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Ministério do Desenvolvimento Agrário - MDA

Conselho Nacional de Desenvolvimento Rural Sustentável - CONDRAF

Brasil Rural
em Debate
Coletânea de Artigos

Coordenação
Nelson Giordano Delgado

Autores
Alfredo Wagner Berno de Almeida
Andrea Butto
Edna Castro
CONSEA
Grupo Temático de Juventude Rural do Condraf
Karina Kato
Philippe Bonnal
Nelson Giordano Delgado
Sérgio Pereira Leite

Brasília, dezembro de 2010


EXPEDIENTE
COORDENAÇÃO
GERAL
Vera Azevedo

COORDENAÇÃO
EDITORIAL
Marta Moraes

SECRETARIA DO
CONDRAF
Vera Azevedo
Mônica Vasconcelos
Marta Moraes
Milena Araguaia

PROJETO GRÁFICO
Manu Parente

DIAGRAMAÇÃO
Racsow

REVISÃO
Eliéser Rufino de Souza

IMPRESSÃO
Gráfica Super Nova

TIRAGEM
1000 exemplares

B823b Brasil. Ministério do Desenvolvimento Agrário. Conselho Nacional de


Desenvolvimento Rural Sustentável.
Brasil rural em debate : coletânea de artigos/ coord. de
Nelson Giordano Delgado. Brasília : CONDRAF/MDA, 2010.
363 p. 21 cm.

ISBN: 978-85-60548-83-5.

1. Desenvolvimento rural – Brasil. 2. População rural – Condições sociais.


3. Desenvolvimento rural – Políticas Públicas. I.Título.

CDD 338.10981/19.ed
Sumário

Parte I
Novo Rural
Apresentação . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 9
Introdução . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 11

1. O papel do rural no desenvolvimento nacional:


da modernização conservadora dos anos 1970 ao Governo Lula
Nelson Giordano Delgado . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 28
Introdução . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 28
1.1 A modernização conservadora da agricultura na década de 1970 . . . . 32
1.2 O ajustamento doméstico à crise externa na década de 1980 . . . . . 38
1.3 A década de 1990. A “confluência perversa” de dois projetos
contaditórios: projeto neoliberal e agronegócio e projeto
democratizante, reforma agrária e novo modelo de desenvolvimento
rural baseado na agricultura familiar . . . . . . . . . . . . . . 44
1.4 O Governo Lula: oportunidades abertas para o projeto
democratizante e continuidade do projeto neoliberal.
O CONDRAF e o significado do rural . . . . . . . . . . . . . 58
1.5 Comentários finais . . . . . . . . . . . . . . . . . . 73
Referências Bibliográficas . . . . . . . . . . . . . . . . . 77

2. O mundo rural no Brasil: acesso a bens e serviços


e processos de integração
Maria de Nazareth Baudel Wanderley . . . . . . . . . . . . . . . 79
Resumo . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 79
Introdução . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .80
2.1 A sociedade urbano-industrial vista a partir do mundo rural . . . . . 80
2.2 Entre o campo e a cidade: relações de interdependência . . . . . . . 91
2.3 A agricultura e os agricultores . . . . . . . . . . . . . . . 94
2.4 Conclusão . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 99
Referências Bibliográficas . . . . . . . . . . . . . . . . . 100

Parte II
Novos Atores Sociais

3. Terras de preto, terras de santo, terras de índio:


uso comum e conflito
Alfredo Wagner . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 104
Sistemas de uso comum na estrutura agrária . . . . . . . . . . . 104
Noções preconcebidas: desconhecimento e irrelevância . . . . . . . 105
Questão imposta pelas mobilizações camponesas . . . . . . . . . 107
Uso comum nas regiões de colonização agrária . . . . . . . . . . 111
Fundamentos históricos e descrição . . . . . . . . . . . . 111
As terras de preto . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 114
As terras de santo . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 116
As terras dos índios . . . . . . . . . . . . . . . . . . 118
As terras de herança . . . . . . . . . . . . . . . . . . 120
As terras soltas e abertas . . . . . . . . . . . . . . . . . 122
Uso comum nas regiões de ocupação recente . . . . . . . . . . 124
As terras libertas e os centros . . . . . . . . . . . . . . 124
Diferenciação interna e antagonismos . . . . . . . . . . . . . 126

4. Terras tradicionalmente ocupadas: processos de territorialização,


movimentos sociais e uso comum
Alfredo Wagner . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 137
A instituição das “terras tradicionalmente ocupadas” . . . . . . . . 143
A abrangência do significado de “terras tradicionalmente ocupadas”
e as dificuldades de efetivação . . . . . . . . . . . . . . . 153
Os limites das categorias cadastrais e censitárias . . . . . . . . . . 169
Os movimentos sociais . . . . . . . . . . . . . . . . . 176
Os processos de territorialização . . . . . . . . . . . . . . 202
Referências Bibliográficas . . . . . . . . . . . . . . . . . 208
Anexo . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 211

5. Mulheres na Política de Desenvolvimento do Brasil Rural


Andrea Butto . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 214
5.1 A produção teórica feminista sobre o desenvolvimento . . . . . . 214
5.2 Mulheres no desenvolvimento rural e as territorialidades . . . . . . 218
5.3 As políticas de desenvolvimento e sua
interface com as políticas para as mulheres . . . . . . . . . . 221
5.4 Políticas para as mulheres rurais . . . . . . . . . . . . . 222
5.5 Governar com participação . . . . . . . . . . . . . . . 226
5.6 O Brasil rural também para as mulheres rurais . . . . . . . . . 229
5.7 Considerações finais . . . . . . . . . . . . . . . . . 230
Referências Bibliográficas . . . . . . . . . . . . . . . . 230

6. Juventude Rural e o desenvolvimento sustentável


Grupo Temático de Juventude Rural do CONDRAF . . . . . . . . . . 232
Referências Bibliográficas . . . . . . . . . . . . . . . . . 243

Parte III
Novas Políiticas Públicas

7. Do uso das noções de multifuncionalidade e território nas políticas


agrícolas e rurais no Brasil

Philippe Bonnal
Renato S. Maluf . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 246
Introdução . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 246
7.1 Multifuncionalidade, território e as políticas agrícola e rural . . . . . 247
Brasil Rural em Debate

7.1.1 O falso-verdadeiro debate sobre o conceito de


multifuncionalidade da agricultura . . . . . . . . . . . 247
7.1.2 Território: um conceito polissêmico plebiscitado mundialmente . . 251
7.1.3 A interação multifuncionalidade-território
como palco para a ação pública no meio rural . . . . . . . . 252
7.2 Multifuncionalidade e enfoque territorial nas políticas agrícolas e rurais . 254
7.2.1 Estímulos e obstáculos ao enfoque da multifuncionalidade . . . . 254
7.2.2 Desafios para a implementação do enfoque territorial . . . . . 258
7.3 Multifuncionalidade da agricultura familiar e território . . . . . . 260
7.3.1 Expressões da multifuncionalidade da
agricultura familiar no Brasil e seus limites . . . . . . . . 260
7.3.2 Sistemas de atividade, funções de agricultura e
enfoque territorial . . . . . . . . . . . . . . . . 263
7.4 Multifuncionalidade da agricultura, atividades rurais e território . . . . 264
7.5 Multifuncionalidade da agricultura e desenvolvimento
territorial: desafios e oportunidades . . . . . . . . . . . . 266
Referências Bibliográficas . . . . . . . . . . . . . . . . . 269

8. Políticas de Ordenamento territorial,


desmatamento e dinâmicas de fronteira
Edna Castro . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 271
Resumo . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 271
Introdução . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 271
8.1 Globalização, fronteira e ação do Estado . . . . . . . . . . . 275
8.2 Diferenciação e dinâmicas socioeconômicas na BR-163 . . . . . . 279
8.3 Possibilidades e desafios da política de ordenamento territorial . . . . 284
8.4 Estado e ações de ordenamento territorial . . . . . . . . . . . 286
8.5 Estrutura fundiária . . . . . . . . . . . . . . . . . . 288
8.6 Trajetórias espaciais rural-urbano . . . . . . . . . . . . . 289
8.7 Modernização na fronteira . . . . . . . . . . . . . . . 290
8.8 Conclusão . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 291
Referências Bibliográficas . . . . . . . . . . . . . . . . . 295
9. Terra: direitos patrimoniais e territoriais
Grupo de Trabalho sobre Terra e Patrimônio Territorial
das Comissões Permanentes 5 e 6 do CONSEA . . . . . . . . . . . . 305
Introdução . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 305
9.1 Terras . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 306
9.2 Povos e comunidades tradicionais – estratégias de territorialização . . . 308
9.3 Terra indígena e segurança alimentar . . . . . . . . . . . . 309
9.4 Aterra como identidade quilombola . . . . . . . . . . . . 312
9.5 Recomendações . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 314

10. Políticas Públicas, desenvolvimento territorial


atores sociais no meio rural brasileiro
Sérgio Pereira Leite
Nelson Giordano Delgado
Phelippe Bonnal
Karina Kato . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 319
10.1 Desenvolvimento territorial e governança . . . . . . . . . . 321
10.1.1 A territorialização da governança . . . . . . . . . . . 322
10.1.2 O processo de governança e a perspectiva histórica . . . . . 325
10.1.3 O contexto e os desafios na lógica do desenvolvimento territorial . 330
10.2 Territorialização das políticas públicas . . . . . . . . . . . 333
10.3 Territorialização do desenvolvimento . . . . . . . . . . . . 342
10.3.1 Os atores sociais e os processos de articulação . . . . . . . 348
10.4 Conclusão . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 354
10.4.1 Os territórios são efetivamente rurais
e não exclusivamente agrícolas . . . . . . . . . . . 356
Referências Bibliográficas . . . . . . . . . . . . . . . 359
Apresentação
Humberto
Oliveira*

A Política de Desenvolvimento do Brasil Rural


(PDBR), elaborada pelo Conselho Nacional de De-
senvolvimento Rural Sustentável (CONDRAF), é
resultado dos debates acumulados em seus dez anos
de existência que culminaram em junho de 2008, em
Olinda, na I Conferência Nacional de Desenvolvi-
mento Rural Sustentável e Solidário (I CNDRSS) .
A Política, aprovada em março de 2010, apresenta
à sociedade brasileira um conjunto de estratégias e
ações capazes de contribuir para a afirmação de um
novo papel para o rural na estratégia do desenvolvi-
mento nacional e a consolidação de uma vida dig-
na às populações que optaram por trabalhar e viver
nas áreas rurais do país . A elaboração da proposta da
PDBR, coordenada pelo CONDRAF, com partici-
pação dos conselheiros e da Secretaria do Conselho,
envolveu os movimentos sociais e diversos órgãos
públicos representados neste conselho, além dos co-
legiados territoriais e dos conselhos estaduais .
Após a aprovação da proposta, o Conselho partiu
para a elaboração de um Projeto de Lei, a ser debatido
no Congresso Nacional . A proposta da PDBR possui
sete princípios: soberania, sustentabilidade, inclusão,
diversidade, igualdade, solidariedade e democracia; e
quatro diretrizes estratégicas que se complementam
*
Secretário
e se integram . São elas: potencialização da diversi-
do CONDRAF . dade e da multifuncionalidade dos espaços rurais;

Coletânea de Artigos 9
10 Brasil Rural em Debate

dinamização econômica, inovações tecnológicas e sustentabilidade;


qualidade de vida com inclusão social e igualdade de oportunidades;
e fortalecimento do Estado, com protagonismo dos atores e gestão so-
cial .
Para qualificar todo este trabalho, o CONDRAF deu início a um amplo
debate da PDBR com o conjunto da sociedade brasileira, de modo a buscar
uma melhor compreensão da proposição e da importância do meio rural
para o desenvolvimento nacional e o suporte para sua implementação .
A presente coletânea de textos, Brasil Rural em Debate, tem como
objetivo apoiar a divulgação, o entendimento e o debate da proposta
de PDBR aprovada pelo CONDRAF .
A Parte I da Coletânea, “Nova concepção sobre o rural e lugar do rural
no desenvolvimento nacional”, debate os processos e as implicações conti-
dos no que o documento de Política chama de “concepção contemporânea
do rural”, além de destacar e problematizar alguns lugares ou papéis que o
rural ocupou na economia brasileira, desde a modernização conservadora
da década de 1970 até o Governo Lula . A Parte II, “Novos atores do ru-
ral”, busca caracterizar novos atores ou sujeitos sociais do rural, suas lutas
e demandas, que ganharam visibilidade nas últimas décadas e passaram,
por meio de seus movimentos e organizações sociais, a reivindicar políticas
públicas e possibilidade de protagonismo nos projetos de desenvolvimento
rural em gestação . Finalizando a publicação, a Parte III, “Novas políticas
públicas para o rural”, pretende facilitar a compreensão dos aspectos dis-
tintivos, da abrangência e das limitações de novas políticas públicas em
curso para o meio rural .
Expressamos aqui nossos agradecimentos ao organizador deste livro,
o professor Nelson Delgado, e a todos os autores dos textos que inte-
gram a Coletânea, pelos quais o CONDRAF espera dar sua contribui-
ção para o debate do Brasil Rural que queremos .
Esperamos que esta Coletânea possa contribuir com o debate sobre
o rural no contexto da elaboração do Projeto de Lei e da própria Polí-
tica de Desenvolvimento do Brasil Rural .
Introdução*
Nelson
Giordano
Delgado**

Em junho de 2008, o Conselho Nacional de Desen-


volvimento Rural Sustentável (CONDRAF) realizou,
em Olinda (PE), a sua I Conferência Nacional de De-
senvolvimento Rural Sustentável e Solidário (CNDRSS),
da qual resultou um relatório final aprovado nas plenárias
(CONDRAF, 2008) . Este documento se afirma como
um posicionamento do CONDRAF – amparado pelo
respaldo de ampla representação de delegados(as) na
Conferência Nacional – por uma nova visão sobre o de-
senvolvimento rural do país, que pretende se materializar
na construção de um projeto de futuro para o Brasil ru-
ral, com a expectativa de que seja parte integrante de um
projeto de desenvolvimento nacional (Relatório Final da
I CNDRSS, p . 53) .
Queremos chamar a atenção, inicialmente,
para o fato de que a importância política e a
contemporaneidade do relatório da I Conferên-
cia do CONDRAF residem, em nossa opinião,
* A elaboração e a publicação precisamente neste triplo posicionamento: (1) a
desta coletânea não teriam
sido possíveis sem o apoio proposição de que é necessária uma nova visão
e a colaboração de Hum- sobre o rural e o desenvolvimento rural no país;
berto Oliveira, Ivanilson
Guimarães, Lauro Mattei, (2) de que esta nova visão tem de ser capaz de se
João Torrens e, muito espe- expressar em um projeto de futuro para o meio
cialmente, Vera Azevedo, a
quem agradeço . rural; e (3) que este projeto de futuro não pode
**
Professor Associado 3
conceber o rural como uma dimensão autônoma
do CPDA/UFRRJ . e isolada da realidade brasileira, mas que deve
garantir a sua importância para um projeto de
Coletânea de Artigos 11
12 Brasil Rural em Debate

desenvolvimento nacional, indo na contramão da experiência his-


tórica, na qual, quando esses projetos nacionais existiram – como,
por exemplo, na segunda metade da década de 1950 –, marginaliza-
ram consideravelmente o lugar do rural em suas prioridades .
Com este triplo posicionamento o CONDRAF estabelece uma
agenda de trabalho para o futuro bastante complexa e audaciosa . Por
outro lado, como dificilmente poderia ser diferente, os resultados da
I Conferência Nacional, tal como aparecem no Relatório Final, regis-
tram não muito mais do que um conjunto, muitas vezes desordenado,
de ideias a respeito desta agenda, com tratamento relativamente desi-
gual para suas diversas partes .
Em nosso entender, por exemplo, a declaração de que o rural brasi-
leiro se caracteriza pela presença de enorme diversidade é um compo-
nente estratégico da nova visão sobre o rural e o desenvolvimento rural
anunciada pelo CONDRAF, sendo um dos pontos altos do relatório,
por sua afirmação e por seus desdobramentos . Na verdade, o realmente
novo desta visão é a concepção de que o Brasil rural comporta (tem
capacidade para acomodar) uma ampla diversidade “de ecossistemas, ra-
ças, etnias, religiões, povos, culturas, segmentos econômicos e sociais,
sistemas de produção, padrões tecnológicos” e formas de organização
social e política (CONDRAF, 2008: 56) . Ou seja, há que resistir às ten-
tativas de homogeneizar o rural em suas várias dimensões, de modo que
a nova visão sobre o rural e sobre o desenvolvimento rural pretende ser
radicalmente democrática em sua disposição de preservar, acomodar e
consolidar esses diversos componentes da diversidade como o principal
recurso e o principal patrimônio do meio rural brasileiro .
Em relação à formulação de um projeto de futuro para o meio rural e à propo-
sição de que o rural tem papéis a desempenhar num projeto de desenvolvimento
nacional, o documento do CONDRAF é mais longo e menos preciso quanto às
suas diretrizes, o que não é surpreendente, dada a complexidade técnica e política
do desafio, o aprendizado de “tentativa e erro” requerido e as enormes dificuldades
envolvidas, tanto pelo lado da oposição das elites agrárias, como pelo da fragmenta-
ção existente nos grupos sociais rurais e nos movimentos que os representam .
O documento, então, trata basicamente de coletar os elementos
principais que caracterizariam a tentativa de construir um consenso
acerca do “Brasil rural que queremos” . Nesse sentido, são sugeridos
cinco temas fundamentais, que estruturariam um modelo de desen-
volvimento1, alguns princípios e valores, que norteariam a construção
deste projeto de futuro do “Brasil rural que queremos” – entre os quais
destacam-se a sustentabilidade (em suas dimensões política, econômi-
ca, social, ambiental e territorial), a inclusão e a democratização, a
diversidade e a igualdade – e quatro eixos temáticos estratégicos, em
torno dos quais o projeto de futuro deveria ser organizado2 .
Mas, no fundamental, o avanço nas tarefas de construção de um
projeto de futuro para o meio rural, que explicite os lugares que pode
ocupar no desenvolvimento nacional, deveria estar concentrado, se-
gundo as decisões da I Conferência, na elaboração de uma Política
Nacional de Desenvolvimento Rural . Esta posição é explicitada logo
na primeira frase da Introdução do Relatório Final: “O objetivo da I
Conferência Nacional de Desenvolvimento Rural Sustentável e Solidá-
rio – I CNDRSS é contribuir para criar as condições políticas para a
construção coletiva e solidária de uma Política Nacional de Desenvol-
vimento Sustentável e Solidário do Meio Rural que expresse o ‘Brasil
rural que queremos’ ( . . .) .” (CONDRAF, 2008: 53) .
A partir das resoluções da I Conferência, o CONDRAF tratou de
elaborar uma proposta de Política de Desenvolvimento do Brasil Rural
(PDBR) que foi aprovada em fevereiro de 2010 (CONDRAF, 2010) .
De posse desta proposta, o Conselho definiu uma agenda prioritária de
trabalho até o final de 2011, na qual sobressaem duas atividades estra-
tégicas principais (MATTEI, 2010: 5) . A primeira é a elaboração de
um Projeto de Lei, a ser debatido no Congresso Nacional, com vista à
1
“Eliminação das desigualdades sociais, regionais, de gênero, de raça e etnia; desenvolvimento so-
cioeconômico; uso sustentável dos recursos naturais; garantia da soberania e segurança alimentar e
nutricional; e educação do campo” (CONDRAF, 2008: 68).

2
Os eixos temáticos estratégicos são: desenvolvimento socioeconômico e ambiental; reforma agrária
e acesso aos recursos ambientais; qualidade de vida no Brasil rural; e participação política e organi-
zação social (CONDRAF, 2008: 73-75).

Coletânea de Artigos 13
14 Brasil Rural em Debate

instituição da Política Nacional de Desenvolvimento Rural3 . E a segunda


é a realização de um amplo debate da PDBR com o conjunto da socieda-
de brasileira, de modo a buscar uma melhor compreensão da proposição
e da importância do meio rural para o desenvolvimento nacional e o
suporte para sua implementação . É para apoiar este debate nacional em
torno da PDBR que esta Coletânea de Textos foi concebida .
Não vamos fazer uma apresentação da proposta de Política do
CONDRAF em toda a sua complexidade, porque não cabe, mas ape-
nas destacar três marcos referenciais que singularizam e distinguem sua
concepção, todos os três podendo ser interpretados como tendo a ideia
de diversidade como seu ponto de partida .
O primeiro marco de referência do documento é sua recusa em con-
siderar o desenvolvimento rural como “modernização agrícola”, ao as-
sumir uma visão na qual a multifuncionalidade dos espaços rurais é sua
marca específica e o rural nem está associado exclusivamente à dimensão
agrícola, nem é concebido como um resíduo do urbano (CONDRAF,
2010: 8 e 33) . Nesta visão, o meio rural é interpretado como portador de
três atributos fundamentais, complexos e interligados, complementares
e indissociáveis: (1) é um espaço de produção e de atividades econômi-
cas diversificadas e intersetoriais, mas é também um fornecedor de bens
públicos, especialmente de serviços ambientais; (2) é um espaço de vida,
de organização social e de produção cultural para as pessoas; e (3) é um
espaço em que a relação com a natureza é, ao mesmo tempo, estruturan-
te das características que assumem os dois atributos anteriores e determi-
nante das possibilidades de sustentabilidade ambiental, de preservação
dos recursos naturais e de fornecimento de bens públicos sob a forma de
serviços ambientais . Como consequência, o desenvolvimento rural está
muito longe de ser entendido como “urbanização do campo”, passando
a ser tratado como um processo multifacetado e multidimensional de

3
O Plenário do CODRAF aprovará, em dezembro de 2010, o Projeto de Lei CONDRAF, a ser enviado
pelo Executivo ao Congresso Nacional. Em paralelo, foi protocolado no Senado Federal, em outubro
de 2010, o Projeto de Lei n° 258, do Senador Antônio Carlos Valadares (PSB/SE), instituindo a Po-
lítica Nacional de Desenvolvimento Rural e dispondo sobre o Plano Nacional de Desenvolvimento
do Brasil Rural (MATTEI, 2010: 5).
melhoria das condições de trabalho e de vida das populações rurais e de
provisão qualificada de um conjunto diversificado de bens e de serviços
(econômicos, culturais, ambientais) para o conjunto da sociedade brasi-
leira e para o sistema mundial (CONDRAF, 2010: 17-18) .
O segundo marco de referência é o reconhecimento da grande diver-
sidade de grupos sociais e de populações existentes no meio rural brasi-
leiro, de modo que a PDBR deve ser estruturada para considerar como
seus beneficiários um leque muito mais abrangente de populações rurais
do que era aceito no passado . Isto se deve ao fato de que muitas popu-
lações habitantes do meio rural saíram da “invisibilidade” pública nos
últimos anos, em função da intensificação de lutas e conflitos específicos
– distintos das tradicionais lutas por políticas agrícolas e por reforma
agrária – e do surgimento de movimentos sociais que as representam .
Ademais, as transformações recentes do rural reduziram ou eliminaram
as barreiras entre rural e urbano em inúmeros municípios pelo interior
do país, fazendo com que suas populações também sejam incorporadas
aos beneficiários da PDBR . Em suma, o projeto de desenvolvimento
rural proposto pelo Conselho deverá incluir como seus protagonistas um
conjunto mais amplo de atores e de sujeitos sociais do que no passado,
o que aumenta consideravelmente a complexidade política e técnica de
sua implementação (CONDRAF, 2010: 9 e 13) .
Por fim, o terceiro marco de referência da PDBR, em nossa interpreta-
ção, é a convicção manifesta de que, dada a diversidade de protagonistas
e de beneficiários e a visão polissêmica e contemporânea de rural que a
informa, as políticas públicas para o meio rural não podem continuar in-
sistindo no viés setorial e fragmentado que as caracteriza historicamente e
que reflete a identificação subjacente de rural com agrícola . A consequên-
cia central é que o desafio da transversalidade dos três principais atributos
do rural antes mencionados – produção econômica e de bens públicos de
caráter ambiental; reprodução de modos de vida diferenciados; e relação
com a natureza – deve invadir a formulação e a execução de políticas públi-
cas para o meio rural . Isto significa que a articulação das políticas setoriais
e fragmentadas já existentes para o rural é tarefa urgente e inadiável, apesar

Coletânea de Artigos 15
16 Brasil Rural em Debate

das resistências existentes no aparelho de Estado, devidas aos nichos de


poder que cada política e programa representam . E que as novas políticas
públicas devem estar orientadas para a valorização da multifuncionalidade
dos espaços rurais e para a superação da visão estreitamente dicotômica
a respeito da relação rural e urbano, estimulando a interdependência e a
complementaridade entre eles e enfrentando os conflitos e as oposições
que possam surgir . Em particular, a PDBR defende a adoção da aborda-
gem territorial como o enfoque mais adequado para a implementação da
concepção de desenvolvimento rural proposta e para viabilizar a participa-
ção das organizações da sociedade civil nas diversas fases de construção e
de execução das políticas públicas (CONDRAF, 2010: 18-19, 21) .
A presente coletânea de textos tem como objetivo apoiar a divulgação,
o entendimento e o debate da proposta de Política de Desenvolvimento
do Brasil Rural aprovada pelo CONDRAF e, por isto, julgamos perti-
nente fazer a contextualização anterior, destacando aspectos relevantes
do relatório final da I Conferência Nacional e do documento de Políti-
ca, pois justifica e ajuda a compreender o caminho seguido na escolha
dos textos . Embora contendo, em sua maioria, textos de autores liga-
dos à universidade brasileira, esta coletânea não tem qualquer propósito
acadêmico . Não se trata obviamente de uma cartilha, mas tratamos de
selecionar textos de autores conhecidos e reconhecidos intelectualmen-
te não para alimentar um debate acadêmico sobre os temas escolhidos,
mas para apoiar o debate político e técnico em torno da proposta do
CONDRAF por parte de organizações e movimentos sociais, de técni-
cos governamentais e de pessoas interessadas na temática do rural e do
desenvolvimento rural em diferentes segmentos da sociedade brasileira .
Destacamos nesta Introdução o que chamamos de três marcos de re-
ferência do documento da PDBR, porque julgamos – num consenso
obtido nas reuniões preparatórias que tivemos – que estes são os temas
que demandam, em um primeiro momento, um esforço maior de escla-
recimento . Assim, dividimos a coletânea em três partes, que se referem a
aspectos relativos aos marcos de referência mencionados anteriormente .
A Parte I, denominada “Nova concepção sobre o rural e lugar do
rural no desenvolvimento nacional”, discute tanto processos e impli-
cações contidos no que o documento de Política chama de “concepção
contemporânea do rural”, como destaca e problematiza alguns lugares
ou papéis que o rural ocupou na economia brasileira, desde a moder-
nização conservadora da década de 1970 até o Governo Lula . A Par-
te II, por sua vez, chamada de “Novos atores do rural”, concentra-se
na tentativa de caracterizar novos atores ou sujeitos sociais do rural,
suas lutas e demandas, que ganharam visibilidade nas últimas déca-
das e passaram, por meio de seus movimentos e organizações sociais,
a reivindicar políticas públicas e possibilidade de protagonismo nos
projetos de desenvolvimento rural em gestação . E a Parte III, “Novas
políticas públicas para o rural”, pretende facilitar a compreensão dos
aspectos distintivos, da abrangência e das limitações de novas políticas
públicas em curso para o meio rural, a necessidade de que deem conta
das exigências de transversalidade dos atributos fundamentais dos es-
paços rurais e sejam capazes de contemplar novos atores do rural .
Vamos indicar sucintamente, a seguir, os principais temas contidos nos
textos que foram escolhidos para compor cada parte da coletânea .
Para a Parte I (Nova concepção sobre o rural e lugar do rural no
desenvolvimento nacional) selecionamos dois textos: um de Maria Na-
zareth Bauley Wanderley4 e outro de Nelson Giordano Delgado, organi-
zador desta Coletânea5 . O instigante artigo da Prof . Nazareth Wanderley
parte da constatação de que as relações entre o rural e o urbano não
podem ser consideradas como antagônicas, mas se inscrevem cada vez
mais num espaço comum, como relações de complementaridade e de

4
O artigo “O mundo rural brasileiro: acesso a bens e serviços e integração campo-cidade” foi publicado
originalmente na revista Estudos Sociedade e Agricultura, v. 17, n. 1, 2009, p. 60-85.

5
“O papel do rural no desenvolvimento nacional: da modernização conservadora dos anos 1970 ao
Governo Lula”, 2010, 30 p. Uma primeira versão deste texto foi escrita para o CONDRAF, em 2009,
com o título “Papel e lugar do rural no desenvolvimento nacional” e foi apresentada e debatida em
sua 35ª reunião ordinária, de 18 de março daquele ano. A versão atual vai ser publicada no livro
Moreira, R.J., de Castro, E. G. e Bruno, R.L. (orgs). Questões Rurais Brasileiras no Início do Século
XXI. Rio de Janeiro: UFRRJ, 2010.

Coletânea de Artigos 17
18 Brasil Rural em Debate

interdependência . Assim sendo, os processos de reprodução do mundo


rural no Brasil não podem mais ser entendidos no contexto e sob o do-
mínio de uma civilização agrária, mas sim inseridos em uma sociedade
urbano-industrial . O que não significa, no entanto, que essa inserção
possa ser considerada de forma abstrata, dissociada das condições histó-
ricas em que ocorreram essas transformações .
No caso brasileiro, por exemplo, a autora destaca três aspectos que
acompanharam essas mudanças associadas à consolidação de uma so-
ciedade urbano-industrial e que deixaram “marcas” importantes, tanto
no urbano, como no rural: a urbanização gerou uma grande quantida-
de de pequenos municípios pouco “urbanos”; os setores industriais e
de serviços se mantiveram concentrados nas grandes cidades, apesar do
processo de interiorização ocorrido; e a propriedade da terra permaneceu
altamente concentrada . O artigo da Prof . Nazareth Wanderley analisa e
discute, então, diversas características assumidas pelos processos econô-
micos e sociais de reprodução do mundo rural no interior da sociedade
urbano-industrial brasileira, particularmente os que dizem respeito às
relações campo-cidade como uma via de mão dupla e que interferem no
lugar da agricultura e dos agricultores no mundo rural .
Tendo como referência a constatação de que todo campo é agrícola,
mas que o mundo rural não se confunde com a agricultura, a Prof . Na-
zareth Wanderley chama atenção para duas consequências desta con-
cepção: (1) uma maior vinculação com o urbano não significa “crise
do rural”; e (2) o acesso a empregos, bens e serviços, tanto nos centros
urbanos, como nas áreas rurais, é uma demanda das famílias de agri-
cultores, para as quais as relações com as cidades são elementos cons-
tituintes de suas estratégias de reprodução . Por fim, é importante não
esquecer a dimensão político-social da integração do mundo rural à
sociedade urbano-industrial, expressa no reconhecimento das popula-
ções rurais como sujeitos de direitos, transformando seu acesso a bens
e serviços, em uma manifestação concreta do exercício da cidadania .
O segundo texto da Parte I, por sua vez, apresenta uma caracterização
da relação que se estabelece entre comportamento da economia e da polí-
tica macroeconômica e conduta da agricultura e das políticas públicas para
o setor desde a década de 1970 . Neste recorrido, é possível verificar que o
papel ou o lugar ocupado pela agricultura no desenvolvimento nacional
não é fixo, nem único, mas resultado de lutas políticas que decidem os
rumos da economia brasileira e de seu tipo de inserção no sistema eco-
nômico mundial e das particularidades e objetivos das políticas públicas
para o meio rural . De modo geral, percebe-se que os lugares e os papéis
assumidos pela agricultura na economia do país têm sido decididos por
suas elites econômicas e políticas e implementados pelos formuladores da
política econômica, de modo que a agricultura, com a qual o meio rural é
identificado, tem sido estimulada, em primeiro lugar, para responder aos
estímulos do mercado externo ou para enfrentar as crises recorrentes do
balanço de pagamentos, via aumento das exportações, e, subsidiariamente,
para dar conta do abastecimento alimentar interno, em uma economia
caracterizada por salários de base tradicionalmente reduzidos .
Por outro lado, nossa análise permite sugerir que a existência ou
não de um ambiente democrático tem se mostrado decisiva para esta-
belecer o conteúdo e o significado dominantes em relação ao concei-
to de rural e de desenvolvimento rural e para o surgimento progres-
sivo de visões alternativas sobre os mesmos, buscando dar conta dos
interesses e objetivos de grupos sociais excluídos dos processos eco-
nômicos e sociais dominantes na economia e na agricultura . Em par-
ticular, o projeto democratizante em curso no meio rural brasileiro,
na década de 1990, protagonizado hegemonicamente pelas catego-
rias de agricultores familiares e de sem-terra, desempenhou um papel
importante nesta direção, construindo um descolamento crescente
da noção de rural da noção de agrícola, a qual se completou com o
reconhecimento da crise ambiental do modelo dominante de moder-
nização do campo, a partir da década de 1980, e com o surgimento
de novos sujeitos sociais no meio rural portadores de identidades nas
quais a dimensão de agricultor (a) não é necessariamente a dominan-
te . Os novos desafios trazidos pelo reconhecimento da diversidade e
Coletânea de Artigos 19
20 Brasil Rural em Debate

da complexidade características do meio rural brasileiro introduzem


importantes complicações para a formulação de um projeto demo-
cratizante para o rural brasileiro no século XXI e para a identificação
de seus principais protagonistas .
Para a Parte II (Novos atores sociais) da coletânea selecionamos quatro
textos: dois de Alfredo Wagner Berno de Almeida6 sobre as chamadas popu-
lações de terras tradicionalmente ocupadas e os movimentos sociais que as
representam, um da Andrea Butto7 sobre as mulheres na política de desen-
volvimento para o Brasil rural e um texto do Grupo Temático de Juventude
Rural do CONDRAF8 sobre as reivindicações dos jovens e suas contribui-
ções para a construção de políticas públicas para o meio rural . De acordo
com o que argumentamos anteriormente, o objetivo nesta parte é disponi-
bilizar textos que nos ajudem a compreender melhor as origens, identidades,
demandas e movimentos sociais representativos dos novos atores do rural,
que a concepção de política de desenvolvimento rural do CONDRAF pre-
tende necessariamente contemplar, o que lhe concede, aliás, um atributo
distintivo em relação às propostas ou projetos formulados anteriormente .
Note-se que, além de reafirmar a relevância das mulheres e dos jovens
como atores sociais indispensáveis para a construção de um novo desenvol-
vimento para o Brasil rural, nossa escolha de textos, para esta parte da cole-
tânea, guiou-se por uma opção explícita: destacar a presença das chamadas
populações de terras tradicionalmente ocupadas, que representam uma par-
cela expressiva da população no meio rural . E isto por duas razões principais .
Primeiro, porque essa denominação abrange uma realidade bas-
tante complexa, com grande diversidade de povos, de relações

6
São os textos “Terras de preto, terras de santo, terras de índio – uso comum e conflito” e “Terras
tradicionalmente ocupadas. Processos de territorialização e movimentos sociais”, ambos publicados
no livro Terras de quilombos, terras indígenas, “babaçuais livres”, “castanhais do povo”, faxinais
e fundos de pastos: Terras Tradicionalmente Ocupadas. Manaus: PGSCA-UFAM, 2ª ed., 2008. O
segundo também foi publicado na Revista Brasileira de Estudos Urbanos e Regionais, vol. 6, nº 1,
maio 2004, p. 9-32.

7
“Mulheres na política do Brasil Rural”, 2010, 14 p.

8
“Juventude rural e o desenvolvimento rural sustentável”, 2010, 10 p.
com a terra, com os mercados e com o Estado, de demandas e de
movimentos sociais . Além disso, existe ainda uma certa perplexidade
quanto ao tratamento desses povos nos projetos e nas políticas de desen-
volvimento rural em gestação . De alguma maneira eles são um “proble-
ma”, tanto à direita, como à esquerda . Ainda são considerados “restos” de
sociedades ou de momentos históricos “anteriores”, elementos de atraso
que obstaculizam o progresso das forças produtivas e a generalização de
mercados de terra pelo Brasil . Por isto, o esforço de avançar na compreen-
são destes povos é essencial para o projeto democrático no mundo rural,
para concretizar a perspectiva de que o meio rural brasileiro comporta a
preservação e o fortalecimento de sua diversidade . Neste sentido, a ade-
quada consideração das características e das demandas distintivas dessas
populações é um dos grandes desafios para a legitimação da PDBR .
Segundo, porque dispomos de dois excelentes trabalhos de Alfredo
Wagner que buscam caracterizar de forma abrangente a complexidade do
mundo rural vivenciado por estas populações . Trata-se de sistemas de uso
comum da terra, de terras que inicialmente nunca foram inventariadas .
Seu interesse público começa a ser despertado pelos conflitos que sur-
gem nestas áreas, tanto em regiões de colonização antiga, como recente,
expondo publicamente a pertinência desses sistemas de uso comum das
terras (as terras tradicionalmente ocupadas) e sua importância econômica
e populacional . Os textos do autor descrevem e analisam, então, as dife-
renciações internas existente nestes sistemas (“terras de preto”, “terras dos
índios”, “fundos de pasto”, “faxinais” etc), seus antagonismos, suas lógicas
híbridas (nas quais convivem tensamente as noções de propriedade pri-
vada, de apossamento comum, de laços de reciprocidade) e suas relações
com os sistemas dominantes . Alfredo Wagner faz também um exaustivo
levantamento dos processos não homogêneos de territorialização das terras
tradicionalmente ocupadas – que incluem, entre outros, quilombolas, po-
vos indígenas, quebradeiras de coco babaçu, seringueiros, ribeirinhos – e
de seus movimentos sociais, que se distinguem por especificidades que
têm a ver com etnia, princípios ecológicos e de gênero, base econômica
heterogênea e profundo enraizamento local .
A Andrea Butto inicia seu texto assinalando temas e abordagens
que, desde a metade do século passado, representam contribuições do
Coletânea de Artigos 21
22 Brasil Rural em Debate

movimento feminista para o aprofundamento e o alargamento do campo


do desenvolvimento, tanto do ponto de vista conceitual, como da formu-
lação de políticas públicas . A partir dessa contextualização inicial e reco-
nhecendo que a temática do desenvolvimento rural necessita ser abordada
em uma perspectiva multidimensional (econômica, social, política, am-
biental), a autora ressalta que pensar esta temática a partir das relações de
gênero exige a consideração da desigualdade que as mulheres vivenciam no
meio rural em todas essas dimensões . O texto da Andrea Butto caminha,
então, na direção de salientar, com detalhes, tanto as interfaces com as
questões de gênero das políticas públicas de desenvolvimento rural imple-
mentadas no Brasil, a partir de 2003, como as políticas específicas para as
mulheres rurais que foram executadas neste período . Refletindo, do ponto
de vista das mulheres, sobre as condições de viabilização da PDBR conclui
que “o anuncio da inclusão da perspectiva de gênero como parte de um
enfoque transversal deverá não apenas fortalecer a presença das mulheres
na gestão social, na preservação ambiental, na reforma agrária, no respeito
aos direitos humanos e no direito à documentação, mas também nas de-
mais estratégias e ações previstas nos eixos estruturantes da política” .
O texto do Grupo Temático da Juventude Rural (GTJR) do
CONDRAF, por sua vez, expressa a importância estratégica que o tema
da juventude assume numa nova visão do rural e do desenvolvimento
rural no país . Nesta perspectiva, o texto assinala que o GTJR foi criado
pelo CONDRAF com o objetivo de fortalecer a articulação das diversas
políticas públicas de desenvolvimento rural para apoiar a construção de
um Pacto da Juventude que fortaleça a capacidade de protagonismo dos
jovens rurais, tendo em vista o atendimento de suas demandas e necessi-
dades . Assim sendo, o texto é estruturado de modo a delinear, com de-
talhes, as diretrizes que compõem os quatro eixos temáticos de atuação
do GTJR, sugeridos como reivindicações prioritárias destes novos atores
sociais do mundo rural, ou seja, (1) acesso à terra; (2) trabalho e renda;
(3) educação no, do e para o campo, e qualidade de vida; e (4) participa-
ção e organização política da juventude rural .
Por fim, na Parte III (Novas políticas públicas para o rural), escolhe-
mos incluir dois documentos e três textos de autores . Um dos documentos
é o Decreto nº 6 .040, de 7 de fevereiro de 2007, da Presidência da Repú-
blica, que instituiu a Política Nacional de Desenvolvimento Sustentável
dos Povos e Comunidades Tradicionais . Este Decreto define o que se con-
sidera como Povos e Comunidades Tradicionais e como Territórios Tradi-
cionais, determinando o reconhecimento governamental para estes povos
e territórios e estabelecendo seus direitos a uma política nacional de desen-
volvimento sustentável adaptada às suas especificidades sociais, culturais,
religiosas, étnicas e econômicas próprias . O Decreto define os princípios,
os objetivos e os instrumentos de implementação da Política Nacional,
nos quais se destacam os fóruns regionais e locais e a construção de Planos
de Desenvolvimento Sustentável dos Povos e Comunidades Tradicionais .
O outro documento acrescentado foi o elaborado, em 2008, pelo
Conselho Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional (CONSEA),
por meio de seu Grupo de Trabalho sobre Terra e Patrimônio Territo-
rial das Comissões Permanentes 5 e 6, e denominado Terra: direitos
patrimoniais e territoriais . Seu objetivo principal é apresentar diretrizes
para a construção de políticas públicas para os povos e comunidades
tradicionais, os povos indígenas e as comunidades quilombolas, ten-
do em vista a garantia de seus direitos patrimoniais, o uso sustentável
da terra e a promoção da soberania alimentar e nutricional para esses
grupos . O documento fecha com um conjunto de recomendações que
o Grupo de Trabalho do CONSEA considera relevantes para que os
objetivos enunciados sejam alcançados .
O texto de Edna Castro9 é importante para esta coletânea, porque tem
como tema a questão das políticas de ordenamento territorial na Ama-
zônia, onde esta problemática é fundamental e um foco permanente de
conflitos sociais . Apesar de ser um tema antigo, ele se reinventa a cada
momento, embora podendo assumir formas diferenciadas, em função das
tensões existentes entre os grupos sociais envolvidos nas dinâmicas socioe-
conômicas regionais e da própria ação do Estado na Amazônia . Umas das

9
“Políticas de ordenamento territorial, desmatamento e dinâmicas de fronteira” publicado em Novos
Cadernos NAEA, v. 10, n. 2, 2007, p. 105-126.

Coletânea de Artigos 23
24 Brasil Rural em Debate

formas atuais que o conflito social se reveste na região é o desmatamento,


de modo que a contribuição da Prof . Edna Castro, ao discutir as políticas
de ordenamento territorial, agrega elementos adicionais para o entendi-
mento das novas políticas públicas que a proposta do CONDRAF requer .
A autora concentra sua análise na região da BR-163, rodovia Cuiabá-San-
tarém, no Pará, partindo dos efeitos dos processos de mobilidade do capital
e do trabalho sobre os usos da terra, os conflitos sociais e os desmatamentos
da floresta, especialmente em função da expansão da pecuária . Neste senti-
do, para a Prof . Edna Castro, a compreensão das alterações territoriais e da
dinâmica do desmatamento exige a investigação das ações e estratégias dos
diferentes atores presentes nesta fronteira de recursos . Assim, a autora ela-
bora uma análise detalhada da heterogeneidade de dinâmicas socioeconô-
micas e sócio-territoriais na região da BR-163, onde novos processos sociais
e novas áreas de interesse para a expansão do agronegócio são identificáveis
e onde é possível perceber uma diversidade de interesses, de alianças e de
redes de mercado . De forma sintética, a autora sugere que, para avaliar as
condições de viabilização das políticas de ordenamento territorial na região
(e certamente em outras regiões), é necessário investigar cuidadosamente:
(1) quem são os agentes econômicos e sociais presentes e como agem; (2)
qual é a sua capacidade econômica e de articulação política; (3) quê arran-
jos institucionais existem e como podem lidar com as questões e conflitos
enraizados na dinâmica territorial (que envolvem a estrutura fundiária e a
ilegalidade dos direitos de propriedade, as várias instâncias da ação estatal
etc .); e (4) como os custos de oportunidade e de mobilidade do capital
afetam as motivações econômicas dos agentes . Trabalhando com este re-
ferencial, a Prof . Edna Castro estuda, então, as possibilidades e os desafios
da política de ordenamento territorial na Amazônia .
Os dois textos adicionais que foram incluídos nesta parte tratam mais
diretamente das novas abordagens das políticas públicas para o meio
rural, em que são enfatizadas a necessidade de transversalidade nessas
políticas e as vantagens envolvidas na incorporação das noções de ter-
ritório e de desenvolvimento territorial no processo de formulação e de
execução das mesmas . O texto de Philippe Bonnal e Renato S . Maluf10
preocupa-se fundamentalmente com a maneira como as noções de mul-
tifuncionalidade e de território têm sido utilizadas nas políticas agríco-
las e rurais no país . Para tanto, os autores defendem a ideia de que a
multifuncionalidade é um fenômeno inerente às atividades agrícolas e
rurais, na medida em que expressa a ligação fundamental dos aspectos
sociais, ambientais e produtivos no meio rural de qualquer país, região
ou território, sendo, portanto, uma noção de natureza transversal . O
conceito de território, por sua vez, é um conceito também carregado
de transversalidade entre várias dimensões da realidade social (econô-
mica, política, cultural etc .), além de incorporar as dimensões material
e simbólica, presentes em qualquer espaço social . Nesse sentido, o con-
ceito de território pode ser utilizado com objetivos e formas diversos
pela intervenção pública, tais como aprimorar o sistema de governança,
transformar a atividade econômica, reduzir os desequilíbrios econômi-
cos e sociais regionais etc . Os autores apresentam, então, um esquema de
análise da interação entre multifuncionalidade e território nas atividades
rurais, tendo como referência as políticas agrícolas existentes no Brasil,
destacando seus limites e possibilidades atuais .
Por fim, o texto de Sérgio Leite, Nelson Delgado, Philippe Bonnal
e Karina Kato11 propõe uma análise da abordagem territorial, na qual
se procura explicitar as interações e articulações entre desenvolvimento
territorial, políticas públicas e atores sociais, com especial referência ao
Brasil . Os autores reconhecem a existência de um crescente interesse
pelo desenvolvimento territorial rural no país, a partir do início do
século, o que produziu o surgimento de diversas iniciativas inovado-
ras, mas desarticuladas e utilizando noções de território e escalas de
territorialidade diversas . Nesse sentido, consideram que a análise dos

10
“Do uso das noções de multifuncionalidade e território nas políticas agrícolas e rurais no Brasil”
publicado originalmente em Lima, E.N., Delgado, N.G. e Moreira, R.J. (orgs.). Mundo Rural IV.
Configurações Rural-Urbanas: Poderes e Políticas. Rio de Janeiro, Mauad: UFRRJ, 2007, p. 216-
235.

11
Políticas públicas, desenvolvimento territorial e atores sociais no meio rural brasileiro. 2009.
Mimeo, 24 p.

Coletânea de Artigos 25
26 Brasil Rural em Debate

obstáculos à articulação das políticas territoriais e as estratégias para


nfrontá-los exigem a consideração de três elementos presentes nesses
espaços: (1) os programas existentes; (2) as arenas decisórias e os espa-
ços públicos existentes nos territórios (a institucionalidade territorial
prevalecente); e (3) o empoderamento dos atores sociais (do Estado, da
sociedade civil e do mercado) presentes nos territórios . Com base nos
desdobramentos dessa proposição, investigam três dimensões identi-
ficadas na utilização da abordagem territorial no Brasil, da perspec-
tiva da intervenção governamental: a territorialização da governança,
a territorialização das políticas públicas e a territorialização do desen-
volvimento . Embora constatando que no Brasil existe um consenso
crescente acerca de pensar territorialmente as política públicas e de
consolidar o território como um espaço intermediário de articulação
das políticas públicas de desenvolvimento rural, os autores finalizam
destacando diversos desafios que a política de desenvolvimento territo-
rial rural ainda enfrenta no país .

Referências Bibliográficas
MINISTÉRIO DO DESENVOLVIMENTO AGRÁRIO . Conselho Nacional de Desenvol-
vimento Rural Sustentável . Relatório Final da 1ª Conferência Nacional de Desenvolvimen-
to Rural Sustentável e Solidário (Olinda/PE, 25-28 de junho de 2008). Por um Brasil
com Gente. Brasília, 2008 .
MINISTÉRIO DO DESENVOLVIMENTO AGRÁRIO . Conselho Nacional de Desenvolvi-
mento Rural Sustentável . Política de Desenvolvimento do Brasil Rural. Proposta aprovada
pelo CONDRAF no dia 24 de fevereiro de 2010 . Brasília, 2010 .
MATTEI, Lauro . A Política de Desenvolvimento do Brasil Rural em Debate . 2010 . Mimeo,
versão preliminar . Florianópolis .
Novo
Parte I
Rural
28 Brasil Rural em Debate

1. O papel do rural no
desenvolvimento nacional:
da modernização conservadora
dos anos 1970 ao Governo Lula*

Nelson
Giordano
Delgado

Introdução
O objetivo deste ensaio é apresentar uma descrição
e análise da relação que se estabelece entre o comporta-
mento da economia e da política macroeconômica e a
conduta da agricultura e da política agrícola em vários
momentos da história recente do país, a começar pela
década de 1970, a última década de elevado cresci-
mento da economia, mas que já anuncia os problemas
que virão a seguir . Uma das observações do texto é que
o papel, por assim dizer, imaginado pelas elites e os for-
muladores da política econômica para a agricultura na
economia nacional não é fixo, mas de alguma forma
tem sido adaptado, em primeiro lugar, para responder
aos estímulos do mercado externo ou para enfrentar as
crises recorrentes do balanço de pagamentos, via au-
mento das exportações, e, subsidiariamente, para dar
conta do abastecimento alimentar interno, em uma
*
Este ensaio é uma ver- economia caracterizada por salários de base tradicio-
são levemente adapta- nalmente reduzidos .
da de um texto escrito
para o CONDRAF Este comportamento da relação economia e agricul-
em fevereiro de 2009
e intitulado “Papel tura não se deve, evidentemente, a uma conduta ine-
e Lugar do Rural no
Desenvolvimento
vitável e fatalista das chamadas “forças econômicas”,
Nacional” . para as quais não exista possibilidade de alternativas .
Decorre, isto sim, de forma central, do tipo de governança predominan-
te internamente e da correlação de forças políticas nos planos nacional e
internacional, dos quais dependem as escolhas de política econômica, ou
mesmo sua falta de opções em determinados momentos, os objetivos e as
características assumidas pelo crescimento econômico, e os grupos sociais
que vão ser favorecidos ou penalizados pelo comportamento da economia
e da agricultura .
A existência ou não de um ambiente democrático se mostrou de-
cisiva para estabelecer o conteúdo e o significado dominantes acerca
do conceito de rural e de desenvolvimento rural e para que pudessem
surgir progressivamente visões alternativas sobre os mesmos, buscan-
do dar conta dos interesses e objetivos de grupos sociais excluídos
dos processos econômicos e sociais dominantes na economia e na
agricultura . Por exemplo, na década de 1970, o governo da ditadura
militar promoveu um processo de modernização conservadora que
concebeu o rural como sinônimo de agrícola e o desenvolvimento
rural como idêntico à modernização agrícola, produzindo transfor-
mações socioeconômicas no meio rural cujos efeitos foram bastante
penosos para os trabalhadores rurais e muito favoráveis às elites agrá-
rias, agrícolas e agroindustriais .
Com o processo de democratização da sociedade brasileira na década
de 1980, revitalizou-se o movimento sindical, surgiram novos movimen-
tos sociais no campo, complexificaram-se os personagens e as demandas
do mundo do trabalho rural e começou a ser elaborada uma crítica con-
tundente ao modelo de modernização agrícola adotado, conhecido inter-
nacionalmente como revolução verde, desvinculando progressivamente o
conceito de rural do de agrícola e o de desenvolvimento rural do de mo-
dernização agrícola . Isso significa, obviamente, que os conceitos de rural
e de desenvolvimento rural são conceitos em disputa na luta política por
projetos e concepções alternativos sobre o mundo rural, cujo significado
é também objeto de disputa, no sentido do reconhecimento, perante a
sociedade e o Estado, de quem são os seus personagens e atores (quem
conquista “visibilidade” e quem permanece “invisível”), quem tem acesso

Coletânea de Artigos 29
30 Brasil Rural em Debate

aos direitos sociais, à proteção do Estado e às políticas públicas, sobre o


que e sobre quem estamos falando quando tratamos do mundo rural em
suas dimensões ambiental, econômica, social, cultural e política .
Nossa hipótese, neste ensaio, é que a década de 1990 é decisiva para
demarcar os termos em que a disputa se faz na sociedade brasileira em
relação ao futuro das relações entre economia e agricultura – sobre o pa-
pel da agricultura na economia – e sobre a apropriação do significado do
Brasil rural e do desenvolvimento rural . Nesta década há uma “confluência
perversa”, para usar um termo cunhado por Dagnino (2004), entre dois
projetos políticos alternativos que, por razões diversas, passam a conviver
na sociedade brasileira de forma não estanque, pois são excludentes em
várias de suas formas de manifestação . São o projeto neoliberal e o projeto
que estamos chamando de democratizante – não de democrático, pois
queremos enfatizá-lo como um processo de democratização da sociedade .
Quando consideramos o mundo rural, argumentamos que o prota-
gonista fundamental do projeto neoliberal é o agronegócio, cujo peso
político, tão importante na história do Brasil, foi revitalizado por seu
papel crucial no que Delgado (2005) chamou de “ajustamento cons-
trangido à globalização” e que consolidou a visão, na perspectiva das
elites, de que o papel da agricultura na economia consiste na geração
de saldos crescentes na balança comercial para tentar manter sob con-
trole a conta de transações correntes da balança de pagamentos .
Por outro lado, no campo do mundo do trabalho, sugerimos que o proje-
to democratizante foi sendo construído no meio rural principalmente atra-
vés da luta pela reforma agrária e pela elaboração de um “projeto alternativo
de desenvolvimento rural baseado na agricultura familiar”, tendo como seus
protagonistas mais importantes as identidades estabelecidas na década de
1990 de “sem-terra”, “assentados” e “agricultores familiares” . Como conse-
quência desse movimento, o projeto democratizante desconstruiu intelectu-
al e politicamente a concepção de rural como agrícola e de desenvolvimento
como modernização, e continua buscando reconstruir, intelectual e politica-
mente, conteúdos mais adequados para as noções de rural e de desenvolvi-
mento rural, numa trajetória difícil e complexa e ainda não concluída .
O ensaio está estruturado em cinco seções, além desta introdução e
das referências bibliográficas utilizadas . Na segunda seção, apresenta-
mos uma breve caracterização da crise política e econômica do início
da década de 1960, que é enfrentada através do golpe militar de 1964 .
Com o golpe, é recomposto o pacto político dominante que susten-
tava a industrialização e que mantém a participação das elites agrá-
rias . Como consequência, o governo militar promoveu uma política
de incentivo à modernização da agricultura na década de 1970, que
ficou conhecida como “modernização conservadora”, pois seu objeti-
vo, entre outros, foi transformar o latifúndio em uma grande empresa
capitalista . São descritos, então, os principais efeitos desse processo,
inclusive no mundo do trabalho rural .
A terceira seção trata das relações entre política macroeconômica e
agricultura que passaram a prevalecer em função do ajustamento da eco-
nomia brasileira à crise da dívida externa, na década de 1980, desenca-
deada pela enorme elevação das taxas de juros internacionais ocasionadas
pela política econômica norte-americana . A essência do ajustamento in-
terno residiu na custosa adaptação da economia à geração de superávits
crescentes na balança comercial e na transformação da agricultura em
principal instrumento para o equilíbrio da conta de transações correntes
da balança de pagamentos, através de um grande estímulo governamen-
tal às exportações . A partir dos anos 1980 este passou a ser o principal
papel da agricultura na economia nacional, da perspectiva do Governo e
das elites políticas e econômicas . Com a luta pelo processo de democra-
tização do país, o tema da reforma agrária foi revigorado politicamente
e a questão agrária tornou-se mais complexa com o surgimento de no-
vos personagens e novas reivindicações nos movimentos sociais rurais .
A seção termina com uma breve menção ao plano de reforma agrária
apresentado pelo Governo da Nova República .
A quarta seção lida com a década de 1990 e com a adoção de uma
política de liberalização comercial, de desregulação e de desmonte dos
instrumentos de política agrícola utilizados até o final da década an-
terior . Seus efeitos na agricultura familiar foram bastante danosos . Ao

Coletânea de Artigos 31
32 Brasil Rural em Debate

mesmo tempo, acelerou-se o endividamento externo, em função do


ajuste ultraliberal do primeiro Governo Fernando Henrique Cardo-
so . Como consequência, o segundo Governo FHC voltou a utilizar a
política de ajustamento externo baseado na expansão das exportações
agropecuárias e um verdadeiro “relançamento” do agronegócio foi fa-
vorecido pela política governamental desde então .
Apresentamos, ademais, nesta seção uma discussão sobre as caracterís-
ticas e os objetivos dos dois projetos em competição no meio rural -pelo
significado do desenvolvimento, pelo protagonismo do mesmo e pelas
políticas públicas governamentais- que denotamos como sendo o proje-
to neoliberal do agronegócio e o projeto democratizante que, na década
de 1990, tem como suas idéias-força a reforma agrária e o modelo de de-
senvolvimento rural baseado na agricultura familiar e como seus princi-
pais personagens os “sem-terra”, “assentados” e “agricultores familiares” .
Na quinta seção, coerentes com nossa distinção entre os dois modelos
políticos que, a partir dos anos 1990, disputam o significado e as políti-
cas de desenvolvimento, buscamos sugerir os pontos de continuidade do
Governo Lula com o projeto neoliberal, bem como as janelas de opor-
tunidade que abriu para o avanço do projeto democratizante no meio
rural, embora tendo clareza que a eleição de Lula foi uma conquista do
projeto democratizante . Terminamos a seção com uma breve aproxima-
ção ao conceito de rural que aparece no documento Condraf (2008) .
Por fim, a sexta seção encerra o documento com algumas breves
interrogações acerca de obstáculos, desafios e oportunidades para o
desenvolvimento rural no país .

1.1 A modernização conservadora


da agricultura na década de 1970
Desde a Grande Depressão de 1930, e principalmente a partir do
Plano de Metas do Governo Juscelino Kubitschek na segunda metade
dos anos 1950, a economia brasileira foi dominada, até o final da déca-
da de 1970, pela idéia-força da industrialização, como o instrumento
fundamental para a eliminação da considerável defasagem que a sepa-
rava das economias capitalistas industrializadas . Essa idéia consolidou-
-se como o principal objetivo de política econômica da burocracia es-
tatal e dos formuladores da política pública, não importa quão diversos
tenham sido os governos neste período . O padrão de industrialização
implementado desde os anos 1950 teve algumas características bem
marcantes, mas só nos interessa ressaltar aqui duas: a importância deci-
siva do Estado para sua implementação e o caráter conservador do pro-
cesso, no sentido de que não representou qualquer rompimento com
as elites agrárias e esteve baseado na manutenção de salários reduzidos .
Os papéis desempenhados pelo Estado neste modelo de crescimen-
to dependente foram múltiplos: (1) foi agente produtivo, por meio
da criação, expansão e consolidação de um importante setor produti-
vo estatal (que será privatizado, em parte, na década de 1990); (2) foi
agente financeiro, responsável pela criação, captação e centralização
dos créditos de longo prazo necessários à transformação da estrutura
produtiva industrial, principalmente por meio do atual BNDES; (3)
foi articulador dos capitais privados nacionais e internacionais que
participaram do processo de acumulação industrial e transplantaram,
de forma incompleta e deformada, a estrutura industrial prevalecente
nos países capitalistas centrais; (4) foi expressão e sustentáculo de
um pacto de poder autoritário e excludente das camadas populares,
especialmente do meio rural, que, ao mesmo tempo em que tornava
hegemônico o projeto industrializante, mantinha intocada a estrutu-
ra de poder no campo e garantia mecanismos de valorização especu-
lativa dos capitais (na época, em grande parte nacionais) instalados
nas órbitas bancária, imobiliária e comercial; e (5) foi formulador e
executor de políticas públicas, tanto no nível macroeconômico como
setorial, que privilegiaram a constituição de uma economia urba-
no-industrial, protegendo a produção, subsidiando investimentos,
criando mercados, mantendo os preços dos alimentos controlados
e os salários reduzidos, elevando os lucros industriais, expandindo a
infraestrutura de energia e transportes etc .

Coletânea de Artigos 33
34 Brasil Rural em Debate

No início da década de 1960, este modelo de industrialização de-


pendente e excludente entrou em crise, no sentido de que seus meca-
nismos tradicionais de financiamento e suas frentes de expansão foram
abaladas pela aceleração da inflação e pela perda de capacidade do Es-
tado de manter a articulação do pacto de poder político que o susten-
tava . As críticas ao padrão dependente e excludente da industrializa-
ção acentuaram-se entre intelectuais e partidos políticos de esquerda
(e centro-esquerda) e passaram a expressar-se politicamente através da
mobilização crescente dos movimentos sindical e camponês . Naciona-
lismo, reforma agrária e crescimento dos salários e do mercado interno
se tornaram bandeiras políticas e econômicas fundamentais de lutas
que visavam à derrota das elites agrárias e a superação do pacto de po-
der que sustentou historicamente a industrialização, buscando fazê-la
mais democrática, menos excludente e dependente, e tendo o cresci-
mento do consumo de bens salários (e não de bens de luxo/supérfluos)
como uma de suas frentes de expansão essenciais .
O golpe de estado militar de 1964 foi decisivo para enfrentar os
conflitos existentes de modo a manter o pacto político tradicional
que incluía as elites agrárias como um de seus componentes . A re-
pressão política sobre os movimentos sindical e camponês e sobre os
intelectuais e os partidos de esquerda foi o mecanismo utilizado para
recompor o pacto político dominante e, a partir daí, definir meca-
nismos de financiamento e de retomada da acumulação industrial
que acentuaram seu caráter dependente e excludente, por meio do
aumento da participação das empresas multinacionais, da conten-
ção dos salários reais, e da expansão do setor produtivo estatal e dos
setores de bens de consumo duráveis, viabilizado pelo aumento do
crédito para o consumo da classe média .
Apesar da criação do Estatuto da Terra, em novembro de 1964, e
de uma posição relativamente favorável a uma mudança fundiária
conservadora no plano de ação econômica do primeiro governo da
ditadura militar, a falta de sustentação política dessas intenções di-
vergentes na base social e política de apoio do governo militar levou
à supressão de qualquer intenção de mudança na estrutura agrária
brasileira a partir do Ato Institucional nº 5, de dezembro de 1968,
e à adoção da proposta de que, em vez de reformar o latifúndio, era
necessário implementar uma política de modernização da agricultu-
ra brasileira com o objetivo de transformá-lo numa grande empre-
sa capitalista . Com a hegemonia política dessa visão no governo da
ditadura militar foi iniciada, no final da década de 1960, a política
estatal que promoveria a chamada modernização conservadora da
agricultura brasileira na década de 1970 .
Embora o conjunto da política de modernização agrícola desse pe-
ríodo tenha mobilizado um espectro um pouco mais amplo de instru-
mentos – como incentivos fiscais às exportações, minidesvalorizações
cambiais, criação da EMBRAPA e da EMBRATER etc . –, é consensu-
al que a política de crédito rural subsidiado, iniciada com a criação do
Sistema Nacional de Crédito Rural (SNCR), em 1965, foi seu carro-
-chefe fundamental . Pelo menos até 1976, a oferta de crédito rural foi
incrivelmente abundante e subsidiada, de modo que a participação do
crédito na renda agrícola foi sempre muito elevada . Essa fartura do
crédito agrícola esteve associada às mudanças institucionais realizadas
pelo governo (criação do Banco Central e reforma do sistema finan-
ceiro nacional) e principalmente a uma conjuntura mundial favorável,
marcada por grande disponibilidade de recursos financeiros .
Ademais, este foi um período de grande crescimento do comércio
internacional, com melhoria significativa dos termos de troca para a
economia brasileira e com melhoria dos preços agrícolas para exporta-
ção . Dada a base social de sustentação da ditadura militar, a conjun-
tura financeira e comercial bastante favorável estimulou uma política
de abertura da economia voltada para o crescimento das exportações
agrícolas . Lembremos que é deste período o início e a notável expansão
da produção de soja no país, especialmente na região Sul .
Algumas características da modernização conservadora da agricultura
brasileira são igualmente consensuais: (1) o crédito agrícola subsidiado
se concentrou nas regiões Sul e Sudeste, acentuando os desequilíbrios

Coletânea de Artigos 35
36 Brasil Rural em Debate

regionais existentes; (2) privilegiou principalmente os grandes produ-


tores e alguns médios, aumentando a concentração fundiária (houve
uma queda do número de estabelecimentos com menos de 50 ha); (3)
favoreceu basicamente os produtos agrícolas destinados à exportação,
o que, juntamente com o aumento da relação preços das exportações/
preços dos produtos alimentares, provocou um acentuado desequilíbrio
na relação entre produção para exportação e produção para alimentação,
piorando a distribuição de renda no meio rural; (4) a modernização da
agricultura esteve intimamente associada a uma onda de internalização
do que na época se chamou de “complexo agroindustrial”, a montante
e a jusante, com liderança das empresas multinacionais, num processo
que foi também conhecido como de “industrialização (e internaciona-
lização) da agricultura” ou de “revolução verde”; (5) é impensável sem
a conjuntura internacional extremamente favorável, tanto do ponto de
vista da demanda por exportações de produtos agrícolas, como pela dis-
ponibilidade de crédito no sistema financeiro mundial; e (6) promoveu
um violento processo de expulsão de mão-de-obra do campo, especial-
mente nas regiões onde a modernização foi mais intensa: o Sudeste e o
Sul foram responsáveis por cerca de 60% do total das migrações líquidas
do meio rural nas décadas de 1960 e 1970 .
É evidente que as características da modernização agrícola deste perío-
do estão profundamente associadas à ditadura militar, cuja base social de
apoio político influenciou decisivamente quais foram os grupos sociais
favorecidos e quais foram os penalizados: principalmente agricultores
capitalistas, empresas do CAI (nacionais e multinacionais), latifundiá-
rios “tradicionais” e “modernos”, sistema financeiro, no primeiro caso,
e basicamente pequenos agricultores, assalariados rurais (em particular
os temporários, “bóias-frias”), populações rurais sem-terra, no segundo .
Neste período, para os atores governamentais e empresariais, rural
era sinônimo de agrícola e desenvolvimento rural era igual a desen-
volvimento agrícola que, por sua vez, era identificado com moder-
nização da agricultura . As populações excluídas do processo de mo-
dernização eram consideradas pelo governo militar e por organismos
internacionais como populações de “baixa renda”, para as quais eram
destinados, especialmente no Nordeste, os chamados “projetos de
desenvolvimento rural integrado”, difundidos pelo Banco Mundial
por toda a América Latina .
A Amazônia era considerada da perspectiva de uma estratégia
de integração nacional – que incluia também o Nordeste e o Cen-
tro-Oeste – concebida através da execução de grandes programas
especiais, como o Programa de Pólos Agropecuários e Agromine-
rais da Amazônia (Polamazônia) e outros, que visavam estimular
a instalação de capitais nacionais e multinacionais na região, bem
como a expansão de uma agropecuária empresarial moderna . Essa
estratégia seria complementada por uma política de colonização e
de desenvolvimento agropecuário orientado para a ocupação das
chamadas “regiões de fronteira”1 . A questão ambiental, apesar de
iniciativas e de reflexões existentes no âmbito mundial e doméstico,
não aparecia ainda como uma questão central das agendas nacional
e internacional .
Note-se, no entanto, que o caráter excludente da modernização con-
servadora da agricultura aumentou a demanda por terra por parte do mo-
vimento sindical remanescente – apoiada por setores da Igreja Católica,
como a Comissão Pastoral da Terra, criada em 1975 –, que foi abafada e
reprimida pela repressão política dominante, mas que se manteve espa-
lhada por todo o país e enraizada nas experiências cotidianas dos traba-
lhadores . Como ressalta Medeiros (2002), essa luta pela terra, nos anos
1970, produziu uma apropriação particular do Estatuto da Terra pelo mo-
vimento sindical, que se centrou na reivindicação da desapropropriação

1
Em outro ensaio, referimo-nos à existência de uma “tensão” nos planos de desenvolvimento do governo
militar em relação às “regiões de fronteira”, como eram considerados a Amazônia e o Centro-Oeste. Tais
regiões eram concebidas como espaços geoeconômicos nos quais o governo militar pretendia ser possível
tanto a consolidação de uma agricultura camponesa mercantil, aliviando as tensões sociais no meio rural
em outras regiões, como a expansão de uma agropecuária empresarial moderna, voltada para o mercado
interno e, principalmente, para a exportação. A prática do governo foi, no entanto, francamente favorável
aos grupos empresariais, inviabilizando o desenvolvimento da agricultura camponesa e intensificando,
ao invés de reduzir, os focos de tensão social inclusive nessas áreas (Delgado, 1988).

Coletânea de Artigos 37
38 Brasil Rural em Debate

das áreas de conflito geradas pelo projeto de modernização dominante .


Nesse sentido, seu personagem mais característico, embora não único, foi
o “posseiro”, ameaçado pelos grandes projetos agropecuários incentivados
pela política governamental, em especial na Amazônia .

1.2 O ajustamento doméstico à crise


externa na década de 1980
As condições de articulação, de financiamento e de continuidade do
padrão de crescimento industrial, que predominou no pós-guerra, rom-
peram-se definitivamente a partir do início da década de 1980, como
consequência da crise da dívida externa e de suas principais formas de
manifestação: a impossibilidade de acesso ao mercado internacional
de crédito combinada com a elevação brusca da remessa de juros por
conta do enorme aumento das taxas internacionais; a profunda crise
institucional e financeira do Estado nacional; e a aceleração vertigino-
sa da inflação2 . Com isso, a política macroeconômica – especialmente
monetária, fiscal e comercial – ficou refém da necessidade de viabilizar
internamente os pagamentos relativos ao serviço da dívida externa e de
impedir que o agravamento do endividamento público externo e da taxa
de crescimento dos preços empurrasse a economia para a hiperinflação .
E tudo isso com a aceitação, a partir de 1983, do monitoramento e da
fiscalização do Fundo Monetário Internacional (FMI) .
O resultado foi a adoção de uma política econômica recessiva, acompa-
nhada por desvalorizações significativas da taxa de câmbio, com o objetivo
de promover um amplo deslocamento de recursos dos setores produtores
de bens destinados ao mercado doméstico para os setores voltados às ex-
portações ou à substituição das importações . Desta forma, a possibilidade
de retomada do crescimento econômico passa a depender, prioritariamen-

2
Note-se que a crise da dívida externa foi provocada principalmente pelas mudanças na política
econômica norte-americana no início dos anos 1980, que promoveram uma notável e imediata ele-
vação das taxas de juros internacionais, como parte de um processo econômico, político e militar
conhecido como a “retomada da hegemonia norte-americana” e que anunciou a imposição de uma
política chamada de neoliberal na economia internacional (veja-se, a respeito, o artigo clássico de
Tavares (1997) originalmente publicado em 1985).
te, do comportamento do mercado externo e não do interno, e passa a ser
viabilizada uma transferência significativa de recursos para o exterior atra-
vés da obtenção de superávits crescentes na balança comercial, da transfe-
rência de renda dos assalariados, por meio da aceleração inflacionária, e do
desequilíbrio financeiro progressivo do setor público (intenso crescimento
da dívida pública interna concomitante à estatização da dívida externa) .
No período 1978/1982, os juros pagos pelo Brasil aumentaram
282% entre os dois anos extremos, como decorrência da violenta ele-
vação das taxas de juros internacionais, o que se refletiu num notável
déficit acumulado na balança de transações correntes . A dívida externa
bruta de médio e de longo prazos aumentou 60% e as reservas interna-
cionais reduziram-se 66% entre 1978 e 1982 (Delgado, 2008) .
Se adicionarmos a essa conjuntura o colapso do mercado internacio-
nal de crédito, a partir de setembro de 1982, com a moratória mexica-
na, podemos ter uma dimensão da dramaticidade da crise externa no
início dos anos 1980: acumularam-se déficits consideráveis na conta
de transações correntes, ao mesmo tempo em que, a partir de 1982, os
bancos internacionais se recusaram a manter o fornecimento do mon-
tante de empréstimos requerido pelo seu financiamento . Como conse-
quência, a economia brasileira foi obrigada, em um curtíssimo prazo, a
ajustar-se unilateralmente a essa situação, ou seja, a por imediatamente
em prática uma política econômica que resultasse na considerável re-
dução do déficit em transações correntes, por meio da obtenção de
grandes superávits na balança comercial .
Os resultados desse ajustamento doméstico à crise externa foram ex-
tremamente danosos para a economia brasileira, como o demonstram
o pífio crescimento do PIB, a taxas médias anuais de cerca de 1,7%,
na década de 1980, muito abaixo do que ocorreu na década de 1970
(taxa média de 8,7% a .a .) e em todo o período do pós-guerra até 1979
(taxa média de cerca de 7% a .a .) . Além da constante ameaça de hipe-
rinflação, do colapso financeiro do Estado e de sua perda progressiva da
capacidade de implementar políticas econômicas setoriais autônomas .
Paradoxalmente, no entanto, o desempenho da agricultura foi mais

Coletânea de Artigos 39
40 Brasil Rural em Debate

favorável do que o do setor industrial e mesmo da economia como um


todo, não obstante a grave crise ocorrida no mercado agrícola mundial
no período 1980/1984, caracterizada por uma substancial queda dos
preços internacionais das commodities agrícolas .
Aparentemente, dois elementos foram particularmente importantes
para explicar esse desempenho da agricultura . Em primeiro lugar, o Go-
verno Figueiredo estabeleceu, em 1979, uma prioridade para a agricultura
– que o então Ministro Delfim Neto popularizou com o mote de “encher a
panela do povo” –, em função da expectativa generalizada de uma crise de
abastecimento de alimentos, devida ao fraco desempenho de sua produção
na década anterior, o que se refletiu numa mudança da política agrícola
em favor do fortalecimento da política de preços mínimos (indexando-os
à inflação) e da diminuição da importância da política de crédito rural .
Nesse sentido, o temor do desabastecimento interno de alimentos, numa
conjuntura de crise da economia nacional, obrigou o governo militar a
tomar medidas para favorecer o aumento de sua produção .
E, em segundo lugar, a política de desvalorização da taxa de câmbio
foi capaz de compensar, em moeda nacional, as perdas de receitas em
dólares dos exportadores brasileiros devidas à queda dos preços inter-
nacionais das commodities agrícolas, garantindo a continuidade de sua
produção . A produção de soja, por exemplo, permaneceu em elevação,
mas a taxas inferiores: sua produção deslocou-se progressivamente,
para o Centro-Oeste, onde passou a representar, no final da década,
mais de 40% da produção brasileira .
Em suma, pode-se dizer que nos anos 1980 as políticas cambial, de
preços mínimos e tecnológicas viabilizaram o crescimento agrícola em
um ambiente macroeconômico interno e externo bastante desfavorável .
Apesar da prioridade dada à consecução de grandes superávits na balança
comercial, a composição da produção agrícola tornou-se menos dese-
quilibrada, em relação à década anterior, em razão dos estímulos para a
expansão da produção para o mercado interno e em função da crise do
mercado agrícola mundial na primeira metade dos anos 1980 . As distor-
ções provocadas pelo crédito rural, na década de 1970, foram atenuadas
(pela própria redução na disponibilidade de crédito), e a rentabilidade
das culturas domésticas aumentou em relação às de exportação (conside-
rada a relação dos índices de preços reais de ambas) .
Com o melhor desempenho relativo dos produtos de alimentação, a
década de 1980 foi mais favorável para a agricultura de mercado interno
do que a década de 1970, o que aparentemente favoreceu a agricultura
familiar, ou pelo menos alguns de seus setores . Três evidências adicio-
nais, de incidência importante na primeira metade da década, parecem
apoiar essa suposição: (i) o maior crescimento do número de estabele-
cimentos rurais de até 20 hectares (o número de estabelecimentos com
menos de 10 ha aumentou quase 20% entre 1980/85, segundo Gasques
e Villa Verde, 1990); (ii) a maior estabilidade do emprego agrícola como
proporção do emprego total e a redução da intensidade das migrações
rurais-urbanas, inclusive devido à diminuição do crescimento industrial;
e (iii) a queda relativa do preço da terra, em relação à sua substancial
elevação na década de 1970 (Goldin & Rezende, 1993) .
É fundamental considerar, ademais, que, no início dos anos 1980, apro-
funda-se a crise de poder e de legitimidade da ditadura militar, a qual já vi-
nha se acumulando desde a segunda metade da década passada, culminan-
do na redemocratização institucional do país em 1985, depois de 21 anos
de ditadura, e na convocação de uma Assembléia Nacional Constituinte
para, em 1987, elaborar uma nova Constituição, promulgada em 1988 .
No ambiente de abertura política do final dos anos 1970 e início dos
1980 e no contexto da luta pela democratização do país, a questão agrária
ganhou nova relevância na discussão pública sobre os custos e benefícios das
transformações recentes ocorridas no meio rural, de modo que a reforma
agrária passou a assumir uma importância política central, como a reivin-
dicação representativa e unificadora de diferentes demandas oriundas da
diversidade de grupos, de atores sociais e de lutas existentes no meio rural3 .
Surgem novos personagens: os “atingidos por barragens” – sejam pro-
prietários, posseiros, parceiros, arrendatários, expulsos de suas terras para

3
A discussão que se segue sobre questão agrária e reforma agrária está baseada em Medeiros (2002).

Coletânea de Artigos 41
42 Brasil Rural em Debate

a construção de grandes usinas hidrelétricas, ligadas aos grandes projetos


de energia do II PND -, os “seringueiros” – resistindo na região Norte à
transformação dos seringais em pastagens –, os “pequenos produtores” –
que perderam ou estavam perto de perder suas terras no Sul, em função
da modernização, assumindo progressivamente a identidade de “sem-
-terra”–, além dos “posseiros” nas áreas de “fronteira agrícola” do Norte
e do Centro-Oeste .
Aparecem também novas reivindicações: por políticas de preços e de cré-
dito rural para pequenos agricultores tecnificados; por melhores preços e
condições contratuais por agricultores integrados às agroindústrias (em es-
pecial, fumo, suínos, frango, uva), principalmente no Sul do país . E ganham
visibilidade e espaço público novos movimentos sociais rurais, como o MST,
o Movimento dos Atingidos por Barragens, o movimento de mulheres tra-
balhadoras rurais, o Conselho Nacional dos Seringueiros e antigas e novas
representações do movimento sindical, como a CONTAG e a CUT . Além
da presença de entidades da Igreja Católica, como a CPT, e de organizações
não governamentais – FASE, IBASE, CEDI, ABRA etc . – que se envolve-
ram na Campanha Nacional pela Reforma Agrária e pela mobilização da
sociedade civil a favor da reforma agrária durante a Assembléia Constituinte .
Como consequência da gradual afirmação social desses novos
personagens, atores e reivindicações, a questão agrária passou pro-
gressivamente a ganhar uma visibilidade política sem precedentes
na história do país, tornando-se tematicamente mais complexa e di-
versificada e abrindo caminho para a futura implosão da identidade
entre rural e agrícola e entre desenvolvimento e modernização, que
ganharia maior vigor e substância, conceitual e política, a partir da
década de 1990 .
Esse processo foi energizado na década de 1980 pelo impulso e
pela importância ganha, internacional e nacionalmente, pela crítica
contundente ao caráter excludente e aos nefastos efeitos ambientais,
culturais, econômicos e sociais do processo de modernização agrícola
da revolução verde implantado no Brasil e em outros países do então
chamado Terceiro Mundo a partir da década de 1970 .
No caso brasileiro, esta crítica foi encabeçada por associações de agrô-
nomos, por ONGs e gradativamente assumida pelos movimentos sociais
rurais, iniciando um processo de debate em torno das então chamadas
“tecnologias alternativas”, cuja politização e aprofundamento conceitual
e técnico iria desembocar na convicção de que não bastava e era equivo-
cado reivindicar a democratização da revolução verde, que a luta deveria
centrar-se na construção e na implementação de um outro modelo de
desenvolvimento rural, cujas consequências ambientais, sociais, econô-
micas, culturais e políticas fossem benéficas aos pequenos produtores e
às populações rurais . Nesse sentido, a discussão internacional em tor-
no de um “outro desenvolvimento”, na década de 1970, e o avanço da
preocupação planetária com a preservação do meio ambiente e com a
concepção do que poderia ser um “desenvolvimento sustentável” para a
humanidade, a partir dos anos 1980, representaram estímulos decisivos .
Um ponto alto da revitalização do debate sobre a reforma agrária como
questão pública de interesse político, econômico e social na década de 1980
foi a elaboração da Proposta de Plano Nacional de Reforma Agrária (PNRA),
apresentada como uma das prioridades do governo da chamada Nova Repú-
blica, que se seguiu ao término do regime militar (Medeiros, 2002) .
O PNRA recebeu o apoio da CONTAG e a oposição do MST e
da CUT, no campo dos atores favoráveis à reforma agrária . Enfrentou
também uma forte oposição dos representantes das elites agrárias, que
criaram uma nova organização, a UDR, com o objetivo precípuo de
evitar a aprovação do Plano, de ganhar espaço na mídia contra a refor-
ma agrária, de combater as ocupações de terra lideradas pelo MST, e
de influenciar a Assembléia Constituinte na defesa do direito de pro-
priedade da terra e no bloqueio da criação de canais constitucionais
capazes de viabilizar uma ampla reforma agrária .
O PNRA foi abandonado pelo Governo Sarney e a articulação das
elites agrárias no combate ao Plano foi decisiva para impedir o avanço de
propostas de reforma agrária mais consistentes e abrangentes na Cons-
tituinte e para dificultar tentativas futuras de implementá-las . As cisões
que se estabeleceram na apreciação do Plano entre as representações da

Coletânea de Artigos 43
44 Brasil Rural em Debate

sociedade civil e dos agricultores favoráveis à reforma agrária também


serão importantes para os rumos assumidos pela luta pela reforma agrá-
ria na década seguinte . Por fim, a experiência do PNRA escancarou as
enormes dificuldades enfrentadas pela reforma agrária diante de uma
burocracia estatal altamente centralizada e fragmentada, forjada durante
o regime militar, e que se mostrava muito mais sensível aos interesses das
elites agrárias do que dos trabalhadores rurais .
Como concluiu Bruno (2009: 107), de forma admiravelmente sinté-
tica e pertinente, e um texto originalmente escrito em 2002, “(o) tempo
do agronegócio, hoje, é tributário e herdeiro da vitória política da grande
propriedade fundiária nos anos de 1980” .
Com o aprofundamento da crise econômica, na década de 1980,
que se manifestou por meio da aceleração inflacionária, do fracasso dos
planos de estabilização, e da crise financeira do Estado, a capacidade e
a disposição de intervenção do governo através de políticas públicas foi
sendo progressivamente minada, tanto operacional, como ideologica-
mente, de modo que a política agrícola posta em prática na década de
1980 foi inviabilizada quase integralmente no final do período .

1.3 A década de 1990. A “confluência perversa” de dois


projetos contraditórios: projeto neoliberal e agronegócio
e projeto democratizante, reforma agrária e novo
modelo de desenvolvimento rural baseado
na agricultura familiar
Embora o Plano Cruzado tenha tido efeitos positivos sobre os in-
vestimentos e provocado uma euforia agrícola em 1986, o fracasso da
sequência de planos de estabilização posteriores criou uma enorme ins-
tabilidade nas expectativas dos agentes econômicos e gerou comporta-
mentos altamente especulativos quanto aos estoques e ativos agropecu-
ários, intensificando o caráter especulativo da formação dos preços das
commodities agrícolas, o que redundou, ajudado por outros fatores,
numa crise agrícola no início dos anos 1990 .
O agravamento da crise financeira do Estado e o aumento das ta-
xas de juros ocorridos no final da década de 1980 levaram ao colapso
da política de preços mínimos executada no período, pois tornaram
excessivamente caro e difícil de ser financiado o carregamento de esto-
ques de produtos agrícolas (de alimentação e de exportação) realizado
pelo governo . Ademais, a partir de 1988, sucedeu uma valorização da
taxa de câmbio real, que se estendeu pela década de 1990, neutralizan-
do outro instrumento de política econômica de significativa relevância
para a agricultura nos anos 1980 .
Simultaneamente, começou, em 1987/1988, o processo de desmonte
da política pública de regulação do Complexo Trigo no Brasil . Abriu-se,
dessa forma, a porta para o abandono do sistema de política agrícola
baseado na coordenação do mercado interno e na intervenção direta nos
mercados agrícolas e para a opção por uma estratégia de liberalização de
mercados e de privatização de instrumentos de política, que veio a ser
implementada ao longo da década de 1990 (Governo Collor e primeiro
Governo FHC) – numa conjuntura de abundância de créditos interna-
cionais para a economia brasileira – com efeitos negativos para a agricul-
tura e, principalmente, para a agricultura familiar4 .
O crescimento da economia foi bastante medíocre na década de
1990, apresentando taxas médias anuais de crescimento do PIB mais
baixas, quando comparadas aos anos 1970 e 1980: 1,7% a .a . para
o PIB total, 0,8% a .a . para o PIB industrial e 2,5% a .a . para o PIB

4
Um dos raros estudos que tentam fazer uma avaliação dos efeitos da política de liberalização co-
mercial da década de 1990 sobre a agricultura familiar, e que serviu de base às nossas considerações,
é Melo (2001). Neste trabalho, o autor leva em conta 22 produtos agropecuários (18 agrícolas e 4
animais), distribui esses produtos entre o que chama de agricultura patronal e agricultura familiar,
e considera como produzidos pela agricultura familiar aqueles produtos para os quais a maior inci-
dência de produção verifica-se em estabelecimentos com até 100 ha de área total (de acordo com a
classificação do Censo Agropecuário de 1995/96). Os produtos contemplados como da agricultura
familiar são: amendoim, batata, cebola, feijão, fumo, mandioca, sisal, tomate, uva, suínos, frango e
leite. Os da agricultura patronal são: algodão, arroz, cacau, café, cana-de-açúcar, laranja, milho, soja,
trigo e bovinos. Dessa forma, no estudo de MELO (2001), a agricultura familiar é identificada fun-
damentalmente com a agricultura para o mercado interno, essencialmente produtora de alimentos
(com a grande exceção do fumo). Embora seja uma simplificação, pois há produtos de exportação
que são também produzidos por agricultores familiares (como a soja, por exemplo), essa identifica-
ção não é incorreta e permite uma aceitável aproximação do objeto que pretende estudar.

Coletânea de Artigos 45
46 Brasil Rural em Debate

agrícola . Note-se que as décadas de 1980 e 1990 apresentaram um


comportamento completamente diverso da tendência histórica apre-
sentada pela economia brasileira em todo o pós-guerra até o final dos
anos 1970: pequeno crescimento da economia como um todo e rela-
tiva estagnação do crescimento industrial, com taxas médias anuais
muito abaixo das da agricultura . O processo de globalização mundial e
a adoção de políticas neoliberais de abertura comercial e de relativa de-
sindustrialização parecem ter induzido um retorno do Brasil ao proje-
to de “vocação agroexportadora” defendido historicamente pelas elites
agrárias e que vai redefinir, dessa perspectiva, o papel que a agricultura
deve desempenhar na economia, como veremos mais adiante .
O comportamento da agricultura e, em particular, da agricultura
familiar (para o mercado interno), nessa década, foi influenciado fun-
damentalmente por três medidas distintas de política econômica . Em
primeiro lugar, a liberalização comercial e o desmonte do modelo de in-
tervenção do Estado na agricultura que prevaleceu até a década de 1980 .
Isso significou, entre outras medidas5: (i) a enorme redução do volume
de recursos aplicados nas principais políticas agrícolas; (ii) a liquidação
da política governamental de estoques públicos de alimentos, que foram
reduzidos em cerca de 85% em 5 anos; e (iii) a queda considerável das
tarifas de importação de produtos alimentares e do algodão – a diminui-
ção das tarifas de importação no período 1989/1997 foi de 35% para
o arroz, 48% para o feijão, 53% para o leite, 71% para o algodão, 48%
para o trigo etc .
Em segundo lugar, a adoção do Plano Real em 1994, que levou a uma
queda da renda real do setor agrícola de cerca de 20% a 30%, no primeiro
semestre de 1995, e que teve como consequências adicionais: (i) o enorme
aumento dos custos financeiros dos agricultores (devido à elevação das
taxas de juros e à escassez de crédito), e (ii) um impacto depressivo direto
e significativo na formação de preços dos principais produtos agrícolas .
E, em terceiro lugar, a considerável valorização da taxa de câmbio até
1998, associada ao grande volume de recursos disponíveis no sistema
5
Ver a respeito Delgado (1994) e Delgado & Fernandes Fº (1998) .
financeiro internacional e a taxas de juros domésticas bastante elevadas,
três componentes fundamentais da implementação do programa de es-
tabilização do real (a nova moeda adotada em 1994) e que contribuíram
para explicar seu relativo sucesso . A consequência adicional sobre a agri-
cultura foi o grande incentivo ao aumento das importações – que se tor-
naram, ademais, um grande negócio financeiro em função do diferencial
de custos entre os empréstimos externos e internos – e o corresponden-
te desestímulo às exportações . O valor total das importações agrícolas
passou de US$ 2,4 bilhões, em 1990, para US$ 5 bilhões, em 1994,
e US$6,8 bilhões, em 1996, uma situação sem precedentes na história
moderna da economia brasileira (Soares, Romano, Delgado, 2004: 12) .
Dois outros efeitos da política de liberalização comercial sobre a agricul-
tura devem ser mencionados (Melo, 2001) . O primeiro é que a evolução
dos preços reais recebidos pelos agricultores foi extremamente desfavorá-
vel, ao longo da década de 1990, sendo que a maior penalização recaiu so-
bre os agricultores familiares, cujos produtos apresentaram uma taxa mé-
dia anual de redução de preços reais quase o dobro da dos preços reais dos
produtos da agricultura patronal, nos termos definidos por Melo (2001) .
Isso explica o fato de que a produção total de feijão e de arroz tenha
permanecido praticamente estagnada na década (além de cebola e man-
dioca), enquanto a produção de trigo reduziu-se de uma média bianual de
6 milhões de toneladas, em 1987/1988, para 1,8 milhões, em 1994/95, e
para 2,3 milhões de toneladas, em 1998/1999, o que repôs a dependência
do consumo interno de trigo das importações (Soares, Romano, Delgado,
2004: 8) . Segundo Melo (2001), no caso da agricultura patronal os efeitos
deletérios da política macroeconômica foram parcialmente compensados
pelo comportamento favorável dos preços internacionais de alguns pro-
dutos (como soja, açúcar, suco de laranja e café) . No caso da agricultura
familiar, esses resultados negativos foram amplificados pela reduzida eleva-
ção do mercado interno para seus produtos, consequência do baixo cresci-
mento da economia e do emprego urbano .
Outro efeito importante da política macroeconômica sobre a agri-
cultura familiar foi que o valor da produção de seus produtos (tais

Coletânea de Artigos 47
48 Brasil Rural em Debate

como definidos por Melo, 2001) permaneceu, descontada a inflação,


completamente estagnado na década de 1990, tendo inclusive decres-
cido em relação a seu valor em 1989 . De acordo com esse autor, o
mesmo ocorreu, de modo geral, com o valor real da produção da agri-
cultura patronal, que, no entanto, é bastante superior ao da agricultura
familiar . A partir da metade da década, porém, a recuperação do valor
real da produção da agricultura patronal acentuou a distância entre
ambos, tendência que deve ter continuado e mesmo se intensificado
no começo da década de 2000, com a extraordinária retomada da ex-
pansão da agricultura de exportação, liderada pela soja .
Esse desastroso “ajuste ultraliberal”6 fomentado pelo primeiro Go-
verno FHC – que além dos efeitos maléficos sobre a agricultura, como
vimos, promoveu a privatização de parte do setor produtivo estatal e
aumentou o endividamento externo – entrou em colapso com a crise
de liquidez internacional ocorrida no final de 1998, a qual afetou pesa-
damente a economia brasileira, provocando fuga de capitais e exigindo
uma nova mudança na política cambial e na política de ajustamento
externo . A política econômica do segundo Governo FHC, à seme-
lhança do que ocorreu na década de 1980, voltou, então, a enfatizar
a estratégia de geração de grandes e crescentes saldos na balança co-
mercial, para enfrentar a deterioração da conta de transações correntes
do balanço de pagamentos decorrente da política de endividamento
externo priorizada no primeiro governo .
Da mesma forma, como na década de 1980, os setores agroexpor-
tadores foram estimulados a desempenhar esse papel e o autodeno-
minado agronegócio passou a ser prioridade da política econômica
doméstica . Nesse sentido, como diz Delgado (2005), ocorre um ver-
dadeiro “relançamento” do agronegócio a partir de 1999, alavanca-
do por algumas medidas importantes de política: (1) um programa
prioritário de investimentos em infraestrutura territorial (os “eixos
territoriais de desenvolvimento”), visando à incorporação de novos
espaços territoriais, meios de transporte e corredores comerciais ao
6
Como o chamou Delgado (2005).
agronegócio (por exemplo, nas regiões Centro-Oeste e Norte do
país); (2) a reorganização da Empresa Brasileira de Pesquisa Agro-
pecuária (EMBRAPA) para operar o sistema público de pesquisa em
maior consonância com as empresas multinacionais (como exempli-
fica o caso dos transgênicos); (3) a “frouxidão da política fundiária”,
ou seja, sua relativa incapacidade de fiscalizar e regular o mercado de
terras, deixando fora do controle público as “terras devolutas”; e (4) a
desvalorização da taxa de câmbio real, de modo a tornar o agronegó-
cio novamente competitivo no comércio internacional .
Associado a uma conjuntura favorável de preços no mercado inter-
nacional, especialmente para a soja, o “relançamento” do agronegócio
levou a um crescimento do PIB agrícola de cerca de 4,6% a .a ., em
média, no período 2000/2003, bem acima das taxas médias anuais
do PIB total e do PIB industrial, de 1,8% e 1,5%, respectivamente .
Nesse contexto, a produção de soja cresceu de modo impressionante
atingindo 38 milhões de toneladas, em 2001, 42 milhões, em 2002, e
52 milhões, em 2003, de tal forma que soja e milho passaram a repre-
sentar 80% do total da produção de grãos no país em 20037 .
As exportações agropecuárias brasileiras também aumentaram de for-
ma expressiva neste período (quase 50%), passando de cerca de US$
20,6 bilhões, em 2000, para US$ 30,6 bilhões, em 2003 . Ademais, nes-
se último ano, União Européia (36%), Ásia (18%) e Estados Unidos e
Canadá (17%) foram destinatários de 71% do total dessas exportações .
O crescimento da participação da Ásia – que no início da década de
1990 era de 10% – foi talvez uma das mais importantes características da
evolução da pauta de exportações agrícolas, no período 2000/2003, e se
deveu basicamente ao enorme crescimento, desde então, das exportações
do complexo soja para a China . Nesse sentido, é possível dizer que o
Brasil conquistou uma condição de grande comercializador mundial de

7
Este processo foi acompanhado por um forte movimento de fusões e de aquisições de empresas no
setor agroindustrial de esmagamento de soja, provocando concentração econômica e desnacionalização
do setor: a participação do capital internacional no capital total investido elevou-se consideravelmente,
passando de 16% em 1995 para 57% em 2005 (Heredia, Palmeira & Leite, 2009:11-12) . As mudanças
mais intensas ocorreram no período 1995-2000 . Ver também Benetti (2004) .

