Vous êtes sur la page 1sur 15

Mantos de Aparecida: religião, política e identidade nacional

Fuviane Galdino Moreira

INTRODUÇÃO

Esta pesquisa despontou-se da curiosidade por sabermos o motivo de as esculturas sacras


serem vestidas, e quais seriam os usos e as funções dessas vestimentas, tanto para a Igreja
Católica quanto para a sociedade laica, de um modo geral. Historicamente, Trexler (1991,
tradução nossa), também nos questiona acerca disso, ao pontuar que a prática de se vestir as
imagens esculpidas de forma humana, mesmo as de esculturas pintadas, é ainda um dos
assuntos mais negligenciados da história das artes visuais.

A escolha neste estudo pela escultura de Nossa Senhora Aparecida se deve, sobretudo, ao
caráter histórico-social que ela apresenta como padroeira “mestiça” de um país que, desde a
proclamação como república, em 1889, reacendeu o desejo de reestabelecer a construção de
uma nação. Albert-Llorca (1994, tradução nossa), admite que ao se celebrar uma santa como
padroeira, é a própria identidade da nação, cidade ou região que é exaltada.

Pensar na relação da Igreja Católica com o Estado a partir da imagem de Aparecida é adentrar
a Virgem Maria num contexto político-religioso, em que a partir de sua vestimenta, portadora
das bandeiras do Brasil e do Vaticano, testemunha e legitima a ligação entre essas duas
instituições: Igreja e Estado. A inserção de Maria no discurso político de uma sociedade
também ocorreu em outros momentos históricos. Como explicita Delfosse (2012 apud
FIGUERAS, 1999, tradução nossa), grande parte dos historiadores da arte destacam a
integração da iconografia mariana no exercício de legitimação de poderes na Idade Média,
reforçando, assim, determinadas autoridades.

Aparecida absorve e reflete o poder político no Brasil. Apesar de ter sido encontrada desde
1717, essa escultura foi aclamada como padroeira do Brasil somente a partir do dia 31 de
maio de 1931, na cidade do Rio de Janeiro, que era a capital do Brasil. Vale salientar que isso
ocorreu na primeira fase da Era Vargas, no período inaugural do Governo Provisório (1930-
1934), quando se punha em ascensão a Ação Católica Brasileira. Nessa agitada ambiência


Doutoranda em Artes Visuais, na área de História e Teoria da Arte, e linha de Pesquisa Imagem e Cultura, do
Programa de Pós-Graduação em Artes Visuais da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ).
2

política em que o chefe do País governava provisoriamente por meio de decretos, Maria atua
na cena patriótica desta nação.

Ressaltamos que a aproximação da Igreja católica com o poder secular em tempos de


inquietudes políticas foi algo recorrente em território europeu. Conforme Delfosse (2012,
tradução nossa), na Europa, do pós-Concílio de Trento, a Virgem Maria sustentou o poder dos
príncipes católicos, emprestando-lhes apoio em meio às atribulações ou garantindo a
autoridade dos poderes aos chefes locais. Assim, não é de se surpreender acerca da onda de
consagrações à Maria, que se espalhou de Estado para Estado, no Continente americano.

O “sustento” buscado em Maria também ocorre no Brasil, num laço estabelecido entre Vargas
e o Cardeal D. Sebastião Leme. Diante da busca pela retomada dos seus fiéis por parte da
Igreja Católica, e em face da necessidade de se unificar para melhor governar ou controlar o
Brasil no período pós-revolução de 1930, concordamos com Silva (2012: 2) que, afirma isto:
“[...] o estado precisava manter o espírito cristão, e Getúlio Vargas precisava ser visto como
Pai da nação em uma perspectiva cristã”.

Quando citamos o início do, então, governo de Getúlio Vargas, referimo-nos a uma sociedade
legalmente laica, diante da promulgação da Constituição de 1891, advinda com a proclamação
da República de 1889. Com essa Constituição, sobreveio o fim do sistema de padroado1 e,
com isso, uma potencial e aparente perda da hegemonia da Igreja Católica na esfera política
do país. O fim ilusório dessa quebra de ligação entre Estado e Igreja na República, trouxe
consequências para o catolicismo: instituiu-se o casamento civil, entregaram-se os cemitérios
para as prefeituras, decretou-se o fim do ensino religioso nas escolas públicas, assim como se
determinou o não pagamento do salário do Clero pelo Estado (SILVA, 2012).

