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INTRODUÇÃO
A escolha neste estudo pela escultura de Nossa Senhora Aparecida se deve, sobretudo, ao
caráter histórico-social que ela apresenta como padroeira “mestiça” de um país que, desde a
proclamação como república, em 1889, reacendeu o desejo de reestabelecer a construção de
uma nação. Albert-Llorca (1994, tradução nossa), admite que ao se celebrar uma santa como
padroeira, é a própria identidade da nação, cidade ou região que é exaltada.
Pensar na relação da Igreja Católica com o Estado a partir da imagem de Aparecida é adentrar
a Virgem Maria num contexto político-religioso, em que a partir de sua vestimenta, portadora
das bandeiras do Brasil e do Vaticano, testemunha e legitima a ligação entre essas duas
instituições: Igreja e Estado. A inserção de Maria no discurso político de uma sociedade
também ocorreu em outros momentos históricos. Como explicita Delfosse (2012 apud
FIGUERAS, 1999, tradução nossa), grande parte dos historiadores da arte destacam a
integração da iconografia mariana no exercício de legitimação de poderes na Idade Média,
reforçando, assim, determinadas autoridades.
Aparecida absorve e reflete o poder político no Brasil. Apesar de ter sido encontrada desde
1717, essa escultura foi aclamada como padroeira do Brasil somente a partir do dia 31 de
maio de 1931, na cidade do Rio de Janeiro, que era a capital do Brasil. Vale salientar que isso
ocorreu na primeira fase da Era Vargas, no período inaugural do Governo Provisório (1930-
1934), quando se punha em ascensão a Ação Católica Brasileira. Nessa agitada ambiência
Doutoranda em Artes Visuais, na área de História e Teoria da Arte, e linha de Pesquisa Imagem e Cultura, do
Programa de Pós-Graduação em Artes Visuais da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ).
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política em que o chefe do País governava provisoriamente por meio de decretos, Maria atua
na cena patriótica desta nação.
O “sustento” buscado em Maria também ocorre no Brasil, num laço estabelecido entre Vargas
e o Cardeal D. Sebastião Leme. Diante da busca pela retomada dos seus fiéis por parte da
Igreja Católica, e em face da necessidade de se unificar para melhor governar ou controlar o
Brasil no período pós-revolução de 1930, concordamos com Silva (2012: 2) que, afirma isto:
“[...] o estado precisava manter o espírito cristão, e Getúlio Vargas precisava ser visto como
Pai da nação em uma perspectiva cristã”.
Quando citamos o início do, então, governo de Getúlio Vargas, referimo-nos a uma sociedade
legalmente laica, diante da promulgação da Constituição de 1891, advinda com a proclamação
da República de 1889. Com essa Constituição, sobreveio o fim do sistema de padroado1 e,
com isso, uma potencial e aparente perda da hegemonia da Igreja Católica na esfera política
do país. O fim ilusório dessa quebra de ligação entre Estado e Igreja na República, trouxe
consequências para o catolicismo: instituiu-se o casamento civil, entregaram-se os cemitérios
para as prefeituras, decretou-se o fim do ensino religioso nas escolas públicas, assim como se
determinou o não pagamento do salário do Clero pelo Estado (SILVA, 2012).
Desse modo, investigamos neste trabalho como a figura de Aparecida, por meio do seu
vestuário, aparece como representante de duas instituições que outrora haviam sido
segmentadas. Visto que essa cisão ideológica pode ter contribuído para as mudanças na
ornamentação dos mantos de Aparecida, a Virgem assume na política uma função de
fundamental afirmação do apoio da Igreja ao Estado, e vice-e-versa.
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“O padroado era um ‘instituto jurídico’ pelo qual o papa concedia aos reis direitos e privilégios sobre a Igreja
(negócios eclesiásticos) e recebia, através de obrigações dos monarcas, recursos e proteção para os seus
trabalhos” (LUSTOSA, 1992, p. 17).
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A segunda data desse tipo de evento foi o 5º domingo da Páscoa; em seguida, passou a ser 8
de setembro, por ser a data católica da natividade de Maria, “[...] provocando uma associação
com a comemoração da independência política (a ponto de, em 1939, a Igreja deslocar o dia
de Aparecida para o dia 7 de setembro)” (GIUMBELLI, 2011: 42). Foi somente na assembleia
geral da Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB), em 1953, que ficou decidido
que a festa seria definitivamente celebrada no dia 12 de outubro desse ano, mesmo dia do
Descobrimento da América, como permanece até os dias atuais.