Coletânea de Artigos 49
50 Brasil Rural em Debate

produtos agroalimentares nesse período, mas que ela foi acompanhada,


como vimos acima, por um processo crescente de monoculturização da
produção de grãos e de dependência exagerada da pauta de exportações
agrícolas do complexo soja (Soares, Romano, Delgado, 2004: 10-11) .
Do ponto de vista político e das perspectivas futuras do meio ru-
ral brasileiro, é fundamental assinalar que a década de 1990 pode ser
considerada um período crucial tanto para a continuidade do padrão
dominante de relações economia-meio rural no Brasil, quanto para a
progressiva elaboração de uma visão alternativa acerca do significado
do rural e do desenvolvimento rural e para a democratização das rela-
ções sociais e políticas no campo .
Essa situação, em nosso entender, é indissociável da ocorrência na
sociedade brasileira, a partir deste período, do que Dagnino (2004)
chamou, apropriadamente, de uma “confluência perversa” entre dois
projetos políticos contraditórios e em disputa e cuja ocorrência simul-
tânea se deveu a fatores bastante diversos .
Por um lado, o projeto político neoliberal, que se originou (e foi expres-
são) da restauração conservadora mundial liderada pelos Estados Unidos,
desde o início dos anos 1980, tendo em vista a retomada de sua hegemônia
econômica, política e militar que pareceu ameaçada, para suas elites, pelos
acontecimentos ocorridos, em várias dimensões, na década de 1970 .
No caso brasileiro, a política macroeconômica norte-americana de-
sencadeou, no início dos anos 1980, como vimos, a crise da dívida ex-
terna, obrigando o país a um ajustamento econômico unilateral, que
desestruturou a economia e fragilizou inteiramente a capacidade do Es-
tado formular políticas públicas ativas . Trata-se do que Delgado (2005)
chamou de “ajustamento constrangido à ordem econômica globalizada” .
Essa situação, que acompanhou a capitulação das elites diante da
ideologia da globalização, abriu caminho para a implementação do
projeto neoliberal com os dois governos Fernando Henrique Cardoso,
portadores da proposta (1) de privatização do setor produtivo estatal
e de redução do protagonismo do Estado no crescimento econômico,
(2) de ênfase no papel ativo das empresas internacionais em mercados
domésticos desregulados e liberalizados, através da abertura comercial,
e (3) do papel estratégico das exportações agrícolas para enfrentar o
estrangulamento recorrente da balança de pagamentos – especialmente
em uma economia que se estava tornando mais aberta e desregulada –
e para alavancar a retomada do crescimento da economia .
Por outro lado, desenvolvia-se o que se pode chamar de projeto po-
lítico democratizante, que teve sua origem na retomada da luta pela
democratização do país, desde o final dos anos 1970, e que ganhou
força com a democratização institucional em 1985 – apesar da frustra-
ção da derrota das “diretas já” – e com a nova Constituição Federal de
1988 . Na perspectiva dos atores do projeto democratizante – partidos
políticos e movimentos e organizações da sociedade civil – a retomada
da política e a reconstrução da democracia não deveriam ficar restri-
tas à indispensável reativação/redefinição das instituições democráticas
tradicionais, como partidos, parlamento, judiciário, eleições livres etc .
Tratava-se de democratizar não apenas o aparato formal do Estado,
mas a sociedade, e de implementar processos de descentralização das
atividades governamentais e da relação entre Estado e sociedade, ca-
pazes de implodir não o Estado como tal, mas o Estado autoritário,
privatizado e centralizado, herança da ditadura militar .
Neste sentido, os atores do projeto democratizante reivindicavam
o alargamento das noções de democracia – avançando para a idéia de
democracia participativa e não apenas representativa – e de público
– que não deveria ficar restrito apenas ao que o Estado define como
tal – incorporando a proposta de criação de novos espaços públicos
de participação que, ao viabilizarem a inclusão de novos atores so-
ciais (tanto urbanos como rurais) e o surgimento de novas práticas de
interlocução entre o Estado e a sociedade, vitalizariam a tentativa de
viver a transição democrática como um processo de democratização de
uma sociedade autoritária e excludente, no sentido de transformação
da cultura política predominante e de uma maior compatibilização
entre esfera pública e sistema político, como requisitos necessários ao
fortalecimento da governança democrática no país .

Coletânea de Artigos 51
52 Brasil Rural em Debate

A Constituição de 1988 foi, neste aspecto, uma conquista funda-


mental, pois viabilizou a criação de esferas públicas de participação –
concebidas não como instituições estatais, mas sim como instituições
públicas das quais fazem parte representantes do Estado e da socie-
dade civil – cujos objetivos primários são o avanço da democratiza-
ção relativa ao controle social e à descentralização de várias políticas
públicas setoriais . Assim surgiram os diversos conselhos municipais
e estaduais, tanto urbanos quanto rurais, além de alguns conselhos
nacionais, como o Conselho Nacional de Segurança Alimentar e Nu-
tricional (CONSEA) – criado no Governo Itamar Franco, extinto
pelo Governo FHC e recriado no Governo Lula – e o Conselho Na-
cional de Desenvolvimento Rural Sustentável (CNDRS), surgido no
primeiro Governo FHC e passando a assumir a sigla CONDRAF
no Governo Lula, tendo em vista subsidiar a formulação das políti-
cas públicas sob responsabilidade do Ministério de Desenvolvimento
Agrário que incidem sobre os temas do desenvolvimento rural sus-
tentável, da agricultura familiar e da reforma agrária .
Note-se, além disso, que a prática das conferências nacionais, esta-
duais e municipais foi sendo fortalecida a partir da década de 1990,
até chegar a seu auge no Governo Lula, como um instrumento indis-
pensável de aprendizado e de mobilização em torno da construção de
agendas de reivindicações da sociedade civil com vistas a influenciar
a formulação e a implementação de políticas públicas setoriais (saú-
de, educação, meio ambiente, cidades, desenvolvimento rural etc) .
Uma das manifestações fundamentais do projeto neoliberal em re-
lação ao rural e à agricultura, em particular, foi o incentivo dado ao
aumento da produção para a exportação, através de políticas públicas
e de outras benesses governamentais, de modo a viabilizar a obtenção
contínua de superávits crescentes na balança comercial, em função da
exigência de gerir a conta de transações correntes do balanço de paga-
mentos do país, tornada uma questão prioritária de política, a partir da
década de 1980, devido aos desequilíbrios provocados pelo endivida-
mento externo, pela abertura progressiva da economia à globalização,
pela instabilidade conjuntural característica da liberdade de movimen-
to dos capitais internacionais pós anos 1980, e pelo comportamento
dos preços internacionais das commodities agrícolas .
Assim sendo, a estratégia de ajustamento externo do projeto neoliberal
aprofundou consideravelmente a especialização da agricultura brasileira
na produção para exportação, o que transformou o chamado agronegó-
cio – em especial nos complexos de milho e soja, cana-de-açuçar, papel
e celulose, e pecuária bovina – no principal protagonista e no grande
beneficiário deste projeto no meio rural8 . A intensa complementaridade
estrutural entre expansão do agronegócio e “ajustamento constrangido à
globalização” passou, então, a partir do final dos anos 1990, a represen-
tar o principal papel a ser desempenhado pela agricultura na economia .
Essa opção de política deu ao agronegócio um caráter de “imprescindi-
bilidade”, fortalecendo sua projeção e peso políticos diante do Estado e
da sociedade, e aumentando sua presença política e sua exposição favo-
rável na mídia . Tornou-se, então, portador da proposta dominante de
desenvolvimento para a agricultura brasileira que, em sua essência, tenta
atualizar para os tempos e para a ideologia da globalização o tradicional
modelo de modernização da agricultura, concentrador, excludente e des-
truidor do meio ambiente, predominante desde a década de 1970 .
Do lado do mundo do trabalho no meio rural, as profundas transfor-
mações ocorridas nas décadas de 1970 e 1980 – não apenas nas relações
econômicas e sociais, mas na própria reflexão sobre o significado da mo-
dernização agrícola e da multidimensionalidade de seus efeitos – provo-
caram uma significativa diferenciação das categorias sociais existentes,
que passaram a reivindicar identidades próprias e a se constituir como
atores políticos diversificados no cenário nacional . Com isso, “ocorreu

8
O conceito de agronegócio que estamos utilizando não é o de agroindústria, nem o de cadeia pro-
dutiva. Estamos considerando neste texto o agronegócio no Brasil como um bloco econômico e de
poder bastante amplo e internacionalizado, relacionado a diversas atividades agrícolas, agrárias e
agroindustriais domésticas, e que inclui produtores e empresários capitalistas, latifundiários, e seto-
res industriais e financeiros nacionais e estrangeiros. O caráter macro do texto justifica o tratamento
do agronegócio como um bloco monolítico, da mesma forma que, em abordagens semelhantes, se
fala, por exemplo, do Estado, da sociedade civil e do mercado como um agregado. Qualquer análise
concreta da economia, da sociedade e da política do agronegócio exige, no entanto, o rompimento
deste monolitismo em favor da análise da diversidade, heterogeneidade e especificidade de seus
componentes e de suas relações com o Estado e a sociedade, em distintas territorialidades.

Coletânea de Artigos 53
54 Brasil Rural em Debate

uma “implosão” da categoria “trabalhador rural” tal como constituída


nos anos 70, acompanhada pela emergência de diversas possibilidades
organizativas que romperam com a tradição unitária de representação
do sindicalismo rural”9 . As alternativas que surgiram, dentro e fora do
universo sindical, tenderam a contestar o monopólio da CONTAG na
representação dos trabalhadores rurais no campo, assim como introdu-
ziram novos temas e novas demandas em sua pauta de reivindicações .
Das novas identidades surgidas, três ganharam uma considerável
importância política ao longo dos anos 1990, os “sem-terra”, os “as-
sentados” e os “agricultores familiares”, em função da intensidade e
abrangência das tensões e das lutas sociais existentes, do avanço da
crítica, intelectual e política, ao modelo dominante de modernização,
e da consciência crescente de que o fortalecimento desses movimentos
sociais e o atendimento das demandas de seus representados exigiam
entrar pesadamente na disputa pelos recursos públicos administrados
pelo Estado por meio das políticas públicas . Ou seja, de que os movi-
mentos sociais rurais deveriam encarar a luta por seu reconhecimento
pelo Estado, e não mais colocar-se “de costas” para ele, o que significa-
va lutar pela conquista de políticas públicas diferenciadas e adequadas
às demandas das categorias sociais que representavam, e que, além dis-
so, seriam indispensáveis para o aprendizado concreto e cotidiano da
construção de um modelo de desenvolvimento rural alternativo .
Nesse sentido, os sem-terra e os assentados são as identidades sociais
que se forjaram mais diretamente na reivindicação pela reforma agrária,
entendida aqui como uma transformação política, econômica e social in-
dispensável para a democratização do campo e para a mudança do padrão
de modernização predominante . Principalmente por meio do protagonis-
mo do MST, mas não apenas, a identidade de sem-terra e de assentados
espalhou-se progressivamente por todo o país, superando sua base sulista
inicial, transformando os assentamentos de reforma agrária, apesar de sua
fragilidade, em “espaços de produção, sociabilidade e intervenção políti-
ca”, como diz Medeiros (2001: 114), e promovendo mobilizações de ca-

9
Medeiros (2001: 109) . No que segue, faremos livre uso deste excelente ensaio sobre os conflitos sociais
e as formas de organização dos trabalhadores rurais brasileiros no período que estamos considerando .
ráter nacional, como a “marcha dos sem-terra” a Brasília, em 1997, que
obrigaram a mídia a lhes dar visibilidade pública e ao Governo FHC, no
final dos anos 1990, a responder com algumas ações políticas tentando
assumir uma maior iniciativa no debate sobre a reforma agrária10 .
A outra identidade social rural importante, que surge na década
de 1990, é a de “agricultores familiares”, que vem substituir a de “pe-
quenos produtores”, dominante nos anos 1980 . Algumas razões para
isso são11: (1) a perda de relevância política dos assalariados rurais;
(2) a maior complexidade social e política dos pequenos agricultores,
tanto em termos de suas demandas e mobilizações, como de suas li-
deranças, que passam a ganhar maior peso no sindicalismo em todo o
país, através principalmente das chamadas “oposições sindicais”; (3)
a progressiva decepção com a modernização da agricultura e sua in-
capacidade de atender às demandas desses agricultores, bem como o
surgimento de várias “questões” correlatas, como a das tecnologias al-
ternativas, da organização produtiva, da comercialização, da agroin-
dustrialização, do meio ambiente etc ., o que acelerou a percepção
em torno da necessidade de um novo modelo de desenvolvimento;
e (4) a intensificação da reflexão intelectual e do debate sobre a per-
manência, o significado e a importância econômica e social da agri-
cultura familiar para um desenvolvimento rural mais democrático e
inclusivo, tomando principalmente como referência o conhecimento
da experiência européia, que muitas assessorias e lideranças sindicais
passaram a ter acesso através de intercâmbios promovidos pela Igrejas
Católica e Luterana e por ONGs .
Como resultado, a categoria agricultor familiar passou a ser colocada
no centro da discussão sobre políticas públicas para o campo, trazendo
uma nova valorização e dando novos significados a temas relativos à pro-
dução, escolha de técnicas, comercialização, agroindustrialização, preços

10
Essa mobilização do Governo FHC foi também impulsionada pelo repúdio nacional e internacional
aos massacres de sem-terra em Corumbiara (agosto de 1995) e Eldorado de Carajás (abril de 1996).
Como consequência, o Governo FHC criou, inclusive, o cargo de Ministro Extraordinário de Polí-
ticas Fundiárias.

11
Medeiros (2001) .

Coletânea de Artigos 55
56 Brasil Rural em Debate

e crédito, associativismo, meio ambiente etc ., além do tema comum da


reforma agrária, de modo que, a partir de então, ganha relevância e ur-
gência política, especialmente para o movimento sindical, a proposta de
construção de um “projeto alternativo de desenvolvimento rural com
base na agricultura familiar”, que, pela primeira vez em todo o país,
afirma a possibilidade de um projeto alternativo (à modernização con-
servadora e ao agronegócio) de desenvolvimento fundado na agricultura
familiar12 .
A generalização dessa identidade e dessa proposta de projeto por todo
o país, deixando de ser uma questão meramente sulista (como aconte-
ceu, analogamente, com as categorias de sem-terra e de assentado), foi
impulsionada por vários fatores, entre os quais: (i) as transformações
econômico-sociais do meio rural que se espalharam progressivamente
por todo o país, (ii) as grandes mobilizações nacionais, como os “Gri-
tos da Terra”, realizadas para influenciar o Estado e as políticas públicas
e para ganhar visibilidade e apoio da sociedade, (iii) o surgimento de
um sindicalismo identificado essencialmente com a agricultura fami-
liar, como é o caso, por exemplo, da FETRAF, e (iv) o redescobrimento
do espaço local, inicialmente o município – em função do processo de
descentralização das políticas públicas consagrado pela Constituição de
1988 e das esferas públicas de participação municipais criadas para con-
trolar socialmente sua gestão e execução – estimulou/obrigou os sindica-
tos e as diversas associações de agricultores familiares a complexificarem
sua forma de atuação na política municipal e a perceberem com mais
clareza as demandas e os interesses dos agricultores para influenciarem o
processo de descentralização das políticas públicas em várias áreas (saú-
de, educação, desenvolvimento rural, gênero, geração etc .) .
Em função do contexto acima descrito, nossa hipótese neste ensaio
é a de que os movimentos pela reforma agrária e pela construção de
um modelo alternativo de desenvolvimento rural baseado na agricultura
familiar e o surgimento das identidades rurais de sem-terra, assentado e
agricultor familiar vão representar, na década de 1990, os portadores po-
12
A referência a esta proposta aparece explicitamente no Projeto CUT/CONTAG, Desenvolvimento e
Sindicalismo Rural no Brasil de 1998 (Medeiros, 2001: 116) .
liticamente mais importantes do projeto democratizante no meio rural
brasileiro e que vão disputar com o agronegócio o reconhecimento do
Estado como interlocutores privilegiados no debate em torno das políti-
cas públicas para o meio rural e a hegemonia na construção de propostas
de desenvolvimento para o campo . Apesar da indiscutível força política
do agronegócio, o projeto democratizante no meio rural não pode ser
subestimado, inclusive em sua capacidade de influenciar progressiva-
mente as políticas públicas, como o demonstram, por exemplo, a criação
do PRONAF, em 1996, uma conquista decisiva para o reconhecimento
da importância nacional dos agricultores familiares, e a implementação,
a partir de 1992, do sistema de Previdência Social Rural, universalizando
direitos sociais previstos na Constituição de 1988, com grande impacto
social e econômico entre os agricultores familiares .
Assim, herdamos da década de 1990 uma disputa por propostas de
desenvolvimento, políticas públicas e significados entre dois projetos
políticos alternativos, o projeto neoliberal do agronegócio, pautado fun-
damentalmente pela expansão da agricultura de exportação estrutural-
mente complementar ao “ajustamento constrangido à globalização”, e
o projeto democratizante, representado inicialmente no meio rural pela
proposta de reforma agrária e de desenvolvimento rural fundado na agri-
cultura familiar, mas que deverá incorporar posteriormente novos atores
e propostas, e que é pautado, entre outros elementos, pela afirmação da
expansão da agricultura de mercado interno, do reconhecimento dos
direitos sociais das populações rurais, da democratização do acesso às
políticas públicas e do objetivo fundamental da segurança alimentar e
nutricional da população brasileira .
Não se trata, obviamente, de dois projetos estanques, que não se re-
lacionam . Pelo contrário, seus relacionamentos são inúmeros, e o com-
portamento de um influencia as possibilidades e as características que
vão ser assumidas pelo outro . Por exemplo, faz parte do projeto demo-
cratizante a reivindicação por formas de regulação pública da atuação do
agronegócio e por maior transparência em seu relacionamento com o
Estado . Há também possibilidades de complementaridades e de alianças
entre atores de cada um dos projetos em situações específicas . Mas, de

Coletânea de Artigos 57
58 Brasil Rural em Debate

modo geral, a relação entre os dois projetos é uma relação conflitiva,


a qual se manifesta em diversos aspectos, dentre os quais destacamos:
(1) as propostas de desenvolvimento rural de que são portadores, (2) as
fontes de crescimento de que dependem: do crescimento do mercado
interno num caso, da contínua abertura de mercados externos em outro,
e (3) os padrões e os instrumentos de política pública que privilegiam e
reivindicam .

1.4 O Governo Lula: oportunidades abertas para o projeto


democratizante e continuidades do projeto neoliberal.
O CONDRAF e o significado do rural
A eleição de Luis Inácio Lula da Silva para presidente do país, em
2003, foi uma clara conquista do projeto político democratizante: trata-
va-se de um sindicalista dos anos 1980, fundador e candidato histórico
do Partido dos Trabalhadores (PT), apoiado pelos movimentos sociais
urbanos e rurais, todos atores relevantes desse projeto . No entanto, os
compromissos de campanha, o lançamento da Carta ao Povo Brasileiro,
a composição ministerial, a bancada de apoio no Congresso e a política
macroeconômica adotada indicaram, desde cedo, que o novo governo
não iria promover um rompimento com o projeto neoliberal da magni-
tude que se esperava, não obstante a mudança de rumo empreendida em
relação ao reforço do papel do Estado na economia, o maior controle da
abertura externa, a revalorização das empresas estatais e a recusa em dar
continuidade às privatizações .
Nossa intenção não é realizar aqui uma análise da atuação do Governo
Lula em relação ao meio rural com os detalhes que fizemos na conside-
ração dos períodos anteriores . Tentaremos, ao invés, sugerir alguns ele-
mentos que, em nossa opinião, representam continuidades do governo
com o projeto neoliberal, bem como sublinhar outras atitudes e medidas
do governo que significam a abertura de claras janelas de oportunidade
para o avanço do projeto democratizante no meio rural . Essa tentativa
de criar oportunidades para fazer progredir o projeto democratizante,
sem promover rupturas significativas com o projeto neoliberal parece ser
uma das características da complexidade do Governo Lula, cujos resul-
tados políticos só poderão ser plenamente avaliados no futuro . De qual-
quer modo, foi precisamente nesta onda de oportunidades criadas para
avançar o projeto democratizante que foram feitas muitas tentativas para
avançar na redefinição do significado tanto do conceito de rural, como
da noção de desenvolvimento rural sustentável .
Entre os elementos que denotam continuidade do Governo Lula
com o projeto neoliberal, especialmente em relação à agricultura e ao
meio rural, podemos sugerir:

1 . A manutenção, pelo menos em parte, do “ajustamento constrangido à


globalização”, especialmente no primeiro governo, com uma política
macroeconômica que manteve a relativa contenção dos gastos gover-
namentais; a restrição da oferta monetária associada a elevadas taxas
de juros (das mais altas do mundo); o monitoramento da taxa de
câmbio, alternando desvalorizações e valorizações, com um olho na
balança de pagamentos e outro na inflação; e a abertura da economia
e o livre movimento de capitais .
Uma das consequências desse receituário de política macroeconô-
mica é o caráter instável que a taxa de crescimento da economia ten-
de a assumir, sempre dependente das expectativas e das crenças dos
formuladores da política econômica em relação ao comportamento
da restrição externa e/ou da inflação . Isso ocorreu principalmente
no primeiro governo: em 2003, a taxa de crescimento da economia
foi de 1,1%; em 2004, de 5,7%; em 2005, de 2,9%; em 2006, de
3,7%; enquanto, em 2007, foi de 5,4% e de 5,1%, em 2008 . Por
outro lado, outras de suas características marcantes, a obtenção de
superávits crescentes na balança comercial, foi mantida e reforçada .
Como diferenças não desprezíveis em relação ao ajustamento ante-
rior, devem ser destacados, no entanto, a suspensão da continuidade
das privatizações do setor produtivo estatal e a adoção de uma políti-
ca externa mais independente em relação aos Estados Unidos, o que
Coletânea de Artigos 59
60 Brasil Rural em Debate

redundou, entre outras iniciativas, numa maior aproximação com os


novos governos da América do Sul, na interrupção das negociações
para a criação da ALCA (assim como do Acordo Mercosul-União
Européia), uma maior abertura para as negociações comerciais e o
intercâmbio diplomático com os países do Sul, e a criação de um
bloco de países em desenvolvimento para participar nas negociações
comerciais internacionais sobre agricultura na OMC, o G 20 (que
inclui a Índia, China, África do Sul, Nigéria, Argentina, Indonésia,
entre outros), e que se tornou um participante dos mais destacados
nessas negociações .
Note-se, ademais, que, à diferença do que ocorreu nos governos
anteriores, a conjuntura internacional favorável, que acompanhou
o Governo Lula até o final de 2008, foi aproveitada para reduzir
consideravelmente a dívida externa brasileira e aumentar signifi-
cativamente as reservas internacionais, com isso tornando o país
relativamente mais resistente a mudanças bruscas na conjuntura
internacional e a possibilidades de fuga de capitais .
2 . A importância do agronegócio continuou intocada na economia
e na política brasileiras, em função da manutenção de seu papel
estratégico para o ajustamento da conta de transações correntes da
balança de pagamentos, de modo que, não obstante as importantes
mudanças ocorridas na política externa brasileira, o agronegócio
continua determinando a agenda de negociações comerciais inter-
nacionais sobre agricultura do Brasil13 . Sua expansão, na primeira
década dos anos 2000, foi grandemente estimulada pela tendência
à elevação dos preços das commodities agrícolas no mercado inter-
nacional devida especialmente ao aumento da demanda e determi-
nada pela entrada maciça no comércio mundial de países da Ásia,
como a Índia e, muito especialmente, a China . O caso da soja foi
13
Não obstante o fato de que na Conferência Ministerial da OMC em Cancun, em setembro de 2003,
os interesses da agricultura familiar estiveram representados, pela primeira vez na história da diplo-
macia brasileira, na delegação presente à Conferência. Para uma descrição e análise do significado
dessa experiência, consulte-se Delgado (2007).
marcante neste sentido, mas não único . Ademais, a expansão dos
produtos de exportação foi também garantida pela política econô-
mica governamental e pela prática recorrente de renegociação e de
rolagem das dívidas dos grandes produtores14 .
A expansão do agronegócio e de seus produtos de exportação em
direção ao Norte e à região Amazônica pressionou de forma consi-
derável o desmatamento na região, assim como a estrutura fundiária
regional, provocando recorrentes conflitos fundiários com pequenos
produtores, posseiros, seringueiros e povos indígenas . Nesse aspec-
to, os conflitos no campo não foram atenuados na região Amazôni-
ca durante o Governo Lula e a manutenção do agronegócio como
principal elemento de ajuste das contas externas do país teve como
contrapartida uma perigosa, e controversa, ameaça à preservação am-
biental e à segurança das populações rurais na região, que se expressa
inclusive por meio de intensa pressão sobre a legislação ambiental
existente (Código Florestal, Áreas de Reserva Legal e de Preservação
Permanente, Sistema Nacional de Unidades de Conservação) .
3 . O peso do agronegócio na economia, na política e no próprio gover-
no influenciou a decisão governamental de permitir o crescimento da
produção de produtos transgênicos, em particular da soja, não obs-
tante a vigorosa oposição de todos os movimentos sociais rurais e de
inúmeras ONGs . Neste particular, é notável o grau de proximidade
que se foi consolidando entre técnicos e agências governamentais e
empresas multinacionais produtoras de sementes transgênicas, como
a Monsanto, o que redundou na formação de um forte lobby a favor
da liberação dos transgênicos, mesmo dentro do governo .

14
Segundo informações reproduzidas por Heredia, Palmeira & Leite (2009: 23), “de 1997 a 2006, o
custo público com a rolagem da dívida atingiu o valor de R$ 10,433 bilhôes, enquanto o subsídio ao
exercício das políticas setoriais chegou a R$ 16,328 bilhões. Ou seja, praticamente 40% dos recursos
governamentais com essas despesas setoriais “indiretas” foram direcionados ao saneamento das dí-
vidas do agronegócio”. Ademais, segundo os autores, o grosso do endividamento concentra-se em
torno de 1.800 contratos (num universo de 3 milhões de agricultores).

Coletânea de Artigos 61
62 Brasil Rural em Debate

4 . De modo geral, a continuidade do aumento da produção de produtos


agropecuários de exportação, nos dois governos Lula, e a liderança es-
magadora do agronegócio nesse processo, praticamente eliminaram
qualquer preocupação mais consistente e permanente por parte do
governo com a mudança do padrão predominante de modernização
da agricultura, não obstante sua preocupação anunciada com a redu-
ção das desigualdades no campo, em especial por meio da inclusão de
agricultores até aqui excluídos do processo de modernização . Por um
lado, essa omissão manteve inalterados os processos de degradação
ambiental e de exclusão social associados a esse padrão de moderniza-
ção . Por outro, refletiu-se negativamente, em particular, nos agricul-
tores familiares tecnificados, usualmente produtores de produtos de
exportação, e que se encontram, em geral, endividados, com custos
de produção elevados e com consideráveis problemas ambientais .
O Programa Plano Safra Mais Alimentos, lançado em 2008 para
fortalecer a agricultura familiar diante da crise internacional, pode
talvez ser melhor percebido neste contexto . Aparentemente, não
foge ao modelo predominante de modernização agrícola, pois levou
a uma reconcentração dos recursos do PRONAF na região Sul, esti-
mulou o aumento da “tratorização” entre os agricultores familiares
desta região e facilitou o acesso aos recursos creditícios destinados
à agricultura familiar às cooperativas e agroindústrias familiares de
maior porte do Sul do país . Neste sentido, é tentador pensar o Pro-
grama como uma tentativa de atrair politicamente os agricultores
familiares modernizados desta região e como uma política governa-
mental específica para um tipo de agricultor familiar que – situado
em um limite nebuloso com o agronegócio – se considerou muitas
vezes abandonado pelo Governo Lula .
5 . As informações existentes parecem indicar uma inflexão na impor-
tância assumida pela reforma agrária no segundo mandato do Go-
verno Lula, quando o tema parece ter perdido prestígio dentro do
governo . Embora as metas do II Plano Nacional de Reforma Agrá-
ria (II PNRA) fossem relativamente tímidas, seus resultados ficaram
muito aquém: o número de famílias assentadas caiu continuamente
desde 2005 (seu ápice no Governo Lula), passando de 101 mil para
87,5 mil, em 2006; 29 mil, em 2007; e 21,5 mil, em 2008 (dados
do INCRA) . Na mesma direção, o Governo Lula praticamente de-
sistiu do mecanismo de desapropriação de terras para a reforma
agrária, pois a participação das terras desapropriadas no total das
terras arrecadadas para a reforma agrária caiu de 40% no segundo
Governo FHC para 5% no primeiro Governo Lula (IPEA) . Essa
situação parece refletir a desistência do governo em tentar promo-
ver alterações na legislação em vigor, frente às enormes resistências
encontradas, de modo que os índices de produtividade (que indi-
cam se um imóvel rural é passível ou não de desapropriação), por
exemplo, continuam mantidos em seus níveis de 1975 .
Essa relativa perda de prestígio da reforma agrária parece corrobo-
rar, na prática da gestão das políticas, uma concepção que separa
a reforma agrária das políticas destinadas à agricultura familiar, o
que aproxima, neste particular, o Governo Lula do Governo FHC
e tende a acentuar a diferença e o isolamento desses dois compo-
nentes do projeto democratizante no meio rural, como dois mo-
vimentos estanques e sem interação . É destacável, por exemplo, a
ausência, quase geral, do tema reforma agrária nas proposições de
política pública decorrentes da nova institucionalidade criada para
a gestão social dos territórios rurais de identidade estabelecidos pela
Secretaria de Desenvolvimento Territorial (SDT) .
Entretanto, as observações acima não contam toda a estória . A exis-
tência do Governo Lula, desde 2003, também abriu, em nossa opinião,
um conjunto importante de oportunidades para o aperfeiçoamento e a
consolidação do projeto democratizante no meio rural . Vejamos algu-
mas dessas oportunidades abertas:
1 . A vitória de Lula em 2003 representou um enorme estímulo para
a mobilização da sociedade civil em torno da concepção de de-
mocracia participativa e para a criação de novos espaços públicos
de participação em várias áreas (segurança alimentar e nutricional,
Coletânea de Artigos 63
64 Brasil Rural em Debate

cidades, meio ambiente, saúde, desenvolvimento rural sustentável


e solidário etc .), que se manifestaram por meio da convocação de
conferências municipais, estaduais e nacionais nessas áreas temá-
ticas . Embora os resultados concretos dessas mobilizações sobre o
fazer política pública no Brasil variem de área em área e ainda este-
jam por ser plenamente demonstrados, parece indiscutível que esses
espaços públicos mobilizaram um grande número de participantes
de organizações e de movimentos da sociedade civil, bem como de
gestores governamentais, e se tornaram um inestimável espaço de
aprendizagem para a construção de agendas de demandas da socie-
dade por políticas públicas nessas áreas .
Além disso, a força política dessas mobilizações e iniciativas, a com-
plexidade e a abrangência de seus conteúdos e a reflexão metodoló-
gica e conceitual que pressupuseram legitimaram os temas tratados
como prioritários no debate sobre políticas públicas . Dificilmente
os governos poderão, a partir de agora, simplesmente voltar as cos-
tas para políticas públicas para o meio rural que se refiram, por
exemplo, a temas como segurança alimentar e nutricional, meio
ambiente, e desenvolvimento rural sustentável, sem incorrer em
custos políticos provavelmente consideráveis .
2 . A política social e de distribuição de renda do Governo Lula tem
sido um dos pontos fortes que alimentam o projeto democratizan-
te, tanto nas cidades como no campo . Por um lado, um conjunto
de programas sociais, dentre os quais se destaca o Bolsa Família,
melhorou as condições de vida das parcelas mais desprotegidas da
população e, ao mesmo tempo, quando somados aos benefícios da
previdência social rural e de outras políticas destinadas aos agri-
cultores familiares, propiciou a revitalização de pequenas cidades e
comunidades rurais no interior do Brasil, em especial no Nordeste,
aumentando a renda, o emprego e o consumo de suas populações .
Por outro lado, o aumento do salário mínimo real durante o Gover-
no Lula, juntamente com a continuidade do processo de descon-
centração regional da produção (industrial e agrícola) nacional, que
já vem de longe, pode estar estimulando não apenas uma retomada
do crescimento econômico a partir de 2007 – com uma taxa real
anual de crescimento do PIB (a preços de 2008) de 5,7%, que se
manteve em 5,1%, em 2008, não obstante a crise financeira mun-
dial desencadeada a partir de setembro –, mas uma mudança no
padrão deste crescimento .
Como defende Bacelar (2008b: 26), em 2007, “quem puxou o
crescimento do PIB no Brasil não foram mais as exportações, foi
o consumo interno e o investimento . E dentro do consumo inter-
no, foi o consumo da base da pirâmide social . . . que já tem mais
de 80 milhões de consumidores . . . E, regionalmente, quem puxou
o consumo na base da pirâmide foram os estados mais pobres do
Brasil”, no Nordeste e no Norte15 . Segundo a autora (BACELAR,
2008; 9-10), este aumento do consumo das camadas de baixa renda
se explica pela melhoria da renda do trabalho no período, que se
deve à redução da inflação, ao aumento do salário mínimo real e à
elevação do crédito ao consumidor e o alargamento de seus prazos .
Se essa mudança no padrão de crescimento da economia for confir-
mada e puder se manter nos próximos anos16, representará um ex-
traordinário incentivo para o fortalecimento do projeto democrati-
zante no meio rural, por meio, entre outros fatores, do aumento da
demanda interna de alimentos e de seus efeitos sobre a expansão da
agricultura familiar no país .
3 . O Governo Lula montou um aparato governamental mais consistente
e abrangente de apoio à agricultura familiar e a outras populações e

15
De acordo com a autora, o crescimento das vendas no comércio varejista do país, no período 2003-
2007, foi liderado pelos estados do Nordeste, seguidos de estados do Norte .

16
Embora a crise mundial tenha afetado negativamente a economia brasileira, especialmente seu setor
exportador, seus efeitos deletérios foram menores do que em outras economias do sistema internacional,
em parte devido a este crescimento do mercado interno . Embora o PIB real (a preços de 2008) não
tenha aumentado em 2009, as previsões do sistema produtivo brasileiro, segundo IPEA (2010), são de
um crescimento de cerca de 5,2% em 2010 .

Coletânea de Artigos 65
66 Brasil Rural em Debate

povos habitantes do meio rural17 . Apesar das dificuldades e fraquezas


ainda existentes e da enorme disparidade em relação ao Ministério da
Agricultura, Pecuária e Abastecimento, o Ministério do Desenvolvi-
mento Agrário (MDA) passou a assumir uma condição de ministério
que trata das questões e dos temas relativos ao fortalecimento e à con-
solidação da agricultura familiar no país, bem como ao reconhecimen-
to do direito ao acesso a políticas públicas e à reprodução econômica
e social sustentável da diversidade de populações e povos existentes no
meio rural, muitos deles condenados anteriormente à “invisibilidade” .
Com efeito, além dos agricultores familiares, os assentados da re-
forma agrária, extrativistas, ribeirinhos, quilombolas, indígenas,
pescadores artesanais e aquicultores, seringueiros, povos da floresta,
e outros públicos passaram a ser considerados beneficiários das po-
líticas e dos programas do MDA . Um exemplo dessas iniciativas foi
o lançamento, em 2007, da Política Nacional de Desenvolvimento
Sustentável dos Povos e Comunidades Tradicionais .
Isso faz grande diferença porque significa, de alguma forma, o reco-
nhecimento explícito da existência de outro tipo de agricultura no
país, além do agronegócio, e que essa agricultura – que construiu
uma identidade como agricultura familiar a partir da década de 1990,
como vimos – tem abrangência nacional, é bastante diversificada e
deve ser fortalecida, dada a admissão de sua importância para a pro-
dução (especialmente para o abastecimento alimentar doméstico), a
geração de empregos e a defesa do meio ambiente . Significa também
o reconhecimento da enorme diversidade cultural, econômica e so-
cial do rural brasileiro que abriga um amplo conjunto de populações
e de povos, cuja saída da “invisibilidade”, através da conquista de
direitos sociais universais e de políticas públicas diferenciadas, é uma
das atribuições primordiais de um Estado democrático .
Em relação às políticas de desenvolvimento rural baseado na agri-
cultura familiar podemos lembrar que:
17
Alguns marcos regulatórios importantes foram criados, como a Lei da Agricultura Familiar (Lei 11 .326
de 24 de julho de 2006) . Outros marcos regulatórios instituídos serão mencionados mais a frente .
a – a revitalização, o aumento extraordinário da disponibilidade
de recursos e a nacionalização do PRONAF foram pontos for-
tes dessas políticas18 . Embora os agricultores familiares mais
tecnificados e integrados aos mercados tenham sido o público
tradicional do programa desde sua criação, houve, a partir de
2003, uma elevação do acesso ao programa por parte de agri-
cultores mais pauperizados, em todas as regiões do país . Em
particular, cabe destacar o esforço feito pela criação de linhas
especiais de crédito para grupos de mais baixa renda (PRO-
NAF B, microcrédito), PRONAF A para assentados, mulheres,
jovens, agroindústria, agroecologia, agrofloresta, entre outros .
Em muitas regiões do país, as cooperativas de crédito foram
um instrumento destacado de viabilização do acesso ao crédito
pelos agricultores, da mesma forma que o BNB desenvolveu o
Agroamigo como uma metodologia particular de aplicação do
PRONAF B na região Nordeste;
b – foi criado o plano safra para a agricultura familiar por iniciativa
do CONSEA . Além de ser mais um elemento de reconheci-
mento da importância e da complexidade da agricultura fami-
liar na agricultura brasileira, o plano safra representa uma ten-
tativa de planejar anualmente o apoio à produção desse tipo de
agricultura, orientando a articulação das diferentes ações gover-
namentais a respeito (por exemplo, crédito, preços mínimos,
garantia de aquisição, seguro agrícola, assistência técnica etc);
c – foi construída uma política nacional de reestruturação do pro-
grama de assistência técnica e de extensão rural para os agri-
cultores familiares, quilombolas, assentados, pescadores artesa-
nais, povos indígenas e outros públicos do MDA, tendo como
18
O volume total de crédito aplicado pelo PRONAF passou de R$ 2,3 bilhões na safra 2002/2003 para
R$ 10,7 bilhões na safra 2008/2009, o que significa um acréscimo de cerca de 365% (embora os re-
cursos do PRONAF representem apenas 14% do total de recursos financeiros registrados pelo Sistema
Nacional de Crédito Rural no período 2005-2009) . O processo de nacionalização do PRONAF ocorreu
principalmente no primeiro Governo Lula . Com o lançamento do Plano Safra Mais Alimentos em
2008, a Região Sul voltou a concentrar cerca de 50% dos recursos do Programa (contra 39% em 2006
e 56% em 2002) .

Coletânea de Artigos 67
68 Brasil Rural em Debate

alguns de seus pilares o desenvolvimento rural sustentável, a


descentralização da atuação por meio de agências e organiza-
ções estatais e não estatais, a inclusão de enfoques de gênero,
geração, raça e etnia em suas ações, e a adoção de metodologias
participativas que valorizem a iniciativa dos beneficiários e a in-
teração com seus conhecimentos e práticas produtivas . A Lei de
Assistência Técnica e Extensão Rural (ATER) foi promulgada,
em 11 de janeiro de 2010 (Lei n° 12 .188);
d – foi criado pela CONAB, do MAPA, o Programa de Aquisição de
Alimentos (PAA), que buscou complementar o PRONAF com a
perna que faltava: a da comercialização e da aquisição dos produtos
produzidos pelos agricultores familiares, circunscritas, porém, aos
produtos alimentares . Apesar de seu caráter ainda restrito (atingia
apenas 4% do total de agricultores familiares existentes no país em
2008) e dos problemas de operacionalização que ainda enfrenta, o
PAA tem sido avaliado, inclusive pelos movimentos sociais, como
um dos programas promissores a serem melhorados e ampliados
em uma política de desenvolvimento rural baseado na agricultura
familiar, pois (i) mostra uma abertura da política pública para um
campo tradicionalmente vulnerável da agricultura familiar, o da co-
mercialização e da garantia de escoamento de seus produtos; e (ii)
realiza na prática a integração entre a política de segurança alimentar
e nutricional e a política agrícola voltada para a agricultura familiar .
4 . É preciso destacar a recriação do CONSEA pelo Governo Lula,
depois de sua extinção pelo Governo FHC, após um curto período
de vida durante o governo de transição de Itamar Franco . Embora
a ênfase na produção agrícola para exportação por parte do governo
coloque uma sombra de dúvida sobre a profundidade da prioridade
à segurança alimentar e nutricional, é indiscutível que a existência
do CONSEA ligado à Presidência da República representa também
um apoio essencial à temática de SAN pelo e dentro do governo .
Do ponto de vista do projeto democratizante no meio rural e sua
manifestação por meio da construção de um modelo alternativo de
desenvolvimento rural baseado na agricultura familiar, a temática ou
a meta da segurança alimentar e nutricional é fundamental porque
combina e elabora alguns componentes essenciais para o modelo al-
ternativo: (a) relativiza as vantagens de uma agricultura voltada para a
exportação; (b) destaca o direito à alimentação de qualidade como um
direito primário da população brasileira; (c) defende, como consequ-
ência, a prioridade da produção interna de alimentos de qualidade,
num volume compatível com o pleno acesso a esse direito: num país
das dimensões do Brasil, a segurança alimentar e nutricional nunca
vai poder ser atendida de forma permanente e satisfatória através do
comércio internacional; (d) a produção doméstica é priorizada ade-
mais porque incorpora a diversidade cultural existente no país e que
se expressa através de diferentes padrões regionais de alimentação e de
tipos de alimentos, o que se perderia com a homogeneização forçada
imposta por grandes volumes de importações; (e) como decorrência,
o fortalecimento e a consolidação da agricultura familiar, bem como
a melhoria da renda das populações urbanas e rurais, são objetivos
centrais da política de SAN; e (f ) o tema da segurança alimentar e
nutricional não é um tema setorial, mas multisetorial e multidimen-
sional, exigindo, portanto, um tratamento que contemple, como exi-
gência básica, a necessidade de articulação de políticas públicas de
diferentes áreas e origens setoriais .
5 . Sem pretender esgotar esta lista, pois ela pretende ser apenas um
exemplo das medidas governamentais que tendem a revigorar o
projeto democratizante no meio rural, cabe ressaltar, por fim, que
a adoção pela SDT/MDA de uma política de desenvolvimento ru-
ral territorial vem atender a uma demanda de representações de
movimentos sociais, de ONGs, de intelectuais, e de técnicos go-
vernamentais comprometidos com a concepção e formulação de
estratégias de desenvolvimento para o meio rural, desde antes do
Governo Lula .
Na verdade, a política de desenvolvimento territorial enquadra-se no
processo de democratização e de descentralização das políticas públicas

Coletânea de Artigos 69
70 Brasil Rural em Debate

para o mundo rural, na medida em que: (1) promove o surgimento de


uma institucionalidade territorial na qual a presença de esferas públicas de
participação de representantes do Estado e da sociedade civil nas decisões
acerca do desenvolvimento rural territorial busca ser predominante; e (2)
substitui o município pelo território como o espaço local de descentrali-
zação das políticas, em função da reflexão crítica feita no país a respeito
das limitações da experiência recente de desenvolvimento municipal e dos
exemplos colhidos na experiência internacional, especialmente européia .
Assim sendo, a política territorial pode ser uma oportunidade para tentar
viabilizar a confluência dos objetivos de desenvolvimento, democratização
e descentralização na implementação das políticas para o mundo rural,
por meio da territorialização das políticas públicas, da territorialização da
governança e da territorialização do desenvolvimento rural .
Neste aspecto, merece registro a criação, em 2008, do Programa Ter-
ritórios de Cidadania, que se pretende o principal instrumento do go-
verno federal para a superação da pobreza e das desigualdades sociais
no meio rural . Suas idéias-força principais são o conceito de território,
a abordagem do desenvolvimento territorial sustentável e a proposta de
articulação e coordenação de todas as políticas do governo federal desti-
nadas aos territórios (envolvendo cerca de 22 ministérios) . Já foram cria-
dos 120 Territórios de Cidadania no país, 70% dos quais concentrados
no Norte e no Nordeste .
Por fim, vamos fazer uma breve e provisória incursão no último do-
cumento do CONDRAF (2008), tentando apreender o tipo de apro-
ximação que faz ao conceito de rural, buscando perceber, pelo menos
no nível da linguagem utilizada, a evolução de seu significado, quando
o comparamos com os períodos anteriores tratados no texto . Neste
aspecto, vamos destacar três pontos que aparecem no documento .
Em primeiro lugar, segundo CONDRAF (2008: 56), o “Brasil ru-
ral comporta uma diversidade de ecossistemas, raças, etnias, religiões,
povos, culturas, segmentos econômicos e sociais, sistemas de produ-
ção, padrões tecnológicos, formas de organização social e política que
contribuem com a geração de postos de trabalho e de renda advinda
de atividades agropecuárias, florestais e não agropecuárias, com a pro-
dução de alimentos, matérias-primas e outros bens, além da realização
de serviços ambientais” .
Neste olhar, uma característica fundamental do rural é a diversi-
dade: de ecossistemas, populações, culturas, sistemas produtivos, for-
mas de organização social e política etc . E a diversidade não é apenas
distintiva do rural, mas é o seu patrimônio . Algo a ser valorizado e
não minimizado ou destruído . A força do rural, inclusive da perspec-
tiva estritamente econômica de geração de emprego e renda, depende
da capacidade de aproveitar as potencialidades dessa diversidade e de
utilizá-las de forma sustentável .
Assim, o olhar sobre o rural é radicalmente diverso daquele produzido
pelos ideólogos e executores da modernização conservadora da década de
1970 . Embora a diversidade, é óbvio, também estivesse presente naquela
época – quem sabe de forma até mais intensa-, não era ela que se procu-
rava enxergar . Pelo contrário, o rural era o agrícola (um de seus aspectos)
e o valorizado era a homogeneidade, o produzir os mesmos produtos,
em grandes extensões e da mesma forma, o difundir a mesma cultura,
a mesma forma de organização social etc . Essa diferença de olhares nos
indica, portanto, que a idéia que temos sobre o rural vai ser sempre uma
construção intelectual e política . E que a construção que temos hoje é
radicalmente diversa da revolução verde, porque a diversidade está no
centro da idéia de rural . Desenvolvimento, democratização e sustentabi-
lidade do rural se tornaram conceitos indissociáveis da preservação e da
valorização da diversidade: de formas de organização políticas, sociais e
econômicas, de sistemas e formas de produção, de grupos sociais, popu-
lações e povos, de culturas, de ecossistemas etc .
Em segundo lugar, de posse dessa ruralidade ampliada, o documento
CONDRAF (2008: 55 e 59) vai remarcar, na trilha aberta pelos traba-
lhos pioneiros de José Eli da Veiga, que o Brasil rural é maior do que as
estatísticas do Censo do IBGE tendem a mostrar . Ou seja, cerca de 85%

Coletânea de Artigos 71
72 Brasil Rural em Debate

do total dos municípios brasileiros podem ser considerados como rurais,


abrangendo aproximadamente 30% de toda a população brasileira . Isto
é, o Brasil rural é bem maior e mais complexo quando “são valorizadas
outras dimensões importantes, como a relação com os recursos naturais
e os ecossistemas; a produção de conhecimentos e saberes; o patrimônio
cultural; a organização social e as inter-relações existentes entre o rural e o
urbano e entre as atividades agropecuárias, não agropecuárias e extrativas” .
Em terceiro lugar, o documento CONDRAF (2008: 54 e 57), coerente
com a colocação da diversidade no centro de seu olhar sobre o rural, des-
taca a importância de que se reconheça no Brasil rural a presença de um
grande número de “personagens”, de grupos sociais distintos, quando con-
siderados de diversas perspectivas – como sua forma de organização social
e de produção, sua cultura, sua religiosidade, sua integração aos mercados,
sua relação com a natureza, sua identidade social etc . Existe um conjun-
to de grupos ou segmentos sociais definidos como povos e comunidades
tradicionais que, segundo a Política Nacional de Desenvolvimento Susten-
tável dos Povos e Comunidades Tradicionais, compreende: quilombolas,
indígenas, pescadores artesanais, marisqueiras, ribeirinhos, extrativistas,
seringueiros, moradores de áreas de fundo de pasto, retireiros, torrãozei-
ros, geraizeiros, quebradeiras de coco, faxinalenses, vazanteiros, ciganos,
pomeranos, pantaneiros, caatingueiros, caiçaras, cabanados e outros .
Deixando de lado o que se chama de agricultura patronal, em al-
gumas análises, ou de agronegócio, em outras, existe ainda um am-
plo conjunto de grupos ou segmentos sociais reconhecido pelo docu
mento – e que seriam talvez enquadrados, no passado, na categoria
trabalhadores rurais –, que ocupam lugares diferentes na estrutura eco-
nômica e social do Brasil rural, e possuem identidades muitas vezes
diversas: agricultores familiares, camponeses, assentados, acampados,
agregados, assalariados, parceiros, meeiros, posseiros, arrendatários, re-
assentados pelas obras de infraestrutura, agricultores atingidos por bar-
ragens, artesãos rurais etc . Além de outras categorias, como pequenos
comerciantes e industriais, prestadores de serviços públicos etc .
Importa para nós sublinhar neste particular dois aspectos: (1) que o re-
conhecimento pelo CONDRAF dessa enorme diversidade de identidades
sociais existente no Brasil rural, muitas delas até há pouco tempo inexis-
tentes, pois se tratava de grupos sociais “invisíveis” para o Estado e para a
sociedade, já é, por si só, um reflexo do avanço do projeto democratizante
no meio rural; e (2) que a existência dessa diversidade de identidades e
de atores sociais, com força política e poder de barganha muito desiguais
frente à sociedade e ao Estado, torna mais complexa a condução e o con-
teúdo do projeto democratizante e a formulação de estratégias de desen-
volvimento sustentável para o Brasil rural, tema sobre o qual voltaremos
brevemente no próximo item .

1.5 Comentários finais


Para encerrar este texto, dando continuidade à trajetória seguida em sua
elaboração, vamos chamar a atenção para três conjuntos de questões que
representam obstáculos, desafios e oportunidades para avançar na concep-
ção e na implementação do processo de desenvolvimento rural no Brasil .
Primeiro o obstáculo . Como o texto procurou argumentar, o maior
obstáculo ao desenvolvimento rural no Brasil vem do peso político do
agronegócio e do papel central que desempenha na estratégia de espe-
cialização na exportação de produtos agropecuários como forma predo-
minante de ajustamento da conta de transações correntes do balanço
de pagamentos . Este é o papel da agricultura na economia definido e
consolidado pelo projeto neoliberal e que tem sua raiz nos desequilíbrios
econômicos desencadeados pela crise externa, na década de 1980, e na
escolha por um caminho de liberalização e de integração da economia
à globalização, na década de 1990 . Essa opção dos anos 1990 relançou
a velha idéia da vocação agrícola e agroexportadora do Brasil, travestida
agora de agronegócio, e o fez em detrimento de uma vigorosa e diversifi-
cada retomada do processo de industrialização e do peso das exportações
industriais e de serviços na pauta de exportações brasileiras .
Este ajustamento externo ancorado no agronegócio não é um pro-
blema somente para as condições de viabilização do desenvolvimento

Coletânea de Artigos 73
74 Brasil Rural em Debate

rural . Ele é igualmente um problema de longo prazo para a persistência


do crescimento da economia brasileira, que, nessas condições, nunca
consegue manter a continuidade de taxas elevadas de crescimento (em
torno de 5% a .a .) ao longo do tempo, como se tornou a regra desde a
década de 1980 . Como diz Delgado (2008: 30), “a forte especialização
na exportação primária, que a presente estratégia externa contém, pode
conduzir a um tríplice desequilíbrio: desequilíbrio nas transações exter-
nas, pressão crescente sobre o preço dos alimentos, cuja equação conser-
vadora consiste em retornar a economia aos patamares da estagnação,
monitorada pela política de juros do Banco Central” .
Ademais, como vimos acontecer na década de 1970, períodos de
grande expansão das exportações agropecuárias são também períodos
de pressão sobre as áreas ocupadas pela produção de alimentos, inclu-
sive em função da elevação do preço da terra, o que tende a estagnar a
produção e aumentar os preços dos alimentos . Situação que pode ser
dramatizada quando coincide com processos especulativos no sistema
internacional, como ocorreu em 2008 .
Com a expansão que já está acontecendo na produção de agrocom-
bustíveis, e que provavelmente vai se acentuar no futuro, dificilmente
a continuidade do aumento da produção para exportação nos termos
em que está ocorrendo deixará de provocar uma grande pressão altista
sobre o preço da terra, correndo o risco de desestruturar a produção
interna de alimentos, a menos que seja protegida pela intervenção go-
vernamental reguladora . Se houver uma estagnação na produção de
alimentos, a tendência à elevação dos preços será inevitável e, mantido
o ajustamento externo via exportações agropecuárias, o mais provável
é que a política macroeconômica seja utilizada para reduzir o cres-
cimento da economia, diminuindo, como consequência, a demanda
doméstica e o mercado interno .
Eis aqui, portanto, um enorme desafio para o projeto democrati-
zante . Como definir uma estratégia para lidar com o agronegócio na
formulação e na implementação de um mix de políticas de desenvol-
vimento rural sustentável? A tentativa de elaborar uma estratégia deste
tipo pelo projeto democratizante parece urgente, pois as característi-
cas, a profundidade e a abrangência do desenvolvimento rural no país
vão depender do tipo de relação que estabeleça com o agronegócio,
na medida em que esses dois projetos nunca vão ser estanques e estão
continuamente disputando o espaço rural entre si19 .
Há um outro desafio para o projeto democratizante, a que cabe chamar
atenção . Vimos que, na década de 1990, o projeto democratizante para o
meio rural foi estruturado em torno da idéia de reforma agrária e de um
modelo alternativo de desenvolvimento rural baseado na agricultura fami-
liar, e que seus personagens principais foram os sem-terra, os assentados
e os agricultores familiares . Vimos também que o olhar sobre o rural se
tornou significativamente complexo a partir de então, com o surgimento
de novos personagens que saíram da “invisibilidade” e que reivindicam seu
reconhecimento não apenas pela sociedade e pelo Estado, mas também
pelo próprio projeto democratizante . A I Conferência Nacional de De-
senvolvimento Rural Sustentável e Solidário, realizada em junho de 2008
(CONDRAF, 2008), deixou claríssima a sua emergência .
Quê consequências a incorporação desses novos personagens traz
para o projeto democratizante em termos de sua condução e de suas
propostas? Continuam a reforma agrária e o desenvolvimento rural
baseado na agricultura familiar sendo as idéias-força principais em tor-
no das quais se podem aglutinar todos os personagens identificados
hoje no mundo rural? É possível e aceitável pensar em hegemonias
na condução do projeto democratizante? É possível e aceitável tentar
superar a fragmentação que a luta pelo reconhecimento de novas iden-
tidades naturalmente produz? Quais as consequências dessa situação
para a construção de políticas de desenvolvimento rural adequadas ao
fortalecimento do projeto democratizante no meio rural? As demandas
19
Não há razão para que essa estratégia tenha um caráter meramente conflitivo . Por exemplo, as possibi-
lidades de negociação e de acordos porventura existentes e a insistência na transparência nas relações do
agronegócio com as agências e políticas do Estado devem ter seu lugar na mesma e em diferentes espaços
(territorial, estadual, nacional) . Neste sentido, para avançar na construção da estratégia é indispensável
“abrir” o agronegócio, deixar de considerá-lo como um bloco monolítico (como fizemos neste ensaio para
simplificar a argumentação), de modo a compreender a diversidade de participantes e interesses , as tensões
e conflitos presentes e potenciais, e as especificidades territoriais (consulte-se, a respeito, Heredia, Palmeira
& Leite, 2009) . O mesmo, é claro, deve ser feito para a agricultura familiar e as demais populações e povos
existentes no rural .

Coletânea de Artigos 75
76 Brasil Rural em Debate

dos diferentes segmentos têm sido progressivamente explicitadas


em diferentes fóruns e conferências públicas . O grande desafio
para o futuro será tentar acordar quais são os elementos que for-
mam o núcleo central deste mix de políticas, em torno do qual
os instrumentos vão ser definidos e a partir do qual as diversas
demandas vão ser organizadas .
Por fim, uma oportunidade para o fortalecimento do projeto
democratizante para o mundo rural e para o desenvolvimento
rural no país . Mencionamos que a política social e de aumento
do salário mínimo implementada pelo Governo Lula promoveu
um revigoramento das economias de pequenas cidades do inte-
rior do Brasil, muitas delas rurais, aumentando a renda e o con-
sumo de seus habitantes e gerando efeitos positivos territoriais e
microrregionais . Mencionamos também a constatação de Bace-
lar (2008, 2008b) de que o vigoroso crescimento da economia
desde 2007 foi fundado no investimento e no consumo domés-
tico, sendo que o incremento do consumo foi principalmente o
dos consumidores da base da pirâmide social, localizados parti-
cularmente no Nordeste e no Norte do Brasil .
Se essa tendência for confirmada por outras avaliações, repre-
senta uma grande oportunidade para o projeto democratizante
para o mundo rural e para as possibilidades de desenvolvimento
rural no país, não obstante o agronegócio . Distribuição da ren-
da, geração de empregos e crescimento do mercado interno são
janelas de oportunidades que o comportamento da economia
abre para o desenvolvimento rural, especialmente através de seus
efeitos sobre a produção de alimentos, o emprego rural e uma
série de outras repercussões importantes sobre o mundo rural . A
manutenção dessa política deveria ser uma reivindicação priori-
tária do projeto democratizante .
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2. O mundo rural no Brasil:
acesso a bens e serviços e
processos de integração.*

Maria de Nazareth
Baudel Wanderley**

“O renascimento rural é o resultado da difusão no espa-


ço, dos efeitos da modernização e do enriquecimento do
conjunto da sociedade” . (KAYSER, 1990, p . 81)

Resumo
O mundo rural é um espaço de vida, lugar de resi-
dência de um grande número de brasileiros, de onde
eles vêm e vivem o mundo . A comunicação terá como
tema as formas e os processos sociais que asseguram
o acesso da população rural aos bens e serviços pro-
duzidos e disponíveis na sociedade brasileira . O pres-
suposto é que este acesso constitui um indicador da
participação dos brasileiros que vivem no campo nos
resultados do progresso social atingido pela sociedade
em seu conjunto e a expressão efetiva do princípio
constitucional da igualdade de chances a todos os ci-
*
Este texto foi ini- dadãos . As definições oficiais sobre o meio rural no
cialmente publicado
na Revista: Estudos
Brasil o consideram sempre como o entorno de centros
Sociedade e Agri- urbanos, muitos dos quais são pequenos aglomerados .
cultura, CPDA/
UFRRJ, v . 17, n . 1,
Em consequência, as ofertas de emprego e os serviços
abr . 2009, p . 60-85 . são pouco disponíveis localmente, do que resulta, por
Recife, 2009 . um lado, a precariedade que se observa em grande
** Professora aposen- parte das zonas rurais brasileiras e, por outro lado, a
tada da UNICAMP .
Colaboradora
necessidade de deslocamento da população local, fre-
do PPGS/UFPE . quentemente sobre grandes distâncias .

Coletânea de Artigos 79
80 Brasil Rural em Debate

Introdução
A literatura recente reafirma, cada vez mais, o pressuposto de que
as relações entre o meio rural e as cidades não podem ser entendidas
como relações de oposição ou antagonismo, mas se inscrevem num
espaço comum como relações de complementaridade e interdepen-
dência . Entendendo o rural e o urbano, como “modos particulares de
utilização do espaço e de vida social” (KAYSER,1990 .13), o grande
desafio é o de compreender os processos sociais pelos quais estas reali-
dades se interligam em profundidade, reiterando-se mutuamente . Sem
a pretensão de considerar esta problemática em sua totalidade, o pre-
sente texto escolhe alguns aspectos para uma reflexão mais detalhada .

2.1 A sociedade urbano-industrial


vista a partir do mundo rural
Algumas interpretações a respeito destes processos enfatizam os efei-
tos das dinâmicas “externas” sobre a vida e as estruturas rurais . Nesta
perspectiva, as relações rural-urbano, são o resultado dos processos mais
globais que conformam hoje a sociedade brasileira como uma socieda-
de urbano-industrial e que se traduzem pelo que muitos autores consi-
deram a “industrialização da agricultura” e a “urbanização do campo” .
Vistas sob este ângulo, as distinções entre o rural e o urbano deixariam
progressivamente de ser significativas e o meio rural tenderia a ser assi-
milado ao urbano .
Não resta dúvida que as transformações que se observam no meio
rural brasileiro são, antes de tudo, o efeito, no plano local, dos proces-
sos mais gerais da sociedade . No entanto, estes processos devem ser
compreendidos em suas particularidades e contingências, construídas
ao longo da história da sociedade brasileira . Ao mesmo tempo, este
olhar “externo” e unifocal não pode deixar de considerar uma dinâmi-
ca que se origina internamente, resultado da capacidade de iniciativa,
adaptação e resistência da própria população do campo .
Grosso modo, até as primeiras décadas do século XX, as relações
campo-cidade são pensadas em um contexto mais amplo, entendido,
em seu conjunto, como uma “civilização agrária” . É neste sentido que
se pode entender a análise de Sergio Buarque de Holanda, para quem:
“Toda a estrutura de nossa sociedade colonial teve sua base fora dos
meios urbanos. Se... não foi a rigor uma civilização agrícola o que os
portugueses instauraram no Brasil, foi, sem dúvida, uma civilização de
raízes rurais. É efetivamente nas propriedades rústicas que toda a vida
da colônia se concentra durante os séculos iniciais da ocupação européia:
as cidades são virtualmente, se não de fato, simples dependência delas.
Com pouco exagero pode-se dizer que tal situação não se modificou es-
sencialmente até à Abolição.” (HOLANDA, 1995, p. 41)
E este autor acrescenta:
“A pujança dos domínios rurais, comparada à mesquinhez urba-
na, representa fenômeno que se instalou aqui com os colonos portu-
gueses, desde que se fixaram à terra.” (p. 60)
No mesmo sentido, Florestan Fernandes considera que, na socieda-
de tradicional brasileira, vila e cidade exprimiam os padrões de cultura
de uma “civilização agrária” . (FERNANDES, 1975) Fernandes iden-
tifica nas cidades tradicionais brasileiras um “apinhamento de funções
urbanas”, que, no entanto, “não continha, em si mesmo, os germes de
uma revolução urbana propriamente dita” . (p . 140) Neste contexto,
“o meio sociocultural jamais libertou esse tipo de cidade das amarras
que a prendiam à tutelagem direta ou indireta do campo” . (p . 141) .
“Cidades que prendiam o homem ao horizonte cultu-
ral rústico e ao conservantismo prepotente como estilo de vida.
Não obstante, na superfície, ostentavam vários traços demográficos, econô-
micos ou sócio-culturais da vida urbana. O congestionamento urbano da
paisagem, portanto, não indica, por si mesmo, os novos rumos da história.
Estabelece, apenas, um indício do modo pelo qual as funções urbanas se
comprometem regionalmente com os interesses e os valores de vilas, fazen-
das e pequenas comunidades nuclearmente rústicas”. (p. 141).
Mais do que a dimensão da população rural e urbana e para além
das funções próprias da cidade e do campo, dois elementos são

Coletânea de Artigos 81
82 Brasil Rural em Debate

fundamentais para caracterizar esta civilização agrária: o poder lo-


cal exercido por uma elite, vinculada à propriedade concentrada
da terra e o tratamento desqualificador que esta elite mantinha em
relação aos não-proprietários . Se a elite latifundiária se sentia, fre-
quentemente, acima da lei, na medida em que a lei se confundia
com o próprio poder local, os não proprietários eram ignorados
como sujeitos de direitos, as políticas para o meio rural pouco leva-
vam em conta a melhoria de suas condições materiais de vida e nem
sequer eram reconhecidos como trabalhadores .
Ao longo da primeira metade do século XX, este quadro geral se trans-
forma progressivamente . Ele se expressa, significativamente, nas estatísti-
cas oficiais do IBGE, segundo as quais, a população considerada rural, que
se mantinha superior à população definida como urbana, perde seu peso
absoluto e relativo . A inflexão é registrada no Censo de 1970, quando a
população urbana ultrapassa a que vive nas zonas rurais . Esta atinge, então,
41 .054 .053 habitantes, equivalente a 44,08% da população total do país .
A questão que se coloca, neste novo contexto, é como compreender
os processos de reprodução do mundo rural, não mais sob a égide da
civilização agrária, mas inserido em uma sociedade urbano-industrial .
Esta concepção geral, no entanto, não pode levar em conta os pro-
cessos de industrialização e de urbanização de forma abstrata, dissocia-
dos das condições concretas, históricas, que, de fato, os conformam .
No caso específico da sociedade brasileira, pelo menos três aspectos
devem ser considerados, se queremos entender como esta transforma-
ção mais global toma corpo na realidade social: a urbanização brasileira
gerou uma enorme gama de pequenos municípios pouco “urbanos”; os
setores industriais e de serviços permanecem ainda fortemente concen-
trados nas grandes cidades, apesar do movimento significativo de inte-
riorização e a propriedade da terra permanece altamente concentrada .
A urbanização é, sem dúvida, um dos processos gerais que transfor-
maram a sociedade brasileira, ao longo do século XX, gerando um novo
patamar de referência universalizante, em função do qual, o conjunto da
sociedade é definido . Teoricamente, o conceito de urbano é construído,
tendo como pressuposto o fato de que a uma determinada dimensão
populacional – número de habitantes e densidade demográfica – corres-
ponde um determinado grau de complexidade sócio-econômica, o que
torna, em conseqüência, a referida aglomeração apta a oferecer oportu-
nidades de emprego e acesso a bens e serviços ao conjunto da população
que vive em sua área de influência . Nestes termos, o que define, funda-
mentalmente, uma área como urbana é a sua centralidade e sua vocação
para a prestação dos serviços . Como podemos ler em um interessante e
ilustrativo estudo do IPARDES,
“A cidade nasceria como um mercado, servindo às áreas circundan-
tes e seu papel de lugar central e, portanto, seu nível de urbano seria
medido não apenas pelo número de pessoas nela aglomerado, mas pe-
las funções por ela exercidas para a sua área tributária. Onde houvesse
complexidade de funções de troca e de serviços e também de produção,
se caracterizaria uma cidade”. (BERNARDES et alii, 1983)
No mesmo sentido, tomam posição Pimentel Neto et alii, ao faze-
rem referência à perspectiva da Geografia .
“Um dos teóricos clássicos da geografia alemã, Walter Christal-
ler, dedicou-se a compreender a dinâmica urbana a partir dos con-
ceitos chaves de centralidade, localidade central, região de influên-
cia das cidades e polarização. Propondo uma hierarquia urbana
calcada em fluxos de bens e serviços, o autor sugeriu que a área
de influência de uma cidade não é somente definida pela posição
geográfica que ocupa, mas está associada a um conjunto de funções
de bens e serviços que esta cidade oferece”. (PIMENTEL NETO
et alii, 2007)
Sabe-se, no entanto, que o processo de urbanização não é uniforme,
mas, ao contrário, constrói uma rígida hierarquia de aglomerações ur-
banas, desde as grandes cidades metropolitanas até as pequenas sedes
municipais com menos de 20 .000 habitantes e as vilas, sedes distritais .
Sobre as pequenas cidades, e com mais forte razão, os distritos, muitos

Coletânea de Artigos 83
84 Brasil Rural em Debate

se interrogam sobre a pertinência de os considerar propriamente urba-


nos, integrantes efetivamente do “sistema de cidades” .
De fato, como tem sido exaustivamente lembrado no debate mais
recente sobre o tema, no Brasil, a maioria das cidades que possuem uma
população inferior a 20 mil habitantes – muitos especialistas se referem
às com menos de 50 mil habitantes – não oferece as condições mínimas
para assumir esta vocação, sua centralidade sendo atribuída tão somente
ao reconhecimento legal, enquanto espaços urbanos . Os critérios ado-
tados para a sua caracterização ressaltam as funções administrativas que
são atibuídas às aglomerações, legalmente definidas como urbanas, sem
consideração com sua efetiva capacidade, o que termina por reforçar
a precariedade das zonas rurais circundantes, sem impedir que muitas
áreas urbanas também padeçam de limitações semelhantes .
Esta realidade tem sido objeto de numerosos estudos e não seria
necessário retomar aqui toda a argumentação desenvolvida nos úl-
timos anos a este repeito . Bastaria lembrar que o arcabouço legal,
construído ao longo do tempo, consagrou o princípio da autonomia
dos municípios para delimitar os recortes físicos das zonas urbanas,
em nome do qual tornou-se juridica e politicamente impossível de-
finir critérios objetivos de distinção entre áreas urbanas e rurais e de
classificação hieraquizada das mesmas .
É bem verdade que o Decreto Lei n° 311, de 2 de março de 1938,1
impunha exigências que deveriam ser cumpridas pelas autoridades mu-
nicipais, no que se refere às dimensões mínimas das cidades e vilas (áreas
urbanas), à fixação dos limites físicos das áreas urbanas e suburbanas,
bem como à necessidade de elaboração de mapas e plantas que registrem
estes recortes, sob pena de terem “cassada a autonomia e o seu território
anexado a um dos municípios vizinhos . . .” (Artigo 13º, parágrafo 2º)
Porém, o mesmo Decreto Lei fragiliza suas próprias definições, ao rei-
terar a condição urbana das cidades e distritos já reconhecidos antes de
sua vigência, independentemente de suas dimensão e complexidade
1
Este decreto Lei é aquele que José Eli da Veiga qualificou, apropriadamente, de “entulho varguista”,
pois foi assinado no período ditatorial de Getúlio Vargas . (VEIGA, 2002)
e, em nome da mesma autonomia, as exigências previstas foram sendo
progressivamente anuladas por textos legais subsequentes .
O que explica a constituição desta concepção da legislação brasileira é,
fundamentalmente, o fato de que o recorte adotado tem o objetivo pri-
meiro de definir o destino dos impostos coletados em cada uma destas
áreas . Segundo o Código Tributário Nacional - CTN (Lei nº 5172, de 25
de outubro de 1966), os impostos municipais seriam arrecadados nas áreas
urbanas e os federais nas áreas rurais . Não é de admirar que os municípios
sejam, assim, estimulados a aumentar artificialmente suas áreas urbanas,
tanto mais quanto encontram respaldo jurídico para fazê-lo, especialmen-
te, na adoção, pela legislação, de dois importantes dispositivos jurídicos .
O primeiro associa a condição urbana à existência de melhoramentos, mas
admite que para ser considerada urbana basta a uma zona dispor de:
“pelo menos 2 (dois) dos incisos seguintes, construídos ou mantidos
pelo Poder Público: I - meio-fio ou calçamento, com canalização de
águas pluviais; II – abastecimento de água; III – sistemas de esgotos
sanitários; IV – rede de iluminação pública, com ou sem posteamento
para distribuição domiciliar; V – escola primária ou posto de saúde a
uma distância máxima de 3 (três) quilômetros do imóvel considera-
do”. (Lei nº 5172, de 25 de outubro de 1966 - Artigo 32, § 1º)
O segundo dispositivo se expressa na definição de “área de expansão
urbana”, já presente no mesmo artigo do CTN, pela qual, a concepção
de urbano fica definitivamente dissociada da idéia de complexidade e
da capacidade de prestação de serviços . Segundo o CTN,
“a lei municipal pode considerar urbanas as áreas urbanizáveis, ou de
expansão urbana, constantes de loteamentos aprovados pelos órgãos com-
petentes, destinados à habitação, à indústria ou ao comércio, mesmo que
localizados fora das zonas definidas nos termos do parágrafo anterior.”
(Lei nº 5172, de 25 de outubro de 1966 - Artigo 32, parágrafo § 2º)
Estamos diante de um paradoxo: para ser considerada urbana,
uma cidade não precisa comprovar sua capacidade para o exercício
das funções urbanas, porém, a presença de equipamentos de infraes-

Coletânea de Artigos 85
86 Brasil Rural em Debate

trutura e de serviços, como os acima indicados, são vistos, legalmen-


te, como a negação da condição rural .
Atualmente, a legislação vigente, que orienta as classificações esta-
tísticas do IBGE, mantém a distinção entre áreas urbanizadas e não
urbanizadas no interior das cidades e vilas, estas últimas correspon-
dendo às áreas “legalmente definidas como urbanas, caracterizadas
por ocupação predominantemente de caráter rural” . São consideradas,
igualmente, duas outras categorias espaciais: as “áreas urbanizadas iso-
ladas”, que são aquelas “definidas por lei municipal e separadas da sede
municipal ou distrital por área rural ou outro limite legal”; e os “aglo-
merados rurais do tipo extensão urbana”, assim definidos:
“São os assentamentos situados em áreas fora do perímetro urbano legal,
mas desenvolvidos a partir da expansão de uma cidade ou vila, ou por elas
englobados em sua expansão. Por constituírem uma simples extensão da
área efetivamente urbanizada, atribui-se, por definição, caráter urbano
aos aglomerados rurais deste tipo. Tais assentamentos podem ser constituí-
dos por loteamentos já habitados, conjuntos habitacionais, aglomerados de
moradias ditas subnormais ou núcleos desenvolvidos em torno de estabele-
cimentos industriais, comerciais ou de serviços”. (IBGE, 2000).
O resultado não poderia ser outro senão a “extensão exagerada das
zonas urbanas” e a conseqüente retração e desqualificação das áreas
rurais, vistas apenas como não – ou ainda não – urbanas .
“... a simples construção de uma escola pública, aliada à extensão
da rede de iluminação pública, permite a esses municípios submeter
à tributação local apreciáveis parcelas de seus territórios. A generali-
dade dessa prática conduziu à esdrúxula situação de se ter enormes
áreas consideradas urbanas, não em virtude das necessidades urba-
nísticas dos municípios, mas como artifício para o incremento das
receitas locais”. (BERNARDES et alii. 1983, p. 20).
Ricardo Abramovay chega às mesmas conclusões, quando afirma:
“O acesso à infraestrutura e serviços básicos e um mínimo de
adensamento são suficientes para que a população se torne urbana.
Com isso, o meio rural corresponde aos remanescentes ainda não
atingidos pelas cidades e sua emancipação passa a ser vista - de ma-
neira distorcida - como “urbanização do campo”. (ABRAMOVAY,
2000, p. 2).
No que se refere à industrialização, é hoje consenso a constatação de
um processo de interiorização das plantas industriais e de empresas de
serviços – historicamente concentradas, especialmente no Estado de São
Paulo e neste, na sua capital e região metropolitana – que acompanha
o crescimento de regiões metropolitanas em torno de outras capitais es-
taduais e do surgimento de grandes cidades no interior do país . Apesar
disto, os especialistas sobre o tema reconhecem que este processo é ainda
bastante tímido, não alterando, em profundidade, o seu caráter histórico
concentrador . Em um artigo sobre a indústria paulista, nas décadas de
1970 e 1980, Carlos A . Pacheco, Wilson Cano, Jorge B . Tapia e Aurilio
S .C . Caiado apontam para o ritmo lento da interiorização industrial no
Estado de São Paulo, referindo-se a uma
“...progressiva perda de peso da área metropolitana de São Paulo
no conjunto da indústria paulista e uma continuidade, ainda que
em ritmo lento, do processo de desconcentração espacial que caracte-
rizava a “interiorização” do desenvolvimento”. (grifos meus) (PA-
CHECO et alii. 1995)
Os mesmos autores acrescentam: “O relevante a destacar é que a “inte-
riorização” do desenvolvimento, que fora o carro-chefe do extraordinário
crescimento econômico de grande parte do interior paulista, nas últimas
décadas, perdeu fôlego” . (PACHECO et alii . 1995) .
Aprofundando esta análise, Aurílio Sergio Costa Caiado entende
que se trata de “movimentos simultâneos do conjunto da indústria:
desconcentração, em alguns segmentos pouco intensivos em tecnolo-
gia; e reconcentração, nos de alta” e explica que
“as distintas estratégias de localização dos segmentos ocasionaram
movimentos mais complexos que a dicotômica concentração versus
desconcentração. Houve desconcentração produtiva, real ou de caráter

Coletânea de Artigos 87
88 Brasil Rural em Debate

estatístico, em certos segmentos; deslocamento de plantas em outros;


alguns adotaram a dispersão da produção, com ampliação do raio de
localização e outros reconcentraram-se. Esses movimentos, entretanto,
não podem ser generalizados, pois não ocorrem em todas as regiões e
são mais facilmente perceptíveis quando a análise é feita a partir de São
Paulo”. (CAIADO, 2004).
Assim, mesmo reconhecendo a importância do movimento de des-
concentração espacial da indústria e da multiplicação de pequenos ser-
viços de proximidade, inclusive nas áreas rurais – serviços de transpor-
te, “lan houses”, oficinas de reparação, entre outros – parece evidente
que a grande maioria dos municípios, particularmente os pequenos,
está excluída de sua influência direta, pouco ou nada se beneficiando
dos seus efeitos multiplicadores sobre a economia local .
É preciso considerar que a presença de indústrias em áreas rurais não
pode ser vista como uma panacéia . De fato, se por um lado, o incre-
mento de postos de trabalho é sempre um aporte positivo, por outro
lado, fábricas poluidoras, ou cujo ramo de ação nada tenha de com-
plementar com as potencialidades locais, terminam funcionando como
enclaves, sem efeitos multiplicadores ou produzindo efeitos perversos
sobre os frágeis equilíbrios sociais e ambientais . Isto vale inclusive para
as agroindústrias . Mais ainda, a implantação de uma indústria numa
área rural, sobretudo, se ela atrai novos habitantes e serviços, termina
por descaracterizá-la, pois, pela legislação vigente, esta área poderá, em
breve, ser definida como urbana, como foi visto anteriormente .
As dinâmicas sociais construídas nos espaços rurais são tributárias
deste contexto mais amplo, das suas relações com a sociedade urbano-
-industrial, mas também das configurações internas ao meio rural, que
são direta e profundamente associadas aos modos de ocupação do solo
e de utilização social da terra e dos demais recursos produtivos . Nes-
te sentido, a modernização da agricultura, ocorrida a partir dos anos
1960, reiterou o tradicional controle concentrado da terra, que perma-
nece gerando uma grande capacidade de dominação política e de pro-
dução de diversas formas de exclusão social . (BRUNO, 1997 e 2002)
A primeira, e mais contundente destas formas, é a pobreza rural .
Como afirma Ângela Kageyama, “em 2004, a população rural repre-
sentava 17,1% do total, mas 31,5% do total dos pobres estavam na
área rural . Enquanto na área urbana 29,2% da população podia ser
considerada pobre, essa cifra atingia 65,1% na área rural” . Para a au-
tora, na área rural, existem 2,8 milhões de pessoas que vivem em situ-
ações de extrema pobreza, entendida como aquela em que “as pessoas
têm renda abaixo da linha de pobreza e vivem em domicílios que não
possuem água canalizada em nenhum cômodo, nem banheiro ou sani-
tário e nem luz elétrica” . (KAGEYAMA, 2008, p . 206)
Em segundo lugar, resulta da confluência dos fatores aqui conside-
rados, o esvaziamento social de vastas áreas de grandes culturas, pela
expulsão de um expressivo contingente de trabalhadores assalariados,
antes residentes no campo que, mesmo continuando a trabalhar nas
empresas agrícolas, passam a residir nas franjas periféricas das cidades .
São eles que, em grande parte, vão constituir a versão pobre – às vezes
miserável – das áreas de expansão urbana, já referidas anteriormente .
Finalmente, há considerar, também, pelas mesmas razões, as dificulda-
des de consolidação de setores da agricultura, particularmente, os que cor-
respondem à agricultura de base familiar . Muitas destas dificuldades, refe-
rentes, entre outros aspectos, à dimensão e qualidade das áreas disponíveis,
ao acesso ao crédito, à formação profissional e à informação, à educação
formal e à saúde, constituem profundos bloqueios que afetam diretamente
o desempenho dos produtores e a qualidade de vida de suas famílias .
A modernização da agricultura, projeto que se impôs ao conjunto da
sociedade, sob o argumento de que seria o portador do progresso para
todos, teve como principal resultado a subordinação da agricultura à
indústria, através da ação de setores industriais distintos, antes, duran-
te e após o processo produtivo propriamente agrícola, constituindo-
-se o que se denomina um complexo agroindustrial . (KAGEYAMA,
1990) Porém, o que caracteriza este processo, no Brasil é, antes de
tudo, a associação estabelecida entre progresso e escala da propriedade,
segundo a qual apenas os grandes proprietários puderam beneficiar-se

Coletânea de Artigos 89
90 Brasil Rural em Debate

das somas consideráveis de recursos públicos a ele destinados, os quais,


como numa espiral, terminavam por reforçar a concentração da terra .
Nestas situações,
“as relações sociais são fortemente assimétricas, marcadas pela domi-
nação econômica, social e política dos grandes proprietários, em geral,
absenteístas, que se exerce diretamente sobre as “formas tuteladas do
campesinato” (NEVES, SILVA. 2008), predominantes nestas situa-
ções”. (WANDERLEY, 2009).
Assim, menos pelo que introduziu de moderno e mais pelo que reprodu-
ziu das formas tradicionais de dominação, o processo de modernização re-
sultou na expulsão da grande maioria dos trabalhadores não proprietários de
suas terras e na inviabilização das condições mínimas de reprodução de um
campesinato em busca de um espaço de estabilidade . A chamada “indus-
trialização” do campo não pode, nestas condições, ser compreendida, sem
que se introduza na argumentação, a consideração fundamental, de que este
processo não revolucionou, como ocorreu em outras situações históricas,
a estrutura fundiária e, consequentemente, o predomínio político que ela
produz . E este fato continua a se constituir como um elemento estruturante
do mundo rural . As novas abordagens do desenvolvimento rural que foram
sendo formuladas ao longo do tempo, sob a matriz do desenvolvimento
local ou do desenvolvimento territorial não podem ignorar ou desconsiderar
as relações de força profundamente assimétricas que são assim reproduzidas,
sob pena de anular sua própria capacidade transformadora .
Vistos a partir do plano local rural, são estes três aspectos que de-
senham a face imediatamente perceptível e vivenciada da sociedade
urbano-industrial . Imaginemos os habitantes da zona rural de um pe-
queno município com menos de 20 .000 habitantes, dos quais metade
habita a sede e os distritos definidos como urbanos . Num contexto
local, construído em torno da concentração fundiária, a industrializa-
ção e a urbanização, para eles, são referências reais, sem dúvida, porém
seus efeitos virtuosos lhes parecem longínquos, na medida em que,
desigualmente implantados em nível nacional, traduzem-se, no plano
local, por uma forte restrição da solidariedade urbana em termos de
oferta de emprego, de bens e de serviços, de tal forma que lhes res-
ta apenas o dilema precariedade versus deslocamento, isto é, sofrer as
restrições da oferta local ou se deslocar por distâncias mais ou menos
longas, em busca de seu acesso .

2.2 Entre o campo e a cidade:


relações de interdependência
Para o que nos interessa mais diretamente no presente trabalho,
perceber as dinâmicas sociais mais gerais, a partir de suas expressões
concretas no mundo rural nos leva a focalizar suas particularidades
sociológicas . Esta reflexão se situa, portanto, numa dimensão distinta
daquela que se expressa no corpo legislativo - centrada em objetivos
fiscais - para o qual, como foi visto acima, o “rural” termina sendo,
simplesmente, o que não é urbano, ou o que “sobra” e está fora dos
limites físicos das cidades e vilas .
Na perspectiva, aqui adotada, o espaço rural pode ser definido pela predo-
minância dos espaços não construídos (predominância da natureza) e pela
condição de pequeno aglomerado, com baixa densidade populacional, onde
predominam as relações de proximidade .
Como o urbano, o espaço rural está também associado a funções que
valorizam as características acima indicadas, especialmente as funções pro-
dutiva, residencial e patrimonial . Vale lembrar que a efetivação destas fun-
ções interessa não apenas à população rural, mas se constituem também
como serviços que o mundo rural tem a oferecer ao conjunto da sociedade .
É isto o que permite entender as relações campo-cidade como uma
via de mão dupla, na qual, do ponto de vista teórico, as assimetrias e
descontinuidades não significam necessariamente desequilíbrios, mas,
relações de complementaridade, pelas quais as funções recíprocas se
alimentam e são intercambiadas .
Naturalmente, nem todos os serviços necessários se localizam na
própria área rural, nem seria razoável assim supor, até porque eles são
de natureza distinta, podendo-se considerar os “ de proximidade”, os

Coletânea de Artigos 91
92 Brasil Rural em Debate

“serviços superiores” e os “intermediários” . (INSEE, 2003) Os primei-


ros correspondem aos que atendem às necessidades da vida cotidiana, e
expressam um maior ou menor dinamismo da economia local, de base
residencial, de que são exemplo, o transporte, o pequeno comércio e as
vias de comunicação locais . Exemplos de serviços superiores seriam a
universidade, espetáculos teatrais e exposições artistísticas, raramente
presentes nos espaços rurais . Finalmente, dentre os principais serviços
intermediários citamos o grande comércio, bancos e os serviços públicos
em geral, que podem ser acessíveis aos habitantes .
A vocação de centralidade das sedes municipais, será tanto mais efe-
tiva, quanto elas contenham a maior densidade possível de serviços
em seus territórios de influência – rurais e urbanos – e à disposição do
conjunto da população municipal . Assim, independentemente da sua
dimensão, um pequeno município pode vir a ser “um espaço de demo-
cracia e um lugar para a gestão dos serviços de proximidade” . (BAGES .
NEVERS, 1997) Exemplo particularmente ilustrativo desta relação vem
a ser a produção de alimentos para os mercados urbanos . Se para os mo-
radores da cidade, este serviço de proximidade é o meio que lhes assegura
uma qualidade saudável dos alimentos que consome, para os do campo,
a existência desta economia de proximidade é, frequentemente, o esteio
para sua permanência no campo e sua afirmação identitária . Para ambos,
sem dúvida, é um reforço das relações interpessoais, visto por muitos
como o aprofundamento da face mais humana da vida local .
A interconexão entre os espaços rurais e urbanos se afirma, igualmen-
te, pela forma como, a partir da cidade é equacionada a distribuição es-
pacial da infraestrutura básica . Longe de ser um apanágio urbano, como
foi assinalado acima, a instalação de equipamentos públicos, tais como,
a eletricidade, as vias de comunicação, a canalização de águas pluviais
e os sistemas de esgotos sanitários, deve refletir o reconhecimento dos
direitos dos cidadãos, independentemente de seu local de moradia .
O exercício efetivo das funções urbanas e a existência local de um
sistema de serviços é particularmente importante como base para a ela-
boração de uma tipologia das diversas situações rurais no país, levando
em conta sua intensidade, o grau de complexidade e a distância – me-
dida em termos de distância física e tempo/condições de deslocamento
– entre locais de moradia e os de oferta de serviços . É, certamente,
desnecessário insistir sobre o fato de que a capacidade urbana constitui
um ingrediente central na construção desta tipologia .
Sua importância é também percebida, na medida em que é ela quem
determina, em grande parte, o próprio perfil da população rural e o peso
relativo das diversas funções do espaço rural . Assim por exemplo, a presen-
ça de residentes rurais não agricultores, de origem urbana é, naturalmente,
proporcional à capacidade deste meio rural de oferecer condições confor-
táveis de vida, o que inclui as chamadas “amenidades” modernas e supõe
uma outra concepção das distinções entre os espaços rurais e urbanos . É
o que aconte nos países desenvolvidos, onde a “valorização” da vida no
campo motiva pessoas de origem urbana ou antigos imigrantes rurais a,
mantendo, intenso contato com a cidade, o que inclui, frequentemente, o
próprio emprego, residir (ou voltar a residir) em áreas rurais . Esta migra-
ção urbano-rural, que vem gerando o que se considera um “renascimento
rural” (KAYSER, 1990) tem sido reforçada pelos acelerados avanços da
comunicação virtual, que, de uma certa forma, “deslocaliza” os indivídu-
os, isto é, dissocia sua condição de morador de uma cidade, dos benefí-
cios que o mundo moderno oferece crescentemente a todos .
No Brasil, embora seja inegável o grande investimento em eletrifi-
cação rural, estradas vicinais, transporte intramunicipal, saúde e edu-
cação, entre outros, que aprofundou os contatos entre as áreas rurais
e as sedes municipais, não resta dúvida que a cobertura destes serviços,
bem como, sua qualidade são, ainda, profundamente insuficientes
e insatisfatórias . Não é de admirar que, aquelas não consigam atrair
migrantes urbanos mais exigentes e permaneçam habitadas, sobretudo,
em sua maioria, pelas pessoas que se relacionam em função da referên-
cia ao patrimônio familiar e aos laços de vizinhança .2
A população do campo constroi uma área de circulação – seu espaço de
vida – centrada em seu local de moradia, a partir do qual se mobiliza para
2
A referência ao patrimônio familiar e ao pertencimento à comunidade local permite caracterizar em
termos bastante amplos a população rural brasileira e reconhecer sua diversidade interna, que não
se reduz, naturalmente, às formas clássicas do campesinato e do trabalhador assalariado.