Desse modo, investigamos neste trabalho como a figura de Aparecida, por meio do seu
vestuário, aparece como representante de duas instituições que outrora haviam sido
segmentadas. Visto que essa cisão ideológica pode ter contribuído para as mudanças na
ornamentação dos mantos de Aparecida, a Virgem assume na política uma função de
fundamental afirmação do apoio da Igreja ao Estado, e vice-e-versa.

1
“O padroado era um ‘instituto jurídico’ pelo qual o papa concedia aos reis direitos e privilégios sobre a Igreja
(negócios eclesiásticos) e recebia, através de obrigações dos monarcas, recursos e proteção para os seus
trabalhos” (LUSTOSA, 1992, p. 17).
3

1 APARECIDA: PADROEIRA DO BRASIL NO GOVERNO DE GETÚLIO VARGAS

O Decreto de constituição de Nossa Senhora da Conceição Aparecida, como padroeira do


Brasil foi assinado em 16 de julho de 1930, pelo Papa PIO XI, mas a cerimônia oficial de
proclamação de Aparecida como padroeira deste país só vai ocorrer em 31 de maio de 1931.
Quanto à data de celebração da festa dessa padroeira, ocorreu, inicialmente, no dia da
Imaculada Conceição, em 08 de dezembro. Para Giumbelli (2011), essa data era dedicada à
Nossa Senhora da Conceição, a padroeira oficial do Brasil antes da República, por se tratar da
padroeira de Portugal e de seus domínios desde 1646. Frisa-se que Aparecida, por suas
características iconográficas, também corresponde a essa devoção, sendo chamada de Nossa
Senhora da Conceição Aparecida.

A segunda data desse tipo de evento foi o 5º domingo da Páscoa; em seguida, passou a ser 8
de setembro, por ser a data católica da natividade de Maria, “[...] provocando uma associação
com a comemoração da independência política (a ponto de, em 1939, a Igreja deslocar o dia
de Aparecida para o dia 7 de setembro)” (GIUMBELLI, 2011: 42). Foi somente na assembleia
geral da Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB), em 1953, que ficou decidido
que a festa seria definitivamente celebrada no dia 12 de outubro desse ano, mesmo dia do
Descobrimento da América, como permanece até os dias atuais.

Assim, o olhar que contempla a imagem de escultura de Nossa Senhora Aparecida, e, mais
precisamente, do seu vestuário, não se resume a apreender somente o que concerne à sua
autoria, datação, técnica e iconografia, sem deixar de reconhecer a importância desses
saberes. Indo para além da imagem que se vê, percebemos uma multiplicidade de movimentos
históricos, antropológicos, e às vezes, psicológicos que se interpõem no decurso entre o visto
e o vivido.

Na história da arte precedente, o retrato era explicado, por exemplo, como gênero das belas
artes, advindo do Renascimento, diante do triunfo do humanismo, do indivíduo e das novas
técnicas miméticas. Warburg, entretanto, cruza marcas de diferentes tempos, quando pontua, a
partir desse tipo de representação, práticas pagãs antigas, formas litúrgicas medievais cristãs,
além dos contextos sociais artísticos e intelectuais do século XV italiano. Em Warburg,
conforme explicita Didi-Huberman (2013: 35):

[...] a imagem – a começar por aqueles retratos de banqueiros florentinos,


que Warburg interrogava com particular fervor – deveria ser considerada,
portanto, numa primeira aproximação, o que sobrevive de uma população de
fantasmas.
4

Esses fantasmas corresponderiam a traços que mal são visíveis, mas que estão intrínsecos aos
detalhes da própria imagem, nos reportando para outros tempos, de outras histórias. “Haveria
assim uma dinâmica interna das imagens, um tempo que lhe é próprio” (DI GIOVANNI,
2014: 1), “no detalhe de uma moda do vestuário, uma fivela de cinto, uma circunvolução
particular de um coque feminino” (DIDI-HUBERMAN, 2012: 35).

Diante disso, observando o vestuário de Aparecida, antes, durante e depois do período em que
a escultura foi considerada padroeira, na primeira fase do governo provisório de Getúlio
Vargas (1930-1934), verificamos que o Manto de Aparecida não é o mesmo que conhecemos
hoje, conforme fotografias expostas abaixo, portando as bandeiras do Brasil e do Vaticano.

Por isso, a importância de um breve entendimento desse governo.

Figura 1 – Imagem de Nossa Senhora Aparecida: frente, sem manto.


Figura 2 – Imagem de Nossa Senhora Aparecida: e frente, com o manto.
Fonte: Alves (2005:132).

