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ARTIGO ARTICLE 2057

“Carne crua e torrada”: a experiência do


sofrimento de ser queimada em mulheres
nordestinas, Brasil

“Raw and charred flesh”: the experience of burned


women in Northeast Brazil

“Carne cruda y tostada”: experiencia del


sufrimiento en mujeres del nordeste de Brasil al
padecer quemaduras

Cristiani Nobre de Arruda 1


Andrea Stopglia Guedes Braide 1,2

Marilyn Nations 1

Abstract Resumo

1 Centro das Ciências da In Northeast Brazil, death from burns is a wide- No Nordeste brasileiro, a morte por fogo é uma
Saúde, Universidade de
Fortaleza, Fortaleza, Brasil.
spread, pervasive threat to poor women. This an- ameaça onipresente e banalizada entre mulhe-
2 Universidade Christus, thropological study describes the experience of res empobrecidas. Este estudo antropológico
Fortaleza, Brasil personal suffering among female burn patients. descreve a experiência do sofrimento de ser quei-
Correspondência In 2009, six “information-rich” cases were inves- mada. Em 2009, foram investigados seis casos
C. N. Arruda tigated at the Burn Center in Fortaleza, Ceará “ricos em informação” no Centro de Queimados,
Programa de Pós-graduação
State, Brazil. Open ethnographic interviews with Fortaleza, Ceará, Brasil. Entrevistas etnográficas
em Saúde Coletiva, Centro
das Ciências da Saúde, key informants, narratives of lived experiences, abertas com informantes-chave, narrativas de
Universidade de Fortaleza. and participant observation at the clinic and experiências vividas e observação participante
Rua República do Líbano
patients’ home were conducted. The methods in- na clínica e no domicílio foram realizadas. Uti-
533, Fortaleza, CE
60160-140, Brasil. cluded content analysis, systems of signs, mean- lizamos os métodos Análise de Conteúdo, Siste-
cristianiarruda@hotmail. ings, and actions, and contextualized semantic mas de Signos, Significados e Ações e Interpre-
com
interpretation. The emerging metaphors are em- tação Semântica Contextualizada. Revelou-se
bued with the cultural meaning of “monstrosity” que as metáforas emergentes são carregadas de
and gender violence by fire – inscribed merci- significância cultural da “monstruosidade” e da
lessly in the woman’s body. “Accidents” caused violência de gênero pelo fogo – inscrita impie-
by flammable liquids (alcohol) hide the cruel dosamente no corpo feminino. O “acidente por
reality of “raw and charred flesh”. The scars can combustível” (álcool) esconde a cruel realidade
disfigure the victims as “non-persons”, destroy- de “carne crua e torrada”. A cicatriz é capaz de
ing their moral reputation and leading to social desfigurá-las em “não-pessoas”, maculando sua
rejection. In the Brazilian Northeast, the social reputação moral e gerando a rejeição social. No
vulnerability caused by sequelae from burns de- Nordeste brasileiro, a vulnerabilidade social pro-
mands a policy for humanized care. vocada pela sequela da queimadura exige uma
política de humanização do cuidado.
Burns; Social Stigma; Social Vulnerability;
Anthropology Queimaduras; Estigma Social; Vulnerabilidade
Social; Antropologia

http://dx.doi.org/10.1590/0102-311X00175713 Cad. Saúde Pública, Rio de Janeiro, 30(10):2057-2067, out, 2014


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Introdução desfigurantes da queimadura estigmatizam-nas


