).
FERRI, Omar. Entrevista concedida a Dante Guimaraens Guazzelli em Porto Alegre em 23 de
maio de 2013(b).

FERRI, Omar. Entrevista concedida a Dante Guimaraens Guazzelli em Porto Alegre em 9 de


junho de 2017.

Entrevista: Dr. Omar Ferri. In: Justiça & História – Revista do Memorial do Judiciário, Porto
Alegre, Memorial do Judiciário/Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul, 2004, Vol. 4, nº 8, p. 3.
Disponível em: <https://goo.gl/d1BgBG>

COMISSÃO ESTADUAL DA VERDADE, SECÇÃO RIO GRANDE DO SUL. Depoimento -


Audiência pública conjunta CEV/RS e OAB/RS: “Advogados gaúchos na defesa da cidadania”.
Porto Alegre, 2014. (Acervo da Comissão Estadual da Verdade – CEV/RS/ Arquivo Público do
Estado do Rio Grande do Sul).

O Grande Jornal Ipiranga do Canal-5 em nova fase. In: Diário de Notícias, Porto Alegre, 8 de
março de 64, Segundo Caderno, p. 5. Disponível em:
<http://memoria.bn.br/DocReader/093726_04/27917>.

Personagens das Diretas Já contam o que mudou em duas décadas. In: Zero Hora, Porto
Alegre, 23 de agosto de 2008. Disponível em: <https://goo.gl/ZU2o9D>.

Eloar Guazzelli: A defesa como uma razão de vida. In: Jornal da OAB/RS, Porto Alegre,
Outubro de 1991, p. 14-5.
1

Ânia Chala*

Transcorridos quase 30 anos após a promulgação da Constituição, perto de quatro décadas


depois da Lei da Anistia e mais de meio século desde o golpe que implantou a ditadura civil-militar
no Brasil, as razões e desrazões para as continuidades e heranças do período ditatorial ainda
demandamestudo e reflexão. Em que pese o intenso trabalho de pesquisadores para o entendimento
das dinâmicas relativas aos usos do passado, às disputas pela memória e às estratégias de controle
sobre o que deveria ser lembrado ou esquecido, muito ainda pode ser agregado pelas reflexões de
autores do campo transdisciplinar da memória. É o caso do pensamento de Ricoeur (2005), para
quem, embora não seja viável desfazer fatos ocorridos no passado, é possível reinterpretá-los. Isso
porque o passado não está fechado, mas aberto a novas interpretações. E são justamente leituras
singulares que busco ao ouvir as narrativas memorialísticas de professores de História e de Estudos
Sociais, graduados e atuantes no ensino médio entre 1974 e 1988.
Interesso-me sobremaneira por suas histórias de vida durante o período conhecido por
redemocratização,2 procurando observar as possíveis consequências da vigilância do
governo ditatorial sobre suas trajetórias docentes individuais. Isso porque penso ser
importante saber dos percursos daqueles que trabalharam em escolas públicas ou privadas em
diferentes regiões do Rio Grande do Sul, tendo em vista que a repressão e o controle do
Estado sobre esses profissionais tiveram impactos diferentes, conforme o ambiente político e
social de cada município. Na capital, nas zonas de fronteira, nas regiões onde existem bases e
grandes contingentes de militares ou em pequenos municípios interioranos, é possível que
tenha havido formas distintas de controlar e regular o apoio à ditadura.
Mas há nesse interesse um componente pessoal. Como estudante de escolas públicas da
capital, durante os anos de retorno gradual à democracia, pude presenciar o efeito da pressão
exercida sobre os docentes de História do ensino básico por conta de um episódio singelo, mas
revelador: questionada por um aluno a respeito do governo de Ernesto Geisel, a professora de
História da 7ª série da Escola Estadual Souza Lobo, onde estudei de 1974 a 1977, respondeu
que
1 Este texto está relacionado ao projeto de pesquisa que desenvolvo junto ao doutorado do Programa de Pós-
graduação em Memória Social e Bens Culturais (PPGMSBC) da Universidade La Salle, Canoas, RS, sob a
orientação de Cleusa Gomes Graebin.
* Doutoranda em Memória Social e Bens Culturais/Universidade La Salle e jornalista da UFRGS.
2 Partindo da posição de Aarão Reis Filho (2014), para o qual a redemocratização no Brasil teve início com a
edição da Lei de Anistia em 1979, e foi concluída em 1985 com a eleição indireta de Tancredo Neves, adoto um
recorte temporal ampliado que se inicia com o anúncio da abertura “lenta, gradual e segura” por Ernesto Geisel,
em 1974, e termina com a promulgação da nova Constituição em 1988. Tal período, de acordo com alguns
historiadores, engloba dois momentos: distensão (abertura política) e transição democrática.
sobre isso não poderia falar conosco. Tal negativa, talvez a única por parte daquela profissional
cujas aulas iam além da monótona decoreba de datas e nomes que marcavam o ensino naquela
época, silenciou a sala, normalmente tomada pelo burburinho adolescente.
A resposta daquela professora reverbera em minha lembrança, representando tudo o que foi
negado saber à minha geração e revelandoo quanto mesmo aqueles que não foram expostos
diretamente à repressão governamental, também foram vítimas da alienação e do silenciamento.
Tal recordação, me remete ao que escreveu Gagnebin (2010), quando comparou as lembranças a
bichos selvagens que voltam a nos atormentar quando menos queremos. Acho a analogia perfeita,
pois embora recorde de muitos acontecimentos positivos ocorridos naquela escola, a memória
daquela resposta desconcertante me perseguiu por anos, até que pudesse compreender a extensão
de seu significado. Desde então, como recomenda Montenegro (2013), venho me dedicando a
conhecer ao máximo o contexto histórico em que as memóriasa respeito da ditadura civil-militar
foram construídas. Foi nesse processo que percebi que a pesquisa em jornais, arquivos e outras
fontes documentais carecia da vitalidade das narrativas de pessoas que tiveram sua atuação
profissional invadida pela circunstância histórica. Nas palavras de Portelli (2016), compreendi o
fato de que “a história oral diz respeito ao significado histórico da experiência pessoal, por um lado,
e ao impacto pessoal das questões históricas por outro” (PORTELLI, 2016, p. 16).
Assim, escolhi trabalhar com a metodologia da História Oral, procurando entender o
significado da ditadura civil-militar e do processo de redemocratização na vida de meus docentes-
narradores, a fim de interpretar os sentidos que eles atribuíam àqueles anos. Embora para muitos
deles o ingresso em um curso superior tenha coincidido com o momento da abertura política, ainda
se depararam com várias das estruturas herdadas dos governos militares mantidas em
funcionamento nos anos de redemocratização. As licenciaturas curtas em Estudos Sociais, por
exemplo, criadas pela lei nº 5.692/71 com um forte viés ideológico para atender à demanda
por
professores decorrente da expansão da rede de ensino, só vieram a ser extintas em 1996, após a
promulgação de uma nova Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional.
Conforme observa Padrós (2007), nos estabelecimentos de ensino brasileiros a combinação
entre repressão, disciplina e controle praticada ao longo das décadas de ditadura civil-militar
resultou em destituições massivas, expurgos, aposentadorias compulsórias, abandonos de cargo e
prisões de professores e de alunos. Em consequência, “a proposta ‘educativa’ da nova
ordem, a partir das premissas da Doutrina de Segurança Nacional,3 produziu, de forma geral,
um retrocesso devastador, particularmente, nas áreas das ciências humanas” (PADRÓS, 2007,
p. 3). Corroborando essa leitura, Ferreira Jr. e Bittar (2006) apontam as profundas mudanças
promovidas pela política educacional dos militares e de seus apoiadores civis que redundaram

3 Conforme Padrós (2014), essa doutrina tem como características: a violência irradiada, a diluição da
responsabilidade dos funcionários repressivos, a consolidação de uma “cultura do medo”, a necessidade
permanente da existência de um “inimigo interno”, o caráter imprevisível, o isolamento e a política de controle.
no tecnicismo4; na expansão quantitativa da escola pública de Ensino Fundamental e Médio às
custas do rebaixamento da sua qualidade; no cerceamento e controle das atividades
acadêmicas no interior das universidades; e na expansão da iniciativa privada no ensino
superior. Ao examinar o conjunto dessas medidas, avaliam que a educação foi totalmente
instrumentalizada como aparelho ideológico de Estado.
Em todo o país, a educação passou a operar sob o amparo das reformas efetivadas pelas leis
5.540/68, voltada ao Ensino Superior, e 5.692/71, direcionada ao Ensino Fundamental e Médio.
Ferreira (2012) sustenta que essas normas responderam às demandas do novo cenário econômico,
sobretudo com a formação acelerada de mão de obra com baixo nível de qualificação, e foram
estruturadas a partir dos compromissos assumidos entre os governos do Brasil e dos Estados Unidos
por meio dos acordos firmados entre o então Ministério da Educação e Cultura e a United States
Agency for International Development5 (MEC-USAID).
Uma das disciplinas escolares que mais sofreu intervenções nesse período foi a História.
Silva e Fonseca (2010) chamam a atenção para o fato de que o regime de exceção interferiu
diretamente no ensino de História na educação básica, uma vez que os currículos prescritos pelas
secretarias estaduais e municipais de educação brasileiras contribuíram para “a diluição dos objetos
de ensino de História e Geografia, agregando forte tempero de moral e civismo ditatoriais na fusão
‘Estudos Sociais’ apresentada nos livros didáticos” (SILVA; FONSECA, 2010, p. 25). Tais
modificações, aliadas à criação das disciplinas escolares de Estudos Sociais, Educação Moral e
Cívica (EMC) e Organização Social e Política do Brasil (OSPB), buscaram conferir nova
configuração ao ensino das humanidades no contexto de uma pedagogia autoritária com ênfase na
tríade formar-cultivar-disciplinar, como frisa Martins (2014).
Durante a redemocratização, os professores se engajaram nos movimentos que
desembocaram nas greves do magistério ocorridas em todo o país, entre o final dos anos 1970 e o
início da década de 1980, movidos pela combinação entre crescimento quantitativo da categoria,
formação acelerada e arrocho salarial que deterioraram suas condições de vida e de trabalho. Nesse
contexto, a concepção do magistério enquanto sacerdócio cedeu espaço ao entendimento de que o
docente é um trabalhador como outro qualquer. Se antes, o professorado permitia-se desempenhar
o papel de ordeiramente formar “novas gerações”, portanto, sem direito a reivindicações ou a
greves, desde a redemocratização passou a reconhecer-se como profissional e como funcionário
público.
Apesar de unidos naquele momento histórico, docentes de História e de Estudos Sociais
não deixaram de travar batalhas no campo político e ideológico e também na disputa por vagas no

De acordo com Saviani (2011), esta concepção pedagógica, que no Brasil sucedeu às tendências
4..
Humanista Tradicional e Humanista Moderna, considera que cabe ao processo pedagógico conformar os
agentes educacionais, estabelecendo previamente as atividades desenvolvidas por professores e alunos. Foi a
concepção adotada pelos governos autoritários durante a ditadura civil-militar brasileira. .
5 USAID é um órgão do governo dos EUA que, a partir de 1964, passou a dar assessoria à ditadura civil-militar
no Brasil, sobretudo na área da educação.
mercado de trabalho. Isso pode ser comprovado pelas manifestações de repúdio à instituição das
licenciaturas curtas por parte das instituições federais de ensino, da Sociedade Brasileira para o
Progresso da Ciência (SBPC) e da Associação Nacional dos Professores de História (ANPUH),
entre outras entidades de classe.6
Na pesquisa que desenvolvo junto ao Doutorado em Memória Social e Bens Culturais da
Universidade La Salle, analiso três grupos de professores que atuaram em escolas públicas e
privadas do Rio Grande do Sul: os que cursaram a Licenciatura Plena em História, os que fizeram
a Licenciatura Curta em Estudos Sociais e os que se graduaram na Licenciatura Plena em Estudos
Sociais. Enquanto os primeiros e os últimos frequentaram cursos de graduação de quatro anos,
os graduados na Licenciatura Curta tiveram sua formação reduzida.7 Ao todo serão
realizadas 12 entrevistas – quatro para cada grupo de docentes – tratadas como um corpus
analisado
documental à luz das teorias da memória, da compreensão do contexto político e social e do exame
provocado,
das políticas educacionais vigentes na redemocratização brasileira.
Meu trabalho tem por foco os relatos memoriais reflexivos desses docentes que
experimentaram aqueles tempos de esperança e incerteza, vivenciando o lento retorno da
democracia e o gradual abandono da política educacional instituída pelos militares e seus
apoiadores civis. Se, por um lado, tal política cerceou a atuação de uns, por outro, beneficiou muitos
com a expansão da rede de ensino e a oferta de cursos de Licenciatura de Curta Duração, medidas
que permitiram o ingresso massivo e acelerado no mercado de trabalho. A questão central que
formulo é: a partir de reconstrução de trajetórias de vida, o que pensam, sentem e concebem
professores graduados em História e Estudos Sociais, atuantes no Rio Grande do Sul, entre 1974 e
1988, sobre o período da ditadura civil-militar?
Minha hipótese inicial é a de que a partir da narrativa memorialística do percurso desses
docentes seja possível, guardadas as proporções subjetivas dos relatos, uma compreensão de suas
experiências, da construção de sua identidade profissional e do processo de concepção a respeito
da ditadura civil-militar e do ensino de História. Tratam-se de experiências subjetivas, porém
construídas levando em conta contextos locais, regionais e nacionais, o que extrapola o particular,
o local, apontando indícios que, conforme Ginzburg (1989), podem coincidir com outras
experiências e maneiras de interpretar aqueles tempos. O mesmo autor sustenta que se pode falar

6 Ver a esse respeito: FENELON, Déa Ribeiro. A questão dos Estudos Sociais. Boletim Gaúcho de
Geografia. Associação dos Geógrafos Brasileiros. Seção Porto Alegre, agosto de 1985. Documento
disponível em: <seer.ufrgs.br/bgg/article/view/37802/24386>. Acessado em: 15/07/2017. Uma compilação
sucinta sobre as discussões ocorridas na década de 1980 em torno das licenciaturas curtas em Estudos Sociais
pode ser encontrada em SCHÄFFER, Neiva Otero. Os Estudos Sociais ocupam novamente o espaço... da
discussão. Associação dos Geógrafos Brasileiros. Boletim Informativo do I ENEGE, n. 6, Brasília, 24/07/87.
Disponível em: <www.agb.org.br/publicacoes/index.php/terralivre/article/viewFile/64/64>. Acesso em:
15/07/2017.
7 O Parecer nº. 895/71 do extinto Conselho Federal de Educação, ao analisar a existência de dificuldades
em se distinguir cursos de Licenciatura Curta dos cursos de Licenciatura Plena, propôs o critério
diferenciador pela carga horária: entre 1.200 a 1.500 horas, para os duração (plena). cursos de curta duração; e
de 2.200 a 2.500 horas, para os de longa duração.
de paradigma indiciário,8 dirigido, segundo as formas de saber, para o passado, o presente ou o
futuro.
Convém esclarecer que a memória, inserida em um amplo campo de lutas e de relações de
poder que configuram um confronto ininterrupto entre lembranças e esquecimentos, é aqui
entendida como relação, como rede, em consonância com o que sinalizam Dodebei, Farias e Gondar
(2016). Além disso, acredito com Thomson (1997), que “a memória gira em torno da relação
passado-presente, e envolve um processo contínuo de reconstrução e transformação das
experiências relembradas, em função das mudanças nos relatos públicos sobre o passado”
(THOMSON, 1997, p. 57).
Dessa maneira, assumoque as construções memoriais dos docentes que entrevistarei
poderão apresentar esquecimentos, apagamentos e outras estratégias, intencionais ou não, que
procuram ajustar suas lembranças ao que hoje muitos rotulam simplificadamente como posturas de
enfrentamento ou de adesão ao regime. Tais variações se enquadram naquilo que Jelin (2002)
entende como parte da memória, englobando lembranças e esquecimentos, narrativas e atos,
silêncios e gestos, num processo no qual entram em jogo saberes, mas também emoções, vazios e
fraturas. Por isso, a autora alerta para a importância de o pesquisador atentar para como e quando
se recorda e se esquece, uma vez que o passado rememorado e esquecido é ativado em um
determinado presente e em função de expectativas futuras.
Nesse sentido, tenho em mente que esta pesquisa está sendo desenvolvida em um período
no qual o Brasil vivencia embates político-partidários com o recrudescimento de ideais
conservadores alinhados ao neoliberalismo. Por isso, na realização das entrevistas caberá considerar
os eventuais constrangimentos que possam ser provocados por um contexto marcado pelo
surgimento de movimentos como oEscola sem Partido e a recente reforma do Ensino Médio –
proposta pelo governo federal à revelia das manifestações contrárias de professores e especialistas
em educação. Toda essa conjuntura, mediada por um ambiente de crise política, social e econômica
me leva a concordar com Jelin (2002), para quem,

[...] tanto em termos da própria dinâmica individual como da interação social mais
próxima e dos processos mais gerais ou macrossociais, parecem existir momentos ou
conjunturas de ativação de certas memórias, e outros de silêncios ou ainda de
esquecimentos. Existem também outras chaves de ativação das memórias, sejam de
caráter expressivo ou performativo, em que os rituais e o mítico ocupam um lugar
privilegiado. (JELIN, 2002, p. 18).

8 Expressão cunhada pelo historiador italiano para designar um conjunto de princípios e procedimentos que
propõe um método voltado à pesquisa de fontes e documentos centrado no detalhe, nos dados marginais, nos
resíduos tomados enquanto pistas, indícios, sinais, vestígios ou sintomas. Para Ginzburg, as fontes investigadas
pelo pesquisador, uma vez submetidas ao paradigma indiciário, podem revelar muito mais do que o testemunho
tomado apenas como um dado.
Caberá observar se o quadro atual irá ativar ou silenciar determinadas lembranças e,
igualmente, se o esquecimento imposto em momentos históricos, como o da anistia, se fará presente
também nas narrativas desses docentes.
Cabe ressaltar que, desde os estudos de Halbwachs (2003), a memória individual ou coletiva
é entendida como um fenômeno construído coletivamente sujeito a flutuações, transformações e
mudanças constantes. Porém, Pollak (1992) destacou que essas oscilações sofrem influência das
preocupações do momento em que ocorre essa construção. Ao reconhecer o caráter potencialmente
problemático da memória coletiva, Pollak (1989) anuncia a inversão de perspectiva que marca as
pesquisas atuais sobre esse fenômeno: a abordagem da História Oral passa a se interessar pelos
processos e atores envolvidos no trabalho de constituição e de formalização das memórias,
privilegiando a análise dos excluídos, dos marginalizados e das minorias. Por conseguinte, a
História Oral dará visibilidade às memórias subterrâneas em contraposição às memórias oficiais,
geralmente associadas à memória nacional. Tais memórias subterrâneas prosseguem seu trabalho
de subversão no silêncio, aflorando em momentos de crise em sobressaltos bruscos.
Aqui é possível traçar um paralelo com a história oficial da ditadura civil-militar,
apresentada em sala de aula na vigência do regime de exceção: a memória sobre aqueles tempos foi
devidamente enquadrada por força da coerção exercida em todos os níveis sobre a sociedade
brasileira. Assim, investiu-se em um ensino em consonância com os objetivos políticos, ideológicos
e econômicos dos que se instalaram no poder a partir de abril de 1964. As tentativas de resistência
foram combatidas não só no campo dos aparatos de repressão aos opositores do regime, como
também no campo educacional, já que as medidas implantadas no Ensino Básico e no Ensino
Superior trataram de formar uma geração profundamente alienada dos problemas sociais de seu
país.
Com o fim da ditatura, anunciado e controlado pelos próprios militares, possivelmente tenha
havido um reenquadramento da memória sobre aqueles anos de ordem e progresso obtidos à custa
de repressão, violência e de grande regulação do ensino em geral e da formação docente em
particular. Nesse contexto, foi editada em 1979 a Lei da Anistia, um instrumento por meio do qual
foram “perdoados”, tanto os que se envolveram na luta armada quanto os agentes do Estado
responsáveis pela repressão. Dessa forma, os civis que apoiaram e se beneficiaram do golpe –
incluindo setores da grande imprensa, empresariado e parcelas da classe média –buscaram
dissociar-se dos antigos aliados, firmando alianças com entidades civis e organizações partidárias
na esteira da reorganização da sociedade brasileira. Esses grupos civis, por sinal, como denuncia
Aarão Reis Filho (2014), continuaram no poder na transição para a democracia. Paralelamente,
segmentos antes silenciados foram conquistando espaços e tornando públicos seus relatos sobre o
que ocorreu debaixo do mutismo imposto pela ditadura. Foi quando começaram a circular as
versões conflitantes sobre o período do regime militar.
No caso da conjuntura brasileira do pós-ditadura, é possível supor que a sociedade, dadas
as arbitrariedades reveladas pelo fim da censura aos meios de comunicação, experimentou um
desses períodos de conflito e de rearrumação mencionados por Pollak (1989; 1992), no qual a
preocupação com a identidade e a memória dos diferentes grupos que se aliaram, combateram,
resistiram ou sucumbiram à opressão do regime que entrou em disputa.
É apoiada nas reflexões dos autores até aqui mencionados que parto para a apresentação de
minhas escolhas metodológicas. Penso, com eles, que a História Oral é sempre uma história do
tempo presente, podendo ser conceituada operacionalmente como “um conjunto de procedimentos
que se iniciam com a elaboração de um projeto e que continua com a definição de um grupo de
pessoas a serem entrevistadas” (MEIHY; RIBEIRO, 2011, p. 12). No caso, as entrevistas propostas
serão aqui tratadas como um meio, ou seja, um corpus documental provocado que será analisado à
luz das teorias da memória, da compreensão do contexto político e social e do exame das políticas
educacionais vigentes no período da redemocratização brasileira. Tendo isso em vista, entendo que
este é um projeto de História Oral híbrida.
De acordo com Meihy e Holanda (2015), entrevistador e entrevistado devem se reconhecer
como colaboradores, pois a adoção deste termo reforça o caráter democrático da História Oral.
Conforme recomendam esses autores, pelo fato de lidar com pessoas que tiveram sua formação e
atuação profissional numa época de transição da ditadura à democracia, evitarei o uso da expressão
“depoimento” para designar a narrativa dos entrevistados, já que ela carrega uma conotação
policialesca relacionada ao jargão do regime autoritário. Realmente, não é meu desejo que os
entrevistados participantes desta pesquisa deponham, mas sim que colaborem e dialoguem.
Além disso, considerando com Portelli (2010) que a palavra entrevista tem em sua raiz
semântica a noção do olhar entre, da troca de olhares entre entrevistador e entrevistado, adoto a
ideia de que a existência de um observado e de um observador no ato da entrevista não passa de
uma ilusão positivista.

Durante todo o tempo, enquanto o pesquisador olha para o narrador, o narrador olha para
ele, a fim de entender quem é e o que quer, e de modelar seu próprio discurso a partir
dessas percepções. [...] E bem mais do que outras formas de arte verbal, a História Oral é
um gênero multivocal, resultado do trabalho comum de uma pluralidade de autores em
diálogo. (PORTELLI, 2010, p. 20).

Decorre dessa percepção a importância de estabelecer, já no primeiro encontro com o


entrevistado, uma relação de troca, de colaboração, como frisam Meihy e Ribeiro (2015). E o
primeiro passo para alcançar esse diálogo é esclarecer do que trata e quais são os objetivos do
projeto de pesquisa.
Nesse sentido, coloquei em prática tal pressuposto ao realizar o que Meihy e Holanda (2015)
chamam de ponto zero, isto é, a entrevista inicial da qual são extraídas as questões específicas que
favorecem a continuidade das demais entrevistas. Por reconhecer, com Portelli (2010), que a
história de vida não é uma forma narrativa encontrada na natureza, pois resulta das intervenções de
um ouvinte especializado, provoquei esse encontro, criando um espaço narrativo para que o
narrador contasse sua história. No entanto, essa provocação foi involuntária, pois se deu ao
comentar casualmente com um amigo de meu marido que estava à procura de professores de
História e de Estudos Sociais que tivessem tido formação e atuação docente na redemocratização.
Ele então, passou a falar de sua experiência de professor em um pequeno município do interior
gaúcho, na segunda metade dos anos 1970. Imediatamente, perguntei se ele gostaria de colaborar
com meu projeto, explicando-lhe as linhas gerais e os objetivos da pesquisa. Convite aceito,
marcamos a data de um novo encontro.
Em 2 de março de 2017, gravei em áudio digital a primeira sessão com o colaborador
Cláudio Dilda, 67 anos, ex-professor de História no município de Nova Prata, e, no dia 24 do
mesmo mês, fizemos o registro de uma segunda sessão. Depois disso, encontramo-nos mais três
vezes, entre os meses de abril e junho: na primeira, entreguei-lhe a transcrição do áudio das
entrevistas; na segunda, recebi a transcrição de volta com poucas anotações e entreguei-lhe uma
textualização do material; finalmente, no terceiro encontro, ele devolveu-me a textualização com
apenas uma anotação. Marcamos um último encontro, no qual fiz-lhe a leitura em voz alta da
transcriação que foi integralmente aprovada.
As etapas da transcrição, textualização e transcriação que adotei na passagem do oral ao
escrito são as sugeridas por Meihy e Ribeiro (2011) e Meihy e Holanda (2015). Adotei essa
sequência por considerar que a simples transcrição é insuficiente para dar conta de tudo o que se
passou na situação da entrevista. Isso porque, não apenas os documentos, mas também as palavras
não valem por si. Como alegam Meihy e Ribeiro (2011), “elas [as palavras] só têm valor pelas
ideias, conceitos, emoções que contenham” (MEIHY; RIBEIRO, 2011, p. 108). Por isso, esses
autores dizem que o uso da transcrição como documento final em projetos de História Oral é
contestado por aqueles que valorizam o respeito ao conjunto das ideias passadas pelos
colaboradores e o seu compromisso com o público.
Finalizada a transcrição, procedi à textualização da entrevista, fase na qual minhas perguntas
foram suprimidas e fundidas à narrativa. Conforme Meihy e Ribeiro (2011), neste momento “o
texto permanece em primeira pessoa e é reorganizado a partir de indicações cronológicas e/ou
temáticas. O exercício é o de aproximar os temas que foram abordados e retomados em diferentes
momentos” (MEIHY; RIBEIRO, 2011, p. 109). Essas mudanças, entretanto, não devem alterar o
acervo fraseológico e a caracterização vocabular daquele que narrou sua história de vida. No caso
da entrevista realizada, as modificações feitas foram conferidas pelo colaborador, sendo que, por
sugestão dele, coloquei a narrativa em ordem cronológica, deslocando as informações sobre a
infância e os tempos de estudante universitário no Paraná para o início do texto.
Na última etapa, a transcriação, procurei elaborar uma narrativa recriada em sua plenitude.
O conceito, segundo explicam Meihy e Holanda (2015), foi tomado dos processos criativos da
poesia e da tradução por Haroldo de Campos e tem sua origem assim explicada:
Ezra Pound dizia que seus versos seriam ‘recriações’, formas corporificadas do original –
fato, sentimento, impressão – que ganhariam matéria em letra. E reconhecia que na palavra
há duas vidas: a oral e a escrita, e, que de uma para outra solução, seria preciso ‘traduzir’.
Tendo a inspiração como ponto de partida, vertida em palavra, o produto, o poema,
concretizaria na beleza o sentido da mensagem. (MEIHY; HOLANDA, 2015, p. 134).

A ideia foi utilizada por integrantes do Núcleo de Estudos em História Oral da Universidade
de São Paulo (NEHO/USP) que a adaptaram ao âmbito das entrevistas de História Oral. Esta fase,
como salientam Meihy e Ribeiro (2011), é tarefa do pesquisador e deve ser desenvolvida no sentido
de aproximação com a intenção original que os colaboradores quiseram comunicar, buscando trazer
ao leitor as sensações provocadas pelo contato. “Assume-se, assim, uma postura em que é mais
importante o compromisso com as ideias e não apenas com as palavras. Por isso mesmo, se torna
tão importante o aval do entrevistado, que deve saber qual ordem vai ser dada em sua narrativa”
(MEIHY; RIBEIRO, 2011, p. 110). Na interpretação de Meihy e Holanda (2015), esta fase é
fundamental no trabalho com histórias orais de vida porque possibilita que o pesquisador se abra às
dimensões subjetivas das narrativas.
O fechamento dessas três etapas deve se dar pela validação, isto é, pela conferência do texto
produzido como resultado do diálogo entre entrevistador e entrevistado. É neste momento que
devem ser verificados e corrigidos eventuais erros ou enganos, tendo por norte o respeito à vontade
de quem se dispôs a narrar sua história. Como observam Meihy e Holanda (2015), “embutido nesse
comportamento respeitoso ao que o ‘outro’ diz reside o pressuposto ético da aceitação do papel do
oralista, que atua como mediador entre o que foi dito e o que se tornará registro definitivo.”
(MEIHY; HOLANDA, 2015, p. 111).
O texto final resultante de nossos encontros foi devidamente aprovado pelo colaborador, e
o relato que apresento a seguir traz algumas informações e trechos da etapa de transcriação,
pontuados por reflexões iniciais, visto que esta é a primeira de doze entrevistas.
Apesar de ter-me relatado algumas histórias de sua infância e adolescência, Cláudio foi
bastante reservado quanto à vida em família, não mencionando sequer os nomes de seus pais ou
irmãos. Com uma fala bastante articulada, desde o primeiro encontro, ele disse-me que tentaria ser
cronológico em sua narrativa. Apesar disso, foi somente em nosso segundo contato que me revelou
as circunstâncias que o levaram a estudar em um colégio de padres longe da família, bem como
discorreu sobre a militância estudantil exercida em seu tempo na Universidade. O silêncio sobre a
vida familiar foi parcialmente atenuado em nossa segunda sessão gravada, quando se referiu à
primeira e à atual esposa, revelando que ambas haviam sido suas alunas, além de falar brevemente
sobre as duas filhas.
Filho de agricultores, nascido na localidade de Gramado, interior de Nova Prata, ele
permaneceu em sua terra natal até os 13 anos, quando foi morar e estudar em um seminário mantido
pela congregação espanhola dos Sagrados Corações, em São José dos Pinhais, município vizinho
de Curitiba:
Fui. Nas primeiras noites, não dormi, só chorei. Como um guri disse pro diretor do
seminário, chorando: ‘padre eu quero ir pra casa’! Daí o padre olhou pra ele e disse: ‘eu
também’ [risos]. Não tinha volta; um porque era na Espanha, o outro não me lembro de
onde era. Muitos colegas desistiram. Normalmente, as desistências ocorriam ao final de
cada ano. Uma leva não retornava no ano seguinte por opção ou porque os padres
mandavam eles embora. Mas, fiquei até eu mesmo desistir, que foi exatamente a partir do
momento em que passei a entender melhor as coisas. Minha mãe, que foi até o fim católica,
apostólica, romana ficou meio chateada, mas não disse nada. Teve uma irmã minha que
foi a um colégio de freiras em Nova Araçá, mas ficou por lá só um ano. Meus outros
irmãos não estudaram como eu. (DILDA, Cláudio: entrevista em 24/03/2017).

Graduado em História pela Universidade Federal do Paraná (UFPR) e com uma trajetóriade
militância estudantil, Cláudio pretendia seguir a carreira docente na universidade. Porém, teve seu
projeto interrompido. Segundo ele,

[...] esse era o projeto inicial, que não se concretizou porque meu pai faleceu. Sou o mais
velho de quatro irmãos. Minha mãe estava sozinha e eu me senti na obrigação parental e
moral de retornar para Nova Prata. Foi o que fiz. E, lá chegando, fui fazer o que sabia,
trabalhar em escola. Não foi frustrante retornar porque, observado o tempo que transcorreu
de 1975 para cá, concluo que foi o que de forma acertada eu fiz. Aquela situação que te
deixa em paz com a tua consciência. A pior coisa seria a consciência te cutucando o resto
da vida (DILDA, Cláudio: entrevista em 2/03/2017).

Assim, ele retornou à Nova Prata e foi fazer o que sabia: tornou-se professor de História na
Escola Normal Tiradentes (pública) e no Colégio Nossa Senhora Aparecida (privado), atuando entre
os anos de 1976 e 1983.

Acabei agitando mais em Nova Prata por conta do sistema de trabalho, da metodologia
que eu utilizei para trabalhar com os estudantes. E... O que eles levavam para casa,
questionamentos, perguntar como é isso, como é aquilo, o professor disse isso, o professor
disse aquilo. Isso aí mexeu com os brios dos próceres da ditadura de Nova Prata. Os Arena
que estão lá até hoje, e mandando. A direita lépida e fagueira. (DILDA, Cláudio: entrevista
em 2/03/2017).

Essa última afirmação tem um tom amargo, ampliado pela revelação posterior de que ele
havia sido um dos fundadores do PT na cidade. Após desentender-se com esse primeiro grupo,
candidatou-se à prefeitura nas eleições municipais de 1982 pelo PMDB, tendo sido derrotado por
um candidato que veio a reeleger-se mais quatro vezes, adotando a estratégia de mudar de partido
a cada novo pleito.
Cláudio identifica o momento-chave em que foi tachado de comunista: quando promoveu
uma semana da cultura nas férias de inverno de 1977, exibindo peças, filmes e promovendo debates
com os estudantes do Ensino Médio:

Bom, levamos Terra em transe do Glauber Rocha! Terra em transe foi projetado no
cinema! Levamos um grupo de teatro de Novo Hamburgo e outro de Porto Alegre. De
cinema, inclusive discutimos o Super-8, com o Nelson Nadotti – autor de telenovelas e
cineasta –, um porto-alegrense que, se não me engano, continua trabalhando na Globo.
Bom, a partir daí, na verdade, eu acabei sendo identificado como o insuflador, porque os
filhos deles não iam ter a capacidade nem a iniciativa de trazer aquele tipo de coisas para
Nova Prata. Então, fui eu o culpado. Está bem. Foi o carimbo: esse cara é comunista! Bom,
começou o meu inferno! (DILDA, Cláudio: entrevista em 02/03/2017).

A partir desse episódio, ele passou a ser seguido pelo único jipe da Polícia Militar existente
na região, recebendo frequentes advertências de outros colegas professores por conta de sua
insistência em trabalhar com os alunos dentro e fora da sala de aula. Em sua narrativa, relembrou
que alguns professores o criticavam por ele tomar café com os estudantes nos intervalos entre uma
aula e outra. Tais comentários não o intimidaram, tanto que criou um grupo de estudos e debates e
outro de teatro que se reunia aos sábados em sua própria casa.
O embate com as forças conservadoras locais culminou coma convocação para que ele
comparecesse a uma audiência com o então vice-secretário de Educação do Rio Grande do Sul. O
encontro, por ele definido como um interrogatório nos moldes nazistas, o marcou de tal forma que
Cláudio até hoje recorda local e data exatos do encontro: a antiga sede da Secretaria de Educação
do Estado, situada na rua Carlos Chagas, nº. 55, Centro Histórico de Porto Alegre, no dia 6 de abril
de 1979, ocasião em que foi questionado longamente sobre sua atividade nas escolas de Nova Prata,
mediante a apresentação de um dossiê reunindo os polígrafos que ele confeccionava e distribuía aos
seus alunos. Esse momento-chave, evocado com eloquência e emoção, parece ser a principal marca
deixada por aqueles tempos. Cláudio revelou, inclusive, que atendendo a um pedido seu, um ex-
aluno o acompanhou na viagem de ônibus à capital, aguardando-o na portaria do prédio, pois
embora o país vivesse tempos de abertura política, ainda havia relatos de desaparições.
Embora tenha prosseguido com suas aulas até o final de 1983, a sucessão de confrontos
com a elite dirigente da cidade levou-o a decidir abandonar o magistério, transferindo-se para a
capital em junho do ano seguinte. Casou-se, e nas suas palavras, queria ter um pouquinho de
tranquilidade. Foi cedido à Assembleia Legislativa para assessorar o então deputado pelo PMDB,
Antenor Ferrari. A partir dali, desenvolveu uma profícua carreira como defensor da causa
ambientalista e gestor na área ambiental, tendo trabalhado pela criação da Fundação Estadual de
Proteção Ambiental Henrique Luis Roessler (FEPAM), órgão que presidiria durante o governo de
Germano Rigotto.
Ao apresentar essas reflexões iniciais sobre a entrevista de meu primeiro colaborador,
retomo o alerta feito por Patai (2010), ao observar que, quando uma pessoa nos conta sua história
de vida está, de certo modo, oferecendo o seu eu para o exame dela mesma e do pesquisador. Logo,
“o fato de que o narrador constrói seu eu no ato de falar, não altera a dimensão da exposição e da
revelação pessoais” (PATAI, 2010, p. 28).
Encerro essas considerações iniciais, afirmando que não espero “resgatar” ou “revelar”
memórias silenciadas a respeito do exercício do magistério no momento de transição da ditadura
para a democracia em nosso país. Espero, sim, por meio das narrativas de meus entrevistados,
apurar a escuta e aprender a ouvi-los. Nesse ato de narrar histórias, quero lembrar e reviver com
meus entrevistados/colaboradores seus percursos como professores, naqueles tempos de transição.

AARÃO REIS FILHO, Daniel. Ditadura e democracia no Brasil: do golpe de 1964 à


Constituição de 1988. Rio de Janeiro: Zahar, 2014.

DILDA, Cláudio. Entrevista concedida a Ânia Chala. Porto Alegre, 23 mar. 2017.

_____. Entrevista concedida a Ânia Chala. Porto Alegre, 2 mar. 2017.

DODEBEI, Vera; FARIAS, Francisco R.; GONDAR, Jô (Org.). Por que memória social? In:
Revista Morpheus: estudos interdisciplinares em Memória Social, edição especial, v. 9, n. 15. Rio
de Janeiro: Híbrida, 2016. Disponível em:
<www.seer.unirio.br/index.php/morpheus/issue/view/203>. Acesso em 20/08/2017.

FERREIRA, Elenice Silva. História, memória e silenciamentos: relações de poder em uma escola
pública durante o período de ditadura civil-militar através da memória de professores. In: Anais
eletrônicos do IX Seminário Nacional de Estudos e Pesquisas: História, sociedade e educação no
Brasil. UFPB, João Pessoa: 31 de julho a 3 de agosto, 2012. Disponível em:
<www.histedbr.fe.unicamp.br/acer_histedbr/seminario/seminario9/PDFs/7.31.pdf>. Acesso em
13/08/2017.

FERREIRA JR., Amarilio; BITTAR, Marisa. A ditadura militar e a proletarização dos professores.
In: Educação & Sociedade, Campinas, v. 27, n. 97, p. 159-179, set./dez. 2006. Disponível em:
<www.cedes.unicamp.br>. Acesso em 12/07/2017.

GAGNEBIN, Jeanne Moarie. O preço de uma reconciliação extorquida. In: TELES, Edson e
SAFATLE, Vladimir (Org.). O que resta da ditadura: a exceção brasileira. São Paulo: Boitempo,
2010, p. 177-186.
GINZBURG, Carlo. Sinais, raízes de um paradigma indiciário. In: GINZBURG, Carlo. Mitos,
emblemas, sinais: morfologia e história. São Paulo: Companhia das Letras, 1989, p. 143-180.

HALBWACHS, Maurice. A memória coletiva. São Paulo: Centauro, 2003.

JELIN, Elizabeth. Los trabajos de la memoria. Madrid: Siglo XXI de España, 2002.

LOURENÇO, Elaine. O ensino de História encontra seu passado: memórias da atuação docente
durante a ditadura civil-militar. Revista Brasileira de História. São Paulo: v. 30, n. 60, 2010, p.
97-120. Disponível em: <www.scielo.br/pdf/rbh/v30n60/en_a02v3060.pdf>. Acesso em
13/07/2017.

MARTINS, Maria do Carmo. Reflexos reformistas: o ensino das humanidades na ditadura militar
brasileira e as formas duvidosas de esquecer. Educar em Revista. Curitiba: Editora UFPR, n. 51,
jan./mar. 2014, p. 37-50. Disponível em: <www.scielo.br/pdf/er/n51/n51a04.pdf>. Acesso e
12/07/2017.

MEIHY, José Carlos Sebe Bom; RIBEIRO, Suzana L. Salgado. Guia prático de história oral:
para empresas, universidades, comunidades, famílias. São Paulo: Contexto, 2011.

_____; HOLANDA, Fabíola. História oral: como fazer, como pensar. 2 ed., 4ª reimpr., São
Paulo: Contexto, 2015.

MONTENEGRO, Antonio Torres. História Oral e memória: a cultura popular revisitada. 6. ed.,
São Paulo: Contexto, 2013.

PADRÓS, Enrique Serra. Terrorismo de estado e luta de classes: repressão e poder na América
Latina sob a Doutrina de Segurança Nacional. In: XXIV Simpósio Nacional de História, São
Leopoldo, 2007. Disponível em: <https://anais.anpuh.org/?p=14270>. Acesso em 9/08/2017.

_____. Terrorismo de Estado: reflexões a partir das experiências das Ditaduras de Segurança
Nacional. In: GALLO, Carlos Arthur; RUPERT, Silvania (Org.). Entre a memória e o
esquecimento: estudos sobre os 50 anos do golpe civil-militar no Brasil. Porto Alegre: Deriva,
2014, p. 13-36.

PATAI, Daphne. História oral, feminismo e política. São Paulo: Letra e Voz, 2010.

POLLAK, Michael. Memória, esquecimento, silêncio. Revista Estudos Históricos, Rio de Janeiro,
v. 2, n. 3, p. 3-15,1989. Disponível em:
<http://bibliotecadigital.fgv.br/ojs/index.php/reh/article/view/2278/1417>. Acesso em 9/08/2017.
_____. Memória e identidade social. Revista Estudos Históricos, Rio de Janeiro, v. 5, n. 10, 1992,
p. 200-215. Disponível em: <http://bibliotecadigital.fgv.br/ojs/index.php/reh/article/view/1941>.
Acesso em 9/08/2017.

PORTELLI, Alessandro. Ensaios de História Oral. São Paulo: Letra e Voz, 2010.

_____. História Oral como arte da escuta. São Paulo: Letra e Voz, 2016.

RICOEUR, Paul. O perdão pode curar? In: HENRIQUES, Fernanda (Org.). Paul Ricoeur e a
simbólica do mal. Porto: Afrontamento, 2005, p. 35-40.