Coletânea de Artigos 93
94 Brasil Rural em Debate

ter acesso aos bens e serviços necessários . Esta área de circulação apresenta,
naturalmente, intensidades distintas, conforme o caso, que expressam os
objetivos, a frequência, o tempo e o espaço dos deslocamentos efetuados .
O espaço de vida vem a ser, portanto, “o menor território sobre o qual seus
habitantes têm acesso aos principais serviçis e empregos” . (INSEE, 2003) .
O conceito de mobilidade se torna, assim, complementar ao da acessibi-
lidade, não como uma ruptura com o mundo rural, mas como uma di-
mensão intrínseca da experiência dos que nele vivem, como expressão do
seu processo de integração ao conjunto da sociedade . (MENEZES, 2002)
É preciso considerar, mais uma vez, que a mobilidade, observada na
maioria das áreas rurais brasileiras é, sob muitos aspectos, distinta da que
hoje caracteriza as relações campo-cidade nos paises desenvolvidos . Nes-
tes, a separação entre lugar de trabalho e lugar de residência predomi-
na onde o processo de desenvolvimento da sociedade ocorreu de forma
mais desconcentrada, atingindo diretamente um território mais amplo
que o dos centros urbanos . Mesmo sabendo que este espraiamento dos
efeitos do desenvolvimento nunca é completo e mantém áreas conside-
radas relativamente isoladas e desprovidas, a escolha pela vida no campo
não significa a renúncia aos bens e serviços que, neste caso não são mais
identificados como símbolos exclusivos da vida urbana .

2.3 A agricultura e os agricultores


Para melhor compreender a reprodução do mundo rural, no interior
da sociedade urbano-industrial brasileira, é necessário refletir sobre o lugar
da agricultura e dos agricultores neste contexto . Tem sido reiteradamente
afirmado que o “rural” não se confunde com o “agrícola” . Concordando
plenamente com esta assertiva que, na verdade, não representa nenhuma
novidade na configuração histórica do mundo rural, é preciso explicitar e
assumir suas consequências .
Por um lado, a associação entre as duas catogorias constitui uma das
justificativas sociais da própria modernização da agricultura, vista como
uma resposta às necessidades de transformação do conjunto do meio
rural o que é constantemente reiterado pelas lideranças patronais que se
autodefinem como “ruralistas” . Assim sendo, questionar a assimilação
do rural ao setorial implica, antes de tudo, em introduzir no debate,
como nas intervenções públicas, outras dimensões do desenvolvimen-
to rural, que dizem respeito, particularmente, às condições de vida da
população do campo e à valorização patrimonial dos recursos naturais e
culturais . Neste caso, a forma concentrada da distribuição da terra perde
também sua base de legitimidade, na medida em que ela inibe, como já
foi visto acima, a vitalidade social das áreas rurais .
Por outro lado, não se pode deduzir desta argumentação, a nega-
ção da importância da atividade agrícola no meio rural . Isto porque os
processos de ocupação e uso do espaço são, historicamente, fortemente
associados à produção agrícola e similares (pecuária, silvicultura, extra-
tivismo etc), que se tornam, assim, igualmente, elementos essenciais das
paisagens . Especialmente onde esta ocupação resulta na formação de
múltiplos núcleos habitacionais e na exploração diversificada dos recur-
sos naturais, os agricultores – trabalhadores da terra em geral – indepen-
dentemente de sua importância numérica no conjunto da população,
tornam-se os portadores do conhecimento acumulado sobre o espaço
local, no que se refere tanto às suas condições físicas, quanto às tradições
culturais . É bem verdade que as unidades de produção, tradicionalmente
agrícolas, – grandes ou pequenos estabelecimentos – tendem cada vez
mais a diversificar suas atividades, incorporando tarefas não diretamente
agrícolas, que visam beneficiar os seus produtos . Porém, nestes casos,
como naqueles em que a agricultura vem a ser uma etapa inicial do pro-
cesso de produção de um bem, que se conclui fora do estabelecimento e
mesmo fora do meio rural, parece óbvio que o que se modifica é o peso
relativo da contribuição da agricultura para a obtenção do produto final,
não sendo possível desconhecer sua importância como a base indispen-
sável do sistema produtivo assim construído . Como afirma o geógrafo
francês Jean-Paul Diry,
“todo campo é agrícola. É o produto de gerações de camponeses que mo-
delaram as paisagens originais e que se esforçam de cultivar e criar ani-
mais para seu próprio consumo e/ou comercializar eventuais excedentes....

Coletânea de Artigos 95
96 Brasil Rural em Debate

Entretanto, este mundo rural não se confunde com a agricultura e muitas


outras atividades estão nele instaladas.” (DIRY, 1999, p, 10)
No que se refere aos agricultores, duas consequências decorrem da
concepção aqui adotada . Em primeiro lugar, uma maior vinculação
com o “urbano” não pode ser entendida necessariamente como uma
“crise do rural”, como se a cidade fosse, inevitavelmente, o caminho
sem volta dos habitantes do campo . Em segundo lugar, mas não menos
importante, o acesso a empregos, bens e serviços, no interior das pró-
prias áreas rurais e nos seus centros urbanos, expressa uma demanda,
particularmente, das famílias agrícolas . A este respeito, há a considerar,
de modo especial, o acesso a bens que constituem os fundamentos in-
dispensáveis para a própria permanência no campo, tais como a mora-
dia e a eletricidade e, no caso dos agricultores, o acesso à terra e à agua .
Mas, o acesso a outros serviços é, cada vez mais valorizado e reivindica-
do, na medida em que sua presença ou ausência pode, também, afetar
a dinâmica demográfica local, como é o caso dos serviços nas áreas da
educação e da saúde . (SOARES et alii, 2009)
Centrando o olhar, mais especificamente, sobre os agricultores fami-
liares, parcela mais expressiva dos habitantes do campo, as relações com
a cidade são um elemento constituinte de suas estratégias de reprodução .
No que se refere ao emprego, há a considerar dois aspectos . Em
primeiro lugar, o que envolve os processos de sucessão . Como se sabe,
as famílias destes agricultores são em geral, numerosas, com dois ou
(muito) mais filhos . Nestas condições, é comum que os filhos não su-
cessores procurem uma alternativa profissional fora do estabelecimen-
to familiar . Assim sendo, é próprio desta forma de produção e de vida
gerar trabalhadores, para o setor agrícola ou para outras atividades não
agrícolas, o que não configura nenhuma crise em sua reprodução .
A crise, quando existe, se manifesta sob três formas: quando o momen-
to da sucessão é retardado no tempo – mesmo aposentados, muitos pais só
abandonam tardiamente a direção do estabelecimento – criando uma situ-
ação de instabilidade para os jovens successores em relação ao seu futuro;
quando os não-sucessores não encontram as ocupações que procuram nos
espaços mais próximos, sendo levados a migrar para grandes distâncias ou
simplesmente assumir a condição de desempregado na família; ou, o que
é mais grave, quando as condições estruturais das unidades de produção
são tão precárias que, não havendo patrimônio a transmitir, todos os filhos
são candidatos a empregos fora do sítio familiar .
Em segundo lugar, a busca de atividades complementares ao trabalho
no estabelecimento familiar, configurando-se o que se denomina pluriati-
vidade das famílias de agricultores . Como já foi muito bem analisado por
Afrânio Garcia Jr, aqui também, o que está em questão são as estratégias,
ascendentes ou descendentes, de reprodução das unidades de produção
familiares . (GARCIA JR, 1989) Muito já foi dito sobre este tema, que
continua central nas pesquisas atuais sobre o mundo rural . O que parece
importante a reter é que a pluriatividade, pela sua própria natureza, supõe
a permanência da atividade agrícola . O fato de que as rendas provenien-
tes das atividades não-agrícolas sejam superiores ao que se obtém com os
resultados da produção interna não pode obscurecer a centralidade do pa-
trimônio familiar, para cuja reprodução, no presente, como no futuro, é
organizado o sistema de atividades dos membros da família . (WANDER-
LEY, 1999 e 2003)
Assim sendo, a pluriatividade não é, necessariamente, uma fase de transi-
ção entre uma situação em que os agricultores se dedicam exclusivamente às
atividades das culturas e criações em seus estabelecimentos – os chamados
agricultores puros, frequentemente idealizados – para uma outra, na qual a
agricultura perde toda importância econômica e social . Esta última situação
caracteriza, efetivamente, uma crise da atividade agrícola para a família con-
siderada, mas, neste caso, não há mais sentido em se falar em pluriatividade .
Finalmente, em terceiro lugar, a multiplicação de atividades não-agrí-
colas no meio rural resulta também das estratégias dos agricultores, lá
onde elas são viáveis, de ampliar o campo de suas iniciativas produtivas .
Mais do que pluriatividade, pois exercida no próprio estabelecimento
familiar, trata-se, neste caso da busca de uma polivalência, visando a
agregação de valor aos produtos agrícolas e o uso mais intensivo da mão
de obra disponível na família . Como afirma Sergio Schneider,
“o crescimento das atividades não-agrícolas no espaço ru-
ral não deve ser interpretado, de forma apressada, como uma

Coletânea de Artigos 97
98 Brasil Rural em Debate

perda de importância das atividades propriamente agrícolas.


Na verdade, o que se verifica é um processo de diversificação produ-
tiva nestes espaços, provavelmente, relacionada com o crescimento da
mercantilização econômica e social”. (SCHNEIDER, 2000)
Na verdade, a grande dificuldade das famílias agrícolas decorre, não
da presença, mas, sobretudo da ausência ou fragilidade da oferta de
atividades não-agrícolas no espaço local . Para Angela Kageyama, “No
Brasil, como um todo, a pluriatividade tem crescido lentamente: em
1995 havia 16,6% de domicílios rurais pluriativos, em 2003 essa pro-
porção cresceu para 17,2% e somente 18,4% dos domicílios rurais
eram pluriativos em 2005 . (KAGEYAMA, 2008, p . 200)
Além disso, a constatação é unânime de que as ocupações não-agrícolas
oferecidas localmente aos habitantes do campo raramente são de ordem a
assegurar um novo perfil profissional a seus postulantes . A título de exem-
plo, pode-se citar o caso de numerosos rapazes, oriundos de famílias de
agricultores do município de Orobó, em Pernambuco e que trabalham no
setor de construção civil no Recife, a cerca de 110 km . de distância . Sem
emprego no próprio município, circulam entre o domicilio familiar – que
permanece sendo o seu próprio domicílio, mesmo que o visite apenas a
cada 15 dias – e o novo local de trabalho, onde não conseguem construir
uma nova carreira, em função da grande precariedade das condições de
trabalho . (WANDERLEY, 2006)
Com exceção de alguns postos de trabalho disponíveis nos serviços
públicos, tais como as de professor(a), profissionais da saúde e outros
funcionários municipais, a grande maioria das ocupações, precárias, des-
qualificadas e mal remuneradas . Isto ocorre, particularmente “nos esta-
dos de menor desenvolvimento, (onde) as ocupações rurais nos ramos
industriais tendem a se concentrar nas atividades agroindustriais” . (KA-
GEYAMA, 2008, p . 198) .
2.4 Conclusão
A integração à sociedade urbano-industrial tem, igualmente, uma
dimensão político-social, no sentido do reconhecimento dos habitan-
tes do campo, como sujeitos de direitos . Neste sentido, o acesso a bens
e serviços vem a ser a manifestação concreta do exercício da cidadania,
constituindo-se como um indicador da participação dos brasileiros que
vivem no campo nos resultados do progresso social atingido pela socie-
dade em seu conjunto e a expressão efetiva do princípio da igualdade
de chances a todos os cidadãos, afirmado na Constituição Federal:
Art. 6o São direitos sociais a educação, a saúde, o trabalho, a mora-
dia, o lazer, a segurança, a previdência social, a proteção à maternidade
e à infância, a assistência aos desamparados, na forma desta Constitui-
ção. (BRASIL. Constituição Federal. 1988).
Como parte integrante da sociedade brasileira, o mundo rural be-
neficia-se diretamente dos efeitos virtuosos do seu desenvolvimento .
Dentre estes, merecem especial destaque os que resultam dos processos
de descentralização municipal, afirmados e reforçados pela Constitui-
ção Federal de 1988, a consolidação dos movimentos sociais resultante
da redemocratização do país, a partir da segunda metade da década
de 1980 e os impactos de diversas políticas públicas voltadas para o
desenvolvimento rural, sob um enfoque territorial e para a melhoria
das condições de vida da população do campo . De todos eles, uma
consequência parece evidente, a que reforça as identidades dos grupos
sociais rurais “subalternos”, amplia seu campo de ação coletiva, favo-
rece o seu protagonismo e a capacidade de formular suas demandas .
É, certamente, este o sentimento expresso por Octávio Guilherme Ve-
lho, ao afirmar em uma entrevista à revista Carta Capital:
“As pessoas que se sentiam ameaçadas estão se sentindo mais seguras.
Os problemas delas persistem. Eles sentem, entretanto, que há mais
possibilidades de resistência. Ou, como eles dizem, de re-existência.
(...) Não há mais pessoas isoladas e desinformadas. (...) Os grotões
não existem mais. A nossa elite continua a não respeitar as formas de

Coletânea de Artigos 99
100 Brasil Rural em Debate

conhecimento da população, das camadas populares, que têm capaci-


dade de se dar conta dos seus interesses concretos”. (VELHO, 2006)

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Novos
Parte II Atores
Sociais

Coletânea de Artigos 103


104 Brasil Rural em Debate

3. Terras de preto, terras


de santo, terras de índio:
uso comum e conflito*
Alfredo
Wagner**

Sistemas de uso comum


na estrutura agrária
Um aspecto freqüentemente ignorado da estrutura
agrária brasileira se refere às modalidades de uso co-
mum da terra . Analiticamente, elas designam situa-
ções na quais o controle dos recursos básicos não é
exercido livre e individualmente por um determinado
grupo doméstico de pequenos produtores diretos ou
por um de seus membros . Tal controle se dá por meio
de normas específicas instituídas para além do códi-
go legal vigente e acatadas, de maneira consensual,
nos meandros das relações sociais estabelecidas entre
vários grupos familiares, que compõem uma unida-
de social . Tanto podem expressar um acesso estável
à terra, como ocorre em áreas de colonização antiga,
quando evidenciam formas relativamente transitórias
*Nota do editor: O texto
seguinte segue o padrão
intrínsecas às regiões de ocupação recente .
da publicação original,
diferindo dos demais A atualização destas normas ocorre em territórios
artigos . próprios, cujas delimitações são socialmente reco-
**Antropólogo . Professor nhecidas, inclusive pelos circundantes . A territoriali-
visitante do Programa de
Pós-Graduação Socieda- dade funciona como fator de identificação, defesa e
de e Cultura na Ama-
zônia na Universidade
força . Laços solidários e de ajuda mútua informam
Federal do Amazonas e um conjunto de regras firmadas sobre uma base física
pesquisador do Projeto
Processos de Territoriali- considerada comum, essencial e inalienável, não obs-
zação, Conflitos e Movi-
mentos Sociais na Ama-
tante disposições sucessórias, porventura existentes .
zônia . Fapeam-CNPQ . De maneira genérica estas extensões são representadas
por seus ocupantes e por aqueles de áreas lindeiras sob a acepção corrente
de “terra comum” .
Por seus desígnios peculiares, o acesso à terra para o exercício das
atividades produtivas, se dá não apenas através das tradicionais estru-
turas intermediárias da família, dos grupos de parentes, do povoado
ou da aldeia, mas também por um certo grau de coesão e solidarieda-
de obtido face a antagonistas e em situações de extrema adversidade,
que reforçam politicamente as redes de relações sociais . A não ser que
existam relações de consanguinidade, estreitos laços de vizinhança e
afinidade ou rituais de admissão, que assegurem a subordinação de
novos membros às regras que disciplinam as formas de posse e uso da
terra, tem-se interditado o acesso aos recursos básicos .
A limitação da força imperativa destas normas a diferentes territó-
rios descontínuos e dispersos geograficamente, com fundamentos his-
tóricos e etnológicos os mais diversos, chama a atenção para possíveis
invariantes coextensivos ao constante significado de ”terra comum” .
Mais não dados a conhecer ao se privilegiar a territorialidade como
unidade de recorte, desdobrando-se uma multiplicidade de categorias
coirmãs, tais como “terras de parente”, “terras de preto”, “terras de
índio”, “terras de santo”, com o objetivo de proceder a uma investiga-
ção científica de processos sociais inseparavelmente vinculados a estas
normas e aos grupos que as promulgam e acatam .

Noções préconcebidas:
desconhecimento e irrelevância
Os sistemas de usufruto comum da terra por colidirem flagrante-
mente com as disposições jurídicas vigentes e com o senso comum
de interpretações econômicas oficiosas e já cristalizadas, a despeito de
factualmente percebidos, jamais foram objeto de qualquer inventaria-
mento . As extensões que lhes correspondem nunca foram cataloga-
das, quantificadas ou sujeitas às técnicas dos métodos estatísticos e de
cadastramento de imóveis adotadas pelos órgãos de planejamento da
intervenção governamental na área rural . Prevalece a inexistência de

Coletânea de Artigos 105


106 Brasil Rural em Debate

qualquer “interesse prático”para examinar e compreender estes siste-


mas tidos como “obsoletos” . Representariam, sob este prisma, anacro-
nismos mais próprios de crônicas históricas, de documentos embolora-
dos de arquivos, de verbetes dos dicionários de folclore e de cerimônias
religiosas e festas tradicionais . São vistos como uma recriação intelectu-
al de etnógrafos, que incorrem na reedição de antigos mitos ou, quem
sabe, numa idealização dos políticos de ação localizada supostamente
empenhados no reavivamento de utopias caras ao ideário populista .
As manifestações daqueles sistemas são, entretanto, empiricamente
detectáveis por um conjunto finito de especialistas . Tem sido registra-
das por pesquisadores e cientistas sociais, que desenvolvem trabalhos
de campo e de observação direta, por técnicos de órgãos governamen-
tais que realizam vistorias de imóveis rurais e verificações in loco de
ocorrência de conflitos agrários, assim como por integrantes de entida-
des confessionais e voluntárias de apoio aos movimentos dos trabalha-
dores rurais, que executam atividades análogas .
O censo agropecuário da FIBGE (1980) acusa tão somente os denomi-
nados “pastos comuns ou abertos”, assim mesmo em menção contida na In-
trodução e nos comentários à conceituação adotada no recenseamento, sem
qualquer referência à sua dimensão, às áreas geográficas em que se verificam,
à relevância de sua produção e a casos semelhantes em atividades agrícolas .
Por força de uma redução metodológica não apenas a propriedade e a pos-
se, mas também suas formas derivadas, parecem se diluir na complexidade
da categoria censitária “estabelecimento”, indiferentes às particularidades
que regem o processo produtivo das unidades de produção familiar dis-
postas naqueles mencionados sistemas .
As análises econômicas, ao se omitirem na interpretação das mo-
dalidades de uso comum da terra, fundam-se, no mais das vezes, em
noções deterministas para expor o que classificam como sua absoluta
irrelevância . Consideram que se trata de formas atrasadas, inexoravel-
mente condenadas ao desaparecimento, ou meros vestígios do passado,
puramente medievais, que continuam a recair sobre os camponeses,
subjugando-os . Neste enfoque, referem-se às terras de uso comum e a
este estrato da camada camponesa que lhes corresponde, como formas
residuais ou “sobrevivências” de um modo de produção desapareci-
do, configuradas em instituições anacrônicas que imobilizam aquelas
terras, impedindo que sejam colocadas no mercado e transacionadas
livremente . Fatores étnicos, a lógica da endogamia e do casamento
preferencial, as regras de sucessão e demais preceitos, que porventura
reforcem a indivisibilidade do patrimônio daquelas unidades sociais,
são interpretados como um obstáculo à apropriação individual e, por
conseguinte, a que a terra seja livremente disposta no mercado . Não
autorizando formal de partilha ou mecanismos de fracionamento que
permitam a indivíduos dispô-las às ações de compra e venda, aqueles
sistemas de uso comum da terra são entendidos como imobilizando a
terra, enquanto mercadoria no seu sentido pleno, e impedindo que se
constitua num fator de produção livremente utilizado .
Mediante tais argumentos, as interpretações ortodoxas2 delineiam um
quadro de desintegração potencial daqueles sistemas, porquanto fada-
dos ao aniquilamento pelo progresso social e pelo desenvolvimento das
forças produtivas . Em suma, consideram que a expansão capitalista no
campo necessariamente libera aquelas terras ao mercado e à apropriação
individual provocando uma transformação radical das estruturas que
condicionam o seu uso . Às análises econômicas assim elaboradas, soam,
portanto, indiferentes quaisquer das particularidades que caracterizam
as formas de posse e uso comum da terra, visto que jamais constituem
um obstáculo insuperável ao desenvolvimento capitalista3 .

Questão imposta pelas


mobilizações camponesas
Numa conjuntura política favorável ao reconhecimento dos di-
reitos dos trabalhadores rurais de acesso à terra, a questão do conheci-
mento aprofundado das suas modalidades concretas de apropriação dos
recursos básicos colocou-se como objeto necessário de reflexão . Com a
intensificação das mobilizações camponesas por uma reforma agrária am-
pla e imediata, que teve um de seus pontos mais altos no IV Congresso

Coletânea de Artigos 107


108 Brasil Rural em Debate

Nacional dos Trabalhadores Rurais, realizado em Brasília, entre 15 e 30 de


maio de 1985, ocasião em que foi lançada, pelo Mirad-Incra, a Proposta
ao I Plano de Reforma Agrária da Nova República, as suas reivindica-
ções foram desdobradas e detalhadas pormenorizadamente, revelando a
própria força política adquirida pelo movimento social . Inúmeras situa-
ções menosprezadas no período ditatorial, passaram a representar questões
prioritárias e, assim, colocadas aos órgãos fundiários oficiais .
Os sistemas de apossamento pré-existentes em áreas passíveis de de-
sapropriação e regularização, já ocupadas por camponeses, consistiam
dentre muitos outros, num destes pontos4 . A partir daí estavam esta-
belecidas as precondições para se colocar o problema da pertinência
dos sistemas de uso comum da terra e sua importância econômica,
tanto em regiões de colonização antiga, quanto em áreas de ocupação
recente . De maneira concomitante, impunha-se ademais uma reflexão
detida e ágil, assim como medidas urgentes, de caráter emergencial,
que assegurassem a permanência dos trabalhadores nestas terras . Isto
porquanto a situação dominial geralmente indefinida e as dificuldades
de reconstituição das cadeias dominiais tornavam estas áreas preferen-
ciais à ação dos grileiros e de novos grupos interessados em adquirir
vastas extensões . Mais de uma centena e meia de zonas críticas de ten-
são e conflito social, registradas oficialmente no decorrer de 1985 e
1986, no Norte de Goiás, no Maranhão, no Pará, no Ceará, na Bahia
e do Sertão de Pernambuco, referiam-se àquelas situações5 .
Derivam, assim, das pressões encetadas pelos trabalhadores rurais a ins-
trução preliminar de processos com vistas à desapropriação de inúmeros
imóveis rurais e procedimentos técnicos de reconhecimento das denomi-
nadas “terras comum”, como algumas medidas que objetivavam aprimorar
os dados do cadastro técnico do Incra . Começavam a ser criadas, pois, as
condições estatísticas elementares à sua compreensão . Neste âmbito, um
primeiro esforço no sentido de um registro sistemático destas extensões de
uso comum é muito recente e data de julho de 1986 . Trata-se do deno-
minado Laudo Fundiário (LF), elaborado pelo INCRA, que se destina a
levantar informações sobre os imóveis rurais e seus detentores a qualquer
título, parceiros e arrendatários . Nas áreas em que for aplicado o LF subs-
tituirá integralmente a Declaração de Imóveis Rural – DP . Neste docu-
mento, as terras de uso comum receberam a denominação genérica de
“ocupações especiais”, abrangendo dentre outras, as chamadas “terras de
santo”, “terras dos índios” (que não devem ser confundidas com as terras
indígenas), “terras de negro”, “fundos de pasto” e “pastos comuns”, tam-
bém cognominados “terras abertas”, “terras soltas” e “campos”6 .
Pode-se asseverar que as demandas sociais provocaram conheci-
mentos de realidades localizadas, mesmo que não se possa confiar no
rigor da aplicação dos questionários do LF, nos procedimentos bu-
rocráticos de coligir os dados e nos resultados finais, que deverão se
apurados em aproximadamente cinco anos . As apreensões neste sen-
tido, justificadamente, aumentam com a derrocada geral da “reforma
agrária da Nova República”, cuja pá de cal consistiu no decreto que
estabelece limites de áreas para os imóveis rurais a serem objeto de
desapropriação por interesse social e que extingue o INCRA, datado
de 22 de outubro de 1987 .
Não é possível confundir, todavia, o tempo e o produto das ações fun-
diárias com as características peculiares àqueles sistemas de uso comum
aqui referidos . Tais sistemas representam resultados de uma multiplici-
dade de soluções engendradas historicamente por diferentes segmentos
camponeses para assegurar o acesso à terra, notadamente em situações de
conflito aberto . Para tanto foram sendo erigidas normas de caráter con-
sensual e consoantes crenças mágicas e religiosas, mecanismos rituais e
reciprocidades econômicas positivas . A sua aceitação como legítimas não
pressupõe qualquer tipo de imposição . Não constituem, portanto, resul-
tado de injunções pelo uso da força, da persuasão política, religiosa ou
do saber . Tampouco consistem em projetos elaborados para camponeses,
fora de seus marcos políticos e sociais intrínsecos, ou com camponeses, a
partir de experiências de mobilização apoiadas por organizações formais .
Procedendo-se a esta clivagem pode-se entender, em certa medida, por-
que não foram referidas ações implementadas pela Igreja Católica e enti-
dades confessionais que estimulam as chamadas “roças comunitárias” e as

Coletânea de Artigos 109


110 Brasil Rural em Debate

experiências de “coletivação no campo”7 . Também não foram referidos os


denominados projetos de assentamento “em forma de exploração de tipo
coletivo” levados a cabo por órgãos fundiários oficiais, tais como o IN-
CRA, no caso do Saco de Belém8, no Ceará, e o IAF, no caso de Pirituba,
em São Paulo9 .
Outros esclarecimentos se colocam . As reflexões ora desenvolvidas
apóiam-se na literatura produzida por aquele, já mencionado, conjun-
to finito de especialistas . É, no entanto, vária em gênero . Compreende
artigos, ensaios, dissertações de mestrado e exercícios acadêmicos, bem
como trabalhos de investigação histórica . Abrange ainda relatórios,
dossiês e informações técnicas produzidas no âmbito da burocracia
estatal . Em suma, trata-se de diferentes modalidades de conhecimen-
to baseadas em eventos empiricamente observáveis . O que caracteriza
esta produção intelectual e permite aproximá-la é a constatação de que
aí os referidos sistemas são factualmente percebidos e parcialmente
descritos mesmo que de maneira tangencial aos objetivos precípuos de
cada um dos textos arrolados . Prepondera, nesta ordem, a produção
antropológica, resultado de trabalhos de campo realizados nos últimos
quinze anos, secundada pela produção dos técnicos dos órgãos oficiais
de ação fundiária, fruto da observação direta e de verificações locais
de conflitos, empreendidas entre junho de 1985 e dezembro de 1986 .
Cabe esclarecer que nesta produção as terras de uso comum não se
constituíram em objetos de reflexão destacados, sendo tão somente
considerados no decorrer das análises . Este destaque relativo adquire
importância, porque não se pode entender a economia dos pequenos
produtores, dos casos em pauta, sem levá-los em conta . Nas circuns-
tâncias de aplicação direta de conhecimento como em se tratando dos
relatórios alusivos às populações atingidas pela construção de barra-
gens (Itaparica, Brumado – BA) ou de complexos militares (Centro de
Lançamento de Alcântara), impõem-se, contudo, como dados funda-
mentais, face às medidas preconizadas de remoção e reassentamento .
Aliás os relatórios citados, sem exceção, dizem respeito a trabalhos de
ação localizada face a conflitos e tensões sociais, cujo grau de antago-
nismo pressupõe medidas emergenciais .
Uso comum nas regiões de colonização agrária

Fundamentos históricos e descrição


Os sistemas de uso comum nas regiões de colonização antiga po-
dem ser observados sob formas as mais variadas e com certos aspectos
fundamentais comuns, tanto de natureza histórica, quanto relativos ao
tipo de agricultura desenvolvida . Tais aspectos bem os distinguem, em
termos qualitativos, daquelas referencias históricas geralmente aciona-
das e concernentes às “sobrevivências” e “vestígios feudais” . Contra-
riando as interpretações de cunho evolucionista, observa-se que antes
mesmo daqueles sistemas mencionados terem suas bases assentadas em
outros modos de produção, como o escravismo ou o feudalismo, re-
presentam, em verdade, produtos de antagonismos e tensões peculiares
ao próprio desenvolvimento do capitalismo . Constituem-se, por outro
lado, paradoxal e concomitantemente, em modalidades de apropriação
da terra, que se desdobraram marginalmente ao sistema econômico
dominante . Emergiram, enquanto artifício de autodefesa e busca de
alternativa de diferentes segmentos camponeses, para assegurarem suas
condições materiais de existência, em conjunturas de crise econômica
também cognominadas pelos historiadores de “decadência da grande
lavoura” . Foram se constituindo em formas aproximadas de corpora-
ções territoriais, que se consolidaram, notadamente em regiões peri-
féricas, meio a múltiplos conflitos, em um momento de transição,
em que fica enfraquecido e debilitado o poderio do latifúndio sobre
populações historicamente submissas (indígenas escravos e agregados) .
Tornaram-se formas estáveis de acesso e manutenção da terra, que
foram assimilados, sobretudo, nas relações de circulação . Distribuíram-
-se desigual e descontinuamente por inúmeras regiões geográficas sem
guardar necessariamente entre si maiores vínculos, mas quase sempre
cumprindo função de abastecimento de gêneros alimentícios (farinha,
arroz, feijão) aos aglomerados urbanos regionais .
Vale esclarecer, todavia, que se há um sem número de situações em
que a disfuncionalidade explica a tolerância para com as formas de uso

Coletânea de Artigos 111


112 Brasil Rural em Debate

comum, existem, por outro lado, tentativas outras que conheceram


medidas fortemente repressivas e completo aniquilamento, notada-
mente, quando imbricadas em manifestações messiânicas e de ban-
ditismo social . No bojo desses movimentos religiosos e de rebeldia,
notadamente em fins do século XIX10 e primeiras décadas do século
XX11, ocorreram tentativas de estabelecer novas formas de relações so-
ciais com a terra . Promulgaram que a terra deveria ser tomada como
um bem comum, indivisível e livre, cuja produção dela resultante seria
apropriada comunalmente . Tanto no sertão nordestino, quanto no Sul
do país tais movimentos, ao conhecerem uma expansão e desenvolve-
rem o que apregoavam, foram considerados como ameaçando o siste-
ma de poder . Aos estimularem o livre acesso à terra, fora de áreas tidas
como periféricas, contrastavam vivamente com os mecanismos coerci-
tivos adotados nas grandes propriedades, encerrando “grave ameaça”
que findou coibida pela força das armas .
Do mesmo modo, foram duramente reprimidas, mas não necessa-
riamente aniquiladas em toda sua extensão, aquelas tentativas de se es-
tabelecerem territórios libertos, que absorviam, escravos evadidos das
grandes fazendas de algodão e cana-de-açúcar12 . Estas últimas formas
conheceram sua expressão maior com a multiplicação de quilombos
nos séculos XVIII e XIX, encravados em locais de difícil acesso, inclu-
sive nas regiões de mineração aurífera . Lograram êxito, em inúmeras
situações, na manutenção de seus domínios .
Os sistemas de uso comum podem ser lidos, neste sentido, como
fenômenos fundados historicamente no processo de desagregação e
decadência de plantations algodoeiras e de cana-de-açúcar . Repre-
sentam formas que emergiram da fragmentação das grandes explo-
rações agrícolas, baseadas na grande propriedade fundiária, na mo-
nocultura e nos mecanismos de imobilização da força de trabalho
(escravidão e peonagem da dívida) . Compreendem situações em
que os próprios proprietários entregaram, doaram formalmente ou
abandonaram seus domínios face à derrocada . Entenda-se que se
tratavam de terras tituladas, já incorporadas formalmente ao mer-
cado desde, pelo menos, a Lei n .º 601, de 18 de setembro de 1850,
a qual dispunha sobre a mediação, demarcação e venda das cha-
madas “terras devolutas do Império” . Em certa medida ocorre uma
reversão numa tendência tido como ascensional de estabelecimento
de domínios privados com valores monetários fixados .
As flutuações de preço dos produtos primários no mercado inter-
nacional provocaram sucessivas desorganizações no sistema produtivo
das grandes explorações monocultoras . Antes mesmo da abolição da
escravatura, que parece não servir como marco institucional que tenha
favorecido estes sistemas de uso comum da terra, registram-se múlti-
plos casos de desmembramento e desagregação de grandes proprie-
dades fundiárias . Em termos econômicos, o resultado mais imediato
deste processo de dissolução, que se intensificou no final do século
XIX em regiões, cujas grandes explorações não lograram introduzir
inovações tecnológicas ou adotar agriculturas comerciais assentadas
em novas relações de trabalho; consistiu no afrouxamento dos me-
canismos repressores da força de trabalho e na formação de um cam-
pesinato, congregando segmentos de trabalhadores rurais que viviam
escravizados ou imobilizados naquelas unidades produtivas . Em dife-
rentes situações examinadas, conforme se verificará adiante, registra-se
que este campesinato “pós-plantation” não procedeu necessariamente
a uma divisão da terra em parcelas individuais . A garantia da condição
de produtores autônomos, uma vez ausente o grande proprietário ou
por demais debilitado o seu poder, pode conduzir a formas organiza-
tivas, segundo os ditames de uma cooperação ampliada e de formas
de uso comum da terra e dos recursos hídricos e florestais . Tais formas
se impuseram não somente enquanto necessidade produtiva, já que
para abrir roçados e dominar áreas de mata e antigas capoeiras uma só
unidade familiar era insuficiente, mas, sobretudo, por razões políticas e
de autopreservação . Os sistemas de uso comum tornaram-se essenciais
para estreitar vínculos e forjar uma coesão capaz, de certo modo, de
garantir o livre acesso à terra frente a outros grupos sociais mais pode-
rosos e circunstancialmente afastados . Uma certa estabilidade territo-
rial foi alcançada pelo desenvolvimento de instituições permanentes,
com suas regras de aliança e sucessão, gravitando em torno do uso

Coletânea de Artigos 113


114 Brasil Rural em Debate

comum dos recursos básicos . Este passado de solidariedade e união


intima é narrado como “heróico” pelos seus atuais ocupantes, mais de
um século depois e também visto como confirmação de uma regra a
ser observada para continuarem a manter seus domínios . Para além da
representação idealizada, destaca-se que estabeleceram uma gestão eco-
nômica peculiar, ou seja, não necessariamente com base em princípios
de igualdade, mas consoante diferenciações internas e interesses, nem
sempre coincidentes, de seus distintos segmentos .
Ao contrário do que poderiam supor as análises deterministas verifica-
-se que há formas de uso comum da terra, que consistem em processos
sociais resultantes de contradições do próprio desenvolvimento do capita-
lismo . A partir destas é que foram harmonizados de maneira consolidada
interesses de diferentes segmentos camponeses . Assim, os mecanismos que
nas formulações ortodoxas deveriam fatalmente destruí-los ou absorvê-los
constituem, justamente, suas fontes e determinações principais . Não teria
ocorrido nestes casos uma transformação em proletário do ex-escravo e
do camponês subjugados ao latifúndio . Verifica-se o acamponesamento
do primeiro e uma redefinição da condição do segundo, transformado,
segundo expressão da literatura econômica, em campesinato livre .
Estes segmentos de camponeses e seus descendentes passaram a se
auto-representar e a designar suas extensões segundo denominações
específicas atreladas ao sistema de uso comum . A noção corrente de
terra comum é acionada como elemento de identidade indissociável do
território ocupado e das regras de apropriação, que bem evidenciam,
através de denominações específicas, a heterogeneidade das situações
a que se acham referidas, a saber: “terras de preto”, “terras de santo”,
“terras de Irmandade”, “terras de parentes”, “terras de ausente”, “terras
de herança” (e/ou “terras de herdeiros”) e “patrimônio” .

As terras de preto
Tal denominação compreende aqueles domínios doados, entregues
ou adquiridos, com ou sem formalização jurídica, por famílias de ex-
-escravos . Abarca também concessões feitas pelo Estado a tais famílias,
mediante a prestação de serviços guerreiros . Os descendentes destas
famílias permanecem nessas terras há várias gerações sem proceder ao
formal de partilha, sem desmembrá-las e sem delas se apoderarem indi-
vidualmente . Além de detectáveis na Baixada Ocidental13, nos Vales dos
Rios Mearim14, Itapecuru e Parnaíba15, no Estado do Maranhão, e na
zona limítrofe deste com o Piauí, são também observáveis no Amapá, na
Bahia16, no Pará, bem como, em antigas regiões de exploração mineral
de São Paulo e Minas Gerais, onde as agriculturas comerciais não chega-
ram a se desenvolver de maneira plena .
Abrangida também pela denominação encontram-se algumas situa-
ções peculiares em que se detecta a presença de descendentes diretos de
grandes proprietários, sem grande poder de coerção, adotando o afora-
mento, ou seja, mantendo famílias de ex-escravos e seus descendentes
numa condição designada como de foreiros, sem quaisquer obrigações
maiores, possibilitando, inclusive, uma coexistência de formas de uso
comum com a cobrança simbólica de foro incidindo sobre parcelas por
família, visando não deixar duvidas sobre seu caráter privado . Os valo-
res estipulados para pagamento são geralmente tidos como irrisórios e
os próprios camponeses terminam por defini-los como “simples agra-
do”17 . Observa-se ainda que nestas regiões as agriculturas comerciais
(cacau, café, algodão, cana-de-açúcar) não foram desenvolvidas .
A expressão “terra de preto” alcança também aqueles domínios ou
extensões correspondentes a antigos quilombos e áreas de alforriados nas
cercanias de antigos núcleos de mineração, que permaneceram em iso-
lamento relativo, mantendo regras de uma concepção de direito, que
orientavam uma apropriação comum dos recursos . Registrados em re-
giões do Tocantins Goiano18 e da Serra Geral19 no Norte de Goiás, no
Vale do Maracassumé, no Maranhão; e nas antigas áreas mineradoras de
Goiás e São Paulo20 .
Sublinhe-se que há ainda as denominadas “terras de preto” que
foram conquistadas por prestação de serviços guerreiros ao Estado,
notadamente na guerra da Balaiada (1838-41) . A incorporação mi-
litar de escravos evadidos, que atuavam como “bandos armados”, foi

Coletânea de Artigos 115


116 Brasil Rural em Debate

negociada e o pagamento consistiu em alforria e entrega de terras


ao “chefe dos bandos” . A evocação deste mesmo ancestral comum
tem reforçado, durante século e meio, os laços solidários do grupo e
certas regras de uso comum, mesmo após o assentamento promovido
pelo INCRA-MA, nos anos 1976-77, em Saco das Almas21 .
Estas vias de acesso à terra22 ocorrem, pois, com a desagregação da
“plantation” ou fora de seus limites estritos, quando estão relativamen-
te desativados os mecanismos de repressão da força de trabalho . Não
correspondem precisamente às situações abrangidas pela noção de
“proto-campesinato escravo”, isto é, “as atividades agrícolas autônomas
dos escravos nas parcelas e no tempo para cultivá-las, que lhes eram
concedidos dentro de plantation” (CARDOSO, 1987: 224) (g .n .) 23 .

As terras de santo
Para efeito de ilustração e com vistas a uma primeira tentativa de
apreender o significado da expressão “terra de santo”, pode-se dizer
que ela se refere à desagregação de extensos domínios territoriais per-
tencentes à Igreja . A desorganização das fazendas de algodão, a partir
da segunda década do século XIX, levou, por exemplo, no Maranhão,
a que imensas extensões exploradas por ordens religiosas (jesuítas e
depois carmelitas, mercedários) fossem abandonadas ou entregues a
moradores, agregados e índios destribalizados e submetidos a uma
condição de acamponesamento, que ali já cultivavam . Nesses domí-
nios, à molde de outros com fundamentos históricos aproximados,
passaram a prevalecer formas de uso comum, mesmo após as auto-
ridades eclesiásticas terem interferido e entregue formalmente estas
terras à administração do Estado, em finais do século XIX . Consoan-
te o santo padroeiro destas fazendas, foram sendo adotadas denomi-
nações próprias, que recobriam seus limites e lhe conferiam unidade
territorial . Assim, tem-se as terras de Santa Tereza, de Santana e de
São Raimundo24 . Aliás, neste particular, não diferem das chamadas
“terras de preto”, que tem como designação secundária a apoiá-las
denominações de entidades religiosas, tais como: São Roque, Santo
Antonio dos Pretos, São Cristóvão, São Domingos, Bom Jesus, São
Miguel etc . Nas chamadas “terras de santo”, entretanto, as formas
de uso comum coexistem, ao nível da imaginação dos moradores,
com uma legitimação jurídica de fato destes domínios, onde o san-
to aparece representado como proprietário legítimo, a despeito das
formalidades legais requeridas pelo código da sociedade nacional25 .
Sobressaem nestas unidades sociais os denominados “encarrega-
dos” ou lideranças do grupo que teriam basicamente funções vincu-
ladas ao ciclo de festas e ao cerimonial religioso . Além de administra-
rem os bens do santo, arrecadando um pagamento simbólico entre as
famílias de moradores, geralmente denominado jóia (PRADO, 1975
ibid), mantém a coesão do grupo acionando rituais de devoção .
As denominadas “terras de santo” têm sido detectadas também nas
regiões de grandes explorações de cana-de-açúcar da Zona da Mata per-
nambucana, cujas unidades produtivas se modernizaram em fins do
século XIX com o advento dos engenhos centrais e das usinas . Nestas
situações, encontram-se atreladas a uma noção que abrange extensões
de terras disponíveis e abertas à pequena produção em contraposição
às grandes propriedades fundiárias circundantes . Nem sempre abrigam
formas de uso comum da terra e respondem também pela denominação
de “patrimônio”, abrangendo, no mais das vezes, povoados campone-
ses encravados dentro de grandes propriedades, que permanentemente
ameaçam intrusar seus domínios 26 .
A noção de “patrimônio do santo” remete ainda às regiões de expan-
são da frente pecuária no sertão nordestino, onde os campos e aguada
são mantidos sob regras de uso comum27 .
Remete também a ambiguidades que envolvem as chamadas “terras
da Igreja”, como no caso de “patrimônio” de Nossa Senhora da Concei-
ção do Município de Benevides, Pará . Inicialmente as autoridades dio-
cesanas recebiam dos camponeses, que cultivavam as terras do patrimô-
nio, contribuições anuais definidas como “renda” . Em meados de 1983,
entretanto, os camponeses recusaram a aceitar uma elevação do preço

Coletânea de Artigos 117


118 Brasil Rural em Debate

da “renda”, consoante a legislação . Alegaram que a “terra era da santa”


e não das autoridades eclesiásticas . A chamada “renda” era vivida como
simbólica, correspondendo a doações voluntárias e não necessariamente
prefixadas .
As denominadas “terras de irmandade” constituem uma variante
dessas formas de apossamento em antigos domínios de ordens reli-
giosas . Foram observadas também no Estado do Rio de Janeiro, com
referência aos confrontos e tensões verificadas na área conhecida como
São José da Boa Morte28 .

As terras dos índios


Compreendem domínios titulados, que foram entregues formalmen-
te a grupos indígenas ou seus remanescentes, na segunda metade do sé-
culo passado e princípios deste, sob a forma de doação ou concessão por
serviços prestados ao Estado . Abertura de estradas pioneiras, colaboração
com expedições militares de desbravamento e outros serviços realizados
em obras públicas explicam tais atos de consentimento . As titulações, en-
tretanto, referem-se, muitas vezes, a tratos individuais, tendo sido conce-
didas a apenas determinado grupo de famílias . Destaque-se que práticas
administrativas semelhantes, ao longo do tempo, têm nutrido tensões
internas de difícil conciliação mesmo em áreas oficialmente classificadas
como “terras indígenas” 29, como sucede como os Potiguara da região de-
nominada “extinta sesmaria dos índios de Monte-Mor” (LOBATO DE
AZEVEDO, 1986: 241), na Paraíba, a quem foram concedidos títulos
de posses particulares pelo governo imperial entre 1867-6930 .
Tanto no Nordeste, quanto em regiões do Sul, aqueles grupos alcan-
çados pelas concessões governamentais, a exemplo de outros das áreas
de colonização antiga, conheceram uma acelerado processo de destri-
balização e de perda gradativa de identidade étnica e passam, no mo-
mento atual, por um processo de acamponesamento . A despeito deste
processo que implicou, inclusive, em perda da língua e de outros itens
de cultura, nota-se que seus descendentes diretos permanecem nestes
domínios, contrapõem-se às tentativas de intrusamento e continuam
a denominá-los pela expressão com que foram originalmente tratados
pela legislação e tal como são designados localmente, ou seja, “terra dos
índios” 31 . Mantém-se cultivando e habitando nestas áreas, há várias
gerações, sem qualquer ato de partilha legal que autorize apropriações
individuais e desmembramentos . Correspondem a diversas extensões,
localizadas no Vale do Pindaré (MA), no sertão nordestino, com inú-
meros povoados e centenas de famílias, que adotam o uso comum
dos recursos básicos e que também os denominam de “terra comum”
(PAULA ANDRADE, 1985 ibid) .
Os domínios aqui referidos não se encontram entre as áreas indíge-
nas reconhecidas pela FUNAI e nem seus ocupantes postulam tal, di-
ferentemente de outros grupos, como os chamados Tapeba, no Ceará .
É que nas situações enfocadas não se registra uma tentativa de recria-
ção da identidade étnica como meio de acesso à terra . A manutenção
dos domínios nestes casos encontra-se assegurada de maneira plena,
gerações após gerações . Isto, não obstante, possíveis tensões existen-
tes entre a apropriação de tratos individuais e aquela das áreas de uso
comum . Há momentos em que o acirramento das tensões internas
ou de conflitos com os antagonistas tradicionais e externos levam os
descendentes diretos a exibirem documentos que crêem comprobató-
rio dos direitos outorgados a seus ancestrais . A eficácia desta crença é
julgada maior quando se defrontam com ameaças que julgam prove-
nientes daqueles que adotam as normas legais vigentes . Nestes con-
textos, que tanto podem ser de estabelecer estratagemas para enfren-
tar grileiros, quanto de decidir quem deve pagar para cultivar; tem-se
reforçadas as regras que disciplinam a unidade social . Mecanismos de
harmonização e equilíbrio entre os interesses individualizadores e aque-
les favoráveis ao uso comum mantém uma certa coesão, mobilizando-
-os constantemente . Ao contrário, percebe-se que domínios classifica-
dos oficialmente como áreas indígenas32 especialmente no Nordeste,
não dispõem de mecanismos para conciliar interesses e mesmo de ado-
tar uma atitude consensual face aos instrumentos, que já usurparam
parte considerável das respectivas áreas .

Coletânea de Artigos 119


120 Brasil Rural em Debate

Desse modo, os casos referidos diferem daquelas extensões identifi-


cadas, delimitadas ou demarcadas legalmente que constituem as “ter-
ras indígenas” . Com propósito de uma primeira abordagem podem
ser aproximados daquelas situações de espólios indivisos, posto que
os títulos não foram revalidados com a morte do titular de direito e,
ainda que tenha ocorrido o parcelamento, jamais foram assim apro-
priadas passado pelo menos um século . Novamente está-se diante de
uma reversão das medidas organizadoras do mercado de terras a partir
da legislação de outubro de 1850 . As titulações de posses particulares a
partir da demarcação de parcelas individuais, não obstante realizadas,
não conseguiram com que a ocupação da terra fosse pautada pelos
cânones do direito civil . Procedeu-se aos atos formais, entretanto os
ocupantes, sem contestações significativas, engendraram suas próprias
regras de posse e uso da terra . Guardaram zelosamente os títulos sem
nunca revalidá-los (LOBATO DE AZEVEDO , ibid) contudo, e as
próprias famílias conhecidas como “dos herdeiros” (PAULA ANDRA-
DE , ibid) trataram de diluir o planejado parcelamento na rotina das
formas de uso comum .

As terras de herança
Abrangem domínios titulados, tornados espólios que permanecem
indivisos, há várias gerações, sem que se proceda ao formal de partilha
ou que seus títulos tenham sido revalidados por meio de inventários
que, consoantes disposições legais, teriam que ser realizados quando da
morte do titular de direito, a fim de transmiti-los a seus herdeiros legí-
timos . As chamadas “terras de preto” e “terras dos índios”, igualmente
tituladas, podem também responder por esta designação em contextos
que envolvem disputas pela legitimação jurídica dos domínios . Junto a
elas constata-se, ainda, situações em que a desagregação de grandes ex-
plorações levou a uma condição de acamponesamento os descendentes
diretos de famílias dos outrora grandes proprietários . Diferem mar-
cadamente numa primeira geração, posto que para os camponeses o
título só se coloca como uma defesa de seus direitos de cultivo, contra
direitos alegados por outros grupos sociais, que mantém com a terra
uma relação mercantil .
Durante várias gerações, que adensam a ocupação destes domínios,
além de serem estabelecidas formas peculiares de utilização da terra, que
permitem classificá-las junto àquelas de uso comum, percebe-se que a
apropriação individual, em termos absolutos, perde gradativamente sua
força num contexto em que os recursos são por demais escassos e que o
grupo familiar não pode prescindir de reciprocidades econômicas . De
maneira concomitante são adotadas medidas para contornar possíveis
pressões de natureza demográfica, dado que o estoque de terras se man-
tém permanente, e para estimular o exercício de atividades acessórias .
Não se constata a contratação de terceiros e a força de trabalho é com-
posta exclusivamente por membros do grupo familiar . Tais situações
manifestam-se em regiões tradicionais de frente pecuária no sertão nor-
destino33 . A inexistência de formal de partilha, entretanto, é observada
em quase todas as regiões de colonização antiga do país .
A custódia dos documentos e das escrituras compete a grupos fami-
liares, que detém uma autoridade considerada maior, que tanto pode ser
por atributos econômicos, religiosos ou do grau de parentesco com os
ancestrais comuns . Designadas como os “herdeiros” (PAULA ANDRA-
DE, ibid), tais famílias funcionam também como árbitros de quaisquer
disputas, tais como “onde colocar o novo roçado”, “a quem se concede a
licença de capoeira”, “quem deve pagar a renda” ou “quais os isentos de
determinadas obrigações”etc . A eles competiria, pois, discernir na aplica-
ção das normas, arbitrando contendas e atualizando regras .
Percebe-se também a ocorrência de expressões coirmãs, no caso destes
espólios . Trata-se das expressões “terra de parente” e “terra de ausente” .
Esta última se refere a casos em que foram realizados autos de parti-
lha sem que herdeiros, porém, tenham se apropriado efetivamente das
parcelas que lhes foram legalmente destinadas . Estas extensões acabam
sendo consideradas liberadas ao cultivo pelos demais componentes do
grupo familiar34 .

Coletânea de Artigos 121


122 Brasil Rural em Debate

As terras soltas ou abertas


A utilização de formas de uso comum nos domínios em que se exer-
cem atividades pastoris parece ser uma prática por demais difundida
em todo o sertão nordestino, desde os primeiros séculos da frente pe-
cuária, e em algumas regiões da Amazônia, na Ilha de Marajó, e no
Sul do país, no Paraná e em Santa Catarina . No sertão nordestino
as grandes propriedades jamais foram cercadas e mesmo seus limites,
quase sempre imprecisos, sempre se confundiram gerando disputas en-
tre seus proprietários . Consoante os códigos de posturas municipais as
aguadas eram de uso comum e o gado permanecia sendo criado solto .
Somente os roçados deveriam ser mantidos com cercas para evitar fos-
sem destruídos pelos rebanhos . A inexistência de cercas para o criatório
levava a que reses de diferentes proprietários se mantivessem juntas e
aparentemente indiferenciadas pelos campos35 .
Os denominados “faxinais” da Região Sul36 podem ser aproximados
destas formas, ressalvando-se que constituem extensões delimitadas para
o pastoreio a partir de acordo estabelecido pelos detentores dos títulos,
em sua maior parte pequenos proprietários . Os chamados “pastos co-
muns” ou “campos” da Ilha de Marajó37, assim como os campos na-
turais da Baixada Maranhense38 guardam maior proximidade com as
regras da pecuária extensiva do sertão nordestino . Aí também o ato de
apartar ou separar o gado criado solto para ser entregue aos seus res-
pectivos donos acontece antes da invernada e recebe igualmente a de-
nominação de apartação39 . Prevalecem nestas regiões expressões como
“fundo de pasto”, áreas comuns mais afastadas dos locais onde se erguem
as sedes das fazendas, ou “terras soltas”, isto é que não conhecem cerca-
mentos, ou “campos” ou “pastos comuns” ou “abertos”, de acordo com
o Censo Agropecuário da FIBGE (1980) .
Constata-se neste contexto uma outra noção já verificada, quando se
tratou das chamadas “terras de santo”, ou seja, “patrimônio” . Desdo-
bra-se em significados . A noção de “patrimônio da comunidade rural”,
empregada por SOUZA (ibid, 29), não se confunde, por exemplo, com
aquela concernente ao “patrimônio dos santos padroeiros” (SOUZA,
ibid, 22) . Esta última se restringe às terras e ao gado doado por grandes
proprietários para a construção de templos religiosos ou para arrecadar
fundos a cada comemorativa do respectivo santo . A outra, por sua vez,
diz respeito a um conjunto de recursos essenciais – aguadas, fontes e
pastagens – que, a despeito de estarem sob domínio privado e serem
áreas tituladas, encontram-se dispostas a uma apropriação comum . A
noção de “patrimônio da comunidade rural” se sobrepõe, pois, a uma
estrutura fundiária com base nos limites dos imóveis rurais, traçados
a partir dos memoriais descritivos das escrituras e da área firmada em
título . Sob esta concepção, mesmo os pequenos proprietários podem
manter suas reses soltas já que as regras asseguram a manutenção e a
reprodução dos rebanhos de vastíssimas redes de vizinhança nos terre-
nos secos das caatingas . Quaisquer que sejam seus detentores, eles têm
direitos assegurados, inclusive, a nível formal pelos códigos de postura
municipais, à exceção das serras frescas, onde a lavoura é que continua
sendo praticada no aberto .
O acesso à terra não estaria condicionado ao título de propriedade
e há casos em que mesmo os que aforam “terras” para cultivo mantém
reses nestes chamados “pastos comuns” 40 . A inexistência de formal de
partilha, somada às freqüentes imprecisões de limites e a alguns bolsões
de terras públicas, também alcançadas pelo uso comum, contribuíram
para consolidar uma relação com os meios de produção, regulada bai-
xo a coexistência de duas modalidades de apropriação: posse e uso co-
mum e propriedade privada, atendendo basicamente às expectativas de
reprodução de uma pecuária extensiva . Os cercamentos recentes destes
“pastos comuns” e os repetidos casos de gado invadindo roçados, numa
clara tentativa de afastar os pequenos produtores destes domínios, tem
tornado estas áreas zonas críticas de conflito e tensão social41 . Os peque-
nos produtores rurais, que tradicionalmente não têm sido os principais
beneficiados deste sistema de uso, atualmente têm sido compelidos a se
afastarem, dada à concentração de domínios por grandes proprietários e
novos grupos interessados na terra, cujos projetos de pecuária intensiva
usufruem de incentivos fiscais e outros benefícios governamentais .

Coletânea de Artigos 123


124 Brasil Rural em Debate

Uso comum nas regiões de ocupação recente

As terras libertas e os centros


Nas frentes de expansão42, que avançam desigualmente na região
amazônica, segmentos camponeses consideram a terra como um bem
não sujeito à apropriação individual em caráter permanente . O movi-
mento de ocupação adquire sua expressão mais concreta nos pequenos
aglomerados que se vão formando próximo aos novos locais de plantio
que os camponeses, com o encapoeiramento dos antigos roçados, esta-
belecem, sucessivamente, no interior das extensões de mata43 . Desig-
nados regionalmente como “centros” tais locais de moradia e trabalho,
onde são abertos os novos roçados, constituem a ponta de lança das
frentes de expansão ou os seus segmentos mais destacados de penetração
(SANTOS, 1983: 23) . Além da apropriação dos recursos básicos não ser
permanente não são contíguos às terras que cada grupo familiar explora .
As famílias camponesas que acatam tais regras não compõem um gru-
po de trabalho autolimitado . Seus integrantes, em distintas etapas do
ciclo agrícola, firmam múltiplas relações de reciprocidade com outros
grupos domésticos . Algumas tarefas como o desmatamento e a colheita
do arroz, requerem níveis específicos de cooperação . A coincidência no
tempo, das etapas do calendário agrícola, aproxima diferentes grupos
familiares fixando padrões de ajuda mútua . Interdita-se o chamado “cen-
tro” à criação de animais, mantendo-se os roçados sem cercar .
Não se autoriza seja semeado capim e prevêem reservas de mata, iga-
rapés e cocais, que não podem ser apropriados individualmente . De
maneira concomitante são estabelecidas área de apropriação comum e
definidos os critérios de admissão de novos grupos domésticos . A anu-
ência ocorre pela concessão das chamadas “licenças de capoeira”, que
possibilitam aos recém admitidos se estabelecerem dispondo de condi-
ções elementares . Somente as benfeitorias, produto do trabalho familiar,
tornam-se objeto de virtuais transações . Semelhante representação difere
daquela prevalecente em áreas de colonização antiga, onde se percebem
famílias camponesas dispostas de maneira durável numa extensão de ter-
ra transmitida de geração em geração . Assim, nas regiões de fronteira
não se registra um patrimônio constante em terras e benfeitorias sujeito
a fracionamento e tradicionalmente repassado de uma geração a outra .
Observa-se uma característica de ocupação efetivada por gerações de um
campesinato expropriado, que já procederam a contínuos e intermiten-
tes deslocamentos do Nordeste até essas regiões de terras disponíveis,
designadas, por eles como “terra liberta” ou “terra sem dono” . A abun-
dância do recurso básico, as próprias condições que determinam o aces-
so e os frequentes conflitos face44 à indefinição dominial e à grilagem
impossibilitam uma reprodução do regime de posse e uso vigente nas
regiões de origem, ou seja, áreas de colonização antiga .
Haveria ainda nestes denominados “centros” instrumentos escassos
e de propriedade de um determinado grupo familiar, que se acham
sob uma reciprocidade generalizada . Pilão, forno, casa de farinha e
animal de tração podem ser compartilhados voluntariamente . Nestes
gestos recíprocos os aspectos sociais da relação entre as famílias cam-
ponesas transcendem os aspectos materiais, não sendo incorporados
aos cálculos propriamente econômicos . Partilha-se também volunta-
riamente a disposição de moradias nos centros, o produto da caça,
da pesca e da coleta de certos frutos . Aliás, a área para construção
das casas é escolhida em comum acordo com o denominado “assi-
tuante”, ou seja, o primeiro a colocar roçados e habitação abrindo o
“centro” e convidando outros grupos familiares a ali se instalarem . A
limpeza de caminhos, a construção de casas e a manutenção das áreas
de trânsito, nas partes centrais dos povoados, também são realizados
em cooperação45 . Os produtos dos roçados, por sua vez, não se en-
contram sujeitos a partilhas, são indivisíveis, mesmo que formas de
cooperação com outros grupos tenham sido acionadas em diferentes
etapas do ciclo agrícola . Trata-se de atividade principal e autônoma à
realização econômica da unidade de trabalho familiar .
Os camponeses percebem suas atividades naqueles domínios mencio-
nados como parte de interesses sociais comuns . A reciprocidade generali-
zada representa um componente destacado da vida social, não obstante,

Coletânea de Artigos 125


126 Brasil Rural em Debate

as disputas internas, o faccionalismo e a diferenciação econômica que


quebram com as visões idílicas de unidade camponesa . Além disto, o
processo de descampesinização, nas regiões de fronteira, espelha uma
mobilidade social que agrava aqueles antagonismos truculentos por par-
te de grileiros que buscam usurpar estes domínios de posse46 .

Diferenciação interna e antagonismos

I
A representação da terra nas regiões em que se verificam formas de
uso comum, excetuando-se os campos e pastagens comuns, remete às
regras de um direito camponês que prescrevem métodos de cultivo
em extensões que podem ser utilizadas consoante a vontade de cada
grupo familiar, sem exigência de áreas contíguas e permanentes ou de
ter o conjunto de suas atividades produtivas confinadas numa parcela
determinada . Não há contigüidade entre as áreas de cultivo de um
mesmo grupo familiar . Os seus roçados distribuem-se, segundo uma
certa dispersão, pelas várias áreas destinadas, consensualmente, aos cul-
tivos . Não se registra também contigüidade entre estas áreas e aquelas
onde se localizam os demais recursos apropriados . Delineiam-se, ain-
da, intercaladas entre as áreas de cultivo apropriadas individualmente
pelos grupos familiares, domínios de uso comum, que não pertencem
a nenhuma família em particular e que são considerados vitais para a
sobrevivência do conjunto das unidades familiares . Nestes sistemas são
articulados domínios de posse e usufruto comunal com regras de apro-
priação privada . A casa e o quintal com seus jiraus de plantas medici-
nais, com seus pomares e pequenas criações avícolas são apropriados
individualmente pelos respectivos grupos familiares, do mesmo modo
que o produto das colheitas e os demais frutos dos roçados . O resulta-
do desta ação de trabalho pertence individualmente ao grupo domés-
tico que a realizou ou a um de seus membros em particular, como no
caso das denominadas “rocinhas”, que são cultivadas para atender a
uma determinada necessidade de consumo .
Semelhante articulação de domínios confronta-se com as normas le-
gais vigentes . Seu significado não coincide, antes colide com as formas
de apropriação legalmente assinaladas . Todavia não é necessariamente
infratora das leis . Há níveis de assimilação assegurados de fato no plano
das relações de circulação e permitindo seja absorvida, sem senões, a
produção agrícola correspondente .
Os fundamentos deste confronto não são redutíveis às oposições usu-
almente estabelecidas entre o privado e o comunal, entre o individual e o
coletivo ou entre o legal e o fundado nos costumes . A própria noção de
posse comunal soa inadequada para nomear estes domínios, já que seu
significado encontra-se fortemente marcado pelas referências às “comunas
primitivas” . Carecem igualmente de rigor as interpretações de inspiração
evolucionista que fazem com que um dos pólos, por aproximações su-
cessivas, se dilua no outro . No desenvolvimento deste tipo de análise, as
normas de privatização gradativamente iriam se impondo com a conco-
mitante derrocada do império das entidades familiares ou tribais e suas
respectivas formas de cooperação e reciprocidade consideradas inibidoras
dos direitos individuais . Em sentido contrário, mas com pressupostos si-
milares, tem-se aquelas outras interpretações que consideram as formas de
uso comum como formas incipientes de socialismo, tomando o comunal
como coletivo e reproduzindo análises aproximáveis àquelas dos populis-
tas de fins do século XIX47 .
Aparecem imbricadas nas normas camponesas, que as articulam e
combinam, as noções de propriedade privada e de apossamento através
do uso comum . Tais noções se realizam indissociadas em diferentes
domínios da organização social . Não representam elementos destacá-
veis ou propensos à separação . Conjugam-se e se completam dentro
de uma lógica econômica específica . A noção de propriedade privada
existe neste sistema de relações sociais sempre marcada por laços de
reciprocidade e por uma diversidade de obrigações para com os demais
grupos de parentes e vizinhos .
Assim pensados, tais sistemas de uso comum diferem qualitativamen-
te daquelas situações concernentes às “comunas primitivas”, em que as

Coletânea de Artigos 127


128 Brasil Rural em Debate

atividades produtivas são realizadas em comum e o produto é igualmen-


te apropriado de forma comunal, salvo a parte proporcional reservada
para a reprodução . As necessidades do consumo é que orientariam, nes-
sas comunas, os critérios de repartição do produto das colheitas .
Estes sistemas referidos nada têm a ver também com as recriações sa-
vants ou religiosas de formas comunais e com as recentes redescobertas
das “origens do comunalismo”, baseadas em utopias e em experiências
como as de R . Owen, Fourier e J . Warren48 .

II
As unidades sociais aqui referidas não representam totalidades ho-
mogêneas e de caráter igualitário, como se poderia imaginar . Pelo con-
trário estão atravessadas por um grau de diferenciação interna bastante
forte, mas não o bastante para fazê-las eclodir em antagonismos inso-
lúveis . A desigualdade no acesso aos recursos básicos existe no interior
destas unidades, não se podendo revelar apenas os aspectos comunais
da cooperação . Estes servem como elemento contrastante para fora e
frente aos antagonistas que visam usurpar seus domínios com preten-
sões de concentração da propriedade fundiária através de grilagens .
A gestão que os camponeses, livres dos mecanismos repressores da
força de trabalho, realizam nestes domínios não se apóia em princípios
gerais de igualdade . Há hierarquias e diferenciações econômicas que não
permitem confundi-la com modalidades de apropriação coletiva ou com
formas associativas implementadas pelos órgãos oficiais . As terras de uso
comum tanto em áreas de ocupação recente, quanto nas regiões de colo-
nização antiga, apresentam-se sujeitas a um controle efetivo pelos grupos
familiares mais abastados do campesinato, não obstante, os domínios
de uso comum se constituírem em uma fonte potencial de recursos es-
senciais, sobretudo, para os camponeses mais pobres . Àqueles grupos
corresponde o monopólio da administração das cerimônias religiosas
nas chamadas “terras de santo”, assim como a cobrança das denomina-
das “jóias”, ou contribuições voluntárias que cada família anualmente
oferece ao santo . A apropriação privada do fundo de manutenção pelas
famílias dos “encarregados”, nas denominadas “terras de santo”, e dos
“herdeiros”, nos domínios titulados sem formal de partilha, consolidam
diferenciações entre os vários segmentos . Do mesmo modo as famílias
de “assituantes” nos denominados “centros” detém maiores possibilida-
des de comercialização da produção agrícola e de localização de seus
roçados nas faixas de maior fertilidade . Tais segmentos são responsáveis,
nas áreas tituladas, pela guarda da documentação e funcionam em todas
elas como os principais guardiães da vigência das regras de uso comum .
A consolidação da diferenciação leva a tensões agudas entre os mem-
bros destes grupos familiares mais avançados . Há aqueles que esposando
um nítido projeto de descampesinização empenham-se em dispor aque-
las terras ao mercado . Assim, nas chamadas “terras de índios”, um dos
membros da família designada como dos “herdeiros” (PAULA ANDRE,
ibid) é que pretende vender toda a área a uma empresa agropecuária, en-
trando em conflito com todo o grupo familiar e por extensão com o con-
junto de famílias daquela unidade social . Nos denominados “centros”,
percebe-se membros da família do “assituante” (SANTOS, 1983, ibid)
querendo impor uma cobrança de “renda” à revelia do próprio líder . En-
tão pode-se dizer que as famílias abastadas são as principais beneficiárias
do sistema de uso comum, pode-se dizer também que as tensões internas
aí verificadas, transcendem os limites de uma disputa familiar e afetam
a unidade social como um todo . Uma maior tecnificação, as possibili-
dades de comercialização e as relações de intermediação com os poderes
regionais, tornam estas famílias ou pelo menos alguns de seus membros
com mais probabilidade de adotar um projeto de descampesinização .
Este tipo de disputa nos casos mencionados não indica que o tal projeto
tenha logrado êxito sobre os domínios mantidos pelo grupo .

III
As situações referidas, passado mais de um século, em se tratando
das regiões de colonização antiga, e muitas décadas, quando se men-
ciona as áreas de ocupação recente, continuam a manter um sistema
de uso comum e tem relevância nas respectivas economias regionais49 .
As denominações examinadas prosseguem funcionando como categorias
Coletânea de Artigos 129
130 Brasil Rural em Debate

de confronto, por meio das quais uma unidade social se distingue e se


contrapõe a outras, afirmando seus direitos inalienáveis . O fato de man-
terem uma atualidade é bem indicativo de que mantém sua eficácia face
aos antagonistas . Por outro lado, indica também que são constantes as
situações de conflito e tensão que as ameaçam . Neste aspecto, acentuam-
-se, quando se verifica que os índices alarmantes de violência no campo e
a concentração da propriedade fundiária manifestam-se consoante uma
ação geral, cujos objetivos são dirigidos notadamente contra os fatores
considerados imobilizantes . Tais sistemas de uso comum são representa-
dos como formas ideológicas de imobilização, que favorecem a família
camponesa, a comunidade, a tribo ou a etnias não permitindo conferir
à terra um sentido pleno de mercadoria50 . São vistos como impedindo
que imensos domínios sejam transacionados nos mercados imobiliários
capitalistas . Devido a isto, sob esta ótica, precisariam ser desativados para
que os referidos mercados possam absorver livremente nossas extensões,
com valores monetários fixados . A expansão capitalista lograria, deste
modo, destruir tais formas convertendo as terras de uso comum à possi-
bilidade de apropriação individual, resgatando-as ao mercado pela des-
mobilização daqueles fatores, que são vistos como subvertendo, em certa
medida, o caráter privado da apropriação . Tais transações imobiliárias
e o respectivo registro legal e individual destas terras constituem me-
canismos fundamentais ao desenvolvimento capitalista em detrimento
das práticas de mercado de sistemas econômicos específicos e subordi-
nados . Os mercados informais que abarcam as transações de terras e as
permissões de plantio entre camponeses, que não são escrituradas e se
apoiam em contratos verbais, como as chamadas licenças de capoeira ou
as transações que envolvem as denominadas “posses itinerantes” 51; que
compreendem regras de sucessão e transferência que desconhecem os câ-
nones legais . Estas práticas contrapõem-se a uma ideia de modernização
agrícola apoiada em operações creditícias junto a empresas bancárias e às
agências do mercado financeiro em geral .
O tipo de contradição resultante faz com que os sistemas de uso comum
estejam sujeitos à pressão constante de programas de titulação, financiados
pelo BIRD (mesmo levando-se em conta as tentativas frustradas de inova-
ções contidas na Proposta ao Plano de Reforma Agrária de maio de 1985),
que objetivam o parcelamento e a individualização de lotes . As tentativas
de apossamento ilegítimo e de grilagem cartorial parecem também ter au-
mentado consideravelmente, mantendo um clima de conflito e tensão .
Em termos gerais, entretanto, parece que o grau de solidariedade e co-
esão apresentado pelos camponeses nestas terras de uso comum tem sido
forte o bastante para garantir a manutenção de seus domínios . Os vínculos
sólidos que mantém e a estabilidade territorial alcançada constituem a ex-
pressão de toda uma rede de relações sociais construída numa situação de
confronto e que parece ser reativada a cada novo conflito exercendo uma
influência destacada na resistência àquelas múltiplas pressões . Esta dispo-
sição seria uma das razões pelas quais, com o acirramento dos confrontos,
tais domínios podem ser classificados hoje como uma dentre as zonas mais
críticas de conflito e tensão social na estrutura agrária brasileira .

NOTAS
Terras de preto, terras de santo,
terras de índio, uso comum e conflito
1 . O presente trabalho foi redigido numa primeira versão em fins de 1985 . Foi modifica-
do em 1986 e consiste numa versão ampliada e com modificações de ordem conceitu-
al, sobretudo pela crítica exercida à noção anteriormente utilizada de posse comunal,
do artigo intitulado “Terras de Preto, Terras de Santo, Terras de Índio: posse comunal e
conflito”, publicado na Revista Humanidades . Ano IV, n .º 15 . Brasília, UnB, 1987/88,
pp . 42-49 Foi publicado, sob o mesmo título agora apresentado, nos Cadernos NAEA
n .º 10 organizado por Edna de Castro e Jean Hébette . Belém, 1989 pp . 163-196 .
2 . Destaque-se que a irrelevância ditada pelos determinismos é de tal ordem que, além
de não ter sido contemplada oficial e formalmente, tem sido igualmente relegada
mesmo na intensa polêmica acerca das relações de produção no campo, que con-
grega copiosas interpretações que insistem em classificá-las como “feudais” ou como
“capitalistas” . Para um aprofundamento da lógica da produção intelectual referida
a esta polêmica leia-se: PALMEIRA, Moacir G .S . Latifundium et Capitalisme au
Brésil –Lecture “critique d’um debat . Paris, 1971 .
3 . Com toda certeza tais interpretações inspiram-se na polêmica de V .I . Lênin com os
populistas, tal como o debate se colocava em fins do século XIX (CF . LENIN ) O
desenvolve-mento do capitalismo na Rússia . São Paulo, Ed . Abril, 1982, pp . 209-213)
e pouco ou nada tem a ver com os deslocamentos conhecidos pela formulação original
a partir da Revolução de 1917 e mais precisamente com o Esboço Inicial das Teses
sobre a Questão Agrária para o II Congresso da Internacional Comunista, elaborado

Coletânea de Artigos 131


132 Brasil Rural em Debate

por Lenin, em junho de 1920( Vide: Programa Agrário II . Belo Horizonte: A . Global
Ed ., pp . 97-100) .
4 . Nas diretrizes operacionais de regularização fundiária da Proposta ao I PNRA, tem-se
o seguinte a este respeito: “A regularização fundiária levará em consideração, além da
propriedade familiar, as formas de apropriação Condominial ou Comunitária da terra,
dos recursos hídricos e florestais, de maneira que os trabalhadores rurais não tenham o
seu acesso cortado a bens fundamentais efetivamente incorporados à sua economia . -
Serão estabelecidas formas de reconhecimento de posse e titulação capazes de articular
domínios de usufruto comum com regras de apropriação privada, também adotadas
por estes grupos familiares, desde que neste sentido tenham as comunidades rurais se
manifestado favoravelmente . A orientação a ser adotada refere-se à demarcação dos
perímetros desses domínios de usufruto comum, que não pertencem individualmen-
te a nenhum grupo familiar, e que lhes são essenciais, como: coqueiros, castanhais,
fontes d’água, babaçuais, pastagens naturais, igarapés e reservas de mata, de onde as
famílias de trabalhadores rurais retiram palha, talos, lenha, madeira para construções
e espécies vegetais utilizadas em cerimônias religiosas ou de propriedades medicinais
reconhecidas . – Parte-se do pressuposto de que a necessidade de titulação não destrua
ou desarticule a organização e o sistema de apossamento pré-existente . Isso exigirá a
compatibilização dos cadastros declaratórios e fundiários para que seja possível con-
ciliar o sistema cadastral e a titulação derivada com estas formas de uso comum da
terra que abrangem, inclusive, a combinação da agricultura com extrativismo em áreas
descontínuas e outras associações de sistemas produtivos adequados à realidade regio-
nal” . (g .n .) . CF . Proposta para a elaboração do I Plano Nacional de Reforma Agrária .
Brasília, Mirad, maio de 1985, pp . 32 e 33 .
5 . CF . dados elaborados pela Coordenadoria de Conflitos Agrários do Mirad-Incra em
dezembro de 1986 .
6 . Para maiores esclarecimentos consulte-se o Manual de Preenchimento do Laudo
Fundiário – declaração para cadastro de imóvel rural e documento para habilitação
de detentor . Brasília: Incra, julho de 1986, pp . 19 e 20 .
7 . Para uma leitura em profundidade destas diferentes experiências, ou seja: “mutirão”,
“compra coletiva de alimentos”, “barcos da comunidade”, “trator comunitário”, consul-
te-se: “Roças Comunitárias & outras experiências de coletivização no campo” . Cadernos
do CEDI, n .º 10 . Rio de Janeiro, abril de 1982 .
8 . Vide Projeto de Assentamento “Saco de Belém” em Santa Quitéria-CE . Trabalho realizado
pelos professores e participantes do II Curso de Planejamento Físico para Colonização de
Terras . Convênio BNB / SUDENE / INCRA / ISRAEI . Fortaleza, 76 pp .
9 . Leia-se “Exposição sobre a Fazenda Pirituba” proferida pelo engenheiro agrônomo
Zeke Beze, na PUC-Proter . São Paulo, 22 de maio de 1987, 69 pp .
10 . Para um aprofundamento leia-se: CUNHA, Euclides da . Os Sertões . São Paulo,
Cultrix, Brasília, INL, 1973 e FACÓ, Rui . Cangaceiros e Fanáticos . Rio de Janeiro:
Civilização Brasileira – UFC, 1980 .
11 . Leia-se QUEIROZ, Mauricio Vinhas de . Messianismo e Conflito Social . São Paulo:
Ática, 1977 e HOLANDA, Firmino . “Fortaleza nos tempos do Caldeirão”, Nação
Cariri n .º 9, nov/dez, 1983, pp . 15-21 .
12 . CF . ALMEIDA, Alfredo W .B . “Quilombolas, Selvagens e Fascinorosos: pânico na
capital e no sertão” . In: A Ideologia da Decadência – leitura antropológica a uma
história da agricultura no Maranhão . São Luis: FIPES, 1983, pp . 156-187 .
13 . Leia-se MOURÃO SÁ, Laís . O pão da terra: propriedade comunal e campesinato
livre na Baixa Ocidental Maranhense . Dissertação de Mestrado apresentada ao PP-
GAS – Museu Nacional – UFRJ, 1975, pp . 60-93 .
14 . Leia-se SOARES, Luiz Eduardo . Campesinato, ideologia e política . Rio de Janeiro:
Zahar, Eds ., 1981, p . 223 .
15 . Vide CORREIA LIMA, Olavo . Isolados Negros do maranhão . São Luis, Ed . São
José, 1980, p . 9 e AZEVEDO, Ramiro C . – “Uma experiência em comunidades
negras rurais” . São Luis: Gráfica São Luis, 1982, p . 17 .
16 . Leia-se CORREIA, Célia M . – “Populações atingidas pela Barragem do Brumado,
Bahia” . Brasília, CCA/MIRAD, 1986 .
17 . Leia-se ALMEIDA, Alfredo W .B . de; CORREIA, Célia M . Et ali . – “A Economia
dos Pequenos Produtores Agrícolas e a Implantação do Centro de Lançamento de
Alcântara” . Brasília:CCA/MIRAD, 1985, p . 10 .
18 . CF . LINHARES, Luis Fernando do Rosário – “Conflitos de terra na Agropig” . Bra-
sília, agosto de 1985 (mímeo) .
19 . Vide CARVALHO, Joãomar – “Serra goiana tem quilombo de 150 anos” . Jornal do
Brasil . Rio de Janeiro, 23 de agosto de 1987, p . 20 . Referência ao trabalho de pesquisa
da antropóloga Maria de Nazaré Baiochi da Universidade Federal de Goiás .
20 . Vide dossiê elaborado por técnicos da SUDELPA sobre “As comunidades negras do
Vale do Ribeira” . São Paulo, julho de 1986 (não há qq . menção explícita aos autores) .
21 . C .SALLES, Celecina –“Os descendentes de Timóteo –lutas dos camponeses numa
área de conflito do Baixo Paranaíba” . São Luis, 1984, mimeo .
22 . Não se registrou casos de aquisição de terras por escravos ou por ex-escravos, ainda
que tenham sido detectadas recomendações de venda logo após a abolição . Para efeito
de um possível cotejo, uma vez localizadas, foi detectada uma situação transcorrida na
Província de Esmeraldas, no Equador, no ano de 1885, quando 62 famílias adquiriram
um área de 61 .830 ha . Para maiores esclarecimentos consulte-se: RIVERA, Fredy –
“La comuna de negros del Rio Santiago em cien años de história” . In: Campesinato y
organización en Esmeraldas . Quito:CAAP/OCAME, 1986, pp . 19-60 .
23 . Uma utilização rigorosa desta noção no presente exercício, pressuporia o estabelecimento
de comparações diversas entre o funcionamento das grandes explorações e o advento das
formas de uso comum nas regiões enfocadas . A impossibilidade de executar esta opera-

Coletânea de Artigos 133


134 Brasil Rural em Debate

ção analítica é que nos levou a estabelecer uma distinção “dentro/fora”, capaz tão só de
alertar superficialmente para uma possível diferença . Para um aprofundamento do que
“Sidney Mintz chama de protocampesinato escravo” (CARDOSO, ibid) consulte-se:
CARDOSO,Ciro Flamarion S . Escravo ou Camponês? –O protocampesinato negro nas
Américas . São Paulo: ed . Brasiliense, 1987, pp . 91-125 .
24 . Para maiores esclarecimentos consulte-se: MOURÃO SÁ, L . Ibid e PRADO, Regi-
na . Todo Ano Tem . Dissertação de mestrado apresentada ao PPGAS –Museu Nacio-
nal, UFRJ, 1975 .
25 . MOURÃO SÁ, L . ibid, pp . 60-77 .
26 . Leia-se a propósito RINALDI, Doris . A terra do santo e o mundo dos engenhos .
Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1981 .
27 . Leia-se a propósito: ALMEIDA, Alfredo W .B . de & ESTER-CI, Neide . “Terras
soltas e o avanço das cercas” . Rio de janeiro, Projeto Emprego e Mudança Sócio-
-Econômica no Nordeste . MN/UFRJ/IPEA, 1977, v . II .
28 . Vide O’DWYER, Eliane –“Reconstituição do conflito de São José da Boa Morte” .
Rio de Janeiro, 1979 (mimeo) .
29 . CF . Art . 4º, § 4º e Art . 198 da Constituição de 1946 . Para um aprofundamento das
implicações desta conceituação jurídica, consulte-se PACHECO DE OLIVEIRA, F .°,
João –“Terras Indígenas no Brasil: uma tentativa de abordagem sociológica” . Boletim
do Museu Nacional n .º 44, outubro de 1983, p . 4 .
30 . CF . LOBATO DE AZEVEDO Ana L . A Terra Somo Nossa –uma análise de proces-
sos políticos na construção da terra potiguara . Dissertação de Mestrado apresentada
ao PPGAS/MN/UFRJ,pp . 230-50 .
31 . São bastante escassas as referências bibliográficas que tratam deste tema específico,
disposto entre os estudos etnológicos e as pesquisas relativas às sociedades campo-
nesas . Para maiores esclarecimentos, leia-se o artigo intitulado “Terra dos Índios”,
de autoria de Maristela de Paula Andrade, elaborado a partir de trabalho de campo
em Viana (MA), com fins de tese de doutorado em Sociologia na USP, e datado de
agosto de 1985 .
32 . Para um aprofundamento da situação atual das áreas indígenas, leia-se: PACHECO
DE OLIVEIRA F°, João –“Terras indígenas: mito e verdade”in: Terras Indígenas no
Brasil . CEDI/Museu Nacional, 1987, pp . III-XXIX .
33 . CF . ALMEIDA, A .W . e ESTERCI, N ., ibid .
34 . CF . observações de campo registradas, no decorrer de 1986, por Jair Borin, a serviço
do INCRA, no Município de Unaí, Minas Gerais .
35 . Leia-se SOUZA, José Bonifácio de . Quixadá de Fazenda a cidade (1755-1955) . Rio
de Janeiro: IBGE – Conselho nacional de Estatística, 1960, pp . 30-32 . De acordo
com o autor, a partir de documentos e dos Códigos de postura podia-se afirmar: “As
pastagens e aguadas eram como se fossem bens de uso comum, e em torno delas se
realizaram os primeiros contatos entre vaqueiros (ibid, p . 31) .
36 . A propósito dos faxinais consulte-se: CARVALHO, Horário Martins de . “Da aventura
à esperança: a experiência autogestionária no uso comum da terra” . Curitiba, 1984,
PP .12-32 (mimeo) .
37 . Vide TOCANTINS, Leandro –“Campos e Currais” . In: O rio comanda a vida: uma
interpretação da Amazônia . Rio de Janeiro: Biblioteca do Exército, 1973, pp . 115-125 .
38 . Vide ALMEIRA, Alfredo Wagner B . e MOURÃO SÁ, Laís –“Questões Agrárias no
Maranhão” . Pesquisa Antropológica n .º 9/10, Brasília, 1976 .
39 . CF . AZEVEDO, Guilherme . Vocabulário do criatório norte-riograndense . Rio de
Janeiro, MA –Serviço de Informação agrícola, 1966, p . 17 . BARROSO, Vieira . Ma-
rajó: estudo etnográfico, geológico e geográfico da grande Ilha . Belém: Imprensa
Oficial s/d . pp . 162 e 163 . CASCUDO, Luís da Câmara . Dicionário do folclore
brasileiro . Rio de Janeiro: INL, 1954, p . 53 .
40 . Nos campos naturais da Baixada Maranhense, que se estendem contornando o
golfão observamos povoados com dezenas de famílias de foreiros, localizados
na beira-campo, no seio de antigos engenhos de açúcar, em áreas denominadas
“terras de preto” (nos municípios de Pinheiro, São Bento, Pericumã) e “terras
da santa” (Bequimão, Alcântara), que tem uma certa divisão de trabalho em que
apenas um indivíduo do povoado toma conta das reses dos demais . Ele cuida do
gado solto nos campos naturais não cercados e recebe uma remuneração através
do conhecido sistema de sorte ou sob a forma de serviços prestados pelos demais
em seu roçado .
41 . CF . ALMEIDA, A .W .B . & ESTERCI, N . Ibid . - As polêmicas em torno dos pastos
comuns remetem ao inicio do século XIX . Consulte-se: “Memória sobre o plano
que permite que se façam tapadas no terreno de Crato e sobre a inconveniência dos
pastos comuns . . .”Por Jerônimo Francisco Lobo . Corregedor da Comarca do Crato
(1803-?), fls . 230-40 do Doc . 16, vol . 22/Anac (Arquivo Nacional) .
42 . Leia-se para maiores aprofundamentos: VELHO, Octavio G . Frentes de expansão e
estrutura agrária . Rio de Janeiro: Zahar, Eds ., 1972 .
43 . CF . SANTOS, Murilo –“Fronteiras: a expansão camponesa no Vale do Rio Caru” .
In: Estrutura agrária e colonização na fronteira amazônica . Belém: Museu P .E . Go-
eldi–CNPq ., 1983 (mimeo) .
44 . Com pequenas alterações este parágrafo foi reproduzido do seguinte artigo: ALMEIDA,
Alfredo Wagner B . de . – “Estrutura fundiária e expansão camponesa” . In: Carajás –desa-
fio político, ecologia e desenvolvimento . Brasília, CNPq ., Ed . Brasiliense, pp . 265-198 .
45 . CF . SANTOS, M ., ibid, 17 .
46 . A dimensão política que estes antagonismos adquirem nas regiões de fronteira pode
ser aprofundada a partir da consulta a: MARTINS, José de Souza –“Lutando pela

Coletânea de Artigos 135


136 Brasil Rural em Debate

terra: índios e posseiros na Amazônia Legal” . In: Os camponeses e a política no Bra-


sil . Petrópolis: Vozes, 1980, pp . 103-124 .
47 . Para aprofundamento das polêmicas mantidas com os populistas consulte-se: Dilemas
do Socialismo – A controvérsia entre Marx, Engels e os populistas russos . Rio de Janei-
ro: Paz e Terra, 1982 . Organização, introdução e notas de Rubem César Fernandes .
48 . Leia-se Kenneth Rexroth . Communalism: From its origins to the twentieth century .
London: Peter Owen, 1975 .
49 . Esta afirmação tem que ser relativizada e sujeita aos resultados da aplicação de méto-
dos estatísticos de quantificação dos domínios e de sua produção efetiva .
50 . Estas formulações foram desenvolvidas no seguinte trabalho de pesquisa: ALMEI-
DA, Alfredo Wagner B . de –“As áreas indígenas e o mercado de terras” . Aconteceu
– São Paulo, CEDI, 1985, pp . 53-59 .
51 . A própria figura da “posse itinerante”, urdida pelos órgãos de ação fundiária nos anos
70, numa tentativa de estabelecer uma aproximação formal à modalidade de ocupação
camponesa nas regiões amazônicas, teria que ser revista, posto que não pressupõe a
utilização simultânea de várias extensões de terras cultivadas não contíguas .
4. Terras tradicionalmente ocupadas:
processos de territorialização,
movimentos sociais e uso comum*

Alfredo
Wagner1**

Nas duas últimas décadas estamos assistindo em


todo o País, e notadamente na Amazônia, ao adven-
to de novos padrões de relação política no campo e
na cidade . Os movimentos sociais no campo, que
desde 1970 vem se consolidando fora dos marcos
tradicionais do controle clientelístico e tendo nos
Sindicatos de Trabalhadores e Trabalhadoras Rurais
uma de suas expressões maiores, conhecem, desde
1988/1989, certos desdobramentos, cujas formas de
associação e luta escapam ao sentido estrito de uma
entidade sindical, incorporando fatores étnicos,
elementos de consciência ecológica e critérios de
gênero e de autodefinição coletiva, que concorrem
para relativizar as divisões político-administrativas
e a maneira convencional de pautar e de encami-
*Nota do editor: O
texto seguinte segue o nhar demandas aos poderes públicos2 . Para efeitos
padrão da publicação deste texto pretendo analisar a relação entre o sur-
original, diferindo dos
demais artigos . gimento destes movimentos sociais e os processos
**Antropólogo . Profes- de territorialização que lhes são correspondentes .
sor visitante do Progra-
ma de Pós-Graduação
Atribuo ênfase, nestes mencionados processos, às
Sociedade e Cultura na denominadas “terras tradicionalmente ocupadas”,
Amazônia na Universi-
dade Federal do Ama-
que expressam uma diversidade de formas de exis-
zonas e pesquisador do tência coletiva de diferentes povos e grupos sociais
Projeto Processos de
Territorialização, Con- em suas relações com os recursos da natureza . Não
flitos e Movimentos obstante suas diferentes formações históricas e suas
Sociais na Amazônia .
Fapeam-CNPQ . variações regionais, elas foram instituídas no texto

Coletânea de Artigos 137


138 Brasil Rural em Debate

constitucional de 1988 e reafirmadas nos dispositivos infraconstitu-


cionais, quais sejam, constituições estaduais, legislações municipais e
convênios internacionais .
As dificuldades de efetivação destes dispositivos legais indicam, entre-
tanto, que há tensões relativas ao seu reconhecimento jurídico-formal,
sobretudo porque rompem com a invisibilidade social, que historicamen-
te caracterizou estas formas de apropriação dos recursos baseadas princi-
palmente no uso comum e em fatores culturais intrínsecos, e impelem a
transformações na estrutura agrária . Em decorrência, tem-se efeitos diretos
sobre a reestruturação formal do mercado de terras, bem como pressões
para que sejam revistas as categorias que compõem os cadastros rurais dos
órgãos fundiários oficiais e os recenseamentos agropecuários .
O fato dos legisladores terem incorporado a expressão “populações
tradicionais” na legislação competente3 e do governo tê-la adotado na
definição das funções dos aparatos burocrático-administrativos, ten-
do inclusive criado, em 1992, o Conselho Nacional de Populações
tradicionais, no âmbito do IBAMA4, não significa exatamente um
acatamento absoluto das reivindicações encaminhadas pelos movi-
mentos sociais, não significando, portanto, uma resolução dos con-
flitos e tensões em torno daquelas formas intrínsecas de apropriação
e de uso comum dos recursos naturais, que abrangem extensas áreas
principalmente na região amazônica, no semiárido nordestino e no
planalto meridional do País . Em dezembro de 2004, por pressão dos
movimentos sociais, o governo federal decretou a criação da Comis-
são de Desenvolvimento Sustentável das Comunidades Tradicionais5
com vistas a implementar uma política nacional especialmente diri-
gida para tais comunidades . A expressão “comunidades”, em sintonia
com a idéia de “povos tradicionais” deslocou o termo “populações”,
reproduzindo uma discussão que ocorreu no âmbito da Organização
Internacional do Trabalho (OIT), em 1988/1989, e que encontrou
eco na Amazônia por meio da mobilização dos chamados “povos
da floresta” no mesmo período . O “tradicional” como operativo foi
aparentemente deslocado no discurso oficial, afastando-se do passa-
do e tornando-se cada vez mais próximo de demandas do presente .
Em verdade o termo “populações”, denotando certo agastamento,
foi substituído por “comunidades”, que aparece revestido de uma
conotação política inspirada nas ações partidárias e de entidades con-
fessionais, referidas à noção de “base”, e de uma dinâmica de mo-
bilização, aproximando-se por este viés da categoria “povos” . Seus
representantes passam a ter instituídas suas relações com os aparatos
de poder e a integrar a mencionada comissão, consoante o artigo 2°,
parágrafo 2°, do referido Decreto, cuja finalidade precípua consiste
em estabelecer uma Política Nacional de Desenvolvimento Sustentá-
vel . Por mais que estes termos e expressões estejam se tornando lu-
gares comuns do discurso oficial, pode-se asseverar que o sentido de
“terras tradicionalmente ocupadas” e suas implicações se encontra,
entretanto, implícito .
Em 7 de fevereiro de 2007, menos de três anos depois de instituída a
referida Comissão, por meio do Decreto n° 6040, foi instituída a Política
Nacional de Desenvolvimento Sustentável dos Povos e Comunidades
Tradicionais (PNPCT) . No artigo 3°, procedeu-se à definição das princi-
pais noções em pauta, quais sejam: “povos e comunidades tradicionais”,
“territórios tradicionais” e “desenvolvimento sustentável” . Para efeitos da
argumentação aqui produzida vale sublinhar que o decreto presidencial
considera o seguinte:
“Povos e Comunidades Tradicionais: grupos culturalmente dife-
renciados e que se reconhecem como tais, que possuem formas pró-
prias de organização social, que ocupam e usam territórios e recursos
naturais como condição para sua reprodução cultural, social, reli-
giosa, ancestral e econômica, utilizando conhecimentos, inovações e
práticas gerados e transmitidos pela tradição.”
As formas próprias mencionadas, quando traduzidas para planos,
programas e suas ações respectivas, remetem-se, invariavelmente,
consoante os termos da PNPCT, para “práticas comunitárias” e situa-
ções de uso comum dos recursos naturais .

