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INTRODUÇÃO
LUTO
É justamente nos sete dias que sucedem a morte de um batuqueiro que as
Nanãs10 aparecem. Nanã é a dona da vida, da morte e dos espíritos.
Acontece que se morre de várias formas e ao morrer pode-se perder uma
parte do corpo, como um braço ou uma perna, ou ficar deformado. É Nanã
Burukê quem juntará as partes e quem consertará os estragos, juntando os
caquinhos. Nanã Anarauim está sempre correndo, passa e não para. Nanã
Anansurê passa, para e olha, mas vê que aquilo não é para ela. Nanã Burukê
é a que para, recolhe as partes do corpo e leva para algum lugarzinho na
praia – pedras, mata, beira de mar ou rio – e fica esperando o que a “lei
manda”. Se nesse tempo, “tudo” (rituais e oferendas) for feito direitinho,
ela irá juntar os pedaços para reconstruir e levar o egum para perto do seu
orixá de cabeça. Diz-se que a cada ritual realizado a pessoa, agora egum, vai
se aproximando mais e mais de seu orixá. Nanã vai levando o egum – ou
alma11 – para perto dele. Pois o final de todos aqueles que são de religião é
aos pés de seu orixá12.
***
Diferente do que acontece nos períodos em que não se está de luto, não se
deve cumprimentar o quarto de santo, nem bater cabeça. Apenas beijos,
abraços e o beija-mão – é importante notar que ao beijar as mãos de
alguém, estamos cumprimentando, beijando as mãos de seu orixá de
cabeça. O tempo de luto varia com a hierarquia do falecido na religião: aos
babalaus (ou babalaoas – modo como também são chamados os pais e
mães de santo, respectivamente), com casa aberta16, guarda-se um ano;
aos prontos17, mas sem os santos em casa, seis meses; àqueles com
borido18, três
meses; aos outros19, sete dias. Essa conta pode variar de acordo com os
laços sanguíneos, com a afinidade e com o tempo de religião que alguém
tenha. Assim, por exemplo, alguém que é pronto e não tem os santos em
casa, pode levar ao luto de um ano, pelo seu tempo de religião. Como já
mencionado, é nessa semana em que Nanã toma conta do egum, que assim
como os outros orixás, exige oferendas para trabalhar. Dito isso sobre o
luto, podemos passar aos rituais que acontecem no sexto e sétimo dias
após a morte.
da casa, para depois ser coberto com terra, pois no Oyó não se deixa balé21
aberto, ou seja, não se cultua aos mortos. Atualmente, comenta Odacir,
com a dificuldade em se adquirir terrenos grandes, as casas possuem pouco
espaço nos fundos, então mata-se para o egum em uma talha, quando
quem morreu tem cabeça de orixá masculino (Bará, Ogum, Xapanã, Odé,
Ossanha, Xangô e Oxalá), e num alguidar, quando a cabeça pertence a
orixás femininos (Iemanjá, Oxum, Otim, Obá, Iansã)22. As talhas e
alguidares são, posteriormente, despachados junto com toda a obrigação
do morto, ao final do eru, na kalunga23 (o que será tratado adiante).
A talha, que faz as vezes de buraco, deve ser batizada. Batiza-se com farinha
de mandioca e se coloca folha de mamoneira, para que só então o axorô
(sangue) possa ser ali depositado; junto com ele, a cabeça das aves e do
animal de quatro-pés, quando for o caso. O restante do animal vai
diretamente para bacias, separadas por orixá, para que depois as inhálas
(vísceras e patas) sejam separadas, e as aves depenadas e preparadas para
serem temperadas. É delas que se fará o arroz com galinha, a comida de
egum. É importante mencionar que diferente das inhálas de obrigação, que
são fritas e refogadas na banha com coloral e outros temperos, as de egum
ficam cruas, e só têm que ser lavadas para que não estraguem até o dia
seguinte, quando são servidas.
Como em qualquer obrigação, inicia-se por Bará24. Após cada ave cortada,
tempera-se a obrigação com mel e dendê25. Diferente das matanças feitas
por motivo de homenagens, quinzenas (corte de aves para o orixá) ou
quatro-pés, o corte é rápido. Após a matança, é acesa uma vela branca atrás
da talha ou alguidar, com um protetor contra o vento. Ao lado da vela
acesa, pacotes de vela branca para que ao final de cada vela já se acenda a
seguinte. Alguém deve ficar responsável por cuidar da vela e repô-la para
que o egum não fique no escuro. Assim deve ser até a hora do eru.