como a escória da sociedade 10, iguais às paquis-
Em 5 de junho de 2013, num lance de extrema tanesas, vítimas de queimaduras por ácido pelos
crueldade, um grupo de criminosos ateou fo- maridos raivosos 14. A história das mulheres ce-
go na dentista Cinthya Magaly Moutinho, que arenses, paupérrimas, queimadas vivas, precisa
morreu queimada em seu consultório, em São ser contada.
Paulo, Brasil 1. De fato, somente no ano de 2010, Em seu trabalho Deep China: the moral life
4.297 mulheres brasileiras foram vítimas de ho- of the person, Kleinman et al. 10 advertem que
micídios, ou seja, 4,4 homicídios para cada 100 desvelar a violência cotidiana entre os que mais
mil mulheres 2. Estima-se que, em 2013, 4.717 sofrem é um grande desafio para o pesquisador,
homicídios ocorreram entre mulheres brasilei- pois viver na pobreza extrema já implica uma
ras 2. O brutal assassinato da dentista queimada violência estrutural subjacente e fora do foco dos
viva, em seu próprio consultório, repercutiu nos gestores públicos. O fio condutor que orienta es-
noticiários com imagens fortes, revoltando teles- te artigo reside na compreensão do sofrimento
pectadores estarrecidos. Poucas cenas de nações dessa mulher. Não buscamos descrever a quei-
em guerra ou que passam por convulsão social madura como problema biomédico, o que re-
chocaram tanto e abateram os cidadãos brasilei- forçaria somente sua dimensão patológica, mas,
ros como essa barbárie na grande e “civilizada” sim, como experiência sociocultural 15. Assim,
metrópole do Sudeste do país. narrando os acontecimentos que as vitimaram
No Nordeste brasileiro, acrescente-se, a mor- consegue-se, por meio de uma triste analogia,
te por fogo é uma ameaça onipresente e até ba- remeter às manifestações profanas, culturais e
nalizada na realidade cotidiana entre mulheres religiosas que são a marca mais intensa do pro-
empobrecidas, discriminadas, esquecidas e re- cesso de ter sido queimada.
pudiadas pela sociedade 3. Com um sistema so- Indagamos, portanto, como é ser mulher vi-
cial fortemente patriarcal, em que as relações vendo em uma pobreza esmagadora e sentir seu
assimétricas 4, o machismo 5 e a violência de gê- corpo queimando? O que está em jogo quando
nero 6 estão enraizados e inscritos no panorama sua imagem é brutalmente deformada diante do
sociocultural, essas mulheres enfrentam agres- olhar de outros? Como os profissionais de saú-
sividades diariamente. No Ceará, a taxa de ho- de percebem o trauma desse sofrimento? Diante
micídios de mulheres, em 2010, foi de 3,7 2 para desses questionamentos, objetivamos compre-
cada 100 mil mulheres, 165 foram assassinadas 2, ender e descrever a experiência do sofrimento de
a maioria por seus parceiros 7; dados que sina- ser queimada das mulheres nordestinas.
lizam outra gritante injustiça. Embora com um
viés de banalidade, uma circunstância em que
o valor intrínseco da vítima, nesse caso, é me- Metodologia
nosprezado pelas autoridades e pela sociedade
como um todo 8. Um cenário socialmente vulnerável
O tratamento de queimaduras é um desa-
fio complexo 9, pois esse universo permanece No período de janeiro a outubro de 2009, esta
esquecido das políticas públicas e dos debates pesquisa, com abordagem antropológica, foi re-
acadêmicos. A causa de “acidente por combus- alizada numa unidade especializada de queima-
tível” (álcool) no perfil epidemiológico esconde dura, em hospital municipal público, na capital
a crueldade cotidiana vivida por essas mulheres de Fortaleza, Ceará, Nordeste do Brasil (popu-
anônimas, queimadas de forma tão traumati- lação estimada do Ceará em 2013 – 8.778.576)
zante 8. As vítimas são rotuladas como “não pes- (Instituto de Pesquisa e Estratégia Econômica do
soas” 10, sofrem caladas (entre quatro paredes) Ceará. Anuário estatístico do Ceará 2010. http://
sem o frenesi midiático. Ainda, no Ceará, seres www.ipece.ce.gov.br, acessado em 03/Fev/2014).
humanos aniquilados socialmente por doenças Nesse período, foram atendidos 2.459 pacientes,
infecciosas carregam marcas e cicatrizes da ini- 1.386 mulheres (56,4%) foram tratadas por quei-
quidade socioeconômica, a realidade injusta, maduras. O Centro de Tratamento de Queimados
inscrita no corpo, silenciada e pouco estudada (CTQ) é totalmente diferente de tudo que se co-
nos aspectos subjetivos 11. Fora das estatísticas nhece em hospital – o limite entre a vida e a mor-
nacionais e longe dos noticiários, a queimadura te é parceiro muito próximo nessa unidade. Um
simboliza o estigma humano 11,12 da experiência CTQ está impregnado de visões, pele rasgando
de ser queimada viva. Sobrevivendo na pobreza do corpo, odores, dor intensa. Os pacientes ficam
e na exclusão social, a voz e os gritos da mulher frequentemente isolados, com pouca ou nenhu-
nordestina são, frequentemente, silenciados pe- ma mobilidade e, muitas vezes, são submetidos à
lo medo da violência de gênero 6,8,13. Cicatrizes observação do sofrimento de outros pacientes. O