Coletânea de Artigos 139


140 Brasil Rural em Debate

Em termos analíticos, pode-se adiantar que tais formas de uso co-


mum designam situações nas quais o controle dos recursos básicos não
é exercido livre e individualmente por um determinado grupo domés-
tico de pequenos produtores diretos ou por um de seus membros . Tal
controle se dá por meio de normas específicas, combinando uso co-
mum de recursos e apropriação privada de bens, que são acatadas, de
maneira consensual, nos meandros das relações sociais estabelecidas en-
tre vários grupos familiares, que compõem uma unidade social . Tanto
podem expressar um acesso estável à terra, como ocorre em áreas de co-
lonização antiga, quando evidenciam formas relativamente transitórias
características das regiões de ocupação recente . Tanto podem se voltar
prioritariamente para a agricultura, quanto para o extrativismo, a pesca
ou para o pastoreio realizados de maneira autônoma, sob forma de co-
operação simples e com base no trabalho familiar . As práticas de ajuda
mútua, incidindo sobre recursos naturais renováveis, revelam um co-
nhecimento aprofundado e peculiar dos ecossistemas de referencia . A
atualização destas normas ocorre, assim, em territórios próprios, cujas
delimitações são socialmente reconhecidas, inclusive pelos circundan-
tes . A territorialidade funciona como fator de identificação, defesa e
força, mesmo em se tratando de apropriações temporárias dos recursos
naturais, por grupos sociais classificados muitas vezes como “nômades”
e “itinerantes” . Laços solidários e de ajuda mútua informam um con-
junto de regras firmadas sobre uma base física considerada comum,
essencial e inalienável, não obstante disposições sucessórias porventu-
ra existentes . Em virtude do caráter dinâmico destas formas de apro-
priação dos recursos é que preferimos utilizar a expressão processo de
territorialização (Oliveira Filho: 1999), em vez de insistir na distinção
usual entre terra e território, que vem sendo adotada notadamente nas
formulações inspiradas nos trabalhos de P . Bohannan sobre a represen-
tação da terra entre os Tiv . Embora Oliveira Filho faça distinção entre
processo de territorialização e territorialidade, que considera um termo
mais próximo do discurso geográfico, recuperamos o termo com outro
significado, aquele de uma noção prática designada como “territoria-
lidade específica” para nomear as delimitações físicas de determinadas
unidades sociais que compõem os meandros de territórios etnicamente
configurados . As “territorialidades específicas” de que tratarei adiante
podem ser consideradas, portanto, como resultantes de diferentes pro-
cessos sociais de territorialização e como delimitando dinamicamente
terras de pertencimento coletivo que convergem para um território .
Por seus desígnios peculiares, o acesso aos recursos naturais para o
exercício de atividades produtivas, se dá não apenas por meio das tradi-
cionais estruturas intermediárias do grupo étnico, dos grupos de paren-
tes, da família, do povoado ou da aldeia, mas também por um certo grau
de coesão e solidariedade obtido face a antagonistas e em situações de
extrema adversidade e de conflito6, que reforçam politicamente as redes
de solidariedade . Neste sentido a noção de “tradicional” não se reduz
à história, nem tão pouco a laços primordiais que amparam unidades
afetivas, e incorpora as identidades coletivas redefinidas situacionalmen-
te numa mobilização continuada, assinalando que as unidades sociais
em jogo podem ser interpretadas como unidades de mobilização7 . O
critério político-organizativo sobressai combinado com uma “política de
identidades”, da qual lançam mão os agentes sociais objetivados em mo-
vimento para fazer frente aos seus antagonistas e aos aparatos de estado .
Aliás, foi exatamente este fator identitário e todos os outros fatores a
ele subjacentes, que levaram as pessoas a se agruparem sob uma mesma
expressão coletiva, a declararem seu pertencimento a um povo ou a um
grupo, a afirmarem uma territorialidade específica e a encaminharem
organizadamente demandas face ao Estado, exigindo o reconhecimen-
to de suas formas intrínsecas de acesso à terra, que me motivaram a
refletir novamente sobre a profundidade de tais transformações no pa-
drão “tradicional” de relações políticas .

Coletânea de Artigos 141


142 Brasil Rural em Debate

NOTAS
Terras Tradicionalmente ocupadas:
processos de territorialização,
movimentos sociais e uso comum
1 . Meus agradecimentos à Fundação Ford, que propiciou recursos para a execução deste
trabalho, e ao antropólogo Aurélio Vianna com quem debati a montagem dos quadros
demonstrativos . Agradeço ainda ao advogado Joaquim Shiraishi Neto, pelas informa-
ções a respeito dos “faxinais”, e ao mestrando em antropologia da UFBA, Franklin
Plessman pelo levantamento de dados sobre os chamados “fundos de pasto” . Uma
primeira versão deste artigo, mais reduzida e com o mesmo título, foi publicada pela
Revista Brasileira de Estudos Urbanos e Regionais . Vol . 6, n .° 1 . ANPUR, maio de
2004 . pp . 9-32 .
2 . Este texto retoma questões analisadas em “Universalização e Localismo-Movimentos
Sociais e crise dos padrões tradicionais de relação política na Amazônia” . Reforma
Agrária . Ano 19 Nº .1 abril junho de 1989 . ABRA (Associação Brasileira de Reforma
Agrária) pp . 4-7 .
3 . A Lei n . 9 .985, de 18 de julho de 2000, que regulamenta o Art . 225 da Constituição
Federal e institui o Sistema Nacional de Unidades de Conservação da Natureza, men-
ciona explicitamente as denominadas “populações tradicionais” (Art . 17) ou “popula-
ções extrativistas tradicionais” (Art . 18) e focaliza a relação entre elas e as unidades de
conservação (área de proteção ambiental, floresta nacional, reserva extrativista, reserva
de desenvolvimento sustentável) .
4 . CF . Portaria/Ibama, n . 22-N, de 10 de fevereiro de 1992 que cria o Centro Nacional
de Desenvolvimento Sustentado das Populações Tradicionais – CNPT, bem como
aprova seu Regimento Interno .
5 . CF . Decreto de 27 de dezembro de 2004, in Diário Oficial da União – Seção I – Atos
do Poder Executivo, Ed . n . 249, 28 de dezembro de 2004 p . 4 . Em abril de 2005
este Decreto foi reeditado com o n . 10 .408 (não conseguimos localizar a referencia
precisa de sua publicação) . Em 13 de julho de 2006 um decreto presidencial, publi-
cado no Diário Oficial da União, de 14 de julho de 2006 Seção 1 – pág . 19, alterou
denominação, competência e composição da Comissão Nacional de Desenvolvimento
Sustentável das Comunidades Tradicionais .
6 . Barragens, campos de treinamento militar, base de lançamento de foguetes, áreas re-
servadas à mineração, áreas de conservação como as chamadas unidades de proteção
integral, rodovias, ferrovias, gasodutos, oleodutos, linhões de transmissão de energia,
portos e aeroportos em sua implementação tem gerado inúmeros conflitos sociais com
grupos camponeses, povos indígenas e outros grupos étnicos .
7 . Este conceito de unidades de mobilização refere-se à aglutinação de interesses espe-
cíficos de grupos sociais não necessariamente homogêneos, que são aproximados cir-
cunstancialmente pelo poder nivelador da intervenção do Estado – através de políticas
desenvolvimentistas, ambientais e agrárias – ou das ações por ele incentivadas ou
empreendidas, tais como as chamadas obras de infraestrutura que requerem desloca-
mentos compulsórios . São estas referidas unidades que, nos desdobramentos de suas
ações reivindicativas, possibilitaram a consolidação de movimentos sociais como o
Movimento dos Atingidos por Barragens (MAB) e o Movimento dos Atingidos pela
Base de Foguetes de Alcântara (MABE), dentre outros .

A instituição das “terras


tradicionalmente ocupadas”
As teorias do pluralismo jurídico, para as quais o direito produzido
pelo Estado não é o único, ganharam força com a Constituição de 1988 .
Juntamente com elas e com as críticas ao positivismo, que historica-
mente confundiu as chamadas “minorias” dentro da noção de “povo”,
também foi contemplado o direito à diferença, enunciando o reconheci-
mento de direitos étnicos . Os preceitos evolucionistas de assimilação dos
“povos indígenas e tribais” na sociedade dominante foram deslocados
pelo estabelecimento de uma nova relação jurídica entre o Estado e estes
povos com base no reconhecimento da diversidade cultural e étnica . No
Ato das Disposições Constitucionais Transitórias foi instituída, inclusi-
ve, consoante o artigo 68, uma nova modalidade de apropriação formal
de terras para povos, como os quilombolas, baseada no direito à proprie-
dade definitiva, e não mais disciplinada pela tutela, como soa acontecer
com os povos indígenas . Estes processos de rupturas e de conquistas,
que levaram alguns juristas a falar em um “Estado Pluriétnico” ou que
confere proteção a diferentes expressões étnicas, não resultaram, entre-
tanto, na adoção pelo Estado de uma política étnica, e tampouco em
ações governamentais sistemáticas capazes de reconhecer prontamente
os fatores situacionais que influenciam uma consciência étnica . Mesmo
levando em conta que o poder é efetivamente expresso sob uma forma
jurídica ou que a linguagem do poder é o direito, há enormes dificulda-
des de implementação de disposições legais desta ordem, sobretudo em
sociedades autoritárias e de fundamentos coloniais e escravistas, como
no caso brasileiro . Nestes três lustros que nos separam da promulgação
da Constituição Federal tem prevalecido ações pontuais e relativamente
dispersas, focalizando fatores étnicos, mas sob a égide de outras políticas

Coletânea de Artigos 143


144 Brasil Rural em Debate

governamentais, tais como a política agrária e as políticas de educação,


saúde, habitação e segurança alimentar1 . Inexistindo uma reforma do
Estado, coadunada com as novas disposições constitucionais, a solução
burocrática foi pensada sempre com o propósito de articulá-las com as
estruturas administrativas preexistentes, acrescentando à sua capacidade
operacional atributos étnicos . Se porventura, foram instituídos novos
órgãos públicos pertinentes à questão, sublinhe-se que a competência de
operacionalização ficou invariavelmente a cargo de aparatos já existentes .
Os problemas de implementação daquelas disposições constitucio-
nais revelam, em decorrência, obstáculos concretos de difícil superação
principalmente na homologação de terras indígenas e na titulação das
terras das comunidades remanescentes de quilombos . Conforme já foi
sublinhado as terras indígenas são definidas como bens da União e
destinam-se à posse permanente dos índios, evidenciando uma situa-
ção de tutela e distinguindo-se, portanto, das terras das comunidades
remanescentes de quilombos, que são reconhecidas na Constituição de
1988 como de propriedade definitiva² dos quilombolas . Não obstante
esta distinção relativa à dominialidade, pode-se afirmar que ambas são
consideradas juridicamente como “terras tradicionalmente ocupadas”
seja no texto constitucional ou nos dispositivos infraconstitucionais e
enfrentam na sua efetivação e reconhecimento obstáculos similares .
De igual modo são consideradas como “terras tradicionalmente ocu-
padas”, e enfrentam obstáculos à sua efetivação, aquelas áreas de uso
comum voltadas para o extrativismo, a pesca, a pequena agricultura
e o pastoreio, focalizadas por diferentes instrumentos jurídicos, que
buscam reconhecer suas especificidades, quais sejam:
a . os dispositivos da Constituição Estadual no Maranhão falam em
assegurar “a exploração dos babaçuais em regime de economia
familiar e comunitária” (artigo 196, Constituição do Maranhão
de 1990);
b . na Bahia falam em conceder o direito real de concessão de uso
nas áreas de “fundo de pasto” (artigo 178, da Constituição da
Bahia de 1989);
c . no Amazonas, o Capítulo XIII, da Constituição Estadual, é
denominado “Da população ribeirinha e do povo da floresta”3 .
Contempla os direitos dos núcleos familiares que ocupam as
áreas das barreiras de terras firme e as “terras de várzeas” e ga-
rante seus meios de sobrevivência (artigos 250 e 251, da Cons-
tituição do Amazonas, de 1989) .
As ambigüidades que cercam a denominação de “população ribeiri-
nha” tendem a ser dirimidas . Assim, as distinções internas ao significado
da categoria “ribeirinhos”–que muitas vezes é utilizada consoante um
critério geográfico, em sinonímia com “habitantes das várzeas”, abran-
gendo indistintamente todos os que se localizam nas margens dos cursos
d’água, sejam povos indígenas, grandes ou pequenos criadores de gado
ou pescadores e agricultores – vão ser, todavia, delimitadas pelo Movi-
mento dos Ribeirinhos do Amazonas, pelo Movimento de Preservação
de Lagos e pelo Movimento de Mulheres Trabalhadoras Ribeirinhas . Es-
tes movimentos têm os grandes pecuaristas, os criadores de búfalos e os
que praticam a pesca predatória em escala comercial como antagonistas,
bem como os interesses envolvidos na construção de barragens, de gaso-
dutos e de hidrelétricas4 . A mobilização política, própria destes conflitos,
tem construído uma identidade riberinha, que é atributo dos que estão
referidos a unidades de trabalho familiar na agricultura, no extrativismo,
na pesca e na pecuária, a formas de cooperação simples no uso comum
dos recursos naturais e a uma consciência ecológica acentuada5:
• A Lei Estadual do Paraná, de 14 de agosto de 1997, que reco-
nhece formalmente os “faxinais” como “sistema de produção
camponês tradicional, característico da região Centro-Sul do
Paraná, que tem como traço marcante o uso coletivo da terra
para produção animal e conservação ambiental .” (artigo 1°); as
Leis municipais aprovadas no Paraná, que reconhecem os cria-
tórios comuns . Estas Leis Municipais, deste fevereiro de 1948,
como aquelas reconhecidas pela Câmara de São João do Triunfo
(Lei nº 9, de 06/02/48) e pela Câmara Municipal de Palmeira
(Lei nº 149, de 06/05/77), buscam delimitar responsabilidades

Coletânea de Artigos 145


146 Brasil Rural em Debate

inerentes ao uso das terras de agricultura e de pastagens, com as


respectivas modalidades de cercamento;
• as Leis municipais aprovadas no Maranhão, no Pará e no Tocan-
tins, desde 1997, mais conhecidas como “Leis do Babaçu Livre”,
que disciplinam o livre acesso aos babaçuais, mantendo-os como
recursos abertos independentemente da forma de dominialidade,
seja posse ou propriedade . Desde 1997, estão tramitando projetos
de lei ou foram aprovadas mais de dez Leis Municipais no Estado
do Maranhão (Municípios de Lago do Junco, Lago dos Rodri-
gues, Esperantinópolis, São Luis Gonzaga, Imperatriz, Capinzal
do Norte, Lima Campos), no Estado do Tocantins (Municípios
de Praia Norte, Buriti) e no Estado do Pará (Município de São
Domingos do Araguaia) defendendo o uso livre dos babaçuais; e
• na região onde prevalecem as comunidades de “fundos de pas-
tos”, no Estado da Bahia, começam a ser reivindicadas também
as chamadas “Leis do Licuri Livre” . Constituem um dispositivo
análogo àquele reivindicado pelas “quebradeiras de coco babaçu”
e a primeira lei foi aprovada pela Câmara de Vereadores do Mu-
nicípio de Antonio Gonçalves (BA), em 12 de agosto de 2005 .
Trata-se da Lei n° 4, que protege os ouricuzeiros e garante o livre
acesso e o uso comum por meio de cancelas, porteiras e passadores
aos catadores do licuri e suas famílias, “que os exploram em regime
de economia familiar e comunitária” (artigo 2°, parágrafo 1º) . O
ouricuri, também chamado licuri e ainda aricuri ou nicuri, possui
uma amêndoa rica em nutrientes e serve de complemento alimen-
tar para os pequenos agricultores de base familiar (Vide Anexo I) 6 .
Nesta diversidade de formas de reconhecimento jurídico das diferentes
modalidades de apropriação dos recursos naturais que caracterizam as de-
nominadas “terras tradicionalmente ocupadas”, o uso comum de florestas,
recursos hídricos, campos e pastagens aparece combinado, tanto com a pro-
priedade, quanto com a posse, de maneira perene ou temporária, e envolve
diferentes atividades produtivas exercidas por unidades de trabalho familiar,
tais como: extrativismo, agricultura, pesca, caça, artesanato e pecuária .
Considerando que a emergência e o acatamento formal de novos
dispositivos jurídicos refletem disputas entre diferentes forças sociais,
pode-se adiantar que o significado da expressão “terras tradicionalmen-
te ocupadas” tem revelado uma tendência de se tornar mais abrangente
e complexo em razão das mobilizações étnicas dos movimentos in-
dígenas (COIAB, UNI, APOINME), dos movimentos quilombolas,
que estão se agrupando deste 1995 na hoje denominada Coordenação
Nacional das Comunidades Negras Rurais Quilombolas (CONAQ)
e dos demais movimentos sociais que abrangem os extrativismos do
babaçu, da castanha e da “seringa”7, bem como o pastoreio e as áreas de
criatórios comuns . A própria categoria “populações tradicionais” tem
conhecido aqui deslocamentos no seu significado desde 1988, sendo
afastada mais e mais do quadro natural e do domínio dos “sujeitos
biologizados” e acionada para designar agentes sociais, que assim se
autodefinem, isto é, que manifestam consciência de sua própria condi-
ção . Ela designa, neste sentido, sujeitos sociais com existência coletiva,
incorporando pelo critério político-organizativo uma diversidade de
situações correspondentes aos denominados seringueiros, quebradeiras
de coco babaçu, quilombolas, ribeirinhos, castanheiros e pescadores
que tem se estruturado igualmente em movimentos sociais8 . A despei-
to destas mobilizações e de suas repercussões na vida social, não tem
diminuído, contudo, os entraves políticos e os impasses burocrático-
-administrativos que procrastinam a efetivação do reconhecimento
jurídico-formal das “terras tradicionalmente ocupadas” .
Aliás, nunca houve unanimidade em torno desta expressão . Nas dis-
cussões da Assembléia Nacional Constituinte, a expressão “terras tra-
dicionalmente ocupadas” só preponderou pela derrota dos partidários
da noção de “terras imemoriais”, cujo sentido historicista, remontando
ao período pré-colombiano, permitiria identificar os chamados “povos
autóctones” com direitos apoiados tão somente numa naturalidade ou
numa “origem” que não poderia ser datada com exatidão . Um dos re-
sultados mais visíveis deste embate consiste no parágrafo 1°, do artigo
231, da Constituição Federal de 1988:

Coletânea de Artigos 147


148 Brasil Rural em Debate

“São terras tradicionalmente ocupadas pelos índios as por eles ha-


bitadas em caráter permanente, as utilizadas para suas atividades
produtivas, as imprescindíveis à preservação dos recursos ambientais
necessários a seu bem estar-estar e as necessárias a sua reprodução
física e cultural, segundo seus usos, costumes e tradições.”
A ocupação permanente de terras e suas formas intrínsecas de uso ca-
racterizam o sentido peculiar de “tradicional” . Além de deslocar a “ime-
morialidade” este preceito constitucional contrasta criticamente com as
legislações agrárias coloniais, as quais instituíram as sesmarias até a Reso-
lução n°, de 17 de julho de 1822, e depois estruturaram formalmente o
mercado de terras com a Lei n° 601, de 18 de setembro de 1850, criando
obstáculos de todas as ordens para que não tivessem acesso legal às terras
os povos indígenas, os escravos alforriados e os trabalhadores imigrantes
que começavam a ser recrutados9 . Coibindo a posse e instituindo a aqui-
sição como forma de acesso à terra, tal legislação instituiu a alienação de
terras devolutas por meio de venda, vedando, entretanto, a venda em
hasta pública, e favoreceu a fixação de preços suficientemente elevados
das terras10, buscando impedir a emergência de um campesinato livre . A
Lei de Terras de 1850, nesta ordem, fechou os recursos e menosprezou
as práticas de manter os recursos abertos, seja por meio de concessões de
terras, seja apor meio de códigos de posturas, como os que preconizavam
o uso comum de aguadas nos sertões nordestinos, de campos naturais na
Amazônia ou de campos para pastagem no sul do País11 .
A efetivação dos novos dispositivos da Constituição Federal de
1988, contraditando os velhos instrumentos legais de inspiração colo-
nial, tem se deparado com imensos obstáculos, que tanto são urdidos
mecanicamente nos aparatos burocrático-administrativos do Estado,
quanto são resultantes de estratégias engendradas seja por interesses
que historicamente monopolizaram a terra, seja por interesses de “no-
vos grupos empresariais” interessados na terra e demais recursos na-
turais12 . Mesmo considerando a precariedade dos dados quantitativos
disponíveis é possível asseverar que os resultados de sua aplicação pelos
órgãos oficiais tem se mostrado inexpressivos, sobretudo no que tange
às terras indígenas, às comunidades remanescentes de quilombos e às
áreas extrativistas . No caso destas últimas não há uma reserva extrati-
vista13 sequer regularizada fundiariamente e o percentual de áreas as-
sim declaradas não alcança 5% das áreas de ocorrência de babaçuais,
castanhais e seringais . Com respeito às terras indígenas, tem-se pelo
menos 145 processos administrativos tramitando, acrescidos de 44 ter-
ras por demarcar e 23 outras para homologar, isto é, mais de 1/3 sem
qualquer regularização e intrusadas de maneira efetiva .
No caso das comunidades remanescentes de quilombos, em 15 anos
de aplicação do artigo 68, os resultados são da mesma ordem, igual-
mente inexpressivos, a saber:
“Oficialmente, o Brasil tem mapeado 743 comunidades remanescen-
tes de quilombos. Essas comunidades ocupam cerca de 30 milhões de
hectares, com uma população estimada em 2 milhões de pessoas. Em 15
anos, apenas 71 áreas foram tituladas.”(Em Questão, 20/11/2003) 14
A separação aumenta quando estes dados são confrontados com aqueles
produzidos por associações e entidades voluntárias da sociedade civil . Eles
se mostram segundo uma subestimação mediante as 1 .098 comunidades
remanescentes de quilombos apontadas por mapeamento preliminar reali-
zado com base em dados de levantamentos que estão sendo realizados pela
CONAQ, pela ACONERUQ, pelo PVN-SMDH e por projetos acadê-
micos na Universidade de Brasília e na Universidade Federal do Pará .

NOTAS
A Instituição das “terras
tradicionalmente ocupadas”
ocupadas”
1 . Para uma análise desta lógica de intervenção governamental, consulte-se: Almeida, A
W .B . de –“Nas bordas da política étnica: os quilombos e as políticas sociais” in Boletim
Informativo do NUER vol . 2 n . 2 . Florianópolis . UFSC . 2005 pp . 15-44 .
2 . No Brasil a condição de ex-escravos como “proprietários”, através de uma forma co-
munitária, só aparece legalmente com o art . 68, do ADCT, da CF/1988 . Nem após a
“Lei de Liberdade dos Índios”, do período pombalino, de 1755, e nem após a Abolição
da Escravatura de 1888 foram definidos preceitos legais que assegurassem o acesso à

Coletânea de Artigos 149


150 Brasil Rural em Debate

terra aos libertos . Para efeito de contraste recorde-se que nos Estados Unidos com a
abolição da escravatura foi constituída formalmente uma camada de “black farmers”
e o processo de elevar os ex-escravos à condição de cidadãos implicou em investi-los
da identidade de “proprietários” . No Brasil apenas “alforriados”, ou beneficiários de
doações por disposição testamentária e “filhos naturais” de senhores de escravos ti-
veram a possibilidade de se converterem em “proprietários”, ou seja, foi um processo
individualizado e não referido a uma camada social propriamente dita . Com o art . 68
a titulação definitiva das terras aparece condicionada à expressão comunitária .
3 . CF . edição da Constituição do Estado do Amazonas, organizada por Celso Cavalcanti
e Ronnie Stone . Manaus . Valer editora, 2a . edição, 2001 pp . 197, 198 .
4 . Nos conflitos que envolvem as barragens detectamos também a expressão “beiradeiros”
em sinonímia com ribeirinhos . Para maiores esclarecimentos consulte-se A . OSWAL-
DO SEVÁ FILHO (org .) Tenotã-mõ – Alertas sobre as conseqüências dos projetos
hidrelétricos no Rio Xingu . São Paulo . IRN, 2005 pp . 29-54 .
5 . Neste sentido é que se pode asseverar que os limites de sua abrangência transcendem o
Estado do Amazonas e se estenderiam das barrancas do Rio Acre aos campos e “tesos”
da Ilha de Marajó, onde os pescadores enfrentam uma grande exploração pecuária,
extensiva e monopolizadora dos recursos hídricos pelo cercamento arbitrário de rios,
igarapés e bordas dos lagos .
6 . A amêndoa do ouricuri e o óleo vegetal são comercializados nas feiras nordestinas .
Na Bahia o CEFET (Centro Federal de Educação Tecnológica) está iniciando um
programa de valorização de plantas do semi-árido, focalizando o potencial nutritivo
do licuri, com projeto de preparo de alimentos para uso principalmente em merendas
escolares . O licuri faz parte das oleaginosas e estão sendo feitos estudos, tal como no
caso do babaçu, para incluí-lo na produção de biodiesel . O Município de Antonio
Gonçalves é o terceiro maior produtor do licuri, envolvendo os povoados de São João,
Caldeirão, Atravessado, Conceição, Macacos, Santana, Jibóia, Barra, Bananeira e Alto
da Cajazeira . Em 2004 a produção comercializada de licuri no Município alcançou
240 mil quilos .
7 . A Constituição do Estado do Acre, de 3 de outubro de 1989 não registra qualquer
artigo referente aos “seringueiros”, mesmo que tenha sido promulgada num período
histórico em que a figura política do “seringueiro” sintetizava a vida política daque-
la unidade da federação . Os seringueiros, enquanto contribuindo como “soldados da
borracha”, durante a II Guerra Mundial, aparecem contemplados, entretanto, pelo art .
54, do ADCT, da CF/1988 . Os povos indígenas, que não foram objeto de qualquer
menção nas Constituições do Acre, de 1° março de 1963 e de 26 de abril de 1971,
ganharam força e expressão política a partir da Constituição acreana de 1989 e de suas
respectivas emendas tal como a n° 23, de 2001 . A mobilização dos seringueiros era
autoevidente e, mesmo com a intensidade dos conflitos de terras, talvez tenha prescin-
dido de disposições jurídicas ao contrário dos povos indígenas . O documento final do
Zoneamento ecológico-econômico do Acre, publicado em 2000, ressalta “seringueiros,
ribeirinhos e colonos”, enfatizando que 11% do Estado do Acre são ocupados por
RESEX e Projetos de Assentamentos agroextrativistas .
8 . Entendo que o processo social de afirmação étnica, referido aos chamados quilombo-
las, não se desencadeia necessariamente a partir da Constituição de 1988 uma vez que
ela própria é resultante de intensas mobilizações, acirrados conflitos e lutas sociais que
impuseram as denominadas “terras de preto”, “mocambos”, “lugar de preto” e outras
designações que consolidaram de certo modo as diferentes modalidades de territoria-
lização das comunidades remanescentes de quilombos . Neste sentido a constituição
consiste mais no resultado de um processo de conquistas de direitos e é sob este prisma
que se pode asseverar que a constituição de 1988 estabelece uma clivagem na história
dos movimentos sociais, sobretudo daqueles baseados em fatores étnicos .
9 . Para se observar a atualidade destes problemas criados a partir da Lei de Terras de 1850
destaque-se que uma das representações ao I Encontro Nacional das Comunidades
Tradicionais referiu-se aos chamados “pomeranos” ou “pomerânios”, que foram recru-
tados mediante o risco de germanização como trabalhadores das plantações cafeeiras
e chegaram ao Brasil em 1858 . Foram mantidos como força de trabalho imobilizada
durante décadas . Seus descendentes estão estimados em 150 mil pessoas, sendo 50
mil no interior do Espírito Santo e mais particularmente no Município de Pancas
onde se encontram ameaçados de despejo dos 17 mil hectares que ocupam e que
são pretendidos para criação de uma unidade de proteção integral . Foram apresenta-
dos como “pomeranos remanescentes”, de confissão luterana, cuja região de origem
foi extinta . Estão se organizando nos últimos anos, a partir da ameaça de expulsão
das terras que tradicionalmente ocupam . Para maiores dados consulte-se o periódico
Pommerblad-Informativo das comunidades Germânicas no Brasil, que foi fundado
em 17 de março de 1998, em Vila Pavão (ES) . E ainda: Port, Ido – Paróquia Evangé-
lica de São Bento . Gráfica Ita Ltda . Vitória . 1980 . Esta última referência bibliográfica
busca estabelecer uma história de resistência a partir das famílias “pioneiras” agrupadas
historicamente segundo uma expressão religiosa .
10 . A doutrina do “sufficiently high price” é tomada do sistema de colonização sistemática
de Wakefield, cuja influência na elaboração da Lei de Terras de 1850 é assinalada por
diferentes juristas . Para um aprofundamento consulte-se: Cirne Lima, R . Pequena his-
tória territorial do Brasil : sesmarias e terras devolutas . Goiânia . Ed . UFG, 2002 pp .
82-100, e também o Parecer “Sesmarias e Terras Devolutas”, apresentado ao General
Ptolomeu de Assis Brasil, Interventor Federal no Estado de Santa Catarina, em 1944 .
11 . Relativizando esta interpretação pode-se afirmar que a Lei de Terras de 1850, quando
porventura manteve recursos abertos, favoreceu os grandes pecuaristas reconhecendo o
uso comum dos campos naturais . O art . 5°, § 4° dispõe o seguinte, neste sentido: “Os
campos de uso comum dos moradores de uma ou mais freguesias, municípios ou comar-
cas, serão conservados em toda a extensão de suas divisas e continuarão a prestar o mesmo
uso, conforme a prática atual, enquanto por lei não se dispuser o contrário .”Gevaerd Fi-
lho considera que este artigo introduziu no direito brasileiro a figura do “compáscuo”e se
refere às terras públicas em razão das disposições que distinguem o “uso”da “ocupação” .

Coletânea de Artigos 151


152 Brasil Rural em Debate

Para tanto menciona o Aviso de 5 de julho de 1855, que rezava o seguinte: “os campos de
uso comum a que se refere o art . 5°, § 4°, acima transcrito, poderiam apenas ser usados
e não ocupados por pessoas que nele quiserem se estabelecer .”Para um aprofundamento
consulte-se J .L . GEVAERD FILHO –“Perfil histórico-jurídico dos faxinais ou compás-
cuos- análise de uma forma comunal de exploração da terra” . Revista de Direito Agrário
e Meio Ambiente . Curitiba . Instituto de terras, Cartografia e Florestas-ITCF . Agosto de
1986 pp . 44-69 . Consulte-se também CAMPOS, NAZARENO J . de – Terras de uso
comum no Brasil –Um estudo de suas diferentes formas . Tese de doutorado apresentada
ao Curso de PG em Geografia Humana da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências
Humanas da USP em fevereiro de 2000 . 258 pp .
12 . Está-se diante de conflitos que contrapõem os agentes sociais destes domínios de uso
comum às “novas estratégias empresariais” de uma poderosa coalizão de interesses,
que articula empreendimentos diversos: usinas de ferro-gusa, carvoarias, siderúrgicas,
indústrias de papel e celulose, refinadoras de soja, frigoríficos e curtumes, mineradoras,
madeireiras, empresas de energia elétrica e laboratórios farmacêuticos e de biotecnolo-
gia .
13 . Consoante o art . 18, da Lei n° 9 .985, de 18 de julho de 2000: “A Reserva Extrativista
é uma área utilizada por populações extrativistas tradicionais, cuja subsistência baseia-
-se no extrativismo e, complementarmente, na agricultura de subsistência e na criação
de animais de pequeno porte, e tem como objetivos básicos proteger os meios de vida
e a cultura dessas populações, e assegurar o uso sustentável dos recursos naturais da
unidade .”De acordo com o Art . 23: “A posse e o uso destas áreas ocupadas pelas popu-
lações tradicionais nas Reserva Extrativistas e Reservas de Desenvolvimento Sustentá-
vel serão regulados por contrato ( . . .)” .
14 . Esta breve retrospectiva crítica da aplicação do art . 68, do ADCT, foi divulgada pela
Secretaria de Comunicação de Governo e Gestão Estratégica da Presidência da Repú-
blica, através do Em Questão de 20 de novembro de 2003, Dia Nacional da Consciên-
cia Negra . O reconhecimento público do número inexpressivo de titulações realizadas
funcionou como justificativa para uma ação governamental específica, posto que nesta
mesma data o Presidente Lula assinou o Decreto n° 4887, regulamentando o proce-
dimento para identificação, reconhecimento, delimitação, demarcação e titulação das
terras ocupadas por remanescentes das comunidades de quilombos . Este ato do poder
executivo teria correspondido, portanto, à necessidade de uma intervenção governa-
mental mais acelerada e ágil, condizente com a gravidade dos conflitos envolvendo as
comunidades remanescentes de quilombos .
A abrangência do significado de “terras tradicionalmente
ocupadas” e as dificuldades de efetivação
De 1988 para cá, o conceito de “terras tradicionalmente ocupadas”, vi-
torioso nos embates da Constituinte, tem ampliado seu significado, coa-
dunando-o com os aspectos situacionais, que caracterizam hoje o advento
de identidades coletivas, e tornou-se um preceito jurídico marcante para a
legitimação de territorialidades específicas e etnicamente construídas .
Em junho de 2002, evidenciando a ampliação do significado de
“terras tradicionalmente ocupadas” e reafirmando o que os movimen-
tos sociais, desde 1988, têm perpetrado, o Brasil ratificou, por meio do
Decreto Legislativo n° 143, assinado pelo Presidente do Senado Fede-
ral, a Convenção n° 169, da OIT, de junho de 1989 . Esta Convenção
reconhece como critério fundamental os elementos de autoidentifica-
ção, reforçando, em certa medida, a lógica dos movimentos sociais .
Nos termos do artigo 1º tem-se o seguinte:
“A consciência de sua identidade indígena ou tribal deverá ser consi-
derada como critério fundamental para determinar os grupos aos quais se
aplicam as disposições desta Convenção.”
Para além disto, o artigo 14 assevera o seguinte em termos de domi-
nialidade:
“Dever-se-á reconhecer aos povos interessados os direitos de proprieda-
de e de posse sobre as terras que tradicionalmente ocupam.”
Além disto, o artigo 16 aduz que:
“Sempre que for possível, esses povos deverão ter o direito de voltar
a suas terras tradicionais assim que deixarem de existir as causas que
motivaram seu translado e reassentamento.”
Este direito de retorno se estende sobre um sem número de situações
distribuídas por todo país, que resultaram em deslocamentos compul-
sórios de populações inteiras de suas terras por projetos agropecuários,
projetos de plantio de florestas homogêneas (pinus, eucalipto)1, proje-
tos de mineração, projetos de construção de hidrelétricas, com grandes
barragens, e bases militares .

Coletânea de Artigos 153


154 Brasil Rural em Debate

O texto da Convenção, além de basear-se na autodefinição dos agentes


sociais, reconhece explicitamente a usurpação de terras desde o domínio co-
lonial, bem como reconhece casos de expulsão e deslocamento compulsório
e amplia o espectro dos agentes sociais envolvidos, falando explicitamente na
categoria “povos” não exatamente em sinonímia com “populações tradicio-
nais” . Para um resumo das ácidas polêmicas entre os favoráveis à adoção do
termo “povos” e aqueles que defendiam o uso de “populações”, vale reprodu-
zir a versão da própria OIT em sua publicação oficial2:
“Durante três anos, a OIT trabalhou para a adoção da Convenção,
discutindo se na nova Convenção mudaria por “povos”o termo “popu-
lação” utilizado na Convenção 107. A decisão de usar o termo “po-
vos” resultou de longas discussões e consultas dentro e fora das reuniões.
Acordou-se finalmente que o termo correto seria o de “povos” já que este
reconhece a existência de sociedades organizadas com identidade pró-
pria, em vez de simples agrupamentos de indivíduos que compartem
algumas características raciais ou culturais. Depois de muita discussão,
ficou também decidido que: “O uso do termo “povos” nesta Convenção
não deverá ser interpretado como tendo qualquer implicação com o que
se refira a direitos que possam ser atribuídos ao dito termo no direito
internacional”(Parágrafo 3 do Artigo 1). A introdução desse parágrafo
atendia, em parte, à expressa preocupação de vários governos de que o
uso comum do termo “povos” implicasse, nesse contexto, o reconheci-
mento, no âmbito do direito internacional, de que povos indígenas e
tribais possam separar-se dos países em que habitam. Concluiu-se que
não competia à OIT decidir sobre como esse termo devia ser interpre-
tado no direito internacional.”(TOMEI et alli: 1999:29).
No caso da formação histórica brasileira, pode-se dizer que tal dis-
positivo abre possibilidades para reconhecimento de múltiplas situações
sociais que abarcam uma diversidade de agrupamentos tornados invi-
síveis pelas pretensões oficiais de homogeneização jurídica da categoria
“povo” desde o período colonial . A pluralidade implícita na noção de
“povos” publiciza diferenças . Ao mesmo tempo, chama a atenção para
territorialidades específicas, que tem existência efetiva dentro do signifi-
cado de território nacional, apontando para agrupamentos constituídos
no momento atual ou que historicamente se contrapuseram ao modelo
agrário exportador, apoiado no monopólio da terra, no trabalho escravo
e em outras formas de imobilização da força de trabalho .
Este texto da Convenção abre, assim, lugar para uma reinterpreta-
ção jurídico-formal . Os desdobramentos sociais dos quilombos, dos
movimentos messiânicos e das formas de banditismo social, que ca-
racterizaram a resistência ao império das “plantations” na sociedade
colonial, ganham força neste contexto, do mesmo modo que as formas
associativas e de ocupação que emergiram no seio das grandes pro-
priedades monocultoras a partir da sua desagregação com as crises das
economias algodoeira, açucareira, cafeeira e ervateira . Na Amazônia
ganharam vulto com o declínio da empresa seringalista e dos “donos”
de castanhais e babaçuais que monopolizavam a economia extrativista
e utilizavam mecanismos de imobilização da força de trabalho .
Estas novas formas de ocupação e uso comum dos recursos naturais
emergiram pelo conflito, delimitando territorialidades específicas, e não
tiveram, até 1988, qualquer reconhecimento legal . As territorialidades es-
pecíficas podem ser entendidas aqui como resultantes dos processos de
territorialização, apresentando delimitações mais definitivas ou contingen-
ciais, dependendo da correlação de força em cada situação social de anta-
gonismo . Distinguem-se, nesse sentido, tanto da noção de “terra”, estrito
senso, quanto daquela de “território”, conforme já foi sublinhado, e sua
emergência atém-se a expressões que manifestam elementos identitários
ou correspondentes à sua forma específica de territorialização . Para efeito
de ilustração, pode-se mencionar resumidamente as chamadas “terras de
preto”, “terras de índio” (que não se enquadram na classificação de terras
indígenas, porquanto não há tutela sobre aqueles que as ocupam perma-
nentemente), “terras de santo” (que emergiram com a expulsão dos jesuítas
e com a desagregação das fazendas de outras ordens religiosas) e congê-
neres, que variam segundo circunstancias específicas, a saber: “terras de
caboclos”, “terras da santa”, “terras de santíssima” (que surgiram a partir
da desestruturação de irmandades religiosas), “terras de herdeiros” (terras

Coletânea de Artigos 155


156 Brasil Rural em Debate

sem formal de partilha que são mantidas sob uso comum) e “terras de
ausentes”(ALMEIDA, 1989: 183-184) .
A Constituição Federal de 1988 e a Convenção n° 169, da OIT,
logram contemplar estas distintas situações sociais referidas às regiões
de colonização antiga, assim como aquelas que caracterizam regiões de
ocupação recente, ao recolocar no tempo presente o sentido de “ter-
ras tradicionalmente ocupadas”, libertando-o da “imemorialidade”, da
preocupação com “origem”, do passado e de categorias correlatas .
Numa tentativa de síntese, montamos um quadro demonstrativo am-
plo, contendo sete colunas e suas respectivas subdivisões . Nele, registramos
primeiramente as categorias de autodefinição, que, enquanto identidades
coletivas, se objetivaram em movimentos sociais . Sob este prisma, as “co-
munidades tradicionais” passam a ter uma expressão político-organizativa
com critérios de representatividade próprios . A seguir, evidenciando o
grau de reconhecimento formal que lograram alcançar, enumero os ins-
trumentos jurídico-formais que lhes são correspondentes, bem como as
agencias governamentais a quem compete efetivar as medidas decorrentes .
Finalmente registro, em duas colunas, os dados mais lacunosos, isto é,
as estimativas que concernem à extensão em hectares das territorialidades
em pauta e às suas respectivas informações demográficas . Os dados quan-
titativos referentes às áreas totais e à população de referência ainda são
fragmentários e incompletos, contendo imprecisões várias . A construção
de uma série estatística mais definitiva certamente depende de um recense-
amento criterioso . Mesmo que mencionados formalmente em documen-
tos oficiais, não possuem a fidedignidade necessária . No caso das terras
indígenas, consistem no somatório das áreas mencionadas nos processos
administrativos de delimitação e/ou demarcação, dado a público amplo .
No caso das comunidades remanescentes de quilombos, tampouco exis-
te um levantamento criterioso e tudo se derrama em estimativas, sempre
crescentes, quer de órgãos oficiais, quer dos movimentos quilombolas . Em
se tratando das áreas extrativistas, existem os levantamentos geográficos e
os mapas florestais com registro de incidência de manchas que agrupam
espécies determinadas, respondendo às indagações de onde se localizam
os castanhais, os seringais, os babaçuais, os arumanzais, os ouricuzeiros, os
açaizais etc . Existem também documentos oficiais, como os decretos, que
registram as áreas de reservas extrativistas e seus memoriais descritivos com
os correspondentes em hectares . Arrolamo-os todos .
Quanto aos denominados “fundos de pasto” e “faxinais”, não há sequer
estimativas referentes ao seu número ou às extensões em jogo . Colocamo-
-los, além disto, na coluna das categorias de autodefinição, embora não se
refiram explicitamente aos agentes sociais, mas às formas de uso da terra .
Os agentes sociais, que começam a ser chamados de “faxinalenses” e de
“moradores de comunidades de fundo de pasto”, se agrupam em torno
destas formas e são elas que emprestam a denominação de suas organiza-
ções . Nesta ordem foi que considerei que elas poderiam ser aproximadas
das categorias definitórias . As informações a elas referidas provem de parti-
cipantes de movimentos sociais, de entidades confessionais ou de estudio-
sos . As chamadas “terras soltas” ou “terras abertas”, embora verificadas em
trabalhos de pesquisa no sertão central do Ceará e no sertão pernambuca-
no, não foram incluídas porquanto não conseguimos verificar com maior
discernimento quem são os agentes sociais a elas referidos e quais as formas
organizativas que lhes seriam correspondentes .
Com os chamados “ribeirinhos” e pescadores3 tem-se que os lagos,
rios e quaisquer cursos d’água de seu uso e domínio, seriam bens da
União, correspondendo aos chamados “terrenos de Marinha” e seus
acrescidos4 . As distinções entre eles aparecem por meio das diferen-
tes organizações voluntárias, que os representam, não importando que
tenham ocupações econômicas aproximáveis . O caráter voluntário
destas organizações de base econômica heterogênea as distingue das
denominadas “colônias de pescadores” registradas no IBAMA e dos
sindicatos de pescadores artesanais, mesmo quando incidem sobre um
mesmo município ou bacia hidrográfica .
Por dificuldades teóricas de relacionar povos que mantém sua iden-
tidade sem estarem ligados permanentemente a um determinado ter-
ritório, como naquelas situações sociais aqui focalizadas, não incluí-
mos no quadro os “ciganos”, que são representados notadamente pela

Coletânea de Artigos 157


158 Brasil Rural em Debate

Associação de Preservação da Cultura Cigana (APRECI), que há poucos


anos começou a se organizar no Paraná e já tem sede em São Paulo e
no Rio Grande do Sul . Por serem considerados “nômades” e desterri-
torializados5, além de marcados por estigmas desde o período colonial,
os “ciganos” são usualmente apresentados como desvinculados de uma
área fisicamente delimitada6 . Na I Conferencia Nacional de Promoção
da Igualdade Racial, realizada em Brasília, na primeira semana de ju-
lho de 2005, os delegados “ciganos” apresentaram proposta7 de criação
de centros para a recepção de “ciganos” em cidades com mais de 200
mil habitantes . Afirmaram também, durante o I Encontro Nacional de
Comunidades Tradicionais, realizado em Luziania (GO), de 17 a 19 de
agosto de 2005, que estão discutindo a formalização do “aproveitamento
provisório de terras”, principalmente para os grupos de criadores, que
são nômades e permanecem acampados em cada área por cerca de 90
a 120 dias . Trata-se de um processo peculiar de territorialização, que
não envolve posse ou propriedade de terras . Os acampamentos “ciga-
nos” são voluntária e permanentemente mudados de lugar, consistindo
num modo de viver e de ser . Distinguem-se, neste sentido, daqueles
dos chamados “sem terra”ou daqueles outros que abrigam os denomi-
nados “refugiados”, que é um termo definido pelo Alto Comissariado
das Nações Unidas para os refugiados (ACNUR)8, e populações com-
pulsoriamente deslocadas . O uso de terras e pastos comuns que os
“ciganos”, tal como outros povos tradicionais, não ocupam de modo
permanente, mas aos quais tem acesso eventual para suas atividades
básicas, foi reconhecido pelo artigo 14, da Convenção n° 169, como
um “direito adicional e não como uma alternativa do direito de pro-
priedade” (TOMEI e SWEPSTON, 1999:46) . Para efeito de exem-
plo, pode-se citar uma situação localizada de institucionalização de tais
terras: em fins de 2004, a Prefeitura de Curitiba cedeu, em regime de
comodato, uma área de 30 .600 metros quadrados, próxima à Cidade
Industrial no local, denominado “Fazendinha”, para a organização de
um acampamento temporário para os “ciganos” que passam pela cida-
de . Em termos jurídicos a área é cedida por empréstimo gratuito e por
tempo indeterminado ou não (Vide anexo) .
No caso daqueles que se autodefinem como “atingidos”, destacamos
povos e grupos que, a partir da implantação de grandes projetos ofi-
ciais, seja de construção de hidrelétricas, seja de montagem de bases
militares, perderam ou se encontram em conflito, ameaçados de perder
suas territorialidades de referencia . Os memoriais descritivos dos de-
cretos de desapropriação por utilidade pública funcionaram como fon-
te, bem como aqueles arrolados em perícias antropológicas e os dados
divulgados pelos representantes dos movimentos sociais respectivos .
O caráter fragmentário das informações quantitativas e os riscos de
dupla contagem não autorizam uma operação de soma capaz de propi-
ciar com inteireza e exatidão uma expressão demográfica ou um deter-
minado total em hectares . Embora ao final deste texto tenhamos ousado
propor, para efeito de contraste, uma reflexão mais geral face à estrutura
agrária, cabe sublinhar que os trabalhos de pesquisas localizados, corres-
pondentes a cada uma das situações sociais focalizadas, devem ser mais
aprofundados antes de permitir generalizações . Os trabalhos etnográfi-
cos e as técnicas de observação direta poderão permitir um conhecimen-
to concreto destas mencionadas situações e autorizar posteriores sínteses .
Para apoiar as informações levantadas montamos notas de rodapé,
buscando complementá-las e proceder, quando possível, a esclareci-
mentos com base notadamente em “cartilhas”, “cadernos de formação”,
panfletos, fascículos informativos e “boletins” divulgados periodica-
mente pelos próprios movimentos sociais . Os levantamentos biblio-
gráficos assinalados buscam superar, em certa medida, a precariedade
dos dados disponíveis . As lacunas censitárias evidenciam, cada uma a
seu modo, o quanto a preocupação com estas chamadas “comunidades
tradicionais” ainda está ausente das formulações estratégicas governa-
mentais e quão complexas são as questões a elas relativas .
A leitura do quadro demonstrativo, mediante este arrazoado de
adendos e ressalvas, torna-se em certa medida autoevidente, mas de
todo modo limitada, porquanto distante de abranger o problema de
maneira completa .

Coletânea de Artigos 159


160
Brasil Rural em Debate

Movimento Agência Oficial Política Estimativa de População de


Categoria Legislação
Social Competente Governamental Área (Hectares) Referência
Ato Data Texto
Art. 231 - São reconhecidos aos índios sua organização
COIAB (Coordena- social, costumes, línguas, crenças e tradições, e os di-
ção Indígena da reitos originários sobre as terras que tradicionalmente
Amazônia Brasileira) ocupam, competindo à União demarcá-las, proteger
e fazer respeitar todos os seus bens. § 1º São terras
APOINME tradicionalmente ocupa- das pelos índios as por eles
(Articulação dos Constituição da habitadas em caráter permanente, as utilizadas para
Povos Indígenas Povos Indígenas do República Federati- 32421 suas atividades produtivas, as imprescindíveis à pre- FUNAI Política Indigenista 110 milhões 734127 indígenas (1)
Nordeste, M.Gerais va do Brasil (CF) servação dos recursos ambientais necessários a seu
e E.Santo) bem-estar e as necessárias a sua reprodução física e
cultural, segundo seus usos, costumes e tradições. §
UNI 2º As terras tradicionalmente ocupadas pelos índios
(União das Nações destinam-se a sua posse permanente, cabendo-lhes o
Indígenas) usufruto exclusivo das riquezas do solo, dos rios e dos
lagos nelas existentes.
Arts. 215 e 216 - reconhecem as áreas ocupadas por
CONAQ (Coorde- comunidades remanescentes de quilombos como parte
nação Nacional de CF Ato das Disposi- do patrimônio cultural do País. Art. 68 – Aos remanes-
05/10/88 FCP
Articulação das ções Constitucio- centes das comunidades de quilombos que estejam Política Nacional dos
Quilombolas 20/11/03 MDA 30 milhões 2 milhões de pessoas (2)
Comunidades nais Transitórias ocupando suas terras é reconhecida a propriedade Quilombos
24/05/04 INCRA
Negras Rurais (ADCT) Decretos definitiva, devendo o Estado emitir-lhes os títulos res-
Quilombolas) pectivos. Decreto 4.887 – Regulamenta procedimentos
titulação Instrução Normativa n.° 16-Incra
Movimento Agência Oficial Política Estimativa de População de
Categoria Legislação
Social Competente Governamental Área (Hectares) Referência
Ato Data Texto
Dec. n.° 98.897 regulamenta RESEX utilizada por popu-
30/01/90 MMA (3)
CNS (Conselho Decreto Lei Lei lações extrativistas. Lei n.° 9.985 – Regulamenta o art.
08/07/00 IBAMA Ambiental e
Seringueiros Nacional de Serin- Chico Mendes 225,& 1°., incisos I, II, III E VII da CF, institui o Sistema
13/01/99 CNPT Extrativista PRODEX
gueiros) (Acre) Nacional de Unidades de Conservação da Natureza. Lei
05/07/99 SEPRO-AC
Est. n.º 1277 Dec. Est. n.º 868
Reservas Extrativistas de Seringa e Castanha – Decreto
n.º 98.863, de 23 de janeiro de 1990 (Cria a RESEX do
Alto Juruá). Área aproximada 506.186 ha. População
estimada 3.600 – Decreto n.º 99.144, de 12 de março
de 1990 (Cria a RESEX Chico Mendes). Área aproximada
970.570 ha. População estimada 7.500 – Decreto n.º
99.145, de 12 de março de 1990 (Cria a RESEX do Rio
Cajari). Área aproximada 481.650 ha. População esti- MMA 17 milhões
1990
CNS (Conselho mada 3.800 –Decreto n.º 99.166, de 13 de março de (4)
Seringueiros e 1997
Nacional de Decretos 1990 (Cria a RESEX do Rio Ouro Preto). Área aproxima- IBAMA Ambiental e Agrária RESEX
Castanheiros 1998
Seringueiros) da 204.583 ha. População estimada 700 – Decreto s/n, 5.058.884
2004
de 04 de março de 1997 (Cria RESEX do Médio Juruá). CNPT
Área de 253.226 ha. População estimada 700 – Decreto
s/n, de 06 de novembro de 1998 (Cria a RESEX Tapajós-
-Arapiuns). Área de 647.610 ha. População estimada
16.000 – Decreto de 08 de novembro de 2004. (Cria
a RESEX Verde para a Sempre. Área de 1.258.717,2009
ha – Decreto de 08 de novembro de 2004. (Cria a RESEX
Riozinho do Anfrísio. Área de 736.340, 9920 ha

Coletânea de Artigos
161
162

Movimento Agência Oficial Política Estimativa de População de


Categoria Legislação
Social Competente Governamental Área (Hectares) Referência
Ato Data Texto
Art. 196 – Os babaçuais serão utilizados na forma da
lei, dentro de condições, que assegurem a sua preserva-
ção natural e do meio ambiente, e como fonte de renda
do trabalhador rural.
Parágrafo único – Nas terras públicas e
Brasil Rural em Debate

devolutas do Estado assegurar-se-á a exploração dos


Constituição 16/05/90
babaçuais em regime de
Estadual do
economia familiar e comunitária.
Maranhão
Leis Municipais:
– n.o 05/97 de Lago do Junco (ma).
– n.o 32/99 de Lago dos Rodrigues (ma).
– n.o 255/ dez. 99 de Esperantinópolis
(ma).
– n.o 319 /2001 de São Luís Gonzaga
MIQCB (ma).
Leis 1997- MMA
(Movimento – n.o 49/ out. 2003 de Praia Norte (to ). 18,5 milhões 400.000
Municipais 2003
Interestadual – n.o 1.084/2003 de Imperatriz (ma). (5) extrativistas,
Quebradeiras- IBAMA
das – n.o 306/ out. 2003 de Axixá (to). Governamental e sendo que
-de-côco de
Quebradeiras – pl n.o 466/2003 de Lima Campos (ma). Agrária RESEX em RESEX
babaçu CNPT
de Côco – pl n.o ..... de Capinzal do Norte ( ma). 36.322 3.350
Babaçu) – pl n.o 58 de 11/08/2003 de Buriti (to).
MDA
– pl s/n São Domingos do Araguaia (pa).

Reservas Extrativistas do Babaçu


– Decreto n.o 532, de 20 de maio de
1992 (Cria a resex Mata Grande).
Área aproximada 10.450 ha
– Decreto n.o 534, de 20 de maio de
1992 (Cria a resex do Ciriaco).
Área aproximada 7.050 ha.
Decretos 1992
– Decreto n.o 535, de 20 de maio de
1992 (Cria a resex do Extremo Norte).
Área aprox. 9.280 ha.
– Decreto n.o 536, de 20 de maio de
1992 (Cria a resex Quilombo do Fre-
chal). Área aproximada 9.542 ha.
Movimento Agência Oficial Política Estimativa de População de
Categoria Legislação
Social Competente Governamental Área (Hectares) Referência
Ato Data Texto
– Decreto n.° 523, de 20 de março de 1992. Cria resex
de Pirajubaé). Área de 1.444 ha. População estimada
1992 600 pessoas.
Resex
Pescadores MONAPE Decretos MMA Ambiental em resex 600
1.444
1997 – Decreto s/n, de 3 de janeiro de 1997. Cria a resex de
Arraial do Cabo). s/i

Art. 250 – O Estado, ..., acompanhará os processos de


delimitação de territórios indígenas, colaborando para
a sua efetivação e agilização, atuando preventivamente
Movimento dos à ocorrência de contendas e conflitos com o propósito
Ribeirinhos do de resguardar, também, os direitos e meios de sobrevi-
Constituição
Amazonas (mora vência das populações interioranas, atingidas em tais Ambiental Pro
Ribeirinhos Estadual do 1989 MMA IBMA - -
) (6) Movimento situações, que sejam comprovadamente desassistidas. Várzea (ppg-7)
Amazonas
de Preservação de Art. 251 – v – § 2º – (...) viabilizar o usufruto dos di-
Lagos reitos de assistência, saúde e previdência, em especial
o previsto no Art. 203, v, da Constituição da República,
pelos integrantes de outras categorias extrativistas, pela
população ribeirinha e interiorana em geral.
– Decretos de desapropriação por utilidade pública mais de 1 milhão
para implantação de hidrelétricas desde final dos anos de pessoas preju-
70: – uhe de Sobradinho e uhe de Itaparica no Rio São dicadas e expulsas
Atingidos
MAB Decretos 1977-92 Francisco, – uhe de Itaipu na Bacia do Rio Paraná, – MME MDA Energética - de nossas terras
por barragens
uhe de Machadinho e Ita na Bacia do Rio Uruguai, – pela construção
uhe de Tucuruí no Rio Tocantins, etc. de usinas hidrelé-
tricas(7)

Coletânea de Artigos
163
164

Movimento Agência Oficial Política Estimativa de População de


Categoria Legislação
Social Competente Governamental Área (Hectares) Referência
Ato Data Texto
– Dec. n.º 7.820 declara de utilidade pública para fins MD
Atingidos
Setembro de desapropriação área 52 mil ha. para instalação do MDA
p/ Base de MABE Decretos Aero-espacial 85 mil 3.000 famílias
1980 Centro de Lançamento de Alcântara. – Dec. presiden- AEB
Brasil Rural em Debate

Alcântara
cial aumentando área para 62 mil ha. MCT
Art. 178 – Sempre que o Estado considerar conveniente
Articulação poderá utilizar-se do direito real de concessão de uso,
Estadual de Fundos dispondo sobre a distribuição da gleba, o prazo de
e Fechos de Pasto concessão e outras condições. § único – No caso de
Baianos Central de uso e cultivo da terra sob forma comunitária o Estado,
Agosto
Fundos Fundos e Fechos de Constituição Esta- se considerar conveniente, poderá conceder o direito
1991 MDA Agrária - 20.000 Famílias
de pasto Pasto de Senhor do dual da Bahia real de concessão de uso a associação legitimamente
1989
Bonfim (BA) Central constituída, integrada por seus reais ocupantes, agrava-
de Fundos de Pasto da de cláusula de inalienabilidade, especialmente nas
de Oliveira dos áreas denominadas de fundo de pasto e nas ilhas de
Brejinhos (BA) propriedade do Estado, sendo vedada a esta a trans-
ferência de domínio.
– Regulamento da Lei de Terras do Estado da Bahia,
Interba. Art. 20 No § 1, do art. 1º diz: entende-se por sis-
tema Faxinal: o sistema de produção camponês tradicio-
nal, característico da região Centro-sul do Paraná, que
tem como traço marcante o uso coletivo da terra para
Decreto Estadual produção animal e a conservação ambiental. Funda-
14/08/97 MDA Mais de 10.000
Faxinal – (8) (Paraná) Lei Esta- menta-se na integração de 3 componentes: a) produção Agrária -
13/11/07 ITCF famílias
dual n.° 15673 animal coletiva, à solta, através dos criadouros comu-
nitários; b) produção agrícola – policultura alimenta de
subsistência para consumo e comercialização; c) extra-
tivismo florestal de baixo impacto – manejo de erva-
-mate, araucária e outras espécies nativas. O Estado
do Paraná reconhece os Faxinais e sua territorialidade.
Notas ao quadro
1 . No Brasil há cerca de 220 etnias e 180 línguas . As terras indígenas correspondem a
12,38 % das terras do país . Os indígenas totalizam 734 .127 pessoas, cuja distribuição
por região é a seguinte: 29% na Região Norte, 23% no Nordeste, 22% na Região
Sudeste, 14% no Centro-Oeste e 12% na Região Sul . CF . IBGE, Censo Demográfico
de 2000 .
2 . “Oficialmente, o Brasil tem mapeado 743 comunidades remanescentes de quilombos .
Essas comunidades ocupam cerca de 30 milhões de hectares, com uma população
estimada em 2 milhões de pessoas . Em 15 anos apenas 71 áreas foram tituladas .”(Em
Questão, 20/11/2003) .
Em 2004, pela primeira vez, o Censo Escolar do Ministério da Educação (MEC)
pesquisou a situação educacional dos remanescentes de quilombos . Os primeiros re-
sultados assinalam que atualmente, são 49 .722 alunos matriculados em 364 escolas,
sendo que 62% das matrículas estão concentradas na Região Nordeste . O Estado do
Maranhão é o que possui maior número de alunos quilombolas, mais de 10 mil que
frequentam 99 estabelecimentos .(CF . Irene Lobo – Agência Brasil, 06/10/2004) .
3 . Não foram catalogadas as Leis Ambientais Municipais concernentes às “Políticas Mu-
nicipais do Meio Ambiente” que disciplinam as ações dos Conselhos Municipais do
Meio Ambiente e dispõem sobre as demandas de uso os recursos naturais dos diferen-
tes grupos sociais .
Um exemplo seriam as leis nº 16 .885 e 16 .886 de 22 de abril referidas ao Municí-
pio de Marabá (PA) . Consulte-se também as referências aos Municípios de Altamira,
Santarém, Paragominas, Uruará, Porto de Moz e Moju (PA) e Mâncio Lima e Xapuri
(AC) in: Toni, F . e Kaimowitz, D . (orgs .) Municípios e Gestão Florestal na Amazônia .
Natal: A .S . Editores, 2003 .
4) Os castanhais na América do Sul abrangem uma extensão de 20 milhões de hectares .
A Zona Castanheira no Peru, na parte oriental do departamento de Madre de Dios,
é estimada em 1,8 milhões de hectares . A região castanheira da Bolívia localiza-se em
Pando e é estimada em 1,2 milhões de hectares . No Brasil os maiores castanhais estão
entre os rios Tocantins e Xingu, assim como em Santarém, as margens do rio Tapajós,
seguindo-se as zonas dos rios Trombetas e Curuá . No estado do Amazonas a maior
incidência é no Solimões, vindo a seguir a região do rio Madeira . No estado do Acre as
maiores concentrações de castanheiras estão na Zona dos rios Xapuri e Acre . No Ama-
pá a maior incidência é no rio Jarí . Estas áreas perfazem uma extensão estimada em 17
milhões de hectares, superpondo-se muitas vezes às áreas de incidência de seringais .
CF . Bases para uma Política Nacional da Castanha . Belém, 1967 .
CF . Borges, Pedro . Do Valor Alimentar da Castanha-do-Pará . Rio de Ja-
neiro, SAI - Ministério da Agricultura 1967, págs . 12 e 13; e CF . Clay,
J .W . Brasil nuts . The use of a keystone species for conservation and
development . En: Harvesting wild species . C . Freese, Ed . The John Hopkins Univer-
sity Press; 1997 . pp . 246-282 .

Coletânea de Artigos 165


166 Brasil Rural em Debate

Para um aprofundamento das articulações entre extrativistas de diferentes paises ama-


zônicos consulte-se: Porro, Noemi et alli (orgs .)-Povos & Pueblos-Lidando com a
globalização-As lutas do povo extrativista pela vida nas florestas da Bolívia, Brasil e
Peru . São Luis, MIQCB/Herencia/Candela/STR de Brasiléia, 2004, pp . 34 .
5 . Os babaçuais associam-se a outros tipos de vegetação, sendo próprios de baixadas
quentes e úmidas localizadas nos Estados do Maranhão, Piauí, Tocantins, Pará, Goiás
e Mato Grosso . Nas referidas unidades da federação ocupam em conjunto uma área
correspondente a cerca de 18,5 milhões de hectares, conforme Ministério da Indús-
tria e Comércio-SIT, Mapeamento e levantamento de potencial das ocorrências de
babaçuais . Brasília: MIC/SIT, 1982 . As principais formações encontram-se na região
de abrangência do Programa Grande Carajás, notadamente, no Maranhão cuja área
delimitada totaliza 10,3 milhões de hectares . No Tocantins e no Pará registram-se res-
pectivamente 1 .442 .800 hectares e cerca de 400 .000 hectares . No Estado do Piauí às
áreas de ocorrência de babaçu correspondem 1 .977 .600 ha . Considerando-se apenas
a denominada região do Programa Grande Carajás, tem-se aproximadamente 11,9
milhões de hectares de ocorrência de babaçuais, ou seja, 63,4% do total nacional das
áreas de ocorrência . Correspondem a 13,2% da região de abrangência do Programa
Grande Carajás . Sobressai o Estado do Maranhão, com mais de 71% da área global
dos babaçuais . CF . Almeida, A . W . B . de . As Quebradeiras de Côco Babaçu: Identida-
de e Mobilização . São Luís: MIQCB – Caderno de Formação n .º 1, 1995, p . 17,18 .
Para fins de atualização, registre-se que, em maio de 2005, o Ministério do Meio Am-
biente através do gabinete da Ministra editou duas Portarias, a de n° 126 e a de n° 129,
criando GTs para elaborar proposta de ocupação territorial das RESEX Mata Grande
(MA) e Extremo Norte (TO) . CF . Diário Oficial da União, Seção 1 nº 92, 16 de maio
de 2005, p . 92 .
6 . CF . Cartilha do Movimento Ribeirinho do Amazonas . I Seminário sobre Identidade
Ribeirinha . Manaus, CPT, 2003 .
7 . CF . Movimento dos Atingidos por Barragens-MAB . Caderno de Formação nº 5,
pág . 3, s/d .
Cabe complementar que 3,4 milhões de hectares de terras produtivas e florestas já
foram inundados com a construção de barragens . Além disto, acrescente-se que mais
de 1 milhão de pessoas foram compulsoriamente deslocadas . Até o ano de 2 .015 estão
planejadas mais 490 barragens .
8 . Na literatura relativa aos faxinais verifica-se uma abordagem evolucionista que sem-
pre os apresenta como “em extinção”, “perdendo suas características comunais”e se
constituindo em “faxinais remanescentes”, como sublinha CHANG MAN YU em
Sistema Faxinal: uma forma de organização camponesa em desagregação no centro-sul
do Paraná . Londrina: IAPAR, 1988, p . 14 .
Para outros esclarecimentos consulte-se: FRANCISCO A . GUBERT FILHO “O Fa-
xinal: estudo preliminar” . Revista de direito agrário e meio ambiente, n . 2 . Curitiba:
ITCF, 1987, pp . 32-40 .
HORÁRIO MARTINS DE CARVALHO . “Da Aventura a Esperança . A experiência
autogestionária no uso comum da terra” . Curitiba, 1984 .
No caso dos chamados “faxinais” não se registra uma forma organizativa, aglutinadora
das diversas associações e cooperativas, com uma pauta de reivindicações comuns que
possa ser classificada como movimento social . Há associações dos chamados “faxinalen-
ses”, como aquela do Faxinal dos Seixas e da Saudade Santa Rita que se organizam em
rede juntamente com organizações não governamentais – como o Instituto Equipe de
Educadores Populares (IEEP), o Instituto Guardiães da Natureza (ING) e a entidade
Terra de Direitos “, com entidades confessionais – como a Comissão Pastoral da Terra –,
com instituições de ensino – como a UEPG e a UNICENTRO – e com órgãos oficiais .
Com apoio desta “Rede Faxinal” , foi realizado nos dias 5 e 6 de agosto de 2005, em Irati,
Paraná, o I Encontro dos Povos dos Faxinais, contando com mais de 150 participantes .
Em setembro de 2005, foi formada a Articulação Puxirão dos Faxinalenses (APF), com
representação de 20 faxinais . Em maio de 2008, os trabalhos de levantamento já aponta-
vam mais de 244 faxinais no Paraná, criando condições de possibilidades para a criação
em futuro próximo de uma forma organizativa aglutinadora .

NOTAS
A abrangência do significado de “terras tradicionalmente
ocupadas”e as dificuldades de efetivação
1 . Um dos casos mais recentes de mobilização pela recuperação de territórios concerne à
luta dos povos Tupinikim e Guarani, no Estado do Espírito Santo . A Assembléia Geral
destes povos na aldeia Comboios, em 19 de fevereiro de 2005 discutiu a “retomada
das terras em poder da Aracruz Celulose” . Consoante “Nota Pública”aprovada na re-
ferida Assembléia, que contou com a participação de 350 indígenas das aldeias Pau
Brasil, Caieiras, Velhas, Irajá, Três Palmeira, Boa-Esperança, Piraquê-Açu e Comboios,
tem-se o seguinte: “Em 1979, começamos a travar uma luta para retomar nossas ter-
ras, sempre com a certeza do nosso direito . Em 1997, a FUNAI identificou 18 .071
hectares como “terras tradicionalmente ocupadas por nós”, Tupinikim e Guarani . Até
o momento conseguimos recuperar apenas uma pequena parte do nosso território .
Cerca de 11 .000 hectares continuam nas mãos da Aracruz Celulose, por força de um
Acordo ilegal . . .”(CF . Nota Pública assinada pela Comissão de Caciques Tupinikim e
Guarani . Aldeia de Irajá, 28 de fevereiro de 2005) .
2 . CF . TOMEI, Manuela; SEWPSTON, LEE . Povos indígenas e tribais . Guia para a
aplicação da Convenção n . 169 da OIT . Brasília, OIT, 1999 (editado em Genebra em
1996), pp . 28,29 .

Coletânea de Artigos 167


168 Brasil Rural em Debate

3 . Os chamados “pescadores comerciais” vinculados a empresas de pesca e os que pescam


por esporte e lazer não estão incluídos nesta acepção de “pescadores” . Esta distinção
é necessária para que se possa entender a oficialização de acordos como aquele pro-
movido pelo IPAAM (Instituto de Proteção Ambiental do Amazonas) no Rio Unini,
afluente da margem direita do Rio Negro, através da Portaria 139/2004 . Tal acordo
buscou harmonizar interesses de pescadores esportivos, turistas e empresas de pesca,
de um lado, e os mais de mil ribeirinhos que moram ao longo dos 390 quilômetros de
extensão do rio, limite natural do Parque Nacional do Jaú e da Reserva de Desenvol-
vimento Sustentável do Amaná . (CF . DANTAS, G .S .- “Acordo põe fim a conflito de
ribeirinhos e pescadores” . A Crítica, Manaus, 29 de setembro de 2004, p . C-7) .Vide
Art . 20, VII da Constituição da República Federativa do Brasil . Considerar também
que há rios administrados municipalmente .
4 . Vide Art . 20, VII da Constituição da República Federativa do Brasil . Considerar tam-
bém que há rios administrados municipalmente .
5 . Estas indicações não podem ser lidas como uma tendência de sedentarização . Na França
há dispositivos jurídico-formais que asseguram em cada grande cidade uma área destina-
da a acampamentos temporários de “ciganos” . Esta questão tornou-se uma preocupação
mundial a partir do fim da II Grande Guerra, que teve impactos trágicos sobre “ciganos”
e povos nômades da África do Norte, do Oriente Médio e da Ásia . Nos anos 1950-60
a UNESCO apoiou projetos de investigação antropológica para pesquisar processos de
sedentarização de comunidades nômades . Um dos estudos mais destacados deste perío-
do trata-se de Nomads of South Pérsia-The Basseri tribe of the Khamseh Confederacy,
de autoria de Fredrik BARTH, publicado em 1961 pela Waveland Press, Inc . USA . Um
outro trabalho mais recente, que também se destacou, focalizando um copioso repertó-
rio de situações de pastorialismo e uso comum dos recursos trata-se de FIELD, Thomas
J . The Nomadic Alternative . Prentice Hall . New Jersey . 1993
6 . De acordo com Cláudio Domingos Iovanovitchi, da APRE-CI, aqui, o “cigano” se mistu-
rou com o índio e o negro . São as três etnias que tem mais dificuldades de inclusão social
no País . Não fizeram quilombos porque não eram escravos, mas participaram fazendo
escambo de quilombo em quilombo .”(C .D . Iovanovitchi in SANCHES, 2005:10) .
7 . Não existe um censo relativo aos “ciganos” . As estimativas utilizadas pela APRECI
assinalam que seriam de 600 mil a 1 milhão os “ciganos”distribuídos por diferentes
regiões do Brasil e subdivididos em dois subgrupos: os “ciganos”de origem ibérica
ditos calons, que em 1574 foram desterrados de Portugal e Espanha, e os que mi-
graram de diferentes países do Leste Europeu, principalmente entre as duas guerras
mundiais, chamados de rom . As estimativas de outra entidade, o Centro de Cultura
Cigana, de utilidade pública n . 10 .340/02, com sede em Juiz de Fora (MG), assinalam
que naquela cidade há 9 .560 “ciganos”, na Zona da Mata mineira 23 .230 e em Belo
Horizonte mais de 120 .000 “ciganos” . Minas Gerais teria a terceira maior população
cigana brasileira . Para o referido Centro haveria no Brasil cerca de 1 .800 .000 “ciganos”
(CF . folheto do CCC de junho de 2005) . Em suma, os “ciganos”não são recenseados,
todavia existem efetivamente e, embora estejam se agrupando em associações, não
formaram um movimento social .
Segundo informações que obtive em conversa com dois representantes da APRECI,
em Brasília, no dia 01/07/2005, no âmbito das atividades da I Conferencia Nacional
de Promoção da Igualdade Racial, o espaço destinado aos “ciganos”, em Curitiba, é
também destinado à eventual instalação de circos e de parques de diversões . A área
não possui saneamento básico e em junho de 2005 lá haviam cerca de 40 barracas
com famílias acampadas . Segundo os representantes os vizinhos já teriam feito abaixo-
-assinado para retirar os “ciganos”de lá alegando que seriam “fedorentos” .
No decorrer do I Encontro Nacional de Comunidades Tradicionais a representação
cigana se fez através de um “rom”, Farde Vichil, e uma “calon”, Márcia Yáskara . Ela
foi escolhida para integrar o conjunto de representantes das comunidades tradicionais
na Comissão Nacional de Desenvolvimento Sustentável instituída pelo Decreto Presi-
dencial de 27 de dezembro de 2004 .
Para maiores esclarecimentos consultar: Destaque SEPPIR n . 32 . “Povo cigano come-
ça mobilização . . .” . Brasília, 9 a 15 de abril de 2005 .
AIZENSTEIN, Berel (Presidente da Confederação Israelita do Brasil –Conib) . “Ne-
gros, índios e ciganos: por que não?”Tribuna Judaica . Ano VI n . 143 . Edição nacional,
26 de junho a 10 de julho de 2005 .
FERRAZ, Claúdia . “Cultura cigana em vias de resgate” . O Estado de São Paulo . São
Paulo, 31 de julho de 2005 p . A23 .
SANCHES, P .A . “Vida Cigana” . Carta Capital . Ano IX .N . 350, 13 de julho de 2005
pp . 10-16 .
O Dia Nacional do Cigano, 24 de maio, foi instituido em 2006 por meio de decreto
do Presidente da República .
8 . Para um aprofundamento das implicações deste conceito leia-se ALMEIDA, A .W .B .
de . “Refugiados do Desenvolvimento” os deslocamentos compulsórios de índios e
camponeses e a ideologia da modernização . Travessia . Revista do migrante . Ano IX .
N . 25 . CEM . S . Paulo, maio/agosto de 1996, pp . 30-35 .

4.3 Os limites das categorias cadastrais e censitárias


No plano jurídico1, tanto quanto no plano operacional há, como já
foi dito, obstáculos de difícil superação para o reconhecimento das “ter-
ras tradicionalmente ocupadas” . O Brasil dispõe de duas categorias para
cadastramento e censo de terras, quais sejam: estabelecimento2 ou uni-
dade de exploração, que é adotada pelos censos agropecuários do IBGE,
e imóvel rural3 ou unidade de domínio, que é adotada pelo cadastro do
INCRA, para fins tributários . Todas as estatísticas, que configuram a

Coletânea de Artigos 169


170 Brasil Rural em Debate

estrutura agrária, atêm-se a estas e somente a estas categorias4 . As terras


indígenas, em decorrência da figura da tutela, e as áreas reservadas são re-
gistradas no Serviço do Patrimônio da União . As terras das comunidades
remanescentes de quilombo, também recuperadas pela Constituição Fe-
deral de 1988, por meio do artigo 68, do ADCT, devem ser convertidas,
pela titulação definitiva, em imóveis rurais . Claúsulas de inalienabilida-
de, domínio coletivo e costumes e uso comum dos recursos juntamente
com fatores étnicos, tem levantado questões para uma visão tributarista
que só vê a terra como mercadoria passível de taxação, menosprezando
dimensões simbólicas . Ante esta classificação restrita uma nova concep-
ção de cadastramento se impõe, rompendo com a insuficiência das ca-
tegorias censitárias instituídas e levando em consideração as realidades
localizadas e a especificidade dos diferentes processos de territorialização .
Sem haver ruptura explícita com tais categorias assiste-se a tentativas
várias de cadastramento parcial como apregoa a Portaria n° 6, de 1° de
março de 2004, da Fundação Cultural Palmares, que institui o Cadas-
tro Geral de Remanescentes das Comunidades de Quilombo, nome-
ando-as sob as denominações seguintes: “terras de preto, mocambos,
comunidades negras, quilombos ”dentre outras denominações5 .
Ora, a própria necessidade de um cadastro à parte revela uma insufici-
ência das duas categorias classificatórias, ao mesmo tempo em que con-
firma e chama a atenção para uma diversidade de categorias de uso na
vida social que demandam reconhecimento formal . Aliás, desde 1985, há
uma tensão dentro dos órgãos fundiários oficiais para o reconhecimento
de situações de ocupação e uso comum da terra, ditadas por “tradição
e costumes”, por práticas de autonomia produtiva – erigidas a partir da
desagregação das “plantations” e das empresas mineradoras – e por mo-
bilizações sociais para afirmação étnica e de direitos elementares . Um eu-
femismo criado no INCRA, em 1985/1986, dizia respeito a “ocupações
especiais”, no Cadastro de Glebas, onde se incluíam nos documentos de
justificativa, as chamadas “terras de preto”, “terras de santo”, “terras de
índio”, os “fundos de pasto” e os “faxinais” dentre outros .
O advento destas práticas e a pressão pelo seu reconhecimento tem
aumentado desde 1988, sobretudo na região amazônica, no semi-árido
nordestino e nas denominadas “regiões de cerrado”6, com o surgimen-
to de múltiplas formas associativas agrupadas por diferentes critérios
ou segundo uma combinação entre eles, tais como: raízes locais pro-
fundas, laços de solidariedade reafirmados mediante a implantação de
“grandes projetos de exploração econômica”, fatores político-organi-
zativos, autodefinições coletivas, consciência ambiental e elementos
distintivos de uma identidade coletiva . A formação de um corpo de
lideranças com saberes práticos em consolidação e as reivindicações de
reconhecimento de “territorialidades específicas” complementam este
quadro geral, sem no entanto esgotá-lo .
As denominadas “quebradeiras de coco babaçu” incorporam tam-
bém um critério de gênero combinado com uma representação dife-
renciada por regionais e respectivos povoados . Os chamados “ribeiri-
nhos”7 incorporam ainda um critério geográfico combinado com uma
representação política distribuída por lagos, rios e igarapés . Os agentes
sociais referidos a fundos de pasto e a faxinais, parecem não ter uma
denominação própria capaz de aparentemente uniformizá-los . Eles se
distinguem, entretanto, por fatores organizativos peculiares, ou seja,
cada faxinal ou cada fundo de pasto teria uma associação de referencia
ou uma forma associativa própria . Os pescadores, por sua vez, buscam
transformar de maneira radical a organização por Colônias, até en-
tão implementada pelos órgãos oficiais8, evitando serem vistos apenas
como grupo ocupacional ou como mera atividade econômica . Para
tanto tem reforçado elementos de seu modo de existência em povoados
e aldeias, mantendo produção em pequena escala, congregando fami-
liares e vizinhos no uso comum dos recursos, utilizando equipamentos
simples, organizando-se em cooperativas e consolidando presença em
circuitos de mercado segmentado . Mesmo que o termo permaneça o
mesmo, ou seja “pescador”, o seu novo significado, passa a incorporar
uma expressão autônoma no processo produtivo e elementos identi-
tários capazes de objetivá-los de maneira politicamente contrastante e
organizada em movimento social .
A estas formas associativas, expressas pelos “novos movimentos sociais”
(Hobsbawm, 1995:406), que agrupam e estabelecem uma solidariedade
ativa entre os sujeitos, delineando uma “política de identidades” e con-
solidando uma modalidade de existência coletiva (Conselho Nacional
dos Seringueiros, Movimento Interestadual das Quebradeiras de Coco
Coletânea de Artigos 171
172 Brasil Rural em Debate

Babaçu, Coordenação Nacional de Articulação das Comunidades


Negras Rurais Quilombolas, Movimento Nacional dos Pescado-
res, Movimento dos Fundos de Pasto . . .), correspondem territoria-
lidades específicas onde realizam sua maneira de ser e asseguram
sua reprodução física e social . Em outras palavras, pode-se dizer
que cada grupo constrói socialmente seu território de uma manei-
ra própria, a partir de conflitos específicos em face de antagonistas
diferenciados, e tal construção implica também em uma relação
diferenciada com os recursos hídricos e florestais . Tal relação, de
certa maneira, está refletida na diversidade de figuras jurídicas ve-
rificadas nos textos constitucionais, nas leis e nos decretos .
As formas de reconhecimento das diferentes modalidades de
apropriação das denominadas “terras tradicionalmente ocupadas”
podem ser resumidas num quadro explicativo que passo a apresen-
tar adiante . A diversidade de figuras jurídico-formais, contemplan-
do a propriedade (quilombolas), a posse permanente (indígenas),
o uso comum temporário, mas repetido a cada safra (quebradeiras
de coco babaçu); o “uso coletivo” (faxinal), o uso comum e aberto
dos recursos hídricos e outras concessões de uso, bem assinala a
complexidade dos elementos em questão que, embora sejam pas-
síveis de agrupamento numa única categoria classificatória, não
parecem comportar uma homogeneização jurídica . A figura de
“comodatário”ou daquele que explora a terra pertencente a outra
pessoa ou instituição por empréstimo gratuito e por tempo inde-
terminado, que aparece referida ao pleito dos “ciganos”, não foi
incluída, em concordância com procedimento de montagem do
quadro anterior, ainda que citada na análise que o antecede . Caso
fosse incluída a figura jurídica correspondente seria o “comodato” .
Pelas mesmas razões não inclui também qualquer referência aos
chamados pomeranos, cujas terras que ocupam na região de Pan-
cas (ES) estariam, consoante versão oficial, em sobreposição com
unidade de preservação ambiental .
Formas de reconhecimento jurídico das diferentes modalida-
des de apropriação das denominadas “terras tradicionalmente
ocupadas” (1988-2004)
“Posse permanente”, usufruto ex-
Povos indígenas clusivo dos recursos naturais. Terras CF/1988, art. 231
como “bens da união”

Comunidades
CF/1988, ADCT,
remanescentes Propriedade. “titulação definitiva”
art. 68
de quilombos

Uso comum dos babaçuais. “sem Leis Municipais


posse e sem propriedade” (MA, TO) 1997-
Quebradeiras
2004
de coco babaçu “Regime de economia familiar e CF/MA, 1990,
comunitária” art. 196
RESEX – “de domínio público, com CF/1988, art. 20
Seringueiros, uso concedido às populações extrati- § 3º
castanheiros, vistas tradicionais.” Decretos 1990,
quebradeiras de
Posse permanente. Terras como 1992,1998 Lei no
coco babaçu
“bens da união”. 9.985, 18/07/00
RESEX – “Terrenos de Marinha” CF/1988, art. 20
Pescadores Recursos hídricos como “bens da § 3º Decretos
união” 1992 e 1997
CE/BA, 1989
Fundo de pasto “Direito real de concessão de uso”
Art. 178
Decreto Estadual
Paraná 14/08/97
“uso coletivo da terra para produção
Faxinal Lei Estadual/
animal e conservação ambiental”
PR no 15673, de
13/11/2007

NOTAS
Os limites das categorias
cadastrais e censitárias
1 . No domínio jurídico formal são muitas as disputas . Para fins de ilustração cito a Ação
Direta de Inconstitucionalidade do Decreto n° 4 .887, de 20/11/03, perpetrada pelo
Partido da Frente Liberal (PFL), cuja data de entrada no Supremo Tribunal Federal
corresponde a 25 de junho de 2004 e aguarda julgamento . O PFL tenta impugnar o
uso da desapropriação na efetivação do art . 68, bem como se opõe ao critério de iden-
tificação dos remanescentes de quilombos pela autodefinição .
2 . A noção de “estabelecimento”vem sendo utilizada desde que, em 1950, o Recense-
amento Geral envolveu dentre outros, os censos demográfico e agrícola . Em con-
formidade com estes censos, “considerou-se como estabelecimento agropecuário
todo terreno de área contínua, independente do tamanho ou situação (urbana ou
rural), formado de uma ou mais parcelas, subordinado a um único produto, onde
se processasse uma exploração agropecuária, ou seja, o cultivo do solo com culturas

Coletânea de Artigos 173


174 Brasil Rural em Debate

permanentes ou temporárias, inclusive hortaliças e flores; a criação, recriação ou en-


gorda de animais de grande e médio porte; a criação de pequenos animais: a silvicultu-
ra ou o reflorestamento; a extração de produtos vegetais . Excluíram-se da investigação
quintais de residências e hortas domésticas .” E ainda: “as áreas cofinantes sob a mesma
administração, ocupadas segundo diferentes condições legais (próprias, arrendadas,
ocupadas gratuitamente), foram consideradas um único estabelecimento .”
3 . A categoria “imóvel rural” consistia num mero termo e não possuía força operacional
maior, enquanto instrumento de ação fundiária até 1964 . Foi com o Estatuto da Terra
(Lei 4 .504, de 30 de novembro de 1964) que se tornou uma categoria definida para
fins operacionais (Art . 4) e com propósitos também cadastrais e tributários (Art . 46) . A
sua conceituação tornou-se então um pressuposto básico para fins de imposto (Decre-
to n . 56 .792, de 26 de agosto de 1965, Art . 19) e de ação agrária (Decreto n . 55 .891
de 31 de março de 1965) . Aparece,pois, com desdobramentos constantes: “imóveis
rurais em área de fronteira”, “imóveis rurais pertencentes à União”, “imóveis rurais
situados nas áreas declaradas prioritárias para fins de reforma agrária” e também em
contratos de arrendamento, espólios e heranças, colonização, fração mínima de parce-
lamento, módulos rurais etc . Através da categoria podia-se classificar diferentes tipos
de “propriedade” . Tornou-se uma categoria chave, com ramificações várias, através da
qual se passou a construir formalmente a noção de estrutura fundiária . Encontra-se
subjacente em todos os instrumentos de ação fundiária, posto que se trata de uma
unidade elementar à sua operacionalização .
O arcabouço jurídico sempre se vale de categorias fundamentais para conceber ope-
racionalidades ou para instituir procedimentos operacionais . Os códigos do período
colonial, por exemplo, funcionavam com as chamadas”sesmarias”ou noções correlatas,
tais como: “datas”e seus variantes locais, “quinhões, sorte de terras, pontas e abas, fun-
do e frente”etc . Após a Lei de Terras de 1850 e com os dispositivos do governo republi-
cano de 1891 passaram a vigir outros as noções de “posse”e “propriedade”, embora não
se possa ignorar que desde 1823 as “sesmarias”não confirmadas passaram a ser tratadas
como “posses” . Em 1946 estes institutos foram confirmados . O anteprojeto de lei
agrária de Afrânio de Carvalho, em 1948, fala em “propriedade rural”, mas quando
fala no Cadastro Agrícola Nacional menciona “imóvel rural”(CF . Revista Brasileira
de Estatística v .2 pp . 303-304) . O Art . 1 de sua Lei Agrária define “imóvel rural” . O
Projeto de Lei Agrária do deputado federal Nestor Duarte, de 1947, fala apenas em
“imóvel” . O Projeto de Código Rural do Deputado Federal Silvio Echenique apre-
sentado na Câmara em junho de 1951, fala em “estabelecimento rural” . Entre 1946 e
1964 parece não haver monopólio de uma categoria operacional exclusiva . Os projetos
de lei e as discussões constantes asseguravam a possibilidade de uma pluralidade de
categorias . O reinado da categoria “imóvel rural”, a partir de 1964 afunila o foco de
ação do estado e abre lugar para autoritarismos e arbitrariedades, que menosprezam as
especificidades locais, os fatores étnicos e as diferenças nas formas de apropriação dos
recursos naturais . A ilusão democrática esconde o etnocentrismo, daí as dificuldades
formais com a heterogeneidade e com as diferenças estabelecidas pelas terras indígenas,
pelos quilombos e pelas terras de uso comum .
O Cadastro de Imóveis Rurais do INCRA adota, desde 1966, a seguinte definição
operacional: “Imóvel rural, para os fins do Cadastro, é o prédio rústico, de área con-
tínua, formado de uma ou mais parcelas de terra, pertencentes a um mesmo dono,
que seja ou possa ser utilizado em exploração agrícola, pecuária, extrativa vegetal ou
agroindustrial, independente de sua localização na zona rural ou urbana do Muni-
cípio” . As restrições são as seguintes: os imóveis localizados na zona rural e cuja área
total seja inferior a 5 .000 m² não são abrangidos pela classificação de “imóvel rural”,
e aqueles localizados na zona urbana somente serão cadastrados quando tiverem área
total igual ou superior a 2 hectares, bem como produção comercializada .
4 . Os Censos Agropecuários admitem, entretanto, sem explicações mais detalhadas, a
existência de “pastos comuns ou abertos”, tal como pode ser constatado no tópico inti-
tulado “Conceituação de Características Divulgadas”, que antecede a cada novo recen-
seamento . Aí, no sub-tópico “Efetivos da Pecuária” verifica-se que foram pesquisados
bovinos, bubalinos, eqüinos, asininos, suínos e caprinos, de propriedade do produtor
que estivessem no estabelecimento ou em “pastos comuns ou abertos”, localizados fora
dos estabelecimentos .
5 . CF . Almeida, Alfredo Wagner B . de .“Terras de preto, terras de santo, terras de índio-
-uso comum e conflito” . In CASTRO, e . e HEBETTE, J . (orgs .) Cadernos do NAEA,
no . 10 . Belém, 1989 pp . 163-196 .
A propósito consulte-se a “Carta do Maranhão” também conhecida como Carta dos
Povos do Cerrado, lançada em 22 de novembro de 2002 em João Lisboa (MA), que
fala em “quebradeiras de coco babaçu, vazanteiros, índios ( . . .), ribeirinhos, geraizeiros,
assentados . . .”além de ong’s ambientalistas mobilizadas em torno da Articulação do
Agroextrativismo da Rede Cerrados de ONG’s .
No caso dos chamados “ribeirinhos”a designação de MORA (Movimento dos Ribeiri-
nhos do Amazonas) é provisória e há uma literatura especializada e de entidades con-
fessionais, que começa a registrar diferentes aspectos deste movimento em formação,
senão vejamos:
REGIS, Dom Gutemberg F . Pistas Ribeirinhas . Prelazia de Coari, 2003 .
SCHERER, Elenise F .; Coelho, R .F .; Pereira, H . “Políticas sociais para os Povos das
Águas” . Cadernos do CEAS, n . 207 set/out . de 2003 pp . 91-108 .
NEVES, Delma P . (org .) . A Irmã Adonai e a luta social dos ribeirinhos – Contribuição
para a memória social . Niterói, s/ed . .
JESUS, Cláudio Portilho de . Utopia cabocla amazonense Agricultura familiar em bus-
ca da economia solidária . Canoas (RS) . Editora da ulbra, 2000 .
RANCIARO, Maria M .M . de A . Andirá –memórias do cotidiano e representações
sociais . Manaus, EDUA, 2004 .
MAYBURY-LEWIS, Biorn . “Terra e água: identidade camponesa como referencia
de organização política entre os ribeirinhos do Rio Solimões” in Furtado, Lourdes

Coletânea de Artigos 175


176 Brasil Rural em Debate

(org .) . Amazônia, desenvolvimento, sociodiversidade e qualidade de vida . Belém,


M .P .E .Goeldi / s .d . pp . 31-69 .
8 . Neste caso dos pescadores não estão inclusos os denominados “caiçaras”, que se locali-
zam no litoral do Rio de Janeiro e de São Paulo, nem os chamados “maratimbas”, que
se localizam no litoral Sul do Espírito Santo e cujas formas de associação ainda estariam
se consolidando sem terem passado, todavia, à expressão acabada de movimento social .
Para informações sobre denúncias de arbitrariedades contra os chamados “caiçaras”do
litoral norte de São Paulo, consulte-se: SIQUEIRA, P . Genocídio dos Caiçaras . Prefá-
cio de Dalmo Dallari . São Paulo . M . Ohno – I . Guarnelli Eds . 1984 .
BRANDÃO, T . “A meteórica agonia dos caiçaras de Paraty” . O Globo, 29 de fevereiro
de 2004, p . 28 .
Para um aprofundamento consulte-se: Diégues, A . Carlos . “Repensando e recriando as
formas de apropriação comum dos espaços e recursos naturais” . In Gestão de recursos
dos Espaços Renováveis e Desenvolvimento (VIEIRA, P .F . e WEBER, J .– orgs) São
Paulo: Ed . Cortez, 1997 .

