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AXEXE

INTRODUÇÃO

Este artigo, de caráter etnográfico, consiste em uma descrição


daquilo que ouvi e vi sobre a morte e os diferentes rituais a ela
ligados no batuque de Oyó. À exceção do trabalho de Norton
Corrêa (2006) que dedica a segunda parte de seu livro, “O
batuque no Rio Grande do Sul”, aos mortos, não encontramos
trabalhos sobre o batuque gaúcho que tenham se debruçado
sobre o tema. Autores como Melville J. Herskovits (1943) e Roger
Bastide3 (1985) tangen- ciam a temática à luz de suas experiências
etnográficas com o candomblé baiano4. Esses autores discorrem
sobre a relação dos adeptos com os eguns, os espíritos ou almas
dos mortos, ressaltando aquilo que não fora encontrado no Rio
Grande do Sul – como as sociedades de eguns encontradas na
África e na Ilha de Itaparica/BA. A descrição que será oferecida vai
ao encontro da de Corrêa (2006; 1998)5 em muitos pontos.
Entretanto, as linhas que seguem exploram um lado da religião
que a produção antropológica não se preocupou ou deixou em
segundo plano, o desfazer.

Desfazer é o complexo de práticas relacionadas com a morte e os


rituais que ela implica, que não devem ser negligenciados, mas
antes tomados como tão importantes quanto as práticas que
compõem o processo de fazer o santo e a pessoa. Fazer, ligar
(fazer laços), assentar, firmar o santo e acumular obrigações6
culminarão no desfazer. A noção será utilizada neste artigo para
agrupar outros conceitos como desligar, embalar, quebrar, destruir
e terminar. Desfazer, portanto, será considerado em sua
importância ritual, para desligar na terra, para construir alhures, e
não como a descrição de um culto ou anti-culto aos mortos. No
batuque de Oyó, veremos esses conceitos a partir de uma série de
rituais que desligarão o morto dos vivos e vice-versa, sendo o mais
importante deles o eru.

Proponho que se tome o desfazer como lugar privilegiado para


alargar o conhecimento antropológico sobre as noções de alma
(relacionada ao conceito de egum), corpo e pessoa (geralmente
estudadas a partir da feitura), e de vida e morte, como ficará claro
ao longo do artigo. Não se trata de uma postura que vá de
encontro aos estudos sobre feitura e construção de pessoas e
corpos nas religiões afro-brasileiras. Nelas encontramos
importantes contri- buições, como as de Anjos (1995), e a ideia
do apronte (do fazer o chão)como metáfora recíproca com o
nascimento biológico, e as de Goldman (1984), para o qual a
pessoa construída ritualmente no candomblé é folheada,
composta por múltiplos componentes que só entram em
equilíbrio após vinte e um anos de iniciação, momento quando se
atinge o tata (quando a pessoa possui domínio sobre eguns e
vodunisis e uma não-submissão aos orixás). Essa realidade
múltipla e folheada que parece dar lugar a um ser Uno e indiviso,
na verdade, nunca se realiza, pois somente os orixás são os seres
verdadeiramente unitários. Por isso, tem-se uma pessoa
descontínua em constante busca pelo equilíbrio. O que o desfazer
evidenciará não é apenas uma concepção outra de pessoa, mas
que as porções que a compuseram ao longo da vida se destacam
umas das outras, recebendo diferentes destinos com o eru.

Os dados são provenientes de meu trabalho de campo em uma


casa do lado7 de Oyó, em Gravataí/RS, presidida pelo pai de santo
Odacir do Ogum. A nação é composta pelos descendentes no
santo de Mãe Emília da Oyá Ladjá – princesa africana que iniciou
esse lado no Rio Grande do Sul. As pessoas com as quais me
relacionei em campo dizem que Oyó é um lado puro, ou seja,
distingue-se das outras nações pela exclusividade de culto aos
orixás, deixando fora do campo de culto exus e pombagiras,
caboclos e caboclas, pretos e pretas velhas e cosminhos e
cosminhas, além dos eguns. Daí que os ritos fúnebres se dedicam
às obrigações últimas aos orixás daquele que partiu. É através de
obrigações aos orixás e ao próprio morto (ou egum) que se
desfazem as obrigações e se quebram os laços religiosos e
afetivos.

Já no dia da morte de algum parente de santo se deve apagar


luzes e velas do quarto de santo, deixando-o escuro, em sinal de
luto. Além disso, as obrigações devem ser arriadas. No enterro,
axexes (rezas de egum) são tirados. No sétimo dia, além da missa
católica8, ocorrerá o eru momento mais importante no pós-
morte. É nessa hora em que humanos e orixás devem quebrar
seus laços com o orixá de quem morreu e com egum9.O próprio
morto também deve aprender que não faz mais parte do “nosso
mundo” e deve se desligar dos humanos e orixás que
permanecem aqui, vivos. Passo agora à descrição de práticas e
rituais que sucedem a morte e que, paulatinamente, desfazem na
Terra o que será refeito em Orum (espécie de correlato do paraíso
cristão; local onde os orixás vivem).