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EXPERIÊNCIA DO SOFRIMENTO DE SER QUEIMADA EM MULHERES 2059

CTQ está situado no contexto social propício pa- alta, mas que continuam em tratamento ambu-
ra investigar as interfaces da pobreza, a violência latorial. A média de idade das informantes foi de
de gênero e as queimaduras. 32,0 ± 24,5 anos. Na maioria, casadas, do lar e
No cenário brasileiro, queimadura é um pro- pobres; todas residem em bairros de periferia.
blema social, o crescimento da injúria acompanha A entrevista etnográfica não requer a elabo-
o aumento populacional 16. O percentual aumen- ração de um roteiro fechado 22; ela parte de per-
ta considerando que algumas formas de trauma guntas disparadoras: “Como você se queimou? O
e doenças são restritas a certos grupos demográ- que realmente importa para vocês? O que está em
ficos (DATASUS. http://www.datasus.gov.br/da jogo diante das marcas corporais? Onde estão as
tasus/datasus.php, acessado em 28/Out/2010). opções para melhorar estas cicatrizes? Há mesmo
Para efeito de comparação, hoje, são cerca de opções?”. Em momento oportuno, as informan-
15,7 milhões de pessoas vivendo na pobreza no tes foram incentivadas a narrar livremente todo
Brasil, dos quais, 6,53 milhões continuam abaixo o percurso do trauma da queimadura; as dificul-
da linha de pobreza 17. É nesse contexto que as dades vivenciadas e as expectativas em relação
pessoas pobres constituem um grupo vulnerável às marcas corporais. Narrar na sua voz permi-
para queimaduras, devido às condições ambien- tiu às informantes expressar a visão êmica 26 da
tais desfavoráveis 16, e que empobrecem ainda sua história, os acontecimentos e experiências
mais como consequência da lesão18. Ninguém pessoais, como é prevista na narrativa. A nar-
acredita que os brasileiros sejam materialmente rativa é uma técnica utilizada na antropologia
mais “inflamáveis” que os cidadãos de países ri- médica como meio de acesso à reconstrução da
cos, pois 95% das queimaduras relacionadas ao experiência da doença. A investigação narrativa
fogo ocorrem em países de baixa e média renda, permite ao informante desenvolver uma histó-
incluindo o Brasil 18. Os dados causam espanto; ria longa, que seja objetiva, mas com liberda-
mas, de acordo com a Organização Mundial da de para mencionar detalhes de acordo com sua
Saúde (OMS), as queimaduras vão ultrapassar as experiência 23.
doenças infecciosas como a primeira causa de As pesquisadoras imergiram no cenário so-
morte no planeta, em 2020 18. cial da pobreza. De fato, enriquecemos, valida-
Na cidade de Fortaleza, região de grande ape- mos e contextualizamos as falas com observação
lo turístico, impera a desigualdade econômica e participante 24 do tipo livre. A abordagem antro-
a segregação social 19. Nessa cidade, é gritante a pológica permitiu acumular informações den-
separação entre a cidade dos ricos e a periferia tro do leque de atores envolvidos no domínio do
de miséria. Não por acaso, essa cidade, por seu ambiente 27 ao serem observados, no decorrer
cenário de contrastes, foi apontada, no mês de do tratamento: centro cirúrgico, consultas médi-
outubro de 2012, como a 5a cidade mais desigual cas, atividades mensais do grupo terapêutico en-
do mundo 20. Nesse cenário, a pobreza revela- cenadas pelos diferentes agentes institucionais
se mais persistente, precisamente entre as mu- (pacientes, cirurgiões, enfermeiros, assistente
lheres 2,13,17. A discriminação de gênero, além de social, fisioterapeuta, terapeuta ocupacional e
acentuar a pobreza, contribui significativamente psicólogo), visitas domiciliares, encontros sociais
para desvalorizar o papel da mulher na socieda- com familiares e vizinhos, anotando-as no diário
de 2,13. A violência, aqui, atua como um potencia- de campo.
lizador dessa desigualdade 2,6,13,17. Os dados qualitativos foram interpretados
Essa violência social aparece nas narrativas por meio do método de análise de conteúdo te-
das mulheres que são vítimas de processos de mática de Bardin 28. Após leituras repetidas das
exclusão de diferentes ordens, sendo devastadas transcrições, emergiram temáticas como: a ex-
e tendo seu sofrimento ignorado no Nordeste periência do sofrimento, o sofrimento social e
brasileiro. as deformidades físicas, as marcas e as cicatrizes
corporais, a violência e a autoestima, a mons-
Desvelando as marcas corporais truosidade, a relação paciente e profissional, as
práticas de cuidado e a cura. Inspiramo-nos na
Entre os métodos qualitativos 21, os dados foram “Interpretação Semântica Contextualizada” de
coletados por meio de entrevistas etnográfi- Bibeau & Corin 29, que interliga a experiência in-
cas 22 abertas com informantes-chave, narrativas dividual de pessoas, aqui as mulheres queima-
de experiências 23 vividas de ser mulher e quei- das, aos “Sistemas de Significados e Ações” 29 que
mada e observação participante 24. Identifica- elas atribuem e as reações tomadas, ou não, dian-
mos, junto à enfermeira chefe, “seis casos ricos te das cicatrizes corporais. Assim, desvelamos as
em informação” 25 para aprofundar, com faixa cicatrizes no corpo, seus significados e sua forma
etária ≥ 18 anos, registrados e tratados na uni- de agir. Apesar da difícil tarefa, compreendemos
dade com grande queimadura e que receberam o sofrimento na íntegra, inserindo-o no seu mun-