Assim, o olhar que contempla a imagem de escultura de Nossa Senhora Aparecida, e, mais
precisamente, do seu vestuário, não se resume a apreender somente o que concerne à sua
autoria, datação, técnica e iconografia, sem deixar de reconhecer a importância desses
saberes. Indo para além da imagem que se vê, percebemos uma multiplicidade de movimentos
históricos, antropológicos, e às vezes, psicológicos que se interpõem no decurso entre o visto
e o vivido.
Na história da arte precedente, o retrato era explicado, por exemplo, como gênero das belas
artes, advindo do Renascimento, diante do triunfo do humanismo, do indivíduo e das novas
técnicas miméticas. Warburg, entretanto, cruza marcas de diferentes tempos, quando pontua, a
partir desse tipo de representação, práticas pagãs antigas, formas litúrgicas medievais cristãs,
além dos contextos sociais artísticos e intelectuais do século XV italiano. Em Warburg,
conforme explicita Didi-Huberman (2013: 35):
Esses fantasmas corresponderiam a traços que mal são visíveis, mas que estão intrínsecos aos
detalhes da própria imagem, nos reportando para outros tempos, de outras histórias. “Haveria
assim uma dinâmica interna das imagens, um tempo que lhe é próprio” (DI GIOVANNI,
2014: 1), “no detalhe de uma moda do vestuário, uma fivela de cinto, uma circunvolução
particular de um coque feminino” (DIDI-HUBERMAN, 2012: 35).
Diante disso, observando o vestuário de Aparecida, antes, durante e depois do período em que
a escultura foi considerada padroeira, na primeira fase do governo provisório de Getúlio
Vargas (1930-1934), verificamos que o Manto de Aparecida não é o mesmo que conhecemos
hoje, conforme fotografias expostas abaixo, portando as bandeiras do Brasil e do Vaticano.
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O primeiro período do governo de Getúlio Vargas se estende de 1930 a 1945. Nascido em 1883, no Rio Grande
do Sul, Vargas se ingressou na carreira militar, mas depois passou a estudar direito. Em 1924 se tornou deputado
federal; e em 1926 passou a ser ministro da Fazenda no governo de Washington Luiz. Em 1928, tornou-se
governador do Rio Grande do Sul. (SKIDMORE, 1992).
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É interessante notar que quase 100 anos antes desses acontecimentos, na Constituição
brasileira de 1824, mantinha-se o regime de união entre o Império e a Igreja Católica, o que
conferia ao catolicismo o status de religião do Estado. Os clérigos eram funcionários do Rei
para negócios eclesiásticos (TORRES, 1968).
Bandeira (2000) afirma que é na Constituição de 1934 que a igreja católica faz reivindicações
diante da ameaça de perda de poder no, então, Estado laico. Solicita-se: o ensino religioso nas
escolas públicas; a não aprovação do divórcio; e o financiamento (pelo Estado) das obras da
Igreja. Algumas dessas solicitações foram atendidas na nova Carta Magna Nacional ou
Constituição de 1937.
Esse período laico será absorvido pelo catolicismo como elemento estimulador de novas
acomodações entre religião e política, mediadas pela sutileza simbólica das vestes de
Aparecida. As fotografias mais antigas dessa escultura nos mostram que a presença das
bandeiras do Brasil e do Vaticano só vai ocorrer após o ano de 1931, quando a imagem é
considerada padroeira brasileira.
Nesse ensejo, coloca-se como símbolo de hibridização étnica uma padroeira “mestiça” (pela
cor escurecida da escultura) numa ambiência de busca pela identidade nacional, acenando
para um cenário favorável diante da aparente perda de fiéis pela igreja católica, nos primeiros
anos da república. Em 31 de maio de 1931, a pedido do Cardeal D. Sebastião Leme, a imagem
de escultura de Nossa Senhora Aparecida foi levada ao Rio de Janeiro, e aclamada Rainha do
Brasil por mais de um milhão de pessoas.