Em novembro de 1930, Getúlio Vargas2 tornou-se presidente provisório do Brasil. Ao tomar


posse como governante provisório, em 1930, Vargas iniciará um processo de reunificação da
relação entre Igreja e Estado neste país. Assim, esse presidente contou com o apoio de Dom
Sebastião Leme, que, em 1930, teria aconselhado o Presidente Washington Luís a renunciar
espontaneamente à Presidência da República (VASCONCELOS, 2015). Dessa forma, esse
cardeal conseguiu de Vargas o compromisso de que a Igreja sempre fosse ouvida em assuntos
que envolvessem a fé e a moral. “Dom Leme desponta na liderança do episcopado com o
desafio de fazer emergir a rescristianização no Brasil” (VASCONCELOS, 2015: 297).

2
O primeiro período do governo de Getúlio Vargas se estende de 1930 a 1945. Nascido em 1883, no Rio Grande
do Sul, Vargas se ingressou na carreira militar, mas depois passou a estudar direito. Em 1924 se tornou deputado
federal; e em 1926 passou a ser ministro da Fazenda no governo de Washington Luiz. Em 1928, tornou-se
governador do Rio Grande do Sul. (SKIDMORE, 1992).
5

É interessante notar que quase 100 anos antes desses acontecimentos, na Constituição
brasileira de 1824, mantinha-se o regime de união entre o Império e a Igreja Católica, o que
conferia ao catolicismo o status de religião do Estado. Os clérigos eram funcionários do Rei
para negócios eclesiásticos (TORRES, 1968).

No entanto, com a passagem para o sistema republicano, deu-se o fim do sistema de


padroado. Houve, então, uma quebra formal da ligação existente entre a Igreja Católica e o
Estado. O governo federal ficou proibido de criar leis, regulamentos ou atos administrativos
sobre religião; deu-se liberdade religiosa aos indivíduos e às igrejas que possuíssem uma
mesma comunhão; e cada igreja passou a ter domínio sobre os seus bens (MARIA, 1981).

Bandeira (2000) afirma que é na Constituição de 1934 que a igreja católica faz reivindicações
diante da ameaça de perda de poder no, então, Estado laico. Solicita-se: o ensino religioso nas
escolas públicas; a não aprovação do divórcio; e o financiamento (pelo Estado) das obras da
Igreja. Algumas dessas solicitações foram atendidas na nova Carta Magna Nacional ou
Constituição de 1937.

Conforme Bandeira (2000), a Constituição de 1937 reconheceu o casamento religioso para


efeitos civis, assim como o voto de religiosos nas eleições civis, dentre outras questões
reivindicadas pela igreja católica em 1934. Ameaçada de perder seus fiéis com a crise da fé
em relação às suas doutrinas a partir da proclamação da República, que inaugurou um período
de laicização, a Igreja Católica agora recuperava formalmente a sua hegemonia religiosa. No
entanto, essa perda ficou mais na aparência do que no que se verificou de fato, como se verá.

Esse período laico será absorvido pelo catolicismo como elemento estimulador de novas
acomodações entre religião e política, mediadas pela sutileza simbólica das vestes de
Aparecida. As fotografias mais antigas dessa escultura nos mostram que a presença das
bandeiras do Brasil e do Vaticano só vai ocorrer após o ano de 1931, quando a imagem é
considerada padroeira brasileira.

Nesse ensejo, coloca-se como símbolo de hibridização étnica uma padroeira “mestiça” (pela
cor escurecida da escultura) numa ambiência de busca pela identidade nacional, acenando
para um cenário favorável diante da aparente perda de fiéis pela igreja católica, nos primeiros
anos da república. Em 31 de maio de 1931, a pedido do Cardeal D. Sebastião Leme, a imagem
de escultura de Nossa Senhora Aparecida foi levada ao Rio de Janeiro, e aclamada Rainha do
Brasil por mais de um milhão de pessoas.
6

2 DEVOÇÃO À PARECIDA DIANTE DA AÇÃO CATÓLICA BRASILEIRA

O início do movimento da Ação Católica no Brasil está em consonância com uma nova
ambiência político-social, de rompimento com a antiga metrópole – Portugal. Além disso,
promove uma inserção do leigo nas diretrizes da igreja católica, amenizando a incisiva
hierarquia até então existente. Na citação a seguir, Souza (2006: 48) explica mais atentamente
essa relação:

O papel inicial da Ação Católica Brasileira foi a defesa dos valores e


princípios por parte dos leigos católicos no campo da atuação política.
Tendo o intelectual Alceu Amoroso Lima como principal colaborador leigo
do Cardeal do Rio de Janeiro, D. Sebastião Leme (1882-1942) efetivamente
surge em 1933 a Liga Eleitoral Católica e em 1935 a Ação Católica
Brasileira, tendo com Alceu como primeiro presidente.

