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1992
A LÓGICA DA COLONIZACÃO
por Eduardo Subirats
Resumo
E ã d
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08/11/2018 A lógica da colonizacão - Artepensamento
Em vão os nomes de encontro ou descoberta, de cristianização e de aculturação
tentaram e tentam encobrir a palavra proibida desde o século XIV: conquista. A
memória dos vencidos — ontem desfraldada nas guerras da independência
americana, hoje nas figuras contemporâneas de resistência e sobrevivência das
culturas e populações indígenas e mestiças — ressalta o outro relato, às vezes
convergente com o logos do humanismo renascentista, com o espírito e o impulso
da cristandade e da cristianização, muitas vezes complementar, concorrente ou
antagônico com relação à sua pretensão universalista, à sua avassaladora e
uniformizadora vontade de exemplaridade e poder. Seu contraponto, a
consciência de culpa europeia, é parte do mesmo dilema. Os nomes terríveis de
lendas negras, as paisagens ensanguentadas do primeiro imaginário moderno da
crueldade secularizada do inferno, inaugurado por Las Casas e De Bry,
configuraram e continuam alimentando a consciência negativa sobre as tradições,
nunca completamente superadas, da destruição americana.
No entanto, é possível
reconstruir uma ordem interna na representação e nos processos singulares que
caracterizaram a dominação europeia sobre a América até os dias de hoje. Uma
lógica interna que compreende e explica um processo fundamentalmente
descontínuo e polivalente, não tenta obviar nem neutralizar os conflitos do
passado e do presente, nem a própria ilegitimidade do conjunto de um processo
de dominação que, entretanto, usurpou para si os nomes da verdadeira razão: os
do deus verdadeiro ontem, depois os da emancipação verdadeira, os da liberdade
e do progresso mais tarde, e também os nomes da razão e da racionalização, da
modernidade e da modernização nos dias de hoje.
Esta dialética da colonização foi formulada, em primeiro lugar, sob uma figura
teológica: a do estigma do índio como adamita, depois como gentio e sujeito
diabólico, e através das categorias militares de guerra justa contra índios e guerra
de salvação, de reduções eclesiasticamente concebidas e estratégias de
sacramentalização das travestidas formas de vida’indígenas, momentos
nitidamente formulados, classificados e sistematizados nas crônicas e tratados das
Índias do século XVI. Mas ao mesmo tempo compreende, antes do processo
constitucional dos novos poderes civilizatórios, o processo interno de submissão,
de radical transformação interna, de subjetivação e controle institucionais da
alma, sacramentalmente definidos pela confissão.
Tais estratégias conceituais de
vassalagem e subjetivação já haviam sido definidas, pelo menos parcialmente, ao
longo da Reconquista. São as ideias que, desde o século XIII, tinham cristalizado a
unidade das guerras entre os reinos hispânicos sob o signo de um credo
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A forma jurídica sob a qual foi articulada essa estratégia heróica da guerra santa
contra os índios foi o Requerimiento. Aprovado pela Junta de Burgos em 1512, este
requisito jurídico-teológico encerra algo mais que uma simples ameaça de guerra:
à medida que se anunciava formalmente a universalidade da urbe cristã, sujeitava-
se nominal e nominalisticamente o índio a ela, convertendo a partir desse
momento todo desacato à nova ordem mundial em ato de rebeldia e insubmissão.
O Requerimiento significava assim o reconhecimento jurídico da liberdade do
índio, porém só e precisamente como a condição formal, teológico-jurídica,
daquela culpabilidade derivada do conhecimento sumário da “verdadeira religião”
que o tornava passível de guerra justa. Se os índios eram macacos — como
raciocinou humanisticamente o padre Vitoria — não era possível fazer a guerra
contra eles. Consequentemente, antes era preciso declará-los seres livres e
racionais, para que seus deuses os tornassem milagrosamente culpados pela
guerra contra sua gentilidade.
Isto não questionava apenas o fato da conquista, mas também ao mesmo tempo
permitia redefinir e aprofundar seu sentido em termos de tutela, de proteção, de
amorosa sedução e, naturalmente, de liberdade. A título de conclusão do seu
tratado, escreve Vitoria:
Se isto for admitido, certamente não se negará que a mesma coisa pode ser feita com
os índios adultos [os príncipes poderão colocá-los sob tutela], dada a incapacidade
[7]
mental que lhes atribuem os que lá estiveram.
A presença espanhola na América era legitimada nos novos termos da defesa dos
direitos a uma forma cristã de vida, como fundamento ontológico de uma nova ou
perfeita identidade subjetiva, e como garantia de paz por parte dos indígenas.
Assim como Las Casas, Vitoria desaprovou o batismo violento e compulsório das
massas, bem como as formas de extermínio e de abuso que distinguiram as
primeiras décadas e o primeiro século da colonização. A cruz deixara de ser o
símbolo medieval da cruzada americana; convertera-se no signo moderno da
defesa do direito internacional, em princípio de subjetivação racional, em
postulado de uma espécie de modernidade.