LUTO
É justamente nos sete dias que sucedem a morte de um batuqueiro que as
Nanãs10 aparecem. Nanã é a dona da vida, da morte e dos espíritos.
Acontece que se morre de várias formas e ao morrer pode-se perder uma
parte do corpo, como um braço ou uma perna, ou ficar deformado. É Nanã
Burukê quem juntará as partes e quem consertará os estragos, juntando os
caquinhos. Nanã Anarauim está sempre correndo, passa e não para. Nanã
Anansurê passa, para e olha, mas vê que aquilo não é para ela. Nanã Burukê
é a que para, recolhe as partes do corpo e leva para algum lugarzinho na
praia – pedras, mata, beira de mar ou rio – e fica esperando o que a “lei
manda”. Se nesse tempo, “tudo” (rituais e oferendas) for feito direitinho,
ela irá juntar os pedaços para reconstruir e levar o egum para perto do seu
orixá de cabeça. Diz-se que a cada ritual realizado a pessoa, agora egum, vai
se aproximando mais e mais de seu orixá. Nanã vai levando o egum – ou
alma11 – para perto dele. Pois o final de todos aqueles que são de religião é
aos pés de seu orixá12.

***

As pessoas com quem conversei me contaram que batuqueiro tem de ser


enterrado, nunca cremado. O caixão deve ser embalado (para frente e para
trás). Somente homens “prontos” podem segurar as alças do caixão.Com
agê (instrumento feito com uma cabaça/porongo inteira trançada com
cordão e contas/miçangas de diferentes cores), os axexes (rezas de egum)
são entoados durante o percurso, que vai da capela do cemitério até a cova.
O enterro é apenas uma parte da despedida. Nele deve-se ir com a guia do
orixá de corpo (no batuque, ao invés de enredo, se tem um orixá dono da
cabeça, que casa com outro que será o dono do corpo) tal, leva-se cinza –
para afastar os eguns– e um pedaço de morim (tipo de tecido) branco para
abanar o que há de ruim e se despedir do morto13. Contam com a simpatia
ou antipatia do padre responsável pela paróquia do cemitério. No enterro
de Tia Lourdinha do Ogum, em julho de 2011, contaram com a boa vontade
do padre. A descrição feita pelos presentes foi a de um ritual triste e belo ao
mesmo tempo. Após o sermão do padre, colocaram a música “Jorge de
Capadócia14”, de Jorge Ben, para homenagear a filha de Ogum que estava
deixando a terra.

Como venho demonstrando, a morte é motivo de luto e isso implica em


várias prescrições. Durante sete dias que seguem a morte, não se acende
velas nem luzes no quarto de santo. Além disso, os serviços/feitiços devem
cessar. Apenas após o ritual de desligamento, aos poucos, as atividades da
casa voltam ao seu normal. No oitavo dia se acende apenas velas. Aos
poucos se pode começar a trabalhar, mas com serviços “leves”15. Três
meses após a morte, mata-se para Bará (orixá que é dono dos caminhos, o
princípio de tudo e para o qual se deve prestar homenagens em primeiro
lugar. Dizem que “sem Bará não acontece nada”) e pede-se autorização
para fazer serviços mais pesados, o que o orixá pode ou não conceder.

Diferente do que acontece nos períodos em que não se está de luto, não se
deve cumprimentar o quarto de santo, nem bater cabeça. Apenas beijos,
abraços e o beija-mão – é importante notar que ao beijar as mãos de
alguém, estamos cumprimentando, beijando as mãos de seu orixá de
cabeça. O tempo de luto varia com a hierarquia do falecido na religião: aos
babalaus (ou babalaoas – modo como também são chamados os pais e
mães de santo, respectivamente), com casa aberta16, guarda-se um ano;
aos prontos17, mas sem os santos em casa, seis meses; àqueles com
borido18, três

meses; aos outros19, sete dias. Essa conta pode variar de acordo com os
laços sanguíneos, com a afinidade e com o tempo de religião que alguém
tenha. Assim, por exemplo, alguém que é pronto e não tem os santos em
casa, pode levar ao luto de um ano, pelo seu tempo de religião. Como já
mencionado, é nessa semana em que Nanã toma conta do egum, que assim
como os outros orixás, exige oferendas para trabalhar. Dito isso sobre o
luto, podemos passar aos rituais que acontecem no sexto e sétimo dias
após a morte.

Na noite que antecede a missa de sétimo dia é realizado o corte para o


egum20. Antigamente, o ritual era realizado em um buraco nos fundos

da casa, para depois ser coberto com terra, pois no Oyó não se deixa balé21
aberto, ou seja, não se cultua aos mortos. Atualmente, comenta Odacir,
com a dificuldade em se adquirir terrenos grandes, as casas possuem pouco
espaço nos fundos, então mata-se para o egum em uma talha, quando
quem morreu tem cabeça de orixá masculino (Bará, Ogum, Xapanã, Odé,
Ossanha, Xangô e Oxalá), e num alguidar, quando a cabeça pertence a
orixás femininos (Iemanjá, Oxum, Otim, Obá, Iansã)22. As talhas e
alguidares são, posteriormente, despachados junto com toda a obrigação
do morto, ao final do eru, na kalunga23 (o que será tratado adiante).

Em uma gaiola ou outro espaço previamente preparado estão os animais


que serão cortados. Para o início da matança, pedem silêncio, e que os
prontos se aproximem, da ordem do mais antigo na religião ao mais novo.
Os não prontos não assistem de perto, olham de longe, por entre os braços
e pernas daqueles que estão mais próximos.