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O início do movimento da Ação Católica no Brasil está em consonância com uma nova
ambiência político-social, de rompimento com a antiga metrópole – Portugal. Além disso,
promove uma inserção do leigo nas diretrizes da igreja católica, amenizando a incisiva
hierarquia até então existente. Na citação a seguir, Souza (2006: 48) explica mais atentamente
essa relação:
Nesse ensejo, sabe-se que a Ação Católica Brasileira, aliando-se à ditadura, ocupou um
cenário estratégico durante o Estado Novo. A abertura da participação do laico nas
determinações da igreja culminou com a necessidade de tornar o povo mais próximo de sua
pátria, por meio do estabelecimento de uma padroeira “mestiça” e que, posteriormente teria
em seu manto a presença das bandeiras do Brasil e do Vaticano, como acontece até hoje, em
2017.
Quanto ao movimento supracitado, a igreja católica, em crise diante das recentes forças
republicanas, busca uma aproximação com esses novos poderes, estruturando-se dentro do
modelo de romanização. De todo modo, Alves (2005: 61) assinala que “[...] tais
possibilidades já vinham sendo criadas na Europa desde o final do século XIX” e após a
Primeira Guerra Mundial (1914-1918), sobretudo na Itália. Para Lustosa (1992: 101):
Nesse ensejo, não se têm notícias, ainda, sobre a presença de complementos vestimentares
para a escultura antes de 1750. “Manto e Coroa da Imagem já constam de um inventário da
Capela do ano de 1750, documento conservado no Arquivo da Cúria Metropolitana de
Aparecida” (BRUSTOLONI, 1998: 18). Em 4 de janeiro desse ano, foi feito inventário que
enumera diversas alfaias e preciosidades depostas aos pés de Aparecida. Em 25, também
desse mesmo mês e ano, foi fundada a Irmandade de Nossa Senhora Aparecida, e pouco
tempo depois, começaram as visitas oficiais da Autoridade eclesiástica.
Tem-se em consideração que a própria estrutura da escultura é dotada de vestimenta, mas que
pela inclusão do manto, trata-se, portanto, de uma peça inteira, de terracota, que teve uma
complementação de vestes.
Figura 3 – Primeira foto da Imagem, tirada pelos fotógrafos franceses Robin e Favreau, 1869.
Fonte: (BRUSTOLONI, 1981).
Figura 4 – Manto mais antigo, usado da imagem original de Nossa Senhora Aparecida, na
coroação da Imagem, em 1904. Exposto no museu da Basílica.
Fonte: Os mantos... (Acesso em: 17 dez. 2015).
Também são apresentadas por Brustoloni (1981), duas fotografias de Aparecida (sem o manto
e com o manto) de 1929, tiradas por André Benotti, como podemos ver nas figuras expostas a
seguir:
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Sabe-se também que a escultura oficial de Aparecida passou por uma intervenção de
restauração no ano de 1946, realizada pelo Pe. Alfredo Morgado. No segundo restauro, já
realizado em 1950 pelo Pe. Humberto Pieroni, da Comunidade Redentorista de Aparecida,
temos sinais da presença de um manto, tendo em vista o relato de que a cabeça da escultura se
desprendera na troca do manto, em 7 de setembro daquele ano (BRUSTOLONI,1998).
O Dr. Pedro de Oliveira Ribeiro Neto mais os peritos Maria Bardi, Dr. João Marino e a
restauradora Maria Helena Chartuni (BRUSTOLONI, 1998) concluem, por vestígios de
policromia encontrados na imagem, que ela adquiriu a cor que hoje conserva (castanho
brilhante), por ter ficado muitos anos submersa no lodo das águas, e, posteriormente, por ter
sido exposta ao lume e à fumaça dos candeeiros, das velas e tochas, ainda quando se
encontrava localizada em oratório particular dos pescadores e na capelinha de Itaguaçu, onde
teria ficado durante os 28 anos, antes de ser exposta à veneração pública.
Acerca disso, suscitamos a reflexão se já neste período a escultura portava algum tipo de
manto.
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De acordo com Ortiz (2006), o conceito de nação se refere a uma maneira de organização da
sociedade que associa grupos de características variadas dentro de um mesmo território
geográfico, a fim de formar uma unidade moral, mental e intelectual. Para Anderson (2008:
32), o conceito de nação está mais vinculado a algo ficcional “[...] uma comunidade política
imaginada”. Como reconhece esse último autor, as mudanças ocorridas nas religiões
confeririam aos nacionalismos certas soluções seculares para a sua consolidação e
continuidade que, antes nas cidades antigas, eram reivindicadas pelas crenças religiosas
pagãs, panteístas, maniqueístas ou monoteístas, como as investigou Coulanges (2006).