Consta no Suplemento... (1940:193) que parte do catolicismo colocava-se, naquele contexto


de Estado laico no Brasil, como uma religião social no ataque, visando a um confronto em
dois planos: religioso e político-econômico. No plano religioso, espreitava o protestantismo e
o espiritismo; no plano político-econômico, punha o comunismo (socialismo) sob suspeita:

No Brasil, a Igreja não sofre perseguições cruentas como em vários países.


Mas quem dirá que ela aqui não tem inimigos? A propaganda protestante e
espírita tem recrudescido. Não faltam sectários que trabalham contra o clero
e a favor do divorcio e até a favor do comunismo. Por isso, os Bispos têm
exortado os fiéis a precaverem-se contra esses inimigos e a sua propaganda
insidiosa, e a oporem a ela a propaganda da Imprensa e Ação Católica.

Nesse ensejo, sabe-se que a Ação Católica Brasileira, aliando-se à ditadura, ocupou um
cenário estratégico durante o Estado Novo. A abertura da participação do laico nas
determinações da igreja culminou com a necessidade de tornar o povo mais próximo de sua
pátria, por meio do estabelecimento de uma padroeira “mestiça” e que, posteriormente teria
em seu manto a presença das bandeiras do Brasil e do Vaticano, como acontece até hoje, em
2017.

Quanto ao movimento supracitado, a igreja católica, em crise diante das recentes forças
republicanas, busca uma aproximação com esses novos poderes, estruturando-se dentro do
modelo de romanização. De todo modo, Alves (2005: 61) assinala que “[...] tais
possibilidades já vinham sendo criadas na Europa desde o final do século XIX” e após a
Primeira Guerra Mundial (1914-1918), sobretudo na Itália. Para Lustosa (1992: 101):

Toda ação católica pastoral estava à espera de um redimensionamento,


preocupação presente não só na Igreja do Brasil, mas muito viva na Europa,
onde, com o pontificado de Pio XI (1922-1939), se abre capítulo novo para a
comunidade eclesial, mobilizando fiéis com a organização do movimento
sócio-cristão chamado ‘Ação Católica.
7

Antes de sua inserção nesse contexto de inquietudes políticas e religiosas, a imagem de


Aparecida nos surge envolta num enredo de perdidos e achados que se pode assim resumir:
essa escultura de terracota foi achada no Rio Paraíba em 1717, por 3 pescadores: Domingos
Alves Garcia, João Alves e Felipe Pedroso (ALVES, 2005); e (PENNA, 2009),e permaneceu
como fora encontrada até 1946.

A imagem de escultura de Aparecida mede 36 cm de altura, sem o pedestal, e tem 2, 550kg,


conforme Brustoloni (1998). Já comprovado por peritos, a Aparecida era originalmente
policromada, com traços de rostidade de etnia branca: rosto e mão de pele branca, com manto
azul escuro e forro vermelho granada, cores oficiais, conforme determinação de Dom João IV,
do ano de 1646, com as quais se deviam ornar as imagens tituladas como Imaculada
Conceição.

Nesse ensejo, não se têm notícias, ainda, sobre a presença de complementos vestimentares
para a escultura antes de 1750. “Manto e Coroa da Imagem já constam de um inventário da
Capela do ano de 1750, documento conservado no Arquivo da Cúria Metropolitana de
Aparecida” (BRUSTOLONI, 1998: 18). Em 4 de janeiro desse ano, foi feito inventário que
enumera diversas alfaias e preciosidades depostas aos pés de Aparecida. Em 25, também
desse mesmo mês e ano, foi fundada a Irmandade de Nossa Senhora Aparecida, e pouco
tempo depois, começaram as visitas oficiais da Autoridade eclesiástica.

Tem-se em consideração que a própria estrutura da escultura é dotada de vestimenta, mas que
pela inclusão do manto, trata-se, portanto, de uma peça inteira, de terracota, que teve uma
complementação de vestes.

Conforme Böing (2007), em 08 de dezembro de 1868 essa escultura recebeu da princesa


Isabel um manto de veludo azul, com 21 brilhantes que representavam a capital e as 20
províncias do Império. Em 1884, Aparecida recebeu uma coroa de ouro, cravejada de
brilhantes, 24 diamantes maiores e 16 menores.