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do moral local e contexto macrossocial 12. Enfim, ral traz desajustes desse impacto e que se apre-
produzimos uma etnografia como sugere Mol 27, sentava de várias formas. Em nossos encontros,
uma praxiografia, um espaço da complexidade chorava, mas conseguia rir; apresenta-se confusa
ontológica, constituindo uma descrição densa 30 com tudo que está lhe acontecendo: a cicatriza-
do que era observado acerca do corpo queimado. ção, as limitações, o desfiguramento. Com pele
Optamos por apresentar as falas com uma enrugada, manchada e dilatada, parecia defor-
escrita que entrelaça a voz das informantes, ten- mada e estranha, assustando os olhos de quem
do o cuidado de destacar as expressões que lhes a observa. Na verdade, sua aparência incomum
pertencem. A pesquisa, conforme a Resolução no mascarava algum horror oculto, com caracte-
466/12, do Conselho Nacional de Saúde, foi apro- rísticas aberrantes e consequências desastrosas
vada pelo Comitê de Ética e Pesquisa do hospital para quem cruzava seu caminho: “Acho que as-
(no 31.956/09). Os nomes das informantes são susto as pessoas (...) Tenho vergonha de sair na rua
fictícios. porque todo mundo me olha! A imagem é coisa
séria, as pessoas julgam a gente pela aparência.
(...) Perguntam o que eu tenho! Tem gente que tem
Resultados medo de ficar perto de mim, pensando que tenho
aquela doença” [refere-se à hanseníase].
No hospital público especializado em tratamen- Observamos que a monstruosidade como
to de queimaduras em Fortaleza, as mulheres acepção simbólica do mal é manifestada pela
descrevem as repercussões que a queimadu- força física desenvolvida por sua própria aparên-
ra produziu nas suas vidas, atingindo sua pele cia. Porém, segundo o conjunto de proposições
impiedosamente. Todavia, desvelam os motivos no qual se inscreve, pode adquirir vários signi-
que determinam as causas reais do acidente, ficados dentro de alguns contextos, entre eles,
como sobrecarga de trabalho, ciúme e violência temos a “vergonha do corpo”.
física. A narrativa dá voz a sofrimento, dor, limi- Com apelo à metáfora do monstro, aludimos
tação com a deformação física. Nas entrelinhas ao fato e indagamos o que são monstros? Quem
dos diálogos com essas mulheres, seus familia- são eles? De modo complementar, percebemos
res, colegas e profissionais de saúde, surgiram que são perguntas complicadas, e muitas res-
metáforas da aparência corporal carregadas de postas acabam sendo doloridas, chegando perto
significância cultural. A cicatriz da queimadura é demais de nossos hábitos e crenças. Desse modo,
capaz não só de desfigurá-las, mas também ma- é mais fácil rejeitar a reflexão e se refugiar na me-
cular sua reputação moral. Ao mesmo tempo, no táfora do monstro: a pele grossa pelo queloide
último caso, oferece uma nova forma de signifi- que envolve toda a área queimada, a hipertrofia
car o viver. Por fim, inspira a cura “hipodérmica”, demarca seu pescoço e face, chamando atenção.
isto é, a cura da alma no corpo queimado. Em geral, notificamos que essa aparência é
uma evidência, não é um dado inequívoco, pois
O eu-monstro: uma aparência ímpar não estamos falando aqui de metáforas etéreas,
mas, sim, de uma mulher de carne e osso, ao nar-
Lúcia, 38 anos, cozinheira, foi internada no CTQ rar ser isolada do mundo, perdendo dignidade,
com 40% do corpo queimado, com queimaduras respeito, capacidade laborativa e desvalorização
de 2o e 3o graus. Assim, horas antes, uma garrafa social perante sua aparência: “Antes de me quei-
de álcool gel próximo ao fogão aceso explodiu, mar, era um monstro de trabalhadora, agora sou
queimando sua face, pescoço, seios, braços e uma trabalhadora monstra. Nem sei se meu chefe
mãos: “Só lembro da dor e do fogo azul subindo vai querer que volte a trabalhar desse jeito!”. Lúcia,
pelo meu rosto (...) Gritava muito, corria, me ba- ao se reconhecer como monstro, aproxima-se de
tia todinha pra apagar o fogo! ... Vi minha carne um sintoma da imperfeição e, ainda, percebe que
saindo dos meus peitos e da minha mão! Senti o sua “carne” precisa ser substituída e, além disso,
cheiro de carne torrada! Foi horrível!”. Durante 45 não consegue aceitá-la como ela é e quer corri-
dias, sofreu acidose, perda de fluidos, alterações gi-la. Assim, a informante espera ansiosamente
no equilíbrio endócrino, ameaças de infecção e as reparações cirúrgicas, pois o fisiológico está
dor intensa: “A dor que sofri foi a pior que já senti aqui subordinado ao simbólico: “Vim no hospital
como gente!”. Em casa diante do espelho, reflete a pra ver se o Doutor tira essa marca do meu corpo!
imagem “monstruosa” de si mesma; de susto, ela Queria fazer a cirurgia, pra me ver menos mons-
olha para os lados e abaixa a cabeça numa atitu- truosa... Vai melhorar, né?!”. Na sala de espera do
de de submissão: “Peguei o espelho e, quando me ambulatório, o médico declara que não é o mo-
vi, me senti um monstro!” [Choro]. mento de fazer as reparações cicatriciais: “Volte
Diante disso, está implicado que a aparência daqui a um mês, continue fazendo exercício, não
continha tudo. Na visão de Lúcia, a marca corpo- pegue sol, use o protetor solar e a malha...!”.