A talha, que faz as vezes de buraco, deve ser batizada. Batiza-se com farinha
de mandioca e se coloca folha de mamoneira, para que só então o axorô
(sangue) possa ser ali depositado; junto com ele, a cabeça das aves e do
animal de quatro-pés, quando for o caso. O restante do animal vai
diretamente para bacias, separadas por orixá, para que depois as inhálas
(vísceras e patas) sejam separadas, e as aves depenadas e preparadas para
serem temperadas. É delas que se fará o arroz com galinha, a comida de
egum. É importante mencionar que diferente das inhálas de obrigação, que
são fritas e refogadas na banha com coloral e outros temperos, as de egum
ficam cruas, e só têm que ser lavadas para que não estraguem até o dia
seguinte, quando são servidas.

Como em qualquer obrigação, inicia-se por Bará24. Após cada ave cortada,
tempera-se a obrigação com mel e dendê25. Diferente das matanças feitas
por motivo de homenagens, quinzenas (corte de aves para o orixá) ou
quatro-pés, o corte é rápido. Após a matança, é acesa uma vela branca atrás
da talha ou alguidar, com um protetor contra o vento. Ao lado da vela
acesa, pacotes de vela branca para que ao final de cada vela já se acenda a
seguinte. Alguém deve ficar responsável por cuidar da vela e repô-la para
que o egum não fique no escuro. Assim deve ser até a hora do eru.

MISA E ERU
No sétimo dia é encomendada a missa católica, conforme ilustrado no caso
de Tia Lurdinha, na qual todos que participam do corte devem ir. Além
deles, parentes de santo que não puderam estar na noite anterior
participam da missa. Deve ser a primeira missa da manhã, pois após ela
ocorre o importante ritual do café da manhã.

Após a missa, os parentes de santo se reúnem em frente à igreja para irem


à casa onde ocorrerá o eru. Na porta de entrada, um filho ou filha dá
instruções de como proceder na hora de entrar. Ao lado da porta, um móvel
contém cascas de coco, formando pequenos pratos, que são preenchidos
por pemba branca, pemba azul, pó de tijolo, pemba vermelha, cinza e
carvão, sabão da costa e palitos de dente26. Ao lado esquerdo, em outro
móvel, uma bacia de louça de ágata branca com o mieró (preparado de
água e ervas) de egum, que leva erva-mate. Deve-se passar na palma da
mão esquerda com os dedos da mão direita cada uma das substâncias
contidas nas cascas de coco, na direção que vai da esquerda para a direita,
fazendo um círculo até chegar aos palitos. Movimentação que vai da pemba
branca ao carvão preto27. Também lavar as mãos com o sabão, dentro da
bacia, escolher o número de palitos de acordo com o número de pessoas
que residem com quem está juntando os palitos, quebrá-los, e então entrar
na casa. Dizem que assim se quebra os laços do morto com os parentes de
santo, com suas casas e com as pessoas que moram nela. Assim não se
corre o risco de receber visita inesperada e indesejada do egum.
Ao adentrar a casa se deve dar uma volta ao redor da mesa – que já está
posta para o café da manhã – a partir da esquerda até a ponta, onde está
sentado o dono da casa. Como de costume em casas de religião, deve-se
abraçar o dono da casa, prostrar-se e beijar-lhe as mãos. Quando alguém
termina o café e se levanta, outras pessoas são chamadas para que se
sentem para comer, visto que não pode haver lugar vago . Depois de comer
é preciso dar outra volta ao redor mesa.

O ritual do café da manhã tem seu término ao meio-dia. Numa das pontas
da mesa serve-se o egum. São duas xícaras de café com leite, um
martelinho de vinho e outro de cachaça, e um pouco de tudo o que está
sobre a mesa. Quem preside o eru esmaga as comidas e as coloca dentro
das xícaras, que são entregues para os prontos na religião, que deverão
despachar o conteúdo de uma das xícaras e o vinho na frente de casa, e o
conteúdo da outra e a cachaça nos fundos. Logo todo o conteúdo da mesa é
retirado, dando fim ao ritual.

Entre o café da manhã e o eru, a cozinha não para de funcionar. É lá que


preparam as frentes (comidas) dos orixás e as comidas de egum, além do
almoço. No final da tarde é que, geralmente, se dá início ao ritual de
desligamento. Primeiro, todos os presentes comem as comidas de orixás e
de egum que passam. De orixás, o acarajé, a pipoca, o amendoim, a canjica,
o amalá, o churrasco e a galinha assada da obrigação. De egum, o arroz com
galinha. Por vezes é servida, também, galinha ensopada. É preciso comer
um pouquinho de tudo. Segundo Odacir, é o único dia em que todos
comem e se come a comida de todos, dos vivos, dos orixás e dos eguns.
Cuida-se para não deixar nada sobrando nos pratos, pois todas as sobras
são depositadas em um recipiente que terá seu conteúdo despachado junto
com as coisas do morto, na kalunga.

O eru tem seu início com o dono da casa chamando todos para que entrem
na roda, que inicia pelas rezas de Bará. No centro da roda uma toalha de
mesa branca é estendida, e é sobre ela que as obrigações serão postas.
Deve-se dançar, balançando bastante os braços para frente e para trás.
Além disso, as rezas de egum (axexés) são dançadas em sentido horário

– contrário ao dançado para os orixás. Há alternância de rezas, e com ela o


sentido da roda.