A escultura de Aparecida com um manto de ornamentações diferenciadas das que existem


atualmente e da que é apresentada na descrição feita por Boing, acerca do manto recebido da
princesa Isabel, segue ilustrada como o que teria sido a primeira foto realizada em 1869, pelos
fotógrafos franceses Robin e Favreau.
8

Figura 3 – Primeira foto da Imagem, tirada pelos fotógrafos franceses Robin e Favreau, 1869.
Fonte: (BRUSTOLONI, 1981).

No museu da Basílica de Aparecida, podemos encontrar o manto utilizado na Coroação de


Aparecida, em 1904, conforme mostra a Fotografia a seguir.

Figura 4 – Manto mais antigo, usado da imagem original de Nossa Senhora Aparecida, na
coroação da Imagem, em 1904. Exposto no museu da Basílica.
Fonte: Os mantos... (Acesso em: 17 dez. 2015).

Também são apresentadas por Brustoloni (1981), duas fotografias de Aparecida (sem o manto
e com o manto) de 1929, tiradas por André Benotti, como podemos ver nas figuras expostas a
seguir:
9

Figura 5 – Imagem de Aparecida, sem manto.


Figura 6 – Imagem de Aparecida, com manto.
Fonte: Brustoloni (1981).

Sabe-se também que a escultura oficial de Aparecida passou por uma intervenção de
restauração no ano de 1946, realizada pelo Pe. Alfredo Morgado. No segundo restauro, já
realizado em 1950 pelo Pe. Humberto Pieroni, da Comunidade Redentorista de Aparecida,
temos sinais da presença de um manto, tendo em vista o relato de que a cabeça da escultura se
desprendera na troca do manto, em 7 de setembro daquele ano (BRUSTOLONI,1998).

Numa terceira restauração de Aparecida, em 1978, foi apresentado um relatório ao Arcebispo


de Aparecida, que afirmava que pela cor e qualidade do barro empregado, sendo de terracota,
a escultura teria sido feita por artista seguramente paulista. Assim, alguns estudiosos a
atribuem a Frei Agostinho de Jesus, discípulo do santeiro e monge beneditino, Frei Agostinho
da Piedade, provavelmente esculpida na primeira metade do século XVII.

O Dr. Pedro de Oliveira Ribeiro Neto mais os peritos Maria Bardi, Dr. João Marino e a
restauradora Maria Helena Chartuni (BRUSTOLONI, 1998) concluem, por vestígios de
policromia encontrados na imagem, que ela adquiriu a cor que hoje conserva (castanho
brilhante), por ter ficado muitos anos submersa no lodo das águas, e, posteriormente, por ter
sido exposta ao lume e à fumaça dos candeeiros, das velas e tochas, ainda quando se
encontrava localizada em oratório particular dos pescadores e na capelinha de Itaguaçu, onde
teria ficado durante os 28 anos, antes de ser exposta à veneração pública.

Acerca disso, suscitamos a reflexão se já neste período a escultura portava algum tipo de
manto.
10

3 VIRGEM “MESTIÇA” E A IDENTIDADE NACIONAL

De acordo com Ortiz (2006), o conceito de nação se refere a uma maneira de organização da
sociedade que associa grupos de características variadas dentro de um mesmo território
geográfico, a fim de formar uma unidade moral, mental e intelectual. Para Anderson (2008:
32), o conceito de nação está mais vinculado a algo ficcional “[...] uma comunidade política
imaginada”. Como reconhece esse último autor, as mudanças ocorridas nas religiões
confeririam aos nacionalismos certas soluções seculares para a sua consolidação e
continuidade que, antes nas cidades antigas, eram reivindicadas pelas crenças religiosas
pagãs, panteístas, maniqueístas ou monoteístas, como as investigou Coulanges (2006).

O Brasil surge sob a égide católica de seus colonizadores, mas não sem conflitos. É bom
lembrar que em 1759, uma série de cheques de interesses entre a nobreza de Portugal, seus
colonos e os religiosos católicos, levou o Marquês de Pombal a expulsar os jesuítas do Brasil.

E já no final do século XIX, prolongando-se para os primeiros anos do século XX, após a
proclamação da Republica, o Brasil passa por um processo de laicidade formal. No entanto,
adota a Aparecida como padroeira do Brasil em 1931. A consolidação do país católico, no
século XX se dá em uma nova ditadura civil-militar imposta a partir de 1964. Assim, em 1965
se inicia uma peregrinação da imagem pelas capitais dos Estados, começando por Belo
Horizonte (MG). Em 1967, celebrou-se o jubileu dos 250 anos do encontro da imagem
(BRUSTOLONI, 1998).