MISA E ERU
No sétimo dia é encomendada a missa católica, conforme ilustrado no caso
de Tia Lurdinha, na qual todos que participam do corte devem ir. Além
deles, parentes de santo que não puderam estar na noite anterior
participam da missa. Deve ser a primeira missa da manhã, pois após ela
ocorre o importante ritual do café da manhã.
O ritual do café da manhã tem seu término ao meio-dia. Numa das pontas
da mesa serve-se o egum. São duas xícaras de café com leite, um
martelinho de vinho e outro de cachaça, e um pouco de tudo o que está
sobre a mesa. Quem preside o eru esmaga as comidas e as coloca dentro
das xícaras, que são entregues para os prontos na religião, que deverão
despachar o conteúdo de uma das xícaras e o vinho na frente de casa, e o
conteúdo da outra e a cachaça nos fundos. Logo todo o conteúdo da mesa é
retirado, dando fim ao ritual.
O eru tem seu início com o dono da casa chamando todos para que entrem
na roda, que inicia pelas rezas de Bará. No centro da roda uma toalha de
mesa branca é estendida, e é sobre ela que as obrigações serão postas.
Deve-se dançar, balançando bastante os braços para frente e para trás.
Além disso, as rezas de egum (axexés) são dançadas em sentido horário
Na roda de eru não se dança descalço, como nas festas. Ficar descalço é
uma obrigatoriedade em quartos de santo nos demais momentos. Os
calçados, além de desrespeitosos para com as divindades, bloqueiam o
contato da sola dos pés com o chão, lugar sagrado de concentração de axé
em uma casa de religião. Contudo, no eru, por não se estar homenageando
orixás, mas sim o egum, não se tiram os calçados, e o contato com o chão é
mediado por sapatos, sandálias, chinelos etc. Por isso, quando os orixás
chegam no mundo, vão aos fundos da casa para cumprimentarem o egum
e, logo em seguida, os assistentes correm para quebrá-los e tirarem seus
calçados e meias. Pois os orixás, mesmo nos erus, não vestem sapatos.
Afora isso, não se cumpri- menta o quarto de santo e a rua na parte da
frente da casa, como nas festas e outros rituais.
Uma espécie de mesa é posta no chão, forrada com toalha branca. Servem-
na com comidas para os orixás e para o egum, e as comidas de “gente”,
como se diz. Deve haver aquilo que o morto mais gostava de comer e beber
para quando ele, junto com Nanã Burukê, tiver de juntar os cacos daquilo
que tinha na Terra, não passe fome. Que tenha um pouco de tudo o que
mais gostava. A comida vai para Orum, quebrada/amassada também. Com
ajuda de Nanã Burukê ela será reconstruída, assim como todo o restante.
DESFAZER
Dos fundos da casa, os orixás trazem as obrigações que ficaram no
“tempo”: os ocutás, as quartinhas, os pratos e as manteigueiras. Essas
devem ser depositadas em sacos de tecido branco. As comidas que estavam
sobre a toalha serão unidas às obrigações. Os sacos, cheios, devem ser
segurados pelas bordas, de modo a fechá-los, para que, com um porrete de
madeira, ao som do alujá (reza tirada para Xangô), tudo possa ser
quebrado. A quebra de todas as obrigações é, sem dúvida, o ponto alto de
um eru. É nessa ocasião que é dado o verdadeiro adeus ao egum. Pois o
enterro foi apenas uma parte da despedida. O eru, dizem, é a saudação
definitiva. Depois de tudo quebrado, destruído e desfeito, não há mais
volta.
Flores e balas são distribuídas para que cada pessoa e orixá presente
deposite nos sacos, como forma de homenagem. Pede-se para que o egum
tenha uma partida. As pessoas e orixás com mais tempo de religião
recebem velas, que são acesas dentro dos sacos, de modo a formar uma
grande oferenda. Um orixá vem com um espanador feito de TNT nas cores
azulão, amarelo, branco e vermelho, e vai limpando todo mundo que está
ali. Depois de limpar todo mundo, apaga as velas com esse espanador28.
Os sacos são fechados e as comidas que restaram nos pratos das pessoas ao
longo do dia e foram reservadas são trazidas. A toalha é enrolada e os axós
(roupas religiosas) e outras roupas são rasgados. Tudo partirá para a
Kalunga. Pessoas e orixás se dividem, Iansãs (de preferência) devem segurar
uma das pontas dos sacos, que são embalados ao som de um axexé até os
carros que levaram tudo para a praia. Os que ficam na casa cantam para o
egum, embalando os braços, num movimento que se assemelha ao tocar/
empurrar para fora. De trás para frente os braços não param de balançar,
até que os carros saiam.