A não ser quando se trata de eru de um filho/a de Oxalá e de Iemanjá, não


se tira reza para esses dois, pois são os velhos. Note-se que Oxum é um
orixá que transita entre mel e dendê, e algumas oxuns jovens chegam a
traba- lhar no cruzeiro com os barás. Mas Oxum Doco, a velha, não participa
dos erus. Por conta disso, esses orixás também não chegam nos corpos de
seus filhos, a não ser que se trate de eru para esses orixás. Todos os outros
orixás (o povo do azeite) podem e devem chegar. A chegada de cada orixá
em festas e outros rituais é festejada e saudada com os cumprimentos
específicos de cada um. No eru eles chegam gritando de maneira mais
intensa, chorando e/ou contorcendo-se. Não há saudações, nem festejos,
nem cumprimentos ou troca de axé. Os santos chegam para trabalhar e se
despedirem de vez de um orixá conhecido .

Na roda de eru não se dança descalço, como nas festas. Ficar descalço é
uma obrigatoriedade em quartos de santo nos demais momentos. Os
calçados, além de desrespeitosos para com as divindades, bloqueiam o
contato da sola dos pés com o chão, lugar sagrado de concentração de axé
em uma casa de religião. Contudo, no eru, por não se estar homenageando
orixás, mas sim o egum, não se tiram os calçados, e o contato com o chão é
mediado por sapatos, sandálias, chinelos etc. Por isso, quando os orixás
chegam no mundo, vão aos fundos da casa para cumprimentarem o egum
e, logo em seguida, os assistentes correm para quebrá-los e tirarem seus
calçados e meias. Pois os orixás, mesmo nos erus, não vestem sapatos.
Afora isso, não se cumpri- menta o quarto de santo e a rua na parte da
frente da casa, como nas festas e outros rituais.

Uma espécie de mesa é posta no chão, forrada com toalha branca. Servem-
na com comidas para os orixás e para o egum, e as comidas de “gente”,
como se diz. Deve haver aquilo que o morto mais gostava de comer e beber
para quando ele, junto com Nanã Burukê, tiver de juntar os cacos daquilo
que tinha na Terra, não passe fome. Que tenha um pouco de tudo o que
mais gostava. A comida vai para Orum, quebrada/amassada também. Com
ajuda de Nanã Burukê ela será reconstruída, assim como todo o restante.

DESFAZER
Dos fundos da casa, os orixás trazem as obrigações que ficaram no
“tempo”: os ocutás, as quartinhas, os pratos e as manteigueiras. Essas
devem ser depositadas em sacos de tecido branco. As comidas que estavam
sobre a toalha serão unidas às obrigações. Os sacos, cheios, devem ser
segurados pelas bordas, de modo a fechá-los, para que, com um porrete de
madeira, ao som do alujá (reza tirada para Xangô), tudo possa ser
quebrado. A quebra de todas as obrigações é, sem dúvida, o ponto alto de
um eru. É nessa ocasião que é dado o verdadeiro adeus ao egum. Pois o
enterro foi apenas uma parte da despedida. O eru, dizem, é a saudação
definitiva. Depois de tudo quebrado, destruído e desfeito, não há mais
volta.

Os vínculos estão cortados. Os vivos e o morto se desligam um do outro. É o


momento descrito como o mais triste e mais pesado de todo o ritual. Ao
som das obrigações que são quebradas a pauladas, orixás que ainda não
haviam chegado podem vir ao mundo para se despedir do egum.

As rezas seguem, não pode haver silêncio, e é preciso continuar cantando.


O choro coletivo é, aos poucos, substituído pela resposta à reza que está
sendo tirada. Os orixás que presidem o eru assim exigem. No batuque,
dizem que se faz festa até quando se morre. Ao mesmo tempo, os orixás
ficam responsáveis por passar comidas, varas de marmelo e aves – que
diferem, dependendo de qual santo era a pessoa que faleceu (quando o
santo for Oxalá, haverá pombos brancos, por exemplo) – nos corpos dos
presentes, sejam pessoas ou orixás. Por fim, o ossagéu (aspergir água da
quartinha sobre as pessoas), que é utilizado tanto para afastar espíritos e
energias ruins quanto para despachar os orixás – pelo primeiro motivo –
sua importância no eru. Após isso, as aves, as comidas e as varas de
marmelo são quebradas e vão para os sacos.

Flores e balas são distribuídas para que cada pessoa e orixá presente
deposite nos sacos, como forma de homenagem. Pede-se para que o egum
tenha uma partida. As pessoas e orixás com mais tempo de religião
recebem velas, que são acesas dentro dos sacos, de modo a formar uma
grande oferenda. Um orixá vem com um espanador feito de TNT nas cores
azulão, amarelo, branco e vermelho, e vai limpando todo mundo que está
ali. Depois de limpar todo mundo, apaga as velas com esse espanador28.

Os sacos são fechados e as comidas que restaram nos pratos das pessoas ao
longo do dia e foram reservadas são trazidas. A toalha é enrolada e os axós
(roupas religiosas) e outras roupas são rasgados. Tudo partirá para a
Kalunga. Pessoas e orixás se dividem, Iansãs (de preferência) devem segurar
uma das pontas dos sacos, que são embalados ao som de um axexé até os
carros que levaram tudo para a praia. Os que ficam na casa cantam para o
egum, embalando os braços, num movimento que se assemelha ao tocar/
empurrar para fora. De trás para frente os braços não param de balançar,
até que os carros saiam.