Os movimentos sociais
A nova estratégia do discurso dos movimentos sociais no campo, ao
designar os sujeitos da ação, não aparece atrelada à conotação políti-
ca que em décadas passadas estava associada principalmente ao termo
“camponês” . Politiza-se aqueles termos e denominações de uso local .
Seu uso cotidiano e difuso coaduna com a politização das realidades
localizadas, isto é, os agentes sociais se erigem em sujeitos da ação ao
adotarem como designação coletiva as denominações pelas quais se au-
todefinem e são representados na vida cotidiana .
Assim, tem-se a formação do Conselho Nacional dos Seringueiros
(CSN), do Movimento Interestadual das Quebradeiras de Coco Baba-
çu (MIQCB), do Movimento Nacional dos Pescadores (MONAPE), da
Coordenação Nacional de Articulação das Comunidades Negras Rurais
Quilombolas (CONAQ), do Movimento dos Ribeirinhos da Amazô-
nia e de inúmeras outras associações, a saber: dos castanheiros, dos pia-
çabeiros, dos extrativistas do arumã, dos peconheiros e dos chamados
“caiçaras”1 . Acrescente-se que o Movimento dos atingidos de Barragem
(MAB), o Movimento pela Sobrevivência da Transamazônica, hoje in-
titulado Movimento pelo Desenvolvimento da Transamazônica e do
Xingu, o Movimento dos atingidos pela Base de foguetes de Alcânta-
ra (MABE) e outros se articularam como resistência a medidas gover-
namentais e contra os impactos provocados por “grandes obras”, quais
sejam: rodovias, barragens, gasodutos, oleodutos, minerodutos, bases
militares e campos de provas das forças armadas2 .
Acrescente-se, ainda, a União das Nações Indígenas (UNI), a Coorde-
nação Indígena da Amazônia Brasileira (COIAB) e o Conselho Indigena
de Roraima . Todas estas associações e entidades foram criadas entre 1988
e 1998 à exceção do CNS e do Movimento dos Trabalhadores Rurais
sem Terra (MST), que datam de 19853 e da UNI que data de 1978 . Eles
funcionam através de redes de organizações . A COIAB, por exemplo, foi
criada em 19 de abril de 1989, em 2000 já articulava 64 entidades e em
2004 articulava 75, inclusive a Federação das Organizações Indígenas
do Rio Negro (FOIRN) . Observe-se que a FOIRN, em 1999 tinha 29
associações indígenas organizadas em rede através da ACIBRN – Asso-
ciação das Comunidades Indígenas Ribeirinhas e a ACIMRN – Asso-
ciação das Comunidades Indigenas do Médio Rio Negro . A COAPIMA
(Coordenação das Organizações e Articulações dos Povos Indígenas do
Maranhão) foi criada em setembro de 2003 e abrange lideranças de seis
diferentes povos indígenas . Verifica-se também que há associações que
estão simultaneamente em duas ou mais redes de movimentos o que
desautoriza um simples somatório dos componentes das redes sem os
cuidados de neutralizar os casos de dupla contagem .
A Articulação Puxirão dos Faxinalenses (APF) foi criada em setem-
bro de 2005, agrupando representações de 20 faxinais . Os levanta-
mentos de campo realizados pela APF, no decorrer de 2007 até maio
de 2008, assinalou 244 faxinais no Paraná . O II Encontro do Povo
Faxinalense em agosto de 2007 reforçou a Rede Puxirão e contribuiu
para ampliar a capacidade de registro da própria organização .

Coletânea de Artigos 177


178 Brasil Rural em Debate

Associação das Comunidades Negras Rurais do Maranhão (ACO-


NERUQ), formada em novembro de 1997, em substituição à Coorde-
nação Estadual Provisória dos Quilombos, criada em 1995, congrega
atualmente 246 comunidades negras rurais e se vincula à Coordenação
Nacional de Articulação das Comunidades Negras Rurais Quilombo-
las (CONAQ) . A Articulação dos Povos Indígenas do Nordeste, Minas
Gerais e Espírito Santo (APOINME), fundada em 1995, congrega 30
etnias oficialmente reconhecidas e outra dezena que reivindica o reco-
nhecimento formal .
O Conselho dos Índios da cidade de Belém, que está em consoli-
dação, congrega pelo menos 4 etnias, e se articula com movimentos
em formação nas aldeias como o Conselho Indígena Munduruku do
Alto Tapajós (CIMAT) . Em inúmeros municípios o percentual da
população indígena se encontra em crescimento, superando ou se
mantendo no mesmo plano que os demais segmentos da população .
Esta autodeclaração propicia condições de possibilidade para expan-
são das formas organizativas e de reivindicação . Em conformidade
com o Censo Demográfico de 2000 tem-se que em São Gabriel da
Cachoeira (AM) vivem 22 .853 índios ou 76,35 da população do
município . Trata-se do município que possui maior proporção de
população indígena . Em Jacareacanga (PA) vivem 8 .488 índios, ou
seja, 38,4% da população municipal . Em Santa Isabel do Rio Ne-
gro (AM) são 3 .670 índios ou 34,8% dos habitantes do município .
Em São Paulo de Olivença (AM) são 6 .634 índios correspondendo
a 28,7% da população municipal . Em Miranda (MS) vivem 5 .938
índios ou 25,8% da população do município . Em Barcelos (AM)
vivem 6 .187 índios ou 25,6% da população municipal . Em Santo
Antonio do Iça (AM) vivem 6 .673 índios ou 23,7% da população do
município, enquanto que em Tabatinga (AM) vivem 7 .255 índios ou
19,1% da população municipal .
As tabelas a seguir apresentadas permitem um entendimento de
conjunto das tendências demográficas em pauta:
Tabela II
relação dos municípios com as maiores proporções de
autodeclarados indígenas, com indicação das unidades da
federação de referência, população total
dos municípios e de indígenas
Proporção
População Residente
de indíge-
Municípios e Unidades da nas no total
Federação de referência Auto da popu-
Total declarada lação do
indígena município

São Gabriel da Cachoeira /AM 29.947 22.853 76,3

Uiramutã/RR 5.802 4.317 74,4

Normandia/RR 6.138 3.511 57,2

Santa Rosa do Purus/AC 2.246 1.085 48,3

Ipuaçu/SC 6.122 2.930 47,9

Baía da Traição/PB 6.483 3.093 47,7

Pacaraima/RR 6.990 3.310 47,4

Benjamin Constant do Sul/RS 2.727 1.111 40,7

São João das Missões/MG 10.230 4.211 40,2

Japorá/PA 6.140 2.409 39,2

Jacareacanga/PA 24.024 8.488 38,4

Amajari/RR 5.294 1.975 37,3

Bonfim/RR 9.326 3.455 37,0

Charrua/RS 3.783 1.339 35,4

Santa Isabel do Rio Negro/AM 10.561 3.670 34,8

FONTE: IBGE – Censo Demográfico, 2000.

Coletânea de Artigos 179


180 Brasil Rural em Debate

Tabela III
relação dos municípios com as maiores populações
de autodeclarados indígenas e proporção em relação à
população total dos municípios, com indicação das unidades
da federeção de referência – brasil/2000
Proporção
População Residente de indígenas
Municípios e Unidades da
no total da
Federação de referência
Auto declarada população do
Total município
indígena
São Gabriel da Cachoeira /
29.947 22,853 76,3
AM
Salvador/BA 2.443.107 18.712 0,8
São Paulo/SP 10.434.252 18.692 0,2
Rio de Janeiro/RJ 5.857.904 15.622 0,3
Jacareacanga/RJ 24.024 8.488 38,4
Manaus/AM 1.405.835 7.894 0,6

Belo Horizonte/MG 2.238.526 7.588 0,3

Tabatinga/DF 37.919 7.255 19,1


Brasília/DF 2.051.146 7.154 0,3
Santo Antônio do Içá/AM 28.213 6.673 23,7
São Paulo de Olivença/AM 23.113 6.634 28,7
Porto Alegre/RS 1.360.590 6.356 0,5
Barcelos/AM 24.197 6.187 25,6
Boa Vista/RR 200.568 6.150 3,1
Aquidauana/MS 43.440 6.011 13,8
Miranda/MS 23.007 5.938 25,8
Amambaí/MS 29.484 5.396 18,3
Dourados/MS 164.949 5.189 3,1
Curitiba/PR 1.587.315 5.107 0,3
Recife/PE 1.422.905 5.094 0,4
Nas capitais onde se localizam as sedes das principais organizações do
movimento indígena, tem-se também um número expressivo de índios .
Em Salvador (BA) viveriam 18 .712 índios, em São Paulo (SP) 18 .692
índios, na cidade do Rio de Janeiro (RJ) são 15 .622 índios, em Manaus
(AM) viveriam 7 .894 índios, em Belo Horizonte (MG) 7 .588 índios,
em Brasília (DF) 7 .154 índios, em Porto Alegre (RS) 6 .356 índios, em
Boa Vista (RR) 6 .150 índios, em Curitiba (PR) 5 .107 índios e em Recife
(PE) 5 .094 índios . Em Manaus, os dados censitários relativos à “popula-
ção residente por cor ou raça” registram, para o ano de 1991, 952 indíge-
nas, enquanto que para 2000 registram 7 .894 indígenas . Algumas fontes
assinalam que este total estaria subestimado . Uma pesquisa amostral re-
alizada pela Pastoral Indigenista de Manaus, em conjunto com o Cimi
Regional Norte I, denominada “Entre a Aldeia e a Cidade”, concluída
em 1996, entrevistou 163 famílias, em 143 unidades residenciais, totali-
zando 835 indivíduos . Com base nestes dados foi elaborada a estimativa
de 8 .500 indígenas em Manaus para 1996 . As projeções atuais falam em
mais de 25 mil índios residindo na referida capital .
O aumento significativo da população indígena, consoante estes dados
do Censo Demográfico de 2000 e de pesquisas amostrais, mostra-se bem
acima do crescimento vegetativo permitindo a afirmação de que índios re-
sidentes nas áreas urbanas teriam assumido a identidade indígena4 . O nú-
mero expressivo de indígenas nos centros urbanos5 tem levado à formação
de uma modalidade organizativa peculiar que agrupa concomitantemente
diferentes etnias . A particularidade do critério político-organizativo, subli-
nhado neste texto, propicia o entendimento do ato de agrupar diferenças
culturais em torno de objetivos comuns mediante formas de mobilização
continuadas, que se renovam a cada situação de antagonismo .
Com os denominados “quilombolas” não sucede diferente e sua pre-
sença nos centros urbanos torna-se cada vez mais expressiva . Embora a
denominação não se constitua em categoria censitária e nem existam sé-
ries estatísticas para efeitos de demonstração, pode-se recorrer, sem qual-
quer preocupação amostral, às informações divulgadas pelo movimento
quilombola e às observações empíricas resultantes do trabalho de campo .

Coletânea de Artigos 181


182 Brasil Rural em Debate

Há informações disponíveis, neste sentido, sobre incidência de comu-


nidades remanescentes de quilombolas em pelo menos cinco capitais,
quais sejam: Salvador (BA), São Luis (MA), Rio de Janeiro (RJ), Porto
Alegre (RS) e Macapá (AP) . Nas demais cidades os registros ainda são in-
cidentais . Em Penalva, Maranhão, verifica-se na periferia da sede muni-
cipal um bairro chamado “Bairro Novo”, que congrega uma organização
incipiente de mulheres que se autodenominam “quebradeiras quilom-
bolas” . Vivem neste bairro centenas de famílias que tiveram suas terras
usurpadas por pecuaristas e que lutam para recuperar seus domínios .
Elas se deslocam diariamente para os babaçuais próximos à sede muni-
cipal . O mesmo sucede em Imperatriz (MA) onde, conforme observou
Joaquim Shiraishi, as mulheres extrativistas que moram na periferia ur-
bana estão quebrando o coco babaçu nos jardins de condomínios de
luxo6 . Em Conceição da Barra (ES) tem-se o bairro Santana . Entre Ma-
capá e Santana (AP) tem-se o quilombo de Lagoa dos Índios . Na cidade
do Rio de Janeiro tem-se o quilombo do Sacopã . Em Porto Alegre (RS)
constata-se na Rua João Caetano, no Bairro Três Figueiras, a Associação
Kilombo Família Silva correspondente ao denominado Quilombo dos
Silva com área correspondente a 6 .510,7808 metros quadrados, que foi
reconhecido formalmente pela Portaria/INCRA n° 19, de 17 de junho
de 20057 em conformidade com o Decreto n° 4 .887/2003 . A expressão
destes quilombos levou a Prefeitura de Porto Alegre a promulgar Lei
Complementar n° 532, de 27 de dezembro de 2005, “acrescentando, ao
conjunto de bens imóveis de valor significativo que integram o Patrimô-
nio Cultural, as áreas remanescentes de quilombos” (CF . Diário Oficial
de Porto Alegre, ed . 2687, de 30 de dezembro de 2005) .
Por meio deste processo peculiar de territorialização, verifica-se que ex-
pressões organizativas e formas de ocupação que são pensadas como in-
trínsecas à área rural despontam dentro do perímetro urbano, levando os
estudiosos a relativizarem as dicotomias rural/urbano e nômade/sedentário
na caracterização das chamadas “comunidades tradicionais” e no reconhe-
cimento de suas expressões identitárias .
Registra-se, por conseguinte, uma tendência de se constituírem novas
redes de organizações e movimentos contrapondo-se, em certa medida,
à dispersão e fragmentação de representações que caracterizaram os anos
imediatamente posteriores a 1988 . De todas estas redes articuladoras de
movimentos a mais abrangente, entretanto, e considerada com maior
representação junto aos organismos multilaterais (BIRD, BID, G-7) e
a órgãos públicos é o Grupo de Trabalho Amazônico (GTA), fundado
em 1991/1992, e que congrega 600 entidades8 representativas de ex-
trativistas, povos indígenas, artesãos, pescadores e pequenos agricultores
familiares na Amazônia . O GTA desempenha idealmente o papel de
representação da sociedade civil junto ao PPG - 7 (Programa Piloto de
Preservação das Florestas Tropicais) e a diversos Ministérios .
Observa-se, num emaranhado de articulações, que uma entidade
pode simultaneamente pertencer a mais de uma rede e que parte con-
siderável das redes se faz representar no GTA , que tem 9 regionais nos
9 estados da Amazônia . O MIQCB, por sua vez, possui coordenações
em 4 unidades da federação, sendo 3 da Amazônia (Pará, Maranhão
e Tocantins) e 1 da Região Nordeste (Piaui) . O MONAPE tem duas
coordenações sendo uma no Pará e outra no Maranhão, congregando
pescadores de rios e marítimos .
A base territorial destes movimentos não se conforma, portanto, à divi-
são político-administrativa, a uma rígida separação de etnias, a uma base
econômica homogênea e às mesmas ocupações ou atividades econômicas
e transcende à usual separação entre o rural e o urbano, redesenhando
de diversas maneiras e com diferentes formas organizativas as expressões
políticas da sociedade civil .
Tal multiplicidade de categorias cinde, portanto, com o monopólio po-
lítico do significado dos termos “camponês” e “trabalhador rural”, que até
então eram utilizados com prevalência por partidos políticos e pelo movi-
mento sindical centralizado na Confederação Nacional dos Trabalhadores
na Agricultura (CONTAG), e do termo “posseiro” utilizado pelas entida-
des confessionais (CPT, ACR) . Tal ruptura ocorre sem destituir o atributo
político daquelas categorias de mobilização, haja vista que quilombolas,

Coletânea de Artigos 183


184 Brasil Rural em Debate

quebradeiras, seringueiros, pescadores, garimpeiros e “atingidos”também


se associam a Sindicatos de Trabalhadores Rurais através dos quais passam
a ter direitos aos benefícios da Previdência Social9 . Quando confrontamos
esta dupla filiação é possível perceber uma distinção entre papel social e
identidade: uma filiação é vivida como pertencimento a um grupo ocupa-
cional, consoante a legislação e os direitos decorrentes (trabalhistas, previ-
dência social), enquanto a outra tem características identitárias e é volun-
tária, pressupondo no mais das vezes situações de antagonismo manifesto .
As novas denominações que designam os movimentos e que espelham um
conjunto de práticas organizativas traduzem transformações políticas mais
profundas na capacidade de mobilização destes grupos face ao poder do
Estado e em defesa dos territórios que estão socialmente construindo .
Em virtude disto é que se pode dizer que mais do que uma estratégia
de discurso tem-se o advento de categorias que se afirmam através de
uma existência coletiva, politizando não apenas as nomeações da vida
cotidiana, mas também um certo modo de viver e suas práticas rotineiras
no uso dos recursos naturais . A complexidade de elementos identitários,
próprios de autodenominações afirmativas de culturas e símbolos, que
fazem da etnia um tipo organizacional (BARTH :1969)10, foi trazida
para o campo das relações políticas, verificando-se uma ruptura profun-
da com a atitude colonialista homogeneizante, que historicamente apa-
gou diferenças étnicas e a diversidade cultural, diluindo-as em classifica-
ções que enfatizavam a subordinação dos “nativos”, “selvagens” e ágrafos
ao conhecimento erudito do colonizador .
Não obstante diferentes planos de ação e de organização e de relações
distintas com os aparelhos de poder, tais unidades de mobilização podem
ser interpretadas como potencialmente tendendo a se constituir em for-
ças sociais . Nesta ordem elas não representam apenas simples respostas
a problemas localizados . Suas práticas alteram padrões tradicionais de
relação política com os centros de poder e com as instancias de legiti-
mação, possibilitando a emergência de lideranças que prescindem dos
que detém o poder local . As principais decisões são tomadas nos “en-
contros” e “assembléias gerais” que congregam os delegados eleitos se-
gundo cada unidade básica de mobilização, que pode ser um povoado,
uma “colocação”ou conjunto de estradas de seringas, um “castanhal”e/
ou uma “comunidade” . Destaque-se, neste particular, que, mesmo
distantes da pretensão de serem movimentos para a tomada do poder
político, logram generalizar o localismo das reivindicações e mediante
estas práticas de mobilização aumentam seu poder de barganha face ao
governo e ao estado, deslocando os “mediadores tradicionais” (grandes
proprietários de terras, comerciantes de produtos agrícolas e extrativos,
seringalistas, donos de castanhais e babaçuais) . Deriva daí a ampliação
das pautas reivindicatórias e a multiplicação das instâncias de interlocu-
ção dos movimentos sociais com os aparatos político-administrativos,
sobretudo com os responsáveis pelas políticas agrárias e ambientais (já
que não se pode dizer que exista uma política étnica bem delineada) .
Está-se diante do reconhecimento de direitos até então contestados, e
de uma certa reverencia dos poderes políticos às práticas extrativas do que
chamam de “populações tradicionais” . Os conhecimentos “nativos” sobre
a natureza adquirem legitimidade política e sua racionalidade econômica
não é mais contestada, no momento atual, com o mesmo vigor de antes .
Bem ilustra isto a aprovação pela Assembléia Legislativa do Acre, sancio-
nada pelo Governador, em janeiro de 1999, de lei, mais conhecida como
“Lei Chico Mendes” que dispõe sobre a concessão de subvenção econô-
mica aos seringueiros produtores de borracha natural bruta . Esta Lei n°
1277, de 13 de janeiro de 1999, foi regulamentada pelo Decreto estadual
n° 868, de 5 de julho de 1999, que reconhece no inciso V, do artigo 1°,
a necessidade do vínculo de produtores de borracha com suas respectivas
entidades de representação . De igual modo, tem-se leis municipais que
garantem a preservação e o livre acesso aos babaçuais, inclusive de pro-
priedade de terceiros, a todos que praticam o extrativismo em regime de
economia familiar, que foram aprovadas pelas Câmaras de Vereadores em
sete Municípios do Estado do Maranhão e dois Municípios do Estado
do Tocantins, entre 1997 e 2003 . Do Maranhão tem-se: Lei Municipal
n° 5/97, de Lago do Junco, Lei n° 32/99, de Lago dos Rodrigues, Lei
n° 255/99, de Esperantinópolis, Lei n° 319, de São Luis Gonzaga, Lei
n° 1084/03, de Imperatriz, Lei n° 466/03, de Lima Campos, e Lei em
Coletânea de Artigos 185
186 Brasil Rural em Debate

votação na Câmara de Capinzal do Norte . No Tocantins foram aprovadas


em Praia Norte a Lei n° 49/03 e em Axixá a Lei n° 306/03 . Trata-se de rei-
vindicações pautadas pelo Movimento Interestadual das Quebradeiras de
Côco Babaçu, que estão sendo implementadas em diferentes municípios .
Estas leis municipais, que asseguram os babaçuais como recursos abertos,
relativizando a propriedade privada do solo e separando-a do uso da co-
bertura vegetal, são conhecidas localmente como Leis do “Babaçu Livre” .
Mesmo que estes dispositivos contrastem com as leis federais, eles passam
a usufruir de uma legitimidade local em virtude do peso das mobilizações
em favor de sua aprovação pelas Câmaras Municipais .
Os trabalhos das Assembléias Legislativas e das Câmaras Municipais
passam, em certa medida, a refletir as mobilizações étnicas e aquelas rea-
lizadas pelos chamados “povos tradicionais” . IGLÉSIAS (2000)11 numa
acurada reflexão, a partir de levantamento do CIMI, sublinha que 350
índios se candidataram a cargo de vereador, dez a vice-prefeito e um a
prefeito nas eleições municipais de 2000 . Foram eleitos 80 vereadores,
sete vice-prefeitos e um prefeito12 . Nas eleições municipais de 2004 o nú-
mero de prefeituras quadruplicou: 4 indios foram eleitos prefeitos, cinco
foram eleitos vice-prefeito e 70 foram eleitos vereadores13 . Destaque-se
que, nas eleições de 2000, 40 mulheres, que se autoapresentavam como
quebradeiras de coco babaçu, disputaram o posto de vereador em dife-
rentes Municípios do Pará, do Tocantins e do Maranhão . Dentre as can-
didatas quebradeiras apenas duas foram eleitas e uma terceira foi eleita
vice-prefeita em São Pedro da Água Branca (MA) . Na eleição de 2004
mais de 50 quebradeiras se apresentaram como candidatas a vereador e 3
delas foram eleitas, sendo duas do Maranhão, Maria Alaídes no Municí-
pio de Lago do Junco e Nice Aires Machado no Município de Penalva, e
uma do Tocantins, Maria da Consolação, mais conhecida por Consola,
no Município de São Miguel . As duas eleitas no Maranhão o foram
pelo Partido dos Trabalhadores (PT), enquanto a do Tocantins foi pelo
PMDB . Todas três participam militantemente do MIQCB, sendo que
duas delas integraram a Coordenação do movimento14 . Ainda em 2004
os pescadores conseguiram eleger um vice-prefeito em Marajó (PA), no
Município de Cachoeira do Arari, que foi da coordenação do MONA-
PE . No caso dos quilombolas, tem-se conhecimento de pelo menos
cinco vereadores e uma vereadora eleitos, em Pernambuco, São Paulo,
Maranhão e Pará15 . Algumas interpretações, superestimando fatos desta
ordem, asseveram que tais mobilizações eleitorais acrescidas da criação
obrigatória dos conselhos municipais, consoante a Constituição Federal
de outubro de 1988, estão consolidando regionalmente um quarto po-
der . Há quem classifique o fenômeno de “conselhismo” (LESSA, 2001),
superestimando tais inovações institucionais na gestão de políticas go-
vernamentais e afirmando tratar-se de um poder pararelo16 .
Diferentemente da ação sindical, estes movimentos se estruturam
segundo critérios organizativos diversos, apoiados em princípios eco-
lógicos, de gênero e de base econômica heterogênea, com raízes locais
profundas (HOBSBAWM, 1994)17, menosprezando, como já foi dito,
a divisão político-administrativa . Os pescadores se organizam em Co-
lônias e associações transpassando limites estaduais, do mesmo modo
que os regionais instituídos pelo MIQCB18 . Os seringueiros se organi-
zam por seringais e “colocações”, as quebradeiras por povoados próxi-
mos a babaçuais, enquanto os pescadores privilegiam também os crité-
rios de mobilização por bacias, como no caso da Central de Pescadores
da Bacia Hidrográfica do Araguaia-Tocantins com vinte entidades que
somam 7 .633 famílias, das quais 6 .672 apenas no lago da Barragem
de Tucuruí . Os povos indígenas se agrupam por aldeias e por “comu-
nidades”19 . Tais movimentos não se estruturam institucionalmente a
partir de sedes e associados e nem das bases territoriais que confinam
geograficamente as ações sindicais, insinuando-se como formas livres
de mobilização atreladas a situações de conflitos potenciais ou mani-
festos, não importando em que Municípios ocorram .
A organização da produção para um circuito de mercado segmenta-
do, agregando valor através de tecnologia simples constitui outro fator
de agrupamento que deve ser considerado . Esta modalidade organizativa
rompe também com a dicotomia rural-urbano . Observe-se neste sentido,
que as quebradeiras de côco babaçu, por exemplo, fundaram, em 2002,
em São Luis, capital do Maranhão, através da ASSEMA, um entreposto
Coletânea de Artigos 187
188 Brasil Rural em Debate

comercial e de representação política intitulado Embaixada do Babaçu” .


Funciona no Centro Histórico e dispõe à comercialização uma linha de
produtos peculiar: farinha de mesocarpo, papel reciclado com fibra de ba-
baçu, carvão de casca do coco babaçu e frutas desidratadas, além de livros e
demais publicações pertinentes ao extrativismo . Um outro exemplo é que
diferentes etnias se agruparam e constituíram no centro de Manaus uma
feira permanente com produção artesanal de diversos povos indígenas . Em
um caso e no outro tem-se o nascente de um “museu vivo”, em que “co-
munidades tradicionais” expõem sua face pública em interações sociais,
que transcendem aos circuitos de mercado segmentado .
Perfazem ainda estas características elementares de agrupamento, que
indicam um novo padrão de relação política, os fatores étnicos que tanto
concernem a identidades como quilombolas, quanto à emergência de no-
vos povos indígenas, como no Alto Rio Negro ou na Região Nordeste, e de
novas formas associativas, perpassando etnias, como ocorre em Manaus,
em Belém e em São Paulo, onde famílias de diferentes etnias se agrupam
numa mesma organização de reivindicação de direitos indígenas . No caso
de Belém, como já foi sublinhado, tal organização coordenada por um
índio Munduruku21, agrega também famílias Tembé, Apali, Juruna, Galibi
e Urubu-Kaapor e se faz representar inclusive no Congresso da Cidade
(NOVAES et alli 2002)22 que é uma experiência recente de gestão demo-
crática municipal, abrangendo uma diversidade cultural e uma pluralidade
de representações setoriais, de gênero e por local de residência .
Esta diversidade de agrupamentos se consolida também por meio de di-
ferentes processos de territorialização, seja no campo ou nas áreas urbanas,
seja referido à terra, estrito senso, ou aos recursos hídricos, configurando
um mosaico de situações sociais referidas a noções práticas e operacionais
que tanto falam em “territórios étnicos”23, como no caso das comunidades
quilombolas de Alcântara (MA), quanto em “territórios aquáticos”, como
no caso de pescadores da Vila do Jenipapo na Ilha do Marajó24 . Enquan-
to uma construção social o território atém-se aos critérios intrínsecos de
mobilização e enfatiza o fator que enuncia a disputa e o conflito . De certo
modo, está-se diante da fabricação de novas unidades discursivas que subs-
tantivam e diversificam o significado das “terras tradicionalmente ocupa-
das”, além de refletirem as mobilizações políticas mais recentes, chamando
a atenção para os sujeitos da ação e suas formas organizativas .
Um dos fatores simbólicos acionados nestas mobilizações diz respeito
aos signos de reconhecimento e aos seus valores evocativos, que passam a
identificar as diferentes identidades coletivas e seus movimentos respecti-
vos: a palmeira de côco babaçu torna-se o ícone da ação das denominadas
“quebradeiras”, do mesmo modo que a “cabaça” simboliza os “quilombo-
las” da Bahia e do Vale do Jequitinhonha (MG), o mandacaru representa
as comunidades de “fundo de pasto”, o porco – ou “leitão” como dizem
os faxinalenses – simboliza os “faxinais”, a “poronga”, os “seringueiros”,
um índio lançando uma flecha acima do mapa da Amazônia representa
a COIAB, um homem de braços abertos numa torre de transmissão de
energia com uma enxada e uma foice a seus pés simboliza os “atingidos por
barragens”e uma roda de carroça sobre verde e azul descreve o movimento
constante dos “ciganos” . Faixas, cartazes, panfletos e folhetos impressos em
folhas avulsas com informações sucintas sobre determinados movimentos
e organizações estampam estes símbolos, do mesmo modo que as emba-
lagens dos bens (farinha, sabonete, farinha de mesocarpo, óleos vegetais,
frutas desidratadas, papéis reciclados) produzidos de forma cooperativa
pelos integrantes destas organizações referidas .
Os símbolos também politizam a propriedade intelectual dos sa-
beres ditos “tradicionais”, que não podem ser reduzidos a uma sim-
ples oposição ao “moderno”, alargando os tipos de reconhecimento
para além das identidades regionais, que vinculam as identidades
coletivas a unidades da federação, a bacias hidrográficas, a ecossiste-
mas determinados e a acidentes naturais . Em suma, trata-se de uma
politização da natureza25 vinculada de maneira múltipla à emer-
gência de identidades coletivas, que nos levam a redefinir a abran-
gência do significado dos movimentos sociais e das territorialidades
específicas que lhes correspondem . A humanização dos recursos na-
turais pelas classificações coletivas e de parentesco, evidencia a pro-
fundidade de tal politização . Assim, alguns povos privilegiam em

Coletânea de Artigos 189


190 Brasil Rural em Debate

sua denominação um determinado elemento destacado do quadro


natural, tal como: “floresta” em “povos da floresta” ou “cerrado”em
“povos do cerrado” ou ainda “povos da água” . Há denominações em
que esta relação está implícita como: “geraizeiros” e “ribeirinhos” .
As chamadas “quebradeiras de coco babaçu” consideram a palmeira
como “mãe”, ao contrário de outros povos que evocam a “mãe-terra”
26
. Derrubar palmeiras indiscriminadamente constitui uma violação das
regras que disciplinam sua maneira de existir .
Levando em conta esta vasta abrangência, está-se diante também de
uma politização de fatores religiosos refletida em algumas das identida-
des coletivas aqui focalizadas . No I Encontro Nacional das Comunida-
des Tradicionais os representantes das chamadas “comunidades de ter-
reiros”, também denominadas por eles de “religiões de matriz africana”,
afirmaram o local de seus rituais e de suas “casas” como uma territoria-
lidade específica, culturalmente delimitada . Posicionaram-se para além
da figura jurídica do “tombamento”, evidenciando que os terreiros não
constituem meros monumentos registrados em livros de cartórios ou
definidos por seu valor histórico e etnográfico, que devem ser protegidos
pelo Estado . Afirmaram uma condição de sujeitos, que querem manter
eles próprios a administração de seu espaço social e para tanto evocaram
as situações em que o “santo é plantado” definindo um solo sagrado não
necessariamente contíguo, com uso específico da terra, inclusive para
manter herbários com indicações sobre suas propriedades medicinais,
e dos recursos hídricos, como no caso das cachoeiras e demais quedas
d’água eventualmente acionadas em sequências cerimoniais .
Em uma direção análoga, os “quilombolas” do Baixo Amazonas
e do Maranhão afirmaram a proteção de São Benedito às suas “co-
munidades”, enquanto os representantes dos “faxinais” evocaram o
beato João Maria e a Guerra do Contestado e os representantes das
comunidades de “fundos de pastos” exaltaram Antonio Conselheiro
e a Guerra de Canudos . No Faxinal Marmeleiros, próximo a Irati
(PR), os locais onde acamparam os que fugiram das perseguições mi-
litares no Contestado, foram apontados, no decorrer do I Encontro
dos Povos dos Faxinais, como marco histórico dos “faxinalenses”, que
encerram uma expectativa de direito . Os representantes “ciganos”,
por sua vez, afirmaram a devoção a Nossa Senhora de Aparecida e
“a única santa cigana do mundo”, Santa Sara Kali, considerada pelos
“kallons” como a padroeira dos ciganos . As guerras, as perseguições e
os estigmas aparecem combinados com fatores religiosos, compondo
identidades que tanto afirmam territorialidades específicas, quanto
estabelecem vínculos históricos que de certa maneira legitimariam
os pleitos a elas referentes . Os santos e os profetas favorecem uma
determinada racionalização das “necessidades religiosas”, criando
condições favoráveis para que se articulem com uma mobilização po-
lítica, que traduz a consciência da necessidade antes que uma mera
necessidade econômica identificada de maneira supostamente obje-
tiva . Os profetas são portadores de revelações, que reforçam novas
práticas e discursos anunciadores de um mundo renovado sem negar
os seus fundamentos “de origem” . A existência econômica das cha-
madas “comunidades tradicionais”, enquanto parte de uma manei-
ra de representação, consiste num instrumento da tradição que se
orienta para a política através também da magia . O discurso memo-
rialista reforça isto ao unir componentes identitários que só a afirma-
ção política pode comportar, garantindo a coexistência do que seria
aparentemente contraditório . Consoante a narrativa dos agentes te-
ria sido a partir dos conflitos com as grandes plantações e a partir
de sua desagregação econômica, desde o século XVIII, que foram
se fortalecendo as instituições relativas ao uso comum dos recursos
naturais . Os quilombos e os movimentos messiânicos teriam con-
corrido diretamente para isto, conjugados com a emergência de um
campesinato livre que se constituiu fora do alcance dos mecanismos
repressores da força de trabalho . A derrocada da empresa seringalista,
nas primeiras décadas do século XX, e das formas de imobilização
que caracterizaram castanhais e fazendas com babaçuais, no final do
segundo quartel do mesmo século XX, podem ser articulados neste
mesmo esquema explicativo, que tem no conflito social sua viga mes-
tra . A emergência das formas organizativas e das identidades coletivas

Coletânea de Artigos 191


192 Brasil Rural em Debate

não é coetânea ou não coincide exatamente com esta periodização


econômica . Tal dimensão política, sugerindo um longo processo
político-organizativo, é resultante de seguidos conflitos, que se es-
tenderam por décadas e que, antes de remeterem as análises para for-
mações pré-capitalistas, apontam para crises do próprio intrínsecas
ao desenvolvimento do capitalismo .
Estes conflitos são, portanto, de várias ordens, consoante as variações
regionais e os diferentes empreendimentos econômicos (usinas de açú-
car, fazendas algodoeiras, erva-mateiras e cafeeiras, empresas extrativistas
etc .), concorrendo para evidenciar a diversidade de movimentos sociais
em jogo e a multiplicidade de formas organizativas e expressões identitá-
rias sob as quais se estruturam . A partir daí as distinções entre os vários
processos de territorialização podem ser mais facilmente estabelecidas .
Para efeitos de exposição e síntese, apresentaremos um quadro resumido
dos principais movimentos sociais referidos à questão das “terras tradicio-
nalmente ocupadas”, suas características organizativas (data de fundação,
local da sede, vinculações a redes) e as representações diferenciadas que lhes
asseguram a delegação ou o poder de falar em nome de um determinado
conjunto de agentes sociais27 .

Notas
Movimentos Sociais
1 . Não obstante organizados em associações, defendendo interesses localizados, os peco-
nheiros, as mulheres extrativistas do arumã, os caiçaras e os piaçabeiros ainda não se
agruparam em diferentes mobilizações e não se constituíram em movimento social, a
exemplo das demais identidades coletivas mencionadas . Há inúmeras reivindicações
de consolidação de territorialidades específicas de comunidades caiçaras do litoral de
São Paulo que foram encaminhadas ao Ministério Público Federal no decorrer dos
últimos seis anos . Tais associações referem-se a uma existência atomizada, que, pelas
mobilizações continuadas, estaria descrevendo uma passagem para uma forma de exis-
tência coletiva capaz de configurar o que Hobsbawm nomeia como “novos movimen-
tos sociais”(Hobsbawm, 1995:406) .
2 . Os agrupamentos de entidades de representação e associações voluntárias da sociedade
civil tem levado a diferentes formas de articulação política . Uma das mais conhecidas
refere-se aos chamados “foruns” que propiciam melhores condições de mobilização a
diferentes organizações, funcionando como dispositivo de consulta face à intervenção
governamental . Além do Fórum Carajás e do Fórum da Amazônia Oriental, encontra-
-se agora em consolidação, no Sudoeste do Pará e no Norte de Mato Grosso, o Fórum
de entidades por uma “BR-163 Sustentável” . Em novembro de 2003 foi realizado um
Encontro de entidades em Sinop, Mato Grosso, delineando as diretrizes de atuação
face às medidas governamentais que tratam de problemas ligados à concessão e ao
asfaltamento da rodovia BR-163 . Para maiores dados consulte-se: “Relatório Encontro
BR-163 Sustentável – Desafios e sustentabilidade socioambiental ao longo do eixo
Cuiabá-Santarém” . Sinop (MT) . Campus UNEMAT, 18 a 20 de novembro de 2003 .
108 pp . A partir daí este referido Fórum passou a atuar principalmente nas chamadas
“etapas de consultas à sociedade”para elaboração do Plano de Desenvolvimento Re-
gional Sustentável para a Área de Influência da Rodovia BR-163 . A primeira etapa de
consultas ocorreu em julho de 2004 . Atualmente ocorre a segunda etapa de consultas
e as audiências públicas estão agendadas para acontecer em abril de 2005, debatendo a
versão preliminar do Plano elaborada pelo Grupo de Trabalho Interministerial, criado
por Decreto de 15 de março de 2004 . Estou me detendo mais neste caso, porquanto
esta iniciativa trata-se de uma experiência piloto de implementação das diretrizes do
Plano Amazônia Sustentável (PAS), principal instrumento do governo federal para ar-
ticular políticas públicas que tem como prioridade a viabilização de um novo modelo
de desenvolvimento na região Amazônica .
3 . Registro aqui os movimentos que desde pelo menos 1985 mantém-se ativos . Não
incluí, por exemplo, a União dos Sindicatos e Associações de Garimpeiros da Ama-
zônia Legal (USAGAL), organizada em torno de interesses imediatos dos chamados
“donos de garimpo” e que autoproclamava representar mais de 60 mil garimpeiros .
Seus propósitos eram por demais circunstanciais, atinentes, sobretudo, à livre explo-
ração dos aluviões, seja em áreas reservadas, em terras indígenas ou em áreas de fron-
teiras internacionais . Esta organização após lograr intensas pressões políticas no fim
dos anos 1980-90, tentando influenciar a política ambiental e batendo de frente com
o movimento indígena, com entidades ambientalistas e com órgãos governamentais
que atuam nas fronteiras com outros países amazônicos, colecionou inúmeras derrotas
políticas e sofreu um processo de esvaziamento aparentemente irreversível .
Além disto vale registrar que as entidades dos garimpeiros sempre são efêmeras e atre-
ladas a interesses circunstanciais . Assim, em fevereiro de 2004 foi criado em Itaituba
o Sindicato dos Garimpeiros do Oeste do Pará (SINGOP), agrupando os que haviam
participado da extração de ouro em Serra Pelada . Partilho do ponto de vista do soci-
ólogo ALBERTO Eduardo C . da Paixão em Trabalhadores Rurais e Garimpeiros no
Vale do Tapajós, Belém, SEICOM, 1994 – de que os garimpeiros se filiam de maneira
permanente aos Sindicatos de Trabalhadores Rurais, embora se vinculem a cooperati-
vas e outras associações que reúnam os que trabalham na extração mineral .
4 . Para outras informações leia-se: GOMES, Eduardo – “Cresce a população indígena” .
Correio Amazonense . Manaus, 14 de dezembro de 2005 pág . 20 . A fonte principal
das informações aqui arroladas é a seguinte: IBGE – Tendências Demográficas – Uma
análise dos indígenas com base nos resultados da amostra dos Censos Demográficos

Coletânea de Artigos 193


194 Brasil Rural em Debate

1991 e 2000 . Rio de Janeiro . Estudos & Pesquisas-Informação Demográfica e Sócio


Econômica n . 16 . 2005 142 pp .
5 . A população indígena encontra-se assim distribuída, conforme dados do Censo De-
mográfico de 2000: 350 mil índios vivem na área rural, enquanto que 384 mil estão
localizados em centros urbanos .
6 . CF . SHIRAISHI, J . Reconceituação do Extrativismo na Amazônia: práticas de uso
comum dos recursos naturais e normas de direito construídas pelas quebradeiras de
coco . Dissertação de Mestrado apresentada ao Núcleo de Altos Estudos Amazônicos
(NAEA) . UFPA, Belém . 1997 . 215 pp . e Anexos .
7 . No dia 2 de junho de 2005 um oficial de justiça com policiais militares foi cumprir man-
dato judicial com ação de despejo das famílias deste quilombo . Uma intensa mobilização
de movimentos sociais diversos levantou barricadas para impedir o ingresso da Brigada
Militar na área . No dia 3 de junho o advogado dos quilombolas logrou manter a posse e
o INCRA emitiu o termo de Posse . Em 8 de junho o juiz titular Luiz Gustavo Lacerda,
da 13a . Vara Cível, reverte a decisão e sentencia que as famílias sejam despejadas . No dia
20 de junho numa ação contrária foi concedida a manutenção de posse . (CF . “Carta à
Sociedade”-Comitê de Defesa da Família Silva, Porto Alegre, junho de 2005) . No dia 21
de junho de 2005 foi oficialmente publicado o Relatório Técnico de identificação, Delimi-
tação e Levantamento Ocupacional e Cartorial do “Quilombo Família Silva”, viabilizando
sua titulação definitiva em 90 dias como o “primeiro quilombo urbano do Brasil” . Para
leitura do Relatório consulte-se o Diário Oficial da União de 21 de junho de 2005 .
8 . Este total foi divulgado através do “folder” da programação da VI Assembléia Geral da
Rede GTA, intitulada “Encontro dos Povos da Floresta-Diversidade Cultural e Susten-
tabilidade Amazônica”, realizada em Brasília de 17 a 20 de março de 2005 .
9 . Para o INSS os trabalhadores rurais podem ser inseridos em quatro categorias de benefi-
ciários, a saber: 1) “empregado” ou quem trabalha para empresa ou proprietário rural, in-
clusive os chamados safristas e volantes, eventuais ou temporários, com carteira assinada;
2) “contribuinte individual”ou trabalhador que presta serviço a uma ou mais pessoas sem
vínculo empregatício, exercendo atividades eventuais como os chamados safristas, vo-
lantes e bóias-frias . Também se inserem nesta categoria os chamados parceiros, meeiros,
comodatários, arrendatários e pescadores artesanais, que exploram atividades agropecuá-
rias, pesqueiras ou de extração de minerais com empregados . 3) “Trabalhador avulso”ou
aquele que presta serviço de natureza rural sem vínculo empregatício, sindicalizado ou
não, a diversas empresas ou pessoas físicas . 4) “Segurado especial”que abrange: parceiro,
meeiro, comodatário e arrendatário rurais, pescador artesanal e seus assemelhados, que
trabalham exclusivamente em regime de economia familiar, sem empregados, podendo
ter ajuda eventual de terceiros . Em suma, quem é agricultor em regime de economia
familiar é considerado pela Previdência Social como “segurado especial” .
10 . CF . BARTH, F . “Os grupos étnicos e suas fronteiras”in LASK, T . (org .) O guru, o ini-
ciador e outras variações antropológicas . Rio de Janeiro, Contracapa, 2000 pp . 25-67 .
11 . CF . IGLÉSIAS, M . “Os índios e as eleições municipais no Acre” . Rio de Janeiro, ou-
tubro de 2000 mimeo . E ainda “Um breve olhar sobre a participação indígena nas
eleições municipais de no Acre”in Yuimaki – um jornal indígena do Acre . Ano XIV . a .
edição . Março de 2005 (publicação semestral)p . 10 .
12 . “O Brasil tem 734 mil índios, cerca de 200 mil deles com título de eleitor .( . . .)”No iní-
cio de novembro de 2003 a COIAB realizou reunião em Manaus para traçar estratégias
eleitorais para 2004 . CF . “Biancareli . “Indios no Brasil Traçam plano eleitoral” . Folha
de São Paulo, 2 de novembro de 2003 pág . A-27 .
13 . Para outros dados, consulte NAVARRO, Cristiano . “O Brasil tem mais aldeia na po-
lítica” . Porantim . Ano XXVI . n . 269 . Brasília, outubro de 2004, pp . 8,9 . “O Estado
do Amazonas elegeu seu primeiro prefeito índio (em Barreirinhas); em Minas gerais,
na cidade de São João das Missões, onde a maioria da população pertence ao povo
Xakriabá, os indígenas organizaram-se e elegeram o primeiro prefeito índio de Minas
Gerais . – (NAVARRO, C . 2004) . Mecias Batista, do povo Sateré Mawé, eleito prefeito
de Barrerinhas (AM), fez parte da primeira coordenação da COIAB e dirigiu o CG-
TSM (Conselho Geral da Tribo Sateré Mawé) .
14 . Para um aprofundamento da participação das quebradeiras no pleito municipal de 2004
leia-se a arguta e bem-humorada análise do economista BENJAMIN MESQUITA inti-
tulada “Eleições municipais no Maranhão” in Assema em revista . Edição especial dos 15
anos da Assema . Org . por Helciane Araújo . São Luis,dezembro de 2004 pp . 15,16 .
Quanto a Maria Alaíde vale sublinhar que foi reeleita com votação ascendente . Em
2000 teve 260 votos e, em 2004, 358 . Já Nice Aires foi a vereadora no Maranhão que
obteve mais votos proporcionalmente a seu colégio eleitoral . Ela obteve 3,8% do total
de votos válidos, ou seja, 549 votos .
15 . Está-se difundindo uma estatística eleitoral relativa a cada identidade coletiva . Algu-
mas ligadas à noção de etnia, enquanto identidade nacional, apresentam resultados
declinantes, quando se confronta os dois últimos pleitos municipais . Nas eleições mu-
nicipais de 2004, por ex ., foram eleitos 195 “nikkeis”: 31 prefeitos, 31 vices e 133 ve-
readores . A maior concentração está nos estados de São Paulo, Paraná e Minas Gerais .
Este total indica uma redução em relação à legislatura de 1996-2000, quando foram
eleitos 243 “nikkeis” . Em 2004 foi eleita, entretanto, uma prefeita “nikkei”no Tocan-
tins . CF . Jornal Nippo-Brasil, 13 a 19 de outubro de 2004 pp . 4A e 5A .
16 . O fascínio pela quantidade nutriu uma ilusão democratista na formulação de Lessa .
Este autor afirma que o IBGE produziu um censo mostrando que 99% dos Municí-
pios brasileiros tem conselhos, com representação popular, funcionando nas áreas de
saúde, educação, meio ambiente e transporte . interpretação do autor: “O perfil dos
municípios traçado pela pesquisa do IBGE mostra que o Brasil está se transformando
numa república soviética . Afinal, a tradução da palavra russa “soviete”é conselho e os
conselhos passaram a fazer parte definitivamente da gestão dos municípios brasileiros:
em 1999, a média constatada pela pesquisa municipal foi de 4,9 conselhos por muni-
cípio, um total de 26,9 mil “sovietes”espalhados por 99% dos municípios do País”CF .

Coletânea de Artigos 195


196 Brasil Rural em Debate

Lessa, R . “Conselhismo invade cidades”e “Perfil revela que o Brasil foi tomado pelos
Conselhos” . Gazeta Mercantil, 18 de maio de 2001 . Consulte-se também C .Otávio .
“Os conselhos municipais se multiplicam no país” . O Globo . Rio de Janeiro, 13 de
novembro de 2003 pág . 16 .
17 . CF . HOBSBAWM, E . Era dos Extremos –O breve século XX, -1991 . São Paulo: Cia .
das Letras, 1995 .
18 . O critério de gênero, sob o qual se estrutura o MIQCB, pode aparecer também em
mobilizações contingentes face a conflitos determinados . Para uma ilustração disto
consulte-se: CASTRO, Edna e RODRIGUEZ, Graciela . As mulheres de Altamira na
defesa da água como direito humano fundamental . Rio de Janeiro . A .S .C . 2004 .
19 . Na 34ª Assembléia Geral dos Povos Indígenas, organizada pelo Conselho Indígena
de Roraima (CIR), realizado entre 12 e 15 de fevereiro de 2005, na aldeia Maturuca,
TI Raposa Serra do Sol, com participação de 186 tuxauas foi eleito o novo coordena-
dor do CIR para o mandato de dois anos . Participaram do pleito 177 comunidades,
totalizando 7 .539 votantes . O tuxaua Marinaldo Justino Trajano, enfrentando dois
opositores, foi eleito coordenador com 2 .711 votos .
20 . Do total da população indígena constata-se, consoante o Censo de 2000 do IBGE,
que 384 mil estão localizados em centros urbanos, enquanto que 350 mil indígenas
vivem na área rural .
21 . Trata-se de Emílio Kabá, filho de Martinho Kabá Munduruku e Maria Alice Puchu,
nascido em 1941 na maloca Itacharaiba, às margens do Rio Cururu, no Município
de Jacareacanga . Saiu da aldeia menino, tendo sido adotado por uma família de San-
tarém . Aposentou-se como policial-militar e mantém relações regulares com a aldeia
através de seu irmão . (CF . informações prestadas pelo próprio, em maio de 2005) .
22 . CF . NOVAES, J . ARAÚJO, L . e RODRIGUES, E . Congresso da cidade-construir o
poder popular, reinventando o futuro . Belém: Labor . ed . 2002 .
23 . Consulte-se, a propósito, o “Laudo Antropológico- identificação das comunidades
remanescentes de quilombo em Alcântara” . São Luis, setembro de 2002 . 385 pp, que
foi elaborado pelo antropólogo Alfredo Wagner Berno de Almeida, por solicitação da
Sexta Câmara do Ministério Público Federal .
24 . A revista Cadernos do IPPUR . Vol . XVI, n . 2 . Rio de Janeiro, UFRJ, agosto/dezembro
de 2002, menciona na chamada de capa os denominados “territórios aquáticos” .
25 . CF . ALMEIDA, Alfredo Wagner B . de . “Amazonia: a dimensão política dos “conheci-
mentos tradicionais” . In: ACSELRAD, Henri . Conflitos Ambientais no Brasil . Rio de
Janeiro: Fundação Heinrich Boll/Relume&Dumará, 2004, pp . 37-56 .
26 . Um dos exemplos mais conhecidos neste domínio concerne aos quíchua, que se distri-
buem pela Bolívia, Peru e Equador e que veneram a “pacha mama”(mãe-terra) .
27 . São 15 os representantes de movimentos e associações que integram a Comissão Na-
cional das Comunidades Tradicionais .
Período Rede de
Movimento /
ou Ano de Sede organizações Representação
organização (1)
fundação vinculadas
165 povos indígenas da
Amazônia, onde vivem
COIAB (2) 1989 Manaus (AM) 75 495 mil índios que repre-
sentam 68% da população
indígena do País.
30 povos indígenas; 70 mil
APOINME 1995 Recife (PE) –
índios
São Paulo (SP)
Dezenas
UNI (3) 1978 Rio Branco (AC) -;
de associações
Tefé (AM)
COAPIMA 2003 São Luís (MA) – 6 (seis) povos indígenas
163 mil extrativistas (serin-
Rio Branco
CNS 1985 (4) gueiros e
(AC)
castanheiros)
400 mil “quebradeiras”
distribuídas pelo
MIQCB 1991 São Luís (MA) 7 regionais
Maranhão,Tocantins, Piauí
e Pará.
“1.098 Comunidades
CONAQ (5) 1996 São Luís (MA) remanescentes de “2 milhões de pessoas”.
quilombos” (6)
Regionais nos Representa a sociedade
9 Estados da civil organizada
GTA 1991-92 Brasília (DF)
Amazônia, mais da Amazônia
de 500 entidades junto ao PPG-7
2 regionais
MONAPE 1990 São Luís (MA) Pescadores do MA e PA
(7)
MORA Dezenas de associa-
1996 Manaus (AM) Ribeirinhos do Amazonas
(atual MRRA) ções
Movimento
Dezenas de associa- Ribeirinhos da Amazônia
de Preservação 1990 Manaus (AM)
ções (8)
de Lagos
Articulação
“quase 400
Estadual de 1974-1990 20 mil famílias, na região
Salvador (BA) associações
Fundos e Fechos (9) do semi-árido da Bahia
agropastoris”
de Pasto
“Mais de 1 milhão de pes-
MAB (10) 1989 PR, RGS “regionais”
soas” em todo o Brasil
Dezenas de associa-
MABE (11) 2001 Alcântara (MA) ções organizadas p/ Cerca de 15.000 pessoas
povoados
Movimento pela
Sobrevivência Dezenas de
1989 Altamira (PA)
da transamazô- associações
nica
APF 20 faxinais
(Articulação (mais 224 foram
2005 Irati (PR) Mais de 10.000 famílias
Puxirão dos levantados em
Faxinalenses) 2007/2008)

Coletânea de Artigos 197


198 Brasil Rural em Debate

Movimentos Sociais
Notas ao Quadro
1 . Certamente que este quadro é provisório e se acha incompleto, mas seu propósito
cinge-se àquelas associações voluntárias da sociedade civil mais diretamente referidas a
categorias compreendidas no significado de “terras tradicionalmente ocupadas” . Neste
sentido não inclui entidades sindicais e organizações militantes . Conforme levanta-
mento do Ministério do Desenvolvimento Agrário, realizado em julho de 2003, che-
garia a 71 o número de organizações envolvidas em conflitos de terra e em ocupações .
Além das 22 federações e seus respectivos sindicatos ligados à Confederação Nacional
dos Trabalhadores na Agricultura (CONTAG), fundada em 1963, tem-se o MST e
outras vinte e cinco entidades que começam com o nome de movimento, dentre ou-
tros: Movimento dos Sem Terra Independente, Movimento de Libertação dos Sem
Terra, Movimento dos Carentes sem Terra . . .
CF . ÉBOLI, E .“Campo tem 71 grupos envolvidos em conflitos” . O Globo . Rio de
Janeiro, 3 de agosto de 2003 .
Não foram, portanto, incluídos neste quadro o Movimento dos Trabalhadores sem
Terra (MST), fundado em 1984, em Curitiba (PR) e que hoje se estende por todo o
País, e o Movimento dos Pequenos Agricultores, que foi fundado no Rio Grande do
Sul a partir dos chamados “Acampamentos da Seca” que se organizaram nos meses de
janeiro e fevereiro de 1996 .
As associações de artesãos e extrativistas do arumã, do Baixo Rio Negro, dos piaçabeiros,
do Alto Rio Negro, e dos peconheiros do Baixo Amazonas também não foram incluí-
das, porquanto estes movimentos se acham em forma embrionária tendo se organizado
principalmente em torno da produção . Em verdade mais se aproximam da noção de
cooperativas como a Associação de Artesãs de Novo Airão (AM) . Em termos potenciais
elas apontam para áreas que tem sido tradicionalmente exploradas de forma comunitá-
ria, quais sejam: açaizais, arumanzais e áreas de incidência de piaçaba; e que deveriam ser
objeto de políticas específicas de preservação ambiental, através de áreas reservadas .
Segundo este mesmo critério não foram incluídas associações diretamente referidas
aos “faxinais” . De acordo com dados levantados no I Encontro dos Povos dos Faxinais,
realizado nos dias 5 e 6 de agosto de 2005 em Irati, Paraná, haveria no momento
atual AIPAT, AISMA, OPITTAMP, OPIAM, ACINCTP faxinais com associações . O
representante dos “faxinalenses” na Comissão Nacional de Comunidades Tradicionais
é do Faxinal dos Seixas, do Município de São João do Triunfo (PR) .
Não foram incluídas as duas associações relativas aos ciganos, quais sejam APRECCI
e CCC . Os ciganos têm um representante na Comissão Nacional de Comunidades
Tradicionais .
Não foram incluídas as associações referidas a “terras de santo” e a “irmandades”e tão
pouco aquelas referidas a castanhais, que foram instituídos nos anos 50 como “casta-
nhais do povo” . Neste último caso partiu-se do pressuposto de que a representação
estaria contemplada no âmbito do Conselho Nacional dos Seringueiros, que também
se encontra representado na Comissão Nacional de Comunidades Tradicionais .
2 . A COIAB foi fundada em 19 de abril de 1989 e se estrutura em rede e tem suas organi-
zações – membro nos seguintes Estados: Amazonas, 46 (FOIRN, Associação das Comu-
nidades Indígenas do Distrito de Yauareté, UNCIDI, UNIRT, Associação das Comuni-
dades Indígenas do Rio Tiquié, ACIRX, ACIMRN, ARCI-NE, ACIBRIN, AINBAL,
ACIRI, ACITRUT, ACIRU, UCIRN, ATRIART, CACIR, OIBI, OGPTB, OSPTAS,
OPIM, MEIAM, CIVAJA, UNI/TEFÉ, CGTT, FOCCITT, CGTSM, CIM, Comis-
são Indígena Kanamari, OASISM, OPISM, AMARN, AMISM, AMIK, AMAI, AMI-
TRUT, OPIMP, OPAMP, UPIMS, OPIPAM, COPIAM, e Comunidade Terra Preta);
no Acre, 4 (UNI/ACRE, MPIVJ, OPITARJ e OPIRE); no Amapá, 4 (APINA, APIO,
APITU e AGM); no Maranhão, 4 (Associação Indígena Angico –Tot/Guajajara, As-
sociação dos Povos Guajajara, Krikati e Awá, CIPK e Associação Wyty’Caty do Povo
Gavião); no Mato Grosso, 3 (ASPA, FEPOIMT e Asso-ciação dos Povos Tapirapé); no
Pará, 4 (CITA, CIMAT, AMTAPA-MA e Associação Indígena Pussuru/Munduruku);
em Rondônia, 5 (CUNPIR, Associação Pamaré do Povo Cinta Larga, Organização Me-
tarelá do Povo Suruí, APK e COIS); em Roraima, 3 (CIR, OPIR e APIR); e no Tocan-
tins 2 (AIX e Conselho das Organizações Indígenas da Bacia Araguaia e Tocantins) . CF .
Coiab .Unir para organizar, fortalecer para conquistar . Manaus, 2003 .
Os povos indígenas têm um representante na Comissão Nacional de Comunidades
Tradicionais .
3 . A UNI foi fundada em 1978, mas a organização só ganhou projeção a partir da As-
sembléia Nacional Constituinte e com a formação da união dos “Povos da Floresta”em
1988 . Em setembro de 1989 a UNI constituiu o Centro de Pesquisas Indígenas, em
Goiânia (GO) .
Para outras informações consulte-se – RICARDO, Carlos Alberto –“Quem fala em
nome dos índios” . In: Povos indígenas no Brasil: 1987/88/89/90 . CEDI . Aconteceu
Especial 18 . São Paulo, 1991, p . 69 .
4 . As associações das Resex, dentre outras, a Associação dos Moradores da Resex Chico
Mendes – Brasiléia (AMOREB), Associação dos Moradores da Resex Chico Mendes
Assis Brasil AMOREB (AMOREAB), Associação dos Seringueiros e Agricultores
da Resex Alto Juruá (ASAREAJ), Associação dos Moradores da Resex do Rio Ouro
Preto (ASROP), Associação dos Trabalhadores Extrativistas da Resex Rio Cajari
(ASTEX-CA), estariam inclusas no CNS, bem como as associações de áreas de
posse, que ladeiam as reservas, como a do Pinda em Brasiléia (AC), e as associações
de áreas tituladas também voltadas para o extrativismo .
Estariam inclusas aqui também as associações que envolvem seringueiros brasileiros que
trabalham em seringais da região de Pando, na Bolívia, cognominados de BRASIVIANOS
e que participam com direito a voto nos Encontros Nacionais dos Seringueiros .
No que tange a estes trabalhadores que tem migrado pelas fronteiras internacionais
da Amazônia, com ocupação recente de áreas, poderiam ser mencionados ainda:

Coletânea de Artigos 199


200 Brasil Rural em Debate

garimpeiros brasileiros no Suriname, agrupados na Cooperativa de Garimpeiros,


que tem sede em Paramaribo, mas que exploram ouro aluvional em diferentes
pontos do País, e trabalhadores brasileiros na Guiana Francesa tanto os organiza-
dos em torno de documentação requerida para exercício de ocupação profissional,
quanto os que se localizam clandestinamente em áreas próximas ao Rio Maroni .
Para outras informações consulte-se:
CARVALHO MARTINS, Cynthia . Os deslocamentos como categoria de análise-
-agricultura e garimpo na lógica camponesa . Dissertação apresentada ao Mestrado em
Políticas Públicas da UFMA, São Luis, 2000 .
ESTEVES, Benedita M .G . Do “manso”ao Guardião da Floresta-estudo do processo
de transformação social do sistema seringal a partir do caso da Reserva Extrativista
Chico Mendes . Tese de Doutorado . CPDA–UFRR . Rio de Janeiro, 1999 .
SOARES, Ana Paulina A . Travessia: análise de uma situação de passagem entre
Oiapoque e Guiana Francesa . Dissertação de mestrado apresentada ao Departa-
mento de Geografia da FFLCH da USP, São Paulo, 1995 .
Não foram incluídos ainda os chamados “brasiguaios”, que se distribuem pelas áreas
fronteiriças com o Paraguai, nem tão pouco os chamados “brasivianos”, seringueiros
brasileiros que adentraram na Bolívia .
5 . A Coordenação Nacional de Articulação das Comunidades Negras Rurais Quilom-
bolas (CONAQ) é uma organização nacional e foi criada em 1996, em Bom Jesus da
Lapa (BA), na reunião de avaliação do I Encontro Nacional de Quilombos (1995) .
Dela participaram representantes de comunidades de dezoito Unidades de Federação,
além de entidades do Movimento Negro e ligadas à questão agrária que apóiam a luta
dos quilombolas . Os quilombolas têm um representante na Comissão Nacional de
Comunidades Tradicionais .
6 . “Segundo estudos do Projeto Vida de Negro (Sociedade Maranhense de Direitos Huma-
nos e Centro de Cultura Negra do Maranhão) e levantamentos da Fundação Cultural
Palmares do Ministério da Cultura, Universidade de Brasília (UnB) e Associação das Co-
munidades Negras Rurais Quilombolas (ACONE-RUQ ) constituiu-se um mapeamen-
to preliminar de 1 .098 comunidades quilombolas . Estas comunidades estão presentes
em quase todos os Estados brasileiros, com exceção de Roraima, Amazonas, Acre, Ron-
dônia e Distrito Federal .”CF . CONAQ/ ACONERUQ/COHRE –Campanha Nacio-
nal pela Regularização dos Territórios de Quilombos . Direito à Moradia – Regularização
dos Territórios de Quilombos . São Paulo, agosto de 2003 .
7 . Estas regionais são designadas respectivamente de Movimento dos Pescadores do Pará
(MOPEPA) e Movimento dos Pescadores do Maranhão (MOPEMA) . O MONAPE
tem representação na Comissão Nacional de Comunidades Tradicionais .
8 . De 19 a 23 de julho de 1999, ocorreram simultaneamente na Maromba, em
Manaus - AM, o XV Encontro de Ribeirinhos do Amazonas e I Encontro de
Ribeirinhos da Amazônia com o apoio da Comissão Pastoral da Terra e da CESE
(Coordenadora Ecumênica de Serviços) . Participaram mais de 100 (cem) dele-
gados, representando Comunidades de Ribeirinhos de toda a região Amazônica .
Em 2002 no IV Encontro de Mulheres Trabalhadoras Rurais e Ribeirinhas, realiza-
do em Manaus, foi criado o Movimento de Mulheres Trabalhadoras Ribeirinhas do
Estado do Amazonas com os objetivos seguintes: “documentar 50 mil mulheres até
o final de 2005 . Capacitar no período de três anos 35 novas lideranças para assumir
equipe regional e Nacional . Conquistar vagas nos Conselhos Municipais , estaduais e
Federal .”(CF . folder do MMTR-AM) .
9 . A Central de Fundos de Pasto de Senhor do Bonfim foi fundada em 2 de setembro
de 1974 .
Para maiores esclarecimentos sobre esta questão consulte-se documento intitulado “O
Fundo de Pasto que queremos – Política Fundiária e Agrícola para os Fundos de Pasto
Baianos” .Salvador (BA), abril de 2003, s/autoria .
Não foram levantadas informações sobre organizações estruturadas em torno do uso
de áreas comuns de pastoreio em Pernambuco e Ceará, embora sejam registradas nes-
tas unidades da federação sob outras designações como: “terras soltas”e “terras abertas” .
O Projeto Geografar – CNPq/IGEO/UFBA, coordenado pela geógrafa Guiomar
Germani, levantou no decorrer de 2003, em 23 Municípios Baianos (Andorinhas,
Antonio Gonçalves, Brotas de Macaúbas, Buritirama, Campo Alegre de Lourdes,
Campo Formoso, Canudos, Casa Nova, Curaçá, Itiúba, Jaguarari, Juazeiro, Miranga-
ba, Monte Santo, Oliveira dos Brejinhos, Pilão Arcado, Pindobaçu, Remanso, Santo
Sé, Seabra, Sobradinho, Uauá, Umburanas), um total de 255 associações de peque-nos
produtores rurais . Estas associações muitas vezes trazem na sua denominação o nome
do fundo de pasto a que se referem . Este nome pode estar ligado ao uso comum de re-
cursos hídricos, à figura daquele que foi pioneiro no uso dos recursos ou a sentimentos
religiosos ou ainda a fartura e beleza da terra . Assim tem-se referencias a aguadas, poços
e nascentes, tais como: Fundo de Pasto Lagoa das Baraúnas, Fundo de Pasto Olho
d’Água e Fundo de Pasto Lagoa do Anselmo . Tem-se também referencias que denotam
um sentido bíblico e que evocam a proteção de divindades tais como: Fundo de Pasto
Nossa Senhora da Conceição, Fundo de Pasto de Bom Jesus dos Campos e Fundo de
Pasto de Terra Prometida . Tem-se Também referencias que afirmam uma beleza pere-
ne da natureza, tais como: Fundo de Pasto Primavera e Fundo de Pasto Bom Jardim .
Tem-se ainda referências a quem localizou ou abriu os recursos, assegurando seu uso
comum, tal como no caso do Fundo de Pasto de Antonio Velho .
As comunidades de “fundos de pasto”tem um representante no Conselho Nacional
das Comunidades Tradicionais .
10 . Três situações sociais de resistência a deslocamentos compulsórios de populações por
parte do Estado, que principiaram no final dos anos 70, caracterizam a formação do
Movimento dos Atingidos por Barragens, segundo o Caderno do MAB intitulado
“MAB: uma história de lutas, desafios e conquistas”: “Primeiro na região Nordeste,
no final dos anos 70, a construção da UHE de Sobradinho no Rio São Francisco,

Coletânea de Artigos 201


202 Brasil Rural em Debate

onde mais de 70 .000 pessoas foram deslocadas, e mais tarde com a UHE de Itaparica
foi palco de muita luta e de mobilização popular, Segundo no Sul, quase que simul-
taneamente em 1978, ocorre o início da construção da UHE de Itaipu, na bacia do
rio Paraná, e é anunciada a construção das Usinas de Machadinho e Ita na bacia do
Rio Uruguai, que criou um grande processo de mobilização e organização na região .
Terceiro na região Norte, no mesmo período, o povo se organizou para garantir seus
direitos frente a construção da UHE de Tucuruí .”(MAB; s/d: pág . 6) .
Para outras informações sobre o MAB e suas experiências organizativas consulte-se o
Manual do Atingido (VAINER, C . e VIEIRA, F .; 2005) .
11 . O Movimento dos Atingidos pela Base Espacial de Alcântara foi fundado em julho de
2001 e congrega representações de pelo menos 139 (cento e trinta e nove) povoados, loca-
lizados nos 62 mil hectares da área desapropriada para instalação do Centro de Lançamen-
to, e cerca de 30 povoados localizados em áreas circundantes . Defende o reconhecimento
do território étnico, que congrega diferentes territorialidades específicas (“terras de preto”,
“terras de santíssima”, “terras de santo”, “terras da santa”, “terras da pobreza”, “terras de
caboclo”, entre outras), que estão construindo sua expressão política e identitária a partir
de uma relação sistêmica entre as famílias dos diversos povoados, que congregam cerca de
12 .500 pessoas . Os laços de coesão social se consolidaram a partir da resistência contra a
implantação da base militar, que em 1986/87 conseguiu deslocar compulsoriamente 312
famílias . Um dos marcos assinalados pelos próprios agentes sociais, para explicar a reto-
mada da mobilização a partir de fatores étnicos, trata-se do seminário “Alcântara: A Base
espacial e os Impasses Sociais”, realizado entre 11 e 14 de maio de 1999 .
12 . O Movimento pela Sobrevivência da Transamazônica, sediado em Altamira (PA),
desde 1989, se estruturava segundo um critério regional, abrangendo a população
dos Municípios paraenses que ladeiam ou são cortados pela rodovia Transamazônica,
construída no início dos anos 70 . No momento atual esta forma organizativa foi subs-
tituída e ampliada com seus integrantes se agrupando em torno do Movimento pelo
Desenvolvimento da Transamazônica e do Xingu .
Este Movimento denunciou através do Of . Circular n . 24, de 12 de janeiro de 2005,
a “Ocupação armada na Reserva Extrativista Riozinho do Anfrísio” .

Os processos de territorialização
Há, portanto, diferentes processos de territorialização em curso que
devem ser objeto de reflexão detida .
Babaçuais, castanhais e seringais, sob este prisma, não significam ape-
nas incidência de uma espécie vegetal numa área ou uma “mancha”,
como se diz cartograficamente, mas tem uma expressão identitária tra-
duzida por extensões territoriais de pertencimento . De igual modo os
chamados “faxinais” e os denominados “fundos de pastos” não podem
ser reduzidos a simples áreas de criatório comum . Esta expressão, proces-
so de territorialização, tenta propiciar instrumentos para compreender
como os territórios de pertencimento foram sendo construídos politi-
camente por meio das mobilizações por livre acesso aos recursos básicos
em diferentes regiões e em diferentes tempos históricos . O processo de
territorialização é resultante de uma conjunção de fatores, que envolvem
a capacidade mobilizatória, em torno de uma política de identidade, e
um certo jogo de forças em que os agentes sociais, através de suas expres-
sões organizadas, travam lutas e reivindicam direitos face ao Estado . As
relações comunitárias neste processo também se encontram em transfor-
mação, descrevendo a passagem de uma unidade afetiva para uma uni-
dade política de mobilização ou de uma existência atomizada para uma
existência coletiva . A chamada “comunidade tradicional” se constitui
nesta passagem . O significado de : “tradicional” mostra-se, deste modo,
dinâmico e como um fato do presente, rompendo com a visão essencia-
lista e de fixidez de um território, explicado principalmente por fatores
históricos ou pelo quadro natural, como se a cada bioma correspondesse
necessariamente a uma certa identidade . A construção política de uma
identidade coletiva, coadunada com a percepção dos agentes sociais de
que é possível assegurar de maneira estável o acesso a recursos básicos,
resulta, deste modo, numa territorialidade específica que é produto de
reivindicações e de lutas . Tal territorialidade consiste numa forma de
interlocução com antagonistas e com o poder do estado .
Para se ter uma ordem de grandeza destas territorialidades especificas,
que não podem ser lidas como “isoladas” ou “incidentais”, pode-se afir-
mar o seguinte: dos 850 milhões de hectares no Brasil cerca de ¼ não se
coadunam com as categorias “estabelecimento”e “imóvel rural” e assim
se distribuem: cerca de 12% da superfície brasileira ou aproximadamen-
te 110 milhões de hectares, correspondem a cerca de 600 terras indíge-
nas . Estima-se que as terras de quilombo, oficialmente, correspondam
a mais de 30 milhões de hectares . Em contraste as terras de quilombos
tituladas correspondem a cerca de 900 mil hectares . Os babaçuais, so-
bre os quais as quebradeiras começam a estender as Lei do Babaçu Livre,
Coletânea de Artigos 203
204 Brasil Rural em Debate

correspondem a pouco mais de 18 milhões de hectares, localizados nota-


damente no chamado Meio-Norte . Em contrapartida, as reservas extrati-
vistas de babaçu não ultrapassam a 37 mil hectares . Os seringais se distri-
buem por mais de 10 milhões de hectares e são objeto de diferentes formas
de uso . Embora o Polígono dos Castanhais, no Pará, tenha 1,2 milhões
de hectares, sabe-se que há castanhais em Rondônia, no Amazonas e no
Acre, em uma extensão não inferior a 15 milhões de hectares, não obstante
a extensão dos desmatamentos . Em contrapartida as reservas extrativistas
de castanha, de “seringa” e de pesca perfazem menos de 10% do total
das áreas com incidência de extrativismos, ou seja, um total de 3 .101 .591
hectares, com população de 36 .850 habitantes . Certamente que há riscos
de dupla contagem a serem considerados, posto que há terras indígenas
e de quilombos nas regiões ecológicas do babaçu, da castanha e da serin-
gueira . Acrescentando-se a estas extensões aquelas dos extrativistas do açaí,
do arumã e/ou dos chamados “ribeirinhos” e das associações de “fundo de
pasto” (na região do semiárido), dos “faxinais” e demais povos e grupos
sociais que utilizam os recursos naturais sob a forma de uso comum “numa
rede de relações sociais complexas, que pressupõem cooperação simples no
processo produtivo e nos fazeres da vida cotidiana” tem-se um processo
de territorialização que redesenha a superfície brasileira, produzindo uma
cartografia social singular e lhe empresta outros conteúdos sociais condi-
zentes com as novas maneiras segundo as quais se organizam e autodefi-
nem os sujeitos sociais1 . Em verdade tem-se a construção de identidades
específicas junto com a construção de territórios específicos . O advento
de categorias como os chamados “sem terra” e os “índios misturados” 2,
também podem permitir um entendimento mais acurado deste processo .
Anote-se que novos povos indígenas estão surgindo, tanto na Amazônia,
quanto no Nordeste ou no Sudeste do País . Veja-se o exemplo do Ceará
que vinte anos atrás oficialmente não registrava índios e hoje possui mais
de dez povos indígenas . Concomitante ao “surgimento” tem-se critérios
político-organizativos que se estruturam em cima da demanda por terras .
As terras vão sendo incorporadas para além de seus “aspectos físicos”, se-
gundo uma idéia de rede de relações sociais cada vez mais fortalecida pelas
autodefinições sucessivas ou pela afirmação étnica .
Para bem ilustrar isto, retome-se a leitura dos dados censitários: o
Censo Demográfico de 2000 constata que os povos reunidos sob a clas-
sificação de “indígenas” foram os que tiveram a maior taxa de cresci-
mento populacional entre 1991 e 2000 . Cresceram a uma taxa anual de
10,8%, duplicando sua participação no total da população brasileira de
0,32% para 0,4% . Sublinhe-se que neste mesmo período a população
total do Brasil cresceu a uma taxa de 1,6% ao ano . Os que se autodecla-
raram “pretos”3 aumentaram 4,2% . O crescimento de “indígenas” e de
“pretos” não se deveu à multiplicação da população de aldeias e comu-
nidades negras, mas a uma mudança na maneira de autoidentificação
do recenseado . Sim, as pessoas estão se autodenominando de encontro
a identidades de afirmação étnica, que pressupõem territorialidades es-
pecíficas . Elegendo a região Norte, Amazônia, constatamos que apenas
29,3% se autodenominam “brancos”, todos os demais, ou seja, mais de
2/3 da população se apresentam como “indígenas”, “pretos”e “pardos” .
Em outras palavras a Região Norte teria uma “composição étnica” que
aparentemente, pelo percentual dos autodeclarados “brancos”, mais po-
deria ser aproximada de países como a Bolívia, Peru e Equador .
Assim, juntamente com os processos diferenciados de territorialização,
tem-se a construção de uma nova “fisionomia étnica”, por meio da au-
todeclaração do recenseado, e de um redesenho da sociedade civil, pelo
advento de centenas de movimentos sociais; e por meio da autodefinição
coletiva e de formas organizativas intrínsecas . Todos estes fatores concor-
rem para compor o campo de significados do que se define como “terras
tradicionalmente ocupadas”, em que o tradicional não se reduz ao históri-
co e incorpora principalmente reivindicações do presente com identidades
coletivas redefinidas situacionalmente numa mobilização continuada .
As políticas ambientais e agrárias ressentem, neste sentido, da in-
corporação dos fatores étnicos e identitários nos seus instrumentos de
intervenção direta e daqueles outros recursos técnicos que lhes pos-
sam permitir uma compreensão mais precisa das modalidades de uso
comum vigentes . Definir oficialmente unidades de conservação ape-
nas pela incidência de espécies4 e operar com as categorias cadastrais

Coletânea de Artigos 205


206 Brasil Rural em Debate

e censitárias convencionais significa incorrer no equívoco de reduzir a


questão ambiental a uma ação sem sujeito .
Os movimentos sociais apresentam-se como um fator de existência
coletiva que contestam esta insistência nos procedimentos operativos de
ação sem sujeito e que buscam derrubar os demais obstáculos que im-
pedem o reconhecimento legal das “terras tradicionalmente ocupadas” .
A força desta contestação parece estar se tornando um problema da or-
dem do dia do poder . A mais recente medida nesta direção, conforme
já foi assinalado, data de 27 de dezembro de 2004, quando o governo
federal decretou a criação da Comissão de Desenvolvimento Sustentável
das Comunidades Tradicionais5, com vistas a implementar uma política
nacional especialmente dirigida para tais comunidades . Como corolário
bem o evidenciam os preparativos para o I Encontro Nacional de Co-
munidades Tradicionais, realizado entre 17 e 19 de agosto de 2005, em
Brasília . A forma de convocação para participar já traduziu uma certa
modalidade de reconhecimento dos movimentos sociais em jogo e de
suas pautas básicas . Da mesma maneira a escolha dos membros da Co-
missão Nacional das Comunidades Tradicionais, para além de qualquer
critério pretensamente “objetivo” (demográfico, regional, por bioma,
por maior ou menor visibilidade social, por extensão da rede de associa-
ções vinculadas, por número de filiados etc), assinalou o reconhecimen-
to oficial de uma certa maneira de se expressar politicamente que não
passa por uma modalidade homogênea de representação .
De maneira sumária, pode-se concluir que a diversidade político-or-
ganizativa está prevalecendo como ponto de partida para a construção
de uma forma de representação diferenciada . Tal representação torna os
movimentos sociais um lugar político potencialmente relevante, posto
que as mobilizações dos agentes a eles referidos tem conduzido à coe-
xistência de diferenças étnicas e de distintas ocupações e atividades eco-
nômicas . Isto rompe com as visões dicotômicas usuais . Ao contrário do
que se poderia supor, não estaria ocorrendo uma convergência de inte-
resses, resultando numa homogeneização jurídica, que freqüentemente
é assinalada como uma característica positiva da “globalização” . Não es-
taria ocorrendo também uma fragmentação indefinida de identidades
coletivas, debilitando os laços de solidariedade política e enfraquecendo
as formas associativas, tal como teria ocorrido com os sindicatos de tra-
balhadores, consoante os efeitos das medidas de inspiração neoliberal .
Nesse sentido, não se está diante do “tradicional” que resiste às políticas
governamentais “modernas”, mas sim do “tradicional” que é construído
a partir do fracasso destas políticas em assegurar, para além do discur-
so, o que dizem ser um “desenvolvimento sustentável” . Aqueles agentes
sociais que quinze anos atrás eram considerados como “residuais” ou
“remanescentes” hoje se revestem de uma forma vívida e ativa, capaz de
se contrapor a antagonistas que tentam usurpar seus territórios .
Transcendendo à expressão organizativa, pode-se dizer que é do pris-
ma da intensidade das reivindicações de reconhecimento legal das ter-
ritorialidades específicas, pelas quais se batem os movimentos sociais,
que está colocada em xeque a reestruturação formal do mercado de
terras preconizada pelas agencias multilaterais . É deste ponto de vista
que pretendo chamar a atenção para a relevância de se estudar a relação
entre as “terras tradicionalmente ocupadas”e os processos diferenciados
de territorialização que lhes são correspondentes no momento atual .

NOTAS
Os processos de territorialização
1 . Pode-se cotejar este percentual com o fato de que há 200 milhões de hectares sobre os quais
o cadastro do INCRA não possui qualquer informação . As terras cadastradas referem-se a
somente 650 milhões de hectares . Em virtude disto delineia-se mais uma ação governa-
mental inócua, pois, sem modificar as atuais categorias censitárias e cadastrais, o INCRA
pretende implantar a partir de março de 2004 o Sistema Nacional de Cadastro de Imóveis
Rurais .
2 . Registrei a categoria “mistura” como forma autoidentitária em pelo menos duas situações:
na fala dos quilombolas de Conceição das Crioulas (PE) e no Faxinal dos Marmeleiros
(PR) . A maneira dos agentes sociais, quilombolas e “faxinalenses”, se autorepresentarem
passa pelo que eles nomeiam de “mistura”ou seja situações resultantes de casamentos entre
índios e negros ou entre índios e imigrantes italianos . Consulte-se a propósito: Pacheco de
Oliveira, J . “Uma etnologia dos “índios misturados”: Situação colonial, territorialização e
fluxos culturais .”P . de Oliveira (org .) A viagem de volta-etnicidade, política e reelaboração
cultural no Nordeste Indígena . Rio de Janeiro, Contra Capa, 1999, pp . 11-40 .

Coletânea de Artigos 207


208 Brasil Rural em Debate

3 . IBGE utiliza o termo “preto” e não o termo “negro”como classificatório . A categoria censi-
tária “preto”entre 1872, data do primeiro Censo, e 1991 apresenta um declínio percentual,
ou seja, em 1872 representava 19,68% da população total; em 1890 representava 14,63%;
em 1950 representava 10,96% e em 1960,71%, em 1980, 5,92%, em 1991, 5,01% . São
119 anos de declínio constante, como a sinalizar que estaria ocorrendo um “embranque-
cimento” da população . No ano de 2000, entretanto, houve um crescimento percentual
superior ao dos chamados “brancos”, quebrando a série de mais de um século de declínio .
As pessoas que se autodeclararam “pretos” aumentaram em quase 40% entre os dois censos,
de 1991 e 2000 .
4 . Consoante as determinações do art . 57, da Lei n° 9 .985, foram registrados, segundo o
IBAMA, 28 casos de superposição entre terras indígenas e unidades de conservação . Os
casos mais conflitantes seriam os parques nacionais de Monte Pascoal, Araguaia, Nebli-
na e Estação Ecológica de Iquê . Consoante parecer do assessor jurídico do CIMI, Paulo
Guimarães: “Regularizar a superposição de Unidade de Proteção Integral ( . . .) implica em
inconstitucionais restrições à posse permanente e ao usufruto exclusivo dos povos indígenas
às riquezas naturais existentes nas terras que tradicionalmente ocupam, pelo fato de neste
tipo de unidade de conservação ser “admitido apenas o uso indireto dos seus recursos natu-
rais” . CF . Porantim ano XXII-n . 230 . Brasília, novembro de 2000, p . 9 .
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ANEXO

PROJETO DE LEI DO LEGISLATIVO N.° 04/2005


“Que cria a lei do licuri livre ou lei do ouricuri, sua preservação,
extrativismo e comercialização .”
O Prefeito Municipal de Antônio Gonçalves Estado da Bahia, no
uso de suas atribuições legais, especialmente amparado nos incisos iv e
vi do art . 201 da lei orgânica do Município .
Faço saber que a Câmara Municipal aprovou e eu sanciono a seguinte lei:
CAPÍTULO I
Da constituição
Art. 1º Fica criada e aprovada a lei do licuri livre, vinculada a Secretaria
de Agricultura e Meio Ambiente do Município, e conselho
das associações que representam os trabalhadores rurais do
município de Antonio Gonçalves .

CAPÍTULO II
Dos objetivos
Art. 2º – São objetivos desta lei; proteger os ouricurizeiros como
planta de preservação permanente, seu cultivo e geração de
renda para as comunidades e famílias de baixa renda, bem
como alimento para os animais .
I – Prover as comunidades e os catadores do licuri no âmbito
do município, assegurar a continuidade da exploração des-
sa cultura extrativista .
II – Que os catadores do ouricuri ou ouricultores respeitem as
propriedades, bem como: não cortar arames ou danificar
cercas, proteger a fauna e a flora .
PARÁGRAFO PRIMEIRO
São de livre acesso por meio de cancelas, porteiras e passadores, o
uso comum dos catadores do licuri e suas famílias, que as explo-
ram em regime de economia familiar e comunitária .

Coletânea de Artigos 211


212 Brasil Rural em Debate

PARÁGRAFO SEGUNDO
Para proporcionar melhor produção aos ouricurizeiros e
desenvolvimento de outras plantas, os proprietários devem
seguir uma metragem de aproximadamente 3 a 5 metros de
uma planta a outra .
Art. 3º - Os trabalhos de raleamento dos oricurizeiros deverão
ser comunicado com prazo mínimo de 15 dias, aos ór-
gãos ambientais do município de Antonio Gonçalves .

PARÁGRAFO TERCEIRO
Aos catadores fica proibido; cortar as palhas finais ou às do
olho do ouricurizeiro, bem como acender fogo indevida-
mente nas propriedades particular, cortar caichos verde que
não sirva para o aproveitamento .
PARÁGRAFO ÚNICO
Do que trata o parágrafo terceiro, exceto os trabalhadores
em artesanato que produzem vassouras, chapéus, esteiras . . .,
deixando sempre às duas palhas finais .
Art. 4º - Entidades ou órgãos parceiros: Secretarias Municipais de
Agricultura e meio ambiente, Sindicato dos Trabalhado-
res rurais de Antonio Gonçalves, Escola Família Agríco-
la de Antonio Gonçalves, e conselho das associações do
município que representem os trabalhadores rurais .
Art. 5º - O descumprimento desta lei em agressão ao meio am-
biente, implicará em multa .
I – A multa será arbitrada pela secretaria do meio am-
biente e agricultura de Antonio Gonçalves e conse-
lho das associações que representam os trabalhadores
rurais do município .
II – Para garantir melhor produção, comercialização dos
produtos derivados do ouricurizeiro .
III – Que o Município proporcione aos catadores orga-
nizarem-se em associações e cooperativas .
DISPOSIÇÕES FINAIS
O município viabilizará os recursos humanos e financeiros
capacitação de pessoal, melhor aproveitamento e comercializa-
ção dos produtos vindo do ouricurizeiro, o Poder Executivo e
Legislativo, respaldados por esta lei, fará a efetivação necessária
na busca de programas para a melhoria da qualidade de vida das
famílias do município de Antônio Gonçalves .
Art. 6º - Esta lei entra em vigor na data da sua publicação, revo-
gando-se as disposições em contrário .
Sala das Sessões da Câmara Municipal,
5 de Agosto de 2005 .
Jurandy de Jesus Menezes
Vereador

Coletânea de Artigos 213


214 Brasil Rural em Debate

5. Mulheres na Política
de Desenvolvimento
do Brasil Rural

Andrea
Butto*

Este artigo aborda as mulheres na política de desen-


volvimento do Brasil rural . Partimos de uma breve
apresentação conceitual sobre as mulheres e o femi-
nismo no desenvolvimento, para debater os novos
enfoques no contexto do rural, as relações de gênero
e a política em tela .

5.1 A produção teórica feminista


sobre o desenvolvimento
O tema do desenvolvimento no feminismo está
presente desde a chamada primeira onda, no século
XIX . O direito ao trabalho e ao salário igual cor-
respondia à principal bandeira de luta . Conceitual-
mente, a igualdade com referência no padrão mas-
culino de inserção econômica prevalecia (Carrasco:
2003) .
No século atual e, especialmente, a partir dos anos
1950, nos países do terceiro mundo, as políticas de
desenvolvimento incluem programas para as mulhe-
*
Antropóloga, Pro- res pobres, dentre as quais as camponesas . Nestas se
fessora da Universi- reforçam os papéis tradicionais de gênero, predomi-
dade Federal Rural
de Pernambuco e nando o tratamento das mulheres como donas de
atual Diretora de casa e a proposta de que desenvolvam novas habili-
Políticas para as Mu-
lheres . dades para atuar no lar e no entorno (Valdés: 1994) .
Com a segunda onda do feminismo, nos anos 1970, a agenda
econômica ganha maior reconhecimento público . A produção te-
órica feminista marca esta nova fase com a realização da Primeira
Conferência sobre a Mulher, da Organização das Nações Unidas
(ONU), e a chamada estratégia Mulheres no Desenvolvimento, que
dela resulta . Destaca-se a concepção liberal e a igualdade formal
incorporada às propostas, cujas consequências geradas incluem a
sobrecarga de trabalho e a frustração para as mulheres, resultante
da sua inserção em atividades não sustentáveis, promovidas em prol
da referida estratégia .
A partir de uma percepção crítica, algumas feministas passaram a
defender a abordagem do Gênero no Desenvolvimento como uma nova
estratégia de empoderamento das mulheres, a partir de uma visão al-
ternativa e de novos processos sociais . Este conceito é cunhado nas
ciências sociais e aplicado à análise de distintas relações sociais e não
apenas às de gênero . Por esse motivo, na análise da pobreza, por exem-
plo, as relações de gênero podem não ser consideradas .
O empoderamento é, para alguns autores, uma categoria social,
abordagem e processo do desenvolvimento, que busca colocar as pes-
soas e o poder no centro dos processos . As organizações e as comu-
nidades tomam controle de seus próprios assuntos, de sua vida e se
conscientizam da sua habilidade e competência para produzir, criar e
gerar (Romano:2008) .
Para afirmar a necessidade de realizar a transição entre a abor-
dagem Mulheres no Desenvolvimento e Gênero no Desenvolvimento,
a chamada teoria da planificação de gênero formula os conceitos de
interesses/necessidades práticas e interesses/necessidades estratégicas .
Os primeiros se dirigem à satisfação de necessidades físicas e os se-
gundos à transformação da condição de desigualdade entre mulheres
e homens, teoria que será criticada por várias pesquisadoras, na me-
dida em que cria uma falsa oposição, já que as necessidades/interesses
práticos e as necessidades/interesses estratégicos podem se reforçar
mutuamente (Meertens: 1994) .

Coletânea de Artigos 215


216 Brasil Rural em Debate

A partir dos anos 1980, a referência à autonomia também ganha des-


taque no debate sobre desenvolvimento . O conceito aparece nas ciências
sociais como um princípio mobilizador do comportamento nas políticas
de emancipação, que, por sua vez, significa que a vida coletiva é organi-
zada de maneira que o individuo é capaz de ações livres e independentes
em sua vida social (Giddens:1991) .
Em comum a estes conceitos está o tema do poder . Com referên-
cia à concepção de Michel Foucault, debatem-se distintas possibili-
dades de poder e, dentre eles, prevalece a noção de poder “para” se
potencializar e não um poder “sobre” que busca a dominação . Mas
como afirmam Meynen & Vargas (1994), o conceito de autonomia
talvez vá mais longe, na medida em que implica na capacidade de
subtração do poder de dominação de outros e, ao mesmo tempo,
efetiva um processo de autodeterminação que não lesa os interesses
dos demais . O poder das mulheres, que resulta da redistribuição
do poder, é a sua capacidade de transformar os comportamentos de
outras pessoas e de determinar o rumo das suas vidas em momentos
chaves, apesar da contra vontade dos homens ou de outras mulhe-
res (Safilios-Rothschild:1982) .
No debate sobre autonomia econômica, as economistas feminis-
tas jogam força na análise do poder de barganha do homem e da
mulher na família, na sociedade, na comunidade, mas especialmen-
te na família . Criticam o modelo neoclássico de família unitária,
tratada como se fosse uma unidade de produção e consumo, sem
diferenciações internas, e como se os recursos e a renda fossem reu-
nidos em um fundo comum . Como se houvesse um chefe altruísta,
que representasse as preferências de todos e procurasse maximizar
os recursos . A partir da economia feminista, a família passa a ser
considerada como uma matriz complexa de relações, em que há
uma barganha constante e frequentemente implícita, sujeita às res-
trições estabelecidas por gênero, idade, grau de parentesco e ao que
se é socialmente permitido que se negocie .
Na mesma direção, sugere-se que as relações familiares sejam carac-
terizadas por elementos de cooperação e de conflito . Parte-se da pre-
missa de que quanto maior for a capacidade de uma pessoa sobreviver
fisicamente fora da família, maior será o seu poder de barganha em
relação à divisão de recursos dentro dela (Sen & Grown: 1998) .
Nos anos 1990, a partir das contribuições de Nancy Fraser (2001),
o tema do desenvolvimento aparece associado ao debate da política
de identidade e da redistribuição . A autora considera que a afirmação
das questões de reconhecimento, tais como os direitos reprodutivos e
a violência contra a mulher, acabaram afastando o imaginário político
de justiça para longe das questões de classe e da economia política . A
partir deste balanço, propõe-se trazer o material de volta e mostrar a
sua relação com questões de reconhecimento .
No campo dos estudos rurais e gênero, por exemplo, Carmen Deere
& Gina Alvarado, Jeniffer Twyman (2010) debatem os direitos das
mulheres à propriedade e aos ativos econômicos de forma articulada
com a chamada violência patrimonial .
Para trazer de volta o material e mostrar a sua relação com o reco-
nhecimento e a identidade, o conceito de relações sociais de sexo e de
divisão sexual do trabalho, desenvolvidos por Kergoat (1996), é muito
útil . Segundo esta autora, o conceito de relações sociais de sexo está
ancorado na noção de prática social e, por esse motivo, pensa simul-
taneamente o material e o simbólico, seu imbricamento com outras
relações sociais e, dentre outros aspectos, resgata os sujeitos sociais que
sofrem a ação das relações sociais, mas também, atua sobre elas de ma-
neira individual e coletiva .
Partindo destas reflexões, pode-se afirmar que abordar o desen-
volvimento a partir do feminismo implica em realizar um esforço
analítico para além da superação da pobreza . Deve-se refletir sobre
redistribuição dos bens e recursos econômicos na família e na socie-
dade, bem como sobre a desconcentração do poder, hoje em mãos
masculinas . Isto implica em considerar o conflito e a ação de novos
sujeitos sociais mobilizados na democratização das relações de gênero
no meio rural .