SAVIANI, Demerval. História das ideias pedagógicas no Brasil. 3 ed. Campinas. São
Paulo: Autores Associados, 2011.

SILVA, Marcos Antônio da; FONSECA, Selva Guimarães. Ensino de História hoje: errâncias,
conquistas e perdas. Revista Brasileira de História. São Paulo: v. 31, n. 60, 2010, p. 13-33.
Disponível em: <http://www.scielo.br/pdf/rbh/v30n60/a02v3060.pdf>. Acesso em: 14/07/2017.

THOMSON, Alistair. Recompondo a memória: questões sobre a relação entre a História Oral e as
memórias. In: Projeto História. São Paulo, n. 15, p. 51-71, abril de 1997. Disponível em:
<https://revistas.pucsp.br//index.php/revph/article/view/11216>. Acesso em 13/07/2017.
Cristiano Gehrke*

O período compreendido entre os anos de 1937 e 1945, no Brasil, foi marcado pela política
nacionalista do governo de Getúlio Vargas. Prisões, destruição de publicações e materiais gráficos
foram uma constante nestes anos. A população de origem teuta moradora do município de São
Lourenço do Sul, no sul do Rio Grande do Sul, sofreu de forma sistemática as consequências deste
movimento que tinha como objetivo dissipar os elementos culturais que distinguiam este grupo do
restante da população.
Até o ano de 1937, o idioma alemão era de uso corrente, não somente no ambiente
doméstico, mas também nas escolas ou nas igrejas, onde o ensino e os cultos eram realizados neste
idioma. Com o avanço dos ideais nacionalistas e a promulgação de uma série de leis e decretos que
cerceavam diversos direitos, estes imigrantes e seus descendentes se viram obrigados a, de uma
hora para outra, deixar de fazer uso do seu idioma materno e adotar o português como língua
principal (FACHEL, 2002).
Dentro deste contexto, diversas instituições associativas filantrópicas e educacionais foram
fechadas e ocorreu uma destruição massiva de materiais impressos redigidos no idioma germânico.
Este período foi marcado ainda por uma série de conflitos da população com as autoridades policiais.
Alguns destes conflitos resultaram na depredação ou na incineração de residências, bem como na
vilipendiação de indivíduos, o que fez com que várias pessoas acabassem encarceradas, sob
acusação de perturbação da ordem pública ou mesmo sob o pretexto de divulgação de ideais
nazistas na região.
Percebemos, desta forma, que este foi um período de grandes traumas para toda a população.
Ao realizar a nossa pesquisa de doutoramento e dar início à realização da coleta dos primeiros
depoimentos orais, percebemos que um dos temas que era citado de forma bastante frequente e com
níveis emotivos acentuados, eram aqueles diretamente relacionados com a repressão sofrida por
familiares durante a política nacionalista empreendida durante o Estado Novo.
Neste sentido, valendo-nos da classificação proposta pelo antropólogo britânico Paul
Connerton (2008), que fez um estudo sobre as diferentes formas de esquecimento que existem na
sociedade, as quais podem ser, de acordo com suas particularidades, classificadas em sete tipos,
pretendemos analisar no presente ensaio os efeitos traumáticos do período supracitado, sob a ótima
do chamado “apagamento repressivo”, bem como buscar mapear quais permanências deste
período ainda são visíveis na atualidade, entre os descendentes de imigrantes germânicos
que habitam aquela região.
* Doutorando em Memória Social e Patrimônio Cultural. Universidade Federal de Pelotas. CAPES.
O século XIX assinala o início de um movimento que foi denominado pelos
pesquisadores como o período das grandes migrações, no qual centenas de milhares de
indivíduos se deslocam do continente europeu em direção ao continente americano. A Europa
oferecia uma série de fatores de expulsão. Fatores de ordem religiosa, política, social ou
econômica agravados basicamente pela expansão do sistema capitalista e pelos reflexos
da Revolução Industrial compeliram uma significativa parcela da superpopulação
europeia no período a buscar outras alternativas para sobrevivência.
Enquanto aquele continente sofria com um crescimento demográfico desordenado,
o continente americano, enfrentava problemas relacionados à baixa densidade
demográfica em algumas regiões. Neste sentido, aliando interesses de ambas as partes, a
imigração em massa foi estimulada de maneira bilateral.
É neste contexto que teve início uma das maiores movimentações humanas já
verificadas na história. O Brasil recebeu sucessivas levas de imigrantes, de distintas
nacionalidades.
Até iniciar a segunda metade do século XVIII, a região da chamada Serra dos Tapes era
um vasto território coberto de matas, habitado apenas por alguns grupos indígenas, com
economia baseada na caça e na pesca (ARRIADA, 1994). Após a assinatura do Tratado de
Santo Ildefonso (1777), a posse do território gaúcho foi assegurada pela coroa portuguesa
(MAESTRI, 2010), iniciando, desta forma, a concessão de sesmarias, que tinha como
objetivo fortalecer, ocupar e explorar o estado. Com a divisão do território, a região começou
a ser povoada. O surgimento das primeiras charqueadas, e o consequente aumento da demanda
de mão de obra escrava para atuar nestes estabelecimentos, fez com que a região tivesse um
crescimento vertiginoso em poucos anos (MAGALHÃES, 1993) .
Com o passar dos anos, o esgotamento da matriz econômica baseada nas charqueadas e
o surgimento de uma série de leis que anunciavam a futura extinção do trabalho escravo,1
impôs-se a necessidade de buscar novas possibilidades para a produção de alimentos. Estes
foram os fatores que levaram à criação de colônias de imigração no espaço rural do município
(ANJOS, 2006).
Além desta necessidade interna, a região que havia recebido os primeiros imigrantes no
Rio Grande do Sul estava ficando saturada, e, com o forte crescimento das correntes
migratórias, tornou-se necessária a busca de novos territórios (MANFROI, 2001). Este
crescente interesse pela colonização se deu também devido à criação da Lei de Terras, que
possibilitava, através da venda dos lotes, a obtenção de grandes lucros, por parte dos
proprietários (MAESTRI, 2000).
A Serra dos Tapes no século XIX vivia no auge da produção saladeiril, cujos
empreendimentos se concentravam nas margens do Arroio Pelotas, e tinha, desta forma,
grande parte do território em situação de relativo abandono, basicamente porque muitas terras
ff
1 Lei do Ventre Livre, Lei dos Sexagenários, Lei Eusébio de Queirós e, por fim, a Lei Áurea.
não eram adequadas nem à pecuária, nem à monocultura, devido ao grande número de cursos
d’água e ao declive acentuado de certas regiões (ULLRICH, 1999).
No sentido de diversificação das atividades econômicas, criou-se, em 1858, a primeira
colônia de imigrantes fundada por iniciativa particular no município de Pelotas, a chamada
Colônia São Lourenço, sob administração do empresário Jacob Rheingantz e do estancieiro José
de Oliveira Guimarães, e que foi colonizada majoritariamente por imigrantes de origem germânica
(COARACY, 1958). O sucesso do empreendimento fez com que em 1884 a colônia se
emancipasse de Pelotas, formando o município de São Lourenço do Sul.
São Lourenço do Sul foi considerada uma das primeiras e mais frutíferas
colônias particulares da região. É neste contexto, num município dominado pelo elemento
de origem germânica, com a economia voltada para a produção familiar de alimentos, que no
final da década de 1930 e início da década de 1940, foram implementadas uma série de
medidas de cunho nacionalista com o objetivo de criar uma identidade nacional una, e integrar
o grande número de imigrantes e seus descendentes com a sociedade brasileira, visando
aniquilar qualquer sentimento de identificação com a cultura estrangeira.
No momento em que ocorria na Europa o segundo conflito armado mundial, o Brasil
vivia um período de muitas incertezas. Num primeiro momento, conforme autores que
estudaram o período (FACHEL, 2002; GERTZ, 2012), o governo de Vargas “namorava”
com a Alemanha. Existia um intenso comércio entre ambos países, o que era bastante
conveniente para os dois lados. Mas, por pressões externas, o Brasil saiu de uma neutralidade
estratégica, que o governo tentou manter o máximo de tempo possível e declarou guerra ao
Eixo em agosto de 1942. Porém, mesmo antes desta declaração “oficial” de guerra, era
implantada no Brasil uma política nacionalista.
O ano de 1937 assinalou, no país, a instituição do regime de autoridade comandado
por Getúlio Vargas denominado Estado Novo, ele teve duração de oito anos, nos quais a
política nacional tinha como base a ideologia de que o “Estado e a Nação constituíam
uma unidade indissolúvel” (WEBER, 2013, p. 02). Neste contexto, foram instauradas políticas
no sentido de criar uma “nação homogênea com uma cultura única” (POSSAMAI, 2005, p.
243). Foi o momento em que teve início uma política de repressão a todas as manifestações
culturais, políticas e sociais de comunidades, onde predominavam elementos alemães, italianos
ou nipônicos.
A existência de desconfianças por parte das autoridades sobre a presença de
possíveis elementos com relações com o governo nazista alemão, fez com que a campanha de
nacionalização empreendida pelas autoridades e adotada pela própria população fosse bastante
representativa em São Lourenço do Sul.
José Plinio Guimarães Fachel (2002), em seu estudo constatou que várias manifestações de
ódio aos descendentes de alemães em Pelotas e São Lourenço do Sul partiram de civis,
que
que acabaram “fazendo justiça com as próprias mãos”, destruindo e saqueando
comércios, e vandalizando residências.
Roche (1969, p. 704) afirma que o objetivo do governo de Getúlio Vargas, ao
implementar uma política de nacionalização, era pôr em pé de igualdade os imigrantes e seus
descendentes com os demais cidadãos que habitavam o solo brasileiro. Contudo, foi
necessário recorrer a determinados artifícios, tais como a violência física e psicológica para
acelerar este processo.
Conforme exposto, anteriormente, grande era o número de imigrantes europeus
aqui chegados. E a formação de colônias, de certo modo homogêneas, isoladas
geograficamente, fizeram com que traços culturais dos países de origem destes imigrantes
fossem preservados, permanecendo quase que intactos em algumas regiões, criando uma
espécie de “guetos étnicos” dentro do Brasil. Isto gerava no governo brasileiro um grande
desconforto, e este pode ser apontado como um dos motivos pelos quais este grupo de
descendentes de imigrantes germânicos sentisse as consequências deste processo de forma
muito mais intensa.
A campanha de nacionalização ocorreu de forma sistemática em todo o país,
conforme atestam as leis e decretos sancionados no período. Desde 1938, uma série de
decretos do governo federal passaram a restringir as atividades dos estrangeiros no país.
Especialmente as que diziam respeito à sua atuação política e social, passaram a ser proibidas
reuniões, eventos sociais, culturais, bem como a expressão no seu idioma nativo.
No sentido inverso, procurando mostrar sua integração à sociedade local, temos
exemplos extremos de demonstração de nacionalismo, de devoção à pátria, adotadas
basicamente por medo de possíveis represálias. Reportagens veiculadas na imprensa local,
hasteamento de bandeiras brasileiras em frente a casas comerciais, fotografias de Getúlio
Vargas em escolas e residências, eram algumas das estratégias encontradas pela população
para se livrar de possíveis perseguições.
Na época,
Estas a população do
demonstrações de município era composta
nacionalismo basicamente
exacerbado não eram,por elementos de origem
todavia, uma regra
germânica. A grande
na comunidade. Estamaioria chegou
afirmativa através
pode das empresas
ser efetuada, tendomigratórias
por base anoanálise
final do século
dos XIX.
processos
relacionados
Porém, a detenções
na década de 1920 etemos
prisões
umno município
número de São Lourenço
considerável do Sul,
de imigrantes no referido
de origem período.
germânica que
veio a São Lourenço de forma espontânea. Eram profissionais, tais, como, professores, pastores,
padres, médicos, farmacêuticos, fotógrafos, entre outros.
A especialização destes profissionais e o seu deslocamento ao interior do município, suas
condições financeiras, seus regressos ao território alemão, são alguns dos aspectos que levantaram
suspeitas frente a sua conduta. Estes imigrantes passaram, então, a ser observados pelas autoridades
policiais locais com mais atenção.
Alguns poucos e pontuais estudos sobre o processo de perseguição a elementos estrangeiros
no município de São Lourenço do Sul foram efetuados até o presente momento. Contudo, não foram
analisados aspectos bastante pertinentes, tais como os resultados que tal período teve na sociedade
local, bem como a forma que o período foi e continua a ser encarado pela população. Neste sentido,
visando preencher esta lacuna e efetuar uma análise sobre estes aspectos, efetuamos algumas
entrevistas pautadas na metodologia da História Oral, para que fosse possível identificar, nos dias
atuais, possíveis permanências traumáticas daquele período. Contudo, antes de continuar, se faz
necessário fazer algumas considerações sobre o que entendemos por História Oral.

O papel da História Oral na escrita e compreensão da História


Nos últimos anos temos assistido a um vertiginoso crescimento na utilização da
metodologia da História Oral para a compreensão de eventos históricos. Contudo, mesmo já estando
consolidada como uma fonte histórica há mais de meio século, os historiadores orais, não raro,
necessitam fazer uma defesa da utilização deste tipo de fonte em detrimento dos tradicionais
documentos escritos. Contudo, iremos nos abster de tal tarefa, visto que, para nós, a utilização desta
metodologia já está mais do que consolidada no campo historiográfico. O que faremos, a seguir, é
destacar algumas das limitações, potencialidades e alguns aspectos relacionados à interpretação
deste tipo de fonte.
As críticas à História Oral residem basicamente na questão subjetiva intrínseca a esta fonte.
Uma série de questionamentos ocorre basicamente em função da confiabilidade da memória, uma
vez que, de acordo com os críticos, os depoimentos orais podem ser relatos falíveis ou até mesmo
fantasiosos.
Neste sentido, Paul Thompson (1998) aponta que mesmo as já consagradas fontes
documentais são impregnadas de subjetividade, podendo ser ambíguas ou até mesmo passíveis de
manipulação. Contudo, esta pode ser considerada uma das grandes potencialidades deste tipo de
fonte, uma vez que a subjetividade, a imaginação, os desejos expressos pelos narradores mostram
que a História é uma disciplina viva e que sujeitos comuns a vivenciaram.
A subjetividade, presente também em outras fontes, pressupõe, de certa forma, algumas
omissões por parte dos entrevistados, mas que podem ser identificados de diferentes formas
(PORTELLI, 2010). Thompson (1998, p. 197) afirma, ainda, que “toda história derivada da
percepção humana é subjetiva, mas apenas a fonte oral permite-nos desafiar essa subjetividade” o
que faz com que a utilização desta fonte seja ainda mais profícua do que a utilização de outras fontes.
Fraser (1993, p. 80) afirma que a História Oral nada mais é do que a geração de novos
saberes, graças à criação de novas fontes históricas, e destaca que os “documentos orais permitem
ao historiador recolher e elaborar as suas próprias fontes e construir o seu próprio arquivo”.
Neste sentindo, Portelli (2010, p. 07-20) aponta que a utilização de entrevistas na realização
de estudos, amplia de forma significativa os “horizontes da investigação”, uma vez que estas
oferecem uma alternativa crítica às memórias dominantes, que pautaram a escrita da história até
então, o que faz com que o certo “fetichismo” que ainda é associado com as fontes escritas seja
deixado de lado.
Com o principal objetivo de registrar experiências e acontecimentos que, por uma série de
fatores não foram documentados de forma satisfatória pelas fontes consideradas tradicionais, é que
o uso da História Oral é um campo em franca expansão, conforme Constantino (2006, p. 69). Desta
forma, buscando “recuperar a memória e a experiência de grupos à margem da história escrita”
(SILVA, 2006, p. 02), os testemunhos orais passam a ser identificados “não somente como uma
fonte a mais ou uma maneira de complementar as fontes escritas, senão como uma via de acesso
àqueles fenômenos tradicionalmente ausentes em outras fontes, de histórias escondidas, e de atores
marginais” (SCHWARZSTEIN, 2001, p.169).
Portelli (2010, p. 186) afirma, ainda, que a História Oral “é representada pela experiência
pessoal de indivíduos específicos”. Nesta prática, os narradores articulam memória, avaliação e
relatos de diálogos com entrevistadores que estão tentando reconstruir uma estrutura mais ampla.
Assim, convidam-lhes a focalizar o encontro entre a história e suas vidas, entre mundos privados e
eventos de interesse geral, o que faz com que esta seja uma oportunidade para “narradores
relativamente obscuros serem canonizados no discurso público: um relato público realizado por
pessoas que raramente têm a oportunidade de falar publicamente”.
Feitas estas breves e pontuais considerações, passaremos a dedicar ao estudo de um
fenômeno que vem sendo debatido com mais ênfase nos últimos anos: o esquecimento.

Atualmente, a sociedade vive um período de massificação do sistema de informações, o que


produziu um fenômeno moderno denominado pelos pesquisadores de globalização. Paralelamente
a este fenômeno, surgiu o que o antropólogo francês Joel Candau (2011) chama de mnemotropismo,
ou seja, uma tendência de “supervalorização do passado”, o que faz com que ocorra uma compulsão
pela memória, um frenesi pelo patrimônio, por genealogias (HUYSSEN, 2000).
Indo no caminho inverso desta tendência global de supervalorização da memória, existe
também um aspecto que não pode ser ignorado e que se refere ao esquecimento deliberado de
determinados fatos ou eventos, basicamente em virtude do peso traumático que estes possuem.
De modo geral, na sociedade contemporânea, lembrar e comemorar são tidas como virtudes
e o esquecimento é apontado como uma falha humana, um fracasso; contudo, diferentes autores
discordam desta afirmação. Ivan Izquierdo (2002; 2004) pode ser considerado um dos principais
defensores deste movimento que prega que o esquecimento é algo necessário para a sobrevivência
humana. Ele diz que “lembrar é possível, esquecer é preciso”. Joel Candau (2011), tendo em vista
o descarte diário de milhares de informações inúteis, afirma que o esquecimento parece ser a
condição necessária para o funcionamento psicológico satisfatório do nosso cérebro. Conforme
afirma Ivan Izquierdo (2011, p. 103), “não há dúvida que algum grau de esquecimento é necessário
para poder ter uma vida útil. É preciso esquecer para poder pensar”.
Nos detendo sobre este conceito, temos o estudo de Paul Connerton (2008) que fez uma
análise sobre os diferentes tipos de esquecimento, e classifica estes, conforme sua origem. Destes
diferentes tipos, conforme classificação do referido autor, vamos nos ater àquele que o mesmo
chama de apagamentorepressivo, que é empregado para negar um fato de uma ruptura histórica,
bem como para provocar esta ruptura histórica. Segundo este autor, este tipo de esquecimento
aparece na sua forma mais brutal, e de forma mais frequente, na história dos regimes totalitários.
Conforme Connerton (2008), o apagamento repressivo nem sempre precisa assumir formas
malignas e não necessariamente conta com uma violência aparente, podendo ou não se utilizar de
força física para se impor. É um esquecimento de cunho político, que visa a eliminação
de determinada lembrança/fato, de forma coercitiva, o que causa uma espécie de rombo na
história.
O autor exemplifica este tipo de esquecimento, quando relata uma questão recorrente
na Idade Antiga. Por exemplo, em caso de alguma revolução ou quando um rei/imperador era
deposto, todos os resquícios de seu governo eram apagados, de forma a apagar também da
memória coletiva os eventos.
Aqui no Brasil, o exemplo mais claro deste tipo de esquecimento, é o que ocorreu com
os alemães e seus descendentes, quando os mesmos foram proibidos pelo governo de Getúlio
Vargas a se expressarem na sua língua materna ou de externarem suas manifestações culturais.
A política do apagamento repressivo de identidades culturais de imigrantes de origem
teuta, fez com que passados muitos anos, os indivíduos que residem naquele município
optem em não externar de forma tranquila, voluntária e natural eventos e situações
vivenciados por eles ou por familiares. Percebemos que ocorreu neste grupo, uma obliteração
voluntária de todos os episódios que lhes causavam certo desconforto, certo incômodo,
como fica evidente nas entrevistas que efetuamos e cuja análise é apresentada na sequência.

Passados mais de 70 anos, a campanha de nacionalização até hoje é cercada de


tabus e continua sendo pouco comentada pela população local, mesmo que as lembranças
ainda estejam presentes na memória do grupo todo.
Partilhamos do mesmo entendimento de Halbwachs (2006). Ele afirma que para
evocar o passado em geral, a pessoa precisa recorrer à lembrança de outros, mesmo que esta
não se confunda. De acordo com o autor, a memória tem sempre um caráter social, pois ela é
um fenômeno social. Assim percebemos que se alguns dos depoentes não tenham
vivenciado aquele período, eles o tem bastante presente nas suas recordações. Aquele foi
um período bastante doloroso para parte da população teuto-brasileira e suas marcas
podem facilmente ser identificadas ainda hoje.
Durante a realização de nossa investigação, quando realizamos a coleta de uma série
de depoimentos orais com descendentes de imigrantes de origem germânica, 2 e
fazíamos
2 Vale destacar que as informações prestadas em todos os depoimentos, aqui citados, foram devidamente
autorizadas pelos depoentes, através da assinatura de um termo de cessão.
fazíamos questionamentos relacionados àquele período, as respostas que recebíamos eram
de certo modo evasivas, e os depoentes procuravam se esquivar da responsabilidade de
comentar um assunto, ainda tido como bastante delicado, mas, ao mesmo tempo, foi
possível verificar um grau de pertinência bastante grande de lembranças daquele período.
A utilização, nos depoimentos, de generalizações quando se referiam ao período, foi uma
constante. Em nenhum momento, ao longo das quinze entrevistas que realizamos, há referências à
participação de algum familiar em qualquer evento ou movimento que pudesse identificar o mesmo
como sendo “colaborador” da expansão do nacional-socialismo no sul do Brasil, como insistiam
em afirmar os relatórios produzidos pelas autoridades daquele período.
São sim comentadas, por todos os entrevistados, as perseguições sofridas naquela época,
mas estes comentários se limitam a destacar que o uso do idioma alemão fora proibido, tanto na
igreja quanto nas escolas, o que teria gerado uma série de problemas. É comum aparecerem nos
depoimentos, referências a indivíduos que teriam sido coagidos a destruir materiais impressos na
língua alemã, mesmo que estes não tivessem relação alguma com questões políticas. E, neste ponto,
é interessante notar, que os entrevistados negam que tenham feito qualquer tipo de destruição, de
qualquer tipo de material. Contudo, com o andamento da entrevista, com o desenrolar da coleta dos
depoimentos, quando questionados da existência de algum material impresso, algo como livro ou
jornal que pudesse nos auxiliar na nossa investigação, tínhamos quase que automaticamente a
afirmação, por parte dos entrevistados, de que nada existia, que tudo tinha sido destruído.
Percebemos, desta forma, que um mesmo episódio é narrado de formas distintas por um
mesmo indivíduo. Quando questionados de forma direta, se teriam sofrido algum tipo de
perseguição negam veemente e afirmam que a única consequência teria sido a impossibilidade de
falar seu idioma materno em público, mas que vizinhos ou conhecidos teriam sido presos e que
teriam tido suas casas invadidas. Por outro lado, quando questionados sobre a existência de algum
livro, carta ou jornal afirmam que estes materiais foram destruídos, durante o período do Estado
Novo, por medo de algum tipo de repressão.
Foi possível constatar que parentes diretos de outros indivíduos que foram entrevistados
estavam em uma listagem de indivíduos investigados pela Delegacia como supostos colaboradores
dos nazistas no Brasil. Mas, nenhuma referência a este assunto foi feita nos depoimentos.
Analisando os depoimentos, constatamos que são evitados certos assuntos. Determinados
aspectos ainda são muito dolorosos para muitos entrevistados, bem como atuais posicionamentos
do poder público local de estímulo à utilização do dialeto parecem-lhes um paradoxo, pois
conforme afirma Teresa Brot “primeiro proibiram a gente de falar alemão, agora querem que a gente
fale. Parecem todos loucos, pois um dia querem uma coisa, no outro querem outra”.
Ao analisar os dados levantados por esta investigação, percebemos que foram variadas as
formas de controle exercidas pelo governo nacional, através da publicação de decretos e leis que
tornassem efetivo o programa de nacionalização do Estado brasileiro. Após a publicação das leis e
dos decretos, ficava a cargo da Polícia a fiscalização de seu cumprimento e a condenação de
possíveis infratores.
Nossos entrevistados destacam que um grande número de prisões era efetuado de forma
arbitrária; o que foi referendado quando analisamos os Livros de Registro de Prisões e Detenções
da Delegacia de Polícia de São Lourenço. Ele indicou que, não necessariamente, eram efetuadas
investigações para proceder a prisão de algum indivíduo, e sim que sob qualquer desconfiança era
efetuado o encarceramento, e a justificativa destes era geralmente a mesma: “averiguações”. Pouco
antes da derrota da Alemanha, no conflito os processos foram todos arquivados e os envolvidos
postos em liberdade. Muitas destas libertações ocorreram pouco tempo depois das prisões,
basicamente pela ausência de provas concretas.
A perseguição pela qual passaram vários indivíduos no período em que ocorria em território
europeu a Segunda Guerra Mundial, não ocorreu somente mediante prisões. Ela ocorreu de diversas
formas, tais como: a proibição de reuniões e de eventos sociais e culturais, e a expressão no idioma
nativo, entre outras.
Magali Jeske lembra que um dos aspectos que mais lhe chamava a atenção naqueles anos
era a mudança na nomenclatura da sociedade de canto da qual o seu pai, Artur Jeske era um dos
presidentes. Acostumada com o nome em alemão, de um dia para o outro fora proibida de se referir
à mesma pelo antigo nome. O abrasileiramento do nome de instituições, sejam elas comerciais ou
filantrópicas, foi bastante comum naquele período. Era mais uma forma de o governo impor a sua
política nacionalista.
A apreensão de materiais foi outra das ações mais comuns e mais relatadas atualmente,
quando este período é relembrado pelos depoentes. Os materiais apreendidos eram de toda ordem:
documentos, impressos, jornais, revistas, livros, fotografias, rádios...
Ainda sobre o processo de nacionalização, ocorrido em São Lourenço do Sul, foi possível
verificar em algumas correspondências expedidas pela Intendência Municipal, que o processo de
combate a qualquer elemento que pudesse representar algum tipo de ameaça à soberania nacional
era bastante intenso.
Para termos uma dimensão, o relatório escrito pelo Inspetor Escolar, em 18 de outubro de
1938, endereçado ao Prefeito Municipal Alfredo Born, informa que, naquele ano, a colônia de São
Lourenço contava com uma população “superior a 20 mil habitantes, desse total, 75% não
conhecem o vernáculo e 90% desconhecem completamente as cousas de nossa pátria”. Além disso,
a fala do Inspetor mostra a forma preconceituosa com que estes colonos eram tidos uma vez que
ele afirma que pelo fato de serem a grande maioria de origem pomerana “são os mais atrasados e
mais difíceis de assimilação que entraram em nosso Estado”. Completa afirmando o que é uma
“população ignorante” e que o “colono perdeu a noção de higiene, de educação e, enfim, de
civilização, tão próprias dos povos da Europa”.
Chamados de “5ª Coluna”, os imigrantes e seus descendentes eram constantemente
estigmatizados pela sua origem étnica, pelo sotaque carregado, pelo jeito de andar e de se vestir,
típico de pessoas moradores da zona rural.
Contudo, as identidades, conforme relata Stuart Hall (2014), são dinâmicas e mutáveis. Os
indivíduos ao longo de sua existência passam por uma série de mudanças, mudanças estas que
fazem com que seus referenciais socioculturais se tornem heterogêneos e estes adotem outras
formas de identificação. Neste contexto, visando escapar de possíveis retaliações, os imigrantes de
origem teuta adotaram uma série de mecanismos para driblar a repressão, dentre os quais se
destacam: um isolamento ainda maior do que aquele no qual já viviam, a destruição voluntária de
documentos em alemão e as demonstrações públicas de amor à pátria.
Temos uma série de exemplos extremos de demonstração de nacionalismo, de devoção à
pátria ou de práticas adotadas com medo de possíveis represálias. A imprensa local do período
publicava matérias e mesmo depoimentos patrocinados, principalmente por comerciantes de
origem germânica que residiam na zona rural do município, que notabilizava a existência de um
espírito de brasilidade entre aquela comunidade.
Além disso, os depoimentos dão conta que de que demonstrações de nacionalismo
exacerbado eram uma constante. Em praticamente todas as residências existiriam retratos do então
presidente Getúlio Vargas e nenhuma fotografia escolar era produzida, sem que os alunos
empunhassem uma bandeira brasileira, o que fica evidenciado quando observamos registros
fotograficos daquele período.
Elda Ebel afirma que, na década de 1940, quando a mesma frequentou a escola, a entoação
do hino nacional era diária. O mês de agosto era marcado basicamente por ensaios preparativos
para a primeira semana de setembro, momento em que ocorriam as chamadas “Paradas cívicas”,
que eram desfiles, marchas que ocorriam e que em alguns casos envolviam um grande público. Os
alunos sempre vestidos de branco, empunhando bandeiras marchavam, cantavam os hinos
brasileiro, da bandeira e da independência. Eram produzidos, ainda, trabalhos alusivos à data; tudo
para demonstrar que o espírito de brasilidade estava presente entre os alunos. Destes eventos,
sempre eram feitos registros fotográficos, que eram anexados aos relatórios enviados pelos
professores à Inspetoria de Ensino do Município, como uma prova da realização de suas atividades.
Bruno Gehrke e Nair Hübner, estudantes nos primeiros anos da década de 1940, lembram
que tiveram professores demitidos e que assim teriam ficado um largo período de tempo sem poder
frequentar a escola. Conforme pode ser averiguado, esta era uma das políticas vigentes no período.
Assim, a demissão de professores estrangeiros e sua substituição por nacionais, a obrigatoriedade
da inserção de determinados conteúdos programáticos no currículo da instituição, bem como a
obrigatoriedade de cada escola possuir uma bandeira nacional e um retrato do então presidente
brasileiro, Getúlio Vargas, eram uma constante em todas as escolas do município. Para termos ideia,
no ano de 1937 foram demitidos 22 professores por serem de origem teuta e um número igual de
escolas foi fechada no interior do município, basicamente pelo fato de não existirem profissionais
habilitados para atuarem nestes educandários.
Ficou bastante claro, tanto após a análise das entrevistas, quanto de diferentes documentos,
que existia uma preocupação muito grande com a nacionalização dos elementos jovens, ou seja,
das crianças em idade escolar. Assim, percebemos que a perseguição a professores e um constante
vigiar de suas atividades fez parte das medidas adotadas pela Polícia e prefeitura de São Lourenço,
que trabalharam em conjunto durante este processo.
Assim, uma das grandes contribuições que pretendemos fazer com o presente ensaio, se
refere ao fato de que todos tipos de memórias traumáticas podem não ser verbalizadas pelos
entrevistados. Isto não significa de forma alguma que os depoimentos sejam desqualificados ou
que tal evento possa não ter ocorrido. Significa, pelo contrário, que o sofrimento que tal evento
impingiu a tal indivíduo ou aos seus familiares ainda está muito presente e uma exteriorização do
mesmo ainda não é possível, por uma série de fatores, dentre os quais, destacamos, principalmente,
o medo.
Percebemos ao longo da nossa investigação que o apagamento repressivo dos traços
culturais de descendentes de imigrantes germânicos empreendido pela política nacionalista de
Vargas, fez com que a população teuto-brasileira ficasse de certo modo ainda mais isolada do que
era. O não domínio do idioma vernáculo, bem como a impossibilidade de poder se expressar em
público no idioma materno, fez com que as pessoas evitassem em sair de casa, e os contatos com
o “mundo exterior” fossem cada vez menos frequentes, o que, por sua vez, fez com que o objetivo
visado pela campanha de nacionalização tivesse resultados totalmente opostos aos almejados, uma
vez que, a comunidade mais isolada, preservou de forma mais evidente características culturais.
Tanto é que passados mais de 150 anos da chegada dos primeiros imigrantes à região, ainda hoje
são raras as casas na zona rural, onde a comunicação doméstica não é feita no dialeto pomerano.
Deste modo, percebemos que os efeitos traumáticos do apagamento repressivo, mesmo que
sejam, de certo modo, negados pelos entrevistados, ficam bastante evidentes ao analisarmos o
conjunto das entrevistas e o conteúdo destas. Assuntos que são lembrados como pouco agradáveis
e difíceis de serem verbalizados, aparecem nas entrelinhas dos depoimentos e permitem que
façamos uma leitura de quão desagradável foi aquele período, tanto para aqueles que o vivenciaram,
quanto para aqueles nasceram depois deste período e que ficaram sabendo de suas determinações e
implicações por meio de seus familiares diretos.
Os depoentes preferem não criticar de forma aberta a decisão do governo de integrar os
imigrantes de forma coercitiva à sociedade brasileira. Mas, ao mesmo tempo criticam, de forma
tímida, as limitações, restrições e humilhações a que eles ou seus familiares foram submetidos.
Entendemos este silêncio, como uma espécie de medo. Medo que decorre, basicamente, conforme
nos foi externado durante um depoimento, de que possa haver algum tipo de represália; medo de
que aqueles anos difíceis possam retornar. Alguns dos depoentes, conforme destacado
anteriormente, não conseguem entender as motivações da mudança de atitude do poder público em
relação às suas manifestações culturais, pois se sentem confusos: ora são proibidas; ora são
combatidas e reprimidas; ora são estimuladas, ressignificadas ou valoradas.
Os anos passaram, mas as lembranças desagradáveis continuam mais vivas do que nunca.
As cicatrizes da violência física, as humilhações das prisões injustificadas, a destruição de
documentos, a eliminação de referências culturais, o estigma e o preconceito sofrido naqueles anos
ainda acompanha grande parte da população, que, até hoje, sofre, de forma calada, os duros anos
de perseguição que enfrentaram durante o Estado Novo, pelo simples fato de serem descendentes
de imigrantes germânicos.

ANJOS, Marcos Hallal dos. Estrangeiros e modernização: a cidade de Pelotas no último quartel
do século XIX. Pelotas: Ed. da UFPel, 2006.
ARRIADA, Eduardo. Pelotas: gênese e desenvolvimento urbano (1780-1835). Pelotas: Armazém,
1994.

CANDAU, Joël. Memória e identidade. São Paulo: Contexto, 2011.

COARACY, Vivaldo. A Colônia de São Lourenço do Sul e seu fundador Jacob Rheingantz. São
Paulo: Saraiva, 1958.

CONNERTON, Paul.Seven types of forgetting. Memory Studies n. 1, 2008, p. 59-71. Disponível


em: <https://goo.gl/0k584Z>, acessado em 30/04/2016.

CONSTANTINO, Núncia Santoro de. Nas entrelinhas da narrativa: vozes de mulheres imigrantes.
In: Estudos Ibero Americanos. Revista do Programa de Pós-Graduação em História PUC-RS. Porto
Alegre, ano 31, n. 01, p. 63-73, junho 2006.

Entrevistado: Bruno Gehrke. Entrevistador Cristiano Gehrke. São Lourenço do Sul. 26/03/2014.

Entrevitado: Elda Ebel. Entrevistador Cristiano Gehrke. São Lourenço do Sul. 22/12/2014.

Entrevistado: Magali Jeske. Entrevistador Cristiano Gehrke. São Lourenço do Sul. 12/05/2014.

Entrevistado: Nair Hübner. Entrevistador Cristiano Gehrke. São Lourenço do Sul. 06/02/2015.

Entrevistado: Teresa Brot. Entrevistador Cristiano Gehrke. São Lourenço do Sul. 20/04/2015.

FACHEL, José Plinio Guimarães. As violências contra alemães e seus descendentes durante a
Segunda Guerra Mundial em Pelotas e São Lourenço do Sul. Pelotas: Ed. da UFPEL, 2002.

FRASER, Ronald. História Oral, História Social. IN: Historia Social.Valencia: Fundación Instituto
de História Social, n. 17, outono 1993, p. 131-139. Disponível em:
http://www.jstor.org/stable/4034035, acessado em 20/08/2014.

GERTZ, René. O neonazismo no Rio Grande do Sul. Porto Alegre: Ed. da PUCRS, 2012.

HALBWACHS, Maurice. Memória coletiva. São Paulo: Centauro, 2006.

HALL, Stuart. Identidades culturais na pós-modernidade. Rio de Janeiro: DP&A, 2014.

HUYSSEN, Andreas. En busca del tiempo futuro (2000). Disponível


em:http://www.cholonautas.edu.pe/modulo/upload/Huyssen.pdf, acessado em 22/11/2010.

IZQUIERDO, Iván. A arte de esquecer. Rio de Janeiro: Vieira & Lent, 2004.

_____ . Memória. Porto Alegre: Artmed, 2002.

MAESTRI, Mário. Breve história do Rio Grande do Sul. Passo Fundo: EDUPF, 2010.

MAGALHÃES, Mario Osório. Opulência e cultura na Província de São Pedro do Rio Grande
do Sul: um estudo sobre a história de Pelotas (1860-1890). Pelotas: Ed. da UFPel; Livraria
Mundial, 1993.

MANFROI, Olivio. A colonização italiana no Rio Grande do Sul: implicações econômicas,


políticas e culturais. Porto Alegre: EST, 2001.

PORTELLI, Alessandro. História Oral e poder. In: Mnemosine. v. 6, n. 2, p. 02-13, 2010.

POSSAMAI, Paulo. Dall’Italian siamo partitti: a questão da identidade entre os imigrantes


italianos e seus descendentes no Rio Grande do Sul (1875-1945). Passo Fundo: Ed. da UPF, 2005.

ROCHE, Jean. A colonização alemã e o Rio Grande do Sul. Porto Alegre: Globo, 1969.

SCHWARZSTEIN, Dora. Fuentes orales em los archivos: desafios y problemas. In: XXXV
Conference Internationale del Table Ronde des Archivs. Archies et societè:
que conserver?Reykjavik, Islandia, 2001, p. 167-178.

SILVA, Kalina Vanderlei; SILVA, Maciel Henrique. Dicionário de conceitos históricos. São Paulo:
Contexto: 2006.

THOMPSON, Paul. A voz do passado: História Oral. São Paulo: Paz e Terra, 1998.

ULLRICH, Carl Otto. As colônias alemãs no sul do Rio Grande do Sul. In: História em Revista.
Publicação do Núcleo de Documentação Histórica da UFPEL, n. 5, dezembro de 1999.

WEBER, Roswithia. A criação de um museu de imigração alemã na pós-nacionalização. Revista


Memória em Rede, Pelotas, v. 3, n. 9, jul./dez. 2013.
Claudia Moraes de Souza

Na historiografia corrente brasileira é consenso afirmar que os movimentos pelos


direitos humanos-MDH foram atores centrais, nos processos de luta pela redemocratização
ocorridos na Região Andina e Cone Sul, durante o período da crise política das ditaduras
latino-americanas.1
No Brasil, as demandas das vítimas de violações de direitos humanos para obter
proteção, verdade e justiça constituíram um dos eixos em torno do qual giraram as pautas de
contestação dos governos militares e das práticas de tortura e assassínio instituídas no Estado
autoritário. Em finais dos anos de 1970, a ativação destas pautas resultou na articulação de
um verdadeiro movimento social de defesa dos direitos humanos envolvido na ação direta da
denúncia, responsabilização e desmantelamento das instituições e da estrutura de violação
dos direitos que vigia nos países da América Latina.
No bojo deste movimento social consolidaram-se as entidades centrais de
direitos humanos vigentes na contemporaneidade em território brasileiro: a Anistia
Internacional, ativa nas causas brasileiras desde 1972; a Pastoral dos Direitos Humanos que se
instalou no ano de 1976, a partir do enrijecimento da repressão ditatorial, iniciada no Chile,
Peru e Brasil e foi convertida em fato de dimensões continentais latino-americana no ano de
1978;2 o Movimento Nacional de Direitos Humanos/MNDH que se estruturoua partir de
1982, pela ação do Conselho Episcopal Latino Americano/CELAM; a Conferência
Nacional dos Bispos do Brasil/CNBB que se responsabilizou pela organização do
Encontros Nacionais de Direitos Humanos, entre 1982 e 1996, tendo ampla contribuição no
processo de organização, caracterização e diversificação de agentes políticos para a luta pelos
Direitos
* Historiadora, Prof.ª Dr.ª Adjunta da Universidade Federal de São Paulo. .
1 Os movimentos sociais articulados à luta pelos direitos humanos, cumpriram um papel primordial na
redemocratização política, nas resistências ao estado autoritário combatendo às violações da privacidade e da
cidadania e posteriormente, na luta pela anistia de exilados e perseguidos políticos, em defesa da livre
manifestação de pensamento, pelas eleições diretas e pela constituinte soberana, produzindo lutas contra a
fome, pela saúde, educação, direitos das mulheres, etc. A produção histórico e sociológica brasileira
vem retratando este protagonismo e para ilustrá-la cito as obras: VIOLA, S.E.A. Direitos Humanos e a
democracia no Brasil. Ed. da UNISINOS, 2008; VIEIRA, J.C. Direitos Humanos e Democracia no Brasil. São
Paulo: Loyola, 2005.
2 A luta pelos direitos humanos se converte em fato na América latina como um todo, após o ano de 1978. As
ações materializam-se na Pastoral dos Direitos Humanos nascida do debate crescente sobre a consciência de
missão histórica pelo humanismo empreendida na Instituição Católica desde o Vaticano II e o Congresso de
Medellín. No interior da Pastoral dos Direitos Humanos elabora-se o pensamento crítico às doutrinas de
Segurança Nacional Latino-Americanas que conclama a Igreja e seus fiéis a atuarem de forma concreta contra os
Estados e suas instituições que violam/violaram o direito à vida e à liberdade humana. GALILEA, S. A Igreja da
América Latina. In: MULLER, A.; GREINACHER, N. Igreja e Direitos humanos. São Paulo: Vozes, s/d., p.
107-133.
Direitos Humanos até os dias atuais. Todos estes movimentos – os MDH, uma vez
instituídos e ativos, estenderam sua esfera de influência original da luta específica
contra as prisões arbitrárias, a tortura, o assassinato, os desaparecimentos, a privação
dos direitos políticosà participação de forma ativa em questões diversas dos direitos
fundamentais.
Este artigo trata da experiência política de uma organização de Direitos Humanos
que emergiu no contexto da ditadura civil-militar brasileira, lutou pelos direitos civis e
políticos de cidadãos vítimas do regime autoritário passando a ocupar espaços de mediação
institucional na relação Sociedade-Estado no campo dos direitos humanos e das políticas
públicas por direitos fundamentais. Sediado na cidade de Osasco, o Centro de Defesa
de Direitos Humanos de Osasco/CDDHO, foi protagonista, no quadrante territorial da
região oeste da grande São Paulo, tendo influências em todo o território estadual, como
organização voltada para a proteção dos direitos humanos e denúncia de padrões de
violações sistemáticas em direitos humanos e, para além disso, tornou-se um movimento
amplo e diversificado politicamente em sua composição, ação e seus fins.
O protagonismo do CDDHO em Osasco acompanhou a transformação das
organizações focadas nos direitos humanos no Brasil, que vivenciaram o desafio de
ampliar suas ações de denúncia da violação sistemática das liberdades individuais e da
integridade física de sujeitos políticos, em direção à diversificação e ampliação de atuação
em um movimento que interliga a necessidade política da luta pela redemocratização
brasileira à construção da defesa dos direitos sociais e econômicos.
Nosso intuito na pesquisa foi o de analisar a história do CDDHO em suas interações
com o processo da redemocratização brasileira, uma vez que este MDH se configurou como
um espaço central da articulação de agentes responsáveis pela ativação da luta pela
redemocratização das instituições políticas nacionais na crise e no pós-ditatorial, expandindo
o universo da luta do MDH em diferentes campos e direções: da defesa do direito à vida e à
integridade física em direção à construção de um regime político democrático responsável
pela garantia da participação política do cidadão na edificação das políticas públicas e
garantia dos direitos econômicos e sociais.