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EXPERIÊNCIA DO SOFRIMENTO DE SER QUEIMADA EM MULHERES 2061

Etnografar essas praticalidades, diante de lhorar essa marca, tiram pele do meu corpo, nesta
um “corpo múltiplo”, envolve vários agentes em última consulta, queriam tirar das minhas cos-
ação, pois o tratamento é multidisciplinar. Assim tas!... Fiquei preocupada, é o único lugar que não
sendo, perguntamos ao médico como está rela- tem marca...!”. Ela vislumbra a manifesta preocu-
cionada essa prática assistencial e do cuidado; pação com a aparência diante da marca física de
ele comenta: “O cuidado da queimadura é man- seu corpo, provocada pela atitude de especula-
ter a circulação, prevenir infecção, obter cobertura ção, preconceito e curiosidade do outro: “Minha
adequada para a ferida, preservar funcionalidade roupa foi feita pra mostrar as costas, se tirarem
e reabilitação do segmento envolvido. O período carne dela? Tenho que fazer nova roupa pra co-
de maturação cicatricial dela não está efetivo. brir... Pedi o médico que tirasse das coxas, resta
Devemos ter senso para intervir corretamente... A pedacinhos de carne sem marca... Só porque sou
ansiedade é normal, ela ainda não está preparada pobre, sabe o que ele [médico] me perguntou? Tá
para fazer a reparação cirúrgica”. Enfim, essa é a suvinando [poupando] pele mulher?!”.
performance clínica-laboratorial da morbidade Insegura diante do ato violento e com auto-
das queimaduras. estima abalada, Eva narra acontecimentos espe-
Nesse sentido, é relevante notar que a incor- ciais e as emoções que esses despertam toda a
poração do conhecimento teórico-prático sobre significação de sua imagem corporal: “Não con-
o processo cicatricial como perspectiva auxilia sigo arranjar trabalho por conta dessas marcas,
na decisão de intervir ou não no corpo da infor- ainda tenho que cobrir para sair... e ainda ficou
mante. Na ausência de limites de significação o nome dele marcado em mim... Olha bem pra
que a tecnologia cirúrgica ainda não oferece, Lú- minhas marcas, olha bem!... olhou? Viu! Elas têm
cia procura os limites desse fato. Na realidade, o “MA” de Marcos!” (Figura 1).
seu intuito é remediar as incertezas do orgânico Marcada pela queimadura, por violência do
pela adição de procedimentos técnicos, já que companheiro, sofrida no lar, Eva traz inscrito no
tentava restaurar um equilíbrio perturbado. As- corpo a percepção da enfermidade, fruto cumu-
sim, ela volta com ressentimento, sobrevém uma lativo de sofrimento. Na sua narrativa, a seque-
decepção imensa contra o corpo marcado pela la é ligada semanticamente à integridade física.
queimadura, vivenciada como infâmia, uma des- De fato, nos proporciona informação de como
graça, uma experiência imunda percebida como os problemas da vida são criados, controlados e
privação e exclusão e como prova de humilhação têm significados. Consequentemente, eles pare-
atroz. cem sem sentido, mas a busca de sua inserção se
materializa na sua fala e nos cuidados com seu
A marca de Marcos corpo e pode ser decisivo para ela. Não consegue
dirigir mais seu destino nem elaborar projetos de
Final de tarde de domingo, Icaraí, praia cearen- vida, pois são poucas as escolhas e acredita não
se, ao encontrar o companheiro, Eva, vendedora, haver mais oportunidade nem motivação. Essa é
32 anos, é vítima de tentativa de homicídio pela a repercussão nas cicatrizes dessa mulher social-
explosão da garrafa de álcool líquido que ele, ao mente excluída, vítima de violência e da miséria
borrifá-lo sobre o corpo dela, provoca o acidente, crônica. Apesar do seu desconforto com a cica-
causando a ela sérias lesões. O álcool, como ae- trização, porém, é possível uma adaptabilidade
rossol, ficou no ar, formando uma ponte entre a na prática do cuidado. Junto ao cirurgião plásti-
chama e a garrafa, explodindo ao sugar o fogo pa- co, argumentarmos uma melhor colaboração ao
ra dentro dela: “Ele jogou o álcool em mim, depois utilizar seus conhecimentos e tecnologias para
começou a isqueirar!... Desesperada, falei que não reparar o corpo dela, principalmente quanto às
era brincadeira... aí, o isqueiro acende me quei- possíveis consequências estético-funcionais.
mando! Gritei muito. Tentei apagar o fogo com as Portanto, ele [cirurgião] relata: “Nós médicos
mãos, por isso, tenho pouco movimento. Engoli enfrentamos problemas relacionados à falta de
fumaça, queimando por dentro. O cheiro de carne enxerto para cobrir toda a área lesada, ela é uma
queimada era forte! Saí correndo para rua, quei- grande queimada. Ela não tem outra área corpó-
mando viva, depois não lembro de nada”. rea, tem que ser nas costas”.
Permaneceu 90 dias internada na unidade de Nesse caso, embora a tomada de decisão
queimados, 35% do corpo em carne viva, com seja individual, pedimos ao cirurgião para ex-
queimaduras de 2o e 3o graus. Avaliação clínica: plicar a Eva que a alternativa cirúrgica, frente
60% de chance de óbito, 40% de recuperação. Su- às queimaduras extensas e profundas que ocor-
perou infecções severas, desbridamentos. Após rera, garantia menor morbidade para área do-
dois anos do acidente, a recuperação estética e adora. O procedimento ameniza o problema,
funcional envolve várias cirurgias: “...passei por porém, não o soluciona. No ambulatório, numa
dezenas de cirurgias [clínica plástica] para me- fala esclarecedora, as pesquisadoras informam

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2062 Arruda CN et al.

Figura 1

Marca na forma “MA” de Marcos. Centro de Tratamento de Queimados, Fortaleza, Ceará, Brasil.

que o tratamento irá fornecer o melhor resulta- mãe: “Foi muita dor... [pausa] quando o médico
do estético possível. Finalmente, ela aceita, e a falou que Natália morreu... Não queria perder
acompanhamos ao centro cirúrgico com todos Tânia!”. No mesmo instante que Natália falece,
os bisturis e competências inspiradas para um Tânia sai da UTI, fala sua mãe: “Não sei se ria ou
cuidado ativista. chorava, uma morta, outra saindo de coma... Era
dor e alegria!”.
Cura à flor da pele Tânia tinha feridas que a colocavam em risco
de morte. Eram lesões profundas de 2o e 3o graus,
Tânia, 24 anos, estudante, sofreu queimaduras em 75% do segmento queimado, atingindo cabe-
junto à irmã mais velha ao brincar com fogo e ça, face, pescoço, tronco, braços, mãos, genitália,
papel sobre o colchão. A brincadeira acaba tra- pernas e pés. Os médicos disseram que ela tinha
gicamente, sendo narrada por D. Nélia, a mãe: apenas 1% de chance de sobrevivência. Até parte
“Era muito fogo...! Peguei água tentando apagar, de seus ossos derreteram. Lutou contra a morte:
mas só piorava, aumentando a labareda!”. Entre “Deus e Nossa Senhora deram força pra suportar
chamas, a mãe salva as crianças: “Entrei deses- tanto sofrimento... Minha filha sofreu na carne
perada pela labareda, peguei Natália... depois toda dor!” [D. Nélia]. Em sua voz, Tânia não re-
Tânia pelos cabelos!”. A proporção do fogo fez a corda o acidente, a não ser por um detalhe: “Não
família perder a casa. As crianças adentram no lembro de nada, nem da Natália... lembro do pa-
Centro de Tratamento, queimadas por chama di- no azul, que minha mãe enrolou, acho que era o
reta. Natália teve 50% do corpo queimado, com manto de Nossa Senhora!”.
queimaduras de 2o e 3o graus. Após vinte dias Sua hospitalização ultrapassa um ano e seis
internada, falece por choque séptico, comenta a meses, com tratamento longo e exaustivo, apre-