Quanto à fotografia a seguir, corresponde a 1972, em plena ditadura, referente à peregrinação


de Aparecida para a Catedral da Sé (SP), durante o Ano Marial. Podemos observar que as
bandeiras do Brasil e do Vaticano ainda não fazem parte da ornamentação do vestuário dessa
escultura nesse período.

Acerca disso, é importante frisar que como não há ainda documentos escritos sobre quando as
bandeiras começaram a vestir a padroeira do Brasil, este estudo também é feito a partir da
observação das fotografias dessa imaginária.
11

Figura 7 – Imagem de N. Sra. Aparecida na Catedral da Sé-SP- 1972.


Fonte: Santuário Nacional. Acervo do Centro de Documentação e Memória “Pe. Antão Jorge –
CSrR”.

No que concerne à presença de bandeiras nas vestimentas das esculturas sacras, de um modo
geral, Trexler (1991) nos diz que em tempos passados esse ornamento poderia ser encontrado
facilmente nas imagens de Nossa Senhora durante o período medieval. A Virgem podia ser
representada como uma espécie de mensageira oficial do Medievo, tal como os servos,
igualmente revestidos com os brasões de seus senhores. Essas bandeiras teriam
frequentemente pertencido ao inimigo capturado no campo de batalha. Seria uma forma de
humilhar os grupos vencidos, afetando seu machismo, ao vestir uma “mulher” com a sua
bandeira.

Pensando-se sobre essa relação de poder que é conferida à imagem, a partir do manto e da
Coroa, citamos Alves (2005), que destaca que a coroa, no discurso eclesiástico, sugeriria que
a Igreja aprova o culto de veneração à Imagem e reconhece os milagres que ela realizou.
Ainda diz que desde a Idade Média a Coroa é símbolo de poder. Para Freedberg (1992, p.
118) “[...] as pessoas enfeitam, lavam ou coroam imagens porque todos esses atos são
sintomas de uma relação entre imagem e espectador baseada na atribuição de poderes que
transcendem o aspecto puramente material do objeto”.

Dentro do discurso que aqui propomos, as bandeiras nacionais e pontificiais, respectivamente


presentes na vestimenta em questão, constroem uma evidente união do conceito de nação por
meio da re-ligação entre o Estado e a Igreja Católica.

O próprio manto que cobre a Virgem Maria nos remonta ao início do Cristianismo. Já na
Idade Média, o manto compunha o vestuário das pessoas. Conforme Eneida Bonfim (2002:
25):
12

A sobreveste mais comum e que nunca saiu de moda desde a Idade Média foi
a capa, usada por todas as classes sociais. Era análoga ao manto, essa uma
peça especial na indumentária medieval, usado em ocasiões solenes, restrito
aos nobres e grandes senhores de ambos os sexos.

Logicamente, pensando na necessidade de identificação do fiel com a sua devoção religiosa,


assim como na ascensão do poder devocional católico-cristão diante do poder das grandes
monarquias, essa vestimenta se alarga a proporções coletivas que incluem a Virgem Maria e
os Santos. De um modo geral, ressaltamos que essa veste também tinha a função de abrigo e
de proteção da pessoa que a vestia. Na Imaginária sacra, pode obter uma função para além de
solene e sacerdotal.

Admitimos que a ligação do homem com uma imagem na qual ele busque uma identificação
devocional, considerando-a mediadora entre si e o divinal, torna-se, identitária. Nessa relação,
o devoto, ora manifesta, ora oculta toda sorte de vícios inconfessáveis, que permeiam a pátria,
a família, religião, os desejos e preconceitos.

Na acomodação desses elementos, em suas contradições e resoluções, a fé e o patriotismo


sedimentam uma nação, silenciando umas vozes em detrimento de outras. E a figura feminina,
ainda que alumiada pela aura sacra, tem potência para suscitar e serenar esses sentimentos. É
interessante pontuar, de acordo com Bomfim (2002: 40), que as poucas referências à Virgem
Maria no texto Vicentino, mostram-na adornada, “‘como mui fermosa aparência’, ‘vestida
como Rainha’”.

Também concordamos com essa autora quando nos diz que “Assim como se viu com
referência à Virgem Maria, a necessidade de parecer bem pelo enfeite existe, o que muda é o
plano em que este se insere”, seja espiritual, seja material (BONFIM, 2002: 42-43).