A origem do Centro de Defesa dos Direitos Humanos de Osasco remete-


nos, primeiramente, à iniciativa de um grupo de padres e leigos católicos atuantes em
movimentos populares de Osasco e na região metropolitana de São Paulo, reunidos em torno
da Frente Nacional do Trabalho/FNT, Pastorais Carcerária e dos Direitos Humanos e as

3 O Centro de Documentação e Informação Científica-CEDIC/PUC/SP organizou e mantém a guarda do


fundo CDDHO que contém adocumentação institucional do Centro, composta majoritariamente de
documentação escrita: boletins informativos, documentos paroquiais, fichas de descrição dos casos, documentos
jurídicos, atas de reuniões, relatórios anuais do organismo, correspondências, dentre outros. A documentação foi
base da pesquisa ora apresentada.
Comunidades Eclesiais de Base. Segundo a documentação do Fundo CDDHO,3 o projeto de
criação do Centro foi idealizado por atuantes da Frente Nacional do Trabalho, durante o “1º.
Encontro Nacional de Justiça e Não Violência” de 1975, realizado em São Paulo, sob a
coordenação geral do padre Domingos Barbé. A iniciativa deu origem, em princípios do
ano de 1977, ao primeiro organismo de defesa dos Direitos Humanos no Estado de São
Paulo e segundo centro nacional de Direitos Humanos no Brasil, antecedido apenas pelo
Centro de Defesa de Direitos Humanos de João Pessoa, na Paraíba.
Uma diversidade de fatores pode ser apontada como motivo originário da criação
do CDDHO, nas entrevistas realizadas com seus militantes e diretores.4 Os protagonistas da
história do Centro apontaram para alguns fatores fundamentais, todos relacionados entre
si. Primeiro, elencamos a resistência política das esquerdas, classes populares e do
movimento sindical à ditadura militar, resistência esta materializada na região pela
articulação do movimento popular, operário e a ação da Igreja Católica em seu viés
da Teologia da Libertação. Como fatos influentes contextuais podemos enumerar as
mortes de Wladimir Herzog e Manoel Filho. E, de forma direta, destacamos a realidade
cotidiana da repressão policial e ação repressiva do Estado militar na cidade. Ação esta
que culminou com o fato emblemático da fundação do CDDHO que envolve a prisão do
líder camponês José Manuel da Conceição, no ano de 1975, abrigado em casa paroquial, no
bairro de Munhoz em Osasco.
A articulação da história local com a história global se faz mais do que necessária,
caso queiramos compreender elementos centrais da institucionalização do CDDHO. Estes
elementos relacionam a história da cidade e uma conjuntura nacional e mundial, na medida
em que, a cidade de Osasco cumpriu um papel relevante no marco temporal que envolve
o endurecimento do processo repressivo da ditadura civil-militar brasileira, no ano de 1968, e
o início do processo de transição democrática, iniciado em 1979.5

4 A História Oral de vida foi aplicada ao projeto de pesquisa que origina este artigo e com base
em sua metodologia entrevistamos membros atuantes do CDDHO: diretores, funcionários, militantes católicos
e usuários do CDDHO, organizando um banco de história de vida em audiovisual sob a guarda da Universidade
Federal de São Paulo/UNIFESP, campus Osasco. O banco de história de vida é composto pela história oral de
vida: dos 06 diretores do CDDHO, ainda vivos e atuantes politicamente; 01 entrevistas da principal plantonista
permanente e militante católica do CDDHO, entre 1977 e 1997; 01 entrevistas de militante sindical e ativista
político de Osasco, membro e usuário do CDDHO, entre 1977 e 1997. Trata-se de um projeto da memória
institucional que visa assegurar à cidade de Osasco a produção documental de registros orais acerca da história
dos movimentos sociais e da resistência à ditadura na região.
5 Consideramos o marco 1979-1988 o período da transição democrática com base nos argumentos de que, 1979
representa o ano final do estado de exceção com a revogação dos atos institucionais, refazendo-se a ordem
jurídica, e, o ano de 1988 representa o estabelecimento de um Estado Constitucional e de Direito com a
aprovação da Carta de 1988. Daniel Aarão Reis defende esta tese historiográfica nas obras: AARÃO REIS,
Daniel. Ditadura Militar, esquerdas e sociedade. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2000; AARÃO REIS, Daniel.
Modernização, ditadura e democracia: 1964-2010, Rio de Janeiro: Objetiva, v. 5, p. 75-125, 2014.
Foi na cidade de Osasco que ocorreu a greve operária de 1968. Sobre a greve e o
contexto urbano de Osasco podemos dizer que na cidade formou-se um movimento
democrático radical protagonizado por operários, estudantes e populares que, com a estrutura
dos setores progressistas da Igreja Católica, a expertise das organizações da esquerda
comunista, sindical e as formas políticas da organização popular mobilizaram um
contingente de pessoas dispostos à ação de enfrentamento do regime político instaurado
pelo golpe de 1964. Para Francisco Weffort,6 a greve de Osasco representou um elemento de
contraste no período pós golpe, moldando-se como um momento de retomada da vitalidade
do movimento sindical articulado ao ativismo estudantil e popular. O movimento
urbano hegemonizado por estudantes e operários, entrelaçados aos ideais do Maio Francês,
sustentou uma greve e um conjunto de expectativas que propunham alçar, para além da
conquista de direitos do trabalho, direitos sociais e políticos. Na historiografia referencial
sobre a greve de Osasco,7 o movimento compõe o conjunto de fatores que impulsionam
o movimento de oposição ao Regime Militar representando uma ameaça ao bloco de
poder sedimentado na instancia nacional pelo Golpe de Estado 1964, ocupando destaque na
cena de 1968, que tem seu desfecho com a publicação do Ato Institucional n. 5 - AI-5.
A repressão ao movimento foi imediata, o que tornou a cidade de Osasco uma cidade
sitiada pelas forças militares. A repressão e o contexto pós AI-5 alterou a vida urbana e sua
rotina. Nas salas de aulas das escolas secundárias, diretamente nas fábricas em suas linhas de
montagem, nas instituições políticas, infiltrados do regime repressivo agiam cotidianamente.
No ir e vir da cidade, trabalhadores das fábricas, funcionários públicos e moradores de
bairros periféricos tornaram-se vítimas constantes dos cercos e batidas policiais, prisões
arbitrárias, delações e acusações criminais cometidas pelos agentes da repressão política e da
polícia comum.

Como território marcado pela violação constante aos direitos civis e humanos, e pela violência
institucional, se instituiu o CDDHO em 1977. Suas funções e objetivos centrais eram o de divulgar,

6 WEFFORT, F. Participação e conflito industrial: Contagem e Osasco 1968. Publicado em 1969. Disponível
em:<http://cebrap.org.br/bv/arquivos/introducao_weffort.%20a.pdf>. Acesso 22 de janeiro de
2017. .
7 Desde os anos de 1970, a greve vem sendo estudada por historiadores e sociólogos, o que já compôs um
corpo historiográfico sobre o movimento operário de 1968 em Osasco. Entre os trabalhos de autores
referenciais citamos WEFFORT, F. C. Participação e Conflito Industrial: Osasco e Contagem- 1968. São
Paulo: CEBRAP, 1972; ALVES, Maria Helena Moreira. Estado e Oposição no Brasil (1964-1984). Tradução de
Clóvis Marques.5ª. ed., Petrópolis: Vozes, 1984; RIZEK, Cibele Saliba. Osasco: 1968, a experiência de um
movimento. Dissertação de Mestrado, Curso de Ciências Sociais da Pontifícia Universidade Católica de São
Paulo, 1988; ROVAI, Marta Gouveia de Oliveira. Osasco 1968: a greve no masculino e no feminino. Salvador:
Pontocom, 2013. E-book, link: <http://www.editorapontocom.com.br/livro/19/19-marta-rovai-osasco-1968.pdf.>.
Além do texto do militante Ibrahim: IBRAHIM, J. História do movimento de Osasco. In: FREDERICO,
C. (Org.). A esquerda e o movimento operário: 1964-1984. Belo Horizonte: Novos Rumos, v. 1, 1987.
promover e garantir a defesa dos DH, difundindo a informação sobre os Direitos Humanos, e
oferecendo proteção e assistência jurídica às vítimas de repressão institucional e da violência em
geral.
Segundo a interpretação de militantes e dirigentes do CDDHO, ratificada pelos documentos
institucionais, a ação de fundar o CDDHO efetivou uma parceria projetada, desde 1975, entre
múltiplos agentes do movimento social católico. A Frente Nacional do Trabalho-FNT, sob a
liderança de Mario Carvalho de Jesus, foi a protagonista em conceber a ideia de edificação de um
centro atuante em Direitos Humanos para Osasco. Entidades católicas regionais, de suma
importância, assumiram a missão de sustentar as ações estruturantes do novo centro entre elas: a
recém-criada Pastoral dos Direitos Humanos, comandada pelo Padre Agostinho e a Pastoral
Operária, sob os comandos do Padre Domingos Barbè.
Em 1977, a ação das pastorais dos Direitos Humanos, Carcerária, da Mulher e da Criança
transformava-se em realidade continental, sendo o combate à repressão política e à ação contra as
marcantes desigualdades econômicas, fatos primordiais das suas intervenções. O Concilio Vaticano
II, a encíclica Mater et Magistra (1961) e a Pacem in Terris (1963), precedidos pela criação do
Pontifício Conselho de Justiça e Paz da Cúria de Roma haviam feito crescer no interior do
catolicismo a percepção de uma Igreja comprometida com direitos fundamentais, com o combate à
opressão política e o abuso do poder econômico. Firmava-se na Doutrina Social da Igreja o valor
fundamental da dignidade humana como causa e fim das instituições, sendo o Estado uma
instituição responsável por zelar por estes valores e nunca um perpetrador da violência.
Desta forma, se articulou o Movimento dos Direitos Humanos na América Latina ao viés
católico. Em posicionamento oficial, a Igreja e sua militância leiga passou a discursar e agir contra
os regimes de força bruta na Argentina, Chile, Brasil, Bolívia, Paraguai, Equador, El Salvador e
Peru. Nestes países, desde 1976, a Igreja Católica enfrentava diretamente os governos militares
assumindo o lado da luta popular. No Paraguai, assumiu a luta camponesa; na Bolívia apoiou a
greve dos mineiros; no Peru enfrentou o modelo de desenvolvimento econômico exportador e
latifundista; posicionou-se fortemente pela reforma agrária no Equador e El salvador. Seguindo uma
cronologia ativista, em 1977, posicionou-se firmemente no Chile, ao lado dos camponeses e, em
1978, pela causa operária e contra o aparelho repressor de Pinochet.
No Brasil, a trajetória católica foi longa e bastante conflitiva em relação ao poderio
militar e repressão pós-golpe. O envolvimento da Igreja católica com o movimento camponês
no nordeste brasileiro, desde os anos 1950, já havia produzido setores críticos ao Golpe de
1964 desde seu período inicial.8 No entanto, foi em 1968, que parte significativa do clero
brasileiro ocupou papel na cena de oposição ao regime militar nos episódios que
envolveram a forte repressão ao movimento estudantil e, inclusive, a repressão à greve e à
ocupação militar da cidade de Osasco. Dentre algumas figuras referenciais, Dom Paulo
Evaristo Arns, arcebispo metropolitano de São Paulo, entre 1970 e 1998, assumiu liderança na
8
SOUZA, C. M. Pelas ondas do rádio: cultura popular, camponeses e o rádio nos anos 1960. São Paulo:
Alameda, 2013.
defesa dos Direitos Humanos, tendo reconhecido papel na articulação do MDH contra a
tortura e pela defesa dos presos políticos, sendo citado recorrentemente pelas lideranças do
CDDHO como um apoiador referencial da formação do Centro em Osasco.
Na cidade de Osasco, até o tempo presente, uma experiência advinda da ação
católica marcou a memória social: a ação dos padres operários. Padre Barbè era francês e
membro da Missão Operária São Pedro e São Paulo-MOPP. Mudou-se para o Brasil em 1964
e passou a morar na Vila Yolanda, bairro de Osasco. Estimulado pela atuação político-
social em cidades e bairros de trabalhadores, os padres franceses da MOPP
trabalhavam, viviam e evangelizavam em comunidades operárias. Domingos Barbè e
Pierre Wauthier foram dois ícones ativistas da cidade que se empregaram; o primeiro, na
Cobrasma e, o segundo, na Brasixos Rockwell S/A, experimentando a vida e o cotidiano
do trabalho fabril, convivendo com as famílias e atuando nas paróquias periféricas. Whauthier
se associou ao Sindicato dos Metalúrgicos de Osasco e junto com os operários, em 18 de julho
de 1968, foi preso durante a greve e encaminhado ao DOPS/SP, sendo deportado pelo governo
militar em agosto. Barbé, escapando da prisão e deportação, tornou-se um mediador
referencial das comunidades operárias, articulando ações visíveis de proteção a direitos
humanos, do trabalho, direitos sociais e econômicos, sendo o CDDHO o lócus que concentrava
estas ações em 1977.

No contexto de sua origem, cabe-nos também entender a dinâmica e estrutura de


funcionamento do CDDHO. A primeira sede do CDDHO foi a casa paroquial onde vivia o Padre
Agostinho e, posteriormente, com a expansão de suas funções e atividades passou a funcionar em
sede alugada mais próxima ao centro de Osasco. Geralmente, a dinâmica de ação desenvolvia-se a
partir dos plantonistas do organismo – pessoas responsáveis por receber os casos de denúncia e as
solicitações de auxílio dos usuários. O plantonista era responsável pela triagem dos casos e passava
a trabalhar com os advogados contratados pelo CDDHO, assim como com outros profissionais:
sociólogos, assistentes sociais e psicólogos, formando uma equipe responsável pelo
encaminhamento de ações jurídicas de defesa individual ou de coletivos, nos campos dos direitos
civis e políticos, com vocação inicial para o atendimento de presos políticos, violência institucional
e abuso do poder policial. Paralelamente ao atendimento e encaminhamento jurídico, as equipes de
plantonistas desencadeavam ações nas comunidades e paróquias a partir dos temas que envolviam
os casos. Organizavam-se debates, reflexões e plenárias objetivando a compreensão, reflexão e ação
coletiva sobre a realidade social. Maria Aparecida Lopes, assistente social, a primeira funcionária
permanente do CDDHO, militante católica ativa da cidade de Osasco, colaboradora em nossa
pesquisa, narrou:
[...] o Centro começou a funcionar onde o padre Agostinho morava, na casa que ele tinha alugado
para desenvolver a atividade dele na pastoral carcerária, junto com a pastoral de direitos humanos.
Então, o primeiro CDDHO, o primeiro endereço que a gente teve foi na Av. Nelson Camargo –
acho que 342 ou 243. E para cuidar dessa casa e mantê-la aberta e receber os atendimentos era
necessário ter alguém para estar cuidando disso. Eu, então, era da pastoral de direitos humanos,
participava de toda essa discussão da formação do CDDHO, fazia serviço social e trabalhava na
COBRASMA, de 1972 a 1978. O pessoal me convidou quando eu estava no terceiro ano de
Serviço Social, me convidaram para trabalhar no Centro. A gente chamava de permanentes, o
pessoal que ficava no Centro; um plantonista permanente. Então, a gente dava plantões na
entidade para receber o pessoal, para acolher, para receber as denúncias de direitos humanos. O
Centro de Defesa recebia a denúncia de violação de direitos humanos e procurava, a partir das
denúncias, organizar o movimento popular. Então, a gente recebia a denúncia junto com o
movimento popular, ia lá no bairro, articulava uma reunião lá no bairro, falava de direitos
humanos. Ia o padre Agostinho, ia o padre Domingos Barbé, ia outra pessoa, ia a gente. Sempre
a partir de um caso individualizado, a gente envolvia a comunidade para discutir a questão. Ao
mesmo tempo, tinha um encaminhamento jurídico daquela demanda que estava chegando para a
gente. A gente constituiu vários núcleos de diretos humanos que a gente chamava os “plantonistas
de bairro” que, no bairro, ficavam atentos à violação de direitos humanos que
aconteciam e relatavam pra gente e íamos articular, lá. [...].9

Em pouco tempo, a estrutura permitiu a formação de uma verdadeira teia de relações locais
com equipes de plantonistas em diferentes paróquias de Osasco, do Jardim Munhoz e Vila Yolanda.
Depois espalhou-se para Jardim Veloso, Cipava, KM 18, Santo Antônio e Jardim Novo, atingindo
outros municípios, como Vila Analândia em Jandira, Jardim d´Abril e Jardim Arpoador em São
Paulo, Cotia e Itapevi.
A gestão do Centro era realizada por uma diretoria eleita, bienalmente, e, a partir da diretoria
organizavam-se as diretrizes do organismo, seus setores – o setor financeiro, de atendimento, de
divulgação – além do fluxo de trabalho dos plantonistas e secretários executivos responsáveis pelas
atividades rotineiras e atendimento na sede da entidade. Nas ações em paróquias, o CDDHO
contava com o trabalho voluntário organizado pela gestão, sendo o “plantonista da comunidade”
um agente local voluntário, que nas paróquias recebia casos e encaminhava ao Centro.
Como instituição jurídica, o CDDHO era financiado por recursos oriundos da
Coordenadoria Ecumênica de Serviços-CESE e por doações realizadas em grande parte pelos
associados da organização (usuários das paróquias). Desde o início de sua estruturação, o Centro
buscou angariar fundos e recursos dos setores eclesiásticos, tanto em nível nacional quanto
internacional. Por intermédio do Padre Domingos Barbé, o CDDHO contou com o apoio de
agências de cooperação internacional, tais como a Juventude Católica Austríaca e a Obra

9 Entrevista de Maria Aparecida, gravada em 05 de agosto de 2015 para o Projeto “Todo Direito é Humano”
Histórias do Movimento de Luta pelos Direitos Humanos em São Paulo, o CDDHO. O Projeto Universal
teve financiamento do CNPq, coordenado por Claudia Moraes de Souza. A entrevista está arquivada no Banco
de História de Vida, em audiovisual, sob a guarda da Universidade Federal de São Paulo/UNIFESP campus
Osasco.
Kolping. 10 Entre os anos de 1978 e 1988 contou com uma estrutura sólida de
plantonistas, advogados e outros profissionais, assim como com sede específica e de
visibilidade na cidade de Osasco, tudo em função dos financiamentos externos de obras
católicas.

A atuação do CDDHO superou todas as suas expectativas iniciais. Transitou do


estabelecimento de sua missão voltada à defesa jurídica e proteção humana, articulada ao contexto
da violência institucional, da repressão e tortura em Osasco, até o desempenho de funções junto aos
poderes públicos em políticas sociais e organização de novos movimentos sociais. Não foi possível
separar a demanda do direito civil e político das demandas sociais e econômicas. A demanda pela
ação do CDDHO cresceu em múltiplas direções e sua atuação atingiu campos diversos do direito
jurídico, bem como ações organizativas, educativas e mobilizatórias. Nas fichas de entrada
preenchidas pelos plantonistas do CDDHO, nos casos que compõem parte da documentação do
fundo analisado, pudemos encontrar ações nas áreas: familiar, moradia, defesa de menor, prisão
arbitrária, violência policial, desaparecimentos, agressão física e violência familiar, saúde,
reclamações diversas de golpes imobiliários e casos trabalhistas. Não apenas o contexto histórico
explica o fato, mas também a própria metodologia de ação do CDDHO. Articulado às pastorais, à
FNT, às Comunidades Eclesiais de Base e grupos de teatro da JOC e JEC, o centro era responsável
por formação e educação em direitos humanos, pela elaboração de projetos com as comunidades
carentes na área social e cultural; promovia encontros, seminários, debates, cursos, vivências, festas
e festivais de cultura; fomentava a imprensa alternativa, ou seja, todo um conjunto de atividades
mobilizadoras vinculadas à forma de agir das Comunidades Eclesiais de Base que passavam a
atribuir sentido político às manifestações culturais, educacionais e religiosas, fomentando ações
políticas na defesa de direitos fundamentais e humanos.
Identificamos, no período de 1978 a 1986, uma ação incisiva contra prisões arbitrárias,
encarceramento e violência institucional o que propiciou ao centro compor o rol de organismos da
luta pela Anistia em 1979. O CDDHO empreendeu campanha pela anistia, apoio a familiares de
presos e desaparecidos, discussão dos direitos dos presos políticos, mobilização das comunidades
e defesa de presos políticos. Após a luta pela Anistia, já nos anos de 1980, empreendeu larga
discussão e combate à ação do Esquadrão da Morte em Osasco, denunciando abertamente a ação
letal da Polícia, abuso das autoridades policiais em bairros pobres e periféricos. O CDDHO com
sua ligação direta à Pastoral Carcerária e à Pastoral dos DH seguiu atuando (além da defesa jurídica)
em campanhas públicas sobre a violência institucional e abuso do poder policial. Seu discurso
organizacional relacionava a fome, a carestia, o desemprego e a ausência dos direitos à educação,

10
A Obra Kolping é uma associação internacional católica que atua no campo social a serviço do trabalhador e
sua família. Como missão institucional busca promover o exercício da cidadania através do desenvolvimento
profissional, ambiental, cultural, religioso e comunitário.
saúde e moradia, ou seja, os elementos do modelo desigual de crescimento brasileiro, ao processo
urbano de ampliação da insegurança social, demandando junto aos poderes locais e ao poder federal
uma política pública para a construção da seguridade social. Em seu discurso sobre a violência
policial, já debatida aqui como presença constante no circuito urbano local desde 1968, apresentava
como causas do número abusivo de encarceramentos: a injustiça e o abuso de poder de polícia,
fruto do estado autoritário e ditatorial.
O CDDHO manteve um boletim informativo – o jornal Passo a Passo – desde 1983,
responsável por denunciar amplamente a violência policial na região, criticando o abuso dos
poderes policiais junto ao cidadão comum e ao homem pobre e periférico; denunciando ações do
Esquadrão da Morte e seus crimes; denunciando a situação da população carcerária em São Paulo
e a violação dos DH nas instituições públicas prisionais e nos aparelhos de repressão, paralelamente
ao apoio jurídico às famílias pobres vítimas da violência institucional. Em 1983, ano de lançamento
do jornal Passo a Passo, o CDDHO organizou, em Osasco, o “Tribunal Santos Dias de Violência
Policial”, um júri popular para amplificação do debate sobre a violência policial, abusos de poder,
tortura contra os presos comuns e abuso de autoridade contra a população pobre.
Para além da defesa dos DH, o CDDHO tornou-se o espaço referencial para organização de
vários movimentos, entidades e associações, na região oeste de São Paulo, entre eles a
reorganização do Sindicato dos Metalúrgicos, a formação do Sindicato dos Bancários e do Partido
dos Trabalhadores em Osasco. Acirradamente, a partir de 1981, ampliou o seu leque de ações
políticas. Naquela conjuntura, a ação do Centro refletiu a multiplicidade de demandas da população
periférica de Osasco e região. O movimento popular por moradia que começava a ganhar força
tornou-se vigoroso, assim como, o movimento pelos direitos das mulheres, a reorganização sindical,
o movimento pela educação e por creches e a luta contra arrocho salarial e desemprego.
Entre 1981 e 1988, as questões sociais aparecem recorrentemente na documentação do
CDDHO como foco da mobilização da instituição, o que resulta em muitas ações jurídicas,
campanhas, organização de seminários e plenárias, manifestações de rua, etc. O Centro aglutinou
um trabalho referencial de defesa e orientação jurídica, mobilização e assessoria a movimentos
sociais nas áreas: de moradia, no movimento contra o desemprego, reorganização sindical, saúde,
educação, questões da mulher, reforma agrária, dentre outros. Em 1988, a amplificação da ação
seguiu o processo político da transição democrática. Claramente podemos perceber no CDDHO,
guardadas as questões que diferenciam seus militantes, a edificação de um discurso coeso acerca
da democratização. Os preceitos da democracia participativa foram condutores das ações e dos
rumos tomados pelo organismo. O CDDHO expressava e defendia a força popular como agente
executor e empreendedor de suas decisões; a participação política como forma de combater a ordem
vigente e a desigualdade social; a superação do sujeito passivo e construção do sujeito ativo
propositor da política pública e em relação dinâmica como Estado. Na transição democrática, o
Centro atuou com clareza na estimulação de processos de viabilização da democracia participativa
num marco temporal balizado pela Anistia e a luta pela Constituinte – com forte ação junto aos
movimentos populares pelas demandas cidadãs na Assembleia Constituinte de 1987/1988.

No contexto dos anos de finais dos anos de 1970 e da crise econômica que marca a década
de 1980, os movimentos sociais brasileiros vigoraram na cena política manifestando-se acerca das
incapacidades do estado brasileiro em atender demandas dos direitos sociais e econômicos contra
a desigualdade social, assim como, contra o autoritarismo do Estado que insistia na exclusão da
participação popular da política institucional e da política pública. Como parte do contexto dos
movimentos populares urbanos, o CDDHO manifestava a crítica direta ao Estado e às suas
incapacidades de responder as demandas dos direitos sociais, políticos e econômicos dos moradores
das periferias de Osasco e região.
Com base política nitidamente composta pelas classes populares, o CDDHO agregou as
múltiplas demandas do movimento social urbano tornando-se um ponto de convergência de
demandas oriundas das deficiências de políticas urbanas na região. Seu ponto de destaque, no que
tange à organização do movimento popular, advindo de seus vínculos com a Igreja Católica, focava
a mobilização e a ampliação da participação política, principalmente a participação popular na
construção de soluções aos problemas coletivos, o que se materializa em propostas de participação
popular na política pública, em um momento histórico em que a estrutura das relações de poder
transitava muito lentamente do autoritarismo à constitucionalidade.
Neste sentido, este artigo analisou a experiência política do CDDHO e seu papel de
mediador institucional na relação estado-sociedade no campo amplo dos direitos humanos como
direitos fundamentais. O Estado autoritário negligenciou e omitiu-se de sua função de gestor
responsável pela distribuição e garantia de serviços e renda aos setores carentes da sociedade
brasileira; de outro lado, destacou-se como repressor, violador e ameaça aos direitos humanos a
todo e qualquer cidadão brasileiro. Foi neste contexto que os movimentos sociais urbanos
potencialmente se tornariam agentes centrais da transformação política brasileira. Como peça chave
de uma ampla engrenagem social, os movimentos populares, de fins dos anos de 1970 e início dos
anos 1980, fomentaram lutas urbanas e rurais de importância fundamental na transição democrática.
A capacidade de inventar e reinventar formas de atuação política, reivindicando participação social
popular com a incorporação da maioria da população na tomada de decisões foi, de fato, o elemento
dinâmico dos chamados “novos movimentos sociais” no Brasil e América Latina ao final das
ditaduras.
Na análise da trajetória histórica do CDDHO, em Osasco, visualizamos: o protagonismo na
sedimentação de uma organização projetada para a proteção dos direitos humanos, que ao longo do
tempo, e, no desenrolar da história local e global, adotou sentidos múltiplos de ação, que transitaram
da denúncia de padrões de violações sistemáticas dos direitos humanos para a edificação de um
movimento muito diverso em sua composição e seus fins. Se, no contexto de seus primeiros anos,
o movimento de direitos humanos no Brasil e América Latina, se constituiu fundamentalmente por
organizações de vítimas das ditaduras e seus familiares – especialmente nos países do Cone Sul –
complementado por ativistas, juristas e militantes católicos que apoiavam as demandas desses
grupos – na trajetória do lento restabelecimento da democracia, os processos de reinvindicação
sociais e econômicos se desenvolveram no interior destas instituições, abrindo espaço para
ramificação das pautas do movimento de direitos humanos para exigir os direitos fundamentais se
expandindo nas direções do campo social e econômico.
A partir dos primeiros passos dados na transição democrática, as organizações de direitos
humanos no Cone Sul estenderam sua esfera de influência original, passando a participar de forma
ativa em questões tão diversas e atuais quanto a luta contra a discriminação racial, a luta pelo direito
à diversidade sexual, a luta pela ética na política e a luta contra a fome e a pobreza. Assim, ocorreu
com o CDDHO. Seu protagonismo fomentou a luta pela anistia, a luta pela contenção da violência
institucional compondo o quadro da transição democrática, acrescentando a ela o fator da
diversificação da luta dos DH, rompendo padrões da denúncia de violações sistemáticas e
aberrantes e transitando para um movimento muito mais dinâmico em sua composição e seus fins,
fato que caracteriza e identifica, até os dias atuais, o Movimento Nacional dos Direitos Humanos
no Brasil- MNDH.

AARÃO REIS, Daniel. Ditadura Militar: esquerdas e sociedade. Rio de Janeiro: Jorge Zahar,
2000.

ALVES, M.H.M. Estado e oposição no Brasil (1964-1984). Tradução de Clóvis Marques. 5. ed.,
Petrópolis: Vozes, 1984.

MACHADO, A. R. A.; TOLEDO, M. R. A. Golpes na história e na escola: o Brasil e a América


Latina nos séculos XX e XXI. São Paulo: Cortez, 2017.

MULLER, A.; GREINACHER, N. Igreja e Direitos Humanos. São Paulo: Vozes, s/d.

VIEIRA, J.C. Direitos Humanos e democracia no Brasil. São Paulo: Loyola, 2005.

VIOLA, S.E.A. Direitos Humanos e a democracia no Brasil. São Leopoldo: Ed. da UNISINOS,
2008.

WEFFORT, F. C. Participação e conflito industrial: Osasco e Contagem (1968). São Paulo:


CEBRAP, 1972.
Caroline Pacievitch

Esta comunicação problematiza a possibilidade de pensar paixão e ensino de História a


partir de uma perspectiva crítica. A curiosidade sobre o tema originou-se na sua recorrência em
investigações sobre identidades e formação de professores de História e no teor de questionamentos
públicos sobre o papel dos afetos e das ideologias na docência. O objetivo desse texto é explorar
alguns sentidos atribuídos por professoras e professores de História, sobre a paixão no ensinar
História.
A paixão foi escolhida como oportunidade de pensar o lugar da utopia política na profissão,
tendo em vista sua tensão dialética com a razão e com a responsabilidade. As fontes para debate
deste tema são testemunhos orais de docentes de História, recolhidos entre 2005 e 2011, no âmbito
de investigações sobre formação de professores de História.
Os documentos utilizados foram depoimentos de professores de História brasileiros
utilizados como fontes em dois projetos de pesquisa entre 2005 e 2011. Os depoimentos originaram-
se de roteiros semiestruturados, construídos com o objetivo de identificar identidades e utopias
docentes. Todos foram registrados em gravador digital. As transcrições foram realizadas na íntegra,
com o intuito de promover a legibilidade das narrativas. Transcrições e análises posteriores foram
revisadas, corrigidas e aprovadas pelos depoentes, conforme orientações em Portelli (1997) e
Guimarães Fonseca (1997).
Para os fins deste trabalho, as transcrições dos depoimentos de dez professores de História
foram lidas na íntegra e foram separados os trechos que remetem à paixão por ensinar. A
identificação desses trechos obedeceu às definições presentes na bibliografia revisada. Assim, na
primeira parte desse texto discutem-se algumas perspectivas teóricas sobre paixão, sentido e
narrativa. Em seguida, os depoimentos de docentes de História são apresentados e relacionados com
o referencial teórico. Ao final, pretende-se refletir sobre as conexões possíveis entre
profissionalidade docente, paixão e sentido, bem como sobre o potencial da metodologia da História
Oral para a pesquisa em formação de professores.

* UFRGS, Doutora em Educação, apoio Capes.


Tirésias
Quando de seus discursos um homem sabedor colhe bons princípios, fala bem e sem
pena. Destra linguagem tens, como se sensato foras, mas em tuas palavras não há
sensatez. Um homem com audácia e arguto no falar, porém sem discernimento, funesto
cidadão será. [...].

Cadmo
Agora desvarias e, em teu senso, sensatez não há. [...].

Penteu
De astúcia usas, para eu mais querer escutar.
(EURÍPIDES, p.12, 14 e 19).

Para Pierre Ansart, na leitura de Stella Bresciani e do próprio Ansart, a historiografia tem
dificuldades em enfrentar temas como “[...] persistência de um apego, violência de um amor, [...]
ódios políticos” (ANSART, apud BRESCIANI; ANSART, 2002, p.7). E questionam: buscar apenas
o racional e escantear as paixões não seria, ao contrário do que parece, uma atitude irracional?
Afinal,
[...] a existência de um vínculo duradouro entre a identidade e a afetividade vem
sendo, ultimamente, confirmada pelas experiências quotidianas, assim como pelas
análises das várias disciplinas voltadas para as questões sociais. Nossas identidades
coletivas, profissionais, partidárias, nacionais não deixam de ser marcadas pelas
satisfações ou frustrações, por todas as gradações possíveis do prazer e da dor e, em
casos extremos, pela exaltação dos sucessos ou pela agonia da perda, do
desmembramento (BRESCIANI; ANSART, 2002, p. 8).

As reflexões desses autores sobre a conexão entre sonhos, ação, imaginação e identidades
podem ser férteis para refletir sobre formação docente, tendo em vista a dificuldade em separar o
pessoal do profissional, o afeto da razão, o cognitivo e o intuito nas práticas de sala de aula.
Obviamente, Bresciani e Ansart possuem outros centros de preocupação: anunciam a dificuldade
em separar razão e paixão para escrever história e conectam-na com identidades e também com a
utopia e a ação nas lutas pela democracia. Mesmo assim, abrem as portas para se pensar a conexão
com as identidades docentes e também com a História Oral, tendo em vista o potencial desta para
acessar as paixões.
Paixão, para alguns filósofos (notadamente pela matriz aristotélica), segundo Lebrun (2009,
p.12), é aquilo que acontece com cada pessoa, o que se sofre. É oposta à ação e inferior a ela. A
paixão também conduz a pensar na relação com o outro: “[...] A paixão é sempre provocada pela
presença ou imagem de algo que me leva a reagir, geralmente de improviso. Ela é, então, o sinal de
que eu vivo na dependência permanente do Outro” (LEBRUN, 2009, p.13). Assim, a paixão está
diretamente conectada com a mobilidade, a imperfeição, o humano, aquilo que pode ser
modificado, isto é, as reações de cada um pelo que vem de fora e que afeta. Nesse sentido, sua
conexão com a utopia é evidente – se a entendemos junto com a Escola de Lecce – como projeto
de futuro realizável, derivada de crítica aos problemas do tempo presente (PACIEVITCH, 2014).
Ainda segundo Lebrun, não é possível não sentir paixão. Paixões seriam constantes
antropológicas, assim como os ímpetos para mudar as coisas, como afirma Arrigo Colombo (2009).
O julgamento social não se estabelece, portanto, por se possuir ou não as paixões, mas pela forma
como elas se manifestam ou se reprimem, ou seja, trata-se de um problema ético que mede a virtude
não pela renúncia às paixões, mas pelo aprimoramento da conduta cotidiana perante as paixões
(LEBRUN, 2009, p.15).
Isso não significa que a virtude vem de encontrar o ponto médio, mas, sim, de saber
mobilizar diferentes intensidades e tipos de paixões conforme a situação. Novamente, paixões
ligam-se com o movimento, a mudança e a leitura do outro. Entretanto, essa visão aristotélica das
paixões só é possível se desconectada da matriz cristã que coloca a humanidade em combate entre
pecado e santidade e, por isso, desconcerta o pensamento contemporâneo pela ausência da luta
interna contra maus impulsos. Com essa matriz, assim como com Kant e com os estóicos, as paixões
são vistas como obstáculos a vencer. Para Aristóteles, ao contrário, ainda na leitura de Lebrun, “[...]
paixão e razão são inseparáveis, assim como a matéria é inseparável da obra e o mármore da
estátua.” (2009, p.18).
Nesse caminho interpretativo, Hegel seria o filósofo moderno que melhor contempla esse
significado, ao devolver dignidade à noção de páthos, pois se trata de uma paixão refletida,
consciente. Entretanto, tal consciência ou reflexão sustentam-se não pelo ratio romano, mas, sim,
pelo logos aristotélico, isto é, não por uma regra universal, mas pelo trabalho de adequar-se a cada
situação. Esse tipo de ética pode ser importante para se pensar na docência apaixonada: como os
professores trabalham suas paixões e utopias pessoais perante as responsabilidades docentes,
componentes da profissão? Pela lógica aristotélica, todas as pessoas são plenamente responsáveis
pelas paixões que sentem e pelo que fazem em decorrência delas, não havendo desculpa para
arroubos insensatos. É nesse sentido que Lebrun enxerga o afastamento maior entre nosso
humanismo atual e Aristóteles.
Lebrun termina nessas constatações, alertando para a diferença entre o pensamento antigo
e o contemporâneo. Sergio Paulo Rouanet (2009), porém, tensiona um pouco mais essas diferenças
para refletir sobre a epistemologia contemporânea a partir de “As Bacantes”, de Eurípides. Para
Rouanet, Penteu representaria a razão iluminista contra o charlatanismo e a superstição, o que
aparentemente é irracional. Tirésias é vidente, cego e defende os ritos e a observância das tradições.
Essa dicotomia, porém, é enganosa:
[...] a loucura de Penteu está em que suas palavras parecem razoáveis, mas não o são. Sua
loucura é um simulacro de razão [...]. O saber de Tirésias incluir o de Penteu, e o supera
[...]. Sua razão é mais rica que a de Penteu porque sabe o que ele não sabe: que a razão
pode ser a simples máscara da demência. [...] Como homem de bom senso, Tirésias sabe
que a razão que exclui a paixão dionisíaca é uma razão insensata. Basta esse bom senso
para mostrar a insanidade de uma atitude que exclui todos os momentos passionais, sem
nenhuma necessidade de um saber esotérico. (ROUANET, 2009, p. 505-506, grifos
adicionados).

Além disso, Penteu nega-se a abrir-se para o novo e tem atitudes tirânicas, o que demonstra
as fronteiras deslizantes entre paixão e razão. Primeiro, porque Penteu, no auto-engano de reprimir
as paixões, perde a objetividade. Tirésias, entretanto, consegue manter a objetividade justamente
por abrir espaço às paixões. A manifestação da paixão não é por si só negativa ou positiva.
Entretanto, ela pode manifestar-se de modo sensato ou insensato (ROUANET, 2009, p. 514).
Dessa forma, a razão que se relaciona de forma livre e autônoma com as paixões é a razão
sábia. Aquela que inibe o desejo e força o apagamento das paixões é a razão louca (ROUANET,
2009, p. 514-515). Rouanet recorre a Freud para delimitar o que é a razão louca, isto é, a falsa
consciência (também conforme Engels). Freud explica que essa falsa consciência acontece quando
a percepção do mundo externo se constitui apenas do ponto de vista interno da pessoa, mas se
expressa de tal forma que parece coadunar-se com o mundo externo. Esse movimento contribui
para “[...] sabotar a objetividade do pensamento” (ROUANET, 2009, p. 519).
Uma primeira forma de perceber essa razão louca é quando ela nega a própria influência
das paixões, que Rouanet identifica com o positivismo. A segunda forma é pela exaltação da paixão
e pelo desprezo à razão (mas ainda utilizando de meios racionais), como, por exemplo, em
Nietzsche, Heidegger e Derrida. A razão louca imita a paixão, mas não realiza uma “elaboração
reflexiva” (ROUANET, 2009, p. 521). A razão louca é problemática, tanto por conta da repressão
(recalque) como por conta da liberação conduzida apenas pelos interesses do poder. Nenhuma das
duas permite a autonomia.
Quanto à razão sábia, Rouanet afirma:

Como órgão do conhecimento, a razão sábia, interagindo com a paixão, consegue o que a
razão louca não consegue: ter acesso ao saber imparcial. É a tarefa do Ego, não como sede
da defesa, mas como sede dos processos intelectuais: ele afasta as interferências afetivas e
obtém um conhecimento fidedigno, tanto ao nível da percepção como de pensamento.
(2009, p. 524).