Sua formulação radical deve-se a Las Casas. Muito poucas figuras históricas da
conquista americana conseguiram a brilhante polivalência de significados que se
cristalizam na biografia deste pioneiro, encomendero, missionário e emancipador
da América. Sua obra está centralizada num novo ideal de liberdade. Nos seus
tratados encontra-se a primeira formulação de um reconhecimento do indígena
americano como sujeito autoconsciente, autônomo, moderno, como princípio
abstrato de livre-arbítrio. A partir deste princípio liberal de autonomia e
autoconsciência, Las Casas traçou um magno projeto sintetizador: uma reforma da
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cristianização do índio que supunha ao mesmo tempo a reformulação dos
conceitos teológicos e políticos da conquista. Escreveu ele:
Porque, para receber nessa santa fé, se requer naqueles que a aceitarão e receberão
uma total liberdade de vontade, porque Deus deixou na mão e arbítrio de cada um o
fato de querer ou não recebê-la […] E se não sai da vontade espontânea e livre, e não
forçada, dos próprios homens livres aceitar e consentir qualquer prejuízo à sua
mencionada liberdade, tudo é força e violência, injusto e perverso e, segundo o direito
natural, de nenhum valor e importância, porque é mutação de estado de liberdade
[8]
para o de servidão […].
Todas estas universas e infinitas gentes a toto genero foram criadas por Deus com
suma simplicidade, sem maldades nem hipocrisias, obedientíssimas e fidelíssimas aos
seus senhores naturais e aos cristãos aos quais servem, mais pacientes, mais pacíficas
e quietas, sem rancores nem tumultos, não briguentos, não queixosos, sem
ressentimentos, sem ódios, sem desejar vinganças, os melhores que existem no mundo.
Também são as pessoas mais delicadas, fracas e ternas […]
Este limite teórico da reformulação da conversão de índios por Las Casas era o
próprio limite teológico do universalismo humanista-cristão: seu princípio de
autonomia do sujeito universal, fundado no princípio doutrinário da redenção
universal na cruz, tinha como preço um conceito abstrato de subjetividade. O
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índio só se convertia em um sujeito livre ao abandonar sua existência não livre,
isto é, prisioneira das suas formas de vida, das suas tradições e da sua
comunidade.
Assim, destas e de outras coisas concluo que jamais poderemos fazer com que
realmente conheçam a Deus, enquanto não tivermos arrancado pela raiz tudo o que
[13]
estiver relacionado com a velha religião dos seus antepassados […].
Uma nova consciência, nem heróica nem utópica, mas sim bastante pragmática,
surgiu a partir da segunda metade do século XVI sob as exigências administrativas
e políticas da colônia. Nesta nova perspectiva o índio não é mais, teologicamente
falando, o desconhecido Outro no qual deve ser projetado o imaginário medieval
cristão: um sujeito diabólico, o adamita inocente, o judeu condenado por Deus. E
também não é aquela consciência inofensiva e ingênua garantida pelos sistemas
teológico-políticos de Las Casas ou Vitoria. Pela primeira vez, o americano é
reconhecido em sua existência real, em sua feroz resistência contra a identidade e
as formas de vida impostas pelo invasor. Pela primeira vez, esses frades e
missionários entenderam a necessidade de explorar o imaginário indígena para
penetrar em sua estrutura com estratégias mais refinadas e eficazes de domínio
interno. Pela primeira vez, formula-se um programa expresso do reconhecimento
do indígena em sua realidade histórica, ética, psicológica e social, ou seja, uma
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antropologia teológica.
Antes seria preciso pensar que é hereditária a doença da impiedade que, contraída no
próprio seio da mãe, e criada mamando seu próprio leite, robustecida com o exemplo
paterno e familiar, e fortalecida com o costume dilatado e a autoridade das leis
públicas, tem tal vigor que só poderá sarar mediante a irrigação muito abundante da
divina graça e o trabalho infatigável do doutor evangélico […] Aqui, portanto,
convém que o catequista firme o pé, e para arrancar as últimas raízes da idolatria do
[14]
ânimo dos índios, ponha seu pensamento, sua indústria e seu trabalho.
Para que a presente obra possa ser pregada com maior facilidade, pareceu necessário
apresentar-se através de sermões breves e sumários, com uma autoridade do
Evangelho no início de cada sermãozinho […] pois é preciso que todos, pequenos e
grandes, homens e mulheres, assumam a doutrina cristã […] catorze artigos de fé. E
os dez mandamentos de Deus. E os sete sacramentos da Igreja. E as catorze obras de
misericórdia corporais e espirituais. E os sete pecados mortais, com as sete virtudes
[15]
contrárias […].
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