Desse modo, as identidades podem ser comunicadas pelo vestuário, seguindo padrões
estéticos do vestir. Logo, tipos de tecidos e propriedades da veste que comunicam a
identidade podem ser alterados a partir de transformações econômicas, estéticas, e como
ressaltamos aqui, políticas.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

A pesquisa sobre os mantos da imagem de Nossa Senhora Aparecida, a partir de suas


características ornamentais e simbólicas, relacionadas aos discursos religiosos, políticos e
sociais, enuncia um campo brasileiro e latino-americano que nos conecta com a relevância das
vestimentas das imagens cristãs, a fim de compreendermos a função que desempenham, no
13

caso, a identitária, diante da Ação Católica e do Governo nacionalista de Getúlio Vargas. O


manto de Aparecida acarreta uma simbologia de identificação espacial no âmbito popular.

Essa discussão nos permite entender a contribuição das imagens sacras, neste trabalho, mais
precisamente, de suas vestimentas, para se pensar no mundo e nos seus modos de organização
social. Assim, refletimos os modos de funcionamento das imagens. O vestuário como símbolo
de poder da Igreja e do Estado medeia essa articulação religiosa, política e social, aplainando
conflitos e acomodando as contradições nessa busca pelo estabelecimento de uma nação.

Na década de 1930, na primeira fase da Era Vargas, a Igreja restabeleceu o catolicismo


brasileiro que se via formalmente enfraquecido pela, então, proclamada configuração de uma
sociedade laica. Como ícones mediadores, os emblemas que se inscrevem no manto de Nossa
Senhora Aparecida, supomos, constituíram elementos mediadores entre dois pólos: de um
lado, o sentimento patriótico laico e popular, proposto pelo Estado naquele período histórico;
de outro lado, a busca da bem-aventurança celestial, propugnada pela Igreja Católica no
Brasil, em face das inquietudes políticas e sociais daquele momento histórico.

O fato de se atribuir o status de “mestiça” à Imagem de Nossa Senhora Aparecida, assim


como as transformações do vestuário dessa padroeira brasileira certamente ainda tem muito a
revelar em nossas pesquisas.

REFERÊNCIAS

ALBERT- LLORCA. Marlène. La fabrique du sacré. Les vierges “miraculeuses” du pays


valencien. Revue Genèses. Paris: Éditions Belin, v. 17, 1994. Disponível em:
<http://www.persee.fr/docAsPDF/genes_1155-3219_1994_num_17_1_1260.pdf>. Acesso
em: 5 jan. de 2017.

ANDERSON, Benedict. Comunidades imaginadas. Trad. Denise Bottman. São Paulo:


Companhia das Letras, 2008.
ALVES, Andréa Maria Franklin de Queirós. Pintando uma imagem Nossa Senhora
Aparecida – 1931: Igreja e Estado na Construção de um Símbolo Nacional. 2005.
Dissertação (Mestrado em História) – Universidade Federal de Mato Grosso do Sul,
Dourados, 2005.
BANDEIRA, Marina. A Igreja Católica na virada da questão social: anotações para uma
história da Igreja no Brasil. Rio de Janeiro: Vozes, 2000.
BOÏNG, Mafalda Pereira. Nossa Senhora Aparecida: a Padroeira do Brasil. São Paulo:
Loyola, 2007.
14

BOMFIM, Eneida. O traje e a aparência nos autos de Gil Vicente. Rio de Janeiro: Ed.
PUC-Rio; São Paulo: Loyola, 2002.
BRUSTOLONI, Júlio J. A Senhora da Conceição Aparecida: História da Imagem da
Capela das Romarias: 2. ed. Aparecida: Editora Santuário, 1981.
______. História de Nossa Senhora da Conceição Aparecida: a imagem, o santuário e as
romarias. 10. ed. Aparecida: Editora Santuário, 1998.
COULANGES, Numa-Denys Fustel de. A cidade antiga: estudo sobre o culto, o direito e as
instituições da Grécia e de Roma. Tradução de Frederico Ozanam Pessoa de Barros, 2006.
São Paulo: Versão para eBook eBooksBrasil, Fonte Digital: Editora das Américas S.A.
Edameris, 1961, 447 p. Disponível em: <http://bibliotecadigital.puc-
campinas.edu.br/services/e-books/>. Acesso em: 12 fev. 2017.
DELFOSSE, Annick. Quand Marie entre en politique. La Vierge et l’État moderne. In:
DELVILLE, Jean-Pierre et alli: Marie, figures et réception. Enjeux historiques et
théologiques. Colloque international, Liège, 22 octobre, et Louvain-la-Neuve, 23 octobre,
2008, (2012). Disponível em:
<https://www.academia.edu/3585640/Quand_Marie_entre_en_politique._La_Vierge_et_l%C
3%89tat_moderne>. Acesso em: 11 fev. 2017.
DIDI-HUBERMAN, Georges. A Imagem Sobrevivente. História da arte e tempo dos
fantasmas segundo Aby Warburg, trad. V. Ribeiro, Rio de Janeiro, Contraponto, 2013.
DI GIOVANNI, Julia Ruiz. Histórias de fantasmas para gente grande. Revista de História
Topoi, Rio de Janeiro: Universidade Federal do Rio de Janeiro, Programa de Pós-Graduação
em História Solcial da UFRJ, v. 15, p. 349, 2014. Disponível em:
<http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S2237-101X2014000100347>.
Acesso em: 7 fev. 2017.
FREEDBERG, David. El Poder de las Imágenes: Estudios sobre la historia y la teoria de la
respuesta. Madrid: Cátedra, 1992.