Para evitar a confusão com o Positivismo, Rouanet recorre novamente às categorias da


psicanálise, afirmando que, assim como o Ego tem a capacidade de discernir as paixões, ao mesmo
tempo em que as sente, também o pensamento racional pode realizar seu papel cognitivo ao lado
das paixões (ROUANET, 2009, p. 527).
Ao recorrer ao trabalho de Proust em À la recherche du temps perdu, Rouanet explica a
relação entre paixão e razão na criação literária, que pode servir também para a criação científica e
para a docência. O elogio de Proust sobre a memória involuntária conduziu-o a exaltar as paixões
em detrimento do trabalho cognitivo. Entretanto, Proust manifesta, reelabora e expressa essas
paixões a partir dos trabalhos de pensamento. Ao que parece, Rouanet defende uma relação entre
paixão e razão em que uma depende da outra, mas em que a razão predomina a fim de permitir o
trabalho, a elaboração das paixões e sua comunicabilidade. O autor sintetiza: “[...] quando
necessário, ela [a razão sábia] sabe ser pura receptividade, deixar-se impregnar pela vida das
paixões, escutar todas as vozes interiores, mas sabe também, no momento devido, fazer uma époche
das paixões, excluindo-as enquanto durar o trabalho do pensamento” (ROUANET, 2009, p. 528).
Dessa forma, a razão sábia afasta-se da arrogância e do irracionalismo, ao reconhecer e
abrigar as paixões, sem abrir mão da responsabilidade ética sobre o pensamento, como se verificou
anteriormente em Lebrun (2009). Rouanet defende, por fim, que busquem conexões cada vez mais
amplas entre razão e paixão, a fim de incluir justiça e beleza nos trabalhos cognitivos. Eis outra
similitude com a conexão que se estabelece entre paixão por ensinar, utopia e responsabilidade
docente, principalmente em tempos em que a luta contra manifestações de tipo fascista voltam a
ocupar a opinião pública, a mídia e as salas de aula.

Não é a razão que é castradora, e sim o poder repressivo, que deriva sua solidez da
incapacidade de pensar que ele induz em suas vítimas. O fascismo se implantou através
da difusão de uma ideologia vitalista reacionária, que proclamava o primado dos instintos
vitais sobre a razão, e com isso inutilizou a razão, o único instrumento que permitiria
desmascará-lo como a negação absoluta da vida. (ROUANET, 2009, p. 530).

Por fim, quando a razão sábia interage com a paixão, ela produz a autonomia e não mais a
heteronomia. Com isso, aproxima-se do Iluminismo, que reconhecia a dignidade das paixões. Para
ficar ainda mais explícito: a inibição das paixões, na razão sábia, não acontece pela defesa, mas,
sim, pela consciência, pela inteligência, nas palavras de Freud, pelo “juízo de condenação”
(ROUANET, 2009, p. 532).
Por ser autônoma, a razão sábia é crítica. Ela consegue perceber os afetos inseridos pelo
poder a fim de torná-lo invisível. É capaz, ainda, de liberar as paixões que confrontam a dominação
exercida pelo poder.

Professoras e professores: revolucionários apaixonados?


Mas talvez seja ainda mais trágico o herói apaixonado. Porque o revolucionário de algum
modo ainda compactua com o mundo, com a sociedade que pretende salvar ou criar. Já o
apaixonado está em conflito direto com a sociedade, com qualquer sociedade – conflito
ainda mais grave porque sua arma é a indiferença, o descaso face aos poderes. Vivemos
numa sociedade de cant, diz, Stendhal, valendo-se da palavra inglesa que designa
hipocrisia, mentira; quem libera a energia que possui, quem tenta vivê-la o quanto ela
merece, supera a palavra com suas mentiras, mas com isso também se desliga da vida
social, que assenta em discurso; escolhe a morte social, a morte de suas honras e riquezas,
às vezes a própria morte. E, no entanto, nesse destino difícil, árduo, o apaixonado é o mais
feliz dos homens. (RIBEIRO, 2009, p. 496).

Quem são os professores e professoras que participaram dessas pesquisas e cujos


testemunhos orais compõem essa reflexão sobre a paixão e a profissão de ensinar História? São
revolucionários, como afirma Renato Janine Ribeiro? Ou se abrigam na paixão a fim de perder o
contato doloroso com a realidade das escolas e dos estudantes? O quanto podem ser vistos como
guerrilheiros que destroem, por dentro, as estruturas do Estado, missionários que colocam o amor
à causa acima de tudo, quixotes contra moinhos de vento?
Esses professores formaram-se em História em algum momento, entre os anos de 1980 e os
da primeira década de 2000. Vivem e ensinam em cidades do Paraná, do Rio de Janeiro, de Santa
Catarina e de São Paulo. Possuíam entre 4 meses e mais de 30 anos de experiência docente. Alguns
possuíam Licenciatura Curta, outros cursavam o doutorado. Suas referências culturais, acadêmicas
e religiosas eram bastante diversas: ateus, católicos praticantes, católicos não praticantes, adventista,
punk, apreciadora de comédias românticas, organizador de cineclubes, militante feminista, ex-
filiada ao PT, avó, voluntária na igreja… Ao contrário do que diz o senso comum sobre professores
de História (comunistas, anarquistas, militantes, pouco afeitos às responsabilidades institucionais
na escola), o que marca essa pequena amostra é a diversidade de filiações e de perfis profissionais,
pessoais e políticos. Nenhum deles, entretanto, expressou seu pertencimento étnicorracial.
De uma forma ou de outra, porém, todas e todos expressaram sua paixão por História e por
ser professora de História. Em três ocasiões, a palavra paixão foi mencionada. Uma delas, quando
a docente explicou que havia encenado “A Paixão de Cristo” em um grupo da igreja. As outras duas
tratam da paixão por ensinar e da paixão por História.

Porque pra passar pro aluno uma coisa do sistema copiada, é muito melhor eu passar essa
paixão que eu tenho. Se eu passar essa paixão, metade da sala se apaixona também. A
outra metade odeia, mas a metade se apaixona também.[...] O curso era lindo, ela me
contava e eu me apaixonei! A primeira paixão era História.

Em outros casos, expressa-se o sentimento de satisfação e de realização pessoal em ser


professor que ensina História, e, por que não, em seguir aprendendo:

Então, me considero realizada, mas não parei, porque comecei a aprender mandarim,
chinês.

Então, eu gosto muito de dar aula. Eu gosto muito de estar (ênfase) junto com o aluno.
Parte burocrática eu não gosto não. Não gosto muito, toma muito tempo, esse negócio de
ficar preenchendo papel, de conselho, disso, daquilo toma muito tempo da gente. Eu gosto
muito (ênfase) do que eu faço.

No início sentia muito, a desqualificação social para com a profissão; sempre um sorriso
amarelo a me sorrir quando dizia que faria História. Mas hoje vejo que minha opção não
poderia ser melhor.

Então é um sentido pra sempre, que vai te norteando, te direcionando. E a busca é pela
felicidade, tanto em termos financeiros quanto em termos de autoajuste pessoal. É esse
Deus, que me deu o dom, que me deu alegria pra poder trabalhar com meus alunos, que
me deu a saúde, que me deu o caminho pra me formar, é por esse Deus que eu acho que
tenho uma missão talvez mais do que importante diante dele.

Porque aí eu percebia que eles estavam entendendo o que eu estava falando. Enquanto só
eu falava, eles dispersavam. Isso foi muito significativo, foi uma virada na metodologia,
que trouxe um resultado bem mais significativo pra mim e pra eles também. Foi bom.

Isso, pra ter uma jornada menor e pra poder ensinar, porque meu pai falava que era tão
bonito, que era tão importante, apesar de não muito reconhecido, mas era bonito ser
professor. Era uma profissão digna, e respeitada. Ah, porque eu amo ser professora
{risos}. Por mais que todo mundo reclame, por mais que eu ache também que a gente
merece, sim, um reconhecimento, uma remuneração, um montão de coisa que todos nós,
educadores, sabemos, mas é uma profissão gratificante demais.

Tinha uns meninos jovens, adolescentes, algumas mulheres, foi uma sala muito boa, eu
comecei a me sentir professora nessa escola. [...] Ah, eu não consigo me ver fazendo outra
coisa... eu acho que vou fazer sempre…

Porém, o amor dos estudantes, o prazer em ensinar e o bem-estar em sala de aula não resume
o sentido que esses docentes atribuem à sua profissão. Elas e eles são bastante críticos e, novamente,
rompem com as fronteiras entre razão e paixão, profissão e vida pessoal, responsabilidade docente
e utopia ao tratar do papel do professor de História.

Então, hoje eu definiria [como sendo] o mundo tem necessidade do professor de História
que seja um professor que faça a diferença.

A História dá muitos caminhos pra gente. Eu acho que é uma das matérias mais
importantes que tem é História. Porque ela te abre os caminhos, você consegue enxergar
os caminhos que você não enxergava. Só que eu quando eu fiz História eu queria respostas.
Eu queria respostas para aquele povo passando fome, eu queria resposta pra morte do meu
marido, eu queria resposta pra eu ter feito tudo certinho e não ter dado certo. Eu queria
respostas pra mim, como ser humano, como pessoa. E eu acabei descobrindo que a
História me abriu muitos caminhos (ênfase) e a opção é minha. Eu vou ter que optar. [...]
Não que ele enxergue o que eu estou enxergando, mas sim que ele comece a observar que
ele pode (ênfase) enxergar coisas diferentes. Se ele colocasse alguma coisa totalmente
diferente do que eu falei, mas que fosse ideia dele, da cabeça dele, e tivesse uma certa
coerência, eu ficaria muito feliz de ele pensar diferente de mim, de discordar de mim! Mas
pra ele discordar ele tem que entender o que eu estou pensando, pra ele poder.

E aí você fica pensando, por que angustiar os alunos? É a minha função! É colocar outro
sentido. Você tem que quebrar um pouquinho esse equilíbrio dele pra ele começar ... a
pessoa que enxerga só em linha reta, você precisa chamar a atenção dele aqui, chamar a
atenção dele ali, pra ver se ele vira a cabeça, pra poder enxergar as laterais. Pode até andar
em linha reta, mas observe o que está acontecendo do teu lado direito, do teu lado
esquerdo.

Todos os professores deveriam carregar uma bandeira e deveriam se identificar com o


conhecimento.

Acho que o bom professor deve ser onipresente, ou seja, participar em todas as instâncias
da escola, e nunca pode negligenciar nenhum espaço democrático de construção; isso
serve de estímulo aos alunos, professores e pais.

Eu ainda acredito muito que posso fazer a diferença como professor.

Eu tenho a impressão de que eu gosto de ver as crianças se perguntando coisas, mais do


que {risos}, não sei, na Universidade.

O que mais me angustiava era saber se eu ia ter o controle da situação. Se eu ia chegar e


dar conta do meu recado e o meu recado não se resumia apenas em ensinar um conteúdo,
mas em manter a disciplina, fazer com que as crianças sentissem prazer em estar comigo
e se interessassem por aquilo que eu estava tentando passar. [...] Então é isso que eu
projeto. E ensinar, ensinar sempre. Eu quero que eles saiam maiores do que entraram. Não
importa quanto, mas eu preciso desse movimento de crescimento. Se sair igual, é porque
eu fracassei. Quero que eles mudem, pelo menos um pouquinho.

Aí quando eu entrei, eu vi que ... não sei, tem aquela coisa, não sei de onde vem isso, de
que você tem que fazer, você tem que saber fazer e fazer bem feito aquilo que você faz!
Então eu achava que tinha que fazer bem feito e que eu precisava aprender. Não é assim.
Você não ganha o “passe” para ser professor com o diploma [risos]; é toda uma construção
o ser professora.

Ao lado desse sentido crítico e emancipador sobre a docência, os docentes reconhecem sua
conexão próxima com a formação humana dos jovens e a necessária reflexão (ou transmissão,
dependendo da perspectiva) de valores.

Olha, eu acho, eu não sei, mas o professor digno é aquele que defende os seus valores,
mas aí nós entramos numa questão muito complexa eu acho, porque eu soube de professor
inclusive que se droga e está em sala de aula e isso em Ensino Superior. Então eu fico
pensando: “será que eu estou errada?” Mas o professor digno é aquele que tem uma
formação sólida, que tem valores. Não precisa ser necessariamente um católico, um
adventista, mas que tenha um desenvolvimento espiritual, que tenha essa compreensão
dessa nossa humanidade que eu insisto tanto que precisa ser valorizada. Esse professor e
aí você diria assim: “que valores?” Mas por conta disso, pelo menos aquilo que ele acha
que é importante pra ele servir de exemplo, quer ele queira ou não, o professor serve de
exemplo pros mais novos. A mesma história do pai que quer ser amigo do filho, mas ele
é pai. Então, o professor, quer ele queira ou não, ele pode ser o maior amigo dos alunos,
mas ele vai ser sempre olhado como exemplo, ele vai. Se ele é olhado como exemplo, ele
não pode... enfim... caminhar assim pra, pra valores que ... ahm... que joguem o homem
na sarjeta. Valores que o inferiorizem. Talvez a melhor colocação seja essa: o ideal que o
professor persiga. O professor digno persegue valores que elevem a pessoa, que elevem o
homem a ele próprio. Acho que seria isso.

Eu sou contra essa reforma só de tapar buraco. Tem que ter uma renovação, não sei. Nós
tivemos aí, nós tivemos o que... Um renascimento. Nós estamos precisando acho que de
um outro renascimento.

Mas é você mexer, você remexer o fato e os envolvidos e você nesse momento poder
relacionar com a pessoa, com o atual, com a política hoje, com essa questão de ética, sabe?

Para eles eu tenho esse projeto de... é um desafio. Vamos tentar colocar aí nessas escolas...
mas trabalhar um pouquinho a ética, os valores, a solidariedade, acima de tudo, vamos
fazer gente aqui na escola. E com os pequenininhos, os desafios são menores, mas também
importantes. Vamos fazer essa garotada entender que as aulas são de 50 ou 100 minutos,
porque eles chegam totalmente desnorteados, porque saíram da “tia”, que era o dia inteiro
e daí eles não administram. [...] Eu tento ter o cuidado de procurar sempre permear o
ensino do conteúdo com a questão da ética, com os valores morais. Quando eu falo valores
morais, não calcado numa questão religiosa, que é muito delicada. Hoje, o Brasil é um
país que tem tantas religiões, tantas crenças, que dentro de uma escola é humanamente
impossível você fazer essa abordagem, pelo menos fazendo uma abordagem tendenciosa,
sem ferir alguém. Mas acho que você [deve] ser digno, ser honesto – eu sempre comento
com os alunos – nas coisas mais elementares! Parece que hoje ser honesto é ser bobo. Ser
educado é ser bobo. Pedir licença, pedir por favor, não é bacana, na concepção de mundo
que tentam passar pra gente. Parece que hoje ser desonesto é ser esperto.

Estando efetiva no Estado, sempre me identifiquei bastante com os alunos. Porque eu acho
que o trabalho de professor é ir um pouco mais além do que não é só o conteúdo, é muito
mais que isso. Questão da formação, valores, eu sempre, trato da formação como um todo.
Inclusive, agora, eu acho que é uma experiência bem interessante. Eu falei: “como são os
caminhos de Deus”, a diretora veio me chamar depois de tantos anos…

Aí a responsabilidade docente não se define por uma fidelidade restrita à historiografia, à


militância, à religiosidade ou às sensibilidades, mas na capacidade de conectar todos esses aspectos
em função das necessidades dos estudantes, suas reações, seus desejos, dificuldades e potenciais. O
fiel da balança que permite o que aqui identifica-se como razão sábia na docência em História não
é a ciência, nem o afeto, isoladamente, mas a leitura crítica que se estabelece na relação dialética e
amorosa (no sentido freireano) com os estudantes e os conhecimentos, em toda sua diversidade.

Papel do professor de História? Papel é levar o máximo de informações possível pro aluno.
E ele precisa estar bem informado, ele precisa estar lendo, ele precisa estar ouvindo, ele
precisa estar assistindo novela. Eu leio livro de piada, para saber algumas piadas, às vezes
quem sabe até da história do Brasil. Só que eu vou procurando a essência dessa piada,
porque surgiu isso, essa indagação o tempo todo. Eu acho que o papel do professor é
despertar a curiosidade do aluno, que ele seja curioso pela história dele.

Eu adapto muito esse tipo de conhecimento dentro da História. Trabalhar música pra
relacionar com aquela poesia, ou aquele documentário, ou aquela... Até nós tivemos uma
oportunidade de trazer um ex-pracinha da II Guerra pra conversar, então…

Porque é trazer o diverso. A escola é um espaço único, é um espaço privilegiado. Então


aproveitar esse espaço... E sendo esse espaço único, tem uma chance de afetar; tem coisas
que eles só vão ver lá. Em que medida afeta é difícil pensar. Porque tem coisas que às
vezes é alguma coisa que você diz, ou um texto que você passa, um filme que você passa,
que aquilo muda a maneira de ele ver algumas coisas, mas não é tão direto, né. Muito
indiretamente pode influenciar outras coisas. Eu não consigo ainda mapear.

Eu tenho que seguir o Programa. A gente tem um Programa, um currículo, mas eu não
estou presa a ele... Eu tento trazer um pouco daquilo que a gente aprende para que faça
sentido para eles para dentro da sala de aula. Mas eu acho importante, tento sempre mostrar
a importância de a gente conhecer a História, você ver os povos, entender. Eu acredito que
quando você tem uma boa visão da História Geral você vê o mundo de uma maneira
diferente. Até com meus colegas de profissão, eu acredito que, quem não tem o
conhecimento de História, eu vejo que é um diferencial. Não é que seja relevante, mas é
um diferencial, como a gente olha o mundo, olha a vida, vê as relações sociais e isso é
extremamente importante.

Assim, razão e paixão constroem a crítica ao tempo presente e fertilizam a construção de


projetos de futuro concretizáveis. Utopia não é fuga, mas assentamento do caminho para uma
docência emancipadora e responsável.

Nós vivemos num momento de transição e de repente o que valia não vale mais. Então é
complicado dizer “o professor digno é aquele que tem que ter esse valor, aquele valor, tem
que ser honesto, tem que ser isso, tem que ser aquilo”. Eu acho que até não teria como eu
colocar assim. Mas por conta desse efervescer de valores que acho que mais uns 15-20
anos tudo se acalma e nós vamos começar a perceber realmente a Nova Era aí.

Cada um tem a sua cela, e dentro da sua cela cada um tem a sua solitária que é a sua
carteira; tudo cercado por muros, mas não pra segurança deles, pro bem-estar deles. Mas
quem sabe até pro meu bem-estar, aonde que muda de carcereiro a cada 45, 50 minutos.
E você joga lá dentro português, joga lá dentro Matemática, joga lá dentro Ciências, e joga
lá dentro História e você tem que pensar, que tem objetivos, e tem isso... Então você pensa:
“gente, que tortura!”. [...] Eu dou uma enxugada nela e deixo o que é importante. Será que
é importante pros meus alunos ou é importante pra mim? Eu estou passando para eles o
meu ponto de vista?

Não. Não porque é um processo vivido por mim. Aonde que a professora de História pode
ser um pouco mais radical, um pouquinho mais revolucionária, menos revolucionária,
contra isso, contra aquilo, porque ela viu a história, eu vi a história de dentro e quando a
gente está inserido na história a gente não enxerga muito. A gente, às vezes precisa sair...
O foco a gente tem que ver de longe pra gente conseguir enxergar. Então vai mudando a
minha concepção, o jeito que eu ensinava História e o jeito que eu ensino hoje mudou
muito depois que eu fiz o curso de História.

[...] Eu estou lidando com conhecimento! Eu não sou assistente social, eu não sou a mãe,
não sou o pai desse aluno. Eu sou professora (ênfase). Assim como nem sou pai dos meus
filhos; sou só mãe, eu só sou professora. Exijo respeito e respeito. Respeito eles e exijo
respeito. Eu nunca usei um tom pejorativo com um aluno. Façam silêncio, por favor, dá
licença, e se vocês não querem…

Vejo também que o nosso orgulho influi muito no que os outros pensam sobre nossa
profissão.

Mesmo tendo um pouco de decepção em relação à educação, ainda levo minha profissão
muito a sério.

[...] todos os lados, todos os sentidos, você pode trabalhar a moral, você pode trabalhar a
ética, você pode trabalhar o lado ecológico, você pode trabalhar política, religião,
sociedade em geral. Você pensa que é uma das disciplinas que te favorece muito pra
conduzir um verdadeiro cidadão, conduzir uma pessoa. Conduzir não digo, mas orientar,
informar a pessoa que tem um padrão profissional e humano melhor.

Na Psicopedagogia eu fui entender que eu tenho o dom de atrair os problemas. Aquele que
ninguém quer, é aquele que eu adoto. Aquele que ninguém dá valor... Só que agora eu
estou numa operação inversa, entendeu? Eu estou desapegando, porque eu estou parando
e eu já sofri muito, eu não quero sofrer mais. Como eu sofria, gente, como eu sofria e como
eu chorava de não dar conta disso. Hoje eu vejo, trabalhando com adultos, [que] consigo
ser mais feliz dando aulas para os adultos do que para os pequenos; eu vou obrigá-los a
fazer o que eu entendo que tem que ser feito.

Eu penso que sim, que tem muito e esse poder é até perigoso demais para a gente não ir
com muita sede ao pote e não soltar a criançada revoltada por aí. Então, a gente tem que
se policiar para dar alguma ferramenta e para tirar mesmo isso da ingenuidade. Para falar:
“opa, espera aí! Será que é assim ou será que pode ser de outro jeito?” Então, quando eles
fazem esse questionamento, a gente já sente que de alguma forma, já atingiu.

Aí terminei a Faculdade e eu achava bonito, eu queria trabalhar na Escola Adventista.


Tinha uma coisa que eu podia juntar aquilo em que eu acreditava – como se fosse uma
missão mesmo, coisa de ser missionário, de trabalhar numa causa para Deus – e eu achava
que essa era a vontade de Deus para a minha vida. Eu trabalhava, já tinha as minhas aulas
no Estado – no último ano (antes eu tinha medo de exonerar, pegar aula e não conseguir
terminar a faculdade) – mas no último ano eu exonerei e consegui pegar aula na mesma
escola e fiquei na mesma escola dando aula de História.

Por fim, nos testemunhos docentes se vê que a luta e o sonho compõem a profissionalidade
docente.

Eu tenho bastante coisas pra lutar dentro da instituição. Acreditar. Eu acredito que a sala
de aula transforma, eu acredito no que o meu trabalho transforma. Entende? Eu acredito
muito nisso. Claro que tem momentos que você desacredita, que você de certa forma abre.
Mas, sabe, eu acho que esse mundo não é o meu.

No dia-a-dia, no cotidiano, seja com a turma, seja aluno com a família, seja aluno com a
escola, precisa ter essa interação o tempo todo, você não pode se omitir! Não existe! A
vida está aí, está em tudo. Você vê os prós e os contras. Ou você interfere pra ajudar ou
então... omite-se, passa o conteúdo, mas passa aquilo muito vago na vida das pessoas.

Tentar melhorar como professor! E tentar ter um impacto maior. Mas o duro que a
estrutura não favorece muitas vezes.

Eu acho que essa escolha tem a ver com esse meu lado, não sei nem se de esquerda, mas
talvez progressista, não sei.

Eu já falei: a minha utopia é uma escola que permita que todos aprendam, e aprendam
bem. A minha utopia é que não exista mais escola “mais ou menos”. Minha utopia é que
ninguém tenha que colocar o menino na escola particular para ter numa escola boa. Essa
eu acho que é a maior de todas. Eu quero que todas as escolas sejam boas;
independentemente de serem públicas ou privadas.

O trabalho ali me trouxe muitas expectativas. Eu cresci [foi uma coisa], nunca me dediquei
tanto, nós três. Foi aquele momento propício, a junção dos três, que foi bem significativo.
Eu amei. [...] Eu quero que eles se encontrem. Mas bem... qual a palavra que eu usaria? A
relação deles com o ensino. Porque o aluno de EJA vem com uma autoestima muito baixa
em relação à escola; a maioria deles, se sentindo não capaz de aprender. E se eu vejo que
eles saíram da oitava confiantes, se vendo capazes... Então, eu gostaria muito mais que
eles se vissem capazes, como qualquer outra pessoa. A escola não redime. O que eles
buscam na escola, os alunos de EJA? Eles querem uma melhora de vida. Eles querem um
emprego melhor, ou satisfazer um sonho.
Esses professores participaram de duas pesquisas sobre identidades docentes, utopias e
ensino de História. Alguns deles apenas deram seus depoimentos, outros tiveram também aulas
observadas. Análises mais completas desses testemunhos estão disponíveis em diversas publicações
(PACIEVITCH; CERRI, 2010; PACIEVITCH, 2014). Assim, desde 2005, quando os primeiros
estudos sobre histórias de vidas e testemunhos docentes foram realizados, chamava a atenção a
recorrência da conexão íntima entre paixão pela docência e paixão pela História entre esses
professores.
Diversas perguntas surgiam à mente, colocando em questão a pertinência da paixão de
professores de História como objeto de estudo. A paixão poderia desviar os professores das
responsabilidades profissionais e de uma conduta ética na escola? Por outro lado, a ênfase nos afetos
poderia escamotear a legitimidade das lutas por condições de trabalho e de salário, bem como pelo
reconhecimento dos professores como intelectuais, reafirmando a docência como vocação?
Com receio de mergulhar na problemática dos afetos, a opção teórico-metodológica nas
pesquisas, até agora, foi a de se concentrar nas questões políticas, ideológicas ou utópicas que
envolvem a profissionalidade da docência em História. Porém, o alerta de Ansart para que a
historiografia preste mais atenção nos afetos, apoiado no raciocínio desenvolvido por Rouanet sobre
a conexão entre paixão e razão na luta contra as opressões, ajudaram a encorajar o presente
exercício.
Além disso, um dos resultados das pesquisas demonstraram que as utopias político-
educacionais expressas por professores de História aproximam-se, em grande medida, da promessa
Iluminista formulada por revolucionários franceses como os enciclopedistas, Rousseau e Condorcet
(principalmente o último). Trata-se da utopia da escola pública universal, laica, gratuita e que
garanta a todas e a todos o acesso ao conhecimento. Não é o professor, individualmente, que faz a
diferença na vida dos jovens e, sim, o conhecimento, que permite a criticidade para fazer escolhas.
Nesse sentido, considerou-se interessante investigar também a professores de História
franceses, tendo em vista a perenidade das tradições educativas e do ensino de História-Geografia
na França. Comparar os testemunhos de professores franceses, brasileiros e espanhóis permitiu
vislumbrar uma relação que, antes, se intuía, mas que não se havia demonstrado adequadamente
nas pesquisas: as dimensões políticas (as utopias) tinham, sim, um papel fundamental a
desempenhar na profissionalidade docente.
Entretanto, esse papel não se localizava no campo das identidades, nem apenas dizia
respeito apenas aos docentes com noções políticas mais à esquerda ou mais à direita, mais ou menos
experientes e assim por diante. Foi possível demonstrar que os docentes lançavam mão do político
para compreender, justificar e atuar sobre a tensão entre teoria e prática, ou entre história e educação,
que frequentemente compõe os processos formativos na área.
Dessa forma, a dimensão utópica deixou de ser uma “dimensão” – no sentido de compor
um universo que se evoca ou se afasta – para ser um definidor da profissionalidade docente em
História. É nesse sentido que as paixões, conforme exposto por Rouanet, podem ser visualizadas na
formação de professores de História: é o que permite a conexão íntima entre teoria e prática, a
relação dialética entre forma e conteúdo na organização do trabalho pedagógico, enfim: o que
permite construir os sentidos necessários à ação transformadora na docência.
Acompanhando Benjamin (1987) e sua ideia de experiência, não é desprezível a hipótese
de que tal compreensão só tenha sido possível porque as fontes documentais foram depoimentos
orais de professores de História, coletados em situações de confiança mútua e de empatia entre
pesquisadora e participantes. Houve espaço para que as narrativas se expusessem como elaborações
de experiência e, consequentemente, como fontes de sabedoria sobre a profissão.

ANSART, Pierre. História e memória dos ressentimentos. In: BRESCIANI, Stella; NAXARA, M.
Memória e (res)sentimento. Indagações sobre uma questão sensível. Campinas: Ed. da Unicamp,
2004.

BENJAMIN, W. O narrador. In: Obras escolhidas. magia e técnica, arte e política. Ensaios
sobre literatura e história da cultura. Tradução de Sergio Paulo Rouanet. São Paulo:
Brasiliense, 1987, p. 197-221.

BRESCIANI, Stella; ANSART, Pierre. Apresentação. In: SEIXAS, Jacy; BRESCIANI, Stella;
BREPHOL, Marion (Org.). Razão e paixão na política. Brasília: UNB, 2002, p.7-14.

COLOMBO, Arrigo. La nuova linea dell’utopia. Revista Morus: utopia e renascimento. Campinas,
n. 6, p. 55-59, 2009.

EURÍPIDES. As bacantes. Disponível em: <https://goo.gl/Irqig> Acesso em: 03 jul. 2017.

FONSECA, Selva Guimarães. Ser professor no Brasil: história oral de vida. Campinas: Papirus,
1997.

RIBEIRO, Renato Janine. A paixão revolucionária e a paixão amorosa em Stendhal. In: NOVAES,
Adauto (Org.). Os sentidos da paixão. São Paulo: Cia das Letras, 2009, p. 477-499.

PACIEVITCH, Caroline. Responsabilidade docente: utopias de professores de História. Curitiba:


Appris, 2014.

PACIEVITCH, Caroline; CERRI, Luis Fernando. Guerrilheiros ou sacerdotes? Professores de


História, consciência histórica e construção de identidades. Pro-Posições, Campinas, v. 21, n. 2,
ago. 2010, p. 163-183. Disponível em: <https://goo.gl/Q17V5h>. Acesso em: 02 ago. 2017.
PORTELLI, Alessandro. O que faz a História Oral diferente? Projeto História, São Paulo, n. 14,
fev. 1997. Disponível em: <https://goo.gl/bftQuF>. Acesso em: 31 jul. 2017.

ROUANET, Sergio Paulo. Razão e paixão. In: NOVAES, Adauto (Org.). Os sentidos da
paixão. São Paulo: Cia das Letras, 2009, p. 500-536.
Carlos Alberto Xavier Garcia
Maria Aparecida Possati dos Santos
Marta Jacqueline Ramos Mendes

O presente texto trata da construção do Estado de exceção com início em 1964 e as


memórias que alguns professores de História possuem do período que abrange os anos de 1964 a
1985, período de contexto político de ditadura militar. Em primeiro de abril de 1964, com a
derrubada do governo legitimamente eleito, ocorrido através de articulações de interesses de grupos
nacionais e estrangeiros, iniciou-se também, a abertura de uma crise política e invisibilidade do
Estado de Direito, omitindo o período democrático existente até aquele momento.
De acordo com Sodré (1997, p.104), “a forma dos golpes é sempre a mesma” [...], mas
podemos salientar que o modelo adotado no Brasil teve uma diferença: as forças armadas tomaram
o poder, logo, instalaram-se nele e com isso não fizeram o jogo das forças políticas que
manipularam o processo golpista. Isso porque sofrem e participam das contradições que a sociedade
brasileira atravessa ao longo do tempo. O autor argumenta que “no processo histórico há sempre
uma heterogeneidade muito grande de acontecimentos”. Desta maneira, “a fachada militar das
ditaduras esconde seu conteúdo profundamente reacionário, o conteúdo que resultou da
mobilização das forças mais retrógradas da sociedade brasileira”. Mas, ainda segundo Sodré, isso
tudo “deriva de problema histórico na nossa vida, que é o retardo da revolução burguesa no Brasil”
(SODRÉ, 1997, p.105).
O estado de exceção militar foi construído em cima de alegação que havia um perigo
comunista rondando o Brasil. Estabeleceram atos institucionais, que foram normas e decretos
elaborados no período de 1964 a 1969, e que aumentavam gradativamente o poder do regime. Ao
todo foram editados 17 atos institucionais, sendo o de número 5 um dos mais autoritários
(RIBEIRO, 1995, p. 76).
O primeiro ato institucional foi editado no dia 9 de abril e legalizava as ações políticas dos
militares no poder e de imediato quarenta mandatos foram cassados, 102 pessoas perderam os
direitos políticos, incluindo líderes de entidades dos movimentos sociais. Esse ato permitia que o
governo militar alterasse a constituição de 1946, cassasse as leis legislativas, suspendendo os
direitos políticos por dez anos e demitir. Neste ato, o governo também poderia colocar em
disponibilidade ou aposentar compulsoriamente qualquer pessoa que tivesse atentado contra a

* Escola Estadual XV de Novembro, Mestre em Educação.


** Escola de Educação Básica do município de São Gabriel/RS, Especialista em Educação Interdisciplinar.
*** Instituto Estadual de Educação Menna Barreto, Pedagoga.
segurança do país, o regime e a probidade da administração pública, além de estabelecer as eleições
indiretas (PINHEIRO, 2015).
O primeiro Ato Institucional AI-1, elegeu como presidente o General Castelo Branco, mas
o mandato era provisório, com término em 31 de janeiro de 1966, quando novas eleições deveriam
acontecer. Neste sentido, podemos dizer que a população foi enganada com um discurso de
"governo pacificador", "garantidor da lei, da ordem" e transitório, pois o que ocorreu foi
perseguição aos opositores do novo regime (Folha de São Paulo, 2014).
Conforme Ribeiro (1995, p. 92), o testemunho dos professores tinha espaço de
manifestações limitado, extremamente controlado, para que não ocorressem possíveis
transformações, ou seja, desenvolviam domínio, para que os professores tivessem dificuldades de
organização política.
De acordo com Saviani (1999), em 10 de abril, a sede da União Nacional dos Estudantes
(UNE) foi incendiada por grupos paramilitares que apoiavam o regime, e em outubro foi aprovada
a Lei n. 4.464 (Lei Suplicy), de Carlos Lacerda, proibindo atividades políticas estudantis,
decretando o fim da União Nacional dos Estudantes (UNE), da União Brasileira dos Estudantes
Secundaristas (UBES) e da União Estadual dos Estudantes (UEEs), que passaram a atuar na
clandestinidade.
Nas eleições estaduais de 1965, o regime sofreu dura derrota em Estados importantes e
baixou o segundo Ato Institucional que estabelecia o bipartidarismo, sendo a Aliança Renovadora
Nacional (ARENA), partido do regime militar e o Movimento Democrático Brasileiro – MDB ─,
partido de oposição, que estabelecia eleições indiretas para governadores e prefeitos (CHAIM,
2014).
O Ato Institucional de número 5 (AI-5) foi decretado em 13 de dezembro de 1968
(BRASIL, 1968), ano de grandes contestações e ficou afamado como "o ano que não acabou". O
Congresso Nacional se recusou a quebrar a imunidade do deputado Márcio Moreira Alves e instalar
um processo criminal contra o político, que durante um discurso havia chamado os quartéis
militares de "covis de torturadores" e lançou um apelo para que o povo não participasse dos desfiles
militares do dia 7 de setembro e para que as moças, "ardentes de liberdade", se recusassem a sair
com oficiais. O discurso inflamado foi motivado pela comoção que causou a morte do estudante
Edson Luís, próximo ao restaurante Calabouço. Naquele momento, o Rio de Janeiro chegou a ter
manifestações com mais de 100 mil pessoas contrárias ao regime, conforme descrito pela Comissão
Nacional da Verdade.
Desta maneira, com esse ato, o Presidente da República decretou recesso do Congresso
Nacional, das Assembleias Legislativas e das Câmaras de Vereadores, que só voltariam a funcionar
quando o próprio Presidente convocasse. O AI-5 permitia intervenções nos estados e municípios,
suspensão dos direitos políticos de qualquer cidadão, além da garantia de habeas corpus nos casos
de crimes políticos. Durante a vigência do AI-5, fortaleceu-se a censura, que impôs duros cortes à
imprensa, à música, ao teatro e ao cinema (GUIA, 2014).
Diversos outros atos foram editados, mas o AI-5 consolidou um Estado de exceção durante
o regime militar, construindo um estado que possibilitou atrocidades. Atualmente, elas são de amplo
conhecimento da sociedade, e são retratadas em telenovelas e seriados, executadas à revelia da
justiça.
Foi nesse contexto que o governo militar entendeu que era necessário um maior controle
sobre o sistema educacional. Conseguinte, surgiu a Lei 5.540/1968, que instituiu normas de
organização e funcionamento do Ensino Superior chamada de Lei da Reforma Universitária. Esta
legislação, instaurada pelos militares, trouxe uma série de medidas que mudaram vários aspectos
das políticas educacionais, principalmente na formação de profissionais (BRASIL, 1968).
Na sequência, o governo militar criou a lei que estabeleceu o ensino de primeiro e segundo
grau, denominada pela Lei 5.692 de 1971, que fixou as Diretrizes e Bases para a Educação no
Brasil, e que, desta maneira, instituiu os Estudos Sociais e a historiografia tradicional foi valorizada
nas escolas brasileiras (BRASIL, 1971). Os estudos específicos da História foram destinados
somente ao segundo grau (FONSECA, 1993, p. 21-22), atualmente chamado de Ensino Médio.
Durante o período do regime militar, de acordo com Fonseca (1993, p. 25-26), o ensino de
História recebeu um verdadeiro corte que restringia as possibilidades de crítica ou questionamento
ao poder instituído, e em seu lugar foi imposto um ensino que valorizava a educação moral, o
civismo e a veneração aos vultos heroicos. O regime dispôs de diversos mecanismos e instrumentos
em que uma legislação autoritária estabeleceu várias mudanças à educação. Dentre elas, a criação
de licenciaturas intermediárias, onde o governo desvalorizou e proletarizou o profissional da
educação.
O ideário da educação, nesse período, baseava-se em um desenvolvimento econômico
mediante o controle da Segurança Nacional. O fato é explicado e fundamentado nos propósitos do
poder que agia no sentido de controlar e reprimir o pensamento crítico e as opiniões dos cidadãos,
de forma a eliminar toda e qualquer possibilidade de resistência ao regime (FONSECA, 2000, p.
25).
As reformas do ensino no período da ditadura militar foram balizadas por recomendações
de agências internacionais e relatórios vinculados aos Estados Unidos, como o Relatório Atcon e o
Relatório Meira Mattos do Ministério da Educação, que incorporavam compromissos da Carta de
Punta Del Leste (1961) e do Plano Decenal da Educação da Aliança para o Progresso
(BOSCHETTI, 2007).Eram os acordos do Ministério da Educação brasileiro (MEC) e a United
States Agency for International Development (USAID) que tinham nos intelectuais orgânicos do
regime, como o Instituto de Pesquisas e Estudos Sociais e o Instituto Brasileiro de Ação
Democrática, as bases de apoio para o regime (PINA, 2011).
A Lei 5.540, de 28 de novembro de 1968, e o Decreto-lei nº 464 tratavam de regulamentar a
reforma do Ensino Superior. Segundo Antunes, a reforma de 1968 trouxe grandes modificações que
estão presentes nos dias atuais na organização das instituições educacionais brasileiras.
Essa reforma foi responsável por trazer grandes avanços, mas também várias
consequências, pois diversos professores foram aposentados, compulsoriamente. Houve reitores
que foram demitidos, o controle policial foi estendido ao currículo e aos programas das disciplinas.
Também proporcionou grandes modificações que estão presentes atualmente na organização das
instituições educacionais brasileiras. (ANTUNES et al, 2011).
A reforma universitária apontou para a departamentalização da universidade, a extinção da
cátedra, a fragmentação do conhecimento e o incentivo à especialização (criação de muitos cursos)
por profissão, ou seja, dentro da formação inicial, a especialização restrita à determinada área
(SAVIANI, 1999, p. 83).
A reforma do ensino na Educação Básica e Universitária se deu com o aumento da demanda
e a crise do sistema educacional, instalada no período 1964 a 1968. O governo brasileiro obteve da
United States Agency for International Development (USAID), através dos programas de ajuda
uma proposta de reforma.Esta contém uma estratégia que é a do treinamento de pessoal, aumento
de recursos materiais e a reorganização do currículo, com vistas ao treinamento de mão de obra
para o desenvolvimento do mercado.
Em contrapartida, a ajuda internacional, enfatizou a educação de ensino superior,
favorecendo grupos sociais de classes altas, oportunizando o controle da educação por órgãos
centrais do governo, dicotomizando a autonomia das universidades, com hierarquização,
compartimento de ocupações e achatamento de níveis salariais (ROMANELLI, 1984, p. 204).
Neste sentido, Romanelli, (1984) afirma que a crise na educação foi resultado da aceleração
do ritmo de crescimento da demanda efetiva de educação, em função da implantação da indústria
de base, que criou uma quantidade de novos empregos e deteriorou mecanismos tradicionais de
ascensão da classe média. Vale salientar que a reforma serviu para atender à política e à economia,
no sentido de introduzir o Brasil na esfera de controle do capital internacional e para fazer a
chamada modernização dependente e conservadora.
Para legitimar esse trabalho, foram pensadas entrevistas com professoras que atuaram
naquele período em estudo. Até o momento foi realizada entrevista com professora aposentada e
que foi estudante no período de vigência da Lei de Reforma do Ensino Superior e Docente, durante
a década de 1970 e 1980.
Para a realização desta pesquisa, nos utilizamos da metodologia da História Oral com base
em definições e orientações de R. Santhiago e Valéria R. de Magalhães em que afirmam que a
memória é a estrutura central do trabalho com História Oral (2015, p. 45). Através da História Oral
é que podemos compreender múltiplas expressões de subjetividade localizadas em um tecido social
e, para isso, temos como método de trabalho a utilização do diálogo entre o entrevistador e o
entrevistado que segue uma organização e possui procedimentos. Na aplicação da metodologia de
História Oral a relação de igualdade e diferença tem como base o respeito que permite um
aprendizado para ambos os indivíduos envolvidos no processo de entrevistador e respondente.
A pesquisa de base bibliográfica e com estudo de campo através da utilização
da metodologia da História Oral tem a intenção de entrevistar através de um roteiro
semiestruturado. Após a gravação, passamos então à transcrição das respostas para uma
análise que se pretende qualitativa, conforme referencial teórico da pesquisa qualitativa em
educação (LÜDKE; ANDRÉ, 1986). De acordo com estas autoras (1986, p.11), a pesquisa
qualitativa supõe o contato direto e prolongado do pesquisador com o ambiente e a situação a
qual está sendo investigada.
A partir das orientações metodológicas deste referencial é que definimos o perfil de
nossas futuras respondentes. Estas entrevistadas deveriam ser professoras de História, de
Estudos Sociais e de Moral e Cívica em escolas na zona urbana da cidade de São Gabriel e que
foram colegas de trabalho do pesquisador. Esta pesquisa ainda está em fase de
desenvolvimento e este artigo é resultado de algumas reflexões que ainda estão na base de
coleta de dados. Desta maneira, foi entrevistada até o momento uma profissional relacionada à
área de Estudos Sociais que exerceu à docência em História no ensino Fundamental e que
destacou alguns detalhes desse momento histórico.
O roteiro de entrevista foi subdividido em três partes, para melhor andamento de
sua aplicação. Para compreender as entrevistas, fez-se uso da análise de conteúdo
proposta por Laurence Bardin (1978) com princípios metodológicos para o tratamento e a
análise dos dados e o método de pesquisa social recomendados por Minayo (2010), que
afirma que para melhor compreensão dos fatos há necessidade de aproximação com as
pessoas da área de estudo.
A ferramenta de coleta utilizada nesse estudo, dentro dos limites impostos,
permitiu entender, inicialmente, a problemática proposta por este artigo e que a seguir será
relatado.