Coletânea de Artigos 217


218 Brasil Rural em Debate

5.2 Mulheres no desenvolvimento


rural e as territorialidades
Considerando a articulação das relações de gênero com outras rela-
ções sociais e os contextos particulares, é necessário integrar os debates
da economia feminista no desenvolvimento rural sustentável, a partir
da noção de desenvolvimento territorial, conceito este que surge como
parte da superação da percepção do rural como mera exclusão do que
não é urbano e como uma alternativa de desenvolvimento que combina
o econômico, o social, o político e o ambiental em oposição à chamada
modernização conservadora, que privilegia uma visão produtivista volta-
da para a geração de divisas por meio do comercio exportador .
Essa alternativa, ainda em gestação, considera que não existe primazia
do espaço físico-geográfico para definir a reflexão e o planejamento do
desenvolvimento rural e que o ponto de partida é o território, sendo este
resultado de uma construção social e, portanto, também política . É um
espaço em que a prática dos sujeitos assume papel decisivo na orientação
do desenvolvimento .
Por se tratar de uma construção social e do resultado de uma pratica
social, interesses distintos entram em jogo . Não apenas interesses econô-
micos presentes nas relações entre classes sociais, mas também interesses e
demandas de diferentes segmentos sociais .
O desenvolvimento rural, pensado a partir das relações de gênero, não
pode se limitar a estimular a participação social simplesmente, posiciona-
mento corrente entre alguns adeptos da abordagem territorial . É necessá-
rio considerar as distintas dimensões presentes na desigualdade que as mu-
lheres vivenciam no campo . Se o desenvolvimento necessita ser pensado a
partir das dimensões econômicas, sociais, políticas e ambientais, a reflexão
sobre as relações de gênero necessita se integrar em todas estas dimensões .
Na dimensão econômica e ambiental, é necessário considerar que,
embora as mulheres sejam detentoras de conhecimentos sobre uso e
manejo da biodiversidade, têm menor acesso aos bens da natureza e
aos recursos financeiros . Este fato repercute na ausência e/ou menor
acesso à terra e à renda . Além disso, sua inserção não monetária as con-
centra em atividades voltadas para o autoconsumo . Deve-se considerar
também que assumem de forma quase exclusiva o trabalho doméstico
e de cuidados, gerando maior jornada de trabalho, mesmo que as es-
tatísticas oficiais insistam em afirmar o contrário . Também enfrentam
condições precárias para a realização do trabalho doméstico – a exem-
plo dos problemas gerados pela escassez de água em suas residências e
de falta de gás – e menor disponibilidade para atividades geradoras de
renda monetária . Esta análise resulta na economia feminista a partir da
chamada política de redistribuição .
A forma de inserção econômica das mulheres produz uma represen-
tação do seu trabalho como atividade secundária e marginal, mesmo
que sem o trabalho delas não seja possível garantir a reprodução física e
social da agricultura familiar e do seu papel decisivo na manutenção da
biodiversidade e preservação ambiental . A análise dessa condição nos
coloca de frente com a dimensão simbólica da desigualdade .
A combinação da dimensão política com a econômica constitui o cora-
ção da análise das mulheres no desenvolvimento . A condição para enten-
der a exclusão econômica das mulheres é incorporar na análise os meca-
nismos políticos usualmente presentes na manutenção da subordinação .
Instituições como a família, os espaços públicos e o Estado são decisivos
na reprodução da desigualdade existente entre mulheres e homens rurais .
Estas instituições estabelecem laços entre si, formando uma poderosa bar-
reira de entrada das mulheres no desenvolvimento de forma igualitária .
Estas instituições se entrelaçam da seguinte forma: na família, os
homens se legitimam como seu representante perante o mundo pú-
blico e o Estado – é o chamado Chefe de Família . As mulheres só ad-
quirem esta condição quando não contam com a figura masculina no
grupo familiar . O Estado e os espaços públicos elaboram política pú-
blica e atuam considerando o que seriam as necessidades da família e
não de cada um dos indivíduos independente da sua condição civil
e familiar . Reforçam a ideia de que as necessidades são iguais e que
se relacionando com o “titular” todos serão beneficiados . Essa mesma
visão prevalece nos espaços públicos que não consideram as desigual-
dades econômicas, nem o privilégio dos homens nas decisões e acesso a
bens e recursos . Isto ajuda a entender porque as mulheres estão menos

Coletânea de Artigos 219


220 Brasil Rural em Debate

representadas em espaços públicos e na sociedade civil e porque as suas


demandas/necessidades não integram de forma satisfatória a agenda de
lutas pelo desenvolvimento rural .
Partindo destas considerações é importante, portanto, levar em conta
não apenas o poder de coesão social que um território pode gerar, o
potencial integrador e a concertação possível entre interesses distintos,
mas a maneira como os diferentes atores e atrizes entram em cena no
ambiente de promoção do desenvolvimento . Isto implica em considerar
o conflito social que resulta da desigualdade e incorporá-lo na análise
e promoção do desenvolvimento territorial . Como mencionado ante-
riormente, o problema não se resolve com o mero estímulo à participa-
ção dos distintos atores/atrizes sociais, mas com a combinação do maior
protagonismo e a promoção de políticas claramente orientadas para o
fomento de um desenvolvimento voltado para aqueles que são os con-
siderados mais pobres e excluídos das políticas: as mulheres rurais . Para
isso, é fundamental considerar também que não se trata de um bloco
homogêneo e ausente de relações com outras desigualdades sociais, espe-
cialmente as de raça, geração e etnia .
Esta visão se diferencia daquela que atribui o principal desafio
do desenvolvimento justo e igualitário ao campo da cultura . Cultu-
ra não é um ente abstrato, é resultado da prática social e, portanto,
da ação concreta dos sujeitos sociais . De maneira individual e coletiva se
constroem as referências culturais, as identidades . Esta construção não é
passiva, e sim resultado de cada uma das práticas, mesmo que nem todas
sejam conscientes .
É por esta compreensão que se pode entender porque movimentos
sociais de mulheres e a sua auto-organização, em ambientes mistos
de organização da sociedade civil, foram capazes de transformar re-
lações na família, contestando, por exemplo, a violência doméstica e
garantindo a sua inclusão no movimento sindical como filiadas, e não
como esposas e filhas dos homens sindicalizados . E à medida que há
o acúmulo de forças, que conquistam internamente nos movimentos
sociais, vão transformando a agenda do desenvolvimento rural, inte-
grando-se nos debates mais amplos e construindo alianças políticas na
defesa dos seus direitos . Como resultado destas novas práticas sociais,
as mulheres foram capazes de impulsionar o Estado para elaborar polí-
ticas públicas voltadas para a promoção da sua autonomia econômica
com vistas à maior igualdade .

5.3 As políticas de desenvolvimento rural e sua


interface com as políticas para as mulheres
Desde 2003, o Governo Federal vem promovendo o desenvolvi-
mento rural sustentável, solidário, com igualdade e baseado na abor-
dagem territorial .
Rompendo com relações clientelistas e patrimonialistas o Governo
Federal impulsionou uma dupla estratégia: (1) a elaboração de polí-
ticas de desenvolvimento territorial, que vão desde a elaboração de
uma estratégia dialogada de construção de ambientes de participação
social e definição do desenvolvimento, a partir das chamadas relações
de proximidade; e (2) a de territorialização de políticas públicas de
desenvolvimento rural, dentre elas as políticas para as mulheres rurais .
Partia-se de um diálogo entre Estado e sociedade, centralizado e
sem a representação da pluralidade política existente no meio rural .
O Conselho Nacional de Desenvolvimento Rural Sustentável (CON-
DRAF) reformulou sua composição, ampliou suas atribuições e pro-
moveu um amplo diálogo social . Com a promoção da Plenária Nacio-
nal de Desenvolvimento Rural Sustentável, em 2006, antecedendo a II
Conferência Internacional sobre Reforma Agrária e Desenvolvimento
Rural (CIRADR), da Organização das Nações Unidas para a Agricul-
tura e Alimentação (FAO/ONU) e da tão esperada I Conferência de
Desenvolvimento Rural Sustentável e Solidário, em 2008, iniciou-se
um novo momento nas políticas de desenvolvimento rural .
O diálogo entre Estado e sociedade civil se caracterizava também
pela ausência de políticas integradas e arrojadas de apoio à agricultura
familiar, até então, restritos ao crédito e à infraestrutura no Progra-
ma de Apoio à Agricultura Familiar (PRONAF), além do Programa

Coletânea de Artigos 221


222 Brasil Rural em Debate

Nacional de Crédito Fundiário e de um padrão de reforma agrária


centrado numa escassa distribuição de terras e na ausência de políticas
de desenvolvimento dos assentamentos da reforma agrária .
Em resposta à demanda política por igualdade, que as trabalhadoras
rurais empreenderam, promoveram-se ações fragmentadas de capacita-
ção e a edição de portarias sem efeito prático na área de financiamento,
além de estudos e pesquisas que não foram capazes de dialogar com a
crescente luta das mulheres que se registra, desde os anos 1990 .
Um novo cenário se constitui a partir da elaboração de novas polí-
ticas e da qualificação de programas já existentes, buscando uma ação
integrada e combinada com a participação social e o enfrentamento
das desigualdades, dentre as quais as de gênero .

5.4 Políticas para as mulheres rurais


A desigualdade de gênero começou a ser enfrentada por meio de
ações articuladas do Governo Federal e de movimentos e organizações
feministas para promover a autonomia econômica e a igualdade das
mulheres rurais . O Ministério do Desenvolvimento Agrário (MDA) e
a Secretaria Especial de Políticas para as Mulheres (SPM) passaram a
atuar em parceria com movimentos sociais de mulheres . O MDA criou
a Assessoria Especial de Gênero, Raça e Etnia (AEGRE), recentemente
institucionalizada na forma da Diretoria de Políticas para as Mulheres e
Quilombolas, e disponibilizaram-se recursos para a implantação de po-
líticas de igualdade que promovem os direitos econômicos e o exercício
pleno da cidadania das mulheres trabalhadoras rurais .
Esta nova institucionalidade e a participação social qualificaram pro-
gramas existentes e impulsionaram a criação de novas políticas públicas
para a efetivação da cidadania e promoção da autonomia econômica das
mulheres trabalhadoras rurais . São ações que contemplam a garantia dos
direitos à cidadania, à terra, acesso aos serviços rurais e ao comércio, o
resgate da memória coletiva e apoio a estudos feministas no campo, além
do alargamento dos direitos das mulheres rurais no cenário internacional .
As políticas para as mulheres foram orientadas a partir do questiona-
mento do chamado familismo nas políticas públicas . Essa abordagem
inclui as mulheres no Estado, a partir da sua condição civil e como inte-
grantes de uma unidade de produção familiar, pretensamente harmôni-
ca, onde o chefe de família representa e decide pelos demais integrantes .
Para garantir que as mulheres sejam consideradas sujeitos da ação
do Estado, o primeiro passo foi torná-las habilitadas para o acesso às
políticas públicas, quebrando com a concepção ainda vigente de que
a documentação civil dos chefes de família pode ser usada por outros
membros do grupo familiar . O Programa Nacional de Documentação
da Trabalhadora Rural (PNDTR), para além de assegurar às mulheres
rurais o acesso a documentos civis e trabalhistas, atuou de maneira a
enfrentar as barreiras econômicas que impedem a emissão da docu-
mentação . Com acesso gratuito e na proximidade da sua moradia, elas
tiveram o direito à documentação garantido e, associado a ela, a infor-
mação sobre as políticas públicas da agricultura familiar e da reforma
agrária, de maneira a vincular a posse da documentação aos demais
direitos, especialmente os econômicos .
A condição de beneficiárias diretas da política pública que garante o
acesso aos bens naturais foi promovida por meio do Programa Nacional de
Reforma Agrária . O Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária
(INCRA) efetivou os direitos das mulheres à terra já previstos desde a nova
Constituição . Assim, por meio da Portaria nº 981, estabeleceu a Titula-
ção Conjunta Obrigatória da Terra nos lotes de assentamentos da reforma
agrária . Os procedimentos de Inscrição de Candidatos(as) na Implantação
de Projetos de Reforma Agrária, no Cadastro das Famílias nas Áreas de
Regularização Fundiária e de Titulação e no Certificado de Cadastro de
Imóvel Rural incluíram, em caráter obrigatório, a mulher e o homem,
independente de estado civil . A partir da Instrução Normativa n° 37, as
famílias chefiadas por mulheres passaram a ter preferência na Sistemática
de Classificação das Famílias Beneficiárias da Reforma Agrária .
Para beneficiar as mulheres no desenvolvimento, foi necessário
considerar a forma atual de inserção desigual e buscar transformá-la,

Coletânea de Artigos 223


224 Brasil Rural em Debate

promovendo uma introdução autônoma e sustentável . Isso implicou


em garantir o acesso das mulheres aos bens naturais, aos recursos
financeiros e aos serviços rurais independente da sua condição civil,
sem a mediação dos homens . Também implicou em considerá-las
agentes econômicos autônomos, que trabalham de forma coletiva e
familiar, em reconhecer e respeitar suas necessidades e decisões sobre
o quê, onde e como querem produzir e comercializar, e em serem le-
vadas em consideração, pelo Estado e pelos esposos e companheiros,
no acesso ao financiamento, na gestão dos recursos públicos e no
acesso a mercados .
Essa estratégia se materializou com o Programa de Organização Pro-
dutiva das Mulheres Rurais (POPMR) e a inclusão das mulheres nas
políticas de apoio à produção e à comercialização, como sujeitos da
economia em condição autônoma .
O POPMR fortaleceu, por meio da difusão dos princípios da eco-
nomia solidária e feminista, organizações produtivas de trabalhadoras
rurais, incentivou a troca de informações, conhecimentos técnicos,
culturais, organizacionais, de gestão e de comercialização e buscou via-
bilizar o acesso das mulheres às políticas públicas de apoio à produção
e à comercialização .
Nas políticas de apoio à produção, buscou-se reconhecer o trabalho
das trabalhadoras rurais, incluí-las na gestão econômica da unidade de
produção familiar e coletiva, ampliando e qualificando a sua partici-
pação . Adaptou-se o desenho de programas e políticas de maneira que
fossem incluídas como beneficiárias diretas e desenvolveram-se ações
afirmativas, destinando-lhes recursos e oportunidades específicas, além
da promoção de ações de capacitação e qualificação das suas demandas
na produção .
Para ampliar a participação delas no PRONAF e garantir a sua in-
clusão na gestão do crédito familiar, varias medidas foram adotadas . A
partir do Plano Safra da Agricultura Familiar 2004/2005, a Declaração
de Aptidão (DAP) ao PRONAF passou a ser feita obrigatoriamente
em nome do casal . Criaram-se instrumentos específicos de financia-
mento dirigidos às mulheres rurais de caráter individual e coletivo,
capacitaram-se milhares de trabalhadoras rurais, gestores e gestoras,
além de agentes financeiros e apoiaram-se diversas ações de difusão de
experiências de acesso das mulheres ao PRONAF Mulher .
A Política Nacional de Assistência Técnica e Extensão Rural (PNATER)
passou a contar com uma Política Setorial de Assistência Técnica e Exten-
são Rural (ATER) para as Mulheres, a fim de fortalecer a organização pro-
dutiva, promover a agroecologia e a produção de base ecológica, ampliar
o acesso às políticas públicas, especialmente as voltadas para a produção,
comercialização e fortalecimento dos empreendimentos econômicos, e
apoiar a articulação dos(as) atores envolvidos nesta política em redes .
As organizações e movimentos de mulheres passaram a contar com
representantes no Comitê de ATER do CONDRAF . Atualmente,
projetos de assistência técnica foram apoiados por meio de Chamadas
Públicas de ATER para Mulheres, capacitando mulheres rurais e ex-
tensionistas sobre esta política . Também foi criada a Rede ATER para
Mulheres, que articula representantes de instituições governamentais e
organizações de mulheres, que prestam serviços de assistência técnica e
extensão rural, com o objetivo de atuar de forma integrada e em con-
sonância com a orientação da política nacional .
Considerando as distintas desigualdades que se combinam entre as
mulheres negras e, em especial, entre as quilombolas, importantes ações
foram realizadas para ampliar a gestão econômica e a garantia dos direi-
tos territoriais sob orientação do conceito de etnodesenvolvimento .
Buscando ampliar o debate sobre os direitos das mulheres rurais, duas
outras iniciativas importantes foram realizadas . A primeira foi a pro-
moção de estudos e pesquisas com vista à promoção de reflexões sobre
a realidade das mulheres rurais e sobre a avaliação das políticas públicas
em curso e seu impacto sobre as mulheres . Este foi o trabalho desenvol-
vido por meio do Prêmio Margarida Alves de estudos rurais e gênero,
do qual resultaram duas publicações com os trabalhos premiados, o le-
vantamento bibliográfico dos estudos realizados desde a década de 1970
e a promoção de dois editais de pesquisa de nível de pós-graduação em

Coletânea de Artigos 225


226 Brasil Rural em Debate

parceria com a Secretaria de Políticas para Mulheres (SPM) e o Conselho


Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPQ) .
A outra se refere ao alargamento dos direitos das mulheres na agenda
internacional, como parte da política internacional do Governo brasi-
leiro de fortalecimento das relações internacionais no Mercosul e nos
demais países do sul . Desde os primórdios da Reunião Especializada
da Agricultura Familiar (REAF) do Mercosul, esta conta com uma
agenda de trabalho para desenvolver, de forma integrada, políticas para
as mulheres . Como resultado, o Grupo de Mercado Comum (GMC)
aprovou uma resolução apresentada de forma conjunta pela REAF e
pela Reunião Especializada da Mulher no Mercosul (REM), indicando
que os Estados membros deverão promover o acesso igualitário das
mulheres à terra, diminuir a ausência de documentação civil e traba-
lhista e promover uma política especial de crédito para as mulheres na
agricultura familiar e na reforma agrária .
Em 2008, o GMC, segunda instância deliberativa do Mercosul, apro-
vou a resolução que orienta a adoção das diretrizes para a implementação
da transversalidade de gênero nos países membros do bloco econômico .
Para auxiliar os trabalhos, foi instituído o Grupo de Trabalho de Gê-
nero . Além da inserção das mulheres nos diferentes debates da REAF,
esta instância promove a transversalidade de gênero nos demais grupos
de trabalho da REAF e implementa o Programa de Fortalecimento Insti-
tucional de Políticas de Igualdade de Gênero na Agricultura Familiar do
Mercosul, que tem como objetivo analisar de forma critica os programas
de apoio à agricultura familiar e reforma agrária, de maneira a incluir as
mulheres rurais, elaborar políticas para as mulheres e criar instituciona-
lidade interna aos ministérios da agricultura e pecuária e dos institutos
de terra do bloco, a fim de promover política de igualdade de gênero .

5.5 Governar com participação


Para ampliar a participação e o controle social das mulheres nas políticas
públicas, o CONDRAF ampliou o número de representantes mulheres e
incluiu um maior número de organizações de mulheres na sua composi-
ção . Criou-se também o Comitê Permanente de Promoção da Igualdade
de Gênero, Raça e Etnia para aprofundar debates e ações de controle social
das políticas da área, estudar e propor fontes alternativas de financiamento
para viabilizar políticas públicas . Todas as políticas para as mulheres con-
taram com espaços de diálogo, com os movimentos sociais de mulheres e
redes de produtoras, por meio dos chamados Comitês Gestores . Também
foram desenvolvidas ações de incentivo à participação de organizações de
mulheres trabalhadoras rurais, por meio de capacitações de conselheiros
e conselheiras dos órgãos colegiados estaduais, através da inclusão de um
módulo sobre gênero e desenvolvimento rural sustentável .
Desde o inicio de 2009, o MDA vem desenvolvendo, em parceria
com a Sempre Viva Organização Feminista (SOF) e com o Centro Fe-
minista Oito de Março, ações de mobilização, sensibilização e formação
das mulheres rurais, com objetivo de estimular e ampliar sua partici-
pação no processo de gestão social do desenvolvimento territorial, no
acesso às políticas públicas de apoio à produção e à comercialização e
daquelas que garantem seus direitos à cidadania e à terra . Estas ações es-
tão sendo executadas nos Territórios da Cidadania . O trabalho envolve a
realização de diagnósticos sobre a implementação das políticas de gênero
promovidas pelo MDA, o mapeamento de grupos produtivos de mulhe-
res, a constituição de Comitês de Mulheres nos Colegiados Territoriais
e diversos seminários, cursos e oficinas com as agricultoras familiares e
assessoras técnicas, com objetivo de capacitá-las sobre as relações de gê-
nero no meio rural, as desigualdades no acesso às políticas públicas e os
programas e políticas específicas .
É nesse ambiente de diálogo e participação social que a Política de
Desenvolvimento do Brasil Rural foi formulada e que busca traduzir
uma nova geração de políticas públicas, implementadas no período
do Governo Lula, combinada aos desafios futuros que temos e que
devem ser levados em conta para consolidar e alargar a democratização
do campo que está sendo construído, incluindo o enfrentamento das
desigualdades de gênero .

Coletânea de Artigos 227


228 Brasil Rural em Debate

Descreve-se o conteúdo das proposições que as mulheres fizeram na


preparação e elaboração da referida política . Inicialmente, é importante
destacar que a construção da política teve início com a realização da Plená-
ria Nacional de Desenvolvimento Rural Sustentável, em 2006, anteceden-
do a CIRAD . A partir do diagnóstico relativo à ausência do debate sobre
os direitos das mulheres e a escassa participação das mulheres nos órgãos
colegiados, a plenária aprovou diversas diretrizes voltadas para a promoção
da igualdade entre homens e mulheres, além de orientação aos órgãos co-
legiados para buscar uma composição paritária entre homens e mulheres .
Como parte da preparação da I CNDRSS, o Comitê Permanente de
Promoção da Igualdade do CONDRAF realizou a Plenária Setorial de
Mulheres, que preparou o conteúdo dos debates que se realizaram nos
municípios, territórios e estados . Também por decisão do CONDRAF,
foi adotada uma cota mínima de 30% de mulheres nas delegações esta-
duais para a Conferência Nacional . O resultado foi uma delegação de
mulheres equivalente a 44% do universo total e a adoção de um conjun-
to de diretrizes que nortearam a elaboração da Política de Desenvolvi-
mento do Brasil Rural .
Destacam-se, entre elas: a garantia do acesso igualitário à terra e ao
desenvolvimento rural; o reconhecimento da contribuição das mu-
lheres na preservação da biodiversidade e na produção e transição
para a agroecológica; a participação das mulheres na gestão econô-
mica da família e das organizações coletivas; o reconhecimento da
dimensão não monetária da economia e a centralidade que as mu-
lheres têm neste circuito; a promoção da socialização dos cuidados
na família e nas comunidades; a ampliação do acesso à renda própria
das mulheres como parte da estratégia de promoção da autonomia
econômica; a ampliação da participação e o controle social das mu-
lheres nas políticas públicas de desenvolvimento rural; a efetivação
do direito de ir e vir e de exercício dos direitos de cidadã indepen-
dente de outros membros da família; e, por fim, o desenvolvimento
de políticas para as mulheres nas iniciativas de integração regional no
Mercosul e na América Latina .
5.6 O Brasil rural também para as mulheres rurais
Para que o Brasil rural conte com gente e seja sustentável, inclusive
igualitário e solidário, as mulheres devem estar presentes e gozar de
igualdade frente aos homens . Os princípios, objetivos e diretrizes es-
tratégicas da política afirmam isso claramente .
A referência à superação do patriarcado como parte da herança his-
tórica, que precisa ser superada a partir da democratização do meio
rural, é um dos princípios desta política . Acrescenta-se a este o reco-
nhecimento das desigualdades de gênero e a afirmação da necessidade
de assegurar a participação igualitária das mulheres, como parte do
princípio da inclusão nos mecanismos de democratização política, so-
cial, econômica e cultural .
Para além do princípio da igualdade, como parte da transformação
das relações de poder na esfera pública e privada; a necessidade de se
reconhecer a autonomia de cada sujeito político; e a busca pela equi-
dade no acesso às política públicas, incluindo mudanças estruturais nas
instituições públicas . Princípios que se anunciam de forma integrada
com os de soberania, solidariedade, diversidade e sustentabilidade .
Nos objetivos da política se inscreve a garantia do papel estra-
tégico dos espaços rurais no desenvolvimento rural, valorizando a
igualdade de gênero e a garantia do acesso aos direitos com equida-
de à população .
Por fim, as diretrizes estratégicas integram a conquista de con-
dições de vida digna e de igualdade de oportunidades, incluindo a
redução da pobreza e das desigualdades sociais, para promover a in-
clusão social, a igualdade de oportunidades para os segmentos sociais
excluídos de direitos e de acesso às políticas públicas, com o fortale-
cimento do Estado, do protagonismo dos atores e da gestão social,
além da promoção da dinamização econômica, inovação tenológica e
sustentabilidade e a potencialização da diversidade e multifunciona-
lidade dos espaços rurais .

Coletânea de Artigos 229


230 Brasil Rural em Debate

5.7 Considerações finais


A partir destas reflexões, podemos constatar que a redistribuição dos
recursos econômicos em favor das mulheres e a democratização das re-
lações de gênero na família e na sociedade são constituintes da agenda
do Estado em prol do desenvolvimento .
Considerando as conquistas obtidas no último período, devemos não
apenas assegurar a efetivação dos direitos plenos das mulheres e a pro-
moção da sua autonomia econômica, aprofundando e ampliando ações
em curso, mas integrando esta dimensão no desenvolvimento rural . A
Política de Desenvolvimento do Brasil Rural não se logrará com a mera
criação de oportunidades no acesso a políticas públicas ou apenas parte
das estratégias previstas na Política . Por este motivo, o anúncio da in-
clusão da perspectiva de gênero como parte de um enfoque transversal
deverá não apenas fortalecer a presença das mulheres na gestão social, na
preservação ambiental, na reforma agrária, no respeito aos direitos hu-
manos e no direito à documentação, mas também nas demais estratégias
e ações previstas nos eixos estruturantes da Política .

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Coletânea de Artigos 231


232 Brasil Rural em Debate

6. Juventude rural e o
desenvolvimento rural
sustentável*

Atualmente, no Brasil, há um processo de mobi-


lização social e política sobre e a partir da temática
da Juventude, que se expressa nas pesquisas reali-
zadas em âmbito nacional, encontros de jovens de
partidos políticos, movimentos sociais e sindicais
rurais e urbanos . Assim, o Conselho Nacional de
Desenvolvimento Rural Sustentável (CONDRAF),
ao reconhecer esta mobilização e processo históri-
co, criou o Grupo Temático da Juventude Rural
(GTJR), conferindo à Juventude Rural um locus
para consolidar sua organização, visto se tratar do
público beneficiário da maior parte das políticas
públicas imbricadas com o desenvolvimento rural
sustentável e solidário .
Cabe considerar que a preocupação em traçar di-
retrizes e formular políticas públicas para a juventude
é recente no Brasil . Esse fato pode ser evidenciado,
por exemplo, a partir de 2005, quando o tema passa
a ser institucionalizado por parte do governo federal,
com a criação da Secretaria Nacional da Juventude,
vinculada à Presidência da República, com o objetivo
de elaborar políticas direcionadas para a população
jovem . Uma das iniciativas de destaque da Secreta-
ria foi a institucionalização do Conselho Nacional
*
Grupo Temático de da Juventude, composto por 2/3 (dois terços) de re-
Juventude Rural do
CONDRAF presentantes da sociedade civil (diversas entidades,
organizações e movimentos sociais) e 1/3 (um terço) de representação
governamental .
Essas iniciativas ocorreram em meio a um contexto de intenso debate
promovido por entidades representativas da juventude, urbana e rural, a
partir de questões relativas aos(às) jovens na sociedade, seus direitos e rei-
vindicações em um processo de reconhecimento, construção e legitimação
do jovem como agente social e político .
Uma das formas de se perceber a importância desse reconhecimen-
to pode ser observada a partir da inclusão do tema da juventude em
diferentes instâncias governamentais, resultando na implementação de
programas direcionados para esse público .
A juventude rural, especialmente quando vinculada à agricultura fa-
miliar e camponesa, possui especificidades que expressam os diferentes
papéis que lhes são atribuídos ou esperados – essencialmente diferentes
dos que incidem sobre jovens pertencentes a outros contextos socio-
econômicos, considerando também a dimensão do binômio campo-
-cidade, principalmente no que se refere à influência deste binômio na
constituição dos sujeitos, impactando, portanto, na diferenciação das
demandas e necessidades dos(as) jovens rurais –, pois são vistos como
uma categoria-chave para a reprodução social do meio rural no Brasil .
Por isso, a transferência de jovens para os espaços urbanos, mais do
que parte do movimento demográfico geral do processo de urbani-
zação das sociedades industrializadas contemporâneas, tem sido vista
como um problema, na medida em que contribui para o esvaziamento
do meio rural (Ferreira e Alves, 2009) .
Atualmente, no Brasil, aproximadamente 8 milhões de jovens bra-
sileiros vivem em áreas rurais . Dentre as principais questões acerca do
êxodo rural, percebe-se que a mobilidade dos(as) jovens do campo
para a cidade tem sido um fator de grande influência (CASTRO, E .G .
et al 2009) . Isso fica claro com os dados de que os maiores índices de
migração no meio rural brasileiro ocorrem entre homens de 20 a 24
anos e entre mulheres de 15 a 19 anos (MDA, 2009) .

Coletânea de Artigos 233


234 Brasil Rural em Debate

Conforme Ferreira e Alves (2009), para os(as) jovens que vivem no


meio rural, as oportunidades de trabalho e construção de autonomia
são mais difíceis, pois se inserem em padrões culturais, que operam
com a lógica da continuidade da atividade agrícola, em estreita re-
lação com o tamanho da terra a que estejam vinculados por laços de
família . Assim, a transmissão da propriedade – e sua continuidade –,
que passa pelos critérios de sucessão/herança, constitui um dos fatores
que provocam a desestabilização da agricultura familiar e camponesa
e o afastamento dos(as) jovens das lidas agrícolas . Dentre esses dados,
o conjunto de desigualdades e a falta de condições dignas de vida no
meio rural do Brasil, além de demonstrar dificuldades, apresentam um
cenário propenso para a criação e a consolidação de políticas públicas
que estimulem a permanência dos(as) jovens no meio rural .
Diante desse cenário, o CONDRAF percebeu a necessidade de cria-
ção de um grupo temático especifico para discutir as questões relativas
à juventude rural . Assim, é criado o GTJR, por meio da Resolução nº
66, publicada no Diário Oficial da União nº 226, de 20 de novembro
de 2008, com a finalidade de fortalecer a articulação entre as diversas
políticas públicas para apoiar a construção do pacto da juventude no
que se refere às demandas e necessidades da juventude rural .
O Grupo tem por competência: (1) formular proposta de política do
CONDRAF para a juventude rural, com base nas demandas dos(as) jo-
vens e nas resoluções da I Conferência Nacional de Desenvolvimento Ru-
ral Sustentável e Solidário (CNDRSS); (2) propor a adequação e focaliza-
ção de programas para a juventude rural sob a responsabilidade de outros
Ministérios, de forma integrada às ações do Ministério do Desenvolvi-
mento Agrário (MDA); (3) consolidar essas propostas em torno do Plano
Nacional de Juventude, de forma articulada e coordenada; e (4) promover
o debate em torno do pacto da juventude, de modo a efetivar parâmetros e
diretrizes da política nacional de juventude, por meio da articulação entre
agentes governamentais, sociedade civil e movimentos juvenis .
O GTJR do CONDRAF é integrado pelos seguintes ministérios e
órgãos: MDA e Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária –
INCRA/MDA; Ministério do Trabalho e Emprego (MTE); Ministério
da Educação (MEC); Ministério da Saúde (MS); Ministério do Meio
Ambiente (MMA); Ministério do Desenvolvimento Social e Combate à
Fome (MDS); e Secretaria Especial de Políticas de Promoção da Igual-
dade Racial da Presidência da República (SEPPIR) . Também participam
desse espaço a Secretaria Nacional da Juventude e a Secretaria Especial
de Aqüicultura e Pesca (SEAP/PR), além de organizações da sociedade
civil, tais como: Confederação Nacional dos Trabalhadores na Agricul-
tura (CONTAG); Federação dos Trabalhadores na Agricultura Familiar
(FETRAF Brasil); Pastoral da Juventude Rural (PJR); União das Coo-
perativas de Agricultura Familiar e Economia Solidária (UNICAFES);
Rede de Centros Familiares de Formação por Alternância (Rede CE-
FFAs); Coordenação Nacional dos Quilombos (CONAQ); Serviço de
Tecnologia Alternativa (SERTA); Escola de Formação Quilombos dos
Palmares (EQUIP); Movimento de Mulheres Trabalhadoras Rurais do
Nordeste (MMTR-NE); Federação Nacional dos Trabalhadores da As-
sistência Técnica e Extensão Rural e do Setor Agrícola do Brasil (FA-
SER), Comissão Nacional dos Povos Indígenas, Instituto Aliança com
o Adolescente (IAA); Conselho Nacional dos Seringueiros (CNS) e o
Movimento de Organização Comunitária (MOC) . Por fim, o GTJR
conta também com uma equipe da Universidade Federal Rural do Rio
de Janeiro, que atua como assessoria técnica .
No âmbito do GTJR, as discussões sobre as políticas públicas di-
recionadas a temática da juventude rural, ou em interface com esta,
são uma constante . Um dos fatores que contribui para qualificar essa
discussão no grupo é a especificidade de sua composição, já que abarca
órgãos do governo, organizações da sociedade civil, movimentos sin-
dicais e sociais que, de forma integrada, debatem as pautas relativas à
juventude rural .
Cada órgão do governo ou da sociedade civil manifesta suas especifici-
dades de organização e demandas, tornando o GTJR um espaço amplo e
representativo . Essa composição é realçada pela frequência das reuniões
do Grupo e a participação das entidades da sociedade civil e do governo,

Coletânea de Artigos 235


236 Brasil Rural em Debate

que estimula um ambiente de diálogo no sentido de contribuir para a


formulação de uma política ampla para a juventude rural .
O plano de trabalho proposto pelo GTJR, para colaborar com o deba-
te de juventude no âmbito do CONDRAF, prevê quatro produtos: (1)
contextualização e mapeamento das políticas públicas, propostas, proje-
tos e programas voltados para a juventude rural; (2) contextualização e
mapeamento das ações internacionais para a juventude rural; (3) formu-
lação de diretrizes para compor a política nacional de desenvolvimento
rural no que se refere às especificidades e demandas da juventude rural; e
(4) proposição de estratégias para uma política de juventude rural .
Para contribuir com o processo de elaboração desses produtos, os
membros do GTJR colocaram em pauta a discussão de quais propostas
relativas à juventude rural no Brasil se configurariam como políticas
estratégicas para o fortalecimento da agricultura familiar e da supera-
ção dos seus dilemas sucessórios, bem como do Programa Nacional de
Crédito Fundiário (PNCF) .
Sob essa perspectiva, o GTJR debateu e definiu quatro grandes
eixos de atuação . O primeiro eixo trata do “Acesso à Terra”, que tem
como diretriz a garantia da reforma agrária ampla, massiva e de qua-
lidade, e do acesso à terra ao jovem rural . O segundo eixo definido
trata do “Trabalho e Renda”, tendo como diretriz a garantia e o apoio
ao jovem e à jovem rurais para organização da produção familiar e
camponesa sustentável, capaz de gerar trabalho e renda em condi-
ções decentes . O eixo seguinte é relativo ao tema “A Educação do,
no e para o Campo e Qualidade de Vida”, o qual tem como diretriz
a garantia da educação do e no campo, em suas diversas etapas e
modalidades . O quarto e último eixo, discutido no transcorrer das
reuniões do GTJR, trata da “Participação e Organização Política da
Juventude Rural” . O GTJR desenvolveu as seguintes diretrizes por
eixos temáticos no seu plano de trabalho, dando destaque para:
Acesso à Terra: garantir a reforma agrária ampla, massiva e de
qualidade bem como o acesso à terra ao jovem e à jovem rural,
por meio do:
1 . cumprimento e ampliação das metas do Plano Nacional de Re-
forma Agrária;
2 . revisão dos índices de produtividade para a desapropriação de
terras para fim de reforma agrária;
3 . inclusão da juventude, na faixa etária de 18 a 29 anos, no ca-
dastro do INCRA, independente do estado civil e, em especial,
as jovens rurais; e
4 . reestruturação dos programas complementares à reforma agrá-
ria, em especial, o Programa Nacional de Crédito Fundiário,
observando as especificidades regionais, a diminuição de juros,
ampliação para todos estados e revisão do teto de financia-
mento .
Trabalho e renda: garantir e apoiar o jovem e a jovem rural
para organização da produção familiar e camponesa sustentá-
vel, capaz de gerar trabalho e renda em condições decentes,
por meio do:
1 . estímulo e diversificação da produção;
2 . fomento da produção sustentável baseada na agroecologia, das
agroindústrias familiares, da permacultura, da agrofloresta e do
extrativismo sustentável;
3 . investimento em e incentivo a tecnologias alternativas apro-
priadas à agricultura familiar e camponesa adequadas à realida-
de local e regional;
4 . promoção da comercialização direta da produção da agricultu-
ra familiar e camponesa e da formação de cooperativas;
5 . incentivo às atividades não agrícolas, a fim de promover a gera-
ção de renda e desenvolvimento rural sustentável;

Coletânea de Artigos 237


238 Brasil Rural em Debate

6 . criação de projetos de estruturação do meio rural, garantin-


do infraestrutura básica de acesso e escoamento de produção,
como a melhoria das estradas e transportes;
7 . ampliação de programas que visem à desburocratização da for-
malização de cooperativas, à capacitação para a gestão e investi-
mentos financeiros diferenciados, incentivando o cooperativis-
mo e a economia solidária;
8 . garantia do beneficio do seguro-desemprego para jovens, na faixa
etária de 16 a 29 anos, trabalhadores rurais assalariados no perí-
odo das entressafras, e para os(as) jovens ribeirinhos e pescadores
em períodos de piracema e defeso;
9 . priorização dos(as) jovens resgatados do trabalho escravo ou precá-
rio, para a inserção em políticas públicas de formação, geração de
renda, trabalho e melhoria de autoestima; e
10 . garantia de crédito e assistência técnica diferenciada para a juventude
rural, camponesa e ribeirinha, respeitando a diversidade e os interes-
ses das diversas comunidades rurais, por meio das seguintes ações:
10 .1 reestruturar a política de crédito para a juventude rural, con-
solidando o Programa Nacional de Fortalecimento da Agricul-
tura Familiar - Jovem (PRONAF-Jovem), a partir da desbu-
rocratização do acesso, promoção de capacitação técnica para
a produção e gestão dos recursos, garantindo a autonomia do
jovem, qualificação do atendimento dos técnicos e agentes ban-
cários e revisão dos critérios para acesso ao crédito; e
10 .2 fomentar ações de qualificação da juventude rural, para que
possam atuar como agentes multiplicadores .
Educação do, no e para o Campo e Qualidade de Vida: garantir
a educação do e no campo, nas diversas etapas e modalidades, por
meio das seguintes ações do poder público:
1 . erradicação do analfabetismo entre os(as) jovens rurais, com
garantia de seu ingresso nos demais níveis de ensino;
2 . formação inicial e continuada de educadores do campo, a fim de
garantir a formação relativa às especificidades do campo;
3 . valorização da carreira dos profissionais da educação do e no
campo, a partir do seu ingresso por concurso público, da criação
de plano de carreira, cargos e salários específicos para os profis-
sionais de educação que trabalham nas escolas do campo, esti-
mulando sua permanência na carreira e na educação do campo,
assegurando benefícios de moradia nas comunidades rurais;
4 . garantia de educação básica, técnica e profissionalizante, com in-
fraestrutura adequada nas escolas do, no e para campo;
5 . inclusão digital da população jovem rural, por meio de postos digi-
tais comunitários, com a instalação de torres repetidoras e habilita-
ção de provedores públicos, priorizando o sistema de banda larga;
6 . garantia de transporte público (intracampo) de qualidade para
os(as) jovens estudantes, facilitando o seu acesso às escolas no
meio rural;
7 . garantia da interiorização da universidade pública, com cursos e
metodologias voltadas às diversas realidades da agricultura fami-
liar e camponesa, garantindo o acesso dos(as) jovens rurais a essas
instituições;
8 . garantia da expansão, incentivo e apoio financeiro às experiên-
cias de metodologia da alternância como a rede CEFFAs e ou-
tras iniciativas da sociedade civil, respeitando a sua autonomia
e gestão democrática pelos agricultores e agricultoras familiares
e camponeses e camponesas;
9 . institucionalização da política de Educação do Campo nas es-
feras municipais;
10 . revisão dos projetos político-pedagógicos das escolas agrotécni-
cas, para capacitar técnicos comprometidos com a agricultura
familiar e camponesa e com um modelo de desenvolvimento
sustentável e solidário;

Coletânea de Artigos 239


240 Brasil Rural em Debate

11 . garantia de que todas as formas de educação do campo traba-


lhem o desenvolvimento integral do jovem, não se restringindo
à capacitação técnica;
12 . capacitação técnica de jovens para atuarem como agentes am-
bientais, visando à sustentabilidade ambiental, à agroecologia,
às agroindústrias familiares, ao resgate das sementes crioulas e
atividades não agrícolas, como o turismo, no meio rural;
13 . aproximação da escola e das universidades das realidades e ne-
cessidades da agricultura familiar, contribuindo para o desen-
volvimento de tecnologias apropriadas, por meio da pesquisa,
extensão, programas de estágios de vivência e intercâmbio;
14 . promoção de programas de formação de jovens para participação
política nas estruturas da educação do campo, para garantir a afir-
mação dos(as) jovens rurais, como sujeitos políticos e de direitos;
15 . implementação das diretrizes operacionais para a educação do
campo, a partir de um diálogo com a sociedade;
16 . ampliação e consolidação de programas específicos de elevação
da escolaridade, de profissionalização e de inclusão cultural de
jovens rurais, camponeses e ribeirinhos, especialmente o Pro-
grama Nacional de Inclusão de Jovens (ProJovem Integrado);
17 . consolidação e ampliação do Programa Nacional de Educação
na Reforma Agrária (PRONERA) para todo o público da agri-
cultura familiar e camponesa, garantindo recursos específicos
para o seu desenvolvimento .
Esporte e Cultura: estimular a prática de esporte, o acesso à cul-
tura e ao lazer no campo, promovendo eventos esportivos e cul-
turais no meio rural resgatando assim a cultura popular e tradi-
cional das comunidades rurais .
Saúde: garantir o acesso à saúde pública e de qualidade, por meio
das seguintes ações:
,1 . assegurar o acesso qualificado ao Sistema Único de Saúde
(SUS), em todos os níveis de atendimento, a partir da criação
de postos de saúde nas comunidades rurais, proporcionando o
respeito às especificidades geracionais e regionais dos(as) jovens
rurais e um maior acesso ao planejamento familiar;
2 . criar programas específicos de tratamento e campanhas de
prevenção às Doenças Sexualmente Transmissíveis e à AIDS,
à gravidez na adolescência e a qualquer tipo de violência física
ou psicológica; de combate ao alcoolismo e de esclarecimento
sobre os efeitos do consumo de drogas lícitas e ilícitas;
3 . melhorar e ampliar o Programa de Saúde da Família (PSF),
desenvolvendo uma formação continuada de agentes comuni-
tário de saúde que inclua a temática juventude rural; e
4 . estimular a medicina alternativa e o cultivo das plantas medicinais .
Participação e organização política da juventude rural:
1 . garantir o controle social das políticas públicas para a juventude
rural, por meio da participação juvenil, com direito a voz e voto,
nos Conselhos de Juventude e nos demais que exerçam o controle
social das políticas públicas voltadas para o meio rural;
2 . gerar capacidade de influência intergeracional das juventudes nas
decisões e nos espaços políticos e estratégicos, promotores de po-
líticas públicas de desenvolvimento rural sustentável;
3 . incluir os(as) jovens rurais como sujeitos políticos, econômicos,
sociais e culturais, garantindo sua autonomia e acesso aos seus
direitos e às políticas públicas, respeitando as suas diferenças de
classe, gênero, geração, raça, etnia, religião e orientação sexual;
4 . fortalecer a presença dos(as) jovens rurais na gestão e con-
trole social, no crescimento econômico, na eliminação das
desigualdades sociais e nos princípios e valores do projeto de
futuro que resultam das orientações estratégicas emanadas
na I CNDRSS;

Coletânea de Artigos 241


242 Brasil Rural em Debate

5 . criar, ampliar e garantir políticas públicas que promovam o prota-


gonismo juvenil nas atividades rurais e em experiências produtivas
para a geração de renda, facilitando a sua permanência no campo;
6 . fortalecer e fomentar coletivos de jovens rurais nos espaços or-
ganizativos da sociedade civil e na institucionalização de espa-
ços nas esferas governamentais;
7 . sensibilizar as entidades participantes dos Colegiados Territo-
riais para a importância da participação da juventude rural;
8 . fomentar e adotar instrumentos que promovam uma partici-
pação efetiva da juventude nas câmaras temáticas de juventude
rural dentro dos Colegiados Territoriais, com a participação de
entidades que a representam; e
9 . promover a igualdade e equidade social, cultural e econômica da
juventude rural, pactuando uma relação federativa ajustada entre
União, estados, municípios, territórios e a sociedade civil, no sen-
tido de enfrentar os desafios e problemas identificados nos territó-
rios e nas regiões ainda não territorializadas .
O GTJR, além dos debates sobre políticas públicas, atua em diversos
espaços do governo federal e da sociedade civil com o objetivo de ampliar
e dar visibilidade à temática da juventude rural, de contribuir para articu-
lação de programas e experiências de políticas públicas e de colaborar na
formulação direta de projetos de lei e agendas nacionais que considerem a
juventude rural como prioridade . Assim, o GTJR vem colaborando tam-
bém com a Secretaria Nacional de Juventude, com o Conselho Nacional
de Juventude, com o Plano Nacional de Juventude e com a Agenda Na-
cional de Trabalho Decente para a Juventude no Brasil .
Vale destacar a nossa contribuição na construção da Política de De-
senvolvimento Brasil Rural, considerando a participação dos(as) jo-
vens que, mesmo representando um terço da população que vive no
meio rural, permanecem com dificuldade de acesso à terra e aos demais
meios de produção, bem como aos serviços de saúde, educação, cul-
tura e lazer . Essa situação estimula o êxodo rural, especialmente das
jovens, causando duas grandes consequências: a descontinuidade na
sucessão da agricultura familiar e o envelhecimento da população ru-
ral . Por isso, a juventude é um sujeito social estratégico na construção
do projeto de desenvolvimento sustentável do país .
Diante deste contexto, compreendemos os(as) jovens do campo como
sujeitos integrais, rompendo com a visão de que no meio rural existem
apenas oportunidades de produção agrícola e superando o caráter frag-
mentado das políticas públicas, onde devemos planejá-las de forma inte-
gral e articulada, considerando os espaços de participação social .

Referências Bibliográficas
CASTRO, E . G ., MARTINS, M ., Almeida, S . L . F ., RODRIGUES, M . E . B ., CARVALHO,
J . G . Os Jovens estão indo embora? . Juventude rural e a construção de um ator político . Rio
de Janeiro: Mauad/EDUR, v . 1, 2009 .
MINISTÉRIO DO DESENVOLVIMENTO AGRÁRIO . Secretaria de Reordenamneto
Agrário . Programa Nacional de Crédito Fundiário – PNCF . Linha de financiamento de
combate à pobreza rural e manual de operações . 2009 .

GRUPO TEMÁTICO JUVENTUDE RURAL – GTJR:


Membros e convidados do GT que vem participando das reuniões:

1 . Eryka Galindo 13 . Alineide Nascimento


2 . Maria Divaneide Basilio 14 . Ana Tereza
3 . Raquel Porto Santori 15 . Ionara Albani
4 . Maripaula Ferreira 16 . Alex Nazare
5 . Elisa Guarana 17 . Pedro Luiz Egler
6 . Marcialene Presler 18 . Guilherme Brady
7 . Paulo Mansan 19 . Ursula
8 . Germano de Barros 20 . Dailson Santos
9 . Maria Nagy 21 . Chaisiellen Oliveira
10 . Solange Leite 22 . Isabel Silveira
11 . Angela Gonçalves 23 . Fabiana Guedes
12 . Leticia Amaral 24 . Sergio Barcelos

Coletânea de Artigos 243


Novas
Parte III Políticas
Públicas
246 Brasil Rural em Debate

7. Do uso das noções de


multifuncionalidade e território
nas políticas agrícolas e rurais no Brasil*
Philippe Bonnal
(CIRAD- CPDA/UFRRJ)**
Renato S. Maluf
(CPDA/UFRRJ)***

Introdução
Sabe-se que a emergência do conceito de multifun-
cionalidade da agricultura (MFA) esteve associada
ao reconhecimento oficial que a agricultura produz,
além dos produtos agrícolas – destinados à alimenta-
ção humana e animal, à industria e, eventualmente,
ao transporte da população – outros bens imateriais
e não mercantis apropriados pelas populações rurais
e urbanas . Esse conceito teve um papel importante,
* embora breve, na orientação das políticas públicas de
A abordagem aqui desen-
volvida se vale de elementos alguns países, principalmente, na Europa e na Ásia,
de um projeto em anda-
mento intitulado ‘Pesquisa e
porém, hoje em dia, é pouco evocado pelos gestores de
ações de divulgação sobre o políticas publicas tanto em nível nacional como inter-
tema da multifuncionalida-
de da agricultura familiar e nacional . Isto não significa que ele não continue tendo
desenvolvimento territorial um papel importante na definição de políticas agríco-
no Brasil’; patrocinado pelo
NEAD/IICA, cuja equipe é las e rurais, às vezes, até mesmo de maneira implícita,
composta por pesquisado- embutido em outros conceitos tais como os de desen-
res do CPDA/UFRRJ (co-
ord.), UFSC/CCA, UFRGS/ volvimento territorial e desenvolvimento sustentável .
PGDR, UERGS-FEPAGRO,
EMBRAPA-CNPAM, USP/ No Brasil, é possível afirmar que está
ESALQ, UFES, UFCG e CI-
RAD (França).
em curso, desde meados dos anos 1990, a
**Pesquisador do CIRAD incorporação de elementos do enfoque da MFA
(França) e pesquisador visi- em diversos programas voltados para a agricultura
tante no CPDA/UFRRJ .
familiar, o agroextrativismo e o desenvolvimento
***Professor do CPDA/
UFRRJ. rural, ainda que sem fazer uso da noção . Trata-se,
porém, de uma apropriação fragmentada e acessória ao núcleo central
dos programas públicos cujo foco, em sua maioria, tende a se concen-
trar na dimensão produtiva mercantil da “agricultura familiar” . Uma
mudança desse foco requereria, entre outros, colocar as unidades fami-
liares rurais – e não apenas os produtos gerados pela agricultura fami-
liar – como objeto de atenção dos programas, ampliando deste modo
o enfoque sobre os papéis desempenhados pelas famílias rurais “para
além da produção” (Carneiro e Maluf , 2003) .
Em paralelo à incipiente valorização dos múltiplos papéis cumpridos
pela agricultura familiar, constata-se, também, que as políticas públicas
no Brasil têm caminhado na direção da ‘territorialização’ das suas ações,
inclusive como método de coordenação entre elas . Esse movimento tem
acarretado algumas rupturas com abordagens anteriores, porém, coloca
um conjunto de questões derivadas do fato de serem distintos os sig-
nificados atribuídos à noção de território e, portanto, os usos da refe-
rência territorial entre os setores de governo e respectivos programas .
Seria necessário acrescentar, aos enfoques sobre a MFA e os territórios, a
dimensão da sustentabilidade dos processos de desenvolvimento que se
tornou referência obrigatória nos programas e ações públicas em face da
relevância da temática ambiental . Generaliza-se a perspectiva do desen-
volvimento territorial sustentável . Não obstante, ultrapassaria os limites
do presente capítulo englobar também essa dimensão .
Nesse contexto é que serão abordados os conceitos de MFA e de territó-
rio, iniciando com algumas considerações sobre sua evolução recente . Em
seguida, analisa-se a maneira como a multifuncionalidade e o enfoque terri-
torial vêm sendo utilizados nas políticas para a agricultura familiar no Brasil,
precisando a articulação entre ambos . Por fim, identificam-se os principais
desafios e oportunidades ligadas à implementação do enfoque territorial e a
sua relação com a MFA .

7.1 Multifuncionalidade, território e as políticas agrícola e rural


7.1.1 O falso-verdadeiro debate sobre o conceito de
multifuncionalidade da agricultura
O conceito de MFA ocupou posição de destaque nos debates na-
cionais e internacionais, entre 1997 e 2003, notadamente em alguns

Coletânea de Artigos 247


248 Brasil Rural em Debate

países da Europa e da Ásia . A preocupação de colocar em relevo as


funções não mercantis de caráter social, cultural e ambiental da agri-
cultura veio à tona, pela primeira vez, na Cúpula da Terra realizada no
Rio de Janeiro, em 1992, quando foram discutidas estratégias de de-
senvolvimento sustentável, principalmente, para os paises mais pobres .
Declarou-se, naquela conferência, que o reconhecimento das referidas
funções da agricultura pelos governos nacionais constituía uma das
condições necessárias para estabelecer um processo de desenvolvimen-
to sustentável1 . Debates públicos em torno da multifuncionalidade
emergiram em várias organizações internacionais, como a Organização
das Nações Unidas para Agricultura e Alimentação (FAO - 1999) que
propunha enfocar as múltiplas funções da agricultura e das terras com
vista a definir políticas de desenvolvimento que assegurassem a susten-
tabilidade a longo prazo da agricultura e do desenvolvimento rural .
Um pouco mais restritivo era o quadro analítico da multifuncionalida-
de acordado pelos países integrantes da Organização para Cooperação
e Desenvolvimento Econômico (OCDE) mencionado adiante .
Inúmeros paises estiveram envolvidos nesses debates, alguns dos quais
chegaram a modificar sua legislação agrícola na direção de promover a
MFA2 . Na União Européia (UE), o conceito teve uma forte repercussão
e chegou a constituir um dos alicerces da reforma da Política Agrícola
Comum (PAC) conhecida como Agenda 2000, com a criação do segun-
do pilar dedicado ao desenvolvimento rural3 . A importância do conceito
de multifuncionalidade no debate europeu daquela época se deveu a
dois quesitos . O primeiro se relacionava com a grande preocupação dos
atores sociais e políticos frente aos problemas induzidos pelo modelo de

1
Condição inscrita na chamada Agenda 21 (capitulo 14, seção A): a revisão da política agrícola, o plane-
jamento e a programação integrada devem ter em conta os “aspectos multifuncionais” da agricultura,
particularmente, em relação à segurança alimentar e à sustentabilidade.

2
Notadamente, a França e o Japão, ambos em 1999, além da Noruega e Coréia do Sul. A Suíça chegou
a inscrever o reconhecimento da MFA, por referendum, na sua Constituição, também em 1999.

3
O artigo 20, da Agenda 2000, refere-se a uma reforma quantitativa e “possível” da PAC, ao lado da
promoção de uma “agricultura multifuncional, durável, competitiva e distribuída por todo o terri-
tório europeu”.
produção intensiva generalizado na Europa a partir da II Guerra Mun-
dial, nos aspectos econômicos (excedentes de produção), ambientais
(poluição dos solos e águas subterrâneas, degradação da paisagem rural),
sanitários (doenças dos animais e contaminação dos alimentos) e sociais
(êxodo rural) . O segundo quesito era o forte apego de um número im-
portante de cidadãos europeus às suas agriculturas familiares nacionais .
No entanto, hoje em dia, apesar do interesse que despertou durante
os anos 1990 e 2000, o conceito de MFA desapareceu, oficialmente, das
agendas internacionais e em um bom número de casos, dos discursos
nacionais sobre a agricultura e o meio rural . A principal razão dessa re-
gressão se localizou no fato de a discussão sobre a MFA ter sido inserida
nas negociações internacionais da Organização Mundial do Comércio
(OMC) – relacionada com as chamadas “considerações não comerciais
sobre a agricultura” (non-trade concerns on agriculture) – de um modo
que não deixou de ser oportunista para todos os protagonistas . O con-
ceito terminou por ficar associado a práticas protecionistas condenáveis
pela ótica livre-cambista, fortalecendo-se, portanto, a oposição a ele pe-
los que propugnavam pela desregulamentação do comércio agrícola4 . A
propósito, em seminário de pesquisadores latino-americanos, realizado
em 2000, observou-se que, apesar da multifuncionalidade ser uma ca-
racterística intrínseca dos agricultores, haveria que retirar a dimensão po-
lítica atribuída ao termo na América Latina, em função das negociações
na OMC (CIRAD, 2000) .
É claro que a ocultação do conceito do vocabulário internacional
não induz a negação de sua pertinência, senão que ela corresponde a
mera manifestação de consenso dentro de um processo de negocia-
ção comercial . Ao contrário, consideramos que a multifuncionalida-
de – ou seja a ligação fundamental dos aspectos sociais, ambientais
e produtivos – deve ser entendida como um fenômeno inerente da

4
Para os “livre-cambistas” como os EUA e o Grupo de Cairns (integrado pelo Brasil), as “preocupa-
ções não comerciais” estariam suficientemente contempladas nas exceções abertas para a formação
de estoques de segurança alimentar, algumas ações de desenvolvimento rural e o enfrentamento
das externalidades da produção agrícola, sempre com base em instrumentos que não provoquem as
chamadas “distorções de comércio”.

Coletânea de Artigos 249


250 Brasil Rural em Debate

atividade agrícola independentemente de seu reconhecimento ou não


pelos poderes públicos . Cabe ressaltar, ainda, que embora a multifun-
cionalidade não seja uma característica específica da agricultura, ela é
particularmente expressiva neste setor pela importância considerável
da interface entre a produção agrícola, a sociedade e o meio ambiente5 .
De fato, o tratamento dado ao conceito da MFA no debate inter-
nacional sobre o comercio agrícola foi amplamente instrumentalizado
pelas necessidades de conformação de grupos de pressão, uma vez que
este conceito é uma noção transversal a vários campos teóricos das
ciências sociais . A melhor ilustração desta asserção é o debate entre as
concepções positivas e normativas da multifuncionalidade no marco
analítico formulado pela OCDE (Oecd, 2001) . A concepção positiva
considera a MFA em termos dos múltiplos produtos (multiple outputs)
da agricultura com vistas a elevar o grau de conjunção (jointness) entre
a atividade agrícola e suas externalidades positivas na forma de produ-
tos não mercadoria (non-commodity outputs), ou reduzir as externali-
dades negativas, por meio de modificações nas formas de cultivo e nas
tecnologias adotadas . Essa concepção se enquadra numa perspectiva de
economia pública coerente com a teoria neoinstitucionalista, limitan-
do a ação do Estado neste caso, estritamente, à correção das deficiên-
cias do mercado caracterizada pela própria existência da externalidade .
Já na concepção normativa, diferentemente, a agricultura é conside-
rada como um setor específico, cuja orientação não mercantil deve ser
definida pela sociedade . Trata-se de uma concepção coerente com uma
análise em termos de economia política . Nesta lógica, o tratamento po-
lítico e econômico da MFA vai além da mera questão da proteção co-
mercial da agricultura, englobando o conjunto de intervenções públi-
cas como força de regulação dos aspectos sociais e ambientais ligados à
atividade agrícola, tema com atualidade permanente . Neste particular,
observa-se que existem duas possibilidades, compatíveis entre si, para
que um país promova a multifuncionalidade de sua agricultura . A pri-

5
Houve intenso debate sobre a tal exceção agrícola, durante os anos 1990 até 2002, tanto nos marcos
da OMC, quanto da OCDE.
meira é a implementação de ações públicas, objetivando fortalecer os
agricultores ou parte deles para que desenvolvam suas atividades con-
sideradas altamente multifuncionais . A segunda é a contratualização
entre o poder público e o agricultor para que este último desempenhe
atividades específicas de índole social ou ambiental que revertam para
a comunidade . Pode-se considerar que a primeira opção é aquela que
foi escolhida no Brasil, mediante políticas voltadas para a agricultura
familiar, enquanto que a segunda teve uma expressão particular em
alguns países europeus, notadamente na França6 .

7.1.2 Território: um conceito polissêmico


plebiscitado mundialmente
A história do conceito de território é totalmente distinta da MFA . Ten-
do emergido há três décadas no campo das ciências sociais, o conceito
de território ganhou força e reconhecimento em muitos países do mun-
do . Ele ganhou espaço desde os anos 1970, notadamente, na Geografia
(territorialização das atividades humanas, territorialização do poder),
Antropologia (relação entre o mundo material e simbólico), Sociologia
(construção e funcionamento dos espaços urbanos e rural) e Economia
(efeito econômico da localização da produção) . Na década de 1980, a
noção de território apareceu nas ciências de gestão e de administração de
empresa, passando a constituir uma estratégia para desenvolver capaci-
dade competitiva . Nos anos 1990, a emergência dos enfoques sistêmicos
e multidisciplinares cristalizou novas abordagens: distritos industriais,
pólos de competitividade, territórios de produtos de identidade, etc .
Ainda nos anos 1990, a promoção de territórios de diferentes naturezas
é recomendada por instituições internacionais como o Banco Mundial,
com as perspectivas de aprimorar a governança pública ou dinamizar as
economias locais .
Polissêmico, o território pode ser considerado como um “concei-
to mala” (Renard, 2002) por carregar diversos sentidos ativados para

6
Na forma dos conhecidos CTEs (Contrato Territorial de Estabelecimento), implementados pela Lei
de Orientação Agrícola de 1999 e eliminados em 2003.

Coletânea de Artigos 251


252 Brasil Rural em Debate

responder a diferentes estratégias e finalidades tais como aprimorar o


sistema de governança, ativar a atividade econômica e reequilibrar situ-
ações econômicas e sociais regionais, entre outras . Contudo, para além
da diversidade conceitual e estratégica, pode-se identificar um elemento
permanente nas recentes concepções (trans)disciplinares do território .
Trata-se da associação entre as dimensões material e imaterial que cor-
respondem, respectivamente, aos elementos constitutivos de uma orga-
nização e às normas, representações e regras que regem a atuação dos
usuários desta organização . O geógrafo Gumuschian (2002) definiu o
território como “( . . .) uma organização bifacial, produto de uma ecogê-
nese na qual são ativados, em um sistema simbólico e informacional,
recursos materiais” . Em se tratando de estratégias de desenvolvimento
territorial, a dimensão material é freqüentemente sinônimo de mercantil
e a imaterial de não mercantil, sendo possível criar uma relação dinâmica
positiva entre as duas dimensões do ponto de vista econômico . Mencio-
nem-se, por exemplo, a cesta de bens proposta por Pecqueur (Pecqueur,
2001) e, especialmente, os pólos de competitividade e clusters de Porter
(Porter, 1985) . O econômico pode também estar atrelado, ou melhor,
nos termos de Granovetter (1985), estar ‘enraizado’ (embedded) no so-
cial e no simbólico, como no caso das sociedades tradicionais .
7.1.3 A interação multifuncionalidade
território como palco para a ação pública no meio rural
A reunião dos conceitos de MFA e de território acarreta a presença si-
multânea das dimensões mercantil e não mercantil, combinação que, por
sua vez, corresponde a diferentes problemáticas e situações de ação públi-
ca . Uma primeira situação corresponde aos territórios definidos para limi-
tar as externalidades negativas ligadas à atividade agrícola ou, ao contrário,
para estimular a produção de externalidades positivas da mesma atividade
agrícola (Mollard, 2002, 2004) . O marco disciplinar dominante é a eco-
nomia pública, mais precisamente, a teoria do bem estar . O território cor-
responde, nesse caso, a um espaço de problema, onde o poder público tem
que responder a perguntas tais como: Como reduzir o nível da poluição
agrícola do lençol freático? Como valorizar melhor a paisagem agrária com
atividades de agroturismo? Baseadas em uma concepção positiva da multi-
funcionalidade, as respostas do poder público são de índole regulamentar
e econômica (multas, taxas ou incentivos específicos) .
Situação distinta é aquela dos territórios construídos em torno de um
ou vários projetos coletivos voltados para valorizar a MFA . Nesse caso, a
agricultura não é apenas enfocada por meio de suas externalidades posi-
tivas ou negativas, ela se torna o alvo da atenção dos atores sociais para
identificar e desenvolver novas funções em interação com a sociedade
e o meio ambiente . Esta maneira de enfocar a MFA é coerente com a
concepção normativa, porém, com diferenças entre os projetos em fun-
ção do peso dado ao componente econômico . Nos projetos que seguem
uma lógica de economia territorial, o território é concebido como um
espaço geográfico de construção de ativos específicos, condição estimada
necessária para criar bens diferenciados (Pecqueur, 2002)7 . A multifun-
cionalidade é, nestes casos, o resultado de um processo de construção
específico do território, construção cujo principal objetivo econômico é
incitar o consumidor externo a se deslocar para dentro do território para
ter acesso a uma cesta de bens específicos . Já quando o peso econômico
não domina o projeto coletivo – enquadram-se aqui projetos diversifi-
cados nas áreas alimentar, ambiental, saúde, etc . – o objetivo principal
é a valorização de uma ou varias funções da agricultura . As referências
teóricas geralmente mencionadas são as que tratam das ações coletivas
(Crozier e Friedberg, 1977; Olstrom, 1982) . Em ambos os casos, o po-
der público tem um papel de amparo às iniciativas locais por meio de re-
gulamentações e financiamentos específicos, frequentemente, por meio
de licitações publicas .
Uma terceira situação é o território de identidade, correspondendo ao
espaço geográfico ocupado por uma comunidade cujas normas coletivas
se diferenciam do resto da coletividade nacional . Neste caso, o território é
concebido como um espaço físico e simbólico de produção dos bens ma-
teriais e imateriais necessários à reprodução dessa comunidade . A MFA da
agricultura se expressa mediante a diversidade das formas de intercâmbio
e reciprocidade em torno dos produtos agropecuários, de acesso aos recur-
sos naturais (terra, água) e das relações de trabalho . As referências teóricas
7
Entende-se por ativos específicos os recursos que não podem (ou poderiam dificilmente) ser trans-
feridos para fora do território. Na mesma lógica, os bens diferenciados são os produtos (materiais e
imateriais) que só se encontram neste território.

Coletânea de Artigos 253


254 Brasil Rural em Debate

mobilizadas integram a literatura antropológica clássica como Mauss


(Mauss, 2001 [1950]), ou Polanyi (Polanyi, 1980 [1944]) .

7.2 Multifuncionalidade e enfoque territorial


nas políticas agrícolas e rurais

7.2.1 Estímulos e obstáculos ao enfoque da multifuncionalidade


Como antecipado na Introdução, a análise dos programas públicos
voltados para a agricultura familiar e a promoção do desenvolvimento
rural no Brasil permite observar a incorporação de elementos do enfoque
da MFA . De fato, o contexto recente se caracteriza pela existência de
vários fatores que estimulam a incorporação do enfoque da MFA, ainda
que não sejam poucos os fatores que restringem essa possibilidade .
O primeiro, e talvez mais importante fator estimulador, deriva das
modificações que vêm ocorrendo, há algum tempo, nas diretrizes e obje-
tivos gerais dos programas voltados para a agricultura familiar e reforma
agrária . Mais recentemente, no Governo Lula, há programas que fazem
uso explícito da noção de multifuncionalidade, embora aplicada a temas
variados (agricultura, agricultura familiar, espaço rural, territórios), nem
sempre com o mesmo significado portado pelo conceito de MFA .
No Plano Nacional de Reforma Agrária encontramos a seguinte
afirmação: “A agricultura familiar promove uma ocupação mais equi-
librada do território nacional e por meio de sua multifuncionalidade e
da pluriatividade impulsiona diferentes atividades econômicas e o de-
senvolvimento territorial” (MDA, 2004a: 14) . Já no PROAMBIEN-
TE, “( . . .) o espaço rural adquire um novo papel perante a sociedade,
pois seus atores sociais deixam de ser apenas fornecedores de produtos
primários, sendo valorizado o caráter multifuncional da produção eco-
nômica associada com a inclusão social e conservação do meio am-
biente” (MMA, 2003: 4) . Neste ultimo caso, constata-se que a asser-
ção da multifuncionalidade é totalmente coerente com a concepção
normativa da OCDE antes mencionada . Embora não recorra à noção
de multifuncionalidade, cabe mencionar a diversificação das linhas de
atuação do Programa Nacional de Fortalecimento da Agricultura Fa-
miliar (PRONAF) que incorpora novos elementos na política de cré-
dito para a agricultura familiar .
A emergência de novas diretrizes reflete a intensificação das críticas
aos impactos sociais e ambientais do modelo de modernização agrícola
hegemônico e, consequentemente, o crescimento da retórica não pro-
dutivista no trato da agricultura e do mundo rural, ainda que sejam
muitas as manifestações de rendição ao linguajar próprio do agrone-
gócio representante daquele modelo . A propósito, subjacente a esse
debate está a consolidação conceitual e político-institucional da dife-
renciação entre dois tipos de agricultura, o familiar e o do chamado
agronegócio, em si mesma uma expressão das múltiplas dimensões e
papéis sociais que podem ser associados à atividade agrícola . Sem des-
conhecer as interações existentes entre esses tipos e muito menos a
importância dos “negócios” para a agricultura familiar, a referida dife-
renciação aponta para caminhos distintos e favorece a consideração de
questões outras que não apenas a eficiência produtiva .
Assim, a valorização da agricultura familiar se associa com antigas
preocupações relacionadas com equidade e sustentabilidade, bem como
com a abertura a ‘novos temas’ entre os quais se destacam as questões de
gênero e geracionais, o reconhecimento do rural não agrícola e a recente
difusão do enfoque agroecológico . Proposições para grupos populacio-
nais específicos, como as comunidades rurais negras quilombolas e os
povos indígenas, têm sido geradas no âmbito dos programas de reforma
agrária e de apoio à agricultura familiar . Preocupações desse tipo podem
e têm sido, de fato, respondidas com base em abordagens convencio-
nais, não raro unidimensionais no trato do papel da agricultura; tudo
se resume à viabilização econômica, por mecanismos de mercado, des-
sa atividade como de qualquer outra . Nosso argumento, ao contrário,
sustenta a necessidade de uma construção diferenciada que evidencie a
contribuição aportada pelo enfoque da MFA quando aplicado a realida-
des com o grau de heterogeneidade social e ambiental que caracteriza o
mundo rural no Brasil .

Coletânea de Artigos 255


256 Brasil Rural em Debate

A concentração das atenções na dimensão econômica e seus


requisitos em termos produtivos e de mercado resulta em estra-
tégias de fortalecimento da agricultura familiar assentadas em
projetos associativos de agregação de valor à produção primária
por meio da agroindustrialização de pequeno e médio porte e da
diferenciação dos produtos (orgânicos, artesanais, típicos, etc .),
como se verifica de maneira generalizada no país . Contudo, mes-
mo aqui são geradas dinâmicas que, embora econômicas na sua
motivação primeira, fazem emergir outras dimensões associadas
à segurança alimentar, diversidade cultural e ambiental, repro-
dução do tecido social, entre outras, sempre tendo a agricultura
familiar como elemento constitutivo dessas dinâmicas . A contri-
buição dos programas públicos nessa direção se faz, entre outras,
pela abertura do mercado institucional de alimentos (compras
governamentais) para pequenos e médios produtores e a conse-
quente regionalização do fornecimento (como tem feito o Pro-
grama Nacional de Alimentação Escolar), ou com programas
de compra direta dos pequenos agricultores para abastecer esses
programas e para a composição de estoques públicos (Programa
de Aquisição de Alimentos da Agricultura Familiar – PAA) .
Ao lado dos fatores que estimulam a incorporação de elementos
do enfoque da MFA nos programas públicos no Brasil, um outro
conjunto não menos relevante de fatores restringem essa incorpora-
ção ou, ao menos, colocam requisitos específicos para que ela possa
ocorrer . Desde logo, mencione-se os elevados índices de pobreza ru-
ral que afetam a grande maioria das famílias rurais em regiões como
o Semiárido nordestino e a Amazônia, bem como um número sig-
nificativo delas que ficaram à margem da chamada modernização
do campo ocorrida na região Centro-Sul do Brasil . Pobreza, nesses
casos, significa precárias condições de vida e reduzida ou inexisten-
te capitalização das famílias rurais8 . A persistência das restrições no
8
Houve importante modificação na condição das famílias beneficiadas pela expansão da previ-
dência social rural nos aspectos do bem-estar e da capacidade de investir das famílias – acres-
cida da recente ampliação dos programas de transferência de renda – porém, ele não é instru-
acesso à terra, que ainda é insuficiente ou precário para um grande nú-
mero de pequenos agricultores, limita as possibilidades produtivas dessas
famílias que, em princípio, poderiam promover a ocupação equitativa e
sustentável de vastos espaços agrários, ao mesmo tempo em que dinami-
zariam seu uso agrícola .
Uma questão de ordem geral que ultrapassa os limites do setorial é
a permanência de restrições orçamentárias que afetam a amplitude e a
implementação dos programas de apoio à agricultura familiar e a in-
tensificação da reforma agrária . Essas restrições têm suas conseqüências
agravadas pelo forte estímulo à ampliação dos cultivos voltados para
a exportação e a produção de agrocombustíveis, com destaque para
as grandes lavouras monocultoras de soja e cana de açúcar, a pecuária
bovina e os vastos plantios de madeira para papel e celulose .
A reprodução socioeconômica das famílias rurais é afetada, dire-
tamente, pela elevada desigualdade social do país que vem sendo en-
frentada com programas de transferência de renda, numa conjuntura
de modesto crescimento do produto e elevado desemprego . Essas
circunstâncias afetam, também indiretamente, a reprodução econô-
mica daquelas famílias pelos constrangimentos que acarretam para a
expansão do mercado doméstico de produtos agroalimentares, prin-
cipal atividade da maioria das famílias rurais .
Por último, as negociações dos acordos comerciais internacionais re-
presentam um fator de permanente incerteza para a trajetória dos pro-
gramas de apoio doméstico aos pequenos agricultores, ao mesmo tempo
em que jogam sobre esses agricultores boa parte do impacto das medidas
de cunho liberalizante já adotadas pelo Brasil . É de se notar a coexistên-
cia, no Governo Brasileiro, de posições liberalizantes estritas (contrárias,
portanto, a práticas protecionistas também no âmbito doméstico) e de
posições mais céticas quanto às possibilidades do livre-comércio e que
buscam acordos comerciais diferenciados que contemplem os interesses
da agricultura familiar .

mento suficiente para oferecer perspectivas de médio e longo prazo para a atividade agrícola, em razão
da elevação da idade média dos(as) responsáveis pelas unidades familiares.

Coletânea de Artigos 257


258 Brasil Rural em Debate

7.2.2 Desafios para a implementação do enfoque territorial


A problemática territorial foi recebida com certo entusiasmo por au-
tores voltados para o estudo da agricultura familiar no Brasil (Abramo-
vay, 2000, Veiga, 2001) . Espera-se, entre outras coisas, que os espaços
rurais, onde predominam a agricultura familiar, sejam capazes de in-
duzir um estilo de desenvolvimento rural mais sustentável, mais justo e
gerador de novas oportunidades econômicas . O enfoque territorial do
mundo rural vem sendo adotado tanto pelos programas especificamente
dirigidos para a agricultura familiar (e para as famílias rurais em geral) e
o desenvolvimento rural, quanto em novos instrumentos como no caso
da incorporação da área rural no Plano Diretor das cidades com mais
de 20 mil habitantes previsto no novo Estatuto das Cidades . A valoriza-
ção das articulações intermunicipais sob diferentes formas, por sua vez,
tende a criar um âmbito mais apropriado para o tratamento de alguns
componentes de programas de desenvolvimento territorial .
A incorporação do enfoque territorial nos programas públicos no Bra-
sil e sua implementação se defrontam com importantes desafios, cuja
análise extrapola o foco central da nossa análise . Limitamo-nos a apon-
tar, de um lado, que os enfoques orientadores dos diversos programas e
setores de governo apresentam uma questão de ordem conceitual pelo
fato de eles se basearem em concepções distintas de território . De outro
lado, há uma questão de ordem espacial ou operacional, referente às in-
terfaces e superposições das respectivas áreas de atuação dos programas .
Nesse sentido, pode-se identificar cinco lógicas que orientam os usos do
enfoque territorial nos processos de descentralização dos programas públi-
cos, a saber: i) dinamização das atividades econômicas; ii) implantação de
infraestrutura física; iii) gestão de recursos naturais; iv) construção de es-
paços de identidades; e v) construção de espaços de governança . Há vários
programas públicos no Brasil portadores de uma ou mais dessas lógicas .
As diferenças de concepção e as inevitáveis superposições corroboram
ser necessária uma perspectiva analítica que verifique os “espaços de coe-
rência”, as consistências e inconsistências dos usos conceituais e práticas
políticas em curso, bem como avalie as iniciativas de coordenar ações e
os espaços de resolução de conflitos . Orientações distintas e, por vezes,
alternativas, tornam mais difíceis os intentos de obter maior coordena-
ção entre os programas governamentais e deles com ações não governa-
mentais, mesmo quando incidem sobre uma mesma unidade espacial .
Cabe fazer uma breve referência às iniciativas de tipo territorial em
programas públicos no Brasil que têm relação mais próxima com nosso
tema, destacando-se três ministérios do atual governo: os Ministérios
do Desenvolvimento Agrário, do Meio Ambiente e da Integração Na-
cional . Ressalta-se, desde logo, que o Plano Plurianual em vigor prevê
que “[a] rica diversidade regional será empregada como um ativo na
regionalização do nosso desenvolvimento, de forma compatível com o
requisito fundamental da sustentabilidade ambiental” (MPOG, 2004) .
A Secretaria de Desenvolvimento Territorial (SDT), vinculada ao Mi-
nistério de Desenvolvimento Agrário, foi criada justamente para apoiar
“( . . .) os processos de construção e implementação de Planos Territoriais
de Desenvolvimento Sustentável” . Um de seus objetivos é “( . . .) contri-
buir efetivamente para o desenvolvimento harmônico de regiões onde
predominem agricultores familiares e beneficiários da reforma e do re-
ordenamento agrário, colaborando para a ampliação das capacidades
humanas, institucionais e da autogestão dos territórios . É meta da SDT
“( . . .) apoiar a organização e o fortalecimento institucional dos atores
sociais locais na gestão participativa do desenvolvimento sustentável dos
territórios rurais e promover a implantação e integração de políticas pú-
blicas . ( . . .) Estas políticas deverão apoiar a formação de infra-estruturas
sociais e econômicas, implementar mecanismos de desenvolvimento e
de proteção social, promover o ordenamento territorial, incentivar a
prática de inovações tecnológicas, sociais e institucionais e promover a
diversificação das economias territoriais .” (MDA, 2004b) .
A integração dos imperativos de um “desenvolvimento territorial
sustentável” também é evidenciada pelos programas setoriais coorde-
nados pelo Ministério do Meio Ambiente . Vários deles agregam a di-
mensão ambiental ao território, como nos casos voltados para bacias

Coletânea de Artigos 259


260 Brasil Rural em Debate

hidrográficas, ecossistemas particularmente relevantes como o Panta-


nal e a Amazônia, entre muitas outras ações . Mencionem-se, por fim,
os “Programas de Desenvolvimento Integrado e Sustentável”, coorde-
nados pela Secretaria de Programas Regionais do Ministério da Inte-
gração Nacional, e o Programa Arranjos Produtivos Locais (APLs) da
Secretaria do Desenvolvimento da Produção (SDP) do Ministério do
Desenvolvimento, Indústria e Comércio Exterior .

7.3 Multifuncionalidade da agricultura familiar e território

7.3.1 Expressões da multifuncionalidade da


agricultura familiar no Brasil e seus limites
Pesquisas anteriores, conduzidas pela rede de pesquisadores da qual
fazemos parte, levaram à identificação de quatro funções cumpridas pela
agricultura familiar no Brasil (Cf . Carneiro e Maluf, 2003) . A primeira
delas é o papel central da atividade agrícola para a reprodução socioeconô-
mica das famílias, de fato, a função primeira e amplamente reconhecida
dessa atividade . Embora não se disponha de estatísticas atualizadas com
respeito à renda das famílias rurais, pode-se afirmar que a atividade agrí-
cola participa, diretamente, da reprodução social e econômica de grande
parte das cerca de 4,1 milhões de famílias agrícolas, ou seja, das mais de
20 milhões de pessoas vivendo no meio rural no Brasil, em 1995/19969 .
Sabe-se, também, que as atividades não agrícolas (rurais e urbanas)
e o trabalho em atividades agrícolas de terceiros têm importante par-
ticipação na formação da renda das famílias rurais, ainda que a maio-
ria delas sejam ocupações precárias e de baixa remuneração . Não se
pode perder de vista, ademais, que uma proporção bastante elevada da
população rural vive em condições precárias ou em pobreza extrema .
Não obstante, mais do que comprovar o caráter pluriativo das famílias
rurais e a crescente importância das políticas sociais no meio rural, o
fator primeiro a ser realçado é a redução do significado econômico da

9
O conhecido estudo da FAO (Guanziroli e Cardim, 2000) revelou que o nível de renda das famílias
rurais variava muito entre os diversos estratos, mas podia atingir níveis significativos.
atividade agrícola enquanto fonte de renda monetária para o grande
número de famílias que faz agricultura em bases precárias10 . Ora, sabe-
-se que é, sobretudo, na condição de produtores agrícolas que as famí-
lias rurais são ‘vistas’ e atendidas pelos programas públicos .
Esse contexto coloca desafios específicos para as políticas de apoio
à produção agrícola das unidades familiares, especialmente, quanto
aos instrumentos mais adequados para tanto (criação de mercados,
garantia de preços, crédito de custeio e investimento e assistência
técnica/extensão rural) . Obriga-nos a considerar, também, outras di-
mensões que não a produtiva e outras políticas que não as agrícolas,
para compreender e promover a reprodução das unidades familiares
rurais . Por exemplo, no tocante às formas de financiar uma agricul-
tura familiar multifuncional, a dificuldade dos agricultores obterem
renda por meio da atividade agrícola (pela venda dos seus produtos)
pode acarretar a necessidade de recorrer a fundos públicos para a
manutenção das famílias rurais11; entre as justificativas para tal pro-
cedimento pode estar a preservação das múltiplas funções cumpridas
pela agricultura familiar .
As questões antes mencionadas se vinculam ao desafio aborda-
do adiante de modificar o enfoque setorial dos programas focalizados
na atividade agrícola das unidades familiares rurais, para um enfoque
no rural no qual sobressaem as próprias unidades familiares e os ter-
ritórios . Isto é, o enfoque demandaria transitar dos instrumentos de
política, tradicionalmente, focalizados em produtos-produção, nos
quais o volume dos recursos creditícios é proporcional ao tamanho
da área do estabelecimento rural, para um enfoque na unidade fami-
liar considerada em seu conjunto . Já no que se refere à consideração
dos territórios, a predominância da lógica de cadeias produtivas nas
10
Esclareça-se que a atividade agrícola cujo peso econômico se reduz é aquela realizada no próprio
estabelecimento, já que membros das famílias rurais, comumente, recorrem ao trabalho temporário
agrícola para terceiros para complementar seus rendimentos.

11
Note-se que esta questão se relaciona com o debate no âmbito da OMC contrapondo a vinculação
(coupling) dos programas de apoio aos agricultores à produção agrícola dos mesmos e a desvinculação
(decoupling) entre elas, sendo esta última a opção legitimada pela OMC.

Coletânea de Artigos 261


262 Brasil Rural em Debate

políticas de desenvolvimento rural faz com que o território apareça ape-


nas enquanto delimitação geográfica dos setores ou cadeias produtivas .
Uma segunda função se refere à promoção da segurança alimentar da
sociedade e das próprias famílias rurais, função que ganhou destaque re-
cente na sociedade brasileira, impulsionada pela prioridade conferida
pelo Governo Lula para a erradicação da fome e promoção da seguran-
ça alimentar e nutricional (SAN) . O PRONAF passou a incluir a se-
gurança alimentar entre seus objetivos, porém, ainda limitada ao com-
ponente de oferta agrícola que integra o enfoque intersetorial da SAN
desenvolvido no Brasil . Reconhece-se, também, o papel da produção
para o autoconsumo alimentar para a reprodução da unidade familiar
rural (Leite, 2004), tão mais relevante quando se considera a já referida
redução do significado econômico da atividade agrícola para boa par-
cela dessas famílias . Igualmente importante foi a criação do já referido
Programa de Aquisição de Alimentos da Agricultura Familiar (PAA)12,
com a pretensão de articular o enfrentamento do conhecido gargalo
da comercialização que aflige a agricultura familiar, com a destinação
dos bens dela adquiridos para os programas de alimentação (alimenta-
ção escolar, distribuição de cestas básicas, etc .) e formação de estoques
públicos . A importância dos arranjos produtivos e comerciais locais
visando ao aproveitamento dos estímulos da demanda de alimentos
aproxima esse tipo de programa de outras ações implementadas desde
uma lógica territorial (Maluf e Zimmermann, 2005) .
A terceira função diz respeito à manutenção do tecido social e cul-
tural . O desempenho desse papel pela agricultura familiar requer,
talvez mais do que nos demais, o reconhecimento da MFA nos
espaços institucionais, em particular, nos espaços locais que, em
princípio, são mais sensíveis aos problemas das comunidades rurais
e têm melhores condições de atuar sobre questões essenciais para a
promoção dessas comunidades . Entre essas questões, menciona-se

12
Esse programa foi concebido por iniciativa do Conselho Nacional de Segurança Alimentar e Nutri-
cional (CONSEA), estabelecendo explícita vinculação entre a promoção da agricultura familiar e a
ótica da SAN.
os investimentos em infraestrutura nas comunidades (muitas vezes
tão ou mais importantes que o apoio à produção), a promoção do
associativismo e de redes sociais e de economia solidária e a valori-
zação da dimensão cultural . Num bom número de situações, a ma-
nutenção do tecido social e cultural remete ao entrelaçamento, nos
territórios, das questões de pobreza, desenvolvimento rural e MFA .
Por último, a preservação dos recursos naturais e da paisagem rural cor-
responde a um papel da agricultura familiar que, sem dúvida, adquiriu
relevância e crescente legitimidade social patrocinadas pela difusão da
perspectiva da sustentabilidade (do desenvolvimento sustentável) . A tra-
dução dessa demanda social entre as famílias rurais, notadamente, entre
aquelas para as quais a atividade agrícola guarda sentido econômico, é
mediada por diversos fatores . Nossas pesquisas revelaram que as famí-
lias rurais podem atribuir distintos significados às relações com o meio
ambiente e, especificamente, com os recursos naturais, que vão desde
a valorização do espaço de sua existência até a valorização do ideário
conservacionista com propósitos de renda (turismo rural) . Menos desen-
volvidas, no Brasil, são as relações entre as atividades rurais e a paisagem .
Essa quarta função é, possivelmente, a que mais exige considerar a coe-
xistência e interfaces entre programas distintos e entre as linhas de ação de
um mesmo programa . No aspecto da coexistência, menciona-se o pouco
diálogo entre os programas que tratam do meio ambiente com as políticas
de produção agrícola . Quanto às interfaces, nota-se a costumeira fragmen-
tação das diversas linhas dos programas, como no caso do PRONAF .

7.3.2 Sistemas de atividade, funções da agricultura e enfoque territorial


Tendo em conta as observações anteriores relativas à realidade bra-
sileira, onde se evidenciaram as potencialidades e limites do conceito
da MFA, assim como sua complementaridade com a pluriatividade e o
território, buscaremos precisar, nessa seção, as relações existentes entre
esses conceitos, valendo-nos da figura apresentada adiante . Parece-nos
útil estabelecer uma primeira e mais geral diferenciação entre a esfera
privada, regida pela regulação de mercado, e a esfera publica, regulada

Coletânea de Artigos 263


264 Brasil Rural em Debate

por normas coletivas . Na esfera privada, os produtos agrícolas vendi-


dos constituem a renda agrícola que sustenta, diretamente, a reprodução
econômica e social do núcleo familiar, enquanto que na esfera publica
o caráter multifuncional da agricultura familiar dá lugar à produção de
bens públicos relacionados com a segurança alimentar, preservação dos
recursos naturais e da paisagem e manutenção do tecido social e cultural .
Por sua vez, os bens públicos constituem os principais ingredientes a
partir dos quais se elaboram normas locais, entendidas como sendo um
conjunto de regras, acordos implícitos ou explícitos e conhecimentos
compartilhados por uma parte significativa da população local .
Contudo, a agricultura nem sempre é a única fonte desses bens priva-
dos e públicos . Atividades não agrícolas podem ter um papel destacado .
A importância dessas atividades não agrícolas se expressa, notadamente,
no fornecimento de bens materiais que ampliam ou até constituem a
maior parte da renda familiar . Essas atividades podem também dar con-
tribuição expressiva para o fornecimento de bens públicos, tanto no que
diz respeito à segurança alimentar (atividades de transformação e trans-
porte dos produtos agroalimentares), como também na manutenção do
tecido social e cultural (atividades culturais ou de produção coletiva) e
até na manutenção da paisagem (infraestruturas produtivas específicas
como moinhos e fábricas) . Confirma-se, desse modo, que se a multifun-
cionalidade é uma característica intrínseca à agricultura familiar, ela não
é, entretanto, apanágio da agricultura .
7.4 Multifuncionalidade da agricultura,
atividades rurais e território

Esfera privada Esfera pública

Indústrias e serviços
em meio rural
Território

{ Recursos naturais

Equipamentos coletivos

Normas coletivas

Sistema de atividades das


famílias rurais

Segurança alimentar das familias


rurais e da sociedade
Atividades agrícolas
Reprodução Preservação da paisagem e dos
econômica e social recursos naturais
Atividades não agrícolas
Manutenção do tecido social
e cultural

Atividades agrícolas e não agrícolas conformam, em nível da fa-


mília rural, um sistema de atividades cuja coerência e orientação
dependem dos objetivos individuais e coletivos dos membros da fa-
mília, os quais, como se sabe, evoluem ao longo do ciclo de vida da
própria família13 . É importante estabelecer, aqui, a diferença entre
a pluriatividade e o sistema de atividades . Pesquisadores no Brasil
e no exterior, que trabalham essa temática, usualmente limitam a
pluriatividade às atividades remuneradas, quase sempre, do produtor
e seu cônjuge, portanto, às atividades realizadas na esfera privada .
No esquema analítico aqui apresentado, o sistema de atividades das
famílias rurais é entendido como o conjunto das atividades agrícolas
13
O conceito de sistema de atividade, que muito tem a ver com a concepção de Chayanov sobre as
atividades da família rural, foi introduzido pela primeira vez por Jean-Luc Paul e colegas em 1994,
para analisar o funcionamento de estabelecimentos familiares em ilhas caribenhas. Eles observaram
que o conceito de pluriatividade não permitia explicar corretamente o comportamento dos ativos
familiares em situações onde a produção agrícola era precária e o mercado de trabalho instável
(Paul, Bory et al., 1994). Outras aplicações do conceito foram feitas em situações onde as atividades
sociais ocupavam um lugar de destaque nas atividades dos membros da família como conseqüência
da pressão do grupo social e da força das regras de solidariedade/compromissos da coletividade,
notadamente, na ilha de Mayotte no Oceano Índico (Barthes, 2003).