Mas o eru ainda não terminou, é preciso que na Kalunga (praia) – que em
Porto Alegre é feita no Rio Guaíba – tudo seja entregue para Nanã Burukê.
Quem fica na casa não pode sair até que aqueles que foram à praia voltem.
Ao sinal de sua volta, todos ficam em pé, outro axexé é tirado, os orixás se
cumprimentam uns aos outros e as pessoas que permaneceram na casa,
também. Por fim, trazem um grande alá (pano branco que cobrirá todos os
orixás) na qual todos os orixás se agrupam. Com um gole d’água, o orixá
mais antigo asperge o chão. Sob o pano e sobre a água, de uma única vez,
todos vão embora, sem passar pelo estado de axere. A assistência corre
para calçar os sapatos nas pessoas, ainda um tanto aparvalhadas.

RITOS FINAIS
Como já referido, três meses após a morte acontece o primeiro corte após o
eru. É quando se mata para Bará, pedindo licença ao dono dos cami- nhos
para que se possa voltar a realizar feitiços que envolvam a matança de
animais. Quando um pronto morre, sua família de santo mais próxima

– mãe/pai, irmãos, filhos –, assim como os parentes de sangue que são de


religião, não podem/devem cortar até que se complete o ciclo determinado
para o luto. Ademais, o ritual dos três meses, como o chamam – pois não há
nome em “africano” para ele –, é realizado com “tudo que a lei manda”
(oferendas e rezas). Esse, assim como o de seis meses – realizado apenas
quando da morte de um pronto –, o de nove e o de um ano – realizado
apenas quando da morte de babalau ou de uma babalaoa–, fazem parte do
segredo da religião, não podendo ser descritos.

Assim como o sétimo dia, “o um mês, o três meses, o nove meses e o um


ano” marcam tempos de prestar mais homenagens e fazer com que o egum
se aproxime cada vez mais de seu orixá. Como Oyó não cultua seus
antepassados em balés e nem em cemitérios, a cada um desses rituais
afasta-se o morto dos vivos. É importante manter a maior distância possível
dos eguns29.

É preciso lembrar que cada ritual desses varia de acordo com o orixá, o
tempo de religião e o que se tem na cabeça (sanapismo, aribibó, borido,
angolistas, quatro-pés, o “se governar” e o “possuir filhos e filhas de
santo”). Assim o sétimo dia de quem possui apenas uma quartinha
consistirá em apagar as luzes do quarto de santo e entregar na kalunga o
que esse egum tinha de obrigação. Além disso, como já mencionado, o
carinho que se tinha por determinada pessoa faz com que esse esquema
mais ou menos estruturado sofra modificações. Como quase tudo no Oyó,
não existem receitas prontas, existe jogo de búzios e orixás... Mas também
existe o que “a lei manda”...

CONSIDERAÇÕES FINAIS
Neste artigo busquei dar lugar central ao desfazer, tomando tal conceito
como um agrupamento de práticas relacionadas à morte de um adepto do
batuque. Como certa vez me disse Odacir do Ogum: “[...] assim como
um bom pai de santo tem que saber iniciar, tem que saber terminar”. Não
pretendo conferir ao texto um caráter conclusivo, mas sugerir que o
desfazer nas religiões de matriz africana deva ser tomado como tão
importante quanto o fazer, e que essa atenção etnográfica possa alargar a
discussão sobre a noção de pessoa nessas religiões. No eru, se encontra
alto grau de fundamento da religião, haja vista seu alto grau de
complexidade, perigo e segredo – não que em outros rituais ou na natureza
não haja fundamento. Procurei demonstrar que o desligamento não é um
passo ritual para outro culto – pois no Oyó os eguns não são cultuados.
Através da própria descrição do ritual, podemos alargar nossa compreensão
sobre as noções de corpo, alma e pessoa nas reli- giões de matriz africana e
nas descrições mais gerais feitas sobre as mesmas.

Como a vasta bibliografia sobre as religiosidades de matriz africana no

Rio Grande do Sul (e no Brasil) já demonstrou (ver Bastide, 1978; Goldman,

1984; Corrêa, 2006; Halloy, 2005, para citar alguns), fazer um santo, uma
pessoa, uma obrigação ou uma oferenda/presente para os orixás, requer
um longo engajamento no aprendizado ritual e dos rituais, além de um
crescente acúmulo de objetos e axés – e objetos são axés, ou portadores
dele – que coincide com o grau de poder e plenitude – enquanto pessoa
religiosa – que os adeptos passam e adquirem ao longo de suas vidas.

Guias, quartinhas, axós, imagens, alás, ocutás, louças, objetos de barro e


toda sorte de coisas que compõem as obrigações são adquiridas aos
poucos, no tempo dos orixás. A íntima relação que os filhos e filhas de santo
cons- troem com seus orixás está diretamente relacionada a aquisição
desses axés. Ao adquiri-los, dizem que a pessoa passa a ficar mais
importante, maior. Junto a essa construção de uma relação íntima e
cumulativa com divindades e objetos, criam-se e fortalecem-se laços entre
pessoas. Um filho de santo será tão mais filho quanto mais axés possuir (axé
de faca, de búzios). É claro que essas relações são entrecortadas por muitas
outras, como afinidades, laços sanguíneos, etc. No entanto, na hora de
desfazer obrigações, é a hierarquia no santo que conta30.
Desfazer o engajamento de uma vida dedicada à religião requer um saber
menos difundido do que o fazer. Dizem que têm muitos pais e mães de
santo por aí que por serem aprontados em pouco tempo, não sabem de
quase nada sobre os rituais fúnebres e nem sobre muitos outros. É na hora
da morte que aquele que não sabe como proceder pede humildemente
auxílio aos mais velhos – e, portanto, mais sábios – na religião. Como me
disseram, é no eru que se encontra o verdadeiro fundamento da religião.
Diante de tal importância, é digno de nota que o desfazer não tenha
recebido muita atenção na produção antropológica sobre a noção de
pessoa nas religiões de matriz africana e na descrição mais geral destas.