O interesse da entrevistada “A” em cursar a faculdade foi a vontade de ter mais


conhecimentos e a busca por trabalhar naquilo que mais gostava, o magistério e o curso escolhido
foi o de Estudos Sociais.
Do testemunho desta professora, o que se tem a respeito do estudo no período é que era
muito rígido. Mas ela gostava assim mesmo e começou a trabalhar no final do período militar em
escola estadual. Para a entrevistada “A” estudar e trabalhar, neste período, era sinônimo de
organização, responsabilidade e pontualidade.

A entrevistada “A” informou que eram adotados livros didáticos e os professores


trabalhavam na sala de aula com os referidos materiais e muitos destes eram recebidos de editoras.
Tomando-se por base o depoimento da entrevistada “A,” o que se verifica é que não havia
uma participação efetiva no movimento estudantil. Em decorrência, teve participação, mas relativa
no movimento sindical e de associação de classe: “Entrevistada A: Participei apenas em reuniões
com o CPERGS. Havia naquele período muito controle, muita exigência nos vários setores da
vida.”
Segundo Ribeiro (1995, p.120), o que fica evidenciado é que, para alguns, a experiência
inicial de participação numa prática organizada acontece em consequência do movimento
estudantil, o que contribui para o desenvolvimento da formação política do professor.
No testemunho prestado fica evidente a falta de informações com relação ao período
político da época em que cursou a graduação; pouco conhecimento que reflete a precariedade da
formação de professores que exerceram a docência neste período de exceção.
Na entrevista relatou as exigências dos professores, das normas e do civismo. Destaca que
apesar de não haver o avanço da tecnologia atual, assim mesmo o aluno aprendia. Além disso,
afirmou que não escutava o noticiário pelo rádio; a prerrogativa era do pai. Tinha acesso às
informações pelos livros didáticos e pelo que emanava da Secretaria da Educação.
Foi observado que os contatos com os movimentos sociais se deram em curtos períodos de
reuniões com as lideranças do sindicato, nas assembleias e movimentos de greve.
Com relação à alienação e descontextualização política do período na formação do
professor de primeiro e segundo graus, Fonseca (2000)ao analisar o art. 5º da Lei 5.692/71 e as
mudanças ocorridas com base na Constituição de 1967 verifica:

Isto representa que a prioridade do ensino de 2º grau passa a ser a


formação específica capaz de capacitar mão-de-obra para o trabalho, em
detrimento de uma educação integral com ênfase na formação geral do
educando. Esta formação profissionalizante, de acordo com a lei, no
ensino de 2º grau deveria ser realizada pelas escolas, em cooperação com
as empresas e tendo em vista as necessidades do mercado de trabalho
local e regional. Esta medida torna compulsória a profissionalização
técnica em nível médio, praticamente eliminando dos currículos de 2º
grau a parte de formação geral, especialmente da área de Ciências
Humanas. (FONSECA, 2000, p. 21-22).

No entanto, a autora reúne informações acerca das resistências à implantação da


profissionalização em detrimento do caráter propedêutico. Mostra que tanto no campo como na
cidade as pessoas não concordavam com a proposta. Nem mesmo os empresários aceitaram as
mudanças (FONSECA, 2000). O que se vê é o “acesso ao saber restringido, uma vez que a formação
geral do educando foi preterida em função da concepção que vincula preparação para o trabalho
com formação específica” (FONSECA, 2000, p. 24).
A autora discute o objetivo do governo em negar a formação geral e retalhar as
humanidades. Trata-se dos “propósitos do poder; no ideal do Conselho de Segurança Nacional, que
agia no sentido de controlar e reprimir as opiniões e os pensamentos dos cidadãos, de forma a
eliminar toda e qualquer possibilidade de resistência ao regime autoritário” (FONSECA, 2000, p.
25).
Surgiu, com isso, a hierarquia entre as disciplinas, onde a área de linguagens (Língua
Portuguesa, Educação Física) e a área de exatas (Matemática, Física e Química) assumem o time
de 1º escalão, ocorrido pela questão dos cursos de Licenciatura Curta que eram autorizados através
do Decreto-lei nº 547, de 18 de abril de 1969, e que visava a habilitação acelerada de profissionais
de outras áreas que poderiam, mediante atualização didática, trabalhar como professor (Disposições
Gerais e Transitórias de LDB 4.024/61).
Para a autora, em estudo:

O mais preocupante, certamente, foi a descaracterização dos profissionais


que cursaram licenciatura curta, sendo um resultado da “dimensão
econômica da educação, encarada como investimento, geradora de
mercadoria (conhecimentos) e mão-de-obra para o mercado”. Ou seja,
um interesse meramente mercadológico que se espalhou nas instituições
de ensino superior do setor privado e que limitou os professores a atuarem
apenas no lº grau (FONSECA, 2000, p. 26-27).

Após 1982, acabou a predominância da formação específica, e a escola já teve condições


legais para reorganizar sua proposta pedagógica. O resgate das ciências humanas representadas pela
História, Geografia, Filosofia e Sociologia, continua sendo preterida e, com escassez de recursos
humanos, devido à desvalorização da licenciatura em humanidades, herança da reforma do ensino
do período militar.
Consideramos que a formação em nível de Licenciatura Curta e os recortes na formação
inicial ocasionadas pela Reforma do Ensino do período militar, aliado ao fato das condições de
trabalho oferecidas pelos órgãos governamentais são fatores que temos ainda hoje a influenciar na
forma de trabalho pedagógico praticado e na falta de pessoal com formação na área. Há ainda muito
que identificar para fazermos análise dos reflexos desta formação no currículo oferecido pelas
escolas na área de ciências humanas.
Consideramos isso não apenas pelo fato da depoente ter expressado de forma verbal e
claramente através de registro das respostas em um roteiro de entrevista oral, mas também pelo fato
de termos observado ao longo do tempo, enquanto aluno e após como colega de trabalho, o perfil
do profissional da educação, nas chamadas tendências políticas e pedagógicas do licenciado no
período em questão.
ANTUNES, Isa Cristina Barbosa; SILVA, Rafael Oliveira da; BANDEIRA, Tainá da
Silva. A Reforma Universitária de 1968 e as transformações nas instituições de ensino superior.
XIX Semana de Humanidades. Rio Grande do Norte: UFRN 2011.

BARDIN, Laurence. Análise de conteúdo. Lisboa: Edições 70, 1978.

BOSCHETTI, Vania Regina. Plano Atcon e Comissão Meira Mattos: Construção do Ideário
da Universidade do Pós-64. Revista HISTEDBR On-line, Campinas, n. 27, p. 221-229, 2007.

BRASIL Ato institucional nº 5, de 13 de dezembro de 1968. Disponível em:


<http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/ait/ait-05-68.htm> Acesso em :22 de set. de 2017.

BRASIL Decreto-Lei no 547, de 18 de abril de 1969. Dispõe de Autorização a organização


e o funcionamento de cursos profissionais superiores de curta duração. Diário Oficial da
União, Brasília, DF, 22 abril de 1969. Disponível em: <https://goo.gl/qXAFkK> Acesso em: 1
de out. de 2017.

BRASIL Presidência da República. Reforma universitária: relatório do grupo de trabalho


criado pelo decreto n. 62937/68. Brasília: Presidência da República, 1968.

BRASIL, Lei nº 4.464, de 9 de novembro de 1964. Dispõe sobre os Órgãos de Representação


dos Estudantes e dá outras providências. Revogado. Disponível em: <https://goo.gl/QjPNJe>
Acesso em 22 de set. de 2017.

BRASIL. Lei nº 5.692, de 11 de agosto de 1971. Fixa as Diretrizes e as Bases para o ensino de
1º e 2º graus, e dá outras providências. Diário Oficial da União, Brasília, DF, 18 ago. 1971.

CHAIM, Aníbal Renan Martinot. A bola e o chumbo: futebol e política nos anos de
chumbo da ditatura militar brasileira. 2014. 163f. Dissertação (Mestrado em Ciência e Política)
– Departamento de Ciência e Política da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências da
Universidade de São Paulo. São Paulo.

COMISSÃO Nacional da verdade - relatório - volume II - textos temáticos. [2014]. Disponível


em: <https://goo.gl/BGNkn2>. Acesso 22 de set. de 2017.

FAZENDA, Ivani (Org.). Novos enfoques da pesquisa educacional. São Paulo: Cortez, 1992.

FOLHA DE SÃO PAULO. Tudo sobre a Ditadura Militar. [2014]. Disponível em:
<https://goo.gl/4aJQ8P>Acesso em: 22 de set. de 2017.
FONSECA, Selva Guimarães. Caminhos da história ensinada. Campinas, SP: Papirus, 1993;
2000.

FREITAG, Bárbara. Escola, Estado e Sociedade. 4 ed., São Paulo: Moraes, 1980.

GUIA, Marx Paulo Vargas da. Memória e esquecimento na censura às publicações impressas
no período do AI-5. Rio de Janeiro [2014]. Disponível
em: <http://www.pantheon.ufrj.br/bitstream/11422/269/4/MPVGuia.pdf>Acesso em 22 de
set. de 2017.

LÜDKE, Menga; ANDRÈ, Marli. Pesquisa em Educação: abordagens qualitativas. São


Paulo: EPU, 1986.

MINAYO, Marília Cecilia Souza. (Org.). Pesquisa social: teoria, método e criatividade. 29.
ed. Petrópolis, RJ: Vozes, 2010.

PINA, Fabiana. O acordo MEC-USAID: ações e reações (1966–1968). 2011. 187f.


Dissertação (Mestrado em História) – Faculdade de Ciências Letras de Assis – UNESP -
Universidade Estadual Paulista. São Paulo.

RIBEIRO, Maria Luisa Santos. A formação política do professor de 1º e 2º graus. 4 ed.


Campinas, SP: Autores Associados, 1995.

ROMANELLI, Otaíza de Oliveira. História da Educação no Brasil (1930 -1973.) 5 ed.


Petrópolis: Vozes, 1984.

SANTHIAGO, Ricardo; MAGALHÃES, Valéria Barbosa de. História Oral na sala de aula.
Belo Horizonte: Autêntica, 2015.

SAVIANI, Dermeval. Escola e democracia. 32 ed., Campinas, São Paulo: Autores


Associados, 1999.

SODRÉ, Nelson Werneck. Era o golpe de 64 inevitável? In: TOLEDO, Caio Navarro. 1964:
visões críticas do golpe, democracia e reformas no populismo. São Paulo: Ed. da UNICAMP,
1997.
Eduardo Braga de Souza*

Ainda no interior da barriga da mãe, o feto já é capaz de estabelecer um contato com o


mundo exterior através de sua audição, ouvindo o som das vozes dos pais, dos familiares ou mesmo
de uma música. Os sons estimulam a dúvida e a curiosidade, já que a visão está limitada, dentro do
processo de busca de um entendimento da realidade. A imaginação auxilia no preenchimento das
lacunas colocadas pela limitação da visão, formando na mente desse ser, as primeiras impressões
sobre o mundo e as pessoas, com as quais terá que estabelecer uma comunicação se quiser
sobreviver ao longo da sua vida. A memória se desenvolve primeiro e prepara o terreno para a
formação da oralidade, em uma relação recíproca, na qual ambas se tornam ferramentas de grande
importância para o processo ensino-aprendizagem das regras de convivência social e na busca da
defesa de seus direitos, frente às arbitrariedades e à violência, impostas por grupos que se utilizam
da premissa do poder político, para impor ao outro, a dominação do seu espaço e de sua gente.
O trabalho com as fontes orais traz para o âmbito da sala de aula um amplo conhecimento
acerca da dura realidade dos educandos, fornecendo uma ampla análise social, cultural,
antropológica, política e econômica, que permite ao professor pesquisador, criar um ambiente
favorável à relação ensino-aprendizagem, aprimorando, assim, a abordagem de assuntos ou temas
de grande relevância para os jovens estudantes, e, mais do que isso, contribuir para a formação de
um cidadão crítico, preocupado em transformar o espaço onde vive, a partir da valorização da sua
cultura e dos valores que moldaram a maneira como esse se relaciona com os demais membros de
seu grupo social.

No Brasil, o maior exemplo que temos de resistência e luta é o dos povos originários, que,
mesmo, destituídos do direito à terra – a sua maior riqueza, vem demonstrando que através da
valorização da cultura, conseguem bravamente sobreviver e manter o modo de vida tradicional com
os seus costumes, valores, religião, organização política, econômica e, principalmente, social.
Chamados genericamente de índios, provam, de maneira contundente, que não são um grupo
homogêneo, e, sim, formam uma grande população, marcada profundamente pela multiplicidade
cultural de Norte ao Sul, de Leste ao Oeste do país; isso sem falar do Continente Americano como
um todo. A cultura dos povos originários não se encerra nela mesma, e, tampouco, se configura

* FAPA, Graduado em História.


como uma tradição rígida, a exemplo do que muitos povos fazem, com vistas a manter o grupo
fechado, restringindo o acesso aos “de fora”. Antes, procuram adaptar a sua cultura ao contexto no
qual vivem, aprendendo, dialogando, trocando saberes e fazendo com que a cultura diferente seja
integrada à sua, como uma forma de inclusão, termo que há pouco tempo vem entrando no
vocabulário dos profissionais em educação, sob a forma de políticas públicas que buscam criar um
ambiente nas escolas, favorável à compreensão das diferenças sociais, comportamentais e culturais.
Diversidade e inclusão são palavras que há muito estão presentes no vocabulário dos povos
originários, o que nos faz pensar sobre a necessidade de abrir a educação e a nossa visão pedagógica
para os saberes que esses povos, há muito vem tentando nos ensinar.
A sensibilidade de Paulo Freire nos traz essa reflexão acerca de uma possível troca de
saberes com os povos originários, em uma de suas últimas obras, intitulada Pedagogia da
Tolerância. Nela preocupa-se com a política educacional voltada aos povos indígenas, alertando
sobre a riqueza dessa cultura, dentro de um contexto de desrespeito e violência, no que tange à
questão da terra no país. Freire critica ferrenhamente as ideias que estão por trás das palavras
“conservação” e “tolerância”, pois, considera que elas estão a serviço de uma política de
apaziguamento da luta social pela terra, levada a cabo por grupos presentes nos centros de poder,
que através de suas bancadas ruralistas, ligadas ao latifúndio e ao agronegócio, acabam por
fomentar o extermínio das populações que há muito vivem no Brasil.
A luta empunhada pelos grupos sociais, historicamente excluídos, como é o caso dos povos
originários brasileiros e do MST (Movimento dos Sem-Terra) espalhados por todo o Brasil, tem
como apoiadora a CPT (Comissão Pastoral da Terra), com a qual Freire esteve lado a lado na luta
por uma educação emancipatória voltada aos trabalhadores, durante grande parte de sua vida.
O que ele nos mostra, nessa obra, é que, a nossa cultura tem muito a aprender com os povos
originários, pois, de acordo com suas ideias, – “imersas” em uma “pedagogia transformadora” – é
importante respeitar e não tolerar, de como valorizar e não conservar as culturas diferentes, e sim,
colocar dentro de um constante movimento dialético de aprendizagem, de aplicação e reflexão, os
elementos fundamentais para um bom convívio em sociedade. Para isso, o autor nos informa que
“a cultura indígena é quase totalmente oral. No resto do Brasil, nas áreas rurais, é
preponderantemente oral. O uso de estórias é absolutamente pedagógico. É um caminho de
pedagogia e de política” (FREIRE, 1995, p. 52).
O estudo das questões étnicorraciais vem nos mostrando diferentes formas de linguagens
utilizadas como comunicação por grupos distintos da cultura branca e ocidental.
Há uma tentativa de estabelecer, ideologicamente, um certo “fonocentrismo” por algumas
sociedades ocidentais, que exalta a linguagem escrita, em detrimento da linguagem oral. Em
verdade, não existe nenhuma contradição nessa relação, e é importante, considerar ambas as formas
de expressão, como fundamentais na produção do conhecimento, dentro de uma “relação entre a
literatura formal e as formas coletivas de criação, típicas do folclore e da chamada literatura oral”
(GIRAUDO, 1997, p. 28-29).
Não deve existir uma divisão entre oralidade e escrita, ou subordinação de uma sobre a
outra, como a historiografia tradicional vem tentando há muito passar para os educandos, e, sim,
um trabalho conjunto entre todas as formas de linguagem que temos disponível, valorizando a
expressão dos grupos étnicorraciais, formadores de nossa sociedade
De forma didática, a história da humanidade nos é apresentada na escola, dividida
entre pré-história e história, dentre as quais, o marco divisor é a invenção da escrita, o que
leva o educando a interiorizar a ideia de que as sociedades tribais “pararam no tempo”,
fazendo prevalecer a ideia errônea de um “fonocentrismo eurocêntrico e etnocêntrico”,
onde os povos que dominam a linguagem escrita são superiores, e os que não dominam,
como os povos de tradição oral, são inferiores e atrasados.

Uma questão que tangenciou a produção do trabalho com as fontes orais em sala de aula foi
a de como desenvolver nas alunas e alunos, a consciência de que a história, – como gosto de
enfatizar em sala de aula – não são apenas fatos, acontecimentos, processos e eventos isolados em
um livro, sem nenhuma relação com o sujeito que lê ou influencia o processo histórico. Ou então,
que a história se trata apenas de lembrar os feitos grandiosos de generais e presidentes em grandes
guerras, na produção de grandes monumentos, templos e palácios, ou seja, uma história que
contempla apenas a superestrutura política, retirando do contexto, os grupos sociais e as minorias
que tiveram papéis de grande relevância para as transformações ocorridas ao longo do tempo
histórico, mas que mesmo na base das “pirâmides sociais”, transformaram a história e tiveram
grande relevância nos contextos em que atuaram.
O problema colocado aqui é: Como chamar a atenção dos jovens para o fato de que eles
também fazem parte da história e são agentes partícipes e capazes de transformar a sua própria
realidade, através da organização política e social?
O poema de Brecht coloca a questão em forma de poema, no famoso “Perguntas de um
trabalhador que lê”. Assim Brecht nos instiga a pensar:

Quem construiu Tebas de sete portas?


Nos livros estão os nomes dos reis.
Foram os reis que arrastaram os blocos de pedra?
E as várias vezes destruída Babilônia —
Quem é que tantas vezes a reconstruiu?
Em que casas da Lima fulgente de oiro moraram os construtores?
Para onde foram os pedreiros na noite em que ficou pronta a Muralha da China?
A grande Roma está cheia de arcos de triunfo. Quem os levantou?
Sobre quem triunfaram os césares?
Tinha a tão cantada Bizâncio
Só palácios para os seus habitantes?
Mesmo na lendária Atlântida
Na noite em que o mar a engoliu bramavam os afogados pelos seus escravos.
O jovem Alexandre conquistou a Índia.
Ele sozinho?
César bateu os Gálios.
Não teria consigo um cozinheiro ao menos?
Filipe da Espanha chorou, quando a armada se afundou.
Não chorou mais ninguém?
Frederico II venceu na Guerra dos Sete Anos.
Quem venceu além dele?
Cada página uma vitória.
Quem cozinhou o banquete da vitória?
Cada dez anos um Grande Homem.
Quem pagou as despesas?
Tantos relatos
Tantas perguntas.

São tantas perguntas, que nos levam a refletir sobre o nosso papel enquanto agentes
partícipes do processo histórico, e, mais do que isso, suscitam a reivindicação de um protagonismo
há muito perdido, e dentro do contexto atual, se apresenta deturpado, devido ao racismo, à
xenofobia, à desigualdade socioeconômica, e a todas as mazelas sociais que destroem o projeto de
humanidade.
Assim, é preciso dar voz às “culturas negadas e silenciadas nos currículos” como o professor
espanhol Jurjo Torres Santomé aponta em seu texto, através de uma crítica ferrenha ao modelo
tradicional de educação. Santomé explica que:

Uma educação libertadora exige que se leve a sério os pontos fortes, experiências,
estratégias e valores dos membros dos grupos oprimidos. Implica também ajudá-los a
analisar e compreender as estruturas sociais que os oprimem para elaborar estratégias e
linhas de atuação com probabilidades de êxito (SANTOMÉ, 1997, p. 171).

Os professores devem propor mudanças radicais nos currículos escolares ainda dominados
pelo eurocentrismo, evitando os erros cometidos por historiadores do passado que defenderam a
valorização de uma história política europeia e branca, em detrimento das sociedades tribais ou dos
Estados teocráticos constituídos em regiões da África, da América, da Ásia e da Oceania, que
sofreram com a violência física e ideológica, empregada pelo colonialismo dos séculos XV a XIX.
Tal processo legou às populações negra e indígena, um estigma de inferioridade, profundamente
marcado pelas diferenças culturais, vistas pelos europeus como uma justificativa para impor, através
da força, um regime de segregação racial, separando as sociedades em raças inferiores e raças
superiores, na qual o branco estava no topo da evolução.
O trabalho docente passa pela conscientização dos educandos, acerca da realidade na qual
vivemos, que é contraditória e que, por essa razão, suscita o desenvolvimento do pensamento
crítico, voltado a criar estratégias de sobrevivência, em um mundo cada vez mais dominado pelo
racismo, pelo preconceito, pela discriminação e por todas as formas de exclusão social.
No tempo atual, ainda é possível notar nas salas de aula, os elementos que nos levam a
constatar a presença do pensamento oriundo do colonialismo na mente dos educandos, como o
costume de negar, quando lhe é perguntado sobre sua crença, ou sobre a sua identidade étnica.
Geralmente os alunos se dizem católicos ou evangélicos, mesmo que sejam de uma religião de
matriz africana, como o candomblé, umbanda, entre outras, evitando, assim, não se diferenciar dos
outros, como se estivesse dominado por uma ideologia que o impede de se autoafirmar.
Partindo dessa reflexão, iniciei o trabalho de resgate da memória através da metodologia da
História Oral, visando o trabalho com as fontes orais, pelo qual os educandos realizaram entrevistas
com os familiares, procurando mapear, desde a origem da família, os lugares onde viveram, suas
experiências ao longo da trajetória de suas vidas, até o local onde vivem hoje. Para a entrevista foi
proposta a elaboração de um roteiro de entrevista, onde poderia constar as seguintes perguntas:

 Sua família é originária de outra cidade fora da capital? Qual cidade?


 Como era a vida na outra cidade?
 Como eram as brincadeiras infantis?
 Como era o bairro no tempo dos seus pais, avós e tios?
 Que transformações no bairro onde vive, você notou?
 Existem praças, postos de saúde e saneamento básico no bairro onde moram?

Essas, entre outras perguntas, aos poucos foram aparecendo nos roteiros de entrevistas, que
depois se transformaram num relato em forma de textos, nos quais, os alunos expressaram de forma
mais livre esse exercício de recordação do passado, de valorização da sua identidade sociocultural,
da noção de pertencimento ao lugar onde vivem, da construção e reconstrução da história de vida.
As respostas encontradas para a pergunta inicial aos poucos foram preenchendo as lacunas vazias
de conhecimento, se mostrando como importantes “pontos de partida” para a reflexão acerca do
melhor caminho a trilhar em busca de uma metodologia que melhor contemplasse o trabalho dos
alunos dentro de uma dimensão prática, e, também, que os fizessem “se encontrar com a sua
comunidade”, na posição de agentes críticos, percebendo as mudanças e permanências e as
contradições decorrentes dessa relação no espaço por onde circulam. Portanto, a intenção era a de
que eles se vissem como protagonistas de sua história, atuando e operando transformações em sua
realidade através da organização política, social e, inclusive, econômica, no que diz respeito à busca
de formas alternativas ao trabalho formal (com carteira assinada) para garantir o seu sustento, diante
do quadro de crise que o Brasil atravessa nesse ínterim.
O histórico de vida dos educandos tem aparecido frequentemente em pesquisas sobre
educação e se tornou preocupação entre pedagogos e especialistas, entrando para o corpo de textos
jurídicos como a LDB (Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional no Brasil), aprovada no
ano de 1996, ou seja, apenas dez anos após o fim da Ditadura Civil-Militar (1964-1986). Como
bem se sabe, ela impôs um viés extremamente autoritário, influenciando significativamente na
forma como a educação pública foi gerida, nesse período, tendo como base, a formação de mão de
obra disciplinada e “qualificada” (saber ler, escrever e realizar alguns cálculos) para o grande
capital. Em outras palavras, podemos dizer que a preocupação com o tema é recente, tendo em vista
o ano que a lei entrou em vigor no país, e que, ainda, vem sofrendo com um forte revés, por parte
de setores conservadores e liberais, seja no âmbito do estado, seja na sociedade civil.
No artigo 12, inciso VI da LDB, podemos verificar que o “ensino” terá “a incumbência de
articular-se com as famílias e a comunidade, criando processos de integração da sociedade com a
escola” (LDB, 1996). Como se pode notar, é evidente o caráter humanista que os visionários de
1996 atribuíram à legislação, tendo em vista a necessidade de superar o tecnicismo e a tecnocracia,
deixadas como herança dos “anos de chumbo” do regime ditatorial, que minou as bases
progressistas da vida política do país, e, consequentemente, do diálogo, da liberdade de expressão
e de pensamento, esvaziando o sentido de uma educação contextualizada e significativa para o
educando, voltada para os valores humanos e o exercício da cidadania.
Ao realizar a pesquisa sobre as origens de suas famílias, os educandos estabeleciam, de
forma intrínseca, uma relação com o lugar ao qual pertencem, como pude notar nos relatos que
descreviam detalhes do bairro, como ele é, o que acontece por lá, os locais por onde andam.
Era preciso nesse momento lançar mão de uma pedagogia que despertasse o educando para
a transformação, de uma condição passiva e de reprodução para uma condição ativa, crítica e de
protagonismo, na qual a criatividade fosse a base, já que as entrevistas, os textos, a apresentação e
os objetos de valor sentimental e histórico que deveriam trazer, seriam reunidos em uma aula, a fim
de organizar a “Exposição Histórias de Família”, voltada à visitação dos educandos de outras
turmas, dos professores, funcionários, pais e comunidade em geral.
O que pode ser avaliado nesse trabalho é a habilidade de expressar de forma oral as questões
que envolvem o cotidiano, no momento da apresentação das informações coletadas nas entrevistas,
ou da exposição das características dos objetos, pois, assim, os demais colegas de sala de aula
poderiam perceber semelhanças e diferenças entre as suas histórias.
A oralidade é uma característica própria do ser humano, que é iniciada no momento da
emissão das primeiras palavras, e se consolida, na fase escolar, quando se socializa com outros de
sua espécie. É o momento no qual a oralidade se transforma em confusão de ideias, que quando
bem explorada, pode se tornar uma aliada na difícil tarefa de ensinar pressupostos teóricos
conceituais importantes para o estudo da História, como memória, tempo, fato, mudanças e
permanências.
Tanto do ponto de vista do conteúdo, como da metodologia, a oralidade esteve presente no
processo criativo do trabalho, pois, essa habilidade é uma constante na sala de aula, principalmente
quando se trata de turmas de 6º ano do Ensino Fundamental, com 32 alunos dotados de desejos,
anseios, preocupações e personalidades diferentes. A agitação, típica das turmas desta faixa etária,
entre 11 e 14 anos, causa frisson nos professores que ainda veem a educação pública como uma
ferramenta de controle social e a reprodução dos conteúdos em sala de aula como a única forma
possível de viabilizar o processo ensino-aprendizagem. Existe uma contradição aí, pois, não é
possível que haja aprendizagem copiando e reproduzindo uma determinada informação
descontextualizada, compartimentada e que não faz o menor sentido para a vida do educando.
Assim, o que se espera dos educandos, com o trabalho sobre as histórias de família, do ponto de
vista da metodologia, é o desenvolvimento da sua capacidade de leitura de mundo, percebendo as
mudanças e permanências como elementos fundamentais dentro do estudo da História, bem como,
compreender que as experiências pelas quais os seres humanos passam através do tempo, embora
pareçam individuais, também podem ser coletivas, formando, assim, a memória individual e a
memória coletiva. Entre muitos grupos étnicos, espalhados ao redor do mundo, a memória coletiva
guarda a cosmovisão, que procura explicar a origem do universo, através de histórias fantásticas,
repletas de seres imaginários, antropomórficos e animais que se comunicam com os seres humanos,
lhes dando vida e auxiliando em tarefas.
Já a memória individual guarda os hábitos, costumes e regras de conduta que os ensinam a
como viver melhor na comunidade em que o indivíduo está inserido. Mas, é evidente que tanto a
memória individual como a memória coletiva se completam, de modo que fica difícil separar uma
da outra. As atividades com História Oral provam isso e nos ajudam a revelar o modo de vida dos
sujeitos históricos em sua individualidade, e, também, na relação com os outros que fazem parte da
comunidade onde vivem. Como se pode notar

A história oral, ao ser utilizada em pesquisas com memórias, permite observar


determinados aspectos de períodos e acontecimentos históricos nem sempre perceptíveis
por meio de outras fontes, como textos ou imagens. Ao fazer uso da memória como
ferramenta de trabalho em sala de aula, esperamos que o saber escolar se torne algo
dinâmico que valorize a tradição oral, a preservação da memória e a experiência humana.
É, nesse sentido, que a memória possibilita conexões entre a história individual e a história
coletiva, permitindo, por exemplo, reflexões sobre o tempo histórico e a relação entre a
micro e a macro-história. (OLIVEIRA; ALMEIDA; FONSECA, 2012, p. 78).

Os alunos tiveram que elaborar um roteiro de entrevista, com perguntas sobre as origens de
sua família, em um exercício ativo de estudo e pesquisa sobre o passado, por meio da memória,
uma vez que a entrevista seria realizada com os parentes mais velhos de forma oral.
Nas histórias estavam presentes elementos específicos de sua cultura, como, por exemplo,
o caso de uma menina, cuja cor da sua pele, não a impedia de descrever com muito orgulho sua
ancestralidade negra e indígena, o que provavelmente lhe foi ensinado desde a mais tenra idade,
dentro de uma linha de pensamento voltada à valorização da identidade étnica a qual pertence.
Em muitos relatos, era possível perceber os hábitos e costumes, assim como, os valores
familiares que determinavam a forma como eles lidam com o meio social no qual estão inseridos,
como o relato de uma menina que nasceu no Uruguai, porque a família se mudou para o país, na
época da Ditadura Militar, para fugir da perseguição política sofrida no Brasil. Esse exemplo,
permite pensar sobre as possibilidades de encontros e desencontros entre a micro-história e a macro-
história, o que torna os estudos históricos mais dinâmicos, em vista da dificuldade de relacionar
acontecimentos e fatos históricos em espaços diferentes, dentro de uma política educacional que
impõe aos currículos escolares uma forma fragmentada de trabalho, fazendo das aulas de história,
momentos de contemplação do passado e de análise superficial
Muitos outros exemplos trouxeram à tona reflexões acerca dos fenômenos sociais, das
“experiências humanas” e dos tipos de famílias, sejam elas extensas ou nucleares, por exemplo,
permitindo, assim, uma melhor compreensão dos fatos, tal como eles se apresentam com suas
especificidades.
Um aspecto importante que se tentou buscar no trabalho, foi a valorização das fontes
históricas, bem como a memória e a oralidade, contribuindo de forma significativa para o
conhecimento histórico, uma vez que o educando vê a sua história sendo contada em sala de aula,
onde ele passa a ser protagonista, e não apenas um espectador.
Para Brodbeck “Além do conhecimento obtido através desse trabalho de resgate da
memória e do conceito de interpretação dos fatos, o professor pode comentar sobre a importância
das vivências em família e de como elas podem variar no tempo e entre os grupos humanos,
auxiliando.” (BRODBECK, 2012, p. 50).
Em meio aos textos escritos pelos educandos foi possível notar que as realidades relatadas,
ora se aproximavam, ora se distanciavam, trazendo à tona os problemas sociais comuns aos
indivíduos, sejam eles membros da família ou pessoas do seu convívio, da rua, do bairro e da escola.
Como proposto pelo professor, os alunos fizeram as entrevistas com os seus parentes,
procurando identificar as origens de suas famílias. Se vieram de outra cidade ou de outro bairro.
Como foi a sua infância? Que brincadeiras existiam? Essas, entre outras questões, aos poucos,
revelavam a identidade sociocultural, forjada de acordo com os seus valores familiares, o que
acabava por determinar a forma como cada grupo se colocava em cada situação, no tempo e no
espaço, permitindo a compreensão das transformações pelas quais o bairro passou, se foram boas
ou ruins, se influenciaram positiva ou negativamente na sua vivência em sociedade.
As questões relacionadas aos espaços de convivência com o outro, de lazer, o acesso a
tratamento de saúde como os postos médicos, o saneamento básico foram outras questões trazidas.
As mudanças ou/e permanências ocorridas ao longo dos anos, demonstram se é possível dizer que
existe progresso em nossa sociedade, como pressupõe algumas visões de mundo, como aquelas
ligadas à ideia que concebe o espaço urbano como uma área que tem esse objetivo, em detrimento
das áreas rurais, colocadas atrasadas, onde vivem pessoas rústicas.
Os alunos trouxeram objetos que continham valor sentimental e histórico, para “dar corpo”
à “Exposição História de Família”. Nos objetos também estava um pouco da identidade de cada
grupo familiar, pois, traziam as lembranças de um tempo que, embora não possa voltar mais, ainda
estava presente como uma força vital, capaz de ligar as gerações através de uma simbologia,
estabelecendo um diálogo entre passado e presente.
Outras atividades interessantes para trabalhar a memória individual e afetiva dos educandos
através da História Oral, é a “Linha do Tempo” e a produção de uma “Árvore Genealógica,” onde
o professor pode propor preencher com fatos que marcaram a sua história de vida, visando
completar os estudos históricos acerca das origens, características ou tipos de famílias.
Figura 1 – Educandos mostram seus trabalhos

Fonte: acervo do autor.

Figura 2 – Professor e educandos pousam para a foto durante a “Exposição Histórias de Família”

Fonte: acervo do autor.


Figura 3 – Alunas e alunos digitando seus textos na Sala de Recursos Digitais

Fonte: acervo do autor.

Figura 4 – Alunas e alunos digitando seus textos na Sala de Recursos Digitais

Fonte: acervo do autor.


Figura 5 e 6 – Os educandos organizando a exposição dos documentos

Fonte: acervo do autor.

Figura 7 e 8 – Alunas e alunos expõem os textos com as histórias de família, as fotografias e os objetos com
valor histórico e sentimental

Fonte: acervo do autor.


Figura 9 – Detalhe dos documentos que fizeram parte da “Exposição Histórias de Família”

Fonte: acervo do autor.

Figura 10 – Detalhe dos documentos que fizeram parte da “Exposição Histórias de Família”

Fonte: acervo do autor.

A história está repleta de exemplos “feios”. Mas, existe sempre aqueles que não se
contentam, e bravamente, resistem à dominação, buscando formas de dar sentido para a existência,
através da valorização da sua cultura, geração após geração, contando e recontando as suas histórias,
utilizando a literatura, seja ela oral ou escrita, como motivação, escrevendo no papel ou no coração,
as palavras que coordenam a ação em um discurso uníssono de união.
Pretendi mostrar para os educandos, que podemos transformar a nossa sociedade através do
conhecimento histórico, estudando, compreendendo e refletindo sobre os exemplos das gerações
que nos antecederam, evitando os erros e valorizando as experiências fortuitas, dignas de serem
lembradas pela sua importância para o fomento de uma cultura de paz e de solidariedade mútua.
Os exemplos das sociedades tribais, seja a dos indígenas americanos, seja a dos grupos
originários do continente africano, trazem a necessidade de barrar o avanço do sistema capitalista e
dos entraves impostos por ele, como o consumismo desenfreado, no nível material, e o
individualismo, no nível ideológico, que se assenta sobre os pilares da meritocracia.
A sua resistência, apoiada na luta pela terra e na valorização da sua cultura, pressupõe a
construção de uma nova sociedade possível, como um caminho para a participação cidadã, a
valorização da pluralidade das ideias políticas, da liberdade de expressão, do direito à memória, da
diversidade, e, acima de tudo, do respeito às diferenças culturais e do respeito entre todos os grupos
sociais e históricos que fazem parte da humanidade.

BRASIL. Ministério de Educação e Cultura. LDB-Lei nº 9394 de 20 de dezembro de 1996.


Estabelece as diretrizes e bases da Educação Nacional. Brasília: MEC, 1996. Disponível em:
<http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/L9394.htm>. Acesso em: 16/06/2017.

BRECHT B. Perguntas de um Trabalhador que Le. Disponível em: <https://goo.gl/ZQd6gY>


Acesso em 10/07/2017.

BRODBECK, M. S. L. Vivenciando a História-Metodologia de Ensino da História: anos finais


do Ensino Fundamental Regular. Curitiba: Base Editorial, 2012, p. 69-163.

FREIRE, P. Pedagogia da tolerância. São Paulo: Paz e Terra, 1997, p. 28-112.

GIRAUDO, J. E. F. Poética da memória: uma leitura de Toni Morrison. Porto Alegre: Ed. da
UFRGS, 1997.

OLIVEIRA, R. S; ALMEIDA, V. L; FONSECA, V. A. Memória e História Oral. In: CANO, M.


R. O. (Org.) A reflexão e a prática no ensino de História, São Paulo: Blucher, 2012, p. 77-88.

SANTOMÉ, J. T. As culturas negadas e silenciadas no currículo. In: SILVA, T.T. (Org.),


Alienígenas na Sala de Aula, Petrópolis, Rio de Janeiro: Vozes, 1995, p. 159-177.
Vania Inês Avila Priamo

O Museu Histórico de Nova Hartz é um pequeno museu local, inaugurado no dia 03 de


dezembro de 1999 e localizado no município de Nova Hartz/RS. O município faz parte da região
metropolitana de Porto Alegre, bem como da região de colonização alemã do Rio Grande do Sul.
Os primeiros imigrantes começaram a chegar mais ou menos a partir de 1847, fundando a então
Picada Hartz. Emancipado politicamente em 1987, conta hoje com uma população de,
aproximadamente, 20 mil habitantes, e sua economia está alicerçada na indústria calçadista.
Por sua vez, os museus, que, no passado, foram espaços destinados a colecionar o exótico
e que, por vezes, são considerados pela comunidade como “lugar de coisas velhas”, depósitos,
foram, ao longo do tempo, tendo a compreensão sobre si alargada. Nesse sentido, são percebidos
hoje como lugares “para realizar a seleção, o estudo e a apresentação de testemunhos materiais e
imateriais do homem e do seu meio” (DESVALLÉES; MAIRESSE, 2013, p. 64) ou, conforme a
definição do ICOM Portugal [2007]:

uma instituição permanente, sem fins lucrativos, a serviço da sociedade e do


seu desenvolvimento, aberta ao público, que adquire, conserva, estuda, expõe e
transmite o patrimônio material e imaterial da humanidade e do seu meio, com
fins de estudo, educação e deleite.

Em vista disso, e coerente com uma proposta de ação mais atualizada, ao mesmo tempo em
que o Museu Histórico de Nova Hartz trabalha com funções que são naturalmente suas — como a
guarda, o registro, a conservação, a proteção, a pesquisa, a exposição, a divulgação do seu acervo
—, ele também desenvolve um trabalho extramuros de inventário, proteção, tombamento, pesquisa
e divulgação do patrimônio cultural do município. Em outras palavras, está voltado para o trabalho
no qual “Homem e seu meio” estejam no centro de sua atenção, estando a “serviço da sociedade e
seu meio”. No caso de Nova Hartz, Museu e patrimônio caminham de mãos dadas, e as ações são
pensadas de modo amplo a abrangente, entendendo museus e patrimônio como campos distintos
que se completam e se complementam. Foi a partir da sua instalação que entraram em pauta, de
forma mais efetiva, discussão, debate e conversas com relação ao patrimônio cultural em Nova
Hartz, de modo que o Museu passou a ser referência na cidade com relação a essa temática.

* Diretora do Museu Histórico de Nova Hartz. Graduada em História/UNISINOS; Especialista em


Patrimônio Cultural em Centros Urbanos/UFRGS e Mestre em História/UNISINOS.
Nessa perspectiva, de acordo com Mario Chagas (s. d, p. 3), as relações entre museus e
patrimônio, assim como a preocupação e envolvimento dos museus com o patrimônio cultural,
existem desde antes de haver uma legislação voltada para a preservação do patrimônio. Por seu
turno, o Museu Histórico de Nova Hartz faz parte do conjunto de museus que trabalha, de forma
concomitante, museus e patrimônio cultural tangível e intangível, tornando-se parte do processo de
construção do sentimento de pertença e de identidade das comunidades em que estão inseridos.
Temos, no Museu Histórico de Nova Hartz, uma tradição com relação às visitações dos
adultos: aqui, os pais e avós vêm pelas mãos dos filhos e netos. Isso se dá em função das ações
desenvolvidas junto às escolas, o que nos impulsiona a implementar sempre mais projetos voltados
para a Educação Patrimonial e para a participação da comunidade. Com efeito, a certeza de que o
trabalho com os alunos chegará até a família e aos círculos de convivência mais próximos deles nos
estimula e nos incentiva.
Nesse caminho, antes mesmo de ser inaugurado, o Museu já havia começado a formar o
seu banco de fontes orais. As primeiras ações realizadas, enquanto se planejava e se trabalhava para
constituir o acervo, foram justamente procurar pessoas idosas e fazer o registro de suas memórias,
de suas lembranças. No início, lançou-se mão de entrevistas abertas, e hoje são realizadas
entrevistas mais direcionadas aos temas das pesquisas realizadas pelo Museu. Sabe-se que as
memórias são socialmente construídas (POLLAK, 1992), são seletivas, de maneira que nem tudo
fica retido, havendo uma seleção (consciente e/ou não) do que é lembrado e do que é esquecido —
e, consequentemente, as fontes orais também assim o são. No entanto, essa seleção do que se opta
por registrar a partir de um dado momento, de uma determinada situação, do que fica e do que não
fica, essa escolha do que é guardado para a posteridade, não acontece também com as fontes
documentais tradicionais? As palavras de POLLAK (1992, p. 207) é que nos dão respaldo, pois:

Se a memória é socialmente construída, é obvio que toda documentação também o é. [...]