GIUMBELLI, Emerson A. Brasileiro e europeu: a construção da nacionalidade em torno do


monumento ao Cristo Redentor do Corcovado. Cadernos de Antropologia e Imagem:
Universidade Estadual do Rio de Janeiro. Programa de Pós-Graduação em Ciências Sociais,
Rio de Janeiro, v. 24/1, p. 35-63, 2011.
LUSTOSA, Oscar. Catequese católica no Brasil: para uma história da evangelização. São
Paulo: Edições Paulinas, 1992.

MARIA, Júlio. A Igreja e a República. Brasília: Câmara dos Deputados/Editora da


Universidade de Brasília, 1981.
ORTIZ, Renato. Mundialização: saberes e crenças. São Paulo: Brasiliense, 2006.
OS MANTOS DA MÃE APARECIDA. Disponível em: <http://www.a12.com/santuario-
nacional/noticias/detalhes/os-mantos-da-mae-aparecida-1>. Acesso em: 17 dez. 2015.

PENNA, Lucy. Aparecida do Brasil: A Madona negra da abundância. São Paulo: Paulus,
2009.
15

SANTUÁRIO NACIONAL (Brasil). Acervo do Centro de Documentação e Memória “Pe.


Antão Jorge – CSrR
SILVA, Paulo Julião da. A Igreja Católica e as Relações Políticas com o Estado na Era
Vargas. In: XIII Simpósio Nacional da ABHR, 2012, São Luís. Anais do XIII Simpósio
Nacional da ABHR, São Luís, 2012. V. 13, p. 1-11.

SKIDMORE, Thomas E. Brasil: de Getúlio Vargas a Castelo Branco (1930-1964). 10. ed. –
Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1992.
SOUZA, Juliana Beatriz Almeida de. Construção da memória e devoção na escolha de Nossa
Senhora Aparecida como padroeira do Brasil. In: XIV Jornadas Interescuelas/Departamentos
de História de la Facultad de Filosofía y Letras. Universidad Nacional de Cuyo, Mendoza, p.
9-30, 2013. Disponível em: <http://cdsa.aacademica.org/000-010/314.pdf>. Acesso em: 6 fev.
2017.
SOUZA, Nery. Ação católica, militância leiga no Brasil: Méritos e limites. Revista de
Cultura Teológica, São Paulo, v. 14, n. 55, p. 39-59, abr./jun. 2006. ISSN (impresso) 0104-
0529 (eletrônico).
SUPLEMENTO DO SANTUÁRIO DE APARECIDA VI 40. Pelo Brasil Católico. São Paulo.
[1940]. [Cópia do material impresso obtido no Centro de Documentação e Memória da
Basílica de Aparecida, São Paulo], [1940].
TORRES, João Camilo de Oliveira. História das ideias religiosas no Brasil. São Paulo:
Grijalbo, 1968.
TREXLER, Richard C. Habiller et deshabiller les images. esquise d’une analyse. In:
Durand, Françoise; SPRESER, Michael; WIRTH, Jean (Dir.). L’image et la production du
sacré. Paris: Klincksieck, 1991. p. 195-231.
VASCONCELOS, Francisco A. Notas sobre a liderança de Dom Sebastião Leme no Brasil.
Reflexus Revista Semestral de Teologia e Ciências das Religiões: Faculdade Unida de
Vitória, Programa de Mestrado das Ciências das Religiões, Vitória v. 9, p. 295-316, 2015.
Disponível em: <http://revista.faculdadeunida.com.br/index.php/reflexus/article/view/298>.
Acesso em: 7 Fev. 2017.

Vous aimerez peut-être aussi