Se fazer um santo e aprontar um filho despende tempo, dinheiro, carinho,


cuidados e sentimentos, desfazer suas obrigações e desligar os laços do
morto com os vivos requer de forma concentrada a mobilização de
emoções e recursos que poderiam ser dispensados ao longo de um período
maior de atividades em memória do morto, fazendo com que se inflacione
os gastos e o engajamento emocional em um curto período no qual se
prepara o eru e os rituais que seguem. Tão importante quanto fazer um
filho e um santo, é saber desfazer, desligar, embalar, empacotar e destruir
as obrigações para que o egum e o orixá de cabeça possam, com a ajuda de
Nanã Burukê, se encontrar em Orum. Desfazer, na Terra (Aiyê), obrigações,
é propiciar a sua feitura noutro plano, fazendo a pessoa para uma diferente
qualidade de relação com seu orixá e com Orum, dando matéria e ocupação
para o início de sua nova vida. Desfazer é, nesse sentido, fazer. É um duplo
acontecimento, o desligamento na Terra e a (re)construção em Orum.

ORIENTACION

5 Corrêa (1998) apresenta a relação entre vivos e mortos e deuses e


mortos, com ênfase nos conflitos envolvidos. Enfatiza o caráter liminar da
identidade dos eguns, o aspecto transformativo que o aressum (missa dos
mortos) representa para a alma da pessoa, que se transforma em egum.
Esse é, portanto, considerado um rito de passagem e um anti-ritual. Os
eguns, diferente do que acontece no lado de Oyó, podem incorporar em
corpos humanos. Além do mais, o aressum deve ocorrer todos os anos para
que os eguns não saiam de sua morada, o balé, para perturbar os vivos (ver
Corrêa, 2006, p.

168-172; 1998, p. 93-102). Em sua tese de doutorado, o autor acrescenta


que o egum exerce papel duplo, promovendo ordem e caos nos rituais,
sendo assim considerado um anti-homem e um anti-deus, com
comportamento anti-social (cf. Corrêa, 1998, p. 102). Para uma crítica ao
conceito de rito de passagem e a sua simplificação ante a complexidade
ritual, que não promove uma “ruptura definitiva”, mas uma “repetição
contínua” com exigência de cuidados cotidianos, ver Barbosa Neto (2012, p.
295-298).

6 O conceito nativo de obrigação engloba o que tendemos a traduzir por


objetos rituais, por algumas ações e pelos próprios orixás em seus
assentamentos. Obrigação designa o fazer e o cuidar, mas também aquilo
que fica guardado sobre as prateleiras, atrás das cortinas, em sopeiras e
manteigueiras. São as ferramentas e armas dos orixás, como a chave e a
foice do Bará. São, também, os próprios ocutás (pedras/assentamentos). E,
ainda, momentos, como os cortes (matanças), festas e outros eventos.
Ouvimos falar do tempo em que fizeram sua obrigação, ou “[...] na
obrigação da minha mãe vai ori (banha de carneiro)”. Obrigação
corresponde, também, ao cuidado cada vez mais obrigatório que se passa a
ter com os orixás, de acordo com a escala na hierarquia religiosa.

7 O batuque é uma religião brasileira de “matriz” africana que cultua doze


orixás e é praticada, principalmente, no Rio Grande do Sul. Essa religião é
dividida em “lados” (ou nações): Jêje, Ijexá, Cabinda, Nagô, Oiá e
Maçambique, “[...] cada lado corresponde, teoricamente, a formas rituais
diversas” (Cf. Corrêa, 2006, p. 50). Oro (1999) vem estu- dando a
transnacionalização dessa religião para a Região Platina. Há relatos de casas
de batuque abertas no estado de Santa Catarina, também. Sobre Oyó, Oro
(2002) aponta para o escasso conhecimento sobre a nação. O único
trabalho dedicado a essa nação é a dissertação de mestrado de Jacqueline
Pólvora (1994). Para maiores informações sobre as diferentes nações e
modalidades de culto, ver Oro (1994; 2002) e Corrêa (1994).

8 Corrêa (2006, p. 159) fala sobre a missa católica como parte do ritual
fúnebre dos batuques.

9 O que está próximo da descrição de Bastide em seu texto “o mundo dos


candomblés” é de que a pessoa africana, assim como a dos candomblés,
não nasce de uma vez só, tampouco morre assim. “Pela iniciação fez-se o
espírito passar para um corpo vivo; trata-se agora de desfazer o que foi
feito, recuando aos poucos, o que é um procedimento habitual na magia, o
processo de inversão, refazer em sentido contrário o que já foi feito,
desfazer o nó dado” (1978, p. 288).

10 Nanã Burukê é a dona do barro, lugar do qual todos viemos e para o


qual voltaremos, despachados na kalunga.