A crítica da fonte, tal como todo historiador aprende a fazer, deve, a meu ver, ser aplicada
a fontes de tudo quanto é tipo. [...] Nem a fonte escrita pode ser tomada tal e qual ela se
apresenta.

Sendo assim, num trabalho de reflexão sobre as fontes, da mesma forma, com o mesmo
respeito, com a mesma criticidade e com o mesmo cuidado com que usamos as demais fontes
documentais, utilizamo-nos do banco de fontes orais para conhecer, ampliar o conhecimento sobre
a história da cidade, para trabalhar o patrimônio cultural, sobremaneira o imaterial, subsidiar as
exposições temporárias e para realizar o projeto de Educação Patrimonial “Você é feito de
histórias”, que é tema do presente artigo. Assim sendo,

A participação da comunidade com suas memórias, seus saberes, seus referenciais


culturais caminham junto com a construção dos saberes ditos científicos, com as pesquisas
acadêmicas, com uma metodologia de trabalho mais tradicional, baseada em
documentação escrita (PRIAMO, 2016, p. 427).

De fato, o projeto de Educação Patrimonial vinha sendo trabalhado com muito afinco pela
equipe do Museu, por entender que ele gera, por intermédio da construção do conhecimento,
sentimento de identidade e de pertença. Também faz com que relações de afetividade se
desenvolvam e que isso resulte em maior participação e interesse da comunidade para com seu
patrimônio material e imaterial, bem como maior compreensão sobre o assunto. Nesse sentido, nas
palavras de Simão (2001, p. 45), “se o entendimento sobre as razões para a preservação de
referências do passado forem realmente compartilhados com todos os envolvidos, certamente o
comprometimento com a tarefa de preservar será significativamente maior.”
Iniciado em 2007, o projeto, primeiramente, teve como público-alvo os professores
das redes estadual e municipal de ensino,1 para que estes conhecessem o patrimônio cultural e
natural local, e assim tivessem condições de trabalhar com seus alunos a temática em sala de
aula. Após essa primeira experiência, no ano seguinte, começamos a desenvolver o projeto
com os alunos da 3ª série, hoje 4º ano, uma vez que é nessa etapa do Ensino Fundamental que
os alunos estudam o município. Não obstante, o limite quanto ao número de alunos envolvidos
vinha se dando em função do quadro de pessoal do Museu, sempre reduzido, o que
impossibilita que o projeto seja aplicado nas demais séries. Aliás, é o quadro de funcionários
do Museu que acaba por se tornar o definidor da execução do projeto. Para exemplificar isso,
pode-se citar o fato de que o projeto aconteceu nos anos de 2008 e 2009, porém teve de ser
interrompido de 2010 a 2012, voltando a ocorrer de 2013 a 2016. No corrente ano, o Museu
possui apenas uma funcionária, e por isso o projeto novamente deixou de acontecer.
Em linhas gerais, o que seria Educação Patrimonial? Entendemos que esta seja um processo
de construção de conhecimento, usando-se como tema de pesquisa o patrimônio cultural,
diferenciando-se das ações educativas por ser esta mais pontual, enquanto aquela se mostra mais
ampla e mais profunda. A esse respeito, a Coordenação de Educação Patrimonial do
IPHAN (2011) escreve que:
Toda vez que as pessoas se reúnem para construir e dividir novos conhecimentos,
investigam pra conhecer melhor, entender e transformar a realidade que nos cerca, estamos
falando de uma ação educativa. Quando fazemos tudo isso levando em conta alguma coisa
que tenha relação com nosso patrimônio cultural, então estamos falando de Educação
Patrimonial!

Dessa forma, o referido projeto busca construir conhecimento, tendo como foco da pesquisa
o patrimônio cultural tangível e intangível, com o objetivo de, por meio dele, gerar laços afetivos
da comunidade para com seus bens patrimoniais. Assim, é possível fortalecer, como já escrito, os

1
O município de Nova Hartz conta com escolas particulares apenas de Educação Infantil, mas, na época
em questão, também estas eram somente públicas.
laços de identidade e de pertencimento, provocando na comunidade a cumplicidade, a intimidade,
a responsabilidade para com eles. Assim sendo,

Este conhecimento construído através do contato direto com os espaços


históricos proporciona também um envolvimento emocional com eles e
com isso um comprometimento maior com sua preservação [...] é grande o peso
que o conhecimento da história e dos lugares de memória do lugar em que se
vive tem para que eles efetivamente possam ser preservados (PRIAMO, 2013, p.
73).

Passa-se, agora, a descrever, em linhas gerais, como se desenvolvia o projeto: o


primeiro passo era sempre um encontro com as professaras do 4º ano, para discutir com
elas o projeto, trabalhar alguns conceitos básicos deste — como migrações, patrimônio
cultural material e imaterial e Educação Patrimonial — a fim de construir o planejamento do
ano. O passo número 2 era dar início ao trabalho com os alunos. Para isso, nos valíamos da
metodologia do Guia Básico de Educação Patrimonial (1999), de maneira que levávamos um
objeto do acervo do Museu para sala de aula. Esse objeto era explorado quanto a sua função,
material utilizado, produção, valoração e, a partir das hipóteses levantadas pelos alunos e
discutidas no grupo, conheciam de que objeto se tratava. Davam-se a conhecer também o
período em que fora utilizado, o valor para história de Nova Hartz, o papel do Museu para a
preservação do acervo e da história (Imagem 1), bem como se promovia o contato com
algumas informações históricas relacionadas ao objeto estudado, como, por exemplo, casas
de comércio ou meios de transporte. Assim, despertávamos nos discentes o interesse pelo
projeto que seria desenvolvido durante o ano letivo. O passo 3 era o início dos trabalhos
pelas professoras. Nessa etapa, elas eram orientadas a iniciar trabalhando a imigração a partir
da história de vida dos alunos, uma vez que Nova Hartz caracteriza-se por ter recebido uma
grande leva de migrantes de várias partes do estado, de forma mais intensa nos anos 1980
(e continua a recebê-los, atraídos pelos empregos oferecidos pela indústria calçadista), e só
depois trabalhar as motivações da imigração alemã para o Rio Grande do Sul. A partir das
informações coletadas, sugeria-se trabalhar desde a produção e interpretação de gráficos, que
são conteúdos da série, até a produção de textos, histórias matemáticas, localização
geográfica, datas comemorativas, entre outros, buscando sempre estabelecer relações entre o
passado e o presente, entre as tradições culturais dos colonizadores e a dos atuais moradores.
Esta terceira etapa, em que os conteúdos da série eram trabalhados por meio do projeto,
permeava todo o ano letivo. O passo 4 era o das visitações, que se davam em etapas, em
função do tempo e do transporte disponibilizado: na primeira saída de campo, visitávamos
um lugar de memória2 do bairro (Figura 2); na segunda, a parte da cidade que, no passado,
FFF

2Aqui entendido na perspectiva de Pierre Nora (1993, p. 21), para quem são lugares “[...] nos três sentidos
da palavra, material, simbólico e funcional, simultaneamente, somente em graus diversos. [...] só é lugar de
memória se a imaginação o investe de uma aura simbólica [...].”
pertencia a Taquara3 e onde se estabeleceu o núcleo inicial de colonização (Figura 3); na
terceira saída, visitavam a região da cidade que pertencia a São Leopoldo (Figura 4).

Figura 1 – Observação do objeto

Fonte: Museu Histórico de Nova Hartz.

Figura 2 – Visita ao lugar de memória do bairro

Fonte: Museu Histórico de Nova Hartz.

3 O município de Nova Hartz é cortado pelo Arroio Grande, que, no passado, era limite das cidades de
Taquara (margem esquerda) e São Leopoldo (margem direita)
Figura 3 – Visita à ICLB Campo Pinheiro

Fonte: Museu Histórico de Nova Hartz.

Figura 4 – Conhecendo o Centro da cidade

Fonte: Museu Histórico de Nova Hartz.

A última saída a campo era para visitar o Museu, oportunidade em que era possível fazer
uma síntese de tudo o que foi trabalhado ao longo do ano. Para tanto, oferecíamos também jogos e
brincadeiras, trabalhando a história da cidade de forma mais lúdica (Figura 5). Para encerrar o
projeto, era realizada uma gincana com atividades e brincadeiras sobre a história e o patrimônio
cultural material e imaterial da cidade (Figura 6).
Figura 5 – Visita ao Museu

Fonte: Museu Histórico de Nova Hartz.


Figura 6 – Gincana de encerramento

Fonte: Museu Histórico de Nova Hartz.

É importante ressaltar que o projeto se desenvolvia ao longo do ano letivo, com a orientação
de que as temáticas fossem trabalhadas, partindo da realidade do cotidiano dos alunos, para então
estudar as tradições culturais históricas. Isso possibilitava que fossem trabalhadas as referências
culturais, tanto do passado quanto do presente, representadas pelas diversas etnias que hoje habitam
o município.
Entretanto, onde entra a História Oral neste projeto? Ela compõe o projeto em vários
momentos, desde a investigação sobre o patrimônio cultural material e imaterial até as visitas
realizadas nos lugares de memórias. Alguns materiais sobre as festas, a gastronomia e a
religiosidade são elaborados a partir das fontes orais. Nesse ínterim, o valor de memória e o
patrimônio afetivo das mais diferentes edificações são identificados a partir das fontes orais. Os
alunos podem, então, entender que, para além das características arquitetônicas, o que de fato define
um bem como patrimônio são os valores de memória que esse material representa para os
munícipes.
Além disso, as três saídas a campo que os alunos realizam durante o ano letivo, visitando
lugares de memórias, têm na fonte oral o seu maior apoio. Em verdade, todos os lugares visitados
por eles o são primeiro pela equipe do museu, que conversa com os moradores atuais ou com os
ex-moradores, faz o registro de suas memórias e estas são repassadas, posteriormente, para que os
professores as utilizem em seu trabalho. Quando os alunos visitam o lugar de memória do seu
bairro, na maioria das vezes são recebidos por moradores antigos ou pelos proprietários atuais, que
contam quando a edificação foi construída, qual a técnica construtiva empregada, as suas histórias,
a história da família, as lembranças que têm de sua infância e juventude naquele espaço. É muito
raro que um morador não deseje a visita das turmas de alunos e não os receba com carinho, embora
aconteça em casos bastante específicos, e com motivações igualmente específicas.
Nesse contexto, ao falar sobre sua vida, os moradores estão falando das suas referências
culturais, da economia, da religiosidade, do transporte, das sociabilidades, das questões de gênero,
dos valores. Os alunos e professores, então, entram em contato com as memórias afetivas que ligam
o morador à casa e aos demais membros da comunidade, àqueles acontecimentos vivenciados
naquele espaço. Dessa maneira, a preservação do patrimônio cultural passa a ganhar significado,
uma vez que ela passa a ser entendida, significada, e possibilita “[...] compreender e interpretar os
objetos e analisar sua relação com o passado, com o presente e sobre aquilo que conseguem
transmitir e construir, marcando um percurso dentro da atividade humana” (PINTO, 2013, p. 7). Ou
seja, as memórias, os saberes, os referenciais culturais andam de mãos dadas com a construção dos
saberes ditos “científicos”, com as pesquisas acadêmicas, com uma metodologia de trabalho mais
habitualmente utilizada, baseada em documentação escrita. Por sua vez, Florencio (2014, p. 24)
escreve que

[...] os processos educativos de base democrática devem primar pela construção coletiva
e democrática do conhecimento, por meio do diálogo permanente entre os agentes
culturais e sociais e pela participação efetiva das comunidades detentoras e produtoras das
referências culturais onde convivem noções de patrimônio cultural diversas.

Ao dar protagonismo à comunidade, respeitando, valorizando, fazendo com que os saberes


sejam transmitidos em primeira pessoa, e com que a interpretação dos objetos e do patrimônio
material e imaterial seja realizada por atores locais, entendemos estar trabalhando na perspectiva de
uma educação democrática, conforme as palavras de Florencio supracitadas. Destarte, torna-se a
construção do conhecimento relevante, tanto para os alunos quanto para as pessoas, que são as
portadoras das memórias-base do processo educativo que vai sendo construído.
Outrossim, Varine (2012, p. 34) nos diz que o patrimônio é uma “[...] herança comunitária,
da comunidade familiar à comunidade de vizinhança”, e que, portanto, a responsabilidade de
transmissão é conjunta e solidária. Essa herança se mantém viva, desde que haja o processo de
transmissão desta. Contudo, quando as gerações não têm espaço para o diálogo, para a
troca, quando nas famílias não há espaço de convivência, pelos mais variados motivos, entre
avós e netos, corre-se o risco de que as tradições culturais percam espaço, na mesma
proporção. O Museu, então, se propõe a promover esse encontro, esse momento de troca,
de interação e de transmissão. Com efeito, é no mundo em que a criança vive que é
formado o seu referencial cultural e de identidade. Ao redor de si é que se encontra o
patrimônio, a herança que a comunidade recebeu, e que caberá a ela transmitir, já que o
patrimônio só se consolida pela ação da transmissão.
Também por intermédio da visitação às exposições temporárias organizadas no
Museu, muitas delas tendo na fonte oral a sua principal fonte de pesquisa, fazia-se a ligação
entre o projeto e o conteúdo programático a ser trabalhado pelas turmas. Além disso, havia um
acompanhamento do Museu, durante todo o ano letivo, sugerindo atividades,
acompanhando e ajudando os professores, oferecendo material para pesquisa.
Portanto, por meio do projeto de Educação Patrimonial, os alunos não aprenderam
sobre a história e cultura locais por intermédio de textos em sala de aula, mas o fizeram
visitando lugares de memória do município. Isto é, foram conhecer sobre os
colonizadores, visitando a casa onde estes moravam; sobre religiosidade, visitando igrejas e
cemitérios; sobre a economia, conhecendo atafonas4, moinhos, casas de comércio, locais
onde havia sapatarias, serrarias, ferrarias, funilarias, entre outros. Para saber sobre as
sociabilidades, festas, gastronomia, visitavam antigos salões de baile, sociedades.
Compreendiam a dinâmica da sociedade, entendendo que ela não se dá de maneira
compartimentalizada. Por exemplo, ao conhecer onde ficava a estação de trem, sabiam
também que ali tanto era espaço de desenvolvimento da economia, como de sociabilidade,
assim como aprendiam sobre a interação entre os diversos meios de transporte que
havia então. Ao conhecer as igrejas, percebiam que não se tratava somente de um espaço de
religiosidade, mas de encontros, de conversas, de interação, de conjecturas. Nesse ínterim, a
construção do conhecimento acontecia de forma mais prazerosa, valorizando os
atores locais, dando protagonismo à comunidade, compreendendo os espaços por onde
estes alunos circulavam e sobre os quais pouco sabiam, aproximando-os do patrimônio
cultural local, depreendendo daí um sentido, atribuindo valoração, reconhecendo o espaço e
se reconhecendo nele. Oportunizava-se, do mesmo modo, a apropriação, a compreensão das
memórias e tradições culturais — assim como a proteção desse rico e vasto patrimônio
tangível e intangível deixava de ser vista de forma burocrática pelos grupos envolvidos. Por fim,
a criação de laços da comunidade com esses espaços acontecia, entendemos, de forma mais
afetiva, efetiva e profunda.
A utilização das fontes orais, por sua vez, possibilita a realização de uma pesquisa
mais ampla, com uma abordagem que privilegia, que põe no centro da pesquisa tanto
pessoas ditas comuns quanto as que, pelos mais variados motivos, destacavam-se na
comunidade. Também se dá ênfase à pesquisa do cotidiano e àqueles que comumente são
excluídos
4 Locais de produção da farinha de mandioca e de polvilho. Em Nova Hartz, nos lugares onde os arroios
dispunham de uma maior vasão de água, elas eram movidas a roda d´água e onde a vasão não era suficiente, eram
movidas a tração animal.
excluídos da história porque sobre si não foi publicado nenhum estudo, nenhuma pesquisa;
não possuem uma situação econômica que lhes permita fazer um inventário; não saem em
matérias de jornal e nem nas colunas sociais. Por vezes, nem mesmo a escritura de sua
propriedade possuem, e, por que não dizer, nem mesmo a propriedade eles a têm, ou
seja, trata-se de grupos que são omitidos ou negligenciados dos documentos
oficiais. E mesmo que sobre si houvesse documentos escritos, estes não conteriam suas
emoções, suas memórias, o que marcou suas vidas, de que forma viram, sentiram e
entenderam determinados acontecimentos. Também não estariam nesses documentos o
que não querem lembrar, sobre o que querem silenciar. Nessa perspectiva, as fontes orais
ajudam, entre outras coisas, a humanizar os indivíduos e as histórias, a descobrir outras
versões para determinados fatos. Enfim, possibilitam trabalhar questões ligadas às minorias,
às identidades locais e de grupo.
Cabe, ainda, destacar uma questão: as memórias a que temos acesso através do
patrimônio cultural edificado, e mesmo através do patrimônio imaterial, representado em
nossos trabalhos por religiosidade, gastronomia, festas, entre outros fatores, são as
memórias de uma camada da população, e não de todos os grupos sociais presentes na
história da cidade. Não possuímos, por exemplo, nenhum exemplar de moradia dos
escravos, que, embora em pouquíssimo número (especialmente em função das condições
financeiras dos moradores locais), existiram, bem como nenhum registro físico dos negros
que os sucederam. Tampouco temos acesso às suas memórias, com raras exceções. Suas
histórias nos chegam por intermédio dos descendentes de imigrantes alemães, e não em
primeira pessoa, porquanto Nova Hartz possui pouquíssimas pesquisas acerca de sua história.
Sem medo de exagerar, pode-se dizer que tudo está para ser pesquisado. As fontes orais são
importantes, são fundamentais para a compreensão das referências culturais e da história
local. Porém, é preciso atentar para “a existência, numa sociedade, de memórias coletivas
tão numerosas quanto as unidades que compõem a sociedade”, como diz Pollak (1989, p. 12), a
respeito de cada registro e “uso” da memória que se faz.
Para encerrar este artigo, ressalta-se que nosso trabalho no Museu foi sendo construído
com base em teoria e prática, e que, a cada trabalho realizado, busca-se identificar lacunas e
equívocos, que, a partir das experiências, dos erros e dos acertos, permitem aperfeiçoar
nossa prática. Em verdade, estamos constantemente aprendendo, cientes de nossas
limitações, de maneira que buscamos espaços de diálogo que nos ajudem a refletir e
melhorar nossas ações.

CHAGAS, Mario. Educação, Museu e Patrimônio: tensão, devoração e


adjetivação.s.d. Disponível em: <https://goo.gl/cXh3uY>. Acesso em: 03 maio 2016.

CONSELHO Internacional de Museus - ICOM Portugal. [2007]. Disponível em


<https://goo.gl/JuNWxN> Acesso em 15 agosto 2017
DESVALLÉES, André; MAIRESSE, François Conceitos-chave de Museologia. Tradutores Bruno
Brulon Soares e Marilia Xavier Cury, São Paulo: ICOM, 2013. Disponível em
<https://goo.gl/trGiDc >. Acesso em 15 agosto 2017.

FLORÊNCIO, Sônia Rampim et al. Educação Patrimonial: algumas diretrizes conceituais. In


Cadernos do Patrimônio Cultural: educação patrimonial. Fortaleza: Secultfor: IPHAN, 2015.

HORTA Maria de Lourdes Parreiras; GRUNBERG, Evelina; MONTEIRO, Adriane Queiroz.


Guia Básico de Educação Patrimonial. MinC, Brasília: IPHAN; Petrópolis/RJ: Museu Imperial,
1999.

INSTITUTO do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional – IPHAN. Educação Patrimonial.


(2011?) Disponível em: <https://goo.gl/qYPNMo> Acesso em 13 agosto 2011.

NORA, Pierre. Entre memória e história: a problemática dos lugares. In Projeto História. Revista
do Programa de Estudos Pós-Graduados de História. São Paulo: PUC/SP, v.10, 1993.

PINTO, Celina Bárbaro. Museu, comunidade e património cultural imaterial: um estudo de caso -
o Museu da Terra de Miranda. 2013. Disponível em: <https://goo.gl/ACkh6M> Acesso em
03 maio 2016

POLLAK, Michael. Memória, esquecimento, silêncio. In. Estudos Históricos, Rio de Janeiro, v.
2, n. 3, 1989.

_____. Memória e identidade social. In. Estudos Históricos, Rio de Janeiro, v. 5, n. 10, p. 200-
212,1992.

PRIAMO, Vania Inês Avila. Entre a História e o Turismo: as cidades e seu patrimônio cultural
(Nova Hartz/RS). Dissertação (Mestrado em Estudos Históricos Latino Americanos) – Programa
de Pós-graduação em História. Universidade do Vale do Rio dos Sinos (UNISINOS), 2013.
Disponível em: <https://goo.gl/QEgzeK>. Acesso em 05 nov. 2015.

_____. O museu na comunidade e a comunidade no museu: o caso do Museu Histórico de Nova


Hartz. Revista do Curso de História Unicap, v. 3, n. 6, jul./dez. de 2016. Disponível em:
<http://www.unicap.br/ojs/index.php/historia/index> Acesso em 08 ago.2017.

SIMÃO, Maria Cristina Rocha. Preservação do Patrimônio Cultural em cidades. Belo Horizonte:
Autêntica, 2001.

VARINE, Huges de. As raízes do futuro: o patrimônio a serviço do desenvolvimento local. Trad.
Maria de Lourdes Parreiras Horta. Porto Alegre: Medianiz, 2012.
Isadora Ritterbusch Librenza

Esta pesquisa está sendo realizada no âmbito no Mestrado Profissional em Ensino de


História, sob orientação da Prof.ª Dr.ª Mara Rodrigues (IFCH/UFRGS). O objetivo geral é
investigar os processos de produção e apropriação de saberes históricos por alunos do Ensino
Fundamental sobre a atuação de mulheres no contexto da ditadura civil-militar brasileira, quando
esse tema é tratado em aula a partir da pesquisa em fontes orais, mais especificamente testemunhos
de mulheres que resistiram ao regime civil-militar.
Talvez a mais coerente definição do ensino de História seja aquela que o considera lugar de
fronteira. Como bem especificaram Carmem Gabriel e Ana Maria Monteiro na apresentação do
Dossiê da Revista Educação & Realidade, o ensino de algo é sempre um lugar híbrido, tenso, onde
são disputados fluxos de sentidos de sujeito (professor e alunos), de saberes disciplinares –
validados como legítimos para serem ensinados na educação básica (ANHORN; MONTEIRO,
2011).
Segundo as autoras, o campo do ensino é um lugar teórico em construção. Concordando
com elas, acrescentaria que, atualmente, o protagonismo do campo teórico do Ensino de vem se
deslocando. Professoras, alunos e escola, que comumente ocupavam o espaço de objeto –
pesquisado por sujeitos alheios ao espaço escolar –, vêm conquistando o lugar de sujeito nas
pesquisas e na construção dessa área de conhecimento. É nesse contexto que o presente trabalho
pretende se inserir: uma construção do campo de pesquisa em ensino de História que leva em
consideração os saberes docentes, discentes e escolares.
Entendo, portanto, o ensino de História como lugar de fronteira: entre saberes da docência;
saberes específicos da História; saberes prévios dos estudantes; fronteira entre História e Educação;
fronteira entre saberes escolares e saberes acadêmicos. Adentrando especificamente na temática que
será desenvolvida na pesquisa e identificando o ensino de História como lugar de fronteira entre
saberes de diversas áreas (no caso do presente trabalho trato com História, Gênero, Memória e
Educação), compreendo que o papel da professora-pesquisadora é unir conhecimentos produzidos
por áreas distintas, tanto para a elaboração de suas aulas quanto para pesquisar sua prática. Nesta
comunicação, não pretendo esgotar as diversas frentes de conhecimento que permeiam o trabalho,

* Professora da Secretaria da Educação do Rio Grande do Sul. Mestranda no Mestrado Profissional em Ensino
de História/UFRGS.
mas sim apresentar as reflexões teórico-metodológicas pertinentes à História Oral, à memória e ao
gênero no ensino de História.
Primeiramente, é importante especificar que a opção por trabalhar com testemunhos de
mulheres que resistiram à ditadura civil-militar parte da constatação de que há, nos livros didáticos
de História, certo silenciamento quanto à atuação de mulheres nesse contexto. Aproximei-me deste
tema durante participação no projeto A história das mulheres que os livros didáticos não contam,
desenvolvido no Colégio de Aplicação da UFRGS. Nessa pesquisa, Vanderlei Machado observou
que vários manuais distribuídos pelo MEC não fazem referência à presença de mulheres na
oposição à ditadura militar. Segundo ele, “dos onze livros analisados somente três fazem referência
às mulheres nos textos sobre a ditadura” (MACHADO, 2010, p. 3).
Quando se trata da pesquisa acadêmica, há uma crescente produção sobre a presença
feminina nos mais diversos momentos da resistência aos governos militares. Elizabeth Ferreira
(1996), também trouxe suas contribuições ao tema com o livro Mulheres, Militância e Memória,
no qual reconstrói a trajetória de resistência de 13 mulheres a partir de entrevistas de História Oral,
sem adentrar, entretanto, nos domínios da política estudantil. Ana Maria Colling (1997), escreveu
um livro intitulado A resistência da mulher à ditadura militar, onde aborda, principalmente, a
presença de mulheres em organizações clandestinas de esquerda, mas também não contempla a
questão estudantil, restringindo-se principalmente à luta armada. Nos anos 2000 houve um boom
de produções que tratam da atuação feminina naquele contexto. Entre as diversas obras, é possível
citar o livro Mulheres e militância: encontros e confrontos durante a ditadura militar, de Ingrid
Faria Gianordoli-Nascimento (2012). Nessa obra, que lhe rendeu o título de doutora pela
Universidade Federal de Minas Gerais, a autora aborda a atuação de mulheres no Movimento
Estudantil no Espírito Santo, a partir de entrevistas de História Oral coletadas por ela.
É possível perceber, portanto, que o silenciamento observado nos livros didáticos não está
presente com tanta intensidade na produção acadêmica quando se trata da presença de mulheres na
resistência ao regime militar. A História Oral, como demonstrado, vem sendo amplamente utilizada
por pesquisadoras e pesquisadores que tratam do tema.

Esse questionamento, feito por Selva Guimarães Fonseca, instigou a elaboração do meu
problema de pesquisa, que propõe o uso das fontes orais nas aulas de História, com ênfase na
história das mulheres. Levando em conta que o Brasil é extremamente machista – em 2016, a ONU
Mulheres divulgou pesquisa na qual o Brasil é, atualmente “o pior país para se nascer mulher na

1
FONSECA,2006.
América Latina2 –, a pergunta que justifica a escolha da história das mulheres é: como utilizar
as aulas de história como um espaço de desconstrução do machismo?
Se a História tem um papel fundamental na elaboração das identidades individuais e
coletivas, ela também tem seu lugar na petrificação de determinadas condutas sociais, entre elas a
violência de gênero e sua invisibilidade e a memória coletiva excludente. A memória das mulheres
que resistiram à ditadura civil-militar brasileira foi silenciada por anos, ficando imersa em
generalizações que não contemplavam a atuação feminina nas várias formas de resistência à
ditadura. Os saberes (científicos, escolares, discentes), por sua vez, também saem prejudicados
diante deste silenciamento, que limita as interpretações historiográficas sobre o referido momento
histórico. Maria Paula Araújo, em seu artigo Uma História Oral da Anistia no Brasil: memória,
testemunho e superação, argumenta que

O trabalho com biografias e com a História Oral nos permite investigar como, concretamente, na
vida de algumas pessoas, este horizonte de possibilidades se apresenta. Essa é uma das maneiras
de [...] compreender a história a partir de uma ou múltiplas histórias de vida. (ARAÚJO, 2012, p.
69).

Partindo deste ponto de vista, uma narrativa escolar construída a partir de testemunhos de
mulheres pode trazer novas interpretações e apropriações do momento histórico da ditadura civil-
militar por parte do público escolar. Além disso, como muito bem coloca a historiadora italiana
Sílvia Salvatici (2005), em seu artigo Memórias de gênero: reflexões sobre a História Oral de
mulheres, a História Oral e a história das mulheres cresceram juntas, “de maneira natural”. Esse
entendimento da autora parte da análise de que ambos os movimentos têm uma origem comum:
revelar uma história oculta pela supremacia das fontes documentais e a supressão da presença das
mulheres como sujeito histórico. A História Oral possibilita que passagens e sujeitos até então
ausentes da escrita da História contemplados. Com isso, amplia-se o leque interpretativo da
História, surgem novos problemas e até mesmo novas categorias de análise.
Os testemunhos que serão utilizados nas atividades foram coletados no âmbito do projeto
“Marcas da Memória: História Oral da Anistia no Brasil”. Esse projeto, levado a cabo por equipes
das Universidades Federais de Pernambuco, Rio de Janeiro e Rio Grande do Sul, em 2011 e 2012,
surgiu do intuito de formar um acervo a partir de entrevistas de história de vida realizadas com
pessoas que foram afetadas pela repressão. Foram realizadas, ao todo, 108 entrevistas com mulheres
e homens que resistiram à ditadura militar (ARAÚJO, MONTENEGRO; RODEGHERO, 2012, p.
17).
Da totalidade de entrevistas realizadas pelo Projeto, tive acesso a 93, das quais 31 são de
mulheres – e constituirão o conjunto de testemunhos passíveis de utilização no decorrer da pesquisa.

2 O resultado da pesquisa foi amplamente divulgado pela mídia brasileira, como por exemplo no Jornal O
Globo, de 16/11/2016, na reportagem Brasil é o pior país da América do Sul para ser menina, diz relatório.
As entrevistas não são temáticas, mas sim da modalidade “história de vida”. Ou seja, partem da
infância das entrevistadas percorrendo suas trajetórias e priorizando, claro, assuntos relacionados à
ditadura civil-militar. As entrevistadas foram questionadas sobre temas relacionados ao início de
sua militância, prisão, tortura, exílio, anistia, organizações de esquerda, enfim, diversos assuntos
pertinentes ao entendimento da sua experiência no contexto da ditadura.
Como já foi dito, a metodologia da História Oral tem um forte potencial para a ampliação
do entendimento da história das mulheres e da ditadura civil-militar no Brasil, uma vez que
possibilita que se contemplem temas que não eram tão acessíveis através de outras fontes, tais como
a documentação oficial ou as oriundas da imprensa. Verena Alberti (2005), no artigo Histórias
dentro da História esclarece que, por aproximar o historiador das memórias daqueles que
experimentaram dado momento histórico, a História Oral permite que se ampliem as possibilidades
de interpretação do passado. A autora pondera, entretanto, que o grande erro a que o/a pesquisador/a
pode ser atraído é o de entender que a entrevista já é, por si só, história e não apenas uma fonte que,
como todas as fontes, necessitam de interpretação e análise. Sobre a subjetividade intrínseca aos
testemunhos, Alberti aponta que:

Hoje é generalizada a concepção de que fontes escritas também podem ser subjetivas e de
que a própria subjetividade pode se constituir em objeto do pensamento científico.
Surgiram novos objetos, e os historiadores passaram a se interessar também pela vida
cotidiana, pela família, pelos gestos do trabalho, pelos rituais, pelas festas e pelas formas
de sociabilidade (ALBERTI, 2005, p. 163).

A autora traça um percurso a ser seguido pelo historiador que venha a trabalhar com fontes
orais e comenta que é no campo da História Oral e da memória que esta metodologia pode trazer
as maiores contribuições, pois

No início, grande parte das críticas que o método sofreu dizia respeito justamente às
“distorções” da memória, ao fato de não se poder confiar no relato do entrevistado,
carregado de subjetividade. Hoje considera-se que a análise dessas “distorções” pode levar
à melhor compreensão dos valores coletivos e das próprias ações de um grupo. É de acordo
com o que se pensa que ocorreu no passado que se tomarão determinadas decisões no
presente. (ALBERTI, 2005, p. 163).

Pereira e Seffner alertam que um grande risco da utilização desse recurso é o de que ele seja
interpretado pela professora como uma resposta à corriqueira pergunta “como você sabe disso se
não estava lá?”. Desse ponto de vista, a fonte seria utilizada como forma de atestar a verdade da
narrativa do docente. Os autores ponderam que a melhor alternativa na utilização das fontes em sala
de aula seria a de aparelhar o ensino à “revolução documental”, valorizada sobretudo com a Escola
dos Anais, no momento de crítica ao Positivismo. Ou seja, a docente pode optar por utilizar o
documento como simples prova inquestionável da verdade, ou introduzir aos alunos à “crítica
documental”, segundo a qual o documento é visto como um monumento de determinado momento
histórico, que foi produzido e ordenado de modo a dizer algo.
No caso das fontes orais, mais especificamente àquelas que serão utilizadas na produção de
minha dissertação, os relatos das mulheres que resistiram à ditadura civil-militar brasileira não
servirão apenas como forma de entender de modo menos excludente aquele momento histórico,
mas também como recurso para compreender as disputas de memória que envolveram a produção
daquelas fontes. Além disso, as depoentes falaram com um grande distanciamento temporal dos
acontecimentos (cerca de 40 anos depois). Assim, uma série de fatores relacionados à memória, à
produção das fontes, ao silenciamento e à construção dos discursos pode ser analisada.
Como bem observou Temístocles Cézar no artigo Tempo presente e usos do passado (2012),
um dos grandes desafios do trabalho com testemunhos é a “crise de confiança” à que são submetidas
as memórias das testemunhas de casos-limite. No caso das sobreviventes da ditadura civil-militar
brasileira, inegavelmente lida-se com um caso-limite. Se mesmo a historiografia ainda se debate na
discussão sobre a memória, como utilizá-la em sala de aula, como traspor esse conhecimento ainda
em construção para o desenvolvimento dos saberes escolares? Segundo Cezar,

as técnicas convencionais dos historiadores não são suficientes para compreensão do Holocausto
ou os chamados acontecimentos-limite em regimes policialescos como o de segregação racial na
África do Sul ou do terrorismo de estado das ditaduras latino-americanas do século XX. Com
efeito, não seria um exagero afirmar que esse tipo de estudo pode conduzir a reconsiderações das
exigências da historiografia em geral. Logo, essa constatação não deveria ser um impedimento,
mas antes um estímulo para a exploração de modos de expressão alternativos que se estendam
além da narrativa histórica testemunhal ou acadêmica (CEZAR, 2012, p. 10).

Não há, portanto, consenso sobre como pesquisar e narrar tais acontecimentos. A professora
de História, por sua vez, tem a liberdade de optar por problematizar essas questões com seus alunos.
Assim, o ensino de História aparece como mais uma alternativa na compreensão desses
acontecimentos, junto com aquelas citadas por Cezar – o cinema, a música, as artes plásticas. O
saber escolar produzido no cotidiano das aulas de História é aqui entendido como possibilidade
frutífera de diálogo entre as memórias espontâneas (das estudantes), as memórias subterrâneas (das
entrevistadas), a memória coletiva e a história.
Sobre as relações entre história e memória, destaco o excelente artigo de Sabina
Loriga. Nesse texto, dedicado a discutir a tarefa do historiador na pendenga historiográfica em
torno das relações entre história e memória, a autora faz um apanhado das diversas formas
como esses dois campos tratam do passado, já encarados por historiadores.
Quando se trata do entendimento de Paul Ricoeur, ela aponta que todo o livro A
memória, a história, o esquecimento é:
marcado por uma ambiguidade relativa à imaginação histórica: será que o historiador que
desenvolve sua imaginação somente através da obra de modelagem, fundada sobretudo num
trabalho de reconstrução e recomposição dos vestígios externos – como Ricoeur parece sugerir
na segunda parte consagrada à epistemologia da história -, ou ele deve ultrapassar esses limites?
Ou seja, deve se reportar em imaginação ao passado como tendo estado presente e, portanto, como
tendo vivido pelas pessoas de outrora a título de presente de seu passado e de presente do seu
futuro, assim como se pode conceber a partir da leitura de Heidegger proposta na parte sobre a
condição histórica? (LORIGA. A tarefa do historiador. In: GOMES; SCHMIDT, 2009).

Esse questionamento, desenvolvido pela autora, nos leva a conceber uma grande
polarização entre a objetividade da História e a subjetividade dos historiadores e historiadoras.
Quanto ao ensino de História, não parece sequer interessante almejar que as operações em sala de
aula não se valham da imaginação histórica. Levando em consideração o artigo de Loriga, que
baseada em Freud afirma que o “estranhamento da história” (que tanto inquietava Ricoeur) é
causado justamente pela familiaridade que os sujeitos têm com o que os apavora, é considerável a
possibilidade de que o contato das estudantes com testemunhos orais mobilize memórias
individuais e, com elas, “algo muito familiar, tão íntimo que deveria ter permanecido em segredo”.
(LORIGA, A tarefa do historiador. In: GOMES; SCHMIDT, 2009).
Quando se trata de História Oral de mulheres é importante ressaltar que o crescimento de
ambos os campos (História Oral e história das mulheres) resultou em reflexões críticas que
“produziram um aparato crítico mais complexo, que levantou questões teóricas sobre memória,
significado e representação numa perspectiva de gênero” (SALVATICI, 2005, p. 32).
Se ensinar História sempre é um ato político, cabe explicitar que a motivação para a prática
e análise que se seguirá é a compreensão e modificação das desigualdades entre homens e mulheres.
Quem dá o aporte teórico que embasa esse posicionamento é a historiadora Joan Scott. Essa
pesquisadora não escreveu sobre o ensino de História (ao menos não sobre a Educação Básica),
mas traz grandes contribuições no que se refere à escrita da História. Essas contribuições podem
ser utilizadas no ensino, na medida em que entendemos que a prática de ensino é também lugar de
produção de saberes.
Tratando da escrita da História, ela indica que a simples apresentação de fatos que
documentam a existência das mulheres não necessariamente modificam a importância atribuída às
atividades femininas.
Apesar de as mulheres estarem “aparecendo” nos manuais didáticos, raramente são
apresentadas como sujeitos ativos, que pensam e modificam a realidade em que vivem. Para que
isso seja modificado, segundo Scott, é necessário que se questione termos que foram tomados como
auto-evidentes, historicizando-os. Ou seja, não se trata de dizer “o surgimento do homem” e em
seguida observar que as mulheres também estavam lá, mas de rever as palavras e conceitos que são
utilizados na prática de ensino. O que literalmente é dito importa muito, principalmente quando se
trata de crianças e jovens. Como indica Scott, “se se concorda que os significados são construídos
através de exclusões, deve-se explicitá-las”.
Ainda dialogando com a mesma autora, concordamos que “a história feminista deixa de ser
apenas uma correção do registro incompleto do passado, e se torna um modo de compreender
criticamente como a história opera enquanto lugar da produção do saber de gênero”. A isso é
possível acrescentar que, se a história é um lugar de produção do saber de gênero, o ensino de
História também o é, sendo ainda um espaço frutífero para a significação dos complexos saberes e
conceitos relacionados ao tema, temas estes que são relativamente recentes na epistemologia da
História.
Quando trato da epistemologia da História, estarei sempre dialogando com os apontamentos
de Fernando Araújo Penna sobre o assunto. O autor aponta que a epistemologia da História precisa
levar em consideração o destinatário dos saberes produzidos por historiadores e historiadoras, ou
seja, questionar-se: qual a função social desse conhecimento? Certeau, por exemplo, escreveu que
o destinatário dos livros de História são os historiadores. Penna sugere que se o campo de análise
da epistemologia da História seja ampliado para a Educação Básica, essa conclusão de Certeau
poderia ser relativizada.
Faço aqui, portanto, uma defesa da importância do ensino para a epistemologia da História.
Essa é uma forma de não descuidar da função social dos saberes históricos. Para Penna (2004), “a
história escolar ainda se baseia em sínteses feitas há 25 anos: o que significa uma renovação da
história que não a leva em consideração?”
Ana Maria Monteiro (2009) entende que os conceitos “saber escolar” e “saber ensinado”
ajudam a questionar a ideia de que ensinar é apenas transmitir conhecimentos produzidos na
instância científica. Para a autora, ensinar é atribuir significados. Assim, ela concorda parcialmente
com Pierre Nora, quando este diz que história é também lugar de memória. Parcialmente porque,
segundo ela, o sentido de “lugar de memória”, no caso do ensino, não seria o mesmo defendido por
Nora (lugar onde as memórias se cristalizam), mas sim no sentido de ser lugar onde as memórias
espontâneas são mobilizadas, tornam-se objeto de estudo e de possibilidades de recriação.
Concordando com Monteiro e buscando praticar os pressupostos detalhados acima, acredito
que professores e professoras precisam estar atentas para gerar, através do ensino, novos
conhecimentos que, apropriados, se incorporam nas memórias individuais das estudantes.
Entendendo, assim, o ensino de história, percebe-se que o papel mediador daqueles que ensinam é
fundamental para que a “vida” de determinado saber seja extensa, percorrendo os mais diversos
espaços da sociedade, sendo significado e ressignificado, tornando-se então um saber que realiza,
também, um papel social que extravasa a produção de saberes estáticos.
ANHORN, Carmem Teresa Gabriel; MONTEIRO, Ana Maria. In: Apresentação da Revista
Ensino e Realidade, v. 36, n. 1. p. 11-14, jan./abr 2011.

BOSI, Ecléa. Memória e sociedade: lembranças de velhos. São Paulo: Companhia das Letras,
2010.

CEZAR, Temístocles. Tempo presente e usos do passado. In: VARELLA, Flávia et al. (Org.).
Tempo presente e usos do passado. Rio de Janeiro: Ed. da FGV, 2012.

COLLING, Ana Maria. A resistência da mulher à ditadura militar no Brasil. Rio de Janeiro:
Record: Rosa dos Tempos, 1997.

COLLING, Ana Maria; TEDESCHI, Losandro A. Dicionário crítico de gênero. Dourados, MS:
Ed. da UFGD, 2015.

COSTA, Albertina de Oliveira et al. Memórias das mulheres do exílio. Rio de Janeiro: Paz e
Terra, 1980.

FERREIRA, Elizabeth F. Xavier. Mulheres, militância e memória. Rio de Janeiro: Ed. da FGV,
1996.

FONSECA, Selva G. História local e fontes orais: uma reflexão sobre saberes e práticas de ensino
de História. In: História Oral, v. 9, n. 1, p. 125-141, jan/jun 2006.