Mas o eru ainda não terminou, é preciso que na Kalunga (praia) – que em
Porto Alegre é feita no Rio Guaíba – tudo seja entregue para Nanã Burukê.
Quem fica na casa não pode sair até que aqueles que foram à praia voltem.
Ao sinal de sua volta, todos ficam em pé, outro axexé é tirado, os orixás se
cumprimentam uns aos outros e as pessoas que permaneceram na casa,
também. Por fim, trazem um grande alá (pano branco que cobrirá todos os
orixás) na qual todos os orixás se agrupam. Com um gole d’água, o orixá
mais antigo asperge o chão. Sob o pano e sobre a água, de uma única vez,
todos vão embora, sem passar pelo estado de axere. A assistência corre
para calçar os sapatos nas pessoas, ainda um tanto aparvalhadas.
RITOS FINAIS
Como já referido, três meses após a morte acontece o primeiro corte após o
eru. É quando se mata para Bará, pedindo licença ao dono dos cami- nhos
para que se possa voltar a realizar feitiços que envolvam a matança de
animais. Quando um pronto morre, sua família de santo mais próxima
É preciso lembrar que cada ritual desses varia de acordo com o orixá, o
tempo de religião e o que se tem na cabeça (sanapismo, aribibó, borido,
angolistas, quatro-pés, o “se governar” e o “possuir filhos e filhas de
santo”). Assim o sétimo dia de quem possui apenas uma quartinha
consistirá em apagar as luzes do quarto de santo e entregar na kalunga o
que esse egum tinha de obrigação. Além disso, como já mencionado, o
carinho que se tinha por determinada pessoa faz com que esse esquema
mais ou menos estruturado sofra modificações. Como quase tudo no Oyó,
não existem receitas prontas, existe jogo de búzios e orixás... Mas também
existe o que “a lei manda”...
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Neste artigo busquei dar lugar central ao desfazer, tomando tal conceito
como um agrupamento de práticas relacionadas à morte de um adepto do
batuque. Como certa vez me disse Odacir do Ogum: “[...] assim como
um bom pai de santo tem que saber iniciar, tem que saber terminar”. Não
pretendo conferir ao texto um caráter conclusivo, mas sugerir que o
desfazer nas religiões de matriz africana deva ser tomado como tão
importante quanto o fazer, e que essa atenção etnográfica possa alargar a
discussão sobre a noção de pessoa nessas religiões. No eru, se encontra
alto grau de fundamento da religião, haja vista seu alto grau de
complexidade, perigo e segredo – não que em outros rituais ou na natureza
não haja fundamento. Procurei demonstrar que o desligamento não é um
passo ritual para outro culto – pois no Oyó os eguns não são cultuados.
Através da própria descrição do ritual, podemos alargar nossa compreensão
sobre as noções de corpo, alma e pessoa nas reli- giões de matriz africana e
nas descrições mais gerais feitas sobre as mesmas.
1984; Corrêa, 2006; Halloy, 2005, para citar alguns), fazer um santo, uma
pessoa, uma obrigação ou uma oferenda/presente para os orixás, requer
um longo engajamento no aprendizado ritual e dos rituais, além de um
crescente acúmulo de objetos e axés – e objetos são axés, ou portadores
dele – que coincide com o grau de poder e plenitude – enquanto pessoa
religiosa – que os adeptos passam e adquirem ao longo de suas vidas.
ORIENTACION
8 Corrêa (2006, p. 159) fala sobre a missa católica como parte do ritual
fúnebre dos batuques.
16 Aqueles que “deram” quatro-pés para seus pais. Dito de outro modo,
são aqueles em cujas cabeças e assentamentos foram sacrificados animais
de quatro patas. Passaram por longo período de reclusão, fazendo o “chão”
(ver Anjos, 1995), tempo em que se permanece deitado sobre uma esteira
para que o orixá possa comer na cabeça de seu filho. Esses sacrifícios e
rituais marcam a fixação do orixá na cabeça e no ocutá (pedra). Além disso,
elevam o adepto para a categoria em que está feito por completo, ou como
o nome já diz, pronto. O ritual é chamado de apronte.
21 Nanã Burukê e Ewá são orixás cultuados no lado de Oyó, porém, a elas
não se dá cabeça.
25 Esse vazio representa perigo. O perigo de que alguém que não seja uma
pessoa ocupe o lugar (ver Barbosa Neto, 2012, p. 308; Corrêa, 2006, p.
156).
REFERÊNCIAS
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