11 Em meu campo, alma é equivalente à pessoa sem a sua parte corpo. O


corpo é algo a ser ocupado, seja por essa parcela da pessoa, seja por um
orixá inteiro, seja pela metade orixá/metade pessoa – os axeres. Pessoa é o
resultado da soma das parcelas alma e corpo, e também seu orixá – esse
não como parcela. Aqui, talvez, a evidência de que as opera- ções de adição
e subtração talvez sejam metáforas deficientes. Contudo, são capazes de,
por meio de simplificações, dar inteligibilidade a conceitos formulados com
tamanha complexidade pelos batuqueiros. Alma, corpo e orixá se tornam
espécies de parcelas da soma total, que se separam. Orixá fica em Orum
(mundo dos orixás). A alma – agora egum – deve ir para Orum, também. E o
corpo fica debaixo da terra, vazio. O egum, alma sem corpo, é, portanto,
perigoso, pois que desejoso de outros (novos) corpos para ocupar. Por isso,
o eru não apenas desligará os vivos daquele que morreu, mas ensinará o
egum que ele não pertence mais a este mundo, como já mencionado. Sobre
os perigos dos eguns, ver Corrêa (2006, p. 174).
12 Para uma descrição alternativa dos velórios entre os batuqueiros, ver
Corrêa (2006, p. 136-139). Note-se que o autor realizou etnografia no
tempo em que se velavam os mortos no salão das casas de religião, daí uma
serie de diferentes rituais. É ao redor do corpo velado que a roda de eguns
acontece (Corrêa, 2006, p. 157).

13 Sem entrar em controvérsias sobre a existência ou não de sincretismo,


ou com relação às suas muitas formas, posso afirmar que, nas casas de Oyó
por onde passei, São Jorge é Ogum em formato de imagem. O contrário não
é valido, Ogum não é São Jorge. Os chamados santos africanos, ou as
imagens tridimensionais de orixás, são novidades nem sempre bem-vindas.
Afora isso, não se cogita uma eliminação das estatuetas “católicas” (utilizo
aspas, já que os batuqueiros não as chamam de católicas), pois grande
parte delas “[...] já come há tanto tempo [...]”. As imagens antigas
concentram, portanto, grande quantidade de axé. É nesse sentido que ser
africano, para o povo de Oyó, é seguir o que os mais antigos lhes
ensinaram, por isso é que não há necessidade de africanizar ou reafricanizar
práticas, como certa vez comentou Odacir, em relação a se guardar a
quaresma: “[...] não somos africanos da gema (entende?), somos afro-
brasileiros. Se as nega velha guardavam a quaresma quem sou eu para
questionar, para mudar, ou pensar que africanizarei qualquer coisa. Nossa
tradição é a do batuque de Oyó já no Brasil”.

14 Leve é um conceito êmico e tem principalmente, mas não somente, a


ver com serviços/

feitiços envolvendo matança de animais, ou os chamados “serviços de


dano”.

15 Aqueles que já possuem os axés de faca (para poder cortar animais) e


de búzios (para jogar) e já receberam o direito ou desígnio de abrirem suas
próprias casas de religião. É quando levam todas as suas obrigações para
casa. É dito dessas pessoas que “se governam”.

16 Aqueles que “deram” quatro-pés para seus pais. Dito de outro modo,
são aqueles em cujas cabeças e assentamentos foram sacrificados animais
de quatro patas. Passaram por longo período de reclusão, fazendo o “chão”
(ver Anjos, 1995), tempo em que se permanece deitado sobre uma esteira
para que o orixá possa comer na cabeça de seu filho. Esses sacrifícios e
rituais marcam a fixação do orixá na cabeça e no ocutá (pedra). Além disso,
elevam o adepto para a categoria em que está feito por completo, ou como
o nome já diz, pronto. O ritual é chamado de apronte.

17 Obrigação que envolve sacrifício de aves na cabeça e em obrigações


como quartinhas, guias e manteigueiras. Existe, também, o borido de
quatro-pés ou o “ter angolista na cabeça”: grau mais elevado que o borido e
menos que o apronte na iniciação, que envolve o corte de galinhas d’angola
sobre a cabeça e obrigações.

18 Com obrigações menores, como sanapismo (sacrifício de pombos ou


ebis – caramujo de Oxalá) e o aribibó (sacrifício de pombos e da ave do
orixá de cabeça).