GIANORDOLI-NASCIMENTO, Ingrid Faria. Mulheres e militância: encontros e confrontos


durante a ditadura militar. Belo Horizonte: Ed. da UFMG, 2012.

JOFILLY, Olívia R., Esperança equilibrista: resistência feminina à ditadura militar no Brasil
(1964-1985). s/d.

LIBRENZA, Isadora R. História Oral da militância feminina no Movimento Estudantil: a


trajetória de entrevistadas do Projeto Marcas da Memória (1964-1969). (Trabalho de
Conclusão de Curso) – UFRGS, 2014.

LORIGA, Sabina. A tarefa do historiador. In: GOMES; Angela M. de Castro; SCHMIDT, Benito
Bisso. (Org.). Memórias e narrativas autobiográficas. 2009.

MACHADO, Vanderlei. Memória e livros didáticos: as mulheres contra a ditadura. X Encontro


Nacional de História Oral, 2010. Disponível em: <https://goo.gl/Vcg3Qq>. Acesso em
02/05/2014.
MONTEIRO, Ana Maria. Ensino de História: entre história e memória. In: Pesquisa e prática
educativa: os desafios da pesquisa no ensino de História. DC-ROM, 2009.

MONTEIRO, Katani Maria Nascimento; MÉNDEZ, Natalia Pietra. Gênero, biografia e ensino
de História. In: Aedos, n. 11, v. 4, set. 2012.

PENNA, Fernando de Araújo. A relevância da didática para uma epistemologia da História. In:
MONTEIRO, Ana Maria. et al. (Org.) Pesquisa em ensino de História: entre desafios
epistemológicos e apostas políticas. Rio de Janeiro: Mauad X; Faperj, 2014.

POLLAK, Michael. Memória, esquecimento, silêncio. In: Estudos Históricos, Rio de Janeiro,
v. 2, n. 3, p. 3-15, 1989.

PONTES, José Carlos. O uso da História Oral no ensino de História: uma experiência no Colégio
de Aplicação da Universidade Federal do Acre. In: XII Encontro Nacional de História Oral, 2016.

SALVATICI, Sílvia. Memórias de gênero: reflexões sobre a História Oral de mulheres. In:
História Oral, v. 8, n.1, p. 29-42, jan/jun 2005.

SCOTT, Joan Wallach. Gênero: uma categoria útil de análise histórica. In: Educação &
Realidade, Porto Alegre, v. 20, n. 2, p. 71-79, jul/dez.1995.

_____. História das mulheres. In: BURKE, Peter. A escrita da História: novas perspectivas.
São Paulo: Ed. da UNESP, 1992.

_____. Prefácio a Gender and Politics of Gender. In: Cadernos Pagu 3, p.11-27, 1994.

SEFFNER, Fernando; PEREIRA, Nilton Mullet, O que pode o ensino de História? Sobre o
uso de fontes na sala de aula. In: Anos 90. Porto Alegre, v. 15, n. 28, p. 113-128, dez. 2008.
Neila Prestes de Araujo*

Durante a primeira metade do século XX, o crescimento da cidade de Porto


Alegre promoveu ampliação de áreas urbanas estruturadas para moradia dos “cidadãos” que
podiam pagar, removendo das áreas centrais os não “cidadãos”. O Bairro Restinga,1 formado
no final da década de 1960, está inserido no auge da modernização urbana da cidade (como
gueto de pobreza) lugar de destino para os excluídos no processo sombrio de
gentrificação e desterritorialização das Colônias Africanas ou Território Negros – Vilas de
Malocas.2 Ação do estado, já inserido no Governo Militar, promoveu e ampliou a exclusão
dos indesejados. A face branca, moderna, educada e higiênica da cidade foi mantida com a
segregação e imposição do afastamento territorial e social do pobre subalterno,3 com o
discurso de “Remover para Promover” (D’AVILA, 2000 p. 51).4
A cidade de Porto Alegre é representada com pouca ou nenhuma referência à
comunidade negra. Em meio a um sistema de exclusão (trabalho, escola e espaço), tal
comunidade se manteve à margem social e territorial da cidade. O estudo em andamento
pretende promover o encontro do registro do mundo percebido e vivido de quem sofreu
segregação, com os documentos oficiais; as contradições entre discursos e os fatos são
trazidas à tona com o cruzamento das fontes.
A disputa do espaço entre os moradores dos antigos arrabaldes de Porto Alegre (locais
de concentração da comunidade negra) e a pequena e média burguesia, transcende a luta
simbólica e se materializa no espaço físico, promovendo segregação e gentrificação,5 apoiado
em sistema de representação negativo sobre as “Vilas de Malocas”. A ideia do necessário

* Universidade Federal do Rio Grande Sul, mestranda no PPG História.


1 O levantamento documental apresenta o espaço entre o Morro Tapera e o Morro São Pedro, um vale
com vegetação típica de uma
restinga, recortado pelo Arroio do Salso, em meio a uma zona rural, situado 22km a 26km de distância do
centro de Porto Alegre como descrição do local onde essa população removida das “vilas de malocas” foi
assentada – sendo a primeira a Ilhota. Assim, na pressa de mudar as feições da cidade (região central e
valorizada), que ainda tinha ares de precariedade provinciana, para uma paisagem moderna e higiênica a altura
de ser capital do Estado do Rio Grande do Sul, com seu ideário de “Europa dos trópicos”, iniciou as
remoções dos sujeitos que representavam o oposto pretendido para paisagem de Porto Alegre.
2 Sobre o tema ver Silveira (2015); Bohrer (2011). .
3 Sobre composições raciais das vilas de malocas em Porto Alegre, ver: Waimer (2017).
4 Textos nas áreas de Geografia, Urbanismo e Sociologia apresentam perspectiva argumentativa que sustentam a
necessidade de estudo observando segregação racial e higienização social na produção de gueto materializado no
espaço geográfico, histórico e social do bairro Restinga. Ver: Benetto (2013); Gamalho (2009); Zamboni (2009).
5 Para o uso do conceito na cidade de Porto Alegre na dec. de 1970, ver Furtado, (2003; 2014).
isolamento desses “quase-cidadãos”6 justificou-se em argumentos do risco de contágio
sanitário e social conferido a estes, por intelectuais, gestores públicos e jornalistas. Aqui nos
detemos ao recorte tempo-espaço na Porto Alegre de 1967, com depoimentos de dois
moradores removidos para Restinga.

Nesse intento de construir análise e entendimento sobre os jogos de representação que


orquestraram o processo histórico em estudo, me aproximo de Spivak e sua reflexão sobre a
possibilidade de fala do sujeito subalterno (“maloqueiro” – “removível” – “restingueiro”) e o
importante papel da mesma no contar desta história – “Pode o subalterno falar?” Compreendendo
o lugar de fala do intelectual e sua responsabilidade na construção da narrativa (sobre o outro e com
o outro), pretende-se que a pesquisa supere a “persistente continuação do outro como a sombra do
EU [Self]” (SPIVAK, 2014, p. 63).
Assim, trazer o sujeito removido compulsoriamente durante o fato histórico e tomar sua
narrativa como fonte, cruzando e contrapondo com a versão registrada nos documentos, não
pretende “uma descrição de como as coisas realmente eram”. E sim, potencializar o registro de
versões até então silenciadas e “oferecer um relato de como uma explicação e uma narrativa da
realidade foram estabelecidas como normativas” (SPIVAK, 2014, p. 62), desconsiderando a versão
do sujeito subalterno e construindo certezas e crenças que fortaleceram a classe dominante como
modelo de enquadramento social, desqualificando e invisibilizando o outro estigmatizado.
A história dos sujeitos e suas versões dos fatos pela “memória torna as experiências
inteligíveis, conferindo-lhes significado” (AMADO, 1995 p. 132). Busco entender as
permanências e os esquecimentos como esquemas de construção da memória e da representação
no mundo dos sujeitos, respeitando o papel e o espaço do lembrar como “fenômeno construído
social e individualmente” (POLLOK 1992, p. 2-5).
Tem-se o cuidado de perceber os sujeitos imersos e a cultura social estudada “compreendida
como outra vertente do real, um sistema de representação simbólica existente em si mesmo [...]
‘visão do mundo’ que tem sua coerência e seus próprios efeitos sobre as relações da sociedade como
espaço” (BONNEMAISON, 2002 p. 86, grifo meu). Os sistemas de representação simbólica
demonstram as formas de organização das ideias que influenciaram a mentalidade dos sujeitos e se
materializam no espaço.

6 Para leitura sobre o termo “Quase-Cidadão” ver debate em: Schwarcz (2007).
Figura 1 – Ilhota na dec. 1960, antes da remoção

Fonte: http://www.nonada.com.br/2015/06/ilhota-o-bairro-com-enchentes-de-contos/

Esse é o momento inicial do estudo, que observa os sistemas de representação7 em


disputa na sociedade, buscando entender o “monopólio de poder” (BOURDIEU 2005, p. 29),
que sustentou ações de remoção da população que ocupava os “Territórios Negros” e
“Vilas de Malocas”, impondo o distanciamento geográfico, que oportunizou o plano de
“confinamento” desses sujeitos em uma “vila de transição”, com a ideia da necessária
“recuperação”, para que os mesmos fossem “capazes de viver em sociedade”. Esta
imposição de representação que legitimava a distinção, definindo por signos morais,
eugênicos e higiênicos, tal cultura oriunda destes territórios como subculturas, reforçou seu
distanciamento em relação à cultura dominante (BOURDIEU, 2005, p. 10-11).

Para romper com o silenciamento e produzir fontes que ampliem e registro


documental existente, propusemos o estudo orientado nas práticas da História Oral, em
sua legitimidade e singularidade, como aponta Pollok (1992 p. 8)8 “Se a memória é
socialmente construída, é obvio que toda documentação também o é. Para mim não há
diferença fundamental entre a fonte escrita e a fonte oral”. O aporte teórico e metodológico
que sustenta a pesquisa em andamento entende o uso da “narrativa da memória” como
superação dos mecanismos de silenciamento das comunidades subalternas, 9 com o cuidado
ético necessário para não exercer papel contrário ao desejado, impondo vigilância atenta
em todos os momentos da pesquisa.10
As entrevistas estão organizadas e formatadas em áudio-vídeo. Parte da rotina da
entrevista é apresentar a pesquisa e pedir a permissão gravada e em documento escrito (carta

7 SPIVAK apresenta o duplo sentido do termo representação. .


8 Ver: Portelli (1997); Delgado (2020).
9 Ver: Costa (2014), quanto à aplicação da História Oral, somada à preocupação e iniciativa de preservar o
depoente. Para tanto ver experiência de Weimer (2013).
10 Ver: Portelli (1997); Amado (1997).
de cessão) para arquivamento, pesquisa e divulgação da imagem e nome do
entrevistado.11 O instrumento de pesquisa semiestruturado tematicamente, deixa o
entrevistado a vontade em sua narrativa, porém conduzido para o tema em discussão. A
transcrição é na integra, momento também de avaliar os procedimentos e pensar em como
melhorar a entrevista em sua aplicação e registro.12
Figura 2 – Início do assentamento dos moradores Restinga

Fonte: Faillace, Zero Hora, 18 de maio de 1967, p.12.

O resultado parcial da pesquisa já surpreende pelas narrativas dos depoentes, pelos


detalhes que possibilitam o cruzamento com demais fontes.13 O recorte que apresento traz relato
da chegada na Restinga e a situação das casas de madeiras removidas do local de origem,
desmontadas e carregas em caminhão da Prefeitura junto dos seus moradores. Na Restinga,
local de destino, a casa era jogada em um monte de tábuas, que aguardavam o tempo de se
transformar novamente em “casas”. Sr. Mozart14 traz a memória da sua chegada e como
percebeu esse momento.

11 É feita uma entrevista prévia que chamo de “visita inicial”, onde conversamos brevemente sobre o projeto de
pesquisa e a relação com o entrevistado e sua história; após marco uma entrevista gravada
12 A cadeira de História Oral (PPGHIS/UFRGS – ministrada pela Professora Dr. Carla Rodeghero) forneceu
momento de reflexão e formação fundamental para a qualificação do processo, que ainda precisa de muita
reflexãoe avanços.
13 O cruzamento das fontes é necessário, como lembra Alberti (2005, p. 30). “Se o emprego da História Oral
significa voltar a atenção para as versões dos entrevistados, isso não quer dizer que se possa prescindir de
consultaras fontes já existentes sobre o tema escolhido.”
14 Conheci Sr. Mozart quando estava cursando o Bacharelado em História na UFRGS em 14 de agosto de 2016.
Eu havia sido convidada por amigos para organizar uma exposição de fotos com pequenos trechos da história do
bairro e sua origem em uma atividade que pretendia reunir a comunidade em um fim de semana cultural,
em frente ao estabelecimento comercial de um dos amigos. Quando organizava as fotos no mural, o Sr. Mozart
se aproxima, de forma descontraída e ele começa a contar sua história. Paro tudo, pego um caderno que
estava a mão e passo a anotar suas falas, com símbolos que representasse suas pausas. A fala do Sr. Mozart me
deu a certeza que eu precisava deste processo de constituição do bairro, justificado por sistemas de
representações contraditórias que precisam ser entendidas. Há quase um ano atrás teve início este projeto de
pesquisa.
Quando o Sr. veio para cá?
“Vim com treze anos, ainda lembro... 18 de março de 1967, eu e minha mãe.”
E como eram as casas?

Era feito uma casa bem menor, das tábuas que davam pra usar. O pessoal reclamava do
tamanho, reclamava que não era a sua casa. É que, [...] eram usadas as tábuas boas! O
pessoal saía e ia dizendo: essa tábua é da minha casa, só que já tava na casa de outra pessoa.
Os funcionários do DEMAHB, diziam que era assim. E.... foi o que deu pra fazer com o
que tinha.

Como era a vida no começo do Bairro?

A gente se virava. Água boa, só do caminhão pipa, de 15 em 15 dias. A gente tinha que
juntar... e ... ia usando. Mais tarde, minha mãe mandou construir um poço, mas só dava
pra banho e pra lavar roupa... era barrenta. E tinha a sanga, onde o pessoal pegava água
também. (Depoimento em 14 de outubro de 2016).

No caso do Sr. Antônio15 a entrevista conta as lembranças de um menino assustado


que, em 13 de fevereiro de 1967, aos 8 anos retornou do centro, onde engraxava sapatos e sua
mãe já não estava mais na Ilhota. Houve momentos que foi necessário parar a entrevista,
permitindo que o entrevistado se recuperasse.
Na Ilhota, você viu as primeiras casas serem retiradas? “Sim, a nossa foi uma das
primeiras.” Como foi esse momento?

É como eu te falo. Quando cheguei lá, só tava a marca da casa no terreno; tive que dormir
por lá. Aí tinha um russo lá, o cara que tinha uma tendinha, que disse: “Não, tu ficas aqui
que, amanhã nos vamos indo pra lá e tu vais conosco. Aí tá, quando eles vieram tinha um
caminhão lá. Era uma trazera de ônibus, a cabine eles cortaram... Era a trazera de ferro,
era o caminhão...

A traseira de um ônibus antigo?

Na cabine e na trazeira do ônibus, davam umas dez pessoas sentadas no lado do motorista;
o resto era carroceria de ferro. Botava tudo, os negócios ali e iam embora. Daí quando nós
viemos de lá que via que não chegava nunca. Eu queria me atirar de dentro do caminhão!
Não chegava nunca! Eu acostumado a ir a pé pro centro... eu vinha de lá e olhando. Olhava
pra um, olhava pra outro... e... só tinha o pessoal conversando e uns brabos, porque vieram
tudo... Eu digo: “eu vou me atirar disso aqui e vou voltar correndo!” Daí disseram: “Não.

15 Sr. Antônio é um senhor de 59 anos, joga futebol na comunidade com frequência e pediu para ser
entrevistado junto do amigo Sr. Farias. Ambos são moradores da Restinga e aceitaram conceder a entrevista.
Tu não te atiras.” E fecharam as janelas e me colocaram no meio do corredor sentado, eu
louco pra me atirar pra fora.

E o Sr. tinha que idade?

Eu tinha oito para nove... Aí quando chegamos ali (apontando para a direção do local do
assentamento) eu vi minha mãe lá (em sorrisos ele explica). Da faixa de Belém Novo para
cá tinha mato dos dois lados. A rua era estreitinha, assim (mostrando com as mãos). Ia, ia,
ia... Cara a cavalo, carreta de boi, e eu: “O que, que é isso?... Nada de chegar...”

Sobre o momento de lazer, Sr. Antônio fala do futebol: “Eles fizeram o campo. Quando
fizeram o campo tinha os catarinas e tinha os gaúchos. Os catarinas fizeram um campo lá
embaixo [...] e os gaúchos eram onde é o Zero Hora.”
Qual a diferença entre os dois campos? “Tipo, nos catarina só jogava catarina. Time
deles lá era só branco e catarina! Time do Restinga era dos gaúchos, era negão, tudo nego e
mais branco. Tudo, mas tinha que ser gaúcho.” (Depoimento em 18 de maio de 2017).
Para esta pesquisa, ao introduzir a representação do próprio sujeito removido para o bairro
Restinga no debate, através da História Oral, foi feita uma construção narrativa dialógica com as
testemunhas e suas memórias, em coparticipação entre pesquisador e narrador na elaboração da
fonte oral, possibilitando aprofundar e contrapor versões anteriores sobre a remoção, sobre a cidade
e seus signos e significados significantes, que conduziram a mentalidade no recorte tempo-espaço
estudado. O diálogo entre pesquisador e testemunha estabeleceu a construção de uma fonte
fundamental para o entendimento do fato histórico. Mais que isso, possibilitou a representação e
autorepresentação dos que ainda não possuíram momento de reconhecimento da fala, sem buscar
vitimar ou culpar, mas sim ampliar a possibilidade de análise pelo diálogo direto com o “outro” até
então representado em falas estranhas a ele.

As memórias que remontam esta história depositam no relato os significados e


pertencimentos do que foi o processo vivido, através de linha condutora para compreender o que
vai além do senso comum. Para conhecermos esta história por outros ângulos, foi necessário ler nos
depoimentos outros fatos, como a luta por trabalho, para atender e formar os filhos, contornar a
distância e sobreviver no novo espaço; isso expresso em gestos, olhares e sentimentos através da
fala. A narrativa carrega o estigma da condição imposta pela cor e pobreza, responsabilizado por
não possuir capital social, econômico ou político. Assim, o emprego da História Oral sobre esse
recorte histórico do tempo presente, sem maiores registros escritos, é indispensável.
A ética me faz inteiramente responsável pelo resultado da pesquisa, para as críticas e
possíveis falhas. Porém, eu não seria capaz de contar com tamanha propriedade essa história, sem
os diálogos que constroem as fontes orais que lhe dão sentidos.
A história do Bairro Restinga, como resultado do “sistema de representação” da cidade de
Porto Alegre, nos permite entender as teias e tessituras formadoras dos atuais mapas territoriais das
culturas da cidade e das culturas internas ao Bairro. Junto com isso permite questionar os sistemas
de inclusão e exclusão, os parâmetros subjetivos que elegiam (e elegem), quem pertencia à cidade
e quem dela estava excluído.

ALBERTI, Verena. Manual de História Oral. Rio de Janeiro/RJ: Ed. da FGV, 2005.

AMADO, Janaína. O grande mentiroso: tradição, veracidade e imaginação em História Oral. In:
Projeto História, n. 14, São Paulo, 1996.

_____. A culpa nossa de cada dia: ética e História Oral. In: Projeto História, São Paulo, v. 15,
1997. (Dossiê Ética e História Oral).

BENETTO, Helena. As percepções topofílicas/topofóbicas das lideranças comunitárias do Bairro


Restinga, antes e depois da implementação do Orçamento Participativo. Dissertação de Mestrado
– Programa de Pós-Graduação em Geografia, UFRGS, 2013.

BONNEMAISON, Joël. Viagem em torno do território. In: CORRÊA, Roberto Lobato;


ROSENDAHL, Zeny (Org.). Geografia cultural: um século (3). Rio de Janeiro: Ed. da UERJ,
2002. p. 83-132. (Série Geografia Cultural).

BOHRER, Felipe Rodrigues. Breves considerações sobre os territórios negros urbanos de Porto
Alegre na pós-abolição. In: Iluminuras. Porto Alegre, v.12, n. 29, p. 121-152, jul./dez. 2011

BOURDIEU, Pierre. O poder simbólico. 8 ed. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2005.

COSTA, Cléria Botelho da. A escuta do outro: dilemas da interpretação. In: História Oral. Rio de
Janeiro, v. 17, n. 2, p. 47-65, jul./dez. 2014.

D`AVILA, Naida. DEMHAB: com ou sem tijolos, a história das políticas habitacionais em Porto
Alegre. Porto Alegre: Unidade Editorial, 2000.

DELGADO, Lucília. História Oral: memória, tempo, identidades. 2. ed. Belo Horizonte:
Autêntica, 2010, p. 33-66.
FURTADO, Carlos. Gentrificação e (re)organização urbana no Brasil: o caso de Porto Alegre
(1965-1995) – Tese de Doutorado, IFCH, PPG Sociologia. Porto Alegre: UFRGS. 2003.

_____. Intervenção do Estado e (re)estruturação urbana. Um estudo sobre gentrificação. Cad.


Metrop. v.16, n.32, São Paulo: nov. 2014. Disponível em:
<http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S2236-99962014000200341>.

GAMALHO, Nola Patrícia. A produção da periferia: das representações do espaço ao espaço de


representação no Bairro Restinga – Porto Alegre/RS. Dissertação de Mestrado. Instituto de
Geociências - PPG Geografia, UFRGS, 2009.

MATTOS, Jane Rocha de. Que arraial que nada, aquilo lá é um areal. O Areal da Baronesa:
imaginário e história (1879-1921). (Dissertação de Mestrado) – PPGH/PUCRS. Porto Alegre,
2000.

PORTELLI, Alessandro. “O que faz a história oral diferente”. In: Projeto História, São
Paulo, n. 14, p. 25-39, fev. 1997.

_____. Tentando aprender um pouquinho: algumas reflexões sobre a ética na História Oral.
In: Projeto História, São Paulo, v. 15, 1997. (Dossiê Ética e História Oral).

NUNES, Marion Kruse, Memória dos Bairros: Restinga. Coleção: Memória Dos Bairros.
Editora: Secretaria Municipal da Cultura. Porto Alegre, 1990.

PESAVENTO, Sandra. Lugares malditos: a cidade do "outro" no Sul brasileiro (Porto Alegre,
passagem do século XIX ao século XX). In: Revista Brasileira de História, v.19, n. 37, São
Paulo: set-1999.

_____. Memória de Porto Alegre: espaços e vivências. 2. ed. Porto Alegre: Ed. da UFRGS,
1999.

_____. Uma outra cidade: o mundo dos excluídos no final do século XIX. São Paulo:
Companhia Editora Nacional, 2001

POLLAK, Michael. Memória, esquecimento e silêncio. In: Estudos Históricos, v. 2, n. 3, Rio


de Janeiro: 1989.

_____. Memória e Identidade Social. In: Estudos Históricos, Rio de Janeiro, v. 5, n. 10, 1992,
p. 200-212.

SANTOS. Irene (Org.) Negro em Preto e Branco: história fotográfica da população negra de
Porto Alegre. Porto Alegre: do autor, 2005.
SANTOS, Milton. A natureza do espaço: técnica e tempo, razão e emoção. 2 ed. São Paulo:
Hucitec, 1997.

SCHWARCZ, Lilia M. Dos Males da Dadiva: sobre as ambiguidades no processo da abolição


brasileira. In.: CUNHA, Olívia Maria Gomes da; GOMES, Flavio dos Santos. Quase-cidadão:
histórias e antropologias da pós-emancipação no Brasil. Rio de Janeiro/RJ: Ed. da FGV,
2007, p. 23-54.

SILVEIRA. Alexandre Barcelos. De colônia africana a bairro Rio Branco:


desterritorialização e exílio social na terra do latifúndio: Porto Alegre, 1920-1950.
(Dissertação de Mestrado em História) – Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas,
PUCRS. Porto Alegre, 2015.

SOSTER, Ana Regina de Moraes. Porto Alegre: a cidade se reconfigura com as


transformações dos bairros. (Dissertação de Mestrado) – PPG de História/PUCRS, Porto
Alegre, 2001.

SPIVAK, Gayatri C. Pode o subalterno falar? Belo Horizonte: Ed. UFMG, 2014.

WEIMER, Rodrigo de Azevedo. Analise da constituição racial da população de duas vilas


de malocas no início da década de 1950 e início da década de 1960. Texto apresentado no 8º
Encontro Escravidão e Liberdade no Brasil Meridional, Porto Alegre (UFRGS), de 24 a 27 de
maio de 2017, Anais completos do evento disponível em: <https://goo.gl/2C18N6>

ZAMBONI, Vanessa. Construção social do espaço, identidade e territórios em processos de


remoção: o caso do Bairro Restinga. Porto Alegre/RS. (Dissertação de Mestrado em
Arquitetura e Planejamento) – Programa de Planejamento Urbano e Regional – PROPUR.
UFRGS. Porto Alegre, 2009.
Júlio César da Rosa

Nosso diálogo com as diversas bibliografias sobre sociedades recreativas permitiu


perceber como esta forma de organização, junto à nova ordem social que se estabelecia no
pós-emancipação, proporcionou a um determinado grupo de homens e mulheres
afrodescendentes mobilidade social e acesso a bens materiais e culturais, contrariando
pesquisas que apontavam para a desorganização social desses sujeitos históricos.
O surgimento de organizações constituídas por afrodescendentes, especificamente
as sociedades recreativas, é uma característica visível nas primeiras décadas do século XX,
sobretudo nas regiões sul e sudeste do país. Essas formas de organização das populações de
origem africana foram interpretadas como espaços de comercialização de dança e de
consolidação de novos padrões de vida. Florestan Fernandes (1965), utilizando-se das
memórias dos afrodescendentes letrados, analisa estas formas de organização, generalizando
os anseios desses sujeitos às demais pessoas de origem africana e, de certo modo, tal
interpretação contribuiu para identificar estes sujeitos, enquanto um grupo homogêneo.
No dia 4 de dezembro de 1903, o Jornal Albor, da cidade de Laguna,1 anunciava que,
no último domingo, ocorrera “o festival inaugurativo da sociedade Club União Operária, com
um baile que durou até as quatro horas da manhã” (O Albor. Laguna, 24/12/1903, n. 63). No
mesmo jornal, cerca de dois anos e meio depois, havia outro anúncio de um clube, o Club
Literário Cruz e Sousa, inaugurado no dia 29 de julho de 1906. Nessa data, o Presidente, José
Honorato Alano, proferiu um breve discurso exaltando o espírito do melhor poeta do Brasil,
que dava nome ao clube (O Albor. Laguna, 06/08/1906, n. 198). Ambas as sociedades
recreativas possuíam em comum o fato de seus sócios serem afrodescendentes.2

* Mestre em História do Tempo Presente pela Universidade do Estado de Santa Catarina em 2011, doutorando no
Programa de Pós-Graduação em História/UNISINOS sob a orientação do Profº Dr. Paulo R. Staudt Moreira.
Bolsista de Pós-Graduação FUMDES-SC. Professor efetivo nas redes estadual de Santa Catarina e municipal de
Criciúma.
1 A cidade fez parte de acontecimentos importantes da História do Brasil, como a Guerra dos Farrapos
(1835 a 1845) e a fundação da epública Juliana (1839) – Estado independente do Império Brasileiro, aliado à
Repúblicade Piratini, localizada no Rio Grande do Sul e que também havia declarado independência do restante
do país.Laguna, com suas ruas estreitas e em seus casarios, tombados pelo Instituto do Patrimônio Histórico e
Artístico Nacional em 1985, é a terceira cidade mais antiga do estado de Santa Catarina.
2 Essas sociedades recreativas estavam localizadas na área central da cidade (o Clube União Operária
continua no mesmo endereço, já o Cruz e Sousa teve sua última sede na Rua Osvaldo Aranha, tendo se desfeito
depois), próximas às principais instituições representantes do poder público, como, por exemplo, a Biblioteca
Pública, a Praça da Igreja Católica, o antigo Mercado Público (incendiado em 1939) e, portanto, lugar de
significativa visibilidade.
Fernando Henrique Cardoso e Octávio Ianni (1960) entendem as agremiações recreativas
como locais de comercialização da dança, percebendo os associados e, deste modo, intuindo que,
até entre os “grupos de cor” havia a discriminação racial. Bernadete Orsi (1999) separou-as entre
sociedades de baile e de conscientização do “negro”, detentoras de funções distintas em suas ações.
No entanto, Orsi não percebeu que ambas as sociedades recreativas, tanto as de auxílio mútuo como
as ocupadas com discursos reivindicativos, tinham entre seus objetivos a mobilidade social de seus
sócios e frequentadores. Utilizando fontes como atas de reuniões, memórias de frequentadores das
sociedades recreativas, estatutos de Fundação desses espaços, esses/as autores/as entenderam esse
lugar como um espaço de dança.
Fernandes e Cardoso analisaram essas organizações com um viés racialista, interpretando
as aproximações e os afastamentos entre esses sujeitos como anomia e desorganização social. Não
perceberam que esses espaços de sociabilidade possibilitaram o soerguimento das populações de
origem africana, mesmo agregando um conjunto de instrumentos de vigilância, que tinham como
objetivo manter a dignidade de suas agremiações à custa da vigilância de seus membros, fora e
dentro de seus espaços, tendo a respeitabilidade e a dignidade legitimadoras da sua integração na
sociedade.
Esses autores desconsideraram uma pluralidade de vivências e experiências, generalizando
as expectativas desse pequeno grupo de afrodescendentes, ligados às sociedades recreativas, para
os demais descendentes de africanos. Tendo em vista tal perspectiva, a característica principal
desses estudiosos era perceber os agentes sociais como um bloco, ou seja, consideravam essas
pessoas iguais porque possuíam uma ascendência comum.
Na oposição dessas interpretações, para pensar o Clube Literário Cruz e Sousa e a Sociedade
Recreativa União Operária da cidade de Laguna, utilizo como fonte o jornal O Albor de 1903 a
1950, encontrado no acervo do Arquivo Municipal Casa Candemil; as fontes orais, entrevistas
transcritas de netos, bisnetos, sócios, membros da diretoria do clube União Operária, entrevistados
entre os anos de 2009 e 2010; atas de registro de fundação do clube União Operária, localizadas no
Cartório de Registro Civil de Laguna; e atas de reuniões dos anos de 1903 a 1950, pertencentes à
Sociedade Recreativa União Operária, que possibilitaram interpretar e registrar o quotidiano dos
clubes e de seus componentes. Essas fontes permitem uma interpretação possível do passado,
vislumbrando como afrodescendentes se organizavam e se percebiam enquanto cidadãos, quais
eram suas aspirações e expectativas enquanto sujeitos sociais.
Portanto, para analisar as aspirações e as expectativas dessas pessoas, é necessário
compreender o pós-abolição (RIOS; MATTOS, 2004), enquanto um campo de estudos que sinaliza
os anseios dos últimos libertos e a extensão dos direitos civis aos novos cidadãos. Os estudos do
pós-emancipação têm contribuído para questionar a situação dos afrodescendentes como reflexo
direto da escravidão, discutindo as ações e as variadas táticas daqueles sujeitos, relacionadas cada
vez mais à dimensão dos direitos políticos e às novas condições sociais criadas naquele contexto.
Não obstante, dimensionamos esses sujeitos em suas múltiplas identidades e identificações,
não necessariamente ligadas à “cor”, mas ao status social. Dessa forma, procuramos entender o
significado de ser mulato e de ser preto para aqueles homens e mulheres. As sociedades recreativas
não foram locais de construção de uma “identidade negra” pautados numa única referência de
ascendência africana e um vínculo com a herança da escravidão.
A construção das identidades, tanto a africana como a identidade afro-diaspórica, molda-se,
cultural e politicamente, e, neste sentido, corroboramos com Kabengele Munanga quando afirma
que “o não reconhecimento ou reconhecimento inadequado da identidade do ‘outro’ pode causar
prejuízo ou uma deformação ao aprisionar num modo de ser falso e reduzido” (MUNANGA, 2005,
p. 5). Questionamos a ideia de que africanos e afrodescendentes são iguais, portadores de
características físicas, sociais e psicológicas comuns, contribuindo, deste modo, para a
desnaturalização da noção de “raça”.
À primeira vista, a existência de dois clubes de pessoas de ascendência africana em Laguna
pressupõe um recorte racial. Porém, nas entrevistas realizadas encontramos indícios de que seus
participantes não se viam enquanto negros e negras. Havia uma diferença entre ser preto e mulato
para estes homens e mulheres ligadas às agremiações. Segundo os entrevistados, os mulatos se
reuniam no Club União Operária, enquanto os pretos ficavam no Club Literário Cruz e Sousa.
A existência de dois clubes de homens e mulheres de descendência africana estava ligada,
possivelmente, ao status social, à condição financeira, e ao oficio ocupado pelos sócios,
configurando conteúdo hierarquizante dos usos desses termos e seus diferentes significados em
contextos históricos específicos (VIANA, 2007, p. 39).
Com base nos relatos de participação desses atores sociais, homens e mulheres, que
representaram o Clube Recreativo União Operária e o Clube Literário Cruz e Sousa, procuramos
romper com a história tradicional centrada nos “grandes feitos e nos grandes homens”. Pretendemos
analisar os registros orais, dialogando com Michael Pollak, Eclea Bosi e Beatriz Sarlo, autores que
usam a memória como fonte histórica, possibilitando o registro do quotidiano daqueles que fizeram
parte das sociedades recreativas pesquisadas. Essas memórias podem evidenciar experiências de
um tempo que, ao ser evocado por meio da mediação do entrevistador, traz à luz histórias de pessoas
comuns, muitas vezes invisibilizadas e/ou ignoradas pela historiografia tradicional.
Como salienta Eclea Bosi,

A memória não é oprimida apenas porque lhe foram roubados suportes materiais, nem só
porque o velho foi reduzido à monotonia da repetição, mas porque uma outra ação, mais
daninha e sinistra, sufoca lembrança: a história oficial celebrativa cujo triunfalismo é a
vitória do vencedor a pisotear a tradição dos vencidos (BOSI, 1994, p. 19).

Nessa perspectiva, as memórias desses “vencidos”, retiradas dos porões da história, tornam
públicas as múltiplas experiências de afrodescendentes que viveram naquele contexto. Neste
sentido, concordamos com Le Goff, pois “o estudo da memória social é um dos meios fundamentais
de abordar os problemas do tempo e da história” (1992, p. 426).

Em entrevista com o Antônio dos Reis, ex-maestro da Banda União dos


Artistas e funcionário aposentado do porto de Laguna, antigo sócio da Sociedade Recreativa
União Operária (SRUO), o senhor “Cacique”, como era conhecido no município,
salientou que sócios e frequentadores daquele espaço trabalhavam no comércio (REIS,
2008), tratando-se de pequenos comerciantes varejistas. Para participar daquela sociedade,
conforme relatou Antônio dos Reis, a escolaridade dos pretendentes era condição
determinante para ser aceito como sócio.
No depoimento de Antônio dos Reis percebe-se que o status, o ofício e a
escolarização deixam evidente a existência de uma seleção para compor o quadro de sócios
daquela agremiação. Tais exigências poderiam ser uma forma de construir uma sociedade
recreativa, cujo quadro social comportasse homens trabalhadores e letrados, pessoas
consideradas de boa índole perante a sociedade e, nesse cenário, construiriam a
imagem de uma sociedade de trabalhadores, distanciando-se de estereótipos como
indolência e vadiagem, representações negativas bastante comuns sobre as pessoas de
ascendência africana, naquele contexto (e que ainda perduram na contemporaneidade).
De acordo com os registros do SRUO, Antônio dos Reis passa a fazer parte do quadro3
de sócios a partir do ano de 1941, trinta e oito anos depois da fundação da Associação.
Compreendendo os embates e os problemas em relação à memória, podemos interpretar
que as lembranças de Antônio do Reis tenham se entrelaçado às memórias dos fundadores,
quando ele afirma que, no quadro de sócios fundadores existiam apenas comerciantes. A
memória individual do nosso depoente consistiu em fortalecer a ideia de que, aquela
agremiação, desde o início, se constituiu em um espaço para pessoas bem-sucedidas. Ou,
talvez, sua intenção fosse afirmar que, apesar de o clube ser para um determinado grupo
social, ele ainda tinha alcançado uma posição, o que lhe permitiu participar daquele espaço,
já que ele não era um comerciante.
E com relação à memória, corroboramos com Michael Pollak quando afirma que
“a memória é seletiva; nem tudo fica gravado, nem tudo fica registrado” (POLLAK, 1992,
p. 200-212). Além de sua subjetividade, a memória coletiva, como salienta Ecléa Bosi, “se
desenvolve a partir de laços de convivência familiares, escolares, profissionais. Ela
entretém a memória que acrescenta, unifica, diferencia, corrige e passa a limpo” (BOSI, 1994,
p. 411). A autora ainda aponta que, “por muito que deva à memória coletiva, é o indivíduo que
recorda. Ele é o memorizador e das camadas do passado a quem tem acesso pode reter
objetos que são, para ele, e só para ele, significativos dentro de um tesouro
comum” (BOSI, 1994, p. 411).

3 Livro Ata da Sociedade Recreativa União Operária, 1938, p. 33.


Nessa perspectiva, o depoente, nosso entrevistado, ao relembrar o que lhe foi transmitido
ao longo dos anos sobre a fundação do SRUO, ao evocar suas memórias, o que ficou preso a ela e
lhe foi impresso na convivência familiar ou nos espaços de sociabilidade, expõe uma memória que
“grava”, “recalca” ou “exclui”, de forma consciente ou inconsciente, característica do processo de
elaboração e reelaboração da memória, seja ela coletiva ou individual. Nosso depoente registrou o
que mais significava para ele, naquele momento, ou seja, o lugar social dos membros daquela
sociedade.
Sobre os motivos que levaram à fundação dessas sociedades recreativas, temos alguns
pontos de vista divergentes, conforme citações abaixo.

O Cruz e Sousa. Ah, eles foram fundados por causa da cor, né, da raça. Entendeu? Porque
naquele, no meu tempo era assim. Tinha o Operária, era de moreno, de moreno entende?!...
o Sousa era de preto. (BENTO, 2010).
Na Operária, não tinha jeito que não entrava [preto]. Eles não deixavam. Era severo, era
severo, não deixavam. Porque nós também... bom, os brancos também não entravam no
nosso. E nós também, que tinha amigo branco e tudo, mas a gente não entrava no deles.
Nem eles no da gente. Tudo por causa da, da, desse preconceito. Isso foi ó [estalar de
dedos], foi vários. (sic) (BENTO, 2010).

Antônio Paulo Bento, ex-presidente do clube União Operária, esclarece que a fundação das
agremiações aconteceu por influência da cor, ou seja, o Cruz e Sousa e o União Operária nasceram
da distinção entre sujeitos de uma mesma ascendência, mas que se percebiam heterogeneamente –
pelo menos é o que nos parece num primeiro momento.
Além de os pretos não frequentarem o União Operária, aqueles que se declaravam brancos
também não entravam naquele espaço, não porque era um lugar somente de “negros”, mas porque
a esses também era vedada a possibilidade de frequentar o seu ambiente, como podemos perceber
no depoimento de Antônio Paulo Bento. Ter amigos “brancos” que trabalham nos mesmos espaços
não significava redução ou interrupção do preconceito que permeava a sociedade lagunense.
Pelo contrário, na fala da professora aposentada Marli Brum, de sessenta e nove anos, o
contato com os membros da elite de Laguna se dava através da prestação de serviços oferecidos
pelos afrodescendentes da cidade. O distanciamento nos espaços de lazer era cada vez mais
acentuado, com a negação da participação das populações de origem africana nos clubes Blondin e
Congresso Lagunense, sociedades recreativas das elites dirigentes de Laguna.

Sim, existia separação [em] toda a minha mocidade a separação, a minha irmã, minha irmã
era costureira. Então, a gente se arrumava, e então a gente se arrumava para ir pros bailes
[no União Operária] e às vezes muitos dias eu ia entregar as costuras na casa das freguesas
dela né. E as freguesas dela iam pro baile [da elite de Laguna] né. A gente passava, tava
ali o Congresso. O Blondin tinha festas e nós jamais chegávamos na porta. (BRUM, 2010).
E 99,9% dos nascidos no Magalhães, naquela época, não frequentava o Congresso. Era o
preconceito financeiro né, não era racial. Quem morava no Campo de Fora não
frequentava Blondin e nem o Congresso, mesmo sendo branco. Também era o preconceito
financeiro e não racial. Então, eu acho que os mulatos que fundaram a Operária e os pretos
que fundaram o Cruz e Sousa o fizeram para ter uma coisa só deles. Aonde eles pudessem
se reunir, aonde eles tivessem, não, não, não tivessem essa, não tivessem essa dependência,
não precisavam de favor pra entrar aqui ou acolá. Aqui era deles. Eles formaram uma
célula deles. Esse é o meu ponto de vista. É, é, é. Não era a questão de preconceito, não.
Não era a questão racial, era questão de eles ter o local pra eles reunir a família deles.
(VICENTE, 2010).

Para o jornalista, radialista e eurodescendente, de 78 anos, João Manoel Vicente, os clubes


não foram fundados por causa do preconceito que existia em Laguna. Sua argumentação baseia-se
na ideia de que, como os brancos pobres não entravam nos clubes Blondin e Congresso, era natural
também a negativa de entrada aos afrodescendentes naquele espaço. Ele ainda destaca que a questão
racial não foi determinante no contato entre eurodescendentes e afrodescendentes, pois, na visão
dele, o que prevaleceu foi a vontade desses homens e mulheres terem o seu próprio espaço de
divertimento.
A constituição desses lugares, devido à exclusão, indica que as populações de origem
africana foram excluídas e marginalizadas dos espaços frequentados por outros grupos sociais, em
especial, brancos. Dessa forma, tais agremiações formaram espaços de resistência à exclusão,
consolidaram laços de solidariedade, sociabilidade e visibilidade, um lugar que esses agentes
sociais pudessem frequentar e viver da melhor maneira possível.
O racismo a brasileira se manifestou, naquele momento, de forma não convencionada
oficialmente, mas “consolidado pelos usos e costumes” (DOMINGUES, 2004, p. 136). Tanto o
preconceito racial quanto as condições financeiras foram determinantes para a não convivência
entre afrodescendentes e eurodescendentes em Laguna, nos espaços de sociabilidade.
Cotejando nossas fontes com as memórias de Marli Brum, as senhoras Petronilha
Alano, Normélia Costa, Nair e Claudia4 eram as responsáveis por organizar festas e atividades
culturais naquele espaço. Mesmo não tendo participado naquele momento da vida social
do clube, a professora Marli enfatiza como foram importantes aquelas mulheres para o Clube
União Operária. As lembranças da mãe de nossa depoente passaram também a fazer parte
do seu passado, pois “muitas recordações que incorporamos ao nosso passado não são
nossas: simplesmente nos foram relatadas por nossos parentes e depois lembradas por
nós” (BOSI, 1994, p. 407).