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EXPERIÊNCIA DO SOFRIMENTO DE SER QUEIMADA EM MULHERES 2063

sentando diversas complicações orgânicas, re- queimaduras trazem preocupações ao universo


alizou 41 cirurgias, readmissões para enxertias, feminino: aparência física, autoestima, relações
reparação da sequela física; como reconstituição conjugais etc. As lentes que sustentam os sinto-
de septo nasal, mamas e genitália, prótese ocular mas que incomodam essas mulheres ao enfren-
esquerda, uso de expansores teciduais no couro tarem dilemas trágicos e viverem sob tensão são
cabeludo. Diante disso, batalhando contra todo mais intensas do que se possa perceber. Com isso,
sofrimento e desejando a cura, a vida ganha sig- as lacunas do desconhecimento são preenchidas
nificados e perspectivas para Tânia: “...Meu dese- por narrativas intimistas. Partimos da compreen-
jo é voltar estudar, entrar na faculdade!”. são dos fenômenos ligados à saúde e à doença,
A narrativa deixa claro que ela tem uma ma- como é proposto por Kleinman 15, ao esclarecer
neira única e irrenunciável de encarar sua ad- o processo ao longo da enfermidade, tais como:
versidade física perante as visões reveladoras o sofrimento, a singularidade e a estranheza do
em shopping, restaurante e na maior avenida de fato de sentir-se doente. Compartilhamos com o
compras da cidade. Percebemos que, na moder- autor 15 o fato de que enfrentamos uma “illness”
nidade, a única extensão do outro é frequente- grave e complexa, com fisiopatologia, comorbi-
mente a do olhar: “Não me importo com olha- dade e mortalidade 9,17,18 (DATASUS. Morbidade
res dos outros, sou diferente... Não fico chateada por Queimadura. http://www.datasus.gov.br/da
quando perguntam o que aconteceu... Não gosto tasus/datasus.php, acessado em 28/Out/2008).
quando zombam de mim!”. A aparência coloca Nosso estudo explora a percepção do corpo
a informante sob o olhar apreciativo do outro queimado dessas mulheres. De fato, o corpo que
e, principalmente, transformando em estigmas, estudamos, e que adoece, é um corpo integrado
em marcas fatais de imperfeição moral. Ela está no plano do discurso, em que a metamorfose é
submetida ao campo de visibilidade e sabe disso. prevista, produzida e imposta 31. De modo com-
Ao mesmo tempo, traz uma característica plementar, o trabalho desenvolvido por Porter &
fundada na sedução e na comunicação com re- Vigarello 32 e Courtine 33 permite iluminar melhor
lação ao seu corpo – sua aparência, declarando a compreensão do corpo como objeto cultural de
e encarando sua vida igual às adolescentes ditas uma totalidade, que envolve: corpo orgânico, de
normais: “Vou à festa, praia, academia, já namo- carne e sangue, corpo agente e instrumento de
rei! Faço tudo normalmente, sem medo de nada...! práticas sociais, econômicas e políticas, corpo
Homem olhando pra mim é paquera, mulher é subjetivo 32,33.
sapatão” [risos]. Enfim, o envolvimento com a Em todo o percurso, expandimos esse cor-
família fez com que ela não perdesse toda essa po, enquanto pele 34 que tem valor simbólico:
vitalidade: “Minha mãe é responsável pelo meu a carnalidade da existência humana. Exprime
jeito! Meu pai me deu a vida duas vezes, uma por verdades, legitimando sua incontornável força e
nascer e outra doando pele!”. singularidade, assinala Anzieu 34. De um lado, ele
Ao longo da pesquisa, ainda no ambulatório, é visto como o demarcador das fronteiras entre
sentimos a curiosidade e, tendo cuidado meticu- o indivíduo e o mundo; de outro, é concebido
loso, indagamos se ela desejava realizar a cirurgia como dissociado do homem 34,35. Sabemos que
reparadora. Ela responde com docilidade, legiti- uma das qualidades adotadas para definir a bele-
mando seu “look” como presença de estilo. Por za do corpo humano é o da conservação da pele,
fim, essa prática foi exposta à avaliação médica, pois não se trata mais de uma ingênua apologia
obtendo a seguinte declaração: “...todos os proce- da pele/corpo. Ninguém ignora que pele/cor-
dimentos realizados em Tânia foram gerenciados po sustentam a mente, e que a saúde física tem
da melhor maneira possível, e o melhor de sua impacto sobre o bem-estar mental 34,35. Concor-
aparência foi alcançado”. Apesar de extrapolar o damos com Anzieu 34 e Montagu 35 que a pele é
limite da corporeidade, chama atenção de que, uma abertura para o mundo, uma memória viva.
na vida, manter a esperança, mesmo diante de É um termômetro do gosto pela vida. Ela envolve
tantos acontecimentos, mostra que Tânia, na sua e incorpora a pessoa, distinguindo-a das demais,
essência, é mais forte que a dor e a sequela da encenando a aparência que rege as nossas socie-
queimadura. dades. Ou pelo contrário, ela encarcera em uma
identidade insuportável da qual desejamos abdi-
car, tendo, como testemunha, as lesões corporais
Discussão desencadeadas pelas queimaduras 34,35.
Nas narrativas de Lúcia e Eva, há “bons ar-
A experiência do sofrimento de ser queimada gumentos” que derivam caos e vulnerabilidade,
narrada por nossas informantes revela uma es- pois Anzieu 34 relata que a relação com o mundo
pecificidade ímpar da mulher cearense; reflete de cada homem é, portanto, uma questão de pele,
uma intimidade com a violência de gênero 6,13. As e de solidez. Não estar bem em sua pele implica,