19 As diferenças no ritual de desligamento se devem não somente à


hierarquia, mas também ao orixá de cabeça, e por vezes ao “cargo”
ocupado na casa – em especial o de tamboreiro (a). Como demonstrou
Braga (1998) e Silveira (2008), o tambor é vivo, e se alimenta e se faz junto
com seus tamboreiros ou tamboreiras. O tambor também deve ser
despachado na kalunga, para que seu dono receba-o de volta das mãos de
Nanã Burukê. No caso recente da morte do tamboreiro Adãozinho do Bará,
o erú contou com a especificidade de seu “cargo” e de seu orixá de cabeça.
Por todo o trajeto realizado de carro da casa de religião até a kalunga, a
cada cruzeiro (sinônimo de encruzilhada aberta) – domínio dos Barás – o
tambor com o couro afrouxado era tocado. Tambor chocho, como se diz.
Apesar de não encontrarmos os cargos de ogãn e de ekedi no batuque
gaúcho, os tamboreiros(as) ocupam lugar de destaque na religião, o qual se
equipara ao dos pais e mães de santo (cf. Braga, 1998; Silveira, 2008).
20 Interessante notar que balé no Xangô de Recife, segundo Halloy (2005),
como no batuque gaúcho, é o quarto dos eguns, onde ficam seus
assentamentos. Ainda, o autor refere-se ao perigo desse lugar e à
obrigatoriedade de se cultuar os eguns antes de qualquer ritual. Corrêa
(2006) chama atenção para o perigo do buraco, por isso dele ser geral-
mente cercado: “Muitas casas de batuque possuem o balé ou buraco, local
especialmente dedicado aos eguns e onde os ancestrais de religião do chefe
do templo ‘moram’ sempre fica nos fundos da casa e em local pouco
acessível ou até cercado, especialmente se há crianças na casa. [...] este (o
balé) pode ter conotações e formas diferentes de acordo com o tipo de
compromisso que o chefe resolveu assumir com os mortos, além dos
objetivos que tem em relação a eles” (p. 147-8). Corrêa (1998) descreve a
não necessidade de se arrumar a casa que é o balé (casa, geralmente, do
tamanho de uma casinha de cachorro ou espécie de caixão), onde se
prestam os cultos anuais e que pode ser utilizada para a realização de
feitiços (p. 129-130). No Oyó é um buraco que será coberto com terra após
os rituais.

21 Nanã Burukê e Ewá são orixás cultuados no lado de Oyó, porém, a elas
não se dá cabeça.

Ambas estão ligadas à morte. Ewá é a dona do buraco, diferente de Iansã


que é a dona dos eguns e do buraco. Note-se que Otim normalmente não é
dona de cabeça e aparece mais como dona do corpo dos filhos de Odé, com
o qual forma o “casal perfeito”. Contam, contudo, que antigamente se dava
cabeça para essas orixás, e a feitura de Otim e de Ewá foi perdida (com os
mais velhos que não ensinaram e faleceram). Nanã Burukê é dona de
muitas cabeças, mas suas filhas são dadas para Iemanjá ou para Oxum
Dôco. Odacir diz que tal fato se deve a grande responsabilidade que uma
filha de Nanã carrega, e que hoje em dia não haveria mais pessoas à altura
dessa orixá. Existem outras explicações para tal troca de orixás de cabeça,
como o mito sobre a briga de Nanã com Ogum (dono do aço), que faria com
que os sacrifícios tivessem de ser feitos com os dentes. Além dessas há
outras muitas explicações, mas o fato é que Nanã não fica com a cabeça de
suas filhas.

22 Kalunga, aqui, designa o que seria o equivalente a um “cemitério” para


as obrigações: o fundo do mar, território de Nanã Burukê, e suas águas
lodosas. No lado de Oyó não se faz a distinção entre Kalunga e Kalunga
Grande, nem se refere aos cemitérios como Kalunga.

23 As substâncias podem variar. Sendo, por exemplo, pemba verde,


amarela, rosa, azul, branca e preta, sabão da costa e, finalmente, os palitos
de dente. Seguindo, é claro, uma ordem de colocação.

24 Corrêa (2006) apresenta descrição semelhante sobre as substâncias


utilizadas antes de se entrar para o café da manhã no dia do desligamento.
Fala que o movimento é de passar na palma das mãos aquilo que vai do
branco ao preto. A diferença parece consistir no fato de que onde realizou-
se trabalho de campo é que a porta de entrada da casa deve ficar bem
aberta.

25 Esse vazio representa perigo. O perigo de que alguém que não seja uma
pessoa ocupe o lugar (ver Barbosa Neto, 2012, p. 308; Corrêa, 2006, p.
156).

26 É importante deixar claro que os orixás não morrem, apenas deixam de


vir ao nosso mundo, pois sua ligação maior, a pessoa e o ocutá, deixam de
existir em Aiyê. Contudo, os orixás de pessoas que já morreram são sempre
lembrados e pode-se fazer pedidos a eles, independentemente do tempo
que seus filhos humanos já tenham morrido. Além do mais, os orixás vivem
concomitantemente em Orum, nos ocutás, nas cabeças de seus filhos e nas
demais obrigações.

27 Quebrar consiste no ato de uma pessoa ou orixá auxiliar um orixá que


acaba de chegar no mundo, tocando-lhe a parte interna dos cotovelos,
fazendo com que o orixá dobre os braços de modo a abraçar a si próprio.
Além disso, sopram-lhe os ouvidos e tocam em seu peito. Odacir diz que se
quebra um orixá para que ele aprenda a ocupar e saber os limites do corpo,
pois “[...] o orixá é natureza, é uma força muito forte e pode passar pelo
corpo e não ficar”, caso não se faça tal ritual.

28 Essa parte do ritual pode variar. Ao invés de espanar, podem apagar as


velas com o ossagéu.

29 É interessante fazer uma conexão com o estudo sobre religião e


mediação de Robbins (2008). O autor demonstra, na esteira de Mauss e
Hubert, como os rituais e o sacrifício desempenham o papel não apenas de
aproximar pessoas e divindades, mas também de criar distâncias
necessárias. “Traditional Urapmin religion was less concerned with creating
divine or even inter-human presence and proximity than it was to creating
distance between people and between people and the divine by sacrificial
and other kinds of mediations” (2008, p. 28).

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