Coletânea de Artigos 265


266 Brasil Rural em Debate

e não agrícolas realizadas pelos membros da família rural destinadas


a realizar as funções necessárias à reprodução econômica e social da
família . O sistema de atividades é mais amplo que a pluriatividade
porque, por um lado, engloba todos os membros da unidade familiar
que estejam unidos por relações de solidariedade e/ou de reciproci-
dade, quer morem juntos ou não14 . Por outro lado, o sistema engloba
todas as atividades, incluindo aquelas que não são meramente econô-
micas . Entram neste sistema as atividades de índole social, ambiental
e simbólica, dada a compreensão que é, precisamente, a proximidade
do simbólico e do social que confere sentido às atividades econômi-
cas, além de aquelas atividades serem indispensáveis à manutenção
dos indivíduos no seu entorno social e ambiental .
É a partir desses sistemas de atividades, como também das normas co-
letivas específicas estabelecidas de maneira consciente ou inconsciente pela
coletividade local, que são imaginados e implementados territórios . Os
territórios são construídos para alcançar objetivos coletivos . Desta cons-
trução podem participar, também, ativos locais ligados às atividades de
outros setores da economia que não a agricultura (indústria e serviços),
bem como a base de recursos naturais e equipamentos coletivos . Assim
concebidas, as noções de sistema de atividades e de território correspon-
dem a dois espaços de intermediação e de negociação . O primeiro é de
índole doméstica e remete aos membros da unidade familiar . O segundo é
de índole coletiva e envolve atores econômicos e sociais .
Nesses termos, a noção de multifuncionalidade adquire sentido apenas
quando se refere às atividades produtivas, e não ao território ou espaço
econômico e social, tal como o meio rural, uma vez que ela designa os
efeitos simultâneos e diferenciados de uma atividade para além de suas
funções primárias, geralmente econômicas . Daí falar-se em multifuncio-
nalidade da agricultura . Outra é a problemática relativa aos territórios (ou
ao meio rural) que corresponde à repartição dos usos alternativos que se
pode dar a um determinado espaço, assim como às relações que se podem

14
Tome-se, por exemplo, o caso das atividades dos parentes migrantes, que enviam remessas de di-
nheiro regularmente aos membros da família que ficam na propriedade familiar.
estabelecer com outros espaços utilizados de maneira distinta . Ela diz res-
peito, mais propriamente, aos múltiplos usos de um território .

7.5 Multifuncionalidade da agricultura e desenvolvimento


territorial: desafios e oportunidades
À guisa de conclusão, abordaremos quatro questões suscitadas pelo
enfoque da MFA relacionadas com o marco institucional e instrumen-
tos dos programas agrícolas e de desenvolvimento rural ou territorial
no Brasil . Afirmamos, na introdução, que a incorporação de elementos
do enfoque da MFA nos programas públicos voltados para a agricul-
tura familiar no Brasil se deu sob a forma de apropriação fragmentada
e acessória ao núcleo central dos respectivos programas . Sendo assim,
a primeira questão diz respeito, justamente, às relações que se estabe-
lecem entre as diretrizes gerais dos programas públicos onde se verifica
tal apropriação, e o perfil e interesses promovidos pelos atores locais
envolvidos na implementação desses programas .
As relações que se estabelecem entre as diretrizes gerais (nacionais)
dos programas e os atores locais são marcadas por complementaridades
e tensões bidirecionais, entre essas diretrizes (“de cima para baixo”) e
os interesses locais (“de baixo para cima”) . O reconhecimento dessa
característica remete, por sua vez, à institucionalidade dos programas
na medida em que ela requer a existência de espaços de interlocução e
mecanismos de coordenação entre programas distintos, entre as linhas
de um mesmo programa e entre as esferas de governo ou de ação .
Nessa direção podem contribuir a incorporação do enfoque territorial,
incluindo a dimensão de participação dos atores sociais, em geral, e das
famílias rurais, em particular, que deve acompanhá-lo .
A segunda questão se refere à ótica de integração ou articulação das
ações e programas que poderia se dar segundo dois focos . O primeiro deles
corresponde à integração com foco no território, a qual supõe compre-
ender a unidade complexa constituída pelos espaços ‘urbano’ e ‘rural’ e
pelos âmbitos municipal e supramunicipal; ela também suscita ou favo-
rece a emergência de temas relacionados com pobreza, desigualdade so-
Coletânea de Artigos 267
268 Brasil Rural em Debate

cial, meio ambiente e outras questões antes tratadas com uma ótica de
desenvolvimento rural quase sinônimo ao desenvolvimento da produção
agrícola . Outro foco de integração ou articulação de ações é a unidade
familiar rural considerada enquanto unidade complexa de produção – um
sistema de atividades, como antes proposto – e gestora do território . Vale
dizer, sugere-se rever o foco produtivo na “agricultura” familiar, de modo
a colocar as unidades familiares rurais e não apenas os produtos que elas
geram como objeto de atenção dos programas, além da ampliação do en-
foque sobre os papéis desempenhados pelas famílias rurais “para além da
produção” nos respectivos territórios . Desde logo, isto implica o redesenho
dos instrumentos de apoio, por exemplo, introduzindo o crédito para a
unidade familiar e não se limitar ao crédito tradicional baseado em pro-
dutos . A propósito, nota-se a quase ausência do foco nas famílias por par-
te dos programas agrícolas e de desenvolvimento rural, enquanto que ele
está, necessariamente, presente nos programas ‘não agrícolas’, isto é, nos de
acesso universal que consideram as famílias rurais no interior das políticas
de combate à pobreza e promoção da seguridade social .
A terceira questão tem a perspectiva de explorar a possibilida-
de de contratualização das relações que os programas estabelecem
com as famílias rurais, incluindo o aspecto de controle social . O
estabelecimento de contratos públicos regendo as relações entre os
organismos de Estado e os beneficiários dos programas públicos, no
caso, as famílias rurais, apresentaria duas vantagens, ambas impor-
tantes para a incorporação do enfoque da MFA . A primeira delas
adviria do fato de os contratos serem uma forma de definir, imple-
mentar e monitorar compromissos recíprocos quanto a direitos e
deveres entre o Estado e as famílias rurais/agricultores atendidos
pelas políticas públicas; os contratos podem contemplar a definição
social (em espaços sociais) das prioridades nos diferentes territó-
rios, a transparência na destinação de recursos públicos e formas de
participação e controle social . A segunda vantagem da contratuali-
zação se deve a que ela aumenta a possibilidade de junção de dife-
rentes formas de apoio às famílias rurais/agricultores em um único
ou em poucos instrumentos/contratos, ao mesmo tempo em que
contribuiria para a passagem do enfoque setorial para o enfoque
rural-territorial mencionado anteriormente .
As bases desse novo ‘contrato social’ seriam dadas pelas demandas atu-
ais da sociedade brasileira em relação à agricultura e ao mundo rural,
bem como pelas demandas dos próprios agricultores . A título de ilustra-
ção, as demandas sociais presentes no debate contemporâneo englobam
o papel das exportações, oferta de alimentos de qualidade e preservação
do meio ambiente, às quais se acrescentariam demandas específicas tais
como mercados para os produtos da agricultura familiar e direitos so-
ciais, entre outras . Claro que se coloca a questão de como identificar
essas demandas, por meio de quais processos e marco institucional .
A quarta e última questão diz respeito à profissão de agricultor(a) .
Não se trata, apenas, de avançar no estabelecimento de normas que regu-
lamentem a profissão, como também de considerar os “fora da norma” .
Nesse mesmo âmbito de questões, o Brasil já caminha na direção da
obrigatoriedade de capacitação prévia como requisito para o recebimen-
to de apoio público (crédito e outros) . Resta, ainda, muito por definir no
tocante à questão dos jovens agricultores e da juventude rural .

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8. Políticas de ordenamento
territorial, desmatamento
e dinâmicas de fronteira*

Edna
Castro**

Resumo
Tendo em vista a ação do Estado na Amazônia,
na esfera do governo federal e estadual, este artigo
analisa se as políticas de ordenamento territorial
podem gerar eficácia social e melhor uso do capital
natural, considerando as dinâmicas socioeconômi-
cas em curso . No plano empírico, a pesquisa que
deu origem a este trabalho foi realizada na região
atravessada pela BR-163, rodovia Cuiabá-Santarém,
no Estado do Pará . A realidade social é composta
de uma diversidade de lógicas e de racionalidades
que determinam as práticas sociais . É nessa perspec-
tiva que se examina a ação do Estado e suas políti-
cas, fundiárias e de ordenamento territorial, como
contraponto à dinâmica predatória de expansão da
fronteira e do desmatamento, entendendo-se que a
racionalidade dos atores e suas motivações, indivi-
duais e coletivas, são importantes na definição das
*
Novos cadernos
NAEA, v .10, n .2, p .
estratégias socioespaciais do Estado
105-126, dezembro
2007 ISSN 1516 - 6481
Introdução
**
Doutora em Sociolo-
gia pela École des Hau-
tes Études en Sciences A propósito da ação do Estado na Amazônia, cabe
Sociales (EHESS), Paris, perguntar quais as possibilidades que têm as políticas
França . Professora do
Núcleo de Altos Estu- de ordenamento territorial para gerar eficácia social
dos Amazônicos NAEA/
UFPA e pesquisadora do
e melhor uso do capital natural, considerando as di-
CNPq . nâmicas socioeconômicas hoje em curso . A realidade
Coletânea de Artigos 271
272 Brasil Rural em Debate

social é composta de uma diversidade de lógicas e de racionalidades que


determinam as práticas sociais . É nessa perspectiva que se examinam as
políticas e os procedimentos de ordenamento territorial enquanto con-
traponto à dinâmica predatória da expansão da fronteira, entendendo-se
que a racionalidade dos atores e suas motivações, individuais e coletivas,
são importantes na definição de suas estratégias socioespaciais .
Ao longo das últimas décadas, assistiu-se a uma modificação con-
tínua da floresta amazônica, com um avanço acelerado em direção a
novas fronteiras de recursos naturais, o que tem levado a uma perda
de cobertura florestal inusitada, pela extensão das terras atingidas .
Estados como Maranhão, Mato Grosso, Pará e Rondônia tiveram o
uso da terra enormemente alterado, com deslocamento de população,
redução de biodiversidade e introdução de técnicas agroflorestais in-
tensivas, competindo com modelos tradicionais de uso dos recursos
naturais, como a produção camponesa em unidades familiares .
Os resultados desse processo de mobilidade do capital e do trabalho têm
sido mostrados, seja pelo aumento do volume da produção madeireira,
agropecuária e de mineração – ainda que as estatísticas sejam subestimadas
e, portanto, exijam ponderação na confiabilidade – , seja pelo mapa de
conflitos identificando atores e recursos em disputa, seja pelos graves pro-
blemas ambientais, como o desmatamento e a poluição de rios . Ou ain-
da, pela desigualdade social revelada no baixo índice de desenvolvimento
humano (IDH) em quase todos os estados da Amazônia Legal (PNUD,
2002) . Na BR-163, encontra-se o mesmo padrão, com diferenças míni-
mas entre municípios com maior ou menor produção agropecuária, mi-
neral ou madeireira (Castro; Monteiro, 2007) .
Do início da colonização até 1978, o desmatamento tinha atingido
cerca de 15,3 milhões de hectares da floresta; de 1978 a 1988, a área
desmatada passa a 37,8 milhões de hectares; em 1990, chega a 41,5
milhões de hectares . Atualmente, a cada ano, são devastados milhões
de hectares, segundo a tendência do avanço da pecuária e da agricultura
intensiva (Castro; Monteiro; Castro, 2002; Fearnside, 2000; Margulis,
2003) . Apesar de todo o esforço por parte do Estado, de organizações
não governamentais (ONG) ambientalistas, de organizações sociais e de
outros atores sociais, de novas regulamentações e ações fiscalizadoras,
o saldo acumulado de desmatamento em 2007 era de 653 .908 km2
de floresta, conforme informações do Instituto Nacional de Pesquisas
Espaciais (INPE, Edna Castro 107 2008) . A tendência continua sendo
o avanço ininterrupto do processo de desmatamento (Fearnside, 2003;
Soares-Filho et al ., 2005) provocado pelo avanço da fronteira e do ciclo
de destruição da floresta (Nepstad et al ., 2000), apesar de ter havido
algumas poucas oscilações (positivas), segundo os dados oficiais divul-
gados pelo INPE .
Embora vários atores contribuam para o desmatamento, a pecuária
continua a ser a atividade por excelência responsável pela maior parte do
desflorestamento, em razão das crescentes extensões de terra por ela ocupa-
das, da padronização do uso do solo e da concentração fundiária verificada
também como uma estratégia de formação de estoques para o mercado
futuro de terras . Porém, a chave do entendimento do papel da pecuária no
desmatamento está na percepção do conjunto de atividades a que ela está
relacionada . Embora falte uma contabilidade demonstrativa, a capitaliza-
ção de terras e de rendas pela pecuária é resultado de uma equação na qual
outras atividades entram como fatores de complementaridade, como o
caso de madeireiras, garimpos, comércio, pequena produção familiar, ser-
viços e outras formas de extrativismo . Por isso, a compreensão da dinâmica
do desmatamento requer investigar, a nosso ver, as ações e estratégias dos
atores diversos que se fazem presentes em dada fronteira de recursos, para
explicar também por que a pecuária foi reconhecida como a atividade mais
rentável e segura, do ponto de vista econômico, o que acabou por justificar
e obscurecer os custos sociais e ambientais (Castro, 2005) .
A alteração territorial que presenciamos hoje na Amazônia resulta
efetivamente de importantes mudanças que ocorreram na sociedade
e na economia nas últimas décadas, entre as quais as novas demandas
do mercado mundial e a diferenciação interna de setores econômicos
que alteraram o uso da terra e a estrutura da propriedade . Para enten-
der essa alteração, é preciso considerar a interação entre os processos
locais e a dinâmica de mercados globais, fundamental para identificar

Coletânea de Artigos 273


274 Brasil Rural em Debate

as conexões lógicas que explicam o complexo mercado transnacional e


a pressão de agentes econômicos sobre os recursos naturais . Nessa pers-
pectiva, cabe examinar os efeitos locais do movimento da economia,
de alguns setores-chave, tais como as cadeias produtivas da pecuária,
da madeira e da agricultura intensiva, que estão ligados ao mercado
global . Certamente que a racionalidade de atores empresariais, atuan-
tes e responsáveis em grande parte pelo desmatamento e pela pressão
sobre os recursos, extrapola esses setores (Becker; Alves; Costa, 2007) .
Outras atividades estão ligadas a esses atores, formando um conjunto
de interesses convergentes na pressão sobre os recursos, como a peque-
na produção familiar, o comércio, a pesca, os grandes empreendimen-
tos de infraestrutura, além dos interesses da indústria farmacêutica e de
cosméticos, cujos mercados locais estão sendo estruturados como parte
de cadeias nacionais e transnacionais .
Este artigo examina as dinâmicas socioeconômicas na região de in-
tervenção para efeitos de ordenamento territorial formada por municí-
pios da rodovia Cuiabá-Santarém (rodovia BR-163) no Estado do Pará .
Trata-se de uma região com vários tipos de problemas: problemas fun-
diários, índices elevados de grilagem de terras, violência, atividades eco-
nômicas ilegais, concentração da terra e conflitos socioambientais com
populações tradicionais . É uma área das mais importantes no Pará e no
Mato Grosso em função da grande diversidade biológica, das potencia-
lidades naturais (como as províncias florestal e mineral) e culturais, que
evidenciam uma heterogeneidade de situações sociais e étnicas intera-
gindo com ecossistemas ricos em recursos naturais . No norte do Mato
Grosso, verificou-se uma conversão enorme no uso da terra em função
da agricultura intensiva de soja e da indústria madeireira potencializada
pelo asfaltamento do trecho estadual da BR-163 . O Plano Amazônia
Sustentável da BR-163 (BRASIL, 2006) considera uma regionalização
formada por 71 municípios localizados no Pará e no Mato Grosso1 e pas-
síveis de uma ação de ordenamento territorial pelo Estado . Entre esses
municípios, podemos distinguir aqueles atravessados pela Rodovia e os
demais que, por estarem próximos, sofrerão impactos em decorrência do

1
Para efeitos de ordenamento e de ação das políticas públicas do governo federal, essa área foi subdi-
vidida em três mesorregiões: mesorregião Norte – Calha do Amazonas e Transamazônica -, mesor-
região Central – médios Xingu e Tapajós – e mesorregião Sul – Norte matogrossense.
asfaltamento da rodovia BR-163, uma das obras do Plano de Aceleração
da Economia (PAC) prioritárias para a Amazônia .
Desses municípios, 28 estão no Pará, 37 no Mato Grosso e 6, no
Amazonas, o que perfaz uma área total de 1 .232 milhões de km², cor-
respondente a 14,47% do território nacional . Os dados aqui examina-
dos se referem apenas aos municípios paraenses, divididos, para efeito
do Zoneamento Ecológio-Econômico (ZEE) da BR-163, em quatro
áreas2, onde predominam a agropecuária, a exploração madeireira e
mineral (ouro, bauxita, alumínio e calcário), a agricultura familiar e,
recentemente, a agricultura intensiva de grãos .

8.1 Globalização, Fronteira e Ação do Estado


O debate sobre a globalização tenta distinguir os processos econô-
micos que reconfiguram dimensões-chave do mercado mundial, em
especial, eficiência, produtividade e competitividade . Nesse sentido
a globalização constitui uma continuidade no movimento de racio-
nalização da sociedade moderna . O que diferencia este momento de
anteriores é que os processos se fazem de forma mais rápida e profun-
da, modificando noções e estruturas institucionais consideradas per-
formantes em um dado padrão de reprodução da vida social, então
vigente . É importante distinguir as estratégias e ações empreendidas
por grandes e médias empresas diante da concorrência e da competição
global, e o potencial técnico e de inovação das empresas regionais para
fazer face às relações mercantis globalizadas .
A relação entre globalização, comércio mundial e modernização faz
parte das agendas de governos atuais – federal e estadual –, cujas po-
líticas têm um caráter desenvolvimentista . Por isso, é fundamental a
análise das perspectivas políticas e das respostas que estão sendo dadas

2
As áreas, com os respectivos municípios, são: Calha do Amazonas (Santarém, Juruti, Prainha e Bel-
terra), Baixo Amazonas (Itaituba, Aveiro, Rurópolis e Trairão), Transamazônica Oriental (Altamira,
Senador José Porfírio, Porto de Moz, Uruará, Medicilândia, Vitória do Xingu, Brasil Novo, Placas,
Anapu) e Vale do Jamanxim e Jacareacanga (Novo Progresso e Jacareacanga) (ZONEAMENTO...,
2005).

Coletânea de Artigos 275


276 Brasil Rural em Debate

pelo Estado, pois o que se tem observado é a expansão das relações


mercantis, nas últimas décadas, em direção a novos espaços integrados
à economia pelo avanço tecnológico e pela conseqüente reconceptuali-
zação do tempo e do espaço . (Chesnais, 1996) .
A integração permanece como matriz conceitual da ação do Estado nas
novas fronteiras no Brasil, tendo sido acionada também na conquista do
Oeste americano e do Oeste canadense, tendo tido eficácia simbólica na
incorporação de novos territórios às estruturas de mercado e fechado ciclos
de consolidação na ocupação do território . No caso brasileiro, no avanço
dos bandeirantes (Moog, 1969) para o Oeste e para o Norte, adotou-se
a idéia de nação e de brasilidade, recriando-se o imaginário do progresso .
Esse princípio norteou as políticas dos governos militares para a Amazô-
nia, nos anos 60 e 70 . A integração tornou-se uma meta dos programas
de construção de grandes eixos rodoviários, como a rodovia BR-230
(Transamazônica), a rodovia BR-163 (Cuiabá-Santarém), a rodovia BR-364
(Manaus-Porto Velho) e a Perimetral Norte . Os grandes projetos de coloni-
zação também constituíram pilares da política de integração nacional, e os
investimentos em infra-estrutura viabilizaram o avanço em direção a novas
áreas, potencializando a expansão da agropecuária, seguindo o mesmo mo-
delo da conquista de novas terras no Oeste paulista e paranaense .
Essa noção de integração já marcava, nos anos 30, o Programa Mar-
cha para o Oeste, do Estado Novo de Getúlio Vargas, programa que,
para Velho (1967), representa um mito inventado pelo autoritarismo
estatal como forma de dominação, no sentido de dominação política e
ideológica . A crítica a esse programa, posta ao longo da obra de Velho
(1967), é igualmente encontrada em Monbeig (1984), que considera
essa marcha como um episódio característico da expansão da civiliza-
ção capitalista às margens do Atlântico, associando-a uma ”devastação
sem freio“ (Monbeig, 1984) .
Seguem a mesma linha a Expedição Roncador-Xingu, de 1943, o Pro-
grama Rondon, dos anos 70, o Programa de Integração Nacional (PIN)
e o Polamazônia, também iniciados nos anos 70, fortalecidos pela cons-
trução de grandes vias como a Belém-Brasília, que visava a ocupação do
Noroeste do país e que, ao incorporar novas terras, acabou por viabilizar
outro sonho, o de ligar, por via rodoviária, o Sul ao Norte e o Nordeste
ao Norte e ao Noroeste . A estratégia seria concretizada, sobretudo, pelas
rodovias Transamazônica e Cuiabá-Santarém, que, embora não asfalta-
das e com inúmeros problemas de trafegabilidade, foram de fato eixos de
ocupação e de ordenamento territorial implantados pelo Estado3 .
A percepção que as elites brasileiras tinham dessa região, nos anos 50 e
60, coadunava-se com o projeto nacional-desenvolvimentista, fortalecido
nos governos posteriores . As políticas formuladas com base nessa percep-
ção materializar-se-iam em duas grandes obras que definiriam, a partir
daí, e de forma irreversível, o futuro da Amazônia e de sua integração à
economia nacional: a construção de Brasília e da rodovia Belém-Brasília .
Essas obras constituem marcos, pois, a partir daí, a política que nortearia
o avanço da fronteira econômica na Amazônia estruturar-se-ia de forma
a permitir, de um lado, a incorporação de novos territórios à economia
e à sociedade nacionais e, de outro, a integração às estruturas produtivas
e ao mercado globalizado . A Amazônia brasileira foi concebida, no seio
das elites nacionais, enquanto fronteira de recursos com a qual o capital
poderia refazer seu ciclo de acumulação com base nos novos estoques dis-
ponibilizados . Vazio demográfico e recursos inesgotáveis são associações
ainda presentes no imaginário das elites políticas, militares e de segmentos
médios da sociedade brasileira em pleno século XXI .

3
A fronteira sempre teve uma dimensão mítica de conquista, de desafio do novo, de encontros e de
possibilidades de (re)invenção de sonhos, de procura de novas terras e riquezas, como a busca inces-
sante do el dourado que mobilizou tantos europeus na corrida ao ouro dos impérios incas, astecas
e maias e dizimou com extrema barbaridade essas civilizações. Na Amazônia, o imaginário idílico
sobre o lugar do paraíso e do progresso (re)aparece nas nomeações de povoados e cidades surgidas
nesse processo de avanço de fronteiras. Na atualidade, no Sudeste e no Oeste do Pará, encontramos
as denominações Nova Canaã, Eldorado do Carajás, Vitória da Conquista, Novo Progresso, Castelo
de Sonhos, entre tantas outras, reafirmando o mito da terra prometida que povoou o imaginário
social ocidental e que aparece hoje, a propósito da Amazônia, nos discursos de políticos, militares,
empresários, pessoas comuns, certamente (re)traduzidos pela mídia impressionista. As políticas na-
cionais que hoje estão sendo formuladas para a Amazônia atualizam esse imaginário por meio da
bandeira da integração nacional, do progresso, do crescimento acelerado e, também, da segurança
nacional. No entanto, a utopia do desenvolvimento que a todos interessa deve, mesmo no plano
conceitual, ultrapassar a visão conservadora que exclui do planejamento grupos sociais expressivos.

Coletânea de Artigos 277


278 Brasil Rural em Debate

O movimento de expansão da fronteira foi impulsionado pelo au-


mento da demanda de produtos agrícolas para mercados internos e para
atender a pauta de exportação de recursos primários, como madeira e
minério . A fronteira, por ser móvel, refaz-se pelas novas dinâmicas dos
atores sociais (Moran, 2002) . Nesse movimento, atores sociais e proces-
sos econômicos de hoje estão integralmente articulados em inúmeras
redes de interdependência com o restante do país . Certamente está em
jogo a discussão do papel da agricultura e de seus novos arranjos na
economia que se moderniza e da sociedade que vive um rápido processo
de urbanização (Costa, 2005) . Não basta pensar apenas na opção da
revolução verde, que a converteu a floresta em regiões de agricultura
intensiva com vantagens comparativas, pois o que se observou com a
abertura da fronteira em direção ao norte foi a destinação de recursos na-
turais, sobretudo ao mercado capitalizado . Esse processo chega ao século
XXI, diríamos, ainda como matriz da modernização impulsionada pelo
processo de mobilidade do capital e pelas novas regulações de mercado .
A interpretação dos princípios de racionalidade econômica e da
modernização, conjugados com as estratégias de caráter político dos
agentes econômicos presentes em espaços diferenciados da Amazônia,
é importante, a nosso ver, para o entendimento das possibilidades e
do alcance do ordenamento estatal do território . É necessário levar
em conta quatro dimensões fundamentais . Em primeiro lugar, não há
uma causa única para as fortes mudanças territoriais, nem para o des-
matamento, pois se trata de causas múltiplas que dizem respeito à di-
ferença de estratégias e de racionalidade de atores . Em segundo lugar,
essa alteração do território está organicamente relacionada à estrutura
social do país, desigual em renda e oportunidades, e à capacidade de
acumulação dada pelas condições da fronteira . Em terceiro lugar, é
preciso levar em conta o modo de inserção da Amazônia e do país na
economia mundial globalizada . Finalmente, o quarto ponto diz respei-
to aos arranjos políticos, à disponibilidade de recursos institucionais e
à capacidade que os atores locais têm de reafirmar estratégias de desen-
volvimento sustentável .
8.2 Diferenciação de dinâmicas socioeconômicas na BR-163
As dinâmicas acima apontadas estão presentes na região da BR-163,
para onde hoje convergem muitos interesses econômicos voltados para
a pecuária e a agricultura intensiva de grãos, em função da logística de
transporte: a rodovia representa um promissor corredor da produção
do Mato Grosso em direção a Santarém e daí para o mercado mundial .
Além disso, expande-se o agronegócio no território paraense .
No plano social, verificam-se processos novos, como o deslocamen-
to compulsório da população tradicional e de migrantes assentados
inicialmente pela colonização oficial, ou deslocados pela expulsão da
terra em estados em que houve o avanço do agronegócio, como Mato
Grosso e Maranhão .
As novas áreas de interesse para a expansão da pecuária, da minera-
ção e da agricultura intensiva, como os municípios de Itaituba em dire-
ção do Sul, a ocupação na estrada Transgarimpeira em direção a Jacare-
acanga e os municípios da Calha Norte do Amazonas, diferenciam-se
daquelas nas quais essas atividades econômicas e a pequena produção
familiar já estão estabelecidas, como os municípios ao longo da ro-
dovia Transamazônica, que funcionam com estruturas e organizações
mais estabilizadas . Às novas fronteiras de recursos, dirigem-se os inves-
timentos, sobretudo de grandes empresas dos setores de pecuária, de
agricultura intensiva (grãos) e de infraestrutura, movimento que tem
provocado a elevação das taxas de desmatamento, apesar da criação nos
últimos anos de várias unidades de conservação (UC) .
Na análise das relações sociais na BR-163, constata-se em primei-
ro lugar a heterogeneidade das dinâmicas socioterritoriais – há uma
diferenciação de interesses, de alianças e de redes de mercado . Para
a exequibilidade das políticas de ordenamento territorial, é funda-
mental identificar quem são os agentes econômicos e sociais e como
agem, bem como sua capacidade econômica e de articulação política,
quais são os arranjos institucionais capazes de lidar com questões
crônicas, como situação fundiária e ilegalidade de direitos de pro-
priedade, ação do poder público das várias esferas, e qual é a variação

Coletânea de Artigos 279


280 Brasil Rural em Debate

das motivações econômicas conforme os custos de oportunidade e de


mobilidade do capital .
De forma sintética, dois modelos parecem predominar na região
da BR-163, embora sejam padrões encontrados também em outras
regiões da Amazônia . O primeiro, aqui denominado fronteira clás-
sica, constitui um padrão que se tem consolidado em diferentes su-
bespaços regionais . A fronteira clássica foi orientada pelos programas
de colonização dos anos 1970 e 1980 e caracteriza-se por uma dada
estrutura de ocupação da terra . Os municípios da Transamazônica
são exemplos dos programas governamentais de colonização e de as-
sentamento dirigido, sobretudo à pequena produção familiar, apesar
de combinados com incentivos fiscais às médias e grandes fazendas
empresas madeireiras . O processo de desmatamento acompanhou a
abertura das rodovias Transamazônica e BR-163 e suas vicinais e a
emergência de centros urbanos . Essas áreas representam também es-
paços de ação política de diversos atores que investiram na constru-
ção de um projeto de desenvolvimento regional .
O segundo modelo, aqui denominado novas fronteiras, é determina-
da pelo avanço de novas frentes de expansão da pecuária, da madeira e
do garimpo, de Itaituba em direção a Castelo de Sonhos, no Pará – uma
frente que se encontra com grupos vindos do Mato Grosso . São áreas,
ou regionalizações, ligadas a partir de certas cidades do Norte do Mato
Grosso pela BR-163 e do Tocantins, por meio de Xinguara, Redenção e
São Félix do Xingu . Daí se originam atores capitalizados, cujas estraté-
gias e interesses estão vinculados à dinâmica da economia pecuária e da
agricultura intensiva (Castro; Monteiro; Castro, 2002) .
A análise das relações sociais entre atores permite identificar uma dife-
renciação interna, dinâmicas próprias de cada modelo . Assim, cada tipo
de pequeno produtor relaciona-se de uma forma particular com os gru-
pos empresariais que controlam a representação política no município e
também no Estado, o que determina graus diversos de legitimidade e de
tolerância . Em Novo Progresso, há uma representação política de produ-
tores que aglutina, na mesma organização, grandes, médios e pequenos
proprietários . Os assentados e os posseiros se relacionam com as empre-
sas como reserva de mão-de-obra de empresas madeireiras e para trabalho
em fazendas . Essas relações no espaço produtivo provocaram no passado,
e ainda hoje provocam, o desmatamento de grandes áreas na BR-163,
apesar das péssimas condições de trafegabilidade da estrada . Da mesma
forma, as lógicas internas do setor madeireiro, em áreas interconectadas,
indicam que não há uma única dinâmica no setor; ao contrário, elas são
diversas e têm a ver com as estratégias de organização para acesso aos re-
cursos disponíveis, com a racionalidade da ação, a constituição de redes e
a capacidade de integração ao mercado .
O avanço da fronteira para o Oeste paraense tem várias frentes e
indica a sucessão no uso da terra . Essa espacialização é bastante eluci-
dativa para entender o futuro dessa região . Um primeiro movimento
é o deslocamento paulatino de grupos que vêm de Goiás e Tocantins,
passando por Xinguara, Redenção e São Félix do Xingu, e vão em
direção à Terra do Meio, a franjas da Transamazônica e a municípios
da Calha Norte, no rio Amazonas . Uma segunda frente desloca-se do
Paraná, do Mato Grosso do Sul e do Mato Grosso, subindo a BR-163
em direção a Castelo de Sonhos, Novo Progresso, Moraes de Almei-
da, Trairão e Santarém, espalhando-se freqüentemente desse municí-
pio para municípios como Monte Alegre, Aveiro, Juruti, Itacoatiara .
Um terceiro movimento chega igualmente aos municípios da Calha
Norte do rio Amazonas, porém configurando, a partir de Rondônia,
uma nova frente estimulada pela dinâmica da produção da soja e pelo
potencial corredor de escoamento de grãos e de outros produtos for-
mado pelo rio Madeira (Castro; Monteiro; Castro, 2004) . Em todos
os casos, há ocupação de novas terras pela pecuária, pelo agronegócio,
pela exploração florestal, o que aquece o mercado de terras e potencia-
liza outras formas de sucessão no uso da terra .
Assim, as economias da madeira, da agropecuária e da mineração
apresentam diferenciações internas que podem ser identificadas a partir
das redes que sustentam a dinâmica dos fluxos de mercadorias e de ser-
viços . No caso da exploração madeireira, uma pesquisa de campo com

Coletânea de Artigos 281


282 Brasil Rural em Debate

enfoque predominantemente qualitativo realizada na BR-163 identifi-


cou dez microdinâmicas demonstrativas desses processos de diferencia-
ção (Castro; Monteiro, 2007) . Destacamos as seguintes:
1 . Pacajá-Anapu: caracterizada pelas serrarias, que se intensifica-
ram no final dos anos 90 e continuam até hoje, atendendo um
mercado variado; o parque é formado por empresas do Sul do
país, sobretudo do Paraná, ligadas a dinâmicas de mercado por
meio de madeireiras de Paragominas, Tailândia, Açailândia e
Sul do Pará;
2 . Altamira-Brasil Novo-Medicilândia: formada por empresas aí
sediadas há até 30 anos, geralmente empresários que combi-
nam o comércio com a pecuária e empresas com representação
de classe na Associação das Indústrias Madeireiras de Altamira
e Transamazônica (AIMAT) e no Sindicato das Indústrias Ma-
deireiras (SIMBAX);
3 . Uruará e Placas: formada por novas empresas, vindas recente-
mente do Sudeste do Pará (Breu Branco e Paragominas) e de
Mato Grosso;
4 . Itaituba-Trairão-Rurópolis: reúne principalmente pequenas em-
presas que atendem ao mercado regional, mas que se relacionam
com as empresas de Itaituba e Miritituba, atuando na compra
de madeira de fornecedores locais para atender as empresas mais
modernas que beneficiam a madeira, sobretudo em Miritituba,
fabricando produtos mais elaborados e demandados pelo merca-
do internacional;
5 . Sinop-Castelo de Sonhos-Novo Progresso: formada por pe-
quenas e médias empresas com certa modernização industrial,
que se deslocaram de cidades do Mato Grosso para Castelo
de Sonhos e Novo Progresso; além de transformarem a madei-
ra localmente, servem como ponto de compra e de comércio
de madeira para abastecer as empresas de cidades do Norte do
Mato Grosso;
6 . Sinop-Moraes de Almeida-Itaituba-Santarém: aí se instalou, na
década de 90, um parque industrial em Moraes Almeida inte-
grado às atividades portuárias de Miritutuba e Santarém e às de
Sinop, pela Rodovia BR-163; e
7 . Jacareacanga-Moraes de Almeida: apesar de ser uma área de ex-
pansão da exploração madeireira e de estar sob a influência de
Moraes Almeida, já possui algumas serrarias, sediadas na cidade
de Jacareacanga, que fornecem matéria-prima para empresas de
Rondônia, pela Transamazônica e pela estrada Transgarimpeira,
e do Mato Grosso, estendendo mais para o oeste a busca de ma-
deira, em direção ao Amazonas (Apuí e Humaitá) .
Em algumas áreas da BR-163, como no trecho que vai de Castelo de
Sonhos a Itaituba, a definição de posses ilegais e a conversão de áreas flo-
restais em pastos estavam projetadas desde os anos 90, período em que
agentes do mercado de terras reconheciam o esgotamento dos recursos
em outras regiões do Sul do Pará . Inicia-se igualmente nessa época o
processo de grilagem de terras na Calha Norte do Amazonas e na fron-
teira do Pará com o Sul do Amazonas (Castro; Monteiro; Castro, 2002) .
Essas dinâmicas, que se pautam por uma lógica expansionista intensiva
de recursos florestais, passaram a conflitar com a expansão da pecuária,
em razão da criação do distrito florestal da BR-163, em 2007, e das
unidades de conservação4 . A tensão ao longo da BR-163 tem levado à
adoção de estratégias bem diferentes e à mudança no padrão de alianças
que caracterizaram o avanço da fronteira nos anos 1970 a 1990 .
Os conflitos entre madeireiros, pecuaristas e pequenos proprietários,
posseiros ou sem terra e a disputa por terra e recursos eclodiram nos
seminários realizados em várias cidades da BR-163, ao longo de 2006 e
2007, organizados pelo Fórum do Zoneamento Ecológico-Econômico
para apresentar a Proposta de Ordenamento Territorial . Esse fato le-
vanta novas questões para a análise da capacidade do Estado de lidar

4
Parque Nacional de Jamanxim, criado em 2006; Floresta Nacional de Jamanxim, Parque Nacional
Serra do Pardo e Estação Ecológica da Terra do Meio, criadas em 2005; reservas extrativistas Riozi-
nho do Anfrísio e Verde Para Sempre, criadas em 2004 (CASTRO; MONTEIRO, 2007).

Coletânea de Artigos 283


284 Brasil Rural em Debate

com essas dinâmicas e da eficácia das medidas de ordenamento territo-


rial, sem que a questão fundiária tenha sido resolvida . Tensão, insegu-
rança e ameaças marcaram essas reuniões entre Estado e organizações
locais, sobretudo de fazendeiros e madeireiros . A reação desses seto-
res dependentes estruturalmente de terras novas para suas atividades
extensivas pode ser explicada pelo interesse em consolidar territórios
conquistados, legalizar terras na maior parte adquiridas por grilagem e
manter terras em estoque para o mercado futuro .
A cidade de Castelo de Sonhos sofreu um forte impacto com a redu-
ção da atividade madeireira; o mesmo se observa entre Moraes de Almei-
da e Santarém . A redução da atividade madeireira teve maiores conse-
qüências devido à interação desse setor com os demais, por causa de sua
informalidade na economia e da não regulação da atividade, que permite
uma plasticidade funcional, ou seja, pessoas de outros ramos de ativida-
de encontram no setor uma forma de fazer caixa para gerar pequenas
ou grandes rendas . Essa plasticidade funcional também marcou outra
fase, ainda mais volátil, a do garimpo, que se estendeu pela BR-163, de
Castelo de Sonhos a Itaituba, incluindo a área de Crepori, espalhando-se
por todo o vale do Jamanxin . O garimpo pouco deixou como estrutura
econômica capaz de alavancar o desenvolvimento da região .
O repasse a fazendeiros de terras destinadas pela União a pequenos
produtores e a grilagem explicam a concentração de terras na BR-163 . A
regularização denota uma política especulativa, de futura valorização, e a
demanda por grupos que representem o ideal da modernização por meio
da agropecuária dominante (Moran; Brondizio, 1998) .

8.3 Possibilidades e desafios da política


de ordenamento territorial
O novo marco legal de ordenamento do território precisa ser visto
na sua correlação com as macropolíticas de desenvolvimento nacional .
O desafio é passar da tradição de intervenção pública setorial e da
”ausência“ do Estado para uma intervenção integrada e com possibili-
dades múltiplas – econômicas, sociais e ambientais –, visando o desen-
volvimento e a sustentabilidade . Seria isso possível? Essa é a questão!
Pressupõe uma capacidade de percepção das dinâmicas locais, das suas
relações com as esferas de ação pública e com os mercados nacionais
e internacional, com os quais as estruturas locais estão irremediavel-
mente relacionadas . O local é uma das dimensões concretas enquanto
território de produção e de experiência social .
Em razão da ausência do Estado ao longo de 40 anos, boa parte das
experiências de gestão territorial, de ocupação da fronteira é fruto de
iniciativas dos próprios atores locais, com suas instituições informais,
suas estratégias de gestão coletiva, no meio evidentemente de conflitos,
como é o caso da ocupação fundiária, aguardando-se políticas de apoio
ao crédito e à produção e políticas sociais . Outro problema é o fato
de o Governo Federal ver nessa região uma província florestal econo-
micamente próspera, que constituiria o primeiro distrito florestal da
Amazônia, apesar de afirmar defender um modelo de desenvolvimento
diversificado, em que as atividades e os setores econômicos tenham
seus projetos firmados com os demais segmentos locais atuantes nos
municípios da BR-1635 .
Podemos conceber uma possível avaliação do papel do Estado na
Amazônia com base em alguns critérios utilizados por O’Donnell (1993)
ao analisar as crises que ocorreram no Brasil, na Argentina e no Peru,
não apenas de ordem socioeconômica, mas também do Estado . O autor
propõe três critérios de análise: a capacidade e a eficiência da burocracia
estatal, a efetividade da lei e a forma de atuação do Estado – se suas ações
são orientadas pelo interesse público ou não . Em relação à efetividade da
lei, é preciso lembrar que a lei se torna possível quando há obediência
por parte daqueles que estão a ela sujeitos, que, por outro lado, acredi-
tam na capacidade da autoridade central – o Estado – de intervir quando
necessário, sustentando a ordem estabelecida . Essa ordem – ressalta o
autor – não é igualitária, porque, embora aplicável a todos, expressa as
desigualdades subjacentes, por meio das leis .

5
Essa questão reflete-se diretamente na manutenção do quadro de pobreza e de desigualdades sociais
nessa região, embora seus recursos naturais sejam explorados intensivamente (CASTRO; MON-
TEIRO, 2007).

Coletânea de Artigos 285


286 Brasil Rural em Debate

Seguindo O´Donnell (1993), pode-se dizer que dois aspectos são re-
levantes para o ordenamento territorial na área de influência da rodovia
Cuiabá-Santarém: a dinâmica de atores considerando a sucessão na terra
e a política desenvolvimentista do Estado . No primeiro caso, houve mu-
dança na composição social e econômica da população, com a emergência,
nos anos recentes, de um novo segmento do empresariado, com maior
capital, voltado para a pecuária, a exploração madeireira, a mineração e,
sobretudo, o agronegócio, altamente atento às oscilações do mercado de
commodities. Observam-se alterações nas relações sociais, com o desloca-
mento de famílias rurais para a cidade e a alteração na composição da
produção familiar e da propriedade da terra, em função da sucessão do
uso da terra . Quanto à capacidade do Estado de assegurar o ordenamento
territorial nessa imensa região, é necessário ultrapassar os interesses confli-
tantes que existem no interior dos ministérios e dos órgãos da União e criar
mecanismos institucionais capazes de garantir o exercício do pacto federa-
tivo, redefinir as relações entre esferas federal e estadual visando viabilizar
a ação local integrada, elevar a presença do Estado na BR-163, assegurar a
efetividade de seus instrumentos legais de regularização fundiária e a im-
plantação de um regime de legalidade e criar de forma efetiva de estimular
o desenvolvimento econômico para diferentes segmentos produtivos .
A dificuldade institucional de articulação entre a política nacional de
desenvolvimento para a BR-163 e outras políticas públicas do Governo
Federal e a falta de articulação entre órgãos federais e destes com o go-
verno estadual, conforme constatado nas negociações ocorridas ao longo
de 2005 e 2006, e tornadas públicas pela imprensa, além da insuficiência
de recursos para o atendimento dos complexos problemas existentes no
Oeste do Pará, levariam a pulverizar ações e investimentos, reduzindo, a
nosso ver, a eficácia das ações de ordenamento territorial, em qualquer
esfera, sobretudo considerando as situações a seguir apresentadas .

8.4 Estado e ações de ordenamento territorial

Algumas ações do Estado, no sentido de um ordenamento territorial,


foram efetivas na BR-163, como o freio no desmatamento em municí-
pios do trecho paraense, com a intensificação das ações de fiscalização
e a criação de unidades de conservação6 . Destaca-se a ação da Polícia
Federal em conjunto com o Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e
dos Recursos Naturais Renováveis (IBAMA) e o Instituto Nacional de
Colonização e Reforma Agrária (INCRA), visando a repressão de crimes
ambientais, grilagem e assassinatos de lideranças de pequenos produto-
res rurais . Foi testado um sistema de dados com informações geradas
em tempo real, georreferenciadas, no posto fixo instalado, em 2006, em
Novo Progresso . A ação conjunta desses órgãos produziu efeitos reais,
pois reduziu o ritmo acelerado de perda da cobertura vegetal nessa área,
embora momentaneamente .
De certa forma, a formulação do Plano da BR-163 contou com a
participação de diferentes segmentos graças à iniciativa do Governo Fe-
deral de ouvir as lideranças sociais, assim como os setores empresariais .
Por outro lado, a formulação do macrozoneamento pelo Governo do
Estado também desencadeou certa discussão na sociedade sobre mode-
los diferentes de ordenamento territorial . Pode-se dizer, portanto, que
existem iniciativas que levam em conta o interesse público . Não há,
porém, ações concretas que alterem o cenário social, político e econô-
mico da área . No caso do Governo Federal, embora haja investimentos
iniciais, definidos após o início das discussões sobre o Plano da BR-
163, as medidas são tímidas diante da complexidade dos problemas .
As dificuldades do Estado para implementar as políticas são de várias
ordens . A sua eficiência pode ser reduzida devido à superposição de
competências dos órgãos federais e estaduais atuantes em uma mesma
área . Cabe ao Estado instituir as regras mais gerais que norteiam a vida
social, podendo inclusive lançar mão do poder coercitivo que detém .
No regime democrático, essas regras são definidas num processo que
pressupõe a negociação com a sociedade . Para fazê-las valer, portanto, é
necessário que o Estado tenha legitimidade para exercer seu poder nos
limites de um dado território (Brito; Castro, 2007) . Em alguns casos,

6
As UC decretadas no correr dos conflitos de 2005 a 2006 abrangem uma grande extensão de terras,
com considerável contiguidade.

Coletânea de Artigos 287


288 Brasil Rural em Debate

há problemas decorrentes da duplicidade de ações, ou da ausência des-


tas, porque os órgãos que devem atuar em determinada situação não
tomam decisões fundamentais . Isso acontece com as unidades de con-
servação localizadas na BR-163, às quais continuam a chegar famílias
de agricultores para ali se instalar, ao mesmo tempo que permanecem
as fazendas e a criação de gado . Essas situações suscitam dúvidas e, por
vezes, divergências dentro do próprio aparelho de Estado, o que impe-
de uma maior agilidade e eficácia na implementação do Plano BR-163
Sustentável, apesar de ser condição essencial para reduzir os conflitos
de interesses e para a criação de possibilidades efetivas de desenvolvi-
mento e sustentabilidade na região .
Uma estratégia importante do Estado pode ser a institucionaliza-
ção de práticas que possibilitem negociações permanentes sobre um
projeto de desenvolvimento, com a participação da sociedade civil or-
ganizada, de seus segmentos sociais e empresariais, incorporando os
conflitos, a pluralidade de interesses e a complexidade da sociedade às
negociações .

8.5 Estrutura fundiária

A questão fundiária é um fator determinante na situação atual . A ilega-


lidade do avanço sobre as terras públicas tem sido a marca do crescimento
das frentes de expansão desde os anos 1970 . Em geral, ninguém tem título
de propriedade, nem mesmo aqueles primeiros colonos assentados pelo
INCRA no início dos anos 1970 .
A ocupação da região pela pecuária de grande e médio portes resultou
em concentração fundiária e aumento da desigualdade no acesso à terra .
A apropriação de vastas áreas por empresas madeireiras também restringe
as possibilidades de expansão da pequena produção familiar . Para o efe-
tivo ordenamento territorial, é urgente concluir o ordenamento fundiá-
rio, levando em conta o asfaltamento da estrada e a dinâmica acelerada
de mercado . Embora o ordenamento territorial não se restrinja à questão
fundiária, ela é a condição essencial para a exequibilidade do Zoneamento
Ecológico-Econômico proposto pelo Governo Federal e adotado como
política na esfera estadual . A questão fundiária é essencial, igualmente,
para a construção de uma política de desenvolvimento do Pará .
A tentativa de apropriação privada de terras públicas e de aquisi-
ção de terras com boa localização ocupadas por populações locais au-
menta com a supressão havida no mercado potencial de terras, com a
titulação de terras indígenas (TI), territórios quilombolas (TQ), reser-
vas extrativas e demais unidades de conservação . Isso fez surgir novos
discursos que tentam produzir um efeito simbólico para deslegitimar
os estatutos de propriedade coletiva assegurados na Constituição de
1968 . No padrão observado, a criação por decreto das TI, TQ e UC
inibe certamente o avanço da fronteira e gera um efeito de proteção
desses territórios, mas não elimina de todo a pressão real sobre eles .
A história recente da Amazônia, não somente no Oeste do Pará,
mostra a morosidade de órgãos públicos marcados pela corrupção e
pelo apoio à grilagem de terras . A ausência do Estado na maior parte
da região representou uma estratégia para deixar a fronteira livre para
os atores, segundo o jogo de poder e da criminalidade; foi funcional e
estrutural no sistema de concentração fundiária, como demonstrado
no diagnóstico socioeconômico da BR-163 (Castro; Monteiro, 2007) .
Um sistema de gestão pública do território passa pela revisão da ques-
tão fundiária e pelos parâmetros do ordenamento territorial, com base
na legalidade e na segurança de direitos7 .

8.6 Trajetórias espaciais rural-urbano

É importante ainda destacar a dinâmica de urbanização na área de


influência da BR-163, considerando que a mobilidade populacional no
território e a conversão do uso da terra podem apresentar alta correlação .
Os dados censitários das últimas décadas (IBGE, 1960, 1970, 1980,

7
A maioria (70%) dos colonos assentados pelo INCRA nos projetos oficiais de colonização, há 35
anos, não tem títulos definitivos. Igualmente, praticamente a totalidade dos ribeirinhos descenden-
tes de caboclos e seringueiros não tem como provar a propriedade das áreas que habitam há cente-
nas de anos. Grande parte dos remanescentes de quilombos ainda não tem suas terras asseguradas.

Coletânea de Artigos 289


290 Brasil Rural em Debate

1991, 2000) mostram uma tendência crescente na taxa de urbanização


nos municípios atravessados pela rodovia BR-163 e nos de sua área de
influência8 . Em 1960, a taxa de urbanização correspondia a 39,95%
da população residente na área, passando essa taxa para 53,57% em
2000 . Esse processo de urbanização é intensificado a partir da década
de 80 . Em 1991, dos 688 .744 habitantes residentes nesses municípios,
372 .051 moravam em áreas urbanas (54,02%) . Há, porém, diferenças
importantes entre municípios, e essa taxa de urbanização decorre, sobre-
tudo, dos três municípios mais populosos e com maior densidade urba-
na: Santarém (70,96%), Itaituba (68,06%) e Altamira (80,43%), onde
justamente se verifica importante mudança nos tipos de uso da terra . Em
1960, dos 181 .459 habitantes da área de influência da BR-163, 116 .810
residiam na Calha do Amazonas, e o município de Santarém destacava-
-se com 93 .440 habitantes em 1960 e 133 .919 habitantes em 1970 .
Segundo o censo de 2000, a população dessas áreas passou para 752 .696
habitantes, e 400 .936 (53%) residiam em áreas urbanas .

8.7 Modernização na fronteira

Para além de um interesse global pela preservação da qualidade de


vida e do planeta, os recursos naturais da Amazônia representam um
mercado de produtos e insumos muito concreto, ligado a redes inter-
nacionais altamente sofisticadas . Isso é real para grandes empresas, mas
também para redes internacionais ligadas aos pequenos ou médios pro-
dutores, organizados em sistemas coletivos, que conseguem repassar pro-
dutos valorizados ao mercado globalizado justamente pelo seu conteúdo
cultural e ambiental .
As trajetórias espaciais refletem transmissões geracionais da ativida-
de, trazendo para as novas áreas de adoção uma cultura que se transfere
também espacialmente . Ao mesmo tempo, há uma sucessão geracional
no desmatamento, verificado nos Estados de origem ou de passagem .
8
Para informações mais detalhadas, consultar o documento Diagnóstico socioeconômico da BR-
163, elaborado em 2007 no âmbito do ZEE-163, pela UFPA e pelo Museu Paraense Emilio Goeldi
(MPEG), sob a coordenação da Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária (EMBRAPA). Dispo-
nível em: <http://www.cpatu.embrapa.org.br>.
Tecnologias de sistemas de produção sustentáveis para a agricultura e
para a pecuária estão sendo testadas em várias regiões da Amazônia e
estão sendo bem-sucedidas .
Os preços internacionais da soja desde a década de 90 impulsiona-
ram a expansão de cultivos nas áreas abertas em Santarém . A conversão
de pastagens em áreas de agricultura intensiva constitui um movimen-
to de alteração da paisagem e de mobilização de recursos para a moder-
nização de estruturas produtivas como as instalações portuárias (porto
da Cargill em Santarém e porto de Itacoatiara), a instalação de plantas
de frigorífico para viabilizar a exportação de carne, a abertura de estra-
das e o asfaltamento da BR-163 . Novas tecnologias concorrem com o
padrão tecnológico instalado, ao lado da sucessão na terra pelo agro-
negócio na região de Santarém, Belterra e Calha Norte do Amazonas .
As campanhas pela paralisação da exploração predatória do mogno
conseguiram resultados a partir de alianças entre atores locais, órgãos
de Governo Federal, Estadual e organizações ambientalistas nacionais
e internacionais . Por outro lado, muitas mudanças têm ocorrido para
que a exploração madeireira na Amazônia possa ser sustentada com
mecanismos de estímulo ao uso da madeira certificada, o que pode
gerar alto valor, além de elevar a economia regional a um outro nicho
de mercado – com a particularidade da qualidade de madeira tropical .
Essa mesma lógica pode ser aplicada a outros produtos regionais que
podem ser explorados com métodos ambientalmente corretos .

8.8 Conclusão
A presença do Estado no ordenamento territorial implica exigências
em gestão e governança . O Estado deve estar preparado para o desafio
de atender o interesse público, estimulando o desenvolvimento econô-
mico na região de influência da BR-163 . As empresas agropecuárias e
madeireiras que mais se mobilizaram contra as medidas de fiscalização
e limitação de autorização de planos de manejo irregulares e contra o
avanço da pecuária, a partir de 2005, estão situadas nos municípios de
Altamira, Santarém, Itaituba, Novo Progresso, Pacajá e Anapu, com

Coletânea de Artigos 291


292 Brasil Rural em Debate

forte participação dos municípios de Paragominas, São Félix do Xingu,


Redenção e Xinguara nas regiões Sul e Oeste do Pará . Mobilizaram-se
igualmente os empresários madeireiros de Itaituba, Novo Progresso e
Castelo de Sonhos . Constituem-se como lideranças empresariais com
discursos de progresso e desenvolvimento, de geração de empregos
e de modernização . Essas práticas foram fortemente amparadas pe-
los governos dos Estados do Pará e de Mato Grosso, e suas lideranças
exercem influência, pois passaram a fazer parte das prefeituras e das
câmaras de vereadores, e dos órgãos de representação de classe . Na
última legislatura, elegeram representantes nas assembléias legislativas
desses Estados . Desde 2005 essas empresas conquistaram um espaço
significativo junto à opinião pública, apoiadas, com raras e honrosas
exceções, pela imprensa regional .
Enfim, apesar da tentativa de evitar dogmas e propostas normativas,
é importante ressaltar o papel da sociedade no processo de planejamen-
to e de controle das ações do Estado . Sua participação ativa e qualifica-
da nas discussões e no monitoramento da ação estatal é essencial para
definir os lugares sociais da participação . Para isso, é fundamental ter
acesso às informações, aos fóruns de deliberação e aos mecanismos de
ação do Estado, que poderá assegurar essa participação na medida em
que a sociedade civil demonstrar sua capacidade de organização e de
mobilização para fazer-se reconhecida e interferir na agenda política .
Na formulação de uma política de ordenamento territorial ou de
macropolíticas de desenvolvimento, por mais detalhadas que sejam e
ainda que sejam derivadas de um processo de mobilização da socieda-
de, há diversas dimensões a considerar para garantir sua exequibilidade .
É fundamental entender o ordenamento territorial como um processo,
produto de disputas e fruto de relações entre atores e interesses . Para
implementá-lo, é ainda necessário considerar os desafios enfrentados
pela sociedade e saber se ela está efetivamente preparada para construir
alternativas sustentáveis econômica, social e ambientalmente . Igual-
mente, é preciso saber como os atores locais vêem a promoção de ações
e estratégias que fortaleçam as organizações populares e suas redes e
fóruns, bem como a construção de estratégias coletivas que resgatem
a noção de território e de territorialidade, e o papel da legalidade nes-
sas novas áreas de fronteira . Nessa perspectiva, no campo normativo,
os procedimentos de ordenamento territorial teriam de dar certo para
gerar desenvolvimento e sustentabilidade social, sem alterar a paisagem,
aumentar a emissão de carbono e empobrecer a biodiversidade (Nobre
et al ., 2002; Batistela; Moran, 2005) como tem ocorrido .
Nesse sentido, a implantação do ZEE BR-163 deve considerar os
inúmeros estudos realizados sobre essa área e as decisões tomadas pelo
Fórum de Organizações da Sociedade Civil da BR-163, nos pólos de
Santarém, Itaituba, Altamira e Sinop – diagnósticos exaustivos que fo-
ram realizados recentemente no lado paraense da rodovia, reunindo inú-
meras instituições de pesquisa sediadas na Amazônia, sob a liderança da
Embrapa (Venturiere et al ., 2007) . Outra indicação seria projetar novos
cenários com base nas questões estruturais – econômicas, sociais e espa-
ciais – que deveriam ser enfrentadas para se obterem melhores resultados
nas ações de ordenamento territorial, levando em consideração o asfalta-
mento da estrada, conforme previsto nas ações prioritárias do PAC . As
ações de ordenamento territorial dessa área de influência da BR-163 de-
vem necessariamente considerar as dinâmicas socioeconômicas em toda
a rodovia, na extensão do Pará ao Mato Grosso .
O Estado, atuando com um modelo de ordenamento territorial para
equilibrar as tensões e conflitos na BR-163, não considerou efetiva-
mente a relação entre a dinâmica local e sua integração às redes de
mercado globalizadas . Daí os vários desafios que se impõem ao Estado,
dentre os quais destacamos:
a) economia global: as mudanças ocorridas hoje na Amazônia têm
a ver com o desenvolvimento e as oscilações da economia nacio-
nal e, em muitos casos, internacional; seu entendimento requer o
exame dos processos locais e globais, em busca de conexões lógi-
cas no complexo mercado transnacional, que podem contribuir
para o aumento de pressão sobre os recursos naturais;
b) Estado e mercado: assiste-se ao aumento da concentração e da
centralização de capital, com empresas e grupos multinacionais

Coletânea de Artigos 293


294 Brasil Rural em Debate

que se associaram ou se fusionam com empresas nacionais e re-


gionais, como estratégia de crescimento e controle no mercado
de matéria-prima, o que pode pressionar o padrão de governa-
bilidade vigente, na esfera local, nacional ou global;
c) políticas de modernização: a dinâmica econômica globalizada acaba
por forçar os Estados e as instâncias públicas a definir os instrumen-
tos de regulação e de modernização da ação do Estado e das estru-
turas econômicas – os efeitos desse processo, mais uma vez, incidem
de forma imediata sobre o local, ainda que seja um espaço já larga-
mente incorporado à dinâmica do mercado global; e
d) dissonância entre esferas de poder: talvez seja inevitável voltar a
Wanderley Guilherme dos Santos, que afirma que a definição de
políticas sociais é uma ”escolha trágica“ e que o Estado deve buscar
um princípio de justiça inquestionável para justificar suas decisões
– essa justiça, para além da efetividade da lei, por si fundamental
na realidade da Amazônia, precisará comprovar que é capaz de
promover a redução das desigualdades sociais, com equilíbrio am-
biental, por meio de uma política de desenvolvimento que não se
confunda tão-somente com crescimento econômico, buscando o
aperfeiçoamento do Estado democrático .
Se tudo isso parece difícil de se concretizar em um horizonte de
curto prazo, com certeza será sempre impossível se não for uma priori-
dade, uma responsabilidade pública .
O ordenamento territorial assim concebido poderia garantir certa
exequibilidade ao novo ordenamento jurídico, com democratização
das relações sociais e econômicas nos novos espaços de fronteira, pre-
servação do potencial de capital natural, aumentando o respeito à lega-
lidade e aos direitos humanos .
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Presidência da República
Casa Civil
Subchefia para Assuntos Jurídicos

DECRETO Nº 6.040, DE 7 DE FEVEREIRO DE 2007.


Institui a Política Nacional de Desenvol-
vimento Sustentável dos Povos e Comu-
nidades Tradicionais .

O PRESIDENTE DA REPÚBLICA, no uso da atribuição que


lhe confere o art . 84, inciso VI, alínea “a”, da Constituição,
DECRETA:
Art. 1o Fica instituída a Política Nacional de Desenvolvimento Sus-
tentável dos Povos e Comunidades Tradicionais - PNPCT, na
forma do Anexo a este Decreto .
Art. 2o Compete à Comissão Nacional de Desenvolvimento Sustentá-
vel dos Povos e Comunidades Tradicionais - CNPCT, criada
pelo Decreto de 13 de julho de 2006, coordenar a implemen-
tação da Política Nacional para o Desenvolvimento Sustentá-
vel dos Povos e Comunidades Tradicionais .
Art. 3o Para os fins deste Decreto e do seu Anexo compreende-se por:
I - Povos e Comunidades Tradicionais: grupos culturalmente di-
ferenciados e que se reconhecem como tais, que possuem for-
mas próprias de organização social, que ocupam e usam terri-
tórios e recursos naturais como condição para sua reprodução
cultural, social, religiosa, ancestral e econômica, utilizando
conhecimentos, inovações e práticas gerados e transmitidos
pela tradição;
II - Territórios Tradicionais: os espaços necessários a reprodução
cultural, social e econômica dos povos e comunidades tradi-
cionais, sejam eles utilizados de forma permanente ou tem-

Coletânea de Artigos 297


298 Brasil Rural em Debate

porária, observado, no que diz respeito aos povos indígenas


e quilombolas, respectivamente, o que dispõem os arts . 231
da Constituição e 68 do Ato das Disposições Constitucio-
nais Transitórias e demais regulamentações; e
III - Desenvolvimento Sustentável: o uso equilibrado dos re-
cursos naturais, voltado para a melhoria da qualidade de
vida da presente geração, garantindo as mesmas possibili-
dades para as gerações futuras .
Art. 4o Este Decreto entra em vigor na data de sua publicação .

Brasília, 7 de fevereiro de 2007;


186o da Independência e 119o da República .
Luiz Inácio Lula da Silva
Patrus Ananias
Marina Silva

Este texto não substitui o publicado no DOU de 8 .2 .2007 .


ANEXO

POLÍTICA NACIONAL DE
DESENVOLVIMENTO SUSTENTÁVEL
DOS POVOS E COMUNIDADES TRADICIONAIS

PRINCÍPIOS
Art. 1º As ações e atividades voltadas para o alcance dos objetivos da
Política Nacional de Desenvolvimento Sustentável dos Povos
e Comunidades Tradicionais deverão ocorrer de forma inter-
setorial, integrada, coordenada, sistemática e observar os se-
guintes princípios:
I - o reconhecimento, a valorização e o respeito à diversidade
socioambiental e cultural dos povos e comunidades tradicio-
nais, levando-se em conta, dentre outros aspectos, os recortes
etnia, raça, gênero, idade, religiosidade, ancestralidade, orien-
tação sexual e atividades laborais, entre outros, bem como a
relação desses em cada comunidade ou povo, de modo a não
desrespeitar, subsumir ou negligenciar as diferenças dos mes-
mos grupos, comunidades ou povos ou, ainda, instaurar ou
reforçar qualquer relação de desigualdade;
II - a visibilidade dos povos e comunidades tradicionais deve
se expressar por meio do pleno e efetivo exercício da cida-
dania;
III - a segurança alimentar e nutricional como direito dos povos
e comunidades tradicionais ao acesso regular e permanente
a alimentos de qualidade, em quantidade suficiente, sem
comprometer o acesso a outras necessidades essenciais, ten-
do como base práticas alimentares promotoras de saúde, que
respeitem a diversidade cultural e que sejam ambiental,
cultural, econômica e socialmente sustentáveis;

Coletânea de Artigos 299


300 Brasil Rural em Debate

IV - o acesso em linguagem acessível à informação e ao conheci-


mento dos documentos produzidos e utilizados no âmbito
da Política Nacional de Desenvolvimento Sustentável dos
Povos e Comunidades Tradicionais;
V- o desenvolvimento sustentável como promoção da melho-
ria da qualidade de vida dos povos e comunidades tradicio-
nais nas gerações atuais, garantindo as mesmas possibilida-
des para as gerações futuras e respeitando os seus modos de
vida e as suas tradições;
VI - a pluralidade socioambiental, econômica e cultural das
comunidades e dos povos tradicionais que interagem nos
diferentes biomas e ecossistemas, sejam em áreas rurais ou
urbanas;
VII - a promoção da descentralização e transversalidade das ações e
da ampla participação da sociedade civil na elaboração, mo-
nitoramento e execução desta Política a ser implementada
pelas instâncias governamentais;
VIII - o reconhecimento e a consolidação dos direitos dos povos e
comunidades tradicionais;
IX - a articulação com as demais políticas públicas relacionadas
aos direitos dos Povos e Comunidades Tradicionais nas di-
ferentes esferas de governo;
X- a promoção dos meios necessários para a efetiva participa-
ção dos Povos e Comunidades Tradicionais nas instâncias
de controle social e nos processos decisórios relacionados
aos seus direitos e interesses;
XI - a articulação e integração com o Sistema Nacional de Segu-
rança Alimentar e Nutricional;
XII - a contribuição para a formação de uma sensibilização cole-
tiva por parte dos órgãos públicos sobre a importância dos
direitos humanos, econômicos, sociais, culturais, ambientais
e do controle social para a garantia dos direitos dos povos e
comunidades tradicionais;
XIII a erradicação de todas as formas de discriminação, incluin-
do o combate à intolerância religiosa; e
XIV- a preservação dos direitos culturais, o exercício de práticas co-
munitárias, a memória cultural e a identidade racial e étnica .
OBJETIVO GERAL
Art. 2o A PNPCT tem como principal objetivo promover o desenvol-
vimento sustentável dos Povos e Comunidades Tradicionais,
com ênfase no reconhecimento, fortalecimento e garantia dos
seus direitos territoriais, sociais, ambientais, econômicos e
culturais, com respeito e valorização à sua identidade, suas
formas de organização e suas instituições .
OBJETIVOS ESPECÍFICOS
Art. 3o São objetivos específicos da PNPCT:
I - garantir aos povos e comunidades tradicionais seus territó-
rios, e o acesso aos recursos naturais que tradicionalmente
utilizam para sua reprodução física, cultural e econômica;
II - solucionar e/ou minimizar os conflitos gerados pela implan-
tação de Unidades de Conservação de Proteção Integral em
territórios tradicionais e estimular a criação de Unidades de
Conservação de Uso Sustentável;
III - implantar infra-estrutura adequada às realidades sócio-cul-
turais e demandas dos povos e comunidades tradicionais;
IV - garantir os direitos dos povos e das comunidades tradicio-
nais afetados direta ou indiretamente por projetos, obras e
empreendimentos;
V - garantir e valorizar as formas tradicionais de educação e for-
talecer processos dialógicos como contribuição ao desenvol-
vimento próprio de cada povo e comunidade, garantindo a
participação e controle social tanto nos processos de forma-
ção educativos formais quanto nos não-formais;

Coletânea de Artigos 301


302 Brasil Rural em Debate

VI - reconhecer, com celeridade, a auto-identificação dos po-


vos e comunidades tradicionais, de modo que possam ter
acesso pleno aos seus direitos civis individuais e coletivos;
VII - garantir aos povos e comunidades tradicionais o acesso aos
serviços de saúde de qualidade e adequados às suas caracte-
rísticas sócio-culturais, suas necessidades e demandas, com
ênfase nas concepções e práticas da medicina tradicional;
VIII - garantir no sistema público previdenciário a adequação
às especificidades dos povos e comunidades tradicionais,
no que diz respeito às suas atividades ocupacionais e reli-
giosas e às doenças decorrentes destas atividades;
IX - criar e implementar, urgentemente, uma política pública
de saúde voltada aos povos e comunidades tradicionais;
X - garantir o acesso às políticas públicas sociais e a participa-
ção de representantes dos povos e comunidades tradicio-
nais nas instâncias de controle social;
XI - garantir nos programas e ações de inclusão social recortes
diferenciados voltados especificamente para os povos e co-
munidades tradicionais;
XII - implementar e fortalecer programas e ações voltados às
relações de gênero nos povos e comunidades tradicionais,
assegurando a visão e a participação feminina nas ações
governamentais, valorizando a importância histórica das
mulheres e sua liderança ética e social;
XIII - garantir aos povos e comunidades tradicionais o acesso
e a gestão facilitados aos recursos financeiros provenientes
dos diferentes órgãos de governo;
XIV - assegurar o pleno exercício dos direitos individuais e cole-
tivos concernentes aos povos e comunidades tradicionais, so-
bretudo nas situações de conflito ou ameaça à sua integridade;
XV - reconhecer, proteger e promover os direitos dos povos
e comunidades tradicionais sobre os seus conhecimentos,
práticas e usos tradicionais;
XVI - apoiar e garantir o processo de formalização institucio-
nal, quando necessário, considerando as formas tradicio-
nais de organização e representação locais; e
XVII - apoiar e garantir a inclusão produtiva com a promo-
ção de tecnologias sustentáveis, respeitando o sistema de
organização social dos povos e comunidades tradicionais,
valorizando os recursos naturais locais e práticas, saberes e
tecnologias tradicionais .

DOS INSTRUMENTOS DE IMPLEMENTAÇÃO


Art. 4o São instrumentos de implementação da Política Nacional de
Desenvolvimento Sustentável dos Povos e Comunidades Tra-
dicionais:
I - os Planos de Desenvolvimento Sustentável dos Povos e Co-
munidades Tradicionais;
II - a Comissão Nacional de Desenvolvimento Sustentável dos
Povos e Comunidades Tradicionais, instituída pelo Decre-
to de 13 de julho de 2006;
III - os fóruns regionais e locais; e
IV - o Plano Plurianual .

DOS PLANOS DE DESENVOLVIMENTO


SUSTENTÁVEL DOS POVOS E
COMUNIDADES TRADICIONAIS
Art. 5o Os Planos de Desenvolvimento Sustentável dos Povos e Co-
munidades Tradicionais têm por objetivo fundamentar e
orientar a implementação da PNPCT e consistem no conjun-
to das ações de curto, médio e longo prazo, elaboradas com
o fim de implementar, nas diferentes esferas de governo, os
princípios e os objetivos estabelecidos por esta Política:

Coletânea de Artigos 303


304 Brasil Rural em Debate

I - os Planos de Desenvolvimento Sustentável dos Povos e Co-


munidades Tradicionais poderão ser estabelecidos com base
em parâmetros ambientais, regionais, temáticos, étnico-so-
cio-culturais e deverão ser elaborados com a participação
eqüitativa dos representantes de órgãos governamentais e
dos povos e comunidades tradicionais envolvidos;
II - a elaboração e implementação dos Planos de Desenvolvi-
mento Sustentável dos Povos e Comunidades Tradicionais
poderá se dar por meio de fóruns especialmente criados
para esta finalidade ou de outros cuja composição, área de
abrangência e finalidade sejam compatíveis com o alcance
dos objetivos desta Política; e
III - o estabelecimento de Planos de Desenvolvimento Sustentável
dos Povos e Comunidades Tradicionais não é limitado, desde
que respeitada a atenção equiparada aos diversos segmentos dos
povos e comunidades tradicionais, de modo a não convergirem
exclusivamente para um tema, região, povo ou comunidade .
DAS DISPOSIÇÕES FINAIS
Art. 6o A Comissão Nacional de Desenvolvimento Sustentável dos
Povos e Comunidades Tradicionais deverá, no âmbito de suas
competências e no prazo máximo de noventa dias:
I - dar publicidade aos resultados das Oficinas Regionais que
subsidiaram a construção da PNPCT, realizadas no perío-
do de 13 a 23 de setembro de 2006;
II - estabelecer um Plano Nacional de Desenvolvimento Sus-
tentável para os Povos e Comunidades Tradicionais, o qual
deverá ter como base os resultados das Oficinas Regionais
mencionados no inciso I; e
III - propor um Programa Multi-setorial destinado à imple-
mentação do Plano Nacional mencionado no inciso II no
âmbito do Plano Plurianual .
9. Terra: direitos
patrimoniais e territoriais*

Introdução
Os povos e comunidades tradicionais, os povos indí-
genas e as comunidades quilombolas são sujeitos de
direitos! Direitos assegurados pela Constituição Fede-
*
O documento foi elaborado de
forma coletiva pelo Grupo de ral de 1988 e pelos tratados internacionais (Convenção
Trabalho sobre Terra e Patrimô- n° 169, da Organização Internacional do Trabalho -
nio Territorial das Comissões
Permanentes 5 e 6 do CONSEA: OIT; Convenção da Sociodiversidade; Convenção dos
CP5 – “SAN das Populações Direitos Humanos, Declaração da Organização das
Negras e Povos e Comunidades
Tradicionais” e CP6 – “SAN das Nações Unidas - ONU) . Entendemos que o objetivo
Populações Indígenas” . Docu-
mento apresentado no Plenário
principal desta plenária e deste documento é apontar
de outubro de 2008 . Foram in- diretrizes para a construção de políticas públicas de Es-
corporados subsídios preparados
pela Conselheira Valéria Paye, da tado para esses povos e comunidades, de forma a lhes
COAIB; pelo Conselheiro Anto- garantir os direitos patrimoniais, o uso sustentável da
nio José da Costa, da coordenação
nacional da CONAQ; pela Con- terra e a promoção da soberania alimentar .
selheira Aldenora Pereira da Silva,
da Pastoral da Criança; pela Sra O debate sobre terra, direitos patrimoniais e territo-
Luana Arantes, do MDS; pelo Sr .
Aderval Costa Filho, coordenador
riais para as comunidades quilombolas, povos indígenas
da Comissão Nacional de Desen- e povos e comunidades tradicionais, sob a ótica da se-
volvimento Sustentável dos Povos
e Comunidades Tradicionais; pela gurança alimentar e nutricional se constitui em um dos
Sra . Maria Aparecida Mendes, pilares do Relatório Final da III Conferência Nacional
membro da Associação Quilom-
bola de Conceição das Crioulas; de Segurança Alimentar e Nutricional (III CNSAN) .
pela Sra . Ermínia Maricato, do
CEDEFES - Centro de Docu- Nesse sentido, é necessário ampliar e coordenar as
mentação Eloy Ferreira da Silva/
MG; pelos colaboradores Crispim
ações voltadas para povos indígenas e demais povos
Moreira e Marcelo Piccin, MDS; e comunidades tradicionais formuladas pelo Decre-
pela Sra . Rosângela Gonçalves
de Carvalho, do MDS; pelo Sr .
to n° 6040, de 7 de fevereiro de 2007: instituir e
Anastácio Peralta, Guarani Kaio- fortalecer programas de conservação, preservação
wa e por Carmem Priscila Bocchi,
assessora técnica do CONSEA . . e recuperação de recursos naturais necessários para
A coordenadora da CP5 – Con- a garantia da segurança alimentar dos povos indí-
selheira Ana Lúcia Pereira - fez a
sistematização para debate . genas, comunidades quilombolas, comunidades de

Coletânea de Artigos 305


306 Brasil Rural em Debate

terreiro, extrativistas, ribeirinhos, pescadores artesanais, caboclos e de-


mais povos e comunidades tradicionais, por meio do reconhecimento,
demarcação, titulação e da regularização fundiária .

9.1 Terras
Destacaremos o direito e uso da terra como estratégia para a sobe-
rania alimentar e garantia do direito humano à alimentação adequada
dos povos e comunidades tradicionais, povos indígenas e comunidades
quilombolas e adotaremos o termo “terras”, conforme o artigo 13, da
Convenção n° 169, da OIT .
A utilização do termo “terras” inclui o conceito de territórios, o que
abrange a totalidade do habitat das regiões que os povos interessados
ocupam ou utilizam de alguma outra forma .
Como membros deste Conselho, adotamos o princípio da soberania
alimentar e nutricional como eixo central para essa discussão . A realiza-
ção desta plenária se justifica pela necessidade de uma problematização
e construção de propostas sobre a regularização fundiária, demarcação
e titulação das terras das comunidades quilombolas, povos indígenas
e comunidades tradicionais, como condição para o sucesso da política
de segurança alimentar e nutricional em nosso país . Esperamos que
este documento e o debate posterior possam orientar a elaboração do
Plano Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional .
Com a globalização e a adoção de políticas neoliberais, a partir dos
anos 1980, o problema da terra se agravou e tende a se tornar explo-
sivo no mundo todo . Com o incremento do agronegócio baseado no
latifúndio, produtos primários como minérios, celulose, grãos, carne,
petróleo e etanol ganharam importância estratégica nos mercados glo-
bais e, hoje, eles promovem a expulsão da população do meio rural,
particularmente dos povos e comunidades tradicionais, numa escala
que virá a ser contabilizada na casa dos milhões de pessoas .
No Brasil, a nona economia do mundo, a questão da terra continua
a se situar no centro do conflito social, mas de forma renovada . Ela
alimenta a profunda desigualdade e a tradicional relação entre proprie-
dade, poder político e poder econômico .
A questão da terra está no centro do conflito sobre agrocombustíveis
e influi no aumento de preços dos alimentos . Ela é o cerne do conflito
sobre a terra indígena Raposa Serra do Sol e de quase todas as terras in-
dígenas e áreas de quilombos . E tem forte ligação com o desmatamento
da Amazônia para avanço do agronegócio .
Inúmeros conflitos existem entre as comunidades quilombolas e
grandes fazendeiros, devido ao fato de as terras ocupadas por aque-
les não receberem a respectiva proteção federal . Em alguns casos, o
governo tomou partido dos que se opõem às reivindicações dos qui-
lombolas . Tais conflitos intensificam-se, frequentemente, ao ponto de
latifundiários recorrerem ao uso de táticas de intimidação .
Apenas 4% (quatro por cento) do território da Amazônia Legal são
regularizados, o que alimenta toda sorte de invasões e fraudes . As terras
devolutas vêm sendo invadidas, configurando uma gigantesca fraude,
que avança há mais de um século pelo território nacional e, atualmen-
te, tem sua fronteira de expansão na Amazônia . Cabe ressaltar que
“terras devolutas” são terras de povos e comunidades tradicionais das
quais os governos se apropriaram de forma indevida .
A última iniciativa, a alimentar a indústria da legalização da grila-
gem, é a Medida Provisória n° 422, de março de 2008, que dispensa
a licitação para a compra de terras públicas . Quem tem a titulação ou
simplesmente a posse de terras (e, pela referida Medida Provisória, a
extensão pode chegar a até 1500 hectares) e quer regularizá-las, deve
levar a documentação solicitada ao Instituto Nacional de Colonização
e Reforma Agrária (INCRA) . Evidentemente, pequenos posseiros e ri-
beirinhos não têm essa informação, nem recursos para providenciar os
documentos .
Para os territórios étnicos-raciais, a terra não é apenas um meio de
produção da sua subsistência e reprodução física, mas, sobretudo, um
patrimônio sociocultural . A terra, para eles, é a sua casa, o lugar onde
nascem, crescem e desenvolvem suas diferentes formas de vida . É o lugar
Coletânea de Artigos 307
308 Brasil Rural em Debate

onde enterram seus mortos e celebram a vida . É o lugar onde produzem


e reproduzem sua cultura e convivem de forma costumeira e respeitosa,
espiritualmente integrada à natureza . Não é mercadoria, nem proprie-
dade privada de pessoa física ou jurídica . É patrimônio coletivo, de todo
um povo, de seus usos e costumes, e, assim, a apropriação dos seus frutos
se dá, igualmente, de forma coletiva, de forma sustentável, seja no âmbi-
to de uma terra, de uma aldeia, ou de grupos familiares extensos .

9.2 Povos e comunidades tradicionais –


estratégias de territorialização
O conceito “comunidades tradicionais” é relativamente novo, tanto
na esfera governamental, quanto na esfera acadêmica ou social . A expres-
são “comunidades ou populações tradicionais” surgiu no seio da proble-
mática ambiental, no contexto da criação das Unidades de Conservação
(UCs), áreas protegidas pelo Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e
dos Recursos Naturais Renováveis (IBAMA), para dar conta da questão
das comunidades tradicionalmente residentes nestas áreas: povos indí-
genas, comunidades quilombolas, extrativistas, pescadores artesanais,
dentre outras .
Para o Decreto nº 6 .040, de 7 de fevereiro de 2007, que institui a
Política Nacional de Desenvolvimento Sustentável dos Povos e Comuni-
dades Tradicionais, com ênfase para o acesso aos territórios tradicionais e
aos recursos naturais, “povos e comunidades tradicionais” são entendidos
como “grupos culturalmente diferenciados e que se reconhecem como
tais, que possuem formas próprias de organização social, que ocupam e
usam territórios e recursos naturais como condição para sua reprodução
cultural, social, religiosa, ancestral e econômica, utilizando conhecimen-
tos, inovações e práticas geradas e transmitidos pela tradição .” .
Segundo estimativas do antropólogo Alfredo Wagner Berno de Al-
meida, os povos e comunidades tradicionais somam aproximadamente
25 milhões de pessoas e ocupam aproximadamente ¼ (um quarto)
do território nacional (estas estimativas incluem povos indígenas, co-
munidades quilombolas e seus territórios tradicionais) . Não obstante,
parte considerável desse montante corresponde a terras ainda não re-
gularizadas, muitas intrusadas e degradadas parcial ou integralmente .
Boa parte dos segmentos sociais tradicionais ainda não dispõe de
aparatos jurídico-formais (decretos, instrumentos normativos) e itine-
rários técnicos que lhes assegurem a regularização territorial . Enquanto
isso, muitas comunidades tradicionais têm se valido das Reservas de
Desenvolvimento Sustentável, das Reservas Extrativistas, dos Assenta-
mentos da Reforma Agrária, dentre outras modalidades, como forma
de manutenção de parte dos seus territórios tradicionais . Temos, in-
clusive, testemunhado a flexibilização de determinadas unidades para
atender demandas territoriais, como é o caso de alguns assentamentos
do INCRA, cuja titulação tem sido coletiva e não parcelada .
É preciso que as políticas públicas reconheçam as diversas
modalidades de apropriação das denominadas “terras tradicio-
nalmente ocupadas”, representando diversas figuras jurídico-
-formais, contemplando a propriedade coletiva (quilombolas), a
posse permanente (indígenas), o uso comum temporário, mas re-
petido em cada safra (quebradeiras de coco babaçu), o uso coletivo
(faxinalenses), o uso comum e aberto dos recursos hídricos e outras
concessões de uso, como o comodato (ciganos) e as sobreposições de
territórios tradicionais com unidades de preservação ambiental (pome-
ranos, quilombolas, indígenas e outros) .
Não há qualquer possibilidade de soberania alimentar sem o acesso
ao território ou a terras agricultáveis . É preciso que o Estado brasileiro
atenda às demandas dessas categorias identitárias, que, pelo seu con-
tingente e abrangência territorial, devem ser incluídas social e politi-
camente, como sujeitos de direitos, inclusive e fundamentalmente, os
direitos territoriais, assegurando reparação, justiça e equidade social .

9.3 Terra indígena e segurança alimentar


A Comissão Permanente de Segurança Alimentar para Povos Indíge-
nas – CP6, do Conselho Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional

Coletânea de Artigos 309


310 Brasil Rural em Debate

(CONSEA), elegeu a “Demarcação e Regularização das Terras Indígenas”


como principal ação do Governo Federal para a garantia da Segurança
Alimentar e Nutricional desses povos . Sem terra, definitivamente, não há
como garantir a soberania alimentar dos mais de 220 povos, falando 180
línguas indígenas, que habitam o Brasil . Com as terras desprotegidas, am-
bientalmente degradadas e sujeitas a invasões, dificilmente as populações
indígenas podem garantir sua sobrevivência física e cultural .
De acordo com a Constituição Federal de 1988, “são terras tradicio-
nalmente ocupadas pelos índios, as por eles habitadas em caráter per-
manente, as utilizadas para suas atividades produtivas, as imprescin-
díveis à preservação dos recursos naturais e ambientais necessários ao
seu bem-estar, e a sua reprodução física e cultural, segundo seus usos,
costumes e tradições” (Título VIII; Capítulo VIII, artigo 231, parágrafo
1º) . Esta garantia constitucional é o reconhecimento do legislador do
fato de que o direito à terra e aos seus usos é condição sine qua non e
absolutamente vital para a existência dos povos indígenas, enquanto
povos diferenciados, no contexto da sociedade nacional .
No Brasil, existem mais de 220 povos, abrangendo uma popula-
ção estimada em cerca de um milhão de pessoas, vivendo em quase
15% (quinze por cento) do território nacional . Atualmente, existem
653 Terras Indígenas reconhecidas, das quais 408 regularizadas, 22
homologadas, 64 declaradas, 28 delimitadas, 32 encaminhadas e 201
em estudo . No entanto, a Constituição de 1988, no artigo 67, esti-
pulou o prazo de 5 anos para que a demarcação das terras indígenas
fosse concluída .
O Governo brasileiro, apesar do que estabelece a Constituição Fede-
ral, ao invés de garantir os direitos territoriais dos povos indígenas, vem
tentando conter a demanda deles por terra, abafando suas reivindicações,
ora dizendo que os povos indígenas não precisam de terra e podem viver
como qualquer branco nas cidades, ora dizendo que os índios já têm ter-
ra demais, reforçando a discriminação aos povos indígenas . Até hoje, o
Governo Federal continua submetido à pressão de interesses econômicos
e políticos, que sempre mandaram neste país e que se movimentam no
sentido de reverter os direitos reconhecidos constitucionalmente . Por esta
razão, os movimentos sociais e, particularmente, o movimento indígena,
têm mantido na pauta das reivindicações os direitos territoriais .
O Estado brasileiro tem se mostrado incapaz de conviver e oferecer
tratamento diferenciado aos povos indígenas, tornando efetivos os seus
direitos, especialmente os territoriais . Essa tendência tem gerado situa-
ções críticas e conflitos de consequências imprevisíveis, em casos como
os da Terra Indígena Raposa Serra do Sol, em Roraima; Terra Indígena
Pataxó Hã-Hã-Hãe, na Bahia; e Terras Indígenas Guarani e Kaiowa,
no Mato Grosso do Sul, onde interesses do latifúndio e do agronegócio
colocam em questão o direito originário dos povos indígenas às terras
que tradicionalmente ocupam . Soma-se a este quadro de ameaças, os
impactos dos grandes empreendimentos que fazem parte do Programa
de Aceleração do Crescimento (PAC), como obras de infraestrutura;
usinas siderúrgicas (Rio Madeira, Estreito e Belo Monte, dentre ou-
tros); a transposição das águas do Rio São Francisco, que atingirá cerca
de 26 territórios indígenas da região nordeste; usinas de álcool no Es-
tado do Mato do Grosso do Sul; estradas; linhas de transmissão; etc .
Os povos indígenas apresentam altos índices de desnutrição e mor-
talidade infantil . Dados da Fundação Nacional do Índio (FUNAI),
apresentados ao presidente Lula em julho de 2008, estimam que para
cada mil crianças indígenas nascidas . 47 morrem antes de completar
um ano, superando desse modo a taxa média de mortalidade infantil
entre os não índios, cerca de vinte mortes para cada mil crianças nas-
cidas (IBGE, 2005), já considerada alta pelos padrões da Organização
Mundial de Saúde (OMS/FUNASA, 2006) .
Esta situação decorre, em larga medida, da relação entre terra e
população indígena, como é o caso evidente da Reserva Indígena de
Dourados, onde reside uma família indígena para 1,6 hectares de terra,
e da degradação ambiental das terras indígenas, em todo o país, provo-
cada por frentes de expansões agrícolas, madeireiras ou minerais, que
resulta na perda ou empobrecimento dos recursos da biodiversidade,
vitais para a sobrevivência física e cultural desses povos . Em muitos
casos, nas diferentes regiões do país, as terras retomadas, após longos

Coletânea de Artigos 311


312 Brasil Rural em Debate

processos de luta, retornam às mãos de seus donos indígenas, em con-


dições de extrema degradação ambiental, porque submetidas, durante
décadas, a processos de exploração insustentáveis .
A garantia territorial, bem como a gestão ambiental e territorial e a
proteção das terras indígenas são condições fundamentais para a garan-
tia da soberania alimentar e do direito humano à alimentação adequa-
da dos povos indígenas .
O Estado brasileiro, reconhecido pela Constituição como de cará-
ter multiétnico e pluricultural, necessariamente terá que enfrentar este
desafio, para garantir a sobrevivência física e cultural dos povos indíge-
nas, o seu direito à diferença, a viver em condições dignas, conforme
seus “usos, costumes e tradições” .

9.4 A terra como identidade quilombola


A Constituição Federal de 1988 trouxe o primeiro grande esforço le-
gal na história do país, no sentido de prover o direito à propriedade
definitiva das comunidades quilombolas . Além disso, promoveu um
reconhecimento geral dos direitos das comunidades quilombolas, me-
diante uma ampliação da garantia do direito à cultura, à proteção e a não
discriminação, de forma particular no artigo 68, do Ato das Disposições
Constitucionais Transitórias, da Constituição Federal de 1988, e sem
seus artigos 215 e 216 .
Seguindo o conceito do Decreto n°4887/03 e da IN nº49, do INCRA:
“Art . 4º . Consideram-se terras ocupadas por remanescentes das comuni-
dades de quilombos toda a terra utilizada para a garantia de sua reprodu-
ção física, social, econômica e cultural .” .
Após vinte anos, no entanto, a Constituição de 1988 permanece, em
grande parte, sem cumprimento . Surpreendentemente, um baixo núme-
ro de títulos de terras foi outorgado às comunidades quilombolas . Entre
3 .550 comunidades quilombolas reconhecidas pelo governo brasileiro,
até maio de 2008, somente 87 (que constituem 143 comunidades) têm
títulos de propriedade . No período de 2003 a 2007, foram tituladas
apenas 6 comunidades quilombolas e, até outubro de 2008, registram-
-se 1 .228 comunidades quilombolas certificadas pela Fundação Cultu-
ral Palmares e 791 processos de regularização fundiária formalizados no
INCRA, em todo o território nacional . Cabe ressaltar que o processo de
certificação é uma das etapas de regularização fundiária .
As reivindicações dos direitos dos quilombolas receberam também
suporte de vários tratados internacionais dos quais o Brasil é signatário .
Em primeiro lugar, importantes padrões e precedentes foram estabele-
cidos pela OIT (Convenção n° 169), no sentido de assegurar o direito
à cultura e à propriedade, bem como por meio de precedentes da Co-
missão e Corte Interamericana de Direitos Humanos .
O processo de outorga de terras fornece uma precária assistência le-
gal e está estabelecido de uma maneira que não leva em consideração a
forma de trabalho e a diferença entre estilos de vida, o que prejudica a
habilidade das comunidades em lidar com os documentos e burocracias
administrativas . Ademais, a recém instituída Instrução Normativa n° 49,
de 29 de setembro de 2008, dificulta ainda mais o processo de regulari-
zação fundiária, aumentando o prazo para as contestações e ampliando o
escopo dos órgãos governamentais para aprovação do Relatório Técnico
de Identificação e Regulamentação (RTID), além de outros agravantes .
Nos poucos casos em que foi concedida a titularidade das terras às
comunidades quilombolas, esta não se deu de forma segura e estável,
como objetivavam os solicitantes . Outro agravante é que tramita no
Supremo Tribunal Federal uma Ação Direta de Inconstitucionalidade
contra o Decreto n° 4 .887/2003, proposta pelo partido Democratas
(DEM, antigo PFL), que defende o agronegócio . Neste cenário adver-
so, a posição do Governo Federal é de recuo, ao invés da firme defesa
dos direitos assegurados na Constituição de 1988 e do combate à dis-
criminação que vem sofrendo o povo quilombola .
Ameaças à concessão de propriedade às comunidades quilombolas tam-
bém foram realizadas no âmbito governamental em diversos níveis . Quando
os interesses governamentais e a proteção dos quilombos colidem, o Go-
verno Federal tende a privilegiar os interesses, das entidades estatais e ins-
tituições públicas, em detrimento da proteção dos direitos dos quilombos .