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algumas vezes, a reorganização de sua superfície Cumpre salientar, ainda, que o trabalho de
para vestir uma nova pele e nela melhor se en- Mol 42 argumenta que o confronto entre a fragi-
contrar 35,36. Indiscutivelmente, isso é igualmen- lidade do corpo, as limitações e o avanço tecno-
te abordado, real ou metaforicamente, quando a lógico gera realidades múltiplas. Nossa pesquisa
pele dessas mulheres desvela as tensões vividas e corrobora com a autora 42. No mundo de signifi-
que as obrigaram a procurar ajuda médica (cirur- cados das queimaduras, etnografamos as práti-
gia). Constatamos que as informantes queima- cas e os eventos que fazem (enactment) a enfer-
das na face, mãos, seios, genitália, por exemplo, midade 42. A compreensão da enfermidade não
manifestam curiosidade sobre sua aparência. Os se esgota na experiência individual e isolada, mas
dados aqui encontrados corroboram os traba- abrange, também, os significados sociais que
lhos que evidenciam alterações na imagem cor- variam entre grupos diferentes. Afirmamos que
poral e a identidade quando a queimadura atinge o estigma e a vergonha associados às sequelas
locais do corpo com maior exposição 9,36. das queimaduras são socioculturalmente cons-
Percebemos, ao entrar na voz das nossas in- truídos. O olhar julgador do outro é o que tor-
formantes, que a dor da lesão e sua cicatrização, na a cicatriz da epiderme uma “desgraça” – uma
a tensão que permanece na pele, a visão da fe- marca “MA” de Marcos – deixada maculada no
rida ou seus traços são uma experiência difícil corpo 11,12,15. Assim, a cicatriz absorve um juízo
de esquecer e superar. Ao constatar as alterações de valor moral. Kleinman 12 afirma que é melhor
corporais produzidas pelas queimaduras, Lúcia compreender o estigma como experiência moral
e Eva enfrentam sentimentos negativos, como 11,12, configurado dentro de um mundo local e

distúrbios da autoimagem. Revelam fissuras particular – como, no nosso caso, numa unidade
profundas no mundo interno, uma cicatriz33 do de queimados.
espírito que demanda um reordenamento terrí- Conforme a narrativa de Eva, a violência do-
vel da experiência cruel do sofrimento. Provoca, méstica gerou traumas, procurando o pronto
muitas vezes, sentimentos de inadequação, rejei- atendimento, pois queimaduras são 20% dessas
ção familiar ou conjugal implícita num processo agressões 37. Essa lesão por ato de violência é as-
de marginalização social 37. sunto complexo, e, na prática, muitos fatores in-
As evidências surgidas dos dados deixam terferem, sendo necessário considerar a subjeti-
claro que, no ambulatório, elas queixam-se da vidade da vítima, as condições socioeconômicas,
deformidade. Consequentemente, percebemos políticas e culturais 37,39. O efeito dessa agressão
que o principal motivo, consciente ou incons- resultou nessa mulher danos irreparáveis. De-
ciente 35,36,38, que leva nossas informantes a se sencadeou não apenas uma urgência médica,
operar é a necessidade de melhorar a autoestima, mas sérios problemas físicos, psicológicos e fi-
o afeto e a aprovação da sociedade. Diante do nanceiros para ela, para a sua família e para a
aspecto estético, o acompanhamento psicológi- sociedade.
co é recomendado para minimizar o sofrimento, Por conseguinte, estigma, violência pelos
garantindo a continuidade do tratamento, pois parceiros íntimos ampliam mais ainda a vulne-
não acreditam nem reconhecem o progresso da rabilidade das mulheres 6,7, descobrindo que os
melhoria clínica. únicos valores que importam são aqueles que
Nessa direção, Kleinman 39 sugere que a ela tem além da próxima ameaça. Segundo Mi-
equipe deve estimular, no próprio paciente, as nayo 6, a violência conjugal é a extensão, para a
fontes de conhecimento, técnicas e novas con- esfera privada, de um domínio “machista” em
dições do tratamento que podem tornar o cui- prática na totalidade da sociedade.
dado de si mesmo mais efetivo. Podemos inferir Um aspecto intrigante da nossa exploração
que essas mulheres não conhecem a dimensão etnográfica é o caso da Tânia. Ela nos mostra até
do tratamento da queimadura e suas sequelas. que ponto o desafio das sequelas permitiu reali-
No entanto, não basta dispor da tecnologia pa- zar sua autonomia como mulher. Vem-nos con-
ra o diagnóstico e a terapêutica, é fundamental frontando com o modelo funcional ou relacio-
abarcar a complexidade humana 40. Reconhe- nal 40 simetricamente inverso frente às narrativas
cemos que a Política Nacional de Humanização anteriores. Diante de uma ameaça de dor, desfi-
(PNH) 41 trouxe um avanço para o Sistema Único guração, perda de função e incapacidade grave,
de Saúde (SUS) que vai além da valorização das Tânia e a família reformulam a experiência do
dimensões subjetiva e social. Para o cuidado e a sofrimento dentro de seu mundo moral local 12,
promoção da clínica ampliada focada nas abor- refazendo significados, emoções e valores por
dagens convencionais, somente na doença, nos- meio de atividade religiosa e até estética. Mol 42
sa pesquisa no Ceará constata que, na realidade, traz, em perspectiva, que as mudanças aconte-
não há, ainda, uma prática clínica centrada na cem a partir da multiplicidade do cuidado, o qual
pessoa humana. extrapola o “capital – aparência”, quando permite