O Brasil surge sob a égide católica de seus colonizadores, mas não sem conflitos. É bom
lembrar que em 1759, uma série de cheques de interesses entre a nobreza de Portugal, seus
colonos e os religiosos católicos, levou o Marquês de Pombal a expulsar os jesuítas do Brasil.
E já no final do século XIX, prolongando-se para os primeiros anos do século XX, após a
proclamação da Republica, o Brasil passa por um processo de laicidade formal. No entanto,
adota a Aparecida como padroeira do Brasil em 1931. A consolidação do país católico, no
século XX se dá em uma nova ditadura civil-militar imposta a partir de 1964. Assim, em 1965
se inicia uma peregrinação da imagem pelas capitais dos Estados, começando por Belo
Horizonte (MG). Em 1967, celebrou-se o jubileu dos 250 anos do encontro da imagem
(BRUSTOLONI, 1998).
Acerca disso, é importante frisar que como não há ainda documentos escritos sobre quando as
bandeiras começaram a vestir a padroeira do Brasil, este estudo também é feito a partir da
observação das fotografias dessa imaginária.
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No que concerne à presença de bandeiras nas vestimentas das esculturas sacras, de um modo
geral, Trexler (1991) nos diz que em tempos passados esse ornamento poderia ser encontrado
facilmente nas imagens de Nossa Senhora durante o período medieval. A Virgem podia ser
representada como uma espécie de mensageira oficial do Medievo, tal como os servos,
igualmente revestidos com os brasões de seus senhores. Essas bandeiras teriam
frequentemente pertencido ao inimigo capturado no campo de batalha. Seria uma forma de
humilhar os grupos vencidos, afetando seu machismo, ao vestir uma “mulher” com a sua
bandeira.
Pensando-se sobre essa relação de poder que é conferida à imagem, a partir do manto e da
Coroa, citamos Alves (2005), que destaca que a coroa, no discurso eclesiástico, sugeriria que
a Igreja aprova o culto de veneração à Imagem e reconhece os milagres que ela realizou.
Ainda diz que desde a Idade Média a Coroa é símbolo de poder. Para Freedberg (1992, p.
118) “[...] as pessoas enfeitam, lavam ou coroam imagens porque todos esses atos são
sintomas de uma relação entre imagem e espectador baseada na atribuição de poderes que
transcendem o aspecto puramente material do objeto”.
O próprio manto que cobre a Virgem Maria nos remonta ao início do Cristianismo. Já na
Idade Média, o manto compunha o vestuário das pessoas. Conforme Eneida Bonfim (2002:
25):
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A sobreveste mais comum e que nunca saiu de moda desde a Idade Média foi
a capa, usada por todas as classes sociais. Era análoga ao manto, essa uma
peça especial na indumentária medieval, usado em ocasiões solenes, restrito
aos nobres e grandes senhores de ambos os sexos.
Admitimos que a ligação do homem com uma imagem na qual ele busque uma identificação
devocional, considerando-a mediadora entre si e o divinal, torna-se, identitária. Nessa relação,
o devoto, ora manifesta, ora oculta toda sorte de vícios inconfessáveis, que permeiam a pátria,
a família, religião, os desejos e preconceitos.
Também concordamos com essa autora quando nos diz que “Assim como se viu com
referência à Virgem Maria, a necessidade de parecer bem pelo enfeite existe, o que muda é o
plano em que este se insere”, seja espiritual, seja material (BONFIM, 2002: 42-43).
Desse modo, as identidades podem ser comunicadas pelo vestuário, seguindo padrões
estéticos do vestir. Logo, tipos de tecidos e propriedades da veste que comunicam a
identidade podem ser alterados a partir de transformações econômicas, estéticas, e como
ressaltamos aqui, políticas.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Essa discussão nos permite entender a contribuição das imagens sacras, neste trabalho, mais
precisamente, de suas vestimentas, para se pensar no mundo e nos seus modos de organização
social. Assim, refletimos os modos de funcionamento das imagens. O vestuário como símbolo
de poder da Igreja e do Estado medeia essa articulação religiosa, política e social, aplainando
conflitos e acomodando as contradições nessa busca pelo estabelecimento de uma nação.
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