Coletânea de Artigos 313


314 Brasil Rural em Debate

Talvez os exemplos mais significativos sejam os casos de Alcântara, no estado


do Maranhão, e da Ilha da Marambaia, no estado do Rio de Janeiro . Estes
dois casos ilustram como os interesses estatais parecem ter prevalecido sobre
os direitos das comunidades quilombolas . Conflitos similares entre comu-
nidades quilombolas e Governo ocorreram na concessão de propriedade às
comunidades que ocupavam terras de proteção ambiental . Em tais casos, as
terras do Estado foram peculiarmente privilegiadas em prejuízo dos direitos
das comunidades quilombolas .
A soberania e segurança alimentar e nutricional das comunidades
quilombolas está constantemente ameaçada pela produção de euca-
liptos, sobretudo nos estados de Espírito Santo, Bahia, Minas Gerais,
Rio de Janeiro; pela produção de soja e de cana, em vários estados
brasileiros; pela transposição das águas do Rio São Francisco; pelas
construções de grandes barragens, em vários estados brasileiros; pela
construção do gasoduto, no Espírito Santo; pela concessão de terras
para expansão do agronegócio, no norte do Brasil; e pelo descaso com
os quilombolas de Marambaia (RJ) e de  Alcântara (MA) .
Na maioria dos territórios quilombolas a efetivação das políticas,
tão divulgadas no Programa Brasil Quilombola e, recentemente, na
Agenda Social Quilombola, são uma precariedade, a exemplo da saú-
de, educação, acessibilidade (estradas de acesso), geração de trabalho e
renda e, principalmente, da regularização dos territórios quilombolas .
Isso se agrava ainda mais com o desinteresse por parte dos estados e
municípios em proverem ações voltadas para essas populações . Isso se
manifesta na não diferenciação nos censos escolares das crianças indí-
genas, quilombolas e de povos e comunidades tradicionais, bem como,
no cadastro do Programa Bolsa Família . Esta diferenciação já está as-
segurada por lei, mas precisa ser implementada a partir dos poderes
locais constituídos e sob controle e participação da sociedade civil .

9.5 Recomendações:
1 . seja assegurado o direito humano à alimentação adequada, me-
diante a segurança alimentar e nutricional, com vistas à soberania
alimentar, respeitando a cultura dos povos indígenas, quilom-
bolas, povos e comunidades tradicionais, por meio de medidas
legais que coíbam o avanço do agronegócio e a produção dos
agrocombustíveis;
2 . que as esferas governamentais respeitem, regularizem e execu-
tem os marcos legais existentes na Constituição Federal, nos
acordos e tratados nacionais e internacionais, referentes aos po-
vos e comunidades tradicionais;
3 . a garantia do direito de consulta prévia informada, no caso de li-
cenciamento e implementação de obras e empreendimentos sobre
territórios tradicionais (povos indígenas, comunidades quilombo-
las, povos e comunidades tradicionais);
4 . o reconhecimento, pelos ministérios, das especificidades dos
povos indígenas, comunidades quilombolas, povos e comu-
nidades tradicionais na construção, implementação, monito-
ramento e avaliação das políticas públicas, assegurando aces-
so diferenciado e participação social, bem como a garantia do
Governo Federal do acesso desses grupos às políticas públicas
universais, garantindo-lhes o direito de consulta e anuência;
5 . a regulamentação, pelo Governo Federal, do acesso institucio-
nalizado ao território dos povos e comunidades tradicionais
(extrativistas, pescadores artesanais, caiçaras, pantaneiros, ge-
raizeiros, caatingueiros, ciganos, pomeranos, quebradeiras de
coco babaçu, marisqueiras, seringueiros, faxinalenses, povos
de terreiro, dentre outros), definindo os órgãos competentes
e reconhecendo as diversas modalidades de apropriação e uso
tradicional das terras;
6 . a viabilização, pelo Governo Federal, da pesquisa nacional sobre
povos e comunidades tradicionais no Brasil, assegurando visibili-
dade e inclusão sociopolítica desses segmentos sociais;
7 . a promoção, pelo Governo Federal, em caráter de urgência, da
recuperação de áreas degradadas, nos territórios regularizados
ou em vias de regularização, tradicionalmente ocupados pelos

Coletânea de Artigos 315


316 Brasil Rural em Debate

povos indígenas, comunidades quilombolas e povos e comuni-


dades tradicionais;
8 . o cumprimento, pelo Ministério da Justiça, dos prazos legais do
Decreto n° 1775, de 9 de janeiro de 1996, sobre identificação,
delimitação, demarcação e contestações das terras indígenas;
9 . o estabelecimento, pela FUNAI, dos procedimentos includen-
tes necessários à identificação, à delimitação territorial e à re-
gularização das terras tradicionalmente ocupadas pelos povos
indígenas do Nordeste brasileiro;
10 . o acompanhamento, pela Procuradoria Jurídica Especializada
da FUNAI, de forma articulada, de todos os processos deman-
dados contra os direitos indígenas, com a participação efetiva
dos índios e suas organizações;
11 . a promoção, pela FUNAI, por meio do Ministério da Justiça,
do Ministério Público Federal e do Poder Judiciário, da ampla
discussão dos processos que envolvem a regularização dos terri-
tórios indígenas, garantindo a participação dos povos indígenas,
antropólogos e técnicos especializados na legislação indigenista;
12 . a transformação, pelo Governo Federal, dos programas existen-
tes: Carteira Indígena, Prêmio Culturas Indígenas; Iniciativa
Comunitária, em políticas permanentes;
13 . que a FUNAI tenha recursos humanos, financeiros e infraes-
trutura suficiente para a regularização fundiária e proteção das
terras indígenas;
14 . a articulação do Governo Federal junto ao Congresso Nacional
para a aprovação do Projeto de Lei que cria o Conselho Nacio-
nal de Política Indigenista e a aprovação do Estatuto dos Povos
Indígenas;
15 . o incentivo do Governo Federal à criação de fundos especí-
ficos voltados para o financiamento de atividades produtivas
dos povos indígenas, dos quilombos, dos povos e comunidades
tradicionais, com assistência técnica adequada e com regras ad-
ministrativas que respeitem as suas realidades socioculturais;
16 . a imediata agilidade nos processos de identificação, reconhe-
cimento, demarcação, regularização e titulação dos territórios
Quilombolas em cumprimento às metas estabelecidas pelo Pla-
noplurianual (PPA);
17 . a desburocratização do acesso às políticas públicas, em espe-
cial as divulgadas na Agenda Social Quilombola e no Programa
Brasil Quilombola, priorizando de fato as organizações qui-
lombolas;
18 . a priorização, pelo Governo, da criação de políticas de estado,
ao invés de programas de governo,  que venham a beneficiar os
quilombolas;
19 . a articulação, pelo Governo Federal, do Congresso Nacional
para a aprovação do Estatuto da Igualdade Racial, mantendo o
texto original;
20 . a promoção, pelo Governo Federal, da retirada dos intrusos dos
territórios das comunidades certificadas pela Fundação Cultu-
ral Palmares e do aceleramento dos processos de titulação já em
curso;
21 . a execução, pelo Governo Federal, das políticas públicas de for-
ma intersetorial e promoção de ações afirmativas em curto pra-
zo, com a perspectiva de respostas concretas, fundamentadas
nos marcos legais existentes;
22 . o desenvolvimento dos programas de fomento à produção com
base na agroecologia, que consubstancia a perspectiva da se-
gurança alimentar e nutricional com base na diversidade e no
respeito às culturas alimentares tradicionais;
23 . a garantia, no cardápio escolar, da cultura alimentar dos povos in-
dígenas e comunidades quilombolas (campo e cidade);
24 . a garantia do acesso dos povos e comunidades tradicionais a
Coletânea de Artigos 317
318 Brasil Rural em Debate

todas as espécies de sementes e mudas que estão associadas ao


conhecimento tradicional, que vem sendo transmitido de gera-
ção em geração, fomentando a produção de alimentos de acor-
do com a sua cultura alimentar e promovendo e recuperando a
biodiversidade;
25 . o reforço ao Projeto de Lei da Alimentação Escolar, em tra-
mitação do Congresso Nacional (PL n° 2877/2008), no que
diz respeito à possibilidade de se realizar convênios diretamen-
te entre o Fundo Nacional de Desenvolvimento da Educação
(FNDE) e as comunidades indígenas e quilombolas . A pro-
moção da utilização dos recursos do Governo Federal para a
compra de alimentos, por meio do programa de aquisição de
alimentos da agricultura familiar;
26 . o encaminhamento, junto à Empresa Brasileira de Pesquisa
Agropecuária (EMBRAPA), da proposta de se criar algum tipo
de procedimento que facilite o acesso das comunidades às se-
mentes .
Brasília, 29 de outubro de 2008.
10. Políticas Públicas, desenvolvimento
territorial e atores sociais
no meio rural brasileiro*

Sérgio Pereira Leite**


Nelson Giordano Delgado***
Philippe Bonnal****
Karina Kato *****

* Este trabalho está fundamen-


tado em uma pesquisa realizada
Desde o início do século, o desenvolvimento terri-
pelos autores no âmbito do Ob- torial rural no Brasil tem sido objeto de uma atenção
servatório de Políticas Públicas
para a Agricultura (OPPA/ política crescente, o que deu lugar a um ativo proces-
CPDA/UFRRJ), que, para sua
execução, contou com o apoio
so de definição e implementação de políticas públicas
e o financiamento do Instituto inovadoras . Na maioria dos casos, correspondem a
Interamericano de Cooperação
Agrícola (IICA) . programas governamentais de distintas procedências
** Professor do Programa de (federal, estadual, municipal), além de iniciativas não
Pós-Graduação de Ciências
Sociais em Desenvolvimen- governamentais ou da cooperação técnica e/ou finan-
to, Agricultura e Sociedade ceira internacional, de modo que uma das questões
(CPDA), da Universidade Fe-
deral Rural do Rio de Janeiro importantes no exame de sua implementação diz res-
(UFRRJ), sergioleite@ufrrj .br
***Professor do Programa de Pós-
peito à articulação dessas diferentes iniciativas, pro-
-Graduação de Ciências Sociais gramas e políticas . Neste sentido, observa-se que as
em Desenvolvimento, Agricultu-
ra e Sociedade (CPDA), da Uni- arenas decisórias e os espaços públicos institucionais
versidade Federal Rural do Rio existentes devem ser considerados não apenas como
de Janeiro (UFRRJ), nelsongd@
terra .com .br espaços de representação e de participação dos ato-
****Pequisador do Centre de
Coopération Internationale en
res no processo da política propriamente dita, mas
Recherche Agronomique pour também como o locus de articulação dos programas
le Développement (CIRAD),
pesquisador-convidado do existentes . Em ambos os casos, estamos tratando de
CPDA/UFRRJ, philippe .bon-
nal@terra .com .br
questões políticas, que ultrapassam aspectos mera-
***** Doutoranda do Programa mente técnico-administrativos e estão impregna-
de Pós-Graduação de Ciências
Sociais em Desenvolvimento,
das de relações de poder, o que torna indispensável
Agricultura e Sociedade (CPDA), considerar o empoderamento dos diferentes atores
da Universidade Federal Rural do
Rio de Janeiro (UFRRJ), aniraka- e instituições para avançarmos no exame dessa pro-
to@yahoo .com

Coletânea de Artigos 319


320 Brasil Rural em Debate

blemática . Assim, a análise dos obstáculos existentes para a articulação


de políticas e instituições, e das estratégias que podem ser definidas para
superá-los, pode ser explorada levando em conta precisamente esses três
componentes: (a) os programas governamentais de distintas procedências;
(b) as arenas decisórias e os espaços públicos existentes no território; e (c)
o empoderamento dos diversos atores e agências institucionais presentes
nesses espaços e seus efeitos sobre as possibilidades de articulação das polí-
ticas e das instituições .
Ademais, a análise dos processos territoriais deve cada vez mais con-
siderar a existência de “redes de articulação” de atores, instituições e
programas no processo da política pública, buscando caracterizar suas
formas de construção e identificar seus participantes, as estratégias de
ação coletiva que conseguem implementar, e suas condições de repro-
dução ao longo do tempo . Como as forças endógenas não são, em um
bom número de situações concretas, suficientes para conduzir e garantir
um processo de desenvolvimento local/territorial com características sus-
tentáveis, é central que essas redes de articulação de atores, instituições
e programas não fiquem restritas aos atores, instituições e programas
locais, mas incorporem ou articulem-se a outros “de fora do local” . Uma
hipótese a ser explorada é que essas redes reforçam a capacidade de ação
coletiva dos atores locais, estimulam a realização de alianças, fortalecem
a implementação participativa das políticas públicas e favorecem a “cria-
tividade social” e a efetividade do processo da política . Assim sendo,
contribuem na construção de condições institucionais para a articulação
e a integração crescentes das diversas ações, muitas vezes contraditórias,
voltadas para o desenvolvimento de um determinado local/ território .
O presente artigo, cujo objetivo é analisar a recente experiência bra-
sileira de implementação de políticas de desenvolvimento territorial no
meio rural, apoia-se em um levantamento bibliográfico e documental
sistemático que incorpora, adicionalmente, elementos extraídos de de-
bates ocorridos em fóruns e conferências realizadas no Brasil sobre o
assunto . Assim, quando examinamos a literatura sobre políticas públicas
e desenvolvimento territorial1, pareceu-nos pertinente destacar três di-
mensões indentificadas no uso da abordagem territorial de uma pers-
pectiva de intervenção governamental . São elas: a territorialização da
governança, a territorialização das políticas públicas e a territorialização
do desenvolvimento . O próximo tópico é dedicado ao primeiro ponto,
enquanto os demais constituem objeto dos itens seguintes do artigo .

10 .1 . Desenvolvimento territorial e governança


As observações aqui apresentadas fundamentam-se na premissa de
que a questão do desenvolvimento territorial está ligada à forma como o
Estado atua no espaço nacional, ou seja, como se articulam as decisões
públicas em todas as escalas da organização administrativa . Por forma
de atuação do Estado, entende-se o conjunto de práticas públicas vi-
sando o equipamento do espaço nacional, a organização espacial dos
serviços públicos, assim como as formas de articulação do Estado com os
atores sociais (Bonnal & Maluf, 2007) . Sendo assim, o desenvolvimen-
to territorial e o processo de territorialização das políticas remetem ao
tratamento das dimensões administrativas (desconcentração) e políticas
(descentralização), como nos lembram diversos autores, entre os quais
Perraud (2005: 290) e Sencebé (2007: 2) . No entanto, como teremos
oportunidade de examinar adiante, a articulação desses instrumentos e
políticas não é trivial e demanda, como aponta corretamente Echeverri
(2007), recortes horizontais (articulação de políticas setoriais incidentes
sobre uma mesma região) e verticais (articulação de esferas diferenciadas
de poder – nacional, regional, estadual, departamental, territorial, local,
etc . – tendo por base uma determinada política) .
Por ora vale lembrar que as políticas territoriais foram estruturadas
com o propósito de oferecerem soluções inovadoras com respeito às po-
líticas setoriais, frente aos novos ou antigos desafios da sociedade e da
economia nacional, tais como a pobreza, a desigualdade regional ou,
ainda, a emergência da questão ambiental e sua compatibilidade com o
desenvolvimento econômico e social .

1
Por exemplo, Sepúlveda, Rodríguez, Echeverri y Portilla (2003), Schejtman y Berdegué (2003),
Guimarães (2003) e FAO (2005).

Coletânea de Artigos 321


322 Brasil Rural em Debate

Para um tratamento mais detalhado do assunto, distinguiremos a


seguir três níveis de análise: (i) a questão da territorialização da gover-
nança, (ii) sua evolução histórica e (iii) os desafios atuais do desenvol-
vimento territorial .

10.1.1 A territorialização da governança

A abordagem da territorialização da governança busca utilizar a no-


ção de território como um locus espacial e socioeconômico privilegiado
para implementar processos de descentralização das atividades gover-
namentais e da relação entre Estado e sociedade, que tiveram um papel
relevante no movimento de democratização política do Brasil a partir
da metade da década de 1980 .
Por um lado, a descentralização esteve associada à criação de esferas
públicas ou de espaços públicos, como foram mais comumente cha-
mados, entendidos como arenas sociais . Nessas arenas, a presença de
novos atores, usualmente movimentos e organizações sociais externos
ao sistema político tradicional, buscava ampliar o campo da política ao
tentar redefinir as relações entre Estado e sociedade (civil), da perspec-
tiva dessa última . Nesta ótica, a retomada da política e a reconstrução
da democracia não se restringiram apenas à reativação/redefinição das
instituições democráticas tradicionais – partidos, parlamento, judici-
ário, eleições livres etc . – mas implicaram na criação de novos espa-
ços públicos . Tal mudança procurava contribuir para a transformação
da cultura política predominante e para uma maior compatibilização
entre esfera pública e sistema político, entendidos como requisitos
necessários à implementação de uma governança democrática2 . Um
momento privilegiado da transição democrática, nessa perspectiva, foi
a promulgação da Constituição de 1988 .
O outro lado das transformações que acompanharam a economia
e a sociedade brasileira a partir da década de 1980 foi o que Delgado
(2005: 62) chamou de “ajustamento constrangido à ordem econômica
2
Existe uma ampla literatura a respeito. Consulte-se, por exemplo, Avritzer (1996 e 2002), Dagnino
(1994 e 2002) e Dagnino, Olvera e Panfichi (2006).
globalizada”, ou seja, o ajustamento econômico unilateral à crise da
dívida externa por parte do Brasil e de outros países latinoamericanos,
que levou simultaneamente à quebra financeira do Estado, à crise de
sua iniciativa desenvolvimentista e à adoção do receituário de políticas
econômicas e sociais neoliberais, especialmente nos anos 1990 . Com a
ascensão ao poder da ideologia e da política neoliberais, há uma inten-
ção explícita de redefinir o papel do Estado na sociedade e de alterar
completamente o padrão de relação Estado e mercado predominante
na economia brasileira a partir da década de 1950 .
Nesse sentido, fez-se um esforço significativo para reduzir a capaci-
dade de intervenção do Estado nacional, com o propósito de passar ao
mercado e às empresas internacionais a responsabilidade fundamental
pela retomada do crescimento econômico do país . Assim, o processo
de descentralização ocorrido neste período – bem como o surgimento,
com muita força retórica, da idéia de desenvolvimento local como o
espaço possível e desejável para onde a “energia desenvolvimentista”
deveria ser canalizada3 – reflete também a crença no esvaziamento da
capacidade intervencionista do Estado nacional, cuja atuação deve-
ria ficar restrita, quase exclusivamente, à obtenção e à preservação do
equilíbrio macroeconômico (em especial fiscal e monetário) .
As peculiaridades das transformações ocorridas na economia, na socie-
dade, na política e nas condições de governança do Brasil, a partir da dé-
cada de 1980 – à semelhança do ocorrido em outros países da América
Latina – correm o risco de não serem percebidas se não levarmos em conta
a dialética desse processo de convergência entre o projeto neoliberal de um
lado e o projeto democratizante de outro (Dagnino, 2004: 195) .
No caso brasileiro, a territorialização da governança ligada ao pro-
cesso de descentralização e de desconcentração administrativa consi-

3
Ver, a respeito, Oliveira (2001). Mas note-se que a idéia de local e de desenvolvimento local, além de
ter parte de seu ressurgimento contemporâneo associado aos processos da globalização, ganhou, no
caso brasileiro, grande interesse político e acadêmico devido à proliferação de governos progressistas
em vários municípios por todo o país. Nesse sentido, e refletindo a complexidade dos processos que
estamos assinalando, a idéia de local e de desenvolvimento local é uma “invenção” tanto de setores
conservadores como das forças progressistas!

Coletânea de Artigos 323


324 Brasil Rural em Debate

derou o município como o seu “local” por excelência e, devido à con-


fluência acima mencionada, produziu uma proliferação concomitante,
nos municípios, tanto de espaços públicos de participação como de
políticas públicas fragmentadas .
Embora, os espaços públicos de participação tenham sido criados como
parte de uma nova institucionalidade democrática que visava preencher
o vazio existente entre a sociedade civil e a autoridade estatal, buscando
ampliar o conceito de público, partilhar poder com as agências estatais e
favorecer a construção de uma cultura democrática, sua efetividade real foi
limitada e enfrentou inúmeros obstáculos pelo fato de que os municípios
eram os locais onde não apenas estava o “povo” ou a “sociedade civil”, mas
onde também as oligarquias tradicionais tinham arraigados seu poder e
sua capacidade de arregimentação política . As figuras centrais do sistema
político municipal onde se manifestava o poder das oligarquias eram as
prefeituras e as câmaras de vereadores, de modo que, do ponto de vista da
governança democrática, conquistar a autonomia dos espaços públicos de
participação em relação a essas instâncias de poder estatal passou a ser uma
luta política não desprezível . Nesse aspecto, como destaca Dagnino (2002:
282), os conflitos que se verificavam em quase todos os casos estudados
de espaços públicos locais tinham que ver com a partilha efetiva do poder
estatal pelas representações da sociedade civil local .
Por outro lado, a restrição da capacidade coordenadora do Estado
nacional, motivada por sua crise institucional e pelas orientações ema-
nadas do credo neoliberal, estimulou uma considerável fragmentação
das políticas públicas descentralizadas (econômicas e sociais), além de
dificultar ainda mais a já historicamente limitada capacidade de articu-
lação entre políticas originadas dos diferentes níveis da administração
governamental (federal, estadual e municipal) .
Nesse sentido, destacamos que, ao contrário do que muitas vezes
se alardeia, os espaços públicos de participação não são instrumen-
tos “mágicos” de governança territorial, orientados estruturalmente à
construção de algum tipo de concertação/harmonização de atores do
Estado e da sociedade civil nos territórios . Em sociedades autoritárias
e excludentes como a brasileira, o oposto é muitas vezes mais frequen-
te . Tornam-se lugares de conflito, nos quais a partilha do poder entre
representantes de esferas sociais diversas nas decisões acerca da política
pública é um de seus objetivos fundamentais .
Em boa parte desses espaços, tais conflitos se manifestam através de
concepções diversas acerca do significado da participação . Por um lado,
atores governamentais entendem a participação como um modelo de
gestão da política pública baseado no reconhecimento do principio da
subsidiariedade, submetido à lógica da racionalidade técnica . Por outro,
atores da sociedade civil tendem a considerá-la como um processo de
democratização da política pública, orientado pela lógica da racionali-
dade comunicativa e da aprendizagem, além da oportunidade aberta ao
controle social da implementação dos programas governamentais pelos
atores envolvidos (Cordeiro et al ., 2007) . Como consequência, muitos
espaços públicos acabam imobilizados pela impossibilidade de equacio-
nar esses conflitos ou por sua própria deterioração .
O reconhecimento de que a construção de uma institucionalidade
democrática é bastante conflitiva, e de que o território não é simples-
mente um espaço social onde a “harmonia” política, gerencial e social
pode ser mais facilmente obtida – como algumas abordagens parecem
sugerir - remete para a questão fundamental da necessidade de cons-
trução hegemônica no território e de existência de projetos políticos
participativos e democratizadores que possam ser compartilhados por
atores do Estado e da sociedade civil . Sem esse esforço, dificilmente a
tensão – existente em todos os espaços públicos – entre gestão e de-
mocratização será canalizada de forma positiva, e as oportunidades de
articulação de diferentes instituições e políticas públicas serão conside-
ravelmente estreitadas (Dagnino, 2002; Delgado e Limoncic, 2004) .

10.1.2 O processo de governança em perspectiva histórica

As questões postas até aqui sobre os limites e alcances destes novos


espaços territoriais como lócus de processos sociais, políticos e econô-
micos inovadores, devem ser enfocadas a partir de uma perspectiva
Coletânea de Artigos 325
326 Brasil Rural em Debate

histórica, onde as transformações no contexto político e institucional


(ou seja, as dimensões politics e polity das políticas públicas, respec-
tivamente) têm pesado decisivamente na capacidade operacional dos
novos instrumentos (policies) de intervenção pública governamental e
não governamental (Leite et al ., 2007) .
Cabe ressaltar, ainda, que o Brasil constitua uma federação há mais
de um século, o funcionamento do federalismo continua sendo um
tema de disputa entre o poder federal e os executivos estaduais e mu-
nicipais . A inscrição da descentralização como preceito constitucional,
renovou a reflexão sobre a organização dos poderes nos três níveis,
rebatendo na redistribuição das responsabilidades entre eles . Contudo,
tomando em conta a herança nacional marcada pela justaposição do
patrimonialismo estadual e do centralismo autoritário, a implementa-
ção da descentralização resultou num processo difícil e demorado que
só teve início no primeiro governo de Fernando Henrique Cardoso
(1995-1998) . Durante a última década, foram criados instrumentos
indispensáveis para avançar na descentralização da ação pública . Avan-
ços foram conseguidos em diferentes áreas . Na área financeira, a Lei de
Responsabilidade Fiscal contribuiu para o esclarecimento das relações
fiscais e orçamentárias entre a União e os governos estaduais, tentando
restringir a “guerra fiscal” . Na área administrativa, ações foram reali-
zadas para melhorar a gestão dos programas públicos, envolvendo a
participação da sociedade local via conselhos, comissões, câmaras etc .,
assim como ações de capacitação dos funcionários públicos nos estados
e a definição de procedimentos para a implementação, acompanha-
mento e fiscalização das políticas públicas . Durante o governo Luiz
Inácio Lula da Silva, foi elaborada e aprovada a Lei dos Consórcios que
agilizou a cooperação intergovernamental4 .
Os mecanismos implementados pelos sucessivos governos federais,
desde 1994, deram resultados altamente positivos, principalmente,
4
Segundo Echeverri (2007) a vigência dos mecanismos de co-financiamento das ações públicas em
determinadas regiões e/ou territórios tem contribuído para o processo de articulação de políticas
públicas na medida em que pressupõe alguma capacidade de diálogo e interface entre os poderes
envolvidos.
nas áreas social (saúde, educação fundamental, combate à fome, pre-
vidência) e financeira (Abrucio, 2006) . Isto revela uma melhoria da
capacidade administrativa na gestão descentralizada e desconcentrada
de políticas públicas . As dificuldades nascem na hora de estabelecer
políticas próprias nos níveis municipais e estaduais e, principalmente,
de definir políticas públicas em territórios que não correspondem às
unidades administrativas da Federação .
Tais dificuldades limitam ainda o aprofundamento da descentralização
e impedem a flexibilidade de planejamento das unidades municipais e esta-
duais . Uma delas reside na estrutura das receitas ainda fortemente concen-
tradas no nível federal, o que limita a transferência de responsabilidades da
União e obriga a manter um pesado sistema de repasse de recursos . Outra
refere-se evidentemente à desigual capacidade financeira e administrativa
existente entre os diversos municípios e estados da federação, o que cria
uma forte dependência das unidades mais pobres vis-à-vis à redistribuição
fiscal da União . A persistência de uma ideologia não cooperativa em rela-
ção às outras unidades da federação nas instâncias municipais ou estaduais,
assim como a persistência de “traços patrimonialistas”, integram ainda o
painel das dificuldades reais persistentes .
No entanto, Abrucio (2006) estima que o aspecto que mais con-
tribuiu para a limitação da descentralização foi a fraqueza da visão
estratégica durante a década de 1990, quando o esforço para a trans-
formação da máquina administrativa limitou-se à sua adequação aos
padrões e exigências do projeto democrático-liberal . Os desdobramen-
tos recentes, no entanto, parecem indicar que este quadro – ausência
de projeto estratégico, enxugamento do Estado, liberalização extrema-
da das políticas etc . – poderia estar em mutação, representando, talvez,
uma “lenta retomada do planejamento estratégico” .
Como se sabe, o sistema de planejamento estratégico da União, in-
troduzido ao final dos anos 1940, teve um papel importante no equipa-
mento do país em diferentes períodos . O primeiro aconteceu nos anos
1950, com o Plano de Metas, destinado a fomentar a modernização
econômica do país e a construção de Brasília . O segundo grande período

Coletânea de Artigos 327


328 Brasil Rural em Debate

se deu durante os anos 1970, com os Planos Nacionais de Desenvolvi-


mento I e II, elaborados com o objetivo de promover e complementar os
grandes investimentos requeridos pelo processo de industrialização na-
cional, em especial atendendo setores estratégicos como o petroquímico,
o energético etc . Durante os anos 1980 e início dos anos 1990, a crise
fiscal, a contestação do centralismo do Estado e a emergência da ideia
de “Estado mínimo”, tiveram como consequência direta o abandono do
planejamento de médio e longo prazos .
É somente em 1995, com o Plano Plurianual (PPA) 1996-1999,
que reemerge a preocupação em antecipar as necessidades do país vi-
sando ao seu desenvolvimento econômico . Esse plano estratégico, for-
mulado na continuidade do Plano Real e num contexto de crise fiscal
e de abertura econômica foi, antes de tudo, norteado pela preocupação
de controlar a inflação e reativar o crescimento . Durante este período,
a visão estratégica ficou limitada ao fortalecimento de eixos de desen-
volvimento, concebidos como espaços geográficos polarizados por vias
de transporte com saída para o mar, ou seja, vias privilegiadas para o
abastecimento do mercado doméstico (em especial na região litorânea)
e do mercado internacional .
Com o PPA 2000-2003, o projeto do Estado evoluiu, passando de fa-
cilitador das exportações para indutor do desenvolvimento . Tratou-se de
apoiar eixos nacionais de integração e desenvolvimento . Duas estratégias
nortearam a elaboração deste plano . Em primeiro lugar, especulou-se
sobre a necessidade de ampliar o conceito de desenvolvimento, integran-
do uma preocupação com a sustentabilidade no processo de desenvol-
vimento econômico . A noção de eixo de desenvolvimento foi transfor-
mada em Eixo Nacional de Integração e Desenvolvimento, atribuindo
maior consistência à área de influência de cada eixo . A segunda estratégia
foi a de atrelar o plano plurianual ao Plano de Estabilização Fiscal, esta-
belecendo as regras de estabilização da economia, marcada fortemente
pelo viés ortodoxo, mantido na gestão posterior .
O PPA 2004-2007, preparado pelo governo Lula, caracterizou-
-se por manifestar – para além das preocupações com a estabilidade
econômica e com o estímulo à produtividade e à competitividade, que
constituíam o cerne dos dois planos anteriores – uma vontade de re-
equilíbrio social e territorial, afrontando com políticas específicas os
problemas da pobreza e da estagnação do desenvolvimento econômico
das regiões vulneráveis (Araújo, 2003) . Assim sendo, observou-se uma
reintrodução da preocupação com o desenvolvimento diferenciado .
Com relação à formatação, este último PPA inovou ao organizar, em-
bora de forma muito incipiente e problemática, um debate público,
em todo o território nacional, aberto aos atores sociais .
No que diz respeito ao PPA 2008-2011, foi possível observar que
em seu processo de elaboração, particularmente no conjunto de textos
que resultou na oferta de “subsídios territoriais” ao PPA (ou ainda no
“PPA territorializado”), foi cogitada a possibilidade de melhorar a con-
catenação dos mecanismos de territorialização das políticas públicas
e seu rebatimento no planejamento estratégico . No entanto, não há
dúvida de que o anúncio do Programa de Aceleração do Crescimento
(PAC), em 2007, acabou “atropelando” uma iniciativa mais concreta
de ordenamento territorial do planejamento ao redefinir os investi-
mentos públicos e privados em função das linhas de ação prioritárias
para o crescimento econômico .
Assim, a preocupação com o planejamento estratégico, após o seu
quase abandono durante os períodos de crise e de abertura econômica,
parece passar por um processo de renascimento, embora de maneira er-
rática, como exemplifica o PPA 2008-2011, que não recebeu o destaque
e a função de coordenação da ação pública esperados, quando se observa
a evolução dos planos anteriores . Contudo, durante esses diversos pla-
nos, nota-se que o papel do Estado passou sucessivamente de (i) ator
principal do planejamento do desenvolvimento, para (ii) fiscalizador da
ortodoxia orçamentária, numa lógica de Estado mínimo, e, finalmente,
para (iii) ator indutor do desenvolvimento mediante parcerias com o se-
tor privado e diálogo com os movimentos e organizações sociais . Obvia-
mente não se trata aqui de afirmar qualquer linearidade e evolucionismo
nessa performance, mas de ressaltar, muito resumidamente, o jogo de

Coletânea de Artigos 329


330 Brasil Rural em Debate

forças políticas e econômicas que têm impulsionado tal transformação


(Bonnal &Maluf, 2007) .
A definição recente da Política Nacional de Desenvolvimento Re-
gional (PNDR) e a discussão em curso sobre a Política Nacional de
Ordenamento Territorial (PNOT) ilustram, a nosso ver, esta tentativa
de reinvestir no planejamento estratégico . A PNDR está estruturada
especificamente sobre a problemática da desigualdade regional em
múltiplas escalas (macroregional, regional e subregional), priorizan-
do uma entrada territorial . Uma primeira implicação dessa orienta-
ção é que esta política passa a ter um posicionamento particular com
respeito às demais políticas, sendo transversal às políticas sociais ou
econômicas setoriais e complementar às políticas de infraestrutura e
territoriais (desenvolvimento agrário, meio ambiente, cidades) . Este
posicionamento particular obriga a definição de dispositivos específi-
cos de coordenação entre essas diferentes políticas .
Contudo, mais uma vez, esta evolução no sentido da promoção do
planejamento estratégico integrado de longo prazo, previsto e preparado
ao fim do primeiro governo Lula, foi substituída pela emergência, no fi-
nal de 2006, da afirmação de uma estratégia de curto prazo, centrada na
preocupação setorial para resolver problemas urgentes e prioritários da
sociedade, a qual deu lugar à implementação de programas específicos,
tais como o já aludido PAC, o Plano de Desenvolvimento da Educação
(PDE), ou, de maneira mais ampla, das políticas ligadas ao sistema de
metas governamentais . Isso ressalta a presença, no processo de planeja-
mento nacional, de uma grande dificuldade operacional: a de articular
de maneira eficiente políticas públicas fragmentadas (ou setoriais) .

10.1.3 O contexto e os desafios na lógica do desenvolvimento territorial

No Brasil, o debate atual sobre o desenvolvimento territorial rural


fundamenta-se, em primeiro lugar, na observação da persistência in-
terligada da pobreza rural e da desigualdade regional, e se enquadra na
discussão mais ampla sobre o desenvolvimento econômico e a susten-
tabilidade .
De fato, apesar de observarmos um processo acelerado de redução
relativa da pobreza rural no país, seu nível absoluto continua elevado .
Estima-se que cerca de 12 milhões de pessoas viviam, em 2001, com
menos de 1 dólar por dia (Banco Mundial, 2001) . Essa situação de
pobreza de massa no meio rural contrasta evidentemente com as altas
taxas de crescimento econômico da agricultura capitalista .
A desigualdade social e econômica existente entre as diversas regiões
brasileiras – fenômeno que tem estreita relação com a pobreza rural – é
outra realidade que chama a atenção pela sua importância e profundi-
dade histórica . Observa-se que a renda per capita do Estado mais rico
da União, o Distrito Federal, era, em 2000, cinco vezes superior à da
unidade mais pobre, o Maranhão (Brasil, MIN, 2007) . A diferença é
evidentemente maior quando se consideram as microrregiões e é ain-
da mais expressiva no nível municipal . Também cabe lembrar a força
da herança histórica . A diferenciação territorial/regional fortaleceu-se,
durante o período republicano, com a concentração industrial . Alguns
economistas, tais como Araújo (2006) ou Diniz (2002), estimam que,
após um período de desconcentração observado durante a segunda
metade do século XX, está ocorrendo uma espécie de reconcentração
espacial das atividades econômicas, notadamente num polígono loca-
lizado no Sudeste e no Sul do país, que atua como pólo agregador de
indústrias inovadoras .
Assim, o Brasil é ainda um dos países do mundo com maior desi-
gualdade espacial e social, uma vez que 70% do Produto Interno Bruto
(PIB) está concentrado numa área muito restrita, localizada no Cen-
tro-Sul do país e em algumas capitais dos estados das outras regiões . As
principais características desta desigualdade territorial são as seguintes:
(i) a concentração da população na faixa litorânea, correspondendo
à velha lógica da exploração do território no sentido leste-oeste, com
exceção de algumas capitais regionais do interior; (ii) a urbanização
acelerada e a afirmação do poder econômico e social das grandes me-
trópoles, que concentram uma parte cada vez mais significativa da po-
pulação e da produção econômica (serviços); (iii) a concentração da

Coletânea de Artigos 331


332 Brasil Rural em Debate

pobreza e dos índices mais reduzidos de desenvolvimento humano nas


regiões Norte e Nordeste do país (incluindo a parte norte de Minas
Gerais), com manchas no sul do Estado de São Paulo e centro do
Paraná; (iv) a disseminação, nas diferentes macrorregiões do país, de
subregiões com rendas econômicas mais elevadas e boas condições de
vida, embora de tamanhos muito variáveis .
De certa forma, o conceito de território (concebido como uma escala
de ação adequada para empreender políticas públicas diferenciadas) insere-
-se nesse contexto, refletindo as disputas existentes entre estratégias tão
distintas, como aquela que acentua o processo de crescimento econômico
com forte vocação exportadora na área agrícola, ou ainda uma estratégia
que valorize os processos de desenvolvimento sustentável aliado à idéia de
justiça e/ou equidade social .
Esta constatação levanta a questão do aparente paradoxo ligado à
proximidade dos objetivos das diferentes políticas públicas e a distin-
ção dos referenciais teóricos mobilizados no campo da economia para
justificá-las . De fato, a maioria das políticas públicas territoriais ob-
jetiva reduzir a pobreza e a desigualdade social e territorial, mediante
o incentivo à ação coletiva voltada para a realização de projetos de
elevação de renda compatíveis com os ativos culturais locais e atentos
ao meio ambiente .
Ao lado desta aparente homogeneidade de objetivos, observa-
-se uma variação ampla de abordagens teóricas usadas em traba-
lhos e programas de desenvolvimento territorial no Brasil . Os re-
ferenciais sobre o desenvolvimento territorial local, baseados na
concepção neomashalliana, são, por exemplo, muito presentes nos
trabalhos sobre os arranjos produtivos localizados, colocando ên-
fase nas relações entre os atores econômicos e sociais e na defi-
nição do ambiente favorável ao desenvolvimento de produção
localizada e diferenciada . Esta concepção, que se fundamenta nas ex-
periências italianas dos distritos industriais, é defendida por econo-
mistas, notadamente europeus, tais como Pecqueur, Bagnasco e Ga-
rofoli, cujo interesse está centrado nas dinâmicas de concentração de
pequenas indústrias (Veiga, 1999) . Diferentes são os referenciais es-
pecíficos ao desenvolvimento regional citados por Guanziroli (2006),
Uderman (2005) e Amaral Filho (1999) e que correspondem tanto aos
gerados nas décadas de 1950 até 1970 sobre os pólos de desenvolvi-
mento e as dinâmicas de atração (Perroux, Myrdal, Hirschman, Furta-
do, etc .), quanto aos referenciais mais recentes sobre o crescimento en-
dógeno, o capital social e os clusters (Krugman, Putnam, Porter, etc .) .
De forma diferenciada, destaca-se também o referencial institucio-
nalista ou neoinstitucionalista, que enfatiza os acordos, regras e organi-
zações criadas pelos atores no nível local, para diminuírem os custos de
transação de acesso ao mercado ou para se protegerem contra o risco .
Uma de suas preocupações é entender o processo de mudança institu-
cional, tentando perceber como os atores locais se adaptam a contextos
em transformação ou, ao contrário, conseguem se proteger desse tipo
de situação . Está incluída nesta abordagem a questão da ação coletiva
e do comportamento do indivíduo dentro do grupo, como destacam
diversos autores, entre eles Olson, Crozier e Fridberg . E, por fim, figu-
ram os referenciais da economia solidária, da economia plural, da so-
ciologia econômica ou da socioeconomia, que, numa lógica de articu-
lação das dimensões econômica e social, reconhecem a importância e a
força das relações de solidariedade e de reciprocidade dentro do grupo,
reportando a estudos de Polanyi, Granovetter e Mauss, entre outros .

10 .2 . Territorialização das políticas públicas


Diante do quadro acima, não é fácil construir uma análise que dê con-
ta da complexidade do debate conceitual sobre o emprego de categorias
como território, empoderamento, empreendedorismo, entre outras, e da
praxis dos processos sociais, políticos e econômicos que tensionam esses
novos espaços de articulação de atores e de políticas públicas5 .

5
Existe uma vasta literatura sobre as questões acima mencionadas. Consultar, entre outros, os tra-
balhos de Abramovay (2000, 2003 e 2007), Bebbington (1999), Carrière e Cazella (2006), Couto Fo.
(2007), Haesbaert (2004), Jean (2007), Ortega e Mendonça (2007), Sumpsi (2007) e Veiga (1999),
além de documentos oficiais.

Coletânea de Artigos 333


334 Brasil Rural em Debate

Araújo (2007), por exemplo, apresenta de forma extremamente inte-


ressante, uma “tipologia” das políticas públicas a partir do corte territo-
rial, que prevê quatro possibilidades . Na primeira, as políticas setoriais
estão territorializadas – ocorrendo uma articulação entre as esferas na-
cional, estadual e municipal, como é o caso do Sistema Único de Saúde
(SUS) – ou há uma “leitura territorial” das mesmas, como é o caso de al-
guns programas da área de Educação e de Ciência e Tecnologia, como o
programa Educação no Campo . O segundo tipo de políticas associadas
à dimensão territorial corresponderia, segundo a autora, aos programas
construídos sobre bases territoriais específicas, como é o caso da políti-
ca do Programa de Desenvolvimento Sustentável dos Territórios Rurais
(PDSTR), da Secretaria de Desenvolvimento Territorial (SDT), do Mi-
nistério do Desenvolvimento Agrário (MDA), ou ainda de intervenções
do Ministério de Integração Nacional (MIN), como a PNDR e o Pro-
meso, do Ministério do Desenvolvimento, Indústria e Comércio com os
Arranjos Produtivos Locais (APLs) etc . A terceira classificação se refere
à construção de planos territoriais específicos como espaços próprios de
planejamento da ação governamental (via PPA, por exemplo), que vem
ganhando espaço em contextos regionais/estaduais, como nos casos de
Sergipe, Bahia, Rio Grande do Norte, Ceará, Pará etc . Finalmente, uma
quarta possibilidade diz respeito às políticas territoriais propriamente di-
tas, privilegiando um enfoque de desenvolvimento endógeno ou ainda
de um movimento bottom-up, como parece ser o caso de alguns consór-
cios intermunicipais ou da experiência de planejamento no Seridó (RN) .
Sem negar a importância de uma digressão mais longa sobre esses pon-
tos, o que foge ao escopo de nosso trabalho, buscamos, a seguir, recortar o
problema a partir de dois temas relacionados aos processos de territoriali-
zação: as políticas públicas e o desenvolvimento .
A abordagem da territorialização das políticas públicas faz parte
do processo de descentralização administrativa das atividades gover-
namentais, que ganhou importância a partir da metade da década de
1980 ao início dos anos 1990, precisamente no contexto da experi-
ência de confluência entre a democratização política e a adoção de
políticas neoliberais . Nesse sentido, ela reflete essa dupla influência:
por um lado, uma intenção democratizante de desenvolvimento do
país e de redução das desigualdades existentes entre e em suas dife-
rentes regiões e, por outro, uma busca de reordenamento territorial
a partir de um Estado nacional, para o qual se pretendia, na época,
reduzir a capacidade de intervenção e de formulação de estratégias e
de projetos de desenvolvimento nacional .
O resultado foi a multiplicação de agências e de programas – federais,
estaduais e municipais – para a territorialização das políticas públicas
sem a existência de uma política nacional de territorialização munida de
mecanismos institucionais capazes de estimular o diálogo e a articula-
ção coerente entre agências e programas/ações nos diversos “territórios”,
definidos a partir de diferentes critérios . Ademais, sem uma política na-
cional, as tentativas isoladas de territorialização das políticas públicas
levaram, muitas vezes, à guerra fiscal entre estados e entre municípios .
De modo geral, pode-se dizer que a abordagem da territorialização das
políticas públicas tem sido implementada no Brasil de duas perspectivas .
Por um lado, figura uma perspectiva de reordenamento/reorganização
territorial que busca atualizar as políticas tradicionais de desenvolvi-
mento regional, passando de uma ênfase que prioriza as grandes regiões
administrativas do país para outra que destaca a relevância de escalas
menos abrangentes, como é o caso da escala micro ou mesorregional .
Por outro lado, há uma perspectiva que salienta a territorialização de po-
líticas públicas específicas, usualmente de recorte setorial, diferenciadas
ou universais, com o objetivo de alcançar maior eficácia e efetividade na
implementação da descentralização desse tipo de programa .
Como já assinalamos, na década de 1990, com a crise do Estado
nacional e o maior protagonismo atribuído ao mercado e à abertura
da economia ao exterior, verificou-se uma “interrupção do movimento
de desconcentração do desenvolvimento na direção das regiões me-
nos desenvolvidas” (Araújo, 2000:119), esboçando-se uma tendência
à inserção espacialmente bastante diferenciada do Brasil à economia
internacional . Essa tendência vai ressaltar a distinção entre espaços

Coletânea de Artigos 335


336 Brasil Rural em Debate

competitivos e não competitivos em todas as macrorregiões do país,


acentuando em muitos casos a sua heterogeneidade, e reforçando a
herança de fragmentação do país em focos dinâmicos de inclusão e em
áreas de exclusão . Os aspectos perversos manifestos nessas tendências
foram tolerados pela inexistência de políticas de desenvolvimento re-
gional expressivas durante os anos 1990 – além dos projetos de infra-
estrutura voltados para as exportações .
A preocupação com essa situação, juntamente com a emergência de
novas concepções de desenvolvimento, levou nos anos 2000 ao ressurgi-
mento do interesse pela definição e pela implementação de uma política
de desenvolvimento regional para o Brasil que, ao tentar enfrentar as
desigualdades regionais inerentes ao desenvolvimento nacional, ressaltou
as potencialidades econômicas, sociais e culturais da diversidade territo-
rial existente no país .
O levantamento feito por Senra (2007) mostra uma gama impres-
sionante de políticas e de instituições governamentais que, nos níveis
federal, estadual e municipal, dedicam-se hoje à temática do desenvol-
vimento territorial . Vamos aproveitar a abrangência desse trabalho para
destacar alguns de seus resultados, que nos interessam mais de perto .
Desenvolveu-se progressivamente nos anos 2000 um discurso nas
instituições governamentais favorável à abordagem territorial do de-
senvolvimento e das políticas públicas, associado muitas vezes às idéias
de desenvolvimento regional e local, e assumido inclusive pelos gover-
nos estaduais e municipais . A partir de 2003, foi criada a PNDR, no
MIN, que definiu as mesorregiões diferenciadas como seu objeto prio-
ritário de atuação, tendo em vista a redução das desigualdades sociais
e regionais no país . Nesse mesmo período, o MDA, por intermédio
da SDT, estabeleceu uma política de desenvolvimento territorial, por
meio da criação dos Territórios Rurais de Identidade e posteriormente,
num arco ministerial ampliado, dos Territórios de Cidadania .
No Governo Federal, existe um grande número de ministérios e de
agências setoriais que formulam e implementam políticas públicas ou
linhas de financiamento relacionadas, de alguma forma, ao desenvolvi-
mento econômico territorial . Entre eles, incluem-se: MIN; Ministério
do Planejamento, Orçamento e Gestão (MPOG); MDA; Ministério
do Desenvolvimento Social e Combate à Fome (MDS); Ministério do
Trabalho e Emprego (MTE); Ministério do Desenvolvimento, Indús-
tria e Comércio (MDIC); Ministério das Cidades (MC); Ministério da
Ciência e Tecnologia (MCT); Ministério do Meio Ambiente (MMA);
Sebrae; Banco do Nordeste (BNB) e Banco do Brasil (BB) . As políticas
setoriais que se relacionam com o desenvolvimento econômico territo-
rial foram classificadas pelo trabalho de Senra (2007) em quatro gru-
pos principais: políticas territoriais, políticas de fomento às atividades
produtivas, políticas sociais, e políticas de infraestrutura . Para ficarmos
com a classificação proposta pelo autor, sem prejuízo de outras clas-
sificações possíveis, discorremos a seguir sobre os grupos assinalados .
De modo geral, o exame das políticas de fomento às atividades produtivas
indicou a proliferação de um grande número de instituições, cujos progra-
mas e ações não indicam qualquer articulação efetiva em relação às diversas
noções de território que são utilizadas pelas agências governamentais . As po-
líticas sociais estão organizadas em sistemas nacionais verticais que exigem a
adesão de estados e municípios para garantir seu acesso aos recursos dos pro-
gramas nacionais, o que implica a criação de conselhos e de fundos de finan-
ciamento locais, usualmente municipais . Tais conselhos, no entanto, têm
sua vinculação estabelecida em relação a esses programas federais específicos,
sem qualquer compromisso com a transversalidade das políticas públicas no
território onde atuam . As políticas de infraestrutura, com exceção do sanea-
mento, não são gerenciadas por meio de sistemas nacionais descentralizados
e tendem a não se articular com outras políticas existentes nos territórios .
São geralmente executadas por agências federais específicas .
Apesar das tentativas realizadas, inclusive através do Plano Pluria-
nual (PPA) e da Câmara de Políticas de Integração Nacional da Casa
Civil da Presidência da República (Brasil, PR, 2006), o estudo de Sen-
ra (2007: 36) faz menção à existência de escassas evidências sobre a
presença tanto (1) de diretrizes e critérios para a articulação da atuação

Coletânea de Artigos 337


338 Brasil Rural em Debate

das instituições federais no território, como (2) de casos concretos de


atuação conjunta dessas instituições .
Quanto ao que denomina de políticas territoriais federais, Senra
(2007) chama a atenção para um notável contingente de territórios
que foram criados no Brasil e que convivem simultaneamente, defi-
nidos por atributos diversos, inclusive de escala, funções e elementos
de classificação . Apesar disso, é sintomático que o governo federal não
enfatize a prática de territorializar as políticas públicas, o que denota,
adicionalmente, a ausência de uma política efetiva de territorializa-
ção no país, no sentido de uma política de atuação territorializada do
Estado nacional más allá da territorialização de suas políticas públi-
cas setoriais . Como diz Senra (2007: 46), “(e)m geral, as políticas seto-
riais não praticam o planejamento espacializado dos investimentos, não
reconhecem as regionalizações previstas pelo próprio governo federal e não
adotam indicadores que permitam a priorização de recortes territoriais” .
Embora Senra (2007) não trate deste aspecto, a não generalização des-
sa política não tem a ver apenas com falhas na racionalidade técnica
da atuação do governo federal, mas reflete também – e de forma mais
intensa – a disputa de poder envolvida no processo de territorializa-
ção e de qualquer descentralização administrativa, que se manifesta
concretamente na luta por distribuição de poder e de recursos entre as
esferas federal, estadual e municipal de governo .
Não obstante, existem, segundo Senra (2007), políticas e programas
federais que atuam diretamente nos territórios e que criam uma ins-
titucionalidade territorial com a expectativa de viabilizar a articulação
entre as políticas públicas que incidem sobre os mesmos . Cinco dessas
políticas e suas institucionalidades são mencionadas (p . 46): os fóruns
das mesorregiões do MIN; os territórios rurais sustentáveis do MDA;
os territórios dos Conselhos de Segurança Alimentar e Desenvolvi-
mento Local (Consads) do MDS; os conselhos das cidades do MC; e
os pactos de concertação do MPOG .
Todas essas experiências – não vamos considerar os conselhos das cida-
des – representam avanços na concepção da territorialização das políticas
públicas, que as aproximam da abordagem da territorialização do desen-
volvimento, pois, de alguma forma, preocupam-se em criar condições
institucionais para viabilizar o desenvolvimento dos territórios a que se
referem e não se limitam à “boa” operacionalização e ao controle social
de políticas públicas especifícas . No entanto, os fóruns mesorregionais
e os pactos de concertação são experiências de abrangência nacional re-
lativamente restrita até agora . As experiências mais relevantes – e pro-
missoras, no caso dos primeiros – são as dos territórios do MDA e do
Consad . Embora os segundos priorizem o tema da segurança alimentar
e do combate à fome (Mendonça e Ortega, 2007), ambos são territórios
que incluem número compatível de municípios, têm instituições territo-
riais federais com objetivos semelhantes, e possuem um grande número
de municípios comuns (45% dos municípios dos Consads fazem parte
também dos territórios rurais sustentáveis) (Senra, 2007: 48) .
Contudo, a grande diversidade de recortes territoriais existentes no
Brasil ainda figura como um complicador importante para o estabele-
cimento de uma política nacional de territorialização . Dificulta tam-
bém a consolidação de um processo de territorialização das políticas
públicas – e não referente apenas às políticas públicas territorializadas
– que contaria com uma maior transversalidade, menor fragmentação,
institucionalização territorial mais coerente e efetiva, e maior potencial
para estimular as possibilidades do desenvolvimento territorial no país .
É preciso não esquecer, no entanto, que a existência dessa diversidade
de recortes territoriais é consequência também de disputas por poder e
por recursos existentes tanto no âmbito das instituições federais, como
entre as instâncias federais, estaduais e municipais de governo – o que
aparentemente não é valorizado por Senra (2007) . Talvez seja essa a
principal razão da permanência dessa situação, das enormes resistên-
cias encontradas para superá-la e da impossibilidade de implementação
de uma politíca nacional de territorialização, mesmo quando “todos”
parecem apoiar a retórica da territorialização .
O levantamento de Senra (2007: 10) observou também um crescente
envolvimento dos governos estaduais com a territorialização de suas ini-

Coletânea de Artigos 339


340 Brasil Rural em Debate

ciativas e políticas públicas . Nesse sentido foram identificados dois tipos


de movimentos dos governos estaduais: (1) a promoção de atividades
produtivas e de geração de trabalho e renda nos territórios, e (2) a exe-
cução de políticas de regionalização e de descentralização administrativa
e orçamentária . Em relação ao primeiro tipo de atividades, Senra (2007)
encontrou três posicionamentos diversos dos governos estaduais consi-
derados em sua pesquisa (Acre, Ceará e Minas Gerais) que classificou
como: estado facilitador de novos empreendimentos (Minas Gerais), es-
tado indutor do desenvolvimento econômico (Ceará) e estado investidor
direto em atividades produtivas (Acre) .
Quanto às políticas de descentralização administrativa e de regiona-
lização foram encontrados diferentes perfis de institucionalização nos
estados pesquisados (Ceará, Mato Grosso do Sul, Rio Grande do Sul
e Santa Catarina), embora seu objetivo geral fosse regionalizar a ad-
ministração estadual, articular as ações públicas nos territórios e abrir
espaços para a participação da sociedade civil local nessa instituciona-
lidade . Assim, no Ceará, predominam escritórios técnicos de desen-
volvimento local e regional, conselhos e agropolos; em Santa Catarina,
foram instituídos conselhos regionais e secretarias de desenvolvimento
regional; e no Mato Grosso do Sul e no Rio Grande do Sul, foram cria-
dos conselhos regionais (COREDEs) como instituições autônomas da
esfera governamental .
A experiência dos COREDEs, em particular, chama a atenção, uma
vez que ilustra bem as dificuldades para descentralizar (neste caso nos
estados) a formulação e a implementação das políticas públicas . No Rio
Grande do Sul, esses conselhos foram criados em 1991, com a preocupa-
ção de reduzir a desigualdade intrarregional acirrada pela industrialização
concentrada e pelos processos migratórios por ela induzidos . Em 1996,
existiam no estado 26 conselhos, cuja área de atuação cobria a totalidade
do espaço estadual . Um fórum dos COREDEs foi então instituído com
o fim de agilizar a coordenação entre os conselhos e facilitar a negociação
junto aos poderes públicos estadual e federal . O grande desafio era tentar
oferecer uma solução descentralizada para as decisões de planejamento
do governo estadual, construir um sistema de coordenação horizontal,
estabelecer uma organização que fosse relativamente autônoma em re-
lação à pressão político-partidária, e criar condições para implementar
uma regionalização dos Orçamentos Anuais (Bandeira, 2007) .
Limitados no princípio a uma função consultiva, os COREDEs ganha-
ram progressivamente espaço no processo de decisão acerca do orçamento
estadual, embora os efeitos tenham sido reduzidos devido à pouca dis-
ponibilidade de recursos públicos . A estratégia de promover um enfoque
participativo culminou em 1998 quando se aprovou um projeto de Lei
introduzindo a Consulta Popular, mediante a qual a população era con-
vidada a propor uma lista de investimentos a serem realizados na região .
Apesar das dificuldades com o poder executivo estadual, esta dinâmica
participativa desembocou, em 2002, durante o Governo de Olívio Dutra,
na elaboração de uma nova Lei estadual combinando elementos das expe-
riências da Consulta Popular e do Orçamento Participativo .
Os COREDEs possuem várias vantagens que explicam o porquê de
sua permanência: sua legitimidade formal, sua composição plural, a
preocupação dos membros em manter uma pauta autônoma, a capa-
cidade de desempenhar ações articuladas junto com o Poder Executi-
vo e a Sociedade Civil, e o envolvimento, inclusive na elaboração de
diagnósticos e pesquisas regionais, de representantes das universidades
locais . Apesar dessas vantagens importantes, os Conselhos Regionais
não foram capazes, no entanto, de mobilizar os devidos apoios para
implementar “um modelo completo e abrangente de governança re-
gional” (Bandeira, 2007) . A experiência dos COREDEs, entre outras,
destaca em primeiro lugar a capacidade dos atores locais e regionais
para criarem instituições originais fundamentadas em procedimentos
inéditos . Mas aponta, também, as dificuldades existentes para definir
novos espaços de governança que, pelo fato de existirem, contestam
implicitamente a repartição do poder e da administração nos três ní-
veis estabelecidos pela constituição, o que remete ao debate sobre fede-
ralismo e descentralização .
Por sua vez, o discurso da territorialização das políticas pú-
blicas coloca os municípios como “os principais elos das

Coletânea de Artigos 341


342 Brasil Rural em Debate

organizações territoriais, base da ocupação do território e do desen-


volvimento regional” (Senra, 2007: 11) . Da mesma forma, as polí-
ticas territoriais dos municípios são consideradas importantes para a
consolidação dos territórios . Entretanto, não obstante os avanços já
alcançados, a realidade ainda está distante da retórica . Segundo infor-
mações do IBGE de 2001, mais da metade dos municípios brasileiros
possuía algum tipo de incentivo para atrair empresas, mas apenas 3%
elaborava algum plano estratégico de desenvolvimento (Senra, 2007:
11) . Apesar do aumento da importância dos municípios nas últimas
décadas e da grande diversidade existente em sua capacidade de inter-
venção (municípios grandes e pequenos, ricos e pobres etc), a maioria
dos municípios brasileiros enfrenta grandes limitações financeiras que
os tornam dependentes dos recursos e das políticas federais e estaduais .
Como consequência, as políticas territoriais dos municípios são frá-
geis, carecem de apoio das políticas federais e estaduais ou a elas se so-
brepõem . Segundo o levantamento feito, as principais políticas muni-
cipais, que poderiam ser lembradas como territoriais, são os consórcios
privados (para compartilhar a realização de serviços), as associações de
municípios (para fortalecer a representação política e a capacidade de
prestação de serviços técnicos) e os comitês de bacias hidrográficas .

10 .3 Territorialização do desenvolvimento
Nesta abordagem da territorialização, o foco central da análise é pos-
to na questão do desenvolvimento, que passa a ser concebido numa
perspectiva territorial . Não se trata de considerar apenas a questão da
governança descentralizada ou da implementação e do controle so-
cial descentralizados de políticas públicas específicas: agora o centro da
atenção é o desenvolvimento sustentável, que abrange, sem dúvida, as
questões da governança e da descentralização de políticas, mas que tem
de costurá-las com outras questões suplementares, que dizem respeito
à dinâmica econômica e social endógena ao território .
A abordagem da territorialização do desenvolvimento pode ser desen-
volvida tanto de uma perspectiva nacional, como de uma perspectiva
local . No primeiro caso, o desenvolvimento nacional é pensado de uma
ótica territorial, ou seja, as formas como o desenvolvimento nacional
se manifesta através de transformações econômicas, políticas, culturais,
ambientais nos diversos territórios que compõem o território nacional .
Algo semelhante ao que se utilizou ao falar de desenvolvimento de uma
perspectiva regional e que permitiu questionar a maneira como as trans-
formações em curso afetavam as estruturas econômicas, sociais e políti-
cas nas diversas regiões existentes no país, reduzindo ou aumentando as
desigualdades, criando ou não condições para a continuidade sustentável
dessas transformações, aumentando ou debilitando a coesão territorial
nacional etc . Nessa perspectiva, algum tipo de planejamento nacional
teria de ser concebido para viabilizar o tratamento e a operacionalização
de iniciativas como a territorialização dos investimentos, das atividades
produtivas, da infraestrutura de serviços etc .
Outra perspectiva, na qual a abordagem da territorialização do de-
senvolvimento pode ser concebida e operacionalizada, é a do desenvol-
vimento local, quando o local é identificado com o território, qualquer
que seja a noção de território utilizada . Neste caso, o território é a uni-
dade espacial de intervenção governamental na qual se pretende cons-
truir ou dinamizar uma determinada institucionalidade pública capaz
de criar ou de estimular oportunidades para o deslanche de processos
econômicos, sociais e políticos julgados coletivamente como adequa-
dos ao desenvolvimento sustentável do território .
É claro que precisamos aqui de uma noção de território e de uma
noção de desenvolvimento . A primeira sempre vai ser um tanto arbi-
trária, porque escolhida a partir de critérios diferenciados relacionados
tanto com os objetivos da intervenção governamental como da emer-
gência de processos políticos e sociais que constroem e delimitam uma
determinada área de atuação de grupos sociais específicos . Mesmo que o
ponto de partida seja constituído por critérios a partir de dimensões eco-
nômicas, geográficas, culturais, políticas etc, o território da intervenção
governamental será sempre uma construção social não necessariamente
idêntica ao território originário . O território “Do Sisal” da SDT/MDA,
na Bahia, não é o mesmo território “Do Sisal” que pode ter sido identifi-

Coletânea de Artigos 343


344 Brasil Rural em Debate

cado originariamente como o resultado de uma longa construção histó-


rica . A presença da intervenção governamental pode desencadear proces-
sos que promovam deslocamentos ou descentramentos das identidades
ressaltadas originariamente, bem como pode propiciar a emergência ou
o fortalecimento de uma determinada identidade .
Por essa razão, a noção de território de “identidade” deve ser utilizada
com cuidado . As identidades não são fixas e podem ser profundamenta-
mente transformadas como resultado das mudanças econômicas, sociais,
culturais e políticas promovidas por processos, inclusive os de desenvol-
vimento, que venham a ser implementados nos territórios . Nesse senti-
do, o conceito de “território de identidade”, utilizado, por exemplo, no
PDSTR, pode ser um bom ponto de partida para a escolha dos territó-
rios que serão incluídos num programa de intervenção governamental,
na medida em que aparentemente reforça a possibilidade de construção
coletiva tanto da proposta de desenvolvimento territorial como de sua
gestão . Todavia, a partir daí as identidades predominantes devem ser
relativizadas, pois essa pode ser uma das consequências dos processos
sociais desencadeados . A manutenção inalterada de identidades suposta-
mente originárias pode ser muito mais uma “fantasia” dos pesquisadores
e/ou dos técnicos, do que uma reivindicação dos grupos sociais existen-
tes nos territórios: a hibridez das identidades sociais é uma das caracterís-
ticas mais notáveis da contemporaneidade (Hall, 2003; Bhabha, 2003) .
Partindo de alguma noção de território6, a discussão do desenvolvi-
mento territorial passa pela consideração metodológica de três compo-
nentes fundamentais: (1) as dinâmicas econômicas, sociais, políticas e
culturais endógenas ao território; (2) a arquitetura institucional pre-
dominante – a existência e conformação de agências e arenas estatais e
de esferas públicas – e sua influência sobre a forma como as políticas
6
Uma revisão sistemática do conceito de território, de um ponto de vista disciplinar, pode ser encon-
trada em Cazella et al (2009). Sepúlveda et al. (2003: 4) definem os territórios rurais como “espaços
geográficos, cuja coesão deriva de um tecido social específico, de uma base de recursos naturais par-
ticular, de instituições e formas de organização próprias, e de determinadas formas de produção,
troca e distribuição da renda” (ênfase no original). Não há dúvida que as dinâmicas econômicas e
sociais endógenas ao território, adiante mencionadas, vão estar relacionadas com o tecido social, a
base natural e as formas de produção, troca e distribuição de renda existentes no território.
públicas incidem no território; e (3) os processos sociais e os meca-
nismos institucionais através dos quais o território se relaciona com o
“fora do território”, com o “resto do mundo” .
É consensual que o desenvolvimento territorial tem de ser pensado
levando necessariamente em conta as dinâmicas econômicas, sociais,
políticas e culturais endógenas ao território . Essa, aliás, é uma das ra-
zões porque o território é preferido ao município como unidade de
intervenção . O fato de o território ser uma construção social, e não
simplesmente uma construção político-administrativa – como muitas
vezes ocorre com os municípios – e possuir uma escala mais ampla fa-
vorece à percepção e ao surgimento de dinâmicas econômicas, sociais,
políticas e culturais mais complexas e promissoras, capazes de envolver
articulações rurais-urbanas e propostas de ação coletiva por parte dos
atores existentes com maior capacidade de impactar as características e
a sustentabilidade dos processos de desenvolvimento .
Dentre o grande número de óticas em que as dinâmicas endógenas po-
dem ser consideradas, queremos chamar a atenção para um aspecto: o fato
de que as dinâmicas endógenas e o tipo de ação governamental capaz de
impactá-las serão influenciados pelas características do território escolhido .
Ou seja, da perspectiva da intervenção, estaremos considerando territó-
rios onde já existem economia razoavelmente estruturada, tecido social
minimamente articulado e atores sociais relativamente capazes de ação co-
letiva? Isto é, escolheremos territórios onde alguns atributos usualmente
destacados no “sucesso” do desenvolvimento territorial, tais como capital
social, identidade territorial etc . estão, pelo menos incipientemente, pre-
sentes? Ou vamos privilegiar territórios onde a economia, o tecido social
e a capacidade de ação coletiva dos atores têm ainda de ser construídos
ou descobertos? Este é o caso de situações em que a pobreza econômica é
predominante, em grande parte como consequência da incapacidade das
populações existentes terem acesso a recursos e a direitos .
Duas problematizações derivam dessas observações . A primeira diz
respeito ao conceito de desenvolvimento territorial que será utilizado .
Se adotarmos o conceito de Schejtman e Berdegué (2003: 1), para quem

Coletânea de Artigos 345


346 Brasil Rural em Debate

o desenvolvimento territorial rural é “um processo de transformação pro-


dutiva e institucional em um espaço rural determinado, cujo fim é reduzir a
pobreza rural”, os territórios selecionados deveriam ser prioritariamente
os do segundo tipo acima mencionado . Nesta perspectiva, o objetivo
da territorialização do desenvolvimento é o combate à pobreza rural .
Contudo, se partirmos de um conceito um pouco mais amplo e com-
plementar de desenvolvimento territorial, segundo o qual o objetivo não
é exclusivamente o combate à pobreza rural, mas sim a dinamização da
sociedade territorial e o fortalecimento e a consolidação da agricultura
familiar, então o primeiro tipo de territórios acima referido ganha rele-
vância . Nesse caso, o objetivo da territorialização do desenvolvimento
poderia ser a consolidação da agricultura familiar no meio rural .
Pode-se dizer, sem dúvida, que, no longo prazo, esses dois objetivos da
territorialização do desenvolvimento, se forem bem sucedidos, tenderão a
convergir . Em ambos os casos, as ações de desenvolvimento territorial têm
como objetivo estimular a criação de oportunidades econômicas, sociais,
políticas e culturais que os grupos sociais existentes no território poderiam
acessar e expandir, de modo a transformar sua capacidade de agir para
ganhar a vida, para dar um significado às suas ações e para mudar as estru-
turas econômicas, sociais, políticas e culturais que lhe impedem de melho-
rar suas condições de existência (Bebbington, 1999) . No entanto, e essa
é a segunda problematização aludida, o tipo de ação de desenvolvimento
territorial será muito diverso segundo consideremos um ou outro tipo de
território e de objetivos da intervenção pública .
Nos territórios onde existe uma economia já montada, um tecido
social relativamente coeso e capacidade de ação coletiva por parte dos
grupos sociais existentes, a ação governamental pode assumir um caráter
mais indutor do desenvolvimento ou mais facilitador de novos empreen-
dimentos, para usar a classificação utilizada por Senra (2007) . O estímu-
lo ao empreendedorismo, mudanças nas relações com o mercado, novas
articulações e alianças com atores de fora do território, por exemplo,
podem ser suficientes para reforçar as energias latentes existentes no ter-
ritório, de modo a deslanchar processos de desenvolvimento .
No entanto, nos territórios, onde a pobreza rural é relevante e onde
predominam a fragmentação e a desarticulação econômica e social –
de modo que a identidade social fundamental é a da pobreza –, a ação
governamental deve assumir um papel muito mais ativo, no sentido
de liderar a construção de uma estratégia de desenvolvimento para o
território . Em casos como esse, a busca de alternativas econômicas que
garantam a geração de emprego e renda não é trivial, ainda que seja
uma prioridade indiscutível, sem a qual as dinâmicas econômicas e
sociais necessárias para viabilizar o desenvolvimento endógeno do ter-
ritório dificilmente serão desencadeadas .
Nesse sentido, a disponibilidade de um mix de políticas públicas
setoriais (econômicas, sociais, ambientais, culturais), mas implemen-
tado horizontalmente, é indispensável, desde que essas políticas sejam
executadas não como distribuição de benesses sem contrapartida, mas
como criação de oportunidades para que os agricultores possam aces-
sar recursos (materiais e simbólicos) que lhes permitam se organizar,
para gerar renda e emprego, empoderar-se frente às agências estatais,
ao mercado e aos demais grupos da comunidade ou da sociedade civil,
aceder a direitos sociais básicos de cidadania e exercer experimentos de
ação coletiva, que estimulem a solidariedade e sinalizem os benefícios
sociais que podem ser conquistados por sua valorização .
Ademais, a criação e o fortalecimento de redes sociais – sejam elas
de políticas públicas, de interação com mercados e de parcerias com
outras organizações da sociedade civil – que diminuam o isolamento
do território, conectando-o com outros territórios, regiões e países,
podem trazer ao mesmo tempo novas experiências, parcerias, finan-
ciamentos, alianças políticas etc . Essas novas dinâmicas talvez sejam
capazes de contribuir para o aumento de sua autoestima e para a
construção de algo tão difícil como a percepção de que o território
e os atores que nele se encontram são sujeitos de seu próprio desen-
volvimento . Essas preocupações parecem ocupar um lugar central na
definição e na implementação do Programa dos Territórios de Cida-
dania, criado em 2008 .

Coletânea de Artigos 347


348 Brasil Rural em Debate

Mas, neste ponto, queremos retornar a um requisito político já desta-


cado anteriormente . Não obstante todos os avanços conceituais e opera-
cionais já realizados, dificilmente a territorialização do desenvolvimento
será um instrumento suficiente para o combate à pobreza rural no país
se não vier acompanhado da preocupação, por parte dos atores sociais
presentes no território e a ele relacionados, de construir uma hegemonia
política que coloque no centro de qualquer projeto estratégico de desen-
volvimento territorial rural ou de dinamização econômica, social, políti-
ca e cultural dos territórios a superação e a eliminação da pobreza rural .

10.3.1 Os atores sociais e os processos de articulação


Como defende Markusen (2005), de certa maneira e de uma pers-
pectiva bem geral, é possível compreender o próprio território como um
ator coletivo que interage com as diferentes esferas do poder público,
cujas políticas incidem sobre as áreas inscritas nessa divisão espacial . No
entanto tal perspectiva, ainda que apresente ganhos ao trabalhar com
a lógica da ação coletiva, tendo como referência identidades comuns
a um determinado território, deve ser considerada com cautela . Além
da constatação, já mencionada acima, de que a própria identidade não
é algo fixo e imutável, reagindo ela própria ao processo de intervenção
governamental, é preciso levar em conta que o processo de construção
de uma determinada “postura territorial” (a partir da institucionalidade
e dos espaços de representação – arenas decisórias e/ou consultivas – ali
existentes) é fortemente conflitivo (Cazella, 2007) .
Dessa forma, as propostas que defendem uma dimensão “participativa
e negociada” (cf ., entre outros, FAO, 2005) da territorialização devem
considerar que, na área de abrangência das políticas territoriais, figura
um conjunto diferenciado de atores que podem ser distinguidos quanto
à localização propriamente dita das suas atividades e práticas (rural e/ou
urbana), ao caráter da propriedade dos ativos e do emprego de mão-de-
-obra (setor patronal, agricultura familiar), às áreas de atuação na ati-
vidade econômica (agropecuária, indústria, serviços etc .) e ao processo
de organização e representação política (sindicatos patronais e de traba-
lhadores, movimentos sociais, associações empresariais, consumidores,
ambientalistas, organizações não governamentais – ONGs, entre outros)
etc . Assim, mesmo quando se trata de pensar o desenvolvimento dos
territórios rurais (o que não exclui os pequenos municípios), é preciso
considerar a amplitude e o caráter do leque de atores envolvidos e pensar
a dimensão conflitiva como um processo intrínseco à constituição desse
novo espaço . O que nos leva, novamente, a pensar a construção de um
campo hegemônico nos processos em curso, como comentamos no tó-
pico anterior .
Como nos informa Leite et al . (2005), outro tema recorrente nas
atuais diretrizes de políticas territoriais e/ou de desenvolvimento – em
especial naquelas derivadas da proposição de agências multilaterais7
e nas demandas de diversas organizações da sociedade – a “participa-
ção”, muitas vezes é vista como uma “chave mágica” para ampliação
de processos de “democratização” e garantia de maior “eficiência” das
políticas públicas .
O debate sobre a importância e as formas de participação inten-
sificou-se no Brasil no início da década de 1980, ao mesmo tempo
em que se expandia um conjunto de fenômenos, normalmente iden-
tificados sob o termo “novos movimentos sociais” . As mobilizações
de diversos segmentos da sociedade; a constituição de novos grupos
e identidades; a presença de ONGs ajudando a formular propostas
e influindo na constituição de “novos personagens”; a ação da Igreja,
por meio das comunidades eclesiais de base e do apoio a formas de
organização emergentes, problematizaram o lugar e o papel do Estado,
ao mesmo tempo em que difundiram um discurso e fizeram prolife-
rar experimentos localizados em que a tônica era a de estar de “costas
para o Estado” (Melo, 1999) . Dessa forma, um conjunto significativo
de ações e de grupos de intervenção emergiu na cena político-insti-
tucional, voltado à mobilização popular, resultando em uma enorme
quantidade de experiências, que se propunham democratizantes e se
dispunham a questionar as relações de corte clientelista e/ou assisten-

7
Os argumentos que se seguem estarão fortemente baseados nas constatações contidas no texto de
Leite et al. (2005).

Coletânea de Artigos 349


350 Brasil Rural em Debate

cialista e autoritárias, percebidas como a representação de um passado


com o qual se queria romper .
O amadurecimento dessas experiências explicitou a dificuldade
de superar determinados modos de fazer política, impondo a refle-
xão sobre algumas características da trajetória dos grupos sociais e as
condições em que se dava o envolvimento das populações nesses ex-
perimentos . Por um lado, frente à necessidade de dotar as ações de
certa competência técnica, muitas vezes se reproduziram práticas im-
positivas nas relações entre mediadores e grupos sociais . Por outro,
desde logo a postura “de costas para o Estado” mostrou dificuldades de
sustentação, sendo substituída pela busca de mecanismos de diálogo e
de pressão em relação às diferentes instituições estatais, aumentando
a participação nas mesas de negociações . Nessa direção, diversos tipos
e formatos de arenas – consultivas ou deliberativas – foram acionados
e/ou construídos . Assim, demandas foram feitas e refeitas, políticas
desenhadas e redesenhadas, em função da particularidade das disputas
de interesse que, a cada momento, se conformavam, bem como da ca-
pacidade de cada um dos atores envolvidos legitimar socialmente suas
reivindicações8 .
Nesse processo de transformação da forma de organização e de re-
presentação dos interesses, o jogo político impõe que os atores envolvi-
dos falem uns com os outros, seja com os componentes de grupos com
os quais ocorrem disputas e conflitos políticos e por poder, seja com
os membros do próprio grupo que representam, de forma a garantir
sua legitimidade como porta-vozes . Torna-se míster, também, o reco-
nhecimento de um enquadramento institucional que, mesmo pensa-
do em termos minimalistas, implica a aceitação de algumas regras e a
construção de consensos entre os diferentes atores, o que, muitas vezes,
impõe a busca de alianças, mesmo que provisórias . Enfim, determina a

8
Cabe aqui um pequeno parênteses para destacar que a questão da intersetorialidade das políticas
públicas em um determinado território de atuação, comentada anteriormente, não é somente um
desafio do setor público (isto é, do lado da “oferta”), mas também um aspecto a ser enfrentado pelos
atores da sociedade civil que invariavelmente atuam de forma fragmentada e setorial no encaminha-
mento de suas demandas para o Estado.
passagem da postura da valorização da denúncia para a da capacidade
para formular proposições, de modo que o tema da participação ganha
relevo significativo .
A constituição de novas identidades, o surgimento de novos temas
de debate e de novas formas de compreender a participação política se
traduziu em arranjos institucionais inovadores, provocando alterações,
mesmo que moleculares, nas instituições, nas formas de representa-
ção, nos espaços e nos modos de fazer política . Essas mudanças são
indissociáveis não só da aparição de novas identidades e atores, mas
também da necessidade de reiteração da legitimidade para participar
dessas arenas . Redefinem-se, assim, as políticas públicas e o próprio
tecido social, que passa a ser permeado pela mobilização como forma
possível de forçar um diálogo com o Estado .
Como assinalamos anteriormente, se a descentralização que começa
a ocorrer no final dos anos 1980 e se aprofunda nos anos 1990 repre-
sentou, por um lado, uma progressiva desresponsabilização do Estado
em relação a uma série de tarefas, por outro abriu a possibilidade para
a constituição de mecanismos que impulsionaram consultas e partici-
pação das populações afetadas pelas políticas públicas, provocando um
revigoramento dos espaços locais de decisão e de implementação de
políticas, em especial dos municípios, que passaram a ser intermedia-
dores de recursos e, portanto, se tornaram focos de disputa .
O Pronaf-Infraestrutura9, por exemplo, foi certamente um programa pio-
neiro na renovação da institucionalidade local com sua exigência de elabora-
ção de Planos Municipais de Desenvolvimento Rural Sustentável e da insti-
tuição de Conselhos Municipais de Desenvolvimento Rural Sustentável . De
fato, esse programa é apontado como exemplo da importância da criação de
instituições que abram espaço e regulem a participação, ao mesmo tempo
em que é utilizado para chamar a atenção para a artificialidade dos mecanis-
mos participativos e dotados de pouca representatividade . Em certa medida,
poderíamos pensá-lo como um processo transitório de “institucionalização
9
O Programa Nacional de Fortalecimento da Agricultura Familiar, na sua linha Infraestrutura de apoio
aos municípios selecionados, antecedeu e foi substituído, em 2003, pelo PDSTR.

Coletânea de Artigos 351


352 Brasil Rural em Debate

territorial” . Muitas pesquisas apontam ainda para a dificuldade de partici-


pação de alguns representantes nos Conselhos, dado o desconhecimento
sobre o modo de operar das políticas públicas e dos meandros da burocracia
bancária e estatal . Em diversas situações, esses novos desenhos institucionais
configuram o que vem sendo chamado de “políticas de reconhecimento” de
atores específicos, que se fazem ver e reconhecer socialmente por meio de
suas particularidades . É o caso de assentados, agricultores familiares, quilom-
bolas, jovens, mulheres, idosos etc . (Abramovay, 2001; Favareto e Demarco,
2004; Romano e Delgado, 2002) .
Mas do que se fala exatamente quando a referência é a “participação”?
Muitas vezes, o debate tem sido reduzido à sua dimensão institucional,
ressaltando a presença (ou não) de agências, instâncias, procedimentos que
abram espaço para que os cidadãos possam expressar suas opiniões (Leite
et al ., 2005) . Conselhos e fóruns, que proliferaram no Brasil nos últimos
vinte anos, são tidos como exemplos da dinâmica participativa . No en-
tanto, como a literatura recente tem apontado, a sua mera existência não
tem sido suficiente para assegurar a participação, o que impõe a indagação
sobre quem participa, como participa e as condições da “participação” .
Tais indagações remetem a uma análise das dimensões culturais e insti-
tucionais dos processos políticos, bem como dos diferentes sentidos que a
participação e a motivação para ela podem assumir para os agentes envol-
vidos . Trata-se de buscar os significados da participação, evitando reduzi-la
estritamente a dimensões mensuráveis ou mais visíveis e buscando perce-
ber suas nuances, de forma a entender as diferentes disposições ou dispo-
nibilidades para participar da tomada de decisões em âmbitos societários
específicos . Comprometimento anterior com organizações (partidos, sin-
dicatos, associações etc .), envolvimento em mobilizações ou atividades po-
líticas, ganhos significativos em determinadas demandas resultantes desse
envolvimento, podem ser, por exemplo, fatores explicativos . Mas também
devem ser consideradas fidelidades pessoais, capacidade de buscar novos
aliados, de gerar fatos políticos etc . (Leite et al ., 2005) .
Outros elementos merecem aprofundamento na análise dos processos
participativos . Trata-se de indagar sobre a natureza das instituições e, prin-
cipalmente, dos grupos que são mobilizados . É possível destacar, ainda,
que os processos englobando o que se denomina de “práticas participa-
tivas” envolvem múltiplas dimensões: a) as experiências acumuladas que
constituem o mapa cognitivo das pessoas comuns e que as tornam mais
ou menos suscetíveis a se inserirem em determinadas redes sociais, onde
relações de confiança se constroem com base em critérios os mais variados
(e não somente aqueles estritamente do domínio da política); b) as formas
como se constitui e se desenvolve o processo de representação, uma vez
que ele não é dado, trata-se de um processo que supõe a construção e a
reiteração da legitimidade do representante; c) a porosidade das institui-
ções para permitirem e criarem espaço para que as múltiplas dimensões do
conflito, que são constitutivas do processo, se manifestem .
Esse último ponto tem recebido atenção especial no desenho re-
cente de programas governamentais, variando, no entanto, sua efetiva
capacidade de operacionalidade, conforme os arranjos institucionais
e políticos existentes . Na mesma direção, se por um lado a abertura
dessas arenas no desenho político-administrativo não é necessariamen-
te observada por todos os governos e formuladores de políticas, por
outro, quando existem, mesmo limitadas à sua dimensão estritamente
formal, não garantem a participação de todos os atores com os quais os
governos pretendem dialogar . Isso se explica pelo fato de que, na lógica
de algumas organizações, a relação com o Estado se dá diretamente
com os órgãos executivos dos programas (ministérios, secretarias etc .),
dispensando a mediação e o diálogo proporcionados por instâncias de
participação, como os conselhos, comissões, câmaras, colegiados etc .
A definição de quem são os “atores” propriamente ditos se constitui
em um outro ponto a ser ressaltado neste breve resgate do tema . Há
alguns cuja visibilidade e importância é indiscutível, na medida em que
adotam explicitamente o papel de protagonistas . Outros, porém, não
são tão visíveis e que precisam ser identificados, uma vez que podem se
tornar estratégicos em diversas dimensões – apoio financeiro ou mate-
rial, fornecimento de uma linguagem “adequada” por meio da qual se
exprimem necessidades locais e se produzem articulações de redes de

Coletânea de Artigos 353


354 Brasil Rural em Debate

apoio etc . –, assumindo assim um papel fundamental na intermediação


com os orgãos públicos e os demais atores locais . Trata-se de emprestar
visibilidade aos grupos sociais que devem ser incorporados à negociação
sobre as políticas orientadas para o desenvolvimento territorial .

10.4 Conclusões
Talvez não seja prematuro concluir que, com base na experiência brasi-
leira recente, parece existir um consenso crescente sobre a necessidade de
pensar “territorialmente” as políticas públicas e de consolidar um nível “in-
termunicipal” de articulação para operacionalizar propostas de desenvolvi-
mento . Nessa direção, um aspecto que ainda merece um esforço maior de
compreensão é o uso indiscriminado do conceito de “território”, que em
muitos casos tornou-se simplesmente sinônimo de micro ou mesorregião .
Isto implica o reconhecimento de que a dinâmica territorial engendra um
conjunto complexo de relações, disputas e interesses e de que não existe
um único território possível, mas sim territórios sobrepostos de acordo
com os objetivos para os quais foram definidos .
Percebe-se também que no plano “territorial” existe uma desarticula-
ção e pulverização dos programas e propostas, com diferentes divisões
(e visões) dos territórios nas diversas esferas governamentais . Esforços
para contornar essa situação têm sido impulsionados pelo governo fe-
deral no período recente, como a Câmara de Políticas de Integração
Nacional e Desenvolvimento Regional, a elaboração da PNOT e, mais
recentemente, a criação dos Territórios da Cidadania .
Como visto, a criação dos territórios, em particular aqueles implan-
tados no meio rural, colaborou para estabelecer as condições necessárias
à instauração de um diálogo constante em torno do desenvolvimento
entre diferentes atores sociais locais que até então tradicionalmente
não “se falavam” . Esse processo contribuiu para que os conflitos exis-
tentes entre os distintos atores que constituem o território sejam me-
lhor “trabalhados”, bem como estimulou esses atores a implementarem
ações conjuntas, em diálogo ou não com o Estado, orientadas para o
desenvolvimento . Por outro lado, a experiência permitiu, em diferen-
tes circunstâncias, construir e legitimar uma nova institucionalidade
operacional que intenta viabilizar a discussão, comparação e seleção de
projetos concretos e coletivos de desenvolvimento local, ultrapassando
os interesses eleitorais ou oportunistas de algumas prefeituras .
Contudo, são diversos os desafios que a política de desenvolvimento
territorial enfrenta no Brasil . Até o momento, ainda que algumas ex-
periências dos territórios da SDT tenham sido bem sucedidas e outras
do Programa Territórios da Cidadania estejam em implementação, são
numerosos os casos em que os resultados dessa política têm sido mo-
destos e reduzidos . Nesse sentido, são muitos os territórios em que
os fóruns ou colegiados não se fazem representativos de todos os seg-
mentos sociais da agricultura familiar local ou nos quais os colegiados,
em lugar de representarem espaços propícios à participação ampliada,
figuram muito mais como estruturas impostas por determinadas polí-
ticas públicas para que os atores locais acessem recursos federais .
Dessa forma, esses espaços não raro acabam excluindo de sua dinâ-
mica os segmentos menos articulados e mais carentes, reproduzindo,
a partir de seus instrumentos de operacionalização, a mesma estru-
tura preexistente de poder local e privilegiando alguns segmentos
em detrimento de outros . Ainda são recorrentes os casos em que o
PTDRS é muito limitado em sua abordagem de “desenvolvimento”,
englobando em sua maioria projetos setoriais e produtivos e excluin-
do de sua formulação a articulação da agricultura familiar com ou-
tros importantes segmentos sociais .
Por outro lado, a territorialização que emerge a partir da ação do setor
público deu origem, em algumas regiões e/ou estados do país, a uma
negociação sobre a delimitação e o reconhecimento desses novos espaços
de articulação, como foi o caso, por exemplo, do estado da Bahia . Tal
experiência - referindo-nos aqui particularmente ao caso dos territórios
rurais - tem possibilitado o exercício de outras políticas e/ou programas
que têm validado a escala territorial para suas estratégias de planejamen-
to, como, por exemplo, a elaboração dos PPAs de alguns governos es-
taduais . Um aprimoramento dessas iniciativas contribuirá, certamente,

Coletânea de Artigos 355


356 Brasil Rural em Debate

para o reforço e a legitimidade de ações que buscam o estabelecimento


de uma base espacial comum para sua operação .
Desta perspectiva, a abordagem territorial funcionou como facilita-
dora do exercício de diálogo entre o poder público e os atores sociais,
provocando uma mudança paulatina de postura por parte do setor
público, tanto no âmbito federal quanto estadual, com a abertura de
espaços e instâncias que permitem a prática do diálogo .
A articulação dos atores sociais pode e parece ocorrer intraterritório e
interterritórios . Os processos não são necessariamente de baixo para cima
ou de cima para baixo, mas diversificados e específicos a cada território em
questão . Eles demandam um misto de protagonismo dos atores locais com
atores externos, nas mais variadas escalas . Por isso, em certos casos existem
grupos de atores que não atuam apenas no território, mas se organizam
em redes sociais ou de políticas públicas que extrapolam as fronteiras do
território, permitindo que recorram diretamente, em suas reivindicações,
a esferas supra-estaduais e/ou nacionais . Em outros casos, a presença local
ou territorial de atores minimamente organizados é fundamental para po-
tencializar os resultados de uma política pública, aumentando o grau de
cobertura da mesma, bem como garantindo sua efetividade .
Um ponto adicional em relação aos desafios em curso diz respeito
à problematização da pauta dos projetos técnicos apresentados para
essa nova modalidade de implementação de políticas públicas . Es-
ses projetos, mesmo que tenham apresentado avanços, estão ainda
muito centrados na dimensão econômica e produtiva, especialmente
agrícola . Ainda que a base econômica seja fundamental para pensar
o território, existem outras dimensões que devem ser consideradas .

10.4.1 Os territórios são efetivamente rurais e


não exclusivamente agrícolas.
No que tange à articulação das políticas públicas, é importante des-
tacar, antes de mais nada, que a territorialidade já entrou na agenda do
Estado e das organizações sociais (nas mais diferenciadas escalas), tor-
nando-se progressivamente uma esfera privilegiada para o tratamento
das políticas públicas descentralizadas . Esse resultado é fruto de um
longo e duplo processo que tem a ver com a crise do Estado centrali-
zado e com a subseqüente descentralização, por um lado, e a luta pela
redemocratização da sociedade brasileira, por outro .
Esse duplo processo reinventou a relevância do local . No caso brasilei-
ro, essa “re-valorização” vai ser consequência da reflexão e da ação políti-
ca desencadeadas tanto pelos setores conservadores, como progressistas .
E isso traz implicações e complicações para a análise, que devem ser ob-
servadas . Traz complicações, por um lado, pois com a crise do Estado e o
neoliberalismo, ganhou predominância a idéia de que o Estado nacional
deveria concentrar suas ações na manutenção do equilíbrio macroeco-
nômico, enquanto a energia desenvolvimentista seria canalizada, através
de diversos arranjos produtivos e institucionais, para o local . Implica,
por outro lado, que a redemocratização deve estar associada à criação de
esferas públicas, à redefinição do padrão de relações entre Estado e socie-
dade civil e à ressignificação da noção de desenvolvimento, para incluir
as dimensões de inclusão social e política e de preservação ambiental .
Note-se que a descentralização e a redemocratização dos anos 1980
estabeleceram o município como a principal instância representativa
do local na experiência brasileira . A partir da década de 1990, no en-
tanto, começa a se consolidar a perspectiva de que são grandes as limi-
tações que o município apresenta como um espaço de planejamento
para a construção de projetos de desenvolvimento local sustentáveis .
Paulatinamente, e sob influência da experiência internacional, a idéia
de território foi se fortalecendo como uma instância mais adequada
para a apreciação do desenvolvimento e da governança locais . O terri-
tório se consolida, assim, como uma construção social de escala mais
ampla, que facilita a percepção e o surgimento de dinâmicas econômi-
cas, sociais, políticas e culturais mais complexas e promissoras, capazes
de envolver articulações rural-urbanas e propostas de ação coletiva por
parte dos atores sociais existentes com maior capacidade de impactar as
características e a sustentabilidade dos processos de desenvolvimento .

Coletânea de Artigos 357


358 Brasil Rural em Debate

Como buscamos demonstrar ao longo deste trabalho, é possível pen-


sar em três usos da abordagem territorial na perspectiva da intervenção
governamental . O primeiro é a territorialização da governança, cujo ob-
jetivo é a promoção de instrumentos de democratização de processos de
participação social e de processos de descentralização, de modo a criar
condições para que sejam geridos socialmente . O segundo é a territoria-
lização das políticas públicas, como uma tentativa de descentralizar as
políticas setoriais com o objetivo de ampliar o controle social sobre as
mesmas e torná-las mais eficazes na perspectiva da melhoria da qualida-
de da oferta de serviços e de bens públicos às populações locais . E o ter-
ceiro uso é a territorialização do desenvolvimento, que, embora abranja
os dois primeiros, tem como objetivo central a criação de instituciona-
lidades e a articulação de atores e de políticas públicas que favoreçam o
desencadeamento de dinâmicas endógenas capazes de sustentar proces-
sos de desenvolvimento territorial .
Esses três usos da abordagem territorial sugerem a pertinência de
várias escalas, instâncias e objetivos da territorialização, especialmen-
te quando o que se tem em vista é o enfrentamento, de diferentes
perspectivas, das desigualdades regionais e da pobreza, tanto pela ótica
da democratização da sociedade brasileira, quanto pela da redução/
eliminação das desigualdades econômicas e sociais existentes intra e
entre as regiões . Nesse sentido, não temos que nos prender a uma úni-
ca visão de territorialização, mas estar atentos aos distintos processos
que a constituem, insistindo em que, independente da visão adotada,
é indispensável a determinação e a definição claras das funções e dos
objetivos pretendidos por essas várias escalas e instâncias no processo
de implementação das ações governamentais .
Julho de 2009
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