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EXPERIÊNCIA DO SOFRIMENTO DE SER QUEIMADA EM MULHERES 2065

que o sujeito participe diretamente pela escolha Conclusão


do seu tratamento 42. Kleinman 39 também en-
fatiza o cuidado por meio da relação paciente, Este estudo antropológico acrescenta o conheci-
familiares e pessoal encarregado da terapêutica. mento da experiência de mulheres que sofreram
No caso de Tânia, a narrativa se desconec- queimaduras. É uma verdadeira “experiência dos
ta fisicamente de um arcabouço teórico. Apesar limites” da vida, desvelando possibilidades de
de visões apocalípticas, o corpo dela se multi- superação da visão do corpo da Biomedicina. A
plica, adquire dinâmica entre exterioridade e experiência da enfermidade para essas mulheres
interioridade, força na própria ausência física, é um sofrimento social, centrado na cronicida-
ganha um inconsciente 32,33. Portanto, saindo do de, desmoralização, estigma e vergonha. Retra-
aspecto físico e orgânico de constatação obje- ta situações vividas por pessoas fragilizadas, em
tiva, percebe-se que a consciência, a atitude e detrimento à complexidade. A carga emocional,
o equilíbrio das emoções de Tânia dependem o desespero e a dor da epiderme danificada têm
do grau de maestria do afeto maternal, do tipo uma dimensão moral.
de “ferramentas” disponíveis, da receptividade Os resultados evidenciam que a lógica do cui-
e da interação familiar. Talvez, por essa razão, dado é um processo interativo, aberto, que exige
como diz Barasch 43, para o caminho da cura, há que pacientes e profissionais estejam em sin-
toda uma gama de níveis energéticos, seja físico, tonia, buscando sensibilidade e sabedoria com
emocional, mental ou ainda espiritual 43. Den- o ambiente. É preciso que os profissionais de
tro de uma perspectiva cultural, ela se ajusta aos saúde penetrem nas representações êmicas (de
desafios da modernidade, descobre como ultra- dentro para fora), compreendendo e encarando
passar os obstáculos impostos pela adversidade, o sofrimento dos seus pacientes. Não negamos a
buscando aquele espaço interior que é repleto melhoria com o tratamento médico. A vulnera-
da inteligência do universo, a energia vital 43 – a bilidade provocada pela sequela da queimadura,
fonte da vida. entretanto, exige uma política de humanização
do cuidado.

Resumen Colaboradores

En el nordeste brasileño, la muerte por fuego es una C. N. Arruda, A. S. G. Braide e M. Nations participaram
amenaza omnipresente y banal entre las mujeres po- da elaboração do projeto, coleta de dados, análise dos
bres. Este estudio antropológico describe su experiencia resultados e redação do artigo.
al sufrir quemaduras. En 2009, fueron investigados seis
casos “ricos en información” en el Centro de Quemadu-
ras, Fortaleza, Ceará, Brasil. Se realizaron entrevistas Agradecimentos
etnográficas abiertas con informantes claves, narracio-
nes de experiencias y una observación participativa en A nossas informantes, à Dra. Arlene Michele Katz, do
la clínica y domicilios. Utilizamos métodos de análisis Departamento de Saúde Global e Medicina Social da
de contenido, sistemas de signos, significados y acciones Universidade de Harvard, pelo seu olhar crítico e cons-
e interpretación semántica contextualizada. Las metá- trutivo. M. Nations agradece o apoio do CNPq (proje-
foras emergentes están cargadas de significado cultural to no 307346/2011-0). Agradecemos a colaboração do
de “monstruosidad” y la violencia de género por el fuego grupo de pesquisa Cultura e Humanização do Cuidado,
– sin piedad marcado en el cuerpo femenino. El “com- por contribuições e reflexões sobre a experiência do
bustible por accidente” (alcohol) oculta la cruel reali- sofrimento.
dad de la “carne cruda y tostada”. La cicatriz es capaz
de desfigurarlas y transformarlas “no-personas” empa-
ñar su reputación moral y generar rechazo social. En el
nordeste brasileño, la vulnerabilidad social, causada
por las secuelas de quemaduras requiere una política
de cuidado humano.

Quemaduras; Estigma Social; Vulnerabilidad Social;


Antropología

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