Assim, aqui tinha mulher do seu Cacique, a dona Petronilha, que organizava baile, que
organizava blocos né. A dona Cláudia, a dona Cláudia também que organizava os blocos,
ela também que organizava que convidava as moças, mandava fazer fantasias... Tinha
4 Livro de Registro de Matrícula dos Sócios do União Operária. 1938, p. 7.
também a Normélia, a dona Nair, a minha mãe porque a União Operária tinha um palco
que organizavam teatro, peças de teatro, peças de dança a dona Nair e dona Normélia elas
deveriam ter assim, elas deveriam ter muita, muita coisa escrita! Mas, a dona Nair e
Normélia tinha uma nora... Era ignorante! Queimaram tudo e botaram fora, A gente guarda
essas coisas, né, e elas puseram fogo e destruíram. Mas, a dona Nair e a dona Normélia
eram duas figuras muito importantes no União Operária. Elas diziam que, minha mãe dizia
[que], desde o tempo da minha mãe elas já eram mais velhas que minha mãe. Eram elas
que organizavam as festas, que organizavam, que mantinham os grêmios e organizavam
festas e peças de teatro. (sic) (BRUM, 2010).

Ademais, as atividades lúdicas e instrutivas, dessa sociedade, eram regidas por um estatuto,
por meio do qual os sócios eram submetidos a normas de conduta, fiscalização das ações internas
e externas ao clube com o intuito de valorizar aquele espaço. As informações que constam no livro
de matrícula dos sócios contribuintes, ao lado dos registros nos livros atas, apontam para
mecanismos de como a associação se organizava.

Somente as memórias de nossos entrevistados, os depoentes, afirmam que pretos


frequentavam o Cruz e Sousa, e mulatos o União Operária. Como indicam Marli Brum e João
Manoel Vicente,
O União Operária eram mulatos, geralmente mulatos claros; era o caso da minha mãe né.
E o Souza frequentavam os mais escuros, pretos negros mesmo. Então, os negros pretos
sonhavam um dia botar os pés na Operária sabe; isso contado pela minha mãe. (BRUM,
2010).
E você vê a fala que me interessou: Cruz e Sousa. Arcelino Gonzaga. Eu não conheci.
Afonso Sabino, esse eu conheci. Afonso Sabino morava ali na Praça Cesar França de
Magalhães. Era um mulato gordo, músico né. Adolfo Campos. Era um mulato também
que trabalhava na Prefeitura né. (sic) (VICENTE, 2010).

Se as memórias desses depoentes afirmam que havia um clube para pretos e outro para
mulatos, como explicar somente os mulatos transitando em ambas as agremiações? Como era feita
a classificação entre esses agentes sociais? E como eles classificavam quem era preto e quem era
mulato? Tratam-se de questões complexas e cujas respostas não dispomos, mas, procuramos
articular a partir de sinais, pistas, que surgem nos depoimentos e nos registros de jornal.
Constituíram-se, em campos de sociabilidades distintos, sujeitos permeados por disputas acirradas,
refletindo na identificação como preto ou mulato.
Transcrevemos, a seguir, a composição da primeira diretoria do Cruz e Sousa, anunciada no
jornal: o então presidente José Thomaz de Oliveira; o segundo fiscal na diretoria de 1904 e o
tesoureiro Affonso Sabino; eles faziam parte do quadro de sócios da Sociedade Recreativa União
Operária. Presidente: José Thomaz de Oliveira; Vice-presidente: José Antônio de Oliveira;
Thesoureiro: Affonso Sabino; 1 e 2 secretários: João José de Souza e Antônio Sabino; 1 e 2
procuradores: Algamil Luiz da Silva e Antônio Cardoso e 1 e 2 Fiscaes: Antônio Cabral e Antônio
João Ventura (sic). (O Albor. Laguna, 31/05/1908, n. 291).
É interessante assinalar que, analisando o livro de registro de sócios, as atas de fundação do
Clube União Operária e os vestígios deixados pelo Clube Literário Cruz e Sousa, no periódico O
Albor, encontramos alguns mulatos que circulavam pelo Cruz e Souza. Todavia, o contrário não
ocorria, ou seja, os pretos eram impedidos de transitar no União Operária.
Presumimos que a gradação entre aqueles que se identificavam como pretos, e aqueles que
se identificavam como mulatos foi determinante para a divisão e o surgimento de outra sociedade
recreativa devido ao quadro exposto por nossos depoentes. A cor da pele, aliada às profissões,
influenciou a construção dessas duas sociedades recreativas, e esse quadro parece compreensível
no contexto em que essas agremiações foram fundadas.
Esses indivíduos, que possuem a mesma ascendência, mas que não eram iguais, estavam
imersos numa mentalidade colonial, em que ser descendente de africano era sinônimo de ex-cativo,
e fugir desse estigma e estereótipo era a melhor maneira de ser percebido como cidadão. Daí a
aproximação de um grupo de não brancos de pele mais clara e o seu afastamento de um grupo de
não brancos de pele mais escura.
Tais negações não ocorriam em ambos os clubes. Conforme apontam as fontes, somente os
membros do União Operária faziam parte da diretoria e frequentavam o Cruz e Sousa; o inverso
não acontecia. Desse modo, a rigidez dessas fronteiras nos espaços de sociabilidade possibilitou
perceber que esses homens e mulheres travavam constantes disputas. Seu Antônio Paulo Bento
afirma que possuía muitos amigos pretos, o que lhe possibilitava a entrada no Cruz e Sousa. Além
de ter amigos sócios do clube, nosso entrevistado também contava com a figura do pai para facilitar
sua autorização, naquela agremiação, já que ele era uma pessoa muito conhecida em Laguna.

Quer dizer, quem dançava lá no de preto não dançava cá, na Operária que, que era dos
moreno tá!? Então, era onde que eu, [...] tinha muito amigo, naquela época, né, que
também era preto. Então, não vinha no meu, que era no Operária. Eu, então, também não
pudia ir no deles mas, custava, às vezes, e dava uma escapada, e eu entrava né. Quer dizer,
na hora h eles me conheciam também muito o meu pai, que eu sou filho do Manuel Bento,
então. Aí, naquele tempo, o apelido do meu pai era Mané Bento, e era muito conhecido
também aqui na Laguna. Então, eles diziam, ó esse aqui é filho do Mané Bento, deixa ir.
Então a gente... Eu ficava ali no meio dos pretinhos. Mas, quando eles fossem lá no meu,
na Operária, não tinha jeito que não entrava. (sic) (BENTO, 2010).

Não só a amizade com os pretos ou a figura notória do pai possibilitou a entrada do nosso
entrevistado, como ele ressalta. A sua inserção, naquele espaço, se dava também pelo fato de o pai
estar presente como segundo fiscal na diretoria da sociedade Cruz e Sousa formada no ano de 1932
(O Albor. Laguna, 28/04/1932, n. 1143). Seu depoimento deixa evidente que as relações entre pretos
e mulatos nada tinham de harmoniosas, sendo permeadas de constantes disputas que culminavam
na interdição nos espaços de sociabilidades.
Conforme Maria Viana da Silva, dona de casa, com 98 anos, viúva e residente em Laguna,
existiam duas festas organizadas por essas sociedades recreativas: a festa de Nossa Senhora do Parto
e a de Nossa Senhora da Conceição. Salienta a entrevistada, que os afrodescendentes de Laguna
possuíam cada um o seu espaço e sua festa específica.

Cada um tinha o seu clube né. Tinha o Cruz e Souza e a União Operária! A União Operária
era dos mulatos. Mulatos! Da minha cor né?! E o Cruz e Souza era dos nego preto! Bem
preto! E também tinha a festa da Nossa Senhora do Parto! Que era os mulatos que tomava
conta. Os pretos! Os pretos tinham a Nossa Senhora da Conceição, que era a festa deles!
(sic) (SILVA, 2010).

Identificando-se como mulata, a senhora Maria reforça que as festas organizadas pela
Sociedade Recreativa Cruz e Sousa eram melhores, e ainda relata as tensões geradas pela retirada
da santa, que os pretos homenageavam em sua festa.

É! Nós fazia uns bailes muito animados! Os baile dos pretos, sempre diziam que era mais
animado do que os da União Operária. Mais animado era dos pretos! Era! o mais animado!
O Cruz e Sousa do que o baile da União Operária. É Nossa Senhora da Conceição era dos
pretos. E a Nossa Senhora do Parto era dos mulatos! Aí teve uma ocasião que o padre,
queria tirar dos pretos, a santa! Ficar pra eles. Queria vender, pra outro lugar! É, pra tirar
dos pretos. E mandar pra um lugar. Aí já tava no caixote, já encaixotado, que era pra ir não
sei pra onde é. Aí o, fizeram uma briga os nego: Me lembro da falecido Afonso, que
morava no Magalhães. Nós saímos do colégio, aí todo mundo foi ver aquela brigassada
[...] que o padre queria tirar a santa é, pra tirar dos pretos. E mandar pra um lugar
encaixotaram, e iam mandar pro estrangeiro, não sei onde que era! Vendida! No navio!
Naquele tempo era! Aí os nego descobriram, aí vieram na igreja. Seu Afonso tava de
manga de camisa, brigando pra tirar assim que o padre... pra tirar de dentro do caixote e
botar no altar. Aí os nego aqui tomava a conta da santa no altar e que não era pra tirar a
santa e mandar pro estrangeiro; conseguiram. Fizeram uma brigassada na igreja. Aí a gente
saiu do colégio pra ver! Encheu toda igreja! O seu Afonso era um nego preto! Suava que
só vendo! Aí tiraram mesmo! Tiraram e colocaram como ele queria! (sic) (SILVA, 2010).

Conforme a entrevistada, os pretos cuidavam da santa no altar e organizavam a festa em


homenagem à Nossa Senhora da Conceição. Conjecturemos que, no momento em que ocorria a
festa dos pretos em homenagem a essa santa, houvesse manifestações culturais das populações de
origem africana, que desagradavam tanto o padre quanto as elites locais, culminando na venda da
santa para que a festa dos pretos fosse encerrada. Essa é somente uma hipótese, porque não temos
vestígios suficientes para os motivos que levariam o sacerdote a vender a santa, deixando seus fiéis
sem sua referência devocional.
Porém, a nossa depoente fornece indícios de que as classificações dos afrodescendentes no
Brasil é algo impreciso. Para Maria Viana da Silva, o senhor Afonso era um “nego preto” como ela
afirma na citação acima. Confrontando seu depoimento com o de outro entrevistado, o radialista
João Manoel Vicente, apontava que aquele [Afonso] era um mulato, como ele afirma: “Affonso
Sabino, esse eu conheci.”
“Affonso Sabino morava ali na Praça César França de Magalhães. Era um mulato gordo,
músico, né” (VICENTE, 2010). A depoente não especifica o sobrenome do personagem que
enfrentou o padre, conquistando o direito de ter a santa novamente no altar da Igreja Santo Antônio
dos Anjos. É possível que seja a mesma pessoa e ambos classificam esse homem com categorias
distintas. Provavelmente, ele estava sendo classificado por ambos, a partir de suas próprias
referências e identificações: ela se autoclassificava como mulata, e via esse sujeito como preto e o
outro, por ser eurodescendente, identificava-o como mulato. O mesmo sujeito fazia parte das duas
sociedades recreativas, como apontam as fontes pesquisadas.
Talvez, para esse cidadão afrodescendente de Laguna, as nuanças da pele, como o seu status,
não fizeram diferença, não impediram sua circulação em ambas as agremiações. Como afirma Lilia
Moritz Schwarcz, “afinal, estabelecer uma ‘linha de cor’ no Brasil é ato temerário, já que essa é
capaz de variar de acordo com a condição social do indivíduo, o local e mesmo a situação” (1998,
p. 182, grifo da autora).
De acordo Maria Viana da Silva, o clube União Operária era frequentado por pretos que
tinham certo poder aquisitivo, confirmando a afirmação de Schwarcz, que a situação financeira
permitia a entrada de pretos na sociedade, como relata nossa entrevistada: “mas tinha preto também
na União Operária! Tinha uns preto pouzudo, de classe média! É, mais preto que também era dali!
[da União Operária] mas preto. Mas, desde que tivesse assim, uma vendinha, ai podia ir pra União
Operária, é uma coisa assim”. (sic) (SILVA, 2010).

Diante das discussões sobre as relações raciais no Brasil, a crescente necessidade de


renovação historiográfica enfatizando as experiências das populações de origem africana no pós-
abolição, não apenas no passado escravista, e sim como elas são vistas e entendidas no tempo
presente, compreender como essas relações foram construídas, torna-se um desafio para o
historiador do tempo presente, haja vista que no Brasil, não há uma ruptura significativa com essas
hierarquias raciais, e sim, permanências, evidenciando que os grupos sociais no país ainda pensam
a sociedade brasileira a partir dessas identidades racializadas. No entanto, a compreensão dos
processos históricos é um exercício de análise crítica, independente de ser de longa duração ou de
curta duração, como explicita René Rémond:
A história, a meu ver, faltaria como uma de suas funções se não assegurasse uma
compreensão do presente, uma inteligibilidade dos problemas com os quais nos
defrontaremos. Acredito que hoje em dia a causa esteja ganha. Está comprovado que não
é impossível para os historiadores distanciar-se de seus preconceitos. Em consequência, o
passado, mesmo aquele mais próximo, encontra-se reintegrado, incorporado ao domínio
da história. E melhor assim do que abandoná-lo a outras disciplinas (RÉMOND, 1994, p.
7).

“A história do tempo presente é um conceito em construção que, por sua vez, expressa uma
história também em construção” (RÉMOND, 1994), reinterpretada e ressignificada com
ferramentas teórico-metodológicas para construção e defesa da história. Este texto foi desenvolvido
na perspectiva da História do Tempo Presente, haja vista a continuidade da luta dos
afrodescendentes por inserção social, visando ampliação dos direitos enquanto cidadãos, e
resistindo contra toda forma de preconceito e exclusão social.
Ademais, dessas ações enunciadas, há também uma preocupação em salvaguardar o
patrimônio material e imaterial dessa população, a exemplo do Levantamento dos Clubes Negros
no Brasil como Lugares de Memória (2009), com o apoio da Fundação Cultural Palmares, IPHAN
e Movimento Negro. Para além da salvaguarda do patrimônio material e imaterial das populações
de origem africana, é plausível refletir do ponto de vista do tempo presente, à medida que se propõe
uma discussão em torno da memória em uma perspectiva contemporânea, em que essas memórias
privilegiam as fraturas, as rupturas. E, conhecendo os problemas em utilizar as memórias,

a história busca produzir um conhecimento racional, uma análise crítica através de uma
exposição lógica dos acontecimentos e vidas do passado. A memória é também uma
construção do passado, mas pautada em emoções e vivências; ela é flexível, e os eventos
são lembrados à luz da experiência subsequente e das necessidades do presente
(FERREIRA, 2002, p. 314).

Como adverte Jacques Le Goff, “se a memória faz parte do jogo do poder, se autoriza
manipulações conscientes ou inconscientes, se obedece aos interesses individuais ou coletivos”
(1990, p. 32). Ter essas memórias como únicas fontes para análise acaba por reproduzir a visão de
mundo de um grupo específico.

BOSI, Ecléa. Memória e sociedade: lembranças de velhos. 12. ed. São Paulo: Companhia das
Letras, 1994.
BRITTO, Ieda M. Samba na cidade de São Paulo (1900-1930): um exercício de resistência
cultural. Dissertação (Mestrado em Ciências Sociais) – Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências
Humanas, Universidade de São Paulo, São Paulo, 1986.

CABRAL, Oswaldo R. Laguna e outros ensaios. Florianópolis: IOESC, 1939.

CAMPOS, Gizely Cesconetto de. Patrimônio edificado de Laguna: conhecer, interpretar e


preservar. Dissertação (Mestrado em Ciências da Linguagem) – Universidade do Sul de Santa
Catarina (UNISUL). Tubarão, 2007.

CARDOSO, Fernando Henrique; IANNI, Octávio. Cor e mobilidade social em Florianópolis:


aspectos das relações entre negros e brancos numa comunidade do Brasil Meridional. São Paulo:
Ed. Nacional, 1960.

CARDOSO, Paulino de Jesus Francisco. A luta contra a apatia: estudo da instituição do


movimento negro antirracista na cidade de São Paulo (1915-1931). Itajaí: Casa Aberta, 2012.

______. A vida na escola e a escola da vida: experiências educativas de afrodescendentes em


Santa Catarina no século XX. In: ROMÃO, Jeruse (Org.). História da educação do negro e
outras histórias. Brasília: Ministério da Educação; Secretaria de Educação Continuada,
Alfabetização e Diversidade, 2005. (Coleção Educação para Todos).

CARVALHO, Andréa Aparecida de Moraes Cândido. Negros de Lages: memória e experiência de


afrodescendentes no planalto serrano. Itajaí: Casa Aberta, 2008.

CASTRO, Hebe Maria Mattos de. A cor inexistente: relações raciais e trabalho rural no Rio
de Janeiro pós-escravidão. In. Estudos afro-asiáticos, n. 28, p. 101-127, 1995.

CERTEAU, Michel de. A invenção do cotidiano: artes de fazer. 14. ed. Petrópolis: Vozes, 2008.

CHALHOUB, Sidney. Cidade febril: cortiços e epidemias na corte imperial. São Paulo:
Companhia das Letras, 1996.

COSTA, Sergio. A construção sociológica da raça no Brasil. In. Estudos Afro-Asiáticos, a. 24,
n. 1, p. 35-61, 2002.

DELGADO, Lucília de Almeida Neves. História Oral: memória, tempo, identidades. Belo
Horizonte: Autêntica, 2006.

DOMINGUES, Petrônio José. A nova Abolição. São Paulo: Selo Negro, 2008.
ESCOBAR, Giane Vargas; MARTINS, João Carlos. Levantamento dos Clubes Sociais Negros do
Brasil como lugares de memória: cidadania, inclusão e preservação do Patrimônio Cultural
Imaterial Afro-Brasileiro. Santa Maria: RS, 2009.

FERNANDES, Florestan. A integração do negro na sociedade de classes. São Paulo:


Dominus: Ed. da USP, 1965. 2 v.

FERREIRA, Marieta de Moraes. História, tempo presente e História Oral. In. Topoi, Rio de
Janeiro, p. 314-332, dezembro/2002.

GUIMARÃES, Matheus Silveira. A população africana na irmandade de Nossa Senhora do


Rosário: a cidade da Paraíba e o Mundo Atlântico. In. Revista Crítica Histórica, a. VII, n. 13,
junho/2016.

KABENGELE, Daniela do Carmo. As inflexões do termo pardo na trajetória de Antônio Ferreira


Cesarino (Campinas, século XIX). Juiz de Fora, v. 4, n. 1 e 2, p. 101-112, 2009.

_____. As narrativas e os arranjos da Terminologia racial no período escravista brasileiro: o caso


de Antônio Ferreira Cesarino. In. História e Perspectivas, Uberlândia, n. 53, p. 401-422, 2015.

LE GOFF, Jacques. História e memória. 2. ed. Trad. Bernardo Leitão. Campinas/SP: Ed. da
UNICAMP, 1992.

LEITE, Ilka Boaventura. Ser “negro”: os sentidos da cor e as impurezas do nome. Trabalho
apresentado para o concurso de professor adjunto a Cadeira de Antropologia no Departamento
de Ciências Sociais na UFSC, 1987.

LONER, Beatriz Ana. Negros: Organizações e Lutas em Pelotas. Disponível em


<https://goo.gl/EPcagU>. Acesso em: 27 abr. 2010.

LUCINDO, Willian Robson Soares. Educação no pós-abolição: um estudo sobre as propostas


educacionais de afrodescendentes (São Paulo/1918-1931). Itajaí: Casa Aberta, 2010.

MAFFESOLI, Michel. A transfiguração do político: a tribalização do mundo pós-moderno. 3.


ed. Porto Alegre: Sulina, 2005.

MAHONY. Mary Ann. A vida e os tempos de João Gomes: escravidão, negociação e resistência
no Atlântico negro. Revista Crítica Histórica, a. VII, n. 13, junho/2016.

MARIA, Maria das Graças. Imagens invisíveis de Áfricas presentes: experiências das
populações negras no cotidiano da cidade de Florianópolis (1930-1940). Dissertação
(Mestrado em História) – Centro de Filosofia e Ciências Humanas, Universidade Federal de
Santa Catarina, Florianópolis, 1997.

MATTOS, Hebe Maria. Das cores do silêncio: os significados da liberdade no Sudeste escravista,
Brasil século XIX. 2. ed. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2013.

NASCIMENTO, Maria Augusta Geremias do. A socialização do escravo em tempos de transição


à Liberdade: Julia Chrispina do Nascimento, mulher negra e professora (Laguna, SC -
1884/1947). Dissertação (Mestrado em Educação) – Universidade do Sul de Santa Catarina,
Tubarão, 2006.

ORSI, Bernadete. Clube 13 de Maio: um estudo sobre um território negro na área urbana de
Tijucas. Monografia (Especialização) – Universidade do Estado de Santa Catarina, Centro de
Ciências da Educação. Florianópolis, 1999.

POLLAK, Michael. Memória e identidade social. Revista Estudos Históricos, Rio de Janeiro,
v.5, n. 10, p. 200-212, 1992.

RÉMOND. Réne. Porque a história política? Estudos Históricos, Rio de Janeiro, v. 7, n.13, p.
7-19, 1994.

RIOS, Ana Lugão. O pós-abolição como problema histórico: balanços e perspectivas. Topoi, v. 5,
n. 8, p. 170-198, jan./jun. 2004.

SÁ. Antônio Fernando de Araújo. A história do presente como tempo da memória.


INFONET, 2005. Disponível em: <https://goo.gl/LJ26w4> Acesso em 13 out. 2017.

SCHWARCZ, Lilia Moritz. Nem preto nem branco, muito pelo contrário: cor e raça na
intimidade. In: SCHWARCZ, Lilia Moritz (Org.). História da vida privada no Brasil:
contrastes da intimidade contemporânea. São Paulo: Companhia da Letras, 1998.

SIEGEL, Micol. Mães pretas, filhos cidadãos. In. CUNHA, Olívia Maria Gomes da; GOMES,
Flávio dos Santos. Quase-cidadão: histórias e antropologias da pós-emancipação no Brasil. Rio
de Janeiro: Ed. da FGV, 2007.

VIANA, Larissa. O idioma da mestiçagem: as irmandades de pardos na América Portuguesa.


Campinas, SP: Ed. da UNICAMP, 2007.
BENTO, Antônio Paulo. Entrevista concedia a Júlio César da Rosa. Laguna, 27 de janeiro de
2010. Entrevista.

BRUM, Marli. Entrevista concedida a Júlio César da Rosa. Laguna, 29 de janeiro de 2010.
Entrevista.

REIS, Antônio dos. Entrevista concedida a Júlio Cesar da Rosa. Laguna, 22 de fevereiro de
2008. Entrevista.

SILVA, Maria Viana da. Entrevista concedia a Marilise Luiza Martins dos Reis. Laguna,
dezembro, 2010. Entrevista.

VICENTE, João Manoel. Entrevista concedida a Júlio César da Rosa. Laguna, 28 de janeiro
de 2010. Entrevista.
Laura Spritzer Galli

Este artigo faz parte de uma pesquisa de Mestrado em andamento na Universidade


Federal do Rio Grande do Sul, iniciada em 2017. A pesquisa busca identificar, através de
depoimentos de História Oral, transformações na cidade e no carnaval no período final dos
anos 1950 e ao longo dos anos 1960. Procuro investigar como as memórias sobre o carnaval
podem ajudar a compreender as relações sociais na história da cidade em seu processo de
modernização. Entendendo o carnaval como forma de resistência e de disputa de espaço
público, a questão que se coloca é: qual a relação de pessoas que viveram o carnaval de rua de
Porto Alegre dos anos 1950 e 1960 com as mudanças urbanas pelas quais a cidade passou no
período?
O presente trabalho traz apontamentos iniciais da pesquisa, sendo uma análise
preliminar a partir de uma das fontes. O material central analisado neste artigo consiste no
registro de um encontro com idosos e idosas1 no Museu de Porto Alegre Joaquim José
Felizardo, que ocorreu em outubro de 2016, dentro do projeto Foto Memória, parceria do
Museu com a Secretaria Adjunta do Idoso da Prefeitura. O projeto consistia a princípio em três
encontros onde a equipe do Museu apresentaria fotografias antigas de Porto Alegre, do
acervo da Fototeca Sioma Breitman,2 para que os e as participantes auxiliassem no trabalho
de identificação das imagens que não continham muitas informações. A ideia era unir a
necessidade do Museu em ter registro de dados sobre fotografias e a iniciativa da
Secretaria do Idoso em oportunizar momentos de lazer de qualidade para essas pessoas.
Desde o primeiro encontro, as profundas transformações na paisagem da cidade bem como os
antigos carnavais foram temáticas presentes nas conversas dos idosos e idosas
participantes. Casualmente ou não, essas pessoas tinham em comum o fato de terem vivido
em bairros onde o carnaval de rua ocorria, como Areal da Baronesa, na Cidade Baixa e no
bairro Santana do final dos anos 1950, quando eram adolescentes e jovens, até meados dos
anos 1960.
Os dois primeiros encontros do projeto foram centrados em fotografias gerais da
cidade, a maioria delas de rua, algumas aéreas, de obras urbanas, e outras que mostravam a
vida cotidiana na cidade. No terceiro encontro, o convite foi para falarem
especificamente sobre carnaval, demonstrando a atenção da equipe do Museu aos assuntos
suscitados nos primeiros encontros. O grupo que participou desse terceiro encontro se formou
através das redes de relações já existentes, mas também em parte ao acaso, já que nem todos
se
* UFRGS, mestranda em História, bolsista CAPES – PROEX.
1 Utilizo ao longo do texto o termo “idosos” para manter a coerência com a proposta da Secretaria do Idoso. Na
parte final do trabalho, optei por utilizar “velhos” de acordo com a acepção de Ecléa Bosi.
2 A Fototeca Sioma Breitman é o acervo fotográfico do Museu de Porto Alegre, que conta com obras
de fotógrafos da cidade,como o próprio Sioma, Virgílio Calegari, Barbeitos & Irmãos e Irmãos Ferrari;
com registros oficiais da Prefeitura; com coleções particulares, como álbuns de família, e com outras doações
em geral.
se conheciam previamente e compareceram após uma chamada da Secretaria do
Idoso.Falou-se muito das experiências dos blocos e tribos carnavalescas antes do que,
segundo os próprios participantes, mudou o carnaval porto-alegrense: nas memórias deles, é
unânime a noção de que a partir da fundação da Academia de Samba Praiana, Porto Alegre
“importou” um modelo de bateria de escola de samba e de estrutura do desfile do Rio de
Janeiro, abandonando aos poucos o carnaval de blocos, considerado mais espontâneo.
Naquela tarde, a conversa começou já na entrada do museu, no pátio, conforme as
pessoas iam chegando. Ao som dos pássaros que cantavam a primavera, as primeiras
aproximações ocorriam espontaneamente, tanto no caso de pessoas que não se conheciam e
se apresentavam, quanto no caso daqueles que reencontraram antigos conhecidos,
relembrando momentos e pessoas.
O grupo presente neste encontro era formado por aproximadamente dez homens e
cinco mulheres, a maioria de ambos os grupos composta por pessoas negras. Sempre tendo
em vista a questão do lugar de fala, julgo ser praticamente impossível não mencionar a
categoria de raça quando se fala em cultura popular, marginalização, samba e carnaval no
Brasil. Ainda que tenha esse entendimento, pontuo que neste momento da pesquisa escolho
não aprofundar o tema mais detalhadamente, justamente por saber da complexidade que o
envolve. A construção da identidade gaúcha excluiu e exclui a presença negra, invisibilizando
suas manifestações culturais e diminuindo sua presença no estado. Embora o carnaval possa
ser entendido como um campo de conflitos, em que diferentes grupos sociais se apropriam da
festa à sua maneira, é inegável a maciça presença negra no formato da festividade, dos
blocos e tribos até os dias de hoje, nas escolas de samba. Uma pesquisa que busca investigar
as relações sociais reproduzidas no contexto da festa, portanto, não pode deixar de lado essa
categoria de análise.
O encontro se desenvolveu no auditório do Museu durante cerca de duas horas.A
então diretora iniciou a fala apresentando o projeto e explicando que a equipe selecionara
fotografias do acervo e também solicitara que as pessoas levassem suas fotos para
enriquecer a conversa. Em seguida, cada participante se apresentou aos demais, dizendo qual
sua relação com o carnaval de Porto Alegre. Junto aos idosos e idosas, estavam presentes
também alguns jovens participantes de blocos de rua da atualidade, para ouvir e documentar o
encontro. No grupo havia, entre outros: um dos fundadores da Imperadores do Samba; um
magistrado ex-jurado dos carnavais dos coretos; um fundador da tribo dos Caetés e
participante da Associação das Entidades Carnavalescas; uma moradora da rua Baronesa do
Gravataí e foliã dos carnavais dos coretos; uma senhora que havia participado das Iracemas,
tribo carnavalesca formada apenas por mulheres; uma jornalista um pouco mais jovem da
média do grupo, participante do bloco da Rua do Perdão; e uma senhora que fora solista
(cantora) dos Fidalgos e Aristocratas. Outras pessoas chegaram depois dessa
apresentação inicial, aumentando o grupo.
“Isso aqui é na Borges? Como era? Aqui diz que a foto é de [19]67”.
Ampliando as imagens através do projetor, a equipe do Museu passava as fotografias,
deixando um tempo para observação e aos poucos os participantes faziam seus comentários.Se
para a equipe o interesse maior era aumentar os dados do acervo fotográfico, para as
pessoas participantes do encontro, as fotografias apresentadas suscitavam memórias de
diversos níveis, antigas ou mais recentes, e serviam como catalisador para relatos importantes
a respeito de como ocorriam os carnavais de rua, dos coretos, dos bairros, chegando até
momentos mais próximos no tempo.
A finalidade inicial do encontro não era a mesma de uma entrevista de História Oral,
pois embora ele tenha sido documentado, não havia uma intenção de que se tornasse fonte
histórica, a princípio. Porém, conforme as imagens eram apresentadas, foi se desenhando um
tipo de conversa muito parecido com o de uma entrevista. Era solicitado que identificassem
lugares e pessoas, ou mesmo datas ou épocas, relativas àquelas fotografias específicas. Dessa
forma, elas funcionaram como perguntas de um roteiro, e a partir delas diversas memórias
foram suscitadas. As múltiplas histórias pessoais que foram contadas surgiram como efeitos
produzidos a partir da visualização das imagens, o que se mostrou positivo para os e as
participantes pois lhes permitiu reviver aqueles momentos registrados e lembrar de outros.
“Isso aí não é [19]58, de jeito nenhum”. No trabalho coletivo de desvendar as
imagens, surgiram verdadeiros detetives, com palpites de quem tem bagagem suficiente
de ter vivido naqueles cenários e tempos. Das suspeitas, surgiram histórias e lembranças
(boas ou nem tanto), em que confetes e serpentinas se fizeram presentes. As
fotografias serviram então como disparadores para relembrar, reviver.
As fotografias, nesse caso, estão associadas à ideia de documento. Isto é, para os e
as participantes, as imagens exibidas se tornaram testemunhas da realidade (PRIORE, 2005,
p. 29), provas de que aqueles momentos ocorreram e como ocorreram. E, ainda, traziam a
ideia de que a fotografia pode “mostrar” a história de uma forma única, diferente dos
documentos escritos.

“A história contada por um só não é a mesma história. Quanto mais contarem a história,
melhor”. Com essa frase, um dos participantes resumiu os motivos pelos quais esteve presente
naquele encontro. Para ele, não bastaria uma pessoa sozinha falando sobre os antigos carnavais de
Porto Alegre, pois seria apenas uma das versões possíveis. Era necessário que muitos participantes
contassem para tornar visível a complexidade de vivências do carnaval.
As fotos foram sendo mostradas de maneira cronológica conforme constava no acervo,
algumas delas sendo de antes do período vivido pelas pessoas presentes. Sobre este aspecto, é
interessante notar que muitos dos relatos trazidos pelos idosos e idosas não necessariamente foram
vividos por eles diretamente, mas por fazerem parte de uma comunidade e de ouvir relatos
orais de pessoas mais velhas, alguns falavam de episódios ocorridos nas décadas de 1930 ou
de1940, como se de fato os tivessem vivido. Segundo Pollak, a memória é um elemento
constituinte da identidade, tanto individual quanto coletiva. Conforme o autor, “a construção
da identidade é um fenômeno que se produz em referência aos outros, em referência
aos critérios de aceitabilidade, de admissibilidade, de credibilidade, e que se faz por
meio da negociação direta com outros”. (POLLAK, 1992, p. 204). Ao compartilhar
determinadas memórias do grupo, independentemente de tê-las vivido ou não, o sujeito
sente-se pertencente àquele grupo, percebe sua ligação, se reconhece. Assim, mesmo não
tendo vivido algumas situações, os e as depoentes mostraram que por fazer parte de uma
comunidade em que a oralidade está colocada como elemento constituinte, internalizaram as
memórias de seus grupos. A vivência no carnaval mostrou-se algo que se estende para muito
além do individual, em que as pessoas fazem parte de famílias e grupos que vivem a
festividade de forma permanente. Muitos participantes do encontro tinham irmãos mais
velhos, pais, tios, avós, que já participavam do carnaval de Porto Alegre antes deles –
e também descendentes que seguiram o costume familiar.
Verena Alberti, no texto “Histórias dentro da história”, coloca que uma entrevista de
História Oral pode ser tanto um relato de ação passada, informando sobre a vida de uma
pessoa ou das atividades de um determinado grupo, como também “um resíduo de ações
desencadeadas na própria entrevista” (ALBERTI, 2010, p. 168), tendo como autor não
somente o entrevistado – quem relata – como também o/a entrevistador/a. No caso do
encontro analisado, ainda que não tenha sido uma entrevista, podemos perceber essa autoria
coletiva do compilado de informações e lembranças compartilhadas, visto que os participantes
contribuem na construção de memórias uns dos outros. Desse modo, podemos entender que
uma situação de depoimento coletivo também acarreta numa autoria compartilhada desse
registro que se tornou fonte.
A especificidade de ter sido um encontro coletivo faz com que muitos elementos
devam ser trazidos à tona para análise. Por exemplo, as relações que se dão nos momentos de
fala, bem como as memórias que, coletivamente, surgem de outra forma do que se
fossem entrevistas individuais.Do que lembramos quando ouvimos outra pessoa falar?
Para cada novo episódio relatado, vários outros eram suscitados, ainda que nem sempre
compartilhados com o grande grupo, e sim de forma “paralela” com quem estava ao lado. Foi
uma forma de reviver aqueles momentos, de “lembrar coisas que há muitos anos não
lembrava”, como disse uma das senhoras ao final do encontro.
Ainda sobre o relato feito em grupo, e as conversas “paralelas”, é interessante
mencionar a dificuldade em entender e discernir na gravação o que estava sendo dito, já
que muitas vezes histórias eram contadas ao mesmo tempo, justamente por conta desse
intenso desencadear de memórias há muito guardadas no fundo das gavetas
mentais.Memórias essas que incluem não só acontecimentos, mas também figurinos, carros
alegóricos e músicas que aos poucos todos cantavam juntos.
É interessante perceber, também, que em geral os homens se sentiam mais à vontade
para comentar no grupo do que as mulheres. Estudos de gênero da área das linguagens
demonstram que, por serem culturalmente educadas, mais vinculadas ao espaço privado, em
situações de debates públicos, ainda mais em contextos de maioria masculina, mulheres se
sentem menos convidadas a participar, entendendo que o que têm a dizer não contribuirá tanto
para a discussão. Isso pôde ser percebido nas apresentações pessoais: de cinco mulheres, três
disseram explicitamente que não sabiam muito bem como poderiam “ajudar”, mas que
estavam ali para relembrar seus bons momentos. Já dos homens, não registrei nenhum
comentário desse tipo. Por se tratar de uma análise inicial, ainda será necessário aprofundar esse
aspecto ao longo da pesquisa.
A História Oral, ainda conforme Alberti, tem um caráter fundamentalmente
qualitativo, ou seja, trabalha com singularidades e não com generalizações, “entendendo
os depoimentos como visões particulares de processos coletivos e relativizando conceitos e
pressupostos universalizantes das experiências humanas”. Assim, o interesse da pesquisa e da
análise deste material não é tanto o de buscar informações de como era “na realidade” o
carnaval de blocos nos bairros, mas entender como as memórias sobre o período são construídas
por esses idosos e idosas. As datas mencionadas, por exemplo, nem sempre são precisas. A
memória pode trair, misturar situações, justamente porque o exercício do lembrar é feito no
presente, a partir do que estamos vivendo e com as preocupações do momento. Além disso,
entendo que cada depoimento é único e varia de acordo com os muitos atravessamentos
pelos quais uma pessoa pode passar, como pertencimento de raça, gênero, local de
origem, família, trabalho, entre muitos outros. Portanto, é indispensável um conhecimento
mais a fundo desses atravessamentos de cada participante para uma análise mais rica do debate
realizado.

Ainda na temática da memória, a psicóloga Ecléa Bosi faz uma interessante reflexão sobre
lembranças de velhos na sociedade brasileira. A autora investigou a respeito da formação das
memórias de pessoas velhas, trabalhadores e trabalhadoras, e sua relação com o trabalho. Fazendo
referência a Hallbwachs, Bosi menciona a diferença da relação dos adultos e dos velhos com suas
memórias: os primeiros, envolvidos com as tarefas do presente, não têm o hábito de se ocupar do
passado. Quando recordam momentos, a memória tem caráter de fuga, contemplação, distração das
tarefas práticas do dia-a-dia. Os velhos, já tendo vivido bastante. Quando lembram o passado não
estão descansando: pelo contrário, estão se ocupando “da substância mesma da sua vida” (BOSI,
1994, p. 60). Lembrar torna-se uma ocupação, e a iniciativa do projeto aqui abordado é um exemplo
de como qualificar e positivar essa experiência.
Dependendo do contexto, os velhos podem adquirir ainda uma função social de ser a
memória da família ou do grupo em que se inserem, tendo eventualmente a obrigação de lembrar.
Isto ficou bem claro em alguns casos, especialmente nos de pessoas envolvidas com organizações
do carnaval, em que os participantes demonstraram estar habituados a contar histórias e serem
ouvidos.3 Esse aspecto mostra-se, também, na questão já mencionada acima sobre fazerem
parte de famílias e grupos envolvidos com o carnaval desde antes de nascerem e de deixar
esse legado para suas descendências.
É habitual que a pessoa já afastada dos afazeres do cotidiano, do trabalho e mesmo das
atividades do carnaval, se ocupe justamente em rememorar acontecimentos e períodos passados.
Citando a autora, “Na velhice, quando já não há mais lugar para aquele ‘fazer’, é o lembrar que
passa a substituir e assimilar o fazer. Lembrar agora é fazer. É por isso que o velho tende a
sobrestimar aquele fazer que já não se faz”. (BOSI, 1994, p. 480) As pessoas consultadas no
encontro do projeto Foto Memória, estando já menos envolvidas com as atividades do carnaval hoje
em dia, romantizam suas participações e o formato de festa que faziam, olhando para o passado
com saudade. Através do projeto, então, puderam reviver aqueles momentos e sentir-se importantes
para o contar dessa história, lembrando ─ fazendo carnaval.

Ao analisar essa fonte, procurei trazer à tona alguns aspectos que considero relevantes para
compreender como operam as memórias de idosos e idosas sobre o carnaval de Porto Alegre nos
anos 1950/1960. Por ser um trabalho inicial de pesquisa, este artigo não teve como objetivo trazer
conclusões definitivas, e sim apresentar e problematizar a fonte utilizada. Busquei aquidar início às
reflexões a respeito da memória e da metodologia da História Oral, que vem sendo utilizada neste
momento em entrevistas individuais, inclusive com pessoas que estiveram presentes no encontro
abordado.
O sentimento comum de saudade e de entender os “antigos carnavais” como mais
interessantes que os atuais pode ser expresso na seguinte fala: “o carnaval era mais envolvente
porque era o povo que fazia o carnaval. Depois começou a grande mídia a fazer o carnaval. As
pessoas começaram a pensar que o carnaval é só desfile de escola de samba; e não é só desfile de
escola de samba. Carnaval é uma coisa muito mais abrangente.” Através de fotografias e das
lembranças que elas suscitaram, foi possível ter uma ideia de qual era essa abrangência mencionada,
de como aquelas pessoas se envolviam com o carnaval, seja na organização, na participação como
foliões, como jurados, enfim, entusiastas da festa. Lembrar tornou-se, naquela tarde, fazer carnaval.

ALBERTI, Verena. Histórias dentro da História. In: PINSKY, Carla (Org.). Fontes históricas. São
Paulo: Contexto, 2010, p. 155-202.

3 Casualmente ou não, os três que mais se destacaram nisso eram homens.


BOSI, Ecléa. Memória e sociedade: lembranças de velhos. São Paulo: Companhia das
Letras, 1994.

DELGADO, Lucilia. História e memória: metodologia da História Oral. In: _____ . História
Oral: memórias, tempo, identidades. Belo Horizonte: Autêntica, 2006.

POLLAK, Michael. Memória e identidade social. Estudos Históricos, Rio de Janeiro, v. 5, n. 10,
p. 200-212, 1992.

PRIORE, Mary Del. l. A fotografia como objeto de memória. In: Memória, patrimônio e
identidade. Brasília: Ministério da Educação, 2005.
ISBN 978-85-89782-11-1

1
788589

Vous aimerez